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ALICE LOPES FABRIS (ORG.

A PROTEÇÃO INTERNACIONAL
DE BENS CULTURAIS
TEXTOS ESCOLHIDOS

NEHCIT
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Alice Lopes Fabris
DIAGRAMAÇÃO Mariana Tymburibá Aramuni
PROJETO GRÁFICO Mariana Tymburibá Aramuni
CAPA Gabriela Rangel
TRADUÇÃO Alice Lopes Fabris

2016 Alice Lopes Fabris (organizadores)


2016 Núcleo de História da Ciência e da Técnica (NEHCIT) EA

Alice Lopes Fabris, Jean Marie Henckaens, John Merryman, Roger O’Keefe, Vincent Negri (autores).

Os textos que compõem a coletânea foram traduzidos de textos publicados no portal da UNESCO,
Revista Internacional da Cruz Vermelha, American Journal of International Law e Amicus Curiae. Ambos
os autores e as revistas autorizaram a tradução.

Todos os direitos reservados. “A presente obra é protegida por uma Licença de Uso Não-Comercial,

comerciais mediante menção dos autores, da licença e respeito à integralidade do texto. “Para cada
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ca da Arquitetura e do Urbanismo (ACR)
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SUMÁRIO

Prefácio

Alice Lopes Fabris

Estudo jurídico sobre a proteção do patrimônio cultural por meio das resoluções do
Conselho de Segurança das Nações Unidas: o patrimônio cultural sob o prisma da
resolução 2199 (2015) do Conselho de Segurança

Vincent Negri

Novas regras para a proteção de bens culturais em conflitos armados: a importância


do Segundo Protocolo à Convenção de Haia de 1954 para a proteção de bens
culturais em caso de conflito armado

Jean-Marie Henckaerts

Dois modos de se pensar os bens culturais

John Henry Merryman


PREFÁCIO
Alice Lopes Fabris

A prática de atacar e pilhar os bens culturais do povo inimigo é antiga tendo


sido narrada recorrentemente ao longo da história. Talvez um dos eventos
mais marcantes da história antiga seja o ataque a Termos realizado por Felipe
V de Macedônia,1 prática que foi duramente condenada por Polybus.2 Apesar
de moralmente repreendido, a prática não era proibida pelo direito internacional
até o século XVIII.3 Desde então, cresce o número de instrumentos nacionais e
internacionais que protegem esses bens. Contudo, nos últimos anos percebe-

conflitos armados contemporâneos. A cidade de Aleppo, importante cidade de


intercâmbio de culturas no segundo milênio a.C., por exemplo, teve 30-40% do
seu patrimônio destruído desde 2013.4

Segundo a Organização das Nações Unidas a educação, a ciência e a cultura,


UNESCO, “o patrimônio cultural reflete a vida de uma comunidade, sua história e
sua identidade. Sua preservação ajuda a reconstruir comunidades devastadas,
restabelecer sua identidade e a conexão do seu passado com o seu presente e
futuro”5 e, nesse sentido, sua destruição ameaça a paz e reconciliação entre os
povos. A responsabilidade para proteção do patrimônio cultural, assim, pertence
a comunidade internacional como um todo.

Devida a importância desta matéria e sua extrema atualidade, o presente


livro pretende disponibilizar textos chaves em português para o estudo da
proteção desse patrimônio cultural. Falada por aproximadamente 244 milhões

1
VERRI, Pierre. “The Condition of Cultural Property in Armed Conflicts: From Antiquity to World War II” International
Review of the Red Cross, n. 245, 1985, pp. 67-78.
2

3
Ibid., livre V, I, 9.2.
4
Dado retirado do Observatory of Syrian Cultural Heritage da UNESCO.
5
UNESCO, “Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict”. Disponível em: <http://www.unesco.org/
new/en/culture/themes/armed-conflict-and-heritage/>. Acessado em 18 de agosto de 2014.
de pessoas,6 o português é a sexta língua mais falada no mundo e está presente
nos continentes Americano, Europeu, Africano e Asiático. Para incentivar novos
estudos desta matéria, foram escolhidos três textos que refletem três importantes
aspectos do direito internacional do patrimônio cultural.

O primeiro texto consiste em um estudo encomendado para o jurista Vincent


Negri pela UNESCO. Em fevereiro de 2015, o Conselho de Segurança das Nações

proibiu a comercialização de obras culturais sírias e iraquianas retiradas do seus


respectivos países após a eclosão de um conflito armado. O Professor Negri realiza
uma análise da prática do Conselho no que tange a proteção internacional de

Organização das Nações Unidas.

Em seguida, temos o estudo de Jean-Marie Henckaerts sobre o estado da arte da


proteção dos bens culturais em caso de conflito armado. O Professor Henckaerts
acompanhou em 1999 os trabalhos de elaboração do Segundo Protocolo à
Convenção de Haia de 1954, o tratado mais recente em matéria de proteção o
patrimônio cultural em caso de conflito armado. Neste texto, o Professor expõe as
evoluções no direito do patrimônio cultural estabelecidas pelo tratado.

Finalmente, temos o artigo Dois modos de se pensar os bens culturais de John


Merryman. Um dos maiores especialistas em direito do patrimônio cultural, neste
famoso texto, John Merryman introduz duas teorias de proteção do patrimônio
cultural: uma teoria nacionalista e outra internacionalista. Segundo o Professor,
a primeira parte do pressuposto que os bens culturais pertencem a uma nação,
enquanto para a segunda, esses bens pertencem a humanidade como um todo.
A partir dessas duas teorias, John Merryman analisa as diferentes políticas de
proteção que podem ser aplicadas, principalmente em relação ao movimento de
bens culturais.

Por meio da leitura dos três textos supracitados, esperamos fornecer uma base
para o primeiro encontro com o direito internacional do patrimônio cultural e
fomentar uma melhor compreensão do sistema de proteção internacional do
patrimônio cultural.

6
Dado retirado em junho de 2015 no Observatório da Língua Portuguesa.
VINCENT NEGRI

Vincent Negri1*

Estudo jurídico sobre a proteção do


patrimônio cultural por meio das resoluções
do Conselho de Segurança das Nações Unidas:
O patrimônio cultural sob o prisma da
resolução 2199 (2015) do Conselho de
Segurança2

1*

2
Este artigo foi originalmente publicado no portal da UNESCO. Esta tradução foi autorizada pelo autor e
pela Organização.

1
VINCENT NEGRI

Estudo jurídico sobre a proteção do patrimônio cultural por meio


das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas:

O patrimônio cultural sob o prisma da resolução 2199 (2015) do


Conselho de Segurança

Vincent Negri

A resolução 2199 (2015), adotada pelo Conselho de Segurança das Nações


Unidas no dia 12 de fevereiro de 2015, foi estruturada sobre três eixos:

Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), da Frente al-Nusra e de todas


as demais pessoas, grupos, empresas e entidades associadas à Al-Qaida;

— Condenar a destruição do patrimônio iraquiano e sírio, cometida


principalmente pelo EIIL e pela Frente al’Nusra, e exigir dos Estados-
membros a tomada de medidas para impedir o comércio de bens culturais
que foram retirados ilegalmente do Iraque desde agosto de 1990 e da Síria
desde março de 2011;

— Prevenir os sequestros e a tomada de reféns realizados pelos grupos


terroristas e a proibição do pagamento de resgates e de concessões
políticas.

A questão da destruição e da dispersão do patrimônio cultural, inscrita em


uma agenda mais abrangente concernente a sanções contra o terrorismo,
é inserida em uma dupla continuidade: (a) de um lado, como continuidade
de uma ação normativa da UNESCO dedicada à proteção do patrimônio
cultural; (b) de outro lado, na esteira das resoluções precedentes do
Conselho de Segurança que visam à luta contra o terrorismo.

a) O interesse geral da humanidade na proteção e salvaguarda do patrimônio


cultural

Apesar de sua diversidade, os instrumentos jurídicos adotados pela

2
VINCENT NEGRI

UNESCO dedicados à proteção do patrimônio cultural são articulados no


âmbito do interesse geral da humanidade em proteger e salvaguardar esse

históricos,3 o Pacto Roerich. Eles são, ainda, incorporados pelos artigos


47 e 56 dos Regulamentos das Convenções de Haia de 1899 e 1907,4
consideradas, hodiernamente, direito costumeiro. A recepção — e, nesse
sentido, o reconhecimento — desse interesse pelos Estados pode variar
de intensidade em função da natureza das normas que implementam e
organizam a proteção do patrimônio cultural – proteção setorial em função
da natureza dos bens, materiais ou imateriais, culturais ou naturais, móveis
ou imóveis, etc. –, e seguindo o contexto ligado aos conflitos ou às crises.
Complementando ou à margem desses instrumentos convencionais, cuja
ambição é de estabelecer a responsabilidade coletiva dos Estados pela
proteção do patrimônio cultural dos povos, outras normas possuem uma
abrangência mais informal, não cogente.

No espaço normativo que tange a esses dois polos, a Convenção para


a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, com o seu
Regulamento de execução e Primeiro Protocolo, adotados em Haia,
em 14 de maio de 1954, acompanhada do Segundo Protocolo, adotado
em Haia, em 26 de março de 1999, exprimem de maneira mais forte as
obrigações internacionais que incumbem aos Estados em preservar o
patrimônio cultural no evento de um conflito armado; no lado oposto, a
Declaração concernente à Destruição Intencional do Patrimônio Cultural,
adotada em Paris, em 17 de outubro de 2003, durante a 32ª sessão da
Conferência Geral da UNESCO, é um texto desprovido de caráter cogente,
emitindo unicamente uma normatividade relativa. A fraca amplitude dessa
Declaração, que consiste em uma resposta a um contexto de crise, e não de
conflito armado, que coloca um conjunto de princípios que visam prevenir e
desencorajar a destruição intencional do patrimônio cultural pelos Estados

3
O preâmbulo faz referência à necessidade de “preservar em qualquer tempo de perigo todos os monumentos
imovíveis (sic) nacionais ou pertencentes a particulares que formam o tesouro cultural das nações”.
4
Convenção (II) concernente às leis e aos usos da guerra terrestre, adotada em Haia, em 29 de julho de 1899;
Convenção (IV) relativa às leis aos e usos de guerra terrestre, adotada em Haia, em 18 de outubro de 1907.

3
VINCENT NEGRI

em suas atividades em contexto de paz e em contexto de guerra,5 é um


sintoma do limite da ação normativa da UNESCO.6 Essa ação é concentrada,
em sua forma mais completa, na formulação de um direito internacional
concertado. A força das regras internacionais unilaterais, no que tange à
primazia do direito internacional sobre as ordens jurídicas nacionais, não
está presente no domínio de intervenção da UNESCO.

O interesse geral da humanidade no que concerne à proteção e a salvaguarda


do patrimônio cultural permeia o direito internacional. Assim, o Tribunal
Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) entendeu que, além do
prejuízo e da perda sofrida por um povo, os quais afetam a sua cultura e
identidade religiosa, “é a humanidade como um todo que é afetada pela
7

Internacional, a qual prolonga esse princípio matriz e integra a dimensão


cultural: “a perseguição pode ser feita de diversas formas, por exemplo (...)
a destruição sistemática de monumentos ou edifícios que representam

5
Doc. UNESCO 32C/25, 17 jul. 2003, Anexo II, p. 2.
6
Embora ela tenha inspirado as Convenções da UNESCO – especialmente a Convenção para a Proteção do
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 e a Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais
em caso de Conflito Armado de 1954 – e outros instrumentos internacionais – Protocolo Adicional I de 1977
às Convenções de Genebra de 1949, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia e o
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional –, a declaração é “um texto de direito não cogente que não

na matéria de proteção de patrimônio cultural. Seu objetivo principal é triplo: (i) enunciar os princípios de
base para a proteção do patrimônio cultural, visando expressamente à destruição intencional em tempo de
paz e em tempo de guerra; (ii) reforçar a sensibilização do fenômeno cada vez mais difundido da destruição
intencional desse patrimônio; (iii) incentivar indiretamente a participação dos Estados que não são parte
da Convenção de Haia de 1954 e seus dois Protocolos, aos Protocolos Adicionais de 1977 e aos demais
acordos que regem a proteção do patrimônio cultural” [Doc. UNESCO 32C/25, 17 jul. 2003, Anexo II, § 6, p. 2].
7
Julgamento do TPII, 26 de fevereiro de 2001, Le Procureur c/ Dario Kordic et Mario Cerkez, Caso n° IT-
95-14/2-T, § 206 et 207 : “Esse ato [de destruição e degradação e dos edifícios consagrados à religião]
é similar à ‘destruição ou ao dano deliberado de edifícios consagrados à religião’, o que constitui uma
violação das leis ou costumes da guerra visada pelo artigo 3 d) do Estatuto [do TPII]. Por conseguinte,

Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia. Ademais, o Tribunal Militar Internacional
[Tribunal de Nuremberg], a jurisprudência deste Tribunal Internacional e o relatório da Comissão de Direito
Internacional (CDI) de 1991, entre outros, todos consideraram que a destruição de edifícios consagrados à
religião constitui, sem equívoco, um ato de perseguição no sentido de crime contra a humanidade. Esse ato,
quando é perpetuado com a intenção discriminatória requerida, equivale a um ataque contra a identidade
religiosa de um povo. Como tal, ilustra de maneira quasi exemplar a noção de ‘crimes contra humanidade’,
pois, de fato, é a humanidade em seu conjunto que é afetada pela destruição de uma cultural religiosa

deliberado a edifícios muçulmanos consagrados à religião ou à educação pode constituir, se cometidos


com a intenção discriminatória requerida, um ato de perseguição”.

4
VINCENT NEGRI

um certo grupo social, religioso ou cultural, etc.”8 Assim, se o princípio

os bens culturais, pertencentes a qualquer povo, constituem um ataque


ao patrimônio cultural da humanidade inteira, na medida em que cada
povo aporta sua contribuição à cultural mundial”9, foi progressivamente
imposta como uma matriz do direito internacional do patrimônio cultural,
sua oponibilidade continua, em grade medida, condicionada à vontade dos

costume na constituição de uma ordem pública cultural internacional.10

b) O patrimônio cultural no prisma da luta contra o terrorismo

Desde 2001, o Conselho de Segurança das Nações Unidas acentuou sua


produção de normas que visam à luta contra o terrorismo. Se, na prática
do Conselho de Segurança, essa preocupação não é nova, os atentados
de 11 de setembro 2001 marcam um ponto de inflexão na formulação das
resoluções do Conselho de Segurança. Na década de 1990, o Conselho de
Segurança tratava regularmente das questões de terrorismo, prescrevendo
sanções contra os Estados suspeitos de possuir conexões com atos

das iniciativas contra o terrorismo começa em 1999: a resolução 126911


incentiva os Estados a colaborar para prevenir e reprimir todos os atos
terroristas, principalmente a “trocar informações em conformidade o direito
internacional e nacional e cooperar sob o plano administrativo e judiciário
de maneira a prevenir os atos terroristas”.12 Essa resolução inicia um

8
Relatório da Comissão de Direito Internacional, 43ª sessão, 29 de abril - 19 de julho de 1991, Supplément
A/46/10. Ver o Projeto de Código de Crimes contra a Paz e Segurança da Humanidade, p. 260 e segs.,
especialmente p. 292.
9
Preâmbulo da Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado de
1954. Ver também UNESCO/RES/31C/26 (2001), Atos que constituem um crime contra o patrimônio comum
da humanidade.
10
Ver UNESCO/RES/27C/3.5 (1993): “(...) os princípios fundamentais que são a proteção e a preservação
de bens culturais em caso de conflitos armados poderiam ser considerados como pertencentes do direito
internacional costumeiro (…) a aceitação universal da Convenção de Haia de 1954 e seu protocolo é uma

11
S/RES/1269 (1999) de 19 de outubro de 1999.
12
Essa instrução de cooperação interestatal no plano administrativo e judiciário para prevenir os atos

5
VINCENT NEGRI

As iniciativas de natureza orgânica – criação de Comitês especializados


à semelhança do Comitê instituído pela resolução 137313 – aprimoraram,
portanto, os graus de exigência de implicação dos Estados na luta contra
o terrorismo, que devem agora levar em conta as medidas tomadas para
impedir as atividades terroristas e criminalizar suas diversas formas, assim

de uma assistência técnica para acompanhar essas medidas.14

Essa abordagem global e multiforme, promovida pelo Conselho de


Segurança, e o reforço da cooperação na Comunidade Internacional, induziu

somente pela via militar e pelas medidas coercitivas, mas deve ser também
combatido com o tratamento das condições favoráveis à propagação
do terrorismo. Nessa esteira, o Conselho de Segurança ressaltou que
“continuar a trabalhar no plano internacional para aprofundar o diálogo
das civilizações e a compreensão entre elas, com o objetivo de impedir a
depreciação de uma ou outra religião ou cultura, pode ajudar no combate às
forças que incitam a polarização e o extremismo e contribuirá para reforçar
a luta contra o terrorismo.”15

Uma primeira referência à cultura e ao patrimônio aparece em 1999, na


resolução 1267 sobre a situação no Afeganistão,16 na qual o Conselho de
Segurança “se declara (...) fortemente compromissado com a soberania,
independência e integridade territorial e a unidade nacional do Afeganistão,
assim como com o respeito ao patrimônio cultural e histórico do país”.

O ápice desse processo de integração do diálogo cultural e da preservação

de terrorismo, conforme o direito internacional, poderia (deveria?) ser interpretada como favorizando a
conclusão dos acordos bilaterais sob o fundamento do artigo 9 da Convenção Relativa às Medidas a Serem
Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens
Culturais de 1970.
13
S/RES/1373 (2001) de 28 de setembro de 2001.
14
S/RES/1535 (2004) de 26 de março de 2004.
15
Declaração do Presidente do Conselho de Segurança, 27 de setembro de 2010; S/PRST/2010/19.
16
S/RES/1267 (1999) de 15 de outubro de 1999.

6
VINCENT NEGRI

Depois de 17

pedir “a todas as partes concernidas que cumpram suas obrigações sob


o direito internacional, lê-se particularmente no que tange às Convenções
de Genebra de 1949 e ao Regulamento de Haia de 1907”,18 o Conselho de
Segurança consagrou o sétimo ponto da resolução à questão dos bens
culturais desviados das instituições iraquianas:
O Conselho de Segurança,
[…]
Agindo sob a égide do capítulo VII da Carta das Nações
Unidas,
[…]
7. Decide que todos os Estados-membros devem tomar
as medidas requeridas para facilitar a restituição,
em bom estado, às instituições iraquianas os bens
culturais iraquianos e outros objetos que possuem

religioso que foram retirados ilegalmente do Museu


Nacional Iraquiano, da Biblioteca Nacional e de outros
lugares no Iraque, desde a adoção da resolução 661
(1990) de 6 de agosto de 1990, especialmente no
que tange à interdição ao comércio ou transferência
desses objetos e dos objetos a respeito dos quais se
tem razões para crer que foram retirados ilegalmente
e pede à Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura, à Interpol e a outras
organizações internacionais competentes que facilitem
a implementação deste parágrafo;

17
S/RES/1483 (2003) de 22 de maio de 2003.
18
Notaremos que o Regulamento de 1907 é aquele adotado pela Convenção (IV) relativa às leis e aos usos
de guerra terrestre, adotada em Haia, em 18 de outubro de 1907. O artigo 47 do Regulamento dispõe que
“a pilhagem é formalmente proibida”; na segunda alínea do artigo 56, precisa-se que “qualquer apreensão,
destruição a ou degradação intencional de estabelecimentos semelhantes [estabelecimentos destinados
aos cultos, à caridade e à instituição, às artes e à ciência], monumentos históricos, obras de arte e de
ciência, é proibida e deve ser investigada”.

7
VINCENT NEGRI

A resolução 1483 (2003) foi a fonte de inspiração do dispositivo que a


resolução 2199 (2015) de 12 de fevereiro de 2015 utilizou para reforçar a
proteção do patrimônio cultural iraquiano e sírio. Os parágrafos 15 à 17 da
resolução mostram:
15. Condena as destruições do patrimônio cultural
iraquiano e sírio, cometida em particular pelo EIIL e pela
Frente al-Nusra, sejam danos acidentais ou destruição
intencional, particularmente de lugares e objetos
religiosos, que são objeto de destruições visadas;

16. Nota com preocupação que o EIIL, a Frente al-


Nusra e outras pessoas, grupos, empresas e entidades
associadas à Al-Qaida geram receita procedendo,
diretamente ou indiretamente, à pilhagem e ao
contrabando de objetos que pertencem ao patrimônio
cultural proveniente de sítios arqueológicos, de museus,
de bibliotecas, arquivos e outros locais na Síria e no

seus esforços de recrutamento ou para melhorar suas


capacidades operacionais de organização e execução
de atentados terroristas;

7 da resolução 1483 (2003) e decide que todos


os Estados-membros devem tomar as medidas
necessárias para impedir o comércio de bens culturais
iraquianos e sírios e de outros objetos que possuem

religioso que são retirados ilegalmente do Iraque desde


6 de agosto de 1990 e na Síria desde 15 de março de
2011, particularmente no que tange à interdição do
comércio transnacional desses objetos e permitindo,
assim, que sejam restituídos aos povos iraquiano e
sírio e pede à Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura, à INTERPOL e a outras
organizações internacionais competentes que facilitem
a execução das disposições do presente parágrafo;

A resolução 2199, particularmente em seu parágrafo 17, e, anteriormente,

8
VINCENT NEGRI

o parágrafo 7 da resolução 1483, confronta a proteção do patrimônio


cultural ao unilateralismo, no domínio tradicionalmente coberto por uma
ação normativa da UNESCO concentrado na formulação de um direito
internacional concertado.19

cultural e as precedentes resoluções do Conselho de Segurança que visam


à luta contra o terrorismo – operam uma inclusão da proteção internacional
do patrimônio cultural no espaço normativo do Conselho de Segurança. No
entanto, essa alteração de paradigma, substituindo uma norma imperativa
unilateral por um direito internacional concertado, permanece limitada pelo
perímetro de intervenção do Conselho de Segurança sob a égide do capítulo
VII da Carta das Nações Unidas. Essa conversão substancial do direito
internacional do patrimônio cultural transfere ao Conselho de Segurança o
interesse geral da humanidade na proteção e na salvaguarda do patrimônio
cultural, até então matriz das normas patrimoniais da UNESCO e de seu
domínio quase exclusivo. O Conselho de Segurança não intervém no plano

situação que ameaça a manutenção da paz e da segurança internacionais.

O Conselho assume o interesse geral da humanidade na proteção e na


salvaguarda do patrimônio cultural que se faz por meio do capítulo VII –
artigos 39 a 51 – da Carta das Nações Unidas, que autoriza a tomada de
medidas coercitivas, no âmbito da manutenção da paz e da segurança
internacionais. Sob o fundamento do artigo 39, o Conselho de Segurança
pode constatar “a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou

recomendações (art. 40) ou recorrer a medidas não militares (art. 41) ou


militares (art. 42) necessárias para a “[manutenção ou restabelecimento d]
a paz e a segurança internacionais”.20

19
Ver supra.
20
Nos termos do artigo 24 da Carta das Nações Unidas, os Estados-membros “conferem ao Conselho de
Segurança a principal responsabilidade pela manutenção da paz e da segurança internacionais”; não é
“uma responsabilidade exclusiva que a Carta confere nesse objetivo ao Conselho de Segurança”; CIJ, 26 de
novembro de 1984, Nicarágua c/ Estados Unidos da América, § 95. Essa função é de natureza política; CIJ,
26 de novembro de 1984, op. cit.

9
VINCENT NEGRI

As resoluções 1483 e 2199 são fundamentadas nos artigos 39 e 41 do


capítulo VII.
Artigo 39

O Conselho de Segurança determinará a existência


de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de
agressão, e fará recomendações ou decidirá que
medidas deverão ser tomadas de acordo com os

a segurança internacional.

Artigo 41

O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas


que, sem envolver o emprego de forças armadas,
deverão ser tomadas para tornar efetivas suas
decisões e poderá convidar os Membros das Nações
Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão
incluir a interrupção completa ou parcial das relações
econômicas, dos meios de comunicação ferroviários,

ou de outra qualquer espécie e o rompimento das


relações diplomáticas.

O Conselho de Segurança possui um poder de apreciação discricionária

de decisões e dos meios de resposta. Dessa competência discriminatória,


observamos um conjunto de poderes de que o Conselho de Segurança
dispõe: o poder de ação e de inércia, via aquele de menor ação. Bem que a
referência do Capítulo VII seja frequentemente considerada como um indício
do caráter obrigatório de uma resolução, a terminologia utilizada revela a
variação de intensidade entre as obrigações que o Conselho de Segurança
impõe aos Estados. Em espécie, tratando-se da salvaguarda do patrimônio
cultural, somente o parágrafo 7 da resolução 1483 e o parágrafo 17 da
resolução 2199 esboçam uma responsabilidade coletiva dos Estados para
lutar contra a dispersão dos bens culturais iraquianos e sírios e facilitar sua
restituição. Nesses parágrafos, o emprego do verbo ‘decidir’ no indicativo

10
VINCENT NEGRI

do presente (‘decides’ em inglês) não exprime um desejo, nem tampouco


uma intenção, trata-se de uma obrigação cuja primazia, conferida pelo
Capítulo VII, impõe-se aos Estados.

Ao prescrever que sejam tomadas medidas para impedir o comércio de


bens culturais iraquianos e sírios, postulando uma interdição do comércio
transnacional desses objetos e estipulando sua restituição, o Conselho de
Segurança impõe a todos os Estados obrigações às quais não estariam
previamente vinculados. Como um legislador internacional, o Conselho
de Segurança, pelo poder normativo que ele exerce, impõe um modelo de

O escopo de tal obrigação pode ser questionado no que concerne às


Convenções da UNESCO de 195421 e de 1970.22 Essas Convenções colocam
um quadro geral, a primeira sobre a proteção de bens culturais em caso
de conflito armado e a segunda no que tange à prevenção da pilhagem e

origem. Se as disposições dessas Convenções podem ser colocadas em


prática no contexto iraquiano e sírio, sua efetividade continua condicionada
à aceitação dos Estados de se obrigarem a elas, a qual se exprime

e demonstrada, a existência de uma obrigação consuetudinária inserida


no Direito Internacional que prescreveria uma interdição do comércio de
bens culturais provenientes de zonas de conflito e uma obrigação geral
de restituição de bens culturais dessas zonas, o parágrafo 7 da resolução
1483 e o parágrafo 17 da resolução 2199 criam uma nova norma imperativa
para os Estados. Na medida em que um tratado internacional produz efeitos
somente como consequência do consentimento dos países, uma resolução
do Conselho de Segurança é um ato unilateral cuja legitimidade é adquirida
em razão de sua adoção por um órgão competente e cuja primazia das

21
Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado de 1954.
22
Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e
Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970.

11
VINCENT NEGRI

medidas prescritas se origina do Capítulo VII.23

As modalidades de execução das decisões do Conselho de Segurança para


o Estado e partindo dessas relativas ao patrimônio iraquiano e sírio, são
declinadas, no Capítulo VII, pelo artigo 48.
Artigo 48

1. A ação necessária ao cumprimento das decisões


do Conselho de Segurança para manutenção da paz
e da segurança internacional será levada a efeito por
todos os Membros das Nações Unidas ou por alguns
deles, conforme seja determinado pelo Conselho de
Segurança.

2. Essas decisões serão executas pelos Membros das


Nações Unidas diretamente e, por seu intermédio, nos
organismos internacionais apropriados de que façam
parte.

O Direito Internacional, no qual estão inseridas as convenções maiores


da UNESCO, dedicadas à proteção do patrimônio cultural, exige dos
Estados que estes respeitem seus compromissos internacionais, mas
deixam-nos livres, de certa maneira, no que tange ao modo de executar
as obrigações internacionais provenientes de Convenções. O artigo 48 da

a responsabilidade direita pelo seu comprimento,24 e, portanto, pela plena


efetividade das decisões do Conselho de Segurança. A conformidade com
essas decisões, tomadas sob a égide do Capítulo VII, é uma exigência

23
Nesse sentido, o julgamento da CIJ de 14 de abril de 1992, explicita, no que tange às obrigações geradas
pelas resoluções do Conselho de Segurança sob o fundamento do Capítulo VII, que “as obrigações das
Partes, nesse sentido, prevalecem sobre suas obrigações em virtude de outro acordo internacional”; CIJ, 14
de abril de 1992, Líbano c. Reino Unido, § 39.
24
Esse não é o caso dos regulamentos adotados pela Organização Mundial de Saúde, que são aplicados
diretamente na ordem jurídicas interna dos Estados. O artigo 22 da Constituição da Organização Mundial

membros que comuniquem ao diretor-geral a sua rejeição ou as suas reservas dentro do prazo indicado

12
VINCENT NEGRI

estrita; deixar aos Estados uma capacidade de interpretação ou apreciação


das decisões diminuiria, até ruinaria, a abrangência das mesmas. Seria
reintroduzir o princípio do consentimento dos Estados, que, por natureza,
não é requerido na edição unilateral de uma norma imperativa; seria
minar a primazia desse ato unilateral sobre os tratados.25 Desprovido de
capacidade de interpretação ou de apreciação da norma imperativa, como
as medidas prescritas pelo parágrafo 7 da resolução 1483 e pelo parágrafo
17 da resolução 2199, o Estado tem uma obrigação de transcrição no
direito interno das condições de efetividade da norma imperativa. A mesma
exigência pesa sobre as instituições regionais, como a União Europeia, cuja
prerrogativa é substituída pelas atribuições dos Estados para regulamentar
o comércio e a circulação de bens e mercadorias.

Na Europa, o Regulamento Europeu n. 1210/2003 de 7 de julho de 2003,

que devem ser


respeitadas pelos 28 membros da União Europeia. O artigo 3 desse

iraquianos de acordo com a resolução 1483 do Conselho de Segurança.


Artigo 3

1. São proibidos:

a) A importação ou a introdução no território da


Comunidade;

b) A exportação ou a remoção do território da


Comunidade e;

c) O comércio de bens culturais do Iraque e outros


bens de importância arqueológica, histórica, cultural,

os enumerados no anexo II, quando tenham


sido ilegalmente removidos de sítios iraquianos,
principalmente, quando:

25
Ver CIJ, 14 de abril de 1992, op. cit.

13
VINCENT NEGRI

(sic) públicas inventariadas nos museus, arquivos e


fundos de conservação das bibliotecas iraquianos
(sic), ou nas instituições religiosas iraquianas ou;

ii) Existam dúvidas razoáveis de que foram exportados


do Iraque sem autorização do seu proprietário legítimo
ou em violação da legislação e regulamentação
iraquianas.

2. Esta proibição não se aplica, se se provar que:

a) Os bens culturais foram exportados do Iraque antes


de 6 de Agosto de 1990 ou;

b) Os bens culturais estão a ser restituídos às


instituições iraquianas de acordo com o objetivo (sic)
de regresso em segurança referido no ponto 7 da
Resolução 1483 (2003) do CSNU.

Essas regras possuem um caráter obrigatório em todas as suas


disposições: os Estados-membros da União Europeia devem aplicá-las
26
Elas são diretamente aplicáveis
no quadro jurídico interno dos Estados-membros e impõem-se a todos os

museus, instituições... – sem que qualquer transcrição desse regulamento,


que projeta o parágrafo 7 da resolução 1483 no direito interno dos Estados-
membros da União Europeia, seja requerida.

Outros Estados incorporaram em seu direito interno as obrigações


enunciadas pelo parágrafo 7 da resolução 1483.

Na Suíça, a Ordonnance en date du 7 août 1990 instituant des mesures


économiques envers la République d’Irak, dispõe em seu artigo 1°:
Art. 1° – Bens culturais

1. É proibida a importação, o trânsito, a exportação, o


comércio, a corretagem, a aquisição e toda outra forma
de transferência de bens culturais iraquianos que
foram roubados da República do Iraque, subtraídos

26
Art. 288 do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

14
VINCENT NEGRI

do controle de seus possuidores de direito no Iraque


contra sua vontade ou exportados ilegalmente da
República do Iraque desde 2 de agosto de 1990.

2. A exportação ilegal de um bem cultural iraquiano


é presumida quando é estabelecido que este se
encontrava na República do Iraque após 2 de agosto
de 1990.

Nos Estados Unidos da América, o Emergency Protection for Iraqi Cultural


Antiquities Act of 2004 prevê:
H.R. 1047, TITULO III – ANTIGUIDADES CULTURAIS DO
IRAQUE

SEC. 3001. CAPÍTULO.

Este titulo pode ser citado como ‘Emergency Protection


for Iraqi Cultural Antiquities Act of 2004’.

SEC. 3002. IMPLEMENTAÇÕES EMERGENCIAIS DE


RESTRIÇÕES DE IMPORTAÇÕES.

(a) AUTORIDADE- O Presidente pode exercer sua


autoridade sob a seção 304 da Convention on Cultural
Property Implementation Act (19 U.S.C. 2603) no
que diz respeito a qualquer material arqueológico
ou etnológico do Iraque independentemente de se o
Iraque é um Estado-parte dessa Convenção, exceto se,
ao exercer tal autoridade, a subseção (c) da seção não
se aplicar.

(b) DEFINIÇÃO- Nesta seção, o termo ‘material

culturais do Iraque e demais itens de importância

retirados ilegalmente do Museu Nacional do Iraque, da


Biblioteca Nacional do Iraque e de outras localidades
no Iraque, desde a adoção da resolução 661 de 1990 do
Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A implementação pelos Estados Unidos da resolução 1483 é apoiada pela


Convention on Cultural Property Implementation Act de 12 de fevereiro de

15
VINCENT NEGRI

1983, que coloca em prática a Convenção Relativa às Medidas a Serem


Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência
de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970. A possibilidade de
tal articulação entre o parágrafo 7 da resolução 1483 e a Convenção da
UNESCO de 1970 tem como condição de partida a posição do Iraque como
Estado-parte da Convenção e sua entrada em vigor em 12 de fevereiro de
1973.

No escopo da resolução 1483, a Austrália adotou, em 2003, a regulamentação


n. 97 – Iraqi (Reconstruction and Repeal of Sanctions) Regulations 2003 –,
que dispõe notadamente:
A Regulação 7 prevê que uma pessoa não deve
transferir um item de propriedade cultural que foi
retirado ilegalmente de uma localidade no Iraque
(incluindo o Museu Nacional do Iraque, a Biblioteca
Nacional do Iraque) após a adoção da resolução 661,
ou sobre o qual que seja razoável a suspeita de que
tenha sido retirado no período descrito;

A Regulação 8 prevê que a pessoa que esteja em


posse ou controle de um item de propriedade cultural
mencionado na regulação 7 deve, assim que possível,
entregar a propriedade para:

a) um membro do efetivo das Nações Unidas ou;

b) um membro das Forças Armadas ou;

c) um representante da Autoridade mencionada na


resolução 1483 ou;

d) um representante do Museu Nacional do Iraque ou


da Biblioteca Nacional do Iraque ou;

e) um representante do local do qual o item foi retirado


ou de onde seja razoavelmente suspeito de que tenha
sido retirado ou;

f) um membro da Polícia Federal da Austrália ou da


Força Policial do Estado ou Território;

16
VINCENT NEGRI

Por outro viés, tratando de uma maneira diferenciada a circulação não

resolução 1483, o Canadá colocou em prática, no dia 19 de outubro de


2010, um Règlement d’application des résolutions des Nations Unies sur
l’Iraq, cujo artigo 5.1 (a) “proíbe todas as pessoas que se encontram no
Canadá e todo canadense no estrangeiro (...) de efetuar intencionalmente,
diretamente ou não, uma operação envolvendo qualquer bem localizado no
Canadá que, conforme cada caso: (i) pertença ao governo iraquiano anterior

pelo Comitê, ou controlado por ele ou atos realizados em seu nome”.

Se a responsabilidade última pela observação das exigências da resolução


do Conselho de Segurança pertence aos Estados, a satisfação das
exigências no que tange à proibição do comércio de antiguidades e de
bens culturais iraquianos, assim como sua restituição, estabelecidas pela
resolução 1483, apresenta variações de intensidade normativa, o que não
deveria ser permitido no que concerne a uma resolução sob o Capítulo VII.

As variações de execução das decisões do Conselho de Segurança


relativas à interdição do comércio de bens culturais iraquianos retirados
ou transferidos ilegalmente desde 6 de agosto de 1990 afeta a efetividade
da resolução.

transmissão e de impor de forma mais ampla as proibições trazidas pela


resolução 1483, como o embargo e a moratória.

Tradicionalmente apresentada como uma medida de pressão que consiste


em restringir ou proibir as transações ou o comércio de bens, o embargo
traz de forma mais recorrente as contramedidas. O Instituto de Direito

17
VINCENT NEGRI

violação de um direito, o embargo pode ser exercido a título de represália”.27

sanção coletiva ou contramedidas.28 A decisão de embargo pronunciada


pelo Conselho de Segurança dispõe, portanto, sobre “todos os direitos ou
obrigações conferidas ou impostas por todo acordo internacional ou por
todo contrato realizado, assim como toda licença ou autorização acordadas
antes da data da (…) resolução”.29

A moratória é o produto de um consenso; possui a forma de um acordo cujo

prorrogável, as atividades em um ramo preciso ou temporizar o pagamento


de reivindicações.

A edição de um embargo ou de uma moratória sobre o comércio de bens


culturais oriundos do Iraque após 6 de agosto de 1990 e da Síria após 15

enunciada pelo parágrafo 7 da resolução 1483 e do parágrafo 17 da


resolução 2199. O embargo poderia ser o eco visado pela resolução 2199,
enquanto que a moratória poderia parecer mais adequada no que tange à
realidade e temporalidade da resolução 1483. Em ambos os casos, a edição
dessas medidas mostra uma responsabilidade do Conselho de Segurança;
elas teriam como vantagem a acentuação do nível de exigência do respeito
das obrigações do parágrafo 7 da resolução 1483 e do parágrafo 17 da

Por outro lado, elas poderiam ser percebidas como um reconhecimento


implícito de uma fraqueza na execução por parte dos Estados das
obrigações prescritas e alterariam, portanto, a abrangência das resoluções
1483 e 2199, no que tange a seus dispositivos que visam à proteção de
bens culturais.

27
25 IDI, Resolução de 23 de agosto de 1898, Anuário, 1898, t. 17, p. 284.
28
Ver S/RES/917 (1994) de 6 de maio de 1994.
29
S/RES/757 (1992) de 30 de maio de 1992, sobre o embargo à antiga Iugoslávia. Resolução citada a
título de exemplo, as resoluções do Conselho de Segurança que trazem sanções econômicas e comerciais
comportam esse tipo de dispositivo.

18
VINCENT NEGRI

A satisfação das exigências de proteção e salvaguarda do patrimônio


cultural pode ser reforçada pela assistência fornecida pelos Estados-
membros para que eles se conformem plenamente ao parágrafo 7 da
resolução 1483 e ao parágrafo 17 da resolução 2199. Esse auxílio pode
tomar a forma de diretrizes ou de disposições modelo adereçadas aos
Estados para inserirem, em seu direito interno, as obrigações presentes nas
resoluções.

As diretrizes da Associação Americana de Diretores de Museus (AADM)


fornecem um quadro teórico para construir essas disposições modelo para
reforçar as legislações nacionais dentro de uma perspectiva de satisfação
das exigências no que tange à proibição do comércio de bens culturais
iraquianos e sírios, assim como à sua restituição. As Guidelines on the
Acquisition of Archaeological Material and Ancient Art (revised 2013) são
apoiadas pela Convenção da UNESCO de 1970 para prescrever a interdição
da aquisição e a natureza da obrigação de diligência no que tange aos bens
culturais e arqueológicos.30

O suporte dado pela Convenção da UNESCO de 1970 é um princípio de


ordem deontológica, o qual coloca a Convenção como bloqueio que funda
uma nova ordem internacional para o controle da circulação de bens
culturais e de seu retorno ao país de origem. No escopo do parágrafo 7 da
resolução 1483 e do parágrafo 17 da resolução 2199, esse bloqueio é de
outra ordem; ele é fundado, no que diz respeito aos riscos de dispersão aos
quais são mais expostos os bens culturais iraquianos e sírios, nas datas de
6 de agosto de 1990 para o Iraque e 15 de março de 2011 para a Síria, como
o estipulado pelo parágrafo 17 de resolução 2199.

Utilizando como apoio sobre os parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da


resolução 2199, a disposição modelo seguinte poderia ser adereçada
aos Estados-membros para a elaboração ou a revisão das legislações e
regulamentação nacionais:

30
“Museus membros normalmente não deveriam adquirir uma obra a não ser que uma pesquisa substancial
sobre sua proveniência demonstre que a obra não estava no país onde foi provavelmente descoberta antes
de 1970 ou de onde foi legalmente exportada após 1970.”

19
VINCENT NEGRI

Nenhum museu ou instituição patrimonial pode


adquirir o bem cultural de origem síria ou iraquiana,
salvo se pesquisas profundadas sobre a proveniência
desse bem estabelecerem com certitude:

- que o bem cultural estava fora do país de origem – país


onde ele foi descoberto ou anteriormente conservado

Iraque e de 15 de março de 2011 para a Síria, ou

- que o bem cultural foi igualmente exportado para fora


do seu país de origem – país onde ele foi descoberto ou

de agosto de 1990, para o Iraque, e de 15 de março de


2011, para a Síria.

Tal disposição deve ser articulada com a Convenção da UNESCO de 1970


para que não seja interpretada como uma liberalização do mercado de
bens culturais e arqueológicos que estão foram de seu país de origem,
antes de 6 de agosto de 1990, para o Iraque, e de 15 de março de 2011,
para a Síria, inconsistente com as obrigações prescritas pela Convenção da
UNESCO de 1970, Convenção da qual a Síria e o Iraque são partes. Também
consiste em prevenir uma interpretação dessas resoluções que afastaria a
Convenção UNESCO de 1970,31 de modo a reter somente as obrigações dos
parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 d a resolução 2199 e suas referências
cronológicas. Deve, assim, ser regulamentada a abrangência, no tempo, das
obrigações que são impostas ao Estado no que tange ao Iraque e à Síria.
Nesse sentido, a situação jurídica dos bens culturais que se encontram fora
do Iraque antes de 6 de agosto de 1990 e da Síria antes de 15 de março de
2011 deve continuar sendo regida pela Convenção da UNESCO de 1970,
contada da sua entrada em vigor, a saber 12 de fevereiro de 1973, para o
Iraque, e 12 de fevereiro de 1975, para a Síria.32 Essa situação poderia ser o
objeto da seguinte disposição modelo:

Quando um bem cultural estiver fora de seu país de origem antes de 6 de

31
Sobre essa questão da primazia das obrigações oriundas de uma resolução do Conselho de Segurança
sobre um tratado internacional: CIJ, 14 de abril de 1992, Líbia c. Reino Unido, § 39; Ver supra.
32
V. Em anexo as Convenções da UNESCO das quais o Iraque e a Síria fazem parte.

20
VINCENT NEGRI

agosto de 1990, para o Iraque, e antes de 15 de março de 2011, para a Síria,

os meios e antes de qualquer projeto de aquisição, que o bem cultural foi


legalmente exportado após 12 de fevereiro de 1973, no que tange ao Iraque,
ou 21 de fevereiro de 1975, para a Síria.

A abrangência dessas disposições pode ser estendida, por uma disposição


ad hoc
na adoção de uma redação impessoal para visar ao conjunto de transações
independentemente de seu autor, instituição ou particular.

O acompanhamento da execução dos parágrafos 7 da resolução 1483 e

instituído conforme o artigo 28 do Regulamento do Conselho de Segurança.


Tal perspectiva reforça a responsabilidade dos Estados no que tange às
obrigações e exigências dessas resoluções, no que diz respeito a seus
dispositivos que visam à proteção de bens culturais. O princípio de um

1483 e 17 da resolução 2199 colocaria o foco sobre a questão essencial


da proteção de bens culturais durante um conflito armado e o período
de pós-conflito e evita, assim, uma dissolução dessa questão dentro da
regulamentação da transferência de bens, dentro do quadro de luta contra
o terrorismo, tal como previsto na legislação canadense de 2010.33 O
mandato desse Comitê deveria, portanto, corresponder a uma obrigação

medidas que seriam tomadas ou previstas para colocar em execução os


parágrafos 7 da resolução 1483 e 17 da resolução 2199.

A resolução 2199 e, especialmente seu parágrafo 17, que reitera as decisões


do parágrafo 7 da resolução 1483 sobre os bens culturais iraquianos,

33
Ver supra.

21
VINCENT NEGRI

formula novas obrigações para preservar o patrimônio sírio, reforçando a


luta contra o terrorismo. Essas resoluções contêm uma disciplina coletiva
que, longe de retirar a responsabilidade própria dos Estados, deveria
canalizar sua ação individual e favorecer a adesão unânime dos sujeitos
de direito ao interesse geral da humanidade de proteger e salvaguardar o
patrimônio cultural dos povos.

Essa disciplina coletiva, que é postulada pelo parágrafo 17 da resolução


2199, fortalece a dimensão costumeira da obrigação de respeitar o
patrimônio cultural dos povos – projeção normativa de um interesse geral
da humanidade – e a consolidação do caráter erga onmes. A abrangência
dessa norma consuetudinária deve ser avaliada à luz de princípios
sobre a responsabilidade internacional dos Estados tais quais oriundos

por Atos Internacionalmente Ilícitos adotado pela Comissão de Direito


Internacional.34 O artigo 48, que trata da invocação de responsabilidade por
um Estado que não seja o lesado, dispõe que “qualquer Estado, além do
lesado, pode invocar a responsabilidade de outro Estado, se (…) a obrigação
violada existe em relação à comunidade internacional como um todo”.

25 de março de 2015

Tradução: Alice Lopes Fabris

34
A resolução 56/83, adotada em 12 de dezembro de 2001 pela Assembleia Geral das Nações Unidas [A/
RES/56/83 (2001)], “nota os artigos sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente
ilícitos apresentado pela Comissão de Direito Internacional […] e recomenda que os governos deem a
devida atenção aos mesmos; sem prejudicar a sua eventual adoção ou toda outra medida apropriada a ser
tomada”.

22
VINCENT NEGRI

Data de entrada em vigor


Instrumentos
normativos
Iraque Síria

Convenção de Haia para a Proteção


dos Bens Culturais em caso de
Conflito Armado e seu regulamento 21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958
de sua execução, adotada em Haia,
em 14 de maio de 1954

Convenção de Haia para a Proteção


dos Bens Culturais em caso de
Conflito Armado e seu regulamento 21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958
de sua execução, adotada em Haia,
em 14 de maio de 1954

Protocolo à Convenção, adotado em


21 de dezembro de 1967 6 de março de 1958
Haia, em 14 de maio de 1954

Convenção Relativa às Medidas


a Serem Adotadas para Proibir e
Impedir a Importação, Exportação e
12 de fevereiro de 1973 12 de fevereiro de 1973
Transferência de Propriedades Ilícitas
dos Bens Culturais, adotada em Paris,
em 14 de novembro de 1970

Convenção para a Proteção do


Patrimônio Mundial, Cultural e
5 de março de 1974 13 de agosto de 1975
Natural, adotada em Paris, em 16 de
novembro de 1972

Convenção para a Salvaguarda do


Patrimônio Cultural Imaterial, adotada 6 de janeiro de 2010 11 de março de 2005
em Paris, em 17 de outubro 2003

Convenção sobre a Proteção e


Promoção da Diversidade das
22 de julho de 2013 5 de fevereiro de 2008
Expressões Culturais, adotada em
Paris, em 20 de outubro de 2005

35
Em sua adesão a Convenção da UNESCO de 1972, dentre as reservas formuladas pela Síria, temos:
“o governo da República Árabe da Síria considera que o sistema de cooperação previsto no artigo 7º
impõe aos Estados membros a prestação de toda ajuda possível ao Estado cuja parte de seu território
23
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Jean-Marie Henckaerts1*

Novas regras para a proteção de bens


culturais em conflitos armados:
a importância do Segundo Protocolo da
Convenção de Haia de 1954 para a Proteção

Armado2

1*
Jean-Marie Henckaerts é consultor jurídico da Divisão Jurídica do CICV. Ele acompanhou, em nome do
CICV (que possuiu status de observação na Conferência diplomática em Haia), a negociação e adoção do
Segundo Protocolo. Esse artigo reflete o pensamento do autor e não necessariamente o da CICV.
2
Esse artigo foi originalmente publicado em 1999 como Jean-Marie Henckaerts, New Rules for the
protection of cultural property in armed conflict, International Review of the Red Cross (1999), No. 835. Essa
tradução foi realizada mediante a autorização do autor e da International Review of the Red Cross.

24
JEAN-MARIE HENCKAERTS

armados: a importância do Segundo Protocolo da Convenção


de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de

Jean-Marie Henckaerts

Alles van waarde is weerloos.3

A Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de


Conflito Armado (Convenção de Haia de 1954) é o instrumento internacional
proeminente para a proteção de bens culturais durante conflitos armados.4
O conceito de bens culturais inclui museus, bibliotecas, arquivos, sítios
arqueológicos, e monumentos de importância arquitetônica, artística
e histórica, seja religioso ou secular. A Convenção de Haia de 1954 foi
5
mas os princípios básicos
concernentes o respeito de bens culturais contidos no tratado atingiu
status de direito costumeiro. Um Primeiro Protocolo lidando principalmente
com a proteção de bens culturais localizados em territórios ocupados foi
adotado na mesma ocasião que a Convenção e setenta e nove Estados6
são hoje parte do instrumento.7

3
“All things of value are defenceless.”
“Todas as coisas de valor estão sem defesa”
Uma famosa frase do poeta holandês Lucebert (tradução para o inglês do autor ).
4
Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, adotada em Haia, em 14
de maio de 1954, reimprimida em Dietrich Schindler & Jiri Toman (Eds.),
, 3rd ed., Martinus Nijhoff/Henry Dunant
Institute, Dordrecht/ Geneva, 1988, pp. 745-759 [Convenção de Haia de 1954].
5

7
Protocolo à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, adotada em Haia,
em 14 de maio de 1954, ibid., pp. 777-782.

25
JEAN-MARIE HENCKAERTS

brevemente explicado nas seções seguintes deste artigo.

A efetividade da Convenção de Haia de 1954 tornou-se objeto de


preocupação geral no início dos anos noventa, durante a segunda Guerra do
Golfo e a guerra na antiga Iugoslávia. Como esse artigo demonstrará, essa
efetividade, infelizmente, continua a ser testada nas guerras dos Balcãs.

Em 1991, o governo dos Países Baixos decidiu incluir uma revisão da


Convenção de Haia de 1954 como parte de sua contribuição à United
Nations Decade of International Law. Como resultado, os Países Baixos
e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO) comissionaram e fundaram conjuntamente “uma revisão
dos objetivos e operação da Convenção e do Protocolo com o intuito de

qualquer revisão da Convenção que seja necessária, talvez pelo meio de um


Protocolo adicional”.8 Essa revisão foi publicada em 1993 pelo professor
Patrick Boylan.

Nos anos seguintes, o governo dos Países Baixos continuou a ser a força
motriz por trás do processo de revisão e três reuniões de especialistas
foram organizadas, tendo como resultado o documento “Lauswolt”, nome
da cidade no qual foi projetado. O documento de Lauswolt constitui em um
projeto de tratado que tomou como base a revisão do professor Boylan.

Em março de 1997, vinte especialistas de governos se encontraram na


sede da UNESCO em Paris para revisar o documento de Lauswolt. Com
base nestas discussões, o Secretário da UNESCO elaborou uma revisão
do documento de Lauswolt, que foi submetido aos Estados-parte da
Convenção de Haia de 1954 em um encontro à Paris em 13 de novembro

para discutir mais algumas questão legais e a proposta dos Países Baixos
em convocar uma conferência diplomática em 1999 para transformar o
documento de Lauswolt em um tratado foi acolhida.

8
Patrick J. Boylan, Review of the Convention for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed
Conflict (The Hague Convention of 1954), UNESCO, Paris, 1993, p. 19.

26
JEAN-MARIE HENCKAERTS

serem discutidos no Segundo Protocolo:


• A exceção militar;

• Medidas de precaução;

• O sistema de proteção especial;

• Responsabilidade criminal do indivíduo;

• Aspectos institucionais.

Após o encontro, o Projeto Preliminar do Segundo Protocolo à Convenção


de Haia de 1954 foi elaborado.9 Estados e organizações relevantes foram
convidados para submeter comentários ao Projeto, em particular aos
cinco pontos mencionados acima.10 Com base nesses comentários, o
Secretariado da UNESCO e o governo dos Países Baixos elaboraram o
11

A Conferência diplomática do Segundo Protocolo à Convenção de Haia de


1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado foi
realizada em Haia, nos dias 15 à 26 de março de 1999. Em 26 de março
de 1999, a Conferência adotou o Segundo Protocolo à Convenção de Haia
de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado
(Segundo Protocolo) sem votação.12 Foi aberto para assinatura em Haia, no
dia 17 de maio de 1999 durante as celebrações do centenário da Primeira
Conferência Internacional para a Paz e foi assinado por 27 Estados nesta

9
UNESCO Doc. HC/1999/1, 9 de outubro de 1998.
10
Ver o Synoptic report with its Addendum and Corrigendum of comments on the Preliminary Draft Second
Protocol to the 1954 Hague Convention received from High Contracting Parties to the Hague Convention
for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict 1954, other UNESCO Member States
and international organizations, UNESCO Docs. HC/1999/4, 15 de janeiro de 1999, HC/1999/4/Add.1,
Março 1999, e HC/1999/4/Add.1/Corr.1, 18 de março de 1999. Aspectos militares e legais do projeto
preliminar foram discutidos mais profundamente com base no direito humanitário moderno no Encontro
de Especialistas para o aperfeiçoamento da Convenção de Haia de 1954, Leiden (Netherlands), 17-18 de
dezembro de 1998.
11
Projeto do Segundo Protocolo da Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em
caso de Conflito Armado, UNESCO Doc. HC/1999/1/rev.1, Fevereiro de 1999.
12
Segundo Protocolo à Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito
Armado, adota em Haia em 17 de maio de 1999, UNESCO Doc. HC/1999/7, 26 de março de 1999 [Segundo
Protocolo].

27
JEAN-MARIE HENCKAERTS

data.13 Ele continuou aberto para assinaturas até dia 31 de dezembro de 1999.

O Segundo Protocolo é adicional à Convenção de Haia de 1954, que


continua sendo o texto básico. O Estado só pode se tornar parte do

todo o processo de revisão, quatro opções foram discutidas no que tange


a técnica do tratado usaria para melhorar a Convenção de Haia de 1954.
O primeiro constituía em alterar a Convenção de Haia de 1954; contudo,
qualquer alteração necessitaria de uma adoção unanime por todos os
Estados-parte da Convenção.14 Como isso seria praticamente impossível,
essa opção foi descartada apesar do apoio de alguns Estados. A segunda
opção consistia na adoção de uma nova Convenção. Esta opção requereria
negociações substanciais e teria a desvantagem de criar dois sistemas
separados. Por isso, essa opção nunca foi realmente considerada.

A terceira opção constituía na adoção de Protocolo com o objetivo de


revisar a Convenção de Haia de 1954. Diversas delegações advogaram
fortemente por esta opção, contudo, devido o fato que uma unanimidade
seria novamente requerida, ela foi rejeitada pela maioria das delegações.

protocolo adicional que não alteraria a Convenção de Haia de 1954 mas

Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra de 1949 foram


um precedente útil. Assim, todo o esforço foi feito para que cada provisão
do Segundo Protocolo fosse realmente adicional à Convenção de Haia de
1954.

O objetivo deste artigo é destacar os maiores desenvolvimentos contidos


no Segundo Protocolo e mencionar alguns pontos de consenso que foram
reconhecidos na Conferência diplomática, mas não foram refletidos como
tais no texto do Protocolo na no Ato Final da Conferência.

13

14
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 39(5).

28
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Seguindo o artigo 3 da Convenção de Haia de 1954, Estados encarregam-


-se de preparar em tempos de paz a salvaguarda de bens culturais contra
efeitos previsíveis de um conflito armado “adotando as providências que
julgarem necessárias”. Mas a Convenção não prevê medidas mais detalha-
das sobre quais ações devem ser tomadas.

O Segundo Protocolo tem como intenção de fornecer orientação nesse


sentido, por exemplo citando exemplos concretos de medidas a serem
tomadas em tempo de paz:15
• A preparação de inventários;

• Planejamento de medidas emergenciais para


a proteção contra o período de incêndios ou
desabamento;

• A preparação para a retirada de bens culturais


móveis ou o fornecimento de proteção in situ
adequada para tais bens;

• A designação de autoridades competentes


responsáveis pela salvaguarda dos bens
culturais.

Essas medidas são de grande importância prática para a proteção de bens


culturais no evento de um conflito armado.

Como esses requerimentos em mente, o Segundo Protocolo prevê para


a alocação de um Fundo para a proteção de bens culturais em caso de
conflito armado.16

preparatórias ou de outra natureza a serem realizadas em tempos de paz. Ele


será administrado pelo Comitê para a Proteção de Bens Culturais em caso
de conflito armado, que será instalado segundo as provisões do Segundo
Protocolo.17 Os recursos do fundo constituirão de contribuições voluntárias

15
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 5.
16
Ibid., artigo 29.
17
Ibid., artigo 24

29
JEAN-MARIE HENCKAERTS

feitas por Estados-parte ao Protocolo.18 Alguns Estados pediram a inclusão

Ademais, o Segundo Protocolo expande a proteção geral no que tange


a disseminação, inclusa na Convenção de Haia de 1954.19 Novamente,

especialmente para as autoridades militares e civis que assumem a


responsabilidade de aplicar o Segundo Protocolo. Elas devem ter pleno
conhecimento de seu texto e para isso os Estados-parte devem, quando
apropriado:20
• Incorporar procedimentos e instruções sobre a
proteção de bens culturais nos seus regulamentos
militares;

• Desenvolver e implementar, em cooperação com


a UNESCO e as organizações governamentais e
não-governamentais competentes, programas
educacionais e de instrução em período de paz;

• Comunicar entre si, por intermédio do Diretor-Geral


da UNESCO, informações sobre leis, disposições
administrativas e medidas tomadas para a
aplicação dos itens supramencionados

• Comunicar entre si, com a maior brevidade, por


intermédio do Diretor-Geral da UNESCO, as leis e
disposições administrativas que terão adotado a

A experiência do Comitê Internacional da Cruz Vermelha prevê uma ampla


evidência do papel essencial da disseminação ao se tratar de assegurar o
respeito ao direito internacional humanitário.

18
Ibid., artigo 29(4).
19
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 25.
20
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 30.

30
JEAN-MARIE HENCKAERTS

O artigo 4 da Convenção de Haia de 1954 prevê que os bens culturais


não devem se sujeitar a quaisquer atos de hostilidade, tampouco serem
utilizados para propósitos que provavelmente os exporiam a destruição
ou dano em caso de conflito armado. Imediatamente adiciona, contudo,
que ambas obrigações podem ser dispensadas em caso de “necessidade

diz respeito ao princípio básico de proteção incluído na Convenção de Haia


de 1954.21

Apesar das origens do princípio de necessidade militar terem início no


Lieber Code,22
primeiramente no direito internacional pelas Regulações de Haia de
1907, limitando a destruição ou captura da propriedade do inimigo as
necessidades da guerra.23 A Convenção de Haia de 1954 empresta essa
noção uma vez que poucos instrumentos estabeleciam limites aplicáveis
na condução das hostilidades.24

Como o demonstrado no decorrer da história, o conceito de necessidade

por exemplo, foi traçada dentro da restrição que nenhuma propriedade


poderia ser destruída a não ser que uma necessidade militar imperativa
demandasse. Contudo, cidades inteiras foram destruídas.

Aparentemente, a noção de necessidade militar é muito vaga para


constituir uma limitação efetiva na guerra. Inclusive advogados militares

21
Boylan, op. cit., p.54-57.
22
Ver Burrus M. Carnahan, “Lincoln. Lieber and the laws of war: The origins and limits of the principle of
military necessity”, , Vol. 92, 1998, 213; e Horace B. Robertson, Jr.,
“The principle of military objective in the law of armed conflict”, in Michael N. Schmitt (Ed.), The Law of
Military Operations — Liber Amicorum Professor Jack Grunawalt, International Law Studies, Vol. 72, Naval
War College Press, Newport, Rhode Island, 1998, p.197.
23
Regulações à Convenção (IV) relativa às leis e usos de guerra terrestre, adotada em Haia, em 18 de
outubro de 1907, 18 de outubro de 1907, artigo 23(g), in Schindler/ Toman, op. cit., p.83.
24

cogente. Ver, por exemplo o artigo 24(1) da Regras de Haia relativas à guerra aérea, projetada pela Comissão
de Jurístas em Haia, dez. 1922 – fev. 1923, in Schindler/Toman, op. cit.,, p.210:
“Bombardeios aéreos são legítimos somente quando direcionados a objetivos militares, isto é, um objetivo
pelo qual sua destruição ou dano constitua uma vantagem militar distinta para o beligerante.”

31
JEAN-MARIE HENCKAERTS

na Conferência Diplomática admitiram que é difícil ensinar a suas tropas


como interpretar e trabalhar com esse conceito. Em geral, assuntos que
deixam cláusulas discricionárias com base na necessidade militar são
aquelas que não podem ser reguladas e; assuntos não regulados fornecem

devem ser substituídas por critérios


25

objetivos cogentes aos militares. O objetivo da Conferência Diplomática foi


dar o conteúdo a essa noção de necessidade militar imperativa de modo a

Limitar ataques aos objetivos militares iria em grande parte atingir esse
objetivo. Não se deve esquecer que a Convenção de Haia de 1954 foi
adotada bem antes dos Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de
Genebra de 1949. A Convenção foi projetada contra o histórico da Segunda
Guerra Mundial, em um tempo que ainda era considerado aceitável que
cidades inteiras fossem atacadas. No decorrer deste conflito, a Convenção
de Haia de 1954 procurou proteger bens culturais valiosos.

Em 1977, Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de


Agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados
Internacionais (Primeiro Protocolo Adicional) afastou essa abordagem.26

escolhidos de maneira mais cuidadosa — deveriam ser objeto de ataques.


Civis e sua respectiva propriedade não poderiam ser alvo de ataques
diretos. Essa abordagem é um exemplo claro de como o direito humanitário
equilibra as necessidades militares com as necessidades humanitárias:
permite ataques que são necessários mas estabelece limites humanitários
estritos.

25
Yves Sandoz, Christophe Swinarski e Bruno Zimmerman (eds.),
, ICRC/Martinus Nijhoff, Dordrecht/Geneva, 1987,
p.395, citando Éric David, La protection des populations civiles pendant les conflits armés, International
Institute for Human Rights, VIIIth Teaching Session, Julho 1977, Strasbourg, p. 52.
26
Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas
dos Conflitos Armados Internacionais [Primeiro Protocolo Adicional], in Schindler/Toman, op. cit., p.621-
688.

32
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Portanto, era óbvio que qualquer avanço da Convenção de Haia de 1954


deveria refletir essa abordagem moderna: bens culturais são geralmente
propriedade civil e como tal não devem ser atacadas; podem ser atacadas
somente se e quando se e pelo tempo que se torna um objetivo militar.
Essa abordagem também tem a vantagem de fornecer uma resposta mais
clara sobre a questão de quando os bens culturais podem ser atacados.

Adicional às Convenções de Genebra foi uma das maiores conquistas da

Direito Internacional Humanitário aplicável aos conflitos armados (CDDH),


que foi convocada pelo governo suíço em 1974 e que adotou o Primeiro
Protocolo Adicional em 8 de junho de 1977. Os Estados que não são partes
do Primeiro Protocolo Adicional, como Estados Unidos da América, Turquia

durante a Conferência diplomática de 1999 que adotou o Segundo Protocolo


à Convenção de Haia de 1954. Isto ilustra como a Conferência diplomática

como desenvolver outras.

cumulativamente anteriormente da destruição, captura ou neutralização


dos objetos. Esses critérios lidam com a natureza, localização, propósito
e uso desses objetos e com a vantagem militar a ser adquirida pela sua
destruição, captura ou neutralização. A natureza, localização, propósito e
uso desses objetos devem ser constituídas de tal modo que realizam uma
“contribuição efetiva à ação militar”. A vantagem militar de ser oferecida

são o mais claro que foi permitido pelas negociações da CDDH e eles são
razoavelmente estritos.

Como tal, a noção de objetivo militar incorpora a ideia de necessidade


militar. Uma vez que o objeto se torna um objetivo militar, ele pode ser
destruído, capturado ou neutralizado, condicionado a algumas exceções.
Essa regra simples reconhece a necessidade militar de ataque a alguns
objetos durante a guerra. Ao limitar esses objetos a aqueles que são

33
JEAN-MARIE HENCKAERTS

objetivos militares, é incorporada a noção que a guerra possui limites,


Assim, o conceito de objetivo militar incorpora interesses militares e
preocupações humanitárias.

O requisito da Convenção de Haia de 1954 que a necessidade militar deve

pela segunda condição, a saber: que não deve existir outra alternativa
possível. A necessidade militar poderia, portanto, em teoria, nunca ser

no caminho de uma frota em avanço, uma vez que quase sempre existem

uma possível escolha entre vários objetivos militares e um deles consiste


em um bem cultural, o último não deve ser atacado. De fato, essa previsão
adiciona os bens culturais aos objetivos militares que, sob a égide do artigo
57(3) do Primeiro Protocolo Adicional, não devem ser atacados.27

A proteção de bens culturais é reforçada nesse conceito de objetivo militar —


tão amplamente reconhecido e utilizado que se tornou direito internacional

A regra que somente objetivos militares podem constituir alvos é parte


de uma parcela de manuais militares e treinamento militares ao redor do

importante conter um texto simples que é fácil de ser utilizado e ensinado.


O conceito de objetivo militar preenche esses requisitos bem melhor que o
vago conceito de necessidade militar.

propostas submetidas pela Áustria e pelo CICV. A proposta austríaca


consistia em: “necessidade militar imperativa do artigo 4, parágrafo
segundo da Convenção somente pode ser invocado quando não existe
outra alternativa possível para concluir a missão e pelo tempo que essas
razões de invocação existam”. Já proposta da CICV é: “objetos constituindo

27
Ibid., artigo 57(3) que prevê “Quando é possível eleger entre vários objetivos militares para se obter uma
vantagem militar equivalente, optar-se-á pelo objetivo cujo ataque, segundo seja de prever, apresente menor
perigo para as pessoas civis e os bens de caráter civil, [que não são bens culturais].” O texto adicionado
demonstra como o artigo 57(3) deveria ser lido por Estados que são parte de ambos Primeiro e Segundo
Protocolo Adicional às Convenções de Genebra.

34
JEAN-MARIE HENCKAERTS

bens culturais perdem sua proteção geral do momento que eles se tornam
objetivos militares, por exemplo quando eles são utilizados para fazer uma
contribuição efetiva a uma ação militar e quando sua destruição, total ou

nas circunstâncias presentes no momento”.

O Grupo de Trabalho do Capítulo 2 foi criado sob a presidência da Áustria. Seu


objetivo era combinar as duas propostas, na medida em que as delegações
entenderam que ambas possuíam mérito e eram complementares. A

militar, enquanto a proposta da CICV pretendia utilizar o conceito de


objetivo militar para dar conteúdo ao princípio da necessidade militar. Uma
crítica à proposta da CICV era o destaque do uso de bens culturais que
poderiam trazer uma contribuição efetiva para uma ação militar, enquanto

localização, propósito ou uso dos objetos que por sua natureza, sua
localização, seu propósito ou sua utilização podem trazer uma contribuição
efetiva para uma ação militar. Vária delegação e países, a maioria de países

do Primeiro Protocolo.

militar no começo do Protocolo, enquanto o Artigo 4 limitaria os atos de


hostilidades dirigidos aos bens culturais “pelo seu uso, se transformar num
objetivo militar”. Contudo, inclusive no Grupo de Trabalho, várias delegações
expressaram sua preocupação pela restrição de “pelo seu uso”, por meio do
que os bens culturais poderiam se tornar bens culturais somente por seu
uso e não por sua localização, por exemplo. Quando o projeto realizado
pelo Grupo de Trabalho voltou para plenária da Conferência, a questão que
se relaciona com o uso e a localização do bem foi bastante controvertida e

As delegações egípcia e grega foram as maiores apoiadoras da restrição


pela qual os bens culturais poderiam se tornar objetivos militares somente
devido seu uso. O argumento era que os bens culturais que não são

35
JEAN-MARIE HENCKAERTS

utilizados por uma ação militar nunca poderia ser objeto de ataque. Se a
mera localização poderia tornar um bem cultural em um objetivo militar, a

ação positiva seria necessária do possuidor do bem antes que esse pudesse
se tornar um objetivo militar. A CICV apoiou essa abordagem.

Como era acordado que a natureza e o propósito dos bens culturais nunca
poderiam torná-los em objetivo militares, o debate concentrou na questão
da localização. O Comentário da CICV ao Primeiro Protocolo de 1977
observou que o Grupo de Trabalho do Comitê III introduziu o critério de
localização sem explicitar as razões.28 O mesmo pode ser dito do Segundo
Protocolo. Nenhuma razão real foi dada para o porque a localização deveria
ser incluída.

Um exemplo comumente citado na Conferência diplomática foi das pontes


históricas. Esse exemplo é equivocado, contudo, tendo em vista que o uso
dessas pontes traz uma contribuição efetiva a uma ação militar.

tropas poderia ser bloqueada por uma parede histórica e poderia não existir
um meio de contornar a parede, se esta estivesse localizada em um vale
ou em uma passagem de montanha. Para contornar a parede muito tempo
seria gasto e o comandante, portanto, ou suportaria causalidade ou passaria
pela parede. Neste caso, a parede militar não seria utilizada por uma ação
militar, mas se tornaria um objetivo militar meramente por sua localização.
Esse exemplo não parece realista na medida em que essas paredes não
são usualmente construídas em vales ou passagens em montanhas. A

mesmo assim diversas delegações, a maioria de países pertencentes a


OTAN, insistiram fortemente nele.

O Comentário da CICV ao Primeiro Protocolo Adicional contém os seguintes


exemplos de bens que, em virtude de sua localização, podem trazer uma
contribuição efetiva para uma ação militar: uma ponte ou outra construção
ou um sítio que possui especial importância para operações militares tendo

28
Comentário CICV, op. cit., p. 636, para. 2021.

36
JEAN-MARIE HENCKAERTS

em vista sua localização, seja porque deve ser apreendido, seja pela sua
importância em não deixar que o inimigo o apreenda, ou ainda para forçar
o inimigo a se retirar do local.29

Como mencionado acima no que tange a pontes históricas, a função da


construção ou sítio que torna o bem em um objetivo militar. No que tange
os locais que devem ser apreendidos por causa de sua localização, a
questão seguinte foi levantada na CDDH: que situação se constituiria se o
beligerante em uma área de combate desejasse prevenir o estabelecimento
das forças inimigas em uma certa área ou que elas passassem por esta
área, por exemplo, usando uma barragem de fogo.30 Há pouca dúvida, de
acordo com o Comentário, que esta área seria considerada um objetivo
militar e deveria ser tratado como tal.31 Certamente, essa situação somente
se aplica a áreas limitadas e não vastas porções do território. Se aplica
primariamente a passagens estreitas, pontes ou pontos estratégicos como
passagens em colinas e montanhas.32

Nenhum desses exemplos constitui uma evidência da necessidade de tornar


bens culturais em alvos por causa de sua localização. Existe evidência

culturais em objetivos militares é, em última análise, sua função. Em 1907,


o artigo 27 das Regulações de Haia relativa às leis e usos de guerra terrestre
estipulou que “em cercos e bombardeios, todas as medidas necessárias
devem ser tomadas para poupar, sempre que possível, edifícios dedicados

e lugares onde os doentes e feridos são recolhidos, desde que não seja

uso desses objetos que retira sua proteção.

essa abordagem. O artigo 53 proíbe o uso de bens culturais para o apoio

29
Ibid., p. 636, para. 2021.
30
Ibid., p. 621, para. 1955.
31
Ibid.
32
Ibid.

37
JEAN-MARIE HENCKAERTS

de esforços militares.33 O Comentário nota que “se os objetos protegidos


forem utilizados para o suporte de um esforço militar, isso constituiria
obviamente uma violação do artigo 53 do Protocolo, embora não fosse

lo no que tange os objetos de valor excepcional, se esses constituírem em


34

Por exemplo, “não é permitido destruir objetos culturais cujo uso não traz
nenhuma contribuição para ações militares, nem objetos culturais que
temporariamente servissem como refúgio para combatentes, mas que não
mais fossem utilizados como tal”.35

A solução foi substituir a frase “pelo seu uso, se transformar num objetivo
militar” pela frase “pela sua função, tiver sido transformado num objetivo
militar”. Isso representa uma dupla mudança. Primeiramente, a palavra

objetivo militar. Além disso, “se transformar” foi substituído por “tiver sido
transformado”.

No que tange o novo texto, é amplamente compreendido que “função”

que não funciona mais como uma não poderia ser considerada como
um objetivo militar. Ademais, o novo texto procura projetar o requisito de
um papel ativo pela parte do possuidor dos bens culturais em torná-los
objetivos militares. Isso somente pode ser realizado mediante o uso.

Somente forçando a imaginação é que função poderia cobrir também


localização: o exemplo da parede histórica que bloqueia os soldados
poderia novamente ser encaixada, se as circunstâncias nas quais a parede
teria como função é bloquear os soldados em retirada, isto a tornaria em
um objetivo militar. Contudo, não é um problema enfrentado pelos bens

33
Embora o artigo 53 lida somente com o uso de bens de valor excepcional, por exemplo bens culturais
listados no Registro Internacional de Bens Culturais sob Proteção Especial ou a nova lista de Bens Culturais
sob Proteção Reforçada, o autor argumentará posteriormente que não existe a necessidade de diferenciar
entre a proteção especial ou reforçada e a proteção geral.
34
Comentário CICV, op. cit., p. 648, para. 2079.
35
Ibid. — ver também Michael Bothe, Karl Josef Partsch, Waldemar A. Solf, New Rules for Victims of Armed
Conflicts, Commentary on the Two 1977 Protocols Additional to the Geneva Conventions of 1949, Martinus
Nijhoff, The Hague/Boston/London, 1982, p.334, para. 2.6.

38
JEAN-MARIE HENCKAERTS

culturais em caso de conflito armado concreto. Nesses, o problema


surge no momento que os bens culturais são atacados mesmo quando
não são utilizados por ações militares ou quando são atacados de forma
indiscriminada. Nos conflitos armados reais a regra deveria ser simples:
bens culturais que não são utilizados para trazer uma contribuição efetiva
para uma ação militar e suja destruição, captura, ou neutralização não
oferece uma vantagem militar não podem ser alvo de ataques. É difícil
imaginar como comandantes poderiam ensinar de outra forma.

É notável que advogados militares que pedem textos que são simples para
ensinar e aplicar discutiram tão profundamente sobre diferenças mínimas
que serão difíceis de aplicar e ensinar. A razão pela qual alguns delegados
discutem fortemente pela restrição ter como base o uso era clara. A
mera localização das pirâmides do Egito ou templos nas ilhas gregas
nunca deveria servir de pretexto para atacar tais objetos. A insistência da
mudança de uso para função é difícil de entender, quando o único exemplo
que poderia ser formado é uma parede histórica que bloqueia a passagem.
Esse exemplo pode facilmente ser lidado com a exceção da proibição de
uso de bens culturais, portanto, deixando o sistema consistente, claro e
simples. Espera-se que ele será ensinado e aplicado deste modo.

A Convenção de Haia de 1954 também permite o uso de bens culturais


para ações militares caso uma necessidade militar o requeira. O mesmo
problema explicitado acima se aplica a exceção no que diz respeito ao

proteção de bens culturais poderia ser reforçada com maior precisão.

Um proibição absoluta do uso de bens culturais para ações militares é difícil


de ser concebida, pois pode haver realmente situações nas quais as forças
militares necessitam de se valer de bens culturais por razões pertinentes.
Um exemplo clássico é o caso de tropas se retirando que precisam se
abrigar em bens culturais por razões de defesa. Como a exceção é limitada
a casos de necessidade militar imperativo, esse uso só pode ser feito
se não houver outro meio para se abrigar alternativa possível. Assim, o

39
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Segundo Protocolo prevê uma revogação amparada em necessidade militar


imperativa que só pode ser invocada para utilizar bens culturais para ações
militares “quando e enquanto não houver nenhuma escolha possível entre
tal utilização dos bens culturais e outro método praticamente possível de
se obter uma vantagem militar equivalente”.36

Finalmente, deve ser notado que a decisão de atacar ou usar bens culturais
amparada em necessidade militar explicada acima só pode ser tomada pelo
chefe de uma força militar igual ou superior em importância de um batalhão,
ou por uma força militar menor em tamanho quando as circunstâncias não
permitirem agir diferentemente.37

A Convenção de Haia de 1954 estabelece um sistema especial de proteção.


Esse sistema foi projetado para limitar o número de refúgios com o objetivo
de abrigar bens culturais móveis, centros que contêm monumentos e de
outros bens culturais imóveis de grande importância.38 A proteção especial
é concedida mediante a entrada no Registro Internacional de Bens Culturais
sob Proteção Especial.39 O sistema de proteção pretende salvaguardar bens
culturais como o Palácio de Versalhes na França ou Taj Mahal na Índia.

Infelizmente, esse sistema teve seu sucesso limitado. Somente um centro


contendo monumentos e oito refúgios para bens culturais foram listados
no Registro.40 Três refúgios foram retirados da lista em 1994, restando
somente um centro e cinco refúgios. Existem inúmeras razões pelas
quais tão poucos objetos foram listados. O primeiro é o requisito para a

36
Segundo Protocolo, artigo 6(b). Deve ser notado que o protocolo fala de “revogação amparada em
necessidade militar imperativa” porque esta é a linguagem utilizada no artigo 4(2) da Convenção de Haia de
1954. O Segundo Protocolo é adicional à Convenção de Haia de 1954.
37
Ibid., artigo 6(c).
38
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 8(1).
39
Ibid., artigo 8(6).
40
Eles são: a cidade do Vaticano (18 de janeiro de 1960), o refúgio de Alt-Aussee na Áustria (17 de novembro
de 1967), seis refúgios nos Países Baixos (Zandvoort (2), Heemskerk (2, cancelado em 22 de setembro de
1994), Steenwijkerwold (cancelado em 22 de setembro de 1994), Maastricht (12 de maio de 1969))e o centro
de refúgio Oberrieder Stollen refuge na Alemanha (22 de abril de 1978). Ver o Registro Internacional de Bens
Culturais sob Proteção Especial, UNESCO Doc. CLT-97/WS/12, Agosto 1997.

40
JEAN-MARIE HENCKAERTS

concessão da proteção de encontrar-se a uma distância apropriada de um


grande centro industrial ou de um objetivo militar importante.41 Em vários
casos é quase impossível preencher essa condição, uma vez que a maioria
dos bens culturais de maior importância encontram-se no coração das
cidades rodeados de potenciais objetivos militares. Ademais, não há um
consenso sobre o que consiste uma distância apropriada, sendo difícil
a preparação de uma requisição para entrar no Registro ou de julgar tal
pedido. Isso também indica que a Convenção de Haia de 1954 foi adotada
anteriormente aos desenvolvimentos do direito humanitário refletidos no
Protocolos Adicionais de 1977 e bem antes da evolução tecnológica que
trouxe meios e métodos de se fazer guerra mais precisos para se atingir
um alvo.

Motivações políticas também impediram o registro de certos bens culturais.


Estados podem objetar a entrada de um bem no Registro e essa prática
foi empregada diversas vezes com base na ilegitimidade da autoridade
demandante para representar o país em questão.42

Assim, o Segundo Protocolo dispensou o critério da distância e limitou o


depósito de objeções. No novo sistema, três critérios devem ser observados
para que o bem cultural possa ser listado na nova Lista internacional dos
bens culturais sob proteção reforçada (a Lista):43
• Tratar-se de um patrimônio cultural da maior
importância para a humanidade;

• Deve ser protegido por medidas internas, jurídicas


e administrativas, adequadas, que reconhecem
seu valor histórico e cultural excepcionais e
asseguram-lhe o mais alto nível de proteção;


proteger locais limitares, e a Parte que tenha
controle sobre o bem cultural deve fazer uma

41
Convenção de 1954, Artigo 8(1)(a).
42
iri Toman, Dartmouth/Unesco, Aldershot/
Paris, 1996, p.108-109.
43
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 10.

41
JEAN-MARIE HENCKAERTS

A decisão de conceder ou denegar a proteção especial só pode ser feita


com base nesses critérios. Ademais, objeções contra a concessão devem
44
Essa é uma resposta clara às

O fato que a Lista de Patrimônio Mundial da Convenção para a Proteção


do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 é amplamente utilizada
— 582 sítios listados45 — constitui um incentivo para tentar fazer com que
o Registro Internacional de Bens Culturais sob Proteção Especial funcione.
Contudo, esforços passados mostram que isto só pode ser realizado se

passadas.46 A utilidade de tais listas depende no ser reconhecimento


internacional: sua mera existência deveria constituir em uma ferramenta
efetiva para prevenção e proteção. A UNESCO relembraria as partes de um
conflito da lista e assinalar que qualquer uso militar ou ataque contra um bem
listado constituiria um crime de guerra graves (ver abaixo). A realização de
tais atos deveria também ter implicações políticas negativas. Quando não
existia lista para tempos de guerra, como no caso dos ataques à Dubrovnik,
a UNESCO utilizava a Lista de Patrimônio Mundial, que então contém
necessariamente propósitos para conflitos. Como resultado, Dubrovnik
foi mais ou menos poupado. Esse exemplo fortaleceu a convicção que
poderia ser útil uma lista de bens culturais de valor excepcional para serem
protegidos em tempos de guerra. Essa convicção foi claramente articulada
pelos Estados representados no Encontro Preparatório em Viena em Maio
de 1998.

Como o Segundo Protocolo é adicional à Convenção de Haia de 1954, e


não a emenda, o sistema existente de proteção especial não podia ser

44
Ibid., artigos 11(5) e 11(7).
45
NT: até novembro de 2015, 1031 sítios constam na Lista.
46
Ver Toman, op. cit., p. 108-111, para exemplos de bens culturais importantes que, por uma razão ou outra,
não foram incluídos no Registro Internacional de Bens Culturais sob Proteção Especial.

42
JEAN-MARIE HENCKAERTS

existente não obteve tanto sucesso, a intenção era claramente começar a


utilizar o novo sistema. Estados que queria registrar qualquer propriedade,
deveriam começar a utilizar a Lista internacional dos bens culturais sob
proteção reforçada estabelecida pelo Segundo Protocolo e Estados que
possuíam bens listados no registro anterior deveria pedir a transferência
para a nova lista.

O fato é que um novo sistema teve que ser colocar para explicar o porquê
do nome a ser utilizado. O uso contínuo da designação “proteção especial”
implicaria em uma emenda ao sistema existente de proteção especial.
Como o Protocolo é claramente suplementar, um novo nome deveria ser
utilizado e um sistema novo e separado deveria ser colocado em prática.

Sob a Convenção de Haia de 1954, proteção especial consiste na imunidade


de tal propriedade que só pode ser retirada “em casos extraordinários de
necessidade militar imperativa”.47 Os termos utilizados demonstram um
padrão mais estrito que para os demais bens culturais, onde a proteção pode
ser levantada em caso de “necessidade militar imperativa”. No entanto, na
prática, não era claro o que “casos extraordinários de necessidade militar

para quando os bens culturais sob proteção reforçada perdiam sua proteção,
isto é, “se, e enquanto, o bem tiver sido, pela sua utilização, transformado

utilização do bem” que o transformou em objetivo militar.48

A perda da proteção reforçada é condicional ao uso de bens culturais


de modo que o tornem objetivos militares. O termo “utilização” não foi
substituído por “função” como foi o caso para o sistema de proteção geral
para todos os bens culturais, com base no argumento que o quid pro quo
da proteção reforçada era o não uso em troca da proteção. Como indicado
acima, uma das condições para a concessão da proteção é a abstenção

47
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 11(2).
48
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 13.

43
JEAN-MARIE HENCKAERTS

que ele não será utilizado para tanto. O argumento que, uma vez que existe
a promessa de não utilizar, a proteção reforçada só pode ser perdida
mediante o uso. Foi ainda argumentado que limitar a perda dessa proteção
para somente o uso, é uma parte essencial do nível de “reforço” que a
proteção oferecia pelo sistema estabelecido. Esse argumento, no entanto,
é equivocado.

Um equívoco comum é que existe uma diferença em níveis de proteção


concedido aos bens culturais sob a proteção geral ou reforçada — e os
nomes realmente sugerem que essa diferença existe. Contudo, não existe,
de fato, um nível maior ou menor de proteção. A proteção básica é a mesma:
o objeto não pode ser destruído, capturado ou neutralizado. Uma vez que
a proteção é perdida, ambos podem ser destruídos: “you use, you lose”49. A
diferença mínima consiste no nível de comando no qual o ataque deve ser
ordenado, a advertência a ser dada e o requisito de um tempo razoável para
as forças inimigas corrigirem a situação (ver abaixo), mas essas diferenças
não mudam o básico para a perda da proteção.

Não existe diferença no nível de proteção e não há necessidade de diferenciar


dois modos pelos quais os bens culturais se transformam em objetivos
militares. O que existe de diferença entre a proteção reforçada e a proteção
geral? A principal diferença consiste não nas obrigações daquele que ataca,
mas nas obrigações daquele que controla o bem. No caso de proteção geral,
aquele que controla o bem tem o direito, se necessário, de converter o bem
em objetivo militar, utilizando-se de uma ação militar. No caso da proteção
reforçada, aquele que controla o bem não possui tal direito. O Registro na
Lista portanto requer que o Estado-parte leve seriamente em consideração
o estudo de se haveria a necessidade daquele bem para objetivos militares
e a resposta deve ser negativa.

Usar bens presentes na Lista para propósitos militares consiste em uma


violação séria do Segundo Protocolo e o indivíduo que comete tal ato pode
ser responsabilizado por crime de guerra (ver abaixo). O termo “proteção
reforçada”, nesse sentido, pode levar ao equívoco. A essência do sistema é

49
Você usa, você perde.

44
JEAN-MARIE HENCKAERTS

será utilizado para propósitos militares. Como resultado, o bem nunca deve
ser alvo de ataque. A vantagem de colocar o bem na lista é que o adversário

consequências graves para aquele que o comete (ver abaixo).

O registro de um objeto na Lista pode ser comparado com uma declaração


internacional estabelecendo uma localidade não-defendida.50 É melhor
realizar tal declaração em tempos de paz para garantir que a proteção é
executável se e quando um conflito armado se inicia.

Uma vez que os bens culturais, pela sua função, se transformaram em um


objetivo militar e não existe outro meio possível para adquirir a vantagem
militar, o bem perde sua proteção contra ataques. O Segundo Protocolo
adiciona outra condição para o ataque, dando um nível extra de proteção
para os bens culturais que se tornaram objetivos militares, além da proteção
concedida a todos objetos civis. No caso de um ataque, uma advertência
prévia e efetiva deve ser dada, se as condições o permitirem.51 Esse
dever não existe na Convenção de Haia de 1954. Esse dever de dar uma

civil.52 Isso demonstra como a proteção de bens culturais se aproxima, em


alguns aspectos, da proteção da população civil como tal e vai além da
proteção concedida a objetos civis.

Ademais, um ataque só pode ser ordenado por um chefe de uma força


militar igual ou superior em importância a um batalhão, ou por uma força
militar menor em tamanho quando as circunstâncias não permitirem agir

50
Ver Protocolo Adicional I, artigo 59.
51
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 6(d).
52
Primeiro Protocolo Adicional, op. cit., artigo 57(2)(c).

45
JEAN-MARIE HENCKAERTS

diferente.53

Sob a Convenção de Haia de 1954, um ataque a bens culturais sob


proteção especial só pode ser ordenado pelo “chefe de uma formação
igual ou superior, em contingente, a uma divisão. Sempre que as condições

contrária com uma razoável antecedência”.54

O Segundo Protocolo visa aperfeiçoar essas condições, mas um esforço


para mudar o dever relativo de noticiar em um dever absoluto e um esforço
simultâneo, apoiado pela CICV, de mudar a decisão de ataque para o
maior nível da hierarquia governamental falhou. Realmente, faria sentido
de colocar a decisão de um ataque dentro das prerrogativas daquele com
um maior nível de hierarquia governamental, devido as suas implicações
políticas. Diversos delegados, contudo, arguíram contra tal proposta.
Eles reconheceram que em alguns países a decisão provavelmente seria
tomada por aquele que possui o maior nível de hierarquia governamental,
por exemplo, se o Chefe de Estado é o Comandante Supremo das Forças
Armadas, no entanto, eles entenderam que as estruturas política ao redor
do mundo são muito diversas para que haja a imposição de tal obrigação.
Nesse sentido, o Segundo Protocolo requer que o ataque seja ordenado por
aquele que possuí o maior nível de comando operacional.

Ademais, a proposta de tornar as obrigações de exigir que o ataque seja

anterior ao ataque e de conceder um tempo razoável para a parte inimiga


corrigir a situação em obrigações absolutas foi rejeitada. Diversas
delegações argumentaram que se as tropas de seus respectivos países
fossem atacadas, sendo a origem deste ataque localizada em um bem
cultural, seria excessivo demandar que tais obrigações fossem cumpridas
antes de contra-atacar. Assim, as três obrigações são dispensadas se

53
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 6(c).
54
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 11(2).

46
JEAN-MARIE HENCKAERTS

as circunstâncias não o permitem “em virtude de exigências de legítima


defesa imediata”.55 Apesar da limitação imposta, essas obrigações ainda
representam um progresso à Convenção de Haia de 1954, na medida em
que a patente que pode ordenar o ataque é bem maior que no caso vago
estabelecido pela Convenção e na medida em que a premissa vaga “em
todos os casos que a circunstâncias o permitam” foi limitada. Além disso,
o requisito que um tempo razoável seja concedido as forças inimigas para
corrigir a situação é novo e acrescenta um nível extra de proteção.

A proposta anterior da CICV de aproximar a proteção de bens culturais sob


proteção reforçada da proteção concedida a unidades médicas não foi
considerada. No artigo 21 da Convenção de Genebra de 1949 para a melhoria
da sorte dos feridos e enfermos em exércitos em campanha é estipulado
que a proteção das unidades médicas não deve ser levantada a não ser “se
forem usados para cometer atos nocivos ao inimigo incompatíveis com os
seus deveres humanitários. Todavia, a proteção só cessará após intimação
que estabeleça, em todos os casos apropriados, um prazo razoável e depois
que tal intimação tiver sido desrespeitada”. Foi entendido que os hospitais
merecem um nível excepcional de proteção, maior que aquele concedido a
outros objetos civis.

Ao introduzir a noção de objetivo militar, outras regras na conduta das


hostilidades presentes no Primeiro Protocolo Adicional de 1977 poderiam
também ser incluídos no Segundo Protocolo da Convenção de Haia de 1954.
O Segundo Protocolo, assim, incorporaria as regras presentes do artigo
57 do Protocolo Adicional I. De fato o artigo 57 já incorpora a proteção de
bens culturais, uma vez que ele trata de objetos civis e em princípio todos

bens culturais.

55
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 13(2)(c).

47
JEAN-MARIE HENCKAERTS

O mesmo pode ser dito para o artigo 58 do Primeiro Protocolo Adicional


que lida com as precauções contra os efeitos dos ataques, o chamado
precauções passivas a serem tomadas por aquele que se defende (em
paralelo com as precauções ativas a serem tomadas por aquele que ataca).
O artigo 8 do Segundo Protocolo aplica as regras contidas no artigo 58 do
Protocolo Adicional de modo apropriado para aplicação aos bens culturais.

O artigo 28 da Convenção de Haia de 1954 obriga os Estados “a tomar, no


quadro do seu sistema de direito penal, todas as medidas necessárias para
que sejam encontradas e aplicadas as sanções penais e disciplinares às
pessoas, qualquer que seja a sua nacionalidade, que cometeram ou deram
ordem para cometer uma infração à presente Convenção”.56

Essa regra continua constituindo um texto morto, principalmente devido a


falta de lista das violações que requerem uma sanção criminal. A experiência
do Serviço Consultivo em Direito Humanitário Internacional prova que essa
lista é essencial para que um sistema completo e coerente de repreensão
criminal de crimes de guerra a ser instituído globalmente.

desenvolve o direito humanitário no que diz respeito aos bens culturais. O


artigo 15, construído a partir do Primeiro Protocolo Adicional e o do Estatuto

uma sanção criminal se cometido intencionalmente e em violação da


Convenção de Haia de 1954 ou do Segundo Protocolo:

fazer de um bem cultural sob proteção reforçada o objeto de um ataque;

utilizar o bem cultural sob proteção reforçada ou sua vizinhança imediata


em apoio a uma ação militar;

apropriar-se de ou destruir em grande escala os bens culturais protegidos


pela Convenção e pelo Segundo Protocolo;

fazer de um bem cultural protegido pela Convenção e pelo Segundo

56
Convenção de Haia de 1954, op. cit., artigo 28.

48
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Protocolo o objeto de ataque; e

roubar, pilhar ou apropriar-se indevidamente de bens culturais protegidos


pela Convenção e praticar atos de vandalismo contra bens culturais
protegidos pela Convenção.

assegurar que as pessoas que cometam tais atos sejam punidas. Para
alcançar este objetivo é necessário ainda um efetivo de aplicação em
nível nacional. Para atingir um efetivo de aplicação em nível nacional é
necessário a implementação de uma legislação contendo os seguintes
aspectos: (a) criminalizar as violações e (b) estabelecer jurisdição para
processar ou extraditar.

No que tange a necessidade de criminalizar as violações, no que tange

Segundo Protocolo, de adotar quaisquer medidas que sejam necessárias


para estabelecer que as cinco violações supracitadas sejam listadas como
crimes no direito doméstico e que sejam atribuídas sanções apropriadas.
Essa legislação asseguraria que a proibição de cometer qualquer violação
grave do Segundo Protocolo seja aplicada.

No que tange crimes auxiliares (ex. auxílio, cumplicidade), responsabilidade


do comando e defesas, a proposta original de explicitar tais regras foi
descartada em favor de uma obrigação de observar com os princípios
gerais do direito internacional e o direito internacional nesse sentido.57
Essas regras foram autoritariamente atualizadas no Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional e várias delegações sentiram que não existe a
necessidade de repeti-las em um “mini código penal”.

A lista das violações graves teve como base nas propostas submetidas
pela Áustria e a CICV para o Grupo de Trabalho do Capítulo Quatro. Isso

57
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 18(2).

49
JEAN-MARIE HENCKAERTS

explica o porque que existem dois tipos de violações.

a) As primeiras três violações correspondem às “infrações graves” da


Convenção de Genebra de 1949 e do Primeiro Protocolo Adicional e tem
como base a proposta austríaca. Os Estados possuem o dever de processar
ou extraditar qualquer indivíduo indiciado por quaisquer dessas violações

regulam o processo e a extradições dos réus. De acordo com o presidente


do Grupo de Trabalho, no ponto de vista do direito penal internacional, essas
provisões constituem uma grande conquista tendo em vista que todos os
elementos para formar um sistema coerente de processo e extradição
estão incluídos.58

interessante observar que as duas primeiras violações se relacionam com


os bens culturais sob proteção reforçada e que tanto o ataque quanto o
uso desses bens são estabelecidos como uma violação grave. No Primeiro
Protocolo Adicional de 1977, somente o ataque dessa propriedade está
59

O Segundo Protocolo estabelece um equilíbrio entre a responsabilidade


criminal daquele que ataca e daquele que defende o bem em questão.

A proposta formulada pela delegação da China proíbe o dano colateral


aos bens culturais sob proteção reforçada não foi aderida. Essa regra
teria constituído em uma grande melhoria do sistema existente. Como o
Segundo Protocolo requer que as partes do conflito se abstenham em usar
esses bens e seu entorno imediato para auxílio em ações militares, essa
regra seria coerente com o instrumento.

A terceira violação grave lida com a destruição ou apropriação indébita de


todos os bens culturais, mas a natureza extensiva desses atos os tornam
violações graves em pé de igualdade com as infrações graves.

Os Estados devem estabelecer jurisdição universal dessas violações.

58
Horst Fischer, “Presentation of the Results of the Working Group on Chapter 4”, UNESCO Doc. HC/1999/
INF.5, 25 de março de 1999, p. 2.
59
Primeiro Protocolo Adicional, op. cit., artigo 85(4)(d).

50
JEAN-MARIE HENCKAERTS

atos cometidos em seu respectivo território ou quando o réu possui sua


nacionalidade, mas também quando o ato é cometido fora do seu território
por um estrangeiro.60 Isso reflete o princípio da jurisdição universal
obrigatória para as infrações graves, que estabelece que todos os Estados
devem estabelecer jurisdição para processar ou extraditar estrangeiros que
cometeram crimes de guerra fora de seu território e estão presentes em seu
país.

Face ao pedido dos Estados Unidos, a provisão foi incluída que exclui os
nacionais dos Estados que não são parte do Segundo Protocolo do regime
de jurisdição universal obrigatória.61
não possuem a obrigação de processar ou extraditar esses indivíduos.

pelo reconhecimento que os Estados podem estabelecer uma jurisdição


que inclua esses indivíduos por meio da lei nacional aplicável ou do direito
internacional, inclusive o direito consuetudinário internacional,62 conforme

observou que o Segundo Protocolo não limita a habilidade do Estado


em legislar, criminalizar ou lidar de outra maneira com qualquer crime
estabelecido pelo Segundo Protocolo,63 pelo fato que o regime de jurisdição
não prejudica o artigo 28 da Convenção de Haia de 1954.64

Esse artigo constitui, de fato, uma intensão em estabelecer uma jurisdição


universal obrigatória. De acordo com Toman:
“[O] representante de um dos governos levantou a
questão se um Estado-parte à Convenção era obrigado
a processar e impor sanções penais aos indivíduos
que cometeram infrações fora do território do Estado
que possui jurisdição criminal. A resposta é sim, pois

60
Segundo Protocolo, artigo 16(1).
61
Ibid., artigo 16(2)(b).
62
Ibid., artigo 16(2)(a).
63
Fischer, op. cit., p. 3.
64
Segundo Protocolo, artigo 16(2), caput.

51
JEAN-MARIE HENCKAERTS

esse é o objetivo dessa provisão. É razoável assumir


que o país possui a sua disposição uma legislação
geral concernente a proteção de seus bens culturais
e que um ato criminal realizado contra esses estaria
amparado por suas provisões. O que resta a fazer – de
acordo com o artigo 28 da Convenção – é processar
aqueles que cometeram os atos criminais fora da
65

b) As últimas duas violações graves foram adicionadas a lista pela


sugestão da CICV. A razão para isso é que esses atos foram reconhecidos
como crime de guerra sujeitos a sanções penais do Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional. Como tais, elas não poderiam ser incluídas
na provisão geral de “outras violações” que poderia requerer dos Estados

realizado. Como indicado acima, a experiência da CICV mostra que “outras


violações” tornam muito difícil convencer os Estados que algumas dessas
outras violações são crimes de guerra e devem ser penalizados por uma
sanção penal do direito doméstico.

Essas duas violações graves são consideradas crimes de guerra, mas os


Estados possuem somente a obrigação de reprimi-las por meio de sanções
penais utilizando o mais comum modo de jurisdição, a saber quando o
crime é cometido no território do Estado ou quando o réu é nacional do
mesmo. Não existe a obrigação de estabelecer jurisdição sob casos onde o
crime alegado foi cometido fora do seu território por um estrangeiro.66 Isso
reflete o princípio da jurisdição universal permissiva dos crimes de guerra,
de acordo com o qual todos os Estados possuem jurisdição de processar
estrangeiros por crimes de guerra cometido fora de seu território mas não
são considerados infrações graves. Isso é resultado do reconhecimento
por parte dos Estados que eles podem estabelecer jurisdição sob esses
indivíduos em sua legislação doméstica ou pelo direito internacional,
inclusive o direito consuetudinário internacional,67 e pela declaração do

65
Toman, op. cit., p. 294.
66
Segundo Protocolo, op. cit., artigo 16(2)(a).
67
Ibid., artigo 16(2)(a).

52
JEAN-MARIE HENCKAERTS

presidente do Grupo de Trabalho do Capítulo Quatro, mencionado acima,


que nota que o Protocolo não limita a habilidade dos Estados em legislar,
criminalizar ou lidar de qualquer outra maneira com as violações graves do
Protocolo.68

O Segundo Protocolo é aplicado igualmente para conflitos armados de


caráter internacional e não-internacional.69 A extensão da aplicação do
Segundo Protocolo para conflitos armados internos é essencial. A maioria
dos conflitos armados modernos são de caráter não-internacional e a
história nos mostra que a proteção dos bens culturais durante tais conflitos
é problemática.

Ademais, os desenvolvimentos desde a adoção da Convenção de Haia de


1954 não devem ser esquecidos. O Primeiro Protocolo Adicional estabelece
um sistema coerente de repressão criminal, que é, no entanto, somente
aplicado a conflitos armados internacionais. Assim, é de suma importância
que o Segundo Protocolo seja aplicado em sua integralidade em caso de
conflitos armados de caráter não-internacional. Isso reflete, por exemplo, a
tendência moderna da legislação de não distinguir entre conflitos armados
de caráter internacional dos daqueles de caráter não-internacional ao
lidar com a repressão de violações do direito humanitário internacional.
Além disso, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional possui jurisdição
sob crimes de guerra cometidos contra bens culturais em ambos tipo de
conflitos.

Face ao pedido da China e da Índia, uma frase foi adicionada para ressaltar
que o Protocolo não “atentará contra a prioridade de jurisdição” do Estado
no qual o conflito armado ocorre, no que tange as violações graves do

conflito armado tem a responsabilidade primária em exercer a jurisdição


sob tais violações: investigar, processar e punir os infratores. Isto implica,
contudo, que se tal jurisdição não é exercida, outros Estados ou Tribunais

68
Fischer, op. cit., p.3.
69
Segundo Protocolo, op. cit., artigos 3 e 22.

53
JEAN-MARIE HENCKAERTS

Penais Internacionais que possuem competência para tanto, podem


exercê-la.

Apesar do artigo 22 do Segundo Protocolo não coloca essa regra claramente,


o Protocolo é aplicado a todas as partes do conflito armado de caráter não
internacional, sejam elas forças governamentais ou insurgentes. Esta regra

Estado Parte do Segundo Protocolo. Contudo, foi entendido que no decorrer


do texto a palavra “Parte” dentro da frase “Partes envolvidas em um conflito”
incluiria grupos rebelde do Estado Parte do Segundo Protocolo, mas não de
70
O raciocínio era que
forças não governamentais envolvidas em um conflito armado de caráter
não internacional que ocorre no território de um Estado Parte ao Protocolo
71

A adoção do Segundo Protocolo foi um importante passo para o


desenvolvimento da proteção jurídica dos bens culturais em caso de
conflito armado. O Protocolo aborda as fraquezas da Convenção de Haia
de 1954 e oferece soluções adequadas. Suas principais conquistas são:

precaução e disseminar a Convenção e o Segundo
Protocolo;

• atualiza a Convenção de Haia de 1954 ao introduzir


conceitos presentes do Primeiro Protocolo
Adicional de 1977;

• oferece a oportunidade de colocar em prática um


regime efetivo de “proteção especial” ao substitui-

70

71

envolvidas no conflito” foi levantada somente nas últimas horas da Conferência Diplomática. Por isso, não
houve discussões se esta compreensão geral do Segundo Protocolo se aplica as forças governamentais
e grupos rebeldes em caso de conflitos armados internos também são válidas para o artigo 11(9). É difícil

vez que não foi discutida essa possibilidade.

54
JEAN-MARIE HENCKAERTS

lo por um sistema aperfeiçoado de “proteção


reforçada”;


violações graves que devem ser penalizadas com
sanções criminais e ao impor o dever ao Estado de
estabelecer jurisdição sob tais violações;


violações e ao estender o âmbito de aplicação aos
conflitos armados de caráter não internacional.

de Haia de 1954. Como resultado, um número considerável de Estados

e a disseminação dos instrumentos, mas, pelo menos, a consciência da


existência dos problemas foi levantada.

Enquanto a vida humana é ainda mais importante que os objetos, é ainda


essencial que existam regras que protegem os bens culturais, objetos que
constituem a memória coletiva da humanidade, exemplos de suas maiores
conquistas e que simbolizam a vida humana em si. Se os bens culturais
são destruídos, a vida dos civis também sofre de forma intensa.

Tradução: Alice Lopes Fabris

55
JOHN HENRY MERRYMAN

John Henry Merryman1*

Dois modos de se pensar os bens culturais2

1*
Professor Sweitzer de Direito e Professor Colaborador no Departamento de Arte na Universidade de
Stanford. Este artigo é parte de um trabalho em progresso sobre “bens culturais” realizado com o apoio
generoso da John Simon Guggenheim Memorial Foundation. Agradeço aos professores Thomas Campbell,
Detlev Ch. Dicke, Albert E. Elsen, Marc Franklin, Pierre Lalive e P. J. O’Keefe pelas críticas e sugestões. Erros
de fato, de julgamento e gosto são, claro, meus.
2
Este artigo foi originalmente publicado como John Henry Merryman, Two ways of thinking about cultural
property, American Journal of International Law (1986), Vol. 80, n. 04, pp. 831-853. Esta tradução foi
realizada mediante a autorização do autor e da American Society of Internacional Law. Ambos não são

56
JOHN HENRY MERRYMAN

Dois modos de se pensar os bens culturais

John Henry Merryman

Um modo de se pensar os bens culturais – por exemplo, os objetos de valor


– é como componentes
3

de uma cultura humana comum, não importa o seu local de origem ou


sua localização atual, independentemente do direito de propriedade ou
jurisdição nacional sobre eles. Essa é a visão presente na Convenção para
a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, a Convenção
de Haia de 1954,4 a qual é o resultado do desenvolvimento do direito

Convenção da UNESCO sobre Medidas para proibir e impedir a Importação, a Exportação e a Transferência
de Bens Culturais de 1970, nota infra
a) as coleções e exemplares raros de zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objeto
de interesse paleontológico;
b) os bens relacionados com a história, inclusive a história da ciência e da tecnologia,
com a história militar e social, com a vida dos grandes estadistas, pensadores, cientistas
e artistas nacionais e com os acontecimentos de importância nacional;
c) o produto de escavação arqueológicas (tanto as autorizadas quanto as clandestinas)
ou de descobertas arqueológicas;
d) elementos procedentes do desmembramento de monumentos artísticos ou históricos
e de lugares de interesse arqueológico;
e) antiguidade de mais de cem anos, tais como inscrições, moedas e selos gravados;
f) objetos de interesse etnológico;
g) os bens de interesse artístico, tais como:
(…)
h) manuscritos raros e incunabulos, livros, documentos e publicações antigos de
interesse especial …

k) peças de mobília de mais de cem anos e instrumentos musicais antigos.


Em algumas nações, objetos culturais e tesouros ambientais (incluindo nestes paisagens naturais

fundamentalmente relacionados uns com os outros. Ver T. Alibrandi & P. Ferri, I Beni Culturali e Ambientali
(1985). Cf: Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, Nov. 16, 1972, UNESCO
Doc. 17/C/106 (1972). Para uma discussão sobre o folclore como bem cultural, ver Glassie, “Archaeology
and Folklore: Common Anxieties, Common Hopes”, em Historical Archeaology and the Importance of
Material Things (L. Ferguson ed. 1977).

é ampla e indisciplinada que, felizmente, não necessita de ser aprofundada aqui. Obras de arte e objetos

museus os adquirem e expõe-nos, especialistas os estudam, colecionadores os colecionam, negociante de


artes os vendem. Leis nacionais e convenções internacionais dispõem sobre sua preservação e regulam seu

4
249 UNTS 240. A Conferência que ocorreu em Haia em 1954 foi convocada pela UNESCO, portanto é
correto pensar que a Convenção de alguma forma é um produto da UNESCO. A diferença entre a Convenção
de Haia de 1954 e a Convenção da UNESCO de 1970, que são descritas no artigo, é que elas possuem

programa e ideologia da UNESCO desde 1954.

57
JOHN HENRY MERRYMAN

humanitário internacional, que se iniciou na metade do século XIX.

Outro modo de se pensar os bens culturais é pensá-los como parte


integrante de um patrimônio cultural nacional. Essa abordagem dá aos
países um interesse especial, implica a atribuição de um caráter nacional
aos objetos, independentemente da sua localização atual ou de quem seja
seu proprietário, e legitima o controle nacional de exportação e pedidos de
“repatriação” de bens culturais. Como corolário desse modo de se pensar os
bens culturais, o mundo se divide em país de origem e países de mercado.5
Nos países de origem, o fornecimento de bens culturais desejáveis supera
a demanda interna. Países como México, Egito, Grécia e Índia são exemplos
óbvios. São países ricos em artefatos culturais de tal forma que a oferta
depassa a demanda de utilização local. Já nos países de mercado, a
demanda supera o fornecimento. A França, a Alemanha, o Japão, os países
escandinavos, a Suíça e os Estados Unidos são exemplos.6 A demanda nos
países de mercado encoraja a exportação nos países de origem. Quando,
como acontece em muitos casos (mas não em todos), o país de origem é
relativamente pobre e o país de mercado é relativamente rico, um mercado
irrestrito incentivará a exportação líquida de bens culturais.

A despeito do entusiasmo de outro modo de exportação, a maioria dos


países de origem se opõe vigorosamente à exportação de objetos culturais.7
Praticamente todo governo nacional (os Estados Unidos e a Suíça sendo as
principais exceções) tratam objetos culturais em sua jurisdição como parte
do “patrimônio cultural nacional”. As leis nacionais proíbem ou limitam a

terceira categoria de países de trânsito, que, apesar de úteis para outros propósitos, não é relevante para
o presente artigo.
6
O leitor não necessita de ser lembrado que a nação pode ser ambas, de origem e de mercado, no que tange
aos bens culturais. Por exemplo, existe um forte mercado internacional para obras pertencentes a culturas
indígenas norte-americanas, embora o Canadá e os Estados Unidos sejam primeiramente considerados
como países de mercado. Reciprocamente, existem ricos colecionadores de bens culturais nacionais e
estrangeiros na maioria dos países de origem.
7
A questão de por que as nações proíbem a exportação de bens culturais é complexa e interessante e
será tratada em outro artigo. A primeira vista, parece-nos que existem diversas motivações: Byronismo

págs.1903-05); a noção de “patrimônio cultural nacional” e usos dos bens culturais políticos/simbólicos
relacionados; falta de experiência e organização cultural para lidar com os bens culturais como uma
fonte a ser gerida e explorada; interesses ligados à exploração ilegal, mas rentável, dos bens culturais e a
perpetuação favorável desse status quo; etc.

58
JOHN HENRY MERRYMAN

exportação e os acordos internacionais apoiam essas limitações nacionais


ao comércio. Esse modo de se pensar os bens culturais está contido na
Convenção da UNESCO sobre Meios de proibir e impedir a Importação, a
Exportação e a Transferência de Bens Culturais de 14 de novembro 1970,
Convenção da UNESCO de 1970,8 que é a chave da rede de tentativas

bens culturais roubados ou contrabandeados.

Embora ambas as Convenções possuam o objetivo de proteger os bens

maneira, expressam conjunto de valores dissonantes entre elas. Em parte,


a divergência surge naturalmente dos objetos com os quais elas lidam,
uma com a proteção de bens culturais contra atos de beligerantes durante

as diferenças nas perspectivas que são de interesse para o presente artigo


são tão fundamentais que transcendem essas distinções. Descreverei
essas diferenças e explorarei suas implicações para a política e o direito
nacional e internacional concernente aos bens culturais.

A Convenção de Haia de 1954 e o Internacionalismo Cultural

A Convenção de Haia de 1954 é uma descendente direta do trabalho de


Francis Lieber, “o homem que moldou e lançou o núcleo no qual o direito
da guerra, como encontramos, possui como base.”9 Lieber, um imigrante
alemão, professor na Universidade de Columbia College, em Nova Iorque,
auxiliou Henry Wager Halleck, General das Forças Armadas da União,

o “código de conduta para as forças beligerantes em guerra” para ser


aplicado pelos soldados da União na Guerra Civil Americana. Emitido pelo

8
823 UNTS 231, reimpresso em 10 ILM 289 (1971).
9
Taylor, “Foreword”, em The Law of War: A documentary history (L. Friedman ed. 1972) [Friedman]; cf: R.
Hartigan, Lieber Code and the Law of War (1983).
Lieber, claro, não foi o primeiro a argumentar pela proteção de bens culturais contra danos ou captura
por parte dos beligerantes. Polybius de Atenas, um historiador grego do século 3-2 a.C., é frequentemente
citado como o primeiro a advogar em favor de tal proteção. Ver: De Visscher, “La Protection internationale
des objets d’art et des monuments historiques (2ème partie)”, Revue de Droit International et Legislative,
vol. 36, 1935, pp. 246, pág. 247, traduzido e reimpresso como De Visscher, “International Protection of Works
of Art and Historic Monuments”, U.S. Dep’t of State, Documents and State papers, vol. 1, 1949, pp. 823.

59
JOHN HENRY MERRYMAN

Comando Único como General Orders No. 100 em 24 de abril de1863, as


Instruções para o Governo das Forças Armadas dos Estados Unidos em
Terra ou Lieber Code contêm 157 artigos. Os artigos 34 a 36 lidam com a
proteção de bens culturais e preveem:
Artigo 34. Como regra geral, os bens pertencentes às
Igrejas, aos hospitais e a outros estabelecimentos
que possuem uma função exclusiva de caridade, às
fundações que promovem o conhecimento, sejam
escolas públicas, universidades, academias ou

devem ser considerados propriedade pública (...), mas


podem ser taxados ou utilizados quando o serviço
público requerer.

Artigo 35. Obras de arte clássicas, bibliotecas, coleções

astronômicos, assim como hospitais, devem ser


protegidos contra todo dano evitável, mesmo quando

ocupados ou bombardeados.

Artigo 36. Se tais obras de arte clássicas, bibliotecas,


à
nação ou ao governo hostil puderem ser removidas

conquistadora pode ordenar sua apreensão e removê-

resolvida pelo tratado de paz.

Sob nenhuma circunstância esses objetos podem ser


vendidos ou dados, se capturados pelas forças armadas
dos Estados Unidos, nem podem ser apropriados por
entidades ou pessoas privadas, ou intencionalmente
10

O Lieber Code
princípios que governam a conduta dos beligerantes em território inimigo.

10
Friedman, op. cit., pág. 165; R. Hartigan, op. cit., págs. 51-52.

60
JOHN HENRY MERRYMAN

Sua influência pode ser encontrada em inúmeros esforços bem-sucedidos.


Assim, na Conferência Internacional de 15 Estados convocada pelo governo
russo e realizada em Bruxelas em 1874, a “Declaração de Bruxelas” foi
promulgada (contudo, nunca adotada como uma convenção internacional
devido à resistência do Reino Unido). O artigo 8, do total de 56 artigos,
estabelece:

A propriedade dos Municípios, das


Instituições dedicadas à religião, caridade, e
educação, às artes e à ciência, inclusive como
propriedade estatal, devem ser tratadas
como propriedade privada.

Toda captura, destruição, ou dano causado


às instituições desse caráter, a monumentos
históricos, obras de arte e ciência deve
ser objeto de procedimento legal pelas
autoridades competentes.11
Em 1880, o prestigioso Instituto de Direito Internacional (uma organização
de acadêmicos de direito internacional) incluiu uma provisão similar – o
artigo 56 – em seu “Manual de Direito e Costumes de Guerra”.12 Em 1899,
novamente pela iniciativa do governo russo, uma Convenção de 26 países
foi convocada em Haia. Essa importante Conferência produziu diversos
instrumentos internacionais, inclusive a Convenção sobre das Leis e
dos Costumes de Guerra em Terra (Convenção de Haia II de 1899) e um
conjunto de Regulações a respeito das Leis e dos Costumes de Guerra em
Terra em 60 artigos, cujo artigo 56 lida como a proteção dos bens culturais
em termos similares.13

Tais provisões aparecem com frequência crescente no presente século.


Em 1907, por iniciativa dos Estado Unidos (Presidente Theodore Roosevelt)

11
Friedman, op. cit., pág. 195.
12
Resolutions of the institute of international law, 36-37 U. B. Scott ed. 1916.
13
Convenção de 29 de julho de 1899, ver 32 Stat. 1803, TS No. 403, reimpresso em Friedman, op. cit., pág.
234.

61
JOHN HENRY MERRYMAN

e, novamente, da Rússia, outra importante Conferência foi realizada em


Haia e contou com a participação de 44 países. A Convenção (IV) relativa
às Leis e Usos de Guerra Terrestre (Convenção de Haia IV), adotada em
18 de outubro de 1907, na Conferência e um conjunto de adendos das
Regulações a respeito das Leis e dos Costumes de Guerra em Terra, cujo
artigo 56 prevê uma proteção aos bens culturais em termos similares.14
A mesma Conferência de 1907 produziu a Convenção (IX) de Haia sobre
o Bombardeamento por Forças Navais em Tempo de Guerra (Convenção

históricos”, “artes” e “ciência”.15 Em 1923, outra Conferência de Haia foi


realizada e adotadas as Regras de Haia sobre a Guerra Aérea (que nunca foi
adotada pelos países concernentes). Os artigos 25 e 26 preveem a proteção
de bens culturais.16

A Convenção de Haia IV e as Convenções relacionadas constituem a


legislação internacional geral sobre a conduta dos beligerantes até a
Segunda Guerra Mundial. No todo, essas Convenções somente repetiam
dispositivos anteriores relacionados à proteção de bens culturais. Embora
a linguagem varie de uma Convenção à outra, a estrutura básica de
proteção continuou a mesma: sujeitos a uma concessão primordial da
necessidade militar, que será posteriormente discutida, objetos culturais
eram protegidos. Os indivíduos responsáveis pelos crimes contra os bens
culturais deveriam ser punidos pelas autoridades de seus respectivos
países.

O Lieber Code e os instrumentos que o seguiram lidaram todos de forma


ampla com as obrigações dos beligerantes; a proteção de bens culturais
era somente um dos diversos tópicos tratados. Na década de 1930,
contudo, um interesse internacional surgiu para realizar uma Convenção
que tratasse somente da proteção de bens culturais em caso de conflito
armado. Em 1935, os 21 Estados Americanos promulgaram o Tratado de

14
Convenção de 18 de outubro de 1907, ver 36 Stat. 2277, TS No. 539, reimpresso em Friedman, op. cit.,
pág. 323.
15
18 de outubro de 1907, 96 Stat. 2351, TS No. 542.
16
Friedman, op. cit., pag. 441.

62
JOHN HENRY MERRYMAN

15 de abril de 1935 sobre a Proteção de Todas as Instituições Artísticas

de Roerich.17 Como primeira convenção internacional que lida em sua


integridade com a proteção de bens culturais, esse documento possui
sua importância histórica, mas hodiernamente, no sentido prático, está
ultrapassado. Em 1939, os governos da Bélgica, da Espanha, dos Estados
Unidos, da Grécia e da Holanda, sob o auspício da Liga das Nações, elaborou
um Projeto de Declaração e um Projeto de Convenção Internacional para a
proteção de monumentos e obras de arte em tempos de guerra.18 Como o
Pacto de Roerich, esses esforços da Liga das Nações foram rapidamente
ultrapassados devido aos eventos da Segunda Guerra Mundial, devido às
mudanças tecnológicas, às mudanças de táticas e estratégias de guerra e
ao novo conceito de “guerra total” e aos crimes cometidos contra os bens

Mundial, as regras aplicáveis concernentes à proteção de bens culturais


contra atos de beligerantes se tornaram claramente inadequadas. Dois
grandes eventos ocorreram: os julgamentos de Nuremberg e a promulgação,
sob o auspício da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultural, da Convenção de Haia de 1954.

Alfred Rosenberg, um dos principais acusados nazistas no Tribunal de


Nuremberg, era, dentre outras coisas, chefe do vergonhoso Einsatzstab
(Special Staff) Rosenberg. O Einsatzstab era encarregado de pilhar os
países ocupados pela Alemanha, uma missão que foi executada de forma

apresentada em seu julgamento detalhavam seu crimes contra o patrimônio


cultural (assim como os do Einsatzstab).19 Rosenberg foi julgado culpado
por esses (e muitos outros) crimes e foi enforcado. A inovação desse

17
15 de abril de 1935, 49 Stat. 3267, TS No. 899, 167 LNTS 279. Roerich era um pintor russo, poeta e ativista
pela preservação de bens culturais e viveu na Finlândia, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Índia, onde
morreu em 1947. Sua proposta para a convenção e seu design para a “bandeira da paz” (reproduzido no
Tratado TS No. 899) foram em grande parte adotados pelas Partes da Convenção. Ver E. Alexandrov, The

18
1 U.S. Dep’t of State, Documents 859 (1949).
19
Ver materiais coletados em J. Merryman & A. Elsen, Law, Ethics and the usual arts, pp.1-43ff (1979 -); S.
Williams, The International and national protection of movable cultural property: a comparative study, 23-29
(1978).

63
JOHN HENRY MERRYMAN

julgamento, e de outros do Tribunal de Nuremberg, foi que outras nações

pelos atos contra patrimônio cultural, cometidos em seu nome. O Lieber


Code e os documentos que o seguiram tinham uma base diferente: esses
crimes violavam o direito internacional, mas o indivíduo que o violasse
deveria ser disciplinado, se o fosse, por seu próprio governo.20

A Convenção de Haia de 1954, a primeira convenção universal a lidar


somente com a proteção de bens cultuais, parece incorporar esse princípio

seu artigo 28:


As Altas Partes Contratantes obrigam-se a tomar,
no quadro do seu sistema de direito penal, todas as
medidas necessárias para que sejam encontradas e
aplicadas as sanções penais e disciplinares às pessoas,
qualquer que seja a sua nacionalidade, que cometeram
ou deram ordem para cometer uma infração à presente
Convenção. (ênfase adicionada)

A linguagem nos parece autorizar, de fato obrigar, os países que tiverem


jurisdição sobre as pessoas acusadas de violarem a Convenção, as
processarem.

Uma outra novidade importante da Convenção de Haia de 1954 é que ela


prevê uma base lógica para a proteção internacional de bens culturais. A
linguagem do preâmbulo é, por essa única razão, memorável:

20
De fato, o princípio de que os indivíduos acusados de (entre outras coisas) crimes de guerra podem ser
processados pelo seu governo foi aceito muito antes. Ver R. Woetzel, The Nuremberg Trials in International
Law, 17ff (1960). Ademais, existe evidência relevante de que os julgamentos dos acusados de crime de

artigo 228 que os alemães acusados de crime de guerra deveriam ser julgados por Tribunais Militares dos

de alta patente, foi submetida pelos Aliados com o pedido de que eles fossem entregues para julgamento.
O gabinete alemão se opôs de forma tenaz ao pedido, citando a oposição do público alemão. Os alemães
argumentaram aos Aliados que haveria uma revolta se eles tentassem entregar os nomes da lista e os

Friedman, op. cit., pág. 777. Eventualmente, foi acordado que os alemães conduziriam os julgamentos em
sua mais alta Corte, Reichsgericht em Leipzig, aplicando o direito internacional. Os Aliados submeteram uma
lista drasticamente reduzida com 45 nomes e os alemães concordaram com 12 deles. Seis foram julgados
e condenados; eles receberam sentenças leves, variando de alguns meses até 4 anos de prisão. (Aqueles
que eventualmente foram presos imediatamente “escaparam”). Para considerações contemporâneas e
avaliação dos julgamentos, ver: Cc. Mullins, The Leipzig Trials (1921).

64
JOHN HENRY MERRYMAN

Convencidos de que os atentados perpetrados contra


os bens culturais, qualquer que seja o povo a quem eles
pertençam, constituem atentados contra o patrimônio
cultural de toda a humanidade, sendo certo que cada
povo dá a sua contribuição para a cultura mundial.

Considerando que a convenção do patrimônio cultural


apresenta uma grande importância para todos os povos
do mundo e que importa assegurar a este patrimônio
uma proteção internacional.

Como parece claro que essas considerações tem como base a proteção
de bens culturais no Lieber Code e seus sucessores, sua expressão na

que foi ecoada nos instrumentos internacionais mais recentes,21 é uma


carta para o internacionalismo cultural, com implicações profundas para
o direito e a política que lida com o comércio internacional e a repatriação
de bens culturais. O princípio nos parece se aplicar, por exemplo, ao caso
dos Mármores de Elgin, vez que eles constituem um “patrimônio cultural da

possuem interesse em sua preservação, integridade e disponibilidade para


estudo e apreciação.22 O debate vivaz sobre a legalidade da remoção dos
mármores da Grécia por Elgin e as propostas atuais de seu retorno para
Atenas se tornaram de interesse de outros além dos gregos e britânicos.
Como a poluição em Atenas corrói os mármores do Parthenon, toda a
humanidade perde algo insubstituível. Isso será discutido posteriormente.23

21
Tais ecos podem ser encontrados na Recomendação da UNESCO sobre o intercâmbio de bens culturais
de 26 de Novembro de 1976, UNESCO Doc. IV.B.8, embora usualmente combinada com a insistência na
centralidade do interesse nacional. Assim, o preâmbulo estipula: “Relembrando que os bens culturais
constituem um elemento básico da civilização e cultural nacional,” e “considerando que a política
sistemática de intercâmbio de instituições (…) poderia (…) levar a uma melhor utilização do patrimônio
cultural da humanidade, que consiste na soma dos patrimônios nacionais” (ênfase acrescida). O artigo 2
da Recomendação contém uma disposição menos nacionalista: “notando que todas as formas de bens
culturais são parte integrante do patrimônio comum da humanidade (…)”
22
Para a discussão dos mármores e de sua preservação, integridade e disposição e seu acesso como as
principais três categorias do interesse internacional em bens culturais, ver: Merryman, Thinking about Elgin
Marbles, op. cit., pág. 1916-21.
23
Dois colegas sugeriram que podemos distinguir os objetos culturais somente pelo interesse nacional
ou regional daqueles de verdadeira importância internacional. A Convenção da Haia de 1954 rejeita

“qualquer que seja o povo a quem eles pertençam” com “o patrimônio cultural de toda a humanidade”,

65
JOHN HENRY MERRYMAN

A Convenção de Haia de 1954 contém uma importante concessão ao


nacionalismo, contudo, como os documentos precedentes, limita a proteção
de bens culturais pela “necessidade militar”. Segundo os artigos 14 e 15 do
Lieber Code:
Artigo 14. Necessidade militar, como entendida pelas
nações civilizadas modernas, consiste na necessidade
de medidas que são indispensáveis para assegurar os
objetivos da guerra e que são legais de acordo com o
direito moderno e os costumes de guerra.

Artigo 15. Necessidade militar (...) autoriza toda


destruição de bens (...).24

A Convenção de Haia de 1954 não é muito diferente. O artigo 4(2) prevê


uma obrigação de respeitar os bens culturais que “não [poderá] sofrer
derrogações, exceto no caso em que uma necessidade militar exija de uma
maneira imperativa uma tal derrogação.” Resumindo, a necessidade militar

pela Convenção.

Esse princípio, cuja origem é atribuída ao militarismo prussiano – “la célèbre


25
– foi amplamente debatido
na conferência que adotou a Convenção de Haia de 1954 e foi incluído
face a uma votação dividida.26 As críticas eram de diversas naturezas.

pois “cada povo dá a sua contribuição para a cultura mundial.” Ainda, não nos parece irracional supor
que alguns objetos realmente possuem pouca ou nenhuma importância para além das fronteiras locais ou
nacionais: uma efígie de bronze de um político obscuro executada por um artista medíocre de reputação
meramente local presente em um parque de uma cidade no Brasil, por exemplo, a Liberty Bell, constituindo
outro exemplo. Nenhum desses objetos têm valor intrínseco e a importância cultural de cada um nos parece

uma consiste no esforço de distinguir objetos de relevância local daqueles que possuem importância
internacional em uma terra de ninguém que é repleta de incertitude e coberta de minas. A Liberty Bell,
por exemplo, é um símbolo da Revolução Americana, um grande evento da história ocidental. Teria ela
realmente importância somente para os norte-americanos? Outro problema consiste no fato de que o
interesse local ou menor pode de forma inesperada assumir uma importância internacional. Um político
pode ser reavaliado ou o artista pode ter evoluído e realizado grandes obras, deixando a efígie como um
exemplo importante da formação de sua carreira.
24
Friedman, op. cit., pág. 161; R. Hartigan, op. cit., pág. 48.
25

87 (1967, I).
26

66
JOHN HENRY MERRYMAN

circunstâncias que favorecem seu uso durante o conflito são tão fluidas e
“necessidade” facilmente se transforma em “conveniência”.

O problema foi antecipado pelo General Eisenhower em uma declaração


para as forças aliadas em 29 de dezembro de 1943:
O termo “necessidade militar” às vezes é utilizado
onde seria melhor falar em conveniência militar ou até
mesmo de conveniência pessoal. Eu não quero que
seja uma cobertura para negligência ou indiferença.27

A alegação de necessidade militar foi uma das defesas comuns utilizadas


pelos réus acusados de terem cometido crime de guerra na Primeira e
Segunda Guerras Mundiais.28

comandantes de tropas podem designar outros valores como de maior


importância do que a proteção de bens culturais e torná-los “necessidade
militar”. A conduta das forças armadas na Europa em 1943-1945 nos
proporciona diversos exemplos. O General Eisenhower emitiu direções
claras para a preservação dos bens culturais em 29 de dezembro de 1943
na Itália29 e em 26 de maio de 1944, quando os aliados começaram a atacar

Turquia insistiram na inclusão de uma exceção para necessidade militar, enquanto a União Soviética, a
Romênia, a Grécia, a Bélgica, o Equador e a Espanha estavam entre aqueles que arguíram que tal exceção
era “incompatível com os o espírito e os princípios essenciais da Convenção.” Irônico, porém, que os
Estados Unidos, que insistiram na exceção militar, juntamente com Reino Unido arguíram que, sem essa

Convenção. É importante ressaltar que o Pacto Roerich, op. cit., do qual os Estados Unidos faziam parte,
não possuía uma cláusula de necessidade militar. Uma votação decisiva do pedido soviético para remover
a cláusula de necessidade militar foi recusada por 20 votos, 7 a favor e 14 abstenções. Idem, pág. 131.
27
American Commission for the Protection and Salvage of Artistic and Historic Monuments in war areas,
Report 48 (1946), [Report]. O Relatório descreve o trabalho da Comissão, criada em 1943, e as operações
em terra da Sessão de Monumentos, Belas Artes e Arquivos, Monuments, Fine Arts, and Archives Section
(MFA&A), e o tratamento dos bens culturais durante as hostilidades da Segunda Guerra Mundial.
28
Dunbar, Military Necessity in War Crimes Trials, 29 Brit. Y.B. Int’L L. 442 (1952).
29
“Hoje, estamos lutando contra um país que contribui bastante para a nossa herança cultural, um país
rico em monumentos que, pela sua criação, auxiliou, e que, hoje, devido à sua idade, ilustra o crescimento
da civilização que é a nossa. Nós estamos obrigados à respeitar esses monumentos enquanto a guerra
nos permitir. Se nós tivermos que escolher entre a destruição de um monumento famoso e o sacrifício

construções devem ser destruídas. Mas a escolha nem sempre é clara como a exposta. Em vários casos, os
monumentos podem ser conservados sem prejudicar as necessidades operacionais... Nada pode ir contra o
argumento de necessidade militar. Este é um princípio aceito. Mas a frase ‘necessidade militar’ é usada, às

67
JOHN HENRY MERRYMAN

o norte da Europa.30

A referência do General Eisenhower à Abadia de Monte Cassino, um dos


mais antigos e mais reverenciados e honrados sítios na Europa, é lamentável
e reveladora. Os Aliados destruíram Monte Cassino, porém não existia

Americana para a Proteção e recuperação de Monumentos Artísticos e

Embora o Alto Comando Alemão aparentemente tenha


emitido uma ordem para suas tropas não entrarem no
mosteiro não importa a circunstância, os postos de
observação inimigos e outras posições defensivas na
montanha em torno da Abadia e as forças armadas
aliadas nos altos muros cercando a montanha
poderiam ter se tornado um símbolo de oposição contra
o avanço vitorioso. Em qualquer caso, essas posições
defensivas e a Abadia foram atacadas pela artilharia
terrestre e aérea e a Abadia foi destruída em grande
parte nos ataques de 5, 8 e 11 de fevereiro, culminando
no assalto aéreo de 15 de fevereiro.

Da Igreja do século XVII, nada sobrou. Os edifícios, as


bibliotecas, as galerias pintadas e todas as estruturas
do Mosteiro foram reduzidas a poeira.31

A escolha entre salvar vidas humanas e salvar monumentos insubstituíveis


não é fácil. Para usar uma sala de aula como exemplo, suponha que você

vezes, em situações nas quais seria mais verdadeiro falar em conveniência militar ou conveniência pessoal.
Eu não quero encobrir fraqueza ou indiferença.” Report, op. cit., pág. 48.
30
“Rapidamente, nós estaremos lutando na Europa Continental batalhas designadas para a preservação da
nossa civilização. Inevitavelmente, no nosso caminho, encontraremos monumentos históricos e centros
culturais que simbolizam para o mundo o que estamos lutando para preservar.
É de responsabilidade de cada comandante proteger e respeitar esses símbolos sempre que possível.
Em algumas circunstâncias, o sucesso da operação militar pode ser prejudicado pela nossa relutância em
destruir esses objetos. Nesses casos, como em Cassino, quando o inimigo se apoia em nossas emoções
para proteger suas defesas, a vida de nossos homens está em jogo. Portanto, quando a necessidade militar
exigir, comandantes devem ordenar a ação requerida mesmo se ela envolver a destruição de um sítio
honrado.

preservarão os centros e objetos de importância histórica e cultural.” Idem, pág. 102.


31
Idem, pág. 67.

68
JOHN HENRY MERRYMAN

é o comandante de uma companhia militar que se encontra nos arredores


da Catedral de Chartres. Uma artilharia inimiga, que se encontra em uma
das torres, abriu fogo contra a companhia e deve ser removida. Você pode
bombardear a Catedral sem que seus homens sofram ou você pode ordenar
que alguns entrem na Catedral para achar e remover os atiradores. Nesse
caso, haveria causalidades. Você bombardearia a Catedral? Esse é um
caso de necessidade militar? Estudantes tentam evitar o problema, mas

humanas é mais importante.

Somente uma minoria concorda com Sir Harold Nicolson:


Eu não sou daqueles que pensam que lugares religiosos
são, per si, de maior importância que vidas humanas
(...), nem eu hesitaria, enquanto comandante militar, em
reduzir construções puramente históricas a cinzas se
eu pensar que, ao realizar tal ato, ganho um vantagem
tática ou diminuo o perigo a que os meus homens estão
expostos. Trabalhos de importante valor artístico, no
entanto, estão em uma categoria diferente. Na minha
opinião, é absolutamente desejável que tais trabalhos
devam ser preservados das destruições, mesmo se sua
preservação culmina no sacrifício de vidas humanas. Eu
estaria seguramente preparado para levar um tiro e ser
atirado contra uma parede se eu estou certo que este
sacrifício preservaria os Giotto frescoes, nem hesitaria
por um instante (se tais decisões estivessem abertas
para mim) em salvar St. Mark, mesmo se eu estivesse
consciente, ao realizar tal ato, de que levaria a morte

pelo princípio que é, certamente, incontroverso. O


insubstituível é mais importante do que o substituível e
mesmo a perda da vida humana mais valiosa é menos
desastrosa do que a perda de algo que em nenhuma
circunstancia pode ser criado novamente.32

32
Sir Harold Nicolson, Marginal Comments, Spectator, 25 de fevereiro de 1944, completo em J. Merryman &
A. Elsen, op. cit., pág.1-85ff.

69
JOHN HENRY MERRYMAN

O exemplo de Monte Cassino, entre outros descritos no Relatório, ilustra


a complexidade da decisão do comandante de terra e a regularidade
deprimente com que “objetos honrosos” e “sítio reverenciados” foram
destruídos durante o avanço das forças aliadas e dos seus bombardeios
aéreos. Nós realizamos enormes danos a obras insubstituíveis. A equação
da necessidade militar, que avalia rotineiramente a possibilidade de perda
de vidas maior do que a certeza de uma destruição de um bem cultural,
produz esse tipo de resultado. Quando o patrimônio cultural pertence
ao inimigo, essa equação tende mais contra a preservação. Na Segunda

contendo tesouros culturais insubstituíveis e a “precisão” dos bombardeios


de fábricas e áreas adjacentes a grandes monumentos de conquistas
humanas garantiu um lastro de danos e destruição.33

Uma terceira objeção mais fundamental arguí que a necessidade militar é


uma relíquia de uma era na qual a guerra de agressão era um instrumento
legítimo de política nacional – uma era evocada pelos termos como jus
ad bellum, Kriegsraison, Kriegsbrauch, raison de guerre, raison d’état, etc.
Por que, muitos críticos perguntam, deveriam monumentos cultural de

O que isso diz sobre nossa escala de valores quando colocamos objetivos
militares acima da preservação de monumentos culturais insubstituíveis?34
Essa crítica obviamente ganha força com a criminalização da guerra de
agressão deste século35 e da aceitação da ideia de que bens culturais
pertencem a toda a humanidade, não somente à nação na qual se localizam
ou ao beligerante.36

33
Sem mencionar a perda imensa de vidas. Ver D. Irving, The destruction of Dresden (1963), cf. K. Vonnegut,

34
Ver a discussão sobre o debate em Nahlik, op. cit., pág. 128 e segs.; e versões comparadas de G. Best,
Humanity in Warefare passim (1980); J. Baker & H. Crocker, The Law of Land Warefare concerning the rights
and duties of belligenrents, 145ff, 209-13 (1919).
35
Começando com o Pacto de Kellogg-Briand de 27 de agosto de 1928, 46 Stat. 2343, TS No. 796, 94
LNTS 57, e seguindo com a Carta das Nações Unidas, artigo 2, parágrafo 4, a ilegalidade da guerra de
agressão foi amplamente aceita entre os Estados. Uma das acusações contra os maiores criminosos de
guerra no Tribunal de Nuremberg foi que eles iniciaram e travaram uma guerra de agressão. Carta do
Tribunal Internacional de Nuremberg, Art. 6, International and Conference Series, 1 European and Britsh
Commonwealth 423 (1949).
36

70
JOHN HENRY MERRYMAN

Finalmente, a concessão da necessidade militar nos parece inconsistente


com as premissas da Convenção de Haia de 1954: o “patrimônio cultural da
humanidade” é colocado à mercê de interesses relativamente provincianos
de alguns beligerantes. Em uma convenção internacional, não é surpresa e
talvez não seja evitável. Ainda, essa questão foi intensamente debatida e
a concessão ao nacionalismo fortemente oposta pela maioria das nações
na Conferência.

Apesar de considerar a necessidade militar, a Convenção de Haia de 1954


expressa diversas propostas importantes que afetam o direito internacional
do patrimônio cultural. A primeira é a noção cosmopolita de interesse
geral dos bens culturais (patrimônio cultural da humanidade), distinto de
qualquer interesse nacional.37 A segunda é que os bens culturais possuem

para assegurar sua preservação. A terceira é a noção de responsabilidade


individual para crimes contra patrimônio culturais. Em quarto lugar, temos
o princípio de jurisdição para processar esses crimes, que não é limitada
ao governo do réu.38 As duas primeiras prospostas são expressas em
quantidade em outros instrumentos e acordos internacionais (incluindo
a Convenção da UNESCO de 1970 e documentos relacionados que serão
discutidos abaixo). Podemos, portanto, tratá-las como princípios de
aplicabilidade geral, que não são limitados ao controle da conduta dos
beligerantes em tempos de guerra ou conflitos internos.

constitucionalmente garantidos, como às vezes acontece no Direito Constitucional Americano (Levine, The
Doctrine of Military Necessity in the Federal Courts, 89 Mil. L. Rev. 3 (1980)), talvez não consista em uma

37
Existe uma aceitação internacional crescente de um interesse similar da humanidade no meio ambiente,
espaço e ambiente marítimo. Cf: Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aberta para assinatura
em 10 de dezembro de 1982, que prevê em seu preâmbulo que “os fundos marinhos e oceânicos e o seu
subsolo para além dos limites de jurisdição nacional, bem como os respectivos recursos, são patrimônio
comum da humanidade”. O desacordo com as implicações desse conceito de acesso a e gerência do
mar profundo foi uma das principais razões pela qual os Estado Unidos recusou a aderir à Convenção. M.
Akehurst, A modern introduction to international law, 281-82 (5th ed. 1984). Para a discussão da proposta
de aplicação do “patrimônio comum” à Antártica (também oposta pelos Estados Unidos), ver: D. Shapley,
The seventh continent: antartica in a resource age 160 (1985).
38
A Convenção de Haia de 1954 também prevê que as cortes ordinárias – por exemplo as corte que
normalmente processam os crimes – deveriam ser utilizadas, ao invés dos tribunais militares ou tribunais
especiais criados com esses propósitos. Uma das razões para a resistência da Alemanha à disposição
no Tratado de Versalhes que determina que os criminosos de guerra alemães fossem processados pelos
Aliados é que um Tribunal Militar dos Aliados os processaria.

71
JOHN HENRY MERRYMAN

A terceira e quarta propostas, contudo, derivadas do Lieber Code, das


Convenções de Haia de 1899 e 1907, das experiências da Primeira e
Segunda Guerra Mundial e do Tribunal de Nuremberg, são ligadas ao direito

roubo de bens culturais em tempos de paz. Como a maioria das convenções


internacionais, a Convenção de Haia de 1954 exerce uma influência que
vai além das obrigações impostas por ela e aceitas pelos Estados-Parte. É

de se pensar o patrimônio cultural que eu chamo de “internacionalismo


cultural”.39
Convenção da UNESCO de 1970.

A Convenção da UNESCO de 1970 e o Nacionalismo Cultural

Os predecessores da Convenção da UNESCO de 1970 incluem: a Resolução


XIV, proteção de monumentos móveis, da Sétima Conferência dos Estados
Americanos em 1933;40 três projetos de convenções internacionais da Liga
das Nações em 1933, 1936 e 1939, sendo o último intitulado Projeto de
Convenção Internacional para a Proteção de Coleções Nacionais de Arte
e História;41 e a Recomendação da UNESCO sobre Medidas para proibir e
impedir a Exportação, Importação e Transferência de Propriedade Ilícitas
dos Bens Culturais de 1964.42

39
“Supranacionalismo”, “metanacionalismo” ou “cosmopolitismo” podem, em sentido estrito, ser mais
adequados do que “internacionalismo”, uma vez que a ideia é que a humanidade, independente das nações
e acordos internacionais, possui interesse. O uso de “internacionalismo” nesse sentido, contudo, tornou-se
comum e é apropriado.
40
Report of the delegates of United States of America to the Seventh International Conference of American
States, Montevideu, Uruguai, 3-26 dezembro de 1933, US Dep’t of State Conference Series, n° 19, pág. 208
(1934).
41
1 U.S. , US Dep’t of State Conference Series 865 (1949).
42
1 UNESCO, The Protection of movable cultural property: compendium of legislative texts, 382 (1984)
[Compendium]. Materiais relevantes posteriores incluíram a Convenção da a Proteção do Patrimônio
Arqueológico, Histórico e Artístico das Nações Americanas (Convenção de São Salvador) de 1976, idem,
pág. 370, e a Recomendação da UNESCO para a Proteção dos Bens Culturais Móveis de 1978, idem, pág.
386. Em 1985, o Conselho da Europa promulgou a Convenção Europeia sobre Crimes contra Bens Culturais,
ETS No. 119, que adiciona matéria penal à legislação usualmente civil de cumprimento de leis de retenção
de bens culturais.

72
JOHN HENRY MERRYMAN

internacional “ilícito” de objetos culturais. As partes acordaram em opor


o “empobrecimento do patrimônio cultural” de uma nação através da
“exportação, importação e transferência de propriedade ilícitas” dos
bens culturais (artigo 2), acordaram que o comércio de objetos culturais
exportados infringindo a lei do país de origem é “ilícito” (artigo 3) e
acordaram em impedir a importação desses objetos e facilitar o seu retorno
aos países de origem (artigos 7, 9 e 13).43

Com essa redação, 58 países se tornaram parte da Convenção da UNESCO


de 1970. Dentre eles, somente dois podem ser considerados grandes
países de mercado: os Estados Unidos e o Canadá. Nenhum dos demais
países de mercado, como Bélgica, França, Alemanha, Japão, Holanda,
os países escandinavos e a Suíça, são partes.44 A maioria dos países de
origem, muitos pertencentes ao ‘terceiro mundo’, são partes da Convenção.
A razão dessa disparidade está relacionada ao propósito da Convenção:
reter o fluxo de bens culturais dos países de origem, limitando a importação
pelos países de mercado. É verdade que a Convenção se aplica somente

das países de origem possuem a política que, em prática, proíbe toda a


exportação de bens culturais, a distinção para eles não é relevante.

se comprometem a renunciar a importação de alguns tipos de bens


culturais de países de origem que são parte da Convenção. Por que fazê-
lo? O preâmbulo da Convenção coloca uma série de disposições mais ou
menos relacionadas cujo o núcleo é: “considerando que os bens culturais
constituem um dos elementos básicos da civilização e da cultura dos povos,

43
A Convenção da UNESCO de 1970 impõe outra obrigação às partes: tomar medidas para assegurar a

listando as obras de maior importância cultural, supervisão as escavações e por meio da educação e

discussão internacional e nas ações realizadas devido à Convenção. O principal esforço é o alistamento dos
países de mercado para auxiliar nas restrições da exportação adotada pelos países de origem.
44
Enquanto este artigo era escrito, a França reportou que tomava as medidas necessárias para se tornar
parte da Convenção da UNESCO de 1970, a República Federal da Alemanha declarou estar “investigando
ativamente a noção”. Letra do Professor P. J. O’Keefe, Universidade of Sydney, a ser escrita, o Professor
O’Keefe também relata que a Dinamarca está introduzindo uma legislação para que se torne parte da
Convenção, assim como a Austrália.

73
JOHN HENRY MERRYMAN

e que seu verdadeiro valor só pode se apreciado quando se conhecem, com


a maior precisão, sua origem, sua história e seu meio-ambiente” (ênfase
acrescida). A preocupação é de que as escavações e a remoção de bens
culturais sem autorização e clandestinas, na maioria das vezes, não são
documentadas. Uma estela maia de um sítio não desenvolvido e não
documentado na floresta do Belize e contrabandeado para a Suíça para
ser vendido se torna anônimo. Tanto o objeto quanto o sítio arqueológico
foram privados de informações arqueológicas e etnológicas valiosas que
poderiam ter sido preservadas se a remoção tivesse sido propriamente
documentada e supervisionada, ou se a mantesse no local de origem.45

Essa preocupação com a “descontextualização” se aplica com uma força


particular aos objetos arqueológicos não documentados. Outros, como
obras retiradas previamente de seus sítios, aquelas que se encontram em
seus sítios e que foram devidamente documentadas e um largo conjunto
de obras de artes e artefatos (por exemplo, pinturas, esculturas, cerâmica,
joias, moedas, artilharias, manuscritos, etc.) que são deslocados sem perda

disposição preambular é aplicável, na prática, somente a uma pequena,


embora extremamente importante, parte do comércio de objetos culturais
roubados ou exportados ilicitamente.

Discussões internacionais recentes sobre o direito e a política relacionada


aos bens culturais foram realizadas em uma linguagem especial. Uma de
suas características é a tendência ao eufemismo. Assim, a Convenção da
UNESCO de 1970 está amplamente ligada à retenção nacional de bens
culturais, porém o termo “retenção” é raramente utilizado. Em seu lugar,
o diálogo gira em torno da “proteção” dos bens culturais – por exemplo,
proteção contra a remoção. Nesse sentido, outra cláusula do preâmbulo
estipula: “considerando que todo Estado tem o dever de proteger o
patrimônio constituído pelos bens culturais existentes em seu território
contra os perigos de roubo, escavação clandestina e exportação ilícita.”

45
Essa preocupação é melhor desenvolvida em: League of Nations, Final Act of the International Conference
on excavations, 1ff (1937); a Recomendação da UNESCO concernente à preservação de bens em perigo
devido a obras privadas ou públicas de 1968, UNESCO Doc. CFS.68/vi. l4x/AFSR; e a Convenção Europeia
para a Proteção do Patrimônio Arqueológico de 6 de maio de 1969, ETS No. 66, Compendium, op. cit., pág.
365.

74
JOHN HENRY MERRYMAN

Um modo de se ler tal linguagem é a imposição de obrigações aos países


de origem de se preocupar com os bens culturais em seu território e o
artigo 5, parágrafos (c) e (d) da Convenção, estão em consonância com
essa interpretação.46

nacional de bens culturais. Essa leitura está de acordo com a interpretação


prevalescente dentre os países de origem; a noção de que eles são
obrigadas pela Convenção da UNESCO de 1970 não é levantada. Quando
interpretada desta maneira, a linguagem citada no preâmbulo pode ser
parafraseada como: “considerando que todo Estado tem o dever de reter
os bens culturais existentes em seu território e impedir seu roubo, sua
escavação clandestina e sua exportação.” Essa é a intensão clara do artigo
2 da Convenção, que estipula:
Os Estados Partes da presente Convenção reconhecem
que a importação, a exportação e a transferência de
propriedade ilícitas dos bens culturais constituem
uma das principais causas do empobrecimento do
patrimônio cultural dos países de origem de tais bens
(...).

A ênfase na retenção nacional de bens culturais é legitimada durante a


Convenção da UNESCO de 1970 pelo uso do termo “ilícito”, que nos dá um

culturais “realizados em infração das disposições adotadas pelos Estados


Partes nos termos da presente Convenção.” Assim, se a Guatemala adotar
uma legislação e práticas administrativas que, na prática, proíbem a
exportação de todos os artefatos pré-colombianos, como foi feito, então a
exportação de qualquer objeto pré-colombiano da Guatemala é ilegal sob a
Convenção da UNESCO de 1970. Diversos países de origem que são parte
da Convenção da UNESCO de 1970 realizaram políticas similares. Essa
característica da Convenção da UNESCO de 1970 é chamada de “cheque

46
Exemplos de instrumentos internacionais que procuram impor a obrigação às nações de proteger os
bens culturais são: a Recomendação da UNESCO concernente à Proteção, em Nível Nacional, do Patrimônio
Cultural e Nacional de 1972, UNESCO Doc.17/C/107 (15 de novembro de 1972); e a Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, 27 UST 37, TIAS No. 8226, 1037 UNTS 151.

75
JOHN HENRY MERRYMAN

em branco” pelos interessados nos países de mercado; os países de origem

acordo com sua conveniência.

Negociantes de arte, colecionadores e museus dos países de mercado não


possuem a oportunidade de participar de tal decisão. Isso é o porquê da
legislação dos Estados Unidos que implementa a Convenção da UNESCO
de 1970 ter demorado 10 anos para ser aprovada.47 Negociantes de arte,
colecionadores e museus interessados procuraram, com certo sucesso,
limitar o efeito da Convenção no comércio de bens culturais se os Estados
Unidos automaticamente aceitasse as políticas de retenção dos países de
origem.48

Desde a promulgação da Convenção da UNESCO de 1970, a atenção das


países de origem se voltou para aquilo que geralmente é chamado de
“repatriação”: o retorno de objetos culturais aos países de origem (ou
aos países em cuja população estão incluídos os descendentes culturais

sítios originais ou os sítios dos quais eles foram retirados). No começo de


1973, a Assembleia Geral das Nações Unida adotou uma série de resoluções
pedindo a restituição de bens culturais aos países de origem.49 Em 1978,
a UNESCO estabeleceu o Comitê Intergovernamental para a Promoção do
Retorno de Bens Culturais a seus Países de Origem ou sua Restituição em
Caso de Apropriação Indébita50 e em 1983, a Assembleia Parlamentar do

47

suas obrigações até a adoção de uma legislação de implementação. Após muitos esforços e negociações,
o Convention on Cultural Property Implementation Act foi adotado em 1983 como Pub. L. No. 97-446,96

48
As disposições da Convenção da UNESCO de 1970 foram moderadas pela participação dos Estado
Unidos em seu projeto. Bator, An Essay on the International Trade in Art, 34 Stan. L. Rev. 275, 370 (1982),
republicado como The International Trade in Art 94 (1982). Seus efeitos foram mais limitados pelos Estados

A. Elsen, op. cit., pág. 2-180ff. As disposições do Cultural Property Implementation Act, op. cit., limitam
ainda mais os efeitos da Convenção da UNESCO de 1970 nos Estados Unidos, por meio do processo de

tomada sob a égide da Convenção.


49
Para uma discussão dessas resoluções e de outros componentes do movimento de repatriação, ver
Nafziger, The New International Framework for the Return, Restitution, or Forfeiture of Cultural Property, 15
N.Y.U.J. Int’L L. & Pol. 789 (1983).
50
Idem.

76
JOHN HENRY MERRYMAN

Conselho Europeu adotou a Resolução sobre o Retorno de Obras de Arte.51


As premissas do movimento de repatriação são uma extensão lógica do que
é tratado pela Convenção da UNESCO de 1970: os bens cultuais pertencem
ao países de origem, obras que hoje residem em museus localizados fora
deses países ou pertencentes a colecionadores estão ilegitimamente
ali (são o resultado de pilhagem, remoção por poderes coloniais, roubos,
exportação ou exploração ilícitas) e devem ser “repatriadas.”52

Uma Comparação entre a Convenção de Haia de 1954 e a Convenção da


UNESCO de 1970

Percebe-se que o preâmbulo da Convenção de Haia de 1954 fala de


“patrimônio cultural da humanidade”. A Convenção da UNESCO de 1970,
contudo, em seu preâmbulo e em seu texto, enfatiza os interesses dos
Estados no “patrimônio cultural nacional”. A Convenção de Haia de 1954
procura preservar os bens culturais contra danos e destruições. A Convenção
da UNESCO de 1970 apoia a retenção dos bens culturais pelos países
de origem. Essas são diferentes abordagens – uma cosmopolita e outra
nacionalista; uma protetiva, outra retentiva –, caracterizam dois modos de

cultural” e “nacionalismo cultural”. No momento em que escrevo este


artigo, o nacionalismo cultural domina o campo; é a base das presunções
e dos termos que regem os discursos na UNESCO e em outros organismos
internacionais, em fóruns nacionais e na literatura sobre bens culturais.53

Em alguns casos, as duas abordagens reforçam uma a outra, porém elas


também podem nos levar a direções contrárias e inconsistentes. Assim,
ao discutir o pedido grego de retorno dos mármores de Elgin da Inglaterra,
o caso é fácil se utilizarmos somente as presunções e os termos que são
aplicados pelo nacionalismo cultural: os mármores são gregos, pertencem

51
Eur. Parl. Ass., Texto adotado pela Assembleia, 35th Ordinary Sess., pt. 2 (Sept. 26-Oct. 6), Res. No. 808
(1983).
52
Discutirei o movimento de repatriação e as presunções que estão ligadas ao uso do termo “repatriação”
com mais detalhes em outro artigo.
53
Os principais trabalhos incluem: P. O’Keefe & L. Prott, op. cit; Niec, Legislative models of protection of
cultural property, 27 Hastings. J. 1089 (1976); B. Burnham, The protection of cultural proterty (1974); K.
Meyer, The plundered past (1973).

77
JOHN HENRY MERRYMAN

à Grécia e deveriam retornar à Grécia. Mas se o internacionalismo cultural


for introduzido à discussão, a questão se torna muito mais complexa
e interessante.54 O mesmo é verdade para qualquer outra demanda
predominantemente de bens culturais, por exemplo: deveria o México
devolver o Código de Maia, roubado por um mexicano (um advogado!) da
Biblioteca Nacional de Paris, na França?55

particularmente interessantes na chamada “retenção destrutiva” ou


“negligência ambiciosa”. Por exemplo, o Peru retém obras pertencentes a
culturas antigas que, de acordos com os jornais, não estão adequadamente
conservadas ou expostas.56 Se obras em perigo forem movidas para outros
países, elas podem ser melhor preservadas, estudadas e expostas, de forma
que serão vistas e gozadas por mais pessoas. Para o nacionalismo cultural,
a destruição do bem cultural nacional por meio do cuidado inadequado
é lamentável, mas é preferível à perda por meio da exportação. Para o
internacionalismo cultural, a exportação de artefatos em perigo do Peru
para um ambiente mais seguro seria claramente preferível à sua destruição
por meio da negligência, se retidos no país. Por exemplo, se eles estivessem
na Suíça, Alemanha ou nos Estados Unidos ou em outro país mais rico com
uma comunidade de museus desenvolvida e colecionadores conscientes e
respeitosos dessas obras, elas seriam mais bem preservadas. Ao impedir
a transferência de obras frágeis a locais que proporcionam uma proteção
maior enquanto preservando-o de forma inadequada no país de origem,
o Peru coloca em perigo o patrimônio cultural da humanidade, portanto
“restrição destrutiva” ou “negligência ambiciosa”.

O nacionalismo e internacionalismo cultural também divergem em suas


respostas sobre a prática de armazenamento de bens culturais, prática

54
Ver Merryman, op. cit .
55
De acordo com relatos da imprensa, o governo mexicano possui hoje o Código e recusa seu retorno a
Paris, arguindo que ele foi roubado do México no século XIX. Riding, Between France and México, a Cultural
Crisis, Int’l Herald Tribune, 31 de agosto de 1982, pág. 1; San Francisco Chron., 19 de agosto de 1982, pág
41.
56
Comparar: Peru Wages Campaign to Halt Trade in Stolen Treasures, N.Y. Times, 4 de outubro de 1981, pág.
23; com Schumacher, Peru’s Rich Antiquities Crumbling in Mzlseums, N.Y. Times, 15 de agosto de 1983, §C,
pág.14, col. 1.

78
JOHN HENRY MERRYMAN

que não necessariamente coloca em perigo os objetos retidos, não possui


propósito doméstico discernido outro que o direito de retê-los.57 Assim,
vários exemplos de artefatos de civilizações antigas foram reportados
retidos por algumas nações, apesar de que essas obras estariam
representadas de forma mais adequada em museus e coleções domésticas,
e estão simplesmente guardados, sem catalogação, e não estão disponíveis
para exposição ou para o estudo de acadêmicos nacionais ou estrangeiros.
Museus estrangeiros que não possuem representação desses objetos,
adquiririam-nos para estudá-los, expô-los e conservá-los-iam. Museus e
negociantes de artes comprariam tais objetos.

O nacionalismo cultural não encontra falha no armazenamento, pelos


países, de objetos que não estão sendo utilizados nesse sentido, apesar da
insistência do comércio estrangeiro em comprá-los. O internacionalismo
cultural, no entanto, urge que esses objetos estejam disponíveis para
compra internacional, intercâmbio ou empréstimo. Nesse sentido, as
conquistas de civilizações antigas dos países de origem poderiam ser
exibidas para uma maior audiência, o interesse dos estrangeiros em ver e
estudar essas obras (seu patrimônio cultural comum) estaria acomodado
e a demanda que hoje em dia é satisfeita pelo comércio ilícito estaria
parcialmente substituída por um comércio aberto e lícito. Acredita-se que
vários países de origem retém de forma indiscriminada réplicas que não
estão ligadas à necessidade doméstica e recusam tornar esses objetos
disponíveis a museus, colecionadores e negociantes de arte.58 Eles proíbem
a exportação, mas não colocam os objetos retidos em uso. Nesse sentido,
eles não disseminam sua cultura, não exploram esses objetos como fonte
rentável e contribuem para o empobrecimento cultural dos povos em outras

57
Discutirei as motivações possíveis para o armazenamento em um artigo separado.
58
Considere a linguagem da Recomendação da UNESCO concernente ao Intercâmbio Internacional de
Bens Culturais, op. cit.: “considerando que várias instituições culturais, independentemente de suas

cuna origem é amplamente documentada, e que alguns desses itens, que são de importância menor ou
secundária para essas instituições devido à sua pluralidade, seriam acolhidos como aquisições valiosas
por instituições em outros países (...)”.
Outras disposições dessa interessante recomendação chamam os Estados a realizar intercâmbio de bens
culturais com instituições em outros países e é claramente direcionada à tendência de armazenamento
descrita no artigo. Como uma recomendação, esse documento não impõe obrigações legais e é dispensado
devido ao nacionalismo retentivo dominante e não possui impacto visível na prática dos Estados.

79
JOHN HENRY MERRYMAN

partes do mundo.59

Outra crítica relacionada ao nacionalismo cultural é de que, ao proibir ou

origem asseguram a existência de um mercado negro rentável e corrupto.60


Do ponto de vista histórico, quanto mais rigoroso o controle de exportação
é nos países de origem, mais forte é a pressão para se formar um mercado
ilícito. Os países de origem, geralmente, realizam a abordagem contrária,
citando a existência de mercados ilícitos como evidência para a necessidade
de controle internacional. O preâmbulo da Convenção de 1970 incorpora
esse argumento: a Convenção como um todo é baseada na premissa de que

de controles legais extensivos. A premissa oposta está em prática: para


as países de origem e para a UNESCO, a existência de um comércio ilícito

base para o argumento dos países de origem e aquele exposto na UNESCO:

assim em diante.

Existe evidência empírica de que leis de retenção não possuem um efeito

representativas de obras de grande variedade de culturas. Esse apetite é


a origem da demanda por objetos culturais. A demanda é substancial e,
aparentemente, crescente.61

59
Um colega sugeriu que a expressão “empobrecimento cultural dos povos em outras partes do mundo” é
enganadora e/ou excessiva. Talvez. Sob maior reflexão, contudo, eu penso que é válido e, embora dramático,
é exata. Se a noção de patrimônio cultural comum é tomada de forma séria, e se o acesso a esses objetos
que o compõem é necessária para seu gozo, como muitos acreditam, então o armazenamento tem o efeito
que eu descrevo.
60
Ver discussão em Bator, op. cit, pág. 317 (“Ten easy lessons on how to create a black market”); Merryman
with Elsen, Hot Art: A Reexamination of the Illegal International Trade in Cultural Objects, J. Arts MGMT. &
L., No. 3, 1982, pp. 5, pág. 16.
61

museus cínicos) para observar a sua existência e implicações. Ademais, a condenação de todos aqueles

80
JOHN HENRY MERRYMAN

ilícito ocorrerá, então os argumentos para uma legalização controlada do

América Central hoje são maltratados pelos huaqueros, que, por causa da
ignorância e da necessidade de agir de forma rápida e secreta, realizam
danos desnecessários tanto àquilo que eles tiram do local quanto aos
objetos que são ali deixados. Suas atividades, de natureza clandestina, não
são documentadas e, consequentemente, os objetos que eles removem se
tornam anônimos, privados de um relato cultural. Seria melhor se essas
atividades fossem conduzidas de forma aberta, com os huaqueros fazendo
legalmente o que eles previamente faziam de forma ilegal, supervisionados
62
Dessa forma, dano físico desnecessário poderia ser
evitado e o trabalho de retirada documentado. Hoje, o dinheiro pago por
obras retiradas ilegalmente vai em parte para os huaqueros mas, em grande
parte, vai para subornar a polícia e os agentes de imigração e para gerar
renda a organizações criminosas, locais e internacionais, que conduzem o
mercado ilegal. Seria melhor se a renda do bem cultural vendido estivesse
à disposição do país de origem para apoiar o trabalho de seus arquitetos,
huaqueros
supervisionados? Objetos que somente duplicam trabalho já representados
adequadamente nos países de origem custam caro para estocar de forma
apropriada e constituem uma fonte valiosa e inexplorada para o comércio
internacional. Seria melhor se esses objetos fossem vendidos e o lucro

as leis proibindo a exportação podem ser excessivamente inclusivas, etc.


Negociantes de arte são comumente culpados não somente por negociar conscientemente um objeto
cultural obtido ilegalmente, mas por encorajar, insistir, incentivar e até (algumas vezes é suposto) planejar e

antiguidades, um importante negociante de arte de Nova Iorque o encorajou e pediu para obter esses objetos

contrastante. Um modo de se ver é que o negociante serve meramente de uma demanda já existente. Outra
culpa os negociantes por criar e nutrir uma demanda. Uma combinação de ambos efeitos realmente existe,
mas é difícil, se olharmos para a história das grandes coleções públicas e privadas, colocar a maior culpa
da criação da demanda nos negociantes. Os negociantes trazem os artefatos culturais e o colecionador
ou o museu, conjuntamente e sem dúvidas, encorajam a demanda para seus serviços e inventários. Mas
a demanda básica tem sua própria existência, crescente do interesse do público e sua curiosidade sobre
o passado da humanidade, nutrido pela educação, bolsas e todo o aparato dos museus e exposição.
Negociantes são um alvo fácil, mas não são a única origem do problema.
62
Ver a descrição das experiências com essa estratégia na Itália e na Alemanha em J. Merryman & A. Elsen,
op. cit., pág.2-112ff.

81
JOHN HENRY MERRYMAN

como as atividades dos museus localizados nesses países?

Alguns países com políticas de retenção fortes necessitam claramente de


fonte ou de vontade de cuidar adequadamente de seus grandes estoques
de objetos culturais. Para um internacionalista cultural (e para vários
nacionalistas culturais), isso é trágico. Esses objetos poderiam ser vendidos
para museus, negociantes ou colecionadores que possuem a capacidade
e a vontade de preservá-los. Um modo pelo qual objetos culturais podem
ser movidos para o local onde se tem o maior nível de proteção é por meio
do mercado. A presunção plausível é de que aqueles que estão preparados
para pagar são aqueles que estão dispostos a fazer o que é necessário para
proteger o seu investimento. Mesmo assim, a Convenção da UNESCO e as
legislações de retenção coíbem o mercado de trabalhar nesse sentido. Elas
impedem ou se opõem diretamente ao mercado e, assim, colocam os bens
culturais em perigo.63 Não é necessário, no entanto, vender as peças do
patrimônio cultural para explorá-lo. Esses objetos poderiam ser trocados
com museus estrangeiros por obras que poderiam enriquecer a habilidade
de cada nação de expor para seus cidadãos obras de outras culturas. Eles
poderiam ser depositados em empréstimos a longo termo em instituições
estrangeiras que possuem a capacidade e a vontade de zelar e expor esses
objetos.

Um diálogo solitário

Eu enfatizei as críticas ao nacionalismo cultural de retenção por duas


razões. A primeira é que eu acho essas críticas persuasivas. A razão mais
importante, no entanto, é que, nas décadas de 1970 e 1980, o diálogo
sobre os bens culturais se tornou unilateral. O nacionalismo retentivo é

63
A recomendação da UNESCO concernente ao intercâmbio internacional de bens culturais de 1976, op. cit.,
expressa uma tendência claramente antimercado em seu preâmbulo, prevendo: “A circulação internacional
de bens culturais ainda é amplamente dependente das atividades das partes egoístas e, portanto, tende
à especulação, que causa o aumento do preço desses bens, tornando-os inacessíveis aos países e às

A recomendação apoia somente o intercâmbio entre as instituições, rejeitando vendas e outras formas de
transações com colecionadores e negociantes de arte. O argumento do mercado é obviamente controverso
e, em todo caso, necessita de maiores discussões que podem ser realizadas em outros locais.

82
JOHN HENRY MERRYMAN

onde uma política de bens culturais é realizada. A estrutura e o contexto


dessas discussões, em organizações internacionais e conferências, é
agradável para a apresentação de uma posição presente na Convenção de
1970, enquanto os interesses representados na Convenção de Haia de 1954
não possuem uma voz proeminente ou prática. As agências internacionais,
das quais normalmente se espera que representem uma visão mais
cosmopolita e menos nacionalista das questões sobre o patrimônio
cultural – a Assembleia Geral das Nações Unidas e a UNESCO, em particular
– estão, no entanto, dominadas pelas nações dedicadas à retenção e
repatriação dos bens culturais. O primeiro-terceiro mundo e as políticas
capitalistas-socialistas combinadas com o romantismo do Byronismo64
para sufocar a apresentação energética das visões do mercado de nações.
Como resultado, a voz do internacionalismo cultural é raramente escutada
e menos atendida nas áreas em que a política cultural é realizada.

O perigo é que a Convenção da UNESCO de 1970, com ênfase exclusivamente


no nacionalismo, irá legitimar ainda mais as políticas nacionalistas,
enquanto sufoca o internacionalismo cultural. O único reconhecimento
dessa realidade presente na Convenção da UNESCO de 1970 está contido em
uma cláusula geralmente ignorada, presente no preâmbulo, que descreve os
benefícios do intercâmbio internacional de bens culturais: “Considerando

culturais e educativos aumenta o conhecimento da civilização humana,


enriquece a vida cultural de todos os povos e inspira o respeito mútuo e a
estima entre as nações.” O restante da Convenção, inclusive seu preâmbulo,
65

Nos Estados Unidos, o maior mercado de bens culturais do mundo,


a maré é fortemente contra o internacionalismo cultural. Os Estados

O elemento do romance no nacionalismo culturais e a influência de Byron em criar e nutri-lo são discutidos
64

em Merryman, supra note 5, pág. 1903-05.


65
A UNESCO realizou alguns esforços e uma abordagem mais ampla e menos exclusivamente nacionalista
foi incorporada em algumas recomendações, já citadas neste artigo. Ver, em particular a Recomendação
concernente ao Intercâmbio Internacional de Bens Culturais, op. cit. Esse instrumento possui o status
formal meramente recomendatório, que combinado com a tendência antimercado, priva-o de qualquer
força normativa prática.

83
JOHN HENRY MERRYMAN

66
No entanto,

implementando-a.67 Os Estados Unidos também apoiaram a posição de


retenção nacionalista por meio de um tratado bilateral com o México,68
acordos executivos com o Peru69 e Guatemala70 sobre a legislação que
controla a importação de esculturas e murais pré-colombianos,71 ações
executivas,72 ações administrativas agressivas pelo serviço de migração
dos Estados Unidos73 e investigações criminais de contrabandistas.74
Realmente, os Estados Unidos, conjuntamente com o Canadá, são, entre
todas as nações-mercado, os mais comprometidos, tanto em declaração
quanto em ação, em executar as leis e políticas retentivas de outros países,
embora autorizem a exportação de bens culturais de seu próprio território.75

Essa política paradoxal começou na década de 1960, quando os Estados

66
Para a troca de correspondência expondo as razões da recusa dos Estados Unidos a assinar a Convenção
de Haia de 1954, ver J. Merryman & A. Elsen, op. cit., pág. 1-75-1-77.

67
Ver nota supra 45.
68
Treaty of Cooperation Providing for the Recovery and Return of Stolen Archaeological, Historical and
Cultural Properties, 17 de julho de 1970, Estados Unidos-México, 22 UST 494, TIAS No. 7088, 791 UNTS 313.
69
Agreement for the Recovery and Return of Stolen Archaeological, Historical and Cultural Properties, 15 de
setembro de 1981, Estados Unidos-Peru, TIAS No. 10 136.
70
Agreement for the Recovery and Return of Stolen Archaeological, Historical and Cultural Properties, 21 de
maio de 1984, Estados Unidos-Guatemala (ainda não publicado).
71

72
Ver a discussão de “The Boston Raphael” em J. Merryman & A. Elsen, op. cit., pág. 2-78
73
Fitzpatrick, A Wayward Course: The Lawless Custums Policy toward Cultural Property, 15 N.Y.UJ. Int’L L.
& Pol. 857 (1983). Um projeto de lei que limitaria as atividades do Serviço de Migração está sendo escrito
pelo Congresso, mas não parece que será aprovado.
74
United States v. McClain, 593 F.2d 658 (5th Cir. 1979); United States v. Hollinshead, 495 F.2d 1154 (9th Cir.
1974). Ambos os casos foram ajuizados com base no Estatuto dos Estados Unidos que pune o transporte
de propriedade roubada no comércio interestatal ou estrangeiro (U.S. statute punishing transportation
of stolen property in interstate or foreign commerce). McClain removeu ilegalmente panelas e pérolas do
México; Hollinshead removeu ilegalmente uma estela do sítio maia Machiquila, na Guatemala. Ambos
trouxeram os objetos para os Estados Unidos para venda. Em ambos os casos, as cortes entenderam que
a retirada foi realizada em violação de leis estrangeiras como “roubos” conforme o Estatuto supracitado e
mantiveram as condenações.
75
Merryman, International Art Law: From Cultural Nationalism to a Common Cultural Heritage, 15 N.Y.U.J.
Int’L L. & Pol. 757 (1983). A liberdade de exportação de bens culturais dos Estados Unidos foi fortemente
limitada pela primeira vez em 1979 pelo 8470ee of the Archaeological Resources Protection Act, Pub. L.

somente para objetos retirados ilegalmente de “terras públicas e terras indígenas – por exemplo, terras de
propriedade governamental ou sob sua jurisdição protetiva”.

84
JOHN HENRY MERRYMAN

Unidos decidiram participar da elaboração do projeto que se tornou a


Convenção da UNESCO de 1970.76 Até então, a política nacional consistia na
importação livre de obra de artes e outros bens culturais. Os Estados Unidos
se comprometiam com o livre comércio de bens culturais. Obras roubadas
no exterior e trazidas para os Estados Unidos podiam, obviamente, ser
recuperadas pelos seus proprietários por meio de ações civis nas cortes
estaduais ou federais, como sempre foi a regra no país.77 Essa novidade
foi gradativamente introduzida no período do início de 1970 e que cresce
em número e variedade de restrições na importação de bens culturais em
resposta as políticas de retenção dos países de origem. Apesar do sucesso
ocasional dos esforços dos interesses dos colecionadores, negociantes e
dos museus para moderar essa resposta, a direção tomada pelos Estados
Unidos consiste no apoio ao nacionalismo cultural.

Conclusões

Ambos os modos de se pensar os bens culturais são, em certa medida,


válidos. São áreas amplas nas quais se operam para reforçar os valores
expressos do outro modo de se pensar. Isso nos casos fáceis. Os mais
interessantes surgem quando os dois modos de se pensar nos levam a
direções distintas. Portanto, necessita-se fazer as distinções, as questões

modos. Assim, qualquer internacionalista cultural se oporia à retirada de


esculturas monumentais dos sítios de Maia onde provavelmente ocorreria
dano físico ou a perda da integridade artística ou até informação cultural,

76
Um exemplo recente é Kunstsammlungen zu Weimar v. Elicofon, 678 F.2d 1150 (2d Cir. 1982) (foi ordenado

da Alemanha). Essas regras, claro, foram sujeitas às normas que protegem o comprador de boa-fé e às

estudando propostas de que as compras realizadas em boa-fé de bens culturais deveriam receber menos
proteção do que a normalmente concedida pelo ordenamento jurídico da maioria dos países europeus. A
proposta traria o direito europeu mais próximo do direito americano, que normalmente é menos protetivo,
protege menos o comprador de boa-fé, portanto protege mais o proprietário. Existe uma breve descrição do
trabalho do Instituto em 1986 Revue International de Droit Comparé, pág.130-131. No que tange à limitação
das ações, um lei chamada “The Cultural Property Repose Act” está sendo projetada pelo Congresso dos
Estados Unidos. Se adotada, diminuirá consideravelmente a prescrição aplicada aos casos de estrangeiros
pretendendo recuperar objetos culturais roubados. Não nos parece que essa lei passará pelo Congresso.
Uma lei similar foi adotada em Nova Iorque, mas foi vetada pelo governador em 28 de julho de 1986. N.Y.
Times, 29 jul. 1986, pág. 21.
77
Para uma explicação breve das razões pelas quais os Estados Unidos se envolveram no processo que
culminou na Convenção da UNESCO de 1970, ver Bator, op. cit., pág. 370.

85
JOHN HENRY MERRYMAN

independentemente de a remoção ser ilegal ou legal, mas feita de forma


incompetente.78 O mesmo internacionalista cultural, contudo, poderia
desejar que o México venda ou troque ou empreste algumas peças de
seu largo estoque de Chac-Mols, panelas e outros objetos, que não estão
sendo utilizados, a colecionadores estrangeiros,79 museus, e ele estaria
descontente com o argumento de que os museus de outros países
deveriam não só renunciar à construção de tais coleções, mas deveriam

Em princípio qualquer internacionalista concordaria que as pinturas não


deveriam ser roubadas das igrejas italianas para venda a colecionadores
nacionais ou estrangeiros ou museus. Mas se a pintura está apodrecendo
na igreja por causa de falta de recursos e o padre a venda para reparar o teto
e com a esperança de que o adquirente conceda o tratamento necessário
à pintura, então o problema começa a ser tratado diferentemente.80 Até o
mais dedicado dos nacionalistas culturais acharia absurda a insistência da
permanência da pintura de Matisse, que foi adquirida por um colecionador
italiano e tornou-se uma parte essencial do patrimônio cultural italiano.

De modo mais fundamental, a base do nacionalismo cultural e a validade


de suas premissas necessitam de reexame. Em um mundo organizado
em Estados-nações e no sistema do direito internacional onde o Estado
é o principal agente, a ênfase no nacionalismo cultural é compreensível.
Mas o mundo passa por mudanças e, com essas mudanças, a centralidade
dos Estados. A preocupação com o patrimônio cultural da humanidade é
consistente com a emergência do direito internacional e instituições que
protegem os direitos humanos.81 Uma ênfase menor no nacionalismo

78
Apesar de que, se o sítio é negligenciado e a retirada salva as obras que de outra forma desapareceriam,
uma retirada cruel e não documentada ainda seria preferencial do ponto de vista dos internacionalistas
culturais.
79
Um colega questionou o desejo de permitir que esses trabalhos sejam adquiridos por colecionadores, uma
vez que eles não estariam à disposição do público, para visitação ou estudo, e a oportunidade de monitorar a
qualidade da preservação que as obras recebem é limitada. Essas considerações são importantes, mas se a
alternativa é deixar essas obras in situ, onde não estão à disposição para visitação ou estudo e não recebem

muitas obras de qualidade de museus adquirido por colecionadores são expostas em museus.
80
Jeanneret v. Vichy, 693 F.2d 259 (2d Cir. 1982)
81

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JOHN HENRY MERRYMAN

cultural é consistente com o declínio da soberania nacional que caracteriza


o direito internacional moderno. Em um mundo contemporâneo, ambos
modos de se pensar os bens culturais possuem seu lugar legítimo. Ambos
possuem algo importante para contribuir na formação de políticas locais,
nacionais e internacionais, no que tange peças da cultural material da
humanidade. Mas onde escolhas devem ser feitas entre os dois modos de
se pensar os bens culturais, então os valores do internacionalismo cultural
– preservação, integridade e distribuição/acesso82 – parecem ter mais

sobre o comércio e a repatriação dos bens culturais servirá a longo prazo


os interesses de toda a humanidade.

Tradução: Alice Lopes Fabris

82
Ver Merryman, op. cit., pág. 1916-21.

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