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Wiijçiano Trigo
HUME, D. “Do padrão do gosto”. In: Ensaios morais, políticos e literários. Rio de Ja-
neiro:Topbooks, 2004, p. 367-3%.Agradecemos ã Editora Topbooks por autorizar
a utilização do texto.
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obra caótica e absurda. Mas deve-se supor que as palavras árabes cor-
confirmá-la. Por sua vez, os mil e um sentimentos diferentes desperta
respondences a termos como equidade, justiça, temperança, egoísmo,
dos pelo mesmo objeto são todos certos, porque nenhum sentimento
caridade eram sempre tornadas num sentido posidvo no uso corrente
representa o que realmcntc está no objeto. Ele sc limita a assinalar uma
da língua. E que seria dar mostra de uma enorme ignorância, não da
certa conformidade ou relação entre o objeto c os órgãos ou facul
moral, mas da linguagem, usá-las com um significado diferente do
dades do espírito, e, se essa conformidade realmente não existisse, o
elogio e da aprovação. Mas como podemos saber se o pretenso profeta
sentimento jamais teria sido despertado. A beleza não é uma qualidade
conseguiu efetivamente atingir uma concepção justa da moral? Se nos
das próprias coisas; cia existe apenas no espírito que as contempla, c
concentrarmos na sua narrativa, verificaremos que ele aplaude atitudes cada espírito percebe uma beleza diferente. E possível mesmo que um
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como a traição, a desumanidade, a crueldade, a vingança e a beatice, que indivíduo encontre deformidade onde outro só vê beleza, e cada um
são inteiramente incompatíveis com a sociedade civilizada. Essa obra
deve ceder a seu próprio sentimento, sem ter a pretensão de controlar
não parece ter seguido qualquer regra fixa de direito, e cada ação só c
o dos outros. Tentar estabelecer uma beleza real ou uma deformidade
condenada ou exaltada na medida em que ela c benéfica ou prejudicial
real é uma investigação tão infrutífera quanto tentar determinar uma
para os crentes autênticos.
doçura real ou um amargor real. Segundo a disposição dos órgãos
O mérito de estabelecer preceitos éticos gerais autênticos é muito
corporais, o mesmo objeto tanto pode ser doce como amargo, c o
pequeno, inegavelmente. Quem recomenda qualquer virtude moral na
provérbio popular afirma com muita razão que gosto não se discute.
verdade não faz mais do que aquilo que está implicado nos próprios
E muito natural, e mesmo absolutamente necessário, aplicar esse axio
termos. Os indivíduos que inventaram a palavra caridade e a usaram
ma ao gosto espiritual, além do gosto corporal, e dessa forma o senso
com um sentido positivo contribuíram de uma forma muito mais
comum, que diverge com tanta frequência da filosofia, sobretudo da
clara e eficaz para incutir o preceito “seja caridoso” do que qualquer
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filosofia cética, pelo menos num caso concorda com ela, proferindo
pretenso legislador ou profeta que incluísse essa máxima em seus textos.
uma decisão idêntica.
De todas as expressões, são justamente aquelas que implicam, além de
Mas embora esse axioma sc tenha transformado num provérbio,
seu significado, um determinado grau de censura ou aprovação as que
c portanto pareça ter recebido a sanção do senso comum, c inegável
menos estão sujeitas a serem distorcidas ou mal compreendidas. que existe um tipo dc senso comum que lhe c oposto ou pelo menos
E natural que se procure encontrar um Padrão de Gosto, uma regra
tem a função dc modificá-lo e limitá-lo. Qualquer um que afirmasse a
capaz de conciliar as diversas opiniões dos homens, um consenso estabe
igualdade dc gênio c elegância de OG1LBY c MILTON, de 13UNYAN
lecido que faça com que uma opinião seja aprovada e outra condenada.
eADDISON.não seria considerado menos extravagante que se afirmasse
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FHÕFSTÉDCA OAVID HUME 00 PADRÃO 00 GOSTO 95
que um monte teito por uma toupeira é mais alto que o rochedo de £]e nos encanta pela força e clareza de suas expressões, pelo engenho
TENERIFE ou que um charco é maior que o oceano. Embora se e a variedade de suas invenções, e pela naturalidade com que retrata
possa encontrar indivíduos que preferem os primeiros autores, ninguém as paixões, sobretudo as de tipo alegre e amoroso. Por mais que as suas
dá importância a seu gosto e não temos escrúpulo algum em afirmar deficiências possam diminuir a nossa satisfação, elas não são capazes de
que a opinião desses pretensos críticos c absurda e ridícula. Nesse eliminada por completo. Mas, sc o nosso prazer resultasse realmente
momento se esquece totalmente o princípio da igualdade natural dos daqueles aspectos de seu poema que consideramos defeituosos, isso
gostos, que, embora seja admitido em alguns casos, quando os objetos não constituiria uma objeção à crítica cm geral, mas apenas uma
parecem estar quase em igualdade, assume o aspecto de um paradoxo objeção contra regras determinadas da crítica que pretendem definir
extravagante ou melhor, de um absurdo evidente, quando se comparam certas características como defeitos, apresentando-as como universal-
objetos tão desiguais. mente condenáveis. Se a observação mostra que elas agradam, então
É claro que nenhuma regra de composição é estabelecida por não podem ser defeitos, por mais que o prazer delas resultante pareça
um raciocínio a priori, nem pode ser confundida com uma conclusão inesperado e incompreensível.
abstrata do entendimento, através da comparação daquelas tendências Mas, embora todas as regras gerais da arte estejam fundadas na
e relações de ideias que são eternas e imutáveis. O seu fundamento é experiência e na observação dos sentimentos comuns da natureza
o mesmo que o de todas as ciências práticas, isto é, a experiência. E humana, não decorre daí que os homens sentem sempre da mesma
elas não passam de observações gerais, relativas ao que universalmente maneira e em conformidade com essas regras. As emoções mais sutis
se verificou agradar em todos os países e em todas as épocas. Muitas do espírito são de natureza extremamente delicada e frágil, necessi
das belezas da poesia ou mesmo da eloquência se baseiam na falsidade, tando do concurso de um grande número de circunstâncias favorá
na ficção, em hipérboles, em metáforas e no abuso ou na perversão veis para que funcionem de uma maneira fácil c exata, segundo seus
dos termos ern relação ao seu significado natural. Eliminar a atuação princípios gerais e estabelecidos. O menor dano exterior causado a
da imaginação, reduzindo qualquer expressão a uma verdade e a uma essas pequenas molas, a menor perturbação interna, é suficiente para
exatidão absolutas, seria inteiramente contrário às leis da crítica. Pois desordenar seu movimento, comprometendo a operação do mecanis
o resultado seria a produção do tipo de obra que a experiência uni mo inteiro. Se quisermos realizar um procedimento dessa natureza e
versal mostrou ser o mais insípido c desagradável. Contudo, embora a avaliar a força de qualquer beleza ou deformidade, precisamos escolher
poesia nunca possa ser submetida à verdade exata, ainda assim da deve cuidadosamente o momento e o local adequados, proporcionando à
ser limitada pelas regras da arte, descobertas pelo autor através de seu nossa fantasia a situação e a disposição certas. A serenidade perfeita
gênio ou da observação. Se alguns autores negligentes ou irregulares do espirito, a concentração do pensamento, a atenção devida ao ob
conseguiram agradar, isso não deve ser atribuído às suas transgressões jeto: se qualquer dessas circunstâncias faltar, nosso experimento será
das regras c da ordem; mas ao fato de que, apesar dessas transgressões, enganoso, e seremos incapazes de avaliar a beleza católica e universal.
as suas obras possuíam outras belezas, que estavam de acordo com a A relação estabelecida pela natureza entre a forma e o sentimento
crítica justa. E a força dessas belezas foi capaz de superar a censura, será no mínimo mais obscura, tornando-sc necessário um grande
proporcionando ao espírito uma satisfação maior que o desagrado re discernimento para a sua identificação e análise. Nós seremos capazes
sultante de seus defeitos. Não é por causa de suas ficções monstruosas de determinar a sua influência, não a partir da atuação de cada beleza
c improváveis que ARIOSTO nos agrada; nem da mistura bizarra que em particular, mas a partir da admiração duradoura despertada por
ele faz entre o estilo cômico e o estilo sério, nem da falta de coerência aquelas obras que sobreviveram a todos os caprichos da moda e a
de suas histórias, nem das interrupções constantes de suas narrativas. todos os equívocos da ignorância e da inveja.
censura cuja influencia pode ser detectada por um olhar atento em diz SANCHO ao escudeiro de nariz comprido. “Esta é uma qualidade
X.
todas as operações do espírito. Existem certas formas ou qualidades hereditária em minha família. Dois parentes meus foram certa vez cha
que, devido à estrutura original da constituição interna do espírito, mados a dar sua opinião sobre um barril de vinho que sc supunha ser
estão destinadas a agradar, e outras a desagradar. Se elas deixam de excelente, pois era velho c de boa colheita. Um deles prova o vinho,
ter efeito em algum caso particular, isso se deve a uma deficiência ou avalia-o, e depois de uma madura reflexão declara que o vinho seria
imperfeição evidente do órgão. Um homem com febre não pode es bom, se não fosse um ligeiro gosto de couro que encontrava nele. O
perar que seu paladar diferencie os sabores, e outro com icterícia não outro, após adotar precauções semelhantes, também faz um parecer
pode enunciar um veredicto a respeito das cores. Para todas as criaturas favorável ao vinho, com a única reserva de um sabor de ferro que nele
existem um estado saudável e um estado doente, e só do primeiro se facilmente se podia distinguir. Os dois foram enormemente ridicula
pode esperar receber um padrão verdadeiro do gosto c do sentimen rizados pelo juízo que emitiram. Mas quem riu por último? Esvaziado
to. Se no estado saudável do órgão observarmos uma uniformidade o barril, achou-sc no fundo uma velha chave com uma correia de
completa ou considerável nas opiniões e sentimentos dos homens, couro amarelada.”
podemos deduzir daí uma ideia da beleza perfeita. Da mesma forma, É fácil entender como a grande semelhança entre o gosto men
aos olhos das pessoas saudáveis, a aparência dos objetos à luz do dia é tal e o corporal sc aplica a essa história. Embora seja inquestionável
considerada sua cor verdadeira e real, mesmo se sabendo que a cor é que a beleza e a deformidade, mais do que a doçura e o amargor, não
meramente um fantasma dos sentidos. sao qualidades externas aos objetos, mas pertencem inteiramente ao
São muitas e frequentes as deficiências dos órgãos internos que
anulam ou atenuam a influencia daqueles princípios gerais de que 1 Ccrvantcs, Dom Quixote, pL 2, cap. 13.
o veredicto dos parentes de SANCHO, confundindo os pretensos ser um inconveniente grave tanto para quem a possui quanto para
juízes que os haviam censurado. Mesmo que o barril nunca fosse os seus amigos; mas a delicadeza dc gosto do espírito pela beleza
esvaziado, a delicadeza do gosto dos dois seria a mesma e o gosto dos será sempre uma qualidade desejável, porque ela é a fonte de to
seus juízes seria igualmcnte embotado. Mas seria muito mais difícil dos os prazeres mais refinados e puros a que está sujeita a natureza
provar a superioridade daqueles, convencendo todos os presentes. De humana. Os sentimentos dc todos os homens compartilham essa
forma semelhante, mesmo que as belezas literárias nunca tivessem opinião. Sempre que demonstramos ter uma delicadeza de gosto,
sido reduzidas metodicamente a princípios gerais e nunca tivessem somos recebidos com aprovação, e a melhor forma de demonstrá-lo
sido definidos determinados modelos de excelência reconhecida, é recorrer aos modelos e princípios estabelecidos pelo consenso e
mesmo assim os diferentes graus de gosto continuariam existindo, pela experiência uniforme de todas as nações e de todas as épocas.
e o veredicto de uns continuaria sendo preferível ao veredicto de Embora exista, em relação a essa delicadeza, uma enorme
outros. Mas seria muito mais difícil reduzir ao silêncio o mau crítico, diferença natural entre um indivíduo c outro, nada contribui mais
já que ele insistiria em sua opinião pessoal, recusando submeter-se à para aumentar e aprimorar esse talento que a prática de uma arte e
de seu antagonista. Mas, se podemos lhe apresentar um princípio ar análise e a contemplação constantes de um determinado tipo de
tístico reconhecido, quando ilustramos esse princípio com exemplos beleza. Quando qualquer objeto se apresenta ao olhar ou à imagi
cujas operações, segundo seu próprio gosto pessoal, ele reconhece nação pela primeira vez, o sentimento que ele provoca é obscuro
estarem de acordo com aquele princípio, e quando provamos que e confuso, e o espírito se sente em grande medida incapaz de se
7 PolieucU, martyr (1641-42), tragédia de Corneille, é a história de um nobre armênio 1 Humc provavelmente se refere à coletânea de 366 poemas de Francesco Petrarca
cuja conversão ao Cristianismo c cujo martírio levaram à conversão de sua esposa, (1304-74), que não tem um título definitivo, mas que é conhecida na Itália como
Paulinc,e de seu sogro, Felix, o governador romano que condenou Policucte à morte, Canzioniere ou Rima. A maioria dos poemas é sobre o amor de Petrarca por Laura.
por trair os deuses romanos. Aíhalie (1691), uma tragédia de Ractne, sc baseia no que começou quando ele a viu pela primeira vez na igreja, em 1327, e que conti
relato bíblico (2 Reis II e 2 Crônicas 22-23) da vitória do sacerdote de Deus sobre nuou mesmo após a sua morte, em 1348. Parece que Laura escava acima do alcance
Atalia, rainha dc Judá c adoradora do BaaJ. A cena descrita em seguida por Humc de Petrarca, que a amava de longe. O amor de Petrarca por Laura se tornou um
é de Atalia, ato 3, seç. 5. símbolo de sua própria busca pela salvação, enquanto Laura, depois de sua morte
a Ver I lomero, Üiada /. 225, para a ofensa de Aquiles a Agamenon, e I. 56-57 para a física, ressuscita como um ideal sublime com qualidades divinas.
ameaça de Zeus (ou Júpiter) a Hera (ou Juno). 10 Ver Boccaccio, Detameron, Introdução a “O quarto dia”.