Sei sulla pagina 1di 147

CRISTIANISMO ,;

E POLITICA
Teoria Bíblica e Prática Histórica
Robinson Cavalcanti

CRISTIANISMO .;

E POLITICA
Teoria Bíblica e Prática Histórica

m ~•
Editora Ultimato
2002
e 1985 by Robinson Cavalcanti

PROJETO GRÁFICO:
Editora Ultimato

PRIMEIRA EDIçÃo:
Julho 2002

REVISÃO:
Bernadete Ribeiro

CAPA:
Sonia Couto
(Fóto de Gabriele Viviani, retirada com permissão de Não se deve pôr em dúvida que o poder
Desenhos de Luz, Ed. Cidade Nova) civil é uma vocação, não somente santa e
legítima diante de Deus, mas também mui
sacrossanta e honrosa entre todas as
vocações.

Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação


e Classificação da Biblioteca Central da UFV Calvino

Cavaleanti, Robinson, 1944-

Cristianismo e política; teoria bíblica e prática histórica /


C376c
Robinson Cavalcanti. - Viçosa: Ultimato, 2002.
2002 288p.

ISBN 85-86539-50-3

1. Cristianismo e política. I. Título.

CDD. 19.ed.261.7
CDD. 20.ed. 261.7

2002
Publicado com autorização e com todos os direitos reservados
EDITORA U~TIMATO LTDA.
Caixa Postal 43
36570-000 Viçosa - MG
Telefone: (31) 3891-3149 - Fax: (31) 3891-1557
E-mail: ultimato@ultimato.com.br Ao meu filho Eduardo
wvvvv.ultimato.com.br
SUMÁRIO

Prefácio 9
Introdução 11

I. A Política no Antigo Testamento


1. Do Patriarcado à Monarquia 21
2. Os Caminhos da Decadência 33

11.A Política no Novo Testamento


3. O Político em Jesus 51
4. A Política da Igreja 67
5. A Doutrina Social dos Apóstolos: Paulo 79
6. A Doutrina Social dos Apóstolos: em Hebreus,
Tiago e Pedro 89
7. A Doutrina Social dos Apóstolos: João 95

111.A Política na História da Igreja


8. A Igreja e a Política na Idade Antiga 105
9. Política e Igreja na Idade Média 113
10. A Reforma e os Tempos Modernos 125
11. Política e Igreja na Idade Contemporânea 149
IV. Política e Igreja no Brasil
12. Religião e Política no Brasil 183
13. Presentes e Diferentes 247

Apêndice: Declaração de Jarabacoa 265


Bibliografia 279 PREFÁCIO

-
ESTE LIVRO FOI ORIGINARIAMENTE PENSADO HÁ
vinte anos - em plena ditadura militar - e é o resultado de
mais de dois anos de pesquisas. Visava ajudar a resgatar os
evangélicos brasileiros de sua compulsória amnésia histórica,
preparando-os para um novo ciclo democrático que se
avizinhava. Como professor universitário de ciência política e
como militante, procurei dar a minha contribuição
popularizando informações. Tive dificuldade em encontrar
editores. A primeira edição foi publicada em 1983, a segunda,
em 1988 e a terceira (ampliada), em 1994, totalizando 11 mil
exemplares vendidos em todo o país e nas mais diversas
denominações.
A parte bíblica e histórica permanece inalterada, mas fomos
acrescentando (como fizemos nesta edição) novos episódios
do século e da Igreja. O crescimento da população evangélica
tem sido vertiginoso, mas a sua participação e influência
política continuam quase nulas, em razão da sua teologia e
ideologia, do modo de pensar a vida e a missão.
Como autor, é gratificante ouvir testemunhos de pessoas e
de grupos que foram edificados, que cresceram em sua
cidadania e no compromisso histórico da fé a partir da leitura
de Cristianismo e Política. Creio que o livro permanece atual.
10 - Cristianismo e Política

Hoje, em razão do episcopado, estou desfiliado de partido


político. Aliás, estou filiado, mas sem cargo de direção em
sindicato. Porém ainda sou um estudioso e um evangélico
progressista, defendendo o evangelho integral, que leva à
transformação do mundo.
Sou grato à Editora Ultimato por esta quarta edição, em um
ano eleitoral.
Lamento que sejamos - como evangélicos - uma
multidão carente de discernimento, envolvimento,
misericórdia, ardor pela justiça, amor pelos excluídos,
coragem profética e coragem Ce conteúdo) para fazer um país INTRODUÇÃO
diferente. Vale a pena continuar tentando, esperando,
intercedendo, clamando.
Antecipando, nesta terra, a nova terra,

Robinson Cavalcanti
o problema: a ausência protestante na política
Paripueira CAL),13 de janeiro 2002
Batismo do Nosso Senhor Jesus Cristo A COMUNIDADE EVANGÉLICAEM NOSSO PAÍs SOMA JÁ
alguns milhões, distribuídos em todas as unidades da Fede-
ração, na maioria de seus municípios, principalmente nos
grandes centros urbanos. Somos uma comunidade de composi-
ção diversificada: homens e mulheres de todos os grupos étni-
cos, de todos os níveis de instrução, de todos os níveis sociais.
Retratamos, de certa forma, a realidade do país. Simbolizamos
a universidade da destinação da mensagem do evangelho: a
toda criatura. Somos uma comunidade pluralista com nítida ten-
dência à mobilidade social ascendente.
À nossa presença física e representação numérica não cor-
respondem iguais peso, influência e impacto na vida nacional.
Nossa comunidade tem vivido, maiormente, voltada para den-
tro de si mesma, suas atividades, programações, alegrias e
tristezas, endoconcentrada, como uma subcultura, numa cons-
ciência de minoria. Passado o tempo da discriminação que nos
era imposta, optamos porum auto-isolamento, construindo, em
paredes mentais, a realidade nefasta de um gueto. A esse isola-
mento corresponde uma diminuição da possibilidade de influ-
enciar a sociedade com nossas idéias.

\
Introdução - 13
12 - Cristianismo e Política

Entre as razões históricas que concorreram para esse estado Por ignorância, preconceito, ou medo, entregamos de mão
I ~

de coisas, destacamos: as limitações constitucionais durante o beijada o "filé do mundo" a Satanás e nos retraímos para as
período imperial (cidadãos de segunda classe); a discriminação áreas menos desafiantes. Estamos nos concentrando nas profis-
movida pela sociedade, clero romano e parte das autoridades du- sões técnicas, executivas e liberais, não contribuindo criativa-
rante a Primeira República; a origem estrangeira dos missionários mente com a formação da inteligência nacional. Raros, solitári-
pioneiros, que não se imiscuíam nos negócios da pátria hospedei- os, incompreendidos e impotentes são os que se aventuram à
ra; a situação de pobreza e baixo grau de instrução dos primeiros sociologia, à antropologia, à ciência política, à filosofia e às ex-
crentes; o sentimento de frustração e impotência que tende a ocu- pressões artísticas e literárias.
par lugar na mente das minorias; o desconhecimento da história A visão da igreja local como um feudo e da denominação
da Igreja, notadamente dos antecedentes do comportamento polí- como uma tribo, somada a um individualismo extremado, arre-
tico dos evangélicos em outras terras e outros tempos. jl dio ao associativismo, que tem caracterizado uma das deturpa-
Uma grande maioria encara a questão de uma das seguintes ções históricas da ética protestante, somente agrava o quadro.
maneiras: Tudo isso debilita a possibilidade de influência. O verão do
1. A política é mundana, não sendo, portanto, lugar para os mundo não será feito pelo vôo de andorinhas solitárias, alvos
crentes; mais fáceis ainda dos caçadores.
2. Não adianta fazer coisa alguma; devemos pregar o Nas últimas décadas, a presença de evangélicos na política
evangelho e aguardar o retorno do Senhor. " tem se caracterizado pelo individualismo de atuação (além do
Percebe-se, nitidamente, o desconhecimento de uma teolo- despreparo ético e científico de alguns), descompromisso com a
gia política, como uma das dimensões da ética, dentro da teolo- comunidade de fé, ausência de uma análise crítica global dos
gia sistemática. A leitura dos textos bíblicos referentes ao social problemas e de projetos alternativos, caindo em um imediatismo
e ao político é "espiritualizada", em deturpação de seu sentido de medidas da rotina das coisas, de cunho meramente
original. Confunde-se, por exemplo, a categoria mundo, que nas assistencialista e clientelístico. Sem uma identidade, sem uma
Escrituras traduz vocábulos diversos e sentidos vários. Tudo isso contribuição própria, tende-se a seguir a reboque dos diver-
se agrava por uma leitura superficial da escatologia pré-milenista: sos líderes, partidos e ideologias, tanto à direita quanto à es-
a expectação das coisas futuras nos conduz a uma inação diante querda.
das coisas presentes; a realização na pós-história nos faz perder O antipoliticismo de tantos é complementado pelo exagerado
o sentido da história. adesismo de muitos. Escrevemos em outro trabalho:
Percebe-se, igualmente, um forte processo psicológico de ra-
O texto que nos manda obedecer às autoridades é deturpado em
cionalização: "Se não pode ser meu, não é bom; não sendo bom,
sua interpretação; do institucional é transmudado em obediência
não devo desejar; não desejando, sem poder alcançar, não me
cega a determinado partido, ideologia ou sistema econômico,
frustro". Em nossa mente - e em nossa teologia popular não levando à perda da dimensão profética, desafiadora,
formalizada - tem lugar uma divisão das coisas em boas e más. transformadora, que deve ser apanágio da comunidade dos re-
Certas áreas de atividade humana seriam consideradas más, ter- midos.
ritório privado do inimigo, aonde não devemos ir, sob pena de
A perda da identidade não se dá apenas na sacralização do
inevitável derrota. Algumas dessas áreas - as artes, os espor-
status quo (este regime = mais cristão), mas, de igual modo,
tes, os meios de comunicação, a política - são justamente as
na sacralização do status quo de determinado país estrangeiro
mais importantes em termos de influência para a sociedade como
ou modelo alternativo (outro regime = mais cristão). I
um todo.
I

I
-
- Introdução -15
14 - Cristianismo e Política

Nota-se, cada vez mais, uma insatisfação quanto à presente responsável, tão culpado, quanto o voto consciente. Com exceção
maneira de ser e agir da comunidade evangélica, notadamente do alienado mental, do indígena (que vive a política da tri-
entre os jovens. Todos estão preocupados em expandir a influên- bo) e de alguns rurícolas (cultural e especialmente isolado), o
apolítico (alienado político) é consciente e deliberado em sua
cia da nossa fé libertadora pelo país, escravo do sincretismo, da
idolatria, dos cultos falsos, dos valores negativos, onde grassa a opção pela omissão, sendo, por conseguinte, co-responsável
cegueira espiritual, a imoralidade e a injustiça. A cada época, pelos resultados para os quais concorre com sua postura.
devemos reexaminar nossos deveres e possibilidades, em obe- O ser apolítico é um escapismo, uma fuga, uma irrespon-
diência à voz do Senhor, para a expansão do seu reino. sabilidade com sonora roupagem pseudo-inteligente, É uma ra-
cionalização, uma elaboração de desculpa para o indesculpável,
revestida, no caso do cristão, de uma embalagem espiritual, uma
Verdade básica: somos todos políticos "espiritualização" do pecado. A ignorância, o medo, o precon-
Não há nada mais cientificamente inexato e conceitualmente ceito, o egoísmo e a não autenticidade seriam causas de tão las-
impossível do que a pretensão de ser apolítico. Já afirmava timável e danosa escolha. Fuga da responsabilidade como cris-
Aristóteles ser o homem um animal político. Ser político é algo tão e como cidadão. Fuga da maturidade e do compor-tamento
inerente à condição do ser humano. Política significava, origi- adulto. O apolítico não tem como deixar de ser político, só que
nalmente, o conhecimento, a participação, a defesa e a gestão o é pessimamente.
dos negócios da polis (cidade-estado na Grécia). A vida social no Não há lugar mais político do que uma igreja. O que são os
seu todo, ou em cada um dos seus grupos ou instituições com- sistemas episcopal, presbiteriano e congregacional senão formas
ponentes, é uma vida política. Impossível a existência sem auto- eclesiásticas de governo? O que fazemos quando elegemos um
ridades, normas, sanções, mecanismos de participação, formas pastor ou excluímos um membro? Onde encontraríamos tão
de decisão. Vê-se o político pelo ângulo do poder inerente ao representadas as fraquezas humanas, o orgulho e a inveja, a luta
social. Abstraindo-se o conceito de poder, o social daria lugar ao pelo poder, as "queimações" e os conchavos, as tendências e os
caótico. partidos (de Paulo, de Apolo ... )?
O poder político (soberano e monopolizador da coercibi- Um problema, cremos, é a confusão que se faz entre o político
lidade) se manifesta contemporaneamente na instituição esta- e o eleitoral. O eleitoral é apenas uma das dimensões do político
tal. Todo homem é cidadão de um Estado, sujeito de deveres e e não esgota em si uma realidade muito mais abrangente. Quan-
direitos. Todo homem (incluindo-se o cristão) é sócio, do nasci- do se fala em política se pensa logo em eleições, comícios, cabos
mento até a morte, de um organismo político. Apenas o apátrida eleitorais, vereadores, deputados. Quem integra o processo elei-
não se vincula a um Estado, mas com documentos da organiza- toral faz política, mas nem todo que faz política está à frente do
ção internacional (a ONU) se insere politicamente, como resi- processo eleitoral. Ministérios, secretarias, cargos de confiança
dente temporário ou permanente, na vida do Estado que o rece- os mais importantes, se exercem à margem ou a posteriori desse
be. O apolítico é um personagem de ficção. processo. Que dizer dos países onde não há eleições: seriam Es-
O termo apolitico pode ser traduzido como apartidário, não- tados sem políticos? Sem política? Se o político não pode ser
engajado, alienado. Ser apolítico não é deixar de tomar posição. confundido com o eleitoral, não deve, semelhantemente, ser
Ser apolítico já é uma posição em si - uma opção para fora, identificado com politicagem, forma eticamente corrompida,
uma opção pelo não ser, uma opção pela omissão. A omissão é dado negativo, condenável, da realidade política. Porque existe
um voto permanente e reiterado em favor ou contrário a medidas, feijão podre não vamos deixar de comer feijão, julgando todos
governantes, partidos ou regimes. O voto por omissão é tão os grilos podres ...

---
16 - Cristianismo e Política Introdução - 17

Politicamente, podemos classificar as pessoas em: Sendo a atividade política algo necessário, válido e digno, os
a) alienadas: desconhecem os dados mais elementares, não cristãos, esclarecidos, devem se fazer presentes, interessados em
compreendem os porquês dos processos, evitam participar, não gerir alguma coisa pública (res publica), não só para assegurar os
conseguem dar significado a seus atos na polis; seus direitos e cumprir seus deveres (e os de sua família, de sua
b) conscientizadas: formam a opinião pública consciente, se igreja, de sua categoria profissional etc.), mas também para
interessam, procuram se manter informados, fazem opções cons- permear a sociedade de valores que redundem em uma maior
cientes, procuram influir; benefício para todos e cada um. É o que a Bíblia nos ensina e o
c) engajadas: uma parcela dos conscientizados que procura que a história atesta.
conduzir os acontecimentos, por vias eleitorais ou não eleito-
rais, formais ou informais, pacíficas ou violentas; do presidente
da República a um barbeiro que atua como agente
conscientizado, formador de opinião, passando pelos líderes
sindicais, estudantis, partidários etc., e os chamados grupos de
pressão.
Um país politicamente desenvolvido tem uma parcela dimi-
nuta de sua população alienada, um percentual majoritário de
conscientizados e um número significativo de engajados, que re-
presentam os diversos segmentos do povo, e dispõe de canais
estáveis de acesso e participação. Situação atípica é a do país em
guerra civil, em que o número de engajados chega a superar os
meros conscientizados, acarretando transtornos à vida econô-
mica do país. Os Estados politicamente subdesenvolvidos pos-
suem uma larga base de pirâmide social constituída de aliena-
dos, uma faixa intermediária limitada de conscientizados e uma
minoria privilegiada de engajados, representando apenas alguns
setores da população. Conscientizar, participar, reivindicar, fis-
calizar, sugerir, estabilizando os canais legais, de modo pacífico
e decidido, dentro de um pluralismo de posições mutuamente
respeitáveis, é contribuir para o desenvolvimento político de um
país.
Ser conscientizado é dever de todo cidadão. Somente as mi-
norias privilegiadas, que monopolizam o exercício do poder, é
que não estão interessadas nesse processo, antes preferindo a
apatia e a ignorância que tanto as beneficia. Ressaltamos a
necessidade de evitarmos uma conscientização unilateral (uma
só fonte), pois um amadurecimento político pressupõe uma
absorção seletiva, um acesso a dados e opiniões de diversas
tendências e procedências.
I.

A POLÍTICA NO
ANTIGO TESTAMENTO
\
1.

Do PATRIARCADO À MONARQUIA

Do Éden perdido à Canaã de justiça

DEUS GOVERNA, DE MODO ABSOLUTO, O UNIVERSO.


Antes da queda, a terra era, de modo particular, uma teocracia:
era Deus quem governava. A sua vontade se fazia "na terra como
no céu". Ao homem, representado por Adão, Ele havia delegado
atribuições específicas para representá-lo, como mordorno, ad-
ministrador. O governo do homem sobre a terra (Gn 1.28) não
se contradizia com o governo de Deus, porque a mente do ho-
mem estava em sintonia com a de seu Criador.
Pela ordem da criação não haveria na terra desigualdades so-
ciais, exploração, guerra, mas harmonia e justiça. Seria uma ter-
ra sem estratificação social nem fronteiras nacionais. A terra de
Deus era uma terra para os homens, com todos nela trabalhan-
do e dela se beneficiando, sem egoísmos privativistas. A lideran-
ça deste mundo era destinada, principalmente, a pessoas do sexo
masculino, tendo a mulher, em dignidade, ativa participação
cooperadora.
A queda do homem transtorna toda a terra, abandonando-se
a ordem da criação. Conhecemos o crime (Gn 6). A um povo
22 - Cristianismo e Política Do Patriarcado à Monarquia - 23

não arrependido, Deus envia o dilúvio purificador (Gn 7). À Ao patriarcalismo, sucede-se a vida sob o imperialismo egípcio.
aliança com Adão, sucede-se uma aliança com Noé, reiterando- Manifestam-se as tensões e a instabilidade: a servidão de José, a
se a promessa de Deus não abandonar o gênero humano, nem sua colaboração com um governo adorador de falsos deuses,
destruí-lo (Gn 9). Começa tudo outra vez. sua ascendência na hierarquia governamental a um posto seme-
Mas não tendo sido a natureza humana modificada, cedo a lhante ao <te primeiro-ministro (Gn 40.37-46), a providência de
corrupção volta a se manifestar. A megalomania e a auto-sufici- I)eus nesse episódio para a salvação de seu povo do flagelo da
ência são apresentadas pelo episódio da torre de Babel (Gn 9.1- fome, o tratamento privilegiado sob uma dinastia e espoliativo
9). O Senhor providencia uma divisão cultural da espécie hu- sob outra, a educação esmerada de Moisés ete.
mana, durante a história, para limitar a unidade em torno das Não se pode julgar a vida dos indivíduos e das nações por
causas negativas. A união em torno do mal aumenta a força do ratos isolados, e sem levar em conta os planos de Deus. Vergo-
mal. Todos os impérios fizeram sofrer e ruíram. Famílias, clãs, nhoso o "colaboracionismo" de José? Garantiu a sobrevivência
tribos e nações, experimentariam novas formas de organização dos seus para algo mais digno no futuro. Condenável a educa-
social, segundo o gênero de sua inteligência e as limitações de ção de Moisés na corte do Faraó? Preparou um estadista, 'um
seu caráter. líder, para uma missão maior. Tudo isso nos conduz ao êxodo, à
Almejando a restauração, a Providência se insere, em especi- libertação, à derrota dos opressores, ao mar Vermelho, ao Sinai,
al, na história, pela eleição de um povo, de uma nação, como ao maná, à Canaã. Ieová providente, Ieová sustentador, Ieová
instrumento de bênçãos para todos os povos, para todas as na- libertador.
ções. É o que configura o chamado de Abraão (Gn 12.1-3). Sob O Senhor suscita a liderança carismática de Moisés. A grande
Abraão, Isaque e Jacó (homens a quem o Senhor falava e envia- Iição da necessidade de descentralização administrativa é ensi-
va seus anjos), o povo de Deus vive a experiência política do nada por seu sogro Ietro (Êx 18.13-27), com a nomeação de
patriarcalismo (que conhecemos, em determinado estágio, na vida auxiliares para julgar e orientar o povo. A Lei é dada. Seguem-se:
de outros povos),.a partir da organização familiar primitiva, de a desobediência, a longa peregrinação, a entrada na terra pro-
chefia masculina autoritária, do patriarca como pai de uma fa- metida (espaço geográfico sujeito à soberania de Israel), a lide-
mília ampla, que inclui todos os dependentes. No patriarcalismo rança militar de Iosué. Assim pode ser descrita a situação:
esses elos não são apenas de consangüinidade, mas de adesão, Ieová era o dirigente da nação que habitava com eles entre os
de uma vivência sob o mesmo teto, na mesma fonte de subsis- querubins (Êx 25.22). Nele todos os poderes do Estado
tência, no mesmo alimento, em uma interação eminentemente (legislativo, executivo e judiciário) estavam reunidos. Ele procla-
primária (íntima e duradoura). Uma autoridade única se esta- mou as leis fundamentais do Estado aos ouvidos da congrega-
belece: a do patriarca, com normas que a todos obriga, em leal- ção. Depois da imediata apresentação de si mesmo à nação, Ele
dade e fidelidade pessoal. exerceu suas funções governamentais maiormente por meio de
homens que Ele levantou. Como todos os potentados, Ele dele-
Esse patriarcalismo, modalidade primitiva da fase de "poder
gou as funções judiciais na sua maioria aos juízes, e somente os
personalizado" (Duverger), antecedente das formas pré-estatais de casos mais difíceis eram trazidos a Ieová (Êx 18.19). [...] As fun-
patrimonialismo (Weber), não adquire caráter normativo para o ções legislativas, Ele as exercia por meio de Moisés e os profetas
povo de Deus. Nem essa, nem outras das formas de governo sob (Dt 18.15-19). A legislação era intermitente; as leis existentes eram
as quais viveu Israel em sua história são alvos de uma suficientes e raramente requeriam modificações e emendas.
"sacralização", de uma imutabilidade. Embora separado, Israel As funções eram igualmente exerci das durante muitos anos
se insere em épocas e locais definidos, vivendo experiências em intermitentemente por meio de dirigentes chamados juízes, que
grande parte comuns ou afins com as dos outros povos. eram instituídos de tempos em tempos, os quais, acreditados
24 - Cristianismo e Política Do Patriarcado à Monarquia - 25

pelos grandes feitos das mãos de Deus, conquistavam a destinada ao trabalho e à produção, nunca como fonte de ócio e
confiança pública e se tornavam líderes nos assuntos de Esta- mero acúmulo de bens. Sendo as propriedades bens inelásticos,
do. (The Webster Dictionary of the Bible.)
o acúmulo por uns iria, necessariamente, conduzir ao empobre-
Israel deveria se reger por um estatuto: um conjunto escrito e cimento de outros. O Senhor proibia a venda da terra como títu-
coerente de normas. Havia, assim, leis referentes à forma de cul- lo de perpetuidade, alegando o caráter transitório da passagem
to, leis para proteger os direitos do homem (liberdade, integri- do homem pela terra e o fato de recebermos as coisas das suas
dade física, propriedade), leis para governar a conduta pessoal, mãos (mordomia) com uma finalidade. "Porque a terra é mi-
leis sobre os dias santificados e sacrifícios, leis sobre a saúde e nha" (Lv 25.23), dizia Ele. Propriedade, sim, mas com consciên-
higiene ete. O conteúdo ético, profundamente humanitário, cia de mera posse, para uso e fruto;
dessas normas se chocava com a mentalidade do povo, em seu 2. A sociedade era praticamente rural e a economia, baseada
estágio de evolução cultural e sob forte influência dos povos nos setores primários: agricultura e pecuária. Após a tomada da
vizinhos, politeístas e idólatras. O tratamento dispensado ao terra, deveria se fazer uma "reforma agrária", dividindo-a entre
servo, os direitos dos órfãos e das viúvas, a proteção ao estran- as onze tribos e, dentro de cada tribo, subdividindo-a em pe-
geiro, a condenação à mentira e à calúnia, a existência de cida- quenas propriedades familiares. As onze tribos, com seus dízimos
des de refúgio, o respeito aos magistrados, de quem era exigido e ofertas, sustentariam a tribo de Levi, destinada ao trato do sa-
honestidade no julgamento, a proibição da usura e a devolução grado, q.ue teria direito a imóveis urbanos: casas e glebas
do furto em dobro, eram princípios avançados, considerados circunvizinhas. A sucessão da propriedade deveria se manter
pesados ou de impossível cumprimento por um povo pecador .Ó:
dentro da família. A venda de uma gleba denotaria situação de
Destacamos a instituição do ano sabático e do ano do jubi- dificuldade financeira da família. Era assegurada a retrovenda,
leu. Cada sétimo ano (ano sabático) era um ano de descanso podendo esse "resgate da terra" (hipoteca) ser feito pelo próprio
para a terra (de profundas implicações agronômicas e ecológi- ex-proprietário, quando conseguisse recursos, ou por um paren-
cas), nela nada se cultivando. O que nascesse por si mesmo era te seu. O valor da propriedade, para estabelecimento do preço
permitido aos pobres colher, e a sobra era dada aos animais (Êx para a venda, tomava por base dois índices: as benfeitorias nela
23.10-11). Para acalmar temores, Deus assegurava uma safra ex- existentes e a quantidade de anos que restavam em relação
cepcional a cada sexto ano: "Então eu vos darei a minha bênção ao do jubileu, ocasião em que se dava uma "total e recíproca
no sexto ano, para que dê fruto por três anos. No oitavo ano anistia de dívidas". As propriedades urbanas muradas (resi-
semeareis e comereis da antiga" ( Lv 25.21-22). O jubileu coin- dências) eram uma exceção, podendo se realizar uma transa-
cidia com um ano sabático, comemorado a cada 50 anos, carac- ção permanente, menos quando os proprietários fossem le-
terizado pelo perdão mútuo de todas as dívidas e a restituição vitas;
das propriedades aos detentores originais. As desigualdades so- 3. Era proibida a escravidão dentro do povo, devendo todos
ciais que porventura tivessem surgido eram sujeitas a um ciclo se considerar irmãos. Uma dívida poderia ser paga com servi-
de renivelamento a cada cinco décadas. dão, igualmente liberada no jubileu. A legislação penal e civil a
É interessante observar esse modelo de sociedade considera- todos obrigava e concedia direitos, inclusive a um julgamento
do possível de ser vivido pelo homem em seu presente estado e,
justo e honesto, quando os juízes não deveriam olhar para a
por conseguinte, ordenado por Deus:
condição social ou receber propinas. Era, contudo, permiti-
1. Existia a propriedade privada da terra, casa, animais, da a escravidão de estrangeiros que guerreavam contra Israel e
utensílios e instrumentos de trabalho. Essa propriedade era eram derrotados, sujeitos, porém, a bom tratamento;
26 - C ristianismo e Política Do Patriarcado à MonarqUia - 27

4. A organização política era fortemente descentralizada, com do modelo era religiosa e se fazia a partir da fé. Havia uma
a autoridade repousando, em círculos concêntricos, no pater integração na piedade.
família, no clã (anciãos, juízes locais) e na tribo. Em lugar de um O modelo era pré-estatal, descentralizante, fortalecedor da
Estado, havia uma liga sacral de doze tribos, ou anfictionia família e da comunidade local (municipalidade, hoje),
estabelecida no Congresso de Siquém Os 24), com uma identi- mantenedor da identidade regional tribal (unidades federadas,
ou Estados-membros, hoje). As funções do governo central eram
dade nacional comum, a defesa mútua contra o agressor e o
as menores. A justiça era o alvo número um, pela democratiza-
vínculo sagrado em torno do culto: a lei, a arca, o sacrifício,
ção da propriedade, em conseqüência de seus resultados econô-
simbolizado por um santuário (inicialmente em Siquém, de-
micos, e não pelo coletivismo ou estatização. Se, por um lado, a
pois em Betel e, posteriormente, em Silo). Em termos nacionais,
vontade de Deus era que não houvesse os extremos de riqueza e
destaca-se a liderança dos sacerdotes e dos juízes, líderes de guer-
pobreza entre seu povo, por outro, aplicava-se ao indivíduo, às
ra, governantes na paz, figuras carismáticas. De Iosué a Sansão,
associações e ao Estado o último mandamento: "Não cobiçarás
foram doze os juízes em Israel.
a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo,
A terra de Canaã não estava despovoada, nem foi conquista-
nem o seu servo, nem a sua serva, nem o boi, nem o seu jumen-
da por exército formado apenas pelas hostes angélicas. Foi
to, nem cousa alguma que pertença ao teu próximo" (Êx 20.17)
conquis-tada por uma sucessão de guerras, com varões hebreus Condicionados pelos modelos econômicos de nosso tempo,
engajados em um exército, sob a liderança de homens. Para se estamos distantes do modelo de Deus, com a consciência
manter, teve de se organizar militar e politicamente. O Senhor anestesiada, cheia de racionalização (falsas desculpas), driblando
os guiava e abençoava em atividades hoje consideradas "não- os textos bíblicos incômodos, gozando ou almejando privilégi-
espirituais". O seu Deus não os arrebatou às nuvens, mas condu- os às custas da exploração do próximo, entrando na "roda viva"
ziu-os no tempo e no espaço, no todo de sua humanidade. da grosseira e desumanizante competitividade. E, quando rejei-
Aos que "espiritualizam" os textos bíblicos, pedimos hones- tamos esses males, aspiramos como alternativas outros cami-
tidade em sua leitura. Que vejam como a providência de Deus é nhos seculares, materialistas.
palpável e como Ele orienta os homens em suas necessidades
concretas, como Ele planejou uma sociedade caracterizada pela
A monarquia e o seu apogeu
justiça e como isso nos fala hoje, como povo seu. Será que todo
esse maravilhoso conteúdo de ética é apenas "coisa do passa- A instituição dos juízes estava em crise. Com Eli e Samuel -
do"? Ou nos conduz a uma reflexão e nos ajuda na compreen- que acumulavam também as funções de sacerdotes - falha o
são de Deus e do mundo, e na necessidade de tomar certas posi- esquema de sucessão por hereditariedade. Os grandes líderes
ções, fazer certas opções? nacionais haviam fracassado na educação de seus próprios fi-
Aos politizados, que poderão se entusiasmar e dizer: "é exa- lhos. As "grandes causas" muitas vezes absorvem os grandes
tamente isso que devemos hoje", advertimos para a peculiarida- homens, que se esquecem e falham nas coisas pequenas e im-
de do povo de Deus. Aquelas eram normas para o povo de Isra- portantes. Os filhos de Eli caíram em um desregramento sexual
el. Havia uma consciência de diferença entre os irmãos e os es- com as mulheres que serviam no templo, profanando o santo
trangeiros. E por quê? Porque não se pode separar essas normas lugar (1 Sm 2.22); os de Samuel, que, em virtude de sua avança-
de seu caráter revelacional, da crença dos que deveriam praticar da idade, já exerciam funções públicas, eram excessivamente
de que eram dadas por Deus. O povo da "reforma agrária" e inclinados aos valores materiais, cometiam injustiças em suas
do jubileu era o povo da arca e do sacrifício. A legitimidade decisões e aceitavam suborno (1 Sm 8.3). O parentesco .não se
28 - Cristianismo e Política Do Patriarcado à Monarquia - 29

constitui em melhor critério para a escolha de líderes políticos, Senhor, e o servirdes, e lhe atenderdes à voz, e não lhe fordes
enquanto que as falhas de seu caráter se refletem na maneira de rebeldes ao mandado, e seguirdes o Senhor, vosso Deus, tanto
agir na esfera pública. vós como o vosso rei governa sobre vós, bem será. Se, porém,
A mudança na forma de governo em Israel foi impulsionada perseverardes em fazer o mal, perecereis, tanto vós como o vos-
por dois motivos: primeiro, uma crise de confiança na qualida- so rei" (1 Sm 12.14, 25).
de de seus líderes; segundo, a não aceitação de ser diferente Essa admoestação pode ter um caráter normativo e geral: o
(mesmo por vontade de Deus) e o desejo de imitar os outros sucesso de qualquer modelo político ou governante está em uma
povos circun-vizinhos. "Constitui-nos, pois, agora, um rei sobre adequação aos postulados da revelação, tanto por parte dos gover-
nós, para que nos governe, como o têm todas as nações" (1 Sm 8.5). O nados, quanto dos governantes. Caso contrário, conhecerão o
Senhor, doador da liberdade, atende ao pedido do povo, antes, fracasso, O problema básico, então, não é este ou aquele mode-
porém, advertindo para os encargos e riscos da opção: o peso da lo em si, mas a maneira de seu exercício, o conteúdo ético de
tribu-lação, o ônus da corte, o serviço militar ete. Não conse- cidadãos e dirigentes, como indivíduos e no desempenho de
guindo persuadir, fala aSamuel: "Atende à sua voz e estabelece-lhe seus cargos.
um rei" (1 Sm 8.22). Renwick assim comenta o episódio: É o que se observa com os três reis da monarquia unificada:
Agora, levado por um sentimento de orgulho nacional, vai pedir Saul, Davi e Salomão. A primeira fase do governo de Saul é um
um rei. A monarquia, no fim das contas, nos destinos da Provi- sucesso, tanto no campo militar quanto no administrativo. Isra-
dência, tinha por objetivo dar ao povo eleito uma idéia do reina- el alarga e consolida suas fronteiras e se afirma como nação so-
do messiânico. Mas se tivessem seguido a Deus, tornava-se dis- berana. A desobediência de Saul (que chega ao ponto de con-
pensável a presença dum rei terreno. sultar um médium), o esfriamento de sua vida espiritual e o
Samuel, como juiz teocrático de todo o Israel, representante embrutecimento de seu caráter o conduzem à decadência e à
de Ieová. unge Saul secretamente. Depois, em ajuntamento so- morte, e Israel a uma grande derrota militar diante dos filisteus.
lene, realiza um sorteio que, providencialmente (não por mera Interessante a sua racionalização: ele se desviara de Deus, mas
coincidência), recai sobre o mesmo, da família de Matri, da dizia na sessão espírita: "e Deus se desviou de mim e já não me
tribo de Benjamim. Saul é proclamado rei de Israel e aclamado responde" (1 Sm 28.15).
pelo povo, mas a sua legitimidade se afirma pelo presenciar Qualquer nação pode pagar caro o seguir um governante apar-
de fatos que atestaram que Deus estava com ele: o profetizar tado dos caminhos do Senhor. Isso tem ocorrido, com freqüên-
(1 Sm 10.9-11) e a vitória militar contra os amonitas (1 Sm 11.11). cia, na história: Hitler, Stalin ete. Que pensar de nosso próprio
A autoridade do sacerdote, o método, a forma de escolha e a país, quando elegemos governantes que, entre outros pecados,
comprovação dos fatos de que "Deus lhe mudou o coração", "o consultam os mortos? Poderemos ser vitoriosos?
Espírito do Senhor dele se apossou", indicavam que algo di- Saul não constituiu dinastia. Seu filho e herdeiro Iônatas, de
ferente ocorrera àquele indivíduo. Cabia agora a Samuel re- caráter ilibado, perece na guerra. Sucede-o Davi, seu genro, àquela
nunciar ao cargo, transmitir todos os poderes ao novo gover- altura já um herói nacional. Este enfrenta, inicialmente, uma
nante, encerrando um capítulo na vida política do país. Presta, guerra civil. É aclamado rei no sul (Judá), mas no norte (Israel)
então, contas de sua administração. Há um reconhecimento geral ls-Bosete, filho de Saul, é eleito o rei com o apoio de uma facção
de sua capacidade e do caráter absolutamente honesto de sua cio exército. São cinco anos de luta fratricicla. O reino do norte
gestão, e de que essa deveria ser a norma de todo governante. era filho da desobediência. Toda a nação sabia que Davi havia
No seu discurso de despedida Samuel dá a receita para o sido ungido pelo velho e aposentado Samuel, segundo orientação
sucesso da monarquia recém-instaurada: "Se temerdes ao de Deus: "Disse o Senhor: Levanta-te e unge-o, pois este é ele ...
30 - Cristianismo e Política Do Patriarcado à Monarquia - 31

e, daquele dia em diante, o Espírito do Senhor se apossou de Mas Davi também deu suas mancadas e sofreu com isso. Com
Davi" (1 Sm 16.12-13). Is-Bosete era um sujeito de persona- o passar dos anos deixou-se levar por um sentimento de
lidade fraca, dominado por seus ambiciosos chefes militares. autoconfiança e auto-indulgência, acomodando-se, influencia-
O que o leva à derrota são as próprias desavenças entre ele e do pelo estilo de vida dos governantes vizinhos. Desfrutava do
os generais Abner e Ioabe. O primeiro, ambicioso e sem es- poder e délegava atribuições aos subalternos, inclusive o coman-
crúpulos; o segundo, sedento de vingança. Is-Bosete é morto do militar. O seu relacionamento afetivo com Bate-Seba, que
à traição por dois capitães de sua própria tropa: Baanã e provocou a morte de seu marido Urias, foi repreendido por Deus
Recabe. por meio do profeta Natã. Restaurado espiritualmente, teve, con-
O gênio de estadista de Davi se revela em suas ações para tudo, de enfrentar uma séria crise política de caráter dinástico:
especificar e reconciliar a nação dividida. Sepulta com honra e seu próprio filho Absalão, provavelmente desconfiado de que
dignidade Abner e Is-Bosete, granjeando a simpatia de seus fa- não seria o sucessor, chefiou uma revolta sangrenta contra o pró-
miliares e amigos, comandados e conterrâneos. Manda executar prio pai. Davi chegou a ficar em situação minoritária. A fidelida-
os assassinos de Is-Bosete. Não procura vingança, antes, implici- de dos chefes militares salvou o trono.
tamente, concede anistia geral. Deixa com vida o único descen- Escolhido Saio mão como sucessor, nova revolta teve lugar
dente de Saul, seu neto Ziba, filho de Iônatas, e ainda lhe conce- sob a chefia do primogênito Adonias, que foi derrotado, pois
de uma pensão vitalícia e direito de comer no palácio real. E, Salomão seria rei por promessa divina. Deve-se ressaltar, porém,
por fim, muda a capital para Jerusalém (tomando-a dos filisteus), que as crises de sucessão nas monarquias orientais têm prosse-
"território neutro" entre Iudá e Israel, uma espécie de "distrito guido até os nossos dias, porque, ao contrário do Ocidente, onde
federal", que reduziria as rivalidades. Interessante a declaração a prevaleceu o claro dispositivo da primogenitura, lá qualquer um
Davi feita pelos líderes nortistas: "Somos do mesmo povo que dos filhos do monarca pode sucedê-I o, dependendo da opinião
tu és" (2 Sm 5.11). Davi não aclamava para si os méritos, mas, do pai, dos parentes e dos chefes políticos e militares. Daí a ins-
como governante teocrático, tinha consciência de sua escolha tabilidade.
por Deus, e, por outro lado, pela vontade do povo que o acla- Saio mão foi um governante bem-intencionado. No início,
mara. Vontade de Deus e vontade do povo - eis a síntese ideal pediu a Deus sabedoria, no que foi atendido, sob a condição de
de legitimidade que Davi encarnava. obediência aos estatutos. Edificou o majestoso templo de Jeru-
Davi estabelece um governo de paz e justiça no plano inter- salém. Construiu palácios. Foi bem-sucedido no campo diplo-
no, e, externamente, de segurança, vencendo militarmente os mático. Israel conheceu um período de apogeu, chegando a ser
inimigos ou estabelecendo amistosas relações diplomáticas. O contado como uma das potências da região. O fausto da corte,
Senhor estabelece aliança perpétua com ele com a promessa de porém, implicava uma opressão tributária sobre o povo. A am-
edificação de um templo por um de seus descendentes (2 Sm 7), pliação das atividades comerciais resultou em uma economia
ao que ele responde com ações de graças. Davi demonstra a com- monetária e no aparecimento de uma classe de negociantes. A
patibilidade da masculinidade com a religião; a destreza militar concentração de renda acarretou uma diferenciação mais pro-
com a sensibilidade poética e musical; o gênio de estadista com funda nos estratos sociais, muito embora permitisse um impul-
a piedade, a contemplação e a oração. Ao final da existência, so no campo cultural: intelectuais, arquitetos, pintores etc, o que
tinha autoridade para dizer: "0 Espírito do Senhor fala por meu roi chamado de "humanismo salomônico" ou "iluminismo
intermédio, e a sua palavra está na minha língua", e que salornô nico ", O regionalismo e o auto-nornismo do norte e
governante bem-sucedido é "aquele que domina no temor do sul, contudo, foram se acentuando, com o norte em crescente
do Senhor" (2 Sm 23.2-4), ou seja, com piedade e retidão. i nsatisfação.
32 - Cristianismo e Política

Espiritualmente, foi Salomão, na sua juventude, um


sincrético: "amava ao Senhor ... porém, sacrificava nos altos"
(1 Rs 3.3). Na maturidade foi umjavehcêntrico, o construtor do
templo e o compositor sacro. Na velhice tolerou amplamente o
2.
pluralismo religioso, com santuários idolátricos de Astarote,
Milcam, Cornos e Moloque. Enquanto seu pai veio de origem
humilde e levou em simplicidade espartana a maior parte de
sua vida, Salomão, nascido em "berço de outro", sempre amou
o conforto e as benesses decorrentes da riqueza. Seu grande pe-
cado, conforme explicamos em Uma Bênção Chamada Sexo (ABU
Editora), não foi a poligamia, mas os casamentos mistos. E isso
Os CAMINHOS DA DECADÊNCIA
ocorreu por razões políticas. Era costume cimentar as alianças
de paz entre os reinos pelas uniões matrimoniais entre as casas
reinantes, e Salomão selou esse tipo de "tratado de paz" com
toda a sua vizinhança. Casou, logo de início, com uma filha do
Faraó do Egito, o mesmo fazendo com princesas moabitas,
amonitas, edomitas, sidônias e hetéias (1 Rs 11), sendo elas
as responsáveis pela introdução do politeísmo e da idolatria,
motivando a repreensão do Senhor. A divisão do reino: Israel e Judá
Nova crise dinástica teve lugar com a morte de Salomão. O
reino foi dividido: no sul, Iudá acatou o sucessor indicado,
Roboão; no norte, Israel se separou, coroando Ieroboão. JAMAIS OS DOIS ESTADOS VOLTARIAM A SE REUNIR.
Conheceriam fraqueza e decadência com a divisão. O Estado do
norte, Israel, subsistiu de 926 a.C, com Ieroboão, até 723 a.c.,
com Oséias. Em dois séculos conheceu vinte reis. Caracterizou-
se pela instabilidade política. Os descendentes da dinastia
davídica foram todos mortos. Onri e Ieú conseguiram fundar
dinastias. As demais sucessões foram violentas, com chefes mili-
tares porfiando entre si e se tornando reis. Espiritualmente a
situação foi quase sempre crítica. Ieroboão, não querendo que
seus súditos mantivessem Jerusalém (que ficara sob o poder
de Iudá) como santuário, estabeleceu dois centros de adora-
ção, em Betel e Dã, para cultos a bezerros de ouro (1 Rs 12.25-31),
constituindo sacerdotes de fora da tribo de Levi. Nadabe, Baasa,
Onri, Acabe, Acazias, Iorão e tantos outros recebiam semelhante
julgamento: "Fez o que era mau perante o Senhor". O reino termi-
nou com a invasão assíria e todo o povo levado cativo para aquele
país.
34 - Cristianismo e Politica Os Caminhos da Decadência - 35

A Bíblia considera o fim do reino de Israel como vontade de Nabucodonosor, da Babilônia, invadiu Iudá três vezes: em
Deus e castigo por seus pecados. O povo praticava a idolatria: 605, 597 e, finalmente, em 486 a.c. Na primeira invasão Jerusa-
colunas, altos, postes ídolos, imagens de fundição, Baal, bezer- lém foi conquistada, Ieoaquim foi transformado em rei-vassalo
ros de ouro. Queimavam crianças.em sacrifícios, consultavam e parte-da população foi levada cativa, assim como os tesouros
adivinhos e agoureiros, não davam ouvidos aos profetas. Em da capital. Na segunda invasão Joaquim, filho de Ieoaquim, foi
vez de cumprir os estatutos de Deus, seguiam os costumes dos destronado e levado prisioneiro, com mais alguns milhares de
povos vizinhos. "Pelo que o Senhor rejeitou a toda a descen- judeus, alguns simpatizantes de uma aliança protetora com o
dência de Israel, e os afligiu, e os entregou nas mãos dos Egito. Com alguma ajuda dos egípcios, Jerusalém resistiu dois
despojadores, até que os expulsou da sua presença" (2 Rs anos e meio, até ser tomada por uma força avassaladora de
17.20). I' babilônios e aliados. Zedequias, o último rei, foi feito prisionei-
Elias e Eliseu foram os principais profetas usados por Deus para ro pelo resto da vida e, depois de ver seus filhos e os príncipes de
advertir o reino do norte. Advertiram, exortaram, realizaram mila- Iudá todos mortos, teve seus olhos vazados. O templo, os edifí-
gres e prodígios. Tudo em vão. À decadência política precedia uma cios importantes e as casas foram queimados, o muro da cidade
decadência espiritual e moral. As dez tribos do norte nunca mais foi derrubado e os utensílios do templo, bem como a liderança
voltariam como tribos. A grande maioria, por casamentos mistos e do país e a maior parte de sua população, foram levados.
adesão aos cultos pagãos, foi assimilada na cultura assíria, perden- Isaías (durante os reinados de Uzias, Acaz e Ezequias),
do sua identidade. Uma hipótese viável é que um remanescente Ierernias (nos reinados de Iosias, Ioacaz, Ieoaquim e Zedequias),
tenha voltado a Jerusalém, juntamente com os judeus, na época de e Ezequiel (no reinado de Joaquim) foram os principais pro-
Esdras e Neemias (Am 9.11-15; Os 14.4-9; Tg 1.1). fetas. Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias são outros do
O reino do sul, Iudá, era menor em extensão geográfica e período de Iudá (profetas pré-exílicos) incluídos no cânon
populacional, porém mais forte: Jerusalém era a capital, onde do Antigo Testamento.
ficaram os tesouros nacionais, e havia um maior percentual de
religiosos (muitos judeus piedosos vieram do norte, fugindo da Esferas de poder
idolatria), o que proporcionava maior coesão e estabilidade.
Quanto aos monarcas, havia uma oscilação. Ora tinha-se alguns É interessante observar a evolução do profetismo. No período
reprováveis, ora aparecia um de melhor caráter, restaurando a pré-monárquico encontramos uma acumulação pessoal de três
pureza do culto e o cumprimento dos estatutos divinos. Ieroão, funções: a política,' a religiosa-institucional (sacerdócio) e a pro-
Acaz e Manassés figuram no primeiro grupo; Asa, Iosafá e Iosias, fética, esta última como elo de revelação contínua, com mensa-
no segundo. gens, exortações e predições. No período monárquico, a esfera
Vinte e dois foram os monarcas de Iudá, entre 926 e 587 a.c., política se tornou autônoma, encarnada na pessoa do rei. Em
tendo a monarquia 134 anos de duração a mais que em Israel. Samuel ainda encontramos as funções sacerdotais e proféti-
No reinado de Ezequias, Iudá foi invadida duas vezes pelos cas conjugadas. Mas, com a continuação, também se diferen-
assírios de Senaqueribe. Na primeira, os invasores foram vi- ciaram: o sacerdote no templo, com os ritos e sacrifícios; o
toriosos, levando valiosíssimos despojos e impondo pesado profeta exercendo sua atividade "por conta própria", com a con-
tributo; na segunda (diante da recusa de Ezequias de conti- vicção de um chamado pessoal, pelo Espírito do Senhor. Ten-
nuar pagando tributo) foram repelidos. Iudá tentou um equi- sões ocorreriam entre os três, sem uma delimitação "legal" de
líbrio fazendo alianças com as grandes potências rivais da competência e atribuições, além do fato de surgirem reis e sacerdotes
região. infiéis e falsos profetas. A monarquia nunca seria totalmente
36 - Cristianismo e Política Os Caminhos da Decadência - 37

absoluta, mas limitada pelos estatutos divinos, pelas prerrogativas meus juízos e procedendo retamente, o tal justo, certamente,
dos sacerdotes e pelo papel inibidor dos profetas ("superego na- viverá, diz o Senhor Deus" (Ez 18.7-9). Em Amós veio a
cional e ambulante"). O rei judeu não poderia chegar a extre- condenação sobre os que pisam o pobre (Am 5) e sobre a vida
mos de despotismos encontrados entre seus vizinhos e, se o ten- suntuosa (Am 6). E o próprio Miquéias, que reverberou contra a
tasse, se sairia mal. corrupção moral, incluiu em seus ataques a perversão da justiça,
A mensagem do profeta procurava corrigir os desvios, ade- o suborno e os que, "se cobiçam campos, os arrebatam; se casas,
quando o comportamento público e privado de governantes e as tomam; assim, fazem violência a um homem e à sua casa, a
governados aos estatutos divinos, advertindo dos perigos que uma pessoa e à sua herança" (Mq 2.2).
poderiam advir da infração. No campo das relações interna- O modelo ideal para Iudá seria o reinado de Iosias, em que
cionais e das estruturas sócio-econômicas-culturais internas, essa houve a purificação do templo e do culto, a volta à celebração
mensagem tinha uma dimensão acentuadamente política. Isaías da Páscoa, a destruição dos ídolos e dos santuários dos falsos
condenou a religiosidade formal e hipócrita, enquanto se prati- deuses, e a extinção dos médiuns e feiticeiros. Aconteceu uma
cava a maldade: "Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, renovação de aliança com o Senhor. A redescoberta do Livro da
repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a Lei levou o monarca a saco e cinza (símbolo do arrependimento
causa das viúvas" (Is 1.17). Lançou sua crítica aos dirigentes: "Ai e humilhação), que ordenou que fosse ensinado de novo tudo a
dos que decretam leis injustas, dos que escrevem leis de opres- todo o povo, e que servisse de diretriz para a vida nacional. Tra-
são, para negarem justiça aos pobres, para arrebatarem os direi- ta-se de uma piedade assim descrita: "Antes dele, não houve rei
tos aos aflitos do meu povo, a fim de despojarem as viúvas e que lhe fosse semelhante, que se convertesse ao Senhor de todo
roubarem os órfãos" (ls 10.1-2). Ierernias falou ao rei: "Assim o seu coração, e de toda a sua alma, e de todas as suas forças,
diz o Senhor: Executai à direito e a justiça e livrai o oprimido segundo toda a lei de Moisés; e, depois dele, nunca se levantou
das mãos do opressor; não oprimais ao estrangeiro nem ao ór- outro igual" (2 Rs 23.25). Iosias foi um monarca que consultava
fão, nem à viúva; não façais violência, nem derrameis sangue o povo, os profetas e os sacerdotes, buscando uma harmonia da
inocente neste lugar" (Jr 22.3). Condenou a violência, a ex- vontade nacional, e que recebeu da Palavra de Deus o julgamen-
torsão, a ganância, a injustiça: "Ai daquele que edifica a sua to: "Fez ele o que era reto perante o Senhor, andou em todo o
casa com injustiça, e os seus aposentos sem direito! Que se cami-nho de Davi, seu pai, e não se desviou nem para a direita
vale do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o nem para a esquerda" (2 Rs 22.2). Os bons governantes são de-
salário; que diz: edificarei para mim casa espaçosa e largos sejáveis. E possíveis.
aposentos" [Ir 22.13-14). Eram esses os corajosos de Ieová,
que desafiavam e enfrentavam o poder eclesiástico (sacerdo- Exíl io e reconstrução
tes) e o poder político (reis, magistrados) em obediência ao O remanescente da população de Iudá integrava, então, uma
Senhor, que eram -arneaçados de morte, perseguidos e encar- mera província do Império Babilônico, sob a tutela de uma po-
cerados. tência política estrangeira, com um governador nomeado ape-
Por Ezequiel veio a palavra do Senhor: "não oprimindo a nin- nas para cuidar dos assuntos internos. A situação era de tristeza
guém, tornando ao devedor a cousa penhorada, não roubando, e desolação. Os que fugiram para o Egito ficaram sob o domí-
dando o seu pão ao faminto e cobrindo ao nu com vestes; não nio babilônico mais tarde, quando da ocupação do país do
dando o seu dinheiro à usura, não recebendo juros, desvian- Nilo por aquele império oriental. Na Babilônia os judeus fo-
do a sua mão da injustiça e fazendo verdadeiro juízo entre ram dispersos, oprimidos, afligidos, perseguidos. Muitos foram
homem e homem; andando nos meus estatutos, guardando os mortos por se recusarem a trabalhar no sábado ou participar
38 - Cristianismo e Política Os Caminhos da Decadência - 39

dos cultos e festividades idolátricas. Essa situação iria se prolongar, Daniel afirmara que é Deus quem confere aos governantes o
aproximadamente, por setenta anos. reino, o poder, a força e a glória (Dn 2.37), e o domínio sobre os
O cativeiro de Iudá é interpretado como punição de Deus a homens, terras e animais. A pedra cortada, que, sem mão, destrói a
seus pecados. Tanto os chefes dos sacerdotes quanto o povo são estátua "representa o Messias e o crescimento do reino messiâ-
acusados de transgressões e abominações, de zombar e despre- nico, reino esse que é descrito como de duração eterna e de ori-
zar os profetas, de ter abandonado a observância do ano gem divina, assim ficando contrastado com os impérios huma-
sabático (2 Cr 36.14-21). Ierernias foi o profeta da advertência. nos e temporais do colosso" (Young). Daniel resistiu ao decreto
Foi despre-zado e preso. Diante do inevitável, conhecendo a real sobre o culto idolátrico (o que demonstra que não era
palavra do Senhor, ele recomendou ao rei Zedequias que se ren- colaboracionista passivo e acrítico), escapou da fornalha, exor-
desse, que não adiantava resistir, pois seria derrotado e o pior 10U o rei ao arrependimento e predisse a sua loucura. Já no go-
aconteceria a Iudá, que a rendição implicaria um melhor trata- verno de Belsazar, ele interpretou a escrita misteriosà que apare-
mento por parte dos conquistadores. Ierernias não foi escutado, ceu no palácio real durante um bacanal, quando os vasos de
antes foi tido como traidor. Quando da invasão, os babilônios o ouro do templo de Jerusalém foram profanados: a ocupação do
libertaram, pouparam-lhe a vida e lhe deram a liberdade de lo- Império pelos medos e persas.
comoção dentro do império. Com a revolta do partido egiptófilo, Daniel se tornou "colaboracionista" dos novos senhores. Por
ele foi levado prisioneiro e, de lá, do Egito, profetizou a respeito seu prestígio e experiência, foi colocado entre os três co-presi-
do destino de todos os países do Oriente Médio, inclusive sobre dentes encarregados de coordenar os 120 sátrapas da província.
a derrocada da Babilônia e a libertação dos judeus. Por sua eficiência, estava sendo cotado pelo rei para ser gover-
Durante o cativeiro muitos jovens da elite judaica foram le- nador-geral. A inveja levou os outros co-presidentes e os sátrapas
vados à corte para, em recebendo uma educação esmerada, po- a empreenderem uma conspiração contra ele. Tal era o seu teste-
der prestar serviços na administração do império. Daniel se in- munho, que não puderam achar base para uma acusação "por-
clui entre esses "colaboracionistas" pela força das circunstâncias. que ele era fiel e não se achava nele erro nem culpa" (Dn 6.4).
Mantendo estrita fidelidade a seus princípios religiosos, serviu Engendraram um decreto" casuísta" para colocar Daniel confron-
uma potência que oprimia seu povo. Deu um testemunho por tando sua fé com a fidelidade ao rei. O rei o assinou sem saber
seu exemplo, pela firmeza de suas convicções, o que lembra José da maquinação, mas, de acordo com o direito vigente, ficava
na corte de Faraó. subordinado ao texto legal e nada pôde fazer para livrar Daniel
Dotado de um dom especial, Daniel interpretou o sonho de da condenação: a cova dos leões, de onde saiu ileso. Os acusa-
Nabucodonosor: o da estátua cujo corpo era formado de vários dores é que foram comidos pelos leões. Daniel decretou a liber-
elementos. A cabeça, o peito e os braços, o ventre e as coxas tação do culto judaico e a honra ao Deus de Israel: "Daniel, pois,
representavam, respectivamente, os Impérios Babilônico, Medo- prosperou no reinado de Dario e no reinado de Ciro, o persa"
Persa. Macedônio e a divisão com os sucessores de Alexandre; as (Dn 6.28). Profetizou sobre a história imediata e sobre os tem-
pernas de ferro, o Império Romano; os pés de uma mistura de pos do fim. Seu colabo-racionismo com a potência estrangeira
ferro e barro, a decadência do Império Romano; os dez dedos, foi usado para manifestar o poder de Deus, para testemunho
os bárbaros responsáveis pelo fim daquele império: - anglo- entre as nações e, em última análise, para "preparar terreno" para
saxões, ostrogodos, visigodos, francos, lornbardos, vândalos, a libertação de seu povo.
suevos, burgundos, hérulos e alamanos - ou uma Europa Outro episódio digno de nota nesse período é o de Ester,
nunca mais unida sob a égide de uma única entidade política judia piedosa e patriota, que veio a se casar com Assuero (ou
gigantesca, a Europa policêntrica das potências de médio porte. Xerxes), rei dos persas, depois do seu divórcio da rainha Vasti.
Ir
40 - Cristianismo e Política Os Caminhos da Decadência - 41

Ester era bisneta dos primeiros cativos, da tribo de Benjamim, O interessante é que Ester, durante muitos anos, deu um
filha de Abiail e prima de Mordecai, que ocupava um posto de "testemunho mudo", escondendo sua identidade judaica. As-
certa importância no palácio real. Ela tinha notória beleza física sim ela evitou "queimações" para poder "abrir o jogo" no mo-
e excepcionais qualidades de caráter, vindo a ser, por isso, esco- mento certo. A mudança em favor do povo judeu ocorreu a par-
lhida e coroada rainha, entre as esposas do rei: "O rei amou a tir da presença de elementos de suas fileiras junto ao poder po-
Ester mais do que a todas as mulheres, e ela alcançou perante lítico. Pode parecer absurdo, para alguns, a Pérsia com uma rai-
ele favor e benevolência mais do que todas as virgens; o rei pôs- nha e um primeiro-ministro judeus, enquanto a Palestina era
lhe na cabeça a coroa real e a fez rainha" (Et 2.17), em ocasião ocupada. Deus tinha seus planos.
festiva, com a presença de todas as autoridades. Uma rainha ju- Em 536 a.C, aproximadamente, Ciro, rei da Pérsia, emitiu
dia esposa de um rei que tinha seu povo cativo. Uma jovem que um decreto liberando os judeus interessados em regressar à Pa-
aceitou aquele casamento misto porque uma resposta negativa lestina a fim de reconstruir o templo, conduzindo de volta os
lhe custaria a vida e porque Deus iria usar aquela situação para vasos sagrados saqueados por Nabucodonosor, com a ajuda do
os seus desígnios. próprio erário público. Integraram a caravana os sacerdotes, os
O primo de Ester denunciou uma conspiração contra o rei (e levitas, os chefes das tribos de Iudá e Benjamim e cerca de 50
não se juntou à mesma), o que resultou na execução do culpado mil pessoas. A grande maioria dos judeus não se interessou por
e fortalecimento da prima e dele próprio perante o monarca. tão penoso empreendimento. Na Babilônia haviam se iniciado
Líder na colônia judaica, Mordecai se recusou a prestar honrari- na atividade comercial, pelo que ficariam sendo conhecidos.
as de conteúdo religioso a Hamã, primeiro-ministro, o que Os peregrinos edificaram o altar e, em culto litúrgico solene,
resultou em um decreto de extermínio. Atente-se para a ma- lançaram os alicerces do templo. A elite religiosa que havia re-
neira como Hamã expôs o problema ao rei: "Existe espalha- gressado entrou em contato com as populações remanescentes
do, disperso entre os povos em todas as províncias do teu na terra, religiosamente sincréticas e etnicamente miscigenadas,
reino, um povo, cujas leis são diferentes das leis de todos os que procuraram tentar, desanimar e se opor à obra. Seria uma
povos, e que não cumpre as do rei; pelo que não convém ao porta aberta à idolatria o aceitar a colaboração dos samaritanos.
rei tolerá-Io " (Et 3.8). Esse argumento foi usado em vários Durante o breve reinado de Artaxerxes a construção foi paralisa-
momentos históricos, pelos anti-semitas e pelos perseguido- da. Com Dario veio um novo decreto de apoio ao empreendi-
res das minorias cristãs. A reação dos judeus foi humilhação mento, nos termos do decreto anterior de Ciro. Com a proteção
perante o Senhor e súplica. Deus moveu o coração do rei para militar e política dos persas, o templo foi concluído e dedicado,
homenagear Mordecai, em retribuição à sua fidelidade quan- celebrando-se a Páscoa.
do da conspiração. Ester denunciou Hamã como o verdadei- Em 457 a.c. foi decretado um terceiro diploma legal, dessa
ro inimigo do rei, que o mandou enforcar e autorizou os ju- vez por Artaxerxes, filho de Xerxes (Assuero). Foi este um verda-
deus a resistir aos seguidores do antigo primeiro-ministro. A deiro projeto de reconciliação, com maciço apoio financeiro do
vitória dos judeus foi comemorada com a festa de Purim, Estado, permitindo a volta de todos os judeus e levando o res-
mantida até os nossos dias, precedida de um jejum como uma tante dos vasos sagrados. Esdras, um levita escriba, foi o gran-
lembrança do livramento. Mordecai foi nomeado primeiro- de líder dessa tarefa, que incluía a restauração da própria ci-
ministro "e grande para com os judeus, e estimado pela mul- dade de Jerusalém e seus muros. Ele ficou chocado com a
tidão de seus irmãos, tendo procurado o bem-estar do seu rapidez com que a primeira leva de retomados e seus descen-
povo e trabalhado pela prosperidade de todo o povo da sua dentes haviam esfriado espiritualmente, absorvido os maus
raça" (Et 10.3). costumes dos povos vizinhos e tolerado os casamentos
42 - Cristianismo e Política Os Caminhos da Decadência - 43

religiosamente mistos. Promoveu um reavivamento espiritual Atuando cem anos após a reconstrução de Jerusalém,
com a leitura das Escri-turas, levando o povo a uma reconsagração Malaquias foi o último dos profetas pós-exílicos a merecer regis-
aos propósitos do Senhor. Decretou um divórcio obrigatório para tro canônico. Feitiçaria, desonestidade, opressão aos fracos, impi-
todos os casais mistos (Ed 10). A construção das muralhas foi edade, generalizada, dúvidas doutrinárias, ceticismo, religiosidade
iniciada. hipócrita, os próprios sacerdotes achando cansativo o serviço do
Com pouco tempo veio nova acomodação e a construção foi templo, homens de meia-idade se divorciando de suas esposas
abandonada. Neemias foi o novo líder levantado pelo Senhor judias a fim de contraírem novas núpcias, mistas, com mulheres
para que o objetivo fosse atingido. Ele despertou os chefes aco- novas, estrangeiras, falta com os compromissos financeiros reli-
modados, dividiu os homens em turmas, cada uma encarregada giosos (dízimos) - tal era a situação do país no centenário de
de um setor da construção. Enfrentou inimizades políticas e a sua reconstrução. Malaquias exortou os sacerdotes e chamou o
ameaça do ataque inimigo. Realizou uma ampla reforma religi- povo ao arrependimento. Os pecados contra Deus e contra o
osa e administrativa. Criou uma guarda nativa para a cidade, próximo, religiosos e socioeconômicos eram equiparados: "Che-
restaurou a manutenção dos sacerdotes e levitas, proibiu a gar-me-ei a vós outros para juízo; serei testemunha veloz contra
usura, restabeleceu a observância do sábado, condenou os os feiticeiros, e contra os adúlteros, e contra os que juram fal-
casamentos mistos, descriminou a situação dos estrangeiros, lamente, e contra os que defraudam o salário do jornaleiro, e
fez voltar a comemoração das festas sagradas, promoveu a oprimem a viúva e o órfão, e torcem o direito do estrangeiro,
leitura das Escrituras e conduziu o povo à confissão de peca- e não me temem, diz o Senhor dos Exércitos" (Ml 3.5). A
dos, arrependimento e nova promessa de guardar a Lei. Nos mensagem é concluída com a antevisão do reino messiânico,
doze anos que atuou como governador, com "carta branca", quando "nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas
procurou não ser pesado ao povo, antes vivendo em extrema asas" (Ml 4.2a).
simplicidade. As antigas cidades e aldeias de Iudá voltaram a A história de Israel, com seus altos e baixos, suas grandezas e
ser habitadas pelos herdeiros dos antigos donatários. Em suas misérias, suas virtudes e seus pecados, nos mostra a exis-
suma, Iudá voltou a ter uma unidade política, cultural, mili- tência de algo que hoje se procura negar: a natureza humana.
tar, religiosa e econômica, com uma capital e um santuário, Alguma coisa básica nos caracteriza. As situações alteram nosso
com uma autonomia relativa dentro do Império Persa. Tudo comportamento, mas não arrancam de dentro de nós as inclina-
isso porque teve um líder político capaz e eficiente, que usou ções. Em uma linguagem ideológica contemporânea, é preciso
seu cargo e os poderes de que dispunha a serviço da recons- manter uma "revolução permanente" - o que seria contraditó-
trução nacional. rio - ou uma "revolução cíclica". Periodicamente temos de co-
Ageu, Zacarias e Malaquias foram os profetas pós-exílicos. A meçar tudo de novo, voltar às fontes. O pacto de uma geração
mensagem de Ageu abordava a reconstrução do templo, conde- nâo se transmite às que se seguem. Nunca haverá uma obra po-
nando os judeus que se preocupavam antes em edificar suas pró- lítica acabada, estável, perene, enquanto o homem for o que é.
prias casas, belas e confortáveis, que a casa do Senhor, em ruínas Isso não deve dar lugar ao desânimo, mas, como a Bíblia nos
e desolação. O problema era a inversão de valores, o comodis- cusina pelos exemplos de governantes, sacerdotes e profetas, nos
mo, o materialismo: "Acaso, é tempo de habitardes vós em casas levar ao recomeço sempre, revigorados de cima, em mútuo con-
apaineladas, enquanto esta casa permanece em ruínas?" (Ag u ole. Não há governante infalível, sacerdote infalível, povo
1.4). Zacarias falou do castigo purificador dos judeus, conde- infalível. A tarefa crítico-profética, pela Palavra e pelo Espírito, é
nou a preguiça em relação à obra santa, exortou, encorajou e fez () canal de Deus e sal da história. Como atualizar e contextualizar,
predição sobre o reino messiânico. p.ira governantes e governados, o saco e a cinza?
Os Caminhos da Decadência - 45
44 - Cristianismo e Política

o período intertestamentário judeus sob sua tutela. Usaram de uma política mais liberal,
financiaram a reparação do templo e aumentaram o grau de
Há um silêncio no cânon bíblico protestante e judaico sobre autonomia política e jurídica dos judeus. A crescente helenização
o período compreendido entre 400 a.c. e o nascimento de Jesus. punha .ern jogo a sobrevivência de uma identidade nacional. O
Assim, recorre-se a fontes históricas seculares ou aos livros cargo de sacerdote-governador era alvo de conflito dos ambicio-
apócrifos, do cânon católico-romano, que o próprio Lutero sos, que chegaram a obter o posto mediante dinheiro.
traduziu, precedidos das devidas ressalvas. Ou, na expressão do Em 170 a.c. Jerusalém foi invadida por Antíoco Epifanes, com
VI Artigo de Religião da Comunhão Anglicana, "a Igreja os lê para massacre, pilhagem e profanação do templo. Ele decretou a ob-
exemplo de vida e instrução de costumes, mas não os aplica servância exclusiva do culto aos deuses gregos. Em zombaria,
para estabelecer doutrina alguma". ofereceu sacrifício de um porco, aspergindo o seu sangue sobre
Em 332 a.c. Alexandre, do Império Macedônio, tomou a o santo dos santos, ali erigindo uma estátua de Iúpiter e reali-
Palestina, poupando a cidade de Jerusalém. Os judeus deixaram zando cerimônias libidinosas a Dionísio. Com o apoio de seus
de ser tutelados pelos persas, mudando, assim, de senhores. Teve aliados internos, os helenistas colaboracionistas, perseguiu e
início o chamado processo de helenização, ou de forte influên- matou muitos piedosos. A indignação do partido religioso, che-
cia da língua, pensamento e costumes gregos. Após a morte de fiado pelo sacerdote Matatias, conduziu a uma revolta pela in-
Alexandre, em 323 a.C; o império foi dividido entre seus gene- dependência em 168 a.C.: a Revolta dos Macabeus
rais. Em 320 a.c. a Palestina passou a pertencer a um desses ("marteladores", apelido da família de Matatias), que, tendo por
generais, Ptolorneu, com governo sediado no Egito, para onde base as montanhas e usando de tática de guerrilha, chegou a
cerca de 100 mil judeus foram levados. reunir um exército de 6 mil homens.
O governo semi-autônomo da província tributária foi entre- Em 141 a.c. a Iudéia se tornou independente, governada pela
gue aos sumo sacerdotes, que, em cumulando em sua pessoa os dinastia dos macabeus. Em virtude de um conflito dinástico, os
poderes político e religioso, passaram, quando precedidos de selêucidas voltaram a invadir a Palestina, em 137 a.C; transfor-
homônimos, a numerar seus nomes, à semelhança dos monar- mando-a em Estado-Vassalo. mas permitindo-lhe gozar da mais
cas. Simão, o Justo (300-270 a.c.) foi o que mais se destacou ampla autonomia, inclusive mantendo seu rei-sacerdote, João
nessa fase, reconstruindo os muros da cidade, construindo um Ilircano. Em 129 a.c., com o apoio da potência emergente,
reservatório de água (que vinha por um canal subterrâneo) sob Roma, ele declarou mais uma vez a independência.
o templo, para que a mesma não viesse a faltar no caso de um Os fariseus ortodoxos e os saduceus. racionalistas. formaram
cerco, agilizando a administração e ainda lecionando na escola dois partidos dentro do reino, chegando à confrontação de for-
rabínica. Com José, sobrinho de Onias 11,os judeus se torna- ça em alguns momentos pela posse do governo por um elemen-
ram os cobradores de impostos dos povos gentios to de seu grupo ou de sua confiança. Em um desses conflitos, a
circunvizinhos, aliviando sua própria carga tributária. Isso per- facção farisaica buscou o apoio romano. Já tendo, àquela altura,
mitiu o surgimento de uma numerosa classe abastada, che- anexado a Síria como sua província, Roma apoiou Hircano II e,
gada aos prazeres materiais, altamente helenizada. Em de- em 63 a.c., pôs fim à independência judaica, tomando-a, mais
corrência, os judeus conservadores se organizaram no partido lima vez, um Estado-Vassalo. O rei continuaria a existir, gozando
anti-helênico dos chasidim, precursores dos fariseus. de poderes no plano interno. Periodicamente estalavam rebeli-
De 217 a 198 a.c. a Palestina foi disputada pelos selêucidas oes chefiadas por setores dissidentes dos maca-beus. Esses guer-
(descendentes de outro general de Alexandre, Selêuco), sediados rilheiros foram conhecidos, posteriormente, como zelo tas (mo-
na Síria, que, finalmente, expulsaram os ptolornaidas, pondo os vidos pelo zelo ao Senhor). A última revolta ocorreu no ano 6
Os Caminhos da Decadência - 47
46 - Cristianismo e Política

a.C. Enquanto isso, por seu desvio, a função sacerdotal perdia para o passado perdido, para o reino messiânico esperado, para
seu significado. o presente vivido sob a revelação.
Durante as guerras civis dos triunviratos romanos, a Palestina 2. O modelo sócio-político-econômico da legislação mosaica,
ficou, respectivamente, sob Crasso (que saqueou o templo) e vontade de Deus, nos aponta um dinamismo existencial, uma
César, no primeiro, e sob Antônio e Otávio, no segundo. Na possibilidade concreta de, no aqui e agora, vivermos algo do
última fase, imediatamente anterior ao nascimento de Jesus, o reino e de seus valores. O povo de Deus deve assumir a sua
poder político passaria das mãos da dinastia dos macabeus para humanidade, criando instituições sociais e políticas adequadas
as da herodiana. Herodes Antipáter, rei da Eduméia (Edom) foi e funcionais.
aliado de uma das facções dos macabeus, com crescente influ- 3. O homem não foi criado para o céu, mas para a terra. Aqui
ência nos negócios públicos de Iudá. Herodes, o Grande, seu ele deve viver da melhor maneira possível. A expectativa do rei-
filho, com apoio de Roma, tornou-se rei da Iudéia em 37 a.c., no messiânico é para uma terra transformada, onde a vida possa
ficando Aristóculo Ill, o descendente macabeu, apenas como ser vivida em sua plenitude. Não há um tratamento da alma
sumo sacerdote. Herodes desposou a princesa macabéia Mariane separada do corpo, mas do homem em sua integralidade.
e, anos depois, matou-a e a todo o remanescente de sua família. 4. É impossível dissociar o sócio-político-econômico do
Foi esse homem sanguinário que, em 18 a.C., restaurou pela ético-espiritual, modelos científicos e ideológicos e valores e pi-
última vez o templo e sob cujo reinado nasceu Jesus. edade. Isso se aplica a governantes e governados. O fracasso de
Longe estavam os dias de glória do povo de Israel. Era então Israel como Estado soberano está ligado à imperícia, negligên-
uma pequena e pobre província, um joguete nas mãos das gran- cia e imprudência política e ao pecado, o não cumprimento da
des potências, humilhada, subjugada. A situação política era vontade de Deus.
caracterizada por grande instabilidade: invasões, guerrilhas, guer- 5. Deus chama para a ação política pessoas de origem, situa-
ras civis, conflitos dinásticos, golpes de Estado, facções, nacio- ção social e nível de instrução distintos. A ação política é uma
nalismo, colaboracionismo. A ambição de alguns pelo poder os .ição solidária, que implica a participação de todos. Sem esforço
havia levado a alianças espúrias com governos estrangeiros, em nada se consegue. As decisões que atingem a todos são aquelas
detrimento do país e do povo. O Messias haveria de nascer em tomadas pelo poder político (detentor de coercibilidade). Sen-
um anticlímax. Nos 400 anos de decadência, podemos apontar do o homem pecador, nem sempre ele se comporta corretamen-
como fatores agravantes a não subordinação à Lei, a ausência de te mediante mera .persuasão, mas mediante o constrangimento
um ministério profético, a união em uma pessoa do poder ecle- da lei emanada do poder político. O homem de Deus deve procu-
siástico e do poder político (rei sumo sacerdote), a ausência de 1M a função pública, pois é o lugar estratégico onde as deci-
nítidos mecanismos de legitimação. Perdera-se a fonte de inspi- sôes mais importantes são tomadas, para o bem ou para o
ração, o roteiro, a razão de ser, o propósito nacional. mal.
6. O poder político deve estar separado do religioso. Este, por
sua vez, se subdivide em uma dimensão institucional (sacerdó-
Lições do Antigo Testamento
( io) e informal ou carismática (ministério profético). Essa sepa-
1. A história é um intervalo entre a ordem da criação (Éden) 1.IÇão, contudo, não deve ser estanque, mas em inter-relaciona-
e a ordem da restauração (Nova Jerusalém). Deus é Senhor da mcnto para um propósito comum, para o mesmo povo, sob o
história e dos homens, seus cooperadores. O reino de Deus é mesmo Deus. Ao líder religioso não cabe executar a tarefa política,
um reino de justiça, igualdade e paz, conteúdos éticos absolutos 111.1Sexortar e orientar com autoridade os governantes, quando
48 - Cristianismo e Política

eles pecam em sua vida pessoal ou quando atuam em prejuízo


do povo. Para que isso ocorra, é necessário que os líderes religi-
osos se mantenham informados imparcialmente do que ocorre
na esfera política, que sejam independentes em seu comporta-
mento. O Antigo Testamento mostra o fracasso dos sacerdo-
tes e profetas puxa-sacos.
7. O Estado não é um fim em si mesmo, mas uma organiza-
ção social, emanada dos que a integram, formada pelos que a
integram, voltada para os que a integram. O Estado - e seus
dirigentes - recebe um mandato divino: tornar possível a vida
em sociedade, minimizando os efeitos do pecado em cada inte-
grante, nos seus relacionamentos, na forma como se organizam.
8. É motivo para arrependimento e mudança a proliferação
do politeísmo, da idolatria, da feitiçaria, das orgias sexuais den-
tro de um Estado, sejam os praticantes ou simples gente do povo 11.
ou os dirigentes. Fica-se igualmente sob a ira de Deus quando se
permite a injustiça, a desigualdade não-natural, a opressão do
indivíduo pelo Estado ou por outro indivíduo, quando uns pas-
sam fome porque outros esbanjam comida, quando uns estão
ao relento porque outros acumulam bens. Para a correção,
A POLÍTICA NO
pregue-se a Palavra e decrete-se leis segundo a Palavra.
Novo TESTAMENTO
3.

o POLÍTICO EM JESUS

Jesus e seu tempo

EMBoRA NÃO SE POSSA FALAR EM PARTIDOS POLÍTICOS,


no sentido que os entendemos na atualidade, a sociedade judaica
estava, na época de Jesus, dividida em correntes em que os
posicionamentos religiosos estavam intimamente vinculados a
opções políticas:
1. Os fariseus: ao lado da defesa da ortodoxia, da observân-
cia externa da lei-e da esperança messiânica. representavam uma
postura nacionalista, contrária à dominação romana e às influ-
ências culturais estrangeiras, notadamente o helenismo. Busca-
vam a preservação da identidade nacional judaica e o advento
do reino messiânico, após a expulsão dos invasores romanos,
()nde reinaria a paz, a fartura e a justiça;
2. Os saduceus: eram os aristocratas que não levavam muito
.1 sério a vida religiosa e a moralidade, rejeitavam muito das cren-
(as tradicionais do judaísmo, ao mesmo tempo em que se abri-
.1In às influências helênicas, mantendo uma atitude de acomo-
dação e colaboração em relação aos invasores romanos. Eram
pouco estimados pela massa do povo;
52 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 53

3. Os herodianos: constituíam um grupo minoritário de político contra os religiosos não resulta de uma deliberada
políticos, administradores e burocratas ligados ao governo rela- atitude de contestação da parte deles, mas do temor, da inse-
tivamente autônomo (para assuntos internos) da dinastia do gurança e do ciúme dos poderosos. Que fizeram as crianças con-
mesmo nome. Eram estreitos colaboradores do Império Roma- tra Herodes? Nada. Diante do medo de perder seu cargo e seus
no, espécie de ponte entre as forças de ocupação e a população privilégios, fez padecer os inocentes.
nativa, da qual, em contra partida, recebiam profundo ódio e O anjo do Senhor ordenou uma retirada tática realista: José,
desprezo; Maria e Jesus fugiram para o Egito e ali permaneceram até a
4. Os zelotes: eram remanescentes da Revolta dos Macabeus. morte de seus perseguidores. Desse modo, Jesus e seus pais ter-
Exaltados nacionalistas, viam na obediência a um imperador renos foram, por um tempo, exilados políticos.
pagão uma traição a Deus. Defendiam a via violenta para atingir Um outro que literalmente perdeu a cabeça nas mãos do poder
o fim almejado: a restauração de um Israel independente. Der- político foi João Batista. Optara por uma vida simples, anuncia-
rotados nas batalhas do período intertestamentário, mantive- va a proximidade do reino, pregava o arrependimento e a corre-
ram vivos seus sentimentos durante as primeiras décadas da era ção de vida. Com sua mensagem desafiava a auto-imagem e a
cristã, até a guerra anti-romana de 66 a 73 d.C., cujo trágico segurança dos componentes da ordem estabelecida. Aos fariseus
desfecho seria o fim do que restava de Israel e a conseqüente e aos saduceus (correntes majoritárias) chamou de "raça de ví-
diáspora; boras" (Mt 3.7). Ao rei acusou de manter relações sexuais ilíci-
5. Os essênios: piedosos e místicos, optavam por viver em tas, vivendo com a mulher de seu irmão, e por isso foi preso (Mt
pequenas comunidades rurais, onde cultivavam a agropecuária 14.3-4). Não foi logo executado porque temiam o seu respaldo
de subsistência, desenvolvendo um estilo de vida ascético. Con- popular (Mt 14.5). Com João Batista se afirmou a dimensão
sideravam-se os "puros" e, concomitantemente, procuravam se profética da vida dos servos do Senhor e o seu inerente risco de
isolar do resto do povo. Pouco se importando com as "coisas do martírio. João não pregou rebelião, nem deixou em paz os po-
mundo", eram politicamente alienados. derosos. Não se acomodou, não compactuou, não pensou em
O ministério de Jesus não se deu em um vácuo. Deve ser seu próprio conforto. Simplesmente foi fiel e arcou com as con-
entendido no contexto político em que seu país se encontrava. seqüências de sua fidelidade.
Seus interlocutores não eram iguais, neutros ou incolores, mas O poder político fez parte da tentação de Jesus: "Levou-o ain-
seguidores de uma das correntes político-religiosos de então. Seu da o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos
discurso tinha de levar em conta o conceito atribuído aos vocá- do mundo e a glória deles e lhe disse: Tudo isto te darei se, pros-
bulos. As expectativas messiânicas eram inegavelmente ligadas trado, me adorares" (Mt 4.8-9). Jesus resistiu à tentação de go-
ao desejo de libertação política. Os textos dos evangelistas não vernar um mundo governado pelo diabo. Se, por um lado, os
podem ser bem entendidos se não se levar em conta o seu tem- cristãos pecam por um silêncio culposo diante dos erros indivi-
po. Os textos não são a-históricos. duais e sociais dos governantes, confundindo obediência com
Jesus foi confrontado pelos poderes políticos desde o seu omissão, apatia ou conivência, por outro lado, o pecado pode
nascimento. O episódio de adoração dos magos (que não eram vir pela aceitação de um cargo privilegiado dentro do aparelho
reis, mas astrólogos) resultou na chacina de todas as crianças do Estado, com boa remuneração e status elevado, um cargo de
menores de 2 anos. Herodes não podia admitir pretendentes confiança dos governantes, ao preço da perda da confiança de
que representassem ameaça a seu trono e apelou para a força. A Deus. Jesus resistiu, obedeceu, foi fiel.
pergunta dos magos o atemorizou: "Onde está o recém-nascido Quando chamou os discípulos, Jesus não fez distinção da
Rei dos judeus?" (Mt 2.2). Muitas vezes a repressão do poder situação socioeconômica nem de posições políticas. Chamou-os
54 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 55

como eles eram, de onde eles estavam, com seu passado, com e pintores, é o Jesus que expulsou os cambistas do templo e
sua bagagem. Não optou por nenhum dos grupos, mas levou-os derrubou suas mesas. Não bajulou os políticos, mas foi incisivo
a uma transformação, à convergência para o mesmo ministério, com o rei: "Naquela mesma hora, alguns fariseus vieram para
a uma vida engajada, por Deus e para o próximo. No Colégio dizer-lhe: Retira-te e vai-te daqui, porque Herodes que matar-te.
Apostólico estavam Mateus, um cobrador de impostos, colabo- Ele, porém, lhes respondeu: Ide dizer a essa raposa que, hoje e
racionista da ordem imperial romana, e Iudas Iscariotes e Simão, amanhã, expulso demônios e curo enfermos e, no terceiro dia
o zelote, com óbvias associações com o movimento nacionalis- terminarei" (Lc 13.31-32). Estamos bem longe do Jesus que ao
ta radical. Jesus manteve essa atitude em todo o seu ministério, rei chamou de raposa.
ora pousando na casa de um colaboracionista como Zaqueu,
ora curando o servo de um centurião romano, ora comendo e A ética social de Jesus
bebendo com publicanos e pecadores (Mt 9.10-13; 11.18-19).
O ministério de Jesus foi integral e integrado, aliando à pro- Grande parte dos ensinamentos éticos de Jesus está registra-
clamação a ação: "Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando nas da no chamado Sermão do Monte (Mt 5, 6 e 7). Ali são enunci-
sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte adas normas éticas para a vida pessoal, familiar, social, religiosa
de doenças e enfermidades entre o povo. E a sua fama correu e econômica. Uma mensagem que inclui a prática da justiça e o
por toda a Síria; trouxeram-lhe, então, todos os doentes, acome- dar esmolas, que manda os discípulos assumirem a vida como
tidos de várias enfermidades e tormentos: endemo-ninhados, sal para a terra e luz para o mundo, pondo essa luz nos lugares
lunáticos e paralíticos. E ele os curou" (Mt 4.23-24). Havia uma altos do mundo. Uma mensagem para vida, e não para a morte.
preocupação com o espírito, a mente e o corpo dos homens. Uma mensagem que não é fuga da história, mas vivência na
Jesus não despediu a multidão faminta, mas duas vezes mul- história. O sermão começa com as bem-aventuranças, quando
tiplicou o alimento material, os pães e os peixes. Ele amava as felicita e exalta os humildes de espírito, os que choram, os man-
crianças e se alegrava na convivência social, como nas Bodas, sos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os
quando transformou a água em vinho. Condenava o pecado, e limpos de coração, os pacificadores e os perseguidos por causa
amava o pecador: "Vendo ele as multidões, compadeceu-se de- da justiça. Por causa de Jesus seus seguidores conheceriam a in-
las, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm júria, a perseguição e a mentira.
pastor" (Mt 9.36). Jesus vencia as barreiras dos preconceitos, É verdade que no texto há uma dimensão espiritual e a pro-
comendo com ricos e pobres, convivendo com colaboracionistas messa de galardão na vida após a morte, nos céus, onde estão os
("entreguistas") e nacionalistas. Procurava recuperar cada ho- profetas que viveram e foram perseguidos antes de nós. Há uma
mem. Jesus ministrava a adúlteros e samaritanos, procurava in- exaltação e um apoio ao cultivo de virtudes morais e espirituais.
tegrar o homem todo, em sua situação, com suas carências e O texto, contudo, não pode ser totalmente espiritualizado. Je-
limitações. Jesus, um homem de seu tempo, entendia, amava e sus falava a uma multidão que conhecia necessidades materiais,
cuidava de seu povo. à qual Ele trazia uma palavra de apoio, uma promessa de solu-
Jesus foi duro com a elite religiosa e nacionalista dos fariseus. ção. O texto deve ser entendido como promessa de consolação
Os legalistas, muito religiosos, julgadores do próximo, Ele os não só no céu, mas no reino de Deus, que é um reino histórico.
chamou de "hipócritas", "cegos", "serpentes", "raça de víbo- No escatón, na Nova Jerusalém, todos esses problemas estarão
ra", e o fez em discursos públicos (Mt 23). Jesus não foi o "mei- solucionados, mas na história se ensaiam e se promovem essas
go nazareno" ou o "pálido galileu", mas um homem másculo, soluções. A Igreja e os cristãos são agentes desse reino presente,
corajoso, destemido. Diferente da imagem deturpada de poetas processo e promessa.
56 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 57

Perguntamo-nos: será que a ausência de injúrias, perseguições e Semelhante às bem-aventuranças, um outro texto de dupla
mentiras contra os cristãos não se liga à ausência, por parte de- leitura é o da consciência da missão de Jesus, na sinagoga de
les, da vivência histórica das bem-aventuranças? As carências Nazaré: "Então lhe deram o livro do profeta Isaías, e, abrindo o
fundamentais, básicas, são espirituais e de solução espiritual. As livro, achou o lugar onde estava escrito: O Espírito do Senhor
carências materiais, contudo, existem, estão presentes na vida está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres;
material do homem (homem de carne e osso) e sua solução enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração
também é material, embora espiritualmente motivada e orien- da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apre-
tada. goar o ano aceitável do Senhor. Então passou Jesus a dizer-lhes:
Jesus apontou para o perigo representado pela riqueza e dis- Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir" (Lc 4.17-19,
se que dificilmente um rico entraria no reino dos céus. Ele não 21). Erram ambos os extremos com visão dicotômica da vida e
disse que seria impossível, mas muito difícil, porque as riquezas do ministério de Jesus, pela unilateralidade de suas interpreta-
levam o homem ao egoísmo, à falsa segurança, invertem a esca- ções. Não é correta a leitura ideológica dessa passagem por um
la de valores, prendem o homem ao mundo imediato. Ao jo- Jesus mero libertador sócio-político-econômico; não é correta a
vem rico e religiosamente correto, que perguntou o que fazer
leitura espiritualizada por um Jesus libertador subjetivo. Outra
para herdar a vida eterna, Jesus recomendou: "Se queres ser per-
vez, são duas faces da mesma moeda. Há um evangelho a ser
feito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro
anunciado aos pobres, há uma cegueira espiritual a ser curada,
no céu; depois vem, e segue-me" (Mt 19.21). O jovem ouviu, se
mas, quando Jesus cumpriu essa palavra em seu ministério, não
entristeceu e se retirou ... por ser dono de muitas propriedades.
foram curados apenas os "cegos da alma", mas também os cegos
Jesus não fez desse diálogo uma norma, mas, além de um teste
segundo a carne, como os de Iericó. Esta era a tarefa dos apóstolos:
sobre a fidelidade, ele serve de ilustração e de exemplo do papel
"Tendo Jesus convocado os doze, deu-lhes poder e autoridade so-
desem-penhado pelas riquezas como obstáculo ao discipulado
integral. bre todos os demônios, e para efetuarem curas. Também os enviou
Jesus viveu como pobre. Ele afirmou que as raposas tinham a pregar o reino de Deus e a curar os enfermos" (Lc 9.1-2). E aos
covis e as aves, ninho, mas Ele não tinha onde reclinar a cabeça. setenta, mandou "Curai os enfermos que nela houver, e anunciai-
Quando falava nos frutos do arrependimento, ensinava: "Quem Ihes: A vós outros está próximo o reino de Deus" (Lc 10.9).
tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver Jesus condenou a ansiedade para com as coisas materiais,
comida, faça o mesmo" (Lc 3.11). O cristão não pode ser insen- como o comer e Q vestir. Deus cuida de nós. Devemos buscar o
sível diante do necessitado, pois é seu dever acudi-lo. Negligen- seu reino em primeiro lugar, depois as coisas. Ele nos ensinou a
ciar o pobre é tido como negligenciar o próprio Jesus: "Porque pedir o "pão nosso". Não o supérfluo, mas a subsistência; não
tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes apenas o meu pão, mas o nosso pão. Há em seus ensinos um
de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, constante apelo à simplicidade, uma condenação à ostentação e
não me vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes ao acúmulo de bens. Ali está a parábola do rico e Lázaro, ou do
ver-me" (Mt 25.42-43). No contexto Jesus estava falando de homem que acumulou bens e não tinha preparado sua alma.
salvação e perdição, e isto afirma como sinal de vida do salvo: Ao seu "pequenino rebanho", Ele ordenou: "Vendei os vossos
"Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer bens e dai esmolas" (Lc 12.33).
a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer" O Jesus humilde, que lavou os pés de seus discípulos, não
(Mt 25.45). O exemplo de oferta aceita é o da viúva pobre cornpactuou, porém, com a demagogia do mero distribu-tivismo.
(Lc 21.3). quando em Betânia foi ungido por Maria com um caríssimo
58 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 59

bálsamo de nardo puro, Iudas protestou: "Por que não se vendeu separar suas demandas. O importante aí é o pensamento: "No
este perfume por trezentos denários, e não se deu aos pobres?" que é de Deus, César não se meta". Na ocasião, a resposta pode
Significativo é que o texto comenta a verdadeira motivação de ter parecido enigmática ou escapatória, mas seria claramente
Iudas: não era o amor aos pobres, mas a sua desonestidade, pois, compreendida pelos cristãos que haveriam de morrer por não
como tesoureiro do grupo, andava tirando do que se lançava na adorar a imagem do Imperador e por cristãos de todas as épocas
bolsa. Há muita gente por aí hoje defendendo os pobres, mas que haveriam de sofrer por -cebrar do Estado um limite à sua
cujo real desejo é participar das mordomias. Não são os pobres ação totalitária: o limite do que é de Deus, a quem tributamos
o que importa, mas o fato de o pseudo-defensor estar "por bai- mais do que dinheiro: a própria vida.
xo". Jesus repreendeu Iudas deixou Maria prosseguir, prefigurando O nascimento de Jesus suscitou a ira dos poderosos. Sempre
a unção de seu cadáver a ser embalsamado 00 12.1-8). inocente, iria morrer nas mãos dos poderosos. A sua morte é
No final da passagem citada, há uma expressão de Jesus que pedida pela aclamação da multidão de seu povo, com a coni-
tem sido muito usada pelos politicamente conservadores: "por- vência das mais altas autoridades religiosas de seu país (o
que os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sem- Sinédrio) e decisões omissas da autoridade romana de ocupa-
pre me tendes". Jesus estava citando a palavra do Antigo Testa- ção. Para os judeus, Ele era um blasfemo e, como tal, réu de
mento: "Pois nunca deixará de haver pobres na terra: por isso eu morte; para os romanos, Ele era um sedicioso, daí a inscrição
te ordeno: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para em sua cruz: "Este é Jesus, o Rei dos Judeus" (Mt 27.37). Ele, que
o necessitado, para o pobre na terra" (Dt 15.11). O texto não é de modo simbólico e torturante havia recebido o manto, a co-
uma justificativa de uma ordem social injusta, um fatalismo di- roa e o caniço de sua realeza.
ante da pobreza, mas uma constatação (a partir da realidade do Sem dúvida grande parte da multidão que o aclamara na en-
pecado) e uma ordem para a caridade e a solidariedade. Porque trada em Jerusalém o fizera crendo ser Ele um messias politica-
os pobres existem é que somos instados a ajudá-Ios. É manda- mente libertador. Essa mesma multidão pediria sua morte como
mento do Senhor. expressão de frustração. Frustração e desalento que atingiriam
Jesus foi testado com a questão do tributo, sobre a licitude de até os discípulos, que, até o fim, não haviam compreendido sua
pagar impostos ao Império Romano. Se a resposta fosse negati- missão. Frustração de um Iudas, resistência de um Pedro. Pedi-
va, Ele seria preso como sedicioso; se a resposta fosse positiva, do de emprego para seus filhos por parte da mulher de Zededeu.
Ele seria desprezado pelo povo como colaboracionista ou aco- E Ele que tantas vezes havia predito sua morte e ressurreição ...
vardado diante da potência invasora. A sua resposta pegou de Ele que dissera não ter o Filho do homem vindo para ser
surpresa e deixou insatisfeitos ambos os grupos: "Dai, pois, a servido, "mas para servir e da a sua vida em resgate por mui-
César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mt 22.21). lOS" (Mt 20.28). Não era bem esse tipo de Messias esperado

Jesus sabia da intenção malévola de seus interlocutores e não ia então pelos judeus. Bem antes Jesus o sabia. Após ensinar
se deixar apanhar nessa armadilha. O pagamento do tributo a com belas palavras e encher a barriga da multidão de pão e
César (e a moeda tinha sua esfinge) era uma devolução, ou seja, peixe, o que ocorreu? "Sabendo, pois, Jesus que estavam para
"a ele o que é dele". Jesus não sentiu ser aquela a ocasião propí- vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, reti-
cia para fazer um pronunciamento político. Ele constatou e re- rou-se novamente, sozinho, para o monte" 006.15). Há sem-
conheceu a existência de uma ordem política (não opinando pre o perigo, inclusive hoje, de se buscar e se anunciar um
favorável, nem desfavoravelmente) e de uma ordem espiritual, a Jesus que apenas fala bonito e enche barriga, um Jesus solução
necessidade de tributarmos (de modo diferente) a ambas, de para o imediato.
o Político em Jesus - 61
60 - Cristianismo e Política

A política de Jesus é, por um lado, o fato de que o Jesus histórico (o homem) nunca
deixou de ser também o Cristo de Deus (pessoa da Trindade) e,
Há quem afirme a inexistência de uma "política de Jesus", por outro lado, o fato de que Ele encarnou em um dado contex-
que, se quisermos seguir seu exemplo, não devemos fazer op- to histórico e cultural, que não é o nosso, distantes que estam os
ções políticas, e sim nos dedicarmos unicamente às coisas espi- quanto ao tempo e ao espaço.
rituais. Esse argumento é falho e peca por um estreito literalismo. Aqueles que enxergam em Jesus Cristo apenas, ou principal-
Em assim sendo, para sermos coerentes, se Jesus não se casou, o mente, o libertador dos pobres e oprimidos, enfatizando a
celibato é o estilo de vida ideal para o cristão ... Há que se partir, encarnação e a historicidade, minimizam (ou implicitamente
inicialmente, de um argumento trinitário: o Cristo de Deus esta- negam) a divindade e o propósito soteriológico: Os que pregam
va no princípio, e tudo foi feito por meio dele 00 1). Cristo a cruz, o túmulo e o novo nascimento, mas esquecem, obscure-
estava presente nas manifestações do Antigo Testamento. Se todo cem, minimizam ou espiritualizam o conteúdo socioeconômico
o conteúdo do Antigo Testamento dele procede, aí se incluem as da mensagem e a solidariedade do evangelho encarnado
instituições socioeconômicas reveladas aos israelitas e a mensa- minimizam (ou implicitamente negam) a humanidade do Se-
gem de ética social dos profetas. O ensino político de Cristo nhor e suas implicações. Na prática, especialmente no ensino, a
inclui a mensagem do Antigo Testamento, cuja inspiração é por Igreja de hoje não se libertou das controvérsias cristo lógicas e
Ele referendada pela boca do Jesus histórico. Cristo estará pre- heresias dos primeiros séculos, ora afirmando apenas uma, ora
sente por meio do Consolador prometido, o Espírito Santo, na apenas outra das naturezas de Cristo. De que modo uma com-
tarefa docente de sua Igreja. A Igreja reconhece a inspiração das preensão correta das duas naturezas, especialmente a da hu-
Escrituras canônicas do Novo Testamento. O ensino ético e manidade de Jesus, alteraria nossa visão e nossa atitude quanto
sociopolítico contido em Atos, Apocalipse e nas epístolas é ins- à vida e suas implicações sócio-político-econômicas?
pirado e procede de Cristo. em sendo assim, o ensino Um terceiro argumento se refere ao reino de Deus. O Senhor
sociopolítico de Jesus Cristo é todo aquele contido nas escritu- já reina, de modo geral, sobre o cosmo, sobre a terra, a história
ras canônicas do Antigo e do Novo Testamentos, não se esgo- e os homens. Cristo reina e a sua vontade é feita. O homem
tando, portanto, nas palavras e atos do Jesus histórico contidos pecador e a criação com ele relacionada (natureza e instituições)
nos Evangelhos. trazem a marca da rebelião. Satanás está vivo, solto, rebelde e
Um segundo argumento se refere às duas naturezas de Cris- em luta. O reino se manifesta de modo especial com a encarnação
c na vida dos reconciliados - um reino que está entre nós e
to. Cristo como Deus encarnado é luz, porta, água, caminho,
dentro de nós. Ainda assim somos ensinados a orar "Venha o
verdade e vida. Os momentos centrais de sua existência foram o
seu reino", não só de modo mais profundo em nossa vida e
nascimento virginal, a cruz da redenção e o túmulo vazio da
por intermédio dela, mas no mundo e na história, até a sua
vitória. Os propósitos de sua encarnação foram sua morte e
plenitude.
sua ressurreição. Os milagres, exemplos e ensinos do Jesus
O reino não é um plano para o céu, os anjos e as almas, mas
histórico, em sua breve e atípica existência de 33 anos, são
para a terra e os homens. A esperança messiânica judaica (inspi-
subsidiários àqueles propósitos maiores. É possível uma
rada) inclui o grande e terrível Dia de Iavé e uma nova ordem
imitação da natureza divina do Cristo de Deus em sua tarefa
para a terra. Apesar dos exageros e distorções, os judeus tinham
soteriológica? Não. O Jesus histórico, a natureza humana, é o
certa razão por esperar um libertador material, pois o Senhor
segundo Adão, o varão perfeito, nosso modelo. O Jesus históri-
os havia assistido historicamente, e em Isaías não há a promessa
co vive em sociedade e interage. O que limita a tomada do Jesus
de um reino messiânico de fartura, saúde, justiça e paz? O
histórico como modelo comportamental quanto ao sociopolítico
62 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 63

que eles não compreenderam é que antes de Isaías 65.17 sinais do reino e a presença de Cristo nos acontecimentos da
(correspondente a Ap 21.11) há Isaías 53. Historicamente, antes conjuntura histórica. Discernir para agir. Cristo nos chama para
do período do Messias triunfante haveria o período do Messias responder criativamente (e não de modo repetitivo) às deman-
sofredor. O servo sofredor já veio (primeiro advento); o Messias das da história e às necessidades dos homens. Ao ler as Escritu-
triunfante virá (segundo advento). Enquanto isso o ensino do ras, temos de separar as opções dos homens de Deus naquela
Senhor e o estilo de vida do reino permanecem como ideal ético dada conjuntura das motivações e dos valores que os impulsio-
a ser buscado de todo o coração. O estilo de vida do servo de naram àquelas opções. Assim, as motivações e os valores são
Deus hoje tem como padrão e propósito o ideal ético do reino normativos, as opções, nem sempre. A cultura (material e
para todas as pessoas, todos os grupos e todas as instituições imaterial) é cumulativa. A cada necessidade respondemos com
desta erra. uma invenção. O homem que, respeitando os carros e cavalos
Um quarto argumento se refere à Igreja, o novo Israel, a agên- dos tempos bíblicos, inventou o avião é o mesmo homem que,
cia do reino de Deus. A mensagem de Cristo não será anunciada com a permissão e/ou intervenção da Divina Providência e res-
por Ele sentado nas nuvens nem por seus anjos, mas por sua peitando os juízes e reis dos tempos bíblicos, inventou a demo-
Igreja. Cabe ao povo de Deus uma tarefa vertical: ser instrumen- cracia, na crença de estar colaborando para a expansão do reino
to da reconciliação dos homens com Deus, mediante Jesus Cris- de Deus na terra.
to, anunciando que Ele veio e o que fez, e que Ele virá e o que A política de Cristo pode ser apreendida na Escritura toda, na
fará. Cabe à Igreja também uma tarefa horizontal: fazer discípu- ação da Igreja, nos sinais da história e, mui particularmente, no
los, ou seja, seguidores de Cristo na realidade do mundo, lutan- Jesus histórico, que não pede ao Pai que tire seus discípulos do
do contra o principado das trevas e seus antivalores, e em favor mundo, mas que os livre do mal, que os chama para enviar, que
do reino de Deus e seus valores. Isso quer dizer que ações con- os envia para falar e viver, amar e cuidar. Vocação, dons e mis-
cretas que a igreja não pode se desculpar de não fazer, argumen- são. Salvação de algo, mas para algo. Uma vida solidária (social
tando não ter exemplo deixado pelo Jesus histórico, foram, na l' politicamente) não é parte do conteúdo do evangelho, mas
realidade, deixadas para ela fazer, porque é a ela hoje que cabe a sua conseqüência necessária.
ação, sob a iluminação do Espírito Santo. Há, portanto, opções A "política de Jesus" é, para nós, a contínua contextualização
que o Jesus histórico não fez para que os seus seguidores pudes- l' vivência da parábola do bom samaritano: solidariedade
sem fazer. Ações políticas que o Jesus histórico deixou de fazer sacrificial, sem barreiras ou preconceitos. Naquela parábola os
em virtude do caráter específico de sua missão como Cristo de vilões são os religiosos autoconfiantes, teóricos, perfeccionistas
Deus foram deixadas para os cristãos e para a Igreja. individuais, cultores das Sagradas Letras, cumpridores da lei com
Um quinto e último argumento é de ordem histórico- .iltos cargos e responsabilidades eclesiásticas. Essas responsabi-
conjuntural. Os sinais da ação de Deus não são vistos apenas na Iidades não deixam tempo para amar e servir. Sua "pureza" pes-
Igreja, mas sua mão está presente na história dos homens e, in- soal não os deixa se arriscar a uma "contaminação" com o ho-
compreensível para nós, usa até infiéis para realizar os seus pro- mcrn caído. O "mocinho" da parábola, o herói, é um menos-
pósitos. A despeito do pecado a história prossegue de modo prezado. tanto do ponto de vista social quanto do religioso. É
cumulativo e linear, e o homem (primícia da criação) é o seu ISSO que o Senhor requer de cada um que o queira verdadei-
construtor. O homem realiza coisas boas (como sinal de sua i.unente seguir. Para ser um bom samaritano hoje, o convertido
origem de divina criação) e coisas más (como sinal de sua Iiode reconhecer a mediação e a instrumentalidade necessária
natureza caída). O cristão, embora simul justus et pecator deve do trabalho, do sindicato, da imprensa, do partido ou do
realizar - realizar mais e realizar melhor. Devemos discernir os I·:slado.
64 - Cristianismo e Política o Político em Jesus - 65

Jesus não optou pelo caminho dos essênios, isolando-se do Como Senhor dos homens e da história, Ele sabia que os
mundo e seus problemas; não aprovou o caminho dos saduceus dias de Pilatos e do Império Romano estavam contados. Trágico
em sua negação de verdades da fé e da moral como preço de fim? Derrota definitiva e total? Não. Os homens e os impérios
uma situação privilegiada; não se impressionou com o purita- passam. A infamante cruz ainda haveria de ser símbolo na
nismo e a religiosidade dos fariseus; foi firme e independente cidade das sete colinas. Sobre as ruínas do império se assentaria
diante dos herodianos, e aos zelotes apontou o caminho da paz. a Igreja.
Nenhum partido humano é detentor de toda a verdade, ao pon-
to de merecer o apoio incondicional de Deus.
O caminho de Jesus foi o caminho da ética do reino. Quan-
do a era da lei é substituída pela era da graça, a presença e a ação
devem ser, decididamente, pela via pacífica. Se não se pode bus-
car em Jesus a legitimação para a alienação política nem para a
subserviência, nele não se pode encontrar o apoio à violência.
Condenou aquele seguidor que, na intenção de impedir sua pri-
são, feriu a orelha do servo do sumo sacerdote: "Embainha a tua
espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada pere-
cerão" (Mt 26.52). A passagem conhecida como "dos dois
gládios" (Lc 22.35-38) nem pode servir de base à doutrina do
exercício de dois poderes por parte da igreja, conforme ensinam
os católicos romanos, com a bula Unam Sanctam, nem ao em-
prego da violência na expansão do reino. Os discípulos não en-
tenderam a linguagem figurada de Jesus, que encerrou abrupta-
mente a discussão com um "basta".
Diante de Pilatos, Jesus não negou ser o rei dos Judeus e afir-
mou a origem divina do poder: "Nenhuma autoridade terias
sobre mim, se de cima não fosse dada" [Io 19.11). E tirou qual-
quer dúvida quanto à natureza de sua primeira vinda: "O meu
reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os
meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse
eu entregue aos judeus, mas agora o meu reino não é daqui" (Io
18.36). O seu reino é cósmico e não se limitaria àquele tempo e
espaço. O seu reino não seria daquele estado de coisas, mas de
uma terra e um céu transformados. O seu reino não seria daqui
então ("mas agora o meu reino não é daqui"), e sim, de modo
definitivo, após o segundo advento. Não se levantaria contra
Pilatos porque a profecia tinha de se cumprir, a obra de redenção
tinha de se realizar e, antes do exercício do seu poder terreno,
muita coisa ainda estava por se realizar na economia divina.
4.

A POLÍTICA DA IGREJA

A ética social da igreja primitiva

A EXPANSÃO INICIAL DA IGREJA FOI INSERIDA EM UM


tempo preparado por Deus. O Senhor usou a unidade política
imperial de Roma: uma só legislação e uma só autoridade, per-
mitindo fácil comunicação e deslocamento dentro das imensas
fronteiras que abarcavam a maior parte do mundo civilizado de
então. Era uma -legislação tolerante para com as religiões reco-
nhecidas. O judaísmo era uma delas. O cristianismo foi tido, no
início, como um ramo divergente do judaísmo. Havia uma "lín-
gua franca", o grego, falada em todo o império, na qual foi escri-
to o Novo Testamento. Dentro do império os judeus, com sua
esperança messiânica, juntamente com os nativos prosélitos,
estavam em todas as cidades principais, inclusive a capital. Fo-
ram os primeiros ouvintes e contatos da obra de evangelização.
Inicialmente a Igreja não foi obediente à ordem de anunciar
.\ mensagem "a toda criatura", praticamente permanecendo
restrita à Palestina e a Jerusalém em particular. Deus usou a per-
seguição romana para espalhar seu povo. A Igreja teria de
68 - Cristianismo e Política A Política da Igreja - 69

reconhecer que a mensagem era para todos, e não somente para de implicações práticas, na vida dos fiéis e no âmbito das relações
o povo da antiga aliança. O que ocorreu entre 66 e 73 d.e. foi da comunidade, que atestem o novo nascimento?
uma nova e final guerra de libertação anti-imperial, liderada pelos Tem havido muita controvérsia quanto à opção
zelotes. Roma, sangrentamente, esmagou a revolta, pôs fim à socioeconômica da Igreja de Jerusalém. É claro que era uma for-
existência nacional judaica, espalhou os antigos habitantes ma primitiva de comunismo (bens em comum), que posterior-
(diáspora) e destruiu as cidades, aldeias e plantações. Jerusalém mente iria influenciar o movimento monástico e, depois da Re-
foi destruída. O templo foi destruído, pondo fim ao sacrifício. forma do século 16, algumas formas de comunidades pietistas.
Já não se haveria de adorar em Jerusalém ou no monte, mas em Embora hoje essa influência seja mais notada na Igreja de
espírito e em verdade. A destruição nacional se liga ao cresci- Roma - sempre alérgica ao capitalismo - registra-se um res-
mento da nova "nação santa". A vontade de Deus foi feita com a surgimento monástico protestante (principalmente na Europa)
mediação do braço político-militar imperial. Mistério e verdade. e a proliferação de comunidades, ou "casas", de evangélicos lei-
O modelo de vida da igreja-mãe de Jerusalém foi eminente- gos, casados e profissionais que optam por um estilo de vida
mente comunitário. Não somente viviam em impressionante diferente dentro da sociedade.
espírito de fraternidade, como abdicavam do direito de proprie- O que é pouco concebível é buscar na Bíblia do primeiro
dade privada: "Todos os que creram estavam juntos e tinham século resposta para uma questão de modelo socioeconômico
tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribu- para o ocidente pós-industrial dos séculos 20 e 21: capitalismo
indo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessi- ou socialismo? Compreendemos que o homem tem uma pro-
dade" (At 2.44-45); "Da multidão dos que creram era um o co- funda necessidade de aprovação divina para suas opções con-
ração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem tingentes. Daí uma busca inglória (da direita e da esquerda) de
uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. Pois "bases bíblicas" para seu programa quando ele já está elaborado
nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuí- - a legitimação é buscada a posteriori.
am terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspon- Sobre o que aconteceu na igreja primitiva, entendemos que:
dentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distri- 1. O modelo de vida da Igreja de Jerusalém não era normativo,
buía a qualquer um à medida que alguém tinha necessida- pois não o encontramos em outras igrejas da época;
de" (At 4.32, 34-35). 1. O modelo era uma opção da Igreja, e não uma proposta
Perseguidos e pobres, não construíam templos, mas se reuni- feita por ela para o mundo;
am nas casas dos crentes, colaborando para a solidez da institui- 3. Viver o modelo era uma opção livre, e não resultado de
ção familiar. A refeição conjunta, naquele contexto cultural, era coação;
o grande símbolo da unidade de crenças e propósitos, da consi- 4. O modelo, em parte, se relaciona com um erro de interpre-
deração mútua como irmãos. Diante do Senhor não há distin- tação de escatologia: a crença de que o Senhor voltaria logo, não
ções, e os irmãos demonstravam isso de modo tão prático que valendo a pena gastar tempo com outras coisas. Erro que ainda
causava impacto entre os inconversos, ao ponto de atraí-los à fé. hoje muita gente comete, não querendo trabalhar ou estudar,
O texto nos diz que essa qualidade de vida - individual e co- mas se ocupar somente das coisas espirituais, com semelhante
munitária - implicava a simpatia do povo e o êxito da .ilegação. Isso não deixa de ser uma desobediência, pois somos
evangelização: "Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia instados a levar uma vida normal, de obediência, e o Senhor
a dia, os que iam sendo salvos" (At 2.47b). virá subitamente, quando quiser;
Perguntamo-nos: não está o relativo insucesso da obra de 5. Conseqüentemente, o modelo fracassou, porque era um
evangelização, em nossos dias, relacionado com a visível ausência comunismo de bens e consumo, e não de bens e produção. Quando
70 - Cristianismo e Política A Política da Igreja - 71

todos acabaram de comer o que era de todos, todos ficaram dentro, apelando mais para o exemplo do Antigo do que do
com fome (juntamente em uma época adversa), dependendo Novo Testamento. O pensamento político liberal, por sua vez,
da caridade dos irmãos de outras igrejas, que continuavam finca pé na defesa da propriedade privada como defesa do cida-
trabalhando. dão contra o arbítrio do Estado, como instrumento de
Ao lado disso, podemos tirar lições positivas: criatividade e subsistência pessoal e familiar, vinculado a um
1. No Éden, como na Nova Jerusalém, não se pode cogitar objetivo de alcance do bem comum, com uma função e
em propriedade privada e desníveis socioeconômicos, porque, destinação social, dentro de uma dinâmica histórica que supera
na comunhão absoluta com Deus, a vida se baseia no amor, e suas etapas.
não na competição; Biblicamente, com o homem pecador, não cremos que Cris-
2. A vida em comum é um modelo do reino de Deus, e to voltará após o milênio do homem, quando a paz e a justiça já
não do mundo sem Deus, partindo de uma mudança interior. A tenham sido alcançadas e a propriedade comum tenha supera-
natureza humana caída é egoísta, e toda tentativa de transformá- do o pecado (para o marxismo a propriedade privada é o "peca-
Ia de fora tem resultado em luta, sangue, ódio e imposição. Uma do original"). Não cremos, também, que toda justiça seja futu-
situação artificial, que pode arrebentar a qualquer momento, rista, para o milênio que virá, com a Igreja sem um testemunho
desde que se enfraqueçam os mecanismos coercitivos; e um esforço quanto ao socioeconômico, divorciada da história
3. A igreja primitiva atestou, antecipadamente, o modelo do e das necessidades dos homens. Viveremos até o fim a tentação
reino de Deus, deixando para as igrejas da posteridade uma li- entre o realizável e o não realizável, entre o esforço e as possibi-
ção de necessidade de desprendimento dos bens materiais e de lidades, entre o êxito e o fracasso, entre a graça e a tentação e o
sensibilidade diante das necessidades dos carentes; pecado. Quando o Senhor voltar, Ele nos quer encontrar viven-
4. Qualquer tentativa atual (comunidades pietistas ou do a história. O modelo da igreja primitiva deve ser refletido,
Kibutzin judeus) deve incluir necessariamente o elemento tra- valorizado, desafiando a Igreja, os cristãos como cidadãos de
balho: uma comunidade de produção, segundo uma divisão dois reinos, especialmente os vocacionados para a liderança
natural de necessidades, recursos, talentos e vocação; política. O ideal da justiça deve ser buscado, mas não às custas
5. A vida em comunidade é uma opção cristã para hoje (e do chamamento à experiência do novo nascimento, nem às cus-
deve ser mais difundida), não tendo, contudo, caráter normativo. tas de outros valores do reino, como a paz e a liberdade.
Os que preferem outras opções, porém, devem manter em men- Pessoalmente, cremos ser meio sem sentido a discussão
te os ideais do reino, como agentes do amor e da justiça no denominacionaLsobre o "modelo correto" de organização ecle-
trabalho, no lar, na igreja e na sociedade. siástica. Nos primeiros séculos tivemos uma variedade de mo-
Os conservadores, em geral, se sentem desconfortáveis com delos. Hoje os modelos devem ser contextualizados em cada
esse texto, procuram "passar por cima", espiritualizar ou acen- cultura, a fim de melhor servir à causa do evangelho. O livro de
tuar o erro dos irmãos daquele tempo. Qualquer possibilidade Atos não traz cópia de estatuto-modelo. Viver a igreja bíblica é
admissível ficaria para o milênio. Os radicais, por sua vez, viver sua realidade espiritual, e não uma pretensa ortodoxia bu-
universalistas quanto à salvação, pós-milenistas quanto à rocrático-administrativa. Mesmo assim é válido ressaltar a ten-
escatologia e esquerdistas quanto à política, terminam por dência democrática da organização interna da igreja primiti-
sacralizar uma opção socialista agora, advogando uma frente va, com o Senhor manifestando sua vontade por meio do con-
unida com ideologias seculares materialistas na expansão do senso dos fiéis. Para preencher a vaga de Iudas Iscariotes no Co-
reino, não por meio da graça e do Espírito Santo, mas da légio Apostólico, ocorreu o seguinte: 1) a comunidade se reuniu
doutrinação e da coação, crentes em uma mudança de fora para (umas cento e vinte pessoas); 2) os líderes procederam a uma
72 - Cristianismo e Política A Política da Igreja - 73

reflexão e à descrição ideal da pessoa indicada para o cargo; 4. Quando, porém, a história dos homens retoma o processo
3) lançou-se dois candidatos: José e Matias; 4) invocou-se a vonta- democrático, os que se ligam à Bíblia estão entre seus condu-
de do Senhor para a decisão; 5) procedeu-se a um sorteio; e, 6) tores.
finalmente, a assembléia votou, confirmando a indicação Perguntamo-nos: pode uma igreja imperial, verticalista, pro-
(At 1.15-26). jetar uma ordem democrática para a vida secular? Pode uma
Não se afirmou a importância de cúpulas ou hierarquias, nem igreja estruturada democraticamente se omitir de projetar seu
se procedeu a conchavos durante o período pré-eleitoral, como, modelo para a vida secular?
infelizmente, se conhece em nossos dias.
Na controvérsia sobre a circuncisão dos gentios (At 15), pro-
cedeu-se a uma reunião dos apóstolos, presbíteros e membros Os apóstolos e os poderes políticos
da igreja. Houve um acirrado debate público entre a liderança,
A vida da Igreja, em seus primórdios, foi de constante atrito
sendo o parecer de Tiago vitorioso. Quanto à decisão, o texto
com os poderes constituídos. Guardas, prisões, audiências e tri-
diz: "pareceu bem ao Espírito Santo e a nós"; "pareceu-nos bem,
bunais faziam parte permanente dos riscos do ministério apos-
chegados a pleno acordo"; "Então pareceu bem aos apóstolos e
tólico. Logo após os primeiros milagres e as primeiras con-
aos presbíteros. Com toda a igreja, tendo elegido homens entre
versões, quando Pedro fazia um discurso no templo, eles foram
eles ..." Além do debate aberto e da busca da sintonia com o Espíri-
presos por iniciativa dos sacerdotes, do capitão do templo e dos
to Santo, percebe-se que a decisão consensual é mais proveitosa do
saduceus. Eles não se conformavam com o fato de que, em tão
que a decisão majoritária, em se tratando dos negócios do Senhor.
pouco tempo, o número de seguidores de Jesus já chegasse a
Não se deve esquecer que a própria palavra igreja, usada para
quase cinco mil. Os apóstolos ficaram 24 horas na cadeia e fo-
descrever uma congregação de cristãos e traduzir a "congregação
ram interrogados e ameaçados pelo Sinédrio, que os proibiu de
de Israel", e do novo Israel, vem do latim ecclesia, tradução do
pregar. Eles foram soltos e não obedeceram, voltando a pregar e
grego ekklesia, tomada de empréstimo do vocabulário político
a fazer milagres. Foram novamente para a prisão, de onde, à
gentio. A ekklesia era a Assembléia Popular de Atenas, órgão
máximo do poder deliberativo e legislativo, onde todo cidadão noite, foram libertados por um anjo. Livres, voltaram a ensinar
na plenitude do gozo de seus direitos políticos tinha assento, no templo. Pela terceira vez foram presos e interrogados pelo
podia falar, votar e sugerir. A ekklesia era a peça fundamental do Sinédrio, quando se travou significativo diálogo: "E o sumo sa-
modelo político democrático da Constituição elaborada por cerdote interrogou-os, dizendo: Expressamente vos ordena-
Sólon, inspirado nas idéias de Clístenes. O paralelismo é quase mos que não ensinásseis nesse nome, contudo enchestes Je-
perfeito: rusalém de vossa doutrina; e quereis lançar sobre nós o san-
1. A Igreja reúne os cidadãos do reino de Deus para, em ajun- gue desse homem. Então Pedro e os demais apóstolos afir-
tamento solene, dentro das normas do pacto livremente acorda- maram: Antes importa obedecer a Deus do que aos homens"
do, deliberar soberanamente os assuntos desse mesmo reino; (At 5.27-29).
2. É uma comunidade democrática que proclama a justiça de Estava lançado um princípio: o cristão pode - e deve - de-
Deus para os homens e entre os homens; sobedecer à autoridade política se ela o proibir de realizar o
3. A experiência democrática de Atenas teve vida efêrnera e a ministério: pregar, ensinar, curar e expulsar demônios.
ekklesia foi substituída pelos decretos imperiais. A igreja cristã Mais uma vez os apóstolos foram proibidos de pregar e, des-
S.I vez, foram açoitados. E o que aconteceu? "E eles se retiraram
terminou adotando um modelo também imperial, verticalista,
sob as ordens do Summo Pontifex; do Sinédrio, regozijando-se por terem sido considerados dignos
74 - Cristianismo e Política A Política da Igreja - 75

de sofrer afrontas por esse Nome. E todos os dias, no templo e cidadãos romanos; querem agora, às ocultas, lançar-nos fora?
de casa em casa, não cessavam de ensinar, e de pregar Jesus, o Não será assim; pelo contrário, venham eles, e pessoalmente
Cristo" (At 5.41-42). nos ponham em liberdade" (At 16.37). Quando Paulo, tempos
Seguiu-se, pouco depois, a morte de Estevão por apedrejamento, mais tarde, foi preso em Jerusalém, recolhido à fortaleza,
após ter sido levado preso ao Sinédrio (At 7), e a primeira grande interrogado e amarrado, antes que o açoitassem ele perguntou
perseguição à igreja, que, com exceção dos apóstolos, foi disper- ao centurião: "Ser-vos-a porventura lícito açoitar um cidadão ro-
sa pelas regiões da Iudéia e Samaria. "Entrem entes os que foram mano, sem estar condenado?" (At 22.25). E não foi açoitado.
dispersos iam por toda parte pregando a palavra" (At 8.4). O Paulo sabia que um cidadão romano tinha direito a um julga-
perseguidor Saulo se converteu e, muito cedo, os judeus plane- mento em processo regular, com direito de defesa, e que a Lex
jaram dar cabo de sua vida. Ele fugiu de Damasco para Jerusa- Porcia proibia o flagellum aos apenas detidos e acusados, mas
lém, descendo da muralha da cidade dentro de um cesto. Pre- não condenados.
gou em Jerusalém, onde também queriam matá-Io. Empreen- Quantos cristãos não receberam castigos físicos sem proces-
deu nova fuga, dessa vez para Cesaréia, e dali para Tarso, sua so e sem condenação? Quantos têm sido vítimas do abuso de
cidade natal. Deus teve um plano para Estevão, com sua morte, autoridade por não terem a cultura e a consciência de seus direi-
e tinha planos para Saulo, que não deveria, àquela altura, en- tos como Paulo tinha? O respeito à integridade física (e psíqui-
frentar e morrer, mas fugir. ca) do detido, bem como a honestidade processual, é um direi-
Com a "tribulação que sobreveio", o evangelho, com os cren- to humano. É um direito do homem, criado à imagem e seme-
tes dispersos, já chegara à Fenícia, Chipre e Antioquia (At 11.19). lhança de Deus (e não apenas dos pregadores do evangelho), a
Herodes Agripa I, neto de Herodes, o Grande, mandou matar ao ser exigido de um Estado que deve emanar da sociedade, cujas
fio da espada Tiago, irmão de João, e prender Pedro, que nova- autoridades são funcionários do povo, e não seus algozes.
mente foi libertado por um anjo. Os guardas foram submetidos Em outra ocasião ainda, Paulo foi preso e levado à presença
a inquéritos e justiçados por ordem do rei, que no auge de seu de Gálio, procônsul da Acaia, que não se envolvia nos assuntos
poder, divinizado pelo povo, teve um triste fim, enquanto o evan- internos da religião judaica (como ele julgava que fosse a dispu-
gelho avançava: "No mesmo instante um anjo do Senhor o fe- ta entre Paulo e os principais da Sinagoga), mas consentiu que o
riu, por ele não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, apóstolo fosse espancado (At 18.12-17). Posteriormente, em Je-
expirou. Entretanto a palavra do Senhor crescia e se multiplica- rusalém, após escapar de ser açoitado, foi preso, ameaçado de
va" (At 12.23-24). Os governantes que perseguem os ungidos morte e acusado diante do governador Félix, a quem apresen-
do Senhor não se dão muito bem ... Ah, se eles soubessem! tou sua defesa. Ficou preso por dois anos, período máximo
Depois, já em Filipos, Paulo e Silas, após expulsarem um es- que um acusado podia ser detido sem julgamento, segundo a lei
pírito adivinhador que dava lucro aos senhores da jovem pos- romana. Assim ficou somente porque o governador queria "fa-
sessa, foram presos sob falsas acusações, açoitados com varas e zer média" com os judeus. Depois foi ouvido em audiência pelo
postos ao tronco, por ordem dos pretores romanos. O Senhor sucessor de Félix, Pórcio Festo. Em uma das audiências estava
os libertou, fazendo ruir a prisão com um terremoto. As autori- também presente o rei Agripa, considerado o de melhor caráter
dades formalizaram sua liberdade e terminaram pedindo des- da dinastia herodiana. Os judeus acusavam Paulo de três deli-
culpas quando souberam que eles tinham cidadania romana. tos: heresia, sacrilégio e sedição (rebelião contra Roma). O go-
Paulo não deixou de apelar para seus direitos: "Paulo, porém, vernador percebeu a falta de provas no tocante à terceira acusa-
lhes replicou: Sem ter havido processo formal contra nós nos 1,<10 (aquela que estava sob sua alçada) e as outras eram de natu-
açoitaram publicamente e nos recolheram ao cárcere sendo nós I cza religiosa. Havia duas opções: soltar o apóstolo ou enviá-lo
76 - Cristianismo e Política A Política da Igreja - 77

para julgamento pelo Sinédrio. Paulo percebeu a "fria" em que "loucos", "fracos", "desprezíveis", "condenados à morte",
ia entrar: se fosse julgado pelo Sinédrio seria considerado culpado "espetáculo para o mundo", que não tinham morada certa,
e teria o mesmo fim de Estêvão. Não sendo chegada a sua hora, sofriam fome, sede, nudez, eram esbofeteados. Mas afirmou
e percebendo a indecisão do governador, lançou mão de outro também "Quando somos injuriados, bendizemos; quando per-
direito que tinha como cidadão romano: apelou para César, em seguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conci-
grau de recurso. A investigação do caso passaria à alçada de liação: até agora temos chegado a ser considerados lixo do mun-
um tribunal da capital do império e a sentença seria proferi- do, escória de todos" (1 Co 4.9-13). Homens desse calibre, com
da pelo imperador, sendo o prisioneiro transportado até tal convicção de mensagem e ministério, em doação total ao Se-
Roma. nhor, revestidos do Espírito Santo, estavam prontos a tudo en-
Paulo ganhou uma (acidentada) viagem, juntamente com frentar, inclusive os poderes políticos de seu tempo.
outros presos, escoltado por um centurião da corte imperial. Em É evidente que o livro de Atos descreve uma temática emi-
Roma (sob o reinado de Nero) ficou em prisão domiciliar em nentemente religiosa: o ministério apostólico de pregação do
companhia de um soldado. Nessas condições evangelizou ju- evangelho e estabelecimento das primeiras igrejas cristãs. Verifi-
deus e gentios, inclusive soldados da guarda imperial. Não po- camos nesse livro os sistemas políticos e econômicos internos
dia sair de casa, mas podia receber pessoas. É a seguinte a descri- das igrejas e a sua relação - e dos apóstolos - com a sociedade
ção dos versículos finais do livro de Atos: "Por dois anos perma- em geral e a organização política romana. Os cristãos foram per-
neceu Paulo na sua própria casa, que alugara, onde recebia a seguidos, presos e mortos em razão de sua fé, ou seja, por moti-
todos que o procuravam, pregando o reino de Deus, e, com toda vos eminentemente religiosos. Por parte das turbas e das autori-
a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as coisas refe- dades havia a tentativa de enquadrá-los em outros delitos, ou
rentes ao Senhor Jesus Cristo" (At 28.30-31). porque a mera ação religiosa não era delituosa, ou porque essa
Cumpria-se, assim, na vida de Paulo - e de outros apóstolos ação era vista por outra ótica da parte dos que se sentiam amea-
- as palavras de Jesus: "Por minha causa sereis levados à pre- çados. Quem se sentia ameaçado? Os que estavam instalados
sença de governadores e de reis" (Mt 10.18). Reis, governadores, no sistema sócio-político-religioso vigente. Anunciar o evange-
magistrados, ministros (como o eunuco etíope), sábios gregos, Iho em Éfeso acarretaria um declínio na produção de estátuas
sacerdotes judeus e pagãos, comerciantes, soldados, escravos e da deusa Diana e, conseqüentemente, uma crise econômica, com
mulheres de quase todo o Império Romano ouviram do evange- o Estado afetado pela perda na arrecadação tributária. A tarefa
lho em apenas uma geração. Uma religião de destinação uni- apostólica era religiosa, mas não se dava no ar ou no íntimo, se
versal. Uma religião não-descriminatória. Uma religião de re- refletia no concreto. Isso nos deixa duas lições:
conciliação: em Cristo, todas essas pessoas, independentemen- 1. Não se pode invocar o livro de Atos, ou a justificativa de
te de suas origens e situações, eram irmãs e como irmãs deveri- perseguição religiosa, quando militantes políticos cristãos são
am se tratar. Nunca a mulher, o escravo e o estrangeiro conhece- perseguidos pelo Estado hoje. Mesmo que seu engajamento seja
ram melhor tratamento e melhor situação, promovidos pelo motivado por sua fé, ele é deliberadamente político. Por mais
amor, e não pelo ódio; pela paz, e não pela luta. Vivia-se uma meritória que seja a causa, não podemos equiparar suas vítimas
nova era d.e. (depois de Cristo), A.D. (Anno Domine). .iquelas que morreram sob Nero. Situação distinta é a daqueles
O preço? Tantas prisões que as descritas no livro de Atos são cristãos da atualidade que vivem em países onde professar a fé e
apenas uma amostra. Muitos açoites, mortes, alvo para 11.1I1Smiti-Iasão em si motivos de perseguição. Em geral, tam-
gladiadores, alimento para leões famintos, espetáculos para as hérn esses, são acusados de outros delitos por parte dos órgãos
massas. Paulo entendia que os apóstolos eram considerados I k repressão;
78 - Cristianismo e Política

2. Muito da ausência de perseguição ao cristianismo em


países ditos livres advém do fato de estarem os cristãos ins-
talados naquelas sociedades, como parte do sistema, em processo
permanente de auto censura e auto-inibição. Se fossem mais
5.
coerentes e autênticos em sua fé, se fossem mais desafiadores e
denunciadores, também receberiam sua cota de sofrimento.
No primeiro século os cristãos formavam uma subcultura e
estavam por fora e por baixo dos esquemas de poder. Procura-
vam obedecer às leis possíveis para suas consciências e invocar
seus direitos de cidadania, mas não tinham presença, conexões
ou prestígio para respaldar o seu ministério. Não formavam um
A DOUTRINA SOCIAL DOS
"partido cristão", nem lançaram uma plataforma política. Mas ApÓSTOLOS: PAULO
o que representava para Éfeso o questionamento da deusa Diana,
para Atenas a afirmativa de que todos os homens foram criados
pelo mesmo Deus e para Roma a confissão de que o Senhor era
Cristo, e não César? As conseqüências políticas viriam, natural-
mente, no decorrer do processo. Imaginemos o que ocorreria
'r hoje se os cristãos questionassem com ousadia os ídolos, os cul-
tos sincréticos, o carnaval, a indústria do vício e a improbidade ENQUANTO O LIVRO DE ATOS É, EM GERAL, DESCRITIVO,
administrativa. Tudo em nome da santificação, e não de um e não normativo, as epístolas têm um caráter didático e doutri-
partido. O que ocorreria? Não teríamos tanta paz ..., não sería- nário, de estabelecimento de verdades e estilos para a vida dos
mos tão respeitados ... Não há problemas políticos porque os fiéis como pessoas, como comunidades e em sua relação com o
cristãos são tidos como "bonzinhos", que procuram converter mundo. Em uma primeira lição, Paulo afirma a singularidade
os viciados e silenciam diante, por exemplo, das empresas pro- da Igreja e sua autonomia diante das instituições terrenas,
dutoras de cigarros e de bebidas alcoólicas. Empresas que, com inclusive o Poder Judiciário. Já havia na tradição judaica das co-
seus impostos, estão colaborando para o desenvolvimento ... lônias dispersas pelo Império Romano a prática de não levar
suas questões internas perante os tribunais gentios. Paulo con-
dena o pecado e o aponta como causa das questões que possam
existir entre os irmãos. O ideal é que não haja lugar para tais
questões, mas, se ocorrerem, que sejam arbitradas por cristãos.
Se os santos haverão de julgar o mundo, como é que eles vão se
submeter ao julgamento de um pagão? O texto de 1 Coríntios
6.12 deve ser retomado pela igreja não só pela afirmação da
separação entre Igreja e Estado, e de uma lícita autonomia da Igre-
ja na decisão de seus negócios internos, mas por abranger também
o relacionamento entre os cristãos e o modo correto de arbitra-
gem de seus conflitos: o crente não deve recorrer ao Poder
Judiciário do Estado em questão contra seu irmão.
80 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: Paulo - 81

Em uma segunda lição, Paulo ensina que a Igreja deve ter do trabalho o seu sustento, como também o fruto desse
depender de seus próprios recursos para a manutenção de suas trabalho não deve ter uma destinação egoística, mas social: ga-
atividades. Esses recursos são oriundos das contribuições espon- nhar para sobreviver e ajudar.
tâneas dos fiéis, que ao assim procederam são abençoados. Tais Aos tessalonicenses escreve condenando os que vivem vaga-
ofertas devem se dirigir também aos crentes necessitados, que bundando, comendo às custas dos outros e, em seu ócio, se in-
ao orarem em favor de seus doadores colaboram para que eles trometem na vida alheia: "Porque, quando ainda convosco, vos
sejam abençoados. Tal procedimento é imperioso, supre a ne- ordenamos isto: Se alguém não quer trabalhar, também não
cessidade dos pobres e, sobretudo, agrada a Deus. É lícito que corria" (2 Ts 3.10). Ou seja, todos os que podem trabalhar de-
hoje o necessitado cristão apele para a Previdência Social do vem trabalhar. Ninguém está isento da obrigação do trabalho,
Estado, que opera com os impostos recolhidos dos contribu- mesmo os que não precisam trabalhar. A vida ociosa é condena-
intes cristãos, como é lícito às instituições cristãs receberem da como fonte de males, dando ocasião ao pecado. Não deve
doações do orçamento público, que igualmente opera com haver "filhinhos de papai nas igrejas. Erram os pais que ali-
11

os impostos pagos pelos crentes. Mas tal atitude nunca pode mentam a vida ociosa de seus dependentes, dando lugar a
implicar compromisso ou dependência, nem eximir da res- desvios em sua vida espiritual. Paulo escreveu no contexto da
ponsabilidade a comunidade dos fiéis. As contribuições pú- cultura grega, que menospreza o trabalho. A atitude cristã é de
blicas podem ser ocasionais e subsidiárias, nunca principais valorização do trabalho como precioso dom de Deus para a re-
(2 Co 9). alização do homem e continuação da obra da criação.
Em uma terceira lição, Paulo coloca as obras como conseqüên- Em uma quinta lição, Paulo advoga um estilo de vida sim-
cia da regeneração. Por terem sido transformados, os cristãos ples: "Porque nada temos trazido para o mundo, nem cousa
sairiam de si mesmos para Deus e para o próximo. As obras não alguma podemos levar dele; tendo sustento e com que nos ves-
salvam, mas atestam a salvação: "Pois somos feitura dele, cria- tir, estejamos contentes 11 (1 Tm 6.7-8). Relaciona a riqueza com
dos em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão dificuldades na vida espiritual: "Ora, os que querem ficar ricos
preparou para que andássemos nelas (Ef 2.10). Não há lugar
11 caem em tentação e cilada, e em muitas concupiscências insensa-
para comodismo: IIE não nos cansemos de fazer o bem, porque tas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição.
a seu tempo ceifaremos, se não desfalecermos. Por isso, enquanto Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns,
tivermos oportunidade, façamos o bem a todos, mas principal- nessa cobiça, se desviaram da fé, e a si mesmos se atormentaram
mente aos da família da fé" (GI 6.9-10). Nos diversos textos em com muitas dores'i.ívv. 9-10). Na mesma epístola recomenda a
que nos exorta à prática do bem, especialmente em relação aos Timóteo: "Exorta aos ricos do presente século que não sejam
crentes carentes, Paulo (pelo uso dos distintos vocábulos gre- orgulhosos, nem depositem a sua esperança na instabilidade da
gos) reputa tal atitude como expressão de amor, de serviço, ato riqueza, mas em Deus, que tudo nos proporciona ricamente para
de adoração, agradável ao Senhor. nosso aprazimento, que pratiquem o bem, sejam ricos de boas
Uma quarta lição é que Paulo valorizava extremamente o tra- obras, generosos em dar e prontos a repartir, que acumulem
balho. Ele próprio fazia questão de não ser pesado aos irmãos, para si mesmos tesouros, sólido fundamento para o futuro, a
mas ganhar o sustento como seu trabalho. Escrevendo aos efésios. rim de se apoderarem da verdadeira vida" (1 Tm 6.17-19).
no meio de várias exortações quanto à ética individual, exorta: Ao jovem discípulo, a quem ele considera um homem de
"Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com Deus, conc1ama: IITu, porém, foge destas cousas; antes, segue
as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão 11

ao necessitado (Ef 4.28). Não apenas deve o cristão trabalhar e


11 (I Tm 6.11).
82 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: Paulo - 83

Querer ficar rico leva à tentação e ao pecado. Amar o dinheiro Esse é o mesmo Paulo que usava a palavra servo em referência à
resulta em mal. Alguns até se desviam da fé e trazem para si opção de Cristo em sua encarnação, que considerava os homens
tormento. O rico tende a ser orgulhoso, a depositar sua esperan- sem Deus como servos do pecado, e a si mesmo um servo de
ça em algo perecível e instável como a riqueza, e não em Deus. Cristo. Todo homem serve a alguém e deve fazer uma opção a
O grande tesouro é a vida eterna. A verdadeira riqueza é a rique- quem servir, com as respectivas conseqüências. E que a atitude
za de boas obras, a generosa e pronta disposição de repartir os dos servos de Cristo é de mútua servidão: "sede, antes, servos
bens com os necessitados. Alguns acumularão riquezas em ra- uns dos outros, pelo amor" (GI5.13b).
zão do sistema socioeconômico e de sua atitude de trabalho e Tem havido fortes críticas à atitude neotestamentária frente à
poupança. A riqueza não deve se constituir, porém, em um alvo escravidão. Critica-se a ausência de uma peremptória e frontal
(muito menos o alvo principal) para a vida. O acúmulo de bens condenação daquela abominável prática ou (para os mais exal-
não integra o ideal cristão. O crente rico deve sempre estar ad- tados) a ausência de uma rebelião de escravos liderada pelos
vertido para o princípio de que os valores espirituais devem ori- apóstolos. Sabemos que na Palestina, entre os primeiros segui-
entar o uso de sua riqueza, para sua responsabilidade social, dores de Cristo, não havia escravos nem proprietários de escra-
para sua mordomia. vos, onde tal prática era mais disseminada. Em nenhum texto
Uma sexta lição, que encontramos na carta a Tito, é que o do Novo Testamento se faz apologia da escravidão. A referência
ensino paulino não separa a ética social da ética individual. O em parábolas era mero uso de algo conhecido e assim tomado
homem bom não é aquele apenas isento de vícios, mas o que se como tal. Na igreja cristã as relações senhores-escravos eram
1(:
,, relaciona corretamente com seu semelhante: o relacionamento radicalmente alteradas pelo exercício do amor fraternal. A situa-
\ com os idosos, com o cônjuge, com os moços, com os servos, cão jurídica podia permanecer, mas não o modo de tratamento.
mantendo para com todos uma atitude de cortesia e de reta lin- O servo crente de um padrão descrente ou o patrão crente de
guagem. Paulo pede que Tito se torne, pessoalmente, "padrão um escravo descrente usava da situação para testemunhar o amor
de boas obras" (Tt 2.7) e lembre a todos para que "estejam pron- de Deus. Uma campanha anti-escravocrata (ou uma rebelião)
tos para toda boa obra" (Tt 3.1 b), "para que os que têm crido .icarretaria, inevitavelmente, violenta repressão do Estado. Na
em Deus sejam solícitos na prática de boas obras. Estas cousas correlação de forças existentes, o resultado seria a manutenção da
são excelentes e proveitosas aos homens" (Tt 3.8b). instituição e o extermínio da Igreja, ao preço de violento massacre.
Ainda quanto à ética profissional, pede aos servos um teste- O caminho da Igreja foi o da paz e do amor - dando exem-
munho em suas atitudes: obediência e honestidade para com os plo, questionando pelo exemplo, infiltrando pelo exemplo,
senhores (Tt 2.9-10), servindo de boa vontade (Ef 6.7). Os pa- minando pelo exemplo, alterando pelo exemplo. Em poucos
trões cristãos também são advertidos: "Senhores, trata i aos ser- sérulos a escravidão havia desaparecido e a Igreja, florescido.
vos com justiça e com equidade, certos de que também vós ten- No contexto das atuais relações patrões-empregados, a esquer-
des senhor no céu" (Cl 4.1); "E vós, senhores, de igual modo d.1 reclama da falta de exemplo de base bíblica para a rebelião, e
procedei para com eles, deixando as ameaças, sabendo que o IIS conservadores apenas enfatizam o dever de passividade dos
Senhor, tanto deles como vosso, está nos céus, e que para com I 111 pregados, omitindo, pecaminosamente, o dever de
ele não há acepção de pessoas" (Ef 6.9). Ao escravo fugitivo e li.uemidade e justiça por parte dos patrões.
convertido Onésimo, ordena que volte ao seu senhor Filemom, LJma última questão que destacamos no ensino de Paulo é a
a quem pede que não o receba mais como escravo, "antes, muito I .-l.ição dos cristãos com os governantes. Em Tito (3.1) há um
acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim "pelo de sujeição aos que governam, às autoridades. Em carta
e, com maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor" (Fm 16). ,li IS romanos, quando apela para que os cristãos vivam em dia
84 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: Paulo - 85

com seus compromissos, pagando a todos os que credores, responsável pela manutenção de uma dada ordem social. É fato
inclusive os impostos e tributos, Paulo faz considerações sobre que, em qualquer lugar e época, em princípio, são os delinqüen-
as autoridades: "Todo homem esteja sujeito às autoridades superi- tes, e não os homens de bem, que temem os magistrados. Em
ores: porque não há autoridade que não por ele instituídas. De princípio, os cristãos devem sujeição às autoridades, obediência
modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação às leis e acatamento às sentenças dos magistrados.
de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenações. Em vários episódios históricos, esse texto tem servido de jus-
Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, tificativa para o apoio ou a passividade dos cristãos diante de
e sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? governos despóticos, sendo notório o caso de forte parcela da
Faze o bem e terás o louvor dela; visto que a autoridade é Igreja Evangélica Alemã diante do nazismo ou da Igreja Or-
ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, todoxa diante dos monarcas absolutos e governantes muçulma-
teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada, pois é nos ou comunistas. Cristãos norte-americanos e sul-africanos se
ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. omitiram de combater o racismo apoiando-se em Romanos 13.
É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa Pastores cubanos e russos vivem uma "igreja de sacristia" com
do temor da punição, mas também por dever de consciência. base em Romanos 13. Nesses casos não sabemos bem onde ter-
Por esse motivo também pagais tributos: porque são minis- mina a preocupação com a ortodoxia e começa a preocupação
tros de Deus, atendendo constantemente a este serviço." (Rm com a situação privilegiada ou o medo dos riscos. Não se procu-
,.;I
13.1-6.) ra comparar o momento do texto paulino (o cristianismo consi-
'(~ O propósito desse texto não é discutir a natureza do Estado, derado uma religio licita para o império) com o momento do
"'\ mas as relações dos cristãos com os poderes públicos. Nenhuma texto joanino (Apocalipse), quando o Estado é tido como de
doutrina ou prática cristã deve ser tirada isoladamente dele, o instrumentalidade satânica. Romanos 13 não é comparado com
qual deve ser entendido no contexto político do Império Roma- o conjunto de atitudes e ensinos paulinos, do mesmo modo
no e à luz de outros textos que se referem ao assunto, em parti- que 1 Pedro 3.13-14 não é comparado com a posição de Pedro
cular o pensamento joanino posterior. Além disso, deve ser vis- diante do Sinédrio, como vemos nos primeiros capítulos de Atos.
to em suas partes componentes. O conjunto do ensino bíblico propõe limites à ação do Estado e
É pacífico que o cristão, em princípio, deve pagar impostos. É à obediência cristã. Há distintos modos de submissão: os pro-
pacífico, em princípio, que a atitude do cristão diante das auto- retas acatavam o poder real, mas nunca deixavam de criticá-
ridades constituídas seja positiva. É considerado bom e agradá- 10 por sua desobediência às normas do Senhor, de expressar
vel diante de Deus que oremos por todos os homens, com súpli- sua discordância e seu desejo de mudanças.
cas e ações de graças, inclusive "em favor dos reis e de todos os Paulo e Pedro escreveram durante a vigência de um regime
que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida monárquico imperial absoluto. Partiram dessa realidade e fala-
tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito" (1 Tm 2.2). É ram a cristãos que nela viviam. Não pretenderam ensinar ser a
pacífico, em princípio, que o ramo e a função judiciária do po- monarquia absoluta, a tirania, o despotismo, o regime de Deus.
der (magistrados) se destinam ao exercício da justiça, segun- A ordem medieval, a monarquia absoluta da Idade Moderna e
do o ordenamento jurídico ali então vigente. É fato que todos as ditaduras contemporâneas têm amado o uso que se faz de
os homens vivem sujeitos a autoridades constituídas em sua Romanos 13. Os colaboracionistas, os defensores e os privi-
sociedade política e que, em princípio, caso se rebelem trarão legiados desses regimes têm em Romanos 13 o seu "texto áu-
sobre si condenação (crime de lesa-pátria, rebelião, sedição, reo", todos esquecidos da destinação ética que o mesmo texto
subversão), inclusive a própria morte. É fato que a autoridade é impõe à autoridade: promover o bem e castigar o mal. Se partirmos
86 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: Paulo - 87

das normas éticas das Escrituras, a ética do reino de Deus, a ética 5. Quando algo errado for transformado em lei em uma
da Revelação, será um tanto difícil justificar Hitler e Stálin como democracia, o cristão poderá tomar duas atitudes: a) desobede-
"ministros de Deus". O que se pode discutir é o que obedecer e cer caso a lei atinja o ministério cristão ou a vida humana (cam-
o que desobedecer e como desobedecer, mas não o direito à pos de concentração, genocídios ete.); b) obedecer, protestando
desobediência. l' lutando, pelos canais legais, para que a lei seja revogada ou
Vivemos hoje um Ocidente influenciado pelos ideais demo- .ilterada, quando estiver relacionada a valores do reino (liberda-
cráticos, onde se afirma o primado da lei emanada do povo. de, justiça, paz ete.).
Mesmo aqui tem-se confundido submissão ao Estado e ordena- O cristão deve pagar seus impostos (se discordar, mesmo pa-
mento jurídico vigente com submissão a um partido ou pessoa gando, pode lutar pela reforma tributária). Deve servir às Forças
que eventualmente exerce o governo do Estado. Confundiu-se Armadas (quando ele for um pacifista por dever de consciência,
oposição legal e legítima com pecado de insubmissão. É bom dependendo do país, poderá prestar serviços cívicos não-milita-
lembrar que em uma democracia: I cs ou requerer isenção). Deve obedecer à legislação penal, por

1. Autoridade inclui os ramos Executivo, Legislativo e Judici- sua coincidência com as normas da Revelação (não matar, não
ário do poder político. Autoridade não é só o presidente da Re- furtar etc). E deve, no possível, obedecer à legislação cível (famí-
pública e seus ministros, mas os magistrados dos Tribunais Su- lia, sucessão, comercial ete.) e às deliberações de cunho político,
periores, os senadores e os deputados; rrn tudo, porém, mantendo-se informado, analisando, apoiando
,i
"ri 2. Autoridade inclui, em uma federação, tanto os órgãos (e nu discordando, participando sempre.
I; seus ocupantes) da União Federal, como os dos Estados e muni- Por ser o Senhor o Deus da providência e da história, a elabo-
\':
\ cípios (governadores, secretários, deputados estaduais, r.ição e institucionalização do modelo político cujos mecanis-
desembargadores, prefeitos, vereadores, juízes ete.); IIIOS são acima descritos (a democracia) podem se inserir em
3. Governo é o conjunto desses órgãos, de seus ocupantes, "lia economia e se constituir em modalidade diversa e atuali-
com suas diretrizes. A competência e as atribuições desses ór- z.ida de submissão à autoridade para este tempo.
gãos são delimitadas pela Constituição Federal, pelas Constitui-
ções Estaduais e outras Leis Ordinárias e Complementares.
Governantes e governados estão sujeitos à lei, que assegura os
direitos dos cidadãos, os quais devem obediência à lei, e não
aos governantes, quando eles a infringem. O mesmo se diga de
um ramo do poder em relação a outro;
4. Por ser a democracia intrinsecamente pluripartidária, os
partidos de oposição legalmente.constituídos integram o go-
verno, ou seja, fazer oposição é parte da tarefa governativa (na
Inglaterra o chefe da oposição recebe um salário especial). Fazer
oposição não é insubmissão contra o Estado, mas discordância
dos que eventualmente ocupam a direção da coisa pública.
Um deputado de oposição é uma autoridade que discorda de
outra autoridade: o presidente da República, por exemplo. Ga-
rantindo a democracia a alternância partidária, a oposição de hoje
poderá ser o governo de amanhã e vice-versa;
6.

A DOUTRINA SOCIAL
DOS ApÓSTOLOS: EM HEBREUS,
TIAGO E PEDRO
..:t
( /:
I;':
1':'
'\

A carta aos Hebreus

N A CARTA AOS HEBREUS (CUIA AUTORIA PAULINA É


.ipenas uma das teorias), destacamos duas lições quanto ao
social. A primeira, com exemplo de Moisés, é que a fé pode
ronduzir a uma opção de sacrifício e identificação com o povo,
em vez das benesses do poder às custas do compromisso e da
desobediência: "pela fé Moisés, quando já homem feito, recu-
sou ser chamado filho da filha de Faraó, preferindo ser maltrata-
do junto com o povo de Deus, a usufruir prazeres transitórios
do pecado; porquanto considerou o opróbrio de Cristo por mai-
()I"(.'S
riquezas que os tesouros do Egito, porque contemplava o
g,tlardão" (Hb 11.24-26). A segunda é a dupla manifestação do
,1I\lOrfraternal: a hospitalidade e a solidariedade para com os
.lctidos.
90 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: em Hebreus, Tiago e Pedro - 91

A hospitalidade é hoje negligenciada, quando tantos lares como representação da pluralidade do corpo de Cristo. Entre os
cristãos se fecham à recepção de visitas para uma refeição, um membros, os mais ricos são tratados preferencialmente e os po-
pernoite. Por puro comodismo, deixamos de acolher mensagei- bres, postos de lado. Em se tratando de visitantes, a odiosa dis-
ros do Senhor: "Não negligencieis a hospitalidade, pois al- criminação é também mantida em favor do "doutor fulano de
guns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos" (Hb 13.2). tal" ou "de nosso ilustre visitante" ...
Deixamos de exercitar, ensinar aos filhos, o dom de serviço em Tiago não contrasta as obras com a fé, antes as considera
sua expressão mais básica: o lar aberto. A solidariedade com os inseparáveis, uma atestando a existência da outra, como o cor-
detidos nos lembraria os que hoje são presos por causa de sua fé po e a alma, que juntos caracterizam um ser vivo: "Porque, as-
e os delinqüentes, que podem ser um auditório cativo à obra de sim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem
evangelização e promoção humana: "Lembrai-vos dos encarce- obras é morta" (Tg 2.26). A fé sem obras é considerada sem pro-
rados, como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos, veito, inoperante, idéia de homem insensato, semelhante à crença
como se, com efeito, vós mesmos em pessoa fôsseis os maltrata- dos demônios na existência de Deus. Não há antagonismo en-
dos" (Hb 13.3). É missão cristã visitar as cadeias, apoiar um tre Paulo e Tiago quando este afirma: "Verificais que uma pessoa
ministério com os prisioneiros, lutar pela melhoria de suas con- é justificada por obras, e não por fé somente" (Tg 2.24) - não
dições carcerárias e sua reeducação profissional para a vida. as obras que substituem a fé. Fé que só existe se move às obras.
Uma fé que não move às obras não pode salvar, porque não é fé
autêntica, a fé dos regenerados. E, para tirar qualquer dúvida,
o pensamento de Tiago
não se trata de obras "espirituais", mas de ação solidária. Tiago
1\1;

\ Tiago condena os cristãos que fazem acepção de pessoas, exemplifica: "Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de
bajulando os ricos, em detrimento dos pobres. Ele considera tal roupa e necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre
atitude um pecado, uma transgressão da lei. Em certas igrejas, vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e farta i-vos, sem, contu-
quando entrava um homem com "anéis de ouro nos dedos e em do, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?"
trajes de luxo", ele era tratado com deferência e convidado a se (Tg 2.15-16).
assentar em lugar de honra, enquanto que o pobre andrajoso O apóstolo dá também a receita para uma igreja sadia:
era deixado de pé ou posto em lugar distante e desconfortável. prática da Palavra, confissão dos pecados, oração pelos en-
O apóstolo critica fortemente os ricos: "Não são os ricos que vos fermos e os que sofrem, júbilo com os que estão alegres, cons-
oprimem e não são eles que vos arrastam para os tribunais? Não ciência da falibilidade dos projetos humanos, ausência de
são eles os que blasfemam o bom nome que sobre vós foi invo- . contendas e cuidado com a língua. De modo especial, con-
cado?" (Tg 2.6b-7). Ele contrasta os ricos, a quem considera opres- dena a maledicência: "Irmãos, não faleis mal uns dos outros.
sores, com os pobres, considerados escolhidos de Deus, ricos Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer pe-
em fé e herdeiros do reino, alvo do amor de Deus: "Não esco- recer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo?" (Tg 4.11-
lheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em 12). Não há maior lição para a "política interna" das igrejas
fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam? En- brasileiras, que tantas vezes proclamam a graça e vivem sob a
tretanto, vós outros menosprezastes o pobre" (Tg 2.5b-6a). lei ("a minha lei é a lei de crente"), onde se condena o irmão
Esse é um delito amplamente cometido nas igrejas de hoje. ralado, e não o irmão falador, o irmão julgado, e não o ir-
As comunidades locais refletem cada vez mais a estratificação mão juiz.
social dos bairros, tornando a Igreja uma representação local da Algo que se destaca no pensamento de Tiago (Tg 5.16) é a
pluralidade de classes, homogênea, e não em hetero-geneidade, !'Il fase na condenação aos pecados relacionados com a riqueza:
A Doutrina Social dos Apóstolos: em Hebreus, Tiago e Pedro - 93
92 - Cristianismo e Política

o rico vive regaladamente sobre a terra, vive nos prazeres, que, com Cristo, exerce as funções de sacerdote e rei (ministério
engordando o coração, acumulando tesouros. Mas eles devem e governo), separada por Deus para o seu serviço, propriedade
substituir essa falsa alegria por tristeza, choro e lamento pelas sua, povo seu, algo singular na humanidade. Um povo com uma
desventuras por que passarão: "As vossas riquezas estão corrup- destinação entre os povos: chamado das trevas para a luz, é en-
tas, e as vossas roupagens, comidas de traças; o vosso ouro e a viado a proclamar as virtudes do Senhor. E como poderemos
vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser proclamar essas virtudes? "Mantendo exemplar o vosso proce-
por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, dimento no meio dos gentios, para que, naquilo que falam con-
as vossas carnes" (Tg 5.2-3). tra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas
Não somente se estabelece uma relação entre riqueza, falsa boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação. Porque as-
confiança, pecado e juízo, mas entre riqueza de uns e pobreza sim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, façais emu-
de outros. Feuerbach e Marx não descobriram algo novo. decer a ignorância dos insensatos." (1 Pe 2.12, 15.)
Dezenove séculos antes já estava escrito: "Eis que o salário dos Deus será glorificado pelo comportamento correto e pelas
trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi boas obras dos cristãos; calaremos a boca dos críticos pratican-
retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros do o bem. Somos chamados a viver para a justiça (1 Pe 2.34b).
penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos" (Tg 5.4). Outra vez o tema da santidade cristã é compreendido não como
Há uma relação entre riqueza e poder e pobreza e desamparo: um perfeccionismo moralista e individualista, mas como uma
./.
"'t'
"Tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resis- santidade para fora, para o próximo, para a prática do bem.
I~' tência" (Tg 5.6). Os pobres estavam desamparados, sujeitos, Apesar de toda a responsabilidade como presença de Cristo
I?)
\(
dependentes, sem nada poder fazer e a ninguém recorrer. Eram neste mundo, somos exortados a manter a consciência de que
\
esses ricos uns homicidas (segundo já ensinava o A.T.) porque somos peregrinos e forasteiros. Estamos de passagem, somos de
privavam os pobres dos meios mínimos de subsistência, matan- fora do sistema, não estam os presos à regra do jogo daqui, mas
do-os aos poucos. Semelhantemente às orações, tal situação chega testemunhamos nossa passagem com uma destinação superior,
aos ouvidos de Deus em forma de clamor, o clamor por justiça, no vínculo do reino de Deus. Para tanto somos lembrados do
e não fica sem resposta. Página tremenda, que deve fazer pensar regresso do Senhor. Por aguardar essas coisas é que devemos
o empresário cristão e mover nossos corações diante de uma viver em santidade, esperando" novos céus e nova terra, nos quais
ordem social injusta. habita justiça" (2 Pe 3.13b). O conselho que resume esse modus
vivendi de expectação é o seguinte: "Trata i todos com honra, amai
os irmãos, temei a Deus, honrai o rei" (1 Pe 2.17). Devemos
o pensamento petrino cultivar comunhão com Deus, fraternidade genuína com os da
o pensamento de Pedro se dirige maiormente à ética indi- fé, bom trato para com todos os homens e cumprir os deveres
vidual. Ele aplica, porém, à Igreja as categorias anteriormente políticos.
designadas para Israel: "Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio Semelhantemente a Paulo, Pedro focaliza a submissão do
real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim servo ao Senhor e a submissão à autoridade como formas de
de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas testemunho. As autoridades, porém, como instituição divina,
para a sua maravilhosa luz" (1 Pe 2.9). Os cristãos devem lem- têm uma destinação ética: reprimir a delinqüência e apoiar os
brar que não são chamados isoladamente ou para o isolamento, que praticam o bem (1 Pe 2.13-14). Os cristãos não devem se
mas para uma existência em comunidade. Uma raça espiritual- alarmar nem se amedrontar com as perseguições, porque haverá
mente eleita, e não uma etnia distinta. Uma qualidade de gente menor probabilidade de serem maltratados se praticarem o bem
94 - Cristianismo e Política

e serão bem-aventurados se sofrerem por causa da justiça. Em


apoio a seus argumentos, Pedro cita o Salmo 34: "Pois quem
quer amar a vida e ver dias felizes refreie a língua do mal e evite
que os seus lábios falem dolosamente; aparte-se do mal, pra- 7.
tique o que é bom, busque a paz e empenhe-se por alcançá-
Ia. Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os
seus ouvidos estão abertos às suas súplicas, mas o rosto do Se-
nhor está contra aqueles que praticam males" (1 Pe 3.10-12).

A DOUTRINA SOCIAL DOS


ApÓSTOLOS: JOÃO

'::<;
1/ r.1),

I~
I'Z!;.
I~~:
\

NAS CARTASDE JOÃO, DESTACAMOSDUAS PREOCUPAÇÕES


básicas: a manutenção da verdade (ortodoxia) e a vivência do
fruto do Espírito, o amor (ortopraxia). Há uma preocupação com
o conhecimento da verdade, o permanecer na verdade e o como
.mdar na verdade. Para ele, guardar a Palavra é sinal de se estar
sendo aperfeiçoado no amor de Deus (1 Io 1.5). Especialmente
na segunda carta, adverte contra os enganadores, contra os que
ensinam falsas doutrinas. Nesse aspecto, é incisivo: "Todo aque-
le que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece não
rem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai
. orno o Filho" (2 Jo 9).
Em nossos tempos, muitos dos que se preocupam com os
problemas sociais e políticos, defendendo uma igreja engajada,
minirnizam o papel da doutrina, quando não são aberta e confes-
s.idamente heterodoxos. Há no movimento ecumênico uma gran-
de influência de uma frase convocatória de um bispo luterano: "A
doutrina nos divide, a ação nos une". Mas qual é o conteúdo
qlle nos move a essa ação? Quando se fala na importância da
96 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: João - 97

unidade para a proclamação da mensagem, há que se ter uma (Jo 18.36)? Paulo foi um engajado no mundo e pede que não
mensagem, há que se concordar quanto ao seu conteúdo. A his- nos conformemos com ele (Rm 12.1). João pede que não ame-
tória da Igreja atesta a tragédia dos movimentos que desvalori- mos o mundo, mas que andemos como Cristo andou, amando
zam a doutrina. Para João a confissão de fé correta é fundamen- o mundo. E o amor com que Cristo quer que amemos o mundo
tal e, como a Revelação, deve ser crida e transmitida intacta. O é semelhante ao amor que Deus teve pelo mundo. Nada menos
contrário constitui pecado. do que isso para nossa vida cristã: "Assim como tu me enviaste
Mas João conhecia o perigo da ortodoxia fria, da confissão ao mundo, também eu os enviei ao mundo" (Jo 17.18).
correta sem o comportamento correto. O importante não é só Muita gente, porém, toma o texto joanino (1 Io 2.15) para
conhecer e permanecer na verdade, mas andar nela. Essa ser monge ou eremtta, para se isolar, desprezando as pessoas,
integração na vida do amado Gaio o tornava jubiloso: "Não te- em atitude de superioridade espiritual. A partir desse texto se
nho maior alegria do que esta, a de ouvir que meus filhos an- justificam todas as distorções e desvios de comportamento de
dam na verdade" (3 Io 4). Andar na verdade é amar. Devemos comunidades cristãs que se isolam, de pessoas que se isolam, de
nos amar porque Cristo nos amou primeiro. Amar é praticar a cristãos "puros" que odeiam, desprezam e não querem "sujar as
justiça, porque "toda injustiça é pecado" (1 Io 5.17a). A prática mãos". A partir daí aparecem todos os falsos conceitos de
da justiça é sinal de regeneração: "reconhecei também que todo rnundanismo e toda atitude de alienação ~ ser cristão é querer
aquele que pratica justiça é nascido dele" (1 Io 2.29b). E, ainda: viver no céu ou em outra galáxia ...
i: "Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: Deus criou o universo (cosmo) e o ama. Ele não odeia o uni-
12~ todo aquele que não pratica a justiça não procede de Deus, nem verso (mundo), sua obra criada, sua criação. A terra (geo) é par-
\(11
\ ~:' aquele que não ama a seu irmão" (1 Io 3.10). te da criação de Deus e é amada por Ele. Os homens que habi-
\'
Conhecer o amor é saber que Cristo deu a vida por nós e que t.irn a terra são a primícia da criação de Deus, amados de Deus.
devemos dar a vida pelos irmãos. O amor se manifesta pela pa- 1\ terra - sua natureza e seus homens (oikoumene) - caiu, mas
lavra, pelo fato e pela verdade. Conheceremos que somos da I )eus não a desprezou, antes a amou até a morte de cruz e
verdade se formos praticantes do amor em solidariedade quer de seus discípulos atitude idêntica. Muitas vezes a pala-
sacrificial. Isso não é uma forma genérica, piedosa e vra mundo (cosmo) tem um sentido negativo, por lembrar a
"espiritualizada". mas se demonstra com o exemplo: "Ora, aquele queda, o pecado, um estado de coisas diferente daquele que
que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer I )cus havia planejado, sinônimo deste tempo (que não é
necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer chronos, mas aion). Somos chamados a lutar contra este mun-
nele o amor de Deus?" (1 Io 3.17). O nosso exemplo é a do (aion), esperando a plenitude de um mundo novo, outra
encarnação do próprio Cristo: "aquele que diz que permanece vpoca (aiones), onde e quando viveremos uma vida nova, eter-
nele, esse deve também andar assim como ele andou" (1 Io 2.6). 1\<1 e plena (aionios). Enquanto isso vamos nos transforman-
E como Ele andou? E como andamos? do.
Há um aparente paradoxo no pensamento joanino: o após- Antes que uma questão temporal ou espacial, estamos diante
tolo do amor não quer que amemos o mundo: "Não ameis o de um problema ético e ontológico (a qualidade do ser). Somos
mundo nem as cousas que há no mundo. Se alguém amar o trrráqueos, e não marcianos. Assumimos a história de nosso
mundo, o amor do Pai não está nele" (1 Io 2.15). Não seria esse planeta, de nosso País, de nossa sociedade e de nossa época. O
também o paradoxo da vida de Jesus, que veio ao mundo por- 1IIIl' não podemos amar é a dimensão do pecado existente. A pa-

que Deus o amou de tal maneira que o deu para morrer por ele l.ivra mundo, aqui, é usada figurativamente para representar as
(To 3.16), mas que afirmou que seu reino não era deste mundo Illllseqüências da queda, o lado eticamente negativo, maneira
98 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: João - 99

de ser contrária ao plano de Deus. É uma imagem semelhante, A história cristã é linear: teve um princípio e terá um fim.
no plano individual, à da carne (que não é igual a corpo, templo O projeto para a humanidade no Éden é restaurado na Nova
do Espírito Santo) usada por Paulo. Quando amamos os homens Jerusalém. Os cristãos não esperam uma utopia (sociedade
do mundo estamos rejeitando o "mundo" (que não ama, mas perfeita, como fruto da evolução da humanidade), mas uma
odeia); quando lutamos pela justiça, pela paz e pela liberdade parusia (renovação de tudo com o retorno do Senhor, pelo
no mundo (valores do reino) estamos rejeitando o "mundo" poder de Deus e apesar dos homens). Esperamos a plenitude do
(que é injusto, conflituoso e escravizador); quando penetramos reino de Deus e uma nova política: o governo de Deus, a verda-
no mundo estamos rejeitando o "mundo" (que é egoísta e deira teocracia.
alienante). O que assumimos é mais do que vida e ministério Agora e aqui, não podemos ficar quietos, contemplando a
em um tempo dado (chronos), é vida no tempo marcado pela terra que virá, cuja esperança aquece nosso coração. Agora
Providência, designado por Deus para nossa missão (kairos). O estamos na velha terra, onde se trava a luta do reino e do anti-
que João está rejeitando é " a concupiscência da carne, a concu- reino, do Cristo e do anticristo: luta de poderes, luta de nações.
piscência dos olhos e a soberba da vida", ou seja, o pecado. A Por um lado, as grandes lutas dos tempos do fim terão uma
isso ele chama, metaforicamente, de "mundo". A isso rejeita- natureza religiosa: a verdadeira fé contra a religião falsa; por outro
mos; aos homens amamos. lado, terão uma natureza política. Satanás lançará mão de seus

!;~: No Apocalipse, João lança por terra qualquer esperança oti-


mista para o futuro da terra ou a possibilidade de evolução do
poderes como nunca dantes, usando as instituições eclesiásticas
t' as instituições políticas, usando a mentira e a violência contra
I~ homem até uma "idade de ouro". Ele retoma a temática do "dia o remanescente fiel.
~ ~i

'\1:'
\' do Senhor", com uma série de acontecimentos espetaculares Por ser o livro de Apocalipse ao mesmo tempo histórico e
da natureza. Embora cheio de simbolismos, o livro é, em gran- profético, a queda da Babilônia seria a queda do Império Roma-
de parte, uma antevisão dos finais dos tempos, do último no, como símbolo da queda dos poderes políticos satânicos no
capítulo do drama humano. O Senhor Jesus Cristo voltará, final: os impérios anticristãos, os impérios do anticristo. João já
em poder e majestade, como juiz. Só os lavados pelo sangue r onhecia a perseguição do Império Romano (fora deportado e
do Cordeiro serão salvos. O mal será derrotado. Os ressusci- rstava confinado na ilha de Patmos) e a exigência de adoração a
tados não viverão no céu, mas na Nova Jerusalém, a terra ( .ésar como Senhor e Deus. O teólogo Oscar Cullmann aponta
transformada. A síntese final das contradições humanas se p.ira o fato de que tanto na revelação judaica (Daniel) quanto
dará na pós-história, com a humanidade restaurada: "Vi novo 11,\ revelação cristã (Apocalipse) o poder político que excede seus

céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passa- Iim ites (Estado totalitário) é considerado como materialização
ram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova d() poder satânico. Uma função do falso profeta é a de elaborar

Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como Ideologias, que funcionarão como pseudo-religiões e paródias
noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda d,1 fé para o totalitarismo. Os Estados sob a influência satânica
do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. 'H'l'ão arrogantes, provocadores de guerras e, à semelhança dos
Deus habitará com eles, E lhes enxugará dos olhos toda lágri- 111\ peradores romanos, tudo farão para forçar os fiéis a
ma, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, .ihiurarem e se juntarem às suas massas adoradoras.
nem dor, porque as primeiras cousas passaram. E aquele que Sobre esses terríveis acontecimentos, comenta aquele teólogo:
está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as cousas. () diabo é descrito em estilo grandioso, o êxito retumbante de
E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e seu poderio é mencionado (Ap 13 .14): a besta provoca espanto
verdadeiras." (Ap 21.1-5.) \' admiração. O mundo inteiro, dizem, está no seu séquito.
100 - Cristianismo e Política A Doutrina Social dos Apóstolos: João - 101

Somos lembrados do poder de atração que todo Estado totalitário Diante de quadro tão amplo, complexo e atemorizador,
exerce sobre as massas. A massa se prosterna diante do próprio sabemos que os que foram regenerados em Cristo e incorpora-
dragão que outorgou à besta a sua missão, e diante da própria dos à sua Igreja são por Ele enviados às batalhas do reino contra
besta. as forças do mal, vivendo o evangelho de forma conseqüente
e contextualizada. Assim deve ser, e assim será, até o fim.
E prossegue:
Querer imitar Deus é da natureza mais íntima do demônio. É
característico, principalmente, no Estado satânico aqui descrito:
a besta rompeu as correntes que a prendiam e se libertou da or-
dem divina. Com suas exigências totalitárias, reclama o que per-
tence a Deus mas, geralmente, ultrapassa estas exigências apli-
cando a si mesma todos os atributos de Deus. É justamente esta
reivindicação de ordem religiosa, por parte do Estado, que é sa-
tânica! (CULLMANN, 1968, p. 66).
Já se afirmou que não se pode entender Romanos 13 sem
relacioná-lo com Apocalipse 13. Essa compreensão global não
li'
y.~::. nos leva à passividade acrítica, à alienação ou à condenação do
'I' I:~·'
l:,
Estado em si como satânico. Embora crentes na providência do
):1)
'I( Senhor da história, sabemos que, especialmente nos tempos do
\1
fim (que antecedem o fim dos tempos), o Estado será
instrumentalizado por Satanás. Sabemos que a palavra potestade
no Novo Testamento serve para designar tanto os poderes polí-
ticos como os poderes angélicos e satânicos, tanto governos ter-
restres como governos invisíveis, e que eles se inter-relacionam.
Essa era a crença dos judeus e dos cristãos primitivos, e a nossa
também.
No campo político, além de termos uma participação consci-
ente e em fidelidade ao Senhor, devemos estar atentos para os
sinais dos tempos e crer que, igualmente nessa área, se aplica a
advertência paulina: "porque a nossa luta não é contra o sangue
e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os
dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espiritu-
ais do mal, nas regiões celestes" (Ef 6.12). A batalha política é
também uma batalha espiritual. Já é amplamente noticiado hoje
o contato de importantes líderes políticos com a magia e o ocul-
tismo. Trata-se da luta entre os poderes terrenos sintoniza-
dos com as potestades do maligno e os poderes terrenos
sintonizados com as hostes espirituais da bondade.
111.

A POLÍTICA NA
HISTÓRIA DA IGREJA
8.

A IGREJA E A POLÍTICA
NA IDADE ANTIGA

.1:I;J
1~
:,)

\t
\)(

A Igreja sob o Império Romano

ATÉ O SÉCULO 3° AS RELAÇÕES ENTRE O CRISTIANISMO


e o Império Romano foram de natureza conflitiva. A lealdade
última dos cristãos era a Cristo, e não a César. Eles se recusavam
a prestar culto a qualquer dos deuses nacionais (de quem se
esperavam as bênçãos para a felicidade nacional), atitude consi-
derada, inclusive pelo povo, como antipatriótica. O governo se
assustava com o rápido crescimento da Igreja e com o caráter
"secreto" de algumas cerimônias, como a Santa Ceia, que era,
então, realizada a portas fechadas. A afirmativa cristã de uma
identidade, caráter, valores, estilo de vida e lealdade diferentes
resultava em hostilidade por parte dos pagãos. Um historiador
enumera as principais acusações feitas aos cristãos: anarquistas,
ateus, traidores, revolucionários, destruidores dos fundamentos
da civilização (NICHOLS, 1960, p. 31-32).
106 - Cristianismo e Política A Igreja e a Política na Idade Antiga - 107

A perseguição era generalizada e permanente, variando de O testemunho cristão era dado tanto pelo cuidado mútuo, 'I~I
"

imperador para imperador e de governo provincial para gover- pela ajuda ao irmão necessitado, como pela ajuda a todos os
no provincial. Os piores momentos foram vividos sob Nero e homens em épocas de calamidades (notadamente às vítimas de
Diocleciano, e o melhor momento, a chamada "Pax Longa" (260- pestilências, com as quais ninguém queria se envolver). Nem a
303), sob Galieno. Durante todo o tempo, porém, o cristia- crença em um breve retorno do Senhor, nem os contrastes entre
nismo era considerado uma religião ilegal. Os graus de perversi- os valores do reino de Deus e os antivalores do Império Roma-
dade das perseguições são quase inconcebíveis e incompreensí- no, nem a influência de certos aspectos da cultura helênica, nem
veis para muitos de nossa geração. as perseguições, nem a sensação de relativa impotência impedi-
A situação começou a mudar somente a partir de 311, com o ram os cristãos de apresentar um modo alternativo de vida e
Edito de Tolerância, decretado pelo imperador do Oriente, demonstrar concretamente o amor de Deus.
O imperador Constantino foi, sem dúvida, um divisor de
Galério. Essa fase terminou em 313 com o Edito de Milão, assi-
águas na história da Igreja. Pode-se questionar sua conversão,
nado tanto pelo imperador do Ocidente, Constantino, quanto
mas não se pode questionar sua influência. Em relação ao cristi-
pelo do Oriente, Licínio. A liberdade religiosa foi garantida, le-
anismo, ele vivenciou uma velha máxima política: "Se não pode
galizando-se a prática do cristianismo.
derrotar o inimigo, alie-se a ele". O cristianismo crescera e seus
Não se pode negar a influência das circunstâncias no pensa-
,)
seguidores estavam em toda parte. O Deus deles parecia forte.
mento dos homens e dos grupos sociais. O cristianismo daque-
~:~J Sua doutrina era universal e podia servir de elemento ideológico
,, les primeiros séculos vivia a tensão entre a propagação da fé e a
unificador. A vida dos crentes parecia autêntica, disciplinada e com
necessidade de sobrevivência. Os cristãos queriam ser cidadãos
"
c' um propósito. Diante da generalizada decadência de outras insti-
)r~
obedientes, ao mesmo tempo que (mesmo não querendo) re-
tuições, era com essa gente que ele deveria se aliar. Constantino
" presentavam uma ameaça à velha civilização e ao antigo impé-
não somente deu liberdade ao cristianismo, como o protegeu e
rio. Representavam um subgrupo e uma subcultura. Desenvol- o privilegiou: em 319 isentou o clero dos encargos públicos; em
veu-se em muitos uma mentalidade defensiva. A vida da fé era 321 proibiu o trabalho aos domingos e implicitamente reco-
buscada no íntimo de cada ser e na experiência do próprio gru- nheceu a personalidade jurídica da Igreja, ao conceder-lhe o di-
po. Para quem mal estava se mantendo vivo e livre, não havia reito de receber legados; em 319 proibiu os sacrifícios pagãos
lugar para a elaboração de uma doutrina política, nem para in- nas casas particulares (WALKER, 1967, p. 154).
fluenciar o Estado, que além de ser visto em sua A mudança da capital do império para Bizâncio (Constan-
instrumentalidade satânica, não aceitava a presença dos cristãos tino pia) favoreceu o fortalecimento do bispo de Roma. Inter-
em seus quadros dirigentes. Restavam aos cristãos o vindo progressivamente nos negócios internos da Igreja, o im-
aprofundamento pessoal da fé, em um inevitável intimismo e perador optou por fortalecer aquela facção denominada católi-
transcendentalismo, e a busca de uma unidade grupal que não ca, a mais forte, mais organizada, estrutura da hierarquicamente
deixava de ter, sociologicamente, um caráter sectário. Os gran- e de visão mais universal. No caso da vitória da facção católica,
des períodos de valorização da vida do além e do futuro são pôde-se estabelecer uma relação não só entre ortodoxia e poder
aqueles em que a vida do aqui e agora é difícil de ser vivida e se eclesiástico (quem manda no grupo é quem diz o que é correto
sente impotência ou aparente impossibilidade de mudá-Ia. A e o que não é), mas entre ortodoxia e poder político. A partir de
influência da cultura grega, ademais, concorreu para o ascetismo então o poder imperial passou a interferir cada vez mais nas
monástico e para a existência solitária, em rejeição à sociedade, controvérsias doutrinárias da Igreja, favorecendo ou perseguindo
inclusive a sociedade política. facções.
108 - Cristianismo e Política A Igreja e a Política na Idade Antiga - 109

Isso se viu claramente quando do Concílio de Nicéia e os restituis o que é dele. Porque tu és o único a usurpar o que é
descendentes de Constantino, com a vitória da facção atanasiana dado a todos para o uso de todos",
(católica) e a derrota da facção ariana na controvérsia sobre a Outro não é o apelo em favor da justiça social e do bem
natureza de Jesus e a Santíssima Trindade. Podemos argumentar comum, como destinação da sociedade e do Estado, feito por
em favor da intervenção imperial pela ortodoxia, perseguindo João Crisóstomo, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa ou UII
os hereges e pagãos, como ato da Providência, mas não nos sen- Agostinho. Diante da nova opulência dos cristãos, anunciavam
timos muito confortáveis uma vez que a não-ortodoxia é eleva- corajosamente a doutrina da mordomia: tudo é do Senhor e
da à categoria de crime, com os cristãos usando contra os seus para todos. Somos apenas administradores para o bem-comum.
adversários as armas e os expedientes de que até pouco antes Não chegaram a elaborar uma proposta de reforma social,
eram vítimas. Era uma mudança radical de situação: os cristãos mas sua fidelidade a um ministério profético é assim vista por
então estavam "de cima", integrando o sistema político, articu- um pensador contemporâneo:
lados com as autoridades e delas recebendo privilégios. Nada na situação social de sua época permitia ir mais longe e
levar seus ouvintes a uma reforma das estruturas da sociedade.
Pelo menos lançaram os fundamentos dessa reforma, afirman-
o pensamento social dos Pais da Igreja
do, sem se cansar, a comunidade dos bens da terra e baseando-a
,). sobre o direito. Muito tempo será necessário para que o fermen-
I;.! Apesar de suas limitações, devemos destacar a importância
to do evangelho penetre toda a massa. Mas os Padres em nada
.~" da reflexão da nova geração de pensadores cristãos, os chama-
~
'J
diminuíram sua virulência (BIGO, 1969, p. 47).
dos Pais da Igreja, no tocante à ética social. Basílio, por exem-
i\ t)0 O ocaso do Império Romano do Ocidente teve em Agosti-
plo, afirmava em sua HomiZia Contra a Riqueza:
" nho o seu principal pensador cristão, fortemente influenciado
O que despoja um homem das suas vestes terá o nome de la-
pelo neoplatonismo de Plotino. Os pagãos lançaram aos cris-
drão. E o que não veste a nudez do mendigo, quando pode fazê-
10, merecerá outro nome? Ao faminto pertence o pão que tu guar- tãos a culpa pela decadência do império e pelas vitórias dos povos
das. Ao homem nu, o manto que fica nos teus baús. Ao descalço, ditos bárbaros, pelo fato de terem sido abandonados os cultos
o sapato que apodrece na tua casa. Ao miserável, o dinheiro que às antigas divindades, que, no seu entender, fizeram o esplen-
tu guardas enfurnado. dor do império e as vitórias das armas romanas. Como supremo
castigo dos deuses é vista a vitória de Alarico em 410 d.e. Nas
Para se fazer entender, usa uma comparação:
Retratações, Agostinho defende uma filosofia da história que não
Tu és semelhante ao homem que, reservando uma vaga no tea- vê a felicidade terrena como resultado automático da retidão
tro, queria impedir os homens de entrar e desejaria gozar só, do
religiosa ou moral. Muitas vezes vencem os governantes cristãos,
espetáculo ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: dos
para que os pagãos reconheçam a impotência de seus deuses;
bens comuns que abarcaram, eles se decretam donos por terem
outras vezes são os pagãos que vencem, para que não se credite
sido os primeiros ocupantes.
à adesão ao cristianismo uma garantia de êxito.
Qual deveria ser, então, a atitude dos cristãos ricos diante dos É em sua obra A Cidade de Deus que Agostinho desenvolve o
pobres? Deveriam eles dizer: "Vós todos que tendes falta de pão, seu pensamento político, na qual a cidade do homem (soci-
vinde à minha casa. As graças das quais Deus me supriu são edade e Estado) tem a sua vida influenciada por dois impéri-
de todos: vinde abastecer-vos como nas fontes públicas". os do mundo metafísico: a civitas dei (cidade de Deus) e a civitas
Por sua vez, em Naboth, o Pobre, assim se posicionava diaboZi (cidade do diabo). A civitas diabo/i é a soma dos anjos
Ambrósio: "Não é teu o bem que distribuis ao pobre, apenas caídos e dos homens pecadores na promoção dos antivalores; a
110 - Cristianismo e Política A Igreja e a Política na Idade Antiga - 111

civitas dei é integrada pelos anjos de Deus e pela Igreja. O Estado E a ordem, para Agostinho, tem um caráter hierárquico:
reflete essa luta entre as duas potestades, e quando cede ao "Entende-se por ordem uma distribuição das coisas semelhan-
mal e explora seus súditos é comparado a um bando de fací- tes, que designa para cada uma seu respectivo lugar".
noras, magna lathrocinia. Agostinho tem o seu valor intelectual por pensar a história e
Agostinho divide a história da humanidade em cinco fases: o Estado. Em seu pensamento estão implícitas noções de pacto
1) Infantia, a infância: de Adão ao dilúvio; 2) Adolescentia, a pri- político e legitimidade ou o modelo de um líder ideal. No todo,
meira juventude: de Abraão a Davi; 3) [uuentus, a segunda juven- porém, a mistura de idéias oriundas do pensamento grego com
tude: de Davi ao exílio babilônico; 4) Aetas Senior, a idade do o paganismo e a própria atmosfera de crise de seu tempo torna-
homem maduro: do exílio babilônico ao nascimento de Cristo; ram sua obra ambígua e contraditória. Ele não vivia a opressão
5) Senectus, velhice: do nascimento de Cristo ao fim do mundo. das catacurnbas nem o "sucesso" da era constantiniana, mas a
Na época, uma idéia de fim, uma atmosfera mórbida, com a dúvida e a incerteza quanto ao futuro da história, da Igreja e do
decadência do império, era sentida por pagãos e cristãos. Estado. Não propôs um engajamento ou um escapismo, mas
O destino do homem, para Agostinho, é o gozo contemplativo vagou entre o físico e o rnetafísico, com saídas neoplatônicas.
de Deus, que começa aqui, na Igreja, e se realiza na eternidade. Em parte concordamos com o julgamento de um analista do

.~, Aqui, os pagãos querem servir-se de Deus para gozar o mundo,


pensamento político:

.
~~.}!
,
enquanto que os cristãos querem servir-se do mundo para gozar
a Deus. Por essa luta de forças físicas e metafísicas no interior do
No conjunto, a idéia social de Santo Agostinho é, em sua com-
plexidade, uma expressão de sua época moribunda, voltada mais
para o passado do que para o futuro. Apenas alguns de seus
'J
c' Estado, ele nunca poderá assegurar a felicidade plena. O Estado
'j..) elementos poderiam ser retomados mais tarde a favor de uma
'I:: pode conseguir um bem parcial por meio do constrangimento
mudança, quase inconsciente, do conjunto (SCHILLING, 1966,
(leis, tribunais); o bem verdadeiro, porém, nos vem de Deus e
p.145).
de dentro. A submissão à autoridade, inclusive ao Estado pagão,
vem de sua consciência da transitoriedade dessa vida e de sua Por fim, Agostinho foi também um dos teóricos de uma es-
peregrinação terrestre. O Estado deve buscar a justiça e a paz. trutura eclesiástica hierarquizada e centrada nos bispos, consi-
A paz (em clara influência do estoicismo) é apresentada em derados sucessores dos apóstolos. Inicialmente os bispos gover-
representações: navam apenas urna igreja local, depois uma região (diocese). Os
A paz, no domínio corporal, consiste na reunião dos elementos; bispos das capitais de província foram tendo ascendência sobre
a paz da alma não-racional na ponderação das tendências; a paz os do interior, até que os cinco bispos das cidades principais
da alma racional na harmonia entre o conhecimento e a ação; a foram reverenciados como patriarcas: Roma, capital do Império
paz entre o corpo e a alma em uma vida bem regrada e na pros- do Ocidente, Constantinopla, capital do Império do Oriente,
peridade do ser; a paz entre o homem mortal e Deus, na obedi- Jerusalém (origem da irradiação do cristianismo), Antioquia,
ência à lei eterna, manifestada na fé; a paz entre os homens, na principal centro missionário do passado, e Alexandria, princi-
concórdia. É a paz na família pela concordância de seus mem- pal cidade do Egito e da África Mediterrânea, centro intelectual
bros, no que concerne à autoridade e à obediência; a paz no Esta- helenístico. Destes, destacavam-se os de Roma e Constantinopla,
do pelo acordo dos cidadãos para saber quem comanda e quem por serem capitais de império. Todos os patriarcas pertenci-
obedece; A paz do Estado celeste pela comunidade perfeitamen-
am ao partido católico, sendo os grupos dissidentes
te regrada e unida no gozo de Deus e do gozo em Deus; a paz
enfim entre todas as coisas que se assentam na base da ordem (A (nestorianos, armênios, jacobitas, coptos) bastante minoritários
Cidade de Deus, XIX, 13). e politicamente desprotegidos. Ern cinco séculos o cristianismo
112 - Cristianismo e Politica

havia abandonado inteiramente seu modelo democrático e se


estruturado de forma autocrática, autoritária, hierarquizada,
centralizada e clericalizada.
Naquele momento, desaparecia o Império do Ocidente, com
9.
a ocupação de suas províncias pelos povos ditos bárbaros. Toda
a antiga estrutura ruía e a ordem política se esfacelava, passan-
do-se a viver um autêntico vazio de poder. Foi das cinzas dessa
situação que emergiu o papado e a Idade Média.

POLÍTICA E IGREJA
NA IDADE MÉDIA

A igreja imperial do Ocidente

Do SÉCULO 5° AO SÉCULO 8° A EUROPA OCIDENTAL


não conheceu um governo civil forte e unificado. As invasões se
sucediam. Os novos povos eram de cultura diversificada. As fron-
teiras políticas não estavam delimitadas. E, em cada área, não
havia um modelo político institucionalizado ou estabilidade de
governo. A situação era de transição entre a ordem imperial
romana, que desaparecera, e algo novo que ainda estava por vir.
Diante de povos culturalmente mais simples, a Igreja se apre-
sentava como depositária dos valores hebraicos, gregos e roma-
nos. Diante daquelas formas religiosas primitivas, ela apresen-
tava uma mensagem espiritual superior. Diante de um quadro
instável, o bispo de Roma, ou papa, (que quer dizer pai) se apre-
sentava como autoridade moral e espiritual, estável em sua con-
tinuidade. Roma, como capital por tantos séculos, não deixava
de ter um natural apelo de liderança. De fortes personalidades, os
114 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Média - 115

papas pairavam acima dos reis bárbaros. O caos reinante em senhores feudais, reais, imperador e papa (no vértice superior). Era
Roma e em seus territórios vizinhos levou o povo a entregar ao uma sociedade de cunho marcadamente rural, dedicada às ati-
papa também o governo civil, originando-se, então, os chama- vidades agropastorais, artesanais e guerreiras. O cristianismo -
dos Estados Pontifícios (que permaneceriam até a unificação ita- em sua manifestação católico-romana - era a ideologia
liana na segunda metade do século 19), base territorial, econô- hegemônica, permeando todas as manifestações culturais, da
mica, política e militar do bispo de Roma. música às artes plásticas, da literatura às ciências naturais. Era
Os outros quatro patriarcados estavam situados no Império movido por uma escatologia pós-milenista, pois via na socieda-
Romano do Oriente, que continuava a existir, sendo Roma o de que estabelecera uma antecipação do reino de Deus, um
único patriarcado ocidental. De Roma partiram os missionários modelo sagrado e, como tal, inquestionável e imutável.
que evangelizariarn os bárbaros. A Roma obedeciam e a Roma A idéia teológica central era a do Cristo-Rei. Cristo é rei no
ensinavam fidelidade. Em Roma estava o papa, monarca civil e céu e na terra: no céu, diretamente; na terra, por meio de seus
monarca eclesiástico. A cristianização dos bárbaros impulsio- representantes: o papa, para o poder espiritual, e o imperador,
nou-os em direção a Roma e ao papa, que ia tendo crescente para o poder temporal. O que legitimava o seu poder era a cren-
influência sobre os monarcas convertidos, entre os quais se des- ça de que ele provinha de Deus. Nunca houve, porém, para a
tacavam os germanos, inicialmente sob a dinastia merovíngia e mentalidade de então, uma separação entre funções sagradas e
•.." depois sob a dinastia carolíngia. seculares do poder político, o que resultava em atritos entre o
~I
"
No final do século 8° a situação da Europa Ocidental havia papa e o imperador, e entre estes e os reis ou barões. Grande
se estabilizado. Uma nova civilização, em que entravam elemen- parte da produção teológica de temática política dedicava-se à
tos culturais bárbaros, greco-romanos e hebraico-cristãos, ia se justificação da ordem vigente ou às controvérsias sobre o poder
I~~

\: forjando. A invasão islâmica havia sido detida nos Pirineus. Uma daqueles personagens. A mentalidade e a ideologia vigentes não
nova ordem política estava por surgir da aliança do papado com podiam compreender uma separação igreja versus mundo, ou a
a dinastia carolíngia. No Natal do ano 800, na cidade de Roma, noção da política como atividade meramente humana. O ho-
o papa Leão III coroou Carlos Magno, rei dos francos, como mem medieval vivia uma tremenda síntese do pensamento hu-
imperador, demonstrando sua autoridade em legitimar o poder mano, uma integração das coisas deste mundo com as coisas do
temporal, selando a nova unidade político-religiosa do Ociden- além, a noção da Providência Divina e das instituições huma-
te. Esse modelo político somente atingiria a sua maturidade a nas como por ela estabelecidas para a realização de seus desígni-
partit da coroação de Oto I em 962 pelo papa João XIII, ganhan- os. Essa sistemática abrangente, integrativa e exclusivista. somente
do um nome: Sacro Império Germânico-Romano (denomina- pode ser comparada, hoje em dia, a certas manifestações do
ção que seria mantida até 1896). O velho Império Romano islamismo e do marxismo.
ressurgia com componente étnico e dinástico germânico, sob A ordem medieval se assentava sobre o princípio da obediên-
a inspiração da religião cristã. O cristianismo então, mais que cia e da autoridade. O conflito entre dar a César e dar a Deus
uma fé religiosa, seria uma cultura, uma civilização e uma inexistia em um "império cristão", com o entrelaçamento entre
ordem política. o político e o religioso. A Doutrina dos Dois Gládios, desenvol-
A ordem medieval se assentava sobre os princípios da de- vida pela patrística e oficializada pelo papa Gelásio I era as-
sigualdade natural e da hierarquia. Nos planos social, eco- sim entendida:
nômico, religioso e político, podemos representá-Ia por uma implicava uma organização e controle duplos da sociedade huma-
pi rârn ide, integrada por estamentos sociais relativamente estanques, na no interesse de duas grandes classesde valores que deviam ser
pelas corporações de ofício (em sua fase de urbanização), pelos conservados. Os interesses espirituais e a salvação eterna estavam
116 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Média - 117

sob a guarda da Igreja e formavam uma província especial de defensor foi Egídio Clonna. com seu livro De Eclesiastica Potestate
ensino, dirigida pelo clero; os interesses temporais, ou seculares, (O Poder da Igreja), publicado no mesmo ano. O principal crí-
e a manutenção da paz, ordem e justiça constituíam esferas de tico das pretensões papais, defensor da autonomia do Estado e
ação do governo civil e eram as metas atingidas pela ação dos do rei, foi o dominicano francês Iean de Paris, com a obra De
magistrados. Entre as duas ordens, a do clero e a dos servidores Potestate Regia et Papali (O Poder do Rei e do Papa), em que
públicos, deve prevalecer o espírito de ajuda mútua. (SABINE,
aponta para a necessidade natural da organização política da
1964, pp. 199-200.)
sociedade e afirma que ela antecede à Igreja e ao papado. Afirma
Uma ideologia e duas instituições. Cristo foi o último a exer- a necessidade de uma separação e uma autonomia, e que o
cer as funções de sacerdote e rei. Nenhum monarca poderia pre- direito de um papa depor um rei não deveria ser maior do que o
tender a chefia religiosa. Na prática, contudo, o papa era tam- de um rei depor um papa. Da maneira que os monarcas estavam
bém um governante temporal dos Estados Pontifícios. limitados pelos parlamentos feudais, os papas deveriam ser li-
Os governantes eram de certo modo limitados uns pelos ou- mitados por um grande Concílio. Iean de Paris, ao criticar o
tros (papa, imperador, reis e barões), limitados pelos princípios papado, faz restrições também ao Sacro Império, afirmando os
legais emanados de Deus e das tradições locais. A sucessão do direitos dos monarcas nacionais, àquela altura em franco pro-
governo era um misto de hereditariedade, vontade de Deus (con- cesso de fortalecimento.
.;" sentimento da Igreja) e vontade do povo (aclamação pela as- A Igreja viu-se bastante enfraquecida, nos séculos 14 e 15,
Í!}
) ~~ sembléia dos nobres). As controvérsias teológicas sobre as atri- com o episódio conhecido como cativeiro babilônico: os seten-
I'
I~ buições dos governantes se tornaram mais agudas a partir do ta e oito anos em que o papa do foi transferido para Avignon e
"J
\ C' século 11. A Igreja não admitia que o clero fosse julgado por mantido sob a tutela da monarquia francesa, com todos os pa-
\''!,
'<~ tribunais civis (mesmo em casos de delito comum), e sim por pas franceses. Esses papas eram reconhecidos pela França,
tribunais especiais eclesiásticos. Os bispos e as ordens eram gran- Espanha, Escócia, Nápoles, Sicília e partes da Alemanha. Em
des proprietários de terras, sobre as quais não admitiam tributa- Roma foi restabelecido um papado que era reconhecido por
ção. Os reis, por sua vez, queriam nomear os bispos. Um rei que partes da Alemanha, Escandinávia e Inglaterra. Um papa exco-
fosse excomungado deveria perder o trono. E assim por diante. mungava o outro, chamando-o de antipapa. O Concílio de Pisa,
O papa justificava suas intervenções no poder político com o em 1409, escolheu um terceiro papa, mas os dois anteriores se
argumento de que devia zelar pelo cumprimento da moralidade recusaram a renunciar. Finalmente o Concílio de Constança, em
de todos os homens e instituições, que o poder temporal era 1414, depôs dois papas, forçou o terceiro a renunciar e restabe-
derivado do espiritual e que ele era o vigário de Cristo na terra. leceu a unidade com a eleição de Martinho V. O papado, porém,
Os defensores do imperador contra-argumentavam, alegando jamais voltaria a ser como antes. A instituição estava desacredi-
que ambos os poderes provinham de Deus e estavam na terra tada e crescia (mesmo dentro da Igreja) o número de seus críti-
em pé de igualdade, cada um em sua esfera. cos. A própria Europa dava sinais de iniciar uma nova transição
Às controvérsias entre o papa e o imperador, acrescentavam- e o Ocidente se preparava para uma nova era.
se, nos séculos 14 e 15, as disputas entre o papa e os reis, como Porque as constituições políticas e religiosas eram tão in-
os da França e da Baviera. A defesa dos reis era feita também por terligadas e de semelhante modelo organizacional, qualquer al-
juristas, e não apenas por teólogos, em apelo aos princípios do teração de ordem social ou política teria de passar por um
Direito, inclusive o Direito Romano. O grande documento de questionamento da Igreja. Já o poeta Dante Alighieri, em seu
afirmação temporal do poder papal foi a bula Unam Saneiam, livro De Monarchia (Da Monarquia), 1310-1313, juntava sua voz
do papa Bonifácio VIII, em 1302, e o seu principal teórico à de Iean de Paris na crítica ao papado, sendo um defensor do
118 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Média - 119

1"
império, e não dos reinos. Em A Divina Comédia ele chegou a bem comum, estando os governantes sempre sujeitos à lei, o
chamar os papas de Avignon de "lobos predadores em peles de que os diferenciava dos tiranos:
ovelhas". Entre o tirano e o príncipe há esta simples, ou principal, diferença:
O mais destacado de todos os críticos foi, sem dúvida, o último obedece à lei e governa o povo por decretos, conside-
Marsiglio de Padua com seu livro Defensor Pacis (O Defensor da rando-se apenas servo do povo. É em virtude da lei que ele justi-
Paz), de 1324, em que defende a existência de um governo civil fica o seu título à mais alta e principal posição na administração
e sua autonomia, sendo o clero apenas uma entre tantas classes, dos negócios da comunidade" (Policraticus, livro IV).
com sua tarefa específica para realizar. Defendeu o princípio de Defendia, ainda, a existência de princípios universais do
uma separação entre os ramos do poder político. Atacou os pri- Direito, que todo governante, de qualquer país, tinha de levar
vilégios e propriedades da Igreja. Afirmou ser a hierarquia ecle- em conta. Ia mais longe, advogando o tiranicídio (o direito de o
siástica, inclusive o papado, uma invenção humana e que São povo se rebelar contra o tirano e matá-lo): "Aquele que usurpa a
Pedro nunca esteve em Roma, nunca foi bispo, nunca foi papa e espada, pela espada deve morrer".
nunca deixou sucessor, que a Bíblia é a única fonte de revelação
e que os decretos papais integram a categoria das leis humanas, As cruzadas: cristãos em armas
devendo receber a sanção da comunidade. A Igreja não deve-
.J.- ria ser governada por uma hierarquia, mas por um concílio Um episódio ímpar na história medieval foi o das cruzadas
',,~~ geral. (1096-1291). Os cristãos já conheciam o impacto e os métodos
Outro dos pais da corrente da Teoria Conciliar do Governo violentos da expansão maometana, que levou sua fé no fio da
da Igreja foi o filósofo nominalista William de Occam, princi- espada e, em relativo pouco tempo, quase acabou com a civili-
'O,)
'.~ palmente com sua obra De Imperatorem e Pontificum Potestate (A zação cristã, somente sendo detida pela forte mobilização mili-
Autoridade do Pontífice e do Imperador). Um defensor da liber- tar dos reis cristãos. A reconquista cristã da Península Ibérica
dade de opinião e dos direitos das minorias perseguidas, afir- (Portugal e Espanha) ia ser lenta e penosa. Os árabes estavam
mou a falibilidade dos papas, enfatizou a necessidade de a Igre- desmoronando o império cristão do Oriente e, o que era mais
ja ser governada por uma assembléia formada pela mais ampla grave, haviam tomado a Palestina e ocupado os lugares santos
representatividade do laicato e do clero, excetuando-se, talvez, (centros de peregrinações).
as mulheres. Essa corrente teve seus defensores dentro da pró- Além do genuíno desejo de todos os cristãos de livrarem a
pria cúpula da Igreja nos concílios de Constança (1414-1418) e Palestina das mãos dos infiéis, apelou-se, no sentido de conse-
de Basiléia (1431-1449), e entre os precursores da Reforma Pro- guir adesões para aqueles empreendimentos, para uma
testante Wycliffe e Huss. Em Basiléia a teoria foi defendida por supervalorização das relíquias dos santos depositadas na região
Nicolau de Cusa (De Concordantia Catholica), parcialmente acei- e para a certeza de bênçãos especiais para os participantes. Ao
ta e transformada em dogma de fé. Um rude golpe para o abso- lado disso, podemos encontrar miseráveis fugindo da fome, aven-
lutismo papal e um passo a mais na retomada da evolução de- tureiros em busca de riquezas e políticos querendo expandir e
mocrática do Ocidente. conquistar territórios (uma aliança nunca vista de motivos
Na esfera secular isso já vinha acontecendo com a nobres e desejos vis). O papa abençoou as cruzadas e ofereceu
institucionalização das dietas, das cortes e dos parlamentos, es- indulgência plenária aos participantes.
pecialmente o da Inglaterra. O próprio Iohn de Salisbury, um Quatro foram as grandes cruzadas. A primeira foi a única que
defensor do papado, já no século 12, defendia o governo emanado conseguiu relativo sucesso, retomando a Palestina, parte da Síria
da vontade do povo, cuja legitimação moral era a busca do e territórios do norte da África. Estabeleceu um reino latino
120 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Média - 121

cristão com capital em Jerusalém (1099-1187), que não chegou Cesaropapismo: A cristandade oriental
a durar um século e veio a ser retomado pelos árabes. As cruza-
Enquanto a Igreja Romana elaborava e regia, havia cerca
das seguintes foram tentativas infrutíferas de reconquistar esse
de mil anos, a civilização ocidental, a Igreja Oriental vivia
reino. Os cristãos apenas colecionaram saques, derrotas e mas-
uma realidade completamente diferente:
sacres, conquistando pouquíssimos territórios. Tentou-se até uma
1. Nunca alcançou uma unidade político-administrativa. Cada
malograda "cruzada das crianças" em 1212, que acabou com a
patriarcado mantinha seu caráter autocéfalo, com seu próprio
maioria dos meninos sendo vendidos como escravos para o Egito.
sínodo, sendo o patriarca de Constantinopla apenas um líder
Do ponto de vista positivo, como saldo das cruzadas, desta-
cam-se o aumento do intercâmbio comercial e a redes coberta espiritual e um chefe nominal;
da cultura oriental, que voltaria a influenciar o Ocidente. O 2. Rejeitou as pretensões do papa, esteve de fato separada
desde a queda do Império Ocidental, sendo o cisma posterior
papado não conseguiu realizar o sonho de reunificar o Oriente
e o Ocidente em um só império e uma só Igreja. As cruzadas (1504) apenas a oficialização desse fato;
3. Ao contrário do Ocidente, o Império Oriental continuou
encerraram um profundo simbolismo para a compreensão da
Idade Média, notadamente a aliança da Igreja com o poder po- por mais mil anos. Por ser a organização política forte e a Igreja
lítico e militar, da religião com a empresa mercantil. débil e descentralizada, ela esteve sempre por baixo da autorida-
to
,~~.;~~I
de política, nunca "dando as cartas" como à sua congênere ro-
mana;
o o legado medieval do Ocidente 4. Enquanto a Igreja Romana exterminava os hereges, no Ori-
II Há um legado positivo da cristandade medieval do Ociden- ente sobreviveram as igrejas dissidentes e, posteriormente, o
\'0 ..
\ '~.I Império Oriental foi sendo ocupado, até a queda final de
-v, te: as hordas bárbaras foram integradas em uma nova civiliza-
ção, de valores culturais, espirituais e morais nitidamente supe- Constantinopla em 1453, pelos maometanos.
riores. Uma nova ordem política foi estabelecida, a sorte do es- Em muitos lugares do Oriente o cristianismo praticamente
cravo e da mulher foi melhorada e um acervo cultural foi man- desapareceu com a apostasia generalizada dos antigos fiéis e a
tido e transmitido. A Igreja realizou uma obra tremenda, quan- adesão ao islamismo. Em outros, reduziram-se as minorias dis-
do somente ela estava em condições de fazê-lo. Teve seus mo- criminadas pelo poder árabe. Em poucos lugares, como na Grécia
mentos áureos e seus momentos de trevas. e em Chipre, a Igreja conseguiu manter a lealdade da maioria.
No final da Idade Média a igreja 'ocidental havia legado à Desde antes.da invasão islâmica a igreja oriental havia resva-
história uma nova civilização, ao passo que ela mesma estava lado para um crescente formalismo e ritualismo, estando quase
arruinada pelos desvios doutrinários, pela corrupção interna e ausente o estudo da Palavra de Deus. O povo, pouco instruído
pelo afastamento de seus verdadeiros objetivos. Ao longo do na fé e cheio de superstições, sucumbiu mais facilmente ao ape-
período medieval várias reformas parciais tiveram lugar, lo e à pressão do islamismo. No todo, pelas próprias circuns-
revitalizando a instituição eclesiástica por algum tempo. Um tâncias geográficas, foram mais influenciados pelo pensamen-
remanescente de piedade evangélica havia sempre existido. No to helênico pré-cristão, e seu movimento monástico sempre foi
final, enquanto o Ocidente buscava novos rumos, inclusive se muito forte.
desvencilhando da tutela da. organização que teimava em não Limitada na ação política pelos imperadores cristãos e pelos
lhe reconhecer a maioridade, essa organização, a Igreja, chegou governos muçulmanos, e sem o conhecimento da pura mensa-
ao ponto em que meras reformas parciais não a salvariam. Era gem evangélica, a igreja oriental não conseguiu articular uma
necessário fazer uma Reforma. teologia mais agressiva da presença cristã no mundo,
Política e Igreja na Idade Média - 123
122 - Cristianismo e Política

Ao contrário da glorificação da vida rural. defendida pela Igreja


compartimentalizando-se e caindo em discussões estéreis e no
nos princípios da Idade Média, São Tomás considera natural e
misticismo. Sobreviveu muito mais no âmbito das fidelidades
desejável a vida citadina, influenciado, possivelmente, pelo
familiares e culturais e da celebração litúrgica, do que como um
modelo da polis grega. Embora faça diferenciação entre gover-
foco de renovação pessoal e das instituições.
nos legítimos e governos ilegítimos, e enfatize o conteúdo e pro-
pósito moral da função governativa, ele defende a autoridade
o político em São Tomás de Aquino política do papado, a desigualdade social e o verticalismo polí-
tico. Acreditava em um estado de felicidade antes do pecado
Não poderíamos deixar de fazer referência àquele que foi, no original, em que o Estado seria supérfluo, mas minimizava bas-
apogeu da Idade Média, o seu principal ideólogo e cujo pensa- tante os efeitos da queda para a natureza humana, enfatizando
mento teria forte influência em épocas posteriores: São Tomás o seu lado bom e suas imensas possibilidades. Achava que o
de Aquino, autor de Summa Theologica. Estabeleceu um amplo e modelo político imperial e a sociedade estratificada seriam de
abrangente sistema intelectual fortemente influenciado pela fi- Direito Natural e a melhor maneira de se atingir a felicidade,
losofia de Aristóteles, cuja obra A Política ele comentou e que sob a vigência dos princípios cristãos e a tutela da Igreja. São
também encontramos em De Regime Principum (O Regime dos Tomás viveu uma situação diferente daquela vivida por Santo
Príncipes). Dentro de seu vasto trabalho se ocupa da problemá- Agostinho, daí seu relativo otimismo e suas opções mais sociais
,~,.
.J."
tica política: O Estado é parte da ação da Providência para o e históricas do que metafísicas.
governo do mundo e, como toda forma de organização social, é
parte de um sistema com fins e metas. A meta do Estado é o
~.~~ bem-comum e, para tanto, se exige a melhor forma possível. Na
'v,
sociedade, cada pessoa, cada profissão e cada classe cumprem o
seu papel, realizando a tarefa que lhe compete. É natural a
estratificação social.
Para São Tomás, o governo é derivado da Providência e deve
estar sempre consciente de sua finalidade moral e de seu com-
promisso com a comunidade. Ser governante é apenas um ofí-
cio como os demais. A autoridade deve estar limitada pela lei.
Rebelar-se contra o governante é pecado de sedição, mas resistir
à tirania não constitui sedição, porque o tirano se afasta do pro-
pósito moral do governo, que assim pode ser entendido:
mais especificamente, constitui função do governante terre-
no lançar os alicerces da felicidade humana através da manuten-
ção da paz e da ordem, preservá-Ia mediante o desempenho
de todos os serviços da administração pública, ministrar a jus-
tiça e promover a defesa, e melhorá-Ia pelacorreção de abu-
sos, em todos os casos em que ocorram, e ainda pela remo-
ção de todos os possíveis empecilhos a uma vida feliz
(SABINE, 1964, pp. 249-250).
1 O.

A REFORMA E OS TEMPOS
MODERNOS

.;.-
..~""
,:"

\t\"b~
\.)~
".

Reforma e política

o SÉCULO ANTERIOR À REFORMA HAVIA PRESENCIADO


um aumento contínuo da consciência de nacionalidade e forta-
lecimento da autoridade real. Decrescia o poder do papa, do
imperador e dos barões, e se afirmava o poder dos reis, em uma
inversão do que havia caracterizado a ordem medieval. Na Ale-
manha, o imperador, além de contestado pelas outras naciona-
lidades, não conseguia impor a sua autoridade diante da nobre-
za germânica. O Sacro Império continuava a ter as suas fron-
teiras ameaçadas pelos maometanos, precisando de união
para sobreviver. A dieta imperial (parlamento) refletia a as-
censão do autonomismo nacional e o poder dos nobres regi-
onais. Em plena época da Reforma se processou a eleição de
Carlos V, com todos os acordos e compromissos inerentes a
tal pleito.
126 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 127

Uma das grandes obras de Lutero foi justamente a intitulada europeus e para a América do Norte, e o terrível episódio conhecido
A Nobreza Cristã da Alemanha, de apelo nitidamente nacionalis- como A Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572), quando
ta. Com isso granjeou a simpatia e o apoio de vários dos pode- milhares deles foram mortos em Paris e no interior.
rosos príncipes eleitores, entre os quais Frederico, o Sábio, que A Reforma, igualmente, concorreu para alterar a ordem polí-
corajosamente o protegia. A convergência entre a causa da Re- tica européia. Os países que aderiram ao protestantismo se se-
forma e o nacionalismo dos países europeus concorreu para pararam do Sacro Império e do papado, enfraquecendo-os. Se-
o grande apoio que Lutero recebeu da parte do povo e da parados, afirmariam o princípio da soberania, como Estados
elite alemã. Cremos que Deus preparou uma situação políti- nacionais. Os países católicos, imersos no mesmo processo,
ca favorável. Dentro do contexto da época, não tivesse Lutero mantiveram vínculos apenas nominais com o Sacro Império,
o respaldo popular e o apoio de poderosas forças políticas, teria que sobreviveria, por dois séculos, mais como tradição do
sido derrotado, como acontecera com os pré-reformadores, que como realidade. O papado, em vez de impor, teria de
como Ian Huss, que mesmo munido de um salvo-conduto ceder e negociar. O irônico é que em várias das concordatas
assinado pelo imperador, foi queimado vivo pelo Concílio que seriam assinadas entre a Igreja e os Estados católicos es-
de Constança. tava assegurado o direito dos governantes de nomear os seus
Grande parte da expansão do protestantismo deveu-se, bispos.
.;.- igualmente, ao apoio do braço político. Na Noruega, Dina- O poder político da Igreja Romana havia entrado irreversi-
i !'4
,J' marca e Suécia, a Igreja se tornou protestante por decisão do velmente em declínio, até a extinção dos Estados Pontifícios no
rei e do parlamento. Na Holanda, com a vitória da casa real século 19. Apesar da Igreja, e graças ao obstinado esforço de
\t de Orange contra a "Invencível Armada" da Espanha Católica. seus patriotas, a unidade nacional italiana só seria alcançada com
\ Q"
\'~.t
''\.'' Na Escócia, pelo apoio da nobreza. Na Inglaterra, por uma série uma demora histórica de 300 anos. Três dos quatro atores polí-
de atos dos monarcas e do parlamento. Na Suíça, pela aliança ticos medievais iriam praticamente desaparecer de cena, com o
político-militar de vários cantões. Na Alemanha, pela aplicação fortalecimento das monarquias nacionais centralizadas e o
do princípio do cujos regia, ejus religio (a religião do governante declínio do poder dos feudos.
é a religião do lugar) e pelo resultado da Guerra dos Trinta Não houve intenção política na ação dos reformadores. Sua
Anos entre os príncipes protestantes e os príncipes católicos motivação era basicamente espiritual e o seu propósito, uma
romanos. alteração profunda na vida da Igreja e um retorno à pureza
O lado negativo também é verdadeiro: o protestantismo não do cristianismo bíblico. Para o bem ou para o mal, há que se
teve vez, ou foi derrotado, nos países onde não contou com apoio reconhecer, porém, que a expansão ou não-expansão do protes-
político. Assim, não penetrou em Portugal, Espanha e Itália, for- tantismo nos diversos países europeus no século 16, deveu-se
tes aliados do papado. Apesar do apoio de vastos setores da menos à ação evangelizadora do que à correlação de forças
população, foi esmagado e reduzido a uma religião de minoria políticas e militares, que, inegavelmente, há uma forte corre-
impotente na Boêmia e Morávia (Tchecoslováquia), Áustria, lação enorme entre as diversas esferas da vida social (no caso da
Hungria e França. Neste último, a Reforma havia conseguido religião e da política, muito mais ainda naquela época) e que
a adesão de parte da nobreza, artesãos e trabalhadores qualifica- as idéias e os fatos se dão concretamente em determinado
dos, constituídos no setor mais dinâmico e progressista da po- momento histórico. Por este prisma, a Reforma foi a faceta reli-
pulação. Marchas e contramarchas políticas terminaram com a giosa de todo um processo sócio-econômico-político-cultural
vitória dos católicos, oitenta anos de perseguição, êxodo em que resultou na superação da Idade Média e no emergir da
massa dos protestantes (cerca de 400 mil) para outros países modernidade.
128 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 129

A teologia protestante prática da democracia representativa. Apaixonado pela cultura,


A teologia protestante foi importante elemento ideológico estabeleceu um sistema escolar modelo em todos os níveis, tor-
legitimador do nacionalismo europeu, concorrendo para o for- nando a Universidade de Genebra um dos mais respeitáveis es-
talecimento do Estado secular, ao afirmar a autonomia da esfera tabelecimentos de ensino superior de seu tempo. A teologia
política em relação à esfera religiosa e eliminar o papado como calvinista, dentro do protestantismo, é a mais abrangente e vol-
intermediário entre Deus e os monarcas. As nações se livraram tada para a presença cristã no mundo.
dos tributos a serem pagos ao imperador e ao papa. As proprie- No tocante à relação entre o espiritual e o político, a Igreja
dades eclesiásticas foram confiscadas. Os monarcas, os nobres e Católica Romana havia desenvolvido um sistema dualista. A vida
a nova classe urbana (a burguesia) acumularam o capital neces- deveria ser desenvolvida em torno de dois reinos: um superior
sário para os grandes empreendimentos comerciais e industri- (a vida religiosa) e outro inferior (a vida secular). O cristão seria
ais. Colocado em uma relação pessoal com o seu Deus, liberta- chamado a participar de ambos. Deus determinou regras ideais
do da dependência eclesiástica, o homem moderno afirmaria a para cada uma dessas esferas. As esferas da sociedade podem ser
sua individualidade. cristianizadas pela Igreja, canal da graça. Essa visão conduziu ao
O individualismo, a valorização do trabalho e a legitimação constantinismo e ao clericalismo.
dos seus resultados, a quebra do monopólio financeiro da Igreja O ponto de vista luterano é uma variação da noção dos dois
...-'
},IIII e da coroa e a transferência de recursos para as mãos de muitos reinos. A Igreja e a sociedade são duas esferas que interagem em
substituíram uma sociedade estamental por uma sociedade de uma relação dialética. Os cristãos estão inseridos em ambos os
classes. Abriu-se o caminho à mobilidade social e à crença no reinos, que são ordenados por Deus, e devem obediência a am-
I/
\rJ, direito à iniciativa. A ênfase na alfabetização para a leitura da bos. A Igreja não deve se isolar da sociedade, nem a ela se aco-
, 'J~

"' .. Bíblia, a organização do sistema de escolas primárias por Lutero modar. Não deve se integrar no mundo, buscando a síntese de
na Alemanha (inclusive escolas para moças, algo revolucionário um processo histórico, nem tentar transformar a sociedade. Cristo
para a época); a criação da Universidade de Genebra por Calvino governa tanto a Igreja quanto a sociedade mediante a lei de Deus.
e outros empreendimentos semelhantes concorreram para o avan- Os cristãos estão com um pé em um e um pé em outro, sentem
ço cultural dos países protestantes e para a retomada do processo a tensão, mas sentem igualmente o governo total de Deus, em-
democrático no Ocidente - este último fato, reforçado pela dou- bora altar e trono tenham missões diferentes: o cuidado espiri-
trina do sacerdócio universal dos fiéis e pela organização democrá- tual e o cuidado material do homem.
tica de muitos dos ramos do protestantismo. Do ponto de vista reformado, ou calvinista, o homem é um
Formado na mentalidade medieval, influenciado pelo ser integralmente unificado. Deve-se evitar as dicotomias. Tudo
neoplatonismo dos agostinianos, Lutero não foi muito longe é esfera sagrada, e deve-se aplicar a Palavra de Deus a todas as
na articulação de uma teologia política e das conseqüências po- áreas da vida. Toda a criação caiu com o pecado e está agora sob
líticas da doutrina do livre exame, haja vista o seu comporta- a ação redentora de Cristo, que é o Senhor tanto da Igreja quan-
mento quando da revolta dos camponeses e diante da minoria to da sociedade. Os cristãos devem lutar hoje para manifestar a
anabatista - uma reação de incompreensão e intolerância. presença do reino de Deus, embora a sua plenitude somente se
Calvino, contudo, foi mais um homem dos tempos modernos. alcançará com o retorno de Cristo. Somos salvos para servir. Os
Apesar de um comportamento muitas vezes considerado autori- cristãos devem se infiltrar em todas as esferas da sociedade para
tário e da disciplina rígida imposta à cidade de Genebra, elabo- chamá-Ia ao arrependimento e à conformação às normas do rei-
rou um modelo político para a Igreja (o modelo presbiteriano) no. A Igreja é um centro de arregimentação e treinamento de
e para o Estado, pelo que pode ser considerado pioneiro na pessoas que se reformam para reformar.
130 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 131

o protestantismo não foi uma realidade estática. Enquanto Estado segundo o seguinte princípio: o rei é obrigado por esse
fiel a um núcleo doutrinário a ser preservado, por ser oriunda da acordo a governar bem e justamente, e o povo é obrigado a obe-
Revelação, a Igreja reformada, no dizer de Iohn Robinson. tinha decer enquanto ele agir assim.
de estar sempre se reformando. Enquanto a obediência ao O poder do rei derivava tanto de Deus quanto do povo, e ele
governante era enfatizada em uma Alemanha onde os príncipes era responsável perante ambos. O povo teria direito de se rebe-
eram aliados e protetores de Lutero, e em Genebra, onde os lar se o rei não cumprisse a parte que lhe tocava no contrato. O
governantes eram discípulos de Calvino, encontramos uma re- rei estava obrigado a servir o povo, e a obediência a ele devida
sistência prática, com a concordância de Iohn Knox (ele mesmo era limitada e condicional. Os cristãos deveriam obedecer a Deus,
várias vezes exilado), aos governantes escoceses, que se opunham e não ao rei, caso ele determinasse algo que contrariasse a lei
ao protestantismo e perseguiam seus seguidores. Tal princípio foi divina e assolasse a Igreja. O povo deveria resistir se o rei perse-
formalmente defendido por outro evangélico escocês, o poeta e guisse a religião verdadeira e promovesse a religião falsa, pois se
erudito George Buchanan, em seu livro De Jure Regnix apu Seatas (O o povo e o rei eram responsáveis perante Deus pela adoração
Direito Real Entre os Escoceses), em que afirma que o poder deriva correta, errando o rei e o povo consentindo, este se tornaria igual-
da comunidade e deve ser exercido dentro das leis da comunidade, mente culpado de pecado.
e que a obediência ao governante está condicionada ao seu desem- O poder político vem de Deus, mas Deus atua por meio do
_"',
penho dos deveres que o cargo requer. povo. A lei deriva do povo e apenas ele a pode modificar. O
Na França, uma obra bastante popular entre os huguenotes povo estabelecia as regras do pacto político e o rei deveria atuar
perseguidos foi Vindieiae Contra Tyrannas, atribuída a Théodore dentro delas. O poder do governante, portanto, era delegado
Beze, o discípulo e sucessor de Calvino em Genebra. O livro se pelo povo e só vigorava com seu consentimento. Se o rei não
'''.~. ., propõe a responder a quatro questões: 1) Estarão todos os súdi- cumprisse sua parte, o pacto seria anulado e o povo já não deve-
tos obrigados a obedecer aos príncipes se seus comandos feri- ria considerá-lo como seu rei. O governo existe para promover o
rem a lei de Deus?; 2) Será legítimo resistir ao príncipe que bem-estar dos súditos, e seria insensatez dos súditos aceitar o
deseja revogar a lei de Deus e assolar a Igreja e, nesse caso, quem fardo da obediência sem a contrapartida do benefício.
deve resistir, por quais meios e até que ponto?; 3) Até que ponto O autor fazia uma distinção entre o tirano usurpador, que
será legítimo resistir ao príncipe que oprime ou destrói o Esta- toma o cargo ilegitimamente e o exerce despoticamente, e o
do, e a quem caberá a resistência?; 4) Podem príncipes de países governante legítimo que, uma vez no poder, se torna tirânico.
vizinhos ajudar legitimamente súditos de outros príncipes, ou No primeiro caso poderia ser combatido e morto por qualquer
são obrigados a fazê-lo quando tais súditos estiverem afligidos cidadão; no segundo caso, a resistência deveria se fazer pelo povo
na defesa da verdadeira religião ou oprimidos por uma tirania mediante as autoridades: magistrados, funcionários municipais,
declarada? militares, cada um resistindo em seu setor. É interessante que
Pelas perguntas se pode imaginar a situação dos protestantes o autor, com o precedente do Antigo Testamento e dentro do
franceses, suas dúvidas teológicas e a busca de pautas e justifica- espírito da época, afirma o dever do governante de promover
tivas para a ação. As respostas se apresentam a partir de uma não só o bem-estar dos governados, mas a verdadeira adoração,
teoria de cunho contratualista. De um lado, o contrato que têm e que o descumprimento de ambos os deveres romperia o pacto
Deus e o conjunto do povo (governantes e governados), e que político.
se manifesta em uma comunidade de fé: a Igreja, com seus direi- Foram essas idéias de limitação do poder do Estado que in-
tos e deveres delimitados: Por outro lado, temos o contrato políti- fluenciaram os dois grandes teóricos políticos da época seguinte:
co, que tem como pactuantes o rei e o povo, constituindo o Iohann Althusius e Hugo Grotius, bem como o pensamento
132 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos -133

contratualista secular e as declarações de direito das revoluções eclesiásticas pelos fiéis e a filiação à Igreja apenas dos regenerados,
liberais. Essas idéias estavam no Pacto do Mayflower (1620), entre que deram mais impulso ao aprofundamento da experiência pro-
os Pais fundadores da nação norte-americana (eles próprios fu- testante e de suas conseqüências políticas. Em pouco tempo, as
gitivos de perseguições políticas por motivos religiosos) e na Ata denominações históricas (anglicanos, luteranos, presbiterianos)
de Abjuração (1581), quando os Estados gerais holandeses re- estavam justificando a ordem estabeleci da, a idéia de um "país
nunciaram à fidelidade ao imperador Felipe 11. cristão", tendendo a uma mentalidade conservadora, intoleran-
Assim se expressaram os holandeses: te e perseguidora das denominações independentes minoritárias.
Toda humanidade sabe que o príncipe é nomeado por Deus para Estas sofreram nas mãos dos irmãos protestantes históricos quase
proteger seus súditos, como o pastor guarda seus rebanhos. Quan- o que sofreram nas mãos dos católicos romanos.
do, por conseguinte, o príncipe falta ao dever de protetor, quan- No caso da colonização dos Estados Unidos, tivemos protes-
do oprime os súditos, revoga-lhes as antigas liberdades e trata-os tantes independentes e católicos romanos fugindo das persegui-
como escravos, deve ser considerado não como príncipe, mas ções anglicanas e luteranas. À semelhança da mentalidade cató-
como tirano. Como tal, os Estados do país podem legítima e lico-romana, os governantes protestantes achavam que só uma
razoavelmente depô-lo e eleger outro para ocupar-lhe o lugar. Igreja, ligada ao Estado, era uma garantia para a unidade nacio-
(SABINE,1964, p. 374.) nal. A dissidência era considerada perigosa e ameaçadora à se-
Desse modo, o protestantismo, que, contingencialmente ha- gurança nacional. Os protestantes independentes pagaram com
1'4'
via concorrido para legitimar o absolutismo, como forma de a prisão, o exílio e a morte um alto preço. Sem o seu sacrifício e
superar o sistema medieval, soube, muito rapidamente, criticá- martírio a democracia não teria vingado no Ocidente. E foram
10, concorrendo para o estabelecimento não só das nacionalida- essas mesmas igrejas as que desenvolveram uma democracia
'~4 I
des, mas do exercício da liberdade. interna, nas congregações autônomas, como forma de governo
eclesiástico.
Na Inglaterra, enquanto os anglicanos afirmavam o naciona-
A Igreja e o Estado
lismo e a soberania nacional na lealdade da Igreja ao monarca,
Uma grande limitação à contribuição das denominações his- e os presbiterianos defendiam o fortalecimento do parlamento
tóricas à causa da democracia e da liberdade foi o estabeleci- como meio de democratizar o regime e ampliar a participação
mento do protestantismo como religião oficial em diversos pa- da burguesia emergente, os independentes lutavam pela ampli-
íses do Velho Mundo, ligando a Igreja ao Estado. Nesses casos a ação dos direitos civis e, posteriormente, pela integração das ca-
Igreja vivia a tensão da ambigüidade de ser, ao mesmo tempo, madas menos favorecidas da população. A evolução do parla-
uma expressão da sociedade civil e uma repartição pública. Isso mentarismo inglês, de marcada influência protestante, seria o
limitava sua autonomia e sua capacidade de reivindicar e ino- grande laboratório da retomada do processo democrático.
var, levando-a a viver, freqüentem ente, experiência semelhante As conquistas da Magna Carta foram ampliadas por uma sé-
à da igreja oriental com o cesaropapismo (o rei como chefe da rie de documentos históricos, entre os quais o Bill ofRights (Ato
Igreja). A ligação com o Estado, que havia sido uma necessidade dos Direitos). Os calvinistas, no século 17, se uniram militar-
de sobrevivência no tempo da Reforma, viria a se constituir, de- mente aos grupos independentes para derrotar as tentativas ab-
pois, em um fardo e um entrave. solutistas do rei Carlos I. Primeiramente, forçaram-no a se sub-
Foram as denominações da chamada "Reforma radical" meter às leis constitucionais e ao parlamento e, depois, quando
(batistas, congregacionais, independentes ete.) que, defendendo a o rei buscou apoio externo, submeteram-no à corte marcial e à
separação entre a Igreja e o Estado, o sustento das despesas execução. Os poderes executivo e legislativo foram entregues ao
134 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 135

parlamento, que, dividido e corrompido, fez uma péssima Iohn Milton (1608-1674), amigo de Cromwell, poeta e
administração, caindo na impopularidade e no descrédito. pensador político de forte formação calvinista, foi o maior teó-
Oliver Cromwell, comandante das Forças Armadas e calvinista rico puritano do princípio da soberania popular, que influenci-
piedoso, interveio. Por duas vezes ele dissolveu e convocou novo aria enormemente a formação da sociedade norte-americana.
parlamento como tentativa de evitar solução de continuidade à Para ele, o homem vivia na atualidade que ele chamava de Para-
experiência política nacional. Frustrado, respaldado pelo povo, íso Perdido: a realidade do egoísmo. O Paraíso Reconquistado é a
ele dissolveu o terceiro parlamento, instaurou uma ditadura e realidade da aliança de Deus com os cristãos, que, no Estado,
governou por uma década baseado em lei de exceção. Foi um desenvolvem uma ação comunitária de liberdade, como eleitos.
democrata que se transformou em ditador em virtude da defa- Para Milton, a Inglaterra de então, formada e governada por
sagem entre o ideal e a prática e a falta de moral na política. eleitos, deveria servir de exemplo para a humanidade. A verda-
Depois da morte de Cromwell, que fez um governo excelente, a deira liberdade é a liberdade religiosa, e ninguém é verdadeira-
monarquia foi restaurada em moldes constitucionais. O Ato dos mente livre senão os eleitos. Os predestinados atestam sua elei-
Direitos, a Lei do Habeas Corpus, o Ato de Sucessão e outros di- ção por sua moralidade pessoal e pela busca de cristianização
plomas legais foram tecendo o modelo democrático parlamen- do mundo, especialmente o Estado, que deve ser uma comuni-
tar. No século 18 o poder do parlamento se deslocou da aristo- dade de homens livres (libertados em Cristo), que estabelecem
,ri'-' crática câmara dos lordes para a eletiva câmara dos comuns. um pacto de convivência baseado na verdade, e verdade emanada
I""'
da verdade de Deus. Em virtude de sua liberdade básica, o homem
é destinado a vivenciar as demais liberdades civis. Os homens nas-
Protestantismo e democracia liberal
b, cem iguais e, portanto, têm o direito de participar do governo.
\ .:~.~ A experiência inglesa incluiu a participação de cristãos como De certo modo, Milton foi um pós-milenista, que cria no es-
teóricos da democracia liberal. Iohn Locke (Tratados Sobre o tabelecimento de um Estado cristão, não plasmado pela Igreja
Governo, Cartas Sobre a Tolerância, Tratado Sobre a Racionalidade do como instituição e hierarquia, mas como comunidade dos elei-
Cristianismo), jusnaturalista e contratualista, defendeu o princípio tos, o novo povo de Deus. Milton exerceu influência sobre
da soberania popular, a divisão de poderes e a liberdade religiosa. Cromwell e sobre o pensamento parlamentarista inglês dos
Para ele a liberdade não somente já existia antes da formação séculos 17 e 18, mas foi nos Estados Unidos que ele teve aco-
do Estado, mas os homens devem ter o direito à liberdade lhida especial na mente dos colonizadores puritanos, que con-
dentro do Estado. O Estado se destina a proteger os direitos dos templavam a Nova Inglaterra, e não a velha, como cenário para
cidadãos. Se o governo abusar de sua autoridade, viola o cóntra- a construção de uma civilização nova, cristã, assentada sobre
to social, voltando ao povo a soberania original, pelo direito à a liberdade.
sublevação. Ali superariam o negativo da Europa (feudalismo, absolutis-
Em Locke (1632-1704), porém, foi se dando uma separação mo), separariam a Igreja do Estado, organizando democratica-
entre o pensamento liberal de tendência capitalista, com alguns mente a comunidade de fé e a comunidade civil. A Declaração da
postulados éticos cristãos, pela quase absolutização do direito Virgínia (1776) defendia os direitos da religião e a liberdade de
de propriedade, e a destinação social de seus produtos. Na época, consciência, a liberdade de imprensa e a segurança pessoal. O
pensava-se menos nesse aspecto do que no uso da propriedade pensamento de Milton sempre pressupôs que tudo isso seria
como garantia de segurança do cidadão contra o absolutismo. Uma possível somente se os cidadãos fossem cristãos. Seu pensamento
espécie de base material que tornaria possível o exercício de estaria nas Revoluções Americana e Francesa, bem como na Idade
outros direitos. Contemporânea.
136 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 137

Mas, quando essas revoluções substituíram a fé cristã pela para Deus. Portanto, lutar contra a onipotência estatal, formular
propriedade privada como fundamento da liberdade do cida- uma filosofia que lhe limitasse os poderes, era o meio de se
conseguir algo mais do que o mero benefício econômico. Tor-
dão, o liberalismo já estava mais para Locke do que para Milton,
nou-se quase uma obrigação sagrada. Foi essa a razão fundamen-
mais para a burguesia do que para a comunidade religiosa. A
tal por que, na Inglaterra e na França, a teoria do Estado liberal
estratificação social, a escravidão e os limites censitários e encontrou uma tão ampla aceitação entre os dissidentes. (LASKI,
capacitários à participação política atestariam essa mudança: a id., ibid.)
democracia ocidental, no século 18, se relativizava e se seculari-
zava. O capitalismo se alçava em novos vôos. A influência da Daí poder-se compreender por que foi nos países protestan-
tes que o liberalismo democrático deitou raízes mais profundas,
Reforma se tornava cada vez mais uma sombra do passado.
Assim, enquanto o anglicano, o luterano e o calvinista enfati- com a propriedade privada capitalista tida como indispensável
garantia de uma sociedade civil livre e forte, desconfiando-se de
zavam os aspectos positivos de seus Estados, considerados cris-
todo modelo autoritário e do intervencionismo estatal, bem
tãos, bem como a obediência à autoridade, os puritanos e inde-
como de toda ideologia intolerante. Tão forte é essa herança
pendentes assumiram uma atitude de desconfiança diante do
que, mesmo os pensadores de esquerda a acoplariam ao socia-
Estado, considerado negativo, e desenvolveram toda uma teoria
lismo (social-democracia), vendo nele uma correção, uma atua-
de contestação e de afirmação dos direitos individuais. Esse é
lização e um aprofundamento da experiência liberal, rejeitando
um fato reconhecido por um dos principais teóricos do
a opção totalitária, mais condizente com países de tradição or-
trabalhismo britânico: Harold Laski, que afirma:
todoxa ou católico-romana, que desconheceram, historicamen-
Não será demais recordar que onde quer que o puritano encon-
te, uma sociedade civil mobilizada, forte e economicamente
trasse o Estado, este era para ele não só uma máquina de repres-
autônoma.
são, mas, sobretudo, uma máquina de repressão preocupada em
destruir os santos de Deus. Conheciam o Estado, até o Ato de Ausentes a Reforma, o liberalismo e o capitalismo avança-
Tolerância, como um instrumento usado para os hostilizar e ata- do, países do Ocidente têm colecionado uma sucessão de ex-
car; não admira, portanto, que acabassem por suspeitar dos pro- periências políticas autoritárias e modelos econômicos de in-
pósitos de suas ações. Viram-no ser sempre usado para impor tervenção estatal, talvez porque nunca tenham saído total-
uma verdade que eles sabiam ser contrária aos ensinamentos de mente da Idade Média e não viveram plenamente os modos
Deus ou para castigar os irmãos que se mantinham firmes na fé. de produção pós-medievais, por não terem tido liberdade
Para esses, o Estado significava cárcere, confisco de bens, pobreza para fazê-Io, rrern ideologia (inclusive religiosa) para
para eles e seus dependentes. Por meio dos exilados da França e legitimá-Io.
de Flandres sabiam o que o Estado significava no estrangeiro,
Como não argumentariam, pois, baseados em suas amargas ex-
periências, que quanto menos poder o Estado possuísse, menor Protestantismo e capitalismo
seria a sua esfera de ação e maior a liberdade de que poderiam
Amplamente debatida (por poucos estudada e por muitos
desfrutar? (LASKI,1973, p. 68.)
distorcida) é a tese de Max Weber, elaborada a partir de seu livro
E prossegue: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, discutida poste-
Para eles, instar com as virtudes da tolerância era uma simples riormente por Tawney, Fanfani e outros. É uma tremenda asnei-
lição colhida nos ensinamentos de suas vidas cotidianas. O Esta- ra a fórmula simplificada "o protestantismo inventou o capita-
do tolerante era o Estado que desse a cada um liberdade de lismo", ou "para Calvino só a riqueza atesta a salvação", como
acreditar na verdade. Mais ainda, criar esse Estado era obter vitória se ouve com freqüência. Calvino, Lutero e os demais
138 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 139

reformadores viveram um estilo de vida simples, espartano, conseguiam uma mobilidade social ascendente mais rápida:
humilde até. Advogaram, também a simplicidade de vida para trabalhavam mais e gastavam menos, poupavam e reinvestiam,
os seu seguidores, condenaram a riqueza, a usura e a ostentação, sempre se preocupando em elevar o nível de instrução de seus
ensinando a doutrina da mordomia cristã. Por sua vez, o capita- filhos.
lismo mercantil desenvolveu-se tanto em cidades católicas quan- Deve-se acentuar, ainda, duas verdades: 1) o capitalismo não
to em cidades protestantes. tem sido um sistema econômico pronto, acabado e uniforme, e
O capitalismo resultou de um processo histórico complexo e há grandes diferenças entre o capitalismo dos séculos 16 e 17 e
foi inevitável, importante e necessário. Pode-se condenar as suas modalidades nos séculos 18 e 19 e o neocapitalismo atual;
manifestações posteriores, ditas "selvagens", do capitalismo e se 2) o pensamento social protestante não ficou de braços cruza-
pode questionar sua validade para hoje. Mas condenar o apa- dos, legitimando todos os desvios, excessos e aberrações do ca-
recimento do capitalismo como um mal em si mesmo tem sido pitalismo industrial, mas sempre tivemos vozes de críticas de-
um apanágio da direita histórica, da corrente integrista católico- nunciando esses pecados, preparando reformas ou propondo
romana, do romantismo que considera a Idade Média como a modelos alternativos.
idade de ouro da humanidade e o sistema econômico
corporativista como sistema cristão. Para um marxista, por exem- Protestantismo e justiça social
plo, o capitalismo foi um passo adiante na história dos modos
""I
I' de produção, pois, antes de uma fase distributivista (o socialis- o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes con-
:1
i mo), teria de vir um período empreendedor e criador, liderado correu para tornar hegemônico o pensamento liberal-democrático
pela classe considerada por Marx como a mais dinâmica da his- conservador a tal ponto que, parece aos menos avisados, ser essa
!~c
." tória: a burguesia. a única herança evangélica no campo do pensamento econômi-
É uma realidade que, de modo não intencional e indireto, o co e social. Movimentos e propostas de esquerda encontrados
protestantismo concorreu para o desenvolvimento do capitalis- entre os protestantes no século 20 têm sido atribuídos à influên-
mo: tirando o homem da massa estamental e do fatalismo, afir- cia do marxismo ou do socialismo utópico secular. Nada mais
mando a sua individualidade, sua dignidade e seus direitos de parcial. Tanto quanto o liberalismo conservador, o liberalismo
empreender e de mudar de vida. O protestantismo alfabetizou social, ou progressista, e o socialismo utópico integram a he-
esse homem, dando-lhe acesso a um mínimo de instrução. Liber- rança evangélica dos séculos 16 e 17. A chamada" questão soci-
tou-o de uma série de vícios danosos à sua saúde, nocivos à sua al" teve respostas avançadas, inspiradas no cristianismo, da parte
capacidade de trabalho, e o conduziu às virtudes de uma vida de amplos setores do protestantismo.
sóbria. Integrou o homem em uma comunidade, que é também A primeira manifestação do radicalismo social protestante foi
um grupo de ajuda mútua. Ensinou que o homem deve buscar a Revolta dos Camponeses, ocorrida na Alemanha (1524-1525).
seu papel social como uma vocação, um chamado de Deus. En- Revoltas menores vinham acontecendo desde 1400, como ma-
sinou que a atividade econômica e financeira deve ser um direi- nifestações da busca de uma ordem social mais justa no setor agrí-
to de todos, sem privilégios ou exclusividade por parte do Esta- cola. Os camponeses sempre apelaram para os princípios cristãos de
do ou da Igreja. justiça social e criticaram os sacerdotes católicos romanos por
O protestantismo não sacralizou, nem inventou o capitalismo, mas sua indiferença ou recusa em apoiar a sua causa. Com a Refor-
concorreu para o seu desenvolvimento, especialmente pelo di- ma, foram profundamente influenciados pelas pregações de
namismo de seus seguidores. Partindo-se do capitalismo como Karlstadt e Thomas Munzer, no sentido de que o evangelho, em
uma realidade - e dentro do sistema - os protestantes suas implicações éticas, deveria resultar no estabelecimento de uma
140 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 141

nova ordem social baseada na justiça e no amor, e que, para Imprecisões no estudo da escatologia levaram os anabatistas
derrubar a injustiça, uma revolta sangrenta pode ser legítima. à tentativa utópica de construir uma sociedade ideal formada
Lutero, de início, foi conciliador, reconhecendo a situação de pelos salvos, uma espécie de antevisão da nova Jerusalém.
injustiças e condenando a luta armada. Com o recrudescimento Munster proclamou a independência política da cidade como
da guerra, pela radicalização dos seguidores de Munzer, Lutero cidade-Estado, sob a forma de governo monárquico. Só
exigiu que os príncipes usassem da força para esmagar os anabatistas poderiam habitar o reino. Por um lado, um estrito
revoltosos e escreveu um panfleto em linguagem violenta código de moral proibia a prostituição, o adultério e a fornicação.
intitulado Contra a Corja de Camponeses Assassinos e Ladrões. Para Por outro lado, a propriedade comunitária era estabelecida como
o reformado r, toda revolução era vista como rebelião contra Deus. regra, permitindo-se a propriedade privada apenas em casos
Achava que o evangelho se limitava a suas dimensões espirituais, excepcionais. A necessidade de sobrevivência (quando havia mui-
não podendo aceitar que ele tivesse algo a ver com exigências to mais mulheres do que homens) e a crença no direito de todos
sociais e econômicas. à realização sexual e à procriação os levou a legalizar os casa-
A Revolta dos Camponeses recebeu o apoio de grande parte mentos poligâmicos. O reino de Munster (1533-1535) ter-
dos anabatistas, considerados os manifestantes radicais do mo- minou em um banho de sangue, destruído pelos exércitos
vimento protestante por sua crítica não apenas ao romanismo, luteranos.
-"
'/IIl! mas também ao luteranismo e ao calvinismo, que considera- É, porém, na Inglaterra, na efervescência da Guerra Civil do
I' vam limitados em sua tarefa reformadora. Insistindo na separa- século 17, que encontramos entre os niveladores e os cavadores as
~ ção entre Igreja e Estado e no estabelecimento de uma igreja de manifestações mais sistemáticas do pensamento não-capitalista
•s
adesão voluntária, queriam transformar a ordem social tendo protestante. Os primeiros como liberais-sociais, e os últimos
~~.~
como fundamento o amor cristão. como socialistas.
O Partido Nivelador existiu entre 1647 e 1650, formado ini-
Surgiram em regiões da Europa onde o descontentamento social cialmente por pequenos artesãos e agricultores, que compunham
vinha de há muito dominando. Procederam principalmente dos
o grosso do exército de Cromwell, contando com o apoio dos
camponeses e artesãos que eram vítimas de injustiças; não
elementos mais politizados das camadas populares. Do ponto de
obstante, entre eles havia alguns líderes cultos (NICHOLS, 1960,
vista religioso, eram membros das igrejas independentes e se
p.181).
opunham à forma presbiteriana e episcopal. Liderados por Iohn
Tratados pelos católicos como hereges e pelos protestantes Liburne e Richard Overton, transformaram o movimento da ala
como sediciosos, os anabatistas partiram, especialmente após a esquerda do exército revolucionário em uma proposta política
Revolta dos Camponeses, para a criação de comunidades, desta- de um radicalismo democrático, uma democracia da classe mé-
cando-se as de Waldhut e Estrasburgo. "Os anabatistas eram afins dia. Foram considerados os precursores do liberalismo revolucio-
com os monges na busca da perfeição em comunidades separa- nário dos séculos 18 e 19.
das do mundo, mas diferentemente dos monges, eles se casa- Os niveladores defendiam uma reforma constitucional, o
vam" (LATOUREITE, 1953, p. 779). A cidade de Münster, na sufrágio universal da população masculina, a independência do
Vestfália, se tornou, então, uma grande comunidade anabatista. parlamento e a redistribuição de cadeiras de modo a asse-
Os habitantes locais foram convertidos pelas pregações de gurar uma representação mais eqüitativa, bem como a decre-
Bernhard Rothmann. A existência de uma cidade anabatista atraiu lação de direitos que protegessem os cidadãos de abusos do
imigrantes de várias partes, liderados por Ian Matthys e Ian parlamento. Alguns republicanos estavam entre eles. Defendendo
Beukelsson. lima sociedade mais justa, atacavam os privilégios da nobreza e as
142 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 143

vantagens econômicas obtidas por meio de monopólios de o cavador inferia que a propriedade privada em si mesma
constituía a principal causa do mal e de todas as formas de abusos
comércio e monopólios profissionais.
e corrupção social. As causas de todo mal eram a inveja e a cobiça,
O seu compromisso com a democracia é assim resumido: a primeira das quais deu origem à propriedade privada, ao passo
A menos que a lei fosse formulada com o consentimento do povo que a segunda engendrava a supremacia de um homem sobre
e a menos que o homem estivesse representado no órgão que a outro, todos os tipos de derramamento de sangue e a escravidão
formulou, de que modo poderia ele ser corretamente obrigado a das massas, reduzidas à pobreza pelo sistema de salários e força-
cumpri-Ia? E de que modo pode estar um homem representado das a sustentar, com seu próprio trabalho, o poder que as opri-
a menos que tenha na escolha de seus representantes? (SABINE, mia. Conseqüentemente, a maioria dos males sociais e vícios
1964, vol. n. p. 483). humanos poderia ser eliminada com a destruição da proprieda-
de privada, especialmente a da terra. (SABINE, 1964, vol. 11, p.
Os cavadores, ou comunistas, foram uma dissidência 487.)
minoritária do Partido Nivelador, considerados sua ala esquer-
da, que se denominavam "verdadeiros niveladores". Do ponto Evangélicos ... do século 17 ...
de vista religioso, foram precursores dos quacres. Profundamente
religiosos, criticavam o clero protestante por calar a boca do povo, Roma e a modernidade: reação
ensinando a submissão em seus sermões. Queriam tornar práti-
Para a Igreja Romana a Idade Moderna foi vivida sob a égide
tN'l co o amor fraterno e afirmavam: "Jesus Cristo é o principal
da Contra-Reforma, elaborada pelo Concílio de Trento (1545-
nivelador". Em sua ética, o amor fraternal é que deveria ser o
1563), que reafirmou seus dogmas tradicionais, ao mesmo tem-
~ princípio básico da democracia, contrastando com os calvinistas,
"i po que procurou moralizar e dinamizar a instituição. Criou-se a
I i que partiam da auto-suficiência individual. Em sua visão pro-
I,~",n. Ordem dos Jesuítas, com obediência especial ao papa, procu-
gressista, defendiam a proposta de uma igreja como instituição
rando opor obstáculos à expansão protestante e, na medida do
da educação popular.
possível, reconquistar territórios, o que se conseguiu na Áustria,
O seu grande líder e pensador foi Gerrard Winstaley. Em 1652
Polônia, Estíria, Coríntia, Baviera e partes da região do Reno
publicou A Lei da Liberdade, considerado "uma plataforma de
e Bélgica. Para manter a disciplina nos países que lhe ficaram fiéis,
governo da comunidade", uma sociedade utópica segundo os
foi dinamizada a chamada Santa Inquisição (contra protestantes,
princípios da justiça, no qual afirmava: "Melhor para o homem
não ter corpo do que não poder alimentá-Io". judeus, maometanos, ocultistas e racionalistas), com todo um
Os cavadores, embora defensores da via pacífica, viam na cotejo de confiscos, torturas e autos de fé. Um Index de Livros
Guerra Civil inglesa a oportunidade revolucionária de se estabe- Proibidos limitava toda criatividade literária dentro do aceitá-
lecer a igualdade econômica e por fim à opressão e à miséria. vel pela igreja. A Vulgata era a única edição da Bíblia permitida.
Em seu utopismo proletário, procuravam mostrar a incompati- Ao mesmo tempo se dava um notável crescimento das ordens
bilidade entre a espoliação econômica e os ideais democráticos. monásticas de ênfase contemplativa, inspirado, maiormente,
Daí sua ênfase mais econômica do que política, sua insatisfação nos místicos espanhóis como Tereza de Jesus e João da Cruz.
com o mero fortalecimento do parlamento. Coerentes com a defe- A situação religiosa da Europa ficou definida com a Paz de
sa do princípio da propriedade comum como "estado natural" do Vestfália (1648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. A Igreja
homem, ocuparam, em 1649, terras devolutas para distribuí-Ias Romana compensaria suas perdas com a colonização da maior
entre os pobres (embora um ano depois viessem a ser expulsos). parte do continente americano por países de fé católica (Espanha,
Considerados precursores dos socialistas utópicos, não há dúvidas Portugal e França). A Igreja delimitava os territórios de cada um,
quanto ao caráter comunista de sua proposta econômica. abençoava o empreendimento e tomava parte ativa no processo
144 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 145

de colonização, tanto pela presença entre as populações de origem santuário da fé ortodoxa, foi transformada em mesquita. A elite
européia, quanto pela tentativa de cristianização dos nativos. intelectual e espiritual emigrou, deixando um vazio de lideran-
Sempre acompanhando os colonizadores, a Igreja Romana se ça. Os que permaneceram se viram privados de seus direitos
estabeleceu nas Filipinas, China, Japão e outros países asiáticos, políticos. O patriarca de Constantinopla, então com ascendên-
bem como na parte francesa do Canadá e em alguns pontos da cia sobre os de Antioquia, Alexandria e Jerusalém, foi nome-
costa africana. A vitória da Contra-Reforma na Península Ibérica ado pelo sultão, ficando em completa dependência dele. A sub-
rendeu excelentes dividendos, pois embora ela fosse constituída serviência dos bispos diante dos governantes infiéis resultou em
por apenas dois países (Portugal e Espanha), eles foram as prin- seu descrédito por parte dos fiéis.
cipais potências colonizadoras dos séculos 16 e 17. O passado de dependência dos imperadores cristãos contri-
A Idade Moderna foi um período de lutas para a Igreja Roma- buíra para a atitude de passividade e bajulação diante dos sultãos
na: salvou-se da avalanche da Reforma, consolidou e reconquis- islâmicos. Apenas os ortodoxos russos ficaram fora das frontei-
tou territórios, manteve nominalmente o Sacro Império no que ras otomanas, como único setor dinâmico daquela religião. Em
dele restou e reteve os Estados Pontifícios. Aliada às potências ibé- 1587 a Sé metropolitana de Moscou foi elevada à dignidade de
ricas, à base da cruz e da espada, tentou conquistar o mundo. patriarcado. O protestantismo nunca atingiu a Igreja Ortodoxa
Reclamou a perda de seu antigo poder, sacralizou o sistema me- (com suas doutrinas extrabíblicas e superstições), em parte pela
-~.
~'II dieval e rejeitou o capitalismo e o liberalismo. Atravessou três sé- impossibilidade de cruzar fronteiras de um império islâmico e
l~ culos pregando a ordem, a disciplina e a obediência, em uma em parte porque, em atingindo a Rússia, foi violentamente repri-
~i
';):i postura conservadora e em conflito com o novo, em relativa mido pelo clero aliado ao governo do czar. Ser russo era ser ortodo-
,;
li: esterilidade quanto ao pensamento político, que não foi mais xo, e não sê-lo era uma atitude antipatriótica. A Contra-Reforma
.ft).1
..•.•.. longe do que sua versão do direito divino dos reis . católica obteve mais sucesso ao dominar a Ucrânia e conseguir a
A Idade Moderna é a que apresenta mais nítido o contras- adesão de pequenos grupos de diversos ritos orientais (os uniatas),
te entre as civilizações católicas e protestantes. O esforço de estabelecendo patriarcados e sínodos autônomos, paralelos aos
algumas ordens religiosas em proteger os nativos das terras ortodoxos, aceitando, porém, a chefia papal.
colonizadas não significou muita coisa, proporcionalmente Na Rússia a ortodoxia se identificava com o nacionalismo. O
à atitude geral da Igreja em legitimar as páginas mais negras grande centro da fé era o Mosteiro da Trindade (Trotsky Lavra)
da colonização. Muito sintomático e de grande significado onde, no século 15, se deu a controvérsia entre duas correntes
simbólico é o fato de que, quando a Idade Moderna termi- de pensamento quanto ao papel do cristão no mundo: os "não-
nou e a Revolução Francesa (1789) rebentou, viu-se a França possuidores", liderados por Nilsorsky, que defendiam a vida de
explodir em ódio à Igreja, considerada aliada da velha or- oração, pobreza monástica e atividades religiosas apenas, e os
dem absolutista. "possuidores", chefiados por Ioseph de Voloko-lornsky, que acei-
tavam responsabilidades sociais e políticas, e viam na riqueza e
na propriedade uma maneira de cumpri-Ias.
Os ortodoxos e a modernidade: repressão
Enquanto isso a Igreja Ortodoxa vivia seus piores momentos. O ocaso da modernidade: secularização
Em 1453 o Império Romano do Oriente havia chegado ao fim,
caindo sob o domínio turco. Constantinopla passava a ser a ca- A Idade Moderna, que começou intensamente influenciada
pital do Império Otomano, tendo um sultão muçulmano no pela questão religiosa, terminou marcada pelo ceticismo, pelo
lugar de um imperador cristão. A própria Catedral de Santa Sofia, racionalismo e pelo secularismo. Aos desafios e lutas do século
146 - Cristianismo e Política A Reforma e os Tempos Modernos - 147

16 seguiu-se o período da ortodoxia fria e formal do século 17, No pensamento político, Maquiavel, com O Príncipe, foi um
cheio de questões teológicas e aridez espiritual. Uma reação a divisor de águas. Escreveu uma obra-prima, legitimadora do
esse estado de coisas foi o movimento pietista de Spener e Franke absolutismo, desvinculada de qualquer marco de transcendência
na Alemanha, com ênfase no estudo bíblico e na oração. Embora ou de ética cristã. Assim o fizeram escritores de várias tendênci-
isolados das questões políticas, críticos das igrejas oficiais e bas- as, como Hobbes, Spinoza, Montesquieu, Rousseau e outros.
tante místicos em sua religiosidade, eles não desprezavam a cul- Maquiavel não legitima o poder do príncipe por seu "direito
tura intelectual. Franke era professor da Universidade de Halle, divino", mas por um pragmatismo, por sua eficácia. Rousseau
cujos estudantes foram o foco central do movimento. Tinham não advogou mais, como o fizera Milton, um pacto entre os
forte zelo missionário. Enviaram os primeiros missionários pro- eleitos, mas um contrato entre os homens. O poder já não era
testantes para o estrangeiro: os sessenta que foram para a Índia emanado de Deus por meio do povo, mas se assentava no pró-
em 1705. Tinham profundo cuidado pelos necessitados do cor- prio povo. Deus - se existisse - não era tido como uma provi-
po, como atesta o amplo trabalho filantrópico desenvolvido dência histórica. Tendo criado os homens, se recolhera aos céus,
pelos moravianos no século 18. O movimento pietista foi o res- deixando-os completamente livres.
ponsável indireto pelo Grande Reavivamento dos Estados Uni- A teoria democrática moderna tem, assim, duas fontes dis-
dos e pelo metodismo na Inglaterra. Neste país, embora o tintas que se encontrarão pelo caminho: a fonte cristã e a fonte
1,11\1/
século 17 se caracterizasse por uma ampla distribuição das renascentista-racionalista. Quando as declarações de direitos das
• B Escrituras, as instituições políticas se secularizavam e o pen- Revoluções Francesa e Americana se referem à divindade, o fa-

b ii
~.
~;
t:
samento político era marcado pelo racionalismo
dessacralização.
e pela zem muito mais em moldes deístas do que cristãos. Os valores
cristãos e a rica herança política cristã são desvinculados de sua
\')~
\. o. A outra grande influência sobre a Idade Moderna, além da fonte - a Revelação - e de sua instituição - a Igreja -, sendo
'"
Reforma, foi o Renascimento, com a retomada e valorização da considerados valores "culturais", patrimônio da humanidade. A
herança cultural greco-romana. A teologia oficial das igrejas cris- ética cristã poderá, acreditam, caminhar sem Cristo e sem os
tãs foi perdendo o caráter de matriz ideológica da cultura oci- cristãos. A igreja é considerada apenas uma entre as institui-
dental e a instituição eclesiástica foi perdendo a capacidade de ções sociais, e nem das mais importantes. A fé é tida como
impor sua posição aos centros de ensino superior. O homem algo privado para o íntimo de cada pessoa, sem nada a ver
moderno rebelava-se contra a autoridade eclesiástica e seus com o cotidiano da vida; não se trata de uma fé a ser compar-
dogmas. Afirmava-se o otimismo e a crença no homem como tilhada.
ser autônomo, criador da história, e na razão como discernidora Com o desenvolvimento de uma filosofia política seculariza-
e elaboradora da verdade. Por um lado, o racionalismo (e sua da, primeiro, e de uma ciência política, depois, para que uma
criatura alemã, o Iluminismo), teve um efeito devastador para o teologia política? A proposta cristã foi reduzida a uma proposta
cristianismo, ora com os que o trocaram por um vago deísmo, a mais. Enquanto a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa
ora com os de dentro da Igreja, críticos e céticos quanto ao so- se fecharam ao moderno, colocando-se na defensiva, reagindo
brenatural, que deram origem ao que depois ficaria conhecido, com anátemas, vastos setores do protestantismo, tentando
genericamente, como "modernismo" ou "liberalismo" (que não estabelecer uma ponte (como os apologistas da antigüida-
deve ser confundido com liberalismo político): unitarismo, de), absorveram demais e acabaram por diluir a mensagem e
universalismo, crítica bíblica, relativismo ete. Por outro lado, no reduzir sua autoridade e seu alcance. Os evangélicos - de he-
campo do saber, desenvolveu-se uma metodologia científica, que rança pietista e puritana - foram abandonando o palco de luta
se separava da filosofia e da teologia, menosprezando-as. do mundo, voltando-se para dentro da Igreja, procurando

-,
148 - Cristianismo e Política

reavivá-Ia a partir do íntimo de cada fiel e para os novos mundos,


para propagar a fé aos gentios.
Em 1789 os canhões da Bastilha anunciam o alvorecer da
Idade Contemporânea. Culpados os protestantes por esta crise, 1 1.
pela perda de influência do cristianismo, por tirar a tampa da
garrafa onde estava o gênio, por dar liberdade ao homem e que-
brar a unidade da Igreja, pondo a perder a sua hegemonia e
levando à morte a civilização cristã?
Há vários pontos a se considerar:
1. A civilização cristã em muitos aspectos tinha muito pouco
de cristianismo. Muito menos cristãos eram certos métodos POLÍTICA E IGREJA
empregados para mantê-Ia (a Inquisição, por exemplo);
NA IDADE CONTEMPORÂNEA
2. Durante a vigência da civilização cristã a história não esta-
va parada, mas as alterações que se processavam nos diversos
setores e níveis conduziriam à sua ruptura, com, sem ou contra
",
'li a Igreja;
~! 3. O cristianismo cumpriu, em parte, seu papel civilizador. A
-;,:t
t: crise da civilização foi também positiva, uma crise de crescimento.
i:
A liberdade - mesmo para descrer - é um valór, As institui-
,> ~~:

ções democráticas e o avanço da cultura, a despeito da seculari-


zação, foram uma colheita do que o cristianismo semeou;
A IDADE CONTEMPORÂNEA PARA O PROTESTANTISMO
tem como marcos divisores iniciais a independência dos
4. A crise da Europa levou o cristianismo à conquista Estados Unidos e o reavivamento metodista na Inglaterra, e,
missionária de novas terras e novos povos, obedecendo à Gran- na esteira desses eventos, o grande impulso missionário que
de Comissão. À semelhança das perseguições romanas aos cris- teve esses países como centro. Foi apenas nesse mais recente
tãos palestinos do primeiro século, a crise européia resultou em período da história que a igreja cristã passou a uma postura
benefício para o cristianismo, ao mesmo tempo em que se pro-
de universalidade.
cessava uma busca de maior autenticidade por parte de vastos
setores da Igreja;
5. O Deus da Providência daria à Igreja novas condições de A utopia americana
atuação e presença (inclusive na área política) na nova Talvez nenhum dos Estados modernos tenha conhecido tão
situação. O cristianismo não acabara; o ciclo constantiniano da fortemente a marca da religião em sua formação como os Esta-
história da Igreja, sim. dos Unidos. Religiosa foi a motivação dos cem colonos ingleses
pioneiros: os "Pais Peregrinos" que, a bordo do'Mayflower, fun-
daram, em 1620, a colônia de Plymouth. Religiosa a motivação
dos milhares de puritanos que vieram habitar Massachussetts e
Connecticut. Religiosa a motivação do batista Roger Williams
em fundar Rhode Island, do quacre William Penn em fundar a
150 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 151

Pensilvânia, do católico Lord Baltimore em fundar Maryland, A maior contribuição da independência americana foi o
do anglicano Robert Hunt em fundar a Virgínia e dos exilados estabelecimento do princípio da liberdade religiosa, da comple-
luteranos austríacos que, sob a proteção do general Oglethorpe, ta separação entre a Igreja e o Estado, pela primeira vez na histó-
um jovem filantropo inglês, colonizaram a Geórgia. ria das instituições políticas. Trata-se de um dado revolucioná-
Perseguições religiosas na Europa, intolerância de outras de- rio que rompeu, inclusive, com a prática milenar da civilização
nominações já na América, os escritos de Milton e o desejo de ocidental. O artigo VI da Constituição determina que "nenhu-
estabelecer uma vida comunitária moldada nos ideais cristãos ma prova religiosa jamais será exigida como qualificação para
estão entre os motivos profundos desses pioneiros. O desejo algum ofício ou cargo público nos Estados Unidos". E primei- a
utópico de fundar um Novo Mundo, sem os males do Velho ra Emenda à Constituição (1791) declara que o "Congresso não
Mundo. Uma saga cujos protagonistas se espelham no povo ju- legislaria sobre o estabelecimento de religião ou proibindo o
deu em fuga do Egito. O Egito era a intolerante Inglaterra do exercício dela". Essas decisões foram precedidas por documen-
"Faraó" Jaime I. O imenso mar Vermelho era o Atlântico e a tos regionais, entre os quais se destaca o Estatuto Virginiano da
terra da promessa, a América (MOOG, 1959, p. 137). Religião Liberdade Religiosa, de autoria de Thomas Iefferson. aprovado
que moldou os severos códigos de moral, que deu ênfase à edu- em 1785 em aliança tática dos parlamentares cristãos com os
cação (Harvard foi fundada em 1636) e que, no período coloni- racionalistas.
al, concedeu direito de voto apenas aos membros das igrejas. A Constituição Federal dos Estados Unidos é um marco no
,~{
O zelo religioso da primeira geração foi substituído pela in- estabelecimento do pluralismo como princípio de governo. Ela
~! diferença das gerações seguintes. No século 18, apenas uma mi- é um símbolo do pensamento liberal na edificação de um Esta-
'':;
~~ noria freqüentava as igrejas. Esse quadro foi enfrentado pelo do Democrático de Direito, onde sejam assegurados os direitos
(:

n~
0,. reavivamento que teve em Ionathan Edwards o seu principal e garantias dos cidadãos, e se estabeleça o princípio da sobera-
porta-voz e que foi capaz de imprimir uma nova vitalidade espi- nia popular e da alternância do poder. Esses postulados, na épo-
ritual à nação. O conjunto de fatores políticos e econômicos ca de seu estabelecimento, significaram uma conquista para a
que concorreram para a independência dos Estados Unidos é humanidade, ao preço de sangue e sacrifício. Os líderes da luta
conhecido, mas os historiadores apontam também o fator pela independência foram fortemente influenciados pela Revo-
religioso. lução Francesa, com um componente racionalista e um quê de
anti-religiosismo, o que concorreu para a indiferença religiosa
É comum ouvir-se dizer que a guerra pela independência das
colônias surgiu da disputa pelos impostos. Mas o sentimento do período pós-independência, revertido por novos ciIcos de
religioso muito contribuiu para o anseio de se libertarem dos reavivamentos.
laços do governo britânico. Os congregacionais e presbiterianos, As igrejas norte-americanas tiveram de concorrer para a ma-
constituindo a maioria do povo, temeram que o governo britâ- nutenção da influência cristã e para a unidade nacional, acom-
nico em breve estabelecesse a igreja oficial em todas as colônias panhando, por meio de sacrificados pregadores e educadores, a
- e, de fato, já estava estabelecida em algumas - e exigisse de marcha das hordas migratórias em direção ao oeste. Tiveram de
todos os habitantes a obediência à autoridade dessa igreja. Visto enfrentar a questão da escravidão veTSUS abolição e a conseqüen-
como seus pais tinham vindo para a América fugindo. exatamente te Guerra da Secessão, quando cada lado procurou legitimar-se
de uma situação semelhante, os descendentes não tinham nenhum buscando o apoio da Igreja, pretendendo obedecer à vontade de
desejo de se submeter a essa exigência. Este sentimento contri- Deus. Tiveram de enfrentar o desafio de promover uma re-
buiu muito mais para o desejo de independência do que a indig-
conciliação nacional após essa Guerra Civil, que tivera cristãos
nação geral contra o Ato do Selo e outras medidas que impuse-
piedosos nas tropas em litígio. Tiveram de enfrentar (nem sempre
ram os vários impostos." (NICHOLS, 1960 p. 269.)
152 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 153

com sucesso) a gigantesca tarefa de evangelizar e integrar à vida É nesse contexto que um grupo de estudantes anglicanos da
nacional os milhões de imigrantes que foram atraídos, no sécu- Universidade de Oxford, integrado, entre outros, pelos irmãos
lo 19 e início do século 20, pelo sonho de "fazer a América". Iohn e Charles Wesley, Robert Kirkham, William Morgam e
O desenvolvimento ulterior dos Estados Unidos e da socie- George Whitefield, se organizou para estudar a Bíblia, compar-
dade norte-americana, especialmente em sua fase pós- tilhar e orar. Foi apelidado de o "Clube Santo" e seus membros,
isolacionista, não nos pode conduzir a um julgamento de "metodistas". O grupo cresceu. Uma nova onda de
preconceituoso, que negue os fatos positivos do seu passado. espiritualidade se contrapôs à maré raciona lista nas universida-
Não se pode negar o fato de que o país foi uma tentativa séria de des britânicas. Centenas de jovens consagraram suas vidas. O
realização de uma sociedade utópica sob a inspiração cristã, por evangelho passou a ser anunciado com novo vigor por todo o
evangélicos com uma consciência histórica, marcados ora pela país. Em uma geração a atmosfera espiritual das Ilhas Britânicas
teologia calvinista, ora pela teologia não-conformista de tradi- estava completamente mudada. A ala evangélica do anglicanismo
ção anabatista. A religião cristã tem sido marcante (e muitas ve- seria fortalecida. O metodismo, forçado pelas circunstâncias, se
zes hegemônica) como ideologia a plasmar valores e institui- transformaria em denominação. Os Estados Unidos viveriam o
ções, as quais se constituíram em avanço histórico em direção à Grande Despertamento. O movimento de missões estrangeiras
democracia e aos direitos humanos. Os reavivalistas e pregado- seria, no século 19, seu grande fruto.
~, res livres são instituições norte-americanas que se assemelham Cuidaram os metodistas apenas da alma do homem? Duran-
'!~
ao profetismo hebraico, como consciência e chamado a uma te todo o seu ministério Wesley se preocupou com a situação
~i reconsagração aos valores-base da nacionalidade. E, por outro dos pobres, desde a luta por trabalho para os desempregados e
'i:
,)
Ô
lado, não se pode negar o fato de que o fracasso das propostas remédios para os doentes até a criação de escolas. Iohn Howard,
,~ O,~, utópicas cristãs está no pecado ainda presente no convertido o evangélico delegado de polícia de Bedford, se tornou o pa-
~"''''
e na não-garantia de conversão das gerações descendentes. O ladino da reforma do sistema penitenciário inglês, procuran-
pacto de cada geração é um ato único de obediência a Deus, do humanizá-lo. Wilberforce liderou a luta contra a escravi-
com a consciência histórica da implementação dos valores de dão. Durante vários anos os deputados evangélicos apresen-
seu reino. taram projetos ao parlamento visando, primeiramente, a abo-
lição do tráfico negreiro. Conseguiram a aprovação de uma
Reavivamento na era industrial lei em 1807. Em 1833 a própria escravidão foi abolida nos
domínios britânicos. A alfabetização e a educação das crian-
No século 18 a vida religiosa britânica se caracterizava por ças pobres foi o que motivou Robert Raikes a criar as escolas
aridez espiritual, baixa freqüência aos templos, tradicionalismo dominicais, inicialmente em bairros periféricos. Combateu-
ali, racionalismo acolá. O nível de moralidade social era dos se o emprego de menores como mão-de-obra barata. Orfana-
piores e o consumo de bebidas alcoólicas atingia índices assus- tos, asilos para idosos e hospitais foram organizados em gran-
tadores. Ao mesmo tempo tinha início a Revolução Industrial. de número.
O capitalismo vivia uma nova etapa concentradora. As massas O metodismo procurou integrar os migrantes em suas igrejas,
migrantes do campo para as cidades se constituíam no emergente dando aos proletários um novo sentido de comunidade de cui-
proletariado (literalmente = os de família numerosa). As dado e afeto. Essas massas, de cultura rudimentar, receberiam nas
disparidades sociais preparavam um quadro de tensões que igrejas uma educação continuada. Cuidava-se da totalidade de suas
poderiam, muito provavelmente, resultar em uma explosão de necessidades. Essas igrejas vieram a se constituir no berço do
caráter revolucionário. sindicalismo britânico e do Partido Trabalhista.Um líder do
154 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 155

trabalhismo no século 20 chegou a afirmar: "O meu socialismo também um pecador, carente de reconciliação com Deus, para
não procede de Marx, mas do metodismo ", E historiadores andar em novidade de vida.
dizem que o reavivamento metodista evitou uma revolução san- Como sempre, o reavivamento não atingiu a todos os cristãos.
grenta na Grã-Bretanha, inaugurando uma dinâmica reformista Muitos ficaram à margem do movimento, em sua religiosidade
na destinação social da democracia. rotineira. A Igreja como instituição - especialmente a sua cú-
Essa consciência de amor concreto pelo próximo se deu ao pula - não aderiu e até mesmo se opôs, resistindo ao sopro
lado da popularização da literatura evangélica, da divulgação renovador do Espírito Santo. A renovação veio de forma proféti-
das Escrituras e da pregação com ênfase na conversão do ho- ca: de fora do institucional, mas de dentro da comunidade. Nem
mem. Enfim, tudo aconteceu em um quadro de piedade, de o tradicional pluralismo anglicano foi suficientemente flexível
espiritualidade, de libertação dos vícios destrutivos, da melhoria para integrar o fenômeno, levando à ruptura, com o surgimento
do tratamento entre os membros das famílias. As missões es- de mais uma denominação, quando o que se queria era uma
trangeiras que surgiram desse contexto nunca dissociaram o renovação. O padrão de ação cristã no campo social foi, então,
anúncio das Boas Novas dos cuidados filantrópicos. Essa inser- seguindo a diversidade de vocações: 1) o uso do poder político
ção histórica da fé era vivida em espírito de oração e louvor. para reformar as estruturas; 2) a promoção humana e a organi-
Charles Wesley renovou a hinologia. Toplady compôs Rocha Eter- zação social; 3) os cuidados filantrópicos para as carências ur-
-•..~
11'I"l
na, hino popularizado, cantado por milhares. gentes.
~ No quadro tenebroso, ou "selvagem", do capitalismo, no sé-
I:'
·t
,,,: culo 19, com o Estado ausente das questões econômicas e soci- Evangelho: social ou individual?
II
IJ Ô ais, com a renda concentrada nas mãos de poucos, enquanto as
~, O.H
. \,,~. massas proletárias pereciam espoliadas, os deputados evangéli- Nem tudo eram flores. O racionalismo filosófico adentrava o
cos propunham no parlamento leis de reforma social e os sindi- campo da teologia, analisando criticamente as Escrituras, ques-
calistas evangélicos - apoiados por suas igrejas - continuavam tionando os milagres por sua "irracionalidade". O conceito de
luta pela organização da classe trabalhadora e pela melhoria de um Deus justo deveria, para alguns pensadores, resultar em uma
suas condições, tendo um partido (o Partido Trabalhista) como graça não-discriminatória: o universalimo salvífico. Se todos já
seu braço político. Enquanto isso prosseguiam as obras de mi- estavam salvos, ou sendo salvos, a tarefa da Igreja seria a de
sericórdia, de socorro imediato, destacando-se o Exército da Sal- redimir a sociedade, tornando-a mais justa. Aproximar-se da
vação, liderado por William Booth, com o lema: "Sopa, sabão e questão social, declinando a ênfase na conversão e na piedade,
salvação". foi a marca do chamado evangelho social, difundido no hemis-
O Exército cuidava dos mais carentes: o proletariado lupen, fério norte na curva do século 19.
os doentes, os abandonados, os ébrios perecendo de frio e A cristandade evangélica, na época, começou a dividir-se em
fome nas sarjetas. Sabão: um banho quente e uma roupa usa- agudas controvérsias. Na teologia a divisão era entre os liberais,
da limpa; sopa: uma refeição quente e nutritiva em um dos "quar- ou "modernistas", e os conservadores, ou "fundamen-talistas".
téis" da organização; salvação: a confrontação do homem com a Os fundamentos da fé, defendidos pelos últimos e questiona-
necessidade do novo nascimento. Não pregavam o evange- dos pelos primeiros, eram: a inspiração verbal das Escrituras, a
lho ao homem sujo e faminto. Não davam roupa e comida sem divindade de Jesus, o nascimento virginal, a expiação substitutiva,
pregar o evangelho, pois seria como "dar banho em porco": ele a ressurreição física e a volta corpórea de Cristo. Toda a teologia
voltaria à lama. A consciência da pecaminosidade do sistema do século 20, de um modo ou de outro, seria afetada por essa
socioeconômico não os isentava de declarar ao proletário ser ele controvérsia. No campo da ética social, o reflexo foi a disputa
Política e Igreja na Idade Contemporânea - 157
156 - Cristianismo e Política

entre os defensores do evangelho social e os do evangelho sociedade. Quando o cristão penetra a sociedade como "sal e
individual. luz", deve fazê-lo individualmente. O crente não deve se meter
Washington Gladden e Walter Rauschenbusch, pastores libe- em política. Os evangélicos de tradição anabatista (batistas,
rais, foram os principais expoentes do evangelho social, de forte menonitas) foram se retraindo, enfatizando a Igreja como co-
impacto nas igrejas dos Estados Unidos e da Europa. Graças à munidade alternativa. Um retraimento até mesmo físico e geo-
sua pregação, departamentos de ação social foram criados em gráfico, como o de certas comunidades menonitas da zona ru-
várias denominações, cursos de ética social foram introduzidos ral. Os evangélicos conservadores foram desenvolvendo um cer-
nos currículos dos seminários, missões agrícolas, médicas e edu- to anti-intelectualismo (especialmente após a controvérsia en-
cacionais foram levadas aos campos estrangeiros, e grupos cris- tre os criacionistas e os evolucionistas), fechando-se como
tãos passaram a fazer pronunciamentos em favor de reformas subcultura em um "gueto" mental, sempre na defensiva, sem-
estruturais e de causas concretas, como a diminuição da jornada de pre temendo o "mundo". Sem propostas de ética social, vol-
trabalho. A obra literária mais popular desse movimento foi o clás- taram-se totalmente para a ética individual, reduzida ao
sico Em Seus Passos Que Faria Jesus?, traduzido em vários idiomas. moralismo, a certos preceitos e regras, a um legalismo
O movimento do evangelho social teve seus aspectos positi- repressor.
vos, mas suas pressuposições teológicas liberais conduziram a Trata-se de uma ética individual que é quase identificada com
uma polarização com os evangélicos conservadores. Estes, em ética sexual, em que os delitos sexuais (segundo a Bíblia ou os
"'"
'lI.
reação e para se diferenciarem daqueles, foram progressivamen- costumes) eram superenfatizados, enquanto se colocava em pla-
~! te abandonando qualquer ênfase no social, apontando apenas no secundário as outras dimensões da ética e o preceito central
:o
II
'i:t para o individual e o espiritual na experiência da fé, conduzin- do amor ao próximo. Enquanto ocupada em combater os desvi-
.~
!~~í do ao individualismo e ao intimismo. Qualquer ensino social os "da carne", a Igreja aliviava sua consciência do não-combate
passou a ser evitado. Falar nessas coisas passou a ser visto sob a outros desvios. A parte tomava o lugar do todo. Para Maurice
suspeita de "modernismo". A cristandade protestante no século Duverger, professor de ciência política na Sorbone, isso se deu
20 se dividiu entre os "do corpo" e os "da alma". como mecanismo que permitiu ao cristianismo conviver com
Essa tragédia para a missão da Igreja foi chamada pelo soció- a concorrência e o lucro egoísta do sistema capitalista:
logo David Moberg de A Grande Reversão. Para ele os cristãos Para sustentar o capitalismo, um sistema social fundado sobre o
conservadores, reagindo contra o evangelho social advogado egoísmo do lucro pessoal, o cristianismo do século 19 inverteu
pelos liberais, passaram a tratar o mundo como um grande na- as prioridades, colocando no primeiro plano a virgindade das
vio Titanic: "Esqueçam-se de tentar melhorar as condições de moças, a continência dos rapazes, a fidelidade conjugal, e rele-
um barco que está afundando! Ponham as pessoas nos botes gando ao segundo a fraternidade e a comunhão. O anátema do
salva-vidas e procurem livrar o maior número possível". sexo substitui o anátema do dinheiro. Fazer amor fora do casa-
mento tornou-se mil vezes mais grave do que explorar o próxi-
Evangelizar e edificar igrejas passou a ser ensinado como a úni-
mo, o operário ou o cliente. (DUVERGER, 1975, p. 107.)
ca missão. A responsabilidade social passou a ser vista como
uma perda de tempo, um distrair a atenção do evangelismo ("Por Essa guinada se deu em plena expansão do movimento
que cuidar dos móveis quando a casa está pegando fogo?"), ou missionário e o tocou em cheio. Os liberais, desmotivados,
como resultado do evangelismo ("Pessoas mudadas mudarão o reduziram sua presença nos campos de missão estrangeira.
mundo"). Os conservadores, ardentes em busca das "almas perdidas",
A Igreja passou a ser vista pelos conservadores como um abrigo dominaram o cenário. As novas igrejas seriam edificadas,
para as pessoas que buscam um refúgio das más influências da desde o início, nessa distorção unilateralizante.
158 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 159

Roma: anátema e engajamento os dissidentes do Vaticano I fundaram a Igreja dos Velhos


Católicos, na Alemanha, Áustria e Holanda.
A Igreja Romana iniciou a Idade Contemporânea colidindo O pensamento político católico-romano, nos séculos 18 e
com seus postulados. A Revolução Francesa (1789) foi marcada 19, foi marcantemente conservador. Havia uma exaltação à Ida-
por profundo anticatolicismo. A Assembléia Nacional decretou de Média como a "idade de ouro" perdida da cristandade. Con-
a separação entre a Igreja e o Estado, estabelecendo completa siderava-se a Reforma e a Revolução Francesa como as mães de
liberdade religiosa, confiscou as propriedades da Igreja, aboliu todos os males por que passava a civilização. Em suma, o novo
as ordens monásticas e decretou normas de lealdade à nação, era mau e o antigo, bom. Em vastos círculos defendia-se o direi-
permitindo à hierarquia eclesiástica uma ligação apenas nomi- to divino dos reis, legitimando tardiamente a monarquia abso-
nal com o papa. A reação anticatólica logo se transformou em luta e retardando o avanço da democracia constitucional. O pre-
reação anticristã ou anti-religiosa. quando, em 1790, o culto cris- cursor dessa doutrina foi o francês Bossuet, autor de A Política
tão foi abolido, a existência de Deus foi negada, o domingo foi Segundo as Santas Escrituras, em que
substituído por um feriado a cada dez dias e o culto à deusa admite que haja existido outrora um estado de natureza. Para
Razão foi estabelecido. Esses excessos foram revogados em 1795. viver em segurança, o povo se organizou, do ponto de vista polí-
Os protestantes deixaram de ser perseguidos, mas a imagem da tico, e conferiu o poder supremo a um soberano e aos seus des-
I~~t; religião cristã ficaria seriamente abalada na França, com reflexos cendentes legítimos. O povo, tendo-se despojado de seus direi-
em todo o mundo latino. tos, deve obedecer ao príncipe, ainda quando este abusa do po-
~! der: por seu lado, o príncipe não deve satisfações de sua conduta
d
,)
Durante o reinado de Napoleão Bonaparte foi assinada uma
ô concordata entre a França e o papado, cujos termos foram dita- senão a Deus. (MOSCA, 1968, p. 197.)
!~ ~.
•..O·H· dos pelo imperador. Este, quando o papa desobedeceu sua ori- A chamada corrente do "romantismo" político, com Donoso
entação em matéria de política externa, invadiu os Estados pa- Cortés, Ioseph de Maistre, o conde De Bonald e outros pensado-
pais, anexando-os, levando prisioneiro Pio VII. Após a queda de res católicos, se constituiu na fonte da direita histórica, que fo-
Napoleão, o papado e a Igreja Romana passaram por um perío- mentaria o integrismo como concepção política de recriação de
do positivo no seu relacionamento com as monarquias européias, uma ordem cristã monárquica absoluta, tutelada por um clero
que via na igreja um poderoso aliado na defesa da tradição, vi- tradicionalista, tentando a restauração da economia
sando deter a maré democratizante no continente. corporativista. Ordem cristã verticalista como expressão do rei-
Em 1814 foi restaurada a obediente Ordem dos Jesuítas, que no de Deus na terra. Ordem cristã que inspiraria Charles Maurras
sempre se envolveu em missões de caráter político. Em 1854 foi a fundar o polêmico L'Action Fraçaise e, em suas páginas, acusar a
decretado o dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria. ignorância e as histerias das massas e defender um Estado cató-
Em 1864 o papa ultraconservador Pio IX decretou o seu famoso lico nacional sita, centralizado e autoritário.
Syllabus contra os "erros" modernos, tais como: a liberdade Isso não quer dizer que não tenha permanecido uma vertente
de consciência e de culto, o princípio de que a Igreja não deve progressista, embora excepcional, no pensamento político entre
usar a força para impor suas idéias, a escola laica, o casamento os católicos romanos. A conciliação entre o catolicismo e o soci-
civil ete. Em 1870 o Concílio Vaticano I, chamado de "o segundo alismo foi defendida por Bauchez em seu jornal L'Atelier. Em
Trento" por seu caráter conservador, decretou o dogma da 1839 ele publicou sua obra básica, intitulada Ensaios de um Tra-
Infabilidade Papal. No mesmo ano os patriotas italianos tado Completo de Filosofia do Ponto de Vista do Catolicismo e do
unificaram o país, anexando os Estados papais. Em 1873 Progresso, em que expõe suas teses. Além do movimento cristão
160 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 161

social de Bauchez, vamos encontrar na França o movimento do Tratado de Latrão, pelo qual o papa reconhecia a perda daqueles
cristianismo democrático, defendido pelos padres Lamennais e Estados e, em contrapartida, além de indenizações, recebia do
Lacordaire e pelo visconde de Montelembert. No jornal O Futu- governo italiano o reconhecimento da cidade do Vaticano como
ro defendiam a separação entre a Igreja e o Estado, a liberdade país soberano e ficava com o status de chefe de Estado.
de ensino e o sufrágio universal. Foram condenados pelos bis- Nas primeiras décadas do século 20 conviveram nos meios
pos e pelo papa. Lamennais, por não se submeter ao julgamen- católico-romanos duas tendências políticas: a direita integrista e
to do pontífice, foi excomungado. o centro democrático. Intelectuais e políticos de direita apoia-
A Igreja Católica Romana começou a fazer as pazes com o ram e participaram dos regimes do tipo fascista que dominaram
moderno a partir de Leão XIII, que foi eleito papa em 1879, a Europa entre os anos 20 e início dos anos 40. O mesmo se diga
reinando por 25 anos. Esse pontífice, de espírito diplomático e do franquismo espanhol e do salazarismo português. Entre os
notada inteligência, percebeu a inutilidade de remar contra a perigos do "comunismo ateu" e do "capitalismo protestante"
história. Procurou dissociar a Igreja dos integristas e, em 1891, restavam os regimes de direita para salvar as tradições da cristan-
publicou a famosa carta encíclica Rerum Novarum, tomando por dade. Grande parte do clero - inclusive da hierarquia - tam-
sentado os dados e os problemas do século 19, especialmente a bém pensava assim. Freiras desfilaram perante Mussolini e pa-
questão operária. Condenou o liberalismo capitalista e a solu- dres benzeram os canhões que iriam ocupar a Abissínia. Salazar
.•....•~,' ção socialista. Legitimou, implicitamente, a democracia e deu foi colega de seminário do futuro cardeal Cerejeira. A identida-
'1It.l!
início ao que é hoje conhecido como a Doutrina Social da de ideológica entre ambos foi essencial para a estabilidade do
~l Igreja. Seu ensino seria retomado e atualizado em 1931 por chamado Estado Novo. A igreja espanhola (que sofreu hor-
'"'l Pio XI, com a encíclica Quadragesimo Anno. Condenando, rores na mão da ala esquerda do exército republicano) se
i:1
ou··
1110,,-••
embora com certo atraso, as injustiças sociais, a Igreja procu- constituiu em um dos pilares do regime de Franco e dele re-
rou recuperar terreno entre a classe operária, da qual estava ceberia todo tipo de privilégios. Foi na católica Baviera que
afastada havia muito tempo por sua associação com os pode- Adolf Hitler começou sua carreira rumo ao poder e ao 3 o
rosos ou pela postura reacionária de seus líderes e Reich.
doutrinadores políticos. O centro democrático começou a se desenvolver na Europa
Leão XIII procurou mobilizar o laicato, visando sua atuação entre a Primeira Guerra Mundial e o advento dos regimes fascis-
em uma sociedade pluralista, pela criação do movimento da Ação tas. Havia um intento sério, a partir de uma releitura do tomismo
Católica, que seria particularmente dinamizado no pontificado (neotomismo), de aplicar na práxis a Doutrina Social da Igreja a
de Benedito XV (1914-1922). Foi ainda Leão XIII quem procu- Estados democráticos e a sociedade pluralistas. Uma série de
rou reaproximar a Igreja dos intelectuais, usando novos progra- partidos democráticos de orientação católica foi organizada. Es-
mas de estudo do tomismo. O liberalismo teológico, ou "mo- ses partidos seriam dissolvidos pelos regimes fascistas, mas se re-
dernismo", que tantos problemas trouxe ao protestantismo, foi organizariam e floresceriam após a Segunda Guerra Mundial.
sustado vigorosamente nos meios católicos, graças à ação enér- Nos anos da guerra conheceram a clandestinidade e as prisões,
gica de Pio X (1903-1914), que o condenou por meio de decreto mas sobreviveram sob a liderança de homens de visão como
Lamentabili e da encíclica Pescendi. Outro problema sério era a monsenhor Luigi Sturzo, o "pai da democracia cristã". Seus par-
conhecida Questão Romana. Desde 1870, os papas se conside- tidos se espalhariam rapidamente pelo mundo e sairiam da clan-
ravam "prisioneiros do Vaticano", em virtude da perda, naquele destinidade para o poder, pelo voto popular, na Europa em re-
ano, dos Estados papais para o exército nacionalista italiano. construção. O fascismo foi formalmente condenado pela
Em 1929, no pontificado de Pio XI (1922-1939), foi assinado o encíclica Non abbi amo Bisogno (1931) e o nazismo, pela Mit
162 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 163

Brennender Sorge (1937), ambas de Pio XI, que, deixando de lado cristandade para as formas de organização social. A experiência
a tradição de escrever os documentos em latim, o fez no vernáculo da Idade Média, dos Estados papais, no passado, e da cidade do
daqueles países. Vaticano, hoje, tem concorrido para uma desenvoltura no campo
O fim da Segunda Guerra e a derrota do Eixo se constituíram da política internacional, conduzida no presente pela Secretaria
em golpe irreparável para a direita católica. Pio XII, um papa de de Estado, pelas legações diplomáticas e nunciaturas. Sua ade-
formação aristocrática, presidiria a transição dos anos 40 e 50. são tardia à democracia e a fragilidade das instituições democrá-
Com a Guerra Fria e o sofrimento imposto pelos comunistas à ticas nos países de sua órbita de influência advém de sua pró-
"igreja do silêncio" no leste europeu, Roma se aliou ao "capita- pria forma de governo eclesiástico. A grande dificuldade de
lismo protestante" na defesa do Ocidente. O comunismo já ha- compatibilizar, em profundidade, Igreja Romana e democracia
via sido formalmente condenado por Pio XI na encíclica Divini jaz no aspecto antidemocrático de suas estruturas: uma monar-
Redemptoris (1937). Os partidos democrata-cristãos foram apoi- quia absoluta verticalista e coptadora, baseada nos princípios
ados, cresceram e se organizaram em uma união européia, inici- da hierarquia e da disciplina. Como ensinar as vantagens e o
almente, e em uma união mundial, depois. As propostas do cen- valor da democracia quando ela não serve como modelo para
tro democrático, como o solidarismo de Emannuel Mounier e o seu consumo interno?
humanismo integral de Iacques Maritain, foram amplamente Quaisquer que sejam as profundas divergências dos evangé-
""0.", estudadas e as obras desses autores, bem como as de outros de licos em relação à dogmática da Igreja de Roma, principalmente
'\~!
linha semelhante, como Pierre Bigo e padre Lebret, tiveram gran- nas áreas da eclesiologia e da soteriologia, é de se reconhecer, a
~! de aceitação. bem da verdade, o valor das encíclicas sociais como um esforço
"(:1
,)
O catolicismo romano conheceria um certo pluralismo teo-
de se equacionar os fenômenos do nosso tempo sob a ótica do
I) !t~ lógico e político com João XXIII, que convocou o Concílio
'''''' . ensino ético do cristianismo, conforme registrado nas Sagradas
Vaticano 11, visando uma atualização da ação da Igreja (embora
Escrituras e vivenciado na marcha do povo de Deus na terra. O
mantendo os mesmos dogmas), publicando as encíclicas de cu-
estudo desses e de outros documentos se torna, pois, imperati-
nho social Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963). Paulo
vo, como subsídios para a reflexão e a ação. Eles e nós estamos a
VI, que presidiu as conclusões do Concílio, publicou a Populorum
nos perguntar sobre a natureza e o propósito do Estado, das
Progressio (1966). Nesse pontificado se agudizariam os conflitos
entre os tradicionalistas e os progressistas, enquanto o papa ad- empresas, dos sindicatos, do capital e do trabalho, das
vogava o estabelecimento de uma "civilização do amor" a ser corporações intermediárias, dos direitos humanos e dos mode-
vivida em países cristãos (provavelmente na América Latina), los políticos e econômicos.
que superasse historicamente o dilema capitalismo versus socia- A forma de organização da sociedade humana contemplada
lismo. Finalmente, subiu ao poder João Paulo 11, um tradiciona- pelos evangélicos é semelhante à defendida por um dos do-
lista na doutrina e um progressista moderado em assuntos cumentos sociais pontifícios:
socioeconômicos e políticos. Tendo vivido sob as agruras do A ordem que há de vigorar na sociedade humana é de natureza
nazismo e do comunismo, procurou imprimir uma liderança espiritual. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade,
firme, coibindo os extremos e reafirmando de modo claro e ine- que se realizará segundo a justiça, que se animará e se consumará
quívoco sua opção pelo centro. no amor, que se recomporá sempre na liberdade, mas sempre tam-
De todos os ramos da cristandade, o catolicismo romano bém em novo equilíbrio cada vez mais humano. Ora, essa ordem
é aquele que apresenta, historicamente, maiores vínculos com moral - universal, absoluta e imutável nos seus princípios -
encontra a sua origem e o seu fundamento no verdadeiro Deus,
a política e que periodicamente tem elaborado projetos de
Política e Igreja na Idade Contemporânea - 165
164 - Cristianismo e Política

garantia "a profissão religiosa e a propaganda anti-religiosa".


pessoal e transcendente. Deus,verdade primeira e supremo bem, é
Bispos e sacerdotes foram encarcerados e exilados, mosteiros
o único e o mais profundo manancial, donde possa haurir a sua
genuína vitalidade uma sociedade bem constituída, fecunda e con- foram dissolvidos e igrejas foram fechadas.
forme a dignidade de pessoas humanas." (Pacem in Tenis, 37-38.) A partir de 1929 a campanha anti-religiosa foi intensificada,
com a propaganda ateísta entre a juventude, a abolição da
guarda do domingo e a proibição do funcionamento das
Ortodoxos: sob as garras do Leviatã organizações cristãs que se dedicassem ao ensino e ao serviço
social. Tornou-se quase impossível o treinamento de novos
No século 19 os cristãos ortodoxos que viviam subjugados ministros. Em 1949 constava que 90% dos antigos templos
no Império Otomano foram progressivamente trocando a atitu- ou haviam sido destruídos ou estavam sendo usados para fins
de de passividade por uma forte consciência nacionalista. A re- seculares, enquanto que a hierarquia contava com menos 75%
volução grega teve início no mosteiro de Megaspelaion e contou dos bispos, menos 80% dos diáconos e menos 90% dos sacer-
com amplo apoio do clero. O patriarca Gregório V, mesmo con- dotes.
denando formalmente os revoltosos, foi enforcado em frente à Embora o patriarca Thikon tenha proclamado sua lealdade
sua residência, em Phanar, em 1721. O mesmo tipo de naciona- ao regime desde 1923, as relações com o Estado só vieram a se
lismo explodiu entre os sérvios sob o católico Império Austro- normalizar com a Segunda Guerra Mundial. Os ortodoxos rus-
-.,
I(/t Húngaro. Este desapareceria na Primeira Guerra Mundial, en- sos demonstraram intensa lealdade para com a pátria. O dita-
quanto o Império Otomano seria ocupado pelas potências oci- dor Stalin (ele mesmo um ex-seminarista) chegou a apelar para
dentais, permitindo um reflorescimento da fé ortodoxa nos pa- esse aspecto religioso do patriotismo. Uma eleição patriarcal foi
'l"
i:\ íses do leste europeu, de posição privilegiada nos novos Estados permitida em 1943, bem como a reabertura de um número li-
:~I'I nacionais erguidos no período interguerras. mitado de mosteiros e instituições religiosas de treinamento te-
Na Rússia os ortodoxos foram grandemente responsáveis pela ológico, como as de Trotsky Lavra, Leningrado e Kiev. A vida
consolidação do império. Philaret Drozlov, metropolita de Mos- religiosa, desde então, permitida no interior dos templos, pas-
cou, homem de mente modernizadora, redigiu o texto do de- sou a ser mantida sob a severa vigilância de um Estado que se
creto de 1861, com o qual o czar Alexandre 11 emancipou os confessa ateu e encarava a fé como um anacronismo.
servos. Enquanto a intelectualidade sofria o impacto da conver- A Bulgária, a Iugoslávia, a Rornênia e a Albânia foram invadi-
são de Tolstoi, escritor popular, proliferavam projetos de vida das por Hitler. Após a guerra, por decisão dos aliados, ficaram
comunitária baseados nos princípios cristãos, como os das Ir- na área de influência soviética. Em poucos anos estes e os outros
mandades dos Trabalhadores Religiosos. Alguns clérigos vieram países do leste estavam sob o controle de governos comunistas,
apoiar a revolução de 1905, que prometia o fim da tutela do chamados de "Repúblicas Populares". Em todos eles a Igreja co-
Estado sobre a Igreja e a ativação do papel dos leigos com a nheceria períodos de perseguição. O caso extremo foi o da
eleição dos conselhos paroquiais. Albânia. que se orgulhava de ser "o único país ateu e materialis-
A Revolução Democrática e Republicana de 1917 proclamou ta do mundo", por ter destruído todos os templos e feito cessar
o princípio da liberdade religiosa. Durante o governo de qualquer atividade religiosa.
Merensky a cúpula da igreja russa se reuniu para pensar o seu No Oriente, as comunidades ortodoxas permaneceram sob
papel no novo regime. O golpe comunista de 1918, porém, governos islâmicos. Em Chipre os nacionalistas tentariam a Enosis
implicou de imediato, não somente a separação entre a Igreja (união com a Grécia), mas falhariam diante da resistência da
e o Estado, mas o confisco das propriedades eclesiásticas e a minoria de origem turca. O metropolita Makarios se tornaria o
proibição do ensino religioso às crianças. A nova constituição
166 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 167

primeiro presidente da República. A Grécia veio a se constituir começo do século 20. Na Alemanha, protestantes apoiariam a
em uma exceção, com a Igreja Ortodoxa elevada a religião ofici- república social-democrata de 1919, como nos Estados Unidos
al, reproduzindo-se, todavia, o padrão cesaropa-pista: subordi- apoiariam o New Deal, para reconstruir o país após a Grande
nação aos governantes. Nos anos recentes delegações ortodoxas Depressão e o malogro do laissez-iaire. Na Grã-Bretanha a COPEC
têm procurado participar de eventos religiosos no Ocidente, bem funcionaria como comissão permanente de estudo e mobilização
como filiar suas instituições a organismos multiconfessionais, dos interessados no social.
visando manter um canal de comunicação aberto com o resto A tendência social-democrata no Velho Mundo foi ameaçada
da cristandade e atrair a opinião pública internacional, como pela maré totalitária de esquerda e de direita. Em 1918 os comu-
forma de garantir um maior espaço de liberdade nos Estados nistas deram um golpe de Estado na recente revolução republi-
repressivos onde vivem. cana russa. Em 1922 Mussolini assumiu o poder na Itália, im-
plantando o fascismo. Em 1933 Adolf Hitler foi nomeado
chanceler da Alemanha, abrindo o caminho para o nazismo.
Um evangelho integral
Em 1932 Salazar instalou o Estado Novo corporativista em Por-
As primeiras décadas do século 20 encontraram os evangéli- tugal. De 1936 a 1939 foi travada a Guerra Civil espanhola, com
cos ocupados na grande tarefa de expansão missionária. A ocu- a vitória final dos falangistas de Franco. Em 1939 foi assinado o
pação de terras pelas potências imperiais foi usada como canal tratado Ribentrop-Molotov entre a União Soviética e a Alema-
" ,t,
I(~
para a penetração dos pioneiros da evangelização. O período de nha. A Polônia foi ocupada f: dividida entre as duas potências
frieza espiritual vivido na Europa e América do Norte foi com- totalitárias. Começou a Segunda Guerra Mundial.
j~
II ~~ pensado com o crescimento da Igreja nos outros continentes. Em 1942, com exceção das neutras Suíça e Suécia e da acossa-
I:,
,)11';' Nas pátrias-mães proliferavam as igrejas livres, como tendência da Grã-Bretanha, toda a Europa era governada por regimes des-
democrática de maior poder nas mãos dos leigos. Aproximada- póticos. O dilema dos cristãos: colaborar ou resistir?
mente até 1929 o movimento do evangelho social manteve cer- Na Alemanha o nazismo ensinou as teorias racistas da supre-
to vigor, exigindo ações de natureza filantrópica noscampos macia da raça ariana e do anti-semitismo, além da subordina-
missionários e nos países de origem, participando do processo ção ao Estado de todas as organizações sociais, inclusive as igre-
de avanço das conquistas democráticas. jas. O Movimento de Fé Cermãnica, liderado pelo pastor liberal
Ao contrário do sul da Europa, onde os católicos romanos Iacob Wilhelm Hauer reuniu GS mais exaltados colaboracionistas,
integristas defendiam a monarquia absoluta e o fascismo ou propondo uma diminuição ia influência do cristianismo em
votavam em partidos democráticos conservadores, no norte, nos nome da restauração das tradições germânicas. Um grupo maior
países protestantes, não se gerou antagonismo entre cristia- de luteranos e reformados nacionalistas e nazistas fundou o
nismo e democracia ou cristianismo e liberalismo social. Pro- Movimento de Fé dos Cristão: Germânicos, defendendo a apli-
testantes estiveram presentes na formação do movimento sin- cação do "Parágrafo Ariano" às igrejas: somente arianos teri-
dical pluripartidário e do sistema pluripartidário, que tor- am o privilégio de ser membros. Muitos pastores e igrejas aderi-
nariam estável a democracia parlamentar e enterrariam o ab- ram. A grande maioria dos protestantes se acomodou ou cola-
solutismo e o capitalismo selvagem. Isso é particularmente ver- borou com o regime, por comodismo, temor, concordância com
dadeiro na Escadinávia, na Holanda e na Grã-Bretanha. Abraham a "teologia ariana" ou interpretação literal de Romanos 13: Hitler
Kuypper, um pastor calvinista ortodoxo, fundou ainda no século seria uma autoridade constituída por Deus.
19 o primeiro partido político holandês, notabilizando-se como Um grupo de fiéis, contudo, resolveu resistir à tirania. Em
jornalista e parlamentar, e chegando a ser primeiro-ministro no 1934, sob a liderança do pastor Martim Niemoeler, foi organizada
168 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 169

uma Igreja Confessional separada do regime. Pela Declaração dos evangélicos e marcaria uma geração em seu repúdio aos
de Barmem reafirmaram a fé evangélica histórica e rejeitaram o totalitarismos e em seu amor à democracia e à liberdade. So-
nazismo e o racismo. Um seminário teológico foi instituído mente ficariam sob o comunismo mediante a força, como a Ale-
secretamente, funcionando nas florestas da Pornerânea. Hitler manha Oriental ocupada. Nos demais países optariam por par-
reagiu ao desafio com mão de ferro: 85% dos pastores tidos sociais-cristãos, sociais-democratas ou liberais. Na Suécia,
confessionais foram recrutados para o Exército. Os movimentos por exemplo, os luteranos no interior apoiariam o Partido do
de juventude das igrejas foram dissolvidos e os moços, obriga- Centro, os luteranos urbanos se voltariam ora para o Partido
dos a se alistar em entidades nazistas. Niemoeler e outros pasto- Social-Democrata ora para o Partido Moderata (conservador),
res e leigos foram detidos ou enviados para campos de concen- enquanto as igrejas livres cerrariam fileiras em torno do Par-
tração acusados de serem "subversivos" e "inimigos do Estado". tido do Povo (liberal-social) e um grupo de pentecostais funda-
A maioria dos cristãos confessantes optou por uma resistência ria o Partido Democrata-Cristão.
não-violenta. Nos últimos anos do regime, porém, alguns aderi- Na Alemanha Ocidental, enquanto os católicos romanos cri-
ram à resistência armada, participando, inclusive, do atentado ariam a coalizão democrata-cristã (CSUjCDU), a maioria dos
para tirar a vida de Hitler. Entre estes estava o pastor Dietrich protestantes se voltaria para o Partido Social-Democrata (que
Bonhoeffer, teólogo e escritor, que foi preso em campo de abandonaria as pressuposições marxistas no Congresso de Bad-
'" concentração de 5 de abril de 1943 a 9 de outubro de 1944, Godesberg, em 1952) ou para o Partido Liberal, embora, no
I\I~!
quando foi fuzilado pela Gestapo por ordem especial do norte, uma forte ala protestante se faria presente no Partido De-
"I
próprio ditador. mocrata-Cristão. Na Holanda os evangélicos reorganizariam o
,\ Enquanto cristãos, em vários países, sofriam os horrores da partido de Kuyper e os liberais e católicos teriam seus próprios
(:1

>rI: guerra e as perseguições, Bonhoeffer, profeticamente, denuncia- partidos. Posteriormente, os três, em nível parlamentar, se uniri-
va da prisão a atitude da igreja institucional e propunha um am em uma espécie de bancada cristã. No Velho Continente a
cristianismo comprometido. Em 18 de julho de 1944 escreveu opção para os cristãos após a Guerra era ou criar um partido
do cárcere: confessional, ou integrar uma organização cristã dentro de
O homem é convocado para sofrer a paixão de Deus no mundo um partido não-confessional, como a irmandade" do Parti-
sem Deus. [...1 Ser cristão não significa ser religioso em uma de- do Social-Democrata ou os círculos cristãos do Partido do
terminada direção e sob a pressão de qualquer metódica, tornar- Povo, na Suécia.
se algo (pecador, penitente ou santo), mas, ao contrário, ser cris- Nos Estados Unidos era mais difícil fechar o fosso da antiga
tão é ser homem. Não apenas um certo tipo de homem, mas o polarização evangelho social versus evangelho individual. Keith
homem que Cristo cria em nós. Não é o ato religioso que produz
Phillips, diretor de um programa de evangelismo urbano, assim
o homem, mas sim a participação no padecimento de Deus na
resumia a situação:
vida do mundo. Eis a metanóia, que é deixar-se arrastar para o
caminho de Jesus Cristo e não pensar primeiramente nas própri- Muito freqüentemente aqui na América uma ala da Igreja tem
as necessidades, problemas, pecados e angústias. [...1 Não é que vindo aos guetos para prover comida, roupa, orientação, empre-
Jesus tenha chamado para uma nova religião, mas Ele nos con- go e outros serviços sociais, mas tem evitado mencionar Jesus
voca para a vida. Com que então se parece essa vida? por temor de ofender a alguém. A outra ala da Igreja tem ido aos
(BONHOEFFER, 1968, pp. 175-176.) guetos talvez uma ou duas vezes por semana para pregar o
evangelho e anotar as decisões, mas sai sem ouvir as batidas do
A tragédia da guerra agudizaria uma autocrítica do otimismo coração da cidade, sem realmente ministrar às necessidades das
liberal, começaria a despertar a adormecida consciência social pessoas.
170 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 171

Particularmente grave era a situação social do sul, regido por A nação mais cristã e mais protestante do continente negro
leis discriminatórias. O segregacionismo atingia seminários e - a República Sul-Africana - construiu, na década de 40, um
igrejas, tragicamente apoiado por políticos e eclesiásticos rígido sistema de segregação racial, o apartheid, consubstanciado
brancos de confissão evangélica conservadora. Foram as igre- no falso princípio dos "iguais, porém separados", mas com o
jas batistas e metodistas negras o centro de cultura e aparelho de Estado nas mãos da minoria branca. Uma teologia
mobilização da gente de cor. A importante luta dos anos 60 de apoio ao sistema foi elaborada pela Igreja Reformada, de ori-
por uma mudança na legislação teve como líder máximo o gem holandesa, com o apoio dos fundamentalistas. Entre os
pastor batista Martin Luther King Ir, Protestantes, liberais e brancos de origem inglesa, mais liberais, estavam setores de
evangélicos brancos terminaram por se ombrear nas marchas oposição ao regime. Estes tiveram no arcebispo anglicano
e manifestações pacíficas. Billy Graham já havia tomado uma Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz, e no leigo metodista Nel-
decisão pioneira: a de não permitir cruzadas evangelísticas son Mandela, que passou longos anos encarcerado, suas figuras
que não fossem racialmente integradas. O apelo ideológico mais representativas. O processo de transição teve início com a
da luta, em parte vitoriosa, pela integração racial foi muito adoção de uma realpolitik pelo presidente da República Frederik
mais marcado pelo apelo ao profetismo cristão do que por De Klerk, um leigo reformado.
propostas partidárias. No campo da cooperação intereclesiástica o mundo cristão
Entre os evangélicos norte-americanos começou a proliferar recebeu o impacto do movimento ecumênico, a partir da Con-
"",
It~~~ ferência Missionária Mundial de Edimburgo (1910). A causa da
uma série de instituições voltadas para o social. A campanha
~, contra a guerra no Vietnã teve como um dos líderes o senador unidade cristã transcende as divisões denominacionais, sendo
~'
l~
'l republicano Mike Hatfield, um ativo leigo evangélico, autor de mais nítidas as diferenças entre liberais e conservadores e entre
ij
I)lrl1 As Tentações do Poder. O presidente Gerald Ford, um leigo episco- pró-capitalistas e pró-socialistas. A maior organização ecumênica,
\ ..,.". o Conselho Mundial de Igrejas, tenderia, em sua cúpula, para a
pal, clamou ser um cristão nascido de novo. O seu sucessor,
Iimmy Carter, era diácono batista e professor de Escola Domini- esquerda teológica e política. O Conselho Internacional de Igre-
cal, e baseou sua política na defesa dos direitos humanos. Os jas Cristãs, reunindo grupos fundamentalistas, seguiria em di-
evangélicos mais conservadores, reunidos no movimento da reção oposta. A Aliança Evangélica Mundial (WEF), de de-
Maioria Moral, do pastor batista Ierry Farewell, ajudou a ele- senvolvimento mais recente, tentaria manter um
ger o protestante menos engajado Ronald Reagan e a derro- confessionalismo evangélico não-restrito, com um pluralismo
tar o irmão Carter, demonstrando que a proposta político- nas outras áreas.
econômica era mais importante do que a afinidade teológica O debate sobre dimensões sociais e dimensões individuais
ou espiritual. do evangelho continua aceso. Na assembléia da Liderança Cris-
No resto do mundo as igrejas novas enfrentaram o desafio tã Pan-Africana (Nairóbi, Quênia), o reverendo Gottfried Osei-
de contextualizar culturalmente o evangelho e estabelecer ma- Mensah resumiu em quatro as visões dos cristãos quanto
nifestações autóctones do cristianismo. Crucial foi o proces- a esse problema: 1) preocupação social ou evangelismo; 2)
so de descolonização, muitas vezes de modo violento, pon- preocupação social é evangelismo; 3) preocupação social para
do a Igreja diante de um dilema: obedecer à autoridade das evangelismo; 4) preocupação social e evangelismo. Em seu
potências colonizadoras ou apoiar os movimentos naciona- artigo "Evangelismo e Ação Social", Stanley Mooneyham, ex-
listas. A grande maioria tem feito a última opção. Jovens lí- presidente da Visão Mundial, afirma que a primeira dessas
deres cristãos têm ocupado posições de destaque nos governos visões é errada, por sua colocação antagônica, enquanto a
pós- independência. segunda elimina a necessidade para o arrependimento
172 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 173

pessoal e o perdão, e a terceira usa a ação social como isca Uma década conservadora
para pescar almas. Para ele a quarta postura é a correta, de
base bíblica. A proposta de seu movimento é a de um evan- A manutenção dos republicanos no poder nos EUA (Ronald
gelho integral, ou holístico: evangelismo pessoal, edificação Reagan, George Bush). dos conservadores na Grã-Bretanha
de igrejas e ministérios sociais são partes inseparáveis de um (Margareth Tatcher) e dos democrata-cristãos na Alemanha
todo. (Helmut Kohl), nos anos 80, representou um recrudescimento
O Congresso Internacional para a Evangelização Mundial da proposta capitalista e uma guinada ideológica do mundo para
(Lausanne, Suíça, 1974) teve maior impacto. Reuniu um número a direita. O bloco socialista dava mostras de esgotamento político
expressivo de líderes de quase todas as entidades representativas e estagnação econômica e tecnológica, enquanto os movimentos
do cristianismo evangélico, oriundos da maior parte dos países revolucionários do Terceiro Mundo ou eram destruídos pelas
do mundo. As diversas tendências participaram do comitê de ditaduras militares (Brasil, Argentina, Chile) ou demonstravam
redação de um pacto, presidido pelo teólogo anglicano Iohn a impossibilidade de tomar o poder (El Salvador, Guatemala). A
Sttot. que, tendo a firme intenção de superar a polarização e única e original exceção foi a Nicarágua, com a Revolução
integrar a visão da missão da Igreja, optou por distinguir Sandinista, a primeira que, além de proclamar o pluralismo po-
evangelismo de ação social, considerando-os partes da missão lítico e econômico, foi integrada desde o princípio por marxis-
,,~ cristã. Os objetivos desse congresso foram perseguidos pelo Co- tas, nacionalistas e cristãos. Nas eleições continentais da déca-
\Itl~ mitê de Lausanne para a Evangelização Munidal, presidido pelo da, a vitória de candidatos conservadores frustrou as esperanças
evangelista presbiteriano canadense Leighton Ford. A posição de transformações sociais que a democracia poderia trazer.
do Comitê fica clara quando o Dr. Ford afirma: "Optar para fora Um grande impulso conservador do período veio do Vaticano,
~rf~
da vida pública é batizar o status quo secular" (Boletim 26 do LCWE, com o pontificado de João Paulo 11,um tradicionalista, que vi-
março, 1982). veu sob as ditaduras nazista e comunista, e que nunca conse-
Dentro do espaço da Aliança Evangélica Mundial (WEF) cres- guiu digerir as novas idéias do Ocidente. Procurou frear os efei-
ceram, paralelamente, as mesmas inquietações, como a busca tos do Concílio Vaticano 11e combater a teologia da libertação.
de uma teologia do desenvolvimento. Dentro de sua comissão Cada bispo progressista morto ou aposentado era substituído
teológica foi criada uma Unidade de Ética e Sociedade. Um pro- por prelados conservadores adeptos da lei, da ordem e da tradi-
grama para Evangélicos na Política (teólogos, cientistas e ativistas) ção, e da concepção hierárquica do governo da Igreja. Um
começou a ser montado por iniciativa desse autor. A Aliança co- mariano aproximou a Cúria Romana dos governos conserva-
patrocinou, com o Comitê de Lausanne, eventos como os en- dores do Ocidente, usando o sindicato Solidariedade, da
contros sobre Evangelho e Cultura (Bermudas 1978), Estilo de Polônia, liderado por um leigo católico também tradiciona-
Vida Simples como Ideal Cristão (Hoddesdon, Inglaterra, 1980) lista, Lech Walesa, para combater o socialismo marxista.
e Evangelismo e Responsabilidade Social (Grande Rapids, EUA, No mundo protestante evangélico, os progressistas que ar-
1982)). Os evangélicos de tradição calvinista estão respondendo ticularam uma hegemonia no Comitê de Lausanne para a
mais rapidamente, enquanto os de tradição anabatista ainda evi- Evangelização Mundial (LCWE) foram perdendo terreno para
tam propostas alternativas, desenvolvendo programas de ação os conservadores a partir do 10 Congresso Internacional de
comunitária ou de crítica social. É inegável que uma mudança Evangelistas Itinerantes (Amsterdã, Holanda, 1983). Um segun-
esteja ocorrendo nos últimos anos e que um sem-número do congresso foi realizado no mesmo local em 1986. A
de instituições evangélicas estejam respondendo a este culminação do processo foi o 2 o Congresso Mundial de
novo tempo. Evangelização, o Lausanne 11 (Manila, Filipinas, 1988). A
Política e Igreja na Idade Contemporânea - 175
174 - Cristianismo e Política

dimensão profética e questionadora (o "espírito de Lausanne") Guerra Fria. Enquanto isso os televangelistas, como Pat Robertson
foi sendo perdida. Em nosso continente os evangélicos conser- e Iimrny Swegart iam se envolvendo em escândalos financei-
vadores criaram, em 1984, a CONELA (Confraternidade Evan- ros e sexuais, como demonstração do caráter hipócrita de suas
propostas.
gélica Latino-Americana).
Na Europa oriental o tradicional quadro de apatia, passividade
Enquanto no Primeiro Mundo os hippies eram substituídos
e colaboração das igrejas históricas - notadamente a Ortodoxa
pelos yuppies (jovens executivos e empresários buscando a ri-
- com os regimes autoritários marxistas foi substituído, no fi-
queza e vivendo o luxo), a América Latina, como exceção, co-
nal da década de 80, pelo crescente envolvimento de setores
nhecia um avanço político, com o fim do ciclo das ditaduras
religiosos nos movimentos de insatisfação popular que levaram
militares da Doutrina da Segurança Nacional, redigindo novas
à derrocada daquele sistema. Em particular, destacamos o
constituições e realizando eleições diretas nos vários níveis. Isso
papel da Igreja Luterana na Alemanha Oriental e da Igreja
significou o retorno dos exilados, a libertação dos prisioneiros Reformada na Rornênia.
políticos e a liberdade de expressão. O setor progressista da Igre-
Enquanto o Movimento de Lausanne e a Aliança Evangélica
ja Católica Romana (teologia da libertação) teve importante papel Mundial davam um passo atrás e à direita, a Fraternidade Teoló-
nesse capítulo da história da política continental. Líderes religi- gica Latino-Americana manteve sua '"Opção progressista, realizan-
osos chegaram a dar sua própria vida, como o arcebispo Oscar do uma Consulta Continental Sobre os Evangélicos e a Política
,,~
\I~'II Romero, de EI Salvador, que foi metralhado enquanto celebrava (Jarabacoa, República Dominicana, 1983), da qual saiu impor-
I uma missa. tante documento: a Declaração de Iarabacoa (em anexo neste
j( Na Europa ocidental o cristianismo institucional não conse- livro). Mas a FTL não teve condições financeiras para realizar o
1:1
guiu imprimir maior impacto, reduzido à tradição e à adesão 10 Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE I) em
~:~~~nominal dos fiéis. A teologia liberal continuou, rotineiramente, 1989, como previsto.
a emitir notas e pronunciamentos à esquerda, mas de escassa A mais expressiva manifestação de um organismo internaci-
audiência. A Irlanda do Norte permaneceu sob intervenção bri- onal em favor da teologia da missão integral da Igreja veio da
tânica, incapaz de solucionar o conflito entre nacionalistas ca- Comunhão Anglicana, na reunião de seus bispos de todo o
tólicos romanos (com o IRA - Exército Republicano Irlandês mundo (Conferência de Lambeth, 1988). O documento final
como o braço armado de sua esquerda) e legalistas protestantes afirma que em sua missão a Igreja deve: a) proclamar o evange-
fundamentalistas, defensores da vinculação ao Reino Unido. lho do reino; b) batizar, ensinar e integrar os convertidos à co-
Enquanto isso milhares de imigrantes islâmicos, bramanistas, munhão das igrejas; c) responder às necessidades humanas com
siks e outros iam se estabelecendo, alterando o panorama obras de misericórdia; d) denunciar as estruturas iníquas da so-
religioso do Velho Mundo. ciedade; e) se comprometer com a defesa da natureza e da
Nos Estados Unidos os republicanos se apoiavam nos vida. Essa síntese reflete, em particular, o caráter integral daque-
neofundamentalistas e nos evangélicos conservadores, levando- le ramo do cristianismo no continente africano.
os na conversa com promessas de volta das orações nas escolas A revolução de costumes iniciada nos anos 60, que resultou
públicas, introdução do ensino do criacionismo e regresso aos em profundas e generalizadas alterações no comportamento
"valores morais da família". Nada de prático, em termos de le- sexual, sofreu brusca interrupção com a descoberta do vírus da
gislação, foi implementado. Essa aliança político-religiosa con- aids, disseminado rapidamente durante a década. Os setores
servadora serviu também para a exportação para o Terceiro conservadores - eclesiásticos e políticos - procuraram apelar
ao máximo, de forma dramática, para os efeitos da doença,
Mundo, como último capítulo da cruzada anticomunista da
Política e Igreja na Idade Contemporânea - 177
176 - Cristianismo e Política

No vazio das utopias tem crescido o individualismo exacerbado, o


visando reenquadrar as populações no comportamento
cinismo, o pragmatismo, a violência, o hedonismo, o naciona-
convencional, o que inclui a passividade política. A promo-
lismo, o racismo, o misticismo e o fundarnenta-lismo religi-
ção intensiva, por católicos e protestantes, de literatura e pasto-
oso. Demandado por duas forças opostas (o universalismo e
rais familiares tradicionais deu lugar a uma "nova direita", mo-
o localismo) o homem pós-moderno apela para o passado
ralista e alienada, nas classes médias das igrejas.
pré-moderno, enquanto as novas formas não forem elabora-
A década de 80 terminou dramaticamente com a queda
das.
do muro de Berlim, simbolizando a derrocada dos regimes
A pós-rnodernidade não renega os aspectos tecnológicos da
socialistas de inspiração marxista no leste europeu. Pode-se
modernidade (modernização), mas os seus aspectos ideológicos:
dizer que a Idade Contemporânea, como convencionalmente
o homem racional, valores ocidentais tidos como universais ete.
entendida, terminou. Uma idade vivida entre dois muros que
A pós-rnodernidade aponta para a valorização dos estudos
ruíram: o da Bastilha (1789) e o de Berlim (1989). O princi- interdisciplinares, para o valor das diversas culturas, para a
pal sistema de pensamento materialista e anti-religioso entrara multidimensionalidade dos seres humanos, para a diversidade
em colapso. A religião vencera mais uma batalha política glo- terapêutica ete. Palavras-chaves seriam: diferença, diversidade e
bal. O fim da Guerra Fria daria lugar a um mundo novo, pacífi- pluralismo, bem como sentimentos, emoções e natureza.
co e religioso? Essa era a crença generalizada entre os mais con- O mapa político aponta para uma maioria de regimes autori-
~;:.., servadores. tários no antigo Terceiro Mundo, agora legitimados pelo "di-
"r.,:
!.'I reito à diferença", para a permanência de um remanescente do
\ o parto da pós-modernidade marxismo (Cuba, Coréia do Norte) e para um clube fechado de
I:' democracias burguesas, ricas, que se isolam.
Ir I";'
.... O mundo pós-Guerra Fria que se delineou nos anos 90 tem- As formas religiosas pré-rnodernas (misticismo, fundarnen-
se caracterizado pela hegemonia política e militar dos EUA, como talismo) estão momentaneamente em alta em todas as confis-
única superpotência remanescente, pela concentração do poder sões e em todo o mundo. Os teologicamente liberais estão
econômico em três grandes blocos (Comunidade Européia, Ja- profundamente atingidos, por sua vinculação ideológica ao
pão & Tigres Asiáticos e Nafta-América do Norte) e pela subal- modo moderno de pensar (racionalismo) e por sua atitude não-
ternidade e excludência dos países subdesenvolvidos, que se sen- profética diante dos regimes marxistas.
tem fragilizados e vulneráveis. A ideologia neoliberal advoga um Os evangélicos progressistas, de dentro pela nova maré
novo determinismo capitalista, um darwinismo social (triunfo neofundamentalista e de fora pela onda neoliberal. resistem
dos mais aptos, dos mais fortes), a transformação do globo em como podem, enfatizando o valor da esperança em tempos difí-
um imenso mercado, com os Estados nacionais soberanos cons- ceis e a necessidade de os cristãos se tornarem reconstrutores de
tituídos em mera ficção política. utopias. O passado se foi e o futuro ainda não chegou, e só che-
A crença na bondade natural dos seres humanos, a crença no gará pelas mãos daqueles que, apesar de inseguros com a transi-
progresso da humanidade, a crença na ciência como recurso ili- ção, são os herdeiros de uma história e de uma proposta.
mitado de saber e a crença em utopias globais, com uma idade Se a década de 80 havia sido marcada pela luta em favor dos
de ouro construída pelo próprio homem - pilares da direitos humanos, o que incluía a situação dos exilados, a
modernidade - têm sido questionadas e postas em dúvida. Toda tortura dos prisioneiros políticos e uma redefinição do papel da
filosofia que advogue um mundo mais justo e solidário é agora mulher e dos filhos gerados em uniões não-convencionais, a
acusada de anacrônica. agenda dos anos 90 foi ampliada com a luta pelos direitos dos
178 - Cristianismo e Política Política e Igreja na Idade Contemporânea - 179

homossexuais e a questão ambiental. Os seres humanos estão grupos fundamentalistas e por seitas exóticas, além do
conscientes de que estão agredindo o planeta e de que poderão recrudescimento da intolerância do integrismo da Igreja Orto-
vir a destruí-lo. A Conferência Mundial "Rio 92" se constituiu doxa.
no grande encontro em favor da ecologia, com seus fóruns em Na América Latina, começaram a aportar as idéias recons-
nível de governo e de sociedade civil, teve ampla participação de trucionistas ou restauracionistas, de origem norte-americana, que
cristãos, inclusive evangélicos. não escondem uma tendência teocrática - a tutela política dos
O Estado nacional e atores políticos a ele integrados, como protestantes sobre o Estado -, seja por uma volta ao antigo
os partidos e os sindicatos, parecem declinar de importância no Israel, ou os puritanos, ou à "inspirada" Constituição Federal da
mundo pós-moderno. Para resistir ao peso das entidades inter- Filadélfia.
nacionais (Banco Mundial, FMI) ou às corporações A Fraternidade Teológica Latino-Americana promoveu o 3 o
multinacionais, as organizações não-governamentais estão Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE III,
crescendo em número e influência, como espaços de atuação Quito, Equador, 1992), com mais de mil participantes de todos
para os progressistas e os órfãos das utopias. A maior fonte de os países do continente, das mais variadas denominações, des-
financiamento das ONG's no Terceiro Mundo são igrejas e fun- tacando-se a percentagem de nativos, mulheres e jovens. A op-
dações cristãs progressistas no Primeiro Mundo. ção pela teologia da missão integrar da Igreja foi claramente re-
A onda neoliberal (reavivamento do capitalismo), que teve o afirmada. Houve um histórico diálogo entre os líderes do CLAI
~~:
, livro O Fim da História, do nipo-norte-americano Francis (Conselho Latino-Americano de Igrejas). Percebeu-se, pela tro-
Fukuyama, como sua obra-síntese, tem refluído no Primeiro ca de experiências, o crescente envolvimento dos protestantes
Mundo, por seus perversos efeitos sociais, ficando como artigo na política continental, principalmente pela direita.
......
Irl~1 de exportação para o Terceiro Mundo. A vitória dos sociais-de- Outro evento de importância promovido pela FfL foi o 2 o
mocratas, socialistas e nacionalistas no Ocidente e no ex-rnun- Encontro Latino-Americano de Evangélicos na Política (Buenos
do comunista indica uma reação. O mesmo se diga da vitória, Aires, 1991). Uma grande distância havia sido percorrida desde
em novembro de 1992, do leigo batista do sul Bill Clinton para Iarabacoa (1983), em termos de produção teológica e de
a imperial presidência dos Estados Unidos. Embora se vincule engajamento prático, particularmente com a consolidação de
aos princípios teológicos de sua denominação, ele atribui a sua uma ala progressista do evangelicalismo. Em 2000 a FfL realiza-
formação intelectual à Universidade Católica onde estudou. ria o CLADE IV, com ampla representatividade, porém com im-
Clinton teve apoio dos setores progressistas e de contracultura, pacto menor no cenário religioso continental.
mas não da subcultura religiosa conservadora do país. O novo século (21) e o novo milênio começaram com a elei-
Com a derrocada dos comunistas, os protestantes ção (questionável) de um leigo metodista conservador para a
neofundamentalistas ficaram órfãos de um inimigo necessário presidência dos Estados Unidos, ligado ao grande capital e à
para a manutenção dos seus esquemas dualistas, maniqueístas e cultura caipira, bem como à direita religiosa da "coalizão cris-
paranóicos. O movimento da Nova Era, filho da teosofia e neto tã". O ataque às torres do World Trade Center, em Nova York,
do bramanismo, veio a calhar como o novo adversário e pretenso por fundamenta listas islâmicos e a resposta de vingança do pre-
inspirador de tudo com o que não se quer concordar, da ecolo- sidente George W. Bush foram fatos violentos em que invocou-
gia ao pacifismo, do feminismo à homeopatia. se o nome de Deus. O Banco Interamericano de Desenvolvi-
Com a vinculação da teologia liberal aos paradigmas da mento (BID) atesta o fracasso do receituário capitalista neoliberal
modernidade em crise e seu desgaste no leste europeu, o vazio do "Consenso de Washington" (aumentou a concentração de
espiritual do mundo ex-rnarxista vem sendo preenchido por renda e a desigualdade dentro das nações e entre as nações). Os
180 - Cristianismo e Política

interesses geopolíticos e econômicos do poder norte-americano


e de associados (G-8) mantêm regimes autoritários e impostos
na periferia, geradores das massas excluídas, sensíveis às pro-
postas do fanatismo.
O liberalismo teológico e a teologia da libertação foram re-
duzidos a pequenos grupos articulados, mas de influência
declinante. As expressões fundamentalistas cristãs continuam em
alta. Os evangelicais, desarticulados e tímidos, não conseguem
articular respostas necessárias à pós-rnodernidade. Vive-se, na
expressão de um analista, uma "era de incertezas". As gerações
das velhas utopias (inclusive cristãos) estão esgotadas ou, "rea-
listicamente", admiram o sistema. Das novas gerações (inclusi-
ve de cristãos) espera-se um novo ciclo de profetismo e de uto-
pia. Apesar da repressão militar e do monopólio ideológico do
IV
império, eventos como o 2 o Fórum Social Mundial (Porto Ale-
gre, RS, 2002) atestam que nem tudo está perdido e que há si-
\I~~
~ nais de esperança. Deus continua como Senhor da história, in-
teressado em seu reino de justiça e de paz.
POLÍTICA E
I

Irf~1
, •• ~J
IGREJA NO BRASIL
12.

RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL

' ...~~'"
l.~(

!'f~:~
,,~I
o padroado lusitano e a colônia

U MADASPRIMEIRASPROVIDÊNCIASDO COLONIZADORpor-
tuguês, em aqui chegando, foi fincar uma cruz e celebrar uma
missa. A conquista de novas terras era, para os reinos ibéricos,
expansão da fé e do império, lia cruz e a espada" na expressão
consagrada pelos.historiadores. O Brasil nasceu, assim, dentro
de um projeto de cristandade. Religião e política, neste país, se
vinculam intimamente desde sua gênese.
A Igreja era ligada ao Estado no reino de Portugal. O catoli-
cismo romano era a religião oficial e o país era considerado um
Estado fidelíssimo em relação a Roma, que, em contra partida,
lhe outorgava certos poderes sobre o clero local, na figura
conhecida como padroado. Portugal havia recebido de Roma,
por meio de bula papal, o seu reconhecimento de soberania e o
direito divino de sua dinastia.
A Reforma não cruzou os Pirineus. A Península Ibérica ficou
à margem do grande evento. A proposta do catolicismo para o
184 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 185

período da expansão colonial foi a do Concílio de Trento. O passagem e festividades. O colonizador português que vinha
catolicismo ibérico seria marcado pela Contra-Reforma, seria um sem família, almejando o enriquecimento, não era o protótipo de
catolicismo conservador. A religião, como a nacionalidade, de- santidade. O compromisso religioso do Brasil nunca seria o
veria ser una e indivisível. mesmo de Portugal. A essa superficialidade e indiferentismo di-
O catolicismo ibérico manteve os traços de sua fase de deca- rigiu-se a obra catequética dos jesuítas, bem-intencionados, mas
dência medieval, com uma religiosidade popular marcada por nem sempre eficazes por sua insuficiente aculturação.
um sentimento doentio, por superstições e ritualismos mági- A obra catequética, que procurava integrar os nativos (inclu-
cos, em que" qualquer manifestação de vida pessoal ou coletiva sive os descendentes dos colonos) na chamada civilização cristã
traz a marca do preceito ou do simbolismo cristão" tinha um cunho marcadamente moralista. O aldeamento for-
(MONTENEGRO, 1972, p. 7). Para esse autor a religiosidade era çado dos nativos, acostumados ao nomadismo, patrocinado
de natureza individualista, mística, que não impulsionava o di- pelos padres da Companhia de Jesus, teve aspectos cultural-
namismo cultural nem as mudanças sociais e era inconsistente mente desagregadores em seu forçado sedentarismo e em sua
no plano ético. Esse foi o modelo de cristianismo trazido pelos forçada aprendizagem da cultura humanística européia, em
colonizadores portugueses ao Brasil. ' uma pedagogia verbalizante, hoje reconhecida como inade-
Com a ausência de limites claros entre o secular e o sagrado, quada.
'::.., entre o público e o religioso, a religião da modernidade seria Os jesuítas se tornaram o maior e mais importante contin-
It~~ crescente mente controlada pelo Estado. Os vínculos formais com gente de padres do período colonial, em contraste com a frouxi-
Roma foram afrouxados para permitir a mediação do governo dão dos padres seculares, agregados sedentariamente à casa-gran-
local. O rei de Portugal chefiaria, em seu país, a Ordem de Cris- de, integrados ao patriarcado rural. Diferindo tão frontalmente
.~
" ,

I'~~> to. O Estado recolheria os dízimos e pagaria as despesas eclesi- do todo da sociedade colonial, foram por ela rejeitados. Autô-
ásticas, tornando o clero, de fato e de direito, uma espécie de nomos, mas ligados a Roma, procuravam assegurar a influência
funcionário público, aumentando a sua dependência em rela- religiosa com o apoio do poder político. Em 1759, porém, os
ção aos governantes. Os bispos a serem nomeados seriam indi- jesuítas foram expulsos de Portugal e do Brasil por iniciativa do
cados pelo monarca. Marquês de Pombal.
Em um modelo hierárquico e intolerante, a heresia era sem- Pombal, um dos construtores da nacionalidade lusitana, era
pre considerada uma ameaça tanto à Igreja quanto ao Estado. um regalista, defendendo um Estado forte e centralizado, pro-
Os hereges eram julgados por tribunais eclesiásticos e execu- curando enfraquecer ou destruir os setores mais articulados da
tados pela justiça civil. A Inquisição foi acionada contra os sociedade civil. Procurava dar uma feição inteiramente nova,
dissidentes. O protestante, o judeu, o maometano e o livre nacional, ao catolicismo português, subordinando-o à coroa,
pensador ameaçavam a unidade e a segurança nacionais. A enfraquecendo os seus vínculos com Roma, conseguindo a no-
ideologia hegemônica e a ordem estabelecida deveriam ser meação do seu próprio irmão como cardeal. Em 1772 ele reor-
mantidas, se preciso fosse, pela força das armas. Ao Estado ganizou o ensino universitário, alterando inclusive o currículo
interessava patrocinar a catequese das populações conquista- do curso de teologia de Coimbra. Parte dos bens da Igreja foram
das. O batismo integrava duplamente: na religião e na cida- confiscados. O clero foi politizado dentro de uma doutrina libe-
dania. ral e nacionalsita. No Brasil, o Seminário de Olinda, celeiro de
O catolicismo ibérico não se reproduziria in totum no Novo padres revolucionários do Norte e do Nordeste, foi fundado, em
Mundo. Nos primeiros duzentos anos de colonização o número 1800, pelo bispo Azeredo Coutinho, aluno de Coimbra sob o
de sacerdotes era mínimo e a vida religiosa, reduzida a ritos de pombalismo.

••••
186 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 187

Enquanto isso a presença protestante no Brasil Colônia se o padroado imperial brasileiro


resumia à tentativa de estabelecimento de colônias A Constituição Imperial de 1824 estabelecia o catolicismo
huguenote-francesas no Rio de Janeiro (1555-1566) por romano como a religião do império. A mesma Constituição cha-
fugitivos das perseguições religiosas em seu país de origem e mava para o imperador a responsabilidade última sobre os as-
à experiência holandesa (1630-1657), de motivação mercan- suntos eclesiásticos no país. Todos os direitos do padroado an-
til, no Nordeste. As tentativas francesas foram prontamente tes gozados pelo rei de Portugal foram então transferidos ao mo-
repelidas pelas tropas locais. O Rio de Janeiro, porém, ficou narca brasileiro. Em 1827, após demoradas negociações diplo-
como lugar histórico da realização do primeiro culto evangé- máticas, o papa Leão XII, pela encíclica Praeclara Portugalliae,
lico desta parte do planeta. transferiu a Ordem de Cristo para o imperador do Brasil. O par-
Os holandeses, apesar de seu interesse primordialmente co- lamento brasileiro, imbuído de espírito nacionalista, rejeitou a
mercial, estabeleceram trabalhadores religiosos não apenas para nomeação de um núncio apostólico por ser atribuição de Esta-
sua gente, mas também para os de fala lusa e os indígenas, al- do soberano (não reconhecido em relação ao Vaticano) e se re-
cançando relativo sucesso pelo número de conversões. Aos ju- feria ao pontífice como "bispo de Roma", e não como papa,
deus foi assegurada a liberdade de culto. O ponto mais alto de nunca cessando de enfatizar a soberania brasileira em matéria
sua presença inovadora e progressista foi a administração de de religião. •
Maurício de Nassau. O "heroismo" da aristocracia que os expul- O período monárquico foi pleno da presença de padres como
I.
a legisladores. Eram quinze na Assembléia Constituinte de 1822 e
sou, retomando ao colonialismo português, tem menos a ver
com nacionalismo e mais a ver com as dívidas não pagas aos vários nas legislaturas seguintes, inclusive nas câmaras munici-
pais e provinciais. O padre Diogo Feijó. ministro da justiça, re-
i banqueiros batavos. Os palacetes de Olinda. e não os canaviais
~."" gente e senador, foi uma figura marcante de estadista. Sempre
e os engenhos, consumiram os recursos de uma classe não afeita
usou de sua influência para opor limites às pretensões da Santa
ao capitalismo burguês.
Sé. Nacionalista e rega lista, encarnou o tipo de clérigo-funcio-
Com um clero reduzido e mal remunerado, no final do
nário daquele tempo.
período colonial
D. Pedro II era racionalista, influenciado pelo enciclopedismo
[...] a influência da Igreja no Brasil era insignificante. Suas bases francês, e defensor, em princípio, da separação entre Igreja e Es-
não tinham sido realmente estabelecidas: desde o tempo de Pom- tado. Como monarca representava o papel de católico como
balo seu poder político era nulo e os padres eram formados em expressão simbólica. Na prática era favorável à ligação subordi-
doutrinas que os levavam a se opor a qualquer tentativa de au- nada da Igreja ao Estado, tendo em vista a ignorância de nossas
mentar o poder político. Isso não significava, porém, que os pa- massas. Para ele essas massas poderiam ser manipuladas pela
dres eram politicamente inativos. Por terem recebido uma edu- Igreja (com o apelo à autoridade do sobrenatural) se não fos-
cação melhor do que a maioria da população, e como essa edu- sem protegidos pelo Estado. Sempre tratou o clero como uma
cação incluía inúmeros elementos de liberalismo, muitos padres
categoria de funcionários públicos. Em 1855 as ordens religio-
eram revolucionários, a favor da independência de Portugal, mas
sas foram proibidas de receber noviços e em 1870 foi proibida a
agiam individualmente, e quase nunca em favor dos interesses
institucionais da Igreja. É interessante notar que muitos padres, entrada no país de noviços oriundos do exterior. No final do
e até bispos, se tornaram maçons porque as lojas maçônicas eram período imperial o clero brasileiro estava reduzido a 700 pa-
foco de oposição a Portugal. A revolta republicana abortada em dres.
Pernambuco em 1817 incluía tantos clérigos que foi chamada de No século 19 muitos padres eram maçons e as irmandades
"a revolução dos padres. (BRUNEAU, 1974, p. 47-48.) religiosas estavam cheias de católicos maço ns. O próprio
188 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 189

imperador era maçom. Nas lojas maçônicas se cultivava a lugares de culto das crenças não-católicas não podiam ter aparência de
ideologia liberal. Em 1864 o papa Pio IX publicou seu famoso templo, sendo impedida a atividade proselitista. O Estado que
Syllabus contra os "erros" da modernidade, em que constam a subordinava a Igreja Romana a privilegiava.
condenação da maçonaria e a proibição aos católicos de serem Em virtude da forte presença britânica em nossas relações de
maçons. Os bispos de Belém e de Olinda, Dom Macedo e Dom comércio exterior e de investimentos aqui em setores
Vital, resolveram implementar a decisão papal, decretando a in- tecnologicamente pioneiros, foi permitido aos súditos de Sua
terdição das irmandades desobedientes e a excomunhão dos ca- Majestade terem seus próprios templos (para celebrações ape-
tólicos recalcitrantes. Estes, inconformados, impetraram recurso nas em inglês) e seus próprios cemitérios. A tolerância religiosa
perante o Conselho de Estado, acolhido pelo imperador. Os bis- era extensiva, parcialmente, aos imigrantes germânicos, que se
pos não recuaram, sendo presos e condenados, incursos no arti- fixavam em colônias no sul do país. Desse modo, o anglicanismo
go 96 do Código Penal, e posteriormente anistiados. A chamada e o luteranismo, como presenças protestantes, eram manifesta-
Questão Religiosa foi um conflito de autoridade, que concorreu ções alienígenas, sem influências significativas na comunidade
nacional.
para a crise da monarquia brasileira.
A Questão Religiosa se insere em um contexto de mudanças Figura excepcional da época foi o capelão dos marítimos
na Igreja Romana. A Reforma e o absolutismo haviam concorri- norte-americanos no Rio de Ianeiro, [ames Cooley Fletcher, que
do para o enfraquecimento do papado e dos laços entre as igre- veio aqui apartar em 1851, despertando, em pouco tempo, uma
~~ jas nacionais e Roma, bem como para a redução da influência consciência de responsabilidade para evangeJizar também os
(I

romana sobre a política e a cultura. O regalismo dos países cató- brasileiros. Ele via nessa evangelização o caminho para transfor-
licos era alimentado pela tendência galicana do clero, influenci- mações mais profundas na sociedade brasileira. Escrevendo a
I

ado pelo jansenismo liberal e nacionalsita. O Concílio Vaticano seu pai, Fletcher
~~~~
I, reafirmativamente conservador, decretou a Infalibilidade Pa- [... 1 começava a formular o que parece ter-se tornado seu plano
pal e teve no pontificado de Pio IX a implantação de uma polí- de ação e por algum tempo sua obsessão: converter o Brasil ao
tica centralizadora, com Roma retomando as rédeas. O protestantismo e ao 'progresso'. Para ele, o protestantismo equi-
valia ao desenvolvimento econômico, científico e tecnológico.
ultramontanismo se constituiu em uma nova corrente do clero
(VIEIRA, 1980, p. 63.)
do final do século 19, melhor treinado, disciplinado e zeloso
em sua fidelidade ao pontífice. Dom Vital era um típico Fletcher procurou introduzir-se na corte, travando conversas
ultramontano. com o imperador sobre a Bíblia. Tornou-se, depois, colportor da
O monismo ideológico de então privilegiava a existência de Sociedade Bíblica Americana, influenciou na vinda do Dr. Robert
apenas uma religião em cada Estado - religião controlada, mas Reid Kalley (missionário pioneiro na língua portuguesa) e aju-
religião una. Durante a vigência da Constituição de 1824 os não- dou a fundar uma escola e a organizar uma exposição industri-
católicos eram, de fato, cidadãos de segunda classe no Brasil. As al. Como diplomata perante a Legação dos Estados Unidos, pro-
minorias não-católicas eram toleradas, mas ficavam à margem curou fazer amizades com intelectuais e políticos brasileiros,
do processo político. A atividade política era privativa dos cató- sempre batendo na mesma tecla: o Brasil deveria favorecer a vinda
licos, de preferência os regalistas. Os cemitérios eram adminis- de imigrantes protestantes e os brasileiros deveriam se converter
trados pelas paróquias, e apenas católicos ali poderiam ser en- ao protestantismo, para que tivéssemos, aqui também, uma na-
terrados. O único casamento válido era o celebrado perante um ção desenvolvida e progressista. Sua mensagem teve boa
sacerdote católico e a certidão de batismo em uma paróquia receptividade entre os nossos liberais, como Tavares Bastos.
católica equivalia ao registro civil, inexistente naquela época. Os Muitos desses liberais eram maçons e nunca se converteram ao
190 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 191

protestantismo do ponto de vista religioso, mas incorporaram deveria ensinar religião nas escolas, nem o governo subvencionar
muitos postulados de sua ideologia. as escolas religiosas. Os membros das comunidades religiosas
O reverendo KaIIey, médico e missionário, também procu- que incluíram o voto de obediência foram privados de seus di-
rou influenciar pessoas importantes do mundo político. Foi reitos políticos. O clero perdeu suas imunidades e teve o seu
amigo do Visconde de Sinimbu e do Visconde de Souza Franco, salário pago pelo Estado apenas por mais um ano. A Constitui-
dos senadores José Martins da Cruz Iobim e Antonio Luís Dantas ção de 1891 sequer invocava o nome de Deus. O positivismo e o
de Barros Leite, e levou à conversão uma irmã do Marquês do liberalismo eram as ideologias dos líderes do novo regime.
Paraná e uma irmã do Barão de Santa Maria. Também gozava da A Igreja Romana saudou o rompimento das amarras que a
estima do imperador. À semelhança de outros pioneiros do pro- prendiam ao Estado, mas protestou pela perda dos privilégios.
testantismo brasileiro do século 19, KalIey foi perseguido pelo A Santa Sé veio em seu socorro, procurando dinamizá-Ia. Em
clero ultramontano e protegido por liberais e maçons. Essa pos- 1901 foi nomeado um núncio apostólico e em 1905, o primeiro
tura comum anticonservadora e anti-ultrarnontana foi respon- cardeal. Se em 1889 havia apenas treze dioceses, esse número
sável pela aproximação entre a maçonaria e o protestantismo chegava a 58 em 1920. Para suprir a falta de vocações, passou-se
no Brasil - aproximação que levaria liberais e maçons a matri- a importar maciçamente sacerdotes estrangeiros. Uma ação pas-
cular seus filhos em escolas fundadas pelos missionários e ao toral se voltou para a incipiente classe média e para as elites
estabelecimento de uma frente comum na chamada Questão intelectuais (àquela altura afastada da Igreja em quase sua tota-
I~:--,
Q
Religiosa. lidade). Para sustentar o clero e as obras das ordens religiosas,
Os missionários protestantes viam no episódio a oportuni- passou-se a cobrar dos fiéis uma taxa pelos serviços prestados
,I
dade ímpar para proceder à separação entre a Igreja e o Estado (casamentos, batizados, funerais ete.).
.~\

"i;:/ (e conseqüente liberdade religiosa) e à separação de Roma (e A tarefa dos cardeais da primeira República, Joaquim
em direção ao evangelho) de amplas parcelas de nossa popula- . Arcoverde e Sebastião Leme, foi tentar uma recristianização do
ção. Enquanto isso prelados católicos ultramontanos viam nos Brasil, um aumento da influência do catolicismo romano na
missionários pontas de lança de uma conspiração liberal e uni- sociedade, já que o Estado se mostrava distante e arredio. Um
versal visando a destruição do romanismo. clero ultramontano europeu ou europeizado procurou restaurar
Por um lado, os polêmicos missionários protestantes conse- a ortodoxia, atacando, em agressiva apologética, o protestantis-
guiram se relacionar com setores das elites cultural e política, mo, a maçonaria e o socialismo. A religião se elitizava e se
conquistaram simpatia dos liberais e uma aura de responsabili- desnacionalizava. Ênfase particular era dada aos sacramentos e
dade e simpatia por vender a mensagem protestantismo-pro- ao crescimento espiritual individualmente.
gresso versus catolicismo-atraso. Por outro lado, a maioria dos O primeiro movimento de intelectuais católicos trouxe a
convertidos vinha das camadas médias e populares, sendo marca política da direita histórica. Em 1921 surgiu o jornal A
descriminada jurídica e socialmente. Ordem, veículo de comunicação do Centro Dom Vital, liderado
por Iackson de Figueiredo, com o apoio do cardeal Leme. Seus
militantes eram inspirados nos integristas românticos europeus,
A República laicista
como Ioseph de Maistre, Charles Maurras e Donoso Cortés. Pre-
A República trouxe a separação entre a Igreja e o Estado. Fo- tendiam a instauração de uma "ordem cristã" no país. Se a civi-
ram assegurados direitos iguais para todas as religiões. Os cemi- lização crescia pelo aperfeiçoamento espiritual das pessoas, se
térios foram entregues às prefeituras e o casamento civil foi ins- construía pela instrumentalidade da política. Jackson de
tituído, desconhecendo-se os casamentos religiosos. Já não se Figueiredo, cercado por figuras como Sobral Pinto, Alceu
192 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 193

Amoroso Lima e o padre Leonel Franca, batia-se pela criação de Durante essa fase se proliferaram as instituições evangélicas
um partido católico. de caráter social, notadamente no campo da educação e da as-
O Centro Dom Vital provocou um reflorescimento católico. sistência médica. Muitos colégios foram criados em virtude da
Criou-se a Ação Católica Universitária, a Confederação Nacio- perseguição movida contra os filhos de evangélicos nos colégios
nal dos Trabalhadores Católicos, a Confederação da Imprensa católicos ou nos poucos colégios públicos existentes. Pela alta
Católica, o Instituto Católico de Altos Estudos (depois PUC-RJ), qualidade do ensino e pela renovação pedagógica, os colégios
a Coligação Católica Brasileira e, finalmente, Dom Leme intro- evangélicos atraíam filhos de importantes famílias não-evangé-
duziu o modelo europeu de mobilização dos leigos no ministé- licas, alguns do quais viriam a se converter ou a sofrer influência
rio da Ação Católica. Publicava-se, escrevia-se e reunia-se, em protestante, como foi o caso do escritor Gilberto Freyre, que che-
torno de um projeto de cristandade. gou a se filiar, durante certo tempo, à Primeira Igreja Batista do
Os primeiros sinais de reaproximação entre a Igreja e o Esta- Recife. Essas instituições educacionais seriam grandemente res-
do republicano se deram durante o governo de Epitácio Pessoa, ponsáveis pela mobilidade social ascendente de setores das no-
prosseguindo durante o governo de Arthur Bernardes, quando vas gerações em direção à classe média.
este visitou oficialmente o cardeal Leme. Na crise de legitimida- É igualmente desse período que data o início entre nós do
de do governo da República Velha, procurou-se o apoio da Igre- trabalho pentecostal, com a fundação, em 1911, da Assembléia
ja, outra vez reconhecida como condutora das massas. de Deus em Belérn, no Pará. Em uma geração a denominação
~, Embora a ausência de discriminações legais não significasse, estava organizada em todo o país, seguindo o padrão de treina-
na prática, uma melhoria na vida e no ministério dos protestan-. mento de obreiros leigos e de mobilização total dos fiéis. Seme-
tes, o fato de serem iguais perante a lei, era um avanço muito lhante crescimento experimentou a Congregação Cristã no Bra-
grande. A Igreja Romana, porém, já não contando com o apoio sil, a partir de São Paulo. A rápida expansão pentecostal, muitas
do Estado para reprimir as "novas seitas", passou a mover toda vezes superior à das denominações históricas, colaborou para
sorte de perseguição no nível sociológico, mobilizando as tur- transformar o protestantismo brasileiro em uma religião de po-
bas fanatizadas e ignorantes, com a complacência e, muitas ve- bres, especialmente das massas migratórias recém-chegadas aos
zes, a cooperação das autoridades locais. A fé evangélica se grandes centros urbanos. Religião de pobres e de ignorantes, "re-
expandia ao custo de uma perseverança e de enfrentamentos ligião de gentinha" - era a visão das elites em relação às multi-
a desafios que chegavam ao heroísmo. Epopéia e saga à qual dões de crentes.
não faltaram os seus mártires, esquecidos pelas gerações fu- A existência de um clero nacional melhor qualificado e de
turas. uma classe média melhor educada entre os protestantes concor-
O Congresso Missionário Internacional (Edimburgo, Escó- reu para o surgimento de um "espírito nativista" e de luta por
cia, 1910), dominado por organizações européias autonomia em relação às igrejas-mães norte-americanas. Em 31
sacramentalistas, recusou-se a incluir a América Latina como área de julho de 1903 foi constituída a Igreja Presbiteriana Indepen-
missionária, visto já ser esse um "continente cristão", pela pre- dente, que fizera da questão maçônica (o crente não deveria
sença da Igreja Romana. Os evangélicos inconformados com essa pertencer a uma loja), o ponto de luta contra a tutela dos missi-
atitude promoveram um outro congresso (Panamá, 1916), em onários. Fortíssimo movimento nacionalista se deu, nos anos
que se reafirmou a necessidade de se evangelizar a América Lati- 20, entre os batistas do Nordeste, levando inclusive à criação de
na e fazê-I o dentro de um espírito de cooperação e serviço. Àquela convenções separadas.
altura, com 46.623 membros comungantes, a comunidade A maior preocupação política do protestantismo brasileiro
evangélica brasileira já era a maior do continente. de então era o cumprimento da lei que assegurava a liberdade
194 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 195

de culto. Era a luta pela sobrevivência, o apelo às autoridades às organizações militares. O casamento religioso foi reconhecido
para que protegessem os protestantes das perseguições movidas pela lei civil e o divórcio foi proibido. O ensino religioso foi
pelo clero romano. Ao lado disso, como era de se esperar, havia admitido nas escolas públicas, invocando o "interesse coletivo"
a preocupação de consolidar-se como instituição, de adquirir (ALVES, 1979, p. 37). Em 1933 foi fundada a LEC (Liga Eleitoral
uma identidade própria e desenvolver uma liderança nacional. Católica), para apoiar os candidatos comprometidos com a pla-
O fato de ser uma pequena minoria não permitia a pretensão de taforma da Igreja. Vários estavam presentes à Assembléia Constitu-
uma maior participação em uma República oligárquica, que ti- inte, entre eles Plínio Correia de Oliveira, futuro fundador da TFP
nha na base os coronéis e no topo a política dos governadores, (Tradição, Família e Propriedade).
sem espaço para as massas ou para os setores médios. Nos docu- A Igreja Romana estava interessada em restabelecer um pro-
mentos evangélicos da época, porém, era constante a consciên- jeto de neocristandade, aumentado sua influência sobre o Esta-
cia de que os protestantes tinham uma missão histórica no Bra- do e organizando grupos de pressão entre as diversas categorias
sil: por meio do evangelho, educar os cidadãos nos princípios profissionais, coordenadas pela Ação Católica. Um projeto ba-
da democracia, da liberdade e da igualdade de direitos seado na ordem e na "paz social", isento da influência negativa
(LÉONARD, 1963, pp. 173-174). dos protestantes, dos liberais, dos maçons, dos socialistas e dos
comunistas. Um projeto de organização socioeconômica
A igreja oficiosa cooperativista, bem próximo dos postulados defendidos pela
~\\. direita histórica. O clero, os intelectuais e os políticos católicos
A vitória da Revolução de 1930 abriu uma nova oportunida- não tinham por que defender o modelo liberal-democrata de
de para a reaproximação entre a Igreja Romana e o Estado. O 1934. O golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, que ins-
i~
.~:,
11 ../ cardeal Leme pessoalmente convenceu o presidente Washing- taurou a ditadura do Estado Novo, neles encontrou o silêncio, a
ton Luiz a deixar pacificamente o país, evitando" derramamen- conivência ou o apoio. O relacionamento Igreja-Estado e Vargas-
to de sangue entre irmãos", e o levou do Palácio do Catete ao Leme se manteve inalterado durante a vigência do novo regime,
Porto do Rio de Janeiro, de onde sairia para o exílio. Celebrou embora houvesse discordâncias de enfoque quanto ao
um Te Deum em ação de graças pela vitória dos revolucionários corporativismo. Vargas, em busca de sustentação e legitimação,
e estabeleceu um relacionamento de amizade pessoal com Vargas. prestigiava o clero, aumentava o número de feriados religiosos,
Em 1931 promoveu duas festas religiosas imponentes para im- apoiava as celebrações e acrescia as verbas destinadas às entida-
pressionar os novos governantes e demonstrar a sua ascendência des da Igreja. •
sobre o povo e capacidade de mobilização: a semana em honra a Durante a década de 30 crescia a mobilização dos setores
Nossa Senhora Aparecida e a semana em honra ao Cristo Reden- médios (e partes mais esclareci das do operariado) em busca de
tor. Ao término desta, Leme, juntamente com cinqüenta bispos, espaço político, que lhes era negado pelos velhos partidos repu-
apresentou a Vargas uma lista de reivindicações. blicanos oligárquicos. Uma parcela menor optou pelo marxis-
Agnóstico e astuto, Getúlio percebeu as vantagens de um bom mo do PCB e de outros grupos de esquerda incorporados à ANL
relacionamento com o clero e procurou atender, ainda durante (Aliança Nacional Libertadora). Essa parcela seria reprimida e si-
o governo provisório, o máximo daquelas reivindicações, posteri- lenciada após o episódio de 1935 conhecido como Intentona
ormente incorporadas à Constituição de 1934, que começa Comunista. Parcela maior seria atraída pela AIB (Ação Integralista
"sob a proteção de Deus': As ordens religiosas mantiveram sua perso- Brasileira), liderada pelo escritor Plínio Salgado, defensora dos
nalidade jurídica e os seus membros readquiriram a plenitude postulados da direita histórica e com muitos pontos em comum
do exercício da cidadania. Foi consentida a assistência religiosa com a ideologia da Igreja de então: ordem cristã, estabilidade da
196 - Cristianismo e Politica Religião e Política no Brasil- 197

família monogâmica patriarcal, cooperativismo, antiliberalismo, liderança de limitada cultura acadêmica, voltava-se para dentro
anticomunismo, antimaçonaria ete. Grande parte do clero e da de si mesma, integrando as massas urbanas em comunidades,
hierarquia, à semelhança do que acontecia com os regimes dando-Ihes uma visão coerente de mundo e desenvolvendo um
direitistas da Europa, apoiou abertamente o integralismo. espírito de assistência mútua. As igrejas migratórias, notadamente
A Igreja, porém, nunca o fez oficialmente. E Dom Leme sem- as germânicas, seriam perseguidas pelo governo em razão de sua
pre desencorajou a criação de partidos católicos, mesmo de di- resistência em integrar-se na comunidade brasileira e pela sim-
reita, achando que isso teria um caráter divisionista, enquanto patia de um expressivo número de clérigos e leigos pelo nazis-
que a missão da Igreja era ser preceptora do Estado e da socieda- mo.
de civil como um todo. Os integralistas seriam reprimidos e si- Os três grupos eram pluriclassistas, mas percebia-se a ten-
lenciados a partir do chamado Puntch de 1938. De 1938 a 1945, dência de uma mobilidade para a classe média por parte das
com a eliminação de todos os partidos políticos e a censura à igrejas históricas e das igrejas migratórias. As igrejas pentecostais
imprensa, reinou a pax varguensis, com o consentimento da Igre- eram esmagadoramente constituídas de pessoas de baixa renda.
ja Romana. Como os demais brasileiros de classe média, os protestantes dos
Vargas foi deposto em 1945. Antes disso o Brasil entrara na anos 30 também procuravam canais de participação política.
Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados (1942). Os Esta- Praticamente não havia simpatia em relação à esquerda, em vir-
~1.
dos europeus governados pela direita foram derrotados, sobran- tude de seu ateísmo e materialismo, bem como das notícias so-
~Q\\
do Portugal e Espanha. O comunismo ateu e o liberalismo pro- bre as perseguições movidas por Stalin contra os cristãos soviéti-
testante eram os grandes vitoriosos. Grande parte da inteligên- cos. Alguns das igrejas históricas, e um número maior de mem-
i! cia do clero católico romano entrou em crise. Velhas propostas e bros das igrejas migratórias aderiram ao integralismo. Na gran-
,~~i de maioria dos setores mais instruídos das denominações histó-
antigas esperanças se foram. Os novos tempos se constituíam
em novos desafios. Era necessária e urgente uma reciclagem. Em ricas o Estado Novo somente aumentara a frustração pelo
Roma permanecia na batuta Pio XII, mas no Brasil morrera o distanciamento em relação a um experimento liberal-democra-
cardeal Leme e fora nomeado como seu sucessor Dom Jaime de ta e pela consolidação de um modelo de neocristandade sob a
Barros Câmara. tutela da Igreja Romana.
Enquanto isso, poucas alterações substanciais aconteciam nos Esses setores sempre simpatizaram com a causa dos Aliados,
arraiais protestantes. A rudeza e a truculência das perseguições apoiaram a entrada do Brasil na Guerra contra o Eixo (o pastor
diminuíam. A nova situação oficiosa e privilegiada da Igreja batista João Soren foi o capelão evangélico de nossas Forças Ex-
Romana aumentava a insegurança e a consciência de um retro- pedicionárias) e saudaram com esperança a queda de Vargas e a
cesso nas conquistas históricas. Crescia o índice de conversões; redemocratização.
novas igrejas e novos seminários e institutos bíblicos eram esta-
belecidos. Começavam a chegar obreiros das "missões de fé" (jun- Hegemonia e pluralismo
tas missionárias independentes). Controvérsias religiosas come-
çaram a surgir, como a das penas eternas (1938-1942), que le- A Constituição Federal de 1946 traduziu o mais amplo pacto
vou os fundamentalistas a criar a Igreja Presbiteriana Conser- político da nossa história. Foi um documento de consenso, re-
vadora e os liberais a organizar a Igreja Cristã de São Paulo. digido por uma Assembléia Nacional Constituinte, com a pre-
O protestantismo brasileiro já podia ser classificado em três sença de representantes de todas as correntes de opinião, prece-
grupos: as igrejas migratórias, as igrejas históricas e as igrejas dida por uma anistia geral e pela legalização de todos os partidos.
pentecostais. Estas últimas, em rápida expansão e com uma A luta contra Vargas tivera na UDN (União Democrática Nacional)
198 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 199

uma frente de todas as tendências, com exceção dos comunistas semi-Iegalidade, apresentando abertamente seus candidatos
(por decisão deles). Com a redemocratização, o espólio do usando a legenda de outros partidos.
getulismo se organizou em dois partidos: o PSD (Partido Social O regime de 1946 era liberal-reformista, fortalecendo o Po-
Democrático), reunindo os antigos interventores e tendo por der Legislativo, garantindo a liberdade de imprensa e consagran-
base os latifundiários, e o PTB (Partido Trabalhista), criado a do o voto secreto, universal e direto para o preenchimento de
fim de ser uma alternativa para o operário urbano, contrapon- todos os cargos sujeitos a eleição, de vereador e a presidente da
do-se aos comunistas. República. As intervenções militares, como as de 1954, 1955 e
Uma ala mais "pura" do PTB, representada pelos gaúchos 1961, foram episódicas, sem oferecer solução de continuidade
Alberto Pasqualini e Fernando Ferrari, se inspirava no ao pacto político. Outra, Vargas, Juscelino e Iânio foram eleitos
trabalhismo inglês de Harold Laski; os outros se alimentavam segundo esse procedimento. Café Filho e João Goulart eram ori-
do peleguismo, cooptando dirigentes sindicais dentro de uma ginariamente vice-presidentes.
legislação corporativista: a CLT (Consolidação das Leis do Tra- A marca desse período foi o pluralismo partidário, ideológi-
balho), decretada no tempo do Estado Novo e baseada na Carta co e religioso. Neste último setor deve-se ressaltar o grande cres-
del Lavoro da Itália fascista. Ao lado do PSD e do PTB, a UDN se cimento do espiritismo, principalmente dos cultos afro-brasi-
manteve como um dos grandes partidos nacionais, de caráter leiros (antes reprimidos pelo Estado). Em um contexto como
liberal-conservador, representando setores do empresariado na- esse não havia lugar para controle ou tutela, mas para luta pela
'~~\ cional urbano, a classe média e amplos segmentos da hegemonia, em uma situação altamente competitiva, que valo-
intelectualidade. rizaria o papel dos polemistas e apologistas.
l~
Da UDN original saíram vários partidos: o PSD (Partido So- Com a Constituição de 1946, a Igreja Católica Romana não
,./
"N cial Progressista), populista de centro-direita, chefiado pelo perdeu nenhuma das conquistas obtidas com Vargas e consagra-
paulista Adhemar de Barros; o PSB (Partido Socialista Brasilei- das na Constituição de 1934 (verbas, casamento religioso, proi-
ro), de centro-esquerda, liderado por João Mangabeira; o PDC bição do divórcio, ensino religioso ete.). A Igreja Oficiosa se
(Partido Democrata-Cristão), de centro, de Franco Montoro; o compatibilizava com o pluralismo. Os colégios católicos (de
PR (Partido Republicano), conservador, com base em Minas padres para rapazes e de freiras para moças) floresciam, rece-
Gerais; o PL (Partido Libertador), liberal e parlamentarista, com bendo a "fina flor" da nossa juventude. São criadas as Uni-
base no Rio Grande do Sul; e o PRP (Partido de Representação versidades Católicas. Ressuscitou-se a LEC, para apoiar ou
Popular) da direita neo-integralista. "queimar" candidatos. Ampliou-se a imprensa católica para
O PTB conheceria várias cisões, com o surgimento do PTN propagar suas posições e polemizar com as dos outros (a
(Partido Trabalhista Nacional), do PST (Partido Social Traba- Editora Vozes por exemplo, era profundamente reacionária,
lhista) e do MTR (Movimento Trabalhista Renovador). A maior publicando sua famosa série apologética Vozes em Defesa da
parte do eleitorado brasileiro vivia na zona rural, fazendo do Fé).
PSD o maior partido do período. O sustentáculo governamen- A Ação Católica foi reorganizada segundo categorias profissi-
tal se baseava na aliança PSD-PTB. Uma aliança de patrões e onais: JOC (Juventude Operária Católica); JAC (Juventude Agrá-
empregados (em tese), mas os empregados, do PTB, eram urbanos ria Católica); JUC (Juventude Universitária Católica); JEC (Ju-
e os patrões, do PSD, eram rurais. ventude Estudantil Católica), para os secundaristas; e JIC (Ju-
O Partido Comunista esteve poucos anos na legalidade, só ventude Independente Católica), para profissionais diversos. Esses
disputando uma eleição e elegendo, em geral, bancadas movimentos procuravam influenciar com propostas e candidatos
diminutas. Decretada sua ilegalidade, passou a viver uma os movimentos sindical e estudantil.
200 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 201

Em cada inauguração de prédios ou instituições, estava quadros, mas sempre sofreu de raquitismo em seus resultados
presente um sacerdote para benzer. Em todas as paradas e reu- eleitorais. De resto era o que acontecia com os partidos com
niões, lá estavam, com seus paramentos da ocasião, os represen- programas mais nítidos, como o Partido Socialista e o PRP dos
tantes do clero. Daí a fórmula de praxe para se começar os dis- integralistas. Com o perfil dos eleitores da época, quanto mais
cursos saudando "as autoridades civis, militares e eclesiásticas". vaga a proposta e mais clientelista a prática, melhores os resulta-
Sacerdote era autoridade ... O clero seguia sendo treinado no sis- dos.
tema tradicional de internato e educação acadêmica, e era de Com o passar dos anos foi-se percebendo a fragilidade do
orientação ultramontana e triunfalista. As procissões, os con- modelo de neocristandade e que a hegemonia católica era algo
gressos eucarísticos, o Ano Santo, as "santas missões" eram mo- cada vez mais formal, tradicional, ornamental. O discurso mo-
mentos de demonstração de força. O grosso da liderança laica ralista e a piedade individual não respondiam à novas inquieta-
era proveniente da classe média. A Igreja Romana, que sobrevi- ções. A apologética falhava, pois os adversários - igrejas protes-
vera a tantas mudanças ao longo da história, conseguia tantes, lojas maçônicas, centros kardecistas, terreiros de umbanda,
implementar o seu projeto de cristandade em uma situação li- militância marxista ete. - não paravam de crescer. Enquanto
beral-democrata. isso o país passava por rápidas transformações, deixando um
Essa mudança não se deu sem lutas e traumas. Para começar, passado agrário e rural por uma nova realidade urbana e indus-
era necessária uma revisão nas fontes teóricas. Tinha-se de aban- trial. Setores seculares articulavam propostas de desenvolvimen-
~\ donar os velhos autores da direita histórica e substituí-Ios por to. As contradições sociais se aguçavam. As obras pias, as Santas
outros, defensores do pluralismo democrático ou oriundos de Casas de Misericórdia, as casas dos pobres e as quermesses be-
j~ situações tais. Maritain foi essa grande ponte teórica, seguido de neficentes, como método de ação social, deixavam muito a de-
n
./ Mounier. O catolicismo romano norte-americano foi então des- sejar.
coberto com figuras como o bispo FuIton Sheen. Os jesuítas, em O processo de mudanças ocorrido no catolicismo romano
muitos aspectos, foram pioneiros. no Brasil se deu em dois níveis: o da hierarquia, representada
O padre Helder Câmara é um exemplo vivo dessa "peregrina- pela CNBB, e o dos leigos, representados pela Ação Católica. A
ção ideológica". Entusiasta integralista no Ceará, sua terra natal, CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) foi fundada
mudou-se para o Rio de Janeiro, onde aderiu ao pluralismo de- em 1952, tendo Dom Helder Câmara como secretário-geral.
mocrático do tipo reformista-assistencialista (fundou o Banco Antes cada diocese se ligava apenas a Roma, em contato com o
da Providência, a Feira da Providência e construiu moradias núncio apostólico (embaixador do Vaticano). Agora surgia um
populares). Tornou-se bispo auxiliar e manteve excelente relaci- órgão que funcionaria como um espaço para articulações, coor-
onamento com os governantes, especialmente durante o gover- denação, produção de ideologia e desenvolvimento de uma cer-
no de Kubitschek, que não dispensou uma "primeira missa" na ta autonomia da "igreja nacional".
fundação de Brasília, celebrada pelo cardeal-arcebispo de São Desde o início os bispos do Nordeste foram os que mais se
Paulo Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta. envolveram com a CNBB. Promoveram encontros regionais
Ao contrário do que acontecia nos países hispano-america- (Campina Grande, 1956, e Natal, 1959), dos quais saíram
nos, no Brasil o Partido Democrata-Cristão não recebeu a chan- documentos norteadores e desafiantes para o engajamento so-
cela da hierarquia da Igreja. Na nova situação, continuava a se- cial da instituição. Foi por pressão desses encontros (e dos go-
guir a orientação traçada no passado por Dom Leme: não apoiar vernadores nordestinos, como Cid Sampaio, de Pernambuco)
um partido católico, mas estar presente em todos. O PDC teve que o presidente Juscelino criou um órgão para a promoção do
um papel importante como centro de reflexão e treinamento de desenvolvimento da região: a SUDENE (Superintendência do
202 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 203

Desenvolvimento do Nordeste). Foi ainda no Nordeste, a partir Educação do governo Goulart, Paulo de Tarso, que liderava um
de Natal, no Rio Grande do Norte, que surgiu o amplo e im- setor de jovens mais comprometidos com as transformações
portante programa de alfabetização e educação elementar, o MEB sociais entre os democrata-cristãos.
(Movimento de Educação de Base). Esse programa da CNBB teve Morto Pio XII (1958), a chefia da Igreja de Roma passou para
como base a experiência das escolas radiofônicas criadas por Dom João XXIII, que, em 1961, lançou a encíclica social Mater et
Eugênio Sales na capital potiguar. Em 1963 o MEB contava com Magistra, de forte impacto dentro e fora da instituição. Em 1963
7.353 escolas em quinze Estados. editou outra encíclica do mesmo gênero, a Pacem in Terris. Esses
Considerado conservador pelas esquerdas, Dom Eugênio foi documentos foram amplamente divulgados pela imprensa e dis-
também o pioneiro no envolvimento da Igreja na questão agrá- cutidos pelos políticos e intelectuais. Porém, para serem melhor
ria, apoiando os programas de assistência e orientação rural. Esse compreendidos, exigiam do leitor o conhecimento prévio dos
movimento da Igreja Romana com o trabalhador do campo se conceitos desenvolvidos pelas encíclicas anteriores, a partir da
deu, em muito, como reação à proliferação das Ligas Campone- Rerum Novarum, de Leão XIII.
sas, de Francisco Iulião. Em 1962 a Igreja já havia organizado O que se constatou foi que quase ninguém havia estudado
cinqüenta sindicatos ruraisque pleiteavam reconhecimento ofi- tais documentos no Brasil. Primeiro, porque a chamada" ques-
cial. No setor tral ]i.'.1ista urbano a presença vinha de longa data tão operária" surgira na Europa bem antes do que nós. Segun-
(em 1932 cria . am os Círculos Operários), com os programas da do, porque suas pressuposições e sugestões não agradavam aos
~~
III'~~", Ação Católica Operária e da JOe. Em 1960, por inspiração do católicos romanos (clero e leigos) adeptos entre nós do
padre Lebret, dentro de uma linha de maior solidariedade ao integrismo direitista. Para eles, as encíclicas tinham um cheiro
trabalhador, inclusive quando da eclosão de greves, foi criada a de "socialismo". Por outro lado, para os que haviam optado pelo
II t~ marxismo, elas eram consideradas excessivamente moderadas.
,/" Frente Nacional do Trabalho. Essa mudança de mentalidade da
/
hierarquia teve muito a ver com a ação do núncio apostólico da Essa virada "progressista" dos anos 50 e início dos 60 nunca
época, Dom Armando Lombardi (1954-1964), que renovou o atingiu a maioria. Envolvia apenas setores mais intelectualizados
episcopado, influenciando o Vaticano a nomear prelados tidos e articulados da CNBB e da Ação Católica. As massas continua-
como progressistas. vam a praticar a sua religiosidade popular e os púlpitos paroqui-
A Ação Católica, especialmente os setores estudantis (JUC e ais continuavam a alimentar a classe média com os remédios
JEC), começou nos anos 50 com uma ênfase espiritual, doutri- tradicionais. Aqueles que se envolviam com os novos métodos e
nária e evangelizadora. Era apoiada pela CNBB, à qual se subor- as novas mensagens o faziam pela consciência (como diziam)
dinava. Em uma década, contudo, se afastou paulatinamente de de que as mudanças viriam com a Igreja ou sem ela, ou, o que
sua linha tradicionalista, voltando-se para um engajamento poderia ser pior, contra ela. Para que a Igreja não perdesse a sua
sociopolítico, inicialmente desenvolvimentista e de centro-es- influência, era preciso que ela orientasse a condução dos acon-
querda, para, no final do período, ter parcelas importantes de tecimentos. Os marxistas (mais na práxis do que no plano teóri-
sua liderança fazendo opção pela revolução e pelo marxismo. co) - e não os protestantes ou os maçons - eram então os
Em 1961 a JUC elegeu o presidente da UNE. Em 1962 sua ala adversários qualificados.
esquerda rompeu com a hierarquia e fundou a AP (Ação Popu- Mudar a sociedade, sim, mas pelas mãos da Igreja. A consci-
lar), visando uma preparação revolucionária. Essa guinada foi ência de seu alijamento no caso da vitória de uma revolução
condenada pela CNBB, que retirou-lhe o apoio. Poucos de seus marxista (vitoriosa em Cuba) a impelia à ação, ao mesmo
antigos militantes se filiaram ao PDC, pois, mais e mais, se viam tempo que a maioria da liderança laica e amplos setores dos
em posição antagônica. Uma das exceçôes foi o ex-ministro da sacerdotes patrocinavam manifestações abertas ou veladas de
204 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 205

anticomunismo. Foi assim que multidões acorreram às Cruzadas classe média era bastante reduzida. Os pentecostais consolidavam
do Rosário em Família ("A família que reza unida permanece o princípio da ajuda mútua, por meio de caixas de beneficência.
unida"), do padre Patrick Payton. Um programa especial de te- Promoviam cursos de "prendas domésticas" para as mulheres e
levisão foi gravado com as famílias dos governantes (presidentes começavam a estabelecer uma ampla rede de escolas primárias
da República, do Senado e da Câmara 'ete.) rezando o rosário. ao lado de suas igrejas e congregações. Combatiam, com férrea
Não dava para esconder o constrangimento no rosto do presi- disciplina, os vícios individuais e procuravam consolidar a insti-
dente João Goulart, quando, com sua mulher Maria Tereza e os tuição familiar e as virtudes da temperança. Como já se afir-
filhos João Vicente e Denise, desfiava as contas do rosário: "Ave mou, não poderiam fazer uma opção pelos pobres porque eram
Maria, cheia de graça ..." os próprios. Nas zonas rurais e suburbanas, o perfil cultural e
Quando do agravamento da crise, em 1964, os "progressis- socioeconômico dos evangélicos não pentecostais não diferia
tas" amiudavam seus diálogos com o presidente Goulart, ten- muito do daqueles.
tando orientá-lo e adverti-lo dos excessos dos grupos radicais e Os colégios evangélicos estavam no seu apogeu, rivalizando
de suas conseqüências. Os demais promoviam as Marchas da com seus congêneres católicos. Os evangélicos de classe média
Família, com Deus e pela Liberdade. lutavam para se afirmar socialmente, então mais discriminados
O pluralismo religioso do país não implicava uma participa- do que propriamente perseguidos. Uma "demonstração de for-
ção política mais ativa dos grupos minoritários. Judeus, muçul- ça" foi o encerramento da Convenção da Aliança Batista Mundi-
manos e budistas se encerravam em seus grupos étnicos, ligados al (Rio de Janeiro, 1960), quando 200 mil pessoas lotaram o
\ nas pátrias originárias e conscientes de suas limitações numéri- estádio Maracanã para ouvir o evangelista Billy Graham. Mais e
cas. As Testemunhas de Ieová (novo grupo no cenário) não que- mais se procurava fazer uso do rádio como veículo de propaga-
riam nada com "governos satânicos" nem aqui nem na China. ção da mensagem. Em 1959 tivemos um acontecimento de pro-
Kardecistas e umbandistas (crescendo cerca de 200% a cada dé- fundo simbolismo: um presidente da República em um culto
cada), grande parte em "dupla militância" (um pé no espiritis- evangélico. Era Juscelino Kubitschek na Catedral Presbiteriana
mo e outro no catolicismo), nunca foram de desenvolver proje- do Rio de Janeiro, nas festividades do centenário da denominação.
tos políticos, pois, à semelhança de sua fonte bramânica, acre- Os evangélicos aumentavam sua militância política: verea-
ditam que os problemas da vida atual podem ser reparação dos dores, prefeitos, deputados estaduais e federais. Em geral os ir-
males da vida anterior ou serão solucionados na próxima mãos, especialmente os jovens, se orgulhavam desses políticos
encarnação. Os cultos afro-brasileiros ainda lutavam pelo cum- _ e de outros evangélicos em posição de destaque. Era uma
primento da lei que garantia a liberdade religiosa (como os afirmação, uma identificação com "os nossos", uma demons-
protestantes no passado), às voltas com delegados de polícia tração de que também éramos capazes. E era chegada a hora de
intolerantes. Em geral esses grupos minoritários se aproxi- nossa presença e influência. Em um modelo pluripartidário, os
mavam ideologicamente do conservadorismo. evangélicos se candidatavam por diversos partidos, inclusive pelo
Os protestantes continuavam crescendo: de 0,58% da popu- Partido Socialista, que, durante certo tempo, teve no batista Au-
lação em 1938, pularam para 3,26% em 1949 e para 6,06% rélio Viana o seu solitário senador.
(4.071.643 membros) em 1961. Desses, os pentecostais, que re- A liderança e as instituições (especialmente os colégios), em
presentavam 9,5% em 1930, chegaram a 55% em 1958 e a 73,6% identificação com os países de maioria protestante, ensinavam
em 1964 (BRUENAU, 1974, p. 111). Somando-se os grupos as virtudes da democracia liberal. A identificação era particular-
pentecostais com as igrejas pobres das denominações históricas mente forte com os Estados Unidos, visto por muitos como uma
e migratórias, percebe-se que a porcentagem de evangélicos de nova terra da promissão. Havia uma forte consciência de
206 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 207

contracultura: éramos uma minoria no Brasil e devíamos Conselho Mundial de Igrejas e do Conselho Internacional de
apresentar um estilo alternativo de vida, o que incluía um certo Igrejas Cristãs. A Confederação Evangélica do Brasil criou um
profetismo. Nas mensagens denunciavam-se os erros da socie- setor de Responsabilidade Social Cristã, que organizou a famo-
dade, quase sempre atribuídos ao "mundanisrn o " e ao sa Conferência do Nordeste (Recife, 1962), em posição mais
romanismo. A crença generalizada era de que, se fôssemos mai- próxima daquela então esboçada pelo CMI e pelo clero progres-
oria ou, pelo menos, mais fortes, poderíamos aproximar o Bra- sista católico romano brasileiro. Também em 1962 o CMI criou,
sil dos padrões dos países protestantes do Norte, democráticos e com sede no Uruguai, uma comissão chamada ISAL (Igreja e
desenvolvidos. Sociedade na América Latina), uma versão local e atual do evan-
Nos anos 50 as primeiras e reduzidas levas de evangélicos gelho social e o antecedente teórico-histórico da teologia da li-
chegaram à universidade, vindas, principalmente, das denomi- bertação.
nações históricas e da classe média. Para lhes dar assistência, A ABUB começou seu trabalho somente a partir de 1958
aqui aportaram a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (li- com pequenos grupos, sob fogo cruzado da UCEB e dos
gada ao Departamento de Juventude do Conselho Mundial de fundamentalistas. As igrejas evangélicas quase sempre desconhe-
Igrejas) e a Comunidade Internacional de Estudantes Evangéli- ciam as origens dos dois movimentos internacionais de estu-
cos. A FMEC, que veio primeiro, fundou a UCEB (União Cristã dantes. A ABU procurava fugir da polarização, representando
dos Estudantes do Brasil), com os grupos locais chamados de uma terceira via, confessionalmente conservadora, mas defen-
dendo a abertura e o envolvimento quanto às questões
~\ ACA (Associação Cristã Acadêmica). A CIEE organizou a ABUB
socioeconômicas. Em seus primeiros anos no Brasil, sua ênfase
(Aliança Bíblica Universitária do Brasil).
~~i O principal ideólogo da UCEB era o missionário norte-ame- era particularmente pietista, lembrando a UCEB dos primeiros
'~'I
~/ ricano Richard Shaull, então professor do Seminário anos.
Presbiteriano de Campinas. O movimento, bastante forte e or- A crise continental - e especialmente a brasileira - do iní-
ganizado nacionalmente em seu apogeu, passou por uma pere- cio dos anos 60 veio atestar que as igrejas evangélicas, após um
grinação ideológica semelhante à da JUc. Reagindo contra a tra- século de história, não estavam preparadas para enfrentar, de
dição, a falta de preparo intelectual de seus pastores, a rigidez e modo lúcido, conseqüente e relevante, as demandas dos novos
o legalismo de suas igrejas, os estudantes foram se tornando tempos. O debate e a inquietação dos seminários e da juventu-
ásperos e irreverentes críticos das instituições (em especial das de, em vez de fecundar uma teologia bíblica contextualizada,
missões estrangeiras), professando uma teologia liberal ou radi- terminou por reproduzir polarizações vividas no passado em
cal, em que entravam como fortes componentes o universalismo outras partes do mundo. Rupturas ou repressão que iriam alte-
e a falta de ênfase no transcendente e no revelado. De um rar, para pior, a auto-imagem de nossa comunidade evangélica
pietismo esclarecido, que fazia acampamentos de trabalho e a consciência da natureza de sua missão. O sonho otimista
em favelas, à guerrilha, ao exílio, ao cárcere ou à seculariza- protestantismo = progresso chegara ao fim, substituído por
ção foi o caminho trilhado por muitos de seus militantes, outros sonhos, por pesadelos ou pela impossibilidade de so-
que, pela inadequação de seus métodos e propostas, em vez nhar.
de renovarem e reformarem a Igreja, a empurraram mais para
a direita. Sendo luz em densas trevas: densas trevas!
Foi ainda na década de 50 que a controvérsia evangelho social
versus evangelho individual se intensificou entre os protestantes O pacto político de 1946 entrara em crise. O presidente Iânio
latino-americanos, com a visita a este continente de líderes do Quadros renunciara, para decepção da maioria absoluta que o
208 - Cristianismo e Política Rellgl~o r PolIll( ,I 110Iirol\tI 209

elegera. Seu sucessor, o vice-presidente João Goulart (Jango), fora Grupo de Onze etc.). Não se pode subestimar o número, nem ()
eleito na chapa de outro partido (possibilidade não contemplada caráter espontâneo das multidões que participaram das passeatas
em nenhuma Constituição do mundo) e sua posse fora precedi- ou marchas em apoio ao novo governo, que incluíam a quase
da de penosas negociações para vencer a resistência dos minis- totalidade da classe média e a esmagadora maioria dos religio-
tros militares e evitar uma guerra civil. A solução de compromis- sos.
so fora a aprovação pelo Congresso Nacional de uma emenda Nos primeiros momentos ninguém pensou em uma "revolu-
instituindo o sistema parlamentarista, a qual seria posteriormente ção" (nomenclatura oficial adotada posteriormente), mas em
revogada por meio de um plebiscito. A nova face do país, urba- uma daquelas clássicas "intervenções corretivas das Forças Ar-
11

no-industrial, em rápido processo de industrialização, e uma madas (como em 1954 ou 1955) para a pronta devolução do
estrutura fundiária obsoleta exigiam uma revisão do pacto poder aos civis. A salvação da Constituição de 1946 contra a
político que atendesse às demandas dos setores sociais emer- ameaça de um regime totalitário marxista, no estilo cubano, era
gentes. o apelo retórico, a justificativa maior. O Ato Institucional vinha
O governo Goulart era uma coalizão de forças: trabalhistas, com prazo predeterminado de vigência e sem número (só virou
socialistas, comunistas, populistas e pelegos em aliança AI-1 quando editaram o AI-2). Apesar das cassações de manda-
congressual com os latifundiários do PSD. A personalidade dé- tos e de direitos políticos, foram mantidos o calendário eleito-
bil e indecisa do presidente e a ausência de nitidez em suas pro- ral, com eleições no ano seguinte em dez Estados, o funciona-
postas concorriam para tornar mais agudas as contradições in- mento dos antigos partidos e a vigência (com algumas altera-
\ ternas de seu sistema de apoio. No final, o descontentamento ções) da Constituição de 1946, bem como as previstas eleições
~~"
I atingia a todos. A situação econômica era crítica e a moralidade presidenciais por voto universal. direto e secreto.
"I administrativa, muito baixa. Seu programa de "reformas de base" Depois foi o que se viu: avanços e recuos, luta entre os "du-
espantava os conservadores e era considerado muito tímido e ros" e os liberais, ou castelistas, ou ex-febianos, ou esguianos,
insuficiente pelos radicais de esquerda. Revoltas de subalternos golpes dentro do Golpe. Garantia-se a posse dos eleitos em 1965,
(sargentos do Exército em Brasília e marinheiros no Rio de Ja- mas impôs-se outro presidente militar: Costa e Silva como su-
neiro) traziam a quebra de disciplina às corporações militares. cessor de Castello Branco, que preferia um civil, como Daniel
O triunfalismo e a bravata dos comunistas (Prestes: "Já temos o Krieger. Pôs-se fim às leis excepcionais e devolveu-se o país ao
poder, falta-nos o governo") atemorizavam a classe média e ge- Estado de Direito em março de 1967, mas extinguiu-se o
ravam apreensão entre os religiosos. pluripartidarismo, impondo-se um bipartidarismo artificial
Em vez de se renegociar o pacto político, passou-se a conspi- (ARENA e MDB). Não foram revogadas as punições e a nova
rar contra o presidente. Em vez de um novo consenso, cada um Constituição Federal, votada pelo Congresso Nacional, teve seus
tramava o seu golpe para alijar os adversários e impor o seu pro- limites impostos pelos militares. A radicalização e a imaturida-
grama (à esquerda ou à direita) com monopólio de poder. O de de setores da esquerda (pregação do "foquismo", passeata
levante iniciado em Minas Gerais em 31 de março de 1964 con- dos 100 mil etc) deram aos "duros" o pretexto para romper os
tou com a resistência ou a relutância inicial de comandantes de limites impostos pelos liberais: em dezembro de 1968 impuseram a
várias unidades militares (alguns deles chegaram a telefonar para Costa e Silva o Ato Institucional n" 5.
o presidente oferecendo apoio, desde que ele renunciasse sua Seguiram-se 10 anos de ditadura. Costa e Silva adoeceu e o
aliança com alguns grupos). A ausência de resistência popular, seu vice, o civil e ex-udenista Pedro Aleixo, foi impedido de as-
por menor que fosse, demonstrava a baixa legitimidade do sumir por não concordar com o AI-S. O Brasil passou a ser
governo e a falácia de seu "dispositivo civil" (CGT PUA, UNE, governado por uma junta militar (os ministros), que impôs a
210 - Cristianismo e Política
Religiáo e Política no Brasil- 211

um Congresso mutilado e amedrontado o nome do general e de dois terços do poder aquisitivo). Com a imprensa controlada,
ex-integralista Emílio Garrastazu Médice para a "eleição" veiculava-se o milagre econômico e as mensagens patrióticas ("Bra-
presidencial. Várias organizações de esquerda (PC do B, Polop, sil, ame-o ou deixe-o", "Ninguém segura este país") em torno da
VAR-Palmares, Colina, ALN, etc.) haviam partido para a luta ar- "potência emergente", dirigida por tecnocratas geniais. O ápice dessa
mada (alguns deles advogavam essa forma de luta antes do AI-S.
euforia ufanista verde-amarela foi o ano do sesquicentenário da
O PC do B se manifestou contra e se manteve à margem da luta
independência (1972), quando um pouco de bom senso indicaria
armada, embora viesse a sofrer idêntica repressão. Terrorismo
o caminho da institucionalização e do fim da exceção.
urbano (assaltos, bombas, seqüestros) e guerrilha rural (Vale do
É verdade que o aparelho de Estado foi modernizado, o siste-
Ribeira, Xamboiá, Araguaia etc.). A reação foi implacável: as pri-
ma de transportes e comunicação foi ampliado e, nos primeiros
sões se encheram. Torturas, desaparecidos, exilados. Pessoas ino-
anos, a inflação foi controlada e a economia atingiu altas taxas
centes foram mortas ou feridas, vítimas de ambos os lados ou
de crescimento. Mas, igualmente, a economia foi
sob o fogo cruzado. Rígida censura foi imposta à imprensa: o
desnacionalizada, a empresa privada nacional foi enfraquecida
país nem tomou conhecimento da guerrilha rural. Os direitos
humanos eram violados. e a estatização aumentou. À semelhança de todas as outras dita-
Eleições periódicas "controladas" eram realizadas regularmen- duras, pode-se afirmar que tudo que a nossa ditadura fez de
te. As câmaras abertas falavam para si mesmas. As greves esta- positivo poderia ser alcançado em uma democracia que não fa-
vam proibidas e os sindicatos, sob intervenção ou domestica- ria o que ela fez de mal.
0\ dos. O movimento estudantil estava esfacelado e havia espiões Um desses males foi a divisão maniqueísta entre mocinhos e
~ vilões. Outro foi sua autofagia, destruindo seus líderes originais,
~~;,
I' em todo lugar. O fim da luta armada veio em 1973. A nação
!'7
I'
estava machucada. bem como privando o país da experiência de seus mais autênti-
Os "duros" foram derrotados com a imposição do nome do cos quadros, além de impedir a renovação natural de lideranças,
castelista Ernesto Geisel (1974-1975). As eleições parlamenta- pela não abertura de espaço às novas gerações. O ponto de par-
res de 1974 foram mais livres e consagraram esmagadora vitória tida para a resistência civil se deu com o movimento da Frente
do MDB. Pressionado pela sociedade civil, Geisel promoveu a Ampla (1966-1967), quando os ex-presidentes Juscelino e Iango
"descornpressâo " do regime, limitando o poder dos órgãos de se uniram a seu antigo adversário Carlos Lacerda (que logo seria
segurança e informação (após o "suicídio" do jornalista Vladimir também cassado) para lançar um manifesto à nação,
Herzog no Doi-Codi de São Paulo). Suspendeu a censura à im- conclamando à necessidade de união a despeitos das diferen-
prensa, revogou os Atos Institucionais e impôs o seu sucessor na ças. Diz, a certa altura, o manifesto:
pessoa do general João Batista Figueiredo, comprometido com O povo não quer o que lhe dão, ou seja, um governo subservien-
a "abertura", que assinaria uma lei de anistia e garantiria a volta te a decisões tomadas no exterior, hostil ao povo e temeroso de
dos exilados. seu julgamento, usando abusivamente as armas da segurança
O regime de 1964 significou um retrocesso institucional, um nacional para coagi-lo e imobilizá-lo, implantando a inseguran-
recuo em nossa marcha em direção à democracia. Foi uma ça, a descrença e a ansiedade em todas as classes e em todos os
derrota do pensamento e da prática liberal e um desastre para as lugares. As desculpas para um regime antidemocrático estão esgo-
esquerdas. O regime se legitimava por seus êxitos econômi- tadas. O Brasil repele tutelas e curatelas.
cos, que ampliavam e beneficiavam a classe média (que de- Em 1974 a classe média marchava para as urnas tentando
pois seria proletarizada, perdendo 60% de seu poder aquisitivo) resgatar suas marchas de 1964: a opção por um pacto democrático
e prejudicavam o operariado, com o achatamento salarial (perda pluralista. E os religiosos?
212 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 213

Sendo luz em densas trevas: sendo luz? porém, principalmente no Nordeste, surgiam atritos entre bispos
progressistas e comandos militares, em virtude de pronuncia-
Era compreensível o apoio dos católicos conservadores à de- mento dos primeiros, que criticavam medidas governamentais
posição do presidente João Goulart. E o que dizer do silêncio ou faziam referências mais duras à questão social. Os militares
dos progressistas ou da conivência dos moderados? O limite à sempre se consideravam "bons católicos", defensores da civili-
auto crítica de uma constituição e de seu engajamento em qual- zação ocidental e cristã, bons alunos do antigo Catecismo e exem-
quer movimento é a sua sobrevivência. Uma instituição nor- plares fiéis da igreja pré-conciliar. Ficavam até sentidos com os
malmente não quer apenas sobreviver, mas se expandir. No fun- ataques dos prelados, o que consideravam uma ingratidão para
do, os clérigos e leigos temiam que o Brasil marchasse para uma com quem os havia "salvo do comunismo". Para eles a missão
ditadura marxista-leninista. A experiência histórica das igrejas da Igreja deveria ser espiritual, deixando as questões sociais para
com esse tipo de regime não era das mais confortáveis ... Para a o governo, no que eram apoiados por setores conservadores da
Igreja, o limite de um projeto político tolerável deveria ficar própria Igreja. Diante do dedo em riste dos progressistas, re-
aquém daquele tipo de regime. Limite semelhante ao aceito por agiam: "Vocês também são culpados. Muito do que o Brasil é
militantes de outras religiões. hoje (de bom e de ruim) se deve a vocês. Foram vocês quem
Além do mais, a Igreja Romana sempre considerou a América nos ensinaram a ser como somos. I! Em princípio, tinham ra-
Latina o seu continente e o Brasil, "o maior país católico do zão.
mundo". Aqui, particularmente, ela sempre foi muito zelosa do O problema das mudanças que se procurava imprimir à Igre-
\
I
seu papel de "mãe e mestra" (ciumenta de outras mães e de ou-
tras mestras) e não arriscaria perder seu filho para outro "Pai e
ja Romana estava em sua metodologia autoritária. Durante dé-
cadas ela havia ensinado certas coisas a seus fiéis. De repente,
V Mestre" (o partido único), igualmente (ou mais) exclusivista e começava a ensinar de modo diferente e a dizer que o ensino
ciumento. anterior estava errado. Isso semeava confusão na mente dos fi-
Na realidade, após 1964, por alguns anos a Igreja Romana éis. Como a estrutura da Igreja Romana é hierárquica, os leigos
baixou o tom de sua voz, deu um passo à direita e se voltou para não eram chamados a votar as propostas, mas a aceitá-Ias passi-
dentro. Ela própria vivia uma grave crise de identidade e missão. vamente ou a discutir o melhor meio de aceitá-Ias ... O novo, por
O Concílio Vaticano 11resultou no fim do monolitismo da ins- sua vez, sempre traz insegurança. A Igreja parecia falar não uma
tituição. Tentava-se, então, todo tipo de experimento, conviven- linguagem nova, mas várias linguagens. Em um quadro como
do as posturas mais reacionárias ao lado do mais inconseqüente esse, muitos começaram a abandoná-Ia ("essa é outra Igreja;
vanguardismo. Padres deixavam a batina ou se rebelavam con- a minha Igreja já não existe") ou a aderir aos movimentos
tra os seus bispos. Cada diocese, ou cada paróquia, procurava conservadores, na época capitaneados pela TFP, fundada em
aplicar a sua interpretação das decisões do Concílio. A Igreja 1960.
começava a tomar ciência de sua fragilidade, da falta de voca- Muitos militantes da esquerda católica haviam abandonado a
ções sacerdotais, da dependência do clero estrangeiro (43%) e instituição, ingressando em movimentos seculares radicais,
da necessidade de conter a ameaça de caos. A VIII Assembléia alegando falta de apoio ou perda de identificação. Inúmeros
Geral da CNBB (Aparecida, São Paulo, 1967) ocupou quase toda a deles foram presos e alguns já haviam abandonado o país. Os
sua agenda com temas pertinentes à própria instituição, cujas ques- que ficaram procuravam se articular, com o apoio dos bispos
tões não permitiam muito espaço para os problemas externos. progressistas. Em 1968 quase todo o país (principalmente a
Nesses casos a CNBB imprimiu uma tônica que pode ser imprensa) participava do debate sobre mensagem e missão da
classificada como moderadamente conservàdora. Aqui e acolá, Igreja. O processo de polarização se acentuava. Em 1968 os
214 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 215

leigos conservadores criaram dois movimentos, o Permanência, igrejas tradicionais de frieza, imobilismo, carnalidade ou
no Rio de Janeiro, e o Hora Presente, em São Paulo, passando a mundanismo e de se fecharem à ação do Espírito, perdendo as
publicar revistas com os mesmos nomes desses movimentos. bênçãos subseqüentes.
Seu principal articulador e ideólogo era o escritor leigo Custavo O resultado foi uma sucessão de cismas. Batistas,
Corção. congregacionais, presbiterianos, metodistas, presbiterianos in-
Derrotados os marxistas pelo "braço secular", já não eram dependentes e outros perderam sua unidade denominacional
preocupação da Igreja Romana. Os setores progressistas poderi- com a saída voluntária ou a expulsão dos defensores do
am levantar sozinhos certas bandeiras sociais ("bandeiras certas neopentecostalismo, que se organizaram em suas próprias de-
em mãos erradas", no dizer de Dom Helder) e faturar a gratidão nominações: Convenção Batista Nacional, Igreja Presbiteriana
de amplos setores da sociedade. Essa tática, porém, era denunci- Renovada, Igreja Metodista Wesleyana ete. Essas novas denomi-
ada como infiltração comunista pelos conservadores e milita- nações mantiveram a maioria das tradições de suas antecessoras
res, e como oportunista pelos comunistas. (por uma questão de identidade), acrescidas das doutrinas e prá-
Com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, a imprensa ticas pentecostais.
censurada se tornou unilateral: os nomes dos progressistas su- Meses antes da eclosão do 31 de março de 1964, líderes do
miram dos noticiários (às vezes sumindo, também, de circula- Movimento de Renovação, preocupados com a situação nacio-
ção, do país ou do rol dos vivos), enquanto se abria espaço para nal e com a indefinição dos nossos rumos políticos, convoca-
o ataque dos conservadores, bem como para as notícias de even- ram as igrejas para celebrarem um Dia Nacional de Jejum e Ora-
tos religiosos tradicionais ou populares. Até então, a cúpula da ção pela Pátria. Meses depois o presidente João Coulart era de-
CNBB, dominada pelos reformistas moderados, cuja posição era posto. A crença generalizada entre os protestantes (não apenas
então chamada de "centro-montiniano" por sua sintonia com o entre os pentecostais e renovados) era de que o movimento de
papa Montini (Paulo VI), manobrava com hábil diplomacia o 31 de março fora "resposta de Deus às orações de seu povo". Isso
seu relacionamento com os governantes e na acomodação dos concorreu para dar um caráter sagrado ao novo regime, incluin-
conflitos internos. (Eles sempre foram maioria na CNBB, po- do-se a perda de capacidade crítica e prática profética diante dos
dendo se compor, dependendo das conveniências, ora com a desvios que se seguiram.
maioria progressista, ora com a minoria conservadora.) Os pro- O Movimento de Renovação concorreu para tornar o protes-
gressistas por seu turno, procuravam legitimar suas posições pela tantismo brasileiro ainda mais predominantemente pentecostal
citação freqüente da encíclica social do novo papa, a Populorum e, assim, místico, emotivo, individualista, legalista, sectário e
Progressio. desengajado, procurando resolver os problemas apenas no ní-
O novo dado mais importante para o protestantismo brasi- vel individual ou da comunidade dos fiéis. Se havia aspectos
leiro dos anos 60 foi o surgimento do Movimento de Renovação positivos do ponto de vista religioso (ênfase missionária, serie-
Espiritual. A crença na contemporaneidade de todos os dons do dade na vida espiritual, informalidade do culto ete.), do ponto
Espírito Santo, incluindo-se a glossolalia (falar em línguas es- de vista socioeconômico essa tendência se constituía, em geral,
tranhas) foi advogada no seio das denominações históricas. em um retrocesso. A missão da Igreja deveria se resumir, quase
A doutrina do Espírito Santo se tornou o motivo da mais aguda que exclusivamente, à sua dimensão espiritual. Essa falta de pro-
controvérsia entre os evangélicos daquela década. Os tradicio- postas históricas foi reforçada pela crescente disseminação entre
nalistas acusavam os renovados de divisionistas, de estarem se os evangélicos (pentecostais ou não) de escatologias pré-
desviando de sua genuína herança histórico-doutrinária e caindo milenistas, com pessimismo quanto ao presente e esperança
no pecado do orgulho espiritual. Estes, por sua vez, acusavam as milenarista futurista e pós-histórica.
216 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 217

o ano de 1964 foi de grave crise para as denominações a posição generalizada da comunidade evangélica. Enquanto,
históricas. A repressão do novo regime às esquerdas concorreu no nível internacional, os evangélicos caminhavam para posi-
para a desagregação da Confederação Evangélica e da UCEB ções mais progressistas (Seminário Fuller, revista Christianity
(ACA). A primeira sobreviveu nominalmente e a segunda che- Today, por exemplo), aqui seguiam o caminho inverso, em dire-
gou à extinção. Alguns líderes abandonaram o país. Os postos ção ao paroquialismo do Bible Belt do sul dos EUA. Aqui os nor-
de mando caíram nas mãos dos conservadores ou os antigos te-americanos de tendência liberal, especialmente entre os
dirigentes se deslocaram para o conservadorismo. Pelo novo re- presbiterianos, não eram bem-vindos, porque queriam ensinar
gime, os expurgos iam livrando, progressivamente, os seminári- aos brasileiros um "outro evangelho", diferente daquele apren-
os e juntas de pessoas consideradas culpadas dos delitos de dido com os seus maiores.
esquerdismo, ecumenismo ou modernismo, ou de terem, de- No cenário internacional os eventos mais importantes da
pendendo do caso, tendências renovadas. Mais e mais aquelas década de 60 foram o Congresso Internacional de Evangelismo
denominações - em um mecanismo de autodefesa - iam (Berlim, 1966) e o 10 Congresso Latino-Americano de
enfatizando as tradições e as confissões de fé. Ao mesmo tempo Evangelização (Bogotá, 1969). Para ambos, as igrejas brasileiras
iam se assemelhando ao regime vigente no país: tornaram-se enviaram numerosas delegações. Esses congressos, que tiveram
rígidas, autoritárias, exclusivistas, intolerantes, repressivas. o evangelista Billy Graham como inspirado r, embora fizessem
Nem sempre o esquerdismo (opção por alguma forma de referência à responsabilidade social dos cristãos, tiveram como
socialismo) era o principal problema. Nem todos os teólogos ênfase a propagação do evangelho - uma tentativa de volta às

\ I
de tendência liberal eram esquerdistas, mas liberais-progressis-
tas quanto à política. Outras vezes, como aconteceu nas crises
origens do movimento missionário. Foi uma reação à acomoda-
ção de muitas igrejas e à tendência universalista representada
~'
dos seminários (como a de 1968 no Seminário Metodista em pelas antigas organizações missionárias que se filiaram ao Con-
Rudge Ramos, São Paulo), o problema poderia ser classificado selho Mundial de Igrejas, que promoveu um encontro sobre Igreja
também como de cunho moral (alcoolismo, pornografia, e Sociedade (Genebra, 1966). Richard Shaull teve importante
irreverência ete.). Desse modo, o debate se dava em três níveis: participação, com uma postura cada vez mais radicalizada (a
direitismo vetsus esquerdismo (debate político-ideológico); legitimidade do uso da violência, por exemplo).
fundamentalismo versus modernismo (debate teológico) e Após a década de 60, os evangélicos brasileiros já não eram
santificação versus dissolução (debate moral). Com igrejas tradi- os mesmos. As graves crises internas haviam deixado marcas pro-
cionalmente conservadoras do ponto de vista moral e teológico, fundas. O espírito de cooperação intereclesiástica, como mani-
não foi difícil acrescentar o conservadorismo político, com o festação de unidade cristã, descera aos mais baixos níveis. O
apelo contra a ameaça comunista. mesmo acontecera no que se refere à produção intelectual. Os
É claro que nem sempre os evangélicos estavam equipados evangélicos já não se viam como uma comunidade alternativa
para distinguir socialismo de comunismo nem os diversos tipos capaz de mudar o curso da história. Aderir às propostas secula-
de socialismo. Com o bipartidarismo (ARENA versus MDB), toda res (à direita ou à esquerda) tornava-se a norma. Em ambos os
a nação caiu no maniqueísmo, um jogo de bons versus maus. O lados perdera-se a crença na democracia libéral (antigo apanágio
lugar dos crentes, obviamente, devia ser do lado dos bons. À protestante), substituída pela preferência por modelos autoritá-
essa altura, o neofundamentalismo cresceu de importância, ul- rios. Percebia-se um ranço de preconceito em relação à ativida-
trapassando o seu campo específico (algumas missões de fé ou de política.
pequenas denominações, como os batistas regulares, os batistas Os conflitos teológicos por que passamos não foram originais
bíblicos, os presbiterianos fundamentalistas ete.) para se tornar nem em seu conteúdo, nem em seu desdobramento. Há mais
Religião e Política no Brasil- 219
218 - Cristianismo e Política

de um século eles vêm acontecendo em diferentes lugares e é Arquidiocese de São Paulo publicou o trabalho São Paulo 1975:
provável que continuem assim por muito tempo. As pressuposi- Crescimento e Empobrecimento, mostrando que dois terços dos
ções e as implicações práticas das diversas posições eram bas- paulistas viviam com um salário que mallhes garantia a subsis-
tante divergentes, tornando quase impossível se chegar a um tência e que eram intimidados com prisões e torturas se preten-
consenso ou a uma síntese. Travava-se então, sempre, uma luta dessem reagir ou entrar em greve. Esse documento procurava
pelo poder denominacional. Os vencedores passaram a contro- desmascarar o propalado "milagre econômico". Em 1975 os "sui-
lar a máquina eclesiástica respectiva, impondo sua posição, que cídios", no Doi-Codi paulista, do sindicalista Manoel Fiel Filho
foi considerada a ortodoxa. Se aqui venceram os conservadores, e do jornalista judeu Vladimir Herzog levaram o cardeal Paulo
em outros países o poder ficou com os liberais, que não tiveram Evaristo Arns a promover ruidosa cerimônia ecumênica memorial
tratamento menos discriminatório em relação àqueles, chama- na Catedral da Sé. Em fevereiro de 1977 a 15a Assembléia Geral
dos genérica e pejorativamente de "fundamentalistas". da CNBB publicou um de seus mais importantes documentos:
Após a decretação do AI-5, o relacionamento entre a hierar- Exigências Cristãs de uma Ordem Política.
quia católica e as autoridades do regime foi se tornando cada Esse documento, de inspiração cristã, que fazia uma análise
vez mais tenso. No início a CNBB ainda falava em uma "leal crítica da situação nacional e defendia uma nova ordem social
colaboração". Mas, em maio de 1970, a Assembléia Geral, reuni- baseada na justiça, não foi tão longe quanto alguns documen-
da em Brasília, já falava a respeito das torturas. Tornaram-se fre- tos regionais, que apontavam o capitalismo como culpado,
qüentes a prisão de clérigos e leigos, e a invasão de instituições sacralizando uma saída socialista. Um deles, redigido por bis-

) religiosas pelos militares. Freiras alegavam ter sido torturadas


com choques elétricos. Em 26 de maio de 1969 foi seqüestrado
pos e superiores religiosos do Nordeste, e intitulado Eu Ouvi os
Clamores do Meu Povo (06/05/73) termina assim:
~'
e morto, no Recife, o padre Henrique Pereira Neto, um dos auxi- A classe dominada não tem outra saída para se libertar senão
liares diretos de Dom Helder Câmara. No mesmo ano foi morto seguindo o longo e difícil caminho, já iniciado, que conduz à
propriedade social dos meios de produção. Nele está o funda-
em uma emboscada, pelas forças de segurança, o líder terrorista
mento principal de um gigantesco projeto histórico de transfor-
Carlos Marighela, em episódio envolvendo um convento de
mação da sociedade atual numa sociedade nova, na qual se tor-
dominicanos em São Paulo.
ne possível criar as condições objetivas que permitam aos opri-
A violência contra os militantes da Igreja e a ameaça à inte- midos recuperar a humanidade de que foram despojados, derru-
gridade física da instituição levou a uma maior unidade da hie- bar as cadeias do seu sofrimento, vencer o antagonismo de clas-
rarquia. A maioria dos conservadores fez frente com os modera- ses e, enfim, conquistar a liberdade.
dos em torno de uma posição mais afirmativa, enquanto que os
progressistas passaram a ter justificadas suas posições. Apenas A posição da hierarquia - e de teólogos - nem sempre ti-
uma pequena ala dos conservadores, conhecidos como os "ultra" nha correspondente entre o laicato. A TFP conseguiu, com rela-
(Dom Castro Mayer, de Campos, Dom Sigoud, de Diamantina, tiva facilidade, coletar um milhão de assinaturas em um documento
por exemplo), se punha em defesa da ação dos governos e con- a ser enviado à Santa Sé, denunciando "a infiltração comunista no
tra os seus colegas (DELLA CAVA,1978, p. 244). clero". Muitos leigos, moderadamente conservadores, ou reformis-
tas, preferiam enfatizar sua lealdade ao papa, como foi o caso da
Os documentos eclesiásticos também foram crescendo de
tom. Em 1973, ano do 15° aniversário da declaração de direitos Sociedade Paulo VI, formada pelas mais expressivas figuras de inte-
da ONU, foi publicado um documento conjunto pela CNBB e lectuais de Pernambuco. Ao mesmo tempo a crescente politização
por algumas denominações protestantes, mostrando a base da hierarquia não concorreu para solucionar a crise interna da
bíblica de seus artigos. Em 1975 a Comissão de Justiça e Paz da instituição e a perda da hegemonia na sociedade em geral.
220 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 221

A esse respeito, opina Della Cava: Essa fase da ação política da Igreja Romana tem como
Pelo contrário, há evidências de que a erosão do monopólio his- parâmetros Medellin (1968) e Puebla (1978). Medellin é um
tórico da religião católica continua a passo acelerado: o culto marco, com a instituição abandonando a sua antiga proposta
dominical entre a classe média urbana deve ter declinado ainda de cristandade, legitimando o envolvimento político e deixan-
mais com o crescimento do consumismo descontrolado; credos do espaços para os teólogos da libertação. Espaços que dariam
populares como a umbanda e o espiritismo continuam a se afir- lugar a experiências mais audaciosas, como os movimentos Cris-
mar entre a crescente classe média baixa; apesar da participação tãos pelo Socialismo e Cristãos pelo Terceiro Mundo, que se reu-
decidida de jovens na luta pelas liberdades democráticas, o mo- niram no Chile de Allende em 1972. Embora Paulo VI se exau-
vimento da juventude católica ainda tem de ressurgir de seu ig- risse para combater os extremos e implementar, na América La-
nominioso colapso do anos setenta; de um modo geral, as voca- tina, a sua "civilização de amor", não-capitalista e não-socialis-
ções sacerdotais continuam a decrescer no Brasil, não apenas entre
ta, Puebla encontraria a América Latina mais fechada e o Brasil
os homens, mas principalmente entre as mulheres que, pensava-
em caminho de uma abertura incerta. Puebla geraria um docu-
se, viriam a ser a espinha dorsal de uma igreja sem homens; não
mento de compromisso, ambíguo, em atmosfera menos
se pode mais esperar que a Europa ou a América consigam pre-
encher tais claros, uma vez que também enfrentam o mesmo
ecumênica.
declínio de vocações. (pp. 248-249.) Se a abertura viu as instituições políticas readquirirem maior
autonomia, reduzindo a influência da CNBB, bem como deu
De um lado, se desenvolveram movimentos católicos não si- condições de caminhar com seus próprios pés organizações que
tuados à esquerda do espectro político-teológico, como os estavam abrigadas sob o manto protetor da Igreja, também co-
Cursilhos de Cristandade, a Renovação Carismática Católica, os incidiu com a ascensão de João Paulo 11 ao trono papal. Esse
encontros de Casais e de Jovens, os Focolari, a Opus Dei. De conservador-populista, de forte personalidade, usou sua visita
outro lado, favorecidos pela atmosfera de repressão, prolifera- ao Brasil em 1980 para coibir os extremos e impor a posição do
ram as seitas: Seicho-no-Iê, Igreja Messiânica, Hare Krisna, Vaticano. Repetiu essa mensagem aos bispos em sua visita ad
Mórmons, Testemunhas de Ieová ete. Confundindo a dimensão limina apostolarum e, por fim, a reiterou em tom de advertência
espiritual do ser, sua fome mística, com alienação, os setores em sua carta ao episcopado brasileiro: 1) a prioridade da missão
excessivamente politizados concorreram, em suas paróquias ou da Igreja é a evangelização dos povos; 2) a Igreja tem uma res-
dioceses, para o crescimento do pentecostalismo e dos cultos ponsabilidade social, de apoio aos pobres e de denúncia profé-
afro-brasileiros. tica; 3) a Igreja não deve fazer opções político-partidárias, e ao
O crescimento da importância política da CNBB se deu clero é vedado esse tipo de militância.
concomitantemente à atrofia das instituições que normalmente Nos anos 70 o dado mais significativo na área do pensamen-
exerciam esse papel: partidos, sindicatos, imprensa, vítimas de to religioso foi o surgimento e a propagação da chamada teolo-
censura e da repressão. Essas bandeiras de defesa dos direitos civis gia da libertação. Em uma década essa corrente foi adotada por
foram deslocadas para as mãos de entidades como a CNBB, a seminários teológicos, clérigos, leigos e, até mesmo, por setores
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), dirigida pelo liberal da hierarquia. As obras de Custavo Cutierrez, Hugo Assmann,
Raymundo Faoro. e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Iuan Luis Segundo e outros aqui encontraram guarida, tendo
presidida pelo social-democrata Barbosa Lima Sobrinho, ex-mi- como expoente principal o franciscano Leonardo Boff autor de
litante do PSB. À medida que fôssemos voltando a um regime legí- Jesus Cristo Libertador.
timo, essas entidades iriam devolvendo essas bandeiras a seus A teologia da libertação é, em sentido histórico, herdeira do
naturais detentores, tendendo a exercer seus papéis tradicionais. antigo evangelho social e de correntes mais recentes, como a
222 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 223

teologia política européia de um Iohannes Metz ou um Iurgen o princípio hermenêutico não pode substituir o elemento
Moltmann, que aqui teria sintonia nas obras de um Richard revelado, mas deve estar ao seu serviço. [... ) o princípio
Shaull, de um Ioseph Comblin, de um Rubem Alves, passando hermenêutico deve favorecer a encarnação, a epifania do elemen-
to, não o seu obscurecimento e a sua supressão (MONDIN, 1980,
pelo trabalho realizado pelo ISAL dez anos antes. Os teólogos
p.163).
da libertação pretendiam estabelecer uma teologia autenticamen-
te latino-americana, partindo da situação de miséria e opressão Esse crítico concorda com Marcuse, na crença de que os siste-
de nossas massas e da dependência de nossas nações, descrentes mas políticos não garantem a libertação, sendo intrinsecamente
na estratégia desenvolvimentista, e optando por uma saída re- opressivos, por buscarem primordialmente sua própria preser-
volucionária. A teologia da libertação denuncia a aliança das vação. Enfatizando a dimensão espiritual, ele afirma:
instituições religiosas com os grupos dominantes e propõe o Para estas doenças íntimas, do espírito, só há curas e remédios
engajamento do cristianismo em uma tarefa histórica libertadora, internos, espirituais. Tais são as curas e os remédios que nos deu
elaborando o seu pensamento (com o apoio das ciências sociais Jesus Cristo com a sua vida e os seus ensinamentos. Quem crer
e, particularmente, da dialética marxista) a partir da experiência nele, ama-o incondicionalmente e quem segue seus exemplos,
e do sofrimento dos pobres. obtém salvação e libertação. (p. 179.)
Autores católicos ou protestantes que não compartilhavam Por sua vez, Arana acha que o que está errado com os teólo-
dessa proposta, ao lado do reconhecimento de seus méritos, ela- gos da libertação é o seu ponto de partida. O relacionamento
boraram apreciações críticas. O católico Batista Mondin, da básico é Deus-homem, e não Deus-pobre. Assim, ambos, os
Universidade Urbaniana, de Roma, vê o mérito da volta do tema pobres e os ricos, precisam ser humanizados quando procuram
libertação ao pensamento cristão, especialmente suas implica- relacionar-se corretamente com o seu Criador. A chave
ções históricas, sociais e políticas, e louva a coragem dos teólo- hermenêutica (marxismo, luta de classe) deforma a mensagem
gos da libertação em denunciar os abusos do poder em nosso
do cristianismo e, por sua unilateralidade e seu dogmatismo,
continente. O protestante Pedro Arana, um dos fundadores da
impede de se ver a realidade como ela verdadeiramente é. A
Fraternidade Teológica Latino-Americana, reconhece que os te-
opressão na América Latina não tem sido, nem é, somente eco-
ólogos da libertação forçaram os evangélicos a tomar seriamen-
nômica e política, mas também religiosa, devido à influência
te a situação em que vivem e na qual proclamam o evangelho,
histórica, moral e cultural da Igreja Católica, que também está
bem como o seu papel na transformação deste mundo; força-
carecendo de uma libertação.
ram os evangélicos a ler a Bíblia seriamente e a rever sua atitude
Arana dá uma definição da teologia: "É uma reflexão da fé
diante da revelação, especialmente os condicionamentos de sua
sobre a revelação especial de Deus para a comunidade
leitura; chamaram a atenção para a importância de relacionar o
missionária no meio das circunstâncias históricas, com o fim de
todo da mensagem do evangelho com as realidades concretas;
compartilhar o testemunho do reino de Deus" (ARANA, 1982,
chamaram a atenção para a relação entre fé e obediência.
p. 14). Como herdeiros da Reforma, nossa teologia sempre co-
Mondin, contudo, condena nos teólogos da libertação o seu
meça com a revelação, nunca com o processo históricó ou a si-
reducionismo metodológico, a ausência de apelo à metafísica, o
tuação humana. Começa-se axiologicamente a partir da Bíblia,
seu antropocentrismo e a superficialidade de suas doutrinas an-
e de Jesus Cristo, e cronologicamente a partir da realidade histó-
tropológicas, considerando a chave hermenêutica da práxis
sociopolítica como insuficiente. Ele vê o perigo do dogmatismo rica. A teologia deve estar a serviço da missão da Igreja, que tem
e da subordinação da ortodoxia à ortopraxia. Para esse pensador a ver com a salvação integral (holística) de seu povo e, por meio
italiano, dele, com o bem-estar integral do mundo. É nosso dever ensinar
224 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 225

todo O conselho de Deus, julgando a nossa leitura e interpretação parlamentar não se diferencia em quase nada daquela dos setores
da realidade histórica à luz da sua Palavra: marxistas seculares. Eles vão mais além, desaprovando as pro-
postas cristãs na política. O cristão teria sua fé apenas como
Por essa razão, nós não podemos pôr um selo de infalibilidade
científica em nenhum instrumento humano, a despeito de quão motivação, seguindo o programa dos partidos, como fazem os
científico e completo ele aparente ser, seja ele um marxismo não-cristãos, porque "hoje o espírito que preside a presença
dogmático, um revisado, ou qualquer outro que possa aparecer dos cristãos na vida política partidária não é mais conduzido
(Id.. ibid., p. 15). em função da Igreja, mas em função do povo e dos pobres"
(Revista e Civilização Brasileira, set. 1978).
Minimizando O papel da revelação e da transcendência, da
De um modo geral, os marxistas saudaram as novas idéias e
dimensão espiritual ou mística da experiência religiosa, os teó-
o modo de atuação do catolicismo brasileiro. Leandro Konder,
logos da libertação, com um implícito universalismo, reduzem
por exemplo, defende uma ampla participação dos cristãos na
igualmente a distinção entre Igreja e mundo, a agência
revolução brasileira, o que ampliaria a sua base, preparando um
missionária e o campo missionário. Com uma escatologia do
socialismo "tão robusto e saudável como todos desejamos"
tipo pós-rnilenista, um esvaziamento da identidade cristã e o
(KONDER, 1978, p. 60). Ele afirma que os marxistas reconhe-
privilegiar de certos marcos teóricos e propostas seculares, essa
cem que, de Thomas Munzer a Camilo Torres, a fé cristã tem
corrente de pensamento se aproxima mais do campo das teorias
apresentado uma "dimensão de protesto" em determinados epi-
políticas do que da teologia como convencionalmente entendi-
sódios históricos. Defende, ainda, uma atitude de "compreen-
da.
são e respeito" em relação à religião, desde que ela não seja ca-
É mais certo se falar em teólogos da libertação do que em
nalizada para a política pelo lado contrário. A religião tem um
uma teologia da libertação, em virtude das diferenças entre os
papel significativo agora e só viria a se extinguir, naturalmente,
seus expoentes, que descem inclusive a aspectos bem específi-
na sociedade comunista.
cos (luta armada versus via pacífica, por exemplo).
Para o marxista é absurdo pretender promover uma superação
Deliberadamente ou não, procura-se fazer de Marx um novo
da ideologia religiosa sem que tenha sido anteriormente criado
Aristóteles. No caso, o pensamento liberacionista teria o papel
o mundo que, em princípio, pode vir a tornar desnecessária tal
de um novo tomismo, na tentativa de elaborar uma nova Summa,
ideologia (Id., ibid., p. 65).
a serviço não sabemos de que tipo de Sacro Império ...
Alguns autores são mais explícitos sobre a natureza dessa nova Segundo Konder, os marxistas não acreditam no caráter du-
ordem política. Leonardo e Clodovis Boff, por exemplo, fazem radouro e conseqüente do cristianismo como tendo função re-
uma opção clara pelo socialismo, do tipo democracia popular, volucionária, nem que ele venha a suplantar o marxismo como
pela via pacífica (por não haver, no Brasil, condições para uma "guia para a ação" da emancipação das massas populares e da
revolução rápida e violenta), em aliança transitória dos traba- revolução socialista. Crêem que a alienação se manifesta não
lhadores com a pequena burguesia (por não haver condições somente na passividade, mas em formas inadequadas de ação.
para um partido de classe trabalhadora). No artigo "Comunida- Opinião semelhante é a do ex-deputado cassado Márcio
des Cristãs e Política Brasileira", na Revista e Civilização Brasileira Moreira Alves:
de setembro de 1978, os autores afirmam: "Em termos táticos a [...] os que baseiam as suas esperanças de uma profunda trans-
luta se faz contra o regime. Em termos estratégicos ela se faz formação do regime político e social do Brasil na mobilização
contra o partido de oposição". Como eles condenam os partidos militante da Igreja Católica enganam-se redondamente. Alguns
católicos (democrata-cristãos) como burgueses e não acreditam setores da Igreja poderão contribuir para essas transformações. A
na social-democracia, sua visão de participação na democracia Igreja poderá adaptar-se a uma sociedade transformada. Alguns
226 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 227

setoresda Igrejapoderão adaptar-sea uma sociedadetransformada. Qual o futuro político do catolicismo romano no Brasil?
Mas não estará na vanguarda das lutas necessárias para a realizar. Embora longe se vão os dias da LEC e da luta antidivorcista de
Não há atalhos para a revolução. Os que passam pelas sacristias Mons. Arruda Câmara (deputado federal por várias décadas e
não vão mais longe que qualquer outro. (ALVES, 1979, p. 259.) tio de Diógenes de Arruda Câmara, um dos fundadores do PC
A partir de 1965 o clero dito progressista começou a forjar o do B), a Igreja Romana tende a continuar como igreja oficiosa,
principal canal institucional para a sua ação: as CEB's (Comuni- no nível formal, no Brasil. As elites políticas reiteram, quase sim-
dades Eclesiais de Base), que tomaram notável impulso a partir bolicamente, sua adesão à religião católica. A Virgem de
de 1970. Organizadas nacionalmente aos milhares, as CEB's pro- Aparecida, quando de uma visita de João Paulo 11, foi reconheci-
curam justificar teologicamente a sua existência na doutrina do da oficialmente como padroeira do Brasil, ganhando um feria-
Povo de Deus conforme entendida pelo Concílio Vaticano 11. do (12 de outubro) por iniciativa do Poder Executivo e com a
Funcionando paralelamente às paróquias (com direção e ativi- aprovação do Congresso Nacional, em ato claramente
dade próprias), elas não possuem, no entanto, nem status jurídi- inconstitucionaI. O núncio apostólico continuará sendo
co canônico, nem vínculo formal com a instituição eclesiástica. prestigiado pelo Itamaraty e os espaços da imprensa continua-
Essa "igreja do povo", ou "igreja dos pobres", (em contraste rão generosos para com as notícias católicas.
com a igreja tradicional) tem funcionado como instrumento de Se o regime continuar a abrir e a democracia se consolidar, a
mobilização e organização popular local, e como lugar de en- importância política da Igreja tenderá a diminuir, não somente
contro para a reflexão em torno dos problemas comunitários. Ali, pelo fortalecimento dos partidos e dos sindicatos, mas pela con-
) em geral, esses problemas se constituíam em ponto de partida
para a leitura do evangelho, um típico exercício da teologia da
corrência de diversas propostas, que é o natural de uma socieda-
de pluralista. O desaparecimento do adversário em comum (mi-
~'
libertação. Embora variando de ênfases regionais, as CEB's sem- litares, Lei de Segurança Nacional ete.) deverá resultar em uma
pre tiveram uma crise de identidade: igreja? organização para- queda do nível de coesão interna, com o nítido controle da CNBB
eclesiástica? associação de moradores? partido? sindicato? Em pelos moderados, sintonizados com João Paulo 11, e clara des-
sua história vemos grupos que surgiram e desapareceram, gru- vantagem para os conservadores e os progressistas. Os pensado-
pos que reforçaram a vida paroquial, sindical ou partidária (do res mais avançados (além dos processos pendentes no Vaticano)
PT, principalmente) e até mesmo o fato pitoresco de uma CEB tenderão a permanecer como generais sem tropas, sem arrebatar
que virou igreja pentecostal. as massas de cabeças feitas pela velha ideologia da velha igreja,
As CEB's têm encontrado uma série de problemas em seu pela consciência conservadora (Mercadante), pelo homem cor-
processo de institucionalização. A burocratização de suas es- dial e pelo Carnaval (essa gente parece que não leu Gramsci).
truturas seria uma tentação (como apontam os puristas) ou uma Massas rurais, vivendo o pré-rnoderno, votando no partido
necessidade de natureza sociológica para a sua sobrevivência e do governo. Massas místicas, massas sincréticas, massas das sei-
eficácia? Como podem elas, com sua carência de identidade, tas.
competir com instituições de papéis sociais mais definidos? É As elites se secularizam e as classes médias se abrem para o
possível que na mente de seus teóricos (e dos animadores lo- protestantismo ou para os movimentos católicos conservado-
cais) haja duas tendências opostas: gerar uma nova experiência res, como a Renovação Carismática Católica. Sofrida classe mé-
eclesiástica (de sabor anabatista) ou gerar um forte partido po- dia, sem líderes e sem identidade. Metade sofrendo (pela pres-
pular. As CEB's constituíram um movimento autenticamente são do consumismo) porque não é rica e metade sofrendo (pela
leigo, ou o clero teria tido um papel tutelar (embora sutil), como pressão das esquerdas) porque não é pobre. Classe média sem
é a norma em uma igreja hierárquica? teologia e sem pastoral. Ao menos para sobreviver, a Igreja
Religião e Política no Brasil- 229
228 - Cristianismo e Política

Romana deverá voltar a uma ênfase mais "religiosa". Um convênios, nomeações para cargos importantes, convites a
pluralismo de propostas poderá surgir entre os seus leigos com pastores para cursar a Escola Superior de Guerra ete. Comporta-
o centro voltando a ser, a partir do papa e da CNBB, legitimado. mento semelhante foi adotado por outros regimes autoritários
O compromisso com os pobres continuará, mas a velha Igre- do continente. Os evangélicos, no passado uma minoria discri-
ja de Roma, com todo o seu acervo de vivência política, não minada, que por tanto tempo orara pelo livramento, saudaram
embarcará na canoa furada de uma revolução que poderá devorá- de bom grado a nova situação, uma verdadeira "bênção", e se-
Ia ou mandá-Ia silenciosa para as sacristias. Uma ameaça real à guiram inexoráveis no caminho da constantinização.
esquerda provocaria outro tipo de unidade e novas Marchas da A ingenuidade, o baixo nível de instrução, a reduzida experi-
Família poderiam ser revividas. Que a Igreja Romana entre nós ência política e a credulidade tornaram os evangélicos presas
não é mais a mesma é verdade, mas que em seu amplo e mater- fáceis, cordeiros nas mãos de lobos. Nem todos eram inocentes,
nal seio há lugar para todos os gostos (vide posições e práticas a e muitos foram perdendo a inocência pelo caminho, maculados
partir dos cardeais) também é verdade. As últimas eleições têm por benesses e mordomias, co-autores de delito, manipuladores
demonstrado a falácia do "voto católico". Esse voto se encontra de seus irmãos. O antipoliticismo foi, aos poucos, sendo substi-
do PDS ao PT, cujo limitado desempenho eleitoral foi um sério tuído pelo adesismo. Participar da política era válido, desde que
revés para os progressistas. Exatamente como e por onde não se a favor do governo. Rapidamente Romanos 13, com sua original
pode antever, mas que a saída católica será reformista, disso interpretação, foi promovido a "texto áureo" dos evangélicos
podemos estar seguros. ARENA-PDS. Votar na oposição passou a ser pecado. Uma vi-
Se o movimento de 31 de março de 1964 pudesse ser compa- são maniqueísta passou a ter a oposição como constituída de
rado a uma composição ferroviária que é forçada a seguir por maus: os comunistas. Na maioria das igrejas, quem não pen-
um desvio (em 1968), poderíamos dizer que a maioria da lide- sasse assim seria perseguido ou posto "no gelo". O protestan-
rança da Igreja Romana resolveu descer na primeira estação após tismo, ex-arauto da democracia e do progresso, vestiu a rou-
a entrada no desvio. Os católicos vinham ocupando os vagões pa do integrismo e da Contra-Reforma. Um protestantismo
da primeira classe e os evangélicos, os vagões da segunda classe. tridentino, por sui generis que pareça, foi o que passamos a
Quando aqueles desceram, estes foram convidados a se muda- conhecer.
rem para os vagões da primeira classe (com acesso ao carro-res- É claro que um remanescente fiel permaneceu em pratica-
taurante) e o fizeram com prazer, ficando imensamente agrade- mente todas as igrejas e denominações. Gente que não se esque-
cidos pela. deferência. A viagem pelo desvio durou mais de uma cia da herança reformada na história. Gente que se sentia soli-
década. Apesar do desconforto de alguns trechos, inclusive dária com a política de luta em favor dos direitos humanos leva-
ataque de índios, a tripulação não cessou de se esforçar em da a cabo pelo presidente Iimmy Carter (ele mesmo um diácono
tratar bem os passageiros. Poucos foram os que resolveram des- batista), que aqui foi procurado pelo cardeal Arns e malvisto
cer do trem e seguir viagem por outro caminho e outros meios por seus irmãos evangélicos. Esse fermento de discordância era
de transporte. encontrado principalmente entre os jovens. Infelizmente,
Encantados com o "desenvolvimento" e a "segurança", bem muitos deles, ao chegarem à vida profissional, eram rapida-
como com a "liberdade religiosa", os evangélicos foram se tor- mente cooptados pelo sistema, em troca de empregos e pri-
nando, a partir da década de 70, juntamente com os maçons e vilégios.
os kardecistas, sustentáculos civis do regime. Compreendendo a Esse oposicionismo protestante se manifestou em duas ver-
perda dos passageiros católicos progressistas, o regime procurou tentes: uma de tendência liberal em teologia e de tendência
investir ao máximo nos protestantes: visitas de cortesia, empregos, socialista em política, e a outra de tendência conservadora em
230 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 231

teologia e de tendência liberal em política. Os do primeiro elaborando em torno da noção de evangelho integral
grupo, geralmente contactados com o CMI (Conselho Mun- (holístico).
dial de Igrejas), fundaram, em 1973, em Salvador, na Bahia, a No Brasil, essa tendência foi acolhida principalmente entre
CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço) e subscreveram o membros de movimentos interdenominacionais, como a Alian-
comentário religioso da Declaração Universal dos Direitos Hu- ça Bíblica Universitária, primeiro, e a Visão Mundial, depois.
manos da ONU, amplamente distribuído: Igreja Metodista, Igreja Em março de 1978, foi criado, no Nordeste, o MeDC (Movi-
Episcopal, Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo e mento Cristão Democrático de Centro), com uma base de fé
Missão Presbiteriana do Brasil Central. A esses foram se juntan- conservadora, se definindo como "um movimento evangélico
do a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, a Federa- de orientação política", com o lema: "Por um país governado
ção Nacional de Igrejas Presbiterianas e outros, que participari- por homens governados por Deus". O MCDC assim justificava a
am, no âmbito continental, da formação do CLAI (Conselho sua opção pela democracia e pelo centro:
Latino-Americano de Igrejas) e, em nível nacional, do CONIC Pela democracia porque cremos que, historicamente, os cristãos
(Conselho Nacional de Igrejas Cristãs). evangélicos são dos maiores responsáveis por sua existência e
Minorias em denominações conservadoras também se iden- desenvolvimento. A democracia tem andado mais junto com o
tificaram com essa posição, como foi o caso dos pastores e lei- protestantismo do que com qualquer outra confissão religiosa.
Porque a democracia permite um controle mútuo entre os peca-
gos batistas que organizaram, no Recife, o GEEP (Grupo Evan-
dores no governo e o povo pecador, evitando a anarquia ou a
gélico de Estudos Políticos). Apesar do posicionamento tantas
tirania. Como afirmou conhecido teólogo: 'O senso humano por
vezes coerente e corajoso desses irmãos, não havia um maior justiça torna a democracia possível, sua tendência para a justiça,
respaldo dos evangélicos oposicionistas devido a duas razões porém, torna a democracia imprescindível. Porque a democra-
principais: 1) simpatia desse pessoal com a teologia da liberta- cia é mais consentânea com os valores cristãos'. Pelo centro, por-
ção; 2) um ecumenismo inclusivista, com tendência à prática de que a história atesta que a extrema direita e a extrema esquerda
um reboquismo em relação à CNBB (suspeita reforçada com a tendem ao totalitarismo ou ao autoritarismo, e que a centro-di-
entrada da CNBB no'CONIC e a eleição de Dom Ivo Lorschaiter reita e a centro-esquerda, embora defensoras da democracia, ten-
como seu presidente). A tendência dessa corrente era militar dem para uma visão unilateral. O centro, ou o centrismo, não é
partidariamente no PT ou no PMDB. uma posição de comodismo, de neutralidade passiva, mas um
A segunda tendência é aquela mais sintonizada com o Movi- movimento de compromisso com a democracia, com a justiça
social, em um espírito de abertura e diálogo.
mento de Lausanne (fruto do Congresso de 1974, na Suíça),
com o CLADE II (2 o Congresso Latino-Americano de O MCDC realizou reuniões e conferências em vários Estados,
Evangelização, Bogotá, 1979) e com o movimento do Estilo de enviando seu boletim Presença e Identidade para a maioria das
Vida Simples, no seio da Aliança Evangélica Mundial (Congres- igrejas. Embora não-partidário, no Nordeste os seus militantes
so de Hoddesdon, Inglaterra, 1980). Em nível continental, essa tenderam a se filiar ao extinto PP (Partido Popular), como uma
tendência tendia a se identificar com a Fraternidade Teológica tendência social cristã, sendo incorporados, depois, ao PMDB.
Latino-Americana (fundada em 1970, em Cochabamba, Bolí- No Sudeste, liderados pelo sociólogo batista Luís Paulino, al-
via) e seus pensadores mais articulados, como René Padilla, guns tentaram fundar o PDC (Partido Democrata-Cristão), abri-
Samuel Escobar e Pedro Arana, todos originalmente obreiros da gando-se, posteriormente, no PDT (Partido Democrático Traba-
Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos. Esse lhista).
grupo tem buscado uma alternativa evangélica para o dilema: Embora essa tendência, confessionalmente conservadora,
alienação versus conservadorismo versus teologia da libertação, fosse constituída, principalmente, de liberais-progressistas,
232 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 233

democrata-cristãos e sociais-democratas, no início dos anos 80 existem simpatizantes das propostas políticas elaboradas pelos
surgiu uma ala de opção socialista, inclusive de militância no grupos e denominações teologicamente conservadores entre os
PT. Um dos expoentes dessa opção, vagamente denominada membros de grupos e denominações mais liberais. No conjun-
socialismo democrático, definido como "um modelo social sem to, porém, ambos os grupos formam apenas uma minoria (em-
nenhuma espécie de opressão", foi o jovem pensador gaúcho bora crescente) diante dos alienados e dos adesistas.
Eurico Schoernardie. A suspensão da censura à imprensa e às publicações nos últi-
Algumas dessas tendências estiveram entre os idealizadores e mos anos da década de 70 provocou um "reavivamento" edito-
organizadores da CONELA (Confraternidade Evangélica Latino- rial marxista. Tornou-se até difícil encontrar livros de outras cor-
Americana), idéia surgida nos corredores do Congresso de rentes. Os longos anos de repressão sobre o movimento estu-
Lausanne e que tomou corpo nas horas vagas do Congresso de dantil, por sua vez, concorreram, quando de sua reorganização,
Pattaya (1981). O objetivo dessa entidade continental de coope- para uma ocupação de quase todos os espaços por seguidores de
ração intereclesiástica era ser um ponto de convergência entre suas tendências. Há toda uma geração politicamente
os evangélicos conservadores, mantendo um pluralismo quan- conscientizada de modo unilateral: só estão lendo de um lado,
to ao político-ideológico ou o político-partidário. O artigo 2 o desconhecem outras propostas, ou não sabem sequer que elas
de seus Estatutos declara: "1) [a] CONELA se identifica com a existem, e se sabem são de antemão contrários.
declaração de princípios estabelecidos pelo Pacto de Lausanne". Muitos evangélicos têm sido tocados por essa atmosfera. Ade-
Incompreensivelmente, setores brasileiros ligados ao CLAI rir à política está certo, desde que pela esquerda. Na hora da
procuraram desencadear uma campanha difamatória, pela im- opção partidária a escolha recai sobre aquela agremiação que
prensa nacional, em relação à CONELA, com afirmações tais mais se ajusta à sua antiga estrutura mental religiosa: um parti-
como: "a CONELA acabará por se tornar um covil de caça às do sectário, purista e maniqueísta, cujos integrantes se sentem
bruxas, do macartismo latino-americano e da visão de comunis- os bons, os salvos, vendo no PDS o homem natural, o homem
mo por toda parte" (Folha de São Paulo, 10/03/82), ou ''[. ..] acu- caído e não regenerado, e no que chamam de capitalismo iden-
sa a CONELA de pregar a "teologia de Hitler" por causa da pre- tificando o pecado e "o mundo". O PMDB seria o crente carnal,
sença, entre seus fundadores, de um famoso pregador argenti- que não venceu as velhas inclinações e se mistura com o mun-
no, Luis Palau" (Jornal do Brasil, 28/03/82). Tal linguagem agres- do. O PTB seria o crente desviado, mais para o lado do mundo
siva e caluniosa apenas atesta a incapacidade de certos círcu- do que para o lado da verdade: o socialismo. O PDT seria uma
los ecumênicos (fundamentalismo de esquerda) de convi- denominação meio suspeita, liderada por um falso profeta. E
ver com um autêntico pluralismo, que é admitir a existência dos assim por diante, prosseguem em seu zelo missionário, a decre-
que pensam de modo diferente, respeitando suas opções. Essas tar a predestinação dos pobres (o que os exclui), ameaçando a
acusações são ridículas quando se sabe que a CONELA teve en- burguesia com o fogo dos infernos (e outros fogos anteriores),
tre os seus idealizadores o evangelista argentino Samuel Libert, exorcizando os maus espíritos da classe média (o que os in-
socialista e malvisto pelo regime militar, ou que o 2 o vice-presi- clui). Poucos estão conscientes de que tiveram a cabeça feita
dente de sua comissão organizadora, um brasileiro e episcopal, pelos amigos trotskistas e outros "missionários" (alguns "con-
era candidato a deputado pelo PMDB. gregados" ao PMDB), e de que pela enésima vez os cristãos
Se é verdade que existem simpatizantes das propostas elabo- estão trocando um reboquismo por outro.
radas pelos grupos e denominações teologicamente mais libe- Eram cristãos assim que se escandalizavam com os irmãos
rais entre os membros de grupos e denominações teologicamente que militavam no antigo PP (Partido Popular), tidos como
mais conservadores, a recíproca é igualmente verdadeira: "católicos mansos" (como os velhos protestantes radicais
234 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 235

alcunhavam os moderados) ou "governistas encabulados". Esse Nos países desenvolvidos o fenômeno da mobilidade social
negócio de ser "de centro", Deus os livre. Não se pensava no se deu em escala maciça, sendo possível hoje classificar a maior
realismo de uma proposta alternativa liberal, nem no valor de parte da população como integrante do estrato médio, usufru-
uma corrente democrata-cristã. É esclarecedor o diálogo travado indo seu padrão de bem-estar. Enquanto isso a maioria dos líde-
entre o ex-deputado Márcio Moreira Alves e um repórter de um res de esquerda dos países não-desenvolvidos é oriunda da clas-
seminário alagoano: - "Você define o PMDB como o partido se média (quando não da alta), mas não assume essa situação;
de centro-esquerda, no entanto esta composição com o PP le- antes quer ser uma espécie de médium da classe operária (van-
vou o PMDB mais para um centro conservador ... M.M. Alves guarda, consciência da classe dos outros) sem que se pergunte
(interrompendo): Centro não é conservador. Conservador é di- aos espíritos se eles querem baixar neles ou se preferem outras
reita." (JornalOpinião,13j02j83.) formas de materialização. Essa gente tem raiva da classe média,
Os protestantes de esquerda costumam apontar como terrí- porque ela "atrapalha" a revolução (algodão entre vidros), ou
vel fenômeno o fato de que as igrejas estão ascendendo para a porque desmente análises pretéritas de seus gurus, que eles ele-
classe média. Por que lamentar? Por que tanta celeuma em tor- varam a dogmas de fé. Entre os sistemas teóricos e os fatos, é
no da classe média? Primeiro, ela não consta dos tempos bíbli- melhor acabar com os fatos ou desconhecê-los (a classe média é
cos, daí ser fácil a dicotomização opressores versus oprimidos. um fato).
Segundo, ela não consta dos tempos em que viveram os grandes O cristão de classe média não tem por que se envergonhar de
teóricos dos séculos passados, daí o uso de suas categorias sua situação. Antes deve assumir a sua identidade, mas rejeitar a
dicotôrnicas opressores versus oprimidos. A industrialização eo tentação da classe alta (apelo consumista, alienação, indiferen-
fortalecimento do setor terciário possibilitaram a expansão ou o ça ao drama dos pobres) - rejeitar como idolatria. Mas, igual-
surgimento de estratos intermediários: artesãos, agricultores, mente, deve rejeitar a mistificação da pobreza ou o neo-
comerciantes e industriais de empresa do tipo familiar (os anti- rousseauísmo (o "bom pobre") ou o neocalvinismo avesso
gos pequenos burgueses), e um número maior de profissio- (predestinação dos pobres). Como o ideal não é a socialização
nais autônomos e empregados qualificados, melhor remunera- da miséria, mas do bem-estar, ele deve consolidar a sua classe,
dos, porém, assalariados. ao mesmo tempo em que deve se aliar aos pobres para provocar
A esse fato agregue-se o conceito de mobilidade social vertical mudanças estruturais que ampliem a possibilidade de ascensão
(ascendente ou descendente). Quanto maior a possibilidade das massas, que é o caminho da mobilidade social. Isso resulta-
dessa mobilidade, menor a possibilidade da luta de classes. rá no fortalecimento do mercado interno, na circulação das ri-
Quanto maior a possibilidade de pessoas, famílias e grupos quezas e na redução das desigualdades.
mudarem de classe, menor o antagonismo em relação às classes Afinal, revolucionários ou reformistas não advogam um mun-
superiores (não se é contra elas, mas contra o fato de não ser do novo formado por milionários ou por miseráveis, mas um
parte delas), e menor a solidariedade com a própria classe. O mundo em que todos tenham trabalho, alimento, moradia, edu-
homem natural não busca a conquista do bolo em conjunto se cação, saúde e lazer. Nem mais, nem menos do que a classe média
pode cornê-lo sozinho. A maioria dos pensadores e líderes de tem construído através da história. Chega de hipocrisia: o pa-
nosso tempo tem saído da classe média (ou classes médias), drão é a classe média!
que, por não ser responsável direta pela exploração (como a classe O que indicam as pesquisas eleitorais no Brasil? Votam no
alta proprietária) nem viver apenas lutando pela mera sobrevi- governo os ricos e os pobres. Vota na Oposição a classe média.
vência (como a classe baixa), dispõe de condições de melhor São dados quantitativos: a oposição tende a vencer onde há uma
instrução e tempo livre para a atividade intelectual. classe média forte e numerosa, e tende a perder onde há um
236 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 237

bolsão de marginalidade e ignorância. Os setores operários mais sempre ligada a uma dimensão vertical: o pacto dos eleitos. Como
articulados são aqueles que já atingiram um padrão de classe implementar o reino em um ambiente que não reconhece o Rei?
média. Talvez o setor mais reacionário da classe média seja o Como estabelecer um sistema sem opressão regido por
setor protestante. O erro, então, não está na situação da classe inconversos?
em si, mas na ideologia daquele setor. A visão do homem segundo Maquiavel e Adam Smith ("cada
Alguns cristãos defendem um sistema "sem nenhuma forma um quer primeiramente a sua melhora") parece corresponder
ou espécie de opressão". Onde encontrá-lo na história? Onde mais à visão bíblica ("não há um justo, nem um sequer") do
encontrá-lo hoje? A questão não pode ser reduzida ao fato de que à visão de Rousseau (o homem bom, corrompido pela soci-
que o sistema A ou B é "intrinsecamente mau" e "incompatível edade, o "bom selvagem", ontem, o "bom pobre", hoje). Os
com o cristianismo", ou vice-versa. Há uma questão mais pro- teóricos capitalistas propuseram a realização do bem-estar geral
funda, de caráter ontológico: a natureza do ser, o problema do pela convergência dos interesses individuais egoístas (o bem se
mal e a extensão do pecado. O cristianismo coexistiu com todos consegue pela soma, canalizada, do mal de cada um). Os teóri-
os sistemas e regimes, e coexistirá com muitos outros, devendo cos socialistas são, em sua antropovisão, discípulos de Rousseau:
exercer em todos um profetismo permanente. No encaminha- propõem a realização do bem-estar pela soma, canalizada, da
mento se dá a vivência da co-beligerância (Shaeffer), aliança bondade intrínseca de todos os - à erradicação das causas ex-
conjuntural e transitória com qualquer grupo secular, quando ternas que geram a maldade. Uma visão evangélica implicará
coincide com a realização de um valor do reino. uma discordância de ambas visões.
Para alguns cristãos a opção é posta em termos de capitalis- Estados ou denominações religiosas são governados por eli-
mo mau, comunismo mau e socialismo democrático bom. Sa- tes (de nascimento ou de qualidade), que são chamadas de clas-
bemos que não existe regime comunista sobre a face da terra ses dirigentes ou estamentos de poder. Democratizar o poder é
hoje, mas sim uma modalidade de socialismo estatizante sob a controlar essas elites e criar mecanismos que permitam uma cir-
fórmula política auto-intitulada Ditadura do Proletariado ou culação: a possibilidade de ascensão dos lide baixo" e de queda
Democracia Popular, que se diz a caminho do comunismo. dos "de cima". A essa visão, depreendida de Mosca, Pareto e
Chamar o comunismo de "bom" ou "mau" seria um pré- Weber, poderíamos acrescentar o estudo de Michels sobre os
julgamento. O comunismo mau a que se referem é de fato um quadros partidários oriundos do operariado: a especialização
socialismo (no caso, mau). Afirmamos ser aquele um socialis- implica um afastamento da atividade profissional anterior; o
mo, quando eles próprios acreditam ser o socialismo, por negar exercício do poder afasta os dirigentes das bases; a racionalidade
tal caráter à social-democracia, única modalidade historicamen- política termina por colocar em primeiro lugar a própria sobre-
te conhecida de socialismo democrático. vivência (ligada ao cargo, função ou posição) e, obviamente, a
Se os cristãos com essa postura não querem nada com o pri- sobrevivência do sistema. Um processo de democratização rea-
meiro tipo de socialismo (o do leste), nem com o segundo (tido lista deve levar em conta esses dados.
como burguês e europeu), então estão fabricando uma nova e Voltando à história, pode-se afirmar que foi notório o cresci-
original modalidade em um laboratório santo. Uma mistura de mento quantitativo do protestantismo brasileiro durante o perí-
utopia, poder do pensamento positivo, fé kierkegaardiana e ide- odo repressivo (1968-1978). A evasão de jovens diminuiu e as
alismo. conversões de pessoas de classe média eram vistas com mais
Não estamos no Israel teocrático nem na igreja primitiva, mas freqüência. As matrículas nos estabelecimentos de educação te-
em um mundo secularizado, agnóstico, materialista. A idéia de ológica atingiram índices mundialmente invejáveis. Sentia-se
um sistema novo, ideal, permeado pelos valores do reino, vem uma fase muito fecunda na produção musical e programas
238 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil- 239

evangélicos eram veiculados nas emissoras de rádio e televisão. Essa esperança, contudo, foi sucessivamente abalada por
Novas livrarias e editoras foram fundadas, com maior variedade alguns reveses da caminhada. A anistia ampla deixou impunes
de livros à disposição do público. Foi se tornando uma praxe os os torturadores e a campanha pelas Diretas Já (1984) foi derro-
cultos de ação de graças nas formaturas. Como eventos impor- tada pelas elites, que consolidaram a transição "lenta, segura e
tantes, destacamos a Cruzada Billy Graham Grande Rio (1974), gradual" pela via indireta do Colégio Eleitoral (Congresso Naci-
o Congresso Missionário (Curitiba, 1976), promovido pela onal). O pacto estabelecido em torno de Tancredo Neves foi frus-
ABUB, e o Congresso Geração 79 (já na fase de transição do trado (com sua doença e morte) com a ascensão de José Sarney
regime), promovido pela MPC. à presidência da República. A Assembléia Constituinte (87-88)
Numerosas delegações se fizeram presentes ao Congresso de se fez pela via congressual, que produziu um texto no geral avan-
Lausanne (1974) e ao CLADE II (Lima, 1979), porém com pou- çado, porém ineficaz por depender de regulamentações. Final-
ca presença tanto de oradores, como de debatedores, devido à mente, as eleições presidenciais de 1989, manipuladas
dificuldade de comunicação em idiomas estrangeiros, ao con- aeticamente pela mídia e pelo grande capital, resultaram no triun-
trole político dos congressos por grupos de outras nacionalida- fo do aventureiro e corrupto Fernando Collor de Mello. De certo
des e ao desconhecimento, lá de fora, de nossos expoentes. Em modo 100% do eleitorado ficou frustrado: metade (eleitores de
geral, preocupações brasileiras, como a evangelização dos cató- Luiz Inácio Lula da Silva) por ter sido derrotada e a outra metade
licos romanos (o documento Conclamação do Recife, 1980, foi (eleitores de Collor) por ter sido "vitoriosa" com a pessoa errada.
uma resposta a esse problema) e a luta contra o ocultismo, não Os avanços políticos (como no resto da América Latina) que
encontraram eco nesses fóruns. O rápido crescimento das igre- encerraram o ciclo de ditaduras militares baseadas na Doutrina
jas evangélicas no Brasil era apontado como exemplo, ao mes- da Segurança Nacional e pelo estabelecimento de democracias
mo tempo em que se chamava a atenção para suas fraquezas: constitucionais não se fez acompanhar de iguais avanços nos
mínima participação na tarefa de evangelização mundial, au- campos econômico e social. A estagnação econômica e os índices
sência de produção teológica autóctone, separatismo de pobreza e miséria levaram os anos 80 a serem chamados de
denominacional e pouca ênfase no social. "a década perdida". A liberdade duramente conquistada não
encheu a panela dos pobres.
A febre da liberdade na América Latina (enterrando seus regi-
Redemocratização e desalienação
mes discriminatórios) tem um lado positivo: atrasou em uma
Os anos 80 se constituiriam em uma década de profundas década a chegada à região da maré conservadora (moralismo +
mudanças políticas no Brasil. Revogado o Ato Institucional n" 5 neoliberalismo) que varria o Primeiro Mundo.
(AI-S), sustentáculo legal da ditadura e votada uma anistia recí- No campo das relações entre religião e política, a Igreja Ro-
proca, os prisioneiros políticos foram libertados, os exilados mana saiu respeitada pela atitude crítica da CNBB à ditadura e
retomaram, a censura à imprensa foi extinta e os partidos, sindi- pela ação de seus militantes progressistas ligados à teologia da
catos e outras associações da sociedade civil passaram a se orga- libertação em favor dos oprimidos e na promoção das organiza-
nizar livremente. Foi um reencontro da nação, sarando suas fe- ções populares. A CNBB, a ABI (Associação Brasileira da Impren-
ridas e reencetando sua caminhada histórica interrompida pelo sa) e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) se constituíram
arbítrio. O movimento editorial se tornou intenso: livros e tex- em linha de frente da sociedade civil quando os partidos e sin-
tos por longo tempo proibidos foram amplamente difundidos. dicatos estavam reprimidos. Muitos desses militantes católicos
A produção artística, cultual e científica foi revitalizada. Criou-se se empenhariam na organização do Pf (Partido dos Trabalhadores) e
um clima de esperança em uma embriaguez de liberdade. da CUT (Central Única dos Trabalhadores).
Religião e Política no Brasil- 241
240 - Cristianismo e Política

Com a volta da democracia a Igreja Romana teve seu peso Nas eleições presidenciais de 1989 os evangélicos organizaram
político parcialmente reduzido. Novos bispos conservadores movimentos de apoio a diversos candidatos desde o primeiro
foram nomeados e as CEB's (Comunidades Eclesiais de Base) turno. A liderança fisiológico-conservadora, com ampla base fi-
foram enfraquecidas. Posta sob suspeita, a teologia da liberta- nanceira, apoiava Collor de Mello, enquanto uma minoria pro-
ção viu Leonardo Boff condenado a um longo período de "ob- gressista organizava o Movimento Evangélico Pró-Lula. Proje-
sequioso silêncio". A ausência de uma espiritualidade que levas- ções estatísticas, a partir de algumas amostras, indicavam o voto
se mais a sério a transcendência e o desencanto com a institui- de 70% dos protestantes (90% dos pentecostais) em Collor de
ção concorreram para que milhares de militantes abandonas- Mello. A campanha se deu em clima de guerra fria, com a disse-
sem o espaço eclesial, entrassem em crise de fé e se secularizassem. minação de boatos sobre o pretenso ateísmo do candidato Lula,
Os protestantes liberais, perseguidos durante a ditadura pelo que perseguiria as igrejas.
regime e pelas igrejas, se organizaram em entidades de pesqui- Os anos 80 marcaram um visível avanço dos defensores da
sa, como o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Infor- teologia da missão integral da Igreja no Brasil, com a organiza-
mação) e o ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), ção da CBE (Comissão Brasileira de Evangelização), que, a par-
com respeitável produção acadêmica, mas reduzida ressonância tir do Pacto de Lausanne, promoveria o Congresso Brasileiro de
no conjunto dos fiéis. Evangelização (Belo Horizonte, 1993) e o Congresso Nordesti-
O protestantismo neofundamentalista teve de substituir o seu no de Evangelização (Olinda, 1988). Essa proposta teológica foi
discurso dos anos 70 ("crente não se mete em política") por um veiculada por organizações para-eclesiásticas, como a ABU, a
outro de presença conservadora ("crente se mete em política, Visão Mundial, a SETE (Sociedade dos Estudantes de Teologia
sim, desde que seja pela direita"). Na maioria das vezes a Evangélica) e a VINDE (Visão Nacional de Evangelização), em
ressonância desse discurso se fazia mais por um pragmatismo suas publicações e encontros, bem como em publicações de cir-
clientelista ("é dando que se recebe") e um irracional culação nacional, como as revistas Ultimato (Viçosa, Minas Ge-
anticomunismo do que por uma articulada opção ideológica. rais), Kerigma (São Paulo) e Contexto (Campinas, São Paulo).
Os evangélicos participaram de maneira reduzida, tímida e Papel importante na educação política dos evangélicos foi de-
individual da campanha pelas Diretas Já. Foi na campanha pela sempenhado por movimentos interdenominacionais e
Constituinte que houve uma presença mais nítida e articulada. suprapartidários, como o GEAP (Grupo Evangélico de Ação
O Movimento Evangélico Pró-Constituinte foi organizado na Política, Brasília, Distrito Federal) e o INESP (Instituto Evan-
maioria dos Estados. Candidatos "oficiais" foram lançados por gélico de Estudos, Sociopolíticos, Belo Horizonte, Minas Ge-
denominações pentecostais (antes baluartes da alienação), sen- rais ).
do vários deles eleitos, constituindo a maior representação de O avanço da teologia da missão integral da Igreja,
protestantes jamais vista no Congresso Nacional (34). Logo se compatibilizando piedade, sã doutrina e engajamento progres-
viu a divisão entre uma minoria progressista e a chamada Ban- sista, foi um fator decisivo para o surgimento de uma nova gera-
cada Evangélica, que se notabilizaria por seu fisiologismo e sua ção de líderes evangélicos envolvidos com a militância política
falta de ética. no nível dos partidos, sindicatos, diretórios acadêmicos e movi-
A vitória de alguns evangélicos para a Assembléia Constitu- mentos comunitários.
inte se deu em virtude da propagação de uma falsa informação: A década expirou com a explicitação da divisão político-
Tancredo Neves teria feito um pacto secreto com a CNBB para ideológica da crescente comunidade protestante brasileira,
tornar, de novo, o catolicismo romano a religião oficial do país. Os inseri da em distintas classes sociais, com divergentes visões e
evangélicos deveriam ser eleitos para salvar a liberdade religiosa. interesses.
242 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 243

Conservadorismo e misticismo Foi criada a AEVB (Associação Evangélica Brasileira), pretendendo


representar a comunidade protestante. Já existindo havia anos a
A década de 90 se iniciou com o fiasco administrativo, político OMEB (Ordem dos Ministros Evangélicos do Brasil), foi criado
e ético da presidência de Collor de Mello. Ele aderiu à onda também o CNPB (Conselho Nacional de Pastores do Brasil).
neoliberal (reavivamento do capitalismo) de subalternidade dos Tendo os círculos ecumênicosjconciliares já formado o CONIC
interesses nacionais ao capital estrangeiro e ao mito "mercado", (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), era possível prever uma
de desastrosas conseqüências sociais por onde foi implantado. década com vários pólos de "unidade", refletindo a diversidade
A reação da sociedade civil levou à sua destituição por meio de teológica e ideológica.
um impeachment. Esse episódio teve forte impacto sobre a co- O crescimento protestante foi acontecendo mais pelo
munidade protestante, que,: majoritariamente, o elegera. pentecostalismo popular, com igrejas como Deus é Amor, Casa
A onda conservadora que marcara o Primeiro Mundo na dé- da Bênção e Universal do Reino de Deus. Novas ondas
cada anterior tanto no campo político e ideológico quanto no carismáticas surgiram no seio das denominações históricas, po-
ético e teológico finalmente chegou ao Brasil. O tema da res- rém sem a densidade do movimento de renovação espiritual dos
ponsabilidade social da igreja, o estilo de vida simples como anos 60. Houve um distanciamento das antigas formas litúrgicas.
ideal cristão e a teologia da missão integral da Igreja cederam O sermão passou a ser pouco valorizado, com o culto centrado
lugar ao ensino de que "crente não peca", à teologia da prospe- no "louvorzão" de corinhos emocionais e verticalistas.
ridade, à batalha espiritual e às maldições hereditárias. A aliena- O grande fenômeno religioso da primeira metade dos anos
ção e a fuga mística substituíram o compromisso histórico. O 90 foi o aparecimento misterioso de "dentes de ouro" na boca
best-seller do período foi o romance Esse Mundo Tenebroso, de dos féis.
Peretti. O neofundamentalismo voltava ao ataque. Na área política, o festival de candidaturas evangélicas era
Os círculos liberais foram afetados por uma crise de esterili- crescente em cada pleito legislativo e a divisão ideológica do
dade, desencanto e misticismo sincrético, particularmente na complexo e diferenciado mundo protestante se tornava cada vez
teologia da libertação. Leonardo Boff, ameaçado com um "ob- mais explícita. Os episódios de falta de ética entre os políticos
sequioso silêncio" perpétuo, deixou o sacerdócio. protestantes fisiológicos arranharam a imagem desse segmento
O núcleo dos evangélicos que apoiaram Lula no segundo tur- religioso perante a opinião pública, como no escândalo da Co-
no organizou o MEP (Movimento Evangélico Progressista), esti- missão de Orçamento do Congresso Nacional.
mulando a militância nos movimentos populares, no movimento Amplos setores protestantes, especialmente pentecostais, con-
estudantil, nos partidos de esquerda e nos sindicatos filiados à tinuavam insistindo na eleição de um político "crente" para a
CUT. Embora minoritário, o MEP era crescentemente expressivo. presidência da República.
Nem todos os evangélicos influenciados pelo movimento de A abertura política gerou insegurança entre muitos líderes
Lausanne avançaram em uma direção progressista, inibidos, in- evangélicos: o temor de uma situação nova e da repetição de
fluenciados ou cooptados pelo neofundamentalismo e pelo "re- problemas passados. De repente, várias correntes desafiadoras
alismo" exigido pelo relacionamento com a elite protestante e para o cristianismo que estavam fora de circulação voltaram a
com as centrais religiosas estrangeiras. rondar a juventude, exigindo redobrado trabalho pastoral e
Um melhor relacionamento entre os círculos ecumênicosj apologético, que nem todos se consideravam aptos a realizar.
conciliares e os evangélicos progressistas passou a ser tentado Houve, inclusive, quem preferisse uma volta aos "bons tempos"
por entidades como o CEBEP (Centro Evangélico Brasileiro de do fechamento, quando os infiéis estavam contidos e tudo
Estudos Pastorais) e outras. corria bem para a Igreja.
244 - Cristianismo e Política Religião e Política no Brasil - 245

É preciso, portanto, se ter uma visão científica e, ao mesmo social somente terão êxito se lideradas por movimentos que
tempo, pastoral dos cristãos alienados ou conservadores. Mui- compartilhem da mesma confessionalidade. Enquanto essas mu-
tos estão assim por ignorância ou ingenuidade. Embora não es- danças forem propostas por pessoas ou grupos de outras ten-
tejam isentos de um julgamento diante de Deus e da história dências teológicas, terão menos condições de aceitação.
(por participarem de um sistema, em seu conjunto, injusto), Muitas vezes um sentimento de frustração ressalta os mais
muitos atuam a partir de uma reta intenção (patriotismo, conscientes. Haverá uma saída, uma mudança, ainda nesta gera-
moralismo, vocação) e exercem suas atividades segundo padrões ção? Ou, como certos profetas da antigüidade, somente os nos-
da moral bíblica individual. Outros, conscientes, se engajam por sos filhos, ou os filhos dos nossos filhos, viverão novo tempo?
carreirismo ou oportunismo, por fraqueza espiritual, estando, Não está a comunidade evangélica brasileira sob o juízo de Deus?
pois, em pecado. Não se deve esquecer o "bem setorial" pratica- Como esperar mudanças quando as denominações são gover-
do pelas tão criticadas igrejas pentecostais, em seu sistema de nadas com mão de ferro por líderes autocráticos, que, salvo as
ajuda mútua e vida comunitária, responsáveis por um tipo de honrosas exceções, apenas pensam em sua auto perpetuação, na
libertação concreta (por mais deformada que seja) que atinge escolha dos auxiliares e possíveis sucessores à sua imagem e se-
alguns milhões de homens. Se, para o grosso dos antigos protes- melhança, aferrando-se ao status quo, encarando toda mudança
tantes, esse regime foi libertador em relação às discriminações como uma ameaça? Como abrir os olhos do povo? Precisarão
passadas e às ameaças futuras, será preciso um lento e penoso ficar cegos e ser curados, como Saulo de Tarso? Ah! se fôssemos
trabalho para fazê-los entender, em todas as implicações, a or- unidos e conscientizados, o que faríamos com este país!
dem divina de se ser "uma bênção". O ministério profético que Parece que podemos parafrasear conhecido compositor po-
deve ser exercido a esses domésticos da fé passa, necessariamen- pular, constatando que "0 tempo passou na janela e só a Igreja
te, pelo caminho da humildade. - vIU
nao ." .
Setores crescentes das novas gerações estão em busca de no- O novo século e o novo milênio encontram um Brasil urba-
vos líderes políticos evangélicos, que conheçam a problemática no, feminino e envelhecendo, com renda, poder e propriedade
nacional e possam pensar em saídas refletindo teologicamente, perversamente concentrados. Um país dependente, com um Es-
de modo diferente da maioria dos antigos, que eram apenas bons tado enfraquecido depois de uma década do governo conserva-
moços, enquadrados nas diretrizes partidárias. Certa vez, em uma dor de Fernando Henrique Cardoso, com uma democracia for-
reunião, perguntou-se a um deputado federal evangélico o que mal dominada pelo capital e partidos e movimentos sociais en-
o distinguia dos demais colegas, como era o seu testemunho, fraquecidos, e carente de alternativas. A população, alienada pela
como sabiam que ele era crente. "É evidente - contestou -, eu mídia, pela escola e pela igreja, é consumista e hedonista em
não bebo nas festas da Câmara". Ao que um dos assistentes res- todos os níveis. Falta uma renovação de lideranças. A população
mungou baixinho: "E o que o distingue de um deputado não- evangélica cresceu, mas sua influência sociocultural e político-
crente que esteja com uma enfermidade hepática?" econômica é quase nula, em razão de sua escatologia pré-
Cremos que, em virtude de suas crenças e tradições, as trans- milenista e pré-tribulacionista, de seu desconhecimento dos
formações que a sociedade brasileira requer serão levadas a cabo ensinos sociais das Escrituras e da história do pensamento cris-
por partidos cujas propostas não impliquem rupturas traumáti- tão, do colonialismo teológico fundamentalista de origem nor-
cas ou antagonismos em relação às mesmas. Semelhantemente, te-americana e da secularização individualista e consumista. Com
sendo a maioria da comunidade evangélica constituída por pes- esse pensamento e essa atitude, mesmo se chegarmos a ser 90%
soas e instituições teologicamente conservadoras (cristianismo da população nada acontecerá, porque seremos 90% dos não-
confessante), as mudanças necessárias no campo político e influenciadores, sem proposta histórica. A falta de ética, de
246 - Cristianismo e Política

teologia social e de profetas, e a tentação teocrática ou a eleição


de um "iluminado" evangélico são tentações de desdobramen-
tos possíveis desastrosos.
O movimento pela unidade da Igreja, bem como a reflexão 13.
teológica, estão em baixa. Falta-nos um fórum que reúna a lide-
rança pensante, fecunda, que incorpore as novas gerações e que
tenha a coragem de dialogar com o novo mundo que nos cerca
e não insistir na repetição mecânica e estéril de velhas fórmulas:
"Como será o amanhã?"

PRESENTES E DIFERENTES

A realidade do Estado

V !VEMOS A ETAPAHISTÓRICA DO PODER INSTITUCIONALIZADO,


em que o Estado é a instituição. Toda a terra está delimitada por
fronteiras nacionais, em cujos territórios e sobre cujas popula-
ções autogovernadas se exercita o princípio da soberania. Sím-
bolos, como a bandeira e o hino, ou instituições, como as For-
ças Armadas e a burocracia, assemelham os Estados. O acelera-
do processo de descolonização dos anos 50 e 60 fez triplicar o
número de Estados nacionais com assento na Assembléia Geral
da Organização das Nações Unidas. A retórica internacionalista
do capital, do trabalho ou da religião não pode negar que o
nacionalismo é um fator político determinante nas relações en-
tre os povos.
O cristão, do nascimento à morte, é cidadão de um Estado. O
ordenamento jurídico vigente determina seus direitos e obriga-
ções mesmo antes do nascimento e após a morte. A Igreja de
Jesus Cristo, enquanto instituição universal, está inserida, em
suas parcialidades territoriais, em Estados respectivos. Conhecer o
Estado e a ordem política internacional possibilita ao cristão e à
Igreja buscar respostas em mensagens e comportamento que
248 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 249

sejam significativos e fiéis ao propósito de expansão do reino de Há gradações nos modelos autocráticos de Estado para Estado
Deus. ou de época para época dentro de um mesmo Estado. Os regi-
Algumas diferenças nos modelos de Estado são de importân- mes autocráticos são tidos como de direita ou de esquerda con-
cia menor para o cristão: centralização versus descentralização, forme sua proposta socioeconômica ou uma retórica conserva-
unitarismo versus federalismo, monarquia versus república. Es- dora ou revolucionária. Todos, porém, carecem de legitimidade
sas diferenças que, em geral, afetam menos o cotidiano dos ci- e são profundamente lesivos aos direitos humanos. Alguns des-
dadãos, podem, porém, em determinados momentos históri- ses regimes são de opção materialista, enquanto que outros são
cos, exigir uma opção que deve ser feita levando-se em conta a profundamente religiosos. Ainda outros se confessavam defen-
consecução do bem comum. Outras diferenças, contudo, são sores da civilização cristã.
cada vez mais de importância central para a vida das gentes. Os regimes autocráticos ou reprimem a religião ou procuram
Referimo-nos aos regimes políticos e aos sistemas econômi- instrumentalizá-la. Para uns a religião deveria ficar confinada
cos. aos templos e às consciências individuais. Restrita aos atos
litúrgicos, deve se voltar para as coisas do espírito e do além. O
Os regimes políticos que passar daí pode resultar em perseguição. O monismo ideo-
lógico desses regimes não lhes permite conviver com outras pro-
Os regimes políticos se dividem em autocráticos e democráti- postas de organização social. O exemplo mais extremado de
cos. Os regimes autocráticos são caracterizados pela ausência do autocracia materialista, atualmente, é a Albânia, onde inexiste
povo no processo decisório, pelo monopólio do poder político qualquer forma de organização religiosa. Enquanto isso o
por parte de uma fração minoritária, seja em termos de classe, fundamentalismo islârnico do Irã praticou um verdadeiro
raça, religião ou partido. Nesse tipo de regime, um líder genocídio contra os adeptos da fé Bahai. Por sua vez, minorias
carismático, uma oligarquia econômica, uma cúpula eclesiásti- protestantes, como as da Iugoslávia, afirmam sofrer menos res-
ca ou um partido único detêm o poder em nome da providência trições hoje sob um regime marxista do que no passado, quanto
divina ou do determinismo histórico, em nome do povo ou da a política da Sérvia e da Croácia estavam vinculadas ao catolicis-
classe operária. A maior parte dos Estados modernos vive sob mo romano e à ortodoxia oriental.
regimes autocráticos. Os cristãos conheceram as perseguições sob a autocracia de
Os regimes autocráticos se subdividem em autoritários e tota- Nero ou se associaram à autocracia de Constantino. Quando
litários. Os regimes autoritários não portam uma análise ou uma minorias, os cristãos podem cair na tentação essênia (fuga), na
proposta globalizante e mantêm, de modo mais nítido, a dife- tentação saducéia (perda de identidade e adesão ao sistema) ou
rença entre o público e o privado. Permitem à pessoa e às insti- na tentação zelota (derrubada do regime pelas armas). Difícil
tuições intermediárias uma esfera relativa de autonomia. Mo- mesmo é viver o ideal de uma identidade profética, de erigir
narquias absolutas e ditaduras caudilhescas são comuns, especi- uma igreja santa, como comunidade alternativa de valores evan-
almente nos países do Terceiro Mundo. Já os regimes totalitári- gélicos, que é desafio para qualquer dos modelos humanos
os são portadores de uma ideologia monista abrangente, em que absolutizados, e, ao mesmo tempo, poder cooperar com o regi-
praticamente desaparece a esfera do privado e o grau de inter- me em qualquer ação que coincida com os valores do reino.
venção estatal segue em um crescendo, visando a implantação Em nossa situação, em nosso momento e com os nossos con-
imediata ou progressiva de determinada utopia. O 3º Reich de dicionamentos, não podemos julgar esses irmãos ou dizer o que
Adolf Hitler e a ditadura do proletariado de Ioseph Stalin são eles devem fazer. Em alguns países islârnicos os missionários
protótipos de totalitarismo. cristãos apenas podem exercer sua responsabilidade social no
Presentes e Diferentes - 251
250 - Cristianismo e Política

a dignidade do trabalho a ser reconhecida e à obrigação de todas


campo da saúde, proibidos de proclamar o evangelho. Cristãos se as pessoas se submeterem a essa dignidade. Ele reconhece o pri-
convertem ao ouvir a mensagem pelo rádio e guardam a fé em mado dos valores interiores, os quais somente enobrecem o ho-
silêncio, proibidos por lei de mudar de religião. Em alguns paí- mem. A lei universal do amor e da caridade faz de cada homem
ses marxistas as igrejas podem possuir hospitais e asilos. Em nosso próximo. Nessa lei se baseiam as relações sociais do cris-
muitos países autocráticos (materialistas ou religiosos) a missão tão no mundo. (SCHUMAN, 1941, pp. 56-58.)
cristã pode ser reduzida ao evangelismo pessoal e à demonstra- O pluralismo cristão, inclusive em seu aspecto eclesiástico,
ção de amor em relação às carências mais profundas de seus foi vivenciado de modo mais amplo a partir da Reforma. Foi
concidadãos não-crentes. nos países de formação protestante onde se experimentou a de-
Como, nessas circunstâncias, concorrer para a expansão da mocracia de forma mais abrangente e estável. A crise da demo-
justiça e da liberdade como sinais do reino? Como demonstrar cracia se relaciona com o secularismo, com o afastamento dos
que não pode haver nova ordem sem conversão ao Criador? ideais cristãos. O pluralismo democrático tem garantido a ou-
Como demonstrar que a parousia não é utopia? Maior sofrimen- tras religiões e filosofias (inclusive materialistas) condições de
to não há do que ser julgado pelo que não se faz porque não se concorrer com o cristianismo como respostas às indagações exis-
pode fazer: cristãos acusados de serem alienados e alienantes, tenciais e como proposta para os dilemas históricos. Mais e mais
de não terem propostas históricas, enquanto são forçados à ali- o cristianismo vai se tornando, de fato, religião de uma minoria,
enação e impedidos de apresentar propostas históricas. assistindo à propagação de éticas individuais e sociais que lhe
Alguns Estados, por sua vez, vivem sob regimes democráti- são estranhas e antagônicas.
cos. Como há gradações nas autocracias, também há gradações Seria a mera evangelização uma garantia para a democracia?
nas experiências democráticas, variando de Estado para Estado Seria o aumento do número de convertidos garantia para um
e, dentro de um mesmo Estado, de uma época para outra. Os Estado livre? A conversão gera, automaticamente, uma consci-
regimes democráticos são caracterizados pela inclusão do povo ência e um compromisso com a polis? Infelizmente a história
no processo decisório, pela legitimidade do exercício do poder e comprova que não. O grande avivamento do leste africano in-
pela garantia dos direitos humanos. Eles são, por sua essência, cluía a noção de que um cristão "espiritual" não tinha nada a ver
pluralistas. A liberdade de associação e de expressão de pensa- com política. Cerca de 80% da população da Uganda era forma-
mento inclui a plural idade de organizações e propostas políti- da por cristãos. Seu preconceito e sua ignorância os levaram a
cas. Diferenciações regionais, econômicas ou raciais têm limita- apoiar, a dançar de alegria nas ruas pela ascensão, a ir em ação
do o aprofundamento da experiência democrática de alguns de graças ao templo pela vitória de um novo governante, de um
Estados. Outros, como os Estados escandinavos, têm podido vi- "libertador": Idi Amim Dada. Em 8 anos ele destruiu o país,
ver mais plenamente essa opção. deixando meio milhão de mortos, 300 mil viúvas e 800 mil ór-
Robert Schuman, o grande estadista democrata-cristão, cha- fãos, uma economia em bancarrota e a moral nacional dilacera-
mado de "o pai da Europa", afirmou: da. O que faltou aos cristãos de Uganda? O ensino de todo o
A democracia deve sua existência ao cristianismo. Ela nasceu no conselho de Deus, a doutrinação, o discipulado integral.
dia quando o homem foi chamado a realizar a digriidade da per- O Estado democrático é aquele que apresenta maiores possi-
sonalidade humana na vida temporal, na liberdade individual, bilidades para a realização da Igreja, mas que apresenta também o
no respeito aos direitos individuais e pela prática da fraternidade risco da acomodação e da influência dos valores que lhe são
universal do amor. Essas idéias não haviam sido formuladas an- concorrentes. De igual modo como quando sob a repressão, a
tes de Cristo. A democracia é, pois, ligada ao cristianismo tanto Igreja em liberdade também deve ser santa, como comunidade,
doutrinária quanto cronologicamente [...]. O cristianismo levou
Presentes e Diferentes - 253
252 - Cristianismo e Política

socialista. Semelhantemente ao que ocorre nos regimes políticos,


vivendo o ideal de uma identidade profética. Em uma ou outra
encontramos gradações e diferenças nos sistemas econômicos.
situação as mesmas tentações aparecem e a solução será sempre
Diferenças entre modelos teóricos, diferenças de prática e dife-
o estar sem ser.
renças entre os modelos teóricos propostos e as respectivas prá-
ticas.
Os sistemas econômicos Terminamos o século 20 sem resolver o dilema do século 19.
A história conheceu uma variedade de sistemas econômicos. Capitalismo e socialismo como categorias únicas e puras é algo
O debate no século 19 no Ocidente foi entre a opção pelo siste- que só existe na cabeça de teóricos ou no discurso político. Uma
ma capitalista e a opção pelo sistema socialista. Por capitalismo comparação entre os sistemas econômicos - deve ser feita en-
tre categorias iguais. Ideal com ideal e prática histórica com prá-
entende-se
tica histórica. O que não é aceitável é a tentativa de comparação
[...] o sistema em que os meios de produção são de propriedade
entre o ideal socialista e a prática capitalista, ou vice-versa. O
privada da pessoa ou de grupo de pessoas que investem o capi-
tal. O proprietário dos meios de produção, isto é, o capitalista, capitalismo e o socialismo se inserem nos movimentos utópi-
contrata o trabalho de terceiros, para a produção de outros bens, cos materialistas contemporâneos, filhos do mesmo pai - o
que, depois de vendidos, lhe permitem recuperar o capital inves- iluminismo - e da mesma mãe - a secularização. Adam Smith
tido e obter um excedente, que é o lucro. e Karl Marx, em seus escritos, no fundo prometem a mesma coi-
sa: prosperidade e fartura para todos, o reino dos céus na terra
Na verdade, nenhum país é totalmente capitalista, ora pela
feito pelo homem.
permanência de formas pré-capitalistas. como os agregados, os
Max Weber previu o fim das ideologias com a vitória da bu-
meeiros, os parceiros e o mecanismo da troca, ora pela existên-
rocracia. A racionalidade burocrática uniria os Estados em sua
cia de artesãos, pequenos comerciantes e agricultores, que não
funcionalidade operacional, em sua eficácia, em sua
empregam ninguém.
impessoalidade, em sua técnica. Se essa profecia de Weber pode
Por socialismo entende-se
ser tida como igualmente utópica, o que se pode notar na histó-
[...] uma teoria econômica (e uma prática política) que pretende ria é a crescente plural idade de modelos econômicos, em que se
abolir a conflito social, criado ou aprofundado pela Revolução
combina o velho com o novo. Em um país coexistem traços do
Industrial da segunda metade do século 18, entre a burguesia
feudalismo com o capitalismo, do feudalismo com o socialis-
proprietária dos meios de produção e, por outro lado, os operá-
mo, do capitalismo com o socialismo e do socialismo com o
rios que vivem de alugar a sua força de trabalho. As diferentes
teorias socialistas pretendem abolir essa situação, pela transfe- capitalismo. Se não se pode antever um sistema-síntese, pode-se
rência da propriedade dos meios de produção para a comunida- prever, a médio prazo, em razão mesmo do aumento da comu-
de. Conseqüência dessa transferência seriam a abolição do tra- nicação, da interdependência entre as nações e do culto pela
balho assalariado e a modificação total da constituição econô- eficácia, uma crescente inter-influência entre os sistemas e a
mica da sociedade, substituindo-se a liberdade de ação econô- sua conseqüente descaracterização como modelos "puros".
mica por um plano central (economia dirigida). Duas são as propostas socialistas em nossos dias: a marxista-
Erroneamente se fala em "regime capitalista" e "regime soci- leninista e a social-democracia. A primeira tem sido experimen-
alista". O que temos nos Estados atuais são tentativas de combi- tada pela chamada ditadura do proletariado da Rússia e pelas
nar determinados modelos políticos com determinados mode- chamadas Repúblicas populares. Inicialmente sob forte
los econômicos. Assim, pode-se falar de democracia capitalista hegemonia soviética, esses países tendem para um policentrismo,
ou autocracia capitalista, em democracia socialista ou autocracia a partir da experiência iugoslava, de cunho marcadamente
254 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 255

nacionalista. Houve tentativas de conciliar o modelo econômico Ocidental, América do Norte, Japão, Austrália ete.) há muito
(centralizador e estatizante) com formas políticas mais abertas evoluíram para formas neocapitalistas, abandonando o Laissez-
na Hungria, Tchecoslováquia e Polônia, o que resultou, porém, faire. A propriedade pública, o planejamento econômico, a in-
em violenta repressão. Historicamente, em virtude de suas pres- tervenção estatal no setor privado, o fortalecimento do movi-
suposições ideológicas, o marxismo-leninismo não conseguiu mento sindical e da previdência social, o crescimento das em-
se compatibilizar com o pluralismo democrático. A tentativa de presas de capital aberto e a mobilidade social ascendente das
abolição das classes sociais resultou no estabelecimento de soci- massas trabalhadoras para a classe média têm aproximado, na
edades estamentais. A "lei de bronze das oligarquias" denuncia- prática, o neocapitalismo do atual estágio do socialismo demo-
da por Michels seria, posteriormente, constatada por descrições crático.
como a de Djilas em A Nova Classe. Praticamente nenhuma A experiência brasileira como continuação do Estado portu-
das conquistas socioeconômicas das autocracias marxistas- guês foi de natureza patrimonialista: um Estado forte e uma so-
leninistas deixou de ser alcançada em experiências democrá- ciedade civil débil; um Estado dominado por um estamento de
ticas pluralistas. poder autoritário, historicamente intervencionista, inibidor da
A segunda proposta é aquela representada pelos partidos iniciativa privada e da democratização do poder. O
membros da Internacional Socialista. A maioria desses partidos patrimonialismo como forma pré-rrroderna de capitalismo im-
pouco exerceu o poder em seus países, não podendo, portanto, pediu a revolução burguesa e o desdobramento da experiência
implementar seu programa. Exceções são os partidos sociais- econômica que lhe é peculiar. Hoje o Brasil apresenta o mais
democratas da Escandinávia e os partidos trabalhistas da Crã- elevado índice de estatização fora dos países marxistas-leninistas,
Bretanha e de Israel, responsáveis pela construção do Estado de que é muito mais alto do que os pretendidos pelos partidos so-
bem-estar social (Welfare State). São herdeiros da tradição libe- cialistas. O que demonstra que nem sempre estatização é sinô-
ral dos socialistas pré-rnarxistas e defendem a reforma política e nimo de socialização, pela reprodução da estratificação no nível
gradativa da sociedade pela via parlamentar e pelo fortalecimento das empresas estatais, ainda por cima privadas do direito de gre-
do movimento sindical e de outras organizações da sociedade ve. Isso tem levado à afirmativa: "No Brasil, o Estado controla as
civil. Não há divergências muito sérias entre o seu programa e o empresas privadas, e ninguém controla as empresas estatais". O
programa dos partidos democrata-cristãos. O planejamento eco- lado forte de nosso modelo econômico é representado pelas
nômico, a intervenção estatal, o sistema tributário e a previ- empresas multinacionais, e, subsidiariamente, por setores
dência social são os principais mecanismos empregados para monopolistas ou oligopolistas da empresa privada nacional. O
atingir a justiça social. A maior parte das empresas permane- lado débil é representado pelas empresas privadas de pequeno e
ce nas mãos da iniciativa privada. Antes que uma estatização de médio portes. Na realidade, podemos creditar boa dose de
ou uma socialização das propriedades, procura-se atingir a verdade aos que declaram: "O Brasil não é nem capitalista, nem
socialização das decisões e do consumo ou benefícios. Em socialista, mas conseguiu juntar, em seu modelo econômico, o
todo o mundo - e particularmente no Brasil - os partidos que há de negativo em ambos".
socialistas (e democratas-cristãos) têm estado sob fogo cerra-
do de conservadores e de comunistas. Direita. esquerda. centro
Por sua vez, a maior parte dos países integrantes do
macrosistema capitalista não pode ser tipificada como tal, pela As expressões direita e esquerda foram primeiro aplicadas à
forte presença de formas pré-capitalistas ou não-capitalistas. Os política na Assembléia Nacional francesa após a Revolução.
países desenvolvidos do chamado Primeiro Mundo (Europa No lado direito da mesa aglutinavarn-se os deputados mais
256 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 257

conservadores e no lado esquerdo, os mais radicais. Desde Assim, todo movimento visando o fortalecimento da
então os termos têm sido aplicados a grupos diferentes em sua democracia e do pluralismo seria considerado de centro. Por
evolução semântico-política. Aesqu€jda já foi constituída de bur- sua vez, tanto os grupos de esquerda, quanto os de direita co-
gueses liberais da Revolução Francesa, inimigos do ancien régime, nheceriam suas alas e desvios esquerdistas e direitistas, segundo
de burgueses progressistas e reformistas da fase selvagem do ca- a tendência ao imobilismo ou à radicalização. Porém, dentro
pitalismo industrial europeu, de burgueses seguidores das di- do arco democrático, há diferentes propostas e partidos que fo-
versas correntes do socialismo dito utópico ou, pior dos piores, ram rotulados ou se auto-rotularam de esquerda ou de direita:
de aristocratas e burgueses que conseguiram influenciar setores uma esquerda democrática e uma direita democrática, para se
do proletariado com a heresia do anarquismo. Por outro lado, a diferenciarem dos que se postam fora do arco democrático (aque-
direita já foi constituída de nobres perfumados a caminho da les que defendem o princípio: "se subir não desço mais"), agora
guilhotina (parte da esquerda também provaria da lâmina na chamados de extrema esquerda e de extrema direita. No centro-
segunda rodada da Revolução), de lordes reacionários e de direita estariam, agora, os partidos conservadores ou liberais-
integristas religiosos que esperneavam contra o moderno e sus- conservadores e no centro-esquerda, os partidos socialistas, so-
piravam de saudades das glórias do medievo. Depois foi o que ciais-democratas e trabalhistas. Alguns partidos republicanos,
se viu: todos os da antiga esquerda passaram a ser considerados monarquistas, regionalistas, étnicos ou religiosos podem ser
de direita, enquanto Mussolini fundava o fascismo a partir de encontrados em ambos os lados do leque. Fenômenos mais re-
uma dissidência do socialismo e Hitler denominava o seu parti- centes são o eurocomunismo e a eurodireita, que, vindos de um
do de Nacional-Socialista. Roosevelt, com New Deal e tudo, se- passado antipluralista, se apresentam reciclados, jurando fideli-
ria tido como de direita, e Stálin, com "expurgos" e tudo, seria dade ao pacto democrático.
tido como de esquerda. Se há, assim, um centro no sentido lato, como postura de-
A expressão de centro foi inicialmente aplicada no Ocidente à mocrática pluralista, há também um centro no sentido restrito,
própria democracia, ou aos partidos e correntes defensores de como uma corrente própria do arco democrático representada
um sistema aberto e pluralista, diferente das duas ameaças tota- pelos partidos liberais-progressistas e democrata-cristãos ou so-
litárias de então: a direita nazista e a esquerda stalinista. Ou seja, ciais-cristãos. O centrismo social cristão é, primeiramente, uma
fora do arco democrático existem propostas autocráticas (auto- tomada de posição diante do processo de secularização (que, na
ritárias ou totalitárias) semelhantes em seu monismo ideológi- realidade, tem conduzido ao secularismo), em que as diversas
co, em seu monopartidarismo, em sua aversão à dissidência, em correntes de pensamento - deístas, agnósticas ou materialistas
sua edificação de um Estado policial, variando o discurso políti- - partiram para a elaboração de ideologias antropocentradas,
co, tipificando ora uma ditadura ideológica ora um cesarismo decretando a irrelevância do sagrado ou o confinamento do te-
empírico (na classificação de Burdeau). Entre os primeiros estão ólogo a um intimismo subjetivista. Para a moral burguesa, en-
o nazismo, o fascismo, o falangismo, o integralismo e a ditadura tão, a fé seria algo meramente de foro íntimo, e o homem "civi-
dita do proletariado; entre os segundos, o caudilhismo, o lizado" não discutiria essas coisas em público. Para a moral
paternalismo e outros modelos monárquicos ou republicanos materialista, por sua vez, a fé teria uma dimensão obscurantista
de áreas periféricas do planeta. Certos modelos de socialismo a ser superada no processo evolutivo da história. Para vastos cír-
islâmico e de socialismo africano são difíceis de enquadrar, não culos de pensadores cristãos, uma ação libertadora dessa camisa
só na modalidade de autocracia, mas também em que lado da de força do preconceito cientificista contemporâneo deveria pas-
coloração, em razão de suas peculiaridades e da distância entre sar, necessariamente, pela reflexão teológica da realidade, pela
o discurso e a prática. presença cristã no mundo, mantendo sua identidade, não a
258 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 259

reboque das propostas do século, mas em uma posição de locais. A presença do anarquismo com os imigrantes europeus,
liderança responsável, a partir do estudo e da vivência de um do nacionalismo dos tenentes com uma bandeira reformista e a
doutrina social cristã encarnada na Revelação. criação do Partido Comunista e da Ação Integralista representa-
Em segundo lugar, para essa corrente, se situa a defesa do ram o novo momento de participação política dos estratos mé-
pluralismo democrático como opção política, econômica e so- dios emergentes e do incipiente proletariado urbano-industrial,
cial: um Estado social de direito em contínuo aperfeiçoamento, interrompido pela ditadura do Estado Novo. A experiência
segundo uma visão não-determinista da história. O pacto de- multipartidária da República Populista (1945-1964) deu lugar a
mocrático é tido como a única garantia da liberdade. Quanto ao um bipartidarismo forçado e artificial, e a práticas frentistas
econômico, procura-se a superação do dilema proposto no sé- inibidoras da nitidez ideológica, em virtude, também, da clan-
culo 19: materialismo capitalista versus materialismo socialista. destinidade de algumas correntes de opinião.
Uma economia social de mercado pressupõe uma libertação
dessa dicotomia pela capacidade criativa do homem de respon- Monismo versus pluralismo
der a uma pluralidade de situações, problemas e necessidades
com uma pluralidade de respostas adequadas e funcionais, na O conflito de pensamento dos nossos dias se dá entre as filo-
busca do bem comum. Valoriza-se, especialmente, a empresa sofias de cunho monista e as de cunho pluralista. Uma visão
nacional de pequeno e médio portes, as propriedades comuni- monista acredita que a verdadeira descrição das coisas e a verda-
tárias e, nas empresas maiores, a participação de todos os que as deira solução para os conflitos humanos estão em uma só pro-
constituem em sua gestão e em seus resultados. posta, que realize mais profundamente a unidade pela extinção
O homem não é visto apenas como um ser econõmico, mas dos conflitos e contradições. Um homem que adquire a malda-
como uma pessoa, com uma diversidade de carências, aspira- de pelas circunstâncias pode alterar essas circunstâncias e exter-
ções e possibilidades. A meta é a transformação para melhor minar a maldade. Se há uma verdade, ela deve ser portada por
tanto do homem quanto das estruturas. Especial atenção é dada um só grupo (o próprio), que, de posse do poder, extermina o
à relação do homem com a natureza. O centrismo rejeita as pos- erro (que está nos outros). O monismo filosófico está na raiz de
turas dogmáticas radicalizantes e intolerantes, cultiva o diálogo todo totalitarismo. Ele é exterminador da liberdade.
e se acerca do social sem privilegiar nenhum marco teórico O pluralismo não quer dizer que existem várias verdades, mas
interpretativo, antes estimulando a prática do ideal paulino: exa- que nenhuma pessoa, ou grupo, detém o monopólio da verda-
minar de tudo e reter o que de válido existe em cada um. de. Como o ser humano é limitado, algo de verdade e de erro
Nos países politicamente não-desenvolvidos a organização está em todo lugar. O pluralismo é a garantia da liberdade, da
partidária é consideravelmente frágil, representando interesses democracia. Assegurado o direito de opinar e de optar, o proces-
de grupos aglutinados em tomo de personalidades carismáticas. so histórico demonstrá onde está a verdade.
O nível de consciência das diferenças ideológicas é bastante bai- O cristianismo é monista quanto ao eterno e ao revelado: em
xo no meio do povo. Os partidos, organizados ou dissolvidos an- Deus a verdade e o que Ele nos revelou e permitiu compreender
tes pela vontade do Estado do que pela organização da socieda- da revelação é suficiente para nos reconciliarmos com Ele e com
de civil, se prestam mais ao exercício do clientelismo. No caso o nosso próximo. O cristianismo é pluralista quanto ao huma-
brasileiro, após a experiência monárquico-parlamentar no sécu- no: o homem, finito e pecador, não pode conhecer, ou viver, a
lo 19, com os partidos Conservador e Liberal, passamos para totalidade da verdade. O apóstolo Paulo reconhece esse fato
um monopartidarismo de fato com os partidos republicanos quando nos exorta a um exame de todas as coisas, visando apren-
estaduais da primeira República representando as oligarquias der o que é positivo em cada uma delas. O bem encontrado
260 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 261

nesses projetos humanos é discernido pelos cristãos a partir fins lícitos e pacíficos, a liberdade de pensamento, a liberdade
das Escrituras, sob a iluminação do Espírito Santo. O choque de culto, o direito de ir, vir ou deixar-se ficar, de escolha de pro-
entre o cristianismo e o totalitarismo começa com essa dife- fissão, da fixação de residência ou estado civil, a liberdade de
rença de premissas filosóficas, incluindo-se também o con- imprensa, a ausência de discriminações em razão de cor, sexo,
ceito de homem: bom por natureza versus pecador. religião, idade, convicções políticas ete. Esses princípios têm sido
O monismo foi particularmente real na história durante a duramente conquistados pelos povos, são um patrimônio da
fase personalizada do poder político, bem como da ligação da humanidade e refletem as aspirações da ética cristã. Nenhuma
religião com o Estado. A separação entre Igreja e Estado foi uma conquista no campo social ou econômico pode ser feita às suas
condição para o triunfo do pluralismo. O nazismo ou o marxis- custas.
mo-Ieninismo representavam ameaças na justa medida em A liberdade sem justiça é falsa; a justiça sem liberdade é uma
que se transformavam em "religiões" de Estado, com o braço perversão. O exercício da democracia política por parte de todos
secular executando os seus desígnios em submeter ou exter- os cidadãos pressupõe um mínimo de condições. Caso contrá-
minar os infiéis. O mesmo se diga agora dos Estados islâmicos rio, seria um privilégio de setores restritos da sociedade. Uma
sob a influência de suas correntes fundamentalistas ou de sociedade na qual se vivencia uma democracia social é uma so-
Israel sob a influência dos sionistas mais ortodoxos. ciedade sem miséria, sem marginalidàde, sem fome, sem desem-
O catolicismo romano do padroado lusitano, o positivismo, prego, sem analfabetismo e sem infância ou velhice desampara-
o integralismo e o marxismo têm marcado nossa trajetória como da. Todo ser humano tem direito à escolaridade, à assistência
sucessão de monismos. Nossa prática política é autoritária, médico-dentária-hospitalar, ao emprego, a um lar habitável, à
verticalista e intolerante. O monopólio do poder e da verdade alimentação básica, ao lazer e recreação, e ao gozo de férias e
parece unir defensores e críticos de nosso status quo. Nossos anos aposentadoria. A previdência social deve ser concedida a todo
recentes, com seu peculiar conceito de "segurança" e de "inimi- cidadão, independente de vínculo empregatício. A democracia
gos internos", foram marcados por pressuposições ideológicas social implica a redução das disparidades regionais e a
monistas. Infelizmente, muitos dos que sofreram sob o arbítrio minimização das distâncias entre os diversos estratos sociais, em
e combateram esse autoritarismo não propõem saídas demo- uma política salarial realista, que vá ao encontro das necessida-
cráticas pluralistas, mas outras modalidades de autoritarismo e des do homem, antes que dos privilégios de profissão. Todo tra-
de monismo. O combate pelo fortalecimento da democracia entre balho é digno, e digno é o obreiro de seu salário. A riqueza na-
nós será decidido, basicamente, no campo das idéias. cional deve ser distribuída por vias indiretas (previdência social
e imposto de renda progressivo sobre pessoas físicas e jurídicas)
Uma proposta de democracia e diretas (salário justo, participação no lucro das empresas). O
movimento sindical deve ser fortalecido e livre da tutela do Es-
São princípios e práticas de uma democracia política: o tado. A história demonstra a possibilidade de, com determina-
princípio da soberania popular, que se manifesta em eleições ção, se atingir a justiça social pela via pacífica e democrática.
livres, honestas e sinceras, regulares e periódicas, que conduz à Para a realização de uma democracia econômica, a proprie-
altern~ncia legal dos ocupantes dos cargos de poder, na vigência dade não pode estar nas mãos de uns poucos, nem nas mãos do
de um sistema pluripartidário; e o princípio da liberdade res- Estado. A propriedade, individual e social, é uma garantia con-
ponsável, que se materializa na segurança do cidadão, sob a lei, tra o arbítrio do Estado e a opressão dos privilegiados. Deve-se
o gozar dos direitos e garantias individuais, que são uma proceder a uma democratização da propriedade. A propriedade
conquista de nossa civilização: a liberdade de associação para dos bens de uso e de consumo, assim como das pequenas e
262 - Cristianismo e Política Presentes e Diferentes - 263

médias empresas, deve ser sempre individual ou familiar. cristãos nominais e para muitos que se consideram cristãos
Respeitadas as peculiaridades regionais, a estrutura fundiária deve comprometidos, o conformismo com o mundo, a racionaliza-
ser reformulada: o latifúndio improdutivo deve ser extinto e o ção, o fazer, a posterioti, uma "teologia de alfaiate" (na medida
cooperativismo, estimulado. Não basta, contudo, distribuir a para o modelo), a tentação saducéia é sempre a mais atraente, a
terra. É preciso dar condições para o seu efetivo aproveitamento. que resulta em maiores dividendos.
A propriedade coletiva, ou empresa agrícola comunitária, deve Cabe à Igreja um ministério de intercessão pelo país, pelos
ser assegurada aos grupos que voluntariamente optem por essa que estão no poder e pelos problemas que afligem o povo. Cabe
modalidade. Há lugar, em virtude da natureza da atividade, para à Igreja um ministério profético, pelo ensino total das Escrituras
a grande empresa agrícola, comercial, industrial ou de serviços, a seus membros, e, encarnando a consciência moral da nação,
desde que estruturada em bases de capital aberto, em que todo posicionar-se diante de idéias e ações que contrariem a vontade
empregado seja acionista, e que se desenvolva o princípio da de Deus, como fez a Igreja Evangélica Confessante na Alemanha
autogestão ou da co-gestão. O capital estrangeiro é bem-vindo, nazista com a Declaração de Barmen. Cabe à Igreja preparar os
desde que seja para investir em áreas não ocupadas pelo capital seus líderes e os seus liderados para um exercício responsável da
nacional, limitada a remessa de lucro. A empresa de controle cidadania, apoiando, particularmente, aqueles vocacionados para
estatal somente deve ser permitida nos setores estratégicos ou o exercício da função pública. Os cristãos conscientes irão mili-
em que se patentear a impossibilidade de exploração pela insti- tar em partidos políticos, em sindicatos, em associações profis-
tuição privada. O controle estatal de uma empresa nunca deve sionais. Algumas vezes a conjuntura exigirá a criação de um par-
ultrapassar 51% de seu capital. Sem se descuidar da exportação, tido cristão ou um sindicato cristão; outras, a criação de setores
o modelo econômico deve estar primordialmente voltado para cristãos nas organizações seculares.
o mercado interno. As igrejas locais ou as denominações poderão criar grupos de
A construção de uma sociedade justa e livre não é utopia. É interesse para ministérios específicos nos campos social e políti-
uma realidade de nossos dias, vivenciada por um número cres- co. Entidades interdenominacionais, como a Visão Mundial, no
cente de países. É o resultado dos valores cristãos permeando o campo social, ou o Projeto Shaftsbury (na Grã-Bretanha), no
mundo. Isso não quer dizer que os problemas deixem de existir. campo político, constituem instrumentos importantes de
No caso dos países periféricos, esse alvo passa pela luta contra a mobilização e testemunho do povo de Deus. Por ser uma comu-
dependência econômica dos países ricos e imperialistas, bem como nidade de reconciliação, a Igreja deve sempre se esforçar para
contra todas as formas internas de dominação. evitar posições político-partidárias. Cristãos que pensam solu-
ções diferentes para os problemas sociais e políticos podem - e
devem - adorar juntos. Uma tomada de posição partidária cau-
A ação política dos cristãos
sa dissensão e acaba por afastar uma parcela dos fiéis. Especial
Tem se falado que vivemos uma era pós-cristã ou um cristianis- bom senso é o que se espera dos pastores, distinguindo suas
mo pós-constantiniano. Uma tentação do cristianismo é pensar opções de cidadãos de seu exercício ministerial.
em um novo constantinismo, uma nova tutela do Estado, uma Se devemos evitar opções partidárias da Igreja como institui-
nova vinculação, talvez com um novo projeto, talvez com um ção, devemos também reconhecer que a ação individual do cris-
novo Estado. Tentação conservadora e tentação revolucionária. tão é de eficácia reduzida. Uma presença orgânica dos cristãos
Em ambas uma ameaça à liberdade. Um Estado secularizado, deve ser feita em conjunto, pela criação de grupos e movimen-
materialista e hedonista também pode ser um bom pretexto para tos. Essa ação conjunta, para preservar uma identidade, deve
as tentações farisaica e essênia, Para as grandes massas de buscar uma interação dinâmica entre Palavra, problemas e
264 - Cristianismo e Política

propostas. Importante, sempre, é a manutenção de uma


atmosfera fraternal, de mútuo respeito entre os irmãos de pen-
samento divergente.
Nunca é demais enfatizar a necessidade de termos uma pers- Apêndice
pectiva cristã da vida pública, uma visão integrada de mundo,
uma visão da necessidade de disseminação dos valores espiritu-
ais na vida pública, bem como do fato de que em torno do po-
der político se trava uma batalha espiritual fundamental. A his-
tória é uma batalha entre o reino de Deus e o reino da perdição.
A tarefa do cristão é derrotar o demônio e empurrá-Io para fora
desse domínio. É afirmar o senhorio de Jesus Cristo na história. DECLARAÇÃO DE JARABACOA
A luta por um sistema mais justo ou por leis mais justas não
pode ser travada às custas do esquecimento de que é necessária
a graça de Deus para transformar o velho homem. E que qual-
quer mobilização deve começar de joelhos.
O ensino claro das Escrituras, o constrangimento do Espírito
Santo e o clamor dos oprimidos nos apelam e nos impelem a Os cristãos e a ação política
empreender a busca da justiça pelo caminho da paz.
Pró-comissão Latino-Americana de
Políticos Evangélicos

SOB A DIREÇÃO DE DEUS E CONVOCADOS PELA


Fraternidade Teológica Latino-Americana, um grupo de evangé-
licos, entre eles teólogos e políticos da América Latina, nos reu-
nimos na localidade de Iarabacoa, na República Dominicana,
para refletir sobre o tema A Teologia e a Prática do Poder. Goza-
mos do companheirismo cristão e das bênçãos derivadas do in-
tercâmbio de experiências diversas.
Reconhecemos e lamentamos a generalizada apatia e in-
diferença do povo evangélico latino-americano a propósito
das realidades sociais e políticas de nossos países. Estamos
conscientes de que diversas razões concorrem para essa apa-
tia e indiferença. Não obstante, identificamos um interesse
recente a respeito desses assuntos como uma evidente ação
do Espírito Santo, pelo qual o dito interesse deve ser
aprofundado e aumentado.
266 - Cristianismo e Política Declaração de Jarabacoa - 267

o diálogo criativo e a reflexão desenvolvidos no nosso 1.3. O ser humano foi criado para viver em comunidade e
encontro nos chamou uma vez mais a nos responsabilizarmos apenas alcança seu desenvolvimento pleno em relação de amor
no campo político, não apesar da nossa fé, mas por causa dela. com os demais (família, igreja, povo etc.}.
Reafirmamos nossa firme convicção de fé nas Sagradas Escri- 1.4. O ser humano foi criado por Deus com capacidade para
turas e, dentro da tradição da Reforma, proclamamos o senho- realizar um trabalho criativo e achar nele uma fonte de prazer,
rio de Cristo sobre o indivíduo e a Igreja. Com a mesma força realização pessoal e satisfação de suas necessidades básicas.
confessamos que Ele é o Senhor de toda a realidade criada. Con- 1.5. O ser humano foi criado como mordomo da terra, com
sideramos que o poder redentor e renovador de Cristo não afeta a responsabilidade de cultivá-Ia e de utilizar seus recursos para a
só o indivíduo, mas também as esferas sociais, econômicas, cul- glória de Deus e para o seu próprio bem.
turais e políticas nas quais ele se desenvolve. 1.6. A ordem política foi provida por Deus como um meio
Cremos que é no campo político onde menos temos levado, de ordenamento da vida em sociedade, de tal modo que cada
apesar de sua importância, as respostas que Deus oferece em membro desta se realize plenamente em relação com Deus, com
sua Palavra. Com o Pacto de Lausanne, proclamamos que "a a criação, com seus semelhantes e consigo mesmo.
salvação que dizemos ter deve nos transformar na totalidade de
nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é 2. Pecado
morta". 2.1. O ser humano, como ser livre, optou por romper o pacto
Como discípulos de Cristo, sentimos que seu mandado de original com Deus e daí provém sua alienação básica em relação
"ir por todo o mundo e fazer discípulos" contém, além da pro- ao seu Criador, à ordem natural, a seus semelhantes e a si mesmo.
clamação e como parte dela, o cumprimento de uma missão de 2.2. Ao recusar Deus, o ser humano perdeu a glória da sua
encarnação e serviço. Nosso lugar é no mundo, onde devemos dignidade.
atuar como sal e luz. 2.3. Ao desprezar Deus como centro de sua existência, o ser
Estamos conscientes de que para desenvolver essa tarefa ne- humano se fez néscio, se envaideceu com seus próprios raciocí-
cessitamos contar com a presença permanente do Senhor, que nios e se entregou a sistemas e estruturas que oferecem uma
vive e é vitorioso. Com a força de seu Espírito, obteremos sabe- falsa segurança. Seu pecado adquiriu, assim, uma dimensão social.
doria e recursos para operar conforme a sua vontade no meio 2.4. A autoridade política foi ordenada por Deus como meio
dos tempos. de se preservar a vida em sociedade, mitigando os efeitos do
Como fruto dessas reflexões e com espírito de humildade e egoísmo e pondo limites à violência social.
amor cristão, nos atrevemos a apresentar ao povo evangélico
latino-americano esta declaração. 3. Redenção
3.1. Jesus Cristo, Deus encarnado, se nos oferece como re-
I. PRINCÍPIOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS dentor e como paradigma perfeito para todos os homens e mu-
lheres, a fim de que nele se forme a nova humanidade.
1. Criação 3.2. A Igreja é o corpo de Cristo, através do qual Deus penetra
1.1. Deus é o criador e sustentado r de todas as coisas, Senhor no mundo com sua mensagem de conversão e santificação pelo
de sua criação e da história. Espírito Santo.
1.2. Deus criou o ser humano como a culminância de toda a 3.3. A principal tarefa da Igreja é capacitar os crentes para
sua obra e o dotou de dignidade que transcende qualquer fator serem homens novos que reflitam o caráter de Cristo, que
circunstancial. manifestem o reino de Deus.
268 - Cristianismo e Política Declaração de Jarabacoa - 269

3.4. A Igreja não está chamada a elaborar propostas políticas ideologia, nacionalidade ou condição social. O fim de toda ação
específicas, nem a identificar-se com nenhum sistema de orga- política deve ser o de fazer possível para todo homem, mulher e
nização social, nem a formar partidos políticos. criança uma vida humana plena.
3.5. A Igreja está, sim, chamada a solidarizar-se com as lutas
2. A verdade
humanas para superar a opressão, a miséria, a ignorância ete.
Por isso, a Igreja tem papel profético que a leva a denunciar os A prática da verdade é fundamental para toda relação huma-
sistemas injustos e a colaborar na construção de uma sociedade na e, em conseqüência, para toda convivência social. Sem o im-
mais justa e fraterna. pério da verdade, a vida social se torna caótica e anárquica. Só a
3.6. O Estado guarda relação com o propósito de redenção vivência plena de uma sólida integridade moral nutrida pela
de Deus, já que tem a tarefa de criar um ambiente de tranqüili- verdade pode ser garantia de ordem, liberdade e justiça. A verda-
dade e paz que torne possível a proclamação do evangelho em de como atitude disciplinadora da realidade deve ser a origem e
palavra e ação. a meta de toda ação política orientada até uma vida humana
plena. A verdade é o meio pelo qual se pode conseguir a realiza-
4. Perspectiva escatológica
ção plena da vida humana que a política se propõe alcançar com
4.1. Toda a missão da Igreja há de realizar-se com uma ora- sua ação.
ção no Senhor: "Venha o teu reino". Com isso a Igreja expressa o
provisório, o inacabado de sua missão, pois se espera que o Se- 3. A liberdade
nhor em sua vinda unifique e aperfeiçoe tudo o que tenha sido A liberdade é impossível sem a prática da verdade. É direito
feito em seu nome. inalienável de todo ser humano e o valor maior de sua existên-
4.2. Por sua vez, a expectativa escatológica da Igreja torna cia como tal. É a capacidade que tem cada ser humano de viver
relativos todo sistema econômico e toda forma de governo, pois e atuar de forma plena como pessoa sem imposições arbitrárias.
qualquer sociedade, por muito que supere a que a precedeu, Essa capacidade se estende até o ponto em que chega o direito
não é a pátria definitiva que os cristãos almejam, é apenas uma que têm seus semelhantes a serem também pessoas plenas e
pátria temporal, que, no entanto, vem em plenitude com o rei- completas. Todo programa de ação política deverá ser cuidado-
no de Deus. so em reconhecer a capacidade de cada ser humano de desen-
volver-se para sua realização como pessoa e deverá facilitar to-
11. PRINCÍPIOS PARA A AÇÃO POLÍTICA das as oportunidades e estímulos possíveis para isso.
OS princípios fundamentais sobre os quais entendemos que 4. A justiça
devem atuar os cristãos, desde a perspectiva de seu compromis-
A justiça é impossível quando a verdade e a liberdade são
so com o reino de Deus, são:
frustradas. Numa ordem de direito, a justiça é a aplicação da lei
1. O valor da pessoa com a finalidade de que cada pessoa consiga a realização de
O ser humano é a realidade suprema e final no marco da seus direitos e cumpra a imposição de seus deveres na socieda-
ordem temporal. Sua existência plena é o fim último de toda de. Para que esses fins se realizem, a administração da justiça
aspiração e organização social. Jamais deve ser considerado como deverá ser imparcial, eqüitativa, acessível, independente, rápida
um meio ou colocado como valor secundário. O desenvolvi- e eficaz. Haverá justiça onde todo ser humano encontre na or-
mento integral da pessoa deve ser uma realidade concreta para dem jurídica recurso em que amparar-se do abuso e em que
todo ser humano, sem distinção de sexo, idade, raça, credo, defender-se da sonegação de seus direitos. Uma ação política
270 - Cristianismo e Política Declaração de Jarabacoa - 271

justa é aquela que vela para que a justiça alcance a todos, estilo de vida que respeita o exercício de todos os direitos
especialmente aos pobres e marginalizados da sociedade. A jus- inerentes ao ser humano. Para uma ação política democrática, a
tiça deverá, além disso, guiar-se por um elevado sentido, a fim democracia não pode ficar em manifestações de simples aspec-
de assegurar o desaparecimento das odiosas desigualdades no to jurídico ou político. É necessário que inclua a dimensão eco-
desfruto dos bens e serviços, as quais ferem a pessoa em sua nômica e social.
dignidade de criatura à imagem de Deus.
8. A política
5. A paz A política é uma realidade iniludível, já que é a esfera natural
A paz é a filha da verdade, da liberdade e da justiça. Como da vida humana que facilita o completo exercício da dimensão
tal, é o resultado da reconciliação dos elementos díspares da própria do homem no plano social. A política é um instrumen-
sociedade, sem que eles renunciem a sua identidade e sem que to adequado para o desenvolvimento da verdade, da liberdade,
se elimine a heterogeneidade. A paz apenas é real e duradoura da justiça, da paz, da solidariedade e da democracia entre os
quando surge de um pluralismo no qual a unidade se verifica na homens. Por ser um meio, e não um fim, a política tem ligação
diversidade. Uma ação política responsável procurará desenvol- com a situação, com a organização, com a competência e os
ver um pluralismo, com sua riqueza de matizes, que enriqueça direitos próprios dos seres humanos no êxito dos fins que le-
o corpo social e ofereça a todos a oportunidade de fazer sua vam ao bem-estar geral.
contribuição particular para o bem geral. 9. A sociedade civil e a sociedade política
6. A solidariedade É da vontade de Deus que as pessoas, para obter seu pleno
A solidariedade é a expressão concreta da vontade fraternal desenvolvimento como tais, se associem. A família é a primeira
de seres humanos que vivem em uma ordem de verdade, liber- e a mais importante das associações que assim surgem e que
dade, justiça e paz. O sentimento de mútua dependência com o tomam distintas formas, tais como, sindicatos, grêmios profissi-
objetivo do bem comum é fundamental para o estabelecimento onais, partidos ete. É possível, pois, considerar como natural que
de uma ordem social justa. Ninguém pode ser plenamente feliz os homens que habitam um mesmo território possam sobera-
namente decidir sobre os assuntos que lhes cabem. Desse modo,
se os demais não o são. Uma ação política solidária será aquela
todos os cidadãos tomam parte do Estado, com os conseqüen-
que saiba conjugar a capacidade e a ação dos diferentes ele-
tes direitos e deveres. O governo é o conjunto das instituições
mentos constitutivos da sociedade, a fim de que todos con-
que tornam possível a administração do Estado, exercendo
tem com as possibilidades da mais plena realização como
um poder que lhe é delegado pelos cidadãos. Os governantes
pessoas.
são as pessoas designadas para a administração das institui-
7. A democracia ções do Estado. É importante não confundir lealdade divina
A democracia é um sistema de convivência social pelo qual ao Estado com a que se deve outorgar ao governo ou aos
uma sociedade se organiza com base na participação livre e res- governantes.
ponsável de todos os seus componentes na tomada de decisões
e na execução das mesmas. Como tal, a democracia é o melhor III. ÁREAS PARA UMA AÇÃO POLÍTICA RESPONSÁVEL
caminho para se conseguir uma sociedade na qual se imponham À luz dos princípios bíblico-teológicos e da ação política,
os valores supremos que contribuem para o desenvolvimento consideramos necessário levar em conta as seguintes áreas para
da pessoa humana. Isso significa que a democracia é um uma ação política responsável:
272 - Cristianismo e Política
Declaração de Jarabacoa - 273

1. O indivíduo 3.4. Desejamos uma educação formativa e metodologicamente


1.1. A pessoa é o objeto predileto do amor de Deus, que é o atualizada, ao mesmo tempo que recusamos uma educação
único que tem direito sobre sua vida e integridade. Por isso, re- academicista, utilitarista e contrária aos interesses humanos.
pudiamos qualquer forma de repressão de caráter político que
4. O trabalho
se manifeste mediante prisão, desaparecimento, tortura, depor-
tação e morte. 4.1. O trabalho é o meio pelo qual o ser humano se associa a
1.2. A função primordial do Estado é assegurar aos indivídu- Deus em sua tarefa criativa no mundo. Todo ser humano tem
os direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à liberdade, direito ao trabalho como meio de subsistência e expressão pes-
à alimentação, ao trabalho, à saúde, à moradia, à educação, à soal e social.
livre associação e a crer ou não conforme os ditames de sua cons- 4.2. É dever do Estado adotar uma política de trabalho que
ciência. proporcione oportunidade de trabalho para todos segundo sua
1.3. Deus criou o ser humano como homem e mulher. Repu- vocação. Compreendemos a necessidade de humanizar o traba-
diamos firmemente o grau de exploração machista de que tem lho e de pôr a tecnologia a serviço do ser humano, e não este a
sido objeto a mulher na América Latina. Propugnamos a igual- serviço daquela.
dade jurídica, trabalhista, profissional, educativa, moral e cultu- 4.3. Chamamos a atenção a fim de que se estabeleçam rela-
ral de todos os seres humanos. ções de trabalho justas, tendentes a eliminar a situação de po-
1.4. Afirmamos os direitos humanos em todo o mundo e breza e marginalidade crescente do trabalhador urbano e rural.
reconhecemos a autoridade da Organização das Nações Unidas 4.4. Solidarizamo-nos com toda política que se proponha a
(ONU) e organismos similares para promover o respeito aos oferecer um sistema de previdência social, a impedir as demis-
mesmos. sões injustificadas, a diminuir as taxas de subemprego e desem-
prego e resguardar a capacidade aquisitiva do salário real do tra-
2. A família balhador.
2.1. Todo ser humano tem direito a formar uma família. A
5. A economia
família, como unidade fundamental da sociedade, tem o dever
não apenas de procriar, mas também de formar melhores seres 5.1. Entendemos a atividade econômica como uma relação
humanos e cidadãos. social que garanta a satisfação plena das necessidades temporais
2.2. Consideramos necessária a vigência do pátrio poder com- do ser humano. O objetivo do econômico não deve se orientar
partilhado e de uma legislação integral que contemple os direi- exclusivamente para o lucro e a acumulação do capital, mas tam-
tos de cada um de seus componentes. bém, e principalmente, para a inversão social e para a produção
de bens e serviços de consumo essencial.
3. A educação 5.2. Consideramos que os fatores de produção (a terra, o ca-
3.1. Consideramos a educação como um direito fundamen- pital ea organização) têm, acima de tudo, uma função social e
tal do ser humano e um dever que compete à família, à Igreja e seu uso, aproveitamento e exploração devem estar condiciona-
ao Estado. dos aos interesses da coletividade e ao conjunto da nação.
3.2. A educação pública é responsabilidade do Estado e deve 5.3. A autodeterminação econômica é elemento essencial da
ser integral, acessível e gratuita. soberania dos povos. Por isso, consideramos como tarefa urgen-
3.3. Propugnamos todo esforço privado que impulsione o te a recuperação, por parte de nossos países, das concessões
desenvolvimento de cada pessoa por igual. econômicas feitas a grupos e interesses estranhos, assim como a
274 - Cristianismo e Política
Declaração de Jarabacoa - 275

minorias privilegiadas, que lesam o patrimônio nacional e são 7.2. Impulsionamos toda iniciativa que motive a investigação
atentatórias à nossa autonomia. científica, o desenvolvimento tecnológico, a formação
5.4. Propugnamos a democratização da propriedade, especi- humanística para o bem dos povos.
almente da terra, por meio de um regime de posse que garanta o
acesso à mesma daqueles que nela trabalham. 8. Os direitos humanos
5.5. Respaldamos uma nova ordem econômica internacional, Advertidos pela triste situação dos direitos humanos em nos-
que assegure a defesa de nossos recursos naturais e uma partici- so continente e em consonância com a Palavra de Deus e a De-
pação mais justa nos mercados. De forma semelhante, insisti- claração Universal dos Direitos Humanos:
mos no estabelecimento de relações financeiras eqüitativas e que 8.1. Comprometemo-nos a lutar na defesa das populações
os recursos científicos e tecnológicos possam estar ao alcance de indígenas, contra o extermínio físico, social e cultural a que es-
nossos países em termos mais favoráveis. tão submetidas; pela preservação de seus valores culturais e dos
5.6. Dada a similitude da situação socioeconômica dos paí- recursos naturais necessários à sua sobrevivência.
ses latino-americanos, propugnamos uma maior cooperação e 8.2. Propomo-nos a combater o racismo, que afeta especial-
integração econômica nos âmbitos regional e continental. De mente as populações negras do nosso continente, contra todo
igual modo, nos manifestamos a favor de uma cooperação mais tipo de discriminação social, em particular no campo da educa-
significativa com outros países que ainda não conseguiram seu ção, da cultura, das relações sociais e do trabalho.
desenvolvimento. 8.3. Apoiamos uma ampla defesa dos cidadãos acusados de
5.7. Declaramos que, ao pôr o homem como mordomo da crimes comuns ou políticos, proporcionalidade entre a pena e o
terra, Deus não renunciou a seu senhorio sobre a criação. Por delito, a integridade física e psíquica do detido, e programas de
isso, nos manifestamos contrários ao mau uso do meio ambien- reabilitação que permitam ao ex-delinqüente integrar-se a uma
te, como resultado de uma exploração indiscriminada e irracio- vida social útil.
nal, que ameaça destruir a base biológica de nossa existência, 8.4. Propugnamos medidas a favor dos deficientes, a fim de
degradando a qualidade de vida. que gozem de condições de vida e de trabalho e se integrem às
instituições e processos sociais; a favor dos anciãos, a fim de que
6. A saúde
contem com o apoio efetivo e os meios de vida até o fim de seus
6.1. A saúde é a expressão de uma vida plena e inclui o físico, dias; a favor dos estrangeiros, a fim de que não se vejam sujeitos a
assim como o mental, o social e o espiritual. discriminações e perseguições por causa de sua nacionalidade.
6.2. A sociedade deve ter uma estrutura de saúde que cubra
todos os indivíduos de forma adequada. Não obstante, reco- 9. As comunicações
nhecemos a necessidade de que toda a comunidade aprenda a 9.1. Reconhecemos a influência dos meios de comunicação
defender sua própria saúde. na promoção e no respaldo de determinados modos de com-
6.3. A Igreja, através de organismos de serviços, deve com- portamento, pelo que estes têm de se ajustar à afirmação da dig-
prometer-se com a promoção da saúde. nidade da pessoa.
9.2. Defendemos o direito de cada pessoa estar informada
7. A cultura
objetivamente, assim como expressar seu pensamento livremente.
7.1. Aplaudimos todo esforço privado e do Estado que im- 9.3. Declaramos ser inadmissível a manipulação dos meios
pulsione o desenvolvimento dos valores culturais e artísticos das de comunicação por parte de determinados interesses particulares ou
nações. estatais.
276 - Cristianismo e Política
Declaração de Jarabacoa - 277

9.4. Os meios de comunicação devem estar a serviço da 1.5. Estimulando a consideração da situação concreta de nossos
comunidade e abertos a toda manifestação que represente o sen- povos e a reflexão sobre a responsabilidade cristã diante dela.
tir dos setores minoritários. 1.6. Fomentando entre seus membros a vida comunitária que
10. Relações internacionais seja modelo para toda a sociedade.

10.1. Cremos ser fundamental o estabelecimento de uma ple- 2. Associações e denominações eclesiásticas
na cooperação internacional nos campos econômico, social e 2.1. Fomentando a reflexão e a ação comum no que diz respeito a
político através de relaçôes bilaterais e multilaterais, respeitan- interesses e problemas regionais, nacionais e internacionais.
do os princípios de autodeterminação dos povos, a não-inter- 2.2. Esforçando-se para alcançar consenso em relação à iden-
venção e a igualdade jurídica. tificação dos problemas que demandam a realidade e as solu-
10.2. Incentivamos também a necessidade de se desenvolver ções possíveis, desde uma perspectiva cristã.
relações amplas com o continente africano, principalmente com 2.3. Auspiciando uma educação teológica que contemple a
os povos de origem luso-espanhola. formação política básica dos estudantes e encontros que aju-
10.3. Opomo-nos firmemente à corrida armamentista; dem o povo evangélico a tomar consciência de seu papel em
defendemos a utilização de meios diplomáticos como for- relação à vida nacional. •
ma para solucionar os conflitos internacionais e conde- 2.4. Reivindicando das autoridades as aspirações legítimas
namos terminantemente o uso da energia nuclear para fins da comunidade.
bélicos.
3. Movimentos e grupos especializados

IV. SUGESTÕES PRÁTICAS PARA A


3.1. Constituindo-se em movimentos ou grupos de estudan-
AÇÃO POLÍTICA DOS CRISTÃOS tes, profissionais, operários, empresários, donas-de-casa, profes-
sores e outros, com o propósito de refletir e atuar em relação aos
Baseados nos princípios bíblico-teológicos e na ação política problemas de nossas sociedades.
enunciados, sugerimos ao povo evangélico atuar das seguintes 3.2. Participando conjuntamente em grupos constituídos
maneiras nas áreas mencionadas: como partidos políticos, sindicatos, associações civis ete. Essa
1. Congregações locais ação deverá estar em harmonia com o evangelho e ser ilumina-
da pela experiência histórica da Igreja.
1.1. Intercedendo em oração pela nação e suas autoridades,
confessando os pecados sociais e agradecendo os benefícios 4. Cristãos, como indivíduos
outorgados por Deus. 4.1. Reconhecendo a validade da autoridade que cabe ao Es-
1.2. Ensinando todo o conselho de Deus e formando ho- tado e particularmente a suas instituições para o ordenamento
mens e mulheres que vivam de acordo com os valor do reino. da vida em sociedade.
1.3. Servindo por todos os meios possíveis por amor ao pró- 4.2. Assumindo seus direitos de eleger-se e ser eleito e de pe-
ximo, dando atenção especial aos setores menos privilegiados dir contas às autoridades estabeleci das.
da população. 4.3. Pagando os impostos e cargas tributárias estabelecidos.
1.4. Declarando o juízo de Deus a respeito dos pecados pes- 4.4. Servindo responsavelmente à pátria toda vez que ela o
soais e sociais, com vistas ao arrependimento, ao perdão e à reclame e sempre que isso seja compatível com o senhorio de
reconciliação em Cristo. Cristo sobre sua vida.
278 - Cristianismo e Política

CONCLUSÃO

A concluir nossa consulta, agradecemos a Deus ter permitido


reunir-nos para refletir à luz da sua Palavra sobre temas de suma
importância para a sociedade e a Igreja na América Latina.
Bibliografia
Sentimo-nos perturbados pela complexidade dos problemas
sociais considerados. Tomamos consciência de nossas limitações
e das limitações do povo evangélico, do qual formamos parte.
Reconhecemos nossa necessidade do perdão de Deus por nossa ALBANGO, G. et. al. Cúria romana, uma estrutura a serviço do povo de
falta de sensibilidade cristã em relação à difícil situação em que Deus? Petrópolis: Vozes. (Concilium, 147, 1979).
vivem nossos povos. ALLAN, Kohn et. al. The world's religions. Oxford: A Lion Book, 1988.
ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo:
Por outro lado, sentimo-nos enriquecidos pela comunhão
Brasiliense, 1979.
mútua. Aprofundamos nossa compreensão da procura do reino
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982.
de Deus neste momento crítico de nossa história. Renovamos AMAYA, Ismael E. "La Teologia de Ia Liberdad" in Boletim Teológico da
nosso compromisso com o Senhor Jesus Cristo, com sua Igreja e FfL, nO 9, julho 1974, p. 14. •
com as nações nas quais Deus nos colocou para sermos teste- ANDERSON, Charles W. O governo das nações agitadas; a inquietação
munhas dele. latino-americana. São Paulo: IBRASA, 1975.
Conclamamos todos os nossos irmãos e irmãs em Cristo a ARANA, Pedro. "Providencia y Revolucion". Estandarte de Ia Verdad. Lima:
unirem-se a nós no propósito de orar e trabalhar, no poder do 1970.
Espírito Santo, a fim de que o reino de Deus se manifeste mais ARANA, Q. P. Progresso, técnica y hombre. Buenos Aires: Certeza, s/do
ARON, Raymond. Plaidoyer pour L'Europe Décadente. France: Ed. Robert
plenamente em nossa sociedade. Distantes quinhentos anos do
Lafont, 1977.
nascimento de Martinho Lutero, afirmamos que nossa justifica-
BANKS, Robert et. al. ed. The quite revolution. Oxford: A Lion Book, 1985.
ção é pela graça de Deus por meio da fé. Assim oramos que a BARBUY, Heraldo. Marxismo e religião. São Paulo: Convívio, 1979.
nossa fé e a do povo evangélico na América Latina seja sempre a BARRETO, Lêda. [ulião, Nordeste, revolução. Rio de Janeiro: Civilização
fé que opera pelo amor e se regozija na esperança de novos céus Brasileira, 1963.
e nova terra, nos quais habita a justiça. BERNAL, Salvador. Mons. José Maria escrivão de Balaguer; perfil do
A Deus seja a glória pelos séculos dos séculos! Amém. fundador do Opus Dei. São Paulo: Quadrante, 1977.
BETIENSON, Heniy. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1967.
Jarabacoa, República Dominicana, 1983. BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1969.
BOCKMUEHL, Klaus. Evangelical and social ethics. Downers Grove /
Exeter: InterVarsity / Paternoster, 1979.
__ o The challenge of marxism; a Christian response. Downers Grove:
InterVarsity, 1980.
BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritual idade, ética. São Paulo:
1993.
__ oIgreja, carisma e poder. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
__ o Teologia do cativeiro e da libertação. Petrópolis: Vozes, 1980.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1974.
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1968.
280 - Cristianismo e Política Bibliografia - 281

BONINO, José Miguez. Concilio abierto. Buenos Aires: La Aurora, 1967. DECLARAÇÃO DE JARABACOA. São Paulo: De, 1986.
BOSe, Iean, CARREZ, Maurice e DUMAS, André. Teólogos protestantes. DEIROS, Pablo A. História deI cristianismo en América Latina. Buenos
Barcelona: Sigueme, 1968. Aires: FTL, 1992.
BRENEMAN, J. Mervin et. aI. Liberación, êxodo y Biblia. Miami: Caribe, __ ed. Los evangelicos y el poder en América Latina. Grand Rapids / Buenos
o

1975. Aires: Nueva Creación, 1986.


BRUCE, F. F. La defensa apostólica deI evangelio. 2. ed. Buenos Aires: Certeza, DENGERINK, J. D. e GRANN, J. El cristiano y Ia democracia moderna; el
1977. fundamiento bíblico de Ia democracia. Barcelona: Ediciones
BRUNEAU, Thomas C. Religião e politização no Brasil; a igreja e o regime Evangelicas Europeas, 1977.
autoritário. São Paulo: Loyola, 1979. D'ESPINAV, Christian Lalive. O refúgio das massas. Rio de Janeiro: Paz e
__ O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola,
o
Terra, 1970.
1974. DUVERGER, Maurice. Os regimes políticos. São Paulo: Difusão Européia
BURKI, Hans. A vida cristã no mundo de hoje. Rio de Janeiro: JUERP, do Livro, 1962.
1972. EASTON, David. Uma teoria de análise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
BUZAID, Alfredo. Marxismo e cristianismo, o problema do ateísmo? Brasília: ENCUENTRO Y desafio: Ia acción cristiana evangelica latinoamericana
MJ, 1970. ante Ia cambiante situación social, política y económica.
CALLADO, Antonio. Tempo de Arraes: padres e comunistas na revolução Montevideo: La Aurora, 1961.
sem violência. Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, 1964. ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópic""aao socialismo científico. Lisboa:
CALVINO, Iuan. Institución de Ia religión cristiana. Rijswijt (Z.H.) Paises Editorial Estampa, 1974.
Bajos: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1968. ESCOBAR, SamueI. Dialogo entre Cristo y Marx. Lima: AGEUP, 1967.
cÂMARA, Dom Hélder. O deserto éfértil. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização __ La chispa y Ia /lama; breve historia de Ia Comunidad Internacional
o

Brasileira, 1977. de Estudiantes Evangelicos en America Latina. Buenos Aires: Certeza,


CARRILHO, Santiago. "Eurocomunismo" e Estado. Rio de Janeiro: Difel, 1978. 1978.
CARSON, H. M. Dawn or twilight?; a study of contemporary roman __La fe evangélica y Ias teologias de Ia liberación. EI Paso: Casa Bautista
o

catholicism. London: InterVarsity, 1976. de Publicaciones, 1987.


CATHERWOOD, H. F. R. The christian in industrial society. London: ESCOBAR, S., PADILLA, R. e YAMAUCHI, E. Quién es Cristo hoy? Buenos
InterVarsity, 1974. Aires: Certeza, 1970.
__ A better way; the case for christian social order. London: InterVarsity,
o
FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político
1975. brasileiro. Porto Alegre / São Paulo: Globo / USP, 1975.
CATLIN, G. E. C. Tratado de política. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. FARELL, George, W. Christian social teaching; a read in christian social
CÉSAR, Waldo et. aI. Cristo e o processo revolucionário brasileiro; a ethics from the Bible to the present. Mineeapolis: Augsburg, 1971.
Conferência do Nordeste. Rio de Janeiro: Láqui, 1962. v. 2. FIELD, David. Free to do right. London: InterVarsity, 1973.
__ Protestantismo e imperialismo na América Latina. Petrópolis: Vozes,
o
FITJER, Gottfried. O que Lutero realmente disse. Rio de Janeiro: Civilização
1968. Brasileira, 1971.
CHALET, Iean-Anne. Monsegneur Lefebvre, o bispo rebelde. Rio de FRANCA, S. J. P. Leonel. Catholicismo e protestantismo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Janeiro / São Paulo: Difel, 1977. Schmidt Editora, 1933.
COSTAS, Orlando. Comptomiso y misión. Miami: Caribe, 1979. FRESTON, Paul. Cuba e Nicarágua: uma análise dos processosrevolucionários.
CRANFIELD, C. E. B., WOOD, A. S. Responsabilidad social y política según São Paulo: ABU Editora, 1985
el Nuevo Testamento. Buenos Aires: Certeza, s.d. __Fé biblica e crise brasileira. São Paulo: ABU Editora, 1992.
o

CULLMANN, Oscar. Cristo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. GALBRAITH, Iohn Kenneth. The affluent society. New York: A Mentor
DAHRENDORF, Ralf. A nova liberdade. Brasília: UNB, 1979. Book, 1958.
DANKER, David et. aI. Caminhando contra o vento; a comunidade GARAUDV, Roger. A grande virada do socialismo. Rio de Janeiro: Civilização
peregrina em missão. São Paulo: ABU Editora, 1978. Brasileira, 1970.
282 - Cristianismo e Política Bibliografia - 283

GONDIM, Ricardo. O evangelho da nova era. São Paulo: Abba Press, 1993. LIPSON, Leslie. Os grandes problemas da ciência política. Rio de Janeiro:
GRAMSCI, Antonio. Concepção política da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
Civilização Brasileira, 1978. LYON, David. Christians and sociology. Londres: InterVarsity, 1975.
GRIFFTEN et. aI. Is revolution change? London: InterVarsity, 1972. MACCIOCCHI, Maria Antonieta. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz
GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: e Terra, 1977.
Ed. Graal, 1978. MACHIAVELLI, Niccolô. O príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, sl à.

GUINESS, Os. The dust of death. London: InterVarsity, 1973. MACKINTOSH, Hugh R. Corrientes teológicas contemporáneas.
GUTIÉRREZ, Gustavo. La fuerza histórica de los pobres. Lima: CEP, 1979. MADURO, OUo. História da teologia na América Latina. 2. ed. São Paulo:
HENRY, Carl F. H. Fronteiras na teologia moderna. Rio de Janeiro: JUERP, Paulinas, 1985.
1971. __ oReligião e luta de classes. Petrópolis: Vozes, 1981.
HEYER, Robert. A Renovação Carismática: dez anos depois. São Paulo: MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
Paulinas, 1976. MARINS, José et. aI. Igreja e conflitividade social na América Latina. São
HODDEN, K. J., SCHUPE, A. Televangelism: power & politics on God's Paulo: Paulinas, 1976.
frontier. New York: Henry I Ialt, 1988. __ oMissão evangelizadora da Comunidade Eclesial. São Paulo: Paulinas
HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: 1977.
Sinodal, 1975. __ o Modelos de Igreja: Comunidade Ec.lesial de Base na América Latina.
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro -1550-1800. São Paulo: Paulinas, 1977
Petrópolis: Vozes, 1978. __ oRealidade e práxis na pastoral latino-americana. São Paulo: Paulinas,
JANSE, A. Que és política cristiana frente a Ia dei mundo? Rijswijk: 1977.
Felire, s/ d. MARTINEZ, José, GRAU, José. Iglesia, sociedad y etica cristiana. Buenos
JOHNSON, Douglas. A brief history of the International Fellowship of Aires: Certeza, s/do
Students. London / Lausanne: InterVarsity / IFES, 1964. MARTINS, Carlos Estevam. Tecnocracia e capitalismo. São Paulo:
JONES, E. Stanely. Cristo y comunismo. El Paso: Mundo Hispano, 1974. Brasiliense/CEBRAP, 1974.
JUERGENMEYER, Mark. The new Cold War; religious nationalism MARTINS, Mário R. Gilberto Freire, o ex-protestante. São Paulo/Recife:
co nfro n ts the secular Sta te. Berkel ey: U niversi ty o f Califo rni a Press, ABUB/CLEB, 1973.
1993. MARX, Karl. Selected writings in sociology & social philosophy. New York/
KAISER, Ir, Walter. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, Toronto/London: Mograw-Hill, 1964.
1980. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Lisboa: Editorial
KARIEL, Henry S. Aspectos do pensamento político moderno. Rio de Janeiro: Presença/Livraria Martins Fontes, 1974.
Zahar, 1966. __ oSobre a religião. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1976.
KREITMANN, J. Bread, peace and liberty. Nutley: Craig, 1980. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich, LENINE. O socialismo científico. Lisboa:
KUNG, Hans. On being a christian. NewYork: Doubleday, 1976. Estampa, 1974.
LACERDA, Carlos. Depoimentos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. MATTOS, Domício P. Posição social da igreja. 2. ed. Rio de Janeiro: Praia,
LATOUREITE, Kenneth Scott. A history of christianity. New York / London: 1965.
Harper & Row / Evanston, 1953. MAYO, Henry B. Introdução à teoria marxista. Rio de Janeiro/São Paulo:
LEEDS, C. A. Political studies. Great Britain: Macdonald.and Evans, 1978. Freitas Bastos, 1966.
LÉONARD, Émile Jr. O protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro: JUERP / MENDONÇA, Antonio N. O celeste porvir; a inserção do protestantismo
ASTE,1963. no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1984.
LESSA, Hélcio. Ação social cristã. Rio de Janeiro: Movimento Diretriz MERKL, Peter H. Political continuity and change. New York/London: Harper
Evangélica, 1965. & Row/Evanston, 1967.
LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução política dos católicos e da igreja no METZGER, Martin. História de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1972.
Brasil; hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979. MICHELS, Robert. Les parties politiques. Paris: Flammarion, 1971.
284 - Cristianismo e Política Bibliografia - 285

MILIBOND, Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós. 1979.
1972. RONAGHAN, Kevin e Dorothy. Católicos pentecostais. Pindamonhangaba:
MONDIN, Batista. Os teólogos da libertação. São Paulo: Paulinas, 1980. O. S. Bayer, 1972.
MONTENEGRO, João Alfredo. Evolução do catolicismo no Brasil. ROUSSEAU, Iean-Iacques. O contrato social. Rio de Janeiro: Ediouro.
Petrópolis: Vozes, 1972. RUNIA, Klaas. Reformemos a igreja. Recife: CLE, 1971.
MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros; paralelo entre duas culturas. 2. RUNIA, K., WELLS, P. et aI. Los cristianos y Ia política; una perspectiva
ed. Rio de Janeiro / Porto Alegre / São Paulo: Globo, 1961. protestante. Barcelona: Ediciones Evangelicas Europeas, 1977.
MOURÃO FILHO, Gen. Olympio. Memórias: a verdade de um SABINE, George H. História das teorias políticas. Rio de Janeiro/Lisboa:
revolucionário. Porto Alegre: L&PM, 1979. Fundo de Cultura, 1964.
MOURY, Phillippe. Evangelização e política. Rio de Janeiro: Laqui. SCHAEFFER, Francis A. A igreja no final do século 20. Goiânia: APLIC,
NEUMANN, Franz. Estado democrático e Estado autoritário. Rio de Janeiro: 1975.
Zahar, 1969. __ Neo-modernismo ou cristianismo. São Paulo/São Luís: Ação Bíblica
o

NICHOLS, Robert Hasting. História da igreja cristã. São Paulo: Casa do Brasil/Livraria Editora Evangélica.
Editora Presbiteriana, 1960. __ The church before the watching world. Downers Grove: InterVarsity,
o

PADI LLA, C. René. El reino de Dios y América Latina. EI Paso: Casa 1971.
Bautista de Publicaciones, 1975 SCHAULL, Richard. De dentro do furacão; Richard Schaull e os primórdios
__ Fé cristiana y latinoamericana hoy. Buenos Aires: Certeza, 1974.
o
da teologia da libertação. São Paulô: Sagaran/CED/CLAI, 1985.
__ The new face of evangelicalism. London: Hodder and Stoughton,
o
SCHLESSINGER, Ir. et aI. Democracia e desenvolvimento. São Paulo:
1976. Edições Forum das Américas, 1979.
PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Paulinas, 1984. SCHUUEMAN, Lomberto. Ética política; Ia humanización del hombre
__ Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
o
latino-americano. BuenosAires: Ed. Escatón, 1974.
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de SCHWEITZER, Wolfgang. Liberdade para viver; questões fundamentais
Janeiro: Zahar, 1975. da ética. São Leopoldo: Sinodal, 1973.
PRISNTERER, G. Groen Von. The unbelief and revolution. Amsterdã: GVP SCOTT, Waldron. Bring forth justice. Grand Rapids: Eerdrnans, 1980.
Fund, 1975. SÉRIE LAUSANE. São Paulo/Belo Horizonte: ABU/Visão Mundial, 1983.
QUEBEDEAUX, Richard. The wordly evangelicals. New York: Harper & SIDER, Ronald J. Cry justice; the Bible speaks on hunger & poverty.
Row, 1978. Downers Grove: IntérVarsity, 1980.
RAMALHO, Iether P. Prática educaiva e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, __ Rich christians in an age of hunger. Downers Grove: InterVarsity,
o

1976. 1977.
READ, MONTERROSO, JOHNSON. O crescimento da igreja na América SIDER, Ronald J. et aI. Evangelical and development: toward a theology of
Latina. São Paulo: Mundo Cristão, 1969. social change. Exeter: Paternos ter, 1981.
REIS, A.c. Palhares. Realidade eleitoral brasileira. Paulista, PE: GTB, 1982. __ Lifestyle in the eights; an evangelical commitment to simple lifestyle.
o

Exeter: Paternoster, 1982.


REIS, Aníbal Pereira. Um padre liberto da escravidão do Papa. São Paulo:
Caminhos de Damasco, 1966. SINE, Tom. The mustard seed conspiracy. Waco: World Books. 1981.
RIOST, AsdrubaI. Presencia evangelica venezolana en Ia politica. Maracaibo: SKILLEN, Iames W. Christians organizingfor political service. Washington:
OVICE, s./d. ASPJE Fund, 1980.
STARKEY,Alan. A christian social petspective. Leicester: InterVarsity, 1979.
RODEE, Anderson, Christol e Greene. Introdução à ciência política. Rio
de Janeiro: Agir, 1977. STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
ROLIM, Francisco C. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio-religiosa. srOTT, Iohn R.W. Issuesfacing christians today. Hants, UK: Marshalls, 1984.
Petrópolis: Vozes, 1985. __La misión cristiana hoy. Buenos Aires: Certeza, 1977.
o

ROLIM, Francisco Sales Cartaxo. Política nos currais. João Pessoa: Acauã, TAWNEY, R.H. Religion and the rise of capitalismo New York: Mentor Books,
1979. 1963.
286 - Cristianismo e Política

TAYLOR, M.C. William Booth: profeta e general. São Paulo: 98 - ES, 1965.
THE truth shall make you free. The Lambeth Conference. London: ACC,
1988.
TRITON, A.N. Salt to the world; the christian and social involvement.
Leicester: InterVasity, 1978.
VIEIRA, Oavid Cueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa
no Brasil. Brasília: Ed. UnB, 1980.
WACNER, Peter. Cuidado! Aí vêm os pentecostais. Miami: Vida, 1975.
__ Teologia latino-americana: izquierdista ó evangélica? Miami: Vida,
o

1969.
WALKER, Williston. História da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1967.
WARE, Timothy. The Ortodox Church. London: Penguin Books, 1964.
WEBER, Max. Economia e sociedade. México: Fondo de Cultura
Econornica, 1977.
__ Ensaios de sociologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
o

WELLS, Oavid F. The search for salvation. Oowners Crove: InterVarsity,


1978.
WILLS, Carry. Under God: religion and american politics. New York:
Simon & Schuster, 1990.
Caro leitor:
Conheça e assine a revista Ultimato. Peça também
nosso catálogo com todos os títulos da Editora Ultima-
to. Escreva e receba gratuitamente a última edição da
revista.

Editora Ultimato
• • Caixa Postal 43
.
36570-000 Viçosa, MG
Telefone: (31) 3891-3149
Fax: (31) 3891-1557
www.ultimato.com.br

Potrebbero piacerti anche