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Ficha Catalográfica

Nietzsche, rriedrich Wilhelm, 1844-1900


Escritos sobre educação/ Friedrich Nietzsche ; tradução,
apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. 4. ed. rev.
e ampl.- Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Ed. Loyola, 2009.
352 p.; 21 cm
Inclui bibliografia
J. Educação - Filosofia. 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm,
1844-1900- Crítica e interpretação. 1. Melo Sobrinho, Noéli
Correia. li. Título.
CDD: 370.1

Conselho Editorial PUC-Rio: Augusto Sampaio,


Cesar Romero Jacob,
Fernando Sá,
José Ricardo Bergmann,
Luiz Roberto Cunha,
Maria Clara Lucchetti Bingemer,
Miguel Pereira e
Reinaldo Calixto de Campos
Capa: Fl,ívia da Marta Design
Diagramação: Flávia da Mana Design
Revisão de provas: Gilberto Scheid
Fotos de capa: Nietzsche em 1873 e Universidade da Basileia

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ISBN (PUC-Rio): 978-85-87926-68-5


ISBN (Loyola): 978-85-15-02710-I
4' edição revista e ampliada: setembro de 2009
© EDITORA PUC-RIO, Rio de Janeiro, Brasil, 2003.
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2003.
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160 Escritos sobre Educação

_ se sentirem a rápida tensão de cada músc ulo e a necessidade rít­ Friedrich Nietzsche
�e cada gesto , sentirão então, vocês também, o que é u ma
harmonia preestabeÍeuda entre o guia e aqueles que ele conduz
e que, naor em dos espíritos, tudo tende a uma organi�ão
que deve ser estabelecida desta �aneira. Interpretem agora, com
esta minha comparação , o que eu entendo como sendo uma au­
têntica instituição cultural, e porque não encontro na Univer-

(
1sidade ualquer seme ança, am a que a mais longínqua, com III
isto q ue pretendo." CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA:

\,
f ) ' J SCHOPENHAUER EDUCADOR

1
1

Ao ser perguntado que natureza· encontrou n os homens em todos


os l u gares, o viajante que viu m uitos países e povos e vários con­
tinentes responde u : eles têm uma propensão à preg u iça. Alguns
acharão que ele teria respond ido com mais justeza e razão: todos
são timoratos. Eles se escondem atrás de costun,u::.s..e opiniões. No
fundo, todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo
senão uma vez, na cond ição de único [ais ein Unicum], e que ne­
nhum acaso, por mais estranho que seja, co mbinará pela segunda
vez uma mu ltiplicidade tã o diversa neste todo único que se é [Ei­
nerlei]: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso
na consciência - por que? Por medo do próximo que exige esta
convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíd u o a temer
( o seu vizinho, a pensar e agir como animal de rebanho e não se
alegrar consigo próprio ? Em alguns muito raros, talvez o p udor.
Mas na maioria dos indivíd uos, é a indolência, o como dismo, em
s uma, esta propensão à preg uiça da qual falava o viajante. Ele
162 Escritos sobre Educação ,._ Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 165
.:j.
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V f

tem razão: os homens são ainda mais preguiçosos do que timo­ preciso também ocupar-se seriamente, de uma vez para sempre,
ratos e temem antes de tudo os aborrecimentos que lhes seriam com matar o tempo de uma época que coloca sua salvação nas
impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas. Somente opiniões recebidas, quer dizer, nos vícios privados1 ; em outras
os artistas detestam este andar negligente, com passos contados, ;alavras, é preciso apagar este tempo da história da autê�tica ....,
com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segre­ emancipação da vida. Qual não seria a aversão das gerações fu­
turas, quando tivessem de se ocupar com a herança deste perío-
e/
do, a má-consciência de cada um, o princípio segundo o qual
' todo homem é um milagre irrepetível; somente eles se atrevem do, em que não são os homens vigorosos que governam, mas os
nos mostrar o homem tal como ele propriamente é, e tal como ele arremedas de homem, os intérpretes da opinião. Esta é a razão
é único e original em cada movimento dos seus músculos, e mais �por que o nosso século passará, talvez, para uma longínqua pos­
teridade, como o momento mais obscuro e desconhecido, como
q
ainda, que ele é belo e digno de consideração segundo a estrita
coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todas o período mais inumano da história. Quando percorro as novas
as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso. Quando o ruas das nossas cidades, me ponho a pensar que, no espaço de
grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele um século, nada restará de pé destas casas horrorosas que cons­
despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente truiu para si a raça dos conformistas da opinião, e quando então
das mercadorias fabricadas em série [Fabrikwaare], indignas de as opiniões destes construtores serão destruídas elas também.
contato e de ensino. O homem que não quer pertencer à massa Que esperança, pelo contrário, deveria animar todos aqueles que
J
só precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele · não se sentem cidadãos deste tempo, pois se o fossem, contribui­
h siga a sua consciência que lhe grita: "Sê tu mesmo! Tu não és isto riam para matar sua época e soçobrar com ela - embora quises­
que agora fazes, pensas e desejas." """"fi r ...., 1l sem somente despertá-la para a vida, a fim de viver eles próprios
Toda alma jovem ouve este apelo dia e noite, e estremece; nesta mesma vida.
pois ela pressente a medida de felicidade que lhe é destinada de Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperan-
toda a eternidade, quando pensa na sua verdadeira emancipação: ça, a singularidade da nossa existência neste momento preciso éc;,
felicidade à qual de nenhum modo alcançará de maneira dura­ o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa
doura, enquanto permanecer nas cadeias da opinião corrente e própria lei e conforme a nossa própria medida: quero falar sobre
do medo. E como pode ser desesperada e despro� & �tido este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dis­
a vida sem esta libertação! Não existe na natureza criatura mais pomos da extensão infinita do tempo para nascer,1 quando não
sinistra e mais repugnante do que o homem que foi despojado do possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando
seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em é preciso mostrar nele, por que razões e para que fins, aparece­
todas as direções. Afinal, não se tem mesmo o direito de atacar mos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mes­
um homem assim, pois ele existe somente fora do seu eixo, como mos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte,
fantasia frouxa, tingida e gasta, como um espectro sarapintado
1. A expressão "vfcios privados" que Nietzsche parafraseia aqui consta do subtítulo
que não pode inspirar medo e menos ainda compaixão. E mesmo
da fábula das l!'belhas de Bernard De Mandeville [1670-1733): The Fable of the Bees:
que se diga, com razão, do preguiçoso que ele mata o tempo, será or Private Vices, l'ublic Benefits.
164 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 165

°
queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida, e não sete peles, mas nem assim poderia dizer: "Ah! Por fim, eis o que
permitir que nossa existência pareça uma contingência privada tu és verdadeiramente, não há mais o invólucro." É também uma
de pensamento. Esta existência quer que a abordemos com ou­ empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à
tSadia e ta_mbém com temeridade, até porque, no melhor ou no força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com
pior dos casos, sempre ; perderemos. Por que se agarrar a este que facilidade, então, ele se arrisca a se ferir, tão gravemente que
pedaço de terra, a esta profissão, por que dar ouvidos aos pro- nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto
ósitos do vizinho? É igualmente provinciano jurar obediência a necessário, se tudo carrega consigo o testemunho daquilo que
concepções que, em centenas de outros lugares, já não obrigam somos, as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o
mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém estreitar da nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento,
traça com um giz diante dos nossos olhos, para enganar a nossa os nossos livros e os traços da nossa pena? Mas este é um meio
pusilanimidade. Vou tentar alcançar a liberdade, diz para si a de determinar o interrogatório essencial. Que a jovem alma se
jovem alma. Não obstante, seria ela disso impedida pelo fato de volte retrospectivamente para sua vida e faça a seguinte pergun­
o acaso querer que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ta: "O que tu verdadeiramente amaste até agora, que coisas te
ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato atraíram, pelo que tu te sentiste dominado e ao mesmo tempo
ainda de se ensinar em torno dela uma religião que já não existia -totalmente cumulado? Faz passar novamente sob teus olhos a
há milhares de anos? Tu não és propriamente nada disso, diz ela série inteira destes objetos venerados, e talvez eles te revelem, por
para si. uém pode construir no teu lugar a ponte que te seria · sua natureza e por sua sucessão, uma lei, a lei fundamental do
preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida/- ninguém, exceto G teu verdadeiro eu. Compare estes objetos, observe como eles se
tu. \Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses completam, crescem, se superam, se transfiguram mutuamente,
inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do como formam uma escada graduada através da qual até agora te
rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: elevaste até o teu eu. Pois tua essência verdadeira não está ocul­
tu te colocarias como penhor e te perderias. Há no mundo um ta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou
único caminho sobre o qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. pelo menos daquilo que tomas comumente como sendo teu eu.
Para onde leva ele? Não perguntes nada, deves seg;ir este cami­ Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revela­
nho. Quem foi então que anunciou este princípio: "Um homem rão o que são verdadeiramente o sentido original e a substância
nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a
/
caminho poderia levá-lo" 2 ? qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em (
Mas, como nos encontrar a nós mesmos? Como o homem todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido:
pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre teus educadores não podem ser outra coisa senão teus liberta­
tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes das dores." E eis aí o segredo de toda formação) ela não procura os
membros artificiais, os narizes de cera, os olhos de cristal grosso;
muito pelo contrário, o que nos poderia atribuir estes dons seria
2. Trata-se aqui de Ralph Waldo Emerson l 1803-18821 num escrito seu sobre Oliver
Cromwell. somente uma imagem degenerada desta formação. A�ontrário,
166 Escritos sobre Educação .J 167

{
Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador

aquela outra educação é somente libertação, extirpação de todas que o\ ducador deva imediatamente reconhecer o ponto forte
as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as 1 ·
cJ
º
dos seus a 1unos
"- e d1ng1r
· · entao
- todas as energias, todas as forças
tenras sementes das plantas, ela é efusão de luz e calor, o mur­ e todo o raio de sol sobre este ponto, a fim de levar à maturidade
múrio amistoso da chuva noturna; ela é imitação e adoração da e à fecundidade esta única virtude. A outra máxima quer, ao /
natureza no que esta tem de maternal e misericordioso, ela con­ contrário, que o educador tire partido de todas as forças existen­
suma a natureza quando, conjurando os acessos impiedosos e
cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas
-
� tes ' as cultive e faç'a reinar entre elas uma relação harmoniosa.
Mas seria preciso, por outro lado, i�por a música à uele�e tem
intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira. uma inclinação verdadeira para a ourivesaria? Dar-se-ia razão
Certamente, existem outros meios de se encontrar a si mes­ ao pai de Benvenuto Cellini 3 , que incessantemente empurrava seu
mo, de escapar do• aturdimento no qual nos colocamos habitu­ filho ao estudo da "venerável trompa", e o obrigava então, a este
almente, como envoltos numa nuvem sombria, mas não conheço filho, ao que este chamava de "este maldito assobio"? Não se
coisa melhor do que se lembrar dos nossos mestres e educadores. poderia aprovar este procedimento, quando se trata de dons tão
É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o vigorosos e tão firmes. E talvez mesmo fosse preciso aplicar esta
único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schope­ máxima de desenvolvimento harmonioso somente às naturezas
nhauer, para só me lembrar de outros mais tarde. um pouco fracas, que escondem, é verdade, toda uma ninhada de
Q.ecessidades e inclinações, que, porém, tomadas em conjunto ou
separadamente, não têm grande importância. Mas onde encon­
tramos esta totalidade harmônica, este acordo de várias vozes no
seio de uma mesma natureza, onde admiramos mais a harmonia,
Se eu quiser descrever como foi importante para mim o primeiro
senão exatamente nos homens semelhantes a Cellin� nos quais
olhar que lancei aos escritos de Schopenhauer, é preciso que
detenha um pouco numa Íim emjque me preocupou incontes­
:,g
me _ -
tudo , o conhecimento, o desejo, o -- -- -
amor, o ódio, procede de um
mesmo centro, visa uma mesma raiz, e nos quais justamente a
tavelmente na juventude, mais frequentemente e mais decisiv
a­ preponderância imperiosa e soberana deste centro vivo produz
mente do que qualquer outra. Quando outrora eu me entregava,
um sistema harmonioso de movimentos que alternam horizontal
por vontade própria, a fazer minhas 1"1romessas'l, imaginava que o
- ........._.. ---- ---- .t::..:---.._ --
e verticalmente? E assim, não seriam talvez estas duas máximas
terrível esforço, o tremerido ever....de me edu� mi
'!!_E_róprio, de qualquer maneira contraditórias? Talvez uma diga simples­
me seria poupado pelo destino, porque no momento propício en­
mente que o homem deve ter um centro, e a outra que ele deve
contraria um filósofo para me educar, um verdadeiro filósofo
a ter também uma perjferia? Este educador filósofo com quem eu
quem se pudesse obedecer sem mais reflexão, porque teria nele
sonhava poderia, não se deve duvidar, qão somente descobrir a
mais confiança do que em si próprio. Depois, é verdade, eu me
� f��l, mas também impedir qu� ela agisse de maneira
perguntava quais os princípios poderia ele então adotar para
a
minha educação. E me perguntava o que diria ele das duas máxi­
mas da educação que estão em voga na nossa época. Uma exige 3. Benvenuto Cellini \1500-1571]: gravador, estatuári e ourives italiano, que ficou
famoso por ter esculpido a estátua de Perseu.

Ír
168 Escritos sobre Educação 0 <;J"' Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 169
, (,"\À, D

çlest,rutiva com rdação às outras forç as; eu imaginava que sua ciência, qua ndo não é orient ado e delimitado por uma máxima
tarefa educativa consistiria princip almente em transforma r todo

---
superior de educação, mas sempre mais desencadeado segundo
homem num sistema solar e pla netário que me revelasse a vida e 0 princípio "quanto ma is, melhor", é certa mente tão nocivo. aos

1

em descobrir a lei da sua mecânica su_perior. eruditos quanto a doutrina econômica do laissez-faire o é para a
i'Jo enta nto, este filósofo me faltava e eu experimentava ora moral de nações inteiras. Quem reconhece airicG." que a educação
_uma coisa ora outra ; ponderava que figura mesquinha éramos do erudito, com a q� al não se deve nem sacrificar nem deix a r es­
nós, homens modernos, diante dos Gregos e dos Romanos, quer._, terilizar a humanidade, é um problema extremamente difícil? E,
fosse mesmo em rel ação à seriedade ou à severida de na concepção porém, esta dificuldade salta aos olhos, qua ndo se presta atenção
das tarefas da educação. Com esta necessidade em mente, se pode às numerosas espécies que fica ram defeituosas e corcundas, ao se
percorrer toda a Alema nha, e todas as universid ades em parti­ dedicarem sem reflexão e muito rapidamente à ciência . M as existe
cular, mas não se encontrará o que se procura ; por outro lado, um te_s_temunho mais i;-portante ainda da ausência de qua lquer
muitos desejos ma i s simples _e__mais elementares não encontram <educação su erior: mais importante, mais perigoso e sobretudo
aí satisfação. Por exemplo, aquele que entre: os �ães quisesse muito ma is gera l. Se ficarmos no campo da evidência de que não
se forma r como orador, ou a ntes aprender numa escola o ofície. se pode formar atualmente nem um orador nem um escritor - por­
de escritor, não encontra ria em lugar nenhum mestre ou escola . que não existe ex ata mente para eles um educador -, se também é
Pa rece não se ter ainda sequer pensado aqui que a eloquência e �uase evidente que agora um erudito seria necessa riamente per­
. - --="
a escntura são a rtes que não podem ser ii?quir4 sem a orien- vertido e desencaminhado - porque é a ciência e portanto uma
tação mais minuciosa e a aprendizagem mais penosa . M as nada abstração inumana que deve educá-lo -, ponha mo-nos, enfim,
mostra com mais evidência e vergonha a presunç osa satisfação esta questão: onde estão na verdade para todos nós, eruditos e

-
própria dos nossos contemporâneos do que a indigênci a, meio- ignora ntes, grandes e pequenos, nossas celebridades e nossos mo­

V
avarenta, meio-descuidada, de suas exigências enquant delos morais entre nossos contemporâneos, visível encarnação de
-..
o educa -
-V dores e mestres. Como se fica satisfeito, mesmo nos círculos mais toda moral criadora nesta época ? A que chegou finalmente toda
di stintos e ma is instruídos , com ser preceptores! Como frequente­ esta reflexão sobre as questões morais, com a qual toda sociedade
mente se fica satisfeito com este amálgama de espíritos bicórneas (}ob-;-ve evoluída esteve, porém, preocupad a em todas as épocas? r
e instituições envelhecidas que têm o nome de liceu! Que esta­ NYo há mais modelos ilmtres e não há ma· flexão deste tipo.

U
belecimento superior, que universidade nos satisfazem, a todos ive-se de fato do capital de mora lidade acumul ado por nossos
nós - que diretores, que instituições, em vista da dificuldade da ncestrais e da herança deles, que não sabemos �ais fazer crescer,
tarefa de educar um homem pa ra fazer dele um homem! Mesmo mas somente dissipar. Na nossa sociedade, ou nao se fala absolu­
a maneira tão admirada c om a qual os eruditos a lemães se tamente d� coisas, ou se o faz com um t al acanha mento e uma
la n­
çam sobre sua ciência, mostra sobretudo que, agindo assim, eles ta l inexperiência de orientação naturalista, que não pode susci-
pensa m ma is,__na ciência do q na humanidade, e que se ensinou tar senão a náusea. Foi ass im que nossas escolas e nossos mestres
a eles a sacrificar-se por ela como uma patrulha perdida, chegaram a fazer simplesmente abstração de qualquer educação
a fim
de incitar a este sacrifício as novas gerações. O comércio com a moral e a se contentar com um puro formalismo; e a virtude é uma
\ v\ i e � ,� ll \
1 /U Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 171

palavra com a qual professores e alunos não querem mais pensar bro, uma certa ª- atia pesam sobre as melhores personalidades
nada, uma palavra_fora de moda da qual se ri - e é pior ainda da nossa época, um sempiterno fastígio com esta luta entre a
quando não se ri, _porque então é a h_ipocrisia. dissimulação e a honestidade que se trava no seu seio, uma in­
A explicação desta indolência e da forte estiagem de todas quietude que turva a confiança que têm em si mesmas - o que
as forças morais é difícil e complicada. Quem quer que leve em as tona totalmente incapazes de ser ao mesmo tempo, para os
consideração, porém, a influência do cristianismo vitorioso sobre outros, os guias e os censores.
a moral do nosso velho mundo, este também não tem absoluta­ Era então realmente tomar os meus desejos por realidades,
mente o direito, nem de ignorar a reação do cristianismo em vias quando imaginava poder encontrar como educador um verda­
de sucumbir, nem o seu destino cada vez mais visível na nossa deiro filósofo, capaz de elevar alguém acima da insuficiência
época. Pela grandeza do seu ideal, o cristianismo ultrapassou da atualidade e d.$ ensinar nova�ente ser sim�les e hone�to
.ª k�
tanto os sistemas de moral antigos e o sentimento natural que no ensamento e na vida, e, ortanto mtem estivo no sentido\ 1
reina uniformemente neles, que ficou insensível a este natural e mais profundo da palavra; pois os homens se tornaram agora tão
(
j
achou que ele era repugnante; mas posteriormente, quando se era complexos e tão complicados, que era preciso que se tornassem
ainda capaz de reconhecer, mâs não de realizar, o que é o melhor desonestos, já que falam, já que colocam afirmações e querem
e o mais elevado, não se estava em condições de retornar, por _por conseguinte agir.
mais fortemente que o quiséssemos, ao que era bom e elevado, Em meio a esta angústia_, a estas necessidades, a estes desejos, //
quer dizer, a esta virtude antiga. O homem moderno vive neste 'tomei conhecimento de Schopenhauer.
vaivém entre o cr.istianismQ e antiguidade entre um cristianis­
ª Sou desses leitor�enhauer que, desde a primeira p!-
mo de costumes timorato ou mentiroso e um pensamento segun­ gina, sabem com certeza que lerão todas as outras e prestarao
do o estilo antigo, igualmente sem coragem e cortluso_consigo atenção à menor palavra que tenha sido dita. Minha confiança
mesmo; aq_ui , ele se encontra mal. O ódio hereditário do que é nele foi imediata e ainda é a mesma que tinha há nove anos.
natural e que, por outro lado, o atrai, renovado por este mesmo Compreendo-o como se ele tivesse escrito para mim, para me ex­
natural, o desejo de achar um ponto de apoio em algum lugar,
a impotência do seu conhecimento que titubeia entre o bem e o
pressar de maneira inteligível, mas imodesta e louca. Eis porque
jamais encontrei um \ paradoxo' nele; quando muito, aqui e ali,
- fi -
'
melhor, tudo isto engendra uma inquietude, uma confusão na um pequeno erro. Pois o que são os parad oxos, senao a rmaçoes
I

alma moderna, que a condena a ser estéril e sem alegria. Jamais que não inspiram qualquer confiança, porque o próprio autor as
'
tivemos..t:anta necessidade de educadores morais e jamais foi tão formulou sem verdadeira confiança, porque com elas ele queria
A

pouco provável encontrá-los; nas épo�em que os médicos são rilhar, seduzir e sobretudo aparecer? Schopenhauer não quis ja­
C)

mais necessários, na ocasião das grandes epidemias, é então que


f mai� a_2arecer, pois ele escrevia para si mesmo, e a ninguém agrada
eles estão também mais expostos ao perigo. Pois: onde estão os er enganado, sobretudo não um filósofo que erigiu�ra si esta lei:
médicos da humanidade moderna que fossem, eles próprios, su­
ficientemente firmes e sólidos nos pés, para que pudessem além
disso aguentar um outro e o guiar pela mão? Um certo assom-
�Não engane a ninguém, nem mesmo a ti próprio. Nem se­
quer usando deste engano obsequioso e mundano que carrega
L
\ ' r ( .._
) l t () I, 1 Consideração Intempestiva: �chopennauer taucauut �/J
172 Escritos sobre Educação _,)(

1 '
mais sedutor
consigo toda conversa, e que os escritores imitam quase sem em relação à expressão em prosa, Lessing é o autor
o maior bem
dentre os Alemães. E para adiantar imediatamente
.

l
saber; amda menos com o engano mais consciente da tribuna
arei para ele
e os meios artificiais da retórica.
que eu poderia fazer a respeito do seu estilo, aplic
honesto o bas­
esta expressão, que é dele: "Um filósofo deve ser
Schopenhauer, ao contrário, fala para si mesmo: ou caso se ento de poesia
tante para não ter de recorrer a qualquer procedim
queira realmente supor para ele um ouvinte, que se pense num o uma virtu­
ou de retórica." �e a honestidade seja algo, e mesm
filho instruído por seu pai. Este é um discurso correto, rude e be­ mente ao
de, na época das opiniões públicas, i sto pertence segura
nevolente diante de um ouvinte (l!!e escuta com amor. Carecemos disso, não
círculo das opiniões privadas que são interditas . Além
destes escritores . A vigorosa euforia de quem f;la nos envolve caracteriza do,
terei louvado Schopenhauer, o terei simplesmente
no prime iro acento de sua voz; experimentamos então O mesmo r. E se poucos
�quando repito: ele é honesto, mesmo como escrito
sentimento de quando penetramo s no bosque , respiramos pro­ desconfiar de �\
e scritores o são, para dizer a verdade, dever-se-ia
fundamente e de repente nos se ntimo s bem de novo. Sentimos
isso, há aí um ar sempre igual e fortificante, aqui reinando uma
certa desenvoltura, um certo natural initnitáveis, como só o s
todos os homens que escrevem. Não conheço senão
que, _por honestidade, eu,,.. soloco tão elevadamen
um escritor
te, senão mais, )h T
r
de, pelo fato de•. l,
do que Schopenhauer: é Mo�gn'7> Na verda '
possuem os homens que se encontram no íntimo de si mesmos e er nesta terra
que um tal homem tenha escrito, o prazer de viv
q�e são principalmente senhores de uma rica morada; em opo:i­ e que tomei
foi aumentado. De minha parte, pelo menos, desd �
çao a estes e scritores, que são os primeiros a se admirar quando osa, me foi
c onhecimento de sta alma, a mais livre_! a ma is vigor (')
por acaso se mostram espirituais, e cujo discurso adquire com nas lancei os �
preciso dizer dela o que se diz deflEtarco) "Ape
este f�to algo de inquieto e forçado. Nada, quando Schopenhauer uma asa." É
olhos sobre ele, e isto me fez mover uma perna ou
fala, Jamais nos lembra o erudito de membros naturalmente du­ o dever de
ao lado dele que vou me colocar, caso se me impusesse
ros e mal-exercitados, de peito estreito e cujo andar é portanto .
escolh er uma pátria sobre a terra
anguloso, confuso ou afetado ; e por outro lado, a alma rude e
Além da hones tidade, Schopenhauer tem ainda
uma outra J
um pouco ríspida de Schopenhauer, longe de fazer sentir a fle­ de que o tor­
qualidade em comum com Montaigne: uma serenida (
xibilidade e a elegância cortesãs dos bons escritores franceses ' 5 Há d e fato d o is
. ,. . na realm<:_nte sereno. Aliis laetus, sibi sapiens • .,­
ensma ao contrario, a desprezá-las, e ninguém descobrirá nele o pensador se
tipos muito diferentes de serenidade. O verdadeir
IO

esta imitação, e ste tipo de prateado e de aparência ao estilo fran­ e ou graceje,


alegra e fica sereno sempre, quer ele fale seriament
cês com que se comprazem certos autores alemães . Em alguns divina indul­
quer ele exprima sua perspicácia humana ou sua
lugares, o estilo de Sch_QQenhauer me lembra um pouco Goethe, sem olhare s
gência; isto, sem gestos aflitos, sem mãos trêmulas,
�as nenhum_ outro modelo alemão. Pois ele pretende diz�ue sufocados, mas com \segurança Í;implicidade,
com coragem e
: prof_undo simplesmente, o que é comovente sem retórica, 0 que
e e stntamente científico sem pedantismo ; e com que alemão se 4. Michel de Montaigne 11553-15921: filósofo francê
s, cuja obra g irava em torno do
_ um ceticismo com relação ao
podena aprender isto? Ele se encontra igualmente destituído da subjetivismo e do humanismo renasc ent i sta. Cultiv ou
se os seus laços com a natureza.
homem, cuja soberbia impedia que ele compreendes
maneira sutil, excessivamente móvel e - com O dev1·do respeito - Elé aparece citado elogiosamente várias vezes na obra de Nietzsche.
.
mU1to pouco alemã de Lessing, o que é um grande mérito, pois, 5. Em l a tim no texto, significando "quanto mais
alegre, mais sábio".
("
} r: > <' l ... Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 11)
174 Escritos sobre Educação
"'' \
vigor, talvez com algo de cavalheiresco e duro, mas sempre como Como ele é bem adaptado à sua condição, como ele é verdadeiro,
7
vencedor. E é exatamente isto que alegra no mais profundo e como ele está cheio do ser!"
mais íntimo do ser: ver o deus triunfante de pé, ao.l ado de todos Não descrevo nada diferente da primeira impressão, por as­
os monstros 9..ue elé combateu. Ao contrário, a alegr� se sim dizer, fisiológica, que Schopenhauer suscitou em mim, esta
encontra às vezes nos escritores medíocres e nos pensadores de mágica efusão da energia mais íntima que se comunica de um
pouco fôlego nos aflige na leitura; este era, por exemplo, o efeito ser da natureza a outro e que sobrevive ao primeiro e ao mais
leve contato; e se analiso demasiado tardiamente esta impressão,
' que tinha sobre mim a alegria de David Strauss �• Com razão'
6

se tem vergonha por ter estes contemporâneos tão �renos, que a encontro composta de três elementos, a impressão de sua ho­
comprometem a é oca, e nós outros com ela, diante da posteri­
dade. Estes farsante não percebem de fato as dores e os mons­
nestidade, da sua serenidade e da sua constância. Ele é honesto
°' -
porque fala e escreve por si mesmo e para si mesmo; sereno por- f
tros que eles pretendem ver e combater enquanto pensadores; que venceu 1'.elo pensamento o que há de mais difícil, e constante
além disso, sua serenidade desperta o despeito porql!e ilude: ela por ue assim deve ser. Sua força cresce reta e ligeira como uma

____
quer levar a crer que uma vitória acaba de ser alcançada. No chama no ar tran uilo, certa de si, sem tremer, sem inquietude.
fundo, não há serenidade senão lá onde há vitória, e isto vale ' Em cada uma destas qualidades, ele encontra seu caminho sem
tanto para as obras dos verdadeiros pensadores, quanto para que inclusive notemos que ele o tenha procurado; pelo contrário,
qualquer obra de arte. Seu conteúdo pode bem ser tão terrível e como movido por uma lei da gravidade, ele aí se lança, firme e
grave quanto o problema mesmo da existência: a obra não teria âgil, ine�ráv� aquele que algum dia sentiu o_que é, na nossa
efeito opressor e torturante, senão quando o meio-pensador e época de humanidade híbrida, encontrar um ser inteiro, coeren­
o meio-artista derramassem sobre ela as exalações da sua insa­ te, móvel nos seus próprios eixos, isento de hesitação e de entra­
tisfação; enquanto que nada há de mais alegre nem melhor que ves, este compreenderá minha felicidade e minha surpresa quan­
possa ser atribuído ao homem do que aproximar-se de um destes do descobri Schopenhauer: pressentia que tinha encontrado nele
vitoriosos que, na medida em que pensaram mais profundamen­ este educador e este filósofo que eu tinha por tanto tempo pro­
te, deviam precisamente amar o que há de mais vigoroso e que curado. Porém, isto se dava certamente apenas através de livro, e
por fim se inclinavam com sabedoria para o belo. Eles falam havia nisso uma grande deficiência. Eu me esforçava cada vez mais
realmente, não bl.!tuciam e não t��relam, jamais comentando para ver através do livro e para representar o homem vivo, de quem
os outros; eles se movem e vivem com autenticidade, e não se­ eu tinha lido o grande testamento e que prometia não escolher para
gundo esta mascarada sinistra em que vivem ordinariamente os seus herdeiros senão aqueles que quisessem e pudessem ser mais do
homens: eis porque, na proximidade deles, nos sentimos enfim que simples leitores: quer dizer, seus filhos e seus discípulos.
realmente humanos e naturais e gostaríamos de nos expressar
como Go_:the: "Que coisa magnífica e deliciosa é um ser vivo!

�---
6. David Friedrich Strauss [1808-1874]: filósofo alemão a quem Nietzsche criticou
duramente na sua 1' Intempestiva: "David Strauss, apóstolo e escritor" e a propósito 7. Cf. Goethe, Journal du voyage en ltalie, IV, 9 de outubro de 1796 [Nota da edição
de quem ele cunhou a expressão "filisteu da cultura". francesa].
� 176 Es ritos sobre Educação 'l \,l (MI L, � "
v Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 177

J.,, \.,lJ) �
(.
3 na mais hostil das contradições com as formas e os regulamentos
f'w\ �� existentes, caso ele queira manifestar claramente a verdade e a
Estimo tanto mai§ym filósofo quanto mais ele está em condições ordem superior que carrega no seu interior. Mas a "verdade",
de servir de exemplo. Ninguém duvida, por exemplo, de que ele da qual nossos professores tanto falam, parece ser seguramente
pudesse a�ar no seu cortejo povos inteiros; a história da Ín­ uma coisa bem mais modesta, da qual não se deve recear nada
dia, que é quase a história da filosofia hindu, comprova isso. Mas de desordenado ou excêntrico: ela é uma criatura de humor fácil
o exemplo deve ser dado pela vi a rea e não unicamente pelos e benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes
livros; deve, portanto, ser dado, como ensinavam os filósofos da estabelecidos que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém;
G�ela expressão do rosto, pela vestimenta, pelo regime

U
pois, afinal de contas, não se trata aqui apenas de "ciência R!!fª"?
alimentar, pelos costumes, mais ainda do que pelas palavras, e Eu gostaria então de dizer que a fil�s�fia na Ale�anha deve cada
. , /
sobretudo mais do que pela escrita. Como estamos longe ainda, ·-vez mais d�aprender o fato de ser c1enc1a pura ; e a, temos exa-
na Alemanha, desta corajosa visibilidade de uma vida filosófica! tamente o exemplo do homem Schopenhauer.
Aqui, os corpos não se libertam senão muito lentamente, quando Mas é um milagre, e não algo sem significação, que ele te­
já os espíritos parecem desde há muito tempo libertados; e, po­ nha podido elevar-se até chegar a ser este modelo humano: ele
rém, é absolutame� uma ilusão acreditar que um espírito seja estava de fato como que cercado do exterior e do interior pelos
livre e independente, se esta autonomia adquirida - que é no fun­ mais monstruosos perigos, que teriam esmagado e despedaçado
do uma limitação criadora que se impõe a ele - não se manifesta ·qualquer criatura mais fraca. Havia, ao que me parece, fortes
em cada passo e em cada olhar, desde a manhã até a noite. �t suspeitas de que o homem Schopenhauer teria sucumbido e que
(
permaneceu atrelado à Universidade, se submeteu aos governan­ somente teria deixado como vestígio, no melhor dos casos, a "ci­
�� J tes, salvou as aparências de uma fé religiosa, suportou viver entre \ ' ência pura": mas isto somente no melhor dos casos; pois o mais
� colegas e estudantes: é portanto natural que seu exemplo tenha provável é que não tivesse ficado nem o homem nem a ciência.
produzido so�etudo �sores de filosofia e uma filosofia de Um inglês moderno9 descreve assim o perigo mais geral que
1 prQ.kssores. Scho enhauer não dava quase atenção às castas aca­ correm os homens excepcionais que vivem numa sociedade de­ \
) dêmicas, estava distante disso, buscava independência com rela­ masiadamente ligada à norma ordinária:
ção ao Estado e à sociedade - este é o seu exemplo, o seu modelo
- para começar pelo que há aí de mais aparente. Mas há de fato No início, estas características estranhas são destruídas, de­
graus de libertação da vida filosófica que são ainda desconhe­ pois elas se tornam melancólicas, em seguida ficam doentes
cidos dos Alemães e que não poderiam permanecer assim para
sempre. Nossos artistas vivem com mais audácia e honestidade; e
por causa do seu romantismo cristão e da sua aproximação com os nacionalistas
" o mais poderoso exemplo que temos diante de nós, o de Richard antissemitas alemães.
Wagner8 , mostra que ao gênio lhe é permitido não temer entrar 9. Segundo Jorg Salaquarda !"Der unmogliche Shelley", Nietzsche-Studien 8, 19711,
trata-se aqui de Walter Bagehot 11826-18771: economista inglês que escreveu uma
obra clássica sobre a Constituição Inglesa. A respeito da citação que se segue, a edi­
8. Richard Wagner !1813-1883!: compositor e regente alemão. Na sua juventude, ção francesa revela que a citação feita por Nietzsche contém um erro; na verdade,
Nietzsche se tornou amigo pessoal e admirador de Wagner, com quem depois rompeu Bagehot escreve: "Um Shelley não teria podido viver na Nova Inglaterra."
178 Escritos \Obre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 179

e finalmente morrem. Um Shelley não poderia ter vivido na possível ser feliz entre eles - com o que abriga·m o preconceito
Inglaterra e uma raça de Shelleys teria sido impossível. de que não se deve perdoar quem se sinta infeliz e solitário nesta
nação. Daí, com uma grande crueldade, eles mesmos deduzirnm
Nossos Holderlin 10 e Kleist 11 , e tantos outros, morreram por e explicaram na prática o dogma de que há sempre, em toda so­
causa do seu caráter estranho, e não poderiam suportar o clima lidão, uma culpa secreta. E o pobre Schopenhauer tinha também
da pretensa cultura alemã. Somente as naturezas de ferro, como � destas culpas secretas no coração: a de dar mais valor à
Beethoven, Goethe, Schopenhauer e Wagner, puderam torná­ sua filosofia do que seus contemporâneos; além disso, era ainda
la boa. Mas, neles também, o efeito desta luta, desta crispação mais infeliz por ter aprendido justamente através de Goethe que,
extenuante entre todos, se manifesta antes pelos traços e pelas para salvaguardar sua própria existência, ele tinha de defender
rugas: sua respiração se torna pesada e seu tom se mostra fre­ a todo custo sua filosofia contra a.indiferença dos seus contem­
quentemente violento. Este diplomata experiente 12, que somen­ porâneos; há de fato uma espécie de censura inquisitorial que os
te conseguiu entrever Goethe e trocar algumas palavras com Alemães, a crer em Goethe, levam muito longe: é um silêncio de
ele, dissera a seus amigos: Voilà un homme qui a eu de grands p.edra. Por causa deste procedimento, quando menos, compreen­
chagrins! 13 - o que Goethe traduziu para o alemão como: "das demos já porque a maior parte da primeira edição da sua obra
ist auch einer, der sich 's hat sauer werden lassen!" E acrescenta: principal tenha sido escrita em folhas mal-impressas. O perigo
que ameaçava ver sua grande empresa cair no vazio, pelo simples
Se não �odem ser apagados do nosso rosto os traços dos sofri­
mentos superados, dos trabalhos realizados, não deve surpre­
e'feito da indiferença com que se olhava para ele, o lançou numa
ender a ninguém o fato de que tudo o que resta de nós e dos inquietud�vel, difícil de dominar; nenhum seguidor notável
nossos esforços carregue os mesmos traços. apareceu. É triste vê-lo à caça do menor traço de notoriedade
para si; e seu triunfo estrepitoso, muito estrepitoso, quando ele
Eis aí o Goethe que nossos filisteus da cultura designam como foifinalmente de fato lido ["legar et legar'� 14], tem algo de dolo­
sendo o mais feliz dos Alemães, para demonstrar que deve ser roso e comovedor. Todos estes traços, nos quais não fica de resto
demonstrada a dignidade de um filósofo, revelam precisamente
1 O. Friedrich Hõlderlin l 1770-1843 I: grande poeta alemão que se inspirou nos clássi­ um homem sofredor, que teme pelos seus bens mais preciosos;
cos gregos, razão por que angariou a admiração de Nietzsche. Hõlderlin chegou a ser é assim que o atormenta a preocupação com perder sua peque­
internado num manicômio em Tübingen [18061 e mortell totalmente louco. Há em
português uma publicação da sua principal obra: HipéJion" [Ed. Vozes, Petrópolis, na fortuna, e talvez não poder mais assumir sua atitude pura
1994[, e também de Poemas I Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 19911 e Refle­ e verdadeiramente antiga com relação à filosofia; assim, quan­
xões IEd. Relume-Dumará, 19941.
tas vezes, frequentemente desenganado na sua afanosa procura
11. Heinrich vón Kleist 11777-18111: dramaturgo e novelista alemão ligado ao ro­
mantismo. Kleist, tomado pelo desespero e pelo rechaço de seus contemporâneos, se de homens totalmente confiáveis e compassivos, precisou ele se
matou junto com sua amiga Henrierre Vogel, acometida de uma doença incurável. Há voltar, com um olhar melancólico, para o seu fiel cão. Ele era
em português A Marquesa de O ... & O Terremoto no Chile [Ed. Antígona, Lisboa,
19861 e Michael Kohlhaas, O Rebelde IEd. Antígona, Lisboa, 19841. verdadeiramente um solitário; realmente, nenhum amigo com a
12. Trata-se de Napoleão INota da edição francesa].
(
13. Em francês no texto, significando "Eis um homem que teve grandes desgostos". 14. Em latim no texto, significando "fui lido e serei lido".
Consideração lntempesnva: ::icnopennauer cuut:auu,
f 180 Escritos sobre Educação
A,
mesma disposição de temperamento se moveu para consolá-lo
des­
) - e entre um e outro, há, como entre algo e nada, um infinito. vras e seus atos são então e�o_Jões, e é possível que se a�

Ninguém que tenha verdadeiros amigos sabe o que é a verdadeira truam por serem o que são. Schopenhauer viveu assim, perigos
solidão, como se tivesse como adversário todo o mundo à sua �nte. Justamente estes solitários têm necessidade de amor, têm
�olta. - Mas então vejo bem que vocês não sabem o que é a soli­ necessidade de companheiros com os quais possam se mostrar
dão. Em to�o lugar onde houve poderosas sociedades, governos, .úlheLtos e francos, tal como o são para si mesmos, e em presença
'\
religiões, 9'f,iniões públicas, em suma, em todo lugar onde houve de quem cessaria a tensão do silêncio e da dissimulação. Retirem
deles estes amigos, e vocês provocarão um perigo maior ainda;
I 1
tirania, execrou-se o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao
o homem um �o onde nenhum tirano pode penetrar, a caverna
da interioridade, o labirinto do coração: e isto deixa enfurecido
Heinrich von Kleist morreu por causa desta ausência�amor, e
o mais terrível remédio que se pode aplicar aos homens excepc io­
(
1(_

os tiranos. Os solitários aí se escondem, mas aí também os es­ nais é fazê-los recolher-se tão profundamente a si mesmos; cada
preita o maior perigo. Estes homens, que puseram a salvo sua uma de suas fugidas para o mundo exterior tomaria a forma
l liberdade no fundo de si próprios, não têm outro remédio senão de uma erupção vulcânica. Porém, sempre há um semideus que
ter também uma vida exterior, se tornar visíveis, se fazer ver. suporta viver em condições tão terríveis, e viver vitorio�nte; 1
Eles se acham ligados a inúmeras relações humanas, em função e se por acaso quiserem ouvir os seus cantos solitários, ouçam a 1
do seu nascimento, do seu domicílio, de sua educação, da sua música de�thovert.
f �º�E s te foi o primeiro erigo à
sombra do qual Schopenhauer

/
pátria, das circunstâncias, das imposições dos outros; se exige
também deles uma infinidade de opiniões, só porque elas são as -
cresceu: o isolamento. O segundo se chama: o desespero da ver-
dade [Verzweiflung an der Wharheit]. Este perigo acompanha
--- J

opiniões dominantes; toda expressão do rosto que não é negativa


passa por uma aprovação; todo movimento da mão que não des­ todo pensador que começa sua carreira a partir da filosofia de
trói é interpretado como um assentimento. Eles sabem bem, es­ (Kant' ,, supondo que ele seja um homem robusto e completo no
tes solitários e livres de espírito, que parecerão constantemente, �imento e no desejo, e não simplesmente uma ruidosa máqui­
em qualquer circunstância, diferentes daquilo que eles próprios na de pensar e calcular. Ora, sabemos todos muito bem o que
pensam de si; embora só queiram a verdade há de vergonhoso neste pressuposto; inclusive, me parece que
---=-- e a honestidade
- ' se
tece em torno deles uma rede de mal-entendidos; e a violência Kan em geral não exerceu esta influência vigorosa, metamorfo­
do seu desejo não poderá impedir, apesar de tudo, que emane seando sangue e energias, senão sobre muito poucos indivíduos.
v de sua ação uma bruma de opiniões falsas, de acomodações, de Certamente, se pode ler em todo lugar que, desde o empreendi­
meias-verdades, de silêncios complacentes, de interpretações er­ mento deste silencioso erudito, uma revolução teria irrompido
rôneas. Tudo isso faz acumular uma nuvem de melancolia na sua em todos os domínios do espírito; mas não posso acreditar nisso.
) fronte: pois estas naturezas odeiam, mais do que a morte, o fato Isto porque não distingo claramente, nos homens que deveriam
de a aparência ser necessária. E esta tristeza prolongada os torna -si" não
15. Nietzsche certamente está e referindo à tese de Kant de que a "coisa-em
vulcânicos e ameaçadores. De vez em quando, eles se vingam da pode ser conhecida; quer dizer, em outras palavras , a verdade não pode ser conhecid a;

sua dissimulação forçada, da circunspecção a que são obrigados. tese que reria levado Kant ao ceticismo.
Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: �chopennauer taw..:auu, ioJ

ser revolucionados, estes inovadores, antes que domínios intei­ grandeza: ter-se colocado diante da imagem da vida como diante
ros pudessem ser revolucionado s. Mas logo que0ant começou de uma totalidade, pa ra interpretá-la como to talidade , ainda que
a exercer uma influência popular, vamos observá-la sob a forma os espíritos mais perspicazes não cheguem a desembaraçar-se do
- -
de um ceticismo e um relativismo corrosivos e destruidores·' e foi
unicamente nos espír itos mais ativos e mais nobres, aqueles que
erro de que são mais acome tidos nesta inter pretação, quando
examinam detalhadamente as cores do quadro e a matéria sobre
I'

j,amais suportaram permanecer n_a dúvida, que surgiu no seu lugar a qual ele é pintado; tendo como resultado talvez que se trata
esta subversão, este desespero com relação a qualquer verdade, tal aí de um véu com uma textura particularmente sutil, e que as

t
r
como, por exemplo, foi vivido por Heinrich vo n Kleist, como ef ei­ cores aí colocadas não podem ser analisadas quimicamente. É pre ­
to da filosofia kantiana. Escreve e le com seu estilo surpreendente : ciso imagina rlfpintor, caso se queira compreender o quadro - e
Schopenhauer sabia disso. O ra, atualmente, toda a co rporação
Há pouco, estabeleci conhecimento com a filosofia de Kant, de todas as ciências saiu em campo para compreend er som�nt e
e é preciso agora te comunicar um pensamento extraído dela, este véu e estas cores, mas não o quad ro. Pode-se mesmo dizer
pois não tenho por que temer que ela viesse a te romper tão
profundamente ou tão dolorosamente quanto a mim. - Não
que unicamente aque l e que firmemente envolveu com o olhar o
podemos resolver se o que chamamos de verdade é realmen­ quadro geral da vida e da existência se servirá das ciências par­
te a verdade, ou se unicamente isto nos parece assim. Neste ticulares sem se prejudicar, pois sem esta imagem reguladora de
segundo caso, a verdade que coligimos aqui não é mais nada conjunto, elas são apenas fios que, no final, não levam a lugar
depois da morte, e todo esforço para adquirir um bem que nos 'nenhum e tornam o curso da nossa vida ainda mais confuso e
siga até mesmo no túmulo é vão. - Se a ponta deste pensamen­
to não toca teu coração, não te rias, porém, de alguém que aí
mais labir íntico. Como já disse , Schopenhauer foi grande quan­
se sente abençoado o mais profundamente, no seu íntimo mais do perse guiu este quadro, tal como Hamlet perseguia o espec tro,
sagrado. Meu objetivo único, meu objetivo supremo afundou sem se deixar desvT;r, como faz em os erudito s, e sem se imis­
e eu não tenho nenhum outro 16 • cuir numa escolástica conc e ituai, como é o destino dos dialéti­
cos desenfreados. O estudo destes meio-filósofos não tem outro
Sim, quando então terão os homens de novo esta sensibilidade interesse -senão o de mostrar que eles se dirigem, no edifício das
natu ral, kleistiana, quando aprenderão de novo a medir o senti­ grandes filosofias, aos lugares em que é p ermitido d ebater com
do de uma filosofia segundo o seu "íntimo mais sagrado"? E, no pe dantismo sobre os prós e os contras, onde é permitido rumi­
entanto, isto já basta pa ra que se possa avaliar o que justamente
;;:-ar, duvidar, contradiz er, com o que, por conseguinte, el es se
Schopenhauer pode ser para nós depois de Kant - ele é o guia afastam da exigência de toda grande filoso fia, que, como totali­
que conduz das cavernas da melancolia cética ou da renúncia dade, jamais dir á agora e sempre senão isto: "Esta é imagem de
c rítica para as alturas da contemplação trágica, com o céu no tur­
toda vida, extrai daí o sentido da tua." E inversamente : "D ecif ra
no e sua s est relas no infinito acima de nós ; ele foi o homem que unicamente a tua vida e tu compr eenderás os hieróglifo s da vida
primeiro deu a si próprio est e caminho e o percorreu. Eis aí sua universal." E é assim também que, em pr imeiro lugar, é preciso
sempre interpretar a fil o sofia de Schopenhauer: de manei ra in­
16. Trata-se de uma carta de Heinrich von Kleist a sua meio-irmã Ulrike, de 23 de
março de 180 l.
dividual, unicamente pelo indivíduo para consigo mesmo, para

• (' e,._ '


184 Escritos sobre Educação

que se convença da sua própria miséria e de suas necessidades, esta nostalgia, estes dons nos inspiram repugnância e aversão,
dos seus limites, e aprenda a co nhecer os remédios e as co nso­ porque pressentimos que estes homens, co m todo o seu espírito,
lações: quer dizer, a abnegaç ão d o eu, a submissão a fins mais longe de fazer pro gredir uma cultura em gestação e a cria<r_ão do
no bres e so bretudo àqueles da justiça e da' iedade. Ele nos en­ gênio - que é o objetivo de toda cult�riam para estas co isas
sina a distinguir entre os mo dos reais e aparentes de fomentar a u; obstáculo. Há a í um estado de endurecimento que equivale a
felicidade humana, e como nem a riqueza, nem as honras, nem esta virtude fria e orgulhosa de si mesma, moldada pelo hábito,
o saber p o dem arranca r o indivíduo da lassid ão profunda que
e que está Também ma is longe da verdadeira santidade e dela se
a fasta. Ora, a natureza de Schopenhauer envolvia uma dualidade
ele experimenta diante da ausência de valor de sua existência , e
ainda como o esforço para adquirir estes bens só ganha sentido estranha e extremamente perigo sa . Poucos pensadores sentiram
com um o bjetivo de co njunto elevado e transfigurador: conquis­ em si, a este ponto e com esta incomparável precisão, o pulsar
tar o Q_der para, graças a ele, vir em auxílio da physis 17 e corri­ do gênio; e seu gênio lhe fazia a mais elevada pro messa : que não
gir, graças a ela, ainda que minim amente, suas loucuras e suas havia sulco mais profundo do que aquele que seu arado cortava
inépcias. No início, no primeiro instante, certamente, somente no solo da humanidade mo derna. Assim, ele sabia que tinha uma
para si: mas através de si, no fim, para to dos. Este é seguramente parte do seu ser satisfeita e cumprida, sem desejo, certa da força
um esforço que leva profunda e intimamente à resignação, pois que possuía - assim, co nsciente de ser uma realizaç ão vencedora,
quantas coisas nã o poderiam ainda em geral ser aperfeiço adas, carregava sua vo cação com grandeza e dignidade. Uma nostalgia
quer se tratasse do particular ou do universal! impetuosa vivia na outra metade do seu ser. C ompreendemos
'_f') Se aplicarmos estes termos a Schopenhauer, tocaremos no ter­ isto ao ouvi-lo dizer que se a fas�o� olhar pesaroso de
ceiro e ma is notável perigo no qual ele viveu, e que estava o culto um retrato de Rancé' 8, o grande fundador da Ordem dos Tra­
em toda a estrutura e toda a ossatura do seu ser. To do ho mem en­ pistas19, murm�o estas palavras: "Eis aí a obra da graç a ."
co ntra normalmente em si um limite do s seus dons, assim como Pois o gênio aspira cada vez mais à santidade que, a partir do l
seu posto de o bservaç ão, ele viu mais longe e mais claro do que 1
do seu querer moral, e este limite o enche de nostalgia e mela nco­
lia. E, assim também, do fundo do sentimento do seu pe�o, ele qualquer outro homem, lá onde o conh�ento e o ser se recon­
aspira à santidade, leva consigo, enquanto ser intelectual, uma ciliam, lá onde dominam a paz e a negação do querer, e até esta
outra margem da qual falam o s hindus. M as eis aí justamente o
aspiraç ão pro funda pela genialidade. Aí reside a raiz de to da

verdadeira cultura, e se entendo p or esta palavra a nostalgia do milagre: qual n ão deveria ser a unidade inconcebível e indestru­
homem que quer renascer co m o s�o e como gênio, sei que n ão tível da natureza de Schopenhauer, para n ão ser, nem romp ida ,
há qualquer necessidade de ser budist a para -�preender este nem esterilizada por esta nostalgia ! O que isto significa, cada um
mito . Quando, nos círculos dos eruditos, o u mesmo daqueles que
s ão chamados de pessoas cultivadas, encontramos os do ns sem J: li rerato francês.
18. Armand Jean Le Bourhillier de Rancé J l 625/26-1700

-
1140 na França. Esta ordem
19. Trata-se da Abadia da Ordem de Cisrer, fundada em
era comum naquel a localidade da Normandia a

-
l '.. Em grego rranslirerado no texto, significan do em geral "natureza", podendo ram­ religiosa recebeu este nome porque
de cova. O q ue caractenza­
bem ser entendido como processo genético lge11esis 1, ou substância física de que as atividade da caça através do uso de armadilhas em forma
avam uma moral extrem amente rígida .
c01sas eram feiras larcheJ, ou princípio organizador das coisas. va os Trapistas é que ele respeit
186 Escritos sobre Educa., io __) (U:.1'-' { I Consideração lntempesnva: .:,cuupc:1111au..,, ��-�---·
,.x.(). • t

o compreenderá seg undo aquilo que se é e va le , e ninguém dentre a lgu ns lugares, há sempre u m h omem natura lmente d otado de
nós o compreenderá co mpleta mente, em to da sua gravidade. perspicácia, seus pe nsamentos seg uem de bom grado o ambíg uo
Quanto ma is re fl etimos nos três perigos exp ostos acima, mais caminh o da di alética; se ele impr udentemente dá rédeas s oltas às
nos admiram o s em ver com que vigor Schopenhauer s e defendeu su as disposições, co m que facilidade sucu mbe co mo homern e,
deles, e como ele saiu sã o e salvo d esta luta. Com muitas cicatri­ imerso na "ciência pura", leva so mente u ma vida de fantasma;
'.?'.�S e ferid�abertas, certamente , e num estado de espírito q ue ou que, habituado a procurar nas c oisas os prós e os contras, el e
parece talvez grave ao e xtrem o, e às ve z es também mu ito beli­ perde abso lutamente o sent ido da verdade, d e vendo viver, assim,
c oso. S� próprio se e leva mesmo acima do maior h omem. sem coragem ou con fiança, negando , duvidando, atormentado e
Que Schopenhauer pudesse ser um model o, isto perm ane ce ver­ melancólic o, numa meia-esperança, à espera da desilusão : "Uma
dadeiro, apesar de to das estas cicatrizes e de todos estes defeitos. vida assim, nem u m cão desejari a !" 2º O terceiro p eri go é o en-
-? durecimento moral e intelectua l; o homem destrói o liame que o
Poder-se-ia mesmo dizer que o � h avia de mais imperfeito e
de demasiado humano no seu ser é precisamente o que mais nos prendia a seu ideal; neste ou naquele do mínio, ele deix a de se r
aproxima dele, no sentido mais humano da palavra, pois o vemos fecundo, de procr iar e, no que se re fere à c ultura, ele se torna
então como um�er s ofredor e como um companheiro de s ofrimen- nocivo e i nútil. A un icidade do seu ser se tornou um átom o in­
_!_o, e não mais somente imerso na elevação desdenhosa do gênio . d0isível, i�omunicável, uma pedra congel ada . E é assim q ue se
Estes três perigos constitutivos que ameaçam Schopen hauer pode enfraque cer, p or causa desta unicidade ou por medo de la,
ta mbém nos ameaç a m a todos. Cada um deles carrega c onsigo, en fraquecer o próprio eu ou abandonar-se à autorr e núncia, en­
l fraquecer p or causa da nosta lgia e do endurecimento: p ois viver
c omo núcleo do seu ser [Kern seines Wesens], uma unicidade
em geral é estar em perigo . J "
pro dutiva [eine produktive Einzigkeit]; e quando se toma cons­
ciência desta unicidade, um h alo estranho se forma em torno de Além destes perigos de toda sua constituição, aos quais Scho-
si, o halo d o extrao rdin ário [Ungewohnlichen]. Para a maioria penhaue r esteve e xpost o , tivesse ele vivido neste século ou num

t
das p essoas, há aí algo de insuportável, porque, como já disse, outr o - ele foi assaltado por outros per igos que per tenciam à
elas são preguiçosas, e porque a esta unicidade se liga toda uma sl,@_época; e esta distinção entre perigos constit utiv os e per igos ·�
da ép oca é essencial para compr eender o que há de exe.mp lar e
r
adeia de torment os e fardos. Ning uém du vida que, para o ser

. xtraordinário qu e se prende a esta cadeia, a vida perde quase educador na natureza de Schopenhauer. Pensemos no olh o do
udo o que se espera �ela na ju�e �tu� e : alegria, seg�a nça, a�li­ r fil�sto sobre sua e xistência: ele quer de nov o determinar
1] o seu valor. Pois foi sempre a tarefa próp r ia d os grandes pensa­
dade, honra. Um destino de sohdao e o presente q ue lhe dão s e us
contemp orâneos. O nde quer que e l e viva, o d�o e a caverna dores legislar s a_medida, a m2!da e os pesos d� oisas. Que
e stão já aí. Que ele de sperte então, para nã o se deixar subjugar,
estor vo não era para ele que a humanidade que via mais próxi­
para não cair no dese ncorajame nto e na melancolia. Além disso, ma fosse apenas justamente um fruto medíocre devorado pelos
é pre ciso que e le se cerq�das imagens de b ons e val entes c om­ vermes! Para s er justo para com a e xistência em geral, quanto
bate ntes, tal como Sch ope nhauer o foi. M as o seg und o p erig o
francesa!.
que ameaçava Schopenhauer não é também totalm ente raro. Em 20. Goethe, Faust, verso 376 jNoirel !Nora da ediç ão
' (
\ )
V
188 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer J:ducactor lõ)1

so­
não lhe seria preciso acrescentar ao sem-valor da época atual! dizem a mesma coisa. Como se disse, um pensador moderno
Se é vantajoso ocupar-se com a história dos povos antigos ou es­ frerá sempre de um desej o insaciável: ele exigirá que se lhe mos-
trangeiros, o é ainda mais para o filósofo que quer pronu ncia r um tre primeiro a vida, uma vida verdadeira, corada, sadia, para qu
e

julgamento justo sobre o destino geral da humanidade, e portanto ele então pudesse, a respeito dela, pronunciar-se como juiz. Pelo
não somente sobre o destino medíocre, mas sobretudo também so­ menos pa ra si mesmo, ele considera como necessá rio ser um ho­
bre o destin
-
o supremo que pode caber a indivíduos, assim como a
-==--
pov�nteiros. Ora, todo o presente se impõe com impertinência,
mem que vive, antes de se crer um juiz equitativo. Esta é a razão
pela qual os filósofos modem tão entre os ramo ais r
age e determina o olhar, mesmo que o filósofo não o queira; e, no poderosos da vida, d a vontade de viver, e, do fundo da sua o- ép
cálculo de conjunto, ele se encontrará involuntariamente estimado ca anêmica, aspfram uma cultura, urna transfiguração da physis.
muito alto . Na medida em que o filósofo deve exatamente avaliar Mas esta aspiração é também seu perigo: o r eformador da vida e o
_su a época por comparação com as outras e, vencendo ele mesmo o filósofo - quer dizer: o juiz da vida�nfrentam neles. Qualquer ú
presente, deve também vencê-lo na imagem que tem da v1 a, qu er que seja o lado para onde penda a vitória, trata-se sempre de u ma
dizer, torná-la imperceptível e de algum modo garatujar sobre ela. vitória que inclui u ma perda. Como então Schopenhauer escapou
Esta é uma tarefa muito difícil, mas possível. O julgamento dos também deste perigo ?
antigos filósofos gregos sobre o valor da existência diz a respeito Se de fato preferirmos considerar todo grande homem como
desta mais do que pode fazê-lo um julgamento moderno, porque 0 verdadeiro filho do se u temp o e como aquele que sofre, em

1
eles tinham sob os olhos e em torno deles a própria vida numa lu ­ tàdo caso, com todas as mazelas deste tempo, da manei ra mais
xuriante perfeição e porque, neles, o sentimento do pensador não intensa e com mais sensibilidade do que todos os homens mais
se extraviava, ta l como ocorre conosco, no conflito entre o desej o medíocres, o combate deste grande homem contra seu tempo só
de liberdade, beleza e grandeza da vida e o instinto de verdade aparentemente é u m combate absurdo e destruidor contra si mes­
que somente pergunta: Qual é então o valor da vida em geral? mo . M as isto é somente na aparência, pois, no se u tempo, ele
Para todas as épocas, permanece importante saber o ue Em édo­ �bate O que o impede de ser grande, o que para ele só po de
cles21 disse a propósito da existência, no cerne da alegria de viver exatamente significar: ser livre e totalmente si mesmo . Segue-se
mais vigorosa e mais exuberante qu e conheceu a cultura g rega; que sua hostilidade é no fundo dirigida contra o que está nele
seu julgamento é muito grave, tanto que ele não foi refutado por próprio, certamente, mas não é verd a deiramente ele próprio, di-
\
qualqu er julgamento contrário de qualquer outro grande filósofo rígida contra a misrnra im_p�ra _e confusa de element.�S incompa ­
da mesma grande época. Ele apenas se expressa da maneira mais tíveis para sempre mconcil1ave1s, contra a falsa umao do �tua!
clara, mas no fu ndo - por pouco que se escute, todos os outros c om seu próprio caráter intempestivo; e n o fim, revela-se que o

21. Empédocles I± 483/2-430 a.C.J: filósofo grego de quem se diz que se matou jogan­
do-se no vulcão Etna. Ele defendeu a explicação de que todo fenômeno natural ocor­
pretenso filho do seu tempo é somente um bastardo. Assim, des­
de a sua mais tenra juventude, Schopenh auer se levantou contra 1
rido no universo era composto de quatro elementos eternos e indestrutíveis: água, esta falsa mãe, vaidosa e indigna, a sua é oca, e expuls a ndo-a
por assim dizer de si, ele purificou e cu r ou seu ser e se reencon­
fogo, ar e terra, que se misturam ou se separam de acordo com as forças do Amor e
do Ódio. Ele dizia também que o Ódio foi o responsável pela criação das coisas indíl
viduais, mas que no final o princípio da Perfeição, que é Deus, venceria. � trou na saúde e na purez a que lhe pertenciam. Eis porque é preciso
190 Escritos sobre Educação
e 'r U
.
J
. Consideração Intempestiva: �cnopenn, nt-r cuuL"uv, , /,

.; 1
se servir dos escritos de Schopenhauer como de um espelho da podemos todos, atra�és de Schopenhauer, nos educar contra o
época, e não é evidentemente um defeito do espelho se tudo o que nosso tempo, porque temos, raças a ele, a vantagem d� conhe­
é atual só apareça nele como uma doença que desfigura, sob a for­ cer verdadeiramente este tem_p . Suposto, porém, que isto seja
ma de magreza e de palidez, os olhos vazios e as faces deprimidas, mesmo uma vanta� Em todo caso, poder-se-ia dizer que em

G
sofrimentos reconhecíveis desta infâ ncia bastarda. A nostalgia alguns séculos isto não seria mais absolutamente possível. A mim
_
e uma natureza forte, de uma humanidade sim les e sã era nele me com raz imaginar que os homens ficarão em pouco tempo
ma nostalgia �si mesmo. E já que tinha vencido o tempo em si fartos de leitura, e fartos de escritores; que um dia o erudito re-
� .
\} próprio, lhe foi preciso também, com um olho admirado, perce- - , '
fletirá, fará o seu testamento e prescrevera que seu ca daver seia
(
ber em si o gênio. O segredo do seu ser lhe foi agora revelado, e queimado no meio dos livros e sobretudo junto com seus pró­ (

L frustrada a intenção desta madrasta época que lhe queria dissi­ prios escritos. E se é verdade que as florestas devam ficar cada
o mular este gênio. O império da physis transfigurada [das Reich vez mais avarentas, não seria necessário vir um dia a tratar as
der verklarten Physis] estava descoberta. Desde então, quando ele
ll bibliotecas como sendo bosg_ues� alha e ramos de árvores? A
voltou seu olho intrépido para a questão: "Qual é então o valor da maior parte dos livros nasceram antes da fumaça e do vapor de
vida em geral?" - não tinha mais de condenar uma época confusa cérebros: que eles se tornem portanto �apor e fu�a! Se não (
e descolorida, com sua vida hipócrita e sem clareza. Ele sabia bem -v' havia fogo neles� ent.ãu, fo o os castigue! Assim, pode ser
que há nesta terra, para buscar e alcançar, coisas mais elevadas e que num século futuro nossa época passasse justamente como L
mais puras do que uma tal vida de conformidade à época, e sabia um saeculum obscurum 22, porque é com os seus produtos que se
também que aquele que só conhece e só avalia a existência segun­ terá durante muito tempo e o mais assiduamente alimentado os
do esta forma detestável, este lhe fazia cruelmente mal. Não, é o fornos. Qual não seria então a nossa felicidade em ter ainda po­ e
/próprio �ê�o que será chamado agora, para saber se ele, que é o dido conhecer esta época! Se de fato há ainda algum sentido em )
fruto supremo da vida, não poderia por acaso justificar a vida em se ocupar com sua época, é uma felicidade em todo caso ocupar-

t
1

1
1:ermos absolutos; o homem magnífico e criador deve responder a se dela o mais profundamente possível, de maneira a não se ter
seguinte questão: "No mais profundo do teu coração, dizes sim a mais a menor dúvida sobre esta questão: é exatamente isto que .l, '"'"i)
esta existência? Ela te é suficiente? Queres tu mesmo ser_s_eu_porta­ nos oferece Schopenhauer. t).)J..
voz, seu redentor? Pois não é preciso senão um único e verdadeiro
\ Certamente, esta felicidade seria cem vezes maior,. se d esta q. 1.A.U ,..
sim vindo de tua boca - e a vida tão gravemente acusada �ria pesquisa resultasse que jamais houve algo tão orgulhoso e tão
absolvida." - Quem responderia isto? - A resposta de Empédocles. rico de esperanças como esta época. Atualmente, existem ainda
� l "'(r., <i:' e( pessoas ingênuas num canto qualquer da terra, na Alemanha,
por exemplo, que estão dispostas a crer nisso e que afirmam,
4 inclusive, com a maior seriedade, que já há alguns anos o mundo
se corrigiu e que aquele que quisesse ainda nutrir-se de sombras
Pouco importa que este último enigma fique por agora incom­
preendido; cheguei a algo muito compreensível: explicar como 22. Em latim no texto, significando "século obscuro".

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1
192 Escritos sobre Educação \..,Ull:'.'.,lUCl d"5-dV .1.IIL\.,IJl}-' .... ,H,J •...... ..., ....... � r:- ------- -

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e pensamentos p esados a propósito da existência se acharia re­ Mas aqui experimentamos somente as consequências desta
futado pelos "fatos". Pois, de fato, é assim: a fundação do novo doutr ina recentemente pregada em todos os lugares: que o Esta-
Império Alemão seria o golpe decisivo e destruidor de qualquer . do é o fim supremo da humanidade e que não há para o homem
tipo de filosofia "pessimista" - não há como negá-lo. Quem deveres mais elevados do que servir ao Estado; reconheço nisso,
queira agora responder a questão: o que significa na nossa épo­ não uma recaída no paganismo, mas na e �pidez. Pode ser que o
ca o filósofo como educador?, deve responder e sta questão mui­ homem em questão, que vê no serviço do Estado seu dever supre ­
to disseminada e sobretudo muito prezada no seio das univer­ mo, não conheça efetivamente deveres mais elevados; mas isto
sidades, e fazê-lo assim: é uma vergonha, algo abjeto, que uma não exime, porém, que haja outros homens e outros deveres, e
lisonja tão repugnante a serviço dos ídolos atuais pudesse ser um desses deveres, que a mim me parece pelo menos ser superior
pronunciada e re petida por hom ens reputados como inteligen­ ao do ser viço ao Estado, exige destruir a estupidez sob todas as \
tes e hon rados - uma prova a mais de que não se tem mesmo suas formas, incluída aí portanto aquela forma. Esta é a razão�
por que eu me ocupo aqui com uma espéci e de homens, cuja

-
sequer a ideia do que separa a seriedade da filosofia e a serieda­
de de um jornal. Estas pessoas perdera�timo vestígio não teleologia vai um pouco além do bem do Estado, quer dizer, os
somente de todo pensamen!o filosófico, mas também de todo filósofos; e deles não me ocupo também senão em consideração L /)
pensamento religioso, e, em troca, o que adquiriram não foi o � a um mundo que é ainda mais indepe ndente do bem do Estado, i/
- --
otimismo, mas antes o jornalismo, o espírito - e a ausência de � �undo da cultu 13;. Dos muitos anéis que, imbricados um no /­
out ro, constituem a comunidade humana, alguns são de ouro �
espírito - da atualidade e dos_ j _ornais. Para toda filosofia que
acredita que um aconteciment�lítico possa dissipar-se, ou outros são de zinco.
ainda, resolve r-se, o problema da existência é uma brincadei ra Então, como vê o filósofo a c�a na nossa época? Comp le -

-
I-,
de filosofia, uma pseudofilosofia. D esde que o mundo existe, se tamente diferente , é preciso confessar, de todos estes profe ssores
--
viu freque ntemente serem fu_n.d.ado.s..!,sta_Q_os; esta é uma �elha
;
história. Como uma inovação política bastaria para fazer dos
de filosofia satisfeitos com o Estado em que vivem. Quando ele
pensa na pres�a geral, no crescimento �rtiginoso da queda, no
homens, de uma vez para sempre, os felizes habitantes da ter­ desapare cimento de todo recolhimento, de toda simplicidade , ele
parece uase discernir os sintomas de uma extirpação e de um ('
ra? Mas se alguém acredita ve rdadeiramente, com todo o seu

coração, que isto é possível, que então o demonstre; pois, na d� raizamento completos da cultura. As águas da religião es­
verdade, el e merece se tornar professor...de.Jilosofia numa uni­ tão em refluxo e deixam atrás de si pântanos e poças; as nações

-
versidade alemã, como Harms e m B erlim, Jürgen Meyer23 em se opõem novamente com a maior hostilidade e desejam se que­
Bonn e Carriere24 em Munique. brar totalmente . As ciências, praticadas sem medida e abandona-
das ao mais cego laissez-faire, se retalham e dissolvem tudo em
.
23. Jürgen Bona-Meyer J 1829-1897!: aluno de A. Trendelenbrug e professor de filo­ que se acredita firmem7'nte; as classes cultas e os Estados civili­
sofia alemão em Bonn; apresentou uma interpretação psicológica do transcendenta­ zados são arrastados por uma corrente de dinheiro gigantesca
lismo kantiano.
e desprezível. Jamais o mundo foi mais mundano, mais pobre
24. Moritz Carriere l l 817-1895 ]: filósofo alemão e seguidor de Hegel; suas obras
versam principalmente sobre a estética. de amor e de bondade. As classes cultas não são mais os faróis
194 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 195

ou os asilos em meio a todo esse turbilhão de espírito secular. te implacáveis. Como um caldeirão de feiticeira, olhamos para
e I
A cada dia, elas se tornam mais inquietas, mais vazias de amor elas com uma atenta ansiedade: a qualquer momento, ele pode

-
e pensamento. Tudo está a serviço da barbárie que vem vindo, estremecer, lançar seus raios, anunciando aparições terríveis. Há
-
tudo ' aí incluídas a arte e a ciência desta época. O homem cul-
to degenerou até se tornar o maior inimigo da cultura, pois ele
um século estamos preparados para abalos radicais; e quando
agora se tenta opor a esta inclinação profundamente moderna
quer negar com mentiras a doença geral, e é um estorvo para os para as rupturas e as explosões a força constitutiva do Estado
médicos. Eles ficam aborrecidos, estes pobres libertinos débeis, pretensamente nacional, este não permanecerá mais durante
quando se fala da sua fraqueza, e quando alguém se coloca em muito tempo, senão como um agravamento da insegurança e da
oposição a seu nefasto espírito de mentira. Eles gostam muito de ameaça gerais. Não nos enganemos, se os indivíduos se compor- 1
fazer crer que triunfaram sobre todos os séculos, e se agitam com tam como se não soubessem nada sobre todas estas preocupa-
uma alegria artificial. Sua maneira de dissimular a felicidade tem ções, sua inquietude, porém, revela o quanto eles as conhecem. J
às vezes algo de comovente, pois sua felicidade tem algo de total­ Eles pensam em si mesmos com mais pressa e exclusivismo como
mente inconcebível. Inclusive, não se é tentado a perguntar a eles, jamais os homens o fizeram, eles constroem e plantam para o
como Tannhauser a Biterolf: "Com o que então te alegras, tu, o presente, e a caça da felicidade não é nunca mais encarniçada
mais infeliz? 25 Pois, ai de mim, nós mesmos sabemos muito bem, do que quando é preciso capturá-la entre o hoje e o amanhã,
e diferentemente deles, o que há aí. Um dia de inverno pesa sobre porque é possível que depois de amanhã talvez a estação de caça
nós enquanto habitamos a alta montanha, expostos ao perigo e v:i estar para sempre proibida. Vivemos o período dos átomos,
à carência. Breve é toda alegria e pálidQo raio de sol que chega a do caos atômico. Na Idade Média, as forças antagônicas eram
nós da montanha branca. Então, uma música se levanta, um ve­ mais ou menos contidas pela Igreja, e numa certa medida assimi­
lho gira a manivela de um realejo, os bailarinos se agitam - este ladas umas às outras pela forte pressão que ela exercia. Quando
espetáculo comove o viajante: tudo é tão selvagem, tão próximo, o laço se rompeu, quando a pressão foi relaxada, os homens se
tão terno, tão desesperado, e eis que ressoa uma nota de aJegria, rebelaram uns contra os outros. A Reforma proclamou que have-
de alegria instintiva e ruidosa! Mas as brumas da noite precoce ria ainda muitas adiaphora 26 , coisas que pertenciam a domínios
rond� já, o som se interrompe, o passo do viajante range; tão que não vinham do pensamento religioso. Este foi o preço que
longe quanto leva ainda sua visão, ele não vê mais nada senão a ela precisou pagar para adquirir, ela própria, o direito de conti­
face desolada e cru.eLda,.natureza. nuar vivendo, tal como o cristianismo tinha já pago um preço
Mas, se pode haver algo de parcialidade em não resgatar, no equivalente para afirmar sua existência diante da Antiguidade,
quadro da vida moderna, senão a fraqueza das linhas e a palidez que era muito mais religiosa do que ele. Desde então, esta sepa­
das cores, a outra face não tem em todo caso nada de consolador, ração aumentou progressivamente. Agora, quase tudo na terra é t
ao contrário, ela é inclusive mais perturbadora. Há aí certamente determinado exclusivamente pelas forças mais grosseiras e mais \ J
forças, forças inauditas, mas selvagens, originais e absolutamen- malignas, pelo egoísmo dos proprietários e pelos déspotas milij

25. Richard Wagner, Tannhduser, II, 4 !Nota da edição francesa!. 26. Em grego transliterado no texto, significando "coisas indiferentes".
196 Escritos sobre Educação (o ( 1 Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 197
\.

tares. O Estado, nas mãos deste últimos, tenta antes, tal como naturezas contemplativas de grande estilo, e não é compreendida
0 � �. r

o egoísmo dos proprietários, reorganizar tudo em seu proveito e pela massa. A terceira exige, para aqueles que a contemplam,
se tornar o liame e a pressão de todas estas forças antagônicas: os homens mais <ativos: unicamente eles a olharão sem precon.- .
quer dizer, ele deseja que os homens pratiquem com relação a v ceito; pois ela esgota os contemplativos e apavora a massa. Da
ele o mesmo culto idólatra que há pouco tempo eles consagra­ primeira, emanou uma força que levou às revoluções violentas, e
vam à Igreja. Com que consequências? Teremos oportunidade que leva ainda; pois em todos os abalos, em todos os terremotos
"ék experimentá-las. Estamos ainda em todo caso no fluxo glacial ocialistas, é sempre o homem de Rousseau que se agita, como o
pa Idade Média; já começou o degelo e com ele um movimento velho� sob o �na. Oprimido e quase esmagado pelas cas­
ocorre, gigantesco e devastador. Os blocos se amontoam, todos tas arrogantes, pela riqueza impiedosa, corrompido pelos padres
os rios são inundados e correm perigo. A revolução não pode e por uma péssima educação, humilhado diante de si mesmo por
mais ser evitada, a revolução atômica. Mas quais são os elemen­ costumes ridículos, o homem na sua angústia invoca a "natureza
tos indivisíveis e menores da sociedade humana? sagrada" e comprova de repente que ela está tão longe dele quan­
Ninguém duvida de que, na proximiqade destes períodos, o to qualquer outro deus epicurista. Suas orações não a alcançam,
que é humano corre quase mais perigo do que durante a ruptura já que se encontra profundamente imerso no caos da antinatu­
e o turbilhão caótico, e que a expectativa ansiosa e a exploração reza. Ele arrasta com sarcasmo todos os adornos pintalgados,
ávida de cada instante fazem surgir todas as covardias, todas que pouco antes lhe pereciam ser precisamente o que ele tinha
as pulsões egoístas da alma: no entanto, a angústia real e, em de �ais humano, suas artes e suas ciências, as vantagens da sua
particular, a generalidade de uma grande catástro�rmalmen- vida refinada; ele bate com o punho nos muros, em cuja sombra
te melhoram os homens e os reconfortam. Ora, no meio destes ele tanto degenerou; ele chama com seus gritos a luz, o sol, a
, \
perigos da nossa época, quem agora consagrará seus serviços de floresta, as rochas. E quando grita para si: "Somente�tureza
�la e cavalheiro à ideia de humanidade, ao tesouro do tem- é boa, somente o homem natural é bom", ele se despreza e quer
pio sagrado e intangível que as várias gerações pouco a pouco ir além de si mesmo: neste estado de espírito, a alma está prestes
acumularam? Quem erguerá ainda a imagem do homem, se to­ a decisões terríveis, mas ela exala também das suas profundezas 1
dos só percebem neles o verme do egoísmo e um medo sórdido, e o que tem de mais nobre e de mais raro.
r
se desviam tanto desta imagem, que acabam caindo�animali­ O homem de Goethe não é um poder assim tão ameaçador;
dade, ou seja, numa rigidez mecânica? ele é inclusive, nuííÍcerto sentido, o corretivo, o sedativo destas
Há três imagens do homem que a nossa época erigiu uma emoções perigosas às quais o homem de Rousseau está preso. Na
após a outra e de onde os mortais tirarão, sem dúvida, durante sua juventude, o próprio Goethe aderiu, com todo o seu coração
muito tempo ainda, o impulso capaz de transfigurar suas pró­ amoroso, ao evangelho da boa natureza; seu Fausto era o reflexo
prias vidas: o homem de Rousseau, o homem de G� e final­ mais elevado e mais ousado do homem de Rousseau, pelo menos
mente o homem de Scho_penhauer. Destas imagens, a primeira
"
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tem um fogo maior e certamente produz efeito mais opular; a
l
27. Tífon: um ser mitológico monstruoso e gigantesco, meio homem, meio fera, q u

segunda é feita apenas para o pequeno número, para os que são


teria na ciclo de uma vingança de Hera contra Zeus, auxiliada por Cronos. Ele foi
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finalmente destruído por Zeus que lançou o monte Etna sobre ele.

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Consideração lntempest1va: :)Cnopen11auc, Luu'-a

e que da í nã o sairá nad a de


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. os so b re Ed ucaçao

ação, então , se pode estar segu ro d


198 E scnt

na medida em que representava seu apetite devorador da vida, cuidad o que o própr io
ato com os demônios do bom - como talvez seja o caso do enorme
sua insatisfação e sua n ostalgia, seu tr do que nenhuma " or­
as estas nuvens amo ntoa
­ Goethe deu mostras pelo teatro-, e so bretu
coração . Mas vejamos o que sai de tod dem" será rompida . O homem de Goethe é uma
força conserva-
mente que se manifesta a
das: não é certamente o raio! E é aí justa como êhsse, a dege�erar i
t hiano . Poder-se -ia acre­
dora e c onciliadora - mas ele se arrisca,
nova imagem do homem, o homem goe au podia se tornar facil­
da v ida em todo lugar em filisteu tal como o homem de Rousse
d itar que Fau sto seria conduzido at ravés um ersonagem das Catilinárias
28 • S e houvesse um pouco
rtador in sac iável, como
ameaçada como revoltado e como libe mais de vigor muscular e de impetuos1 ade n
atural neste homem
ade i ro gên io da re volu­
força que nega pela bondade, como verd arece que G oet he sa­
po, diferentemente do goethiano, suas virtudes ser iam mai ores. P
ção , religi osa e demoníaca ao mesmo tem bia onde se achavam o perigo e a fraqueza do
seu homem, e ele
como é o destino trágico
seu companhe iro em nada sat ânico; tal fez alusão a isto nas palavras de Jar no a Wilh
elm Meister: "Você
ele não po ­
� de todo revoltado e de todo libertador - também chegasse a se irritar
somente utilizar, mas
é triste e amargo, isto é belo e bom; se você
deria desvencilhar -se deste, e deveria não verdade iramente, ser ia ainda melhor ."
ca e seu espírito nega­
também desprezar sua malignidade céti Assim, pois, para falar sem rodeios: é necessário
que nos sin-
29

algo dest e gêner o; aqui,


dor . Mas se engana aquele que espera tamos i!:ritad o s verdade iramen
te, para que tudo fique melh or.
E
ara do ho mem de R o�
u; pois ele
o h omem de G oethe se sep deve nos enco ­
é aí que a imagem do homem de Schopenhauer
odeia toda violência, to do
- salto brusco - quer diz er: toda ação ;
- - o sofrimento
do, vi ra som ente um ràjar. O homem de Schopenhauer assume para si
e é assim quê Fausto, o l ibertador do mun voluntário da veracidade, e este sofr iment o lhe
ser ve para mor­
ctador vê pairar sobre
viajante do mundo. Este insaciável espe tificar sua vontade pessoal e para preparar a subv
ersão, a total
e da natu reza, todos os
sua cabeça todos os domíni o s da vida transformação do seu ser, alvo que constitui o objet
ivo e o se.nti­
ciências; o dese j o mais
pa ssados, as artes, as mitol ogias, todas as do verdadeiros da vida. Esta maneira de proclamar
o verdadeiro
a inclusive não o retém
profundo é excitado e acalmado ; Helen parece aos outros homens um extravasamento de ma
lignidade,
to em que espreita seu
por muito tempo - e chega então o momen pois eles consideram a conservação de suas mediocrid
ades e de
algum lugar da terra, as
companheiro insidioso. O voo acaba em su as ninharias como um dever da humanidade, e p ens
a m que é
ando o ale­
está agora mu i to per to . Qu
asas caem, Mefistófeles seus brin­
o será maior para ele do
preciso ser mesmo muito mau para quebra r assim os
mão deixar de ser Fausto, nenhum per ig quedos. A um tal indivíduo, se deveria gr itar o que Faust
o diz
s do diabo - unicamente
que se tor nar um filisteu e cair nas mão a Mefistófeles: "À potênci a eternamente ativa, à força sa
lutar e
as divindades celestes po
der iam l ivrá-lo deste destino . C omo já
r de grande esti lo. S e ele
disse , o homem de G oe�e é o espectado
e reúne para se nutri r
não definha na terra, é unicamente porqu
2 a.C.J, um p atrício
28. Discursos de Cícero [106-43 a.C.J contra Cati lina 1109-6

e ex iste ai nda de grande e memo rável,


foi o grande inimigo polí ­

o que para se mpre existiu


romano que conjurou contra o Senado e de quem Cícero
ado junco com seus

que vai de
fosse conde nado e execut

e fosse somente uma vida


tico. Cícero o denunciou e fez que ele

este ser que viv e, a inda qu


seguidores.

ativo: mais ai nda, se em i.i


desejo em desejo; ele nã o é o homem
livro Vlll, cap. 5 [Nota
29. Goethe, Les années d'apprentissage de Wilhelm Meister,

lecida pelos homens de


pela Ed. Ensaio, São

algum l�ar se imiscui na ordem estabe


da edição francesa J. Esta obra está publicada em portug uês
Paulo, 1984.
200 Escrito ,obre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 201

criadora, tu opões o punho gelado do diabo?" 3 º E aquele que da consciência, pelos sofrimentos que nascerão necessariamente
quiser viver segundo Schopenhauer, este se parecerá sem dúvida
mais com um Mefistófeles do que com um Fausto, pelo menos
-
da sua autenticidade. Certamente, com sua coragem, ele destrói
sua felicidade terrestre, e deve inclusive ser hostil aos homens
-
aos olhos míopes dos modernos, que percebem sempre na nega­ que ama, às instituições no seio das quais cresceu; ele não ter� o .-­
ção o sinal do Maligno. Mas há uma maneira de negar e destruir dr;';ito d� I2QUj2ª.I_homens ou coisas, embora compartilhando de

que é precisamente um extravasamento desta poderosa aspira­ suas feridas· será desconhecido e passará muito tempo como o
ção à santificação e à salvação, da qual Schopenhauer foi para ;ompanheiro de poderes que abomina; segundo a medida huma­
nós, homens profanos, homens seculares no sentido próprio do na do seu juízo, ele chegará a se injus1�lapesar de todo o seu es­
"1 termo, o primeiro mestre filosófico. Toda existência que pode forço pelajustiç�. Mas ele poderá se animar e se consolar com as
ser negada merece também ser negada; e ser verídico significa palavras que Schopenhauer, seu grande educador, usou uma vez:
crer numa existência que não poderia absolutamente ser negada,
Uma vida feliz é impossível; aquilo que um homem pode atin­
crer numa existência que é ela própria verdadeira e sem mentira.
gir de mais elevado é uma vidCJ:.J!..eroica [heroischer Lebens­
É por isso que o homem verídico sente que sua atividade tem lauf]. É esta vida que leva aquele que, de qualquer maneira e
um sentido metafísico, explicável segundo as leis de uma vida em qualquer ocasião que haja, luta com enormes dificuldades
superior e distinta, um sentido afirmativo na acepção mais pro­ por aquilo que de uma maneira ou de outra aproveita a todos
funda da expressão, ainda que tudo que faça pareça destinado e que acaba por vencer, mas que é mal ou de nenhum modo re­
compensado. No fim, ele permanece petrificado, como o prín­
a destruir e a quebrar as leis da vida atual. Assim, sua atividade
cipe do Re Cervo [Rei Cervo] de Gozzi 32 , mas com uma nobre
se torna um sofrimento constante; mas ele sabe o que também o atitude e com um gesto magnânimo. Sua lembrança permane­
"1' Mestre Eckart sabia: "O animal mais rápido que te levará à per­ ce e é celebrada como a de um herói; sua vontade, mortificada
} feição ra dor 31 ." Assim, devo pensar que aquele que põe diante por toda uma vida de fadigas e pesares, de insucesso e de in­
de sua alma uma tal orientação de vida sente seu coração de­ gratidão do mundo, se dissolve no Nirvana 33 •
sabrochar e nascer nele um desejo ardente de ser este homem
Esta vida heroica, assim como a mortificação que nela se re­
schopenhaueriano: quer dizer, ser puro para consigo e para com
aliza, corr�sp�de certamente muito pouco à ideia indigente que
seu bem pessoal, de uma serenidade admirável no que diz res­
têm aqueles que falam mais e celebram as festas em memória dos
peito ao conhecimento, ser cheio de um fogo forte e devorador
grandes homens, presumindo que o grande homem é grande da
e estar bem longe da neutralidade fria e desprezível do pretenso
mesma maneira que eles são pequenos, de qualquer maneira qua­
homem de ciência, muito acima de uma contemplação tristonha
se como um dom e por puro prazer; ou antes, como sendo efeito
e desagradável, oferecendo-se sempre ele próprio como a primei­
de um mecanismo e como obediência cega a este impulso íntimo:
ra vítima da verdade reconhecida e penetrada, no mais profundo

30. Goethe, Faust, 1, versos l 379-1381 1 Quarto de Fausto 11 Nota da edição francesa 1- 32. Cario Gozzi [ 1720-18061: escritor italiano; Jurou contra os iluministas e defen­
deu um conservadorismo social, político e literário que era comum naquela época
31. Citação de Schopenhauer, Monde comme volonté et représentation, 2, 726. Esta
em Veneza.
obra foi recentemente publicada em português: Arthur Schopenhauer, O Mundo
como Vontade e Representação, Ed. Contraponto, Rio de Janeiro, 2001. 33. Schopenhauer, Pererga, 2, 346 INota da edição francesa!.
Escritos sob ducação Cons1deraçao lntempesnva: .:ll.llVJJ'""'ªuu ��-----·
\- í;r ).•

" de mo do que aquele que não recebeu o dom ou que não experi- algo que não poderá jamais se tornar outra coisa; e por que são
'l� mentou o impulso irresistível tem tanto o direito de ser pequeno eles justamente isto? Ai de mim, e nada melhor? Aquele que não
quanto aquele de ser grande. Mas dom e impulso invencível são compreende sua vida senão como um ponto no desenvolvimento
aí palavras desprezíve is, por intermédio das q u ais se quer fug ir de uma espécie, ou de um Estado ou de uma ciência, e quer p o r­
t de uma exor tação interior, são injúrias para aquele que ouviu tanto integrar-se plenamente na história do devir [ganz und in
�1,,- esta exortação , ou seja, para o grande ho mem; este é, dentre to - die Geschichte des Werdens], por conseguinte na história e nada
i

1
dos, precisamente aquele que aceita menos achar-se satisfeito ou mais, este não entende a lição que a existência lhe dá e deve
t
t
obrigado - ele sabe tão bem quanto qualquer homem vil com que aprendê-la novamente. Este eterno devir é um j ogo de mario netes
facilidade po deria levar a vida e so bre que leito macio poderia mentiroso, o nde o homem se esquece de si mesmo, ele é a verda- \
estender-se, se contraísse consigo mesmo e com seus semelhantes
relações afáveis e ordinárias. Não são to das as disposições do
t <leira dispersão que fragmenta o indivíduo aos quatro ventos, é o
jogo estúpido e sem fim que diante de nós e conosco j o ga o tem- \ t
homem ordenadas pa ra que, numa dispersão co nstante de pensa­ po, esta grande cr iança 34 • O heroísmo da veracidade co nsiste em j
mentos, a vida não seja sentida? Por que. quer ele tão firmemente
o co ntrário, quer dizer, j ustamente sentir a vida, quer dizer, so­
-
deixar um dia de ser seu j o guete. N o devir, tudo é o co, mentiroso
e inanimado , e também digno do nosso desprezo; o enig ma q ue
frer a vida? Porque ele observa que se quer enganá-lo acerca de o homem deve resolver, ele não pode reso lvê-lo senão a partir do A
si mesmo e que existe uma espécie de consenso para fazê-l o sair ser, no ser assim e não o utra co isa, no imperecível. Ele co meça
-
da sua caverna. Então, ele se rebela, aguça o o uvido e decide:
,;-- "Eu cru..e_[Q___Continuar sendo eu mesmo!" Esta é uma resolução
·então a examinar até que ponto seu crescimento está ligado ao
crescimento do devir, ao crescimento do ser - uma tarefa e norme
terrível, só pouco a pouco ele compreende isso. Pois é preciso se apresenta à sua alma: destruir tudo o que per tence ao devir,
J., ag o ra que ele mergulhe nas profundezas da existência, com uma L trazer à luz toda a falsidade das coisas. Ele quer também conhe­
série de questões insólitas nos lábios: Por que é que vivo ? Que 1 cer tudo , mas o quer de maneira diferente do ho mem de Go ethe,
lição devo aprender com a vida? C o mo me tornei o que sou e por não em nome de uma nobre delicadeza, para se preservar e exta­
que devo eu so frer por ser assim? Ele se atormenta e vê que nin­ siar-se com a multiplicidade das coisas; ele é, ao contrário , a pri ­
guém se atormenta assim; ele vê o quanto, ao co ntrário , as mãos meira vítima que se oferece em sacrifício de si mesmo . O homem
dos seus contemporâneos se estendem apaixonadamente para os heroico despreza seu bem-estar e seu mal-estar, suas virtudes e
aco ntecimentos fantásticos que ostenta o teat.LO p__clírico , e co mo Í\. seus vícios, e despreza em geral medir as coisas segundo sua pró­
eles próprios, com cem máscaras diferentes, se pavoneiam co m o / ll pria medida; nada mais espera de si e quer ver em todas as co isas
jovens, como homens, com o velhos, como pais, com o cidadãos, até mesmo seu fundo desesperado. Sua força reside no esqueci­
como padres, como funcionários, co mo comerciantes, assidua­ mento de si, e se ele pensa em si, compreende a distância que há
mente preo cupados co m sua comédia co mum e de modo nenhum
co nsigo mesmos. À questão "Por que vives?", eles responderiam 34. Nietzsche faz aqui uma alusão a Heráclito, fragmento 52: "O temp o é uma crian·
)
todos rápida e o rgulhosamente - "para me tornar um bom cida­ ça que brinca, movendo as pedras d�ra cá e para lá; governo de crianças."
Citação extraída de Gerd Bornheim (org.): Os Pré-Socráticos, Ed. Cultrix, São Paulo,
dão , um erudito , um ho mem de Estado" - e, contudo , eles são 3' ed., p. 39.
l,
J

e
204 �critos sobre Educação Consideração Intempestiva: SchoJ ·1hauer t,ctucaaor LVJ

I ent�e ele e o �eu obj e tivo mais elevado, e te m o sentimento de ver


atras e embaixo de s1 um pequeno monte miserável de escórias.
Os pensadores antigos procuravam com todas as suas forças a
com estes repentinos)contrastes de luz e sombra; de embriaguez
e tédio, e certamente a experiência que aí se repe te é tão velha
quanto os ideais. Mas não vamos nos demorar muito tempo no
felicidade e a verdade - e ninguém jamais encontrou o que era limiar da porta, passemos por conseguinte ao vestíbulo. Então, é
preciso procurar, diz o cruel princípio da natureza. Mas aquele preciso perguntar com seriedade e de terminação: é possível nos
que encontra em tudo a não-verdade e se liga voluntariamente à aproximar deste propósito incrivelmente ele vado, de maneira
infelicidade, este encontrará calvez um outro milagre da desilu­ que ele nos edu9_!1e , elevando tudo ós? - a fim de que não
são: algo de indizível, do qual a felicidade e a verdade são apenas ocorra conosco o que diz a grande observação de G�ethe :
imagens noturnas; idólatras se aproximam de le, a terra perde seu
peso, os acontecimentos e os poderes da terra se tornam um so­ O homem nasceu para uma condição limitada; ele é capaz de
compreender objetivos simples, próximos, determinados, e se
nho, uma transfiguração semelhante àquela das noites de ve rão
acostuma a usar os meios que estão imediatamente ao alcance
se derrama em torno dele. Parece àquele que contempla que ele de sua mão; mas, tão logo ultrapasse este limite, já não sabe
.
apenas acaba de despertar e que unicamente brincam ainda em
- ' nem o que quer nem o que deve fazer, não importando absolu­
torno dele, as nuvens de um sonho evanescente. Mas elas tam- tamente que se distraia com uma multidão de objetos ou que
bém, num determinado momento, se dissiparão: então virá o dia. seja lançado fora de si pela grandeza e pela dignidade destes
objetos. Para ele, é sempre uma infelicidade almejar qualquer

---
coisa com a qual não pode se ligar por uma atividade espon­
tânea e regular3 5 •
r 5
A arentemente com razão, se pode precisamente obj etar a
Mas eu prome ti apresentar Schopenhauer a partir da minha pró­ este homem de Schopenhauer que sua dignidade e sua elevação
pria experiência, como educador e, para tanto, está bem longe de apenas são susce tíveis de nos lançar fora de nós mesmos, e, por­
ser suficiente que eu descreva, além disso em termos imperfeitos, tanto, de nos excluir novamente de toda associação com os indi­
o tipo humano ideal que domina em Schopenhauer ou em torno víduos ativos: este é o efeito do encadeamento dos deveres e do
dele, como sua ide ia platônica, por assim dizer. O mais difícil fluxo da vida. Uns se habituarão talvez no fim por se cindir com
está por fazer: dizer como se extrai deste ideal um novo ciclo de humor e a viver segundo uma dupla orientação, quer dizer, em
deveres e como se pode, com um propósito além do mais trans­ contradição consi o m�mos, incerto aqui e ali, e, por esta razão,
cendente, colocar-se em contato com uma atividade regular ' e m mais fraco e mais estéril a cada dia; enquanto que outros chega­
,,--
1 suma, mostrar que este ideal educa)Poder-se-ia, ao
contrário, rão a ponto de renunciar por princípio a também participar, e
achar que não se trata aqui de outra coisa senão da intuição somente para ver como os outros agem. Os perigos são sempre
benéfica, ou seja, da intuição embriagadora, que nos oferecem grandes quando se exige muito do homem e quando ele não pode
certos instantes, para logo cada vez mais nos de ixar e nos aban­
donar numa lassidão cada vez mais profunda. É certo também
35. Goethe, Les années d'apprentissage de Wi/helm Meister, livro VI, Confession
que foi assim que começamos nossa comunicação com este ideal, d'une belle âme !Nota da edição francesaJ.
I
206 Escritos sobre Educação Lons1deraçao 1nrempesnva: ;)CI) UUdUCL LUU .. auv,

• ()L \ 0 \ o� J V
realizar qualquer dever; ocorre que as naturezas mais fortes aí mas ao contrário na estupidez de um terrível desejo, aspirar este

l
se rompem, os mais fracos, os mais numerosos, afundam numa castigo como sendo uma felicidade - isto é ser animal; e quando
preguiça contemplativa e, por negligência, acabam por perder até a natureza inteira se esforça pelo homem, ela dá assim a entender
mesmo esta contemplação. que isto é necessário para que ele possa livrá-la da maldição da
Em resposta a estas objeções, concederei que nosso trabalho vida animal e, enfim, para que, nele, a existência coloque diante
sobre esta questão apenas começou e que, segundo minha pró­ de si mesma um espelho, no fundo do qual a vida não se apre­
pria experiência, não sei e não vejo ainda senão uma coisa de sente mais como absurda, mas, ao contrário, na sua significação
maneira clara: que é possível, segundo esta imagem ideal, impor (metafísica. Porém, que se reflita bem nisso: onde cessa o animal,
a vocês e a mim uma cadeia de deveres realizáveis e que alguns �de começa o homem? Este homem que somente importa à na­
dentre nós percebem já a pressão desta cadeia. Mas, para poder tureza! Até onde alguém reivindicou a vida como uma felicidade,
exprimir sem reticências a fórmula segundo a qual eu gostaria de não elevou ainda seu olhar acima do horizonte do animal, se é
compreender este novo círculo de deveres, tenho necessidade das que ele não quer com mais consciência o que o animal procura
se 1Jintes considerações preliminares. num impulso cego. Mas é assim que ocorre com todos nós, durante
'
\ \ ' ,. Em todas as épocas, os homens profundos sempre tiveram a maior parte da nossa vida: geralmente, não saímos da animali­
r piedade dos animais, daí justamente que sofressem com a vida e dade, somos inclusive estes animais que parecem sofrer sem razão. L
não tivessem, porém, a força de voltar contra si mesmos o agui­ Mas há momentos em que compreendemos isto: então, as nu­
lhão do sofrimento e compreender sua existência de maneira me­ vens se dissipam e vemos o quanto nós mesmos, junto com toda
tafísica; o sofrimento desprovido de sentido tem, no que lhe é a natureza, nos esforçamos pelo homem, como por qualquer coi­
mais profundo, algo de revoltante. Do mesmo modo, em diversos sa erguida acima de nós. Estremecidos nesta clareza repentina,
pontos da terra, nasceu a suposição de que as almas dos homens lançamos nossos olhares para além e para trás: aí se agitam os
culpados eram transferidas para estes corpos animais e que este animais de rapina refinados, e nós estamos entre eles. A mons­
sofrimento, à primeira vista revoltante e desprovido de sentido, truosa mobilidade dos homens no grande deserto da terra, as
se resolvia em pura inteligibilidade, segundo a justiça eterna, en­ cidades e os Estados que eles fundam, as suas guerras, sua ati­
quanto pena e expiação. Na verdade, é um pesado castigo viver vidade ininterrupta de acumulação e gasto, sua balbúrdia, suas r
\ assim como um animal, submetido à fome e ao desejo, e além maneiras de entrar em contato uns com os outros, de se enganar
disso não alca�a menor consciência qu;nto a es;- vida; como / e de se penitenciar mutuamente, seus gritos de angústia, seus cla­
imaginar destino mais pesado do que este do animal de rapina, mores de vitória - tudo isso é o prolongamento da animalidade;
perseguido no deserto pelo mais corrosivo dos tormentos, rara­ como se o homem devesse ser propositadamente retrogradado
mente satisfeito e só desfrutando de uma satisfação que logo se na sua educação e frustrado pelo engano da sua disposição me­
torna dor, seja na luta sanguinária com os outros animais, seja tafísica, e, para dizer tudo, como se a natureza, depois de ter
na voracidade repugnante e na plenitude da saciedade. Desejar durante tanto tempo desejado o homem e trabalhado por ele,
a vida com esta cegueira, com esta loucura, desejá-la sem outra tremesse agora diante dele e preferisse retornar à inconsciência
ambição, longe de saber que se é assim punido e porque se é, do instinto. Ah! Ela tem necessidade do conhecimento, e estre-

-
---- (
' ' ..., 'V

208 Escritos , , re Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 209


(

mece com o conhecimento de que tanto precisa; assim o fogo precipitação, e com tudo o que há de sonho nã nossa v ida que
dança inquieto aqui e a li, de qua lquer maneira assustado consigo parece temer o despertar e sonha com tanta energia e inquietude
mesmo, e compreende m il co isas a n tes de se apo derar d aquilo que ela acaba por se aproximar deste despertar. Mas percebe­
que em geral a natureza tem necessidade de conhecer. Sabemos mos, ao mesmo tempo, que somos muito fracos para supo�tar
to dos, em cer tos momentos, que as instituições mais importan­ durante muito tempo es tes momentos de recolhimento mais pro ­
tes da nossa vida são feitas unic amente para nos subtra irmos fundo, e que não somos os homens que a n aturez a anseia para
h abilmente à nossa autêntica ta refa, que preferimos esconder o sua libertação : já nos é bastante po der, por um instante, livrar
rosto num canto qualquer, como se a no ssa consciência, com cem nossa cabeça e observar em que rio estamos mergulh ados. E in­
o lhos, não pudesse nos surpreender aí; sabemos que entreg amos clusive nesta emergência , neste desper tar de um instante vazio e
precipitada mente noss a alma ao Estado, ao lucro, à vida social dissipado, não o atingiremos com a nossa própria força, é preciso
ou à ciência, simplesmente para não mais possuí-l a, assim como que sej amos erguidos - e quem são estes que nos erguem?
o s sujeitamos a uma pesada \t arefa j ornal íst ica com mais a r- Os homens deiros, aqueles que não são m...(J.is animais.)
� dor e mais inconsciência do que é preciso para viver, porque nos os filósofos, os artistas e os santos; logo que eles aparecem - e
•'
parece necessário não ating ir a reflexã oJ. A pressa é geral, p o is com este aparecimento - a natureza que jamais dá sa ltos dá o
ada um f oge rapidamente de si mesmo· geral é també m a dis- seú' único salto, e este é um salto de alegria, po i s, pela primeira
"
simulação tímid a desta pr_e§§a, porque se quer parecer sat isfeito vez, ela percebe que chegou à sua fina lidade, lá onde compreende
e po rque se gostaria de esconder esta m�ria aos o bservado res que deve desaprender a procurar fins e onde foi co locada num
mais perspicazes; ger a l a ind a é a necessidade de novos guizo s posto muito alto no j ogo da vida e do devir. Ela se transfigura
de pal avras que, agarradas à vida , lhe dão algo de uma festa com este conhecimento, e no seu rosto se m anifesta o doce enfa­
ruidosa. Todos conhecem esta bizarra c o ndição, quando surgem do d a noite, aquilo que os homens chama m de "beleza ". O que
de repente lem branças desagradáveis e nos esforçamos, com mo ­ el a agora exprime com suas faces transfiguradas é a grande luz
vimentos violentos e gritos, para expulsá-las do nosso espírito : lanç_a a existência ; e a promessa suprema que podem fa­

mas os movi mentos e os gritos da vida universal deixam entrever zer os mortais é a de participar permanentemente, com ouvidos
que nos enco ntramos to dos e sempre nesta condição, temendo a mu ito atentos, desta luz. Se refletirmos, por exemplo, em t udo
1 lembrança e a interi o rização. O que é en
tão isto que nos inquie­ o que Schopenhauer precisou ouvir no curs o de sua vida , pode-
t a tão frequentemente, que mosquito nos impede de dorm ir ? Os remos mesmo dizer demasiadamente tarde: "Ah, teus ouvidos
� ---==c

espectros rondam em torno de nós , cada momento da vida quer surdos, t u a cabeça obtusa , tua inteligênci a vacilante, teu coração
nos dizer algo, mas não queremos ouvir esta voz dos esp íritos. m irrado, ah, tudo o que ch amo de meu, como o desprezo ! Não
( Quando estamos sós e silenciosos, tememos que se fale algo nos saber voar, unicamente flutuar! Ver aci ma de si e não po der aí
I nossos ouvidos, mas também odiamos o silêncio e nos aturdimos chegar! Conhecer e desprezar com segurança o cam inho que lev a
na vida social. à perspectiva incomensurável do filósofo , e recuar hesitando ao
Tudo isso, já o disse, compreendemos em cer tas oc asiões, e fim de a lguns passos! E, devido ao fato de este desejo supremo
nos su r preendemos muito com to da esta ver tigem de angústia e não se rea liza r senão num único dia, como daria ele, em tro ca
,.
/
(/{_e,;\,r-0 '\. _ U Consideração lntempestiv chopenhauer r.aucaaor Ll 1

210 Escritos sobre Educação t r


pode atribu ir uma única tarefa a cada um de nós : incentivar o
da sua vida! Subir o mais alto
1,_.,_
deste d ia, de bom grado, o resto
nascimento do r{i,lósofoJo artista e do santo em nós e fora de
r subiu, elevar- se no a r puro dos
quanto jamai s qualque r pe nsado nós, e trabalhar assim para a realização [Vollendung] da nature­
á ma is nem véus nem
br umas ,
Alpes e das gelei ras, lá onde não h za. Pois , ass im como a natureza tem necessidad e do filósofo, ela·
tal das coisas se exp rime com
lá onde a constitu ição fundamen tem necessidade do artista, pa ra u m fim metafísico , sua p
r ópria
com uma ine xorável clar eza !
aspereza e severidade, mas também iluminação , para qu e lhe seja enfim apre sentado numa imagem
a e infi­
alma se torna solitári
É somente pensando n isso que a pu ra e completa o que, na agitação do seu devir, ela não chegará
realizada, se o o lhar caísse de
nita; mas se sua promessa foss e jamai s a ver d i stintamente - portanto, para o co n hecimento de
ente, como um rai o d
e luz, se o
repente sobre as coisas , abruptam si próprio . Goethe fez observar com u ma eloquência org ulhos
a
em abolidos - então, que nome
pudor, a angústia e o desejo foss e profunda: todas os experimentos da natureza só têm s entido
1
nova e en igmática emoção sem
atribuir a est;seu e stado:-; esta na medida em que ..o artis�a adivinha fi nalmente seus balbucios, /
r, ela re­
alma de Scho penhaue
comoção, na qual, semelhante à ência, vem a seu encontro no met o do cammho e exprime o que ela tem
sos hi eróglifos da e xist
pousaria, adormecida nos prod igio verdadeirame nte des ejado dizer com estas coisas. Exclama ele :
não se i;nelhante à noite, mas à
na doutrina petrificada do devir,
ensação,
o universo ? Em comp Tenho frequentemente dito e direi outra vez frequentemente,
luz ardente e r utilante, inundando
cidade próprios do filósofo , e a causa finalis dos conflitos do ·universo e da humanidade é a
qu e sina é prever o desti no e a feli
determinação e a infe
licidade do poesia dramática. Pois, senão, não há absolutamente nada a
"CÕm isso experimenta r toda a in saber, extrair detudo isso36 •
esperança! Q ue sina é
não -filósofo , aquele que deseja sem
excesso de sombra imp edirá
como o f ruto numa á rvore, que um E é assim que a natureza, en fim, tem necess i dade d o
, e ver pe r to de sI�aio de sol
que um dia se venha a amad urecer em quem o eu está inteiramente d i ssolvido, e c u
ja vida sofredora
que faz ta nta falta!" não é ma i s ou quase sentida como individual, mas como o mais
i nvejoso e mau um homem
Se ria um g rande tormento tor nar profundo sentimento de igualdade, compaixão e unidade com
e ele se pude sse tor nar invejoso
também de serdado, por menos qu tudo o que vive. Ela tem necessidade d o �em quem se con­
ente por voltar sua alm
a na di­
e mau ; mas ele acabará pr ovavelm ser va este milag re de metamorfos e, a q uem o j ogo do d
evir não
que ela n ão se consuma numa
reção de outras perspectivas, para alca nça jamais esta h umanização fi nal e suprema à q u al toda a
o um novo ciclo de de
veres .
vã n ostalgia - e ele descobrirá entã natureza aspira e conspira para se liv rar de si mesma. Não

possível que ele se ponha em
Chego aqu i à questão de saber se é dúvida, somos todos aparentados e ligados a o - santo, tal como
schopenh aueriano , atra
vés
ligação com o gra nde ideal do homem som os aparentados ao filósofo e ao ar tista. Há momentos ' como
r . Uma coisa sobretudo
é cer ta :
de uma atividade própr i� e regula as faíscas do mais claro e ado rável dos fogos, à luz dos quais não
ere s de um homem i so
lado ; ele
e stes novos deveres não são os dev compreendem os mais a palav ra " eu ". Há, para a lém do nosso
utros de uma poderosa comu ­
par ticipa , pelo contrá rio , com os o
maneira nenhu ma as formas 1
nidade, cu jas ligações não s ão de
E ste é o
e as leis exteriore s, m
as um p ensamento fundamental. 36. Carta de Goethe a Charlotte von Srein de 3 de março de l 785 !Nora da edição
francesa].
, na medida em que esta só
pensamento f undamental da cultura
( 1. ) ) l
212 Escritos sobre Educação CY ,v Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 213
,�

ser, algo que nestes momentos se torna um deste lado, e isto


f �-
constantemente trabalhar para engendrar os grandes ho-
\ de��-
porque aspiramos, no mais profundo da nossa alma, estas pontes eis aí a sua tarefa, e nenhuma outra." Como gostaríamos
entre o aqui e o lá. Na nossa constituição comum, certamente de aplicar à sociedade e a seus fins um ensinamento que pudesse
não podemos em nada contribuir para o nascimento deste ho- ser ext raído da consideração de todas as espécies do reino ani­
--.....
mem libertador; além disso, nos odiamos nesta situação, com mal e vegetal - para elas, somente importa o exemplar individual
um ódio que é a raiz deste pessimismo que Schopenhauer queria superior, o mais incomum, o ma�eroso, o mais complexo,
ensinar de novo à nossa época, mas que é tão velho quanto a o mais fecundo -, que prazer não haveria aí, se os preconceitos \
nostalgia da cultura. Sua raiz, mas não sua flor, em todo caso, enraizados pela educação quanto à finalidade da sociedade não j
seu estágio mais profundo, mas não sua engrenagem, o início de oferecessem uma pertinaz resistência! É sobretudo fácil compre­
sua carreira, mas não seu fim; pois um dia será preciso ainda que ender que o objetivo do desenvolvimento de uma espécie reside
aprendamos a odiar algo diferente e mais geral, e não mais a nos­ lá onde ela alcança seu limite e se transforma numa �e su­
sa individ�alidade e sua miserável limitação, sua flutuação e sua .�perior, e não na massa de exemplares e ou na sua prosperidade,
inquietude, neste estado superior onde amaremos também algo ou mesmo nos exemplares que parecem, segundo a cronologia,
diferente do que sabemos amar atualmente. Quando, no nosso ser os últimos, e que este objetivo está bem mais nas existências
nascimento atual ou num outro futuro, formos nós próprios ad­ aparentemente dispersas e contingentes, que surgem aqui e ali
mitidos nesta ordem, entre todas sublime, dos filósofos, dos ar­
---
na ocasião de circunstâncias favoráveis; e deveria apesar de tudo
santos, somente então, um fim novo será fixado para
tistas e dos - ser muito fácil compreender que, posto que a humanidade pode
o nosso amor e para o nosso ódio - por ora, temos a nossa tarefa tomar consciência da sua�alidade, ela tem de buscar e instau­
e o nosso ciclo de deveres, o nosso( �e o nosso amor. Pois rar as circunstâncias favoráveis que permitiriam o nascimento
sabemos o que é a cultura. Quando a ligamos ao homem de Scho­ destes grandes' homens redentores. Mas não sei quantas coisas
penhauer, ela quer que preparemos e favoreçamos o enge_QQiamento se opõem a isto: umas vezes é preciso encontrar este fim último
s�mpr�n�te ba�, travando conhecimento com o que na felicidade de todos ou da maioria, outras vezes no desenvolvi­
lhe é hostil e tirando-lhe do caminho daquele - em suma, ela quer mento das grandes comunidades; e ora cada um se resolve pron­
que infatigavelmente lutemos contra tudo aquilo que nos privou, a tamente a sacrificar sua vida a um Estado, por exemplo, ora se
nós, da realização suprema da nossa existência nos impedindo de comportará com lentidão e circunspecção, no caso de não ser
nos tornar em pessoa este homens de Schopenhauer-:- um Estado, mas um indivíduo que venha a exigir este sacrifí­
cio. Parece ser um absurdo que um homem exista em função de
outro homem: "que seja de preferência em função de todos os
6 outros, ou pelo menos do maior número possível!" Ó homens_de
bem! Como se fosse mais razoável deixar sobressair o número,
Às vezes, é muito mais difícil admitir uma coisa do que com­ quando se trata de valor e importância! Pois a questão é de fato a
preender sua razão; e é sem dúvida assim para a maior parte seguinte: como a tua vida, que é uma vida individual, adquiriria
daqueles que meditam sobre esta proposição: "A humanidade 0 valor mais elevado, o significado mais profundo? Como seria

L
l"

e 1
v..1 1:
214 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 215
_) f, ,U e cl " , _,...
( ela menos desperdiçada? Certamente, unicamente na medida em a natureza angustiada, ansiando pelo homem, experimentando
que tu vivas em proveito dd exemplar_mais rar� e ma�.-e,ecioso, com dor o fato de que a obra mais uma vez fracassou, e, porém,
e não em proveito do grande número, quer dizer, daqueles que, realizando com sucesso os esboços, os traços, as formas mais acf­
tomados isoladamente, são os exemplares de menor valor. E o miráveis; de modo que os homens com os quais vivemos pareçam
estado de espírito que é preciso justamente implantar e cultivar um campo onde jazem os esboços das mais preciosas esculturas,
num jovem é que ele se c<2._mpreenda a si mesmo sobretudo como onde tudo nos grita: "Venham, nos ajudem, cheguem-se a nós,
uma obra carente da natureza, mas ao mesmo tempo como um aproximem o que se harmoniza, a nossa aspiração para devir
testemunho das intenções maiores e mais maravilhosas desta integralmente é imensa."
e artista: ela malogrou, dever-se-ia dizer; mas quero honrar sua
grande intenção colocando-me a seu serviço, a fim de que mais
Disse que esta soma de estados interiores é a primeira con­
sagração da cultura, mas é preciso agora descrever os efeitos da
lJ
1 uma vez ela tenha mais sucesso. (iiiunda consagração, e sei bem que minha tarefa é aqui a mais 7
l Com este desígnio, ele se coloca na esfera da�ra; pois esta difícil de todas. Pois é preciso agora operar a passagem destes
é a filha do conhecimento de si, e da iosatisfação de si, de todo eventos interiores ao julgamento dos eventos exteriores; o olhar
l
/"
1
indivíduo. Aquele que apela para ela exprime isto dizendo: "Vejo deve se desviar para o entorno, para buscar no grande mundo
";cima de mim algo de mais elevado e mais humano do que eÚ; em movimento este desejo de cultura que se conhece por estas
ajudem-me todos a chegar aí, assim como ajudarei a qualquer um primeiras experiências; o indivíduo deve se servir do seu combate
que reconheça a mesma coisa e sofra com ela, para que, enfim, e de sua aspiração como do alfabeto com o qual ele poderia ago­
1 renasça o homem que se sentirá completo e infinito no conheci­ ra decifrar os esforços dos homens. Mas aí também não lhe se­
mento e no amor, na contemplação e no poder, e que, com toda ria lícito permanecer, pois é preciso que ele passe deste patamar
a sua plenitude, se agarrará à natureza e se inscreverá nela como a um patamar superior: a cultura exige dele não somente esta
· uiz e medida do valor das coisas." É difícil levar alguém a este experiência interior, não somente o julgamento sobre o mun­
�-._ estado de conhecimento impávido de si, porque é impossível en- do, cujo fluxo o cerca; definitivamente, ela exige dele sobretudo '
)., "--- 1 sinar o amor; pois é no amor que a alma adquire, não somente �ção: qu_er dizer, l�ta p�la c�lt�ra� a hos�il!dade com relação às
ª,
r---

e
\ �;5' uma visão clara, analític�sdenhosa de si, mas também este mfluencias, aos habitas, as leis, as mst1tu1çoes nas quais ele não !
desejo de olhar acima de si e buscar com todas as suas forças um seconheça seu objetivo:�ngendramento do gênio. \
eu superior, ainda ocuftõ não sei onde. Assim, somente aquele Pois o que fere, em primeiro lugar, ague e que tem sucesso
que prendeu seu coração a algum grande homem recebe deste em se colocar neste segundo patamar é a estreiteza e a raridade
1 fato arerimeira consagraçao cultura; º sinal disso é ª vergo­
ª extraordinárias do saber a respeito deste objetivo, contrastando
nha de si, sem irritação ou ódio para com sua própria estreiteza com a universalidade do esforço pela cultura e a massa indizível
e mesquinharia, a compaixão pelo gênio que se deixou sem tré­ de forças dispensadas a seu serviço. Perguntar-se-á com espanto
guas arrastar-se a este torpor, a esta aridez que nos pertencem, é se por acaso este saber não seria absolutamente necessário, e se
o preconceito favorável para com todos os que estão em devir e a natureza não alcança também seu objetivo, mesmo quando a
m luta, é a íntima convicção de encontrar em quase todo lugar maioria define falsamente a finalidade do seu próprio esforço!
! 1 1 < \
V e,
Cons1deraçao llllClll P'-�", a. �-··- r ------

a inteligên­
ram a c ult ura co rno
part idários desta fórmula defini
muito alto a finalidade incons ­ rnariam, nas s uas necessidades
Q uem está habit uado a est i mar cia com a qual as pessoas se to
lquer problema em responder : absolutamente atuai
s, mas com a q ual,
ao
ciente da natureza não teria qua

1�+
e na sua sat isfação ,
os meios e de__!_odos
or ia melhor de todos
pensem e digam o que qui­ mesmo tempo, se d isp
Sim, isto é assim! Que os homens ganhar dinh eiro com maior
serem sobre o seu objetivo último;
no seu impulso obscuro, os procedimentos que per mitiriam
do c aminho correto •
37
ero possível de homens co rren­
eles não se tornam menos conscientes facilidade . Forma r o maior núm
e moed a corrente, este seria o L;
tes, no s entido de que s e fala d
para poder contradizer isto ; o, um povo seria cada vez mais
É preciso ter vivido muito po u co objetivo; e segundo esta concepçã
p ersuadido de que o obje tivo da
cultur a é se mais estes homens correntes . L-
mas aquele q ue está
ro ,
feliz, na medida em q ue possuís e
adeiro, e nen hu m out estabeleciment os oder nos d
nto do h om e m verd
m
\ favorece r o nascime Assim , também, a intenção do s
ar deto do desdob ra
­ um , na medid a �
isto está
como a inda h o j e , apes ensino devia ser a de le var cada
e q ue, desde entao,
sa que o nascimento deste ho- modelo "cor rente" e
a de educar
mento e explosão da cultura , pen na sua natureza, a r eproduzir o
ldade contínua para de éõnheci­
mem não se disting
ue muito de uma crue de tal maneira , que
se extraia do s�próprio
dade e lucro .
ito necessário que, no l ugar dest ior quantidade possível deJelici
e
com os an i ma is, este achará mu mento e sab er a ma
en fi m u ma vontade
consciente . ge ral, o ind ivíduo deveria - esta
''i mpulso obscuro", se coloque C om o au xílio desta formação
mais pos­ si com precisão, a fi m de saber o
a razão: q ue não s eja
E isto também por u ma segund é a exigência - poder cobrar de
existe uma
etivo, este se afirma, en fi m , q ue
sível uti lizar este inst
into pouco claro sobre seu obj que ·poderia ele exigi r da vida; e
uro , para fins de um
a nat ureza to ta lment
e " a inteligência e a proprieda­
célebre impuls o obsc ligação natural e necessária entre
o sobre camin hos on
de o objetivo s uprem
o,
u lt ura", mais ainda,
qu e este liame é uma
diferente , e conduzi-l de ", " a r iq ueza e a c
poderia j amais ser atingido . Pois xecra-se
o engend ramento do gênio, não necessidade moral [sit
tiliche Nothwendigkeit]. Aqui, e
periores ao
exi ste uma mane ira de
abusar da cultura e fazer dela um
a escra­
a educaçã o que tor
na solitário, que colo ca fins su
matiza-se
as potências que em--;ossos , e que exige muito te mpo; estig
va - basta olhar em torno de si! E ente os
din h eiro e ao ganh o
s os nomes
para a cult ura alimenta m precisam ação , outor gando -lhe
d ias mais trabalham estes tipo s mais sérios da educ
e i mora l".
se conduzem para e la seg undo " e de " epicu rismo intelectual
pensamentos dissimulados e não de " ego ísmo re fi n ado
contrár io
nt e ressada.
uma ótica pura e desi -==-- ,-------- egundo a mora l ue
2_revalece aqui, é exatamente o
A
- S
,
E, em pr imeiro lugar, o egoísmo
dos negociantes que tem ne - v'
que é apreciado: uma educa ão
rá ida a� se tornar logo um

cessidade do auxílio �a cultura e


, por gratid ão , em troc a, a au xi­ ser que gan ha dinhei ro, mas um
a e ducação muito ent
r an hada,
+
ndi do, pre scre ver -lhe
, fa z endo heiro . Não se atr ibu i ao ho ­
liam t ambém , desejando, bem ente no entanto, para ganhar mu ito din
\.
cín io em no i ss
m o princípio e o racio ciso de cult ura nte re e
de si o obje tivo e a medida. Daí vê m em senão j ustamente o que é pre
isto: quanto mais houver conhe­ ércio mundial, mas é do mesmo
modo
voga, que dizem mais ou menos do lucro geral e do com
o à feli-
ecessidades, porta nto
, também ecessar iamente dire it---
cimento e cult ura, mas haverá n que se exige dele : "O homem tem n
e felicidade - eis aí a fa laciosa fórm
ula . Os necessá ria, mas somente
mais produção, lucro ci dade terres tre, eis porque a c ultura é
para isto !"
francesa!.
!Prólogo ao Céu! [Nota da edição
37. Goethe, Faust, 1, versos 328-329 e \ 1
1,
' + d
218 Escritos sobre Educação 1 f f d(
�Vll.:)lU\,.,LGl'J'U.'-' .._ •• .._.._ .. ._,t'..,.., .. � • -· --·-- r -----•

f
/
C'
d _ Em segundo lugar, é o egoísmo do Estado [Selbstsucht des espectador a uma falsa conclusão quanto ao conteú do : adm itido
Staates] que deseja também a extensão e a generalização ma ior que se julga habitualmente o interior segundo o exterior. A mim
d a cult u ra e que tem nas mão s os instrumentos ma
is eficazes me parece, às vezes, que os h omens modernos exp eri mentam um
�para satisfazer os seus desej os . Admitindo -se que o E ado saiba
s t tédio infinito ao seguirem j untos, e acabam po r achar necessário
que é muito forte, não somente para desentravar, mas também se tornarem interessantes com a ajuda de to das as artes. Então,
para imp or seu jugo em temp o útil, admitindo -se que seus fun­ po r seus artistas, eles mesmos se fazem apresentar e servir como
damentos sejam b astante firmes e ampl os p ara p oder
sup ortar pratos apimentados e bem tempe rados, se enchem com todos os
toda a abóbada da cultura, a difusão da cultura entre seus cida ­ aromas do Oriente e do Ocidente e certamente exalam a ora u m
dãos somente aproveitar á a ele m esmo, na sua rivali dade
com os p erfume dos ma i s interessantes, xalam tu do ao mesmo tempo,
outros Estados. Em todo lu gar em que se fala agora de
"Estado do Oriente e do Oci dente. Eles se prepa ram para satis fazer a to ­

cultural", se vê atribu ir a ele como tarefa libertar ab solutamente dos os gos tos : to dos deve m ser servidos, quer se comprazam com

a s forças espirit u ais de uma geraçã o, para que elas p ossa


�sim o qu e perce bem como sendo bom ou mau, com a sublim açã o ou

__..i Í servir e ser úteis às instit u i_ções existentes : mas não para
ir a lém com a grosseria camp onesa, com os regos ou com os chineses,
-delas·= do mesmo modo que se desvia em parte uma torrente p or com as tragédias ou com as porca rias do teatro . Os mais famo ­
os moi-
d iques e canais p ara, com sua força reduzi da, acionar sos destes cozinheiros a serviço destes homens modernos, que
nhos - quando então toda sua força seria ma is perigosa do que querem a qualquer preço ser interessantes ou interessados, se en­
útil ao moinho . Esta libertação consiste também e sobretudo em contram, como se sab e, entre os franceses; os piores estão entr e
forjar as cadeias. Q ue se lembre unicamente daquilo que pouco os Alemães. I sto é no f undo mais consolador para os últimos do
a p ouco veio do cristianismo s ubmetido ao egoísmo do Estado . que para os primeiros, e não p retendemos sobretudo ser como os
O cristi anismo é certamente u ma das manifestações mais pu ras franceses, já que eles zombam da nossa fa lta de interesse e de ele­
engendra­
deste impulso para a cu lt ura , especialmente p ara o gância, e já que o dese jo de certos Al emães de adquirir elegância
mento sempre renovado do santo ; mas, como ele foi utilizado e boas ma neiras os tran s fo rma no hindu que sabe p or tar u m a nel

para mover os moinhos dos QQ_deres diEstado , a doença pe ­ no nariz e pede gritando bem alto para ser tat uado .
)
net rou nele pouco a p ouco até a medula, e ele foi tomado p ela C ontudo, na d a me i m pedirá aqu i de fazer uma digressão .
1
hipQ.S_risia e pela m�tira e 'degenerou at� contradizer seu objetivo D esde a última guerra com a França, muitas coisas mu� e
original. S eu últi mo avatar m esmo, a R eforma alemã,
somente se agitaram na Alemanha, e é evidente que se imp ortou também
teve uma repentina luz, logo extinta, se é que ela não extraiu da alguns novos desej os para a c u ltu ra ale mã. Esta guerra foi para
luta e da exaltação dos Estados novas forças e novas paixõ es. muitos a prim eira viagem na met ade do mundo mais elegante;
)} Em tercei� lugar, a cultura, é incentivada � or todos aqueles que coisa magnífica, qu ando a ingenu idade do vencedor não me­
_
J que estão conscientes de possu1rem um conteudo de feal� e nospreza aprender com o vencido um p ouco de cultu ra ! Lem­
t de tédio e que querem mu dá-lo por meio de uma pr�tensa "bela brem-se então das artes decorativas qu e eles devem rivalizar com
l forma". C om os detalhes e xteriores, a palavra , o gesto, com a seus vizinhos mais cultos ; é preciso que a arrumação da casa ale ­
decor ação, o fausto e as b oas maneira s, trat a-se de ob rig
ar o mã se aproxime d os interiores franceses, e a própria língua alemã

J
L
(
220 Escritos sobre Educação
ma_nusea r, porque
re o modelo fran­
somente os maiores escultores têm o direito de
academia fundada sob em si, ao contrá­
deva, p el o viés de uma somente eles são dignos disso . O que vocês têm
e desembaraçar -se da
influência
cês, se a finar com o "b om gosto " rio, é um material m ole e disfor me; façam disso
o q ue q uiserem,
exercido s obre ela - como muito
perturbadora que G�ha
recentemente julgava o acadêm
ico berlinense Du B o is-Rey mond
n ossos teatros visavam há já
. b onecas elegantes __ou..estátuas interessantes - aqui ain
vra de Richard Wagner deve prevalecer: "O ª1crnâ
da, a pa la­

o_' n uloso e 1
Silenci osamente e honestamente, acanhado qu�ndo q uer sacrificar - se aos costumes;
mas el e é su­
- até mesmo o erudito alemão _
muito tempo o mesmo objetivo blime e superior a todos quando se i n fl a ma ." Os elegantes
têm
38

erar ag ora
ventado . Bem, devem os então esp , pois, caso
ele ga nte que foi já in toda a razão de se resgua rdarem deste fogo alemão
r por conformismo diante desta
que t udo o que não q uis se curva contrário, este fogo bem poderia um di a devorá-los com t
odas as
gédia, a filosofi a alemães - sej a
lei da elegância - a música, a tra su as b onecas e suas estátuas de
cera. - Certamente, p o der -se -ia
sendo não - alemão.
também agora descart ado como deduzir de origens b em diferentes e mais pr ofundas esta te
ndên­
smo a pena erguer um dedo
M as, na verdade, não va leria me ci a à "bela forma " dominante na Al ema nha: esta pressa ,
e sta
, já que o a lemão não concebe
se quer a favor da cu ltura ale mã c ompreensão ofegante do instante, esta precipitação que leva
a
r a a spirar,
e sta cultura, que lhe
fa lta ainda e que ele de veria ago colher todas as coisas ainda verdes, esta corrida e esta caça qu
e
s genti1 e zas com que se enfeita
senão s ob a forma das artes e da agora escava as rugas nos rost o s do s h o
mens e que estã o impre ­s

a a engenhosid ade dos


mestres da d ança e
a vid a , a í inclu ída tod
não quer sas em tudo 9-.-que faz em c o m o uma espécie d e tatu agem. Co mo
dos mercador e s de tap
etes, e já que mesmo n a língua ele se uma(feberagem que nã o lh e s de ixasse
respirar em paz agisse
regras aprovadas pel
enão par a r esgata r as
a
ma is fa zer esforços, s sobre e les, eles se l a nç a m impet uosame nt
e, expostos a uma in­
a últim a
acade mia e um certo
b om tom . Parece, no entanto, que quietude inde cente, escravos atormentados por três "M": o mo­
com os fr anceses absolutamente
guerra e a comparação pessoal mento, as maneiras de pensar e os modos de agir. Por mais que
tensões, e suponho antes e fre ­
não suscitaram as mais altas pre a falta de dignidade e de decência salte muito penosamente ao s
seram a par tir daí se furta r pela
quentemente que os Alemães qui olhos e que uma elegância mentirosa se mostre n ovamente ne ­
seus dons
ões q ue lhe impõem
violênci a a estas velhas obrigaç cessária para m ascarar a do ença desta pressa indigna. Pois este
fundeza específicas da sua n atu­
pro digiosos, a gr avidade e a pro ca quear, é o lia me que une a m o d a ávida da b e la form a ao conteú do hor­
reza . Eles preferira m,
então, praticar cha rlatanices, ma roroso do ho mem contemp orâneo: a quel a d e ve dissimular, e ste
neiras e as artes que tornam
gostari am de aprender as boas ma deve estar dissimulado. Ser culto significa ag ora: não se permitir
o esp írito
mais injurio s o para
a vida divertida. M as n ada há de observa r até que ponto se é m iserável e mau, feroz na ambição,
o c omo u ma matér ia
flácida q ue se acabar ia
a lemão do que tratá-l insaciável na acumul açã o , egoísta e desavergon hado na fruiçã o .
ia . E, se é
um dia, à força de ma
nuseá-la, para dotá-la de elegânc Quando p onh o em evidência para a lg uém a ausência de um a
parte dos Alemães des e j a dei­
infelizmente verdade que uma boa cultura alemã, várias vezes se me o bjeta: "Mas esta ausência é
ao co ntrá­
ma forma, é precis o,
xar - se assim manusear e to mar u bast ante n atural, p o is até agora os Ale mães foram mu ito po bres
em vo cês,
rio, se opo r a isto até
q ue se ouça: ela não existe mais
ida e cheia
e sta antiga mane ira a
lemã, qu e é na v erdade dura, rísp !.
38. R. Wagner, S11r la direction de la orchestre jNota da edição francesa
a ma is preci o sa que
e é t ambém a mat�ri
de resistências, mas qu
J
222 Escritos sobre Educação L)\,v\..;llO Lons1aeraçao 1nrernpe�uva: 1uJJc1111auc1 Luu<..auu, .,_.,__,
)
e muito modestos. Deixem apenas os nossos compatr iotas se tor­ do gênio, não tinham sido absolutamente ainda arro lados; eu (_
eJ narem ricos e conscientes de si mesmos, e logo eles terão também tinha nomeado três: o egoísmo dos ne ociantes o ego ísmo do \
uma cultura!" Se é verdade que é a fé que salva, este tipo de fé Estado e o ego ísmo de todos a ueles que têm motivos para se ;�
me torna, a mim, infeliz, porque percebo que esta cultura ale­ d. simular e se camuflar sob uma forma uai uer. Mencionarei,
mã futura na qual tanto se acredita - aquela da opulência, do em quarto lugar, o egoísmo da Giência e a essência articular dos

1
verniz e da dissimulação p olida - é o tipo contrário mais hostil seus servidores, os eruditos.
da cultura alemã na qual acredito . De fato, quando se tem de A ciência está para a sabedoria, assim como a virtude está
viver entre os Alemães, se sofre muito com o fam osíssimo ca ráter para a santidade: ela é fria e árida, ela não tem amor e ignora
morn o da sua vida e dos seus sentidos, com a sua falta de forma, tudo com um profundo sentimento de insatisfação e nosta lgia.
com a sua estupidez e a sua c onfusão, com a sua falta de graça Ela é útil apenas a si mesma, tanto quanto é nociva a seus ser­
nas relações mais delicadas, e ma is ainda, com a sua malevolên- vidores, na medida em que transpõe neles seu caráter próprio e
cia, com uma certa dissimulação e com uma certa impureza do assim ossifica de alguma maneira sua huma nidade. Enquanto

--
seu caráter; se s ofre e se fica irritado com o seu gosto inveterado
i)
se entenda essencialmente como cultura o progresso da ciência,
pelo falso e pelo inautêntico,

com a sua má imitaçã o e com a sua la passará impiedosa e congelada diante do grande homem que
tradução das b oas co isas estrangeir as em maus produtos indíge-
7
sofre, p orque a ciência só vê em todo lugar os problemas do co­
nas; mas agora que esta inquietude feb ril, esta sede de sucesso e nhecimento, e porque, a bem da verdade, no seu mundo, o sofri­

de lucro , esta superestimação do momento se juntam neles como mento é algo de deslocado e de incompreensível, e neste caso é,
os piores males, é totalmente revoltante pensar que não se quer no máximo, apenas um problema. í
por princípio cura r todas estas doenças e todas estas fraquezas e Mas, por p ouco que se costume traduzir toda experiência
que se trata unicamente de disfarçá-las hipocritamente - através, num j ogo dialético de perguntas e respostas e numa pura questão
por exemplo, da "�urª-�orma intere.:'ante" ! E isto num de inteligência, é sur preendente ver com que rapidez o homem
povo que produziu Schopenhaueti e Wagner ! )E quem os produ­ fica mirrado ao desenvolver semelhante atividade, a tal p onto
zirá outras vezes mais! Ou antes nos iludimos num desespero que ele é somente capaz de fazer seus ossos se cho carem. Todo
sem saída? Estes dois homens que a cabei de nomear, não são mundo sabe disso e todo mundo vê isso: então, como pode ser
eles talvez para nós ainda a garantia inclusive de que f orças se­ que, não obstante, os j ovens não recuem de medo dia nte destes
melhantes às suas estão ainda realmente presentes no espírito e esqueletos e não abandonem a sua dedicação cega às ciências,
na alma dos Alemães? Seriam eles próprios exceções, os últimos sem escolha ou precaução? Esta dedicação, porém, não pode vir
contrafortes, os últimos declives de alguns tipos que outrora se do pretenso "impulso pela verdade": pois, como p oderia existir
tinha como alemães? Não sei bem o que pensar disso, e por isso um impulso que visasse o conhecimento fri o, pur o, sem conse­
vou volta r à minha rota de considerações gerais, cuj as dúvidas quência ? As verdadeiras forças instintivas que habitam os servi­
preocupantes querem, muito frequentemente, me fazer desviar. dores da ciência somente se revelam de fato, com clareza suficien­
Todos estes poderes que certamente incentivam a cultura, sem te, ao olhar não prevenido: e não se poderia mesmo a conselhar
que por outro lado se reconheça seu objetivo, o engendramento que se examinasse e se dissecasse um dia também os eruditos,
224 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 225

depois que eles próprios se tivessem acostumado a tatear com in adiaphoris 39 ; de fato, neste caso, é mais conveniente à indolên­
ousadia e a despedaçar tudo no mundo, inclusive as coisas mais cia dizer a verdade do que fazer silêncio sobre ela. E como tudo
veneráveis. Para falar diretamente o que penso, meu princípio é que é novo exige uma revisão do saber, a retidão respeita o_má­
o seguinte: o erudito consiste numa rede mjg_urada de impulsos ximo possível a antiga opinião, e reprova o inovador por faltar a
e excitações muito variadas, é um metal impuro por excelência. este o sensus recti 40 • Evidentemente, ela se opôs à teoria de Co­
Que se considere, em primeiro lugar, uma curiosidade forte e pérnico, porque tinha como próprio a aparência visível e a roti­
sempre acrescida, uma sede de aventuras do conhecimento, uma na. O ódio da filosofia, que não é de maneira nenhuma raro nos
violência constantemente excitante do novo e do raro, opostas ao eruditos, é sobretudo o ódio dos longos encadeamentos lógicos e
velho e enfadonho. Que se junte a isto um certo instinto dialético da engenhosidade das provas. Pode-se mesmo dizer, no fundo,
de despiste e de jogo, uma alegria de caçador em descobrir as que cada geração de eruditos possui sem saber uma norma para
pegadas da aposa do pensamento, de tal modo que não seja re­ o grau de sagacidade permitido; o que ultrapassa este nível é re­
almente a verdade que deva ser buscada, mas a própria rocura, vogado como dúvida, e se serve disso quase como motivo de sus­
e que o prazer fundamental resida no fato de espreitar e encurra­ peita contra a simplicidade. - Em segundo lugar, temos o olhar
lar com astúcia e no mandar matar segundo as regras da arte. A sagaz para as coisas próximas, ao lado de uma grande miopia
isto se junta ainda o instinto de contradição: a pessoa está empe­ para o longínquo e o geral. Seu campo de visão é habitualmente
nhada em se sentir e em se pôr em oposição a todas as outras. A muito estreito, e é preciso que ele mantenha os olhos muito pró:
luta se torna um prazer e a vitória pessoal é aí de fato o objetivo, ximos do objeto. Se o erudito quer passar de uma questão já ex­
ao passo que a luta pela verdade é somente um pretexto. Numa plorada a outra, ele volta para esta questão todo o seu aparelho
boa medida se inclui também no erudito o instinto de encontrar visual. Ele decompõe uma imagem em simples manchas, do mes­
certas "verdades": por servilismo para com certas pessoas, para mo modo como, na ópera, se usa um binóculo para ver a cena e
com as castas, para com as opiniões, as igrejas e os governos es­ examinar um rosto ou um detalhe da vestimenta, mas nada in­
tabelecidos, porque ele percebe que presta um serviço a si mesmo teiro. Ele jamais vê estas manchas isoladas reunidas, e apenas se
colocando a "verdade" do lado destes. Menos regularmente, mas limita a deduzir a coesão; eis porque tudo o que é geral não lhe
muito frequentemente, porém, surgem no erudito as seguintes deixa nunca uma forte impressão. Como ele é, por exemplo, in­
qualidades: em primeiro lugar, a retidão [Biederkeit] e o senso de capaz derabordar um escrito na sua inteireza, o julga segundo
simplicidade - muito estimadas, contanto que sejam mais do que alguns fragmentos, algumas frases ou ainda algumas faltas; ele
imperícia e inexperiência na dissimulação, a qual exige um pou­ seria facilmente induzido a afirmar que um quadro não é senão
co de malícia. Em todo lugar, de fato, onde a malícia e a flexibi­ um monte desordenado de pontos de...cor. - Em terceiro lugar, o
lidade saltam aos olhos, é bom ficar prevenido e colocar em dú­ e
pro�mo a vulgaridade da sua natureza, nas suas inclinações
vida a retidão deste caráter. Por outro lado, esta retidão é muito e nas suas aversões. Com esta qualificação, ele está particular-
frequentemente de pouco valor e, mesmo para a ciência, apenas
raramente ela é frutífera, pois está ligada ao que é habitual e tem 39. Em latim no texto, signific
ando "nas coisas indiferenciadas".
o costume de dizer a verdade somente sobre as coisas simples ou 4 o. Em latim no texto, significando
"sentido de retidão".
226 Escritos sobre Educação \......Ons1aera�au lllleH1pc�LJVd; .,JL.11Vl:'l..UllaU1r..,L .L..,U\A"-U.UV'-'-

mente feliz na história, na medida em que descobre as forças tos que a parecem desmesurada m ente gra ndes e exagerados , en-
motrizes dos homens do passado segundo as forças motrizes que quanto que suas virtudes, ao cont rário, se m ostra m nestes mes­
ele c onhece . Uma toupeira fica mais à vo co. Ele mos indivíduos diminuídas na mesma proporção. - Em sétimo �
está protegido contra todas as hipóteses engenh osas e aventurei­
ras ; se é perseve ra nt e, exuma todos os motivos vulgares do pas ­
�) lugar, o hábito do erudito de perseguir seu caminho na via pata
a qual ele foi empurrado , o sentido da verda de desenvolvido se ­
sado, porque se sente da mesma espécie. Está também basta nte gundo um\ vácuo de pensamen�con forme a r otina adquirida .
seguro, porqu e é muito f requentemente incapaz de compreender Estas naturezas são os col�cionadores, os exe�tas, os f abrican­
e de ava lia r o q ue__ é raro, grande, insólito, e, por tanto, o que é tes de índices e herbários; el es se instruem e fazem pesquisas num
\ im ort ante e essencial. - Em qu a r to lugar, a indigênc�ti ­ domínio deter minado, unicamente porque nã o acha m absolut a­
ment o e a a ridez. São elas que a utorizam as vivi ssecções . Ele nem mente que possam existir outr os. Seu zelo tem a lgo da monstru­
imagina o sofrimento que o excesso de con hecimento ca rrega osa asne i ra da gravidade: e les são também frequentemente muito
consi;, e, por conseguinte, não teme em se aventurar nos domí­ produtivos . - Em oitavo lugar, a fuga dia nte d o tédio. Embora o
nios em que os corações dos outros fre mem. Ele é_ fr�, t a mbém verdadeiro pensador não aspire nada t a nto qu a nto o ócio, o eru­
parece facilmente cruel. Encontra m o -l o temerário, mas não o é dito ordinário foge dele porque não sabe o que fazer com isso. (
mais do que a toupeira, que não conhece a vertigem. - Em quin­ Seus consolos são os livros: quer dizer, ele escuta a lguém p e nsa r
) t o lugar, sua med íocre autoestima , ou melhor, sua modéstia.
r'
diferente del e, e passa a conversar sobre isto durante uma longa
Mesmo relegados a a lgum canto miserável, eles não têm qual- j ornada . Ele escolhe em pa rticular os livros com os quais sente

t.--
quer sensação de ser sacrificados, dissipados ; pa recem muitas
ezes saber, no ma is profundo de si, que s ão animais que se ar ­

astam e não animais que voa m. Eles são qu ase toc ados por esta
uma certa a finidade, com relação aos qua is pudesse reagir um
pouco, sej a por atração, sej a por repulsão: os livros, portanto,
em que e le próprio é levado e m consideração, ou antes , a sua si­
qua lidade. - Em. s exto lugar, a fidelidade pa ra com �mestres
(
tuação, as suas convicções em matéria de política, de estética ou
e seus gui s . Eles querem com todo o coração favorecê-los e sa­ simplesmente de gramática ; se, a lém disso, ele tem uma ciência
bem b em que é com a verdade que eles os favorecem mais . Pois para si, não lhe faltarão j a mais os meios d e d i st ração nem os
eles reconhecem o fato de que foi somente através deles que tive­ ' antí dotos contra o tédio. -_Em nono lugar, há o motivo do ga­
ram acesso aos augustos peristilos da ciência , os qua is, s eguindo nha-pão, e, portanto, no fundo, os célebres "ruídos de gases de
0 seu camin ho próprio, j a mais a lcança riam . Nos dias atuais , o um estômago que sofre ". P resta-se ser viç o à verd ade, quando ela
1 mestre, que sab e abrir um domínio, onde inclusiv e os espíritos
está em condições de fornecer diretamente gratificaçõ es e pro­
1 mais medíocres p odem trabalhar, com a l�um sucesso, � e torna gressões na carreira, ou pelo menos quando está em condições de
muit o rapida mente um homem cele bre, tao numeroso e logo o conquistar o favor daquel es que d ist ribuem o pão e as honras .
enxame que se aperta em torno dele. Ao mesmo temp o , cada um Mas, assim, somente se serve a esta verdade: esta é a razão por
dos seus discípulos fiéis e reconheci dos é uma inf elicidade para o qu e uma fronteira se instaura entre as verdades lucrativas, que
mestre , porque todos eles o imitam e p orque, quando surge a lgo são muito ú teis, e as v erdades que não são exploráveis : aquelas
ta mbém nos in d iví du os mesquin h os, sã o exata mente se us defei- que só podem ser oferecidas pelos r aros, a respeito dos quais não
228 Escritos sobre Educação v '

se pode dizer: ingenii largitor venter4 1 • - Em décimo lugar, o que e ste instinto nobre, já quase suscetível de uma interpretação
respeito dos colegas, o medo do seu de sprezo; motivo mais raro metafísica, é antes muito difícil de distinguir de outros instintos,
e mais elevado do que o anterior, porém, muito frequente. Todos e que ele é no fundo incompreensível e indefinível para um olho
os membros da corporação se vigiam reciprocamente com o mais humano; por isso, junto a este último número o piedoso desej o
extremo ciúme, para que a verdade, da qual dependem tantas de que este instinto venha a ocorrer entre os eruditos mai s fre­
coi sas, o pão, a função, as honras, seja realmente batizada com o quentemente e mais eficazmente, de modo que se torne visível.
nome do seu inventor. Deve-se e stritamente ao outro o respeito Pois uma faísca do fogo da justiça caída na alma de um erudito
que se lhe deve pela verdade que ele encontrou, para exigir o basta para inflamar sua vida e seus esforços, para devorá-los de
mesmo tributo em troca, se por acaso um dia fosse encontrar a maneira tão purificadora, que não haverá mais repouso, e serão
sua própria. E se faz explodir com grande ruído a não -verdade, o para sempre arrastados a este estado de espírito morno ou gélido
erro, para que o número de concorrentes não se torne muito no qual os eruditos comuns realizam sua tarefa diária.
grande; mas aqui e ali é também a verdade real que à s vezes é Todos estes elementos, ou um grande número deles, ou so ­
explodida, para que, pelo menos por um curto momento, se con­ mente alguns , que se imagine agora como se estivessem mistura-
ceda um lugar aos erros teimosos e insolentes; pois não faltam dos e amolecidos: assiste-se então ao nascimento do servidor da
em nenhum lugar, e aqui também, estes "idiotismos morais", co­ verdade. É uma co i sa surpreendente ver como aqui, em proveito
mumente chamado s de velhacarias . - Em décimo-primeiro lugar, de uma ocupação no fundo extra-humana e sobre-humana - o
,o erudito por vaidade, variedade já muito rara. Ele quer, se pos ­ conhecimento puro, indiferente �esultado e, po �onseguinte,
'sível, ter todo um domínio para si, também escolhe as curiosida­ também desprovido de instintos, - uma quantidade de peque-
des, em particular, quando elas necessitam de despesas extraor­ nos instintos e inclinações miúdas muito humanos são juntado s
dinárias, viagens, escavações , numerosos contatos em diferentes para formar um composto químico ; surpreendente é também o
países . Ele se contenta, o mais das vezes, com a honra de ser ele resultado, o erudito que, à luz desta ocupação supraterrestre, ele­
próprio visto como uma curio sidade, e não imagina fazer seu vada e absolutamente pura, se transfigura a ponto de esquecer
ganha-pão com estes estudos eruditos. - Em décimo -segundo lu­ completamente o compósito e a mistura que foram necessários
gar, o erudito por jogo . Seu deleite consiste em procurar e desa­ para engendrá-lo. Este s são, porém, os momentos em que se está
tar os pequenos nós�as ciências ; ele não gosta, assim, de fazer obrigado a pen sar e a lembrar: quando se trata exatamente da
muitos esforços, para não perder o sentimento do jogo. Além importância d�udito para a cultura. Quem sabe observar nota
disso, ele não penetra exatamente nas profundezas, mas agarra de fato que, segundo sua essência, o erudito é infecundo - esta
frequentemente algo de verdadeiro, que o olho penosamente ras­ é uma consequência da sua gênese! - e que ele experimenta um
teiro do erudito que ganha seu pão não vê jamais. - Se como certo ódio natural contra o homem que é fecundo ; eis a razão

1 1; força motriz do erudito, menciono ainda, em décimo-terceiro lu­ por que, em todas as épocas, os gênios e os eruditos se enfren­
gar e para terminar, o instinto de justiça, poder-se-ia me objetar taram. Estes últimos de fato querem matar, dis�r, compreen-
der a natureza; os primeiros querem acrescentar à natureza uma i �
r
4 1. Em latim no texto, significando "seu ventre é o provedor do seu espírito".
nova natureza viva; além disso, há um conflito de opiniões e de

l e,...
230 Escritos sobre Educação V '_)'\ � '-..,Ull.'.)1U'-"lGl"$-U\J .I.IIL.._,._,._,J:-'�.._, .. ,, ... , ._..._,.�,--------- -• _

atividades. As épocas verdadeiramente felizes não tinham neces­ resse que é o seu não é estimulado. Por conseguinte, as condições
sidade do erudito e não o conheceram, as épocas profundamente de nasci�ento do�ão são melhor.!!._na época moderna, e a
doentes e melancólicas o estimaram como sendo o homem supe­ animosidade contra os homens originais cresceu a tal ponto, que
rior e digno entre todos, e lhe deram o primeiro escalão. Sócrates não poderia ter vivido entre nós, ou que, em todo caso, �
Quem, agora na nossa época, no que diz respeito à doença e à ele não teria alcançado os 70 anos.
saúde, seria médico o bastante para reconhecê-las? É certo que, Lembrarei agora o que expus no terceiro capítulo: nosso mun­
hoje em dia ainda, em vários domínios, a estima que se tem pelo do moderno, no seu conjunto, não tem uma aparência exterior
erudito é muito grande, e ela tem um efeito nocivo, sobretudo em solidamente assentada e durável, para que se pudesse também
relação a tudo que concerne ao nascimento do gênio. O erudito profetizar para o conceito de sua cultura uma duração eterna. É
I não tem sensibilidade para a angústia do gênio, ele perora a seu preciso mesmo admitir como verdadeiro que o próximo milênio
respeito com uma voz cortante ê fria, e está somente disposto a possuirá algumas ideias novas que farão arrepiar os cabelos de
dar de ombros na sua presença, como se se tratasse de um objeto todos os nossos contemporâneos. A crença numa significação
bizarro e estapafúrdio, a respeito de quem ele não tem tempo metafísica da cultura não teria, afinal, nada de tão assustador;
nem vontade de se ocupar. Não é jamais nele que se encontra o mas antes, talvez, algumas consequências poderiam ser extraídas
saber quanto à finalidade da cultura. dela para a educação e o sistema escolar.
Mas sobretudo, o que aprendemos através de todas estas con­ Certamente, isto exige uma reflexão completamente inco­
siderações? Que em todo lugar em que a cultura parece ser hoje mum, a de levar, a partir e para além das instituições pedagógi­
mais vivamente incentivada, não se sabe nada a respeito deste cas atuais, seu olhar para instituições absolutamente estranhas
propósito. O Estado teve a ocasião de fazer valer bem alto seu e diferentes, algo que já uma segunda e uma terceira gerações
mérito em relação à cultura: mas ele somente a promove para pro­ acharão talvez necessárias. De fato, enquanto que, graças aos es­
mover a si mesmo, e não concebe um objetivo que seja superior a forços dos atuais educadores superiores, se ergue o erudito, ou o
seu bem e à sua existência própria. O que querem os negociantes, funcionário, ou o especulador, ou o filisteu da cultura, ou ainda,
quando exigem incessantemente instrução e educação, é sempre para terminar, e mais frequentemente, um ser híbrido de todos
em última análise o lucro. Quando aqueles que têm necessidade estes tipos, estas instituições que é preciso inventar teriam sem
de formas se atribuem o autêntico trabalho para a cultura e são dúvida uma tarefa muito difícil - não talvez em si mais difícil,
de opinião, por exemplo, de que toda arte lhes pertence e deve já que seria em todo caso uma tarefa mais natural, e nesta me­
estar a serviço da sua necessidade, a única coisa clara aqui é dida também mais fácil, pois pode haver coisa mais difícil, por
que eles dizem sim a si mesmos, quando afirmam a cultura: que exemplo, do que formar um jovem na profissão de erudito, indo

l
eles, portanto, jamais passaram de um mal-entendido. Falamos contra a natureza, como se faz em nossos dias? Mas a maior
já bastante sobre o erudito. Portanto, assim como estes quatro dificuldade para os homens é revisar suas noções e dar-se um
poderes se esforçam mutuamente em refletir sobre os melhores novo objetivo, e lhe custará um esforço indizível substituir os \
meios de fazer a cultura servir a seus próprios interesses, eles fi­ pensamentos fundamentais da nossa pedagogia atual, que mer­
cam também abatidos e vazios de pensamento, quando este inte- gulha suas raízes na Idade Média e que representa, para dizer a
232 Escritos sobre Educação

verdade, o erudito medieval como objetivo da educação perfeita , ua grande tarefa . Estes indivíduos devem realizar sua obra - tal
por um novo pensamento fundamental. Já é tempo de ter em vis­ é o sentido da sua coesão; e todos aqueles que participam da
/
ta estes conflitos, pois é pre ciso antes que uma geração qualquer instituição devem estar empenhados, através de uma depuração
comece o combate no qual uma outra venc erá. Já o indivíduo contínua e uma assistência re cíproca, em preparar o nascimentQ
que compreendeu este novo _pensamento fundamental �ultu­ do gênio e o amadurecimento de sua obra, em si e em to.mo de
ra se encontra numa encr uzilhada de caminhos; se ele e�he sÍ. Muitos, inclusi�os talentos de segunda e terceira ordem, são
i r por um desses caminhos, sua época o saudará e não deixará �hamados a esta colab oração, e somente no devotamento a uma
que lhe faltem coroas e re compe nsas, os partidos poderosos o tal missão encontram o sentimento de viver para um dever, o ob­
sustentarão, atrás como diante dele haverá outros tantos indiví­ jetivo e o sentido da sua vida. Mas, atualmente, são exatamente
duos com as mesmas disposições e, logo que o chefe da fila fizer estes talentos que são desviados de sua rota pelas vozes falaciosas
r;-, soar a palavra de ordem, todos os estratos lhe farão eco. Aqui, da "cultura" da moda e alienados de seu instinto; esta tentação
J \ o primeiro dever é "combater com fileiras cerradas de cor pos", se di rige a suas veleidades egoístas, a suas fraquezas, a suas vai­

r
o segundo, tratar como inimigos todos aqueles que não queiram dades, é para elas que o espírito do tempo cochicha e insinua
) al inhar-se com ele. O�gun�inho, pelo c ontrário, lhe fará com insistência: "Sigam-me e não vão para o outro lado! Pois
encontrar companheiros mais ra ros; esta é o caminho mais di ­ aí serão somente os serv idores, os auxiliares, os instrumentos,
" fícil, mais tortuoso, mais escarpado; aqueles que trilham o pri ­ eclipsados pelas naturezas superiores, aí não serão jamais fel i­
\
e-
meiro zomba rão dele porque ele aí progride com mais esforço e zes com seu próprio modo de ser, serão manipulados pelos fios,
se encontra mais frequentemente em perigo; eles tentarão atra í-lo encadeados, tratados como escravos e como autômatos; aqui,
pa ra si. Se por acaso os dois caminhos se cruzar em, ele será mal­ comigo, desfrutarão como senhores de sua l ivre personalidade,

tratado e colo cado de lado, ou antes será isolado, mantendo-se seus dons poderão brilhar por si mesmos, deverão figurar, todos
com relação a ele uma respeitosa distân cia . O que sig nifica uma vo cês, nas primeiras fileiras, �m séquito imenso os envolverá, e
instituição de cultura para os diferentes viaj antes destes dois ca­ como a aclamação da opinião públi c a não os a legra r ia mais do

minhos? O imenso enxame que acorre para o seu objetivo p elo que a aprovação distinguida que lhes seria dispensada do alto,
primeiro caminho compreende esta instituição como sendo as dos cumes etéreos e frios do gênio?" Inclusive os melhores su­
disposições e as leis, graças às qua is el e próprio é posto em ordem cumbem a estas seduções; e, no fundo, o que decide aqui não é

-
vai adiante, mas que ao mesmo tempo eliminam os rebeldes e tanto a raridade e o vigor do talento, mas a influência de uma
os solitários, e todos aqueles que visam objetivos mais elevados certa disposição fundamental para o heroísmo e o grau de paren­
e mais distantes. Para este outro grupo menos numeroso, uma tesco e de enredamento interior com o gênio. Pois há homens que
instituição teria cer tamente uma finalidade totalmente diferente experimentam como sua angústia própria verem o gênio engaj a­
a realizar; com uma sólida organização de defesa, ele pretende do numa luta penosa e em perigo de se destruir a si próprio, ou
evitar que sej a arrast ado e desviado pela torrente deste enxa­ verem suas obras des car tadas com indiferença pelo egoísmo da
\
me, e que os indivíduos que a compõem não sucumbam a um visão c urta do Estado, pelo sentido raso dos negociantes e pela
esgotamento prematuro, ou sej a, fiquem desencantados com a presunção empedernida dos eruditos: e assim espero também
234 Escritos sobre Educação \.......Ons1aera�au 111Lc111 pc�u va. J\..uvp\.,u11au...,L .A.., ............................ ..

que haja alguns homens que com__preendam o que quero dizer, natureza tem toda uma aparência de desperdício, porém, não o
quando descrevo o destino de Schopenhauer, e porque, de acordo desperdício de uma exuberância criminosa, mas o da inexperiên­
com a minha representação, Schopenhauer como educador deve cia; é preciso admitir que, se ela fosse um ser humano, ela acaba­
verdadeiramente educar. ria p� se irritar contra si mesma e sua inépcia. A natureza joga o
fil9sof� como uma flecha no meio dos homens, ela não visa, mas
espera que a flecha venha a se cravar em algum ponto. Fazendo

isso, ela se engana um número infinito de vezes e fica com isso
Mas, se deixarmos de lado por um momento todos estes pen­ exasperada. Ela se comporta com tanta prodigalidade no domí­
samentos a respeito de um futuro longínquo e de uma possível nio da cultura quanto nas plantas e nas sementes. Ela atinge seus
subversão do sistema educacional, o que se deveria agora dese­ fin maneira geral e custosa, sacrifi6ando nisso muitas forças.
jar e, em tais circunstâncias, fazer por encontrar no filósofo em O artista e, por outro lado, os conhecedores e os amantes de sua
_devir, a fim de que ele pudesse cobrar alento e, no melhor dos arte se conduzem uns com relação aos outros como uma peça
casos,(fruir das condições de existência1 não fáceis, mas pelo grosseira de artilharia e uma nuvem de pardais. É uma grande
, menos toleráveis, de Schopenhauer? O que seria preciso, além ingenuidade querer provocar uma grande avalanche para var­
disso, inventar para dar mais plausibilidade à sua ação sobre os rer um pouco de neve, ou matar de pancadas um homem para
contemporâneos? Que obstáculos seria preciso revogar para que esmagar a mosca que ele tem no nariz. O artista e o filósofo
sob�do o seu modelo viesse a obte.!J:!._m leno efeito, e para que testemunham contra o sentido prático da natureza na escolha
o filósofo novamente viesse a educar os 'filósofos? Nossa conside- de seus meios, ainda que estes sejam a mais excelente prova da
��f --{) ração se liga aqui ao domínio do prático e do espinhoso. sabedoria dos seus fins. Eles só afetam poucas pessoas, quando
A natureza se quer sempre de utilidade comum, mas ela não deveriam afetar a todas, e mesmo estas poucas pessoas não são
pretende encontrar para este fim os meios e os procedimentos afetadas pela força que o filósofo e o artista deram a seu projétil.
melhores e mais capazes: esta é a sua grande 'dor e esta é a razão É triste precisar sustentar avaliações tão diferentes sobre a arte
por que ela é 1!1elancólica. Que, ao engendrar o filósofo e o artis­ considerada como�sa e a arte considerada como efeito: por
ta, ela quisesse tornar a existência inteligível e significativa para mais prodigiosa que ela seja como causa, como está paralisada e
os homens, isto é certo, pois ela aspira sua própria redenção; surda como efeito! Segundo a vontade da natureza, o artista cria
mas quanta incerteza, quanta fraqueza e quanta insignificância sua obra para o bem dos outros homens, ninguém duvida disso:
no efeito que ela alcança, o mais das vezes, com os filósofos e os ele sabe que, apesar de tudo, jamais nenhum desses outros ho­
artistas! Como é raro que ela produza agora um efeito apenas mens compreenderá e amará tanto sua obra tal como ele a com­
que fosse! Com relação ao filósofo em particular, grande é sua preende e ama. Este grau elevado e único de amor e compreensão
dificuldade para fazê-lo servir ao interesse comum; seus meios é, portanto, necessário, segundo a inepta disposição da natureza,
parecem ser outros tantos ensaios, inspirações arriscadas, tanto para que um grau inferior venha a surgir; o que é maior e mais
que ela se frustra muitas vezes na sua intenção, e a maioria dos nobre é empregado no nascimento do que é menor e sem nobreza.
filósofos não se torna de utilidade comum. O comportamento da A natureza é má economista, suas despesas são bem maiores do

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)
236 Escritos sobre Educação l t e
! que as receitas que ela consegue; apesar da sua abundância, ela sua ão ão se fez de fato s tir! E mais do que ninguém, seus
' tJacabará um dia por se arruinar. Ela tomaria disposições mais verdadeiros inimigos literários, aqueles que ladram no seu encal­
razoáveis, se sua regra interna fosse: poucos gastos e um lucro ço, terão tido a honra de impedir esta ação, em primeiro lugar,
multiplicado, se, por exemplo, houvesse apenas poucos artistas, e porque há muito pouca gente que aguenta lê-los e, em segundo
estes ainda com as forças mais fracas, mas, ao contrário, houvesse lugar, porque eles remetem diretamente a Schopenhauer aquele
muitos espíritos acolhedores e receptivos, justamente aqueles de que �a esta �eitura; pois, quem um dia se deixou enganar
uma espécie mais forte e mais poderosa, que não é propriamente por um asno em vez de subir num bom cavalo, exaltando mesmo
a dos artistas: de sorte que, em relação à causa, o efeito da obra fortemente seu asno em detrimento do cavalo?
de arte seria um eco cem vezes multiplicado. Ou antes: não se Aquele, então, que reconheceu o que há de desrazão na na­
deveria pelo menos esperar que a causa e o efeito tivessem a mes­ tureza desta é oca deve refletir nos meios de fornecer para ela
ma força?! Como a natureza é partidária desta opinião! Parece algun e�ios; sua tarefa será a de apresentar Schopenhauer --..
' ) muitas vezes quet;m artista 1 e sobretudo um filósofo, existiria aos �ritos livres e àqueles que sofrem rofundamente co�m nos- f>
por acaso na sua época, como um solitário ou como um viajante- sa época, reuni-los e produzir através deles uma corrente cuja
C-: extraviado e atrasado. Que se leve a peita representar de uma vez força deverá vencer a inépcia da qual a natureza dá comumen­
por todas a grandeza absoluta e total de Schopenhauer em todos te prova, e hoje ainda, na utilização do filósofo. Tais homens
os domínios - e a exiguidade, a desproporção do seu efe� Nada compreenderão que estas são as mesmas resistências que criam

--
pode ser mais humilhante para um homem honesto desta época obstáculo ao efeito de uma grande filosofia e que entravam a
do que dar-se conta de que Schopenhauer tem a aparência 4e nela produção de um grande filósofo; além disso, eles poderão dar­
se encontrar por acaso e que a algumas forças e impotências se se como objetivo preparar o renascimento de Schopenhauer, em
deveu o fato de que até agora sua ação tenha sido tão truncada. outras palavras, o ressurgimento do gênio filosófico. Mas o que
No início e durante muito tempo, para a vergonha permanente se opõe desde já ao efeito e à propagação da sua doutrina, o que
do nosso século literário, foi a falta de leitores ue o re·u�u; pretende enfim fazer frustrar, por todos os meios, este renasci­
depois, tendo chegado os leitores, veio também a inconveniência mento do filósofo é, para dizê-lo em duas palavras, a insanida-
daqueles que primeiro testemunharam a seu favor publicamen­ de da natureza humana atual: razão pela qual todos �s grand�s /
/
te; mais ainda, assim me parece, a insensibilidade de todos os �omens que virão devem dispensar uma energia incrível, para s9
homens modernos com relação a livros que eles não querem ab­ livrarem eles próprios desta insanidade. O mundo no qual eld
solutamente mais levar a sério; pouco a pouco, juntou-se a isso vivem agora está coberto de tolices; na verdade, somente a ne-
ainda um novo perigo, nascido das muitas tentativas de fazer uma cessidade de dogmas religiosos, e há também estas
correspondência entre Schopenhauer e a fra ueza da época, our com o ".12rogresso", "cultura geral", caráter "nacional", " stado (1 J J
mesmo de incorporá-lo como uma especiaria estranha e sedutora, \1 moderno", "Kulturkampf"42; pode-se mesmo dizer que todas as
uma espécie de pimepta�tafísica. Sem dúvida, assim, ele che­ ' palav ras com significado geral carregam hoje consigo uma afe-
gou pouco a pouco à notoriedade e à celebridade, e eu acredito
que a partir de agora as pessoas conhecerão mais o seu nome do 42. "Kulturkampf": lireralmente "Luta pela Cultura". Nome dado à guerra contra
que o de Hegel: e, no entanto, ele é ainda um solitário, e até hoje O clero católico que Bismarck levou a cabo na Alemanha através das leis de 1873.

,<...;_
238 Escritos sobre Educação

tação artificial e antinatural; também uma posteridade mais es­ sua mãe e lhe deu a primeira coisa de que um filósofo precisa:
c.' ,clarecida rejeitará mais energicamente nossa época, por ter sido
- uma virilidade inflexível e rude. Este pai não era nem um funcio­
i
ela uma época defeituosa e simulada, por mais forte que seja a nário nem um intelectual: muitas vezes, ele viajou com o jovem
ostentação que façamos da nossa "saúde". A beleza dos vasos filho a países estrangeiros - o que é muito vantajoso para aquele
ntigos, diz Schopenhauer43 , brota do fato de que eles exprimem que quer conhecer não os livros�s os homens, que não precisa
om uma grande ingenuidade o que são e seu objetivo; e ocorre aprender a respeitar um governo, mas a �Felizmente, ele
assim também com todos os outros utensílios dos Antigos: na estava munido da índiferença com relação às limitações nacio- .,,;
sua presença, se percebe que, se a natureza produzisse vasos, ân­ nais, até se mostrar mesmo muito rigoroso contra elas; ele morou
foras, lâmpadas, mesas, cadeiras, elmos, escudos, couraças etc., na Inglaterra, na França, na Itália, quase tanto quanto no seu pró­
estas coisas teriam exatamente este mesmo aspecto. Inversamen­ prio país, e não simpatizava pouco com o espírito espanhol. No
te, aquele que observe como quase todo mundo hoje lida com a fundo, ele não achava que fosse exatamente uma honra ter nas­
arte, com o Estado, com a religião, com a cultura - para não fa­ cido entre os Alemães: e não sei mesmo se ele mudou de opinião
lar, e com razão, dos nossos "vasos" - es� encontrará os homens nas novas condições políticas em que vivíamos. Sabe-se que, em
C mergulhados num certo barbarismo arbitrário e num exagero da relação ao Estado, ele c�nsiderava que seus únicos fins deviam ser f/
_ _
expressão, e, para o gênio que virá, este é precisamente o prin­ o de assegurar a proteçao externa, a proteçao mterna e a proteção \
cipal obstáculo que está em curso nesta época, cheia de noções contra os protetores, e que atribuindo-lhe outros fins que não a
tão excêntricas e necessidades tão quiméricas: estes são os pesos proteção, poder-se-ia facilmente colocar em perigo seu verdadeiro
de ferro que tão frequentemente, invisíveis e inexplicáveis, fazem objetivo; além disso, para o terror de todos os pretensos liberais,
dobrar a mão quando se quer guiar a charrua - de tal sorte que, legou seus bens de direito aos soldados prussianos tombados em

---
mesmo as suas obras mais elevadas, precisamente porque são 1848 pela defesa da ordem. Daí por diante, é provável que fosse
elevadas à força, devem também carregar consigo, até um certo sempre mais um sinal �e superioridade intelectual que alguém
ponto, a marca desta violência. quisesse tratar com pouco interesse o Estado e seus deveres; pois f
Quando agora busco reunir as condições graças às quais, no aquele que tem o furor philosophicus 44 em si próprio não terá \
melhor dos casos, um filósofo nato não é, pelo menos, esmagado absolutamente mais tempo para o furor politicus 45 e se absterá sa­
por esta\Ínsanidade da época, observo algo de singular: são em biamente de ler jornais cotidianamente, ou mais ainda, de servir
parte as condições nas quais, em geral pelo menos, o próprio a um partido; no entanto, ele não hesitaria nem um momento em
Schopenhauer cresceu. É verdade também que as condições ad­ assumir seu posto no caso de seu país estar realmente ameaçado.
versas não estiveram ausentes: foi assim que, na pessoa de sua Todos estes Estados, onde outros homens que não os estadistas
mãe vaidosa e bem dotada, esta insanidade da época se aproxi­ é que se encarregam da política, todos estes Estados são mal­
mou dele de uma maneira terrível. Mas a liberdade republicana organizados, e merecem morrer pelo número de seus políticos.
do orgulhoso caráter de seu pai de alguma maneira o salvou de
44. Em latim no texto, significando "inspiração filosófica".

43. Schopenhauer, Parerga, 2,460 \Nota da edição francesa!. 45. Em latim no texto, significando "inspiração política".

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1.. \, I..Y
....,.....,._ .. ..., .............. -T-� --------C" -- -
240 Escritos sobre Educação

um a coisa mais e levada ainda : uma cena terríve l .e supramunda ­


Schopenhauer, na
Um outro grande pr ivilégio foi atribuído a na do julgamento, onde toda vida, quer fosse ela a mais elevada
ado para ser um
medida em que ele não foi previamente orient ou a mais p er feita, teria sido p esada e avaliada como muito leve?
ea lmente trabalhou
er udito ou educado com �ção; e ele r Ele vira o Sagrado como o juiz da existência. É impossível definir
gosto, num escr itório
durante algum temp o, mesmo que a contra com que precocidade S chop en hauer ti n ha p e rcebido esta imagem
e r espi rou durante toda a sua
juven­
comercial, e , em todo caso, el
ércio. Um eru dito da vida, tal exatamente como ele tentou mais tarde r!:l)roduzi-la
tude q ar mais pu ro de uma grande casa de com em to dos os seus escr itos: é possível demonstrar que, enquan ­
róprio Kant não o
não se tornaria jamais um filósofo: po is o p to jovem e , gostaríamos de acreditar, mesmo quando era ainda
i nato do seu gênio; ele permaneceu
l'
conse gui u, ap esar do impulso
uma criança, tivera ele já esta v.i..sfu>-p.r.odigiosa. Tudo do que ele
até o fim numa espécie de es
t ado de crisálida . Quem acreditar
se apropriou dep ois, da vida, dos livros e de todos os domínios
Kant não sab e o
que com estas palavras sou inj usto para com da ciência não foi absolutamente para ele senão co e meio de
que é um grande
que é um filósofo: quer dizer, não somente o expressão ; inclusive , em relação à filosofia k antiana, ele se apo­
do foi que vimos
pensador, mas também um ho mem real; e quan derou dela sobretudo como um instrumento retórico extraordi­
. Quem d eixa que se
C:)um er udito to rnar - se um orn em autêntic ná_rio, com o qual acred itava exprimir -se ainda ma is claramente
es , as opiniões,
interponham e ntr e si mesmo e as coisas as noçõ a propósito desta imagem : tal como, com o mesmo obj e tivo, e le
os acont ecimentos do passado,
os livros, qu em por tanto, no sen­
se valeu, na ép oca, da mitologia budista e cr istã. Ele somente to ­
r i a , este não verá
tido mais amplo do termo , nasceu para a histó mou para si uma ú nica tarefa e um milhão de me ios para resolvê­
j amais ele próprio
jamais as coisas pela primeira ve z e não será la: um ú n ico sentido e inú meros hieróglifos para expressá-lo.
uma dessas coisas qu e se vê
p ela pr imeira vez; mas ambas as
É uma das magníficas qualidades de sua e xi stência que ele
mente no filósofo, porque é p
reciso
coisas se combi nam rec ipr oca t�nha p odido rea lmente consagrar su a vi da a uma tal tarefa, de
, e porque ele faz
que ele tire de s i mesmo o maior ensina mento acordo com sua d ivisa de vitam impendere vero 46 , e que nenhu ­
unive rso. Quando
uso para si mesmo d a imagem e do resumo do ma vulgaridade própria dos necessitados da vida o tenha arr ui­
alguém se vê através da interme
di ação de opiniões alheias, não
nado - sabe - se de qu e maneira grand iosa ele agradeceu i sto a
a senão - o piniões
é de admirar que ele não vej a em si outra cois seu pai - embora na Alema nha o teór ico não impon ha muito
os . S chop en h auer,
alheias ! É assim que são, vive m e veem os erudit frequentemente sua vocação cie ntífica, s enão à custa da pureza

-
el de ver o gênio de
\ ao contrário, teve uma felicid ade indescritív do seu caráter, como "canalha resp eitoso ", ávido de lugares e de
de si, em G oe th e :
per to, não somente em si, m as também fora honrarias, pr udente e fl e xível, lisonjeiro para com as p essoas in­
esta dupla re fle xão o in formou
e preveniu profundamente contra fluentes e para com seus sup eriores. Infelizmente, S chopenhauer
s e ruditos. Graças
todos os obje tivos e contra todas as c ulturas do jamais ofe n deu tanto os er ud itos do que quando se mostrava
a esta e xperiência , e le soube co
mo devia ser constr uído o homem como sendo o oposto deles.
tica ; p oder i a
livre e forte, que é a aspiraçã o de to da cultur�
esfrut ar a in da de qualquer prazer
ele, de p ois de ter visto isto, d
a p edante ou hipócrita do h o m
em 46. Em latim no texto, significando: "consagrar sua vida à verdade". Exergo de Pa­
em se de dicar ao que , à maneir rerga et paralipomena de Schopenhauer, segundo Juvenal.
moder n o , se chama de " ar te "?
Não tinha ele também pe rcebido
242 Escritos sobre Educação \....,Ull:)IU\,,i. d\c:lV J.I IL\.,Jlt }-'\..�li Y a . ..J\.,11V_tJ'-H''-" ._.._ ... .._,.._.,.......,._.....,...., ..

8 � da�ras; Sócrat�s, c�:11º se sabe, c�iu vítima da cólera dos ']


9
pais, acusado que foi de corromper a Juventude"; e, por estas
Acabamos de enumerar algumas das condições que tornam pelo mesmas razões, Platão achava necessária a edificação de um Es­
menos possível à nossa época o ín�nto do gênio filosófico, tado inteiramente novo, para não fazer depender o nascimento
apesar das nefastas influências contrárias: liberdade viril do ca­ do filósofo da irracionalidade dos pais. Ainda hoje, parece que
ráter, conhecimento precoce dos homens, educação que não visa Platão teria conseguido realmente algo. Pois o Estado moderno
computa daí por diante, entre suas tarefas próprias, incentivar
�" a formação de um erudito, ausência de qualquer estreiteza patri-
\ ótica, de qualquer obrigação de ganhar seu pão, de obediência a filosofia, e busca constantemente atribuir a certos homens esta
ao Estado - em suma, �ade, sempre liberdade: este mesmo "liberdade" na qual vemos a condição essencial da gênese do
? < elemento, extraordinário 'e perigoso no seio do qual os filósofos filósofo. Ora, Platão teve uma má-sorte extraordinária na his­
gregos puderam crescer. Quem queira acusá-lo do que Niebuhr47 tória: toda vez que se viu nascer uma forma que correspondia
reprochou em Platão, de ter sido um mau cidadão, que o faça, ao essencial das suas propostas, esta era sempre, vendo mais de
mas que ele próprio seja um bom cidadão: assim ele teria razão e perto, tão somente o filho espúrio de um demônio malicioso 48
Platão também. Outro interpretará como arrogância esta grande que tomava o lugar desta forma, um horrendo aborto; assim
liberdade: este também tem razão, porque ele próprio não po­ como foi, por exemplo, o Estado teocrático medieval, comparado
deria empreender nada de bom com esta liberdade e porque se ao reino que ele imaginava ser a obra dos "filhos dos deuses". O
mostraria certamente muito presunçoso se a reivindicasse para . Estado moderno, é verdade, está mais do que nunca longe de es­
si. Esta liberdade é, na realidade, um grave pecado; e este só co er para s1 filósofos como governantes - Deus seja louvado!,
pode ser expiado pelas g_randes obras. Na verdade, qualquer co­ acre�centariam os cristãos: mas, mesmo quanto a este fomento
mum dos mortais tem o direito de olhar com indignação irritada da filosofia pelo Estado, tal como ele a compreende, seria pre­
_um homem assim privilegiado: mas que um deus o guarde de ser ele ciso examinar mais de perto se ele a entende propriamente no
/' próprio um dia privilegiado, quer dizer, comprometido com tão ter­ sentido platônico, quer dizer, se coloca nisso tanta seriedade
ríveis deveres. Ele sucumbiria logo por causa da sua liberdade e da e sinceridade, como se seu desígnio supremo fosse engendrar
sua solidão, e, por causa do tédio, ele ficaria louco, e louco furioso. novos Platões. Se habitualmente o filósofo aparece como algo
Pode ser que este ou aquele pai ouça algo do que se acaba contingente na sua época - estaria o Estado verdadeiramente 1
de dizer e saiba fazer disso algum uso para a educaç_ãq_privada comprometido em tomar para si a tarefa de transformar cons­
do seu filho; ainda que não se deva esperar que os pais queiram cientemente esta contingência em necessidade e, nesse caso,
ter como filhos unicamente filósofos. É provável que em todas ta mbém vir em ajuda à natureza?
as épocas fossem os ais os que mais ferozmente se opuseram
48. Não encontrei para este termo "cobold" uma tradução no Grande Dicionário
à vocação filosófica de seus filhos, como se esta fosse a maior Francês/Português de Domingos de Azevedo, nem no Dictionnaire de la Langue Fran­
çaise, Le Petit Robert Grand Format. No entanto, no verbete cobalt, encontrei: mi­
47. Bertolt Georg Niebuhr l 1776-183 li: historiador alemão que escreveu uma His­ neral [cobalto], do alemão Kobalt, variante de Kobald "lutin". Para o termo "lutin":
tória Romana, onde tentou extrair verdades das lendas fantásticas apresentadas p or Netuno, monstro marinho, demônio malicioso que se apresenta à noite. Encontrei
Tito Lívio. numa tradução espanhola o termo "duende".
e
Escritos sobre Educação Consideração Intempesti d Schopenhauer Educador 245
244
.
A ex en ·a nos ensina infelizmente o que ela tem de me- caminho. Eu imaginar ia antes para mim este grau de orgulho e
lhor-=.,ou de pioll: ela d iz que nada se opõe mais à produção e de autorrespeito que permite a um homem d izer a seus contem­
à perpetuação dos que são grandes filósofos por natureza, do porâneos: "Cuidem de mim, pois, quanto a mim, tenho coisa
\ que os maus filósofos pela graça do Estado. Não seria este um melhor a fazer, quer dizer, tenho de cuidar de vocês." Em Platão
argumento molesto? Aquele mesmo argumento, como se sabe, e em Schopenhauer, esta grandeza de sentimento e de exp!essão
sobre o qual Schopenhauer inicialmente lançou o olhar, no seu não causaria surpresa: por causa disso, eles poderiam até mesmo
famoso tratado s� a filosofia universitária. Retorno a este ar­ ser filósofos un iversitários, tal como Platão foi por um tempo
gumento: pois é preciso obrigar os homens a levá-lo a sério, quer filósofo de corte, sem aviltar contudo a dignidade da filosofia.
dizer, para que, por seu intermédio, se sintam induzidos a agir ; Mas .J(ant ao contrário, se mostrava respeitoso, serv il e sem
e considero como inútil qualquer palavra que tenha sido escrita grandeza nas suas relações com o Estado, assim como nós ou­
sem ter como respaldo esta incitação à ação; é bom, em todo tros, os eruditos, temos o costume de sê-lo; de tal maneira que,
caso, demonstrar uma vez mais os princípios eternamente váli­ em todo caso, se a filosofia universitária precisasse um dia ser
dos de Schopenhauer, e isto justamençe para a crítica de nossos acusada, não seria ele quem poderia justificar esta acusação. Mas
contemporâneos mais próximos, pois um homem benevolente se há naturezas - como aquelas justamente de Schopenhauer e
poderia pensar que, a part ir das graves acusações que ele fez, de Platão - que poderiam justificar esta denúncia, eu só temeria
tudo mudou para melhor na Alemanha. Nem mesmo este ponto uma coisa: que eles jamais teriam 9cas ião de fazê-lo, porque um
insignificante sua obra alcançou. Estado não ousaria nunca favorecer tais homens, colocando-os
Vista mais de perto, esta "liberdade", com a qual, como disse em tal posição. Por quê? Porque todo Estado tem receio deles, e
já, o Estado atualmente contempla alguns homens em benefício só favoreceria os filósofos de quem ele não tivesse medo. Ocorre
da filosofia, isto não tem mais nada de liberdade, é somente um de fato que em_ eral o Estado tem medo da filosofia, eqtão, neste
ofício que alimenta seu empregado. O incentivo dado à filoso­ caso, ele buscará, cada vez mais atrair para si o ma ior número
fia consiste então unicamente em que, em nossos dias, o Estado de filósofos que puder, o que lhe confere a ilusão de ter a filosofia
permite, pelo �enos a um certo número de homens, viver de s�a do seu lado - e assim ele tem ao seu lado estes homens que se
filosofia, fazendo dela seu ganha-pão; enquanto que os antigos valem dela, mas não inspiram nenhum medo. Mas, se aparecesse
sábios da Grécia, longe de serem subvencionados pelo Estado, um homem que realmente tivesse a intenção de tudo atacar, aí
eram quando muito honrados, às vezes, como Zenão, com uma compreendido o Estado, com o cutelo da verdade, o Estado esta­
coroa de ouro ou um monumento funerário no Cerâmico49 • Con­ ria no direito, porque é sobretudo a sua ex istência que ele afirma,
tudo, eu não poderia dizer em geral se servir a verdade é mostrar de excluir este homem e tratá-lo como inimigo, assim como ele
um caminho que autoriza viver dela, porque tudo depende aqui excluir ia e trataria como inimigo uma rel igião que se colocasse
acima dele e qu isesse ser seu juiz. Se alguém ace ita, então, ser
da natureza e da qualidade do indivíduo a quem se atribui este
filósofo por concessão do Estado, é preciso também que aceite
ser considerado por este como se tivesse desistido de perseguir a
49. Cerâmico: bairro de Atenas que recebeu este nome provavelmente porq ue aí se verdade nos seus últimos refúgios. Pelo menos, enquanto estiver
encontravam muitas olarias. Neste bairro está a famosa necrópole da Pólis.

' \
246 Escritos sobre Educação

sendo favorecido e enquanto tiver u m emprego, ele deve ainda


\ reconhecer algo que é superior à verdade, isto é, o Estado. E não
somente o Estado, mas ta mbém, ao me smo tempo, t udo aquilo
homens deter minados, a aí exercerem uma ativid ade determina -
da; _eles têm de instr uir, todos os dias, em horários fixos, todos )
os jovens acadêmicos que manifestem desejo de instrução . Uma :..<
-··
,,/'

que o Estado exige n o seu próprio interesse: por exempl o, uma questão: poderia p ropriamente um filósofo, conscientemente,
forma determinada de religião, de o rdem social, de organização comprometer- se em ter todos os dias algo para ensinar? E ensi-
milita r - todas as coisas sobre as quais se inscreve um Noli me nar isto a qua lq uer um que queira o uvi-l o ? Não deve ele dar uma
tangere50• Algum filósofo u niversitário se deu alguma vez conta, aparênc1aãesaber mais do que sabe? Não deve ele falar, diante
claramente e em toda s ua extensão, das suas obrigações e limita- de um auditório desconhecido , sobre coisas das quais somente
\ ções? Eu não sei: se alg uém o fez e ainda assim tenha permanecido poderia falar sem risco diante dos seus amigos mais próximos?
como funcionário do Estado, trata-se aqui em todo caso de um E, em geral, não se des pojaria ele da sua mais magnífica lib er­
mau amigo da verdade; se não o fez j amais - bem, então eu pen­ dade, aquela de seguir seu gêni o, quando este o ch ama e para
saria, nesse caso também, que ele não ser ia um amigo da verdade. onde o chama ? - por estar comprometido a pensar publicamen-
Tal é o escr úpu lo mais geral; contudo, enquanto ta"fepãra te, em h oras determinadas, em coisas já fixadas previamente. E
os h omens de agora, ele é também certamente o mais fraco e o -
isto diante g_e_j.mlens! Um tal pensamento não está, de a ntemão'
como que emasculado? E se por acaso, num belo dia, ele tivesse
mais indiferente. Para a maioria deles, bastaria dar de ombros e
dizer: "C o m o se alguma vez alguma co isa de grande e de puro a seguinte percepção : hoje, não posso pensar nada, nada de inte-
pude sse existi r e se manter sobre a ter ra sem fazer concessões à ligente me vem ao espírito - e apesar disso, tivesse de ocupa r seu \
baixeza hu mana! Prefer i r i am você s , então, que o Estado perse­ posto e parecer pensar!?
guisse o filósofo, em vez de pagar a ele um soldo e tomá-lo �seu Mas, me seria objetado, não se t r ata aqui absolutamente de
ser viço?" Sem responder imediatamente a esta última pergu nta, um pensador, quando muito, de alguém que deve re fleti r sobre l
a�entaria apenas q ue atu almente estas concessõe s da filoso ­ <;_pensamento de outro ou repeti-lo, e sobretudo deve ser o co- \
fia ao Estado vão já longe demais . Em primei ro lugar, o E stado nhecedor erudito de todos os pensadores qu e o precede ram: ele
esc olhe para si seus servidores filósofos e, para dizer a verdade, sempre p oderá contar a res peito destes algo q ue seus alunos não
os escolhe na medida em que tem necessidade deles pa ra suas saibam. - Está aí justamente a terceira e mais perigosa conces-
instit uições; ele dá assim a aparência de saber disting u i r entre são que a filosofia faz ao Estado, q uando se atrela a ele pa ra
os bons e os maus filósofos; mais ainda, pressupõe que haverá manifestar-se em primei ro lugar e principalmente o er udi­
sempre bons e m q u antidade suficiente para prover todas as su as ção. Sobretudo enq uanto conhecimento da história da filosofia;
disciplinas acadêmicas. É ele q ue tem agora a autoridade, não ao passo que para o gênio que, semelhante ao poeta, olha as
somente q uanto à q ualidade , mas também qua nto ao número coisas com um olho pu ro e apaixonado e se esforça sempre em
necessário destes bons filósofos . Em segundo lugar, ele obriga se integrar mais profundamente a elas, esta maneira de escavar
aqueles que escolhe a per manecer num lugar deter minado, entre em inúmeras opiniões alheias e absurdas acaba sendo a mais re­
pugnante e menos oportun a das ocupações. A história erudita
do passado jamais foi o afazer de um verdadeiro filósofo, nem na
50. Em latim no t e xto, significando "Nada me atinge ".
248 Escritos sobre Educação
i�
Índia, nem na Grécia; e um professor de filosofia, quando está
Lons1deraçao 1ntempest1va: ::,cnopennauer c.uu1.:auu1

universidades: sempre se ensinou apenas a crítica das palavras


L""t.7

ocupado com um trabalho desse gênero, deve se contentar com pelas palavras. E agora, que se imagine uma mente juvenil, sem
que se diga dele, no melhor dos casos: "É um bom filólogo, um muita experiência de vida, em que são encerrados confusamente
bom especialista dos antigos, um bom linguista, um bom histo­ cinquenta sistemas reduzidos a fórmulas e cinquenta críticas des­
riador" - mas nunca: "É um filósofo." E isto apenas tomando as tes sistemas - que desordem, que barbárie, que escárnio quando
coisas pelo melhor lado possível, como já observei; pois, diante se trata da educação para a filosofia! De fato, todos concordam
da maior parte dos trabalhos eruditos realizados por filósofos de em dizer que não se é preparado para a filosofia, mas somente
universidade, um filólogo tem o sentimento de que são mal-cons­ para uma prova de filosofia, cujo resultado, já se sabe, é normal­
tituídos, sem rigor científico e que exalam muito frequentemente mente que aquele que sai desta prova - eis que é mesmo uma
um detestável tédio. Quem, por exemplo, libertará a história dos provação - confessa para si com um profundo suspiro de alívio:
filósofos gregos dos vapores soporíferos que derramaram sobre "Graças a Deus, não sou um filósofo, mas um cristão e um cida­
eles os trabalhos eruditos, porém, não muito científicos e infeliz­ dão do meu país!"
mente bastante fastidiosos, de Ritter, de Brandis e de Zeller? Eu, �se este suspiro de alívio fosse justamente a intenção do Es­
pelo menos, prefiro mais ler Diógene's Laércio51 do que Zeller, tado, e se a "educação para a filosofia" não consistisse senão
porque naquele pelo menos vive o espírito dos filósofos antigos, em afastar-s_e dela? Esta é uma questão que deve ser colocada.
enquanto que neste não vive nem este espírito, nem qualquer ou­ - Mas, se fosse assim, somente haveria uma coisa a temer: que um
tro. E afinal de contas, o que importa a nossos jovens a história belo dia a juventude descobrisse, afinal, com que propósito, para
da filosofia? Devem eles ser desencorajados a ter opiniões, diante falar propriamente, se comete tal abuso contra a filosofia. O fim
do montão confuso de todas as que existem? Devem eles também supremo, a criação do gênio filosófico, não seria somente um pre­
ser ensinados a entoar cantos jubilosos pelo muito que já tão texto? Acaso o objetivo não seria justamente o de impedir o nasci­
magnificamente construímos? Devem eles por ventura aprender mento dele? Transformar o sentido num absurdo? Então - maldita
a odiar e desprezar a filosofia? E se ficaria quase tentado a pensar seja esta união complexa da inteligência de Estado e do magistério!
nesta última alternativa, quando se sabe como, por ocasião dos Semelhante coisa já não se teria, por acaso, tornado notória?

J
seus exames de filosofia>s estudantes têm de se martirizar, para Eu não sei; em todo caso, a filosofia universitária afundou num
imprimir nos seus pobres cérebros as ideias mais loucas e mais desprezo geral, numa sus eita era!. Em parte, isto se deve ao
impertinentes do espírito humano junto com as mais grandiosas fato de que hoje em dia é exatamente uma raça débil que reina
e as mais difíceis de captar. A única crítica de uma filosofia que é sobre as cátedras; se Schopenhauer pudesse escrever hoje o seu
possível e que além disso é também a única que demonstra algo, discurso sobre a filosofia universitária, ele não teria necessidade
quer�er, aquela que co_:1siste em experimentar a possibilidade de uma clava para vencer, um junco lhe bastaria. Foi sobre estas
d� esta filosofia jamais foi ensinada nas cabeças bicórneas dos herdeiros e dos descendentes destes epígo­
nos que ele aplicou seus golpes: seu aspecto é suficientemente in­
51. Diógenes La ércio jséculo Ili a .C. J: histori a dor grego, a utor de uma biografia dos fantil e minúsculo, para que lembremos o provérbio hindu: "Os
filósofos gregos. Diógenes Laércio é uma fonte importantíssima dos trabalhos de
Nietzsche sobre a Antiguidade Grega. homens nascem, de acordo com suas ações, estúpidos, mudos,

e 1
( ) (\\ \
250 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 251

surdos, disformes." Estes progenitores mereceram uma tal pos­ pequena metafísica - com as consequências habituais: enjoo, do­
teridade, de acordo com suas "ações", como dizia o provérbio. res de cabeça e hemorragias nasais. Depois que esta viagem na
Está portanto fora de dúvida o fato de que a juventude acadêmi­ neblina e nas nuvens se mostrou para eles muito frequentemente
ca se eximirá muito rapidamente da filosofia que se lhe ensina malsucedida, depois que a todo momento um discípulo rude e tei­
nas universidades, e que os homens que se formaram fora da aca­ moso das verdadeiras ciências os agarrou pelos cabelos e os jogou
demia já se eximiram dela muito bem. Basta que nos lembremos ao chão, seu rosto tomava habitualmente a expressão do pudor
apenas dos nossos próprios anos de estudante: para mim, por ferido e a aparência daqueles que são surpreendidos em flagrante
exemplo, os filósofos acadêmicos foram pessoas absolutamente delito como embusteiros. Eles perderam completamente sua ale­
indiferentes, cuja atividade consistia em elaborar algo a· partir gre certeza, de modo que nenhum deles vive mais, por pouco que
dos resultados das outras ciências, ler os jornais nas suas horas seja, para o amor de sua filosofia. Outrora, alguns acreditavam
de lazer e frequentar os concertos; pessoas, não obstante, que poder inventar novas religiões ou substituir as antigas por seus
eram tratadas por seus confrades com um desprezo cortesmente sistemas; hoje, esta arrogância não existe mais: a maioria se cons­
mascarado. Não se tinha dúvida a respeito do seu pouco saber titui de pessoas piedosas, tímidas e confusas, jamais corajosas
e de que não hesitariam em apelar para argumentos obscuros como Lucrécio52, nem enraivecidas com a opressão que caiu sobre
quando se tratava de encobrir esta sua falta de saber. Além disso, os homens. Nem sequer se pode mais aprender com eles o pen­
eles frequentam de preferência estas regiões crepusculares, onde samento lógico, e foi porque fizeram uma tal apreciação das suas
um homem dotado de olhar esclarecido não suportaria demorar forças, que aboliram os exercícios de dis uta outrora comuns 53 •
por muito tempo. Um objetaria às ciências da natureza: nenhu­ Hoje, sem dúvida, do lacfo das ciências particulares, se é mais ló­
ma delas pode me explicar absolutamente o mais simples evento, gico, mais prudente, mais modesto, mais inventivo, em suma, se
por que me importar então com todas elas? Outro diria a respei­ age mais filosoficamente do que naqueles que se autodenominam
to da história: "Ela não diz nada de novo a respeito daquele que filósofos; por isso, também, todo mundo estaria de acordo com
possui as ideias." - Em suma, eles encontram sempre razões para este inglês livre de preconceitos, Bagehot, quando ele afirma a
justificar que é mais filosófico nada saber do que aprender algo. respeito destes modernos construtores de sistemas:
Mas, logo que se põem a estudar, seu impulso secreto é fugir das
ciências e fundar, numa qualquer de suas lacunas e de suas regiões Quem não está convencido, quase de antemão, de que suas
premissas encerram uma singular mistura de verdade e de
pouco exploradas, um obscuro reino. Além disso, eles não se an­
tecipam mais às ciências, senão no sentido em que a caça precede
os caçadores que a perseguem. Recentemente, eles se satisfaziam 52. Lucrécio I:,, 98-55 a.C.J: poeta latino, escreveu De Rerum Natura. Depois de se
em afirmar que eram, a bem da verdade, somente os guardas de tornar apóstolo do materialismo de Epicuro, suicidou-se.

fronteira e os vigias das ciências; eis para o que sobretudo lhes 53. Nietzsche atribui como uma das características distintivas dos Gregos, que faz
deles um povo extraordinário em comparação com os modernos, a "disputa" JErisJ.
serve a doutrina kantiana, que eles se empenham em transformar Ver a esse respeito, Cinc préfaces à cinc livres qui n 'ont pas été écrits: "La joute chez
num ceticismo ocioso, do qual logo ninguém se ocupará mais. Homere", in Ouevres, Écrits posthumes: 1870-1873; pp.192-200. Há uma publica­
ção em português deste escrito: Cinco Prefácios para Cinco Livros Não-Escritos J Ed.
Somente de vez em quando, um deles alça ainda voo para uma Sette Letras, Rio de Janeiro, 1996J.
252 Escritos sobre Educação Lons1aeraçao inrempesnva: :>cnopennauer r.aucaaor L).)

erro e que consequentemente não vale a pena refletir nas suas com a filosofia, quando estes rentistas do pensamento se sentiam
consequências? A forma acabada, a realização destes sistemas muito felizes por terem de renunciar voluntariamente à indepen­
talvez atraiam a juventude e impressionem as pessoas inexpe­
dência; mas logo que eles caem inesperadamente nos braços des­
rientes, mas os homens cultivados não se deixarão fascinar
por isso. Estes homens estão sempre prestes a acolher favora­ tes batedores ou mostram a intenção de prender neles uma corda
velmente sugestões e pressupostos, e a menor verdade lhes é para estarem eles mesmos seguros, estes batedores imediatamen­
bem-vinda - mas um grosso livro, todo de filosofia dedutiva, te se agitam com a maior fúria possível, como para dizer: "Era
provoca neles a desconfiança. As pessoas com temperamento só o que faltava, que estes rentistas do ensamento queiram tam­
sanguíneo compilam apressadamente muitos princípios abs­
bém manchar as ciências da natureza ou a história! Para fora!"
tratos não demonstrados e os inserem cuidadosamente, em
toda sua extensão, nos livros e nas teorias, a fim de extrair Assim, eles recaem, titubeantes, na sua própria incerteza, na sua
deles uma explicação do universo. Mas o mundo não se im­ própria confusão: eles querem de fato ter nas mãos um pouco de
porta com estas abstrações, e isto não é estranho, pois elas se ciência natural, sob a forma de psicologia empírica, e como os
contradizem umas às outras. herbartianos 56, eles querem de fato também um pouco de histó­
ria - pois, então, poderiam pelo menos aparecer publicamente,
Se outrora os filósofos, na Alemanha particularmente, esta­
como alguém que se ocupa de ciência, ainda que, secretamente,
vam mergulhados em tão profundas meditações, que permanen­
eles mandem ao diabo toda a filosofia e toda a ciência.
temente corriam o risco de bater com a cabeça no primeiro poste
Mas, uma vez admitido que este bando de maus filósofos é
que aparecesse, agora, se tem o cuidado, como conta Swift 54 a ridículo - e quem não o admitiria? - em que medida não seriam
propósito dos laputianos55 , de lhes fazer escoltar por todo um eles também nocivos? Para responder brevemente: na medida em
grupo de batedores, para que eles lhes deem, chegada a ocasião, que eles fazem da filosofia uma coisa ridícula. Enquanto conti­
um leve toque nos olhos ou em qualquer outra parte do corpo. nue a existir este pseudopensamento reconhecido pelo Estado, a
Ocorre às vezes que estes toques são um pouco fortes demais, ação grandiosa de uma verdadeira filosofia será malograda, ou
então, estes sonhadores na terra esquecem de si até despertarem pelo menos se encontrará entravada pela simples existência desta
de sua letargia - o que sempre redunda na sua confusão. "Não
1 vês então o poste, imbecil!", replicam os batedores - e de fato o
maldição do ridículo que os representantes desta grande causa
atraíram, mas que toca à própria coisa. Por isso digo que é uma
filósofo aprende a ver melhor o poste e se tranquiliza. Estes ba­ necessidade da cultura privar a filosofia de ualguer reconheci­
tedores que avisam são as ciências naturais e a história; pouco a mento do Estado e da Universidade e dispensar absolutamente o
pouco, elas se imiscuíram tanto nesta economia alemã do sonho Estado e a Universidade da tarefa insolúvel para ambos de dis­
e do pensamento, que durante muito tempo foram confundidas tinguir entre a verdadeira filosofia e a filosofia aparente. Deixem

54. Jonathan Swift l 1667-1745 J: escritor irlandês de uma família de eclesiásticos que
56. Johann Friedrich Herbart l 1776-1841 J: filósofo e psicológico alemão; foi discí­
escreveu As Viagens de Gulliver, uma sátira da sociedade 111glesa e uma defesa da
pulo de Fichte e em 1809 ocupou a cátedra de Kant em Kõnigsberg. Ele afirma que
causa nacional da irlanda. a tarefa da filosofia é elaborar conceitos que eliminem as contradições que são dadas
55. Laputa: uma ilha voadora imaginária em As Viagens de Gulliver, de �wifr, pela experiência. O sistema filosófico de Herbart, que tem um ponto de partida cético,
.
cujos habitantes, os laputianos, se dedicaram a uma série de projetos e expenenc1as �ulmina numa pedagogia apoiada na ética e na psicologia: a psicologia deve permitir
pseudocientíficas. infundir nos alunos determinados valores morais.
7
· f

td
254 Escritos sobre Educação / Lons1aeraçao 1n1em pesu va: .:,u1vpc1111d uc, i...uu-.auv,

1�
então que os filósofos cresçam no estado selvagem, recusem a pois ele tem, como sempre, e hoje ainda mais do que outrora, a
l) filosofia contra ele. Acredito, com a maior seriedade do mundo
eles qualquer perspectiva de emprego e de recrutamento nas pro­
'----.__,...----.---
,
l fissões burguesas, não os bajulem mais com soldos; mais ainda: que é para ele mais útil não se o cupar absolutamente dela, nada
que eles sejam perseguidos, que se olhe para eles com descrédito desejar dela e deixá-la existir, até onde isto for possível, como
- então, voces verão milagres! Assim, eles se dispersarão e bus­ uma coisa insignificante. Caso ele não possa conservá-la nesta
carão para si, aqui e ali, um abrigo, estes pobres fingidos: aqui se insignificância, caso ela se torne para ele perigosa e agressiva,
abre uma paróquia, lá uma função de mestre-escola; um se mete que ele então a persiga! - Como o Estado não pode promover um

-
na redação de um j ornal, outro escreve manuais para as institui­ outro interesse na universidade, senão o de fazer educar através
ções super iores de j ovens meninas; o mais inteligente deles pega a
charrua e o mais vaidoso vai para a corte. De repente, tudo está
dela os cidadãos devotados e úteis, ele deveria ter o cuidado de
não colocar em risco este devotamento e esta utilidade, exigindo
/
vazio, o ninho abandonado: pois é muito fácildesembaraçar- dos jovens uma prova de filosofia: sem dúvida, quando se pensa
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se dos maus filósofos, basta parar de favorecê-los-JE isto é, em nos espíritos preguiçosos e ine tos, o melhor meio de desviá-los
G°do caso, mais aconselhável do que patr?cinar publicamente em por completo do estudo desta disciplina é agitar com ela o es-
l.:iome do Estado qualquer outra filosofia. pectro aterrorizante do exame; mas o proveito que se obtém com
O Estado jamais se importa com a verdade, salvo com aque­ isso não po deria compensar o dano que esta tarefa imposta pro ­
la que lhe é útil - mais exatamente, dê se ocupa em geral com voca nos jovens audaciosos e inquietos; eles acabam aprendendo
tudo o que lhe é útil, seja isso verdade, meia-verdade ou erro . a ler livros proibidos, começam a criticar seus professores, e fi­ /
A aliança do Est� com a filosofia não tem por tanto sentido, nalmente acabam por descobrir o o bjetivo mesmo desta filosofia
senão quando a filosofia pode prometer ser incondicionalmente universitária e destes exames - para não falar das atribulações
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útil ao Estado, quer dizer, colocar o interesse do E�o acima nas quais, nesta ocasião, podem cair os jovens teólogos por causa
da verdade. Certamente, seria uma coisa excelente para o Estado disso e, em consequência, chegar a desaparecer da Alemanha tal
ter a�ade também a seu serviço e a seu soldo; mas ele sabe como as cabras montesas desapareceram do Tirol. - Eu sei bem
muito bem que pertence à essência da verdade jamais se colocar que objeção poderia o Estado levantar contra to da esta conside­
a serviço de ninguém e jamais aceitar um soldo de quem quer que ração enquanto osperasse ainda em to dos os campos bela e
seja. Por conseguinte, o Estado tem nisso que possui única e ex­ verdejante he eleria: as depois que esta colheita foi devastada
clusivamente uma falsa "verdade", um personagem mascarado; pelo granizo, depois que em to das as promessas então feitas nada
e este, infelizmente, não pode mais realizar para ele o que deseja se tenha realizado, e que todos os celeiros permaneceram vazios
tão for temente da autêntica verdade: sua própria legitimação e - é preferível não objetar mais nada e se desviar da filosofia.
canonização. Quando um príncipe medieval queria se fazer coroar Agora, se tem este po der; out rora, na época de Hegel, se queria
pelo papa, mas não podia conseguir isso dele, ele nomeava um tê-lo - eis aí a grande diferença. O Estado não tem mais necessi­
antipapa que lhe faria então este serviço. Isto podia ocorrer até dade da sanção da filosofia, por isso ela se tornou para ele a go
certo ponto ; mas não oco rre o mesmo quando o Estado mo derno Supérfluo . Se ele deixa de manter as disciplinas de filosofia, ou
institui uma contrafilosofia com a qual espera ser legitimado: se, como prevej o para um futuro imediato, ele apenas as man-

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256 Escritos sobre Educação
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tenha aparentemente e com negligência, sairá ganhando com Friedr ich August Wolf, sobre o qual Franz Passow podia dizer
isso - mas me parece ma is importante ainda que a universidade que se manifestava como um espírito autenticamente patriota e
também veja nisso o seu proveito . Pelo menos, eu seria tentado autenticamente humano, capaz, em caso de necessidade, de colo­
a pensar que o sa ntuário das ciências autênticas dever ia se sentir car em fermentação e incendi a r todo um continente - para oride
encorajado pelo fato de que estaria livre de qualquer associa ­ voou este espír ito? Ao contrário, foi o írito dos jornalistas ue
ção com uma meia -ciência ou com um qua rto de ciência . Além invadiu cada vez mais a universidade, e não foi raro que isto se
disso, a respeitabilidade das universidades está numa situação fizesse usando o nome de tilusofia ; um enunciado melífluo e dis­
excessivamente complicada, pa ra não precisar deseja r por prin­ simulado, com Fausto e o Sábio Natan nos lábios, a linguagem e
cípio se separar de disciplinas que gozam de tão pouca estima as opiniões da�pugnantes gazetas literárias, e recente­
junto aos próprios universitários. Pois os não-universitários têm mente ainda o pa lavrório respeito da nossa pura música alemã,
boas ra zões para professa r um cer to desprezo geral em relação ou i a a exigência de _disciplinas consagradas a Schiller� a
às universidades: eles censuram nelas o fato de serem covardes, o Goethe - são outros tantos sinais que indica m que o es írito da
fato de que as pequenas univ_ersida�s tenha m medo das grandes, universidade começa a se confundir com o espírito da época .
e que as grandes tenham medo da opinião pública; eles censu­ Esta é a razão por que me parece de suma importância que suqâ
ram nelas não serem a vanguarda de todas as gra ndes causas fora das universidades um tribunal supremo que possa controlar
da cultura superior, mas claudicar lentamente e retardadas; eles e julgar estas instituições, no que diz respeito também à educa­
censuram nelas o abando no da orientação autêntica e fundamen­ ção que elas ministram; e logo que a filosofia se tenha d ivorciado
tal das ciências que são muito importantes. Impulsiona-se, por das Universidades, e por conseguinte fosse purificada de todas
exemplo, co m o maior zelo po ssível, os estudos linguísticos, sem estas precauções e de todas estas indignas obscuridades, uni­
\\ achar que fosse necessário para i�so uma estrita aprendizagem camente ela mesma poderia co nstituir este tribunal: sem po der
� da escrita e da pa lavra. A ant1gmdade hmdu abre suas por tas, de Estado, sem emolumentos e sem honra rias de qua lquer espé­
mas somente quando seus conhecedores têm diante das obras cie, ela poderia cumprir suas funções, liberta tanto do espírito
imperecíveis dos hindus, dia nte das suas filosofias, uma atitude do século, co mo do medo deste espírito - em suma, ta l como
diferente daquela de um animal diante de uma lira: apesar de Schopenhauer viveu, como juiz da autoproclamada cultura que
Schopenhauer ter considerado que o conhecimento da filosofia o cercava. Desse modo, também o filósofo pode ser útil à uni-
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hindu fosse uma das ma io res va ntagens do nosso século sobre ve�idade, se longe de se confundi r com efa, ao contrario, ele a
57 vigiasse co m uma cer ta e respeitosa distância-. - --
o s anter iores • A a ntigui dade clássica se torno u uma antig uida ­

de qua lquer, ela não age mais de maneira clássica e exemp lar ; Mas enfim - o que nos importa a existência de um Estado, a
como provam seus discípulos que, na verdade, estão bem longe promoção das universidades, quando se trata sobre t udo da exis­
de ser homens exemplares. Aonde então foi parar o espírito de tência mesmo da filosofia na terra!, ou - pa ra não deixar p
airar
qualquer dúvida sobre aquil o que vou di zer - quando o nasci­
mento de um filósofo na terra é indizivelmente mais impo rt
57. Schopenhauer, Monde comme volonté et représentation, 1, XII !Préface de la p re ­ ante
do que a conservação de um Estado ou de uma universid
miere édition J [Nota da edição francesa J. ade? Na
258 Escritos sobre Educação Consideração Intempestiva: Schopenhauer Educador 259
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medida em que aumenta o servilismo para com a opinião pública Ora, se estes pensadores são perigosos, fica evidente porque
e o perigo da liberdade, é preciso também elevar a dignidade da no�ensadores acadêmicos são inofensivos; seus pensamen­
filosofia; ela estava no seu ponto culminante no meio dos cata­ tos crescem tão facilmente na tradição como jamais uma árvore
clismos da República romana moribunda e na época imperial, carregou seus frutos: eles não assustam, eles não fazem sair os
onde seu nome e o da história se tornaram ingrata principibus gonzos; e, a propósito de todas as suas ações e gestos, se poderá
nomina 58 • Brutus testemunha mais do que Platão a favor de sua dizer o que, por sua vez, Diógenes objetava quando se fez diante
dignidade; estas são épocas em que a ética deixa de ter lugares dele o elogio de um filósofo: "O que ele tem de tão grande a nos
comuns. Se a filosofia não é mais �uito estimada hoje, que se apresentar? Há muito tempo que ele se dedica à filosofia e ainda
pergunte apenas porque em nossos dias nenhum grande general, não comoveu ninguém." Sim, é exatamente isto que seria preciso
nenhum grande estadista recorre a ela - e responderemos: pela escrever como epitáfio na tumba da filosofia universitária: "Ela
única razão de que, nesta época em que se indagou sobre ela, se não comoveu ninguém." Mas este é certamente um elogio que

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viu apresentar-se, CQllLO nome de filosofia .,_ so111.ente um fantasma convém mais a uma velha alcoviteira do que a uma deusa da ver­
débil, aquela erudita e prudente sabedoria de cátedra; em suma, dade, e não há por que se admirar se aqueles que não conhecem
porque num momento qualquer a �osofia se tornou 12_ara ele uma esta deusa, senão como uma velha alcoviteira, são eles próprios \
coisa ridícula. Ela devia, porém, ser para ele uma coisa terrível; muito pouco viris e não gozam mais consequentemente da menor
e os homens que são chamados a buscar o poder deveriam saber consideração junto aos homens do poder.
que fonte de heroísmo corre nela. Um americano poderia dizer Mas, se é assim que ocorre na nossa época, então, a dignida­
a eles o que significa um grande pensador chegado à terra como de da filosofia é esmagada; parece como se ela mesma se tenha
um novo centro de forças monstruoso. Diz Emerson: tornado algo ridículo e indiferente: de modo que todos os seus
verdadeiros amigos têm o dever de testemunhar contra esta con­
Cuidado, quando o grande Deus fizer chegar um pensador ao
fusão, ou pelo menos mostrar que somente são ridículos e indi­
nosso planeta. Tudo estará então em perigo. É como se, numa
grande cidade, um incêndio eclodisse e ninguém soubesse ferentes estes falsos servidores e estes indignos representantes da
quem estaria ainda a salvo e quando ele acabaria. Assim, não filosofia. Mais ainda, eles próprios provam com suas ações que o
há nada na ciência que amanhã não pudesse ser derrubado, �or da verdade é uma coisa terrível e poderosa. - Schopenhauer
não há mais qualquer reputação literária que fosse, nem mes­ demonstrou uma coisa e outra - e demonstrará mais a cada dia.
mo as celebridades pretensamente eternas; todas as coisas que
nesta hora são caras e preciosas ao homem não são senão o
resumo de ideias que surgiram no seu horizonte espiritual e
que são a causa da ordem atual das coisas, tal como a macieira
produz suas maçãs. Um novo grau de cultura subverteria e
jogaria no chão todo o sistema de aspirações humanas.

58. Em latim no texto, significando "princípios rejeitados".

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