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DO TEMPO DA MEMÓRIA AO
ESQUECIMENTO DA HISTÓRIA:
um estudo psicanalítico das demências
DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
JULHO DE 2004
IP-USP
DELIA CATULLO GOLDFARB
DO TEMPO DA MEMÓRIA AO
ESQUECIMENTO DA HISTÓRIA:
um estudo psicanalítico das demências
JULHO DE 2004
IP-USP
Goldfarb, D. C.
Do tempo da memória ao esquecimento da história: um estudo
psicanalítico das demências./ Delia Catullo Goldfarb. – São Paulo:
s.n., 2004. – 224p.
BANCA EXAMINADORA
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A meus pacientes e seus familiares por me permitirem aprender com sua dor.
A minha família.
RESUMO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 1
1. Apresentação ........................................................................................................ 2
2. O homem e o tempo ............................................................................................. 8
3. Para pensar a demência ...................................................................................... 10
1. APRESENTAÇÃO
Dirige sua atenção para o inconsciente de sua própria mente, auscultando suas possíveis
manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica
consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de outros:
as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não precisa expor
essas leis, nem se dar claramente conta delas; como resultado da tolerância de sua
inteligência, elas se incorporam à sua criação.(idem, p 76)
INTRODUÇÃO 3
Então, ajudada pelos poetas e pela teoria psicanalítica, fui em busca do chão
necessário para dar encaminhamento ao percurso que se iniciava.
Durante minha prática psicanalítica tratei de pessoas de quarenta e até de cinqüenta anos
de idade... Para minha surpresa, um número considerável deles reagiu favoravelmente
ao tratamento... O prognóstico é mais favorável se a neurose apareceu com toda sua
gravidade bem após a puberdade e se o paciente conseguiu desfrutar de alguns anos de
atividade sexual próxima à normal e de um período de atividade social útil. Os casos
desfavoráveis são aqueles em que ocorreu na infância uma neurose obsessiva. São, da
mesma forma, estes os casos em que a psicanálise fracassa também com pacientes mais
jovens (Abraham, 1919, p. 19).
O próprio Freud, que, ao longo de toda sua obra, não cansa de nos chamar a
atenção para a evolução de suas idéias, em 1937 menciona que muitos dos fatores que
poderiam impossibilitar uma análise, como resistência à mudança, rigidez psíquica ou
esgotamento da flexibilidade, encontram-se também em jovens. Ele escreve:
Mas nos pacientes aos quais agora me refiro, todos os processos mentais, as relações e
distribuições de forças, são imodificáveis, fixas e rígidas. Encontramos as mesmas
características em pessoas muito idosas; nestes casos, explicamos aqueles estados como
provocados pela força do hábito ou esgotamento da receptividade, uma espécie de
entropia psíquica. Mas aqui tratamos de pessoas que ainda são jovens (Freud, 1937, p. 563).
O ponto de partida para o Mestrado foi, então, a escuta do discurso dos idosos
em diferentes situações (clínica, institucional, social), escuta do que insiste, daquilo que
se repete: “Quando me olho no espelho, digo: essa não sou eu, não me reconheço”,
“preciso me apressar, me resta pouco tempo para fazer tudo o que desejo”. Essas falas
insistentes marcaram os dois eixos fundamentais da pesquisa: as limitações corporais e
a consciência de finitude.
Na gênese do Ego e em sua diferenciação do Id, parece ter atuado ainda outro fator
diferente da influência do sistema P (perceptivo). O próprio corpo, e especialmente a
superfície do mesmo, é um lugar de onde podem partir simultaneamente percepções
externas e internas”.
entenderemos que qualquer ser humano, independentemente de sua idade, poderá fazer
novos vínculos e investimentos. Considerei essa diferença fundamental.
2. O HOMEM E O TEMPO
O modo mais primitivo de pensar essa relação homem-tempo é por meio dos
ciclos da natureza: dia/noite, inverno/verão, chuva/estiagem, tempo de reprodução/tempo de
colheita; tempos marcados por rituais que preservam a repetição, idéia circular do
tempo, em que tudo se repete sempre da mesma forma; tempo mítico de repetição,
tempo de eterno retorno.
Mas, a essa idéia do tempo circular, opõe-se a concepção de tempo sucessivo em
que passado, presente e futuro encadeiam-se numa seqüência que se pretende lógica,
INTRODUÇÃO 9
histórica e que culmina com a morte, fim do tempo da vida. O pensamento religioso, na
crença de uma vida após a morte, restitui uma certa circularidade, uma possibilidade de
repetição na eternidade, marcada pela idéia de passagem de uma vida carnal e de
sofrimento a outra de espírito puro, eterna em sua imutabilidade.
A vida é o tempo que acontece entre nascimento e morte. Nesse prazo, o sujeito
encontrará os limites para o seu desejo e realizará o encontro com seus objetos
possíveis.
A velhice é a fase vital final do desenvolvimento humano, fato existencial que
ultrapassa o biológico; apesar dos estigmas negativos que a caracterizam, a maioria das
pessoas quer chegar lá, pois o contrário significaria morrer jovem. Deparamo-nos,
assim, com um campo de contradições e paradoxos de difícil resolução.
O fato de ser a velhice o momento da existência humana mais próximo à morte,
ligado ao declínio físico e a questões culturais, cria campo fértil para uma representação
social negativa e propicia atitudes de marginalização e auto-exclusão.
Como todas as fases do desenvolvimento humano, a velhice também não tem
fronteiras rígidas, nem cronológicas, nem conceituais. Norberto Bobbio fala-nos destes
aspectos:
Nestes últimos anos, o limiar da velhice deslocou-se cerca de duas décadas. Aqueles
que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de
sessenta anos. Hoje um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, porque
chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. O octogenário, salvo
exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar.
Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática, mas fisiológica, começa quando nos
aproximamos dos oitenta... (Bobbio, 1997, p. 17).
Quanto mais nos aprofundamos no tema, mais difícil se torna definir quando
começa a velhice e o que é “ser velho”. Neste sentido, devemos diferenciar os termos
velhice e envelhecimento. O termo envelhecimento alude a processo, a movimento
contínuo, a um constante e sempre inacabado processo de subjetivação; velhice, por sua
vez, refere-se a um estado, a uma certa permanência, a um tempo que não passa. Jack
Messy escreve: “Se o envelhecimento é o tempo da idade que avança, a velhice é o da
idade avançada, entenda-se, em direção à morte” (Messy, 1993, p. 33).
O tempo é aquilo que transcorre, permitindo a construção de conceitos,
construindo memória, criando histórias, produzindo subjetividades. O curso da vida, no
entanto, não é um curso de tempo regular perante o qual o sujeito é um mero espectador.
INTRODUÇÃO 11
MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO
1. ALTERIDADE E SUBJETIVIDADE
Pode-se dizer que toda a teoria freudiana está baseada na questão da alteridade,
seu reconhecimento e suas conseqüências. Este tema está presente, com diversos
destaques, desde o começo de suas elaborações. Basta lembrar que no estudo “Para uma
concepção das afasias” (1891), Freud já afirmava que um aparelho de linguagem se
constitui em relação a outro aparelho de linguagem; mais tarde, em textos como
“Introdução ao narcisismo” (1914) e “O eu e o isso” (1923), por exemplo, dará ênfase
especial a este aspecto. Porém, será nos textos chamados sociais ou antropológicos que
ele irá adquirir uma relevante importância.
Em “Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921, Freud nos ensina que a
história individual é uma história social; assim sendo, é impensável a constituição do
sujeito psíquico sem o outro, não podendo haver historização no isolamento. Freud escreve:
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que a primeira
vista nos pareceria muito substancial, perde grande parte de sua significação quando
considerada mais profundamente. É verdade que a psicologia individual refere-se ao ser
humano singular e estuda os caminhos pelos quais procura atingir a satisfação de suas
moções pulsionais. Mas só raramente e sob o domínio de condições excepcionais lhe é
dado prescindir das relações do indivíduo com sues semelhantes. Na vida anímica do
humano, o outro aparece regularmente como modelo, como objeto, como auxiliar, como
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 19
inimigo; deste modo, a psicologia individual é, desde sua origem e ao mesmo tempo
psicologia social, num sentido amplo, porém plenamente justificado (Freud, 1921, p. 67).
A partir deste texto fica absolutamente claro que Freud coloca a questão da
socialização do ser humano no cerne da problemática da intersecção entre psicanálise e
cultura, formulando uma teoria psicanalítica da cultura. No núcleo de sua teoria, são
destacadas as formulações que dão conta dos mecanismos pelos quais o sujeito realiza
sua adaptação ao meio cultural, a maneira pela qual ganha um sentimento de pertença
podendo, ao mesmo tempo, diferenciar-se dos outros membros da mesma cultura. O
entendimento, enfim, sobre a função fundamental do “outro” para a satisfação das
pulsões e a vida em sociedade.
Em “Mal-estar na cultura” de 1929, vemos como, em todas as épocas da história
da humanidade, a cultura tem proposto estratégias para aliviar o sofrimento que,
paradoxalmente, ela mesma provoca através do impedimento da plena satisfação.
Assim, a felicidade seria inatingível como estado permanente. Em sua procura, diversas
vias substitutivas podem ser colocadas em ação, mas o conflito será sempre insolúvel
em si mesmo.
Por outro lado, as formas de sofrimento produzidas pela cultura mudam
permanentemente. Sabemos que não se procuram as mesmas satisfações e não se sofre
da mesma maneira, nem pelos mesmos motivos em todas as épocas históricas, nem em
todas as classes sociais. Mas também não podemos esquecer que a procura por essa
realização é o grande motor do desejo.
Nas últimas décadas, observamos uma crescente revalorização das elaborações
freudianas desta época. Vemos que tanto no que se refere ao sujeito, quanto ao que se
refere à cultura, tanto no âmbito das ciências sociais quanto no da psicanálise, há uma
tentativa de compreender as mudanças das relações sociais da pós-modernidade.1 A
perda de valores como a solidariedade, a impossibilidade de se colocar no lugar do
outro, a perda da esperança no tempo futuro ou a sobrevaloração do presente e o
crescente desamparo, provocam efeitos na subjetividade.
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1
A polêmica sobre a existência de uma pós-modernidade diferente da modernidade, ou como uma nova
fase ou novo projeto desta, não é objeto deste estudo; então, chamaremos pós-modernidade ao período
que se inicia entre as duas grandes guerras, se afiança nos anos 70 com o desmoronamento dos regimes
socialistas, caracterizando-se pela queda do paradigma científico e da noção de progresso como salvação
da humanidade e pela falta de um outro paradigma dominante como âncora da subjetividade humana
(Rojas y Sternbach, 1997).
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 20
Assim, é freqüente que a limitação dessa rede simbólica intra e intersubjetiva requerida
para a elaboração das vivências de desvalimento e desamparo culmine num desfecho
medicalizante através de diagnósticos psicopatológicos de depressão, síndromes neuro-
vegetativas, etc. sem que o trabalho de luto em curso ou bloqueado possa ser
reconhecido (Fuks, 1994, p. 66).
Não haveria mais perdas reconhecíveis, pois tudo pode e deve ser substituído.
Assim, nostalgia e reencontro não teriam mais sentido, o que traria como conseqüência
a evaporação da memória. Afinal:
A ‘perda de um objeto inserido numa história’ (Lewcowikz), aqui entendido como uma
trama, tem na psicanálise um papel fundamental na constituição do sujeito [...]. A trama
se produz através de perdas, deslocamentos, substituições, trocas. [...] Perda e
incompletude abrem, assim, o caminho para a subjetividade, a alteridade, a
intersubjetividade e a temporalidade” (idem, p. 75).
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2
Voltaremos ao tema da psicopatologia no cap. V
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 22
2. DESAMPARO E ANGÚSTIA
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3
Foi procurado o verbete hilflosigkeit no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis, no
Dicionário Comentado de Luis Hans, no Dicionário de Psicanálise de Chemama, no Enciclopédico de
Psicanálise de Kaufmann e no de Roudinesco e Plon. Só há registro no primeiro citado.
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 23
fez prevalecer o ponto de vista genético; o desamparo, surgiria ante uma tensão de
necessidade que o aparelho psíquico, por imaturidade neurológica, ainda não seria capaz
de dominar. Esta perspectiva supõe que o desamparo seria totalmente eliminável pelo
amadurecimento e não teria mais um papel essencial no funcionamento psíquico; mas
não foi essa a perspectiva freudiana que continuou a ver na Hilflosigkeit “ a condição
última de falta de garantias do funcionamento psíquico, que o homem tem de enfrentar
quando de livra de todas as ilusões protetoras que cria para si mesmo” (Costa Pereira, p 130) .
No Projeto de 1895 Freud escreve:
E ainda completa:
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4
Este aspecto já tinha sido levantado por Freud em “ A Etiologia da Histeria” de 1896. Voltaremos ao
tema no capítulo IV quando estudaremos a construção do Eu e abordaremos as idéias de Piera Aulagnier.
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 25
Mas o inconsciente parece nada conter que pudesse dar qualquer conteúdo ao nosso
conceito da aniquilamento da vida. A castração pode ser retratada com base na
experiência diária das fezes que estão sendo separadas do corpo ou com base na perda
do seio da mãe no desmame. Mas nada que se assemelhe à morte jamais pode ter sido
experimentado; ou se tiver, como no desmaio, não deixou quaisquer vestígios
observáveis atrás de si. Estou inclinado, portanto, a aderir ao ponto de vista de que o
medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da castração e que a
situação à qual o ego está reagindo é de ser abandonado pelo superego protetor – os
poderes do destino — de modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra
todos os perigos que o cercam. (Freud, 1926, p.123, o grifo é meu)
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5
Optaremos pelo uso do termo “repressão” pois: “em português,‘recalque’, significa simplesmente o ato
de calcar de novo, de pisar aos pés, enquanto ‘repressão’, segundo a lição de Aurélio Buarque de
Holanda; tem um ágama de significações muito mais afim ao conteúdo de violência que, em nosso
entender, é a conotação essencial do conceito freudiano. Conseqüentemente, traduzimos Unterdruckung
por ‘supressão’, atentando para a etimologia do vocábulo. Os dois conceitos jamais se confundem sob a
pena de Freud: ‘repressão’ alude a exclusão para o inconsciente, enquanto ‘supressão’ indica o ato de
manter algo no pré-consciente” (Mezan, 1991, p. XVII). E “havendo argumentos a favor dos dois
termos, deve-se chegar a um acordo[...] se atualmente o mais difundido é repressão, e se não parece
haver fortes argumentos contra seu uso, ele talvez seja o mais indicado – como,afinal, queria o velho
Freud” ( Souza, 1999, p. 116)
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 26
Vale lembrar que o desamparo original não deve ser compreendido apenas do ponto de
vista biológico. Para o bebê, o que a falta do Outro traz não é a morte biológica mas,
antes, a morte ontológica que tem sua expressão máxima em algumas formas de
psicose. A função essencial do Outro primordial encarnada inicialmente pela mãe é a de
introduzir a criança no mundo da metáfora onde os objetos secundários substituem os
primordiais: para manter-se o narcisismo secundário, o do eu, deve-se sacrificar o
narcisismo primário. O bebê humano que recusasse esta necessidade seria impensável
como humano, excluindo-se da cultura. (Ceccarelli, 2001, versão electrônica)
Paulo Ceccarelli, (2001) a partir de uma apurada leitura dos textos de Freud,
analisa como a figura do pai é central para este autor:
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 27
Para Freud é da relação com o pai em carne e osso, que o sujeito forja o protótipo de
Deus e também o do demônio; é por ter tido um pai particularmente violento e cruel na
realidade que Dostoievski desenvolve um superego sádico. Ao pai, a tarefa de substituir
a mãe na proteção da criança pelo resto da infância contra os perigos de mundo externo,
como lemos em O Futuro de uma Ilusão. (Ceccarelli, 2001, versão electrônica)
E acrescenta:
Escreve Freud:
ao medo, regular os vínculos e a divisão dos bens é a função fundamental que Freud
atribui à sociedade. Mas os tempos mudam e estes fatores, embora sempre presentes,
adquirem conotações diversas nas diferentes épocas históricas. Miriam Debieux Rosa
retoma esta questão em relação à sociedade pós-moderna:
Por muito que o processo de castração tenha cumprido sua função, por melhor
que seja a possibilidade de sublimação, o desamparo do sujeito, como bem o diz
Birman:
Assume uma feição trágica, marcado que seria pela finitude e pelo imprevisível sem ter
qualquer garantia absoluta para se sustentar. É o vazio e o abismo que está
permanentemente sob seus pés, num vórtice tempestuoso que pode engoli-lo a qualquer
momento, pois a morte o espreita com sua fase tenebrosa e hedionda em todos os
instantes”. (Birman, 2001, p, 43)
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 32
Colocada na posição negativa de uma existência social que se fechou, a velhice não
poderia ter mesmo qualquer forma de reconhecimento simbólico, de relação com o
futuro, pois o velho estava desinvestido no seu presente. Portanto, apenas lhe restava a
rememoração do passado e o confronto brutal com a morte. Os efeitos subjetivos dessa
posição social negativa, para a velhice, são catastróficos (Birman, 1995, p. 199).
Quando um velho diz “no meu tempo”, está dizendo que não tem presente, que
só pode existir em relação ao passado, que o tempo atual não lhe pertence, e menos
ainda o futuro. O produto direto desta experiência é a desnarcisação, o desinvestimento
da cultura que leva o velho a se identificar com esse espaço vazio, a falta de chances
para a ressignificação do passado no presente, a impossibilidade de projeção no futuro.
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 33
Por outro lado, a cultura cria definições e promove uma linguagem que
categoriza os cidadãos segundo gênero ou faixas etárias, determinando desse modo as
relações sociais entre eles, tanto as de aliança, quanto as de conflito, de solidariedade ou
dominação. Raul Pacheco escreve:
Velhice não é um estado biológico: é uma palavra ou significante. Como tal, não
constitui uma condição biológica, do mesmo modo que as categorias de gênero. Ela
define o lugar do sujeito na cultura e sua posição nas relações de dominação. E também
nas demais relações sociais (Pacheco, 2002, p. 81).
Isto tudo está a favor, é claro, de um processo de exclusão em que o próprio sujeito se
exclui a fim de evitar o conflito inevitável que a sua própria inclusão viria a gerar.
Assim, é bom lembrar, a inclusão impõe uma série imensa de conflitos que o velho terá
que enfrentar se quiser se habilitar ou se colocar como sujeito. Isso é agravado na
medida em que, subjetivamente, o velho tem que dar conta dessa opção de ter de ser
incluído, ou então ele abdica desse lugar. Necessariamente, esse lugar é de confronto,
porque é um lugar hostil, porque é um lugar onde ele não é só desabilitado, ele é
desabilitado e hostilizado. Então a reação dele teria que ser uma reação, no mínimo,
também agressiva, ele teria que entrar nessa arena. Daí, penso a necessidade de
instituições inclusivas, capazes de instrumentalizar os cidadãos para essa luta, e onde o
Estado ocupa um papel essencial (Endo, 2002, p. 61).
Sobre este particular, Paulo Endo diz que as representações centrípetas, quer
dizer, aquelas que vêm do ambiente em relação ao velho “têm uma intenção, no nosso
país, de desabilitar o velho como sujeito. Segundo estas categorias, o velho ou é um
empecilho, ou é um problema, ou é um favorecido, goza de favorecimento e não de
direitos” (Endo, 2002, p. 60).
A forma depressiva acontece quando, sem poder retificar seu passado e nem
projetar seu futuro, o sujeito se fecha a qualquer forma de presente possível e se articula
só em virtude das perdas; na forma paranóide, eclode o ressentimento contra todos
aqueles que supõe responsáveis pelo que lhe falta; por último, na mania, nega-se o
presente da proximidade com a morte, assumem-se como próprios os ideais da
juventude e nega-se a passagem do tempo, o que pode chegar a constituir verdadeiras
construções caricatas de velhos usando modas e atitudes de adolescentes.
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 35
A estas três formas propostas por Birman, propomos acrescentar uma forma
demencial, que, mais do que uma forma autônoma, seria um derivado da depressão.
Uma forma de articulação pela qual foge-se da depressão, recusa-se o passado através
do esquecimento de tudo o que for ligado à dor insuportável da perda. Nestes casos a
depressão seria tão insuportável e o vazio tão infinito que não aceitaria nenhum recurso
elaborativo.
Simone de Beauvoir, ao se indagar já em 1970 sobre as diversas patologias
neuropsiquiátricas observáveis na velhice, escrevia:
Pensa-se hoje que a maioria desses problemas poderia ser evitada se a condição social
dos velhos fosse menos catastrófica. E Bastide [Sociologie des maladies mentales]
escreve: Pode-se perguntar se a senilidade é uma conseqüência da senescência , se ela
não seria antes um produto artificial da sociedade que rejeita os velhos. Ele cita o Dr.
Repond: ‘Estamos mesmo autorizados a indagar se o velho conceito de demência senil,
pretenso resultado de perturbações cerebrais, não deve ser completamente revisto – e se
essas pseudodemências6 não são o resultado de fatores psico-sociológicos, agravados
rapidamente por colocações em instituições inadequadamente equipadas e dirigidas,
como também em hospitais psiquiátricos onde esses doentes ficam entregues a eles
mesmo, privados dos estímulos psicológicos necessários, frustrados em qualquer
interesse vital, e não tendo outra coisa a esperar senão um fim cuja rapidez todos
concordam em desejar. Chegamos mesmo a pretender que o quadro clínico das
demências é talvez um artefato, devido, na maior parte dos casos, à carência de
cuidados e esforços de prevenção e reabilitação’ (Beauvoir, 1990, p. 617).
O conflito é engendrado pela frustração; ela faz que a libido perca sua satisfação e se
veja obrigada a procurar outros objetos e caminhos. O conflito tem por condição que
estes outros caminhos e objetos provoquem uma contrariedade em uma parta da
personalidade, de modo que se produz um veto que, em princípio, impossibilita a nova
forma de satisfação. De aqui parte o caminho para a formação do sintoma pelo qual
depois nos internaremos. Mas, as aspirações libidinais rechaçadas, logram se impor com
alguns rodeios que as obriga a sortear o veto através de certas desfigurações. Os rodeios
são os caminhos da formação de sintomas. Os sintomas são a satisfação nova ou
substitutiva que se fez necessária pela frustração. (Freud, 1916-17, p 318)
CAPÍTULO I – MAL-ESTAR E ENVELHECIMENTO 37
DE-MENTIS
1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS
A palavra, juntamente com as condições de sua enunciação, não valia apenas pelo seu
sentido manifesto, mas como signo a ser decifrado para que um outro sentido, oculto e
misterioso, pudesse emergir, num interminável de decifrações. Essa era a palavra do
aedo, poeta profeta da Grécia arcaica, palavra portadora de Aletheia, da verdade. (p. 7)
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 40
Já para Sólon (500 a.C.) e Platão (350 a.C.), a demência senil era motivo
suficiente para invalidar um testamento e, no século II de nossa era, Galeno a inclui pela
primeira vez entre as doenças mentais.
Há 300 anos, ainda se definia como demente todo sujeito que mostrasse algum
nível de perda da razão, qualquer tipo de loucura, produção delirante ou comportamento
insensato (Thomas, Pesce e Cassuto, 1990). No Aurélio, a demência é definida como
“deterioração progressiva e irreversível das funções intelectuais, resultantes de lesões
cerebrais” e, na sua acepção popular, o termo é usado como “loucura, doidice, parvoíce
e procedimento insensato”.
Vemos então que, nesta época, já se acreditava que as demências senis eram, em
sua totalidade, produto do desgaste “natural” do cérebro e de problemas vasculares;
eram “coisas de idade” e, como tais, inevitáveis. Mas, na mesma época (1911),
________________
1
Mas, entre 1968 e 1970, Thomlinson, Blessed e Roth, analisando um grupo de cérebros de pacientes que
tinham se demenciado com mais de 65 anos, concluíram que a degeneração neurofibrilar era do mesmo
tipo da descrita por Alzheimer, o que tornou a divisão entre senil e pré-senil um tanto confusa.
2
Citado por Isaias Pessotti em “Os nomes da loucura” 1999.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 42
Emmanuel Régis (1855–1918),3 médico francês assíduo leitor de Freud, faz uma valiosa
diferenciação que até hoje conserva sua vigência:
Senti que tinha demorado tempo demais em executar este projeto. Minha imaginação,
menos viva, não se excitava já, como em outros tempos, pela contemplação do objeto
que a animava; embriagava-me menos com o delírio do sonho; havia mais de
reminiscência que de criação naquilo que produzia; um desfalecimento morno enervava
todas minhas faculdades; o espírito da vida ia se acabando lentamente, por graus.
Não posso, como de outras vezes, me arrojar com a cabeça baixa neste vasto oceano da
natureza, porque minhas faculdades, debilitadas, não encontram objetos bastante
determinados, bastantes fixos, bastante ao alcance de minhas mãos, para aderir-me
________________
3
Professor de psiquiatria em Bordeus desde 1905, foi o primeiro psiquiatra francês a aderir publicamente
à psicanálise. Ver: Sigmund Freud: “Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico” (1914).
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 43
fortemente, e não me sinto suficientemente vigoroso para nadar no caos de meus antigos
êxtases. Minhas idéias não são mais que sensações; a esfera de meu entendimento não
abrange mais que os objetos mais imediatos. Minha alma, morta a todos os grandes
movimentos, não pode se afetar mais que pelos objetos sensíveis; não tenho senão
sensações, e só por elas posso, aqui embaixo, alcançar a dor ou o prazer.
Reduzido a mim mesmo, me alimento, é verdade, de minha própria substância, que não
se esgota; me basto a mim mesmo, embora rumine no vazio, e minha imaginação pobre,
e minhas idéias apagadas não proporcionam alimento a meu coração. Minha alma,
ofuscada, obstruída pelos meus órgãos, enfraquece dia a dia e não tem mais vigor para
lançar-se, como antigamente, para além de seu velho invólucro (Revista Vertex nº 44, p.
150; grifo meu).
psíquicas, que não seriam todas atacadas da mesma maneira e com igual intensidade.
Tratar-se-ia de um processo seletivo.
Em seguida, descreve o que chama de Período de Estado, no qual a amnésia se
estende aos fatos recentes e a todo o saber adquirido, não se respeitando mais que as
aquisições da primeira infância. Nessa fase também se apresentam certas incoerências: o
demenciado, apesar de ter esquecido tudo, é capaz de atividades como ler um jornal,
jogar cartas ou xadrez, momentos em que a memória das palavras parece conservada. E
Régis ainda agrega: “A diminuição intelectual pode ser mais aparente que real” (idem).
Finalmente, Régis descreve a fase terminal como a absoluta perda de toda
inteligência e a deterioração orgânica total com as seguintes palavras:
Desde o ponto de vista intelectual e moral, o demente encontra-se neste momento nas
mesmas condições que o idiota: não existe nada do que foi noutro tempo. Emagrece,
apresenta total incontinência esfinteriana, e reduzido a um estado mais ou menos
completo de decrepitude, acaba morrendo em conseqüência de transtornos tróficos ou
dos progressos da caquexia (idem).
________________
4
Existem 2 formas elaboradas para diagnóstico da demência: o Manual de Diagnóstico e Estatísticas das
Doenças Mentais (DSM-III) que estabelece os seguintes critérios: prejuízo da memória para fatos recentes
e antigos, do pensamento abstrato, do julgamento, da função cortical superior (afasia, agnósia, apraxia),
mudança de personalidade. Interferência nas AVD (atividades da vida diária) que não devem ocorrer
exclusivamente durante o período de delírio, evidência de um fator orgânico específico e exclusão de uma
desordem mental não orgânica. O outro parâmetro diagnóstico é o do código Internacional de Doenças
(CID– 10) que coloca os seguintes critérios: prejuízo da memória e das atividades intelectuais que possam
ser objetivamente mensuráveis nas AVD e que estejam presentes durante pelo menos 6 meses, ausência
de alteração no nível da consciência, deterioração do controle emocional , comportamento social e
motivação. (Miranda Ventura e Campos Bottino, 1996)
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 45
ameaça. Também é muito comum, nos dias de hoje, que os idosos manifestem seu medo
de ter um Alzheimer − termo que vem substituir outro já em franca decadência – a
esclerose – com o que definem qualquer forma possível de demência.
Do ponto de vista da medicina atual, o termo demência não se refere a uma, mas
a várias doenças de origem e evolução diferentes, porém de prognósticos semelhantes, a
maioria das vezes progressivas e irreversíveis. Nesse sentido, a demência pode ser
considerada mais como um conjunto de sintomas que acompanham várias doenças.
Teremos, então, quadros demenciais originados por diferentes doenças: Aids, AVC,
traumatismo craniano, Parkinson, processo expansivo (tumor), Doença de Pick,
Huntington ou Alzheimer.
Como vemos, é um quadro que, dependendo da origem, pode atingir o sujeito
em qualquer idade, embora, na maioria dos casos atribuídos a uma degenerescência
neuronal, se apresente em idades avançadas.
Cabe reafirmar que a demência não é considerada parte do envelhecimento dito
normal, e sim um quadro patológico grave, freqüente na velhice, mas que é contingente
e não necessário. Isso é importante salientar, pois, se uma pessoa de 35 ou 40 anos
mostrar um quadro confusional, esquecer demais das coisas e, por causa disso, mostrar-
se irritada ou deprimida, logo será tratada, uma vez que se reconhecerá nessa conduta
algo de anormal. Mas, se isso acontecer aos 70 ou 75 anos, muitos ainda dirão que são
coisas da idade.
A característica fundamental desses processos e doenças é o marcado déficit de
memória, que terá como conseqüência perturbações das aptidões cognitivas,
pensamento, fala e coordenação motora. Tais perturbações são suficientemente severas
para interferir na vida familiar, social e de trabalho da pessoa que delas padece.
Seu aparecimento pode ser gradual − nos casos de dano cerebral progressivo −
ou abrupto, se for o caso de uma interação medicamentosa, só para citar dois exemplos.
O tempo de evolução até a fase terminal varia segundo os diferentes tipos, sendo a
Doença de Alzheimer a de progressão mais lenta. Na atualidade já se conhecem casos
de mais de 20 anos de evolução.
Quanto à causalidade, são inúmeras as hipóteses que se manejam; o único
consenso é o que assinala sua idade-dependência. Isso quer dizer que, quanto mais
tempo vive, maior a probabilidade de o sujeito ser afetado por algum tipo de demência
(ou de câncer, ou de problemas vasculares ou de qualquer outra coisa). De qualquer
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 46
maneira, e já que retomaremos esses temas mais tarde, no momento nos limitaremos a
dizer que, em relação às demências atribuídas a um dano cerebral progressivo
(especialmente do córtex cerebral), as etiologias ainda não foram esclarecidas, embora
profundamente estudadas. Pensa-se em causas variadas que vão desde fatores tóxicos
até causas genéticas, mas até o presente só há muitas hipóteses e nenhum tratamento
que vise à cura. A única novidade dos últimos anos consiste em novos medicamentos
que, em alguns casos, podem retardar a progressão do processo.
Após um certo tempo o passado será também esquecido como relato organizado
historicamente e passível de ser relatado, conservando-se só a memória de alguns fatos,
como ilhas de saberes, sem conexão aparente entre si.
Ao mesmo tempo, esquecem-se as palavras que permitiriam nomear os objetos,
ainda os mais conhecidos e necessários, e as perífrases6 tentam explicar as funções dos
objetos que se deseja designar. Aos poucos, as pessoas, das mais distantes às mais
próximas, deixam de ser reconhecidas, e a desorientação temporo-espacial se instala.
Começa então uma errância incontinente, como uma estéril procura do espaço e do
tempo perdidos. Chegados neste ponto, não haverá mais manifestação de um
pensamento coerente e todos os atos mais elementares da vida se tornam impossíveis,
comprometendo de forma mais o menos total a autonomia no caminho da deterioração
total do sujeito.
O corpo de um idoso demenciado (considerando fases avançadas da doença),
apesar de poder conservar uma boa saúde clínica, não parece estar atravessado por
nenhum registro simbólico: baba, defeca, urina, mexe com as fezes, se despe, se
masturba, tudo sem o menor constrangimento, sem a alegria que os bebês demonstram
em atividades semelhantes, sem nojo. Só ante a atitude repressora dos outros pode
manifestar um certo pudor ou uma culpa por ter feito algo de errado, mas que não
implica um aprendizado. Percebemos apenas o incômodo da sujeira e o prazer da higiene. É
um corpo recorte de zonas erógenas, pura fragmentação. Incapazes dos menores
cuidados com a própria higiene e com perda total do controle esfincteriano, os idosos
demenciados acabam falecendo, freqüentemente, por causa de uma infecção intercorrente.
A queixa sobre uma diminuição da memória não é exclusiva das pessoas idosas,
mas, sem dúvida, aumenta consideravelmente com a idade e adquire uma importância
fundamental pois, em alguns casos, pode revelar a presença de um processo demencial
em fase inicial.
Os pesquisadores coincidem em que uma das maiores dificuldades para o
diagnóstico consiste em diferenciar o que é uma queixa que corresponde a um Declínio
cognitivo leve relacionado com a idade (DSM IV, 2000), e o que pode ser considerado
como um começo de processo demencial. Mas eles também oferecem algumas pistas.
Vejamos.
________________
6
Só a título de exemplo citarei duas: “me dá esse negócio aí que serve para beber” para pedir um copo,
ou “pega para mim isso do cabelo” para pedir um pente.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 50
________________
7
Os testes mais usados na atualidade são: o CAMDEX (1986), organizado como uma entrevista
estruturada com o objetivo de diagnosticar e quantificar a demência, e o MEEM (1975) Mini Exame de
Estado Mental, que avalia outras funções além da memória. Existe também o ENEDAM, utilizado para
diagnóstico de demências em estado inicial, e várias escalas de avaliação clínica para confirmação do
diagnóstico. Miranda Ventura e Campos Bottino, 1996)
8
Um breve artigo que comentava os resultados, foi publicado no caderno Equilíbrio da Folha de São
Paulo em 24 de maio de 2001.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 52
concentração de ácido fólico no cérebro, concluíram também que o estilo de vida era
relevante. A pesquisa demonstrou que o alto nível educacional e vida intelectual ativa,
embora não evitem a doença, protegem o cérebro de seus efeitos devastadores. Porém, o
mais surpreendente foi a relação encontrada entre incidência de Alzheimer e tipo de
personalidade e as modalidades da linguagem.
Trata-se de uma ordem que exige que cada noviça, ao ingressar à vida religiosa,
(aproximadamente aos 22 anos) escreva uma autobiografia. Os casos estudados tinham
entre 79 e 96 anos ao morrerem.
Nesta pesquisa9 surgem alguns dados muito interessantes como o fato de todas
essas mulheres pesquisadas partilharem o mesmo tipo de vida e terem um nível
educacional semelhante. Os neurologistas avaliaram a capacidade lingüística tomando
como base dois critérios: a densidade das idéias e a complexidade gramatical. A
densidade das idéias é medida segundo o número de idéias expressas em grupos de dez
palavras e manifesta o grau de conhecimentos, o nível de estudos e o vocabulário,
enquanto a complexidade gramatical está ligada com a memória, a capacidade de
realizar tarefas rápidas e a escrita.
Os autores da pesquisa encontraram uma correlação entre a pobreza das aptidões
linguísticas aos 20 anos e os baixos resultados nos testes cognitivos 60 anos depois .
Cinco entre quatorze casos estudados tinham manifestado a doença de Alzheimer; em
todos eles, a densidade de idéias na autobiografia era muito baixa, já a baixa
complexidade gramatical, embora presente, era menor. Agora, o que mais nos chamou a
atenção é que, entre as 200 autobiografias analisadas, pôde ser constatado que as que
expressavam emoções como gratidão, alegria, amor e esperança foram menos atingidas
pelo Alzheimer que aquelas outras que expressavam tristeza, medo raiva ou vergonha.
4. A DEMÊNCIA NA PSICANÁLISE
Como já vimos, o uso do termo demência não é novo. Ele também foi
profusamente usado desde as origens da psicanálise. Freud começa utilizando os termos
cunhados por Kraepelim (1856-1926), que fala de “demência precoce” e “parafrenia”.
________________
9
Publicada em jornal médico dos EEUU em 1997 e citada por Chévance (1999).
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 53
________________
12
O termo “frustração” (Versangung, denegação) refere-se aqui exclusivamente a obstáculos externos, tal
como o assinala Strachey na nota introdutória de “Tipos de desencadeamento das neuroses” (1912) Neste
artigo volta a usar o mesmo termo de forma mais ampla, referido também aos obstáculos internos.
(Strachey, p. 236)
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 55
doenças que tratava. Reação a uma frustração, perda, fixação13 em uma fase mais
arcaica do desenvolvimento psíquico, fuga do eu por regressão, já comparecem aqui,
para nos assinalar um horizonte.
Em “O interesse pela psicanálise” de 1913, Freud escreve:
15
Por outro lado, Freud chama a atenção para o fato de “estas psiconeuroses”
serem geralmente enumeradas em uma certa ordem: Histeria, Neurose Obsessiva,
Paranóia, Demência Precoce, que corresponderia, embora não exatamente, à ordem das
idades em que aparecem. É também nesse texto que reúne paranóia e demência precoce
na categoria das parafrenias.
________________
13
O fato de a libido se ligar fortemente a pessoas ou imagos, de reproduzir determinado modo de
satisfação e permanecer organizada segundo a estrutura característica de uma das fases evolutivas. A
fixação pode ser manifesta e real ou constituir uma virtualidade prevalecente que abre ao sujeito o
caminho de uma regressão. [ ] Podemos considerá-la, fora de qualquer referência genética, dentro do
quadro da teria freudiana do inconsciente, como designando o modo de inscrição de certos conteúdos
representativos (experiências, imagos, fantasias) que persistem no inconsciente de forma inalterada e aos
quais a pulsão permanece ligada. (Laplanche, 1995)
14
Essas estereotipias são muito comuns também nas demências, tal como conhecidas atualmente. Um
paciente que foi um dia um pintor de paredes muito bem conceituado, agora se dedica hora após hora a
descascar as portas e paredes da instituição onde mora, e uma costureira procura, nas próprias roupas, um
fio qualquer que lhe permita descostura-las. Um verdadeiro trabalho de desconstrução do que se levou
uma vida construindo.
15
Termo usado por Freud para caracterizar, em oposição às neuroses atuais, as afecções psíquicas em que
os sintomas são expressão simbólica dos conflitos infantis, isto é, as neuroses de transferências e as
neuroses narcísicas (Laplanche e Pontalis, "Vocabulário de Psicanálise").
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 56
Em 1914, acrescenta:
Dentre todos estes autores dos primórdios da psicanálise, merece uma atenção
especial Sandor Ferenczi, que foi quem mais interesse mostrou no entendimento das
demências e em sua possível leitura a partir da psicanálise.
Depois que o prof. Freud chamou minha atenção para esse ponto, sei (e não posso
deixar de confirmá-lo) que o homem tende, ao envelhecer a retirar as “emanações da
libido” dos objetos de seu amor e voltar para seu próprio ego o interesse libidinal, de
que provavelmente dispõe em menor quantidade. As pessoas idosas voltam a ser como
crianças narcísicas, perdem muitos de seus interesses familiares e sociais, uma grande
parte de sua capacidade de sublimação desaparece, sobretudo no que se refere à
vergonha e repugnância: tornam-se cínicas, ranzinzas e avarentas; em outras palavras,
________________
16
Ver Conferência XXVI, nas “Conferências de introdução à psicanálise”, vol. XVI, 1916-1917, p. 378.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 57
Sobre este particular, diz que a psicanálise só se interessou pelo tema depois da
publicação de “Introdução ao Narcisismo”, quando Freud chama a atenção para o fato
de haver uma relação libidinal especial com o próprio eu, durante os períodos de doença
física, quando a pessoa retira seu interesse libidinal dos objetos do mundo e os desloca
para si mesmo ou para o órgão doente. A doença faz com que ela regrida a um estágio
anterior, infantil, do desenvolvimento. Torna-se narcisista.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 58
Cita o caso dos traumatismos de guerra, que são menores quando existe uma
ferida física, pois a libido é utilizada de um modo patoneurótico17 , ou seja, “parte dela
se liga ao órgão lesado e, por conseguinte, não pode flutuar livremente e constituir um
fator de neurose” (idem, p. 152). Logo depois, chama a atenção do leitor para dois fatos:
o primeiro refere-se a que uma lesão ou doença de zonas erógenas pode provocar graves
doenças psicóticas como o caso das psicoses puerperais e o segundo, tal como o próprio
Freud já o indicara, e que algumas psicose narcísicas graves de origem psicogênica,
como seria o caso da melancolia, podem se curar repentinamente em conseqüência de
uma doença orgânica intercorrente que liga o excesso de libido.
Podemos agora supor que a afecção metaléutica18 do cérebro, quando ataca o órgão
central das funções do ego, não provoca apenas “deficiências” mas age, além disso, à
maneira de um traumatismo, perturbando o equilíbrio da economia da libido narcisista,
perturbação expressa pelos sintomas psíquicos da paralisia geral. (Idem, p. 153)
________________
17
Patoneuroses: “Neuroses resultantes de uma doença orgânica ou de um ferimento” (Ferenczi, 1993, p. 294).
18
Refere-se a lues: sífilis.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 59
caso de melancolia não por identificação com um objeto externo perdido e sim como
um dano sofrido no próprio eu, “O melancólico vítima de paralisia geral, chora a perda
de seu Ideal do eu, outrora realizado” (idem, p. 156). Os comentários que o autor tece ao
longo do texto continuam sendo de absoluta relevância em relação ao tema que nos
ocupa neste trabalho e precisam ser retomados nos atuais estudos sobre a demência.
Vejamos, por exemplo, quando escreve:
Como neste quadro clínico o estágio demencial é o final, o doente vai assistindo
impotente e lúcido ao declínio de sua capacidade física, a um organismo enfraquecido e,
lentamente, à perda de suas capacidades intelectuais. Quando a doença cerebral acarreta
a destruição dos produtos essenciais do desenvolvimento psíquico e o desaparecimento
das capacidades mentais mais valorizadas, o eu só pode reagir melancolicamente, e
quando a dor torna-se insuportável, o narcisismo abre caminho regredindo para fases do
desenvolvimento mais primitivas, que outrora estiveram em conformidade com o eu.
Verdadeiro processo de seqüestro do eu atual que permite sumir com tudo que é
doloroso. Assim considerada: “do ponto de vista da psicanálise, a paralisia progressiva
é, na verdade, uma paralisia regressiva” (idem p. 160)
________________
19
É interessante salientar que a maioria dos pacientes diagnosticados como portadores de algum tipo de
demência possuem uma boa saúde clínica e, ao longo de suas vidas, tiveram poucas dificuldades neste
particular.
CAPÍTULO II – DE-MENTIS 60
HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO
1. O EU E SEUS IDEAIS
O ego, em Freud, tem um estatuto ambíguo desde seus primeiros textos. Ora ele parece
se identificar com o sistema percepção-consciência, ora ele parece ser mais extenso que
este último, levando seus domínios para além do consciente e do pré-consciente e
mergulhando no inconsciente (Monzani, 1998, p. 244).
________________
1
É interessante notar que na tradução ao espanhol da Ed. Amorrortu usa-se “almácigo” no lugar de
“sede”, como o encontramos na Imago. Almácego, segundo o Aurélio, é sinônimo de Alfobre, que é
definido como viveiro de plantas. Isto é mais adequado do que “sede” para dar uma idéia de lugar de
nascimento e crescimento.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 104
com outras instâncias também identificáveis pelas suas funções e que formam um
aparelho.2
Não é nossa intenção, neste momento, aprofundarmo-nos nos meandros deste
conceito tão ambíguo e ao mesmo tempo tão rico, que oferece tantos recursos e tantos
inconvenientes. De todas estas formulações, comentaremos brevemente aquelas que
interessam especificamente aos objetivos deste trabalho. Trataremos do eu especialmente
no que se refere a sua constituição, já que falar da constituição do eu é falar da constituição
do humano, é falar de um eu submetido, o tempo todo, ao trabalho das pulsões e às
exigências do mundo externo. Afinal de contas, como bem assinala Renato Mezan:
De tudo isso emergiu, como que de forma automática, a idéia de defesa. Com efeito, em
geral os psicólogos têm admitido que a aceitação de uma nova representação (aceitação
no sentido de crer ou de reconhecer como real) depende da natureza e tendência das
representações já reunidas no eu, e inventaram nomes técnicos especiais para esse
processo de censura a que a nova representação deve submeter-se. O eu do paciente
teria sido abordado por uma representação que se mostrara incompatível, o que
________________
2
O termo Ich, tal como aparece em “Das Ich und das Es” (O Eu e o Isso), de 1923, é traduzido como eu ou
ego, segundo os diferentes autores que escrevem em língua portuguesa; como moi em francês e como yo em
espanhol. Adotaremos neste trabalho o termo ‘eu’ com fundamento nos esclarecimentos de Luis Carlos
Menezes sobre a revisão brasileira do ‘Vocabulário de Psicanálise”, onde admite as opções Eu, Isso e Super-
eu, devido a sua crescente utilização. (apud Souza, 1999, p. 94). Obviamente, conservaremos o termo “ego”
quando assim constar no original dos diversos autores citados.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 105
provocara, por parte do eu, uma força de repulsão cuja finalidade seria defender-se da
representação incompatível. Essa defesa seria de fato bem-sucedida. A representação
em questão fora forçada para fora da consciência e da memória (Freud, 1893-95, p.
276, grifo meu).
É uma suposição necessária que não esteja presente no indivíduo, desde o começo, uma
unidade comparável ao eu; este deve ser desenvolvido. Bem, as pulsões auto-eróticas
são iniciais, primordiais, portanto, algo deve se agregar ao auto-erotismo, uma nova
ação psíquica, para que o narcisismo se constitua (Freud, 1914, p 74).
Este é o conceito que dá origem à famosa frase da conferência XXXI : “Wo Es war,
soll ich werden”: onde era o isso, que haja o eu. Ou, como traduzido para o espanhol, na
versão da Amorrortu: ”Donde Ello era, Yo debo devenir” (Freud, 1932, p.74).
Não encontramos em Freud nenhuma diferenciação clara entre eu ideal e ideal
do eu,4 mas as bases para futuras conceitualizações já são anunciadas:
Esse eu ideal é agora o alvo do amor de si mesmo, desfrutado na infância pelo eu real. O
narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ideal, o qual, como o
eu infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a
libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de
uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição
narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de
________________
4
”Depois de Freud, certos autores retomaram o par formado por estes termos para designarem duas
formações intrapsíquicas diferentes. Numberg, em particular, faz do ego ideal uma formação geneticamente
anterior ao superego: O ego ainda inorganizado, que se sente unido ao id. Corresponde a uma condição ideal
(...) No decorrer de seu desenvolvimento, o sujeito deixaria para trás este ideal narcísico e aspiraria a
regressar a ele, o que acontece sobretudo, mas não exclusivamente, nas psicoses”(Laplanche e Pontalis:
“Vocabulário de psicanálise”, 1990, p. 139).
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 108
terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder
reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um eu ideal. O que ele
projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua
infância, na qual ele era o seu próprio ideal (Freud, 1914, p. 91).
Esta nova formação partiria da influência crítica dos pais “agora agenciada pelas
vozes” (idem, p. 92) dos professores e todas as outras pessoas do meio social, e do meio
social ampliado representado pela opinião pública. Encontramos, aqui, um sinal claro
do que mais tarde, em 1923, irá se constituir como um conceito fundamental da
psicanálise: o supereu.
Neste mesmo texto, Freud ainda afirma que a supervalorização dos pais em
relação a seu bebê não é outra coisa senão a reprodução do próprio narcisismo parental
já abandonado. Observa-se, assim, uma compulsão a atribuir à criança todo tipo de
perfeições e a esquecer os defeitos. Ao mesmo tempo, tenta-se poupá-los das exigências
culturais e da submissão às leis da natureza que eles deveriam reconhecer. Assim, “Sua
majestade o bebê” (idem, p. 88), surge como figura central que deverá cumprir os
sonhos irrealizados dos pais.
Já na terceira parte de “Introdução ao Narcisismo”, Freud se pergunta sobre o
que aconteceu com o narcisismo infantil e o que aconteceu com a libido do eu. Claro
que não foi toda desviada aos investimentos objetais, então Freud responde: sucumbiu à
repressão. E acrescenta: “Temos dito que a repressão parte do eu; poderíamos precisar
ainda mais: do respeito do eu por si mesmo” (idem, p. 90).
Em seguida, ele se pergunta por que este mecanismo produz tão diferentes
efeitos nos diferentes indivíduos; por que as mesmas impressões, as mesmas moções
pulsionais, são por alguns reprimidas e por outros não: “Podemos dizer que há erigido
no interior de si um ideal, pelo qual mede seu eu atual, enquanto no outro falta essa
formação de ideal. A formação do ideal seria, de parte do eu, a condição da repressão”
(idem, p. 90). A repressão, então, é função do eu e tem como origem exigências éticas e
culturais.
Esta idéia é retomada em “O eu e o isso”, de 1923, quando Freud afirma que o
eu é a parte do isso alterada pela influência do mundo exterior, a parte que prudentemente
se adapta, (como sustentava em 1911) priorizando o princípio de realidade sobre o
princípio de prazer. Em “Esboço de Psicanálise” de 1938, retoma esta mesma questão,
concluindo uma explicação para a origem do eu:
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 109
Sob a influência do mundo externo que nos cerca, uma porção do isso sofreu um
desenvolvimento especial. Do que era originalmente uma camada cortical, equipada
com órgãos para receber estímulos e com disposições para agir como um escudo
protetor contra estímulos, surgiu uma organização especial que, desde então, atua como
intermediária entre o isso e o mundo externo. A esta região de nossa mente demos o
nome de eu (Freud, 1938, p.143).
Freud coloca o narcisismo como o primeiro pólo onde a libido, embora ainda centrada
no sujeito, já não está mais dispersa, mas sim organizada em função de uma imagem: a
imagem de si. Fruto de uma diferenciação progressiva a partir de um solo original, o
ego surge como uma unidade frente à diversidade do pulsional, que até então funcionou
de maneira anárquica e dispersa... (Monzani, 1998, p. 245).
será a partir destas idealizações 5 que vão se constituir as instâncias idealizadas do eu:
eu ideal e ideal do eu.
Neste ponto, entramos no campo da identificação, que devemos encarar como
um dos mecanismos privilegiados na constituição do eu e em suas futuras modificações.
Um mecanismo tão fundamental que Freud chega a definir o eu como um “precipitado
de identificações abandonadas” (Freud, 1923, p. 31). Pode-se considerar que o conceito
de identificação abre as portas para as posteriores elaborações freudianas sobre a
cultura, pois oferece pistas fundamentais para pensar a influência do social na
constituição do eu, como o encontramos em “O Malestar na Cultura” (1930) .
Para Renato Mezan, a introdução da problemática da identificação faz com que o
conceito de eu passe por um profundo remanejamento a partir do qual podemos verificar
que há quatro elaborações teóricas: a primeira refere-se à função inibidora apresentado
no Projeto, na qual “sua emergência é exigida para controlar o investimento
alucinatório próprio do processo primário” (Mezan, 1991, p. 175). A segunda é sugerida
em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico”, de 1911, e nela
o eu seria suporte das pulsões de auto-conservação. A terceira se funda sobre o conceito
da narcisismo, tal como o encontramos em “Introdução ao Narcisismo” de 1914; sobre
este ponto, o autor diz que “o narcisismo primário consiste no investimento libidinal
primitivo do ego, do qual emanam, posteriormente, as porções de libido dirigidas aos
objetos exteriores” (idem, p. 178). A libido do ego designa aqui o fato da pulsão sexual
tomar por objeto o eu sem por isso abalar sua função de preservação. Fazendo
referência ao princípio de constância da energia libidinal proposto por Freud.
O ego aparece assim como um suporte constante de energia libidinal, que não se origina
nele, mas o toma como estação intermediária do percurso da libido, à maneira de um
depósito de água: o líquido não é gerado ali, mas é preciso manter uma reserva
constante para distribuí-la pelos canais de irrigação que conduzem aos objetos.Vemos
que além de elaborar o conceito de organização libidinal narcisista, o que Freud faz
neste texto, é sugerir uma verdadeira estase da libido, uma permanência dela no ego,
capaz de realizar fluxos e refluxos em relação ao mundo exterior” (Mezan, 1991, p. 178)
________________
5
Sobre este particular sugerimos a leitura de “Introdução à Metapsicologia Freudiana” vol 3 p. 56 e
“Freud e o Inconsciente” p. 204, de L. A García Roza.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 111
Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao
preço de uma fenda no eu, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo
passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma
divisão do eu. Todo esse processo nos parece tão estranho porque tomamos por certa a
natureza sintética dos processos do eu. Quanto a isso, porém, estamos claramente em
falta. A função sintética do eu, embora seja de importância tão extraordinária, está
sujeita a condições particulares e exposta a grande número de distúrbios. (Freud, 1938,
p 275, grifo meu)
Pouco mais de 10 anos depois de Freud ter escrito este artigo, Lacan volta à
questão da dualidade, da divisão, da fenda, apresentando o eu sob dois registros: o moi,
________________
6
Voltaremos nossa atenção sobre “Luto e Melancolia” no capítulo que segue.
7
Freud relata o caso de um menino que teve conhecimento dos genitais femininos por sedução de uma
menina mais velha, ao que se seguiu uma atividade onanista que ao ser surpreendida pela babá provocou
uma ameaça de castração. (Freud, 1938, p. 276.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 112
________________
9
Não é objetivo deste trabalho nos aprofundar no conceito de supereu mas desejamos acrescentar aqui
uma formulação de J.D Nassio pela qual, assim como o supereu primordial seria o herdeiro do Complexo
de Édipo, o supereu tirânico seria o herdeiro de um trauma primitivo, de uma vociferação parental que
não pode ser capturada simbolicamente. (ver Nassio, 1991, p.134).
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 114
________________
10
Este termo aparece repetidas vezes na tradução em português da Imago, mas não na espanhola da
Amorrortu. O que a primeira traduz como sujeito, a segunda o faz como “yo próprio”, “individuo”,
“persona” e outros.
11
Ver p. 111 deste capítulo.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 115
fendido’, ‘sujeito dividido’ ou ‘sujeito barrado’, cunhadas por Lacan, [...] consiste
inteiramente no fato de que as duas ‘partes’ ou avatares de um ser falante não têm
nenhum traço em comum: elas estão separadas de forma radical” (Fink, 1998, p 67).
Fink fala de um “tornar-se” sujeito. Se há um estranho que fala por nós, que nos
faz dizer o que não queremos, alguma coisa que parece externa mas incomoda como
própria, tornar-se sujeito será tomar essa alteridade para si, implicar-se na estranheza,
excluir as causas do destino e se apropriar dessas vicissitudes. Isso implica fazer a
passagem de objeto a sujeito do próprio destino, causa da própria existência, no
processo de subjetivação. Então o sujeito será dinâmico, móvel, sempre mutante,
passível de diversos posicionamentos. O sujeito não será a cristalização de imagens
ideais e sim o surpreendente sobre si mesmo. Será apenas um lampejo que cria uma
metáfora, que substitui um não senso por um novo sentido, que produzirá uma ilusão de
persistência e continuidade (muito frágil, certamente). O sujeito se descobrira ali onde
não sabia que estava. O sujeito irrompe quando, ante uma surpresa sobre si mesmo,
pode assumir-se como protagonista. Onde uma vez reinou o discurso do Outro, o sujeito
é capaz de dizer “eu”. Não “aconteceu comigo “ ou “eles fizeram isto comigo” ou “o
destino tinha isso guardado para mim” mas, “eu fui”, “eu fiz”, “eu causei”. E ainda
comenta:
Mas embora ele seja um sujeito tão evanescente ou de vida efêmera quanto aquelas
interrupções conhecidas como lapsos de língua e atos falhos, esse sujeito especificamente
lacaniano não é tanto uma interrupção mas o ato de assumir isso, no sentido francês do
termo assomption, isto é, uma aceitação da responsabilidade por aquilo que interrompe,
assumir a responsabilidade (Fink, 1998, p. 69).
Podemos ver que, segundo as elaborações deste autor, tornar-se sujeito é ir além
do registro imaginário do eu. É ter um posicionamento em relação ao Outro, ou melhor,
uma postura em relação ao desejo do Outro, e aqui já estamos falando da ordem
simbólica. Tornar-se sujeito é assumir a divisão, o que cancela a unidade e acaba com a
onipotência; é ser cindido, barrado e, ao mesmo tempo, estar sempre tentando superar
esta situação, sabendo antecipadamente do fracasso inevitável. É condição do sujeito a
falta de estabilidade e permanência.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 116
2.1. Antecipação
ela se projeta sobre o corpo do infans – quando de seu nascimento – tomando o lugar
deste a quem se dirige o discurso do porta-voz” (Aulagnier, 1979, p. 109).
A mãe fala a uma “sombra” de quem espera uma resposta; a resposta é imediata
porque foi pré-formulada, como uma espécie de “solilóquio a duas vozes executado pela
mãe” (Aulagnier, 1979, p. 110), que fala a uma sombra de seu próprio discurso. Neste
solilóquio, a mãe projeta sobre o infans aquilo que ela gostaria que ele se tornasse.
Idealização projetada de suas próprias idealizações edípicas reprimidas. Estes enunciados
testemunham o desejo materno ou, ao menos, a parte desse desejo que se pode
transformar em dizível e lícito, desejos que representam aquilo a que a mãe precisou
renunciar em virtude da repressão, aquilo que esqueceu alguma vez ter desejado.
________________
13
“Está vinculado à linguagem, mas não estruturado como tal”. Neste ponto, Piera Aulagnier marca uma de
suas diferenças com Lacan: “Para mim, o eu é uma instância que está diretamente vinculada à linguagem.
Não há lugar, na minha concepção metapsicológica, para o conceito freudiano de eu indiferenciado. O eu
antecipado é um eu historizado que inscreve a criança, desde o começo, em uma ordem temporal e
simbólica. Minha diferença com Lacan é que, para mim, o eu não está condenado ao desconhecimento, nem
é uma instância passiva. Embora suas primeiras identificações sejam fornecidas pelo discurso materno, o eu
é também uma instância identificante, e não um produto passivo do discurso do Outro” (Aulagnier apud
Hornstein, 1994, p. 369). Cabe notar que Piera Aulagnier tampouco fala de supereu, pois ela prefere usar a
denominação “ideal do eu”. Ela considera que a ação do supereu está nos ideais que “o eu se propõe com
todas suas exigências e excessos possíveis” (idem, p. 368).
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 118
O que a mãe deseja é ser todo o necessário à vida do infans, ser a única
provedora de amor e ser reconhecida como tal, sendo que ela é a única a ter um saber
sobre o corpo e as necessidades do infans. Uma forma de violência primária, que impõe
à psique do infans uma eleição, um pensamento ou uma ação motivados pelo desejo da
mãe, mas que é absolutamente necessária ao desenvolvimento do eu. O perigo reside em
que esta violência pode facilmente resultar excessiva, fato que só pode ser evitado se a
mãe tiver a capacidade de renunciar a ser a única fonte de satisfação para essa criança.
Desse modo, aceitando a diferença, produzindo alteridade, ela pode investir no pensar
do filho como produto independente dela, um pensar autônomo onde caibam até
segredos; ela tem de poder aceitar um não saber alguma coisa em relação ao filho. Sobre
este aspecto, Hornstein escreve:
O desejo da mãe de ser tudo para essa criança torna-se a demanda do infans; ele
espera da mãe justamente aquilo que ela deseja ser para ele, aquilo que ela quer que ele
demande. Entretanto, este estado ideal tem suas limitações, especialmente de ordem
temporal. Esta coincidência de demanda e desejo entre mãe e filho será legítima
somente durante o breve período de tempo em que ela é o único outro possível; fora
desse tempo, a coincidência será da ordem do excesso de poder e, conseqüentemente, da
ordem da violência desnecessária.
Em princípio, o que satisfaz à mãe e a única coisa que o bebê pode entregar
como símbolo de reconhecimento é o ótimo funcionamento de seu organismo. O bebê
cresce, a função paterna faz o seu trabalho e novas funções aparecem. Assim, a mãe
passará a exigir dele que seja capaz de pensar (dentro dos padrões por ela determinados
nisso que chamamos educação) pois só assim poderá confirmar que continua dando a
seu bebê todo o necessário para sua evolução.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 119
Assim, o eu fica capturado numa trama temporalizada, onde percebe que nunca
será idêntico ao que já foi. Essa memória de um passado incerto, porém, lhe dará a
certeza do presente e a promessa de um futuro possível. O “já-aí”, embora confuso, lhe
permitirá pensar-se como possuidor de uma história. A voz da mãe, que lhe conta uma
história dessa primeira fase da vida em que o eu ainda não era seu próprio historiador,
lhe outorga um passado coerente com seu presente, sem o qual só contaria com as
estranhas “memórias” de seu corpo.
Quando um sujeito começa seu relato autobiográfico e diz: “eu nasci em....”, está
falando de uma parte de sua vida que ele desconhece e sobre a qual não guarda
nenhuma memória. Esse dado e outros que se seguem no relato como: “filho de....” são
fundamentais na construção de sua história, já que constituem um conhecimento do qual
é impossível prescindir e que depende exclusivamente dos outros. Para que os outros
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 121
possam lhe oferecer essas faltas fundantes, ele deve ter sido acolhido neste mundo por
testemunhos sociais capazes de guardar para esse sujeito a memória do que ele foi
quando ainda não era um eu.
De qualquer maneira, e não importa qual seja a história contada, o eu
permanecerá tributário do outro que sabe sobre ele algo que ele mesmo está impedido
de saber, alguma coisa de fundamental sobre o tempo da origem. O eu se vê obrigado a
se pensar como sujeito histórico a partir de uma origem anterior a sua existência, sobre
o que nada sabe nem pode saber; o eu deve engendrar um antes dele mesmo para se
temporalizar e poder escrever sua história, que resultará necessariamente romanceada,
imersa num tempo sempre confuso e fugidio.
instituições. Com isso, ele também recebe algo em troca: se cumprir com esta missão
terá um lugar garantido na cultura.
Isto quer dizer que, quando a criança se afasta do casal parental (com toda sua
bagagem de identificações), deve encontrar no âmbito social referências identificatórias
mínimas que lhe permitam um movimento de projeção de futuro. Assim, tornar-se-á
porta-voz de seu grupo e transmitirá os valores herdados à sua descendência.
Os fundamentos destes enunciados culturais, que dependendo do tipo de cultura
poderão ser míticos ou científicos ou do senso comum, segundo a voz que anuncia a
origem e o modelo, dirão sempre sobre a origem do grupo, sua razão de ser e os ideais
que se justificam historicamente. Nesta retroatividade vemos já se esboçar um
movimento temporal.
Dizíamos que o porta-voz formula os anelos identificatórios que se referem ao
futuro; é a mãe que diz ao bebê como ele será, ela o antecipa. A criança ficara identificada
com o anseio do porta-voz, transformando-o em seu próprio. É necessário que alguém
lhe diga: “quando cresceres, tu serás um homem bom...”, para que ela possa dizer:
“quando crescer, eu serei um homem bom...”, é necessário esse investimento no futuro.
O porta-voz que antecipou o eu dessa criança, ainda antes do nascimento, deverá continuar
investindo nessa segunda antecipação. Desta vez, será uma antecipação da própria
possibilidade de existir no futuro. Não será, contudo, uma existência igual ao que era; o
investimento que possibilita a continuidade do eu será no sentido do crescimento.
É necessário que o eu se aproprie dos anelos identificatórios transmitidos pelo
porta-voz, não como modelo rígido imodificável, e sim como investimento do porvir.
Trata-se de um investimento num futuro que não represente o retorno do passado como
repetição do mesmo, que permita e proponha a modificação constante do eu pelo eu e
que outorgue a esperança da continuidade identitária e a certeza de que um certo grau de
liberdade de escolha é possível.
O movimento que se abre aqui é bem interessante, pois só a aceitação da
realidade marcará que o eu idealizado – proposto pelo porta-voz – deverá ser
abandonado em benefício de outros ideais e do que poderá ser construído para o bem-
estar (e sobrevivência) desse eu. A diferença entre o eu que se descobre incompleto e
descobre que nem tudo é possível e o eu que deseja vir-a-ser marca a entrada do sujeito
na temporalidade. O eu deverá ter um projeto para si mesmo que se localizará sempre
no futuro.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 123
Esta designação deve ser separada do registro identificatório em sentido estrito [do
imaginário]: ela é co-extensiva a ele, segue uma via paralela, mas não pode ser a ela
identificada. Ela permite uma apreensão que vai demarcar a problemática identificatória,
fazendo com que esta última não seja totalmente aprisionada na armadilha da relação
imaginária (Aulagnier, 1979, p. 150).
O tempo futuro, no qual o sujeito sabe que não mais existirá, pode, desde então, ser por
ele representado como continuação de si próprio e de sua obra, graças à ilusão que o faz
crer que uma nova voz virá retribuir vida à mesmidade de seu próprio discurso,
escapando, assim, ao veredicto do tempo (Aulagnier, 1979 p. 151).
Para que o eu possa se constituir e sustentar, é necessário que este espaço extra-
familiar ofereça as condições mínimas de ser habitado14. O discurso social deve oferecer
certas referências identificatórias para que o eu possa conservar suas funções; sabe-se
também, no entanto, que estas referências devem ser constantemente investidas pelo eu.
A criança autônoma do meio familiar conserva o suporte identificatório já
recebido, mas deverá encontrar no discurso social um lugar garantido para isso que ela
é, ou seja, deverá encontrar referências básicas que lhe permitam projetar seus
investimentos num futuro no qual poderá realizar seu projeto identificatório.
________________
14
Já abordamos este tema da habitabilidade ao falar de desamparo no cap. I.
15
“A castração pode ser definida como a descoberta, no registro identificatório, de que não ocupamos
jamais o lugar que acreditávamos nosso e que, inversamente, já estamos destinados a ocupar um lugar no
qual não poderíamos ainda encontrar-nos. A angústia surge no momento em que descobrimos o risco que
implica o saber que não estamos, para o olhar dos outros, no lugar que acreditávamos ocupar e que
poderemos não mais saber de que lugar nos falam, e em que lugar nos situa aquele que nos fala. Será
necessário, então, reconhecer que as referências que asseguram ao Eu seu saber identificatório podem
sempre esbarrar numa ausência, num luto, numa recusa, numa mentira que obrigam o sujeito ao doloroso
requestionamento de seus objetos, de suas referências, de sua ideologia. Eis porque a castração é uma
experiência na qual podemos entrar mas da qual, num certo sentido, não podemos sair: podemos nos
recusar a participar dela, podemos empreender uma desesperada marcha à ré, mas é uma ilusão acreditar
que dela podemos sair” (Aulagnier, 1979, p. 158).
16
Podemos ver como estas formulações são próximas às do sujeito lacaniano. Aliás, Piera Aulagnier,
apesar de privilegiar o conceito de Eu, não deixa de nomear o sujeito o tempo todo.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 126
Para ser, o eu deve se apoiar neste desejo, mas este tempo futuro, uma vez alcançado,
deverá tornar-se fonte de um novo projeto, num movimento que só terminará com a
morte. Entre o eu e seu projeto deve persistir uma separação: o que o eu pensa ser deve
revelar um ‘a menos’, sempre presente, em relação ao que ele deseja tornar-se
(Aulagnier, 1979, p. 157).
Quando a mãe diz “coitadinho, está chorando porque ficou sozinho” ou “está
com dor de barriga”, está interpretando de acordo com seu próprio modelo e criando um
modelo para o filho. Este filho, porque indiferenciado, demanda tudo, avidamente e sem
limitações, a uma mãe que quer dar-lhe tudo, satisfazê-lo em tudo. A mãe desse modo
lhe oferece o objeto seio, sabendo que é muito mais do que alimento, que, a partir desse
encontro inicial, se instituirá como primeiro objeto da demanda. Assim cria-se essa
dialética tão especial segundo a qual “a mãe deseja que o infans demande e o infans
demanda que a mãe deseje” (Aulagnier, 1990, p. 197). Há uma demanda de libido, de
desejo, que é precursora do eu.
________________
17
Já abordamos este tema no início deste capítulo. Aqui, os comentários se referem aos pontos de vista
que sobre o particular, são apresentados por Piera Aulagnier
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 127
________________
18
Ver nota de rodapé na p. 125.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 128
recompensa que diga sobre o prazer futuro para se renunciar ao prazer mais primário. É
necessário que o futuro seja promissor para se aceitar a mudança exigida e necessária.
Mudança que depende principalmente do fato de se saber que o futuro não será igual ao
passado, apesar de que se guardará sempre a crença na recuperação da identidade entre
o que a criança já desejou e aquilo que agora se resigna a procurar.
A voz materna não poderá mais evitar as dúvidas e fechar o campo das
incertezas. Como já foi dito, à pergunta “quem sou eu?” o eu responderá em nome
próprio, forçada solidão que garante que o destino não dependerá exclusivamente do
desejo de um outro único eu. Outras vozes serão ouvidas e outras idéias de si próprio
serão constituídas, como uma duplicação da demanda que constitui o sujeito clivado, o
ser sujeito. Se entre o eu e seu projeto deve sempre existir uma separação, se entre o
“sou” de hoje e o “me tornarei” de amanhã deve sempre existir uma distância, se o eu
presente é sempre um “a menos” que o eu futuro, há que poder lidar com essa frustração
do re-encontro impossível; há que poder assumir a castração no registro identificatório,
aceitar que a tentativa de encontro entre o eu e seu ideal – o que representaria o fim do
processo identificatório – está fadada ao fracasso, e apesar disso continuar tentando.
Piera Aulagnier diz:
O eu assina, portanto, um compromisso com o tempo: ele renuncia a fazer do futuro este
lugar no qual o passado poderá retornar, aceita esta constatação, mas preserva a
esperança de que, um dia, este futuro lhe devolverá a possessão de um passado, tal qual
ele sonhou (Aulagnier, 1979, p. 157).
Trata-se, portanto, de uma esperança narcisista, que implica aceitar o fato de que
não basta desejar para ter, e jamais se poderá possuir tudo; apesar disso, o desejo de
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 129
________________
19
A justificativa para o uso de catexia e seus derivados foi feita na última página do capítulo III.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 131
________________
20
Piera Aulagnier elaborou o conceito “potencialidade” para substituir o de “estrutura” depois de seu
rompimento com Lacan em 1969.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 133
Quando, por sua vez, o eu da criança atinge este ponto, deverá concluir definitivamente
este trabalho realizado até então com a colaboração do eu dos pais: preservar uma
separação entre os emblemas imaginários e as referências simbólicas, entre os suportes
de uma esperança narcísica à qual o sujeito não renuncia nunca, e referências que lhe
designam e lhe garantem sua posição na ordem simbólica, mas lhe proíbem de ocupar
outra (Aulagnier,1989, p. 237).
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 134
Este nosso percurso pelos conceitos de Piera Aulagnier nos mostra que a história
é uma malha formada pelos fios da memória e do desejo que tecem a temporalidade do
sujeito, na qual se desenvolve seu pensamento.
Para o projeto identificatório se conservar vigente, é necessário que se exerça
uma considerável dose de repressão, pois o eu, em sua totalidade, compreende todas as
representações e enunciados nos quais ele alguma vez se reconheceu. Muitos deles
permanecerão através do tempo como objetos de investimento atual ou como simples
recordação de um momento da existência altamente investido, enquanto outros serão
rejeitados.
As lembranças dessas posições passadas não são mais do que a história do eu, o
saber do ‘eu pelo eu’, a partir do qual projetará o futuro. Mas isto só será possível
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 135
porque uma parte é esquecida, justamente aquela que não coincide com o projeto.
Assim, a própria história será coerente e adequada. Vemos então que o eu é uma história
formada pelos enunciados que constituíram o projeto identificatório, pelos enunciados
presentes que coincidem com o projeto e pelos outros que, justamente por não
coincidirem, são vítimas da ação repressora.
________________
21
Conserva-se o termo ‘estória’ em lugar de história, tal como consta na tradução de Maria Clara
Pellegrino.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 136
tão anelado – que saberá não poder ser igual, jamais. Mas, neste processo, o eu não está
só, pois novas referências virão modelá-lo, situando-o numa realidade possível e
também oferecendo miragens.
É fundamentalmente neste momento, porém, que se abre um primeiro acesso ao
futuro, pois é nele que deverá projetar o reencontro com um estado e um ser passados. O
eu deverá fazer pensável para si mesmo o seu próprio devir, deverá ter um futuro, e esta
é uma condição essencial para o seu funcionamento. O trabalho de historização é a base
do processo de identificação, que transforma um tempo do que já foi em discurso,
tempo do qual se pode falar; o discurso substitui o tempo perdido.
Usando uma metáfora bélica, Piera Aulagnier diz que o eu trava
permanentemente um combate “nunca definitivamente ganho, nem definitivamente
perdido” (Aulagnier, 1989, p. 207) para defender as posições que tanto custou a
adquirir. Posições estas que orientam o auto-investimento no seu próprio espaço
identificatório; este, embora arduamente conquistado, não está isento de ser invadido
por um inimigo externo ou interno.
O eu pode se precaver deste duplo perigo conservando títulos de propriedade
que o legitimem nesse espaço. Mas acontece que o eu perde, ao longo do tempo, todos
os documentos com os quais poderia provar que realizou sobre esse espaço um verdadeiro
trabalho de tomada de posse, convertendo-o num espaço habitável, que desalojou os
fantasmas arcaicos que o habitavam antes dele e que não cessavam de acossá-lo.
Desses documentos que lhe permitiriam mostrar ante a “lei” que não é um
usurpador, ele só conserva alguns fragmentos, alguns contratos desbotados, que falam
de pedaços de sua história, de fatos isolados que não consegue articular com o resto,
lembranças parciais de algumas batalhas e poucas conquistas. Escreve Piera Aulagnier:
“A tarefa do eu será transformar esses documentos fragmentados numa construção
histórica que dará ao autor e aos seus interlocutores a sensação de uma continuidade
temporal” (Aulagnier, 1989, p. 208), podendo assim ligar o passado ao presente, o que é
ao que foi e projetar no futuro um tornar-se. Aí, deve poder conciliar o que sempre foi, o
fixo, o ilusoriamente imodificável, com os desejos do que quer ainda vir-a-ser.
Este discurso é essencialmente seletivo, pois reconstrói o passado em função das
necessidades identificatórias do presente, tendo como objetivo fundamental substituir
um conflito. Conflito este, que será em primeira instância aquele que opôs identificado a
identificante, depois, o eu e seus ideais e, finalmente, o eu e os objetos por ele
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 138
investidos, dos quais nem sempre recebe as respostas esperadas. Mas, será através da
relação com esses objetos que o eu construirá sua própria história. Nesse sentido, é claro
que não podem faltar ao eu objetos de identificação, objetos aos quais demandar a
posição de desejante, sem a qual a construção se detém e o eu se aniquila.
Então o eu, que é uma instância não totalmente autônoma, porém tampouco
totalmente dependente, precisa do outro para se constituir e para se sustentar. O eu é
uma história construída na relação com os outros, como bem define Freud em “O eu e o
isso”. Neste texto, Freud considera que o eu é um precipitado dos investimentos de
objetos abandonados, contendo a história dessas relações de objeto. E Piera Aulagnier
acrescenta: “O Eu é um produto das sucessivas experiências de impotência em que foi
modelado pelo outro” (Aulagnier apud Hornstein 1994, p. 73).
Neste sentido, as idéias que constrói a seu respeito terão sempre uma dupla
referência: por um lado, o saber que já possui sobre si, ou seja, seu próprio
reconhecimento; por outro lado, terá o reconhecimento que deverá encontrar no olhar
dos outros. Progressivamente, o eu abandonará a escuta exclusiva de uma única voz que
o defina, para ouvir o conjunto de vozes, o discurso do conjunto.
Na identificação do narcisismo secundário, vão se incorporando ao eu traços dos
objetos investidos, o que permite abandoná-los como tais. Assim a perda pode ser
compensada, pois o investimento no eu substitui a eleição libidinal. O objeto é
neutralizado ao ser substituído, convertendo-se o próprio eu em objeto de desejo. O eu
passa a ser o objeto, ou ao menos um traço dele.
Ter o objeto (registro objetal), não sê-lo (registro narcísico), aceitá-lo como
diferente, como um outro, significa aceitar sua variabilidade, sua vulnerabilidade e até
sua ausência. Significa aceitar o sofrimento da não coincidência com o ideal e o
sofrimento da frustração; diante disso, o eu poderá empobrecer suas relações objetais
com um sobre-investimento narcísico que suprime, por incorporação, a distância que o
separa dos objetos.
Há, sem dúvida, algo de muito paradoxal na maneira pela qual o processo
identificatório institui a existência do eu, pois, sem as identificações primordiais com os
enunciados maternos, ele não existiria. Para existir, todavia, tem que poder se separar
desses enunciados. Deve haver um eu separado do eu da mãe, tem de haver uma
possibilidade de não identificação, e esta possibilidade será dada pela presença de uma
determinação simbólica no psiquismo dos pais que o reconheça como outro (Aulagnier
apud Hornstein, 1994, p. 76).
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 139
A realidade deverá sempre estar de acordo com o modelo que se tem dela, o que
permite o afastamento do que pode se apresentar como perigoso ou ameaçador para o
eu. A realidade assim concebida representa um saber que permite a construção do saber
sobre o eu. Isto quer dizer que este eu que sabe sobre si, que tem um conhecimento
perfeitamente estruturado da realidade exterior, tem também um saber sobre sua própria
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 140
realidade psíquica, e é sobre estes dois fatores – mundo físico e mundo psíquico – que a
ação modificadora há de se realizar.
Trata-se no entanto de um saber que versará, muito especialmente, sobre aqueles
assuntos que o colocarão numa situação de salvaguarda de suas funções, relativas ao
próprio corpo, a suas necessidades e às experiências que, em contato com o mundo,
mostraram-lhe situações de perigo. O princípio de realidade, então, está formado por
fragmentos do saber que se tornam vitais para a sobrevivência e o bem-estar do eu.
Em princípio, a realidade é aquilo que se nos apresenta como uma verdade
evidente: “para o sujeito, a realidade coincide com a totalidade dos fenômenos cuja
existência constitui uma evidência” (Aulagnier apud Hornstein, 1994, p. 118). Verdade
e realidade são dois conceitos intimamente ligados ao cultural e aos referenciais
dominantes. Assim, cada cultura criará seus próprios parâmetros de realidade, que darão
conta da produção de um pensamento explicativo sobre as causas dessa realidade.
Por outro lado, existe uma “causalidade demonstrada” mais ou menos comum a
todos os membros de uma cultura, não questionável, sobre a qual os indivíduos tecerão
suas fantasias e farão suas interpretações pessoais. Ela constitui uma “causalidade
interpretada”, esta singular, referida a sua própria maneira de participar da realidade e
passível de ser questionada pelos outros. O parâmetro explicativo da realidade pouco
importa, o que nos interessa agora é que ambos os tipos de explicações co-existem em
todos os sujeitos, e por isso é tão difícil chegar a um acordo sobre algo aparentemente
tão evidente quanto a realidade (Aulagnier, 1990, p. 233).
De qualquer ponto de vista, devemos concordar em que a explicação causal é
uma necessidade psíquica e a ausência de explicação para o sofrimento pode causar
profundos danos à integridade psíquica. Conhecer a causalidade do que aflige o homem
é um de seus grandes anseios; conhecer a origem possibilita se dirigir a um destino
também conhecido – as explicações religiosas que o digam.
O eu possui uma exigência de significação e, assim, tudo que vive e forma parte
de seu universo passará por alguma prova de realidade e será atribuído a uma
causalidade inteligível. Só pertence à realidade aquilo que se ajusta a um saber, que será
o saber dominante em cada cultura, seja ele mítico, científico ou do senso comum, o que
constitui uma evidência. É desta forma que o eu poderá produzir representações ou
enunciados, poderá pensar e questionar a realidade, pois, apesar das constatações da
realidade, o eu está condenado a duvidar: a atividade de pensar é condição de existência.
CAPÍTULO IV – HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO 141
Agora, esta “função de intelecção” apresenta-se à psique como uma nova “zona-
função”, zona erógena investível que será fonte de prazer. Assim, o prazer do pensável
deverá anteceder a atividade de pensar, própria do processo secundário.
É necessária uma certa reciprocidade entre o sujeito e a realidade. Esta deve
colaborar para que o corpo e as atividades psíquicas sejam preservadas, para que o eu
queira investir na vida e não renuncie a um ou às outras, para que queira pensar. O eu
deve extrair um prazer mínimo necessário para que a vida seja possível, para preencher
suas necessidades psíquicas e suas exigências vitais. Uma condição mínima necessária
para que o eu invista na preservação de seu corpo e no funcionamento de seu psiquismo.
Este prazer é necessário para viver, porém não é suficiente para que o eu escolha
continuar vivendo. Para escolher continuar investindo na vida como possibilidade, é
necessário um “plus” de prazer, um prazer este sim, suficiente para suportar os
sofrimentos que a realidade venha lhe impor. O prazer suficiente reside na possibilidade
de escolher e ser escolhido fora do campo do estritamente necessário, aquilo que faz
com que a vida, além de ser possível, valha a pena.
CAPÍTULO V
INTRODUÇÃO A UMA
PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS
________________
*
Este poema foi escrito por uma senhora que aos 49 anos recebe um diagnóstico de Alzheimer em fase
inicial. Dez anos antes, devido a uma grande infelicidade gerada pela permanente “discórdia” com seu
marido e submergida em um estado depressivo, começa a escrever um diário onde foram encontrados
estes versos. Citado por André Chévance , 2003, p 82.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 143
J ean Maisondieu, na nova edição de “Le crépuscule de la raison” 1 (2001), retoma sua
antiga preocupação com a questão das demências e as identifica com um “naufrágio
senil” que, como todo naufrágio pode ter inúmeras causas. Dentre estas causas, talvez, a
mais relevante seja para este autor, a “tempestade existencial” a que a velhice está
submetida em decorrência do confronto com a morte, agravado pelas condições da
existência nos dias de hoje. A tempestade existencial deixaria o sujeito à deriva, sem
porto seguro, sem parâmetros para pensar, e sem vontade de fazê-lo. “O demenciado se
protege de pensar porque isso o faz sofrer demais, mas a boa vontade daqueles que
desejam ajuda-lo contraria esse projeto, o que o leva a reafirmar, cada vez mais, a
determinação de não mais pensar” (Maisodieu, 2001, p. 18) . Como condenados à
morte, aqueles que não suportam a idéia de ter de perder a vida podem preferir perder a
cabeça. Assim como alguns idosos, aterrados pela imagem da velhice que o espelho lhes
devolve, podem evitar o reconhecimento, outros podem destruir a própria razão em um
bem sucedido esforço de escapar de uma lucidez insuportável.
Indo ainda mais longe, Maisondieu declara que a demência não existe, que não
passa de um mito, mas que as pessoas demenciadas são cada vez mais numerosas e
reafirma que a doença é que deve ser colocada entre parênteses, não os doentes.
Entre estes demenciados há, sem dúvida, muitos portadores de lesões orgânicas
que provocam diversos efeitos sobre seu funcionamento psíquico, e muitos outros que,
________________
1
A primeira edição é do ano 1988 . Da bibliografia pesquisada sobre uma articulação entre demência é
psicanálise, esta obra é a mais antiga que encontramos depois da de Régis pertencente aos primórdios do
sáculo XX e que já foi citada no cap. II.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 144
Segundo Berlinck (1997), este termo é empregado pela primeira vez pelo
psicanalista Pierre Fédida2, para definir uma área de pesquisa sobre o sofrimento
psíquico diferente da Psicopatologia Geral que é também campo da psiquiatria. Trata-se
pois, ao meu ver, de uma abordagem específica para a psicanálise que dialoga não só
com a psicopatologia geral, mas também com outras áreas do conhecimento como é a
das ciências sociais. Diz Berlinck:
________________
4
“A palavra solução deve ser entendida no sentido matemático do termo: uma equação que comporta
diferentes variantes frente às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma
solução será encontrada” (Ceccarelli, 2003, p 21)
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 147
Uma das cenas mais freqüentes na clínica com idosos e com sujeitos em
processo de envelhecimento é a de pessoas que, embora saudáveis, manifestam seu
medo de vir a sofrer algum tipo de deterioração senil, um acidente vascular cerebral que
os deixe em situação de dependência, ou qualquer doença degenerativa que os prive do
pleno domínio de suas faculdades mentais. Medo da morte psíquica, que como morte do
simbólico, desfalecimento do ser, pode se adiantar á morte biológica. Nunca na minha
experiência clínica, achei alguém que preferisse sofrer uma doença longa e limitante do
bom funcionamento mental à morte rápida e sem sofrimentos para ele próprio e sua
família.
Em 1937, em carta a Arnold Zweig após a morte de Lou Andréas-Salomé, o
próprio Freud manifestava seu temor à decadência com as seguintes palavras:
Não gostaria de durar mais, pois tudo a meu redor está se tornando mais sombrio, mais
ameaçador, e a consciência de minha própria situação de desamparo mais aguda... O
medo de que o processo de envelhecimento acarrete a perda de partes importantes da
personalidade ainda intacta é um fator para que meu desejo de vê-lo torne-se mais
urgente (Freud in Schur, p. 597).
sua força de desligamento e destrutividade que, claro está, adquirirá diferentes formas e
se fusionará de diferentes maneiras com a pulsão de vida, dependendo de cada sujeito
singular. As saídas, então, serão variadas, a religiosidade, a realização de projetos de
vida possíveis a curto prazo, o investimento em projetos para as futuras gerações, a
serenidade ou, a mania e a regressão. Ou seja, formas elaborativas ou regressivas de
dirimir esse inevitável confronto.5 A vida é o conjunto das forças que se opõem à morte,
a vida inscreve-se no tempo e se confronta de forma inelutável com seu fim.
Mas a morte não é um problema externo ao ser humano, algo que acontece como
um acidente. A partir dos anos vinte, Freud vai considerar a morte como a consumação
de determinadas forças internas próprias à vida, não como um fim que se pode desejar
ou do qual se deseja fugir, mas a realização de uma pulsão que produz o retorno ao
inanimado, ao silêncio. A vida surge e se desenvolve sobre este fundo, as forças da
pulsão de morte são inerentes à vida mesma. Todos os fenômenos vitais “derivam da
ação conjugada e antagônica” das pulsões de vida e pulsões de morte como Freud
explicava á Einstein em carta de setembro de 1932.
A pulsão de morte faz sua controvertida entrada no corpo conceitual da teoria
freudiana em “Além do princípio do prazer”, de 1920, apenas dezenove anos antes da
morte de Freud. Com esse conceito, mudo e escondido, a psicanálise, que até então se
pretendia formando parte do universo da ciência clássica, entra definitivamente no
campo da especulação.6
Freud já vinha trabalhando havia muito tempo a questão da agressividade, do
sadismo, do masoquismo e da repetição, mas continuava a se perguntar sobre sua
origem e mecanismos, já que não encontrava solução para o fato de, no mesmo campo
pulsional, existirem tendências de união e separação, de amor e de morte. Em 1920,
resolve a questão com o postulado da pulsão de morte que, em contraposição a Eros,
incluirá todas as tendências destrutivas do ser humano.
Mais do que isso, a pulsão de morte será o âmago de toda pulsão. Pulsão muda,
despercebida enquanto fusionada com a pulsão de vida, mas que faz sua aparição
dramática quando se desfusiona, como no caso da melancolia, em que o super-eu surge
como seu campo de cultura privilegiado.
________________
5
Ver “Corpo, tempo e envelhecimento”, Catullo Goldfarb, 1998.
6
Ver parte IV de “Além do princípio do prazer” de 1920 e Green , 1993, p. 20.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 149
Como nos preparar para a morte se não podemos deter nela nosso pensamento? Sei hoje
o que ignorava na época de minha licenciatura em letras: esta preparação se confunde
com o desapego. Preparar-se para a morte, é desatar nós mesmos, um de cada vez, os
laços que nos mantém, romper quantas amarras consigamos de modo que, quando o
vento se levante, de repente, nos arrastará sem que resistamos. Desapego que se realiza
dentro de nós mesmos e não se manifesta para fora. Nossa vida externa não fica afetada
(Mauriac, 1965, p. 328)
ricos, mais calmos, os mais felizes de todos” (“Ramalhetes de outono”, citado por
Simone de Beauvoir em “A velhice").
Mais adiante, conclui que o conflito pulsional é algo singular, novo, que tem
mais a ver com um fragmento de pulsão agressiva livre que com a quantidade de libido
disponível. Dado por demais interessante quando se pensa nas patologias do
envelhecimento que são freqüentemente adjudicadas à diminuição de libido. Vemos,
então, que esta diminuição não é necessariamente “coisa de velhos” e nem deverá
provocar as diversas patologias da velhice, que poderá ser vivida serenamente, sem
conflito, ainda que o quantum de libido não seja o mesmo da juventude ou sua dinâmica
seja diferente. Estamos pois, ante uma nova luz para pensar estas questões a partir do
desfusão pulsional .
________________
8
Pulsão de agressão ou destruição designa a pulsão de morte quando voltada ao exterior tendo como meta
a destruição do objeto. (Ver Laplanche, 1995)
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 151
dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) enquanto a discórdia9 tenderia à separação.
Assim, o movimento da vida seria marcado por momentos de predominância de um ou
outro princípio e juntos dominariam o mundo e a alma. Como já salientávamos,
situações de discórdia, de brigas, de conflitos familiares, lutas pelo poder ou pela
sobrevivência são comuns no começo de um quadro demencial,
Como podemos observar, o conceito de desfusão pulsional é de grande ajuda
quando pensamos a demência do ponto de vista da psicanálise, poi, a primeira idéia que
nos ocorre é que ela representaria o triunfo da pulsão de morte, ou melhor, da defusão
pulsional.
Se pensarmos na dinâmica de nosso mundo industrializado e consumista, não
nos será difícil compreender os efeitos da aposentadoria – só para tomar um exemplo –
que retira o sujeito do sistema produtivo e o joga na exclusão (e freqüentemente, na
pobreza) impulsionando-o ao desinvestimento e provocando uma espécie de desapropriação
subjetiva dos papéis sociais e uma ruptura da aliança narcisista com o mundo dos
objetos. No idoso, o desinvestimento se alia a uma forte perda da auto-estima e a libido
liberada, agora flutuante, deixa o campo livre à pulsão de morte a qual instala o desejo
da morte que pode até se concretizar no suicídio.
André Green (1988), refere-se à função objetivante, de investimento, da pulsão
de vida e função desobjetivante, de desligamento, de desinvestimento da pulsão de
morte. A pulsão de vida admite em si mesma as duas funções: fusão e desfusão, quer
dizer: pode absorver um aspecto de pulsão de morte, digamos, adaptada a seus
objetivos. A pulsão de morte, ao contrário, é só desinvestimento e desfusão que ataca
todos os objetos investidos, até o próprio eu na medida em que é objeto de investimento.
Quando Green fala do trabalho do negativo, refere-se a essa luta na qual, sob a
égide da pulsão de vida, se faz imprescindível um trabalho sobre aspectos negativos da
pulsão de morte para controlar a desfusão.10 Trabalho do negativo que pode adquirir
múltiplas feições, até as estruturantes do delírio, mas que sempre implica a
possibilidade de uma negação (da morte ou da velhice) que proteja o eu numa tarefa
elaborativa.
________________
9
O Aurélio define discórdia sob dois aspetos: desarmonia, desentendimento, desinteligência, desavença e
briga, luta.
10
Marion Peruchón (1995) trabalha sobre um tríptico de desfusão pulsional maior, no qual, além das
demência, inclui a melancolia e o suicídio.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 152
Deste modo, o centro, como objetivo de plenitude, torna-se centro vazio ou seja,
estaríamos ante uma ausência de centro. O apaciguamento de todo desejo torna a vida
equivalente à morte.
Podemos observar que o perigo reside em que o desinvestimento, em vez de
evoluir para a serenidade através da sublimação, o faça em direção a um desinvestimento
mortífero que em nada seja elaborativo. Então, estaremos ante uma depressão por
________________
11
Para Green “a ego-sintonia do Eu deve ser procurada nos investimentos do Eu por suas próprias
pulsões: é o narcisismo positivo: efeito de neutralização do objeto” (1988, p.25) e chama narcisismo
negativo “as relações entre narcisismo e pulsão de morte” (idem. p 14).
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 153
desinvestimento, que, em sua forma moderada e na maioria dos casos, pode permanecer
como tal durante longos períodos ou evoluir para patologias mais graves, que
comprometem a harmonia da vida psíquica.
Vale a pena insistir neste ponto: nesse jogo pulsional, adquirem fundamental
importância as possibilidades vinculares. Sabemos que um isolamento relacional por
exemplo, pode acelerar o desmoronamento dos objetos internos, enquanto a
conservação dos vínculos pode frear a depressão. Conservar os belos motivos para que a
vida valha a pena é questão de sobrevivência para o eu, pois, se o demenciado perde a
razão, é a razão de viver que perde.
Sabemos que a pulsão de vida aponta sempre para a atração e conservação dos
objetos fontes de prazer e a constância dos investimentos por meio da fusão e da
ligação. Sabemos que procura formas organizativas cada vez mais complexas e que é
fundamentalmente gregária. O objeto, enquanto variável, estará em permanente
mutação, mas o que se manterá constante será o investimento. Enquanto isso, podemos
dizer que a pulsão de morte trabalha no sentido contrário: desligamento, desunião e
segregação serão seus métodos, mas a finalidade principal a encontraremos no
desinvestimento.
Conheci uma palavra que descreve o estado do qual padeço há alguns meses, uma
palavra muito bela: anorexia ..... Significa ausência de apetite. Acho exagerado dizer
que eu sofro de anorexia; o pior é que quase não sofro dela, porém minha inapetência
física e intelectual aumentou tanto que já não sei que outra coisa me mantém ainda vivo
não sendo o hábito de viver (Gide, apud Péruchon p. 31)
Para Piera Aulagnier todo investimento não é outra coisa que o triunfo sobre um
desinvestimento sempre em marcha e ela se refere às suas conseqüências com a
seguintes palavras: “Compreende-se então o risco que representa qualquer experiência
que pudesse culminar nesta forma de desinvestimento, único assassinato definitivamente
bem sucedido” (Aulagnier, 1990, p. 288). Assassinato do eu, claro está. O objetivo da
vida psíquica é manter ou criar interpretações sobre o vivido, de maneira que os
investimento sobre esse vivido continuem possíveis. Então, para que aconteça um
desinvestimento, é necessária uma grande dose de sofrimento; porém, felizmente, a
pulsão de vida não renuncia facilmente às posições ganhas.
for excessivo, pode acontecer que se desinvista o próprio investimento. Pode haver um
preço que não se quer pagar. Investir e pensar são justamente as funções que se acham
alteradas nas patologias.
O sofrimento é próprio do sujeito que investe pois, como investidor, está sujeito
à perda, à desilusão, ao fracasso. É um perigo constante; porém, é também uma
necessidade, pois só o sofrimento confronta o sujeito com a diferença entre ele e os
outros, entre a realidade e a fantasia, assim, a realidade nasce do sofrimento. Com a
primeira experiência de insatisfação do alimento que não chega, o sofrimento inaugura
o processo de conhecimento do mundo real.
2. DEPRESSÃO E DEMÊNCIA
(Freud, 1914, p. 241). O luto se nos apresenta como uma reação normal à perda de um
ente querido ou de uma abstração que o substitua, como a pátria ou um ideal, por
exemplo. Considera-se normal e se acompanha sem perturbá-lo.
Os dois compartilham o mesmo sentimento doloroso, a perda de interesse pelo
mundo exterior, a inibição de toda produtividade e investimento, e a incapacidade de
amar; mas, no caso da melancolia, observamos, além destas características, a presença
de sentimentos de culpa, autocensura e expectativa de punição.
No luto, à constatação da realidade que marca que o objeto amado não mais
existe segue-se um verdadeiro trabalho de elaboração, pelo qual o sujeito deverá
aceitar essa constatação, lento trabalho de desligamento dos investimentos um a um, até
o eu ficar novamente em condições de se redirecionar a outro objeto e fazer novos
investimentos. Mas este processo, por ser difícil e trabalhoso, não será feito de
imediato; levará um tempo, em que a resistência à aceitação da realidade pode provocar
tentativas de retenção do objeto perdido, até o extremo de uma “psicose alucinatória de
desejo” (Freud, 1915, p. 228), como veremos mais adiante.
No luto não há nada de inconsciente; sabe-se o que se perdeu com o objeto que
não está mais. O mundo se empobrece. Quem está de luto precisa de tempo para
transformar a dor da perda em lembranças que passem a formar parte de sua história. O
luto é, antes de mais nada, uma relação com o tempo e, como já adiantava Freud em
Totem e Tabu (1913), o luto tem uma missão psíquica definida, que consiste em
estabelecer uma separação entre, de um lado, os mortos, e de outro as lembranças e as
esperanças dos sobreviventes. E Pierre Fédida concorda quando diz: “Freud tinha razão
ao enfatizar o ganho narcísico que, uma vez rompido o vínculo com o objeto aniquilado,
a realidade acaba por conceder ao enlutado a reconhecida vantagem de se permanecer
vivo” (Fédida, 1999, p 52) E ainda: “O luto, antes de ser concebido como um trabalho,
protege o enlutado contra sua própria destruição” (idem, p. 23).
Na melancolia, o que aparece pobre e sem brilho é o próprio eu, que está
totalmente inibido e rebaixado. Há, nesse processo patológico, algo de inconsciente;
conhece-se o objeto perdido, mas não se sabe o que foi perdido com ele. A este fator de
desconhecimento referem-se as críticas exageradas – porém lógicas – que o
melancólico, sem demonstrar a menor vergonha por isso, se faz em relação ao objeto
perdido. Fica claro que a autocensura e o desejo de punição não correspondem à
realidade do vínculo, nem à singularidade do eu que os profere. É esse justamente seu
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 157
aspecto mais misterioso, aquilo que nos leva a pensar sobre o que foi realmente perdido,
que nos convida a pensar que não constitui um processo normal.
Freud diz que “as queixas [sobre si mesmos] são realmente querelas”... ”tudo
isso é possível porque as reações de sua conduta derivam-se da revolta, que depois, por
um certo processo, foram transportadas à contrição melancólica” (Freud, 1914, p. 246).
Ou seja, o que dizem de si mesmos, o estão dizendo realmente do objeto em falta. Esse
“certo processo” do qual Freud fala não é outro que a identificação, pela qual “a
sombra do objeto caiu sobre o eu” (idem). A investidura de objeto foi cancelada mas,
em vez de se dirigir a outro objeto como acontece no trabalho de luto, dirige-se sobre o
próprio eu que passa a ser julgado sob as mesmas premissas pelas quais se julgava o
objeto perdido. Pierre Fédida fala do “canibal melancólico” com as seguintes palavras:
Gostaria de enfatizar que aquilo que chamamos depressão define-se por uma posição
econômica que diz respeito a uma organização narcísica do vazio [] que se assemelha a
uma “simulação” da morte para se proteger da morte. [] A depressão não seria a
experiência vital da morte impossível? (idem, p. 39)
E acrescenta:
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 158
Fédida (1999) articula a depressão ao vazio e diz que, embora este deva ser
considerado sob o viés do isolamento e da privação sensorial como medida da
conservação de si, pode constituir “o ponto de apoio maior da cura. Portanto, o vazio
não é a morte” (idem, p. 71) já que também representa a condição necessária anterior ao
desejo de recolher. Mas também explicita seus inconvenientes.
O luto, como trabalho, é um projeto que faz crescer o espaço da memória com as
lembranças que desafiam o esquecimento. No vazio, quem está vazio é o eu, no vazio
não há projeto, portanto não há esperança. Depressão sem culpa nem objeto que se
caracteriza por “um estado de conservação sem espera, de equilíbrio inerte anulador das
tensões, de suspensão psíquica pela evacuação de qualquer conteúdo de pensamento e
representação” (Fédida, 1999, p. 96).
Nos últimos anos, também Joel Birman vem analisando novas formas de
subjetivações na contemporaneidade, novas formas de funcionamento psíquico que, de
alguma maneira, representam um desafio para a psicanálise. Novas formas de processos
depressivos que não têm antecedentes na psiquiatria, nem foram os descritos por Freud
no texto que acabamos de comentar. Quadros que se aproximam do que a clínica vem
descrevendo há décadas como estados-limites e se relacionam com uma nova forma de
depressão onde o fundamental não seria a experiência da perda e sim o vazio.
...caracterizada pelo vazio e não pela experiência de perda, isto é, não existe a
melancolia. Confrontamo-nos assim, com uma plêiade de experiências – depressão
caracterizada pelo vazio, patologias psicossomáticas, sofrimentos de estados limites,
além dos drogados e anoréxicos – nos quais o que se encontra subjacente são
determinadas formas de impasse de subjetivação, e o que salta aos olhos num primeiro
momento, é que são forma de manifestações psíquicas coladas à experiência corporal”
(Birman, 2001, p. 154).
Mais do que uma patologia de sintomas no sentido clássico, como histeria ou neurose
obsessiva, estamos diante da patologia da depressão como uma impossibilidade de agir,
de desejar. A depressão é uma patologia bem conhecida, não é só uma tristeza. É uma
coisa que isola o sujeito, que o impede de contatos sociais. O que dá a identidade ao
sujeito é o desejo. Assim, quando ele não deseja, perde sua identidade. Há o que os
psicanalistas chamam de despersonalização: o sujeito não se reconhece. O que ele é, o
que faz aqui ou lá, ele não sabe. Há pessoas que pegam um transporte, viajam a uma
cidade qualquer e depois não sabem o que fazem lá. (Chemama, 2003)
Não haveria aqui uma cena, como seriam as cenas histéricas; há uma passagem
ao ato, em que o sujeito está submetido ao desejo do outro, responde à sua demanda de
maneira total e indiscriminada, não pode se erigir mesmo como sujeito. O sujeito se
oferece ao outro “de corpo e alma” para ser protegido do desamparo. “Nesta experiência
masoquista fundamental, o que está sempre presente é uma experiência de submissão ao
outro em busca de proteção do desamparo” (Birman 2001, p. 155). Um apelo à proteção
de um pai simbólico que não mais acode ao chamado.
Pontalis (1997) diz que o tempo da depressão é um tempo que não passa, um
tempo parado. No vazio, nada acontece, espaço atemporal sem espera, em suspensão,
como protótipo de espaço psíquico arcaico, que seria assimilável a experiências
originárias como a do nascimento, por exemplo. Momento de um eu vazio, de antes de
começar a se preencher com representações, que, utilizando um referencial kleiniano,
poderia ser assimilado a uma posição do sujeito anterior a uma posição depressiva em
que criativamente, um objeto, embora faltante, pode ser constituído.
O vazio seria uma amnésia da perda, o que torna o luto impossível. Seria
necessário o reconhecimento de uma perda para haver um luto, seria necessário um luto
para superar o vazio. Seria necessário aceitá-lo para elaborá-lo. Mas aceitar o luto é
evocar a perda, e toda perda remete à morte. No vazio não encontraríamos nem o objeto
do luto, nem a culpa da melancolia. O sujeito não alimenta qualquer queixa, nem se
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 160
sabemos que o luto, por doloroso que seja, expira de forma espontânea. Quando acaba
de renunciar a todo o perdido, devorou-se também a si mesmo e então nossa libido se vê
livre novamente para, se ainda formos jovens, e capazes de vida, substituir os objetos
perdidos por outros novos que sejam, se possível, ainda mais apreciáveis (Freud, vol.
XIV, p. 311, o grifo é meu).
________________
12
Ver elaborações de Debord no cap. I.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 161
3. A ANGÚSTIA E A DISSOLUÇÃO DO EU
________________
13
Ver nota de rodapé da p. 146.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 162
Esta instância [o eu] deve poder responder cada vez que se coloca a questão de quem é
o eu; questão que não será jamais reduzida ao silêncio, que acompanhará o homem
durante toda sua vida, e que não poderá se defrontar, salvo em momentos fugazes – com
a ausência de reposta sem que o eu se dissolva na angústia (Aulagnier, 1979, p. 156).
Mas o inconsciente parece nada conter que pudesse dar qualquer conteúdo ao nosso
conceito da aniquilamento da vida. A castração pode ser retratada com base na
experiência diária das fezes que estão sendo separadas do corpo ou com base na perda
do seio da mãe no desmame. Mas nada que se assemelhe à morte jamais pode ter sido
experimentado; ou se tiver, como no desmaio, não deixou quaisquer vestígios
observáveis atrás de si. (Freud, 1926, p. 123)
Devemos considerar o fato de que por causa das vivencias que levam às neuroses
traumáticas é quebrada a proteção contra estímulos exteriores, assim, ingressam no
aparelho psíquico, volumes hipertróficos de excitação, de maneira que nos vemos ante
uma segunda possibilidade: que a angústia não se limite a ser um sinal-afeto, mas que
seja também produzida como algo novo a partir das condições econômicas da situação.
Mediante este último esclarecimento, a saber, que o eu se poria sobreaviso da castração
através de perdas de objeto repetidas com regularidade, obtemos uma nova concepção
da angústia. Se até agora a considerávamos um sinal-afeto do perigo, agora vemos que
tanto se trata do perigo da castração como de reação frente a uma perda, uma separação.
(idem, p. 123)
O afeto de angústia frente à perda não deve ser confundida com a dor do luto. O
mesmo Freud encontrou sérios inconvenientes para separa-los e, mais uma vez apóia-se
no exemplo da angústia produzida pelo trauma do nascimento:
A primeira experiência de angústia pela qual passa um indivíduo (no caso de seres
humanos, seja como for) é o nascimento, e, objetivamente falando, o nascimento é uma
separação da mãe. Poderia ser comparado a uma castração da mãe (equiparando a
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 164
criança a um pênis). Ora, seria muito satisfatório se a angústia, como símbolo de uma
separação, devesse ser repetida em toda ocasião subseqüente na qual uma separação
ocorresse. Mas infelizmente estamos impedidos de fazer uso dessa correlação pelo fato
de que o nascimento não é experimentado subjetivamente como uma separação da mãe,
visto que o feto, sendo uma criatura completamente narcísica, está totalmente alheio à
sua existência como um objeto. Outro argumento adverso é que sabemos quais são as
reações afetivas a uma separação: são a dor e o luto, e não a angústia. Incidentalmente,
pode-se recordar que ao examinarmos a questão do luto também deixamos de descobrir
por que deve ser uma coisa tão dolorosa. (Freud, 1926, p. 159)
Mas ele se refere aqui a uma dor que não é a do luto o qual é proposto como uma
outra reação ante a perda, pois: “O luto se gera sob a influencia do exame de realidade
que exige categoricamente a separação do objeto que já não existe mais” (idem, p.160)
Por outro lado, Freud faz questão de ligar inequivocamente a angústia com a
expectativa, ou seja, sempre se trata de “angústia ante algo”, contém sempre o caráter de
indeterminação e ausência de objeto. Do contrário, estaríamos ante um sentimento
muito mais claro e preciso como é o medo. Parece-me oportuno lembrar aqui a frase de
Dorian Gray : “Não tenho medo da morte, o que me aterroriza é sua proximidade”
(Wilde 1989) Essa proximidade ameaçadora é a expectativa, essa é a verdadeira
situação de perigo na qual se origina o sinal de angústia. “Por isso antecipo o trauma,
quero me comportar como se já estivesse aí”, diz Freud (Freud, 1926 p. 155) .
4. DO EU-HORROR AO VAZIO DO EU
________________
14
Acho interessante que em francês, a palavra Psyché – que na sua origem grega significa “alma”– define
também estes espelhos verticais, tal como o testemunha o dicionário Le Robert: Grande glacê móbile
montée sur um châisis à pivots.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 166
receio de achar-me um e dois ao mesmo tempo” (idem, p. 47). Mas em certo momento
decide se olhar e o que enxerga o espanta: uma figura “vaga, esfumada, difusa, sombra
de sombra...[...] de decomposição de contornos ” (idem, p. 48) Então sim sentiu medo ...
medo de enlouquecer, pensou em fugir.
Já o texto de Guimarães Rosa é uma reflexão sobre a natureza dos espelhos, aos
quais questiona sua fidelidade pois: “há os bons e os maus, os que favorecem e os que
detraem; e os que são apenas honestos” como o próprio olhar, já que: “.. o tempo é o
mágico de todas as traições...e os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação
de origem, defeitos com que cresceram e aos que se afizeram, mais e mais” (Guimarães
Rosa, p. 120). Declara havê-los temido desde criança pois: “neles, às vezes, em lugar de
nossa imagem, assombra-nos alguma outra medonha visão” (idem, p. 121) E ainda
acrescenta:
Mas a genialidade de Guimarães Rosa não pára por aí. Depois de descrever
outras atribulações em face ao espelho, consegue expressar o desespero da des-
identificação, o aturdimento do desencontro consigo mesmo, o vazio do não
reconhecimento:
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 167
O tempo, em longo trecho é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta
curiosidade me picasse. Um dia...Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista,
inflectindo de propósito, em agudo as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei
num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo liso, às vácuas, aberto como o sol,
água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto?
Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o
transparente contemplador?......tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa
poltrona. (Idem, p. 126)
São coisas que não se devem entrever, pelo menos, além de um tanto. São outras coisas,
conforme pude distinguir, muito mais tarde –por último, num espelho. [...] Sim, vi, a mi
mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui.
Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado apenas– mal emergindo, qual uma flor
pelágica, de nascimento abissal..... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-
que-menino, só. Só. (Idem, p. 127)
Apesar do tempo transcorrido entre a escrita dos dois contos; apesar da diferença
de estilos, eles nos oferecem um material de inigualável valor ao ilustrar, desde a
literatura, um grande tema da psicanálise como é o conceito de identificação do qual já
falamos no capítulo IV ao examinar a constituição do Eu. Então mencionávamos o
estádio do espelho de Lacan e as diferentes abordagens do mesmo tema feitas por uma
autora como Piera Aulagnier. Voltaremos agora a este tema, pois a ausência de
reconhecimento da própria imagem no espelho é um fenômeno muito freqüente nas
demências .
envelhecimento olha-se no espelho e diz “esse não sou eu”, momento em que
confirmam-se as perdas do declínio físico e antecipam-se a velhice e a morte.
No mesmo trabalho, ainda comentava um conceito proposto por Jack Messy o
“Eu-horror” com as seguintes palavras:
As lembranças do passado são como uma maquiagem que tenta esconder o que o
presente insiste em mostrar, uma camuflagem da perda. Esquecer o presente e viver o
passado como pura repetição, até que este recurso também se mostre ineficaz. Depois o
esquecimento total. O sujeito desaparece começando pelo plano mais superficial e indo
ao mais profundo. Primeiro esquece o nome de objetos banais, depois o nome dos
filhos; primeiro esquece que dia é hoje, até que esquece o dia de seu nascimento.
Começam por não querer nem se olhar no espelho e acabam por ignorar a própria
existência. “Eles nem sabem que estão vivos”, como diz sabiamente um enfermeiro que
presta serviços em uma instituição geriátrica.
como pertencentes a esferas diferentes. Ante essa situação ameaçadora, não será
estranho que alguns sujeitos empreendam um movimento de fuga desses referenciais
sentidos como alheios e injustos, especialmente quando esse saber deixa de constituir
uma salvaguarda de sua própria integridade.
A possibilidade de abandonar um modo primário de funcionamento e privilegiar
o secundário só será possível se apoiando nos fenômenos do pensamento consciente: a
memória, a atenção e a ação modificadora da realidade (tanto externa quanto do eu).
Para se sustentar, o eu deve, em seu presente, poder reconsiderar o seu passado e se
projetar numa ação modificadora para o futuro, em que os erros possam ser reparados e
os acertos repetidos; deve poder pensar seu futuro mas, fundamentalmente, deve poder
realizar uma ação verificadora da realidade, que precisa coincidir com suas lembranças.
Deve poder confiar em sua memória e na validade de seu saber.
Comprovamos, então, que algumas condições são necessárias para o sucesso da
ação modificadora. Piera Aulganier analisou quatro condições básicas que não poderiam
faltar para atingir este objetivo: “1) O bom funcionamento de certos sistemas
fisiológicos 2) Um meio ambiente conforme às exigências do corpo 3) O consenso do
grupo 4) O consenso de sua própria psique..." (Aulagnier, 1990, p. 243).
Vale notar que, no envelhecimento, acontece freqüentemente de falharem os três
primeiros de forma simultânea, do que é fácil deduzir que o quarto resulte abalado,
provocando conseqüências patológicas de difícil resolução como a demência. O eu do
demenciado não pode mais se automodificar, por isso retorna ao primeiro tempo de
dependência, no qual o outro decide sobre sua história.
No capítulo anterior, ao falarmos de projeto identificatório, dizíamos que a
identidade e o projeto são enlaçados à memória. Tanto é assim que podemos observar
como a perda de memória, independente da intensidade e do motivo que a cause,
provoca a perda de consideráveis fragmentos da identidade. Víamos também que a
memória está ligada a um modo de repetição15 que insistentemente procura o reencontro
com o prazer, e a demência representa um estado em que esta repetição produtora de
memória e história – própria do narcisismo secundário – é anulada.
Cabe pois pensar que essa anulação pode ser causa e não conseqüência em
alguns estados demenciais. Nessas circunstâncias, estaríamos na presença de um
________________
15
Ver cap. III.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 172
________________
16
Já nos referimos ao tema da reminiscência no cap III.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 174
que se realizará por etapas que afetam, nessa ordem, identidade de pensamento e
identidade de percepção: em um primeiro momento encontramos uma perda da
representação de palavra (sabe que objeto deseja, mas não lembra a palavra que o
nomeia) e, posteriormente, a perda da representação de objeto (não sabe reconhecer um
objeto nem sua função).
Deste ponto de vista, podem-se entender as perturbações da memória como
perturbações do pensamento, conseqüências de um trabalho representacional que não
acontece como deveria. A partir deste momento, a presença do outro que ajude a
construir uma cadeia de associações é fundamental.17
No decurso deste processo, os afetos que ainda se mantêm por algum tempo vão
mudando lentamente, vão se reduzindo às mais simples manifestações de prazer ou
disprazer, vão perdendo referenciais, confundindo os objetos e a deterioração dos
vínculos e de toda atividade simbólica impossibilita qualquer exercício de autonomia. A
capacidade de abstração desaparece e se dissolvem as diferenças espaço-temporais.
Tudo isso acompanhado por um abrandamento do supereu provocado por uma
regressão do eu, por uma cada vez menor capacidade de realizar associações,
julgamentos, por uma incapacidade de analisar a realidade, de colocar o prazer a serviço
da censura. O eu fica diminuído, mais observador que participante, mais atravessado
pelas pulsões do que capaz de orientá-las.
Podemos pensar também numa recusa (renegação – verleugnung)18 como um
lado aparentemente psicótico das demências. A recusa, pela qual se nega a perda do
objeto e o luto conseqüente, oferece a possibilidade de substituição por uma alucinação.
Trata-se de fenômeno muito freqüente nas demências, pelo qual ainda se filtra um
aspecto construtivo da pulsão de vida, embora não achemos, nesses casos, a força, a
convicção e a criatividade que guardam as alucinações nas psicoses, pelo que Brenno
Rosemberg o chama de “ilusão alucinatória”. É como se sonhassem acordados; vêem e
________________
17
Uma residente que encontro não momento em que entro na instituição para uma visita informal, me
segura pelo braço e repete, um tanto desesperada as seguintes palavras: “mulher......cama......rua....., só
mais tarde, falando com o enfermeiro pude perceber o acontecido: queria me contar que sua grande amiga
tinha falecido enquanto dormia e seu corpo tinha sido retirado em uma ambulância, o que me permitiu
voltar a ter com ela e reconstruir minimamente o acontecido; falar “o possível” sobre esse episódio, a
acalmou e lhe permitiu um grau incerto de elaboração do luto.
18
Mecanismo de defesa que Freud identifica nas perversões e na psicose. Consiste na recusa do sujeito
em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante, essencialmente a de ausência de pênis na
mulher. Não se trata, como nos neuróticos, de um conflito entre eu e isso, e sim de uma clivagem do eu
que incide na realidade exterior: recusa de uma percepção. (Laplanche e Pontalis 1995)
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 175
vivem situações que um neurótico reserva para as horas em que pode abandonar o
exame de realidade. Sem essa exigência, o aparelho psíquico permanece em um estado
primitivo no qual o desejo se faz alucinatório. Como o bebê que, ante a frustração da
falta de alimento, alucina o seio, o demenciado recorre a essa defesa precoce que lhe
garante a satisfação, alucina um objeto bom, apaciguador: “minha mãe veio me buscar”,
“fui com meu pai andar de carro novo”, “meu marido veio me visitar”; procurando, na
maioria das vezes, reviver os mortos.
A formação da fantasia de desejo e seu caminho regressivo até a alucinação são as peças
mais importantes do trabalho do sonho, mas não lhe pertencem com exclusividade.
Encontram-se também em dois estados patológicos: na confusão alucinatória aguda, a
amentia (de Meynert) e na fase alucinatória da esquizofrenia. O delírio alucinatório da
amentia é uma fantasia de desejo claramente reconhecível que se ordena freqüentemente,
como um perfeito sonho diurno. De modo geral poder-se-ia falar de uma ‘psicose
alucinatória de desejo’ em relação ao sonho e a amentia por igual (Freud, 1915, p. 228).
O homem não abandona de bom grado uma posição libidinal nem mesmo quando o
substituto já assoma. Essa resistência pode atingir tal intensidade que produz um
estranhamento da realidade e uma retenção do objeto pela via de uma ‘psicose
alucinatória de desejo (Freud, 1917, p. 242).
________________
19
Casos observados em instituições asilares.
20
Não negamos a possibilidade da existência das duas patologias simultâneas, a possibilidade de um
psicótico vir sofrer um quadro demencial de origem neurológica, só asseveramos que até o presente não
tivemos a oportunidade de conhecer um quadro com essas características nem pesquisas sobre esse
particular.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 177
6. AS MEMÓRIAS E OS ESQUECIMENTOS
1. Memória a curto e longo prazo: Como o nome o indica, são conceito ligados
com a questão do tempo. A curto prazo é a utilizada para registrar um dado por um
período curto apenas necessário para sua utilização, por exemplo, quando registramos
um número de telefone para uso imediato. Memória a longo prazo define os mecanismos
necessários que se põem em marcha para guardar um registro por muito tempo; neste
caso o mecanismo de retenção é mais complexo.
2. Memória cognitiva e memória dos automatismos: a primeira é a que precisa
de aprendizado, ou seja, põe em marcha mecanismos de atenção e concentração, como
aprender a dirigir um carro, por exemplo. A segunda acontece involuntariamente,
sem nenhum esforço de atenção e sua utilização segue o mesmo padrão de não
intencionalidade, estão incluídos aqui todos os movimentos corporais aprendidos na
infância.
3. Memórias semântica e episódica: A memória semântica corresponde ao
aprendizado de conhecimentos comuns e compartilhados como, por exemplo, a regras
gramaticais da língua materna. A episódica, como o nome o indica, é a capacidade de
lembrar episódios e fatos vividos em diferentes fases da vida.
4. Memórias explícitas e implícitas: A explícita, totalmente consciente, é a
utilizada no marco do aprendizado, quando se sabe que um conteúdo deve ser
memorizado (aprender um poema ou uma fórmula química, por exemplo) A implícita é
a que se opera quando o processo de aprendizado não é consciente e não há esforço de
retenção, embora ela exista.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 178
________________
21
Ver capítulo III.
22
Ver casos estes casos no item: Vinhetas Clínicas.
23
Caso relatado por familiares.
CAPÍTULO V – INTRODUÇÃO A UMA PSICOPATOLOGIA DAS DEMÊNCIAS 179
muito ativa e participante até que aos 90 anos, vem ao Brasil para morar com o filho, já
portadora de um diagnóstico de demência de tipo Alzheimer, comprovada por
diagnósticos por imagem. Instalada em sua nova moradia, e com todos os cuidados
necessários, (medicação controlada por especialista, acompanhante e manutenção dos
vínculos afetivos fundamentais) a doença segue o curso esperado. Aos poucos, ela deixa
de reconhecer as pessoas mais próximas, as confunde com outros personagens de sua
história, desconhece o lugar onde se encontra e precisa assistência para as mais simples
atividades. Por razões familiares, decide-se que volte à Argentina para ficar sob os
cuidados de sua outra filha. Nesse momento, mais especificamente na hora de ir ao
aeroporto, dona Pierina é invadida por uma lucidez inesperada. Reconhece às pessoas
que a acompanham, sabe que está voltando para sua terra, lembra de nomes, reconhece
lugares. Como se o sujeito que tinha se perdido reaparecesse repentinamente, para
perder-se novamente pouco tempo depois.
muito coerente, lógico, sem furos, até que, depois de longos minutos, a interrompo para
perguntar desde quando está na instituição. Então me responde que faz pouco tempo e
que foi a sobrinha Márcia que a trouxe e agrega, “Você conhece a Márcia?” a partir do
que, e sem se importar com minha resposta, recomeça exatamente o mesmo discurso,
sem trocar uma palavra, sem modificar uma vírgula. Este processo se repete várias
vezes sem que eu consiga encontrar uma pergunta ou qualquer tipo de intervenção que o
modifique, até que exausta, me retiro.
CAPÍTULO VI
PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS
________________
*
Este parágrafo é apenas uma parte da descrição da doença do esquecimento em Macondo. Uma versão
mais completa será reproduzida nas últimas páginas das Palavras Finais.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 182
1. APOSTAS E DESAFIOS
________________
1
Como defende Ceccarelli no cap V.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 183
Uma vez adotada uma posição libidinal, procurava preservá-la, pela angústia que sua
perda poderia lhe causar e pela desconfiança de que uma nova posição não
representasse um substituto apropriado. Isto já foi definido nos “Três Ensaios”como
fixação e é o que Jung chamou, com razão, de inércia psíquica, ao que adjudicou todos
os fracassos neuróticos. Sabemos que a mobilidade dos investimentos se reduz
significativamente com a idade, o que limita as indicações de tratamento psicanalítico.
Mas há pessoas que conservam esta plasticidade psíquica além dos limites de idade
habituais. (Freud, 1916-17, p. 105)
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 184
Vemos que desde 1917, embora Freud associasse rigidez mental com idade
avançada, não fazia deste fator um determinante tão absoluto quanto em produções
anteriores em que claramente negava a pessoas de mais de cinqüenta anos a
possibilidade de análises.2 Mas o tempo passa e as conceitualizações de Freud mudam,
até que, vinte anos mais tarde, ele nos brinda com um convite para nos adentrarmos no
estudo do processo de envelhecimento quando se refere a estes “caracteres temporais”
que podem provocar modificações na vida psíquica ao dizer:
Mas nos casos que agora consideramos, todos os decursos, vínculos e distribuições de
força provaram ser imutáveis, fixos, petrificados. Nos casos de pessoas de idade muito
avançada, achamos uma explicação por causa da força dos costumes, pelo esgotamento
da capacidade receptiva – uma espécie de entropia psíquica – mas aqui trata-se de
indivíduos ainda jovens. Nosso preparo teórico parece insuficiente para entender
corretamente os tipos que correspondem a esta descrição; talvez intervenham uns
caracteres temporais, variações dentro da vida psíquica de um ritmo do desenvolvimento
que ainda não foi apreciado. [...] Estes fenômenos apontam de maneira inequívoca à
presença na vida anímica de um poder que, pelas suas metas, chamamos pulsão de
agressão e derivamos da pulsão de morte originária, própria da matéria animada. (Freud,
1937, p. 244)
Tomamos este artigo para ser comentado neste capítulo sobre as terapêuticas
possíveis com pacientes demenciados, porque nele Freud marca claramente uma
posição ética – no que concerne especialmente à posição do analista – e um limite
metodológico. Tanto assim que conclui o sétimo tópico com as seguintes palavras: “A
psicanálise deve criar as condições psicológicas mais favoráveis para as funções do eu;
com isso se daria por tramitada sua tarefa” (Idem, p. 251)
Mas só na construção do caminho se achará o horizonte. Como dona Eloísa4 que, ciente
dos poucos anos de vida que lhe restam, decide voltar para sua casa, junto a tudo que
motiva suas recordações.
Que acontece com um idoso que se sente sem futuro, sem esperança, para quem o
tempo parou em um dia de luto? Porque investir no atual se não é mais fonte de
satisfação, mas de angústia? O que há na memória como reserva de prazer à qual
possamos recorrer de tempos em tempos?. (Messy, 2002, p 119)
________________
4
Ver as “Vinhetas Clínicas” neste capítulo.
5
Ver cap. V.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 187
Pode-se dizer que uma fantasia flutua entre três tempos: os três fatores temporais de
nossa atividade representativa. O labor anímico se enlaça a uma impressão atual, a uma
ocasião do presente, capaz de despertar algum dos grandes desejos do sujeito; apreende
regressivamente, desde este ponto a recordação de um sucesso pretérito, quase sempre
infantil, no qual ficou satisfeito esse desejo, e cria uma situação referida ao futuro que
se apresenta como satisfação desse desejo, o sonho diurno ou a fantasia, que levará
então, em si mesma, as marcas de sua procedência, da ocasião e da recordação. Assim,
________________
6
Ver “Vinhetas Clínicas” neste capítulo.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 188
então, o pretérito, o presente e o futuro aparecem como encadeados pela linha do desejo
que passa através deles (Freud, idem).
2. ENSAIOS E ERROS
________________
8
Constatamos que um dos critérios mais usados para a classificação por fases refere-se ao grau de
independência ou autonomia conservado. (Ver cap. II )
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 190
________________
9
Ver vinhetas Clínicas neste capítulo.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 192
Nesta fase o contato se faz mais difícil e frustrante, o paciente permanece mais
isolado e contrário a qualquer tipo de interação, especialmente quando esse traço
formava parte de sua estrutura prévia. Frases são ditas sem que saibamos a quem são
dirigidas. Quando há um discurso, está estruturado na repetição. As respostas a nossas
perguntas são curtas, frias, e isto só muda com um contato intenso, diário e prolongado.
Então olham, sorriem e falam, mas não há muita possibilidade de mudar o rumo da
“conversa”.
Nesse momento me aproximo mais dela, tomo suas mãos entre as minhas e lhe digo que
estou triste porque uma pessoa que eu amava muito morreu. Então ela pára de chorar,
embora com dificuldade fica em pé – pela primeira vez em meses a vejo altiva, como
nas fotos de sua juventude – e sai ao jardim onde mexe em algumas plantas. Eu começo
a brincar com seu gato e ela me diz: “cuidado...cuidado”. Cuidado dela?, de mim?, que
a cuide mais, que me cuide melhor? Saí de sua casa me fazendo perguntas. Considerei
essa sessão um enorme sucesso.
O mesmo caso me fez pensar no uso de objetos intermediários, pois nas sessões
seguintes que aconteciam duas vezes por semana, deixei o gato entrar na sala e pude
observar como estabelecia com ele uma comunicação afetiva que eu poderia aproveitar.
Porém, por decisão familiar o tratamento foi interrompido logo depois.
________________
10
Alguns desses hospitais dia se assemelham “clubes” com serviços de cabelereiro, manicure, sessões de
cinema, esportes etc.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 194
________________
11
Lembro de ter supervisionado um caso atendido por uma T.O., de um paciente institucionalizado que se
negava raivosamente a fazer as atividades de artesanato. Era um intelectual, ex-professor universitário
que não só se acalmou, mas também demonstrou felicidade quando foi solicitado a ajudar na arrumação
da biblioteca. Tirando a poeira dos livros e arrumando-os de acordo ao tamanho, encontrou o nexo
histórico perdido que o ligou novamente com o prazer.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 195
Nas seis reuniões familiares, pode manifestar seu desejo de ser institucionalizado
num lugar que ele mesmo escolhesse e, apesar da resistência dos filhos que eram
favoráveis a mantê-lo no lar, conseguiu que aceitassem ajudá-lo nessa escolha. Pôde
decidir sobre o tipo de tratamento que desejava receber e até pela eutanásia passiva para
encurtar o sofrimento inútil se uma fase terminal se apresentasse sofrida demais.
3. VINHETAS CLÍNICAS
Dona Maria, senhora de 72 anos, consulta-me por indicação do médico, que descreve a
paciente como “depressiva” e suspeita de um caso de Alzheimer em fase inicial.
Na primeira entrevista, diz que não queria vir pois sabe que psicanalista “mexe no
passado” e ela não quer. “O passado é para ser esquecido”. Na vida dela tudo é “normal”,
mas o médico insistiu que me consultasse pois está com perda de memória: “Na verdade,
esqueço de bobagens do dia-a-dia, o passado que queria esquecer ainda lembro”. Viúva,
mora sozinha com uma empregada, tem filhos e netos com quem se dá bem.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 196
invejosamente das netas que fazem o que querem, que não há mais “modos”, “eles são
bons meninos, mas a vida está muito diferente agora”, e diz: “Pôxa vida, se eu tivesse
tido coragem, mas a esta idade não vale mais a pena lutar, eu perdi minha vida e isso
não se recupera”.
Durante os meses que se seguem, o tema da neta e “o negro” (como era
nomeado pela família) comparece em todas as sessões. Repetidas vezes perguntei pelo
nome do rapaz e a resposta era sempre a mesma: “Não me lembro, me foge da cabeça”.
Até que, um belo dia, começa a chamar o “negro” pelo seu nome. E era o mesmo nome
do marido!! Podemos trabalhar isto e, assim, começa um relacionamento com o jovem
casal que, graças a sua intervenção, se aproxima da família.
A partir deste momento parece que se abre o baú das recordações de onde
começa a tirar objetos valiosos que estavam esquecidos. Um dia me traz uns bolinhos
que não fazia havia 30 anos e que voltou a fazer agora para a neta que a convidara a
jantar na sua casa. A partir das recordações culinárias, grandes cenas sobre sua infância
foram relembradas (ou construídas) com detalhes e revivência dos sentimentos
correspondentes. Agora voltou a cozinhar – por puro prazer – quitutes para a família, e
todos adoram.
Nosso trabalho dura no total oito meses, e termina porque não sabe o que está
fazendo aqui e não quer gastar mais dinheiro com papos muito bonitos mas que não
levam a nada. “A vida é como ela é, e ela já vem pronta”, me diz antes de partir.
Quando escrevo este trabalho, já se passaram dois anos desde o “fim” do
tratamento. Às vezes a encontro na rua, já que moramos no mesmo bairro; telefona-me
no Natal e no último disse estar muito feliz, a neta estava grávida e lhe pediu ajuda para
cuidar do bebê. Apesar da falta de memória não ter sido tema de nossos encontros,
pego-me perguntando sobre esse aspecto, então ela me dá uma excelente notícia: “igual,
nem melhor nem pior, tudo igual”.
O médico continua suspeitando de um Alzheimer em fase inicial que, por
enquanto, parece estar evoluindo muito lentamente. Ele está atento e observando. Se
aparecer um novo estado depressivo lhe será indicada a volta à psicoterapia e, se for
necessário, será medicada. Por enquanto está muito ocupada e feliz com o bisneto.
Dona Eloísa, de 84 anos, é “trazida” a meu consultório pela filha, preocupada com a
crescente falta de memória apresentada por sua mãe. Foi diagnosticada como portadora
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 198
lembrava em casa. Atribuo este fato ao estímulo que representa alguém que está ali
justamente para ouvir o que os outros não podem: o sofrimento que fez parte de sua
história. Ouvir com o objetivo de reconstruir alguma coisa a partir desse ponto onde
algo falta. Não há, em todo esse tempo, nenhum trabalho interpretativo, nenhuma
mudança de rumo nas significações, nenhuma reavaliação por mim provocada. Só um
trabalho de balizamento... e claro está, de escuta.
Mas e aquela filha da qual quase não fala? Passados três meses de tratamento e
na certeza de que eu não mantenho contatos secretos com a filha que a trouxe,
finalmente me conta que ela sempre suspeitou que aquela filha “inominada” não fosse
filha de seu marido, e sim de um amante – amigo do marido – com quem teve um breve
caso, coisa que segundo ela mesma disse: “tinha preferido esquecer, não morrer com
essa culpa, e só agora estou contando para você, mas este assunto morre aqui”. “Nem
foi uma grande paixão” . “Naquele mundo, tudo era hipocrisia” “Daquilo lá, não resta
nada...... só os filhos”
Depois de mais três meses de trabalho, a paciente decide voltar a morar “até
morrer” na mesma cidade onde morou durante a maior parte de seu casamento, onde
mora outra de suas filhas, e onde até hoje tem amigos (agora lembra que tem alguns).
Volta para a mesma casa onde viveu durante seus anos mais felizes e onde não
conseguiu se sentir bem desde a separação: “Volto para minha casa, porque essa é
“minha” casa, estão meus quadros, minhas fotografias, meus objetos de arte que fui
comprando pelo mundo afora, vou enfrentar os fantasmas, sem medo das
recordações”.... disse-me ao partir.
Dona Eugenia, 75 anos, vem por indicação de seu geriatra, amigo da família e que a
conhece há bastante tempo.
É tratada há mais de dois anos “por nada sério”. Uma pequena hipertensão e uma
leve glicemia controladas com medicação e alimentação apropriada. Não sabe por que
está aqui, já que não tem problemas psicológicos e “jamais teve”. O geriatra me informa
que a paciente começou a sofrer déficits de memória e atenção sem nada que a
justifique clinicamente, só parece estar um pouco triste, também sem motivo aparente.
Não há sinais de depressão profunda mas, aos poucos, está começando a se limitar, não
quer sair de casa, abandona a vida social, não se arruma como antes, está menos
faladeira; ele teme que esteja começando um processo de “alzheimerização”.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 200
A paciente relata uma vida boa, plena, satisfatória e bastante ativa. Nunca
trabalhou, mas sempre fez muitas coisas e teve uma intensa vida social. Ultimamente,
não sente vontade de sair de casa. Teve uma infância feliz e tranqüila, sem sufocos
econômicos, “claro que não havia para as crianças tudo o que há agora”, não sabe se os
pais se amavam, mas amavam os filhos (seis no total, três já falecidos, “de velhos”).
Foram criados sem luxos, mas tiveram uma boa educação “como só havia naquela
época”. Casou-se jovem, com o homem que amava. Ficou viúva há mais de dez anos,
não lembra exatamente quantos, mas muitos. Sofreu muito, mas superou, os filhos
ajudaram. “São dois homens, bons meninos, carinhosos, se deram bem na vida, nunca
deram problemas”.
“O geriatra falou umas coisas para eu vir aqui, mas já esqueci, eu estou bem. Os
meninos se preocupam muito comigo, estão o tempo todo controlando o que faço, se
preciso de alguma coisa, se tomo os remédios... Minhas noras também são boas. Eles
têm filhos, tenho dois netos, um de cada um. Uma menina e um menino. Idade? Não sei
bem, mas já são adolescentes. O menino é um pouco bravo, um taurino bravo” . Mas
quando pergunto em que dia ele nasceu, ela diz não lembrar. Lembra o nome de todos e
os lugares onde trabalham, porém, não recorda que cargo eles ocupam nem onde
moram. Para visitá-los, pega um táxi, mostra o endereço anotado num papel e assim
chega lá. Mora sozinha com a mesma empregada – que atua também como
acompanhante – há anos. Não sabe quantos.
Percebo que, cada vez que não se lembra de alguma coisa, também não faz os
cálculos nem as associações lógicas para chegar ao dado necessário, como se não lhe
interessasse saber. Noto também que, aos poucos, vai me falando de sua falta de
memória, mas quando pergunto novamente sobre o motivo de estar lá, de novo diz que
o geriatra a mandou, mas não sabe por quê. Quando o geriatra me telefonou para fazer o
encaminhamento, disse claramente que a paciente sabia o motivo do mesmo.
Quando marcamos nosso segundo encontro, ela me pede para anotar a data, o
horário e meu nome num papel e, feito isto, o prende numa agenda lotada de pequenos
bilhetes semelhantes.
Nas entrevistas seguintes faço algumas perguntas sobre seu passado. Conta
muitos episódios, e digo episódios pois não chegam a se constituir em histórias. São
como flashes, como se estivesse vendo fotos de épocas e pessoas diferentes. Não há um
nexo temporal entre eles, embora ela lembre detalhes sobre cada episódio; são como
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 201
ilhas de lembranças. Quando percebe as confusões, ela se angustia e passa para outra
coisa. Confunde-se e me confunde com as cenas desconexas. Então, peço-lhe para trazer
fotos, e sem saber porque, não especifico a época nem se ela deve aparecer nas mesmas.
Nos primeiros dias, traz fotos de épocas recentes, da família, aniversários dos
netos, mas ela nunca está presente. Ela se ignora, não aparece, parece não existir.
Comento: – “Parece que a senhora não participou desta festa”, “Não, eu estava sim, até
fiz o bolo”. Aos poucos, começa a trazer fotos onde ela aparece, primeiro meio
escondida, depois em lugares de destaque.
Continua esquecida de alguns dados, mas começa a fazer associações entre as
diferentes situações, do tipo “nesta foto aqui sou a única sentada porque tinha acabado
de operar por um problema no pé”, e acrescenta: “Veja só, tinha esquecido disso, foi
uma bobagem na unha, mas tinha esquecido”. Depois disso, diz que voltou no geriatra e se
lembrou que ele tinha dito que ela estava “um tiquinho mal da memória, coisas da idade”.
Relata alguns sonhos nos quais se encontra, pequena, em lugares escuros,
desamparada ou subindo escadas sem nada em torno. Angustia-se e se nega a se
concentrar nisso. “Para mim, isso tudo não significa nada”, ela diz. Quando comento
que os sonhos parecem lhe provocar um pouco de angústia, responde: “eu não tenho
mais medo de nada ...... Uma velha como eu já não pode ter medo de nada, nem de
morrer”. Então se fala bastante da morte especialmente da morte dos pais, do marido, da
dela e confessa que muitas vezes não pode dormir pensando nisso.
Aos poucos vai trazendo fotos cada vez mais antigas, e o trabalho continua na
mesma linha. Vemos as fotos e ela vai reconstruindo a história. As lembranças vão
surgindo cada vez mais coesas. Os fatos vão se alinhavando em uma seqüência lógica.
Nesse tempo, uma das noras me telefona para saber minha opinião sobre ajudá-
la a fazer um álbum de fotografias. Tinha conseguido mobilizar a família que começava
a se organizar em torno de suas lembranças.
Depois de três meses (duas vezes por semana) neste trabalho, as fotos acabam.
Pessoalmente, sinto medo do que possa acontecer, mas ela continua falando de sua vida
e começa a manifestar preocupação com o presente. “O duro – diz – é não poder falar
com ninguém sobre isso, eu sinto que minha vida vai acabando, por que, Deus, se foi
tão boa, por que tem de acabar? Só deveriam acabar as vidas sofridas, mas a minha foi
boa, eu deveria viver mais 30, 40 anos. Não posso falar isso com as crianças, eles ficam
mal, não querem nem ouvir falar nisso. A vida não deveria acabar, ou ao menos a gente
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 202
não deveria se dar conta de que acaba, não me conformo”. Há então, um luto a elaborar,
e nisso continuamos por mais algum tempo. Depois de cinco meses, ela diz que foi
convidada por um dos filhos para uma viagem à Europa com a família. Ela aceita com a
condição de poder passar por uma pequena cidade da Itália onde nasceram seus pais. E
parte.
Quando retorna, quase dois meses depois, volta às sessões por insistência dos
filhos. Conta-me que naquela cidadezinha viu o registro do nascimento e do casamento
dos pais. A história continua a se escrever. Claro, traz também as fotos muito bem
organizadas graças à ajuda da nora.
Depois de quase dois anos de trabalho, começa um curso de computação junto
com o neto: “por essa coisa da Internet, eu já sou meio dura para aprender coisas novas,
mas ele e o professor me dão uma forcinha”. Conta que eles entram num site de turismo
da Itália e ela fica clicando olhando as fotos. Na mesma época, vai formar parte de um
círculo de senhoras italianas que realizam obras beneficentes em uma igreja e até
organizam uma exposição .....de fotos !
Agora tem uma agenda bem organizada, onde anota tudo: compromissos, listas
de compras, datas de aniversários, até as prováveis datas de partos das filhas ou noras de
suas amigas, para não esquecer de perguntar pelo novo bebê. “A memória continua um
pouco fraca, mas eu estou mais organizada”, ela diz. Despede-se e não sei mais dela há
dois anos. O geriatra diz que a deterioração continua mas, muito lentamente, por enquanto a
diferença é quase imperceptível. Ela se mantém organizada e a família ajuda.
________________
12
Frase extraída do texto de Jaques Messy: “A Pessoa Idosa não existe” , 1993, p. 51.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 203
________________
13
Caso relatado por Chévance na sua tese de doutorado. (1999)
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 204
________________
14
O mesmo sábio enfermeiro de uma instituição asilar, de quem já falei em outro capítulo, disse-me em
certa ocasião: “Dizem que o cemitério é última morada, mas lá todo mundo está morto, a verdadeira
última morada é esta”.
CAPÍTULO VI – PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS 206
Já desde as primeiras páginas, retomo uma idéia que trago desde o mestrado e
que baliza um posicionamento ético em relação a esta questão: A velhice não é
percorrer um caminho já traçado e sim construí-lo, inacabável processo de subjetivação
do ser velho, construção histórica singular e cultural comandado pelo trabalho do
tempo, que seguirá vias elaborativas como o exercício da reminiscência, o compromisso
com projetos, a serenidade, a religiosidade, etc., ou regressivas como a depressão ou a
demência. Então, a libido não seria um quantum esgotável mas o resultado de um
investimento sempre possível. Desse modo, não existiriam “coisas de velhos” rígidas e
uniformizadas, não existiria a velhice como categoria e sim velhos singulares em
permanente processo de construção de suas subjetividades. Assim, retomo e sublinho o
que terá sido um fio condutor desta pesquisa: o entendimento do processo demencial
como forma regressiva de defesa contra a depressão de final de vida, o que acaba nos
levando a uma reflexão sobre o papel social do velho e seus efeitos na subjetividade.
ainda, do próprio ser? Caminhos que ainda antes de serem trilhados já se abriam a
tantos outros nem imaginados no começo deste trabalho.
O passo inicial foi percorrer a obra freudiana desde “Estúdios sobre a histeria” e
o “Projeto para uma psicologia científica”, em busca das elaborações de Freud sobre a
memória. Assim, desde o começo ficou claro que ela aparece como seletiva, dependente
de algum outro fator ou sistema, eliminada pelas experiências dolorosas que provocam
o esquecimento, organizada em estratificações sucessivas que exigem uma retranscrição
de tempos em tempos e registrada em diferentes variedades de signos.
empobrecido mundo. Mas vejo também a insistência em acreditar que a psicanálise tem
aí um outro “continente negro”1 a desbravar, sabendo que nunca será conquistado.
________________
1
Frase utilizada por Freud em “A questão da análise leiga” de 1926, em referencia ao psiquismo feminino.
PALAVRAS FINAIS 214
“...... a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a
impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim sua
inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer
que quando o doente se acostumava a seu estado de vigília, começavam a apagar-se de
sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por
último a identidade das pessoas e a consciência do próprio ser, até se afundar numa
espécie de idiotice sem passado. José Arcadio Buendía, morto de rir, considerou que se
tratava de mais uma das tantas enfermidades inventadas pela superstição dos indígenas.
[]“Nesse estado de alucinada lucidez, não só viam as imagens de seus próprios sonhos,
mas também, uns viam as imagens sonhadas pelos outros. []
“Foi Aureliano que concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários
meses, das evasões da memória. Descubriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter
sido um dos primeiros, tinha apreendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia
estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se
lembrou de seu nome. Seu pai lhe disse: ‘tás’. Aureliano escreveu o nome num papel
que pegou com cola na base da bigorninha: ‘tás’. Assim ficou certo de não esquecê-lo
no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento,
porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu
que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então,
marco-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-
las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais
impressionantes de sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio
Buendía, o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado.
Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com seu nome: mesa, cadeira,
relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas:
vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as
infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se
reconhecessem as coisas pelas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então
foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma forma
exemplar pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o
esquecimento: ‘Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que
produza o leite e o leite é preciso ferver para mistura-lo com o café e fazer café com
leite’. Assim, continuaram vivendo uma realidade escorregadia, momentaneamente
capturada pelas palavras, mas que fugiriam sem remédio quando esquecessem os
valores da letra escrita.
PALAVRAS FINAIS 215
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REFERÊNCIAS 220
REVISTAS CONSULTADAS