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O RENASCIMENTO COMO REFORMA DA IGREJA – Jean Delumeau

Enquanto se afirmavam as nações da Europa, tal como o princípio e a realidade da monarquia absoluta, enquanto as viagens e
conquistas de além-mar transformavam as correntes e o ritmo da economia e a arte e a cultura – graças ao melhor
conhecimento da Antiguidade e também à maior atenção prestada ao mundo exterior e a técnicas mais seguras – se orientavam
para percorrer novos caminhos, como não havia a mutação geral da sociedade, agora mais ativa, mais urbanizada e mais
instruída, mais laica do que nos séculos XII e XIII, de atingir em profundidade a própria religião – uma religião que informava
toda a vida cotidiana e que penetrava no coração de cada um? No meio de pestes terríveis, de repetidas guerras e de aflitivas
lutas civis, numa Europa Ocidental e Central abalada por brutais reviravoltas da conjuntura econômica, a Igreja de Cristo parecia
navegar à deriva para o abismo. Mas o século XVI viu-a recuperar e, ao mesmo tempo, quebrar-se e mostrar à luz do dia o
escandaloso espetáculo do ódio entre seus filhos.

Em 1378, quando da morte de Gregório XI 1 ao regressar de Avinhão2 a Roma, perigosos grupos de pressão – grupos de cardeais
divididos em facções rivais – impuseram, a uma cristandade dolorosamente estupefata, um cisma 3 que iria prolongar-se por
trinta e nove anos.

Depois das flutuações iniciais, a Europa católica se dividiu em duas: a França, Escócia, Castela e Aragão e o reino de Nápoles
declararam-se a favor de um francês, Clemente VII; os outros países optaram pelo italiano Urbano VI.

Os dois pontífices e os dois sacros colégios, agora inimigos, excomungaram-se reciprocamente e procuraram subtrair países e
reis à tendência adversa. Cada um dos dois partidos teve os seus propagandistas e os seus santos.

Uma vez apanhados nesta engrenagem, os papas antagonistas e os seus sucessores numa e noutra obediência foram os últimos
a compreender que a única forma de pôr fim ao cisma consistia em abdicar. A obstinação dos pontífices, e especialmente a de
Bento XIII, eleito em Avinhão em 1394, impediu durante muito tempo as tentativas de “reunião”.

1 Papa Gregório XI, nascido Pierre-Roger de Beaufort (Château de Maumont, Diocese de Limoges, França, 1329 ou 1331 — Roma, 27 de Março
de 1378), foi eleito para a Cátedra de São Pedro em 30 de Dezembro de 1370 e pontificou até a sua morte.
Assumindo durante o período do Papado de Avinhão, fortemente influenciado por Santa Catarina de Siena retornou a Santa Sé para Roma. De
fato, na qualidade de Bispo de Roma, cuja catedral é a Basílica de São João de Latrão, neste local deveriam residir os papas.
Após sua morte iniciou-se o Grande Cisma do Ocidente.

2 Avinhão - cidade do sul de França que durante vários anos foi a residência dos Papas da Igreja Católica. Habitada desde o tempo dos Celtas, é
famosa por se ter convertido na residência dos Papas em 1309, quando se encontrava sob governo dos reis da Sicília pertencentes à casa de
Anjou. Em 1348, o Papa Clemente VI adquiriu a cidade à rainha Joana I da Sicília e permaneceu como propriedade papal até 1791, quando foi
incorporada ao resto de França durante a Revolução Francesa.
Houve sete Papas que lá residiram entre 1309 e 1377: Papa Clemente V, Papa João XXII, Papa Bento XII, Papa Clemente VI, Papa Inocêncio VI,
Papa Urbano V, Papa Gregório XI.
Este período (1309-1377) em que os papas estabeleceram residência em Avinhão é conhecido como o Papado de Avinhão, que teve início
quando o papa Clemente V fixou residência em Avignon, propriedade do rei de Nápoles, Carlos de Anjou. Em 1377, o papa Gregório XI decidiu
recuperar o trono de São Pedro, em Roma, o que não reconstruiu a unidade do papado, e sim provocou a pior crise de sua história: o Grande
Cisma do Ocidente, com dois ou mais papas simultaneamente em Avinhão e Roma, e que só seria ultrapassado em 1417.
Os Antipapas (https://pt.wikipedia.org/wiki/Antipapa) Clemente VII e Bento XIII continuaram a residir em Avinhão depois dos Papas terem
regressado a Roma em 1377. Clemente VII permaneceu na cidade durante todo o seu pontificado 1378-1394 enquanto que Bento XIII viveu lá
até à fuga para Aragão.
Avinhão era sede episcopal desde o ano 70, e foi convertida em Arcebispado em 1476. Foi sede de vários sínodos de menor importância. A sua
universidade foi fundada pelo Papa Bonifácio VIII em 1303 e devido à reputação dos cursos de direito teve grande importância até à Revolução
Francesa.
As muralhas da cidade, em bom estado de conservação, foram construídas pelos Papas imediatamente a seguir da mudança de residência para
este lugar. O palácio papal, Palaisdes Papes, é um enorme edifício gótico com muros de 5 a 5,5 m de espessura, que foi construído entre 1335
e 1364. Depois de regressar a Roma a corte papal, foi utilizado como quartel e atualmente é um rico e muito visitado museu.

3O Grande Cisma do Ocidente, Cisma Papal ou simplesmente Grande Cisma foi uma crise religiosa que ocorreu na Igreja Católica de 1378 a
1417.
Entre 1309 e 1377, a residência do papado foi alterada de Roma para Avignon, na França, pois o Papa Clemente V foi levado (sem possibilidade
de debate) pelo rei francês para residir em Avignon. Em 1378, o Papa Gregório XI voltaria para Roma, onde faleceria. A população italiana
desejava que o papado fosse restabelecido em Roma. Foi então eleito Urbano VI, de origem italiana. No entanto, ele demonstrou ser um papa
muito autoritário, de modo que uma quantidade considerável do Colégio dos Cardeais, anularia a sua votação e foi realizado um novo
conclave, sendo eleito Clemente VII, que passou a residir em Avignon. Iniciara-se assim o Cisma, em que o Papa residia em Roma e o Antipapa
residia em Avignon, reclamando ambos para si o poder sobre a Igreja Católica. Posteriormente, surgiria outro Antipapa em Pisa. O cisma
terminou no Concílio de Constança em 1417, quando o papado foi estabelecido definitivamente em Roma.
Muitos cardeais de ambos os lados se separaram dos seus pontífices e convocaram um concílio em Pisa (1409) 4. Bento XIII e
Gregório XII foram declarados heréticos e depostos. Foi eleito um novo papa, Alexandre V, que morreu no ano seguinte, sendo
substituído por João XXIII5.

Havia agora três papas, pois nenhum dos dois pontífices depostos aceitou abdicar.

João XXIII, cuja anterior carreira fora mais militar e política que religiosa, e cujo comportamento tinha aspectos escandalosos,
não pôde recusar ao rei dos romanos, Segismundo 6, “advogado e defensor da Santa Igreja”, a convocação de um novo concílio
para Constança.

A assembleia (1414-1418)7 não tardou em entrar em conflito com João XXIII, que fugiu de Constança, foi apanhado e,
finalmente, resignou. Gregório XII, desanimado, renunciou também ao pontificado. Mas Bento XIII, velho obstinado, recusou
todo e qualquer compromisso até a morte (1423).

Depois da eleição de Martinho V, em Constança (1417), porém, o mundo católico reencontrara, praticamente, a sua unidade.

O concílio de Constança não reunira apenas para pôr fim ao cisma; tivera também o objetivo de condenar as doutrinas hussitas 8

4O Concílio de Pisa foi um concílio não-ecuménico da Igreja Católica realizado em 1409, convocado a 25 de Março, que tentou acabar com o
Grande Cisma do Ocidente.
Desde 1378 que dois Papas rivais se encontravam à cabeça da cristandade: o de Roma, Gregório XII, apoiado pela Itália do Norte, a Inglaterra,
a Alemanha, a Polónia e a Hungria: o de Avignon, Bento XIII, apoiado pela França, Castela, Aragão, Portugal, o reino da Sicília, a Sabóia e o
reino de Chipre. Ambos reclamavam seu direito ao trono pontifical.
Este concílio reuniu 24 cardeais (14 apoiantes de Romas, 10 apoiantes de Avignon), 300 altos prelados e embaixadores de todas as partes da
cristandade. Durante o Concílio, os dois Papas concordaram em desistir de suas reivindicações em favor de um novo pontífice, mas acabaram
por não desistir de reclamar os seus direitos. Os Bispos excomungaram Bento XIII e Gregório XII e elegeram o Arcebispo de Milão, o grego
Petros Filargis, que escolhe o sobrenome de Alexandre V, passando a haver 3 papas.
O cisma continuou por mais oito anos. Terminou em 1417, quando outro Concílio se reuniu em Constança (Concílio de Constança) e elegeu
Martinho V o novo Papa.

5 João XXIII nascido Baldassare Cossa (Nápoles, a cerca de 1370 - Florença, 22 de dezembro de 1419) foi Antipapa de 1410 a 1415, que figura
em muitas listas de papas.
Foi corsário na mocidade, mas depois estudou na Universidade de Bolonha. Entrou no serviço da Igreja Católica durante o pontificado de
Gregório XII (1406-1415). Cardeal em 1402. Eleito e sagrado em Bolonha, em 1410, para suceder ao antipapa Alexandre V, o primeiro papa
cismático eleito em Pisa, de cuja morte seus inúmeros desafetos sempre o acusaram de não ser de todo inocente. Foi sua eleição reconhecida
com a adoção do nome de João XXII, pela França, Inglaterra, parte da Itália e da Alemanha.
Vários historiadores atribuem sua ascensão ao trono pontifício por influência e ingerência direta do rei Luís II, Duque de Anjou, que buscava a
todo custo controlar o poder dos Papas.

6Sigismundo (Nuremberga, 14 de fevereiro de 1368 – Znojmo, 9 de dezembro de 1437) foi o Imperador Romano-Germânico de 1433 até sua
morte, além de Rei da Germânia, Hungria, Croácia e Boêmia e também Eleitor de Brandemburgo. Era filho do imperador Carlos IV e sua última
esposa Isabel da Pomerânia.
Sigismundo era considerado um homem muito bem educado, poliglota e extrovertido. Ele foi uma das forças motivadoras por de trás do
Concílio de Constança que terminou com o Grande Cisma do Ocidente, porém que também acabou levando às Guerras Hussitas que
dominaram boa parte do seu período de vida.

7 O Concílio de Constança, realizado entre 1414 e 1418 em Constança, foi o 16º concílio ecuménico da Igreja Católica.[1] O seu principal
objectivo foi acabar com o cisma papal que tinha resultado do Papado de Avinhão, ou "a captividade babilónica da Igreja", como também é
conhecido (um termo cunhado por Martinho Lutero).
Quando o concílio foi convocado, havia três papas, todos clamando legitimidade. Alguns anos antes, em um dos primeiros golpes que
afectaram o movimento conciliador, os bispos do concílio de Pisa tinham deposto ambos os papas anteriores e elegido um terceiro papa,
argumentando que, em tal situação, um concílio de bispos tem mais autoridade do que um Papa. Isto apenas contribuiu para agravar o cisma.
Com o apoio de Sigismundo, sacro Imperador romano, o concílio de Constança recomendou que todos os três papas abdicassem, e que um
outro fosse escolhido.[2]
Em parte por causa da presença constante do imperador, outros monarcas exigiram que tivessem uma palavra a dizer na escolha do papa.
Grande parte da discussão no conselho foi ocupada na tentativa de acalmar monarcas seculares, mais do que em efectuar uma reforma da
igreja e da sua hierarquia.
Um segundo objectivo do concílio foi continuar as reformas iniciadas pelo concílio de Pisa (1409) que, ao pretender arbitrar as pretensões
contraditórias, elegeu um terceiro papa: Alexandre V.[3] Estas reformas foram largamente dirigidas contra John Wycliffe, Jan Hus e seus
seguidores.[1] Jan Hus foi condenado pelo concílio à morte na fogueira e queimado vivo a 6 de julho de 1415.
O concílio também tentou iniciar reformas eclesiásticas. Foi mais tarde declarado que um concílio de bispos não tem maior influência do que o
Papa.
Em 1415 o concílio depôs os papas rivais Bento XIII e João XXIII, Gregório XII antes de ser deposto abdicou em 4 de junho.[3] Mais tarde, em
1417, fora eleito Otto de Colonna como Papa Martinho V (1417-1431),[1] dando um fim ao Grande Cisma Papal do Ocidente

8define um movimento reformador e revolucionário que surgiu na Boêmia, no século XV. O nome vem do teólogo boêmio Jan Hus (1372-
e, mais ainda, de realizar o desejo, já há tanto tempo expresso, de “reformar a igreja na sua cabeça e nos seus membros”.

Ora, a impotência pontifical e a anarquia que reinava na cristandade davam, precisamente, uma oportunidade ao movimento
conciliar, que era herdeiro das doutrinas de Jean de Jandun e de Marsílio de Pádua, as quais subordinavam a autoridade do papa
ao livre consentimento do povo cristão.

Já antes da reunião do concílio de Constança, universitários eminentes tinham pedido a convocação de assembleias eclesiásticas
que supervisassem, tanto no domínio espiritual como no domínio temporal, o governo da Igreja.

Iria esta Igreja transformar-se numa monarquia parlamentar? Numa federação de nações autônomas que se exprimissem em
Estados Gerais periódicos da catolicidade?

Efetivamente, os padres, em Constança, agruparam-se e votaram por “nações”, os doutores de direito e de teologia foram
admitidos nos escrutínios e Martinho V foi eleito por um conclave em que os vinte e três cardeais presentes tiveram de aceitar,
a seu lado, trinta deputados das “nações”.

Estas inovações anunciavam já a reforma da Igreja?

Na verdade, este grave problema só foi abordado tardiamente e em ambiente de cansaço, depois da condenação de João Huss e
da abdicação de João XXIII e de Gregório XII.

Mas, a 30 de outubro de 1417, foram votados dezoito decretos que visavam, essencialmente, os abusos, quer financeiros quer
judiciais do poder pontifical.

O concílio terminou, em 1418, na impotência e na completa falta de unanimidade. Tomara, todavia, uma decisão fundamental
que defendia o futuro: o papa fora considerado inferior ao concílio e este reuniria, doravante, de forma regular e automática.

A vontade de reforma vinha, essencialmente, da base. E a assembleia de Basileia atraiu relativamente poucos prelados. O
concílio começou por beneficiar da simpatia geral da cristandade e Eugênio IV, apesar da sua profunda hostilidade para com ele,
teve de reconhecê-lo como canônico (1434). Foram obtidos importantes resultados em vários domínios:
● a França e a Borgonha, sob a égide do concílio, reconciliaram-se
● os utraquistas9 da Boêmia foram readmitidos na Igreja romana
● as resoluções de reforma foram adotadas em 1436

Mas Eugênio IV saiu vencedor do conflito que o opunha ao concílio.

Os extremistas da assembleia, que se declarava constituinte, foram inábeis ao não estatuir os meios financeiros a dar ao papado
e, principalmente, ao depor Eugênio IV e eleger Félix V (1439). Foi geral a consternação perante o cisma que novamente se
abria.

Carlos VII e o clero francês, favoráveis ao concílio, tinham justamente adotado a “pragmática sanção10”, que, sob as cores do

1452). O movimento mais tarde se juntou a Reforma Protestante. No Concílio de Constança, em 1415, as ideias de Jan Hus foram condenadas.
Hus manteve uma posição muito crítica perante ao poder eclesiástico, posições muito próximas às de John Wyclif e os valdenses, opiniões que
influenciaram Martinho Lutero.

9O utraquismo (do latimsub utraquespecie, ou seja, "em ambas as espécies"), é uma corrente de pensamento cristão que afirma que a
Eucaristia deve sempre ser administrada a todos os fiéis em "ambas as espécies ", ou seja, pão e vinho. Na prática de algumas igrejas,
principalmente católicas, tradicionalmente apenas os sacerdotes bebem o vinho consagrado durante a celebração.
Historicamente, os utraquistas foram uma facção dos hussitas, seguidores do teólogo rebelde Jan Hus, que foi condenado à morte pela
fogueira em 1415.
Após um período de conflito militar, especialmente na antiga Morávia, o utraquistas se reconciliaram com a Igreja Católica. Os utraquistas
eram uma facção moderada dos hussitas (em contraste com os taboritas mais radicais). Os utraquistas eventualmente se uniram a Santa Sé e
derrotaram os taboritas na Batalha de Lipany em 1434.

10
Pragmática Sanção é a designação tradicionalmente dada a toda a norma ou disposição legal promulgada de forma solene por um soberano
absoluto que disponha sobre aspectos fundamentais do Estado, regulando questões como a sucessão no trono, as matérias de religião de
Estado e outras. Na história do Sacro Império Romano-Germânico refere-se mais especificamente a um édito emitido pelo imperador.
Pragmática Sanção de 1439, promulgada pelos príncipes eleitores germânicos em 26 de março de 1439, aceitou alguns dos decretos do
Conselho de Basileia, com modificações. É alegado que o nome Pragmática Sanção não é correctamente aplicado a este documento, uma vez
que foi emitido por príncipes subordinados ao Imperador, sem o aval deste.
galicanismo11 e da independência face ao papa, fazia, na realidade, do rei o senhor dos benefícios em França. Recuaram, porém,
perante a perspectiva de nova quebra da unidade cristã.

Noutros países a reação foi idêntica. Félix V só foi reconhecido por Basileia, Estrasburgo, Saboia, Milão, Aragão e Baviera.

Os moderados abandonaram a assembleia de Basileia, à qual Eugênio IV opôs em 1438 outro concílio, primeiro reunido em
Ferrara e depois em Florença. Ora foi a Florença que veio o imperador de Constantinopla, e foi Eugênio IV quem ele reconheceu
como sucessor de Pedro.

O êxito - sem futuro - da reunião das Igrejas grega e latina (1439) exaltou o prestígio de Eugênio IV.

Os concílios não tinham conseguido a reforma da Igreja e também a não fizeram os papas que reinaram entre 1450 e a revolta
de Lutero.

***

Em 1434, Eugênio IV escrevia aos padres do concílio de Basileia: “Das solas dos pés ao cocuruto da cabeça, não há no corpo da
Igreja uma única parte sã”.

Cinquenta anos depois, um orador do clero nos Estados Gerais de Tours não seria menos pessimista: “Todos sabem que já não
há regra, devoção nem disciplina religiosas e que há em todo o clero demasiada desordem em grande detrimento de toda a
Cristandade”.

Na esteira de acusações tão categóricas, muitos historiadores fizeram, durante muito tempo, dos “abusos” de todos os gêneros
que então havia na Igreja a causa principal da Reforma. Efetivamente, quando esta surgiu, por toda a parte se acumulavam os
benefícios, as comendas, o absentismo12. O declínio da vida monástica era indiscutível.

Dominicanos e franciscanos esgotam-se em querelas mesquinhas. Os franciscanos dividem-se em dois grupos rivais: observantes
e conventuais. Finalmente, mendicantes e seculares opõem-se em muitas ocasiões; aqueles pretendem substituir estes na vida
paroquial. É verdade que o baixo clero, por sua vez, também deixa muito a desejar. É bem pouco edificante o quadro que dele
fazem muitos documentos. Aí encontramos frequentemente padres cheios de brutalidade, envolvidos em querelas e dados ao
concubinato.

E mais ainda: são pouco instruídos e muito pobres, especialmente no campo pois os beneficiários são absentistas e fazem-se
substituir por servidores a quem pagam o mínimo possível. É vulgar o padre ter de trabalhar para viver; às vezes “vende”
ossacramentos13.

Os locais de culto estão mal conservados, as bases da religião são mal ensinadas, os sacramentos são poucos e mal distribuídos.

Os bispos esquecem cada vez mais que o seu nome “significa labor, vigilância, solicitude” (Erasmo). Frequentemente recrutados
na nobreza, voluntários da guerra na Alemanha e, noutros sítios, conselheiros atentamente ouvidos pelos príncipes, não têm
escrúpulos quanto ao absentismo e esquecem o dever de visitar as dioceses. Quanto mais se sobe nos escalões de hierarquia
maior parece o escândalo.

11Esta concepção provém do governo absolutista de Luís XIV e das ideias de Bossuet. A Igreja estaria submetida ao Estado e o poder do rei
asseguraria o bem-estar dos súditos. O resumo destas ideias estão expressas na "Declaração do clero galicano", redigido por Bossuet em 1682.
Constam de basicamente quatro pontos:
1. Em relação às coisas temporais, os reis independem da Santa Sé.
2. O Concílio está acima do Papa.
3. O Papa deve respeitar as regras, costumes e constituições aceitas na Igreja galicana.
4. As definições referentes à fé não podem sofrer reforma sem que haja o consenso de toda a Igreja.
A Igreja galicana estaria submetida às ordens do Papa desde que fossem reconhecidas ou assinadas pelo Papa ou pelo Parlamento francês.
Luís XIV reuniu o clero em 19 de maio de 1692 apresentou estas "Liberdades galicanas".

12prática habitual de abandonar o cumprimento de deveres e funções de determinado posto ou cargo

13São sete os sacramentos adotados pela Igreja Católica: batismo, confirmação do batismo (ou crisma), confissão (ou penitência), eucaristia,
ordem (sacerdotal), matrimônio e unção dos enfermos.
Numa Roma corrompida pelo luxo do Renascimento, os cardeais14 são, mais do que nunca, os “sátrapas, montados em cavalos
ajaezados a ouro, que pouco falta para que sejam também ferrados a ouro…”, como já Petrarca reprovava.

Quanto aos papas, “fazem, com seu silêncio, que Cristo seja esquecido” - é Erasmo quem fala -, “acorrentam-no a leis de
traficância, desnaturam-lhe os ensinamentos com interpretações manipuladas e matam-no com o seu vergonhoso
comportamento”.

Que há de espantoso na impressão de caos dada por uma Cristandade assim dirigida e enquadrada nas vésperas da Reforma? A
liturgia15 perde o pé perante novas formas de devoção.

Deve-se aderir mais aos sacramentos ou ao rosário, à missa - uma missa que a maioria dos fiéis não entende - ou à via sacra, a
Deus ou aos santos? O politeísmo parece renascer.

Os cristãos, assustados com o medo da morte e do inferno, procuram abrigar-se sob o grande manto da Virgem e tentam
segurar-se contra a danação à força de indulgências compradas.

A penitência torna, assim, um caráter venal e as indulgências são oferecidas como prêmios de uma tômbola (loteria, jogo de
azar que precedeu a roleta).

Numa atmosfera saturada de inquietação em que o diabo parece rondar por todos os lados, aumenta, no século XV, a caça aos
feiticeiros e, principalmente, às feiticeiras, que só depois de 1648 abrandará.

Como é que uma Europa cristã tão profundamente perturbada e dividida por tantos conflitos internos poderia resistir aos
assaltos do Infiel?

Os cristãos, já vencidos em Nicópolis (1396) e em Varna (1444), não puderam evitar a conquista de Constantinopla (1453).

Havia, portanto, em todos os aspectos, uma crise da Igreja.

Depois de ter queimado personagens tão santas quanto João Huss (1415) e Savonarola (1498), depois de recusar-se a ouvir os
apelos à renovação, a Igreja enfrentou nas piores condições os embates de Wittenberg: Lutero (1483-1546) juntava à ciência de
Wycliffe16 a veemência de João Huss.

***

A partir domomento em que Frei Martinho - sem a mínima intenção de revoltar-se contra Roma - afixou, em 31 de outubro
de1517, as suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg, a fratura da catolicidade avançou com desconcertante rapidez.

Menos de quatro anos depois, Lutero, que, entretanto, passara a ser o homem mais conhecido da Alemanha, fora
excomungado, banido do império, recolhido e escondido em Wartburg pelos cuidados de seu protetor Frederico da Saxônia 17.

Mas, ainda antes da excomunhão, redigirá, só no ano de 1520, as quatro obras fundamentais que iriam servir de base à teologia
reformada: o Papado de Roma, o Apelo à Nobreza Cristã da Nação Alemã, o Cativeiro Babilônico da Igreja e o tratado Da

14 Um cardeal é um alto dignitário da Igreja Católica, que assiste o Papa em diversas competências.

15A palavra liturgia (do λειτουργία, "serviço público" ou "serviço do culto") compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com
as tradições de uma religião em particular; pode incluir ou referir-se a um ritual formal e elaborado (como a Missa Católica) ou uma atividade
diária como as salats muçulmanas.
Um ofício ou serviço indispensável e obrigatório. Isto porque estas Igrejas cristãs prestam essencialmente o seu culto de adoração a Deus (a
teolatria) através da liturgia. Para elas, a liturgia tornou-se, em suma, no seu culto oficial e público.

16John Wycliffe (c. 1328 — 31 de dezembro 1384) foi professor da Universidade de Oxford, teólogo e reformador religioso inglês, considerado
precursor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI (ver: Reforma Protestante). Trabalhou na primeira tradução da
Bíblia para o idioma inglês

17
Frederico III, também conhecido como Frederico, o Sábio, (17 de Janeiro de 1463 - 5 de Maio de 1525).
Em 1502 ele fundou a Universidade de Wittenberg, onde Martinho Lutero e Melanchthon ensinaram.
Ele foi também o candidato do papa Leão X para santo imperador romano em 1519, mas ajudou a eleger Carlos V. Frederico conseguiu a
isenção da Saxónia do Édito de Worms e assegurou que Lutero fosse ouvido perante a Dieta de Worms em 1521. [1]
Ele protegeu Lutero do imperador e do papa ao ordenar que o abrigassem no castelo de Wartburg após a Dieta de Worms.
Frederico teve no entanto pouco contato pessoal com Lutero, tendo permanecido católico romano.
Liberdade do Cristão.

Em Wartburg, Lutero começou a traduzir a Bíblia, trabalho que continuou, a partir de 1522, em Wittenberg, onde pudera voltar
por não ter já a sua segurança em dúvida.

Na verdade, toda uma parte da Alemanha se pronunciava a seu favor: humanistas, artistas, gente da pequena nobreza,
príncipes. Quando, em 1529, uma dieta quis fazer valer novamente o édito de Worms 18, que bania do império do reformador,
seis príncipes e catorze cidades protestaram - e daí o nome de “protestantes”.

Em 1555, dois terços da Alemanha eram luteranos. A Reforma, a esse tempo, tinha largamente ultrapassado as fronteiras da
Alemanha.
● Toda a Escandinávia passara para o lado dos protestantes.
● A agitação nos Países Baixos era intensa.
● Em Estrasburgo, o culto reformado fora estabelecido em 1523-1524.
● Uma boa parte da Suiça abandonara Roma.
● Em 1523, foi criada, em Paris, a primeira igreja reformada em França.
● Em Inglaterra, Thomas Cromwell, que levou Henrique VIII a romper com Roma (a excomunhão do soberano e o “Ato de
supremacia”são de 1534), era de simpatia luterana.
● Em 1528 morria o primeiro mártir protestante da Escócia.
● As doutrinas de Lutero gozavam de simpatias em Sevilha e em Valladolid, e mais ainda em Nápoles.
● Na Boêmia, onde o terreno fora preparado por João Huss.
● Na Morávia e, principalmente, na Hungria e na Transilvânia, vastas camadas de população foram ganhas para a
Reforma.
● Cerca de 1555, o luteranismo tinha ganho numerosos partidários na Alta e Baixa Áustria, na Estíria, na Caríntia, na (?),
na Posnânia e na Lituânia.

A morte de Lutero (1546) provocou no interior da confissão de Augsburgo uma crise que durou perto de quarenta anos. Mas,
quando o luteranismo estava a perder o fôlego, Calvino 19 (1509-1564) deu nova vida e nova força à Reforma.

Retido em Genebra por Farel20 em 1536, expulso da cidade dois anos depois, chamado novamente pelos genebristas em 1541 e
para sempre instalado entre eles, o autor da Instituição Cristã, transformado em segundo patriarca da Reforma, fez da cidade do
Léman a Roma do protestantismo. Dela partiram os pastores que tomaram nas mãos os pequenos grupos de “professantes” mal
organizados de França e dos Países Baixos.

18
O Édito de Worms foi um decreto do imperador romano Carlos V que proibiu os escritos de Martinho Lutero e rotulou-o como inimigo do
Estado. O édito, publicado em 25 de maio de 1521 na cidade de Worms (Alemanha), pôs fim a uma constante luta entre Martinho Lutero e a
Igreja Católica Romana sobre a reforma, especialmente no âmbito da venda de indulgências
Não obstante, havia outras questões mais profundas que giravam tanto em torno da teologia quanto da política. No plano político, Lutero
havia desafiado a autoridade absoluta do papa sobre a Igreja, ao afirmar que a venda de indulgências, autorizada e promovida pelo papa,
estava errada. No nível teológico, Lutero afirmou que a salvação era alcançada somente pela fé (sola fide), e não através dos mecanismos
jurídicos da Igreja, ou por que as pessoas fizessem por merecê-la. Ele também desafiou a autoridade da Igreja ao afirmar que todas as
doutrinas e dogmas devem ser compatíveis com os ensinamentos da Escritura (sola scriptura).

19O calvinismo (também chamado de Tradição Reformada, Fé Reformada ou Teologia Reformada) é tanto um movimento religioso
protestante quanto um sistema teológico bíblico com raízes na Reforma Protestante, iniciado por João Calvino em Genebra no século XVI.
O sistema costuma ser sumarizado através dos cinco pontos do calvinismo.
Calvinistas romperam com a Igreja Católica Romana, mas diferiam dos luteranos na doutrina sobre a presença real de Cristo na Eucaristia,
Princípio regulador do culto, e o uso da lei de Deus para os crentes , entre outras coisas.[4][5]
O termo calvinismo pode ser enganoso, pois a tradição religiosa que por ele é identificada sempre foi diversificada, com uma vasta gama de
influências, em vez de um único fundador. O movimento foi chamado pela primeira vez calvinismo pelos luteranos que se opunham a ele, e
muitos dentro da tradição preferem usar o termo Reformado para o descrever.

20
Guilherme Farel (1489 - 13 de setembro de 1565) - Guillaume Farel em francês - foi um evangelista francês, e um dos fundadores da Igreja
Reformada nos cantões de Neuchâtel, Berna, Genebra e Vaud na Suíça. Ele é frequentemente lembrado por ter persuadido João Calvino a
permanecer em Genebra em 1536, e o fazê-lo retornar em 1541, após ter sido expulso em 1538. Eles influenciaram o governo de Genebra até
o ponto de ele se tornar um estado teocrático, a "Roma protestante", onde se refugiaram os protestantes e os não-protestantes foram
perseguidos. Junto com Calvino, Farel trabalhou para treinar pregadores missionários que difundiram a causa protestante para outros países,
especialmente a França.
Por outro lado, John Knox21, que em 1560 fizera triunfar o presbiterianismo na Escócia, estivera por duas vezes em Genebra,
onde travara relações de amizade com Calvino. Foi ainda como que um conselheiro religioso do jovem Eduardo VI de Inglaterra,
em quem via um novo Josias22 mas que só reinou seis anos (1547-1553). A morte do rei e o advento de Maria Tudor, que era
católica, e depois de Isabel (Elizabeth - 1558), que ficou bastante indiferente aos problemas dos dogmas, dificultaram em
Inglaterra uma reforma de tipo suíço. Mas os XXXIX Artigos de 1563, que consolidaram a Igreja Anglicana, associaram um culto e
uma hierarquia aparentemente católicos a uma teologia largamente calvinista.

Além disso, desenvolveu-se em Inglaterra uma forte corrente puritana que iria, tempos depois, originar a guerra civil. Era hostil à
“idolatria papista” e aos bispos, que tratava por “lobos devoradores” e “servidores de Lúcifer”.

Na segunda metade do século XVI e no início do século XVII, a reforma zwinglo 23-calvinista - expressão mais exata que a
designação “calvinista” espalhou-se pela Europa:
● Alemanha (Palatinado Renano, Frísia Oriental, Hesse-Cassel, Brandenburgo)
● Ganhou também parte da Hungria, que passou para o domínio turco
● Foi, principalmente, a confissão oficial das Províncias Unidas, revoltadas contra Felipe II e separadas dos Países Baixos
desde 1581.
● Na França, em 1562, teria mais de 2.150 “comunidades” reformadas que reuniam um quarto da população do reino.

É preciso dizer, porém, que, a partir da década de 1560, os progressos do protestantismo foram mais lentos que da época de
Lutero e encontraram pela frente uma forte defesa do catolicismo.

A vontade de defesa da Igreja Romana, na verdade amputada, mas não destruída, afirmou-se principalmente a partir do reinado
de Paulo III24 (1534-1549).

Foi ele, com efeito, que aprovou os estatutos da Companhia de Jesus (1540), que criou o Santo Ofício (1542)25, que convocou

21
John Knox (Haddington, East Lothian, 1514 — Edimburgo, 24 de novembro de 1572) foi um religioso reformador escocês que liderou uma
reforma religiosa na Escócia segundo a linha calvinista

22Josias ou Yoshiyahu (em hebraico: ‫ֹאשיָּהו‬


ִׁ ‫ּי‬, hebraico moderno: Yoshiyyáhu, hebraico tiberiano: Yôšiyyāhû, cujo significado literal é "curado
por Yah" [ou Jeová cura] ou "sustentado de Yah"; em grego: Ιωσιας; em latim: Josias, c. 649-609 a.C) foi o 16º rei de Judá (641-609 aC), de
acordo com a Bíblia Hebraica, que instituiu grandes reformas. Josias é creditado pela maioria dos historiadores de ter estabelecido ou
compilado Escrituras Hebraicas importantes durante a reforma deuteronômica que ocorreu durante seu governo.
Entre o 12° e 18° ano de seu reinado, Josias embrenhou-se numa batalha contra aquilo que considerava idolatria. Na sua inciativa, destruiu
postes sagrados, altares e imagens, tanto no seu território, como na parte setentrional do que fora o reino de Israel, arrasado pelos Assírios.
Segundo Israel Finkelstein, esse combate às idolatrias serviram ao propósito de concentrar o poder em Judá e no destruído reino de Israel nas
mãos de Josias. O objetivo principal do Pentateuco era a criação de uma nação unificada entre Israel e Judá, a qual pudesse basear-se num
sistema unificado de crenças num deus único, o que, na verdade, não era comum ao povo camponês de Judá ou Israel. O projeto de Josias
marcou a consolidação da ideia monoteísta entre os hebreus e visava a formar um só povo judeu, guiado por um só Deus, governado por um
só rei, Josias, com uma só capital, Jerusalém, e um só templo, o de Salomão. Segundo o arqueólogo Finkelstein as histórias bíblicas foram
embelezadas para servir ao projeto do rei Josias de tornar um só dois reinos que sempre, ao contrário do que diz a Bíblia encomendada por
Josias, foram distintos. Além disso, o sentimento de unidade que a Bíblia deveria trazer aos israelitas e judeus serviria para que os pequenos
reinos de Canaã pudessem se defender das grandes potências da época: Assíria, Egito e Mesopotâmia.
23
Zuínglio foi o líder da reforma suíça e fundador das igrejas reformadas suíças. Independentemente de Martinho Lutero, que
era doctorbiblicus, Zuínglio chegou a conclusões semelhantes pelo estudo das escrituras do ponto de vista de um erudito
humanista. Zuínglio não deixou uma igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas.

24
Papa Paulo III, nascido Alessandro Farnese (Canino, 29 de fevereiro de 1468 - Roma, 10 de novembro de 1549), foi Papa de 13
de outubro de 1534 até à data da sua morte.
Recebeu educação de grandes mestres humanistas em Roma e Florença. Durante o pontificado de Alexandre VI, e com grande
tacto político e muita experiência, chegou muito novo a Cardeal (20 de setembro de 1493).
Eleito Papa em 12 de outubro de 1534, procurou reformar a Igreja. Em 1537, lançou a bula pontifícia Sublimis Deus, a favor da
liberdade dos povos indígenas do Novo Mundo. Aprovou a criação da Companhia de Jesus de Inácio de Loyola em 1540.
Convocou o Concílio de Trento em 1545.
Excomungou Henrique VIII de Inglaterra, mas não conseguiu travar a Reforma Protestante. Concedeu a Inquisição em Portugal a
D. João III. Lançou as bases da Contrarreforma.
Durante o seu pontificado, foi executada por Michelangelo a pintura Juízo Final sobre o altar da Capela Sistina, obra realizada
entre 1535 e 1541 e que havia sido encomendada pelo seu antecessor, Clemente VII

25
É a mais antiga das nove congregações da Cúria Romana, um dos órgãos da Santa Sé.
A razão de ser da Congregação é difundir a doutrina católica e defender aqueles pontos de tradição católica que possam estar
para Trento (1545) o concílio ecumênico que Lutero pedira, mas do qual o papado desconfiava por causa dos precedentes de
Constança e de Basileia.

O concílio, apesar de uma existência difícil - estendeu-se por dezoito anos e foi dissolvido duas vezes -, realizou uma obra
considerável.
● Clarificou a doutrina
● Conservou as boas obras - ou seja, a liberdade - na obra da salvação
● Conservou os sete sacramentos
● Afirmou com força a presença real na eucaristia
● Iniciou a redação de um catecismo
● Obrigou os bispos a residir e os padres a pregar
● Decidiu a criação de seminários

Mas este concílio também foi uma recusa de diálogo com os protestantes, definitivamente classificados como “heréticos”.Opõe-
se ao casamento dos padres e à comunhão sob as duas espécies, cara a Lutero e anteriormente concedida aos utraquistas da
Boêmia.

O concílio manteve, contra Lutero e Zwingli, que haviam zombado das indulgências e das peregrinações, e contra Calvino, que
ironizara a respeito das relíquias, todas as formas de devoção.

Confirmou o culto dos santos.

Decidiu que a vulgata de São Jerônimo era o texto autêntico da Escritura e manteve o latim como língua de culto.

Um ano depois do concílio, Pio IV publicava o Index dos autores e dos livros proibidos.

Erasmo, morto em 1536, figurava nele, com toda a sua obra, sob a menção de damnatusprimaeclassis. Esta condenação
significava a rejeição de todas as tentativas de conciliação dos humanistas. Erasmo reprovara a excomunhão de Lutero,
condenando a sua excessiva violência. Rompeu com ele definitivamente em 1525 ao defender o “livre arbítrio” contra o “servo
arbítrio”luterano. Mas as suas preferências inclinavam-se para uma Igreja em que fosse livre a discussão teológica e em que as
discussões entre doutores tivessem menos importância que a prática das virtudes evangélicas.

***

A colocação no Index de uma obra cujo autor recebera, trinta anos antes, a oferta de um chapéu cardinalício - e que Erasmo
recusara para continuar livre - era um sinal dos tempos e um indicador, entre muitos outros, do endurecimento de posições.

Os cristãos pareciam acreditar, mais que nunca, na força como meio de resolução dos problemas religiosos. Destruíam os
templos astecas e incas, expulsavam os Mouros de Espanha, fechavam os judeus em guetos. O ódio entre os fiéis de Cristo
atingia o auge.
● Francisco I deixou massacrar 3000 Valdenses do sul
● Filipe II liquidou os protestantes de Espanha em cinco grandes autos-de-fé
● Com o São Bartolomeu e suas sequelas, foram vitimados mais de 30 mil reformados franceses
● Nos Países Baixos, no outono de 1572, o sinistro duque de Alba fez passar pelas armas os protestantes

Mas a intolerância esteve em ambos os lados: às execuções de Maria, a sangrenta, responderam, em número quase igual, as de
Elizabeth.

Na Europa do século XVI eclodiram, por quase toda a parte, “fúrias iconoclastas” que destruíram estátuas, afrescos e vitrais: em
Wittenberg, antes do regresso de Lutero, na Provença e no Delfinado e principalmente nos Países Baixos. Nesta última região,

em perigo, com consequência de doutrinas novas não aceitáveis pela Igreja Católica.
Este órgão encarregava-se de averiguar casos de apostasia e heresia entre os católicos, principalmente aqueles pertencentes ao
próprio clero. O julgamento implicava penas de prisão, excomunhão, uso de vestes que identificassem o herege etc. Além disso,
ao contrário do que comumente se afirma, a pena de morte era evitada e concedida apenas na minoria dos casos, mesmo
porque o perdão era concedido àquelas pessoas que se arrependessem durante o julgamento. Neste ponto, deve-se evitar
confusão com a Inquisição Espanhola, liderada pelos reis da Espanha em sua busca da unificação do seu reino.
em 1572, os “gueux” enterraram vivos os monges, deixando-lhes a cabeça de fora para servir de alvos em jogos de bolas. Na
Inglaterra de Elizabeth, mártires católicos foram estripados vivos, arrancando-lhes coração e as vísceras…

Quem poderá dizer qual dos adversários foi mais cruel e em que país houve maior barbárie? As guerras religiosas foram
intermináveis.
● Países Baixos - 80 anos (1568-1548)
● França - 36 anos
● Alemanha - 30 anos

Como a intolerância religiosa era, então, a regra, os luteranos e os calvinistas trocaram entre si violentos panfletos sobre a
presença real, mas entenderam-se bem para perseguir todos os dissidentes do protestantismo e, em primeiro lugar, os
anabatistas26. Claro que, entre estes, havia também pacifistas e partidários da violência.

Todos os anabatistas, pacíficos ou não, foram perseguidos, quer nos países católicos quer nas regiões que tinham passado à
Reforma.

***

O breve resumo das infelicidades da Igreja que viemos apresentando parece, de entrada, confirmar uma tese de há muito
clássica. Os “abusos” sempre crescentes, ligados à excessiva centralização romana e às preocupações demasiado temporais do
clero, provocaram, por uma espécie de descontentamento, a revolta protestante; esta, por tabela, provocou a renovação da
parte que se manteve fiel à Roma; mas esta renovação, realizada demasiado tarde e no sentido do antiprotestantismo, apenas
serviu para alargar o fosso que separava dois mundos cristãos doravante hostis.

Esta tese mostra-se insuficiente quando se ultrapassa o nível superficial dos acontecimentos e se mergulha na profundidade da
vida cristã dos séculos XIV a XVI. Baseia-se num postulado:
● o período central da Idade Média, o período da expansão das ordens monásticas e da construção das catedrais, teria
sido uma idade de ouro da devoção cristã. Mas não se estará a confundir a fé de uma elite clerical com a vida religiosa
das massas? Nada, pelo contrário, garante que esta vida religiosa tenha seguido uma trajetória descendente.

Lucien Febvre escreveu que as causas da Reforma foram mais profundas que “o desregramento dos cônegos epicuristas ou os
excessos temperamentais das freiras”.

Erasmo, que no Elogio da Loucura (1511) fustigou com veemência papas, cardeais, bispos e frades que, com o seu
comportamento, traíam a mensagem evangélica, recusou romper com Roma.

Inversamente, quando a Igreja Católica, no século XVII, já tinha conseguido corrigir a maior parte das deficiências que
legitimamente lhe tinham sido assacadas27 antes do Concílio de Trento, as várias confissões protestantes não procuraram a
reconciliação com Roma. Portanto, o desacordo era mais grave e situava-se no plano da teologia, não no da moral.

Não foi o espetáculo da “venda” das indulgências perto de Wittenberg que levou Lutero à doutrina da justificação pela fé. Foi,
pelo contrário, a silenciosa descoberta (cerca de 1515) desta grande tese teológica, no recolhimento conventual e graças à
leitura das epístolas de São Paulo, que o levou a protestar em 1517 contra uma prática em que ele reprovava o dar aos fiéis uma
“falsa segurança” religiosa.

Os “abusos” mencionados na Confissão de Augsburg não eram os desregramentos dos monges, mas sim “a comunhão sob uma
só espécie, a missa transformada em sacrifício, o celibato eclesiástico, os votos religiosos, os jejuns e as abstinências impostos
aos fiéis” (Cristiani) - como se se censurasse o cristianismo, não de relaxamento, mas de excessivo rigor.

26
Anabaptistas ou anabatistas ("re-batizadores", do gregoανα (novamente) + βαπτιζω (baptizar); em alemão: Wiedertäufer) são cristãos
sectários do anabatismo, a chamada "ala radical" da Reforma Protestante. Os anabatistas não formavam um único grupo ou igreja, pois havia
diversos grupos chamados genericamente de "anabatistas" com crenças e práticas diferentes e divergentes. Eles foram assim chamados
porque os convertidos eram baptizados apenas na idade adulta, por isso, eles re-baptizavam todos os seus prosélitos que já tivessem sido
baptizados quando crianças, pois creem que o verdadeiro baptismo só tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo.
Desta forma os anabatistas desconsideravam tanto o batismo católico quanto o batismo dos protestantes luteranos, reformados e anglicanos.

27imputar caluniosamente, atribuir sem fundamento


As críticas formuladas contra as ordens religiosas, evidentemente muito divulgadas na época do Renascimento, mas por vezes
estereotipadas e convencionais, também têm de ser sujeitas a uma análise. Não há dúvida de que as várias ordens já não
mostravam, nas vésperas da Reforma, a poderosa vitalidade que as caracterizara durante o período central da Idade Média.
Além do mais, o Grande Cisma tinha-lhes acentuado a crise, as querelas internas, a tensão mútua entre as várias famílias
religiosas. Mas o historiador descobre, na maior parte das ordens, tentativas de renovação muito anteriores ao concílio de
Trento.

Se a Igreja de antes de 1517 não fizera ainda a sua grande reforma, por falta de um impulso original central, havia esforços
dispersos, mas numerosos - tanto os de real amplidão (a restauração religiosa espanhola sob o influxo de Cisneros) como os
mais discretos (a fundação, no princípio do século XVI, do “Oratório do amor divino” em Gênova e depois em Roma) - que
provam a existência de um desejo muito generalizado de purificação. Este desejo tomou por vezes o aspecto de regresso ao
passado.

Nas ordens religiosas, “reforma” significava, em geral, “regresso à observância” e aos usos antigos. Nesses casos, parecia
ausente a ideia de adaptação a condições novas.

Por outro lado, de toda a parte surgiam, de modo desordenado, é certo, iniciativas e manifestações que provavam menos a
decadência que as exigências novas e a transformação da devoção.

***

Há um fato principal que caracteriza a vida religiosa no Ocidente a partir do século XVI, a saber: ascensão e a afirmação da
devoção popular.

O cristianismo, que até então fora uma religião de clérigos que enquadravam e dirigiam a devoção dócil dos fiéis, tomou novas
cores. Passou a exprimir, numa civilização mais urbana, uma alma coletiva mais autônoma e menos controlável que
anteriormente.

Tomando consciência desta promoção do povo cristão, teólogos do século XIV - Marsílio de Pádua, Guilherme de Occam,
Dietrich de Niem - não hesitaram em adotar uma atitude “multitudinista” (relativa a multidão). Um deles proclamou: “O papado
é a totalidade dos fiéis juridicamente associados para satisfação dos seus interesses comuns”.

Mas já antes disso se multiplicavam as diversas e, por vezes, anárquicas manifestações de um cristianismo de massas: procissões
de todos os tipos, autos de Paixão representados perante multidões consideráveis, desenvolvimento das confrarias, maior papel
do canto nas cerimônias religiosas, fundação de coros privativos das igrejas, etc.

De fato, as multidões sentiam a necessidade de cantar a sua fé. Os utraquistas fomentaram o canto religioso popular. Um século
depois, os corais luteranos e os salmos musicados deram, do lado protestante, novo alimento à devoção dos fiéis.

Foi também para levar a mensagem evangélica a multidões indubitavelmente mais exigentes neste aspecto que os pregadores -
essencialmente franciscanos e dominicanos - percorreram em todos os sentidos a Europa dos séculos XIV e XV. Nunca será
demais insistir-se, de um ponto de vista sociológico, na nova importância da pregação.

Vicent Ferrer, Manfredo de Vercelli, Bernardino de Siena, Oliver Maillard, Savonarola deveram a sua celebridade ao ascendente
que exerciam sobre as multidões, que sucessivamente levavam a estremecer, chorar e ter esperança. Exortavam à “conversão”,
amotinavam crianças contra as elegantes, organizavam fogueiras da vaidade, conduziam à conciliação facções inimigas,
mandavam restituir os bens indevidamente adquiridos. Obtinham das municipalidades, em benefícios das missões, não só
medidas contra a blasfêmia, mas também leis contra costumes suntuários (luxuosos) e regulamentos contra a usura.
● John Wyclig (1320-1384) - a pregação foi uma das suas maiores preocupações. Mas ele próprio pouco fez para descer
da sua cátedra professoral. Pregar parecia-lhe mais urgente que assegurar o culto; lançou em Inglaterra os “lollards”
(padres pobres), um clero itinerante que devia compartilhar da existência dos humildes e ensinar as massas.
● John Huss (1369-1415) - quis ser, também, pregador. A Igreja, pensava ele, só poderia ser transformada pela palavra de
Deus

Transmitir aos outros a mensagem divina surgia, pois, aos espíritos mais clarividentes, como a tarefa prioritária da Igreja.

Esta nova insistência no sacramento da Palavra deixa também entrever uma verdadeira carência do clero no domínio da
pastoral. Com efeito, a principal fraqueza da Igreja no período que antecedeu à Reforma não estava nos abusos financeiros da
cúria romana nem no estilo de vida, por vezes escandaloso, dos altos dignatários eclesiásticos nem nos desregramentos de
certos monges nem no número, seguramente grande, dos padres concubinários. Residia, sim, na muito deficiente instrução
religiosa e na insuficiente formação dos pastores de almas, que frequentemente eram incapazes de ministrar eficazmente os
sacramentos e de apresentar de modo válido a mensagem evangélica.

A Reforma nasceu, provavelmente, desse profundo desnível entre a mediocridade da oferta e a veemência inusitada da procura.
É evidente que o esforço de pregação realizado no século XV ficou aquém das necessidades.

Martinho Lutero: “Haverá quem me diga: que crimes, que escândalos, que fornicações, estas bebedeiras, esta paixão
desenfreada pelo jogo, todos estes vícios do clero!... São escândalos muito grandes, confesso; há que denunciá-los, há que dar-
lhes remédio: mas o vício de que falais são visíveis a todos; são grosseiramente materiais, tocam a todos e, portanto,
emocionam os espíritos… Mas, aí, há outro mal, outra peste, incomparavelmente mais malfazeja e mais cruel: o silêncio
organizado quanto a Palavra da Verdade, ou a sua adulteração - este mal que não é grosseiramente material, que até não chega
a ser percebido, que não provoca a nossa emoção e cujo horror não se sente…”

As duas reformas - protestante e católica - foram, notoriamente, uma tomada de consciência do mal denunciado por Lutero e
um esforço para dar resposta à sede religiosa dos fiéis. Foram, em definitivo, dois aspectos de um mesmo movimento.

O protestantismo fez da pregação a parte principal do culto.

Mas, por vezes, é-se menos sensível às iniciativas tomadas do lado romano no sentido de melhorar a transmissão da mensagem
evangélica aos fiéis. Os párocos receberam instruções para dar, todos os domingos, educação religiosa aos paroquianos.

As igrejas construídas após o concílio de Trento tiveram, propositalmente, dimensões relativamente modestas: o pregador era,
desse modo, ouvido por todos.

O problema de maior importância era o da formação dos pastores de almas. Foi abordado, a partir do século XVI, de um modo
frontal de ambos os lados da barreira confessional. Academias protestantes e seminários católicos acabaram, com o tempo, por
conseguir dar ao povo cristão, os guias espirituais que até aí lhe tinham faltado na vida de todos os dias.

O ter havido entre os fiéis, na época da grande mutação que estamos estudando, uma aguda necessidade de doutrina cristã é
ainda provado pela multiplicidade de catecismos que foram redigidos nos séculos XVI e XVII, tanto nos países católicos como nas
regiões protestantes.

O Renascimento saldou-se, assim, por uma promoção da teologia, cujos fundamentos rudimentares, pelo menos, tinham
doravante de ser conhecidos das massas.

Antes da Reforma, o clero insistia principalmente na moral, mas, ao que parece, com pouco êxito. A partir do século XVI os
renovadores da cristandade utilizaram a tática inversa, tipicamente luterana: restauraram a teologia, da qual deveria emanar a
moral.

***

Os fiéis, portanto, impunham-se mais que outrora à atenção dos responsáveis pela Igreja. No interior desta, os leigos passaram a
ocupar - e dentro em pouco exigiam-no - um lugar cada vez mais importante.

O considerável papel então desempenhado pelas confrarias 28 é revelador neste aspecto. O seu desenvolvimento, que se
acentuou nos séculos XIV e XV, tomou foros de desenvolvimento europeu. Ora, nessas confrarias, clérigos e leigos estavam
associados: padres presidiam à vida - e aos banquetes - da pia associação; deixavam assim de ser “homens de casta à parte”

Clérigos e leigos, estreitamente unidos, treinavam-se aí na prática de uma vida perfeita. Padres e leigos encontravam-se
misturados nessas comunidades, em que alguns membros eram operários cervejeiros e camponeses. Ao mesmo tempo, o latim
perdeu importância entre os Irmãos: lia-se a Bíblia em tradução e pregava-se e cantava-se em língua vulgar.

Foram, portanto, revistas as noções de Igreja e de sacerdócio. O povo cristão surgiu como juiz da hierarquia e dos pastores das

28Confrarias (Irmandades ou Ordens Terceiras) são associações religiosas de leigos no catolicismo tradicional, que se reuniam para promover o
culto a um santo, representado por uma relíquia ou imagem. Estas associações agrupavam-se geralmente por vizinhança. Sua característica
principal é o caráter leigo no culto católico.
almas.
● John Wycliffe - deu, no seu De ecclesia(1378), uma definição da Igreja que Lutero viria a adotar: a
universitaspraedestinorum, a invisível assembleia daqueles que Deus escolheu, bem diferente, portanto, de uma Igreja
visível e puramente humana, mas que é necessário controlar, corrigir, adaptar. Aos olhos de Deus, todos os eleitos são
iguais e o padre não é mais que o leigo. No plano da prática, é preciso rechaçar o mau pastor - quem garante que ele
faz parte da igreja invisível? -, recusar-lhe os dízimos que ele desbarata e dá-los aos pobres. Um ministro em estado de
pecado não ministra validamente os sacramentos.
● John Huss - também compôs um De ecclesia(1413), voltou aquém de Wycliffe e manteve, apesar de certas fórmulas
confusas, o caráter sagrado da Igreja militante; mas fez do papado uma instituição puramente humana, nascida na
época de Constantino, e afirmou que um mau bispo, um simoníaco 29, por exemplo, deixa de ser “um verdadeiro
prelado” em conformidade com o sentir divino. De resto, havia em Huss uma invencível desconfiança quanto à “casta
sacerdotal”.
● Jean Gerson30 - em Constança, contribuiu para a condenação do reformador checo (John Huss), mas também ele se
opôs à teocracia romana, que só podia “engendrar o despotismo, a revolta ou a servidão, o espírito de cisma ou o
episódio da idolatria”. Ensinou, com efeito, que a multidão não se pode enganar e que todo o fiel devia, se o desejasse,
ser admitido no concílio.
● Zarabella - “a plenitude do poder reside na massa dos fiéis”.

Os reformadores do século XVI foram, portanto, herdeiros de toda uma corrente que, havia já dois séculos, tinha desvalorizado
a hierarquia eclesiástica e o próprio padre e, aos poucos, fizera emergir a dignidade cristã do leigo.

Logo, a partir de 1384, apareceram em Inglaterra projetos de confiscação de bens eclesiásticos.

Wycliffe recusava toda e qualquer Igreja hierarquizada; desejava apenas padres iguais uns aos outros e, antes de tudo o mais,
distribuidores da Palavra; negava a transubstanciação e desvalorizou os sacramentos, graças aos quais o sacerdócio ganhara, de
certo modo, ascendente sobre os fiéis.

Huss cria na presença real e na transubstanciação; mas tanto ele como os seus discípulos se empenharam muito especialmente
em restituir aos fiéis a comunhão sob ambas as espécies. Achavam que, com isso, conferiam aos leigos uma importância nova na
vida da Igreja.

Não há ligação entre a afixação por Lutero das 95 Teses e a ação dos dois grandes “heréticos” que o precederam. Mas, uma vez
apanhado pela engrenagem da revolta, Lutero descobriu as afinidades que tinha com eles e comportou-se como seu sucessor.

Ele e os outros reformadores protestantes reuniram num corpo único de doutrina os elementos esparsos de uma teologia
favorável aos leigos. Fizeram do pastor, pelo menos em direito, um delegado dos fiéis e autorizaram-no a casar; confiscaram
todos os bens da Igreja; reduziram o número dos sacramentos e diminuíram a importância dos que deixaram ficar; concederam
aos leigos a comunhão sob as duas espécies; permitiram a todos o acesso à Escritura; baniram dos ofícios divinos o latim,
ininteligível pela massa.

Mas não se deve julgar que a Igreja Católica, apesar do reforço das estruturas hierárquicas subsequentes ao concílio de Trento,
não deu atenção à ascensão cristã dos leigos e que a travou sistematicamente.

A ascensão do elemento laico explica todo o interesse que a Igreja Católica, por intermédio dos Jesuítas, por exemplo, pôs no

29Simonia é a venda de favores divinos, bênçãos, cargos eclesiásticos, prosperidade material, bens espirituais, coisas sagradas, perdões,
objetos ungidos, etc. em troca de dinheiro. É o ato de pagar por sacramentos e consequentemente por cargos eclesiásticos ou posições na
hierarquia da igreja. A etimologia da palavra provém de Simão Mago, personagem referido nos Atos dos Apóstolos (8, 18-19), que procurou
comprar de São Pedro o poder de transmitir pela imposição das mãos o Espírito Santo ou de efetuar milagres.
O Direito Canônico também estipula como simonia atos que não envolvem a compra de cargos, mas a transação de autoridade espiritual,
como dinheiro para confissões ou a venda de absolvições.
A prática de simonia foi uma das razões que levaram Martinho Lutero a escrever as suas "95 Teses" e a rebelar-se contra a autoridade de
Roma. Hoje a doutrina católica, pune com excomunhão lataesentientae, ou seja, automaticamente, a todo e qualquer ato de simonia, que
alguns de seus membros vierem a praticar.

30Jean Charlier de Gerson (Johannes Gerson; * 13 de dezembro de 1363 † Rethel, perto de Ardennes, 12 de julho de 1429), chamado de
Doctorchristianissimus, foi teólogo, erudito, educador, filósofo, pregador, reformador e poeta francês, além de chanceler da Universidade de
Paris. Exerceu papel relevante no processo que culminou com a morte de Jan Hus (1371-1415)
ensino. Toda a teologia dos Jesuítas e a sua casuística31, da qual já demasiado se troçou, se orientavam para a compreensão de
um mundo que dia a dia ia dando cada vez maior lugar às atividades profanas.

Explica-se melhor o desprendimento dos fiéis em relação às autoridades eclesiásticas na época da Reforma quando se mede a
importância do papel desempenhado pelas autoridades seculares na vida religiosa cotidiana dos séculos XIV e XV.

A crise religiosa facilitou, evidentemente, o domínio do estado sobre a Igreja.

É certo que os príncipes recebiam a unção ao serem sagrados e que a sua autoridade religiosa só pode ser entendida se se notar
que era exercida no seio de uma sociedade em que domínio da Igreja e domínio do Estado se interpenetravam. Mas eles
representavam, principalmente, a cidade terrestre e, na época do Grande Cisma, foi a cidade terrestre que veio em socorro da
cidade celeste. Segismundo, ao fazer reunir o concílio de Constança, que depôs os três papas concorrentes, fez figura, não sem
motivo, de salvador da catolicidade.

Não há, pois, motivo para espanto quando se observa que, durante o cisma, clero e fiéis dos vários países seguiram docilmente,
em geral, os seus governos na obediência a um ou outro papa. O princípio cujus regio, hujusreligio, que o direito internacional
viria a adotar em 1555, já estava assim a ser aplicado desde o fim do século XIV.

Criou-se o hábito de considerar o chefe do estado como principal conselheiro religioso do país.

Muito antes do cisma de Henrique VIII já a Igreja inglesa era assunto do rei e só por intermédio dele se ligava a Roma. Foi por
isso que seguiu docilmente ao longo de todo o século XVI as sucessivas variações dos seus soberanos no domínio da fé.

***

Os príncipes, em certa medida, representavam as nações. Ora a nova importância religiosa de uns não significaria a maior
autonomia de outras na Igreja?

Foi isto que depressa se viu confirmado pela fratura provocada pela Reforma, pela afirmação do galicanismo e pelas pretensões
espanholas e portuguesas em termos de “padroado” das missões.

Mas há que levar mais longe o estudo desta espécie de dispersão que caracteriza a vida religiosa do Ocidente a partir do século
XIV.

A devoção, menos litúrgica, diversificou-se em modalidades cada vez mais numerosas e passou a ser mais pessoal. O período
que precedeu a Reforma viu expandir-se o individualismo religioso: fato histórico considerável à luz da promoção de toda uma
civilização.

A promoção dos leigos na Igreja e a definição de uma espiritualidade individualista foram bem duas faces de uma só realidade.

Tendo em conta a decadência da liturgia e o fato de que um número cada vez maior de fiéis desejava subir a Deus por
intermédio de um guia que não fosse a regra monástica, convidaram clérigos e leigos à meditação sobre a vida de Cristo e da
Virgem. Mas esta meditação, para ser proveitosa, deve ser metódica e deve apoiar-se em “exercícios”.

A meditação dirigida, posta em voga pela Devotio Moderna, criava, talvez, o risco de fazer diminuir a necessidade dos
sacramentos?

***

Religião mais individualista: isto significa, também, nos dois séculos que antecederam a Reforma, um novo sentimento de
culpabilidade pessoal. O escrúpulo invade as consciências como nunca antes se vira, e este tempo foi marcado por uma súbita
“inflação” da confissão.

As infelicidades da época - pestes, guerras, avanço dos turcos… ‒ criaram uma atmosfera de pânico. Tantos flagelos não podiam
deixar de ser um castigo de Deus e, como a consciência individual - um fato da civilização ‒ estava a emergir na escuridão, todos
se sentiram horrorosamente culpados.

31
Exame de casos particulares e cotidianos em que se apresentam dilemas morais, nascidos da contraposição entre regras e leis universais
prescritas por doutrinas filosóficas ou religiosas e as inúmeras circunstâncias concretas que cercam a aplicação prática destes princípios
Vendo o mal em toda a parte e sentindo-se moral e fisicamente ameaçados pelo diabo, os cristãos acreditaram mais que nunca
nos sabbats de feiticeiras e na ação maléfica dos judeus, que envenenavam as fontes. Recearam mais que nunca a punição
divina: a morte conduziria a uma eternidade de suplícios.

Se havia quem sentisse tentação de se atordoar e esquecer os acontecimentos próximos, as danças macabras – nenhuma delas
é anterior a 1400 – recordavam-lhe o iminente fim das falsas alegrias deste mundo. Mais valia preparar-se para morrer.

Os cristãos desse tempo viveram assombrados com o fim do mundo e o Juízo Final.

E não havia também o Anticristo de aparecer imediatamente antes do fim dos tempos? Não teria já nascido? Lutero, ao romper
com Roma, identificou o papa como o Anticristo.

Como, pois, alcançar a salvação num mundo em que Satã é tão forte e o homem tão fraco? Havia para este angustioso problema
uma solução que se pode dizer quantitativa: forçar a porta do céu à custa de rosários e peregrinações, comprar “cartas de
remissão” a um qualquer dispensador de perdões, colecionar indulgências.

Numa época em que o sentimento de insegurança era tão vivamente experimentado, quer no domínio da religião quer no da
economia, as indulgências foram uma forma de seguro contra a danação.

A doutrina da justificação pela fé32 surgira, também, como outra solução para exorcizar o medo de uma eternidade de suplícios.
Esta doutrina pode ser enunciada do seguinte modo: Deus salva-nos, apesar de nós próprios; foi tão grande o pecado original e
são tão pesados os nossos pecados de todos os dias, que merecemos o inferno; mas Deus não é juiz, é pai, e prometeu-nos a
salvação por intermédio do Filho.

Como todo o bem vem do alto, o homem não poderia merecer uma salvação que lhe é gratuitamente dada; os seus próprios
méritos são uma dádiva de Deus. O papel específico de Lutero foi reelaborar esta grande tese teológica, fazê-la sair do quadro
das discussões de especialistas e oferece-la como remédio radical para o medo das massas cristãs.

Estabelecendo assim, entre a teologia e a psicologia coletiva, uma relação de resposta-à-pergunta, compreende-se melhor por
que razão a solução humanista para o mal-estar da Igreja não podia bastar aos contemporâneos de Lutero.

Tal como os reformadores protestantes, Erasmo desvalorizava a liturgia e os sacramentos. Mas que propunha ele para dar
confiança aos cristãos? “O amor, único preceito do Evangelho”.

Erasmo dirigia-se a gente mais violenta e mais frágil que nós, a massas que passavam sem transição da exaltação ao abatimento
e a que faltava, no mais alto grau, aquele domínio de si que no século seguinte seria exaltado por Descartes e por Corneille.

A mensagem humanista estava muito avançada em relação à época.

Porém, os humanistas e os reformadores protestantes estavam de acordo em centrar a vida religiosa na pregação e na leitura da
Bíblia. O Renascimento quis ser regresso às fontes; ora, essa vontade manifestou-se notoriamente – e talvez principalmente –
no domínio da fé.

O humanismo cristão33 foi unânime no duplo desejo de purificar a Escritura das traduções defeituosas e de dar aos fiéis o
verdadeiro texto da Bíblia. Ora, os humanistas iam, neste ponto, ao encontro das aspirações profundas do seu tempo. Uma
devoção mais individualista que a do passado só podia desejar este contato pessoal com a mensagem divina.

Mas, além disso, uma vez que se duvidava do padre e dos sacramentos, como o papado era novamente sujeito a crítica, a que
apoiar-se senão no Livro infalível? Daí a tradução da Bíblia para vários idiomas além do latim.

32
A Justificação é um conceito teológico presente no cristianismo que trata da condição do ser humano em relação à justiça de Deus.
A "Justificação pela fé", também conhecida como sola fide, é um dos conceitos basilares do luteranismo e de todas as denominações cristãs
que advém da Reforma Protestante. Pode-se dizer que esse conceito religioso foi um dos catalisadores da Reforma. Lutero inspirou-se na
afirmação do apóstolo São Paulo de que "o justo viverá pela fé" (Romanos 1:17), contrariando assim a afirmação da Igreja Católica, que
defendia que à fé se deviam acrescentar as boas obras a fim de se poder alcançar a salvação.
Apesar destas diferenças teológicas, as várias tradições cristãs acham que a fé não é a base para a justificação, mas simplesmente o meio, o
órgão de apropriação, ou o instrumento dela. Pela fé somente o pecador toma posse de todas as bênçãos da justificação.

33Humanismo cristão é a crença que a liberdade e o individualismo humanos são partes intrínsecas (naturais), ou pelo menos compatíveis
com, a doutrina e a prática cristãs. É uma união filosófica de princípios cristãos e humanistas
Os reformadores protestantes, portanto, apenas continuaram, neste aspecto, a obra da Pré-Reforma, embora fazendo maiores
esforços por uma ainda maior divulgação dos Livros santos entre as massas.

Depois da revolta protestante, a Igreja Romana desconfiou durante muito tempo das traduções em língua vulgar dos textos
sagrados. Recusou, portanto, aos fiéis o contato direto com a Bíblia, pensando que o povo cristão ainda não era capaz de ler a
Escritura.

Além disso, rejeitou, como incompatível com a liberdade humana, a doutrina da justificação pela fé. Quererá isso dizer que não
procurou também responder à angústia dos cristãos?

Na verdade, se a Igreja Católica renovada não tivesse apaziguado essa grande inquietação dos que lhe continuavam a ser fiéis, a
sua reforma não teria tido efeito nas populações – e não foi esse o caso.

A resposta católica poderia ser assim enunciada: uma vez batizados, já não sois escravos do pecado; é, porém, verdade que sois
fracos e que muitas vezes sucumbireis; não percais a coragem, orai e aproximai-vos dos sacramentos; eles existem para
vosrestituir as forças; o padre, depositário do perdão divino, absolver-vos-á tantas vezes quanto for necessário.

Dando aos fiéis um clero teológica e moralmente mais sólido que antes, acentuando mais do que nunca a força dos
sacramentos, também a Igreja Romana apaziguou pouco a pouco os cristãos atemorizados, que tinham criado uma nova
consciência das suas responsabilidades e da sua fraqueza.

Então o historiador é levado a um diagnóstico quase oposto ao que o desenrolar superficial dos acontecimentos lhe deixava
entrever.

Claro que houve caos e fratura, mas houve também – e talvez mais ainda – enriquecimento teológico e crise de crescimento.
Quem sabe se um dia os cristãos não virão a descobrir que a ferida do cisma protestante foi salutar e que, sem ela, talvez não
tivessem conhecido tão bem os caminhos do Calvário?
AS REFORMAS: DEVOÇÕES COMUNITÁRIAS E PIEDADE PESSOAL – François Lebrun

Mais amplamente percorrem toda a história do cristianismo uma dialética entre religião pessoal e religião coletiva encarnada no
mundo, uma tensão constante entre essas duas vocações contraditórias. Enquanto instituição hierarquizada, a Igreja sempre
desconfiou das manifestações de devoção pessoal consideradas excessivas e dos consequentes riscos de aventurismo espiritual
e de iluminismo; com muita frequência parecia satisfazer-se com uma religião coletiva cujo unanimismo aparente significava,
talvez, mais um cego conformismo que o envolvimento sincero e ponderado de cada fiel. É nessa perspectiva que a partir das
Reformas do século XVI convém estudar o papel das Igrejas cristãs na emergência do foro íntimo e da vida privada. Em que
medida Igrejas protestantes e Igreja romana favoreceram ou frearamessa emergência?É a pergunta que se coloca.
Incontestavelmente elas concordam quanto a enfatizar a piedade pessoal, sendo a grande tarefa de todo cristão a salvação
individual; todavia, enquanto os católicos reafirmam o valor dos sete sacramentos e reforçam o papel do clero, intermediário
obrigatório e guardião da ortodoxia, os protestantes insistem na relação direta do fiel com Deus, sem com isso excluir, como
veremos, o papel da família e da comunidade eclesiástica.

DO LADO CATÓLICO: AS GRANDES PRÁTICAS COLETIVAS E O INDIVÍDUO


Ante os ataques dos protestantes e na linha das posições doutrinais e das decisões do concilio, a Igreja pós-tridentina tende a
revalorizar determinadas formas de devoção coletiva. De fato, estas aparecem como a expressão da realidade da
Igrejauniversal, desde que estreitamente enquadradas pelo clero. Ao mesmo tempo, contudo, sob a influência dos grandes
místicos espanhóis do século XVI e depois dos místicos da escola francesa do XVII, a ênfase recai na devoção pessoal suscetível
de desabrochar nos diversos estados de união com Deus. Assim, a maioria das grandes práticas obrigatórias e das práticas
facultativas de devoção são percorridas, nos séculos XVII e XVIII, por essa dupla corrente, contraditória na aparência,
complementar na realidade.

A PARTICIPAÇÃO NA MISSA
O comparecimento obrigatório à missa aos domingos e dias de festa caracterizapor excelência a participação na Igreja romana.
Em países situados nas fronteiras dacatolicidade, os que faltam para com esse dever arriscam-se a levantar suspeitas de
teraderido à religião reformada. Cerimônia coletiva, a missa ainda permanece, contudo, por muito tempo, como a soma de
orações individuais mais que a expressão de uma grande devoção comunitária. No século XVI, e durante a maior parte do XVII,
os fiéis são espectadores passivos que em muitos casos nem veem o que acontece no altar, ou porque estão numa capela
lateral, ou porque um púlpito lhes barra a visão.

Os fiéis são convidados a passar seu tempo da maneira mais devota possível,rezando o terço.

Só o sermão interrompe essa assistência individual e em geral passiva. Asorações com que se inicia são recitadas em comum por
todos os presentes,acompanhando o padre. Vemos que osúnicos momentos em que a participação se torna coletiva e a atenção
se concentramais são aqueles que não pertencem à missa propriamente dita.

Na segunda metade do século XVII, as coisas evoluem consideravelmente por instigação de alguns autores espirituais — em
especial padres do Oratório — que concordam em considerar a missa não mais como um simples exercício de devoção
individual e sim como o ato essencial do culto que exige a participação de todo o povo reunido.

Essas recomendações concordantes desembocam concretamente em determinado número de medidas que tendem a fazer os
assistentes participarem em grupo e de fato do sacrifício celebrado pelo padre. É o caso dos trabalhos empreendidos no final do
século em numerosas igrejas, sobretudo urbanas, que visavam destruir os últimos púlpitos e remanejar os coros.

A publicação de missais com o texto litúrgico em latim e ao lado a tradução francesa constitui outro meio de facilitar a
participação dos fiéis, que são convidados a possuir um exemplar e utilizá-lo na igreja.

Resta avaliar a difusão e o papel exato desses missais. Primeiro, convém salientar que resvalavam na barreira do analfabetismo.
De qualquer modo, uma maioria de fiéis, principalmente no campo, não pode interessar-se por um missal ou livro de exercícios
que não conseguiria ler. Mesmo entre a minoria letrada, mais importante na cidade que no campo, apenas um pequeno
número, sem dúvida, possui e utiliza tal livro.

Quanto a rezar a missa em francês, ninguém sequer cogita nessa época. Quando muito alguns reclamam a leitura do evangelho
em língua vulgar após a recitação em latim.

De fato, exceto a utilização do missal particular — que continua excepcional, anão ser, sem dúvida, em algumas grandes
paróquias urbanas ou nas capelas decomunidades religiosas abertas aos fiéis —, fracassam todas as tentativas de fazer com que
os assistentes participem estreitamente das preces litúrgicas pronunciadas no altar pelo celebrante.

"Não é necessário que cada particular que assiste ao serviço ouça palavra por palavrado que é dito. E a devoção com a qual se
unirão num espírito de caridade e comunhãoaos desejos e deveres da Igreja lhes bastará para participar das graças e dos frutos
queDeus ali distribui".

A situação pouco se altera no século seguinte. Por muito tempo ainda, osvigários limitam-se a velar pela presença obrigatória de
suas ovelhas na missadominical. Enquanto o padre celebra no altar o santosacrifício, os mais devotos continuam, como no
passado, a fazer suas oraçõesindividualmente, sobretudo a rezar o terço. Segundo Henri-Jean Martin, o que ocorreuna segunda
metade do século XVII foi uma "verdadeira revolução no campo da práticareligiosa; assistir à missa deixou de ser uma devoção
entre muitas outras e aparticipação dos assistentes no divino sacrifício passou doravante a ocupar o centro detoda a vida
espiritual".

Se a participação nas vésperas, no domingo à tarde, não é obrigatória, a maioriados paroquianos parecem impor-se tal
obrigação no século XVIII, pressionados peloclero.

CONFISSÃO INDIVIDUAL E COMUNHÃO FREQUENTE


Outra obrigação essencial do católico reside na confissão e na comunhão ao menos uma vez por ano, na época da Páscoa. No
começo do século XVII ainda se usa, aqui e ali, a prática da confissão comunitária e da absolvição geral. Essa confissão
comunitária realiza-se no final da Quaresma e inclui-se no conjunto das celebraçõespascais.

Essa prática coletiva tem, contudo, seus limites. Por certo absolve os pecados veniais e esquecidos, porém não tem valor
sacramental, pois a essência do sacramento da penitência é a confissão individual. Os pecados mortais só podem ser eliminados
através da confissão auricular ao padre, da absolvição pronunciada por este e da penitência privada.

A prática da confissão comunitária acabou por desaparecer pouco apouco no começo do século XVII. Vários fatores contribuíram
para essedesaparecimento: as interrogações dos protestantes,os progressos e depois otriunfo do exame e da direção de
consciência.

Todos os catecismos do século XVII enfatizam que o exame de consciência — ou seja, "a pesquisa diligente dos pecados
cometidos" — constitui "a primeira disposição necessária para bem receber o sacramento da penitência".

Entre uma minoria de devotos a prática regular do exame de consciência e daconfissão desemboca na direção de consciência,ou
"cura da alma". No começo do século, homens e mais ainda mulheres adquirem ohábito não só de confessar-se mensalmente,
até semanalmente, como de escolher umconfessor habitual com o qual fazem o balanço de seus progressos ou fracassos
nabusca da perfeição; o confessor prodigaliza conselhos, advertências, encorajamentos.

Salvo os inevitáveis abusos aos quais dá lugar a direção de consciência — laxismo34, falsa devoção —, sua prática e seu
desenvolvimento no século XVII constituem uma etapa fundamental no progresso de uma piedade pessoal e interiorizada que
não se limita às pessoas consagradas a Deus, mas envolve também alguns leigos ávidos de perfeição.

Entretanto, para a massa dos fiéis, sobretudo nas paróquias rurais, a confissão individual, necessária pelo menos uma vez por
ano, é de todas a menos aceita das práticas obrigatórias. Muitos fiéis detestam confessar suas faltas a um padre, e àvergonha da
confissão acrescenta-se o medo que alguns têm de que o padre nãorespeite o sigilo.

A confissão torna-se um dos meios privilegiados de aculturação religiosa. Nosigilo do confessionário (essa peça de mobiliário
difunde-se no decorrer do séculoXVI), a sós com o penitente, o padre formula perguntas precisas para obrigá-lo aexaminar sua
consciência, se já não a examinou, lembra-lhe a extensão de suas faltas eos castigos que merece e impõe-lhe uma penitência
adequada antes de pronunciar afórmula de absolvição. Em tais circunstâncias, a confissão anual é vista em geral como uma
obrigação penosa da qual os fiéis procuram desincumbir-se da melhor maneira.

Tornam-se necessárias circunstâncias excepcionais para que a confissão seja vivida sem trapaças e conduza à conversão pessoal.
E o caso das grandes missões cuja finalidade, como veremos, é a confissão de todos os habitantes ao fim de três, quatro ou cinco
semanas de prédicas35 intensivas.

A outra circunstância excepcional reside na última confissão, feita no leito de morte.

34tendência ou atitude que consiste em relaxar ou limitar as interdições estipuladas pela moral cristã
35
discurso religioso; sermão
Para isso o quarto se esvaziou de todosos assistentes, deixando num último cara a cara o padre e seu penitente.

Ainda que não seja precedida da cerimônia pública da confissão geral, a comunhão pascal continua sendo um dos grandes
momentos do ano litúrgico, aquele em que melhor se expressa a unidade de toda a paróquia em comunhão com o Cristo
ressuscitado. Raras são as contravenções a essa obrigação essencial.

Com efeito, desde o Concilio de Trento difundiu-se entre as pessoas piedosas ocostume de comungar mensalmente, chegando
algumas a comungar todos osdomingos ou até todos os dias. A comunhão frequente numa missa de paróquia ou de comunidade
religiosa e a confissão da qual é condição quase necessária tendem assim a tornar-se as manifestações por excelência da
devoção pessoal.

OS SACRAMENTOS: O RITO E O ÍNTIMO


A margem do ano litúrgico, os atos religiosos que marcam as grandes etapas davida de cada um têm um duplo significado que
nos permite falar em ritos depassagem, conquanto se situem no plano religioso: cada um dos sacramentos envolvidos —
batismo, eucaristia, casamento, últimos sacramentos — considera o indivíduo em suas relações pessoais com Deus, porém as
cerimônias que o acompanham traduzem sua participação na comunidade paroquial e na comunidade invisível da Igreja
universal. Assim é lembrado de que o grande objetivo de cada cristão é sua própria salvação.

Celebrado no mesmo dia do nascimento ou no dia seguinte, o batismo assinala o ingresso do recém-nascido na vida cristã.De
fato, é o sacramento que, eliminando o pecado original, faz dele um cristão. Se morrer nos dias ou nas semanas seguintes —
oque é bastante frequente —, certamente gozará da beatitude eterna. A imposição doprenome pelo padrinho e pela madrinha
coloca a criança sob a proteção de um santodo céu, modelo a imitar e intercessor, e ao mesmo tempo a insere na
comunidadefamilial. Por fim, padrinho e madrinha comprometem-se a responder pelo afilhado.

Depois de estudar o catecismo, a criança é levada a comungar pela primeira vez,aos doze, treze ou catorze anos, conforme a
diocese. Nos séculos XVI e XVII aindanão existe nenhuma cerimônia particular. É no fim do século XVII e na primeira metade do
XVIII que se instituiuma cerimônia coletiva e solene,especialmente bem vestidas, um círio aceso na mão, meninosde um lado,
meninas de outro, as crianças comungam juntas na presença de toda aassembleia paroquial.

O matrimônio é o primeiro sacramento que os noivos se ministram mutuamente na presença de um padre que os abençoa, mas
é também o compromisso por parte dos recém-casados de nada fazer para afastar a união de sua finalidade primeira — a
procriação —, a fim de pôr no mundo e criar batizados e filhos de Deus. Ainda que queiram, seu gesto não pode se reduzir à
união de dois destinos individuais.

A bênção do casamento não é ter filhos que nascem apenas para o mundo. O evento interessa a toda a comunidade paroquial, e
boa parte dela participa da cerimônia.

Os últimos sacramentos também apresentam esse duplo significado de gesto individual inserindo-se num contexto coletivo. A
administração dos sacramentos depenitência, eucaristia e extrema-unção visa ajudar o moribundo a ter uma boa morte.

A presença do padre junto ao leito de morte é vista como uma graça e uma necessidade, e sua ausência, como o pior dos
infortúnios. Aliás, os padres têmconsciência de sua responsabilidade nesse campo.

De todas as obrigações impostas aos católicos, a dos últimos sacramentos e a do batismo nas horas seguintes ao nascimento são
as únicas que o clero dos séculos XVII e XVIII não precisa lembrar constantemente. Nos dois casos a obrigação é vivida como
uma necessidade, sendo o objetivo aliás o mesmo: a salvação eterna. Contudo, assim como o ingresso na vida, a morte em geral
se insere num cerimonial que traduz bem a ideia de que ninguém pode esperar obter a salvação sozinho.

Quanto à inumação36, esta é objeto de uma pompa cuja importância variaconforme a posição social do morto.

Naturalmente, há vários níveis nessas pompas fúnebres, e nem todasostentam a mesma profusão barroca, porém em todos os
casos — mesmo nasinumações mais modestas — a partida do morto para sua última morada é concebidacomo um espetáculo
no qual todos os membros da comunidade paroquial sãoconvidados a participar mais ou menos diretamente, como atores ou
comoespectadores.

Paralelamente às práticas obrigatórias existe determinado número de práticas de devoção essencialmente facultativas e

36
ato, processo ou efeito de inumar; enterramento, enterro, sepultamento
gratuitas. Algumas, como as confrarias e as peregrinações, são coletivas. As confrarias — criadas ou recriadas no século XVII, em
geral por iniciativa do clero e em todo caso sob seu controle — pretendem ser em primeiro lugar associações de devoção.

Seja qual for o título que induz a determinadas devoções particulares, as confrarias têm em comum o fato de serem verdadeiras
sociedades de ajuda mútua — espiritual acima de tudo, mas eventualmente material também.

Igualmente algumas bulas de indulgência entregues aos confrades à guisa decertificado ou carta de adesão insistem no que
constitui a maior preocupação de todocristão.

O procedimento calculado que leva umhomem ou uma mulher a inscrever-se, mediante dinheiro, em determinada confrariabem
provida de indulgências parece menos a expressão do amor desinteressado a Deuse ao próximo que a busca da salvação
individual.

Podemos chegar à mesma constatação no tocante às peregrinações. Se nem todos os cristãos são filiados a uma confraria, ainda
que estas estejam presentes na grande maioria das paróquias, todos ou quase todos participaram de uma peregrinação uma ou
várias vezes na vida.

Naturalmente, as peregrinações a locais distantes são menosconcorridas que na Idade Média e no século XVI.

Encontramos aí o esquema clássico de uma "invenção" (nosentido latino) que na primeira metade do século XVII se repetirá
muitas vezes naFrança: um pastor ou camponês encontra uma estátua numa árvore ou junto a umafonte; os primeiros
peregrinos acorrem e têm lugar as primeiras manifestaçõesmiraculosas; as autoridades eclesiásticas mostram-se reticentes e
após umainvestigação cedem ao entusiasmo popular.

A maioria dos santos assim venerados é de santos terapeutas. Os devotos osinvocam não só para a cura dos homens, como
ainda para a conservação dos animais ea proteção das colheitas. Cada santo tem sua especialidade bem definida.

Quanto àVirgem, considerada a mais poderosa das mediadoras, pode-se invocá-la contra todaespécie de doença e em quaisquer
circunstâncias. Cada província, cada "país" tem seuspróprios locais de culto à Virgem e aos grandes santos protetores e
terapeutas.

A peregrinação tem normas precisas que convém observar escrupulosamente caso se queira alcançar a graça desejada. Prática
de devoção pessoal ou comunitária? A peregrinação pode ser as duas coisas. O peregrinopode empreender sua "viagem"
individualmente, em qualquer época do ano, tanto parapedir uma graça imediata como para cumprir uma promessa e
agradecerpor ter sido atendido. Em ambos os casos se trata de um gesto pessoal que testemunha profunda confiança na
intercessão do santo ao qual se vai pedir ou agradecer.

Mas a peregrinação também pode ser uma grande manifestação de fervorcoletivo quando, no dia da festa do santo, é
organizada por paróquias inteiras sob adireção de seu vigário.

AS MISSÕES E AS OBRAS DE CARIDADE


As missões também são grandes manifestações coletivas cujo objetivo é "renovar nos cristãos o espírito do cristianismo". Para
tanto, os missionários — capuchinhos, lazaristas,jesuítas, monfortianos — organizam cada missão como um drama de cuja
encenaçãose incumbem e no qual os habitantes da paróquia e das paróquias vizinhas são aomesmo tempo atores e
espectadores.

O objetivo é menos convencer que impressionar e emocionar a fim de obter essa "conversão", que será concretizada não só
pela confissão geral e pela comunhão, mas também pelas reconciliações, restituições, fundações, oferendas e outras obras pias.

Estas, efetivamente, são vistas pelo clero como o testemunho inequívoco dadevoção de quem a elas se dedica e como a melhor
manifestação do amor ao próximo.Praticadas tanto coletivamente, no âmbito de uma confraria, quanto individualmente, como
ocorre com maior frequência, as obras de caridade, ou de misericórdia, são sete, conforme a tradição:
 dar de comer aos que têm fome,  visitar os enfermos,
 dar de beber aos que têm sede,  vestir os nus,
 alojar os peregrinos,  sepultar os mortos.
 visitar os encarcerados,
As "fundações" são uma manifestação mais excepcional de piedade pessoal efervor religioso. O cristão que "funda" uma missa
ou eventualmente um sermão, umamissão, uma escola, pode ter participação nas orações da Igreja ou ajudá-la em suaobra de
2

apostolado. Para tanto, consente num sacrifício financeiro às vezes bastantepesado, porém o mais das vezes póstumo, pois a
maioria das doações é feita portestamento. A redação do testamento é vista como uma autêntica prática de devoção.

Na verdade, ela se inscrevediretamente na perspectiva cristã da boa morte.

A ORAÇÃO INDIVIDUAL
A piedade37 pessoal expressa-se por fim e sobretudo na oração individual.

Para facilitar a oração individual e a prática da meditação, difunde-se nos meiosdevotos o uso do genuflexório pessoal, definido
em 1690 por Furetière como um"encosto em forma de estante para apoiar-se o livro de orações".

A Igreja aprova tais práticas, porém enfatiza o valor da oração em família, por referência à promessa de Cristo ("Onde dois ou
três estão congregados em meu nome, ali estou eu no meio deles").

As orações da manhã e da noite, feitas individualmente ou em família, são o mínimo. Um bom cristão deve ainda dirigir-se a
Deus em determinadas circunstâncias da existência. E para facilitar essa forma de oração que, a partir do final do séculoXVI,
multiplicam-se coletâneas especializadas.

Estes são os títulos de alguns capítulos: "Oração para acriança dizer antes de estudar sua lição", "Oração para dizer em época de
peste","Oração para conservar uma boa reputação", "Oração daquela que quer se casar".

Além dessas orações especializadas, a piedade pessoal pode expressar-se atravésde determinado número de devoções,
individuais ou coletivas. A devoção eucarísticaconhece um grande desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII, em particular com
asvisitas ao santo sacramento.

Mesmo que não pertença a uma confraria doSanto Sacramento, o devoto igualmente participa da adoração, que é muito
apreciada,sobretudo na corte.

A devoção aosanto sacramento desemboca na prática da adoração perpétua como reparação dospecados dos homens instituída
em numerosas paróquias: pessoas piedosas se reúnem ese oferecem para passar uma hora, de dia ou à noite, diante do santo
sacramento, demodo que tal adoração seja de fato ininterrupta.

Quanto ao culto mariano, ele conhece incontestável revives-cência no séculoXVII, não obstante a desconfiança de alguns meios
eclesiásticos.Muitopopular, tal devoção se traduz na recitação do terço e do rosário, já largamentedifundida pelos dominicanos
desde o século XIIIe bastante usual nos séculos clássicos. Tal devoção também pode setraduzir no uso do escapulário, chamado
às vezes de "hábito da Virgem".

Por fim, o culto dos santos se mantém vigoroso. Além da prática dasperegrinações, atesta-o a moda das "folhas de santos",
difundidas pelos mascates epresas ou coladas na parede do quarto ou no interior de uma porta de armário. Aimagem do santo,
em cores vivas, é rodeada por um relato de sua vida e uma oraçãoque se deve dizer regularmente.

AS EXPERIÊNCIAS MÍSTICAS
Com os estados místicos o devoto atinge os graus supremos da piedade pessoal. De fato, o misticismo no sentido estrito do
termo é o sentimento de conhecer Deus através da intuição e de entrar em comunicação direta com Ele, sendo o êxtase o grau
supremo de tal união. Enquanto práticas obrigatórias e práticas de devoção constituemmodalidades exteriorizadas e muitas
vezes coletivas da religião, o misticismo, forma mais elevada da espiritualidade, refere-se às relações do homem com Deus no
que têm de mais pessoal e íntimo.

Adevoção e até o misticismo não constituem setores à parte, momentos privilegiados,porém devem irrigar a vida de todo dia,
inclusive a atividade profissional. Assim,corresponde à expectativa de muitos cristãos que, engajados no mundo, não
anelammenos por uma perfeição que antes parecia reservada aos clérigos.

A ideia de que a perfeição pessoal consiste em "aderir" a Cristo. Essa "adesão" é realizada por uma imitação de seus diversos
"estágios", isto é, dos episódios mais marcantes de sua vida terrena. Não se trata apenas de uma imitação moral, mas de uma
verdadeira anulação espiritual em Cristo. Após a "invasão mística"da primeira metade do século XVII, a questão do quietismo no
final do século acarretapor parte da Igreja não só uma condenação dos excessos a que o misticismo podeconduzir, mas também
uma duradoura reação de desconfiança com relação à própriamística

37
devoção, amor pelas coisas religiosas; religiosidade / virtude que permite render a Deus o culto que lhe é devido
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AS PRÁTICAS COMUNITÁRIAS DA REFORMA PROTESTANTE


Baseada na justificação pela fé, no sacerdócio universal e na única autoridade da Bíblia, a Reforma protestante coloca o fiel em
relação direta com Deus, cuja Palavra está na Bíblia, que se deve ler e interrogar diariamente.

O homem agora luta sozinho com seu destino do além. Todos os outros intermediários além do Livro são suprimidos ou
minimizados: liturgia, clero, sacramentos, culto dos santos, orações pelos mortos. De fato, a maioria deles perdeu sua razão de
ser, pois a salvação do cristão não depende de suas próprias obras ou de alguma intercessão, mas apenas de sua fé, ou seja, de
sua adesão pessoal ao Cristo salvador dos homens por seus méritos e sua paixão. Nessas condições, não só todos os cristãos,
iguais pelo batismo, são padres, como ainda a maioria das formas de devoção coletiva conservadas e estimuladas pela Igreja
romana já não tem razão de ser.

A salvação pela fé, princípio do protestantismo. Mas não pela fé em si, sem objetivo preciso. Pela fé em Jesus Cristo restaurador,
e único restaurador possível, do contato com o Pai. E a base de todo cristianismo. Se queremos dar-lhe forma protestante,
teremos de dizer "pela fé individual em Jesus Cristo" e insistir no termo individual. Na prática, o catolicismo situa perante Deus
não tanto o indivíduo como a humanidade sob sua forma cristã de Igreja. A Igreja é salva porque tem fé em Jesus Cristo e cada
cristão o é porque pertence à Igreja e enquanto pertence. É na oposição a essa salvação pela Igreja que a noção protestante da
salvação pela fé direta e pessoal em Jesus Cristo adquire seu valor e sua originalidade.

Todavia, não se deve ver no protestante um fiel que está sempre só perante Deus em oposição ao católico preso no casulo de
uma religião comunitária fortemente enquadrada pelo clero. É verdade que, no estrito plano teológico, as consequências do
dogma da comunhão dos santos são impensáveis para um protestante, assim como a crença no purgatório e na eficácia das
orações pelos mortos. Concretamente, porém, quando se trata dedefinir as condições de vida neste mundo, Lutero e Calvino
têm suficiente consciênciadas realidades de seu tempo e das exigências do homem de todos os tempos que viveem sociedade
para aceitar, com algumas diferenças, a criação de toda uma rede deinstituições e práticas coletivas que visam unicamente a
ajudar o justo a perseverar nafé, sem, no entanto, interferir em sua relação pessoal com Deus. O estudo dessaspráticas mostra
que, na realidade, o fosso entre protestantes e católicos é menos profundo do que se poderia imaginar.

O CULTO DOMÉSTICO
Entre luteranos e calvinistas, a primeira das práticas é a oração individual cotidiana com a leitura da Bíblia. De fato, essa oração
individual assume o mais dasvezes a forma de um culto doméstico. Para isso concorrem várias razões evidentes.Até o fim do
século XVIII, e apesar dos progressos da instrução elementar e daescolarização nos países reformados, bom número de fiéis dos
meios populares nãosabe ler. Uma Bíblia custa caro e em geral cada família possui apenas um exemplar,conservado com
devoção e transmitido de uma geração a outra.

Por fim os próprios reformadores insistiram no valor desse culto doméstico.

Normalmente compete ao pai de família presidir tal culto.Porém, o magistério do pai de família se exerce muito além do
exercício do culto doméstico. Cabe-lhe velar para que todos, inclusive os criados, sigam o caminho do bem.

Porém, o calvinista ou o luterano não pertence apenas a uma família em cujo seio desabrocha sua piedade pessoal; pertence
também a uma paróquia onde se realizam os exercícios coletivos dos fiéis e o consistório controla sua conduta. Ainda mais
claramente que Lutero, Calvino está convencido de que não se pode deixar o fiel isolado na certeza de sua fé individual, mas é
preciso enquadrá-lo solidamente. Porcerto, cada cristãoé padre e não se trata de restabelecer um sacerdócio reservado a
alguns.Esse importante enquadramento permite estrito controle da vidade cada um.

A PRÉDICA E A CEIA
Tal controle visa inicialmente ao respeito às práticas religiosas coletivas. A primeira é a participação no culto dominical, que
possui tríplice objetivo: a adoração, o apelo à conversão e à salvação e sobretudo o ensinamento. Aos dois primeiros objetivos
correspondem as preces, as leituras bíblicas e os cânticos. O terceiro objetivo, o mais importante — a ponto de o culto muitas
vezes ser designado como prédica —, é alcançado pelo sermão do pastor.

Tanto entre luteranos como entre calvinistas, a ceia é celebrada quatro vezes porano: na Páscoa, no Pentecostes, no começo do
outono e no Natal. Nestas ocasiões, osfiéis recebem a comunhão sob a forma de pão e vinho.

Paradoxalmente, o respeito ao foro íntimo é apanágio dos católicos, não dos protestantes. Entre estes, a preocupação de
"evangelizar a Igreja" preponderou sobre o respeito à liberdade do cristão.

As grandes etapas da vida individual também propiciam cerimônias coletivas notemplo. Na medida em que não tem papel
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determinante na economia da salvação, o batismo não gera a mesma precipitação que entre os católicos.

Noivado e casamento também dão lugar a cerimônias no templo.

O matrimônio, que não é considerado um sacramento, celebra-se teoricamente seis semanas depois, perante o ministro da
paróquia de um dos noivos.

Em contrapartida, a morte e a inumação continuam sendo assuntos privados, o que não é de surpreender, pois Lutero e Calvino
não creem nem no purgatório, nem na intercessão dos vivos. Nestas circunstâncias, a inumação se limita a uma
cerimôniadecente, porém sem nada do fausto que caracteriza algumas pompas fúnebres entre oscatólicos.

Para o defunto, de nada servem as preces dos parentes e amigos, e estes, seguros de sua eleição, não precisam de consolo: a
salvação é assunto pessoal e a esperança dossobreviventes é uma certeza.

SOLIDARIEDADES E ELEIÇÃO
Assim, da oração familiar à "disciplina eclesiástica", do batismo ao culto dominical e à celebração da ceia, as práticas
protestantes parecem no mínimo tão comunitárias quanto as católicas. Não obstante, há entre as duas uma diferença
fundamental. Para os católicos, o sacrifício da missa, as orações pelos mortos, as peregrinações aos santuários marianos
encontram sentido e justificativa no dogma da comunhão dos santos: o cristão não está sozinho na aventura de sua salvação,
seja o que for que alguns discursos eclesiásticos possam deixar pensar; ao contrário, pode contar não só com os méritos de
Cristo, como também com os sufrágios dos santos e as preces dos vivos. Para os protestantes, luteranos ou calvinistas, as
práticas coletivas não podem ter outro objetivo senão manter cada um dos participantes em sua fidelidade individual e
eventualmente controlar essa fidelidade; nada além disso.

O protestante se sabe eleito de Deus, eleição pessoal resultante, segundoCalvino, do "conselho eterno de Deus pelo qual
determinou o que queria fazer de cadahomem". Essa eleição ao mesmo tempo acarreta certeza e responsabilidade: certeza de
figurar entre os eleitos, responsabilidade com relação a Deus, que salva. O católico deve, com a ajuda da graça, merecer a
própria salvação por suas obras. O protestante deve viver segundo a lei, gratuitamente e sem contrapartida. Nisso reside a
responsabilidade do fiel: ao contrário do católico, ele é liberado da angústia da morte e do Juízo, porém, ao acolher a Palavra e
aceitar suas exigências, deve demonstrar que Deus o elegeu. Assim, o individualismo e o foro íntimo estão no âmago da teologia
reformada.

"O protestante reza sozinho, mas o católico reza na comunhão da Igreja". O paradoxo sem dúvida reside no fato de que, se as
duas Reformas do século XVI — a protestante e a católica — desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento de
uma devoção cada vez mais interiorizada, as Igrejas protestantes atribuíram às práticas coletivas uma importância tão grande,
senão maior, quanto a Igreja romana. Seja como for, cada uma a sua maneira, "as formas novas de religião que se estabelecem
nos séculos XVI e XVII" constituem, conforme escreve Philippe Ariès, um dos três acontecimentos principais "que vão modificar
as mentalidades, em especial a ideia de si mesmo e do próprio papel na vida cotidiana da sociedade".
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A VITÓRIA DA QUARESMA: A REFORMA DA CULTURA POPULAR – Peter Burke

A PRIMEIRA FASE DA REFORMA, 1500 – 1650


Um dos quadros mais famosos de Brueghel é o Combate entre o Carnaval e a Quaresma, no qual um gordo escarranchado num
barril luta com uma velha sentada numa cadeira. O significado literal desse quadro é bastante evidente, pois as batalhas
simuladas entre essas duas figuras fazia parte corrente das festas de entrado.

O clero, naquela época, estava tentando reformar ou suprimir muitas festas populares.

Gostaria de cunhar a expressão “reforma da cultura popular” para descrever a tentativa sistemática por parte de algumas
pessoas cultas (daqui por diante referidas como “os reformadores” ou “os devotos”) de modificar (“aperfeiçoar”) as atitudes e
valores do restante da população.

Seria errôneo sugerir que os artesãos e camponeses não passavam de “receptáculos passivos” da reforma; o
autoaperfeiçoamento foi um fato e existiram artesãos devotos. Contudo, a liderança do movimento estava nas mãos dos cultos,
geralmente do clero.

Esse movimento de reforma não foi monolítico, mas assumiu diversas formas de região para região e de geração para geração.
Os católicos e protestantes nem sempre se opunham às mesmas práticas tradicionais ou, se se opunham, nem sempre era pelas
mesmas razões.

Mas essas variações não devem nos impedir de ver o movimento de reforma como um todo. O movimento teve dois lados, o
negativo e o positivo:
 O lado negativo consistia na tentativa de suprimir, ou pelo menos purificar, muitos itens da cultura popular tradicional
– os reformadores podem ser vistos como “puritanos”, pelo menos no sentido literal de que estavam fervorosamente
preocupados com a purificação.
 O lado positivo do movimento, discutido na segunda seção, foi a tentativa de levar as reformas protestante e católica
aos artesãos e camponeses.

Os reformadores objetavam particularmente contra certas formas de religião popular, como as peças de milagre ou mistérios,
sermões populares e, acima de tudo, festas religiosas como os dias de santos e peregrinações.

Também objetavam contra inúmeros itens da cultura popular secular. Uma lista abrangente atingiria proporções enormes, e
mesmo uma lista curta teria de incluir atores, baladas, açulamento de ursos, touradas, jogos de cartas, livretos populares,
charivari, charlatães, danças, dados, adivinhações, feiras, contos folclóricos, leituras da sorte, magia, máscaras, menestréis,
bonecos, tavernas e feitiçaria.

Um número considerável desses itens criticados associava-se ao Carnaval, de modo que não surpreende que os reformadores
concentrassem suas investidas contra ele.

Além disso, proibiam – ou queimavam – livros, destruíam imagens, fechavam teatros, picavam mastros de Maio e dissolviam
“abadias de desgoverno”.

Essa reforma cultural não se restringiu ao popular, pois os devotos desaprovavam todos os tipos de peças. Mas fica-se com a
impressão de que foram as recreações populares que arcaram com o maior impacto da investida.

O quê, segundo os reformadores, havia de errado com a cultura popular? Eram duas as principais objeções religiosas, que
Erasmo resume convenientemente em uma só expressão ao se referir ao Carnaval que presenciou em Siena em 1509, “não
cristão”.

1. Em primeiro lugar, o Carnaval é não cristão por não conter “vestígios do antigo paganismo”.
Essa objeção pode ser considerada teológica. Os reformadores reprovavam muitos costumes populares por serem
reminiscências pagãs, “superstições” no sentido original dotermo. Muitos reformadores eram instruídos nos clássicos e
observavam os paralelos entre as festas antigas e modernas. Comparavam o Carnaval moderno às bacanais dos tempos antigos.
Os costumes pagãos eram mais do que errôneos, eram diabólicos. Os deuses e deusas pagãos eram frequentemente tidos como
demônios.

Os reformadores protestantes foram mais longe e se referiram a muitas práticas oficiais da Igreja católica como sobrevivência
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pré-cristãs, comparando o culto da Virgem Maria ao culto de Vênus, e descrevendo os santos como sucessores dos deuses e
heróis pagãos, que tinham assumido suas funções de curar doenças e proteger de perigos.

A magia também era denunciada como uma sobrevivência pagã. Os protestantes acusavam os católicos de praticar uma religião
mágica, e os reformadores católicos estavam empenhados em expurgar da cultura popular os sortilégios e fórmulas mágicas.
Um chavão teológico era o de que o Demônio era um mestre do ilusionismo.

Alguns rituais populares se modelaram segundo a literatura cristã. Isso os reformadores conheciam, mas não mudou muito a
situação.

O sermão popular sofreu ataques por razões semelhantes. Erasmo declarou uma vez que um bom pregador deveria jogar com
as emoções da sua audiência por meio das suas palavras, e não contorcendo o rosto ou gesticulando como um bufão. Os
protestantes concordavam.

A peça religiosa popular frequentemente era atacada por razões semelhantes. Um ponto geralmente levantado contra o teatro
profissional é o de que era impróprio que atores de maus princípios representassem as vidas dos santos.

O ponto crucial em todos esses exemplos parece ser a insistência dos reformadores na separação entre o sagrado e o profano.
Essa separação então se tornara muito mais aguda do que havia sido na Idade Média. Em outras palavras, a reforma da cultura
popular era mais do que apenas outro episódio na longa guerra entre os devotos e os não devotos, mas acompanhava uma
importante alteração na mentalidade ou sensibilidade religiosa. Os devotos se empenhavam em destruir a tradicional
familiaridade com o sagrado, pois acreditavam que a familiaridade alimentava a irreverência.

2. Em segundo lugar, é não cristão pois nessa ocasião “o povo se entrega à licenciosidade”.
A segunda grande objeção à cultura popular era moral. As festas eram denunciadas como ocasiões de pecado, mais
particularmente de embriaguez, glutoneria e luxúria, estimulando a submissão ao mundo, à carne e ao Demônio –
especialmente a carne.

As peças, cantigas e, sobretudo as danças eram condenadas por despertar emoções perigosas e incitar a fornicação.

Havia outros argumentos morais além deste sobre a indecência. Por exemplo, havia a questão de que os jogos e festividades
eram ocasiões de violência.

No limiar entre a moral e a política, encontramos o argumento de que as canções populares apresentavam os criminosos como
heróis com uma frequência excessiva.

A associação entre a festa e a revolta era bastante óbvia.

Outro argumento moral contra muitas recreações populares era a sugestão de serem “vaidades”, desagradando a Deus por
desperdiçarem tempo e dinheiro. Se o clero desaprovava as tavernas por desviar as pessoas da Igreja, o governo inglês, por seu
lado, desaprovava-as por desviar as pessoas da prática da arte de manejar o arco, tão importante na guerra.

Em suma, encontramos neste período duas éticas ou modos de vida rivais em conflito aberto. A ética dos reformadores se
fundava na decência, diligência, gravidade, modéstia, ordem, prudência, razão, autocontrole, sobriedade e frugalidade, ou, para
empregar uma expressão celebrizada por Weber, “ascetismo mundano”.

Foi um tanto enganoso chamá-la de “ética protestante”, visto que podia ser encontrada tanto em Estrasburgo, Munique e Milão
católicas como na Londres, Amsterdam e Genebra protestantes. É tentador chamá-la de “ética pequeno-burguesa”, pois viria a
se tornar típica dos comerciantes.

A ética dos reformadores estava em conflito com uma ética tradicional mais difícil de se definir, pois tinha menos clareza de
expressão, mas que envolvia uma ênfase maior nos valores de generosidade e espontaneidade e uma maior tolerância em
relação à desordem.

É natural que um historiador ocidental se mostre mais hesitante em atravessar a fronteira da Igreja ortodoxa, mas há razões
para crer que também vinha-se dando uma reforma parecida em Rússia.

É importante ver o movimento de reforma como um todo, mas não ao preço de fazê-lo parecer monolítico.
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Os reformadores católicos e protestante não tinham a mesma hostilidade em relação à cultura popular, e, quando eram hostis,
não era pelas mesmas razões. A reforma católica tendia a significar modificações; a reforma protestante era mais inclinada a
eliminações.

Alguns elementos pela reforma são especificamente protestantes, como a ideia de que as festas são resquícios do papismo 38. Os
protestantes usualmente querem abolir tanto os feriados religiosos como as festividades, e alguns se opõem tanto à Quaresma
quanto ao Carnaval.

Alguns protestantes opunham-se a todos os dias santos além do domingo, outros eram contrários à própria ideia de festa, isto é,
a ideia de que alguns dias são mais sagrados do que outros. Muitos protestantes eram igualmente radicais na crítica às imagens
sagradas, que viam como “ídolos” que deviam ser destruídos. As “cerimônias”, tais como os “ídolos”, eram atacadas como
formas de religião exterior que se interpunham entre Deus e o homem, e tinham de ser abolidas.

Os católicos, por outro lado, insistiam que alguns dias eram mais sagrados do que outros, mas essa própria insistência levou-os a
objetar contra a profanação do tempo festivo – tempo sagrado – com atividades mundanas.

Os reformadores católicos preocupavam-se com a tendência que o Carnaval mostrava de se estender até a Quaresma.

Os reformadores católicos denunciavam a tradição de dançar ou encenar peças na igreja (e mesmo no adro), pois uma igreja é
um local sagrado; pela mesma razão, eram contrários ao movimento das pessoas durante a missa ou à venda de artigos nos
pórticos das igrejas. Proibiram que os leigos se vestissem como padres durante a época do Carnaval; isso era blasfêmia, pois os
clérigos eram pessoas sagradas. Pela mesma razão, o clero foi proibido de participar das festas populares à maneira tradicional,
dançando e usando máscaras como os outros; foram proibidos de assistir a peças, comparecer a touradas e até de gesticular
com excessiva violência durante seus sermões, recebendo instruções para se conduzirem com a gravidade e o decoro
condizentes com seu status sagrado.

Como era de esperar, os reformadores católicos da cultura popular eram menos radicais do que os protestantes. Não atacavam
o culto aos santos, mas apenas seus "excessos", tal como o culto a santos apócrifos, a crença em certas estórias, ou a esperança
de favores mundanos, como curas e proteções. Eles queriam festas purificadas, mas não eliminadas.

A divisão dos reformadores entre católicos e protestantes ainda é simplista demais. Os luteranos, por exemplo, eram mais
tolerantes do que os zwinglianos ou os calvinistas em relação às tradições populares, e as gerações posteriores nem sempre
concordavam com seus antecessores. Para evitar uma simplificação excessiva, talvez seja útil esboçar a história do movimento
da reforma de 1500 a cerca de 1650.

Por volta de 1500, já existiam alguns reformadores importantes como Sebastian Brant, já mencionado, e seu amigo Johann
Geiler de Kaiserberg, padre em Estrasburgo. Geiler objetava contra comidas, bebidas, danças e jogos durante as festas da Igreja,
considerando-as como "a ruína do povo" (desgemeinen Volks Verdebnis).

Esses ataques às recreações populares não eram propriamente novos em 1500. As condenações dos pais da Igreja eram muito
conhecidas e influentes nos séculos XVI e XVII.

Em suma, os religiosos parecem ter condenado a cultura popular em termos muito parecidos desde os primeiros dias do
cristianismo em diante.

Essa tradição de condenação sugere que a cultura popular é notavelmente resistente.Ela também levanta uma clara objeção à
tese central deste capítulo, mas a essa objeção talvez seja possível encontrar uma resposta.

As reformas medievais foram essencialmente esforços esporádicos realizados em nível individual. Não eram capazes de se
difundir ou durar por muito tempo, devido à natureza das comunicações medievais. Para um bispo reformador, era difícil chegar
aos recantos mais distantes de sua diocese com a frequência necessária para lá converter suas intenções em realidade, e ainda
mais difícil era-lhe assegurar que suas reformas sobreviveriam a ele. Daí a resistência da cultura popular, e o fato de que, de
Tertuliano a Savonarola, encontramos uma sucessão de reformadores com queixas essencialmente idênticas. Ao longo do século
XVI, porém, os esforços esporádicos foram substituídos por um movimento de reforma mais coeso. Os ataques à cultura

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Papismo e papista são termos, geralmente depreciativos, utilizados para categorizar os católicos romanos. Foram criados pelos protestantes
ingleses como referência à soberania do papa sobre os cristãos e para nomear os que respeitavam esta ascendência. O termo se tornou muito
popular, particularmente entre os anglicanos e presbiterianos, e ainda é muito utilizada correntemente, particularmente na expressão "mais
papista do que o papa" (para indicar alguém conservador ao extremo).
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populartradicional se tornaram mais assíduos, e multiplicaram-se as tentativas sistemáticas de retirar-lhe seu "paganismo" e
"licenciosidade". Esse movimento, é claro, tem muito a ver com as reformas protestante e católica, pois a reforma da Igreja, tal
como era entendida na época, necessariamente supunha a reforma do que chamamos cultura popular.

É verdade que Lutero encarava com relativa simpatia as tradições populares. Não se opunha totalmente a imagens ou santos, e
não era um inimigo do Carnaval. Em todo caso, os luteranos eram mais estritos do que Lutero.

Zwinglio, Calvino e respectivos seguidores foram muito além de Lutero em sua oposição às tradições populares.

A oposição dos puritanos ingleses aos divertimentos populares é bastante conhecida e está bem documentada.

Do lado católico: Se os exemplos anteriores a 1550 são isolados, não é mais o caso depois do concílio de Trento, que realizou
suas últimas e mais decisivas sessões em 1562 e 1563. Nas suas tentativas de se contrapor às heresias de Lutero e Calvino, os
bispos reunidos em Trento lançaram vários decretos para a reforma da cultura popular.

Esse tipo de concílio já vinha condenando constantemente as falhas morais do clero ou os abusos na ministração dos
sacramentos; o que havia de novo nos anos 1560 era a preocupação com a reforma das festas e as crenças do "povo inculto".

Os índices de livros proibidos lançados no final do século XVI referiam-se basicamente a livros teológicos em latim, mas também
proibiram algumas baladas e livretos populares.

Em suma, dos anos 1560 em diante deu-se um movimento organizado dentro da Igreja católica, em apoio aos reformadores
individuais. Davam grande importância à seriedade e modéstia do clero, e eram inimigos declarados das tavernas, peças e,
acima de tudo, do Carnaval.

Um indicador do impacto do movimento da reforma na cultura popularna Europa católica e protestante nos é dado pela história
do teatroreligioso. Em partes da França e Itália, parece ter chegado quase ao fim porvolta de 1600.

Se os próprios clérigos às vezes objetavam contra os reformadores,pode-se imaginar que os leigos nem sempre os recebiam com
entusiasmo.

Nesses combates entre o Carnaval e a Quaresma, eram geralmente os devotos que tinham a última palavra. Entre 1550 e 1650,
muitos costumes tradicionais foram abolidos. A metade do século XVII pode ser considerada como término de uma primeira
fase na reforma da cultura popular, gerada pelas reformas católica e protestante, conduzida principalmente pelo clero e
justificada com razões teológicas. A ela se seguiria uma segunda fase, em que os leigos tomaram a iniciativa.

A CULTURA DOS DEVOTOS


A reforma da cultura popular até agora foi apresentada em termos negativos. É claro que os reformadores tinham ideais
positivos, e em todo caso sabiam que não teriam possibilidade de êxito se não oferecessem ao povo algo para substituir as
festas, canções e imagens tradicionais que estavam tentando abolir. Por isso, os devotos tentaram criar uma nova cultura
popular.

Nesta seção,tentarei descrever as substituições católicas e protestantes. Sobre a culturaortodoxa reformada, parece não existir
praticamente nenhum indício.

Para os protestantes, a grande prioridade era tornar a Bíblia acessível às pessoas simples, numa linguagem que elas pudessem
entender.

A publicação dessas Bíblias nas várias línguas foi um grandeacontecimento cultural que influenciou largamente a linguagem e a
literaturados respectivos países.

No entanto, seria totalmente equivocado imaginar que cadafamília de artesãos ou camponeses protestantes em nosso período
possuísseou lesse a Bíblia. É verdade que no século XVIII, quando as estimativascomeçam a se tornar possíveis, a taxa de
alfabetização era muito mais altana Europa protestante do que na Europa católica ou ortodoxa.É difícil dizer se essa taxa
elevada era causa ou consequência da Reforma— provavelmente foram as duas. Mas nem todos os protestantes sabiam ler, e
nem todos os que sabiam ler podiam comprar uma Bíblia.

Os artesãos e camponeses protestantes muitas vezes devem ter recebido o conhecimento que tinham da Bíblia oralmente ou de
segunda mão. As leituras da Bíblia constituíam um elemento importante nos ofícios luteranos e calvinistas.O que os
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protestantes comuns provavelmente mais conheciam eram os salmos, pois podiam ser cantados e ocupavam um papel
importante nas liturgias reformadas.

Eles faziam parte tão integrante da vidacotidiana em algumas áreas calvinistas que, quando se procedeu no séculoXIX a uma
pesquisa sobre canções folclóricas tradicionais na França, não seconseguiu encontrar nenhuma em Cévennes. Nessa cultura
huguenotetradicional, os salmos tinham assumido as funções das canções folclóricas,e eram usados até mesmo como canções
de ninar.

Primordial para a cultura popular protestante era o catecismo, um livrinho contendo informações elementares sobre a doutrina
religiosa. Os catecismos existiam antes da Reforma: sua novidade era a de apresentar a matéria em forma de pergunta e
resposta, tornando fácil difundir — e testar — o conhecimento religioso.

Ocasionalmente, o catecismo era versificado, para facilitar a memorização. Não surpreende que em alguns lugares os
catecismos fossem muito mais comuns do que as Bíblias.

A mensagem dos salmos e do catecismo era insistentemente incutida por várias outras formas. A cultura protestante era a
cultura do sermão. Os sermões podiam durar horas e constituir uma grande experiência emocional, envolvendo a
participaçãoda audiência, com exclamações, suspiros ou lágrimas dos membros da congregação.

O povo simples podiaestar tão atento à linguagem e ao estilo de encenação do pregador quanto àsua mensagem; na verdade,
sua cultura predispunha-os a serem mais hábeisem apresentações orais, fosse de pregadores, contadores de estórias
oucantores de baladas, do que nós atualmente. Os leigos podiam desempenharum papel considerável em "profetizações",
discussões públicas sobre osentido das Escrituras. Os leigos alfabetizados podiam ler livros decontrovérsias ou orações.

A música, o ritual e as imagens tinham, todos eles, seu papel na cultura popular protestante, apesar das apreensões dos líderes.
Lutero autorizou que se cantassem na igreja outros hinos além dos salmos, e ele mesmoescreveu 37 hinos. A música religiosa de
Bach tem suas raízes na cultura popular luterana.

Boa parte da cultura popular tradicional, como vimos, consistia em paródias da cultura oficial, como julgamentos e funerais
simulados. Aqui a roda completa seu círculo, e encontramos "paródias" pias sobre o profano.

Nos primeiros anos da Reforma, o ritual e o teatro foram postos a serviço dos protestantes. Os carnavais foram a ocasião para
ridicularizar o papa e seu clero.

A primeira geração de reformadores tinha clara consciência de que "nas pessoas comuns as coisas entram mais rápido pelos
olhos do que pelos ouvidos: lembrando melhor o que veem do que o que ouvem”.

A longo prazo, porém, as peças perderam sua importância para osprotestantes, ou porque sua tarefa estava encerrada, ou
porque o povo setornou mais letrado, ou porque os reformadores mais rigorosos, queconsideravam o teatro como algo
essencialmente mau, conseguiram imporsua vontade aos moderados. Essa história da imagem religiosa na cultura popular
protestante seguiu linhas semelhantes. Na primeira geração, a gravura foi um importante instrumento de propaganda.

Tanto na área luterana como nacalvinista, muitas vezes vê-se que a igreja ou o templo é decorado comtextos. Lutero
recomendava que os muros dos cemitérios fossem pintadosnão com imagens, mas com textos. Num grau muito maior do que os
católicos, a cultura popular protestante era uma cultura da Palavra.

Há menos a se dizer sobre a cultura católica reformada, pois distingue-se menos da cultura popular tradicional, contra a qual
objetavam osreformadores.

Em 60 d.C, o papa Gregório, o Grande, advertiu o bispo Agostinho, que fazia trabalho missionário na Inglaterra mais tenebrosa,
que "os templos dos ídolos naquele país não devem ser em hipótese alguma destruídos"; os ídolos deviam ser destruídos, mas
os templos seriam convertidos em igrejas, "e como eles têm o costume de sacrificar muitos bois a demônios, deixe que alguma
outra solenidade o substitua em seu lugar". O princípio básico de Gregório era que "é certamente impossível erradicar todos os
erros de mentes obstinadas de um só golpe, e quem quer escalar uma montanha até o alto sobe gradualmente passo a passo e
não num só salto". Era a famosa doutrina da "adaptação", que explica como uma festa pagã de Solstício do Inverno pôde
sobreviver como Natal e uma festa de Solstício de Verão, como nascimento de são João Batista.

Para complicar as coisas nos inícios do período moderno, os reformadores católicos estavam lutando em duas frentes: contra os
protestantes que queriam reformas demais, e contra a imoralidade e a "superstição".
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A cultura da Contrarreforma traz as marcas das duas lutas.Talvez seja útil descrever três elementos dessa cultura, em ordem:
 Rituais reformados
Os reformadores católicos tinham clara consciência dos usos do ritual. Utilizavam o ritual para convencer o povo de que os
protestantes estavam errados ou eram perversos, ou ambos. O retrato de Zwinglio foi queimadono Carnaval de Lucerna, em
1523, enquanto Lutero era periodicamentequeimado na noite de são João, na Alemanha católica, até o início do séculoXIX.
Heréticos se retratavam em público, ou eram queimados em público, livros heréticos eram queimados em público.

Os novos rituais podem ser vistos em seu auge mais teatral nasmissões que os jesuítas e outras ordens empreendiam em
cidades e nocampo durante o século XVII.Os sermões ocupavam um lugar importantena missão.

 Imagens reformadas
Os católicos reformados, ao contrário dos protestantes reformados, continuavam a ter uma religião de imagens, e não tanto
uma religião de textos, fosse isso causa ou consequência da maior taxa de analfabetismo, de modo geral, nas áreas católicas em
comparação às protestantes.

Em lugar do que fora expurgado pela Reforma, a Igreja ofereceu aos católicos novos santos e novas imagens.

São José fora uma figura um pouco cômica no finalda Idade Média, "José, o Louco" ( Joseph, leRassoté ), o santo cornudo.No
século XVII, porém, o clero parece ter tentado persuadir os fiéis a levá-lo mais a sério. Fundaram-se irmandades consagradas a
ele, e tendeu-se asubstituir a tradicional dupla Virgem-e-filho por cenas da Sagrada Família,onde ele estava incluído. Houve
maior ênfase sobre o culto da eucaristia doque durante a Idade Média; o surgimento da prece das "Quarenta Horas" éum
indicador dessa mudança.

Essas modificações parecem ter resultado de políticas oficiais daIgreja. O culto da Sagrada Família,parece ser uma tentativa
deliberada de apelo ao leigo comum.

O culto da eucaristia foi uma reação aos ataques protestantes à transubstanciação, à missa e à posição especial do sacerdócio.

Num famoso ensaio, o antropólogo Malinowski apresentou os mitos do passado como encarregados de uma função no
presente, como a "carta magna" de instituições atuais, legitimando-as, justificando-as. Certamente parece que foi assim que os
mitos, rituais e imagens serviram à Igreja da Contrarreforma.

Teria sido estranho se esses apelos aos olhos não viessemacompanhados por apelos aos ouvidos.

 Textos reformados
Por último, e provavelmente de menor importância na cultura católica, veio a tentativa de alcançar os leigos letrados através da
Bíblia e outras leituras piedosas. Evidentemente publicavam-se traduções da Bíblia nos países católicos — a primeira Bíblia
impressa em alemão remonta a 1466. Os catecismos católicos se modelavam pelos protestantes.

Esses catecismos eram escritos em linguagem simples e muitas vezes traziam ilustrações, de modo que realmente parece terem
se destinado aos leigos, não sendo obras de tanta referência para o clero.

Como o catecismo, os hinos de oração foram muito menos importantes na Europa católica do que na Europa protestante.

A SEGUNDA FASE DA REFORMA, 1650-1800


O argumento das duas últimas seções pode ser resumido da seguintemaneira. No final do século XVI e início do século XVII, houve uma
tentativa sistemática por parte de membros da elite, principalmente dos cleros católico e protestante, em reformar a cultura do povo comum.
A reforma tinha precedentes medievais, mas foi mais eficaz no início da Europa moderna do que na Idade Média porque as comunicações, de
estradas a livros, eram melhores do que antes. Os reformadores não estavam mais condenados a girar no mesmo lugar, como nos tempos de
santo Agostinho e mesmo são Bernardino, mas podiam construir sobre a obra de outros. A resistência da cultura popular começou a ceder, e
ocorreram importantes transformações.Minha impressão, baseada nos fragmentos de provas reunidos nas últimas páginas, é a de que ocorreu
uma série de transformações importantes por volta de 1650, principalmente na Europa protestante e nas regiões mais urbanizadas.

Em grande parte da Europa católica, por outro lado, e nas partes mais afastadas do continente, distantes das principais cidades, das
principaisestradas e das principais línguas, os reformadores obtiveram suas vitórias apenas depois de 1650.

Mas a história a ser narrada nesta seção não é apenas a da gradualdifusão de ideais imutáveis. Foram anos de uma "reforma dentro da
reforma" (tanto católica como protestante) e do surgimento de grupos de reformadores leigos que nem sempre desejavam as mesmas
transformações na cultura popular pretendidas pelos seus colegas clericais, ou desejavam-nas nem sempre pelas mesmas razões.
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A sobrevivência do catolicismo "pré-Reforma" em regiões distantes éfacilmente documentável.A batalha entre o Carnaval e a Quaresma ainda
prosseguia. Mas não era absolutamente a mesma batalha. Alguns dos reformadores estavam indo além do concílio de Trento, ou numa
direção diferente, e vinham criticando a devoção popular à Virgem Maria e aos santos, esperando substituí-la por um cristianismo mais bíblico,
expurgando da "superstição".

As mudanças nas ideias dos reformadores católicos podem ser ilustradas pelas suas atitudes em relação às imagens. (...) a necessidade de
evitar a "superstição", mas não vê nada de errado nas imagens tradicionais.

Não é tão fácil encontrar áreas protestantes que tenham resistido à reforma da cultura popular para além de 1650, mas elas existiram,
principalmente nas montanhas. Na Noruega, por exemplo, no século XVIII ainda sobreviviam crenças católicas e mesmo pagãs.

Os contos folclóricos e as canções mineiras praticamente desapareceram.Graças aos esforços dos calvinistas e metodistas ao norte, e dos
batistas econgregacionistas no sul, a cultura popular galesa se tornou, em largamedida, uma cultura de capela, com hinos, sermões e
proibições.

A reforma dentro da Reforma na Europa protestante, paralela aojansenismo entre os católicos, consistiu na ascensão do "pietismo".Uma
característica notável dessa segunda fase da reforma foi o papelcrescente desempenhado pelos leigos. (...) participaram ao lado doclero no
movimento pela reforma dos costumes, filiando-se às sociedadeslocais fundadas com a finalidade de colocar em vigor os ideais
dosreformadores no Tribunal. Os pregadores leigos eram proeminentes nosmovimentos de renovação religiosa na Grã-Bretanha e
Escandinávia.

Uma outra diferença entre a primeira e a segunda fase da reforma foi a importância crescente dos argumentos seculares, incluindo
considerações estéticas. Deplorava que "o povo comum sempre tirasse mais prazer de bobagens e detestáveis insultos do que de coisas
sérias". Também protestava contra peças que quebravam as regras de Aristóteles e contra atores que tomavam liberdades com o texto — em
outras palavras, improvisavam à maneira tradicional —, pois isso resultava em peças que só prestavam para divertir "a mais baixa ralé".

Uma das diferenças mais notáveis entre as duas fases da reforma refere-se ao sobrenatural. (...) de fato, seria o caso de incluir nesse
movimento de reforma a grande caça às bruxas que atingiu seu ápice no final do século XVI e início do século XVII. Contudo, uma série
dereformadores da segunda fase simplesmente não levava mais a sério afeitiçaria.

As transformações no significado das palavras por vezes são indicadores sensíveis de transformações muito mais amplas nas atitudes.Nesse
contexto, um termo a se examinar é "superstição". Em inglês e naslínguas românicas, a palavra teve dois significados básicos no início
doperíodo moderno. Antes de 1650, o significado predominante parece ser"falsa religião", em expressões como "a superstição maometana".
O termo éfrequentemente empregado para a magia e a feitiçaria, em contextos quesugerem que tais rituais são eficazes, mas perversos.
Depois de 1650,porém, o significado predominante do termo passou a ser "medosirracionais" e os rituais a eles associados, crenças e práticas
que eram tolas, mas inofensivas, pois não tinham absolutamente nenhum efeito. Nãoé fácil avaliar a rapidez com que ocorreram as
modificações e os grupossociais nelas envolvidos. Na Inglaterra e França, os processos contrabruxas declinaram no final do século XVII porque
os magistrados nãolevavam mais a sério a feitiçaria; mas nas pequenas cidades do sudoeste daAlemanha parecem ter declinado só porque os
magistrados não se julgavammais capazes de identificar as bruxas, e na Polônia simplesmente nãodeclinaram até o século seguinte. Se houve
um "declínio da magia" no nívelpopular antes de 1800, evidentemente é uma outra questão. A "gente astuta"parece ter se mantido bastante
ativa no século XIX, e mesmo no início doséculo XX, em muitas partes da Europa, sobrevivendo ao ceticismo dasclasses superiores tal como
sobreviveram aos caçadores de bruxas. Não se deve subestimar a resistência da cultura popular.

A segunda fase da reforma pode ser vista com particular clareza no caso da Espanha do século XVIII, talvez porque a cultura popular espanhola
tradicional tivesse sido pouco afetada pela primeira fase.

Na geração seguinte, um grupo de reformadores espanhóis apresentou argumentos — seculares — contra touradas, baladas de rua e as peças
de mistérios. As peças foram condenadas como irregulares, caprichosas, extravagantes.

Bandidos que matavam,violavam e resistiam às forças da lei e da ordem eram apresentados embaladas impressas sob uma luz heroica,
"inflamando na imaginação dosfracos o desejo de imitá-los". Outras baladas eram indecentes e obscenas;outras ainda corrompiam a razão
com suas estórias de "supostos milagres efalsas devoções". Deviam ser eliminadas, dizia ele, e substituídas por"canções verdadeiramente
nacionais" que educariam as pessoas comuns.

Não se deve pensar que as peças de mistérios, baladas de rua etouradas tenham desaparecido daEspanha no final do século XVIII; existem
inúmeras provas em contrário. Na Espanha, como em outros lugares, os reformadores alcançaram de fato muitíssimo menos do que queriam.
Também pode-se dizer que alcançaram mais do que queriam, no sentido de que o movimento de reforma teve consequências importantes
que eles não pretendiam nem esperavam. A mais óbvia foi o aumento da separação entre a grande e a pequena tradição. Os reformadores
não queriam criar uma cultura própria, expurgada e separada; queriam atingir o povo, trazer todos para seu lado. Na prática, as coisas
funcionaram diferente. As reformas afetaram mais rápida e cabalmente a minoria culta do que as outras pessoas, e assim acentuaram e
aprofundaram a separação dessa minoria em relação às tradições populares.

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