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Antes de delimitar quem são os super-heróis, o que os definem e o que diferencia esses
personagens de outros, uma pergunta precisa ser feita: o que é um herói? Jeph Loeb e
Tom Morris (2005) recordam que o dicionário define “herói” como um termo derivado
do grego antigo, que significa “pessoa com qualidades magnânimas”. Também eram
chamados de heróis os semideuses da mitologia greco-romana, como Aquiles, Teseu e
Perseu, frutos da união entre um deus e um mortal. Outras possibilidades elencadas
pelos autores são “alguém extraordinário por seus feitos guerreiros” e “pessoa
admirável por feitos e qualidades nobres”.
Essas respostas podem parecer intuitivas, mas, como aponta Danny Fingeroth (2004), os
usos da terminologia podem ser os mais variados. Segundo o autor, “um herói pode ser
alguém que supera seus medos e limitações para atingir algo extraordinário”
(FINGEROTH, 2004, p. 14).
É uma definição ampla, que vai além dos personagens ficcionais. Fingeroth (2004)
elenca alguns exemplos do mundo real, como o caso de um bombeiro que entra em um
prédio em chamas para fazer um resgate, um soldado que avança, encarando tiros
inimigos, em uma zona de guerra, um professor que, dia após dia, leciona em
circunstâncias precárias, uma vítima de acidente incapacitante que, apesar da dor e das
dificuldades, persiste em reaprender habilidades perdidas, ou um médico que trabalhe
em uma ONG de ações humanitárias tentando conter o avanço de epidemias de doenças
infecciosas com poucos recursos técnicos a sua disposição. Todos eles enfrentam
adversidades que, por vezes, são superadas. E, sem dúvidas, seus feitos são
extraordinários.
Todavia, por vezes chamamos outras figuras de heróis. Um goleiro que defende um
pênalti no último minuto do jogo, garantindo a conquista de um campeonato para a sua
equipe, é considerado um herói pela sua torcida e pela mídia esportiva. Um político
muito estimado é aclamado como herói por seus eleitores. O mesmo é válido para pais
que se sacrificam financeiramente para garantir educação e uma vida confortável aos
filhos. Há semelhanças entre essas figuras e os personagens ficcionais que encontramos
na prosa, no teatro, nos quadrinhos e nos filmes?
Segundo Fingeroth (2004), a ponte entre esses dois campos se dá porque um herói, além
de personificar o que acreditamos que seja o melhor em nós mesmos, é alguém que
tanto nos desperta admiração quanto alguém que nos inspira a realizar grandezas.
O panteão dos super-heróis é formado por indivíduos com poderes sobre-humanos (de
origem “científica” ou mágica), bem como de pessoas que travam suas batalhas usando
alta tecnologia ou artefatos fantásticos. Esses dois grupos compartilham a firmeza de
caráter e a retidão de valores, os quais defendem veementemente. Porém, tais
características não são o suficiente para definir os heróis, uma vez que vilões também
podem apresentá-las, conforme recorda Fingeroth (2004).
Lex Luthor, notório nêmesis de Superman, ainda que se envolva em uma variedade de
ações escusas, tem convicção que sua cruzada contra o Homem de Aço tem um valor de
proteção da humanidade, que julga estar ameaçada com a presença de um alienígena
superpoderoso que pode, em algum momento, se voltar contra o planeta Terra. General
Ross, um dos principais inimigos de Hulk, sustenta sua perseguição ao herói por conta
do risco que o Gigante Esmeralda ofertou e ainda pode ofertar aos civis. Ozymandias,
que se identificava como um dos heróis, sacrificou a vida de milhões de pessoas em um
ato que adiou uma guerra nuclear. Como resumem Loeb e Morris (2005, p. 26): “nem
todo fantasiado combatente do crime é um herói, nem todo indivíduo que possua
poderes sobre-humanos é necessariamente um super-herói”.
Coogan (2006) defende que adotar uma definição precisa tem efeitos benéficos para
além de amenizar eventuais confusões sobre quem está ou não ao lado dos mocinhos.
Segundo o autor, uma definição mais rígida permite que acadêmicos foquem
especificamente no gênero super-heróis, de modo que seja possível tanto destacá-lo
quanto compará-lo com outros gêneros narrativos. Tal delimitação ajudaria, inclusive, a
examinar formas pelas quais esses personagens ilustram em suas aventuras aspectos da
cultura em que estão inseridos, bem como dialogam com grandes temas e eventuais
conflitos sociais.
A definição proposta por Coogan (2006) é centrada em três pontos nucleares: missão,
poderes e identidade. O autor os seleciona a partir de um resgate de um processo
judicial de 1952, em que o juiz Learned Hand se baseia justamente nesses três pontos
para decidir que os responsáveis por um herói chamado Wonder Man 1 haviam plagiado
o personagem Superman2.
1 Wonder Man pode ter sido, também, uma tentativa de criar uma contraparte à Mulher-Maravilha
(Wonder Woman, em seu original). A heroína ganhou as páginas das histórias em quadrinhos pela
primeira vez em 1941.
2 No período do surgimento dos heróis, era frequente que editoras mimetizassem o Superman, em busca
de aproveitarem o seu sucesso comercial para tentarem emplacar um novo personagem. Muitas vezes essa
estratégia era feita a partir de um emular de certos aspectos que são característicos ao personagem, como
Desse modo, o pesquisador propõe a seguinte definição:
A missão, afirma Coogan (2006) é a convenção mais essencial ao gênero, ainda que não
seja uma estrutura exclusiva dos super-heróis. Funciona como uma espécie de
juramento que o personagem segue, balizando suas ações e decisões. Ela é essencial a
esses personagens, já que alguém que não age de maneira altruísta para ajudar os
necessitados não pratica um ato verdadeiramente heroico e, portanto, não pode ser
considerado como tal. Sem sua missão, o super-herói seria apenas alguém útil em um
momento de crise, alguém que deseja obter vantagens próprias pelos seus atos ou
mesmo um vilão com intenções nebulosas.
Coogan (2006) destaca que, para os super-heróis, o codinome está estritamente ligado
com a biografia dos personagens ou com o que seus alter egos representam. Há um
histórico dessa convenção: os personagens tanto se diferenciam quanto dão
continuidade aos seus predecessores nesse ponto. Eles se diferenciam de heróis mais
antigos como o Zorro que, apesar de também possuir uma identidade secreta e ela ser
um homem vacilante que não desperta suspeita de ser o habilidoso espadachim, seu
codinome pouco se relaciona com a palavra espanhola raposa de onde pega emprestado
seu nome, a não ser, talvez, por sua agilidade ao fugir de seus rivais. Já os homens
misteriosos das revistas pulps, como O Sombra, apresentavam essa conexão. O Sombra
é uma figura misteriosa, uma presença que paira e se esvai sem que seja diretamente
visto por seus algozes ou aliados. Seu codinome expressa seu alter ego.
Os emblemas se tornaram popular entre o gênero, difundido para a grande maioria dos
personagens. A Mulher-Maravilha carrega duas letras W, ainda que estilizadas e por
vezes remetendo a uma águia, em sua armadura. Homem-Aranha tem no peito uma
aranha. Aquaman ostenta um A na fivela de seu cinto. Os emblemas funcionam como
uma representação gráfica dos super-heróis, além de enfatizar seu codinome e ser uma
declaração e afirmação simplificada de sua identidade (COOGAN, 2006).
O autor entende que é preferível considerar esses personagens como se eles formassem
um continuum ou um espectro ao invés de seguir uma classificação binária na base do
“é/não é um super-herói”, como aquela proposta por Coogan (2006). Para Nevins
(2017), essa definição binária não é precisa, uma vez que, se seguida à risca, podemos
cometer o equívoco de excluir do conjunto personagens que são notoriamente
identificados como super-heróis.
Dentro dessa outra proposta, o caminho a ser percorrido é identificar quais são os
elementos que compõem esse continuum dos super-heróis. Quanto mais desses
predicados um personagem tiver, mais “super-heroico” ele o será. Todavia, não há um
super-herói ideal, um modelo que sirva de espelho aos demais. Desse modo, não existe
um super-herói que contenha todos essa características que tipificam o gênero, bem
como não há um personagem do gênero sem nenhuma delas (NEVINS, 2017).
Ainda que cite os pontos nucleares propostos por Coogan (2006), Nevins (2017) se
baseia em estudos de mitologia comparada, especialmente no âmbito dos mitos de
heróis, para fundamentar sua abordagem. Mesmo reconhecendo que a lista seja
extensiva e atualizável, o autor adiciona numerosos elementos: uma história de origem
incomum, que não precisa ser necessariamente um nascimento extraordinário, mas um
momento único na vida do personagem em que ele percebe que precisa se tornar um
super-herói; possuir maestria em habilidades extraordinárias, estas podendo ser desde
luta corporal, acrobacia, mira precisa à capacidade de invadir sistemas computacionais;
dispor de tecnologia extraordinária, tanto aquelas que existem no mundo real quanto as
que não existem (por limitações técnicas atuais) e as que não são cabíveis no nosso
mundo (por violar leis da física ou química); possuir uma arma singular, que pode ser
tanto ofensiva (como uma pistola ou arco e flecha), defensiva (um escudo), com toques
de ficção científica (uma armadura tecnológica) ou mágica (uma espada, um laço); ter
inimigos extraordinários, os ditos supervilões, que se destacam de inimigos comuns
pelas suas tramas e planos grandiloquentes, além de, por vezes, possuírem
características similares a dos heróis; viver em universo em que as forças da lei e os
governos existam, ainda que corruptos ou incompetentes; atuar em um universo no qual
o mal, os crimes e as opressões são óbvios ou de fácil percepção, ou seja, em que estão
claras as posições opostas entre os mocinhos e os bandidos; viver em um universo em
que as forças da lei e os governos não consigam derrotar ou controlar o mal, os crimes e
as opressões; atuar com a crença de que, uma vez capturados pelos heróis, os criminosos
serão presos pelas forças da lei; atuar em um universo em que o vigilantismo seja bem-
vindo ou, no mínimo, tolerado pela sociedade e pelas forças da lei; ser finito e passível
de ser morto, pois sem o risco da morte em virtude de suas ações o super-herói é apenas
um ser superpoderoso; não matar.
Atualmente, um super-herói não pode mais ser caracterizado como alguém que aparece
apenas em quadrinhos ou filmes de super-heróis. Essas figuras se tornaram difundidas o
suficiente para serem protagonistas tanto de obras classificadas como “cultura de
massa”, com valor meramente de entretenimento, quanto daquelas ditas "com valor
literário", de prestígio crítico e artístico. As aventuras desses personagens
acompanharam as mudanças sociais do mundo real e, consequentemente, suas histórias,
fórmulas, convenções e os mundos ficcionais também se alteraram, injetando
3 Personagens como Doutor Estranho, Senhor Destino e Monstro do Pântano trafegam por esse gênero
com frequência.
4 Heróis como Batman, Flash, Questão, Demolidor e Jessica Jones têm boa parte de suas histórias
sustentadas por mistérios que envolvem crimes mais mundanos, como assassinatos, extorsões e
conspirações.
5 Homem de Ferro, Homem-Formiga, Ciborgue e Aço são bons exemplares dessa mescla de gêneros,
uma vez que seus poderes são oriundos de uma armadura tecnológica que lhes confere, entre outros
atributos, força sobre-humana.
caracterizações novas, imprevisíveis e ainda mais desafiadoras buscando manter os
leitores engajados (NDALIANIS, 2009; NEVINS, 2017).
Novas referências
NEVINS, J. The evolution of the costumed avenger: the 4,000-year history of the
superhero. Santa Barbara: Praeger, 2017.
ROBB, B.J. A identidade secreta dos super-heróis: a história e as origens dos maiores
sucessos das HQs: do Super-Homem aos Vingadores. Rio de Janeiro: Valentina, 2017.