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O arquiteto chileno Alejandro Aravena criou uma equação para atacar o que considera o
ponto mais frágil dos projetos de arquitetura social: a qualidade da moradia. "É melhor
fazer meia casa boa do que uma casa ruim", disse à Folha.
Aravena, 44, dirige o Elemental, grupo que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza
de 2008 e fará o primeiro projeto no Brasil, em Paraisópolis, favela da na zona sul de
São Paulo. As obras dos 120 apartamentos devem começar no próximo mês.
O percentual de autoconstrução caiu de 50% para cerca de 10% por causa de lei
brasileira. Se fosse maior do que 50 m 2 , o apartamento não seria considerado habitação
de interesse social e perderia os subsídios, o que inviabilizaria o projeto.
Aravena concilia projetos de moradia social com os de vanguarda. Tem obras nos EUA,
na Alemanha e na China, pelas quais é apontado como um dos grandes criadores da
arquitetura contemporânea.
Harvard te põe em contato com o poder, um tipo de oportunidade que não se pode
perder. Havia três ou quatro ganhadores do prêmio Pritzker. Eu não podia falar do
estado da arte da arquitetura, porque as pessoas que estavam ali produzem o que eu
consumo lendo livros ou revistas. O único assunto que eu poderia ter alguma vantagem
em relação a eles estava relacionado com o contexto de escassez. Os prédios que eu
projetara tinham a ver com isso. Comparando com outros prédios, nós tirávamos leite
das pedras.
Quanto custaram esses prédios?
O edifício da faculdade de arquitetura da Universidade Católica custou US$ 125 o metro
quadrado. Isso não é nada para arquitetura contemporânea. No Chile, somos treinados
para trabalhar com escassez. Com a escassez, como não se pode fazer tudo, tem de
fazer o mais relevante. Ao mesmo tempo, 60% do que se constrói no Chile tem algum
tipo de subsídio. Era ridículo que eu não tivesse trabalhado em algo social no Chile. Eu
fazia arquitetura para o 1% da população que vive como se estivesse em qualquer lugar
do mundo.
Outra pergunta difícil é como fazer moradia social. Não é só por uma questão
humanitária ou porque é socialmente importante. Era um desafio profissional trabalhar
onde é mais difícil dar uma resposta certa. É uma pergunta que tem mérito intelectual,
como dizia outro chileno que estava em Harvard, Andrés Velasco, que foi ministro das
Finanças. Um milímetro que se mova nessa área será multiplicado por mil metros
quadrados.
A maioria dos arquitetos deu respostas arquitetônicas a essa pergunta. Por que
você entrou no campo econômico?
Isso é muito importante, esse é o ponto. Há variáveis econômicas, sociais, políticas,
financeiras, urbanas. A minha resposta é, de certa forma, uma crítica à arquitetura,
principalmente a que se desenvolveu na última década. A arquitetura só se ocupa de
problemas que interessam a outros arquitetos, que é o uso estratégico da forma. Era um
conhecimento específico para problemas específicos.
A sua pergunta tem a ver com o que aconteceu com a arquitetura nos anos 1930 e 1940
e foi uma das questões explícitas do começo do Elemental. Entre os anos 1960 e 1970,
houve uma bifurcação no mundo da arquitetura e alguns arquitetos vivem uma espécie
de foro criativo, como se dissessem: "Me deixem ser gênio. Sou talentoso. Deixem-me
criar essas obras de arte, mas não me peçam para ter relação com o mundo real. Eu
vou criar as regras do jogo".
Esse caminho vai dar numa certa arquitetura de impacto. Um professor de Harvard que
foi muito importante para mim, um tipo do Oriente, Hashim Sarkis, dizia que arquitetura
que tomou esse caminho adotou a estratégia do choque, do impacto. O preço que
pagaram por isso foi serem irrelevantes. A estratégia que se seguiu à irrelevância foi o
impacto.
Outro caminho que se abriu nos anos 1960 e 1970 foi o dos problemas inespecíficos:
pobreza, segregação, desenvolvimento, violência. Esse discurso levou muitos arquitetos
a tratar desses temas duros, que interessam à sociedade como um todo.
São problemas transversais, que poderiam ser tratados por um economista. Não é
preciso ser arquiteto ou urbanista para opinar. Todos podem opinar. O problema é que
os arquitetos que se dedicavam a essas questões abandonaram o projeto e os
conhecimentos. Em vez de projetar, faziam "papers", informes, para organismos
internacionais. Perderam a capacidade de fazer projetos. Entendem o fenômeno, mas
não propõem nada.
O desafio a partir do ano 2000, quando começou o Elemental, foi cruzar conhecimento
específico com problemas inespecíficos. Ocupamo-nos de problemas que interessam à
sociedade em geral. Todo mundo pode opinar: o economista, o político e a senhora que
não sabe ler nem escrever. Um comitê da periferia pode opinar tanto quanto um político.
Usamos o conhecimento de arquitetura, o manejo estratégico da forma, o uso sintético
do projeto, para tratar de problemas inespecíficos.
Você não acompanhou outros arquitetos que trabalham com habitação social?
Não, porque sou muito ignorante. Eu não tinha tempo para estudar o que fizeram outros
arquitetos. No entanto, sei fazer projetos. No Elemental fomos muito rigorosos com a
nossa ignorância. A imobilidade é um risco muito alto quando se enfrenta problemas em
que há muita informação acumulada. Quanto se sabe muito, conhece-se tanto as
consequências negativas de fazer mal alguma coisa, que você pode ficar paralisado. Por
isso fazíamos perguntas estúpidas de quem não sabe nada. Muitas vezes essas
perguntas bobas te levam a mover o estado das coisas.
Como era uma política nova, o mercado não sabia o que fazer. Eu tive a ideia de
destinar o tempo em que estava na universidade a pensar em como fazer uma habitação
melhor nessas condições. Aceitamos todas as regras do jogo: o tamanho, o valor, tudo.
A pergunta que fiz em Harvard foi: qual é a melhor unidade que podemos fazer com US$
7.500?
Começamos a fazer um exercício para cem famílias. Nunca se faz uma só casa nesses
projetos. Hashim Sarkis propôs outra pergunta. Se são 100 casas, cada uma custando
US$ 7.500, qual é o melhor edifício que dá para fazer com US$ 750 mil? Eu estava
pensando em como fazer o melhor com US$ 7.500 multiplicando os projetos por cem.
No dia seguinte, disse aos estudantes: peguem tudo o que fizeram até agora e joguem
no lixo. A questão agora era como fazer um edifício de US$ 750 mil, em que caibam cem
famílias e que possa crescer. Um edifício não pode crescer, a não ser no último piso e no
térreo.
Então o que vamos fazer é um edifício do qual vamos retirar todos os andares que não
sejam o térreo e o último. Para cada apartamento de 36 m 2 , deixamos 36 m 2 para a
família aumentar. Com 72 m 2 você tem um apartamento de classe média. Isso duplica a
densidade, dá para ter duas famílias por lote. Com isso, você pode comprar terreno não
na periferia, a duas horas do centro. Dá para comprar em bairro de classe média. Toda a
nossa preocupação era que as casas aumentassem de valor com o tempo.
A ideia de valorização era uma estratégia para mudar a vida dos moradores?
No Chile, a política habitacional era orientada pela ideia de propriedade. O Estado
financia, dá subsídio e as pessoas tornam-se proprietárias. Para uma família pobre isso
significa a ajuda mais importante que ela vai receber do Estado de uma só vez. Uma
casa é a garantia de valorização segura com o tempo. Minha casa, sem que eu tenha
feito nada, custa o dobro do valor que paguei há sete anos. Como o solo é um recurso
escasso, há valorização. A casa precisa ser um investimento, não gasto social.
O economista peruano Hernando de Sotto diz que uma casa de favela, no Rio ou em
São Paulo, é um ativo caro, custa US$ 20 mil, US$ 30 mil. Ele pode ir a um banco e usar
esse patrimônio como garantia para comprar um táxi, por exemplo. Se projetarmos essa
casa para aumentar de valor com o tempo, ela vai poder pegar mais dinheiro no banco
quando precisar. Foi o que ocorreu com a maioria dos projetos do Elemental. As casas
valem o dobro do que quando foram construídas. Valorização depende muito da
localização. Você só pode pagar por uma boa localização, se tem alta densidade de
moradores. A equação que fizemos é a seguinte: a densidade tem de ser
suficientemente alta para pagar terrenos bem localizados na cidade, em bairros que
valorizem o imóvel.
As pessoas que mais necessitam da rede de oportunidades estão excluídas dessa rede.
Demoram duas horas para chegar até aonde estão concentradas as oportunidades.
Temos que inserir as famílias no local que reúnem as oportunidades. Esse solo é mais
caro. Para pagá-lo, a única maneira é ter uma densidade suficientemente alta para
ratear o preço. O filho de uma família que mora num local assim vai poder frequentar
escolas melhores do que as da periferia, hospitais melhores. E o patrimônio familiar
valoriza.
Isso nos fez entender que a casa deve ser mais investimento do que gasto social.
Se não houver um projeto, isso não ocorre. A pergunta que precisa ser feita não é
quantos metros quadrados terá o imóvel, mas onde ele fica. O que faz o mercado?
A casa precisa estar na frente do lote. Pelo menos 50% da frente do lote seria construída
por nós. Tinha a estrutura para os 80 metros finais. Como tinha uma estrutura pronta, os
primeiros 40 m 2 custavam US$ 7.500 e os 40 m 2 seguintes, US$ 1.500. Porque a
estrutura é cara. Custa 70% do preço da obra. E sei que a casa não vai cair porque fui
eu que a projetei. Os primeiros 40 m 2 têm de ter o banheiro, a cozinha, o muro que
separa do vizinho, a escada. Porque é muito pouco provável que uma família saiba fazer
bem um banheiro. Não fazíamos um banheiro de 1,2 m x 1,2 m. Ficaria defasado para
uma casa de 80 m 2 . Fazíamos banheiro de 1,5 m x 2 m. Cabe uma banheira. Como o
banheiro era mais caro, teríamos de deixar de fazer algo para pagar esse banheiro.
O projeto da Quinta Monroy era tão inovador que tivemos que fazê-lo contra a lei. Foi o
momento mais difícil do projeto. Fizemos porque havia o respaldo das famílias.
Normalmente, nos movimentos sociais as pessoas querem mais coisas, não menos
coisas. O ponto era ter não mais coisas, mas melhores coisas. Eles perceberam que
estávamos dando coisas que custam meses de salário. Fazer metade de uma casa boa,
em vez de uma casa pequena, foi de longe a mais importante reconceitualização. É o
tipo de pergunta que só fazem os ignorantes. É uma pergunta boba. Os especialistas
olham e riem de você.
Quando vou fazer só a metade de uma casa, quando mais repetitivo e monótono eu for,
o crescimento será incerto.
Junta-se uma questão filosófica com outra pragmática e uma econômica. É socialmente
desejável, economicamente eficiente e politicamente correto. Quando a família constrói a
sua parte, ela terá mais responsabilidade pelo imóvel. Não é a casa que lhe deu o
Estado. É a casa que ela fez.
Em todos os lugares do mundo em que os fundos públicos não podem construir todas as
habitações necessárias, que é o caso de dois bilhões de pessoas, é melhor construir a
parte mais difícil e deixar aberto o processo de autoconstrução, que inevitavelmente iria
ocorrer.
Todas as obras do Elemental foram feitas para o Estado. O mercado não poderia
adotar essa solução?
Pode. No Chile, o Estado dá um subsídio para as famílias e elas vão ao mercado buscar
uma solução de moradia.
As pessoas mais pobres são as que mais necessitam viver em lugares assim. Elas são
as mais pobres porque não têm renda regular. Os programas baseados em dívidas
hipotecárias não atingem os mais pobres. Isso explica o grau de informalidade da
América Latina: 50% no México, 40% no Brasil, 60% na Venezuela e só 5%, 10% no
Chile.
O Elemental pode fazer moradia por US$ 10 mil. Por isso é tão importante encontrar
mecanismos que permita focalizar os mais pobres, os que não tem salário regular.
O projeto que fazemos na Suíça ou Alemanha também vai no osso do problema. É como
um golpe seco de espada. Não tenho oportunidade de fazer 35 pequenos cortes.
A ideologia é equivalente a uma religião, que te dá uma certa certeza e uma certa
debilidade para enfrentar os problemas. A ideologia é uma rede de segurança quando
não tem tempo, disposição, força e segurança suficiente para partir da incerteza total
cada vez. Não tenho religião nem fetiche com formas nem materiais.
Você já disse que a arquitetura contemporânea brasileira é muito ruim. Por quê?
Não tenho uma resposta porque não estudei o fenômeno. Mas me chama muitíssimo a
atenção que, dado o tamanho e a tradição arquitetônica do Brasil, o país não tenha
suficiente massa crítica de arquitetura de qualidade sendo construída.
Vou fazer uma especulação. Em 2008, quando estive em São Paulo, no Urban Age, fiz
esse comentário com pessoas do Banco Mundial e da Universidade de Londres.
No Brasil, pode-se ouvir música brasileira quase o tempo todo. O Brasil não precisa
olhar para o resto do mundo. O chileno médio sabe da cena musical de Londres ou da
Holanda. A cultura chilena é suficientemente fraca para termos que olhar para fora.
No Brasil, não é necessário saber dessas coisas porque a cultura interna é muito
potente. Os melhores momentos acontecem quando você está exposto à concorrência
externa, quando nada está assegurado. Quanto mais concorrência, melhor.
É como a Índia. O Brasil mandou nos anos 1970 e 1980 um contingente enorme de
gente para estudar fora. E os anos 1970 foram o último momento poderoso da
arquitetura brasileira. Provavelmente era o momento em que o país estava mais
contaminado pelo mundo.
Seria mais econômico, mais eficiente e mais fácil de fazer, se a relação entre exterior e
interior fosse mais fluída.
A arquitetura do Brasil parece o pós-modernismo italiano dos anos 1980. Parece que os
arquitetos sonham com o clima mais frio da Europa.
Endereço da página:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/768241-e-preciso-levar-o-dna-da-classe-media-para-a-favela-diz-
arquiteto.shtml
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