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A tecnologia aplicada

ao corpo:
abordagens subversivas em arte

Juliana Coelho Gontijo


Pesquisadora e curadora independente. Doutoranda pela Universidad de Buenos Aires.
Especialista em Linguagens Artísticas Combinadas pelo Instituto Universitario Nacional
del Arte (Buenos Aires), graduada em Estudos Cinematográficos pela Université Sorbonne
Nouvelle (Paris) e em História da Arte pela Université Le Mirail (Toulouse). Trabalhou na
coordenação de exposições na Fundación PROA (Buenos Aires). Ganhou o prêmio Rede
Nacional Funarte 2009 com o projeto Arte in loco, e Bolsa de Estímulo à Produção Crítica
da Funarte, com Distopias tecnológicas. É professora de Teoria da Arte na UERJ.

Resumo. Este artigo propõe pensar a inter-relação da arte com os novos meios
tecnológicos em propostas de instalações, que acentuam a corporalidade do espectador
e subvertem os discursos hegemônicos sobre a arte, o corpo e a tecnologia, partindo de
conceitos ligados ao pós-humanismo. Do corpo participante das propostas artísticas dos
anos 60 à intensificação das experiências perceptivas com base em um corpo virtualmente
codificado, o trabalho dos artistas argentinos e brasileiros Leonello Zambón, Leo Nuñez,
Eduardo Kac, Rejane Cantoni e Daniela Kutschat Hanns sugerem um questionamento
sobre a interação corpo-máquina e o lugar do corpo na sociedade pós-moderna.
Palavras-chave. instalações, corpo, tecnologia, pós-humanismo.

The technology applied to the body: subversive approaches in art


Abstract. This article proposes to think about the interrelationship between art and
technology on installations proposals, which stress the corporeality of the spectator and
subvert hegemonic discourses about art, technology and the body, since post-humanism
concepts. From the body participation of the 60s artistic proposals to the intensification
of perceptual experiences based on a virtually encoded body, the work of Argentine and
Brazilian artists Leonello Zambón, Leo Nuñez, Eduardo Kac, Rejane Cantoni and Daniela
Kutschat Hanns suggests an interrogation about the interaction of body and machine and
the place of the body in postmodern society.
Keywords. installation, body, technology, post-humanism. 99

Revista-Valise, Porto Alegre, v. 3, n. 6, ano 3, dezembro de 2013.


Mas aí onde cresce o perigo, cresce também o que salva.
Friedrich Hölderlin

As intensas mudanças provocadas ao questionar, desde princípios do


século XX, os pressupostos científicos e culturais ocidentais estabelecidos, levaram
à progressiva dissolução das definições categóricas e dos limites entre os distintos
suportes representação e campos de conhecimento na sociedade contemporânea.
A reestruturação e a reformulação das concepções de corpo e sujeito, de realidade
e verdade, são preocupações centrais de disciplinas como a filosofia, a sociologia,
as ciências cognitivas, a biologia ou a neurociência. As teorias pós-humanistas de
nossa era pós-industrial e digital assinalam o surgimento de uma forma híbrida
de vida, capaz de transformar drasticamente a concepção de corpo e sujeito.
O humano aparece como um corpo híbrido entre o orgânico, o maquínico e o
informático, simbiose capaz de fazê-lo ampliar sua própria condição perceptiva
e simbólica. Segundo Roy Ascott (2003), estaríamos entrando numa era úmida,
na qual se imiscuiriam a organicidade molhada do humano com o caráter seco do
silício. O desenvolvimento da nanotecnologia, associada à realidade virtual (RV),
à comunicação global, às redes neurais, à manipulação genética e à vida artificial
contribuem para o alcance deste estado. O pós-humano traz, pois, a necessidade
de se repensar a categoria do humano em suas dimensões corporais, sociais,
filosóficas, antropológicas e psíquicas.
No âmbito da arte contemporânea, a incorporação de tecnologias e
práticas científicas na elaboração de projetos artísticos, mobilizada pela maior
facilidade de acesso aos artefatos eletrônicos e digitais a partir dos anos 80,
também reflete estes novos postulados. Este artigo propõe refletir sobre tentativas
de incorporações positivas entre arte, ciência e tecnologia, que podem apontar
um novo nível de experimentação com base na corporalidade do espectador-
participante, a fim de problematizar o corpo e o discurso tecnológico de nossa
sociedade digitalizada. Podemos, então, analisar três tipos de inscrição de uma
postura subversiva dentro de discursos consolidados: num primeiro momento,
um questionamento do paradigma da arte vigente, reforçando a ruptura da
experiência estética contemplativa através da interação com o espectador; em
seguida, uma subversão do conceito de sujeito moderno mediante a proposta
de uma experiência fragmentada e descentrada do corpo; e, finalmente, o mau
uso intencional da tecnologia para estabelecer uma crítica do próprio discurso
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tecnológico e abrir novas possibilidades de usos e significados, explorando
criativamente potências ainda não utilizadas de certas máquinas.
Por uma corporalidade crítica na arte contemporânea
A mudança de paradigma que representou os anos 60 nas artes plásticas
e visuais proporcionou uma nova formulação da experiência estética, pôs
em questão o modelo kantiano de experiência estética, baseado numa atitude
contemplativa, na qual a relação com o objeto artístico não deveria pressupor
seu uso ou apropriação pelo corpo1. Na tentativa de eliminar esse distanciamento
e incorporar a participação ativa do espectador, a obra torna-se uma ação a ser
experimentada, imersa num processo de produção, no qual interatuam artista e
público. Por meio de propostas de contato ativo com o público, o artista deixa de
ser um mero produtor de objetos para se converter em um propositor de práticas.
No Brasil, podemos recordar experiências artísticas com a utilização do
corpo como centro de ações muitas vezes transgressoras, numa época de controle
ditatorial, na qual os artistas buscam uma forma de atuar social e politicamente
na sociedade, além de defender uma cultura popular própria. As obras procuram,
então, a saída do quadro como suporte para elaborar uma experiência sinestésica,
proporcionam ao público a máxima utilização de sua capacidade sensitiva, e
reestabelecem, assim, sua conexão com o próprio meio. Helio Oiticica, com seus
Penetráveis e Parangolés, pretendia a estimulação corporal e semântica do público
para levá-lo a um posicionamento social e político. Lygia Clark, com uma série de
obras como Caminhando, A casa é o Corpo, entre outras, busca um redescobrimento
e consequente reelaboração do corpo pela participação coletiva e pelo trabalho
com estruturas supra e infra-sensoriais do sujeito.
Também na Argentina, nesse mesmo período, um grupo de artistas
buscava um corte radical com a arte moderna, até então dominante, e questionava
seus mecanismos de produção, legitimação, recepção e consumo. O corpo
real passou a ser diretamente objeto artístico nos vivo-ditos de Alberto Greco,
sinalizações que o artista realizava na via pública. Em outra instância, para referir-
se à obra La Menesunda (1965), realizada por Marta Minujín e Rubén Santantonín,
o crítico Jorge Romero Brest usa, pela primeira vez, o termo experiência ao que,
antes de ser um objeto de contemplação, tratava-se de percurso multissensorial
com a inclusão de distintos suportes, materiais e performers permanentes.
Nesses dois contextos regionais, o corpo e sua capacidade perceptiva
estão intrinsecamente envolvidos na obra como tema, veículo de participação e 101

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experimentação crítica, com a possibilidade de se transformar em metáfora de um
discurso subversivo. A orientação físico-corporal das ações e performances dos anos
sessenta ressaltava o corpo como fator de coesão entre vida e arte, identidade,
sociedade e meio ambiente. Estas primeiras experiências brasileiras e argentinas de
obras-ambiente podem ser vistas como antecedentes das instalações imersivas que,
atualmente, utilizam a tecnologia a fim de permitir novas experiências sensoriais.
Ao incorporar o vídeo, a eletrônica e a informática, a arte inaugura
novas possibilidades de expressão e inter-relação do corpo com a tecnologia, e,
simultaneamente, rompe de forma definitiva com os paradigmas de hierarquia e
sistematização que caracterizam a arte convencional. O que chamamos hoje de
arte cibernética, arte tecnológica, ou ainda arte dos novos meios, desenvolvida
desde o fim dos anos 80, é por definição constituída de elementos reais ou virtuais
combinados de maneira aleatória, imprevista e provisória baseada na interação
corpo-máquina proporcionada por interfaces, e desenvolvidos, na maioria das
vezes, por uma equipe interdisciplinar de artistas e técnicos. Estas interfaces
permitem um sistema de transcodificação numérica, no qual os estímulos físicos
são captados por sensores, câmeras e superfícies hápticas, nas quais o toque é
simulado e a máquina está apta a responder à pessoa que a manipula. É, portanto,
uma modalidade artística que não só propõe a inserção de novas tecnologias, mas
busca uma interação real entre o observador e a obra de arte, mesmo se uma
parte da interatividade for muitas vezes limitada pela programação de ações
padronizadas. Essa busca leva à constituição de uma obra aberta, que não possui
uma aparência definitiva no momento da exibição, uma vez que é modulada a cada
momento pela manipulação do público.
A possibilidade de modulação por parte do espectador abre uma distância
entre a arte tecnológica e um tipo de arte que podemos chamar de aurático,
centrada na figura do artista e no caráter ritual da obra. A incorporação da técnica
libera a arte da idéia de unicidade, originalidade e raridade de uma presença. Nesse
sentido, a presença e a atualidade da obra não só é reproduzível, mas também é
instável, momentânea, variável. A idéia de um autor é diluída no aspecto inacabado
e aberto da obra em que as possibilidades de interação fazem com que, muitas
vezes, a obra possua uma maneira imprevista ou aleatória de comunicar. A perda
da aura desencadeia uma arte voltada para a comunicação, para a expansão ao
outro e dilui as fronteiras delimitadas entre obra e espectador, autor e seu público.
A manipulação de um sistema codificado, sua alteração e reconstrução, passam a
ser ferramentas dadas ao público, que atua como um gerador de perturbações no
102 sistema construído pelo artista.

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Com base nessas premissas, ao utilizar conscientemente as novas
tecnologias com ênfase na interação comunicativa, certas propostas artísticas
poderiam possibilitar, também, uma nova abordagem do processo de cognição
e individuação, para propor uma redefinição das dimensões perceptivas e, assim,
estabelecer o corpo como suporte de significações e território de experimentação
do espaço-tempo real e virtual, em uma inter-relação imanente com o maquínico.
Um exemplo é o projeto OP_ERA, desenvolvido desde 1999 pelas
artistas brasileiras Rejane Cantoni e Daniela Kutschat Hanns. Consiste numa série
de ambientes simulados, que por meio do desenvolvimento de um conceito de
espaço e uma interface para fazer interatuar corpo e máquina, possibilita uma
forma alternativa de percepção e uma cognição desse espaço, que tanto é físico
como virtual. Um dos ambientes criados foi OP_ERA: Sonic Dimension (2003),
que propõe uma interface imersiva, interativa e multissensorial, na qual há dois
modos de interação. Ver um som e escutar uma imagem é o propósito do projeto,
que pode ser visto como múltiplas cordas vocais virtuais ou um instrumento
musical gigante (fig. 1). A sala da instalação, vazia fisicamente de componentes,
é preenchida com a projeção de centenas de linhas luminosas sobre a parede e
conta com uma importante quantidade de microfones e sensores de movimento.
As frequências sonoras emitidas pelo visitante são captadas para logo serem
transcodificadas visualmente em forma de vibrações sobre as cordas virtuais, de
acordo com a frequência da nota musical emitida. Simultaneamente, uma segunda
malha de sensores captura a posição relativa do visitante e seus movimentos no
espaço vazio da sala, interpretando-os como toques sobre as cordas, que então
reverberam e produzem som.

Fig. 1 - Rejane Cantoni e Daniela K. Hanns: OP_ERA: Sonic Dimension, 2005.


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Outra parte do mesmo projeto é OP_ERA: Haptic Wall (2004), uma
parede que funciona como interface que implementa uma dimensão táctil com
base em dados sonoros (fig. 2). Microfones espalhados na sala capturam as
vibrações sonoras, que por um software são convertidas em informações tácteis
que movem a interface. A parede é revestida por um tipo de látex que aparenta
uma pele artificial e induz o contato direto com o corpo do visitante, simula o
toque e permite uma comunicação simbiótica do corpo com o computador.

Fig. 2 - Rejane Cantoni e Daniela Kutschat Hanns: OP_ERA: Haptic Wall, 2004.

Interconectadas na instalação, as diversas camadas perceptivas e


multidimensionais permitem, então, uma integração quase completa do corpo,
de forma expandida ou interfaceada. Por meio da captação de seus movimentos
e sons emitidos, o sujeito-corpo presente é quem torna possível a apreensão do
espaço-tempo real e da simulação de outro espaço virtual pela máquina, ambos
espaços associados a um sistema de retroalimentação. A obra, por ser configurada
segundo padrões de estímulo e resposta, não se apresenta como uma totalidade,
senão que varia seu aspecto segundo padrões combinatórios e encontra-se sempre
em um estado efêmero de existência.
Esse tipo de instalações estabelece o que o historiador de arte e tecnologia
Frank Popper define como uma tecnoestética, vinculada a experimentações no
campo da cognição, sinestesia e imersão sensorial em que percebemos uma
integração efetiva da arte com a tecnologia. As diferentes interfaces utilizadas
na arte tecnológica promovem o intercâmbio entre o humano e o computador,
e apresentam como possível a criação de sistema sensitivo múltiple, no qual a
experiência de realidade que já não se apóia somente sobre a visão e a escuta, mas
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também nas demais sensações corporais. Estaríamos na presença da simulação de
uma realidade, que ele chama de Realidade Virtual Imersiva. Tanto a complexidade
e ambiguidade relacionadas ao pós-moderno, quanto o racionalismo científico
são admitidos na tecnoestética e possibilitam aos artistas não apenas uma ampla
lógica de criação, como também um compromisso múltiplo relacionado a temas
recorrentes da contemporaneidade, como os processos de individuação e as
transformações sociais, ecológicas e científicas.
Segundo a teórica italiana Claudia Giannetti (1997, p. 102), esse tipo de
hibridação entre instalação, ambiente plurimídia e ação do espectador, parte de
um princípio reativo:
A existência da obra depende do cumprimento da ação, e ambas estão subordinadas à
atuação do observador. O espectador como observador externo não só é transformado
em performer, senão que é também partícipe interno mediante sua inserção no contexto
potencial da obra.

Dessa forma, a ambientação e a participação criativa, por meio da


incorporação de todos os sentidos, levaria a uma mudança no triângulo estético
básico: artista, obra de arte, espectador seriam substituídos por outro modelo que
integra conceptor, processo criativo e participante ativo. Nesse sentido, a arte é uma
atividade efêmera, inscrita na cultura contemporânea de fluxo e instabilidade. Para
Popper, por meio da imersão multissensorial e da interatividade, assim como da
neo-comunicabilidade, a arte possibilitaria, ainda, a humanização da tecnologia, e
enfatiza a natureza multissensitiva do ser humano, além de apontar novos pontos
de vista filosóficos sobre o real e o virtual.
A elaboração de um corpo tecnológico
Os processos de informatização e virtualização da sociedade e o
desenvolvimento das tecnociências conduziram ao surgimento de teorias pós-
humanistas que apontam as manifestações de um modo de vida híbrido: biológico
e, simultaneamente, eletrônico e artificial. Essa nova concepção pede a revisão
de conceitos sociológicos, éticos, políticos e culturais, no que diz respeito à
relação humano-máquina. Contrariando o pensamento moderno, que ressaltava
a unidade, o individualismo e a integridade do sujeito, o corpo pós-moderno
apresenta-se como fragmentado, permeável e em estado de constante definição
em nossa era digital. Percebemos essa mudança drástica no conceito de sujeito
e corpo pelo distanciamento atual do corpo dado, ou seja, daquele que se forma
naturalmente segundo o acaso para a elaboração de um corpo-sujeito como
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projeto: retocado, reconstruído, possível de ser reelaborado.
Baseada nessas teorias, Claudia Giannetti (1997) propõe o conceito
de corpo em processo de formação, isto é, um corpo constantemente ressignificado,
que supera a dicotomia entre o humano e o tecnológico e sugere uma sinergia
positiva frente à clássica divisão entre corpo e consciência, organicidade e técnica,
em que a tecnologia seria mera intrusa dentro do organismo. As tecnociências,
como a biotecnologia, a nanotecnologia e a engenharia genética, partem desse
pressuposto, onde é possível a manipulação e transformação radical não só da
natureza, mas também dos seres humanos.
As discussões levantadas pela arte contemporânea demonstram
preocupações semelhantes em relação a concepção de corpo e sujeito, assim como
aos pressupostos de realidade e verdade. A incorporação criativa da tecnologia, se
pensada com propósitos sinestésicos pode, então, levar a uma expansão corporal,
isto é, fazer perceptível algo que está latente em condições normais e permitir um
transpasse dos limites físicos do corpo por meio de processos de transcodificação,
modulação, variabilidade de códigos. Ou seja, captado por distintos sensores
(visuais, sonoros, luminosos, termodinâmicos), o corpo e seu movimento são
virtualizados num sistema de códigos capaz de ser lido pela máquina e possibilita,
assim, uma interação com o meio, muitas vezes também virtual. São sistemas que
buscam um sincretismo do orgânico com o maquínico e provêem a intensificação
de três modos de existência: natural (corpo), arte (criação) e tecnologia.
Segundo Giannetti (1997), esta complexa rede de relações possíveis na
era tecnológica atual e explorada em algumas propostas artísticas, incide na teoria
cognitiva e transtorna, profundamente, a crença postulada pela filosofia de que
o sujeito ou seu sistema de percepção está em contato direto com o mundo. Na
condição de virtualidade dos estímulos corporais e físicos, a relação sujeito-corpo
e sujeito-ambiente é claramente intermediada por aparatos, códigos e interfaces.
Podemos então propor uma definição para o virtual como um conjunto
de forças que existe como potência. Não se opõe, portanto, ao real, e sim ao
atual. Dessa maneira, a virtualização passaria a ser, segundo o teórico Pierre Lévy
(1996), uma elevação à potencia, ou seja, uma mutação de uma entidade a um
campo problemático, que a conduz a um desprendimento do aqui e agora para
a existência em um espaço e tempo não designados. Lévy (1996) afirma, ainda,
que ao reconstruir modelos numéricos do corpo, passamos a ser um organismo
híbrido, a possuir um hipercorpo que se caracteriza por sua permeabilidade de
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informações. Nesse aspecto, o corpo individual se associa virtualmente a um único
corpo, híbrido e globalizado, e constitui, então, um corpo coletivo, no qual tudo
se compartilha, tudo se adiciona em favor de uma intensificação das emoções. A
virtualização do corpo abre a possibilidade de exteriorizar as atividades físicas
e psíquicas do sujeito e o hipercorpo, em consequência, de transpassar os limites
corporais.
Entretanto, Pierre Lévy (1996) ressalta que a virtualização não deve ser
simplesmente reduzida a um fenômeno de desmaterialização, de desaparição
de um corpo particular, já que pressupõe uma reencarnação, multiplicação ou
heterogênese do sujeito. Diferentemente dos postulados históricos em que
o corpo presente e real alberga a essência do ser, o processo atual implica uma
passagem a um funcionamento não localizado, coletivizado, que, segundo Claudia
Giannetti (1997, p. 10).
Não se trata de um desaparecimento do corpo/sujeito, engolido pela mídia eletrônica e
telemática, mas sim do eclipse de determinados conceitos históricos relativos ao corpo e
ao sujeito, devedores da visão espiritualista ou idealista que ainda enfoca, mesmo ao longe,
o horizonte cartesiano. Frente a estes conceitos que defendem a idéia de corpo como
um recipiente que contém a essência do ser, estão sendo consolidados novos postulados,
[…] segundo os quais, embora o ambiente, o corpo e o sujeito sejam, de acordo com sua
representação no cérebro, claramente diferente, mundo cognitivo é um mundo fechado
em si mesmo2.

A virtualização do corpo, tanto nos suportes audiovisuais como por


meio da interação com uma interface maquínica, enfatiza seu saber cognitivo,
possibilita uma dimensão de translação do corpo no ciberespaço e põe em questão
seu aspecto tangível. A telepresença seria uma projeção imediata desse corpo
virtual que, por meio do uso de diversas tecnologias, pode simular sua presença ou
produzir uma ação num lugar diferente de sua localização real. O corpo tangível
se diferencia de seu corpo sonoro ou visual, uma vez que os organismos virtuais
permitem transpassar espaços e multiplicar o sujeito. Como afirma Pierre Lévy
(1996, p. 17), a sincronização substitui a unidade do espaço, a interconexão substitui a unidade
do tempo. Dessa maneira, nos afastamos tanto das ciências quanto da filosofia
moderna, que condicionam a existência humana como o pertencimento a um lugar
e tempo específicos, o ser-ai heideggeriano3. Os sistemas de redes telemáticas e as
tecnologias de realidade virtual permitem aos artistas experimentar com outras
dimensiones de ubiquidade, elaborando clones virtuais e atuando à distancia.
Nesta linha de trabalho, o artista brasileiro Eduardo Kac desenvolve,
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desde os anos 90, diversos projetos que incluem a telepresença. Em Teleporting
an Unknown State (fig. 3), apresentado em diversas ocasiões entre 1994 e 2009,
uma pequena planta em um vaso é instalada no espaço expositivo completamente
escuro. A planta deve realizar seu processo de fotossíntese a partir da ‘luz’ enviada
por participantes de diversas partes do mundo via internet, ou seja, com base numa
página web, é possível acionar uma câmara (webcam) que capta a imagem do céu de
diversas cidades do mundo. Essa imagem é em seguida transformada em código
alfanumérico e enviada ao computador que se encontra na sala de exposição, o qual
por intermédio de um projetor localizado sobre a planta, usa essa imagem como
luz e possibilita a fotossíntese. Um hipercorpo coletivo é, então, o responsável pela
manutenção da vida de um organismo vegetal, localizado num lugar totalmente
independente de qualquer presença física. A proposta do artista busca inverter o
processo dos meios massivos de comunicação, no qual a informação se dirige de
um organismo ou indivíduo central para muitos; aqui, a informação é vital e parte
de uma multiplicidade de atores para um só organismo.

Fig. 3 - Eduardo Kac: Teleporting an Unknown State, 1994/96.

Torna-se evidente como estas interfaces de imersão e interatividade


permitem novas concepções corporais e põem em cheque a concepção discreta
de indivíduo, baseada na idéia de centro e contenção do corpo. O espaço de
pura circulação dos meios tecnológicos introduz uma experiência descentrada
do sujeito, em que as identidades se redefinem como produto de um contínuo
deslocamento. A facilidade de fragmentação e transcodificação do corpo rompe
com sua imagem de fortaleza para apresentar, assim, um corpo permeável, híbrido
e frágil. O indivíduo se funde no coletivo, mas também se multiplica em possíveis
identidades transitórias e perfis cibernéticos. É possível ser vários em um mesmo
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lugar, bem como ser um em vários lugares.
A Arte e o Contra-Discurso Tecnológico
O impacto da aceleração tecnológica pressupõe uma obsolescência
constante dos objetos técnicos. A perda de utilidade de máquinas, equipamentos
e tecnologia é motivada, sobretudo, por uma introdução ao mercado de
equipamentos com uma capacidade de rendimento supostamente maior
que seu antecedente. As estratégias de obsolescência aplicadas comumente
visam, principalmente, incentivar um consumo vicioso de tecnologias, já que,
paradoxalmente, existe a possibilidade técnica de produzir produtos duráveis,
mas sucumbimos frente a um discurso que induz à necessidade de atualização
constante de tecnologias. Devido a isso, são evidentes os problemas políticos,
sociais e ecológicos gerados pela contínua substituição de equipamentos, que
produz uma quantidade cada vez maior de resíduos.
Um tipo de crítica ao consumo tecnológico pode ser visto claramente
no trabalho de um grupo de artistas argentinos, como Leonello Zambón e
Leo Nuñez, que vem trabalhando com a recuperação e uso da lo-tech, ou baixa
tecnologia, muitas vezes descartada pela sociedade de consumo e encontrada no
lixo das grandes cidades. Essa reutilização envolve um processo de reelaboração
criativa, que enfoca, de maneira crítica, a definição utilitária dos objetos, a idéia de
progresso técnico e a obsolescência dos materiais.
Baseado numa perspectiva de aproximação subjetiva da tecnologia por
meio da arte, abre-se a possibilidade de explorar certas potências latentes de
máquinas não reveladas por seu uso convencional. A tecnologia é desviada de
seu uso predestinado, é incorporada em processos artísticos e subverte o uso
apropriado de um objeto dado, como exemplo: scanners perdem sua função para
se transformar em uma máquina de sons e brinquedos quebrados são reelaborados
em um novo objeto, sem função determinada. O que estava designado a cumprir
uma função precisa dentro da pragmática utilitarista da sociedade contemporânea
é reconvertido em favor de uma ressignificação dos objetos.
Combinando tecnologia lo-tech e processamento de dados em tempo real,
Parasitophonía: Modelos nómades de apropiación (2010) é um projeto de instalação móvel
do argentino Leonello Zambón, realizado em colaboração com Gabriel Zea,
Camilo Martinez e o grupo COSO. Trata-se de módulos nômades que funcionam
como um estúdio sonoro adaptado sobre uma bicicleta que, mediante um GPS e
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um computador, processam em tempo real os dados recebidos de redes wi-fi da
cidade, e transforma-os em variáveis que operam pequenos motores acoplados a
instrumentos musicais (fig. 4).

Fig. 4 - Leonello Zambón: Parasitophonía: Modelos nómades de apropiación, 2010.

Nessa tentativa de apropriação de um aspecto invisível do espaço


circundante, o participante, ao conduzir o veículo pelas ruas, experimenta
musicalmente a partir da combinação de uma realidade concreta com o aleatório
do software incorporado ao módulo. Ao contrário do processo de recepção
passiva produzido por um dispositivo tipo tela, o participante está fisicamente
ativo na exploração do espaço exterior e se estabelece, pela combinação de
movimento real e processamento de dados, uma relação híbrida entre máquina
e corpo. O som produzido não é sintético e digital, mas, sim, completamente
analógico, produzido pelos golpes dos motores sobre cordas acopladas a uma
caixa de madeira. O artista propõe, então, uma experiência de percurso digital-
analógica que, como ele mesmo diz, é “uma espécie de hiper-instrumento móvel,
que se adapta a certas estruturas urbanas e utiliza motores e peças eletromecânicas
controladas analogicamente desde umas bandejas de toca-discos”4. Podemos
formar uma relação estreita entre este hiper-instrumento móvel com o Parangolé
de Oiticica: sua incorporação pelo usuário é a condição sine qua non da existência da
obra. Ela é pensada não só com base no corpo, mas desde o corpo em movimento.
Outro exemplo desse desvio tecnológico é Propagaciones (2007), de Leo
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Nuñez, uma instalação que utiliza uma série de cinquenta robôs elaborados com
tecnologia aparente e uma eletrônica simples (fig. 5). Os robôs são autômatos
celulares constituídos por sensores de luz, lâmpadas LED e motores existentes
nos leitores de CD. Estes pequenos aparelhos encontram-se, inicialmente, em
estado de repouso e podem ser acionados com a incidência de luz sobre seus
sensores, que os dispara em um movimento giratório e acende a lâmpada LED
localizada em sua carcaça. Esse movimento faz com que a luz do primeiro robô
provoque a ativação dos demais. O visitante, ao entrar no espaço expositivo, pode
iniciar uma nova sequência de reações com uma simples lanterna ou seu próprio
celular e provoca o que chamamos de efeito borboleta no sistema de autômatos.
Segundo o próprio artista, a obra nasce da idéia de sintopia, ou seja, a relação de
vizinhança entre diferentes partes de um sistema, isto é, o estado de cada um está
diretamente relacionado com o estado do seu vizinho, como acontece nas redes
neuronais ou celulares. Dessa forma, a interação não está presente somente entre
o participante e a obra, senão internamente entre as partes que a integram. A obra
pode ser vista como um organismo eletronicamente vivo, em que o corpo do espectador
atua como um vírus ou estímulo elétrico que impulsiona uma reação em cadeia.

Fig. 5 - Leo Nuñez: Propagaciones, 2007.

Conclusão
A especificidade do entorno tecnológico torna mais complexa a
participação do espectador, que põe em questão, como foi visto, o conceito de
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sujeito, de obra de arte e de objeto tecnológico. Entretanto, temos que admitir
que essa coautoria do espectador participante muitas vezes é apenas hipotética,
uma vez que, normalmente, o conjunto de variações propostas na obra já está
predefinida pelo artista. A interação real, ou seja, quando é dada como um modo
de diálogo entre obra e espectador, é limitada pela maneira na qual a programação
informática é elaborada. Há uma limitação na reprogramação dos códigos
informáticos e, portanto, uma restrição no campo de atuação que é deixado livre
para o público. Muitas vezes, essa suposta interatividade não deixa de ser uma
ação lúdica ingênua, na qual o espectador se diverte em apertar botões sem ter
uma real participação crítica e criativa na obra.
Por um outro ângulo, podemos problematizar ainda mais o conceito de
performance tecnológica, ao referir-se a uma co-performance do espectador. Ao
tornar mais fluidas as barreiras entre artista e espectador-participante por meio
das interfaces interativas e imersivas, o corpo está diretamente implicado na obra,
contudo, deve, assim como um performer, conhecer seus códigos. Desse modo,
se o participante não seguir as instruções de atuação e manipulação, corre o risco
de não experimentar a totalidade da proposta artística. Há uma responsabilidade a
assumir diante da obra, no que se refere ao processo de ressignificação, pois que,
ao ser ativada com o espectador e se apresentar cada vez como uma modulação
efêmera, a má atuação poderia não revelar a potência total da obra.
Ao possibilitar a experimentação de uma quantidade cada vez maior de
dimensões perceptivas e favorecer o aprendizado de um espaço-tempo distinto
do atual, as propostas examinadas permitem pensar em um sujeito expandido e
tornam mais complexas as relações entre presença e espacialidade. A interface que
possibilita a interação homem-máquina estabelece uma simbiose próxima de uma
experiência ciborgue, isto é, híbrido de máquina e organismo, criatura real e virtual,
o sujeito é reformulado com base nas possibilidades sinestésicas intensificadas
pela tecnologia. Além das novas modalidades perceptivas, a virtualidade de um
corpo pode provocar perturbações no sistema e levar à proliferação de códigos
errôneos e a uma idéia de multiplicação do sujeito. Já não podemos mais falar de
uma dicotomia entre o natural e o artificial, entre o homem e a máquina.
Apesar da renúncia da especificidade disciplinar, há, todavia, algumas
limitações na relação da tecnologia com a cultura, tratadas, ainda hoje, como
duas categorias diferenciadas. A perspectiva cultural da ciência e tecnologia
é constantemente esquecida, embora tenham hoje um imenso poder de inferir
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na percepção do indivíduo com a realidade circundante, além de transformar

Juliana Coelho Gontijo, A tecnologia aplicada ao corpo.


os processos de individuação ao interferir no que entendemos como natureza
humana. Por esse motivo, devemos enfocar o estabelecimento de uma inter-
relação mais profunda entre humanos, arte e tecnologia, que implique um
envolvimento mais crítico, criativo e inventivo.

1
A experiência estética, segundo Immanuel Kant define na A crítica do Juízo – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1993 –, deveria ser somente contemplativo, não deveria ir além do objeto mesmo,
permanecendo na sua própria aparência. Deve permanecer desinteressado, com finalidade em si
própria.
2
[tradução nossa]: “No se trata de una “desaparición” del cuerpo/sujeto, tragado por los medios
electrónicos y telemáticos, sino más bien del eclipse de determinados conceptos históricos de
cuerpo y de sujeto, deudores de la visión espiritualista o idealista que todavía mira, aunque desde
lejos, al horizonte cartesiano. Frente a estos conceptos que abogan por la idea de cuerpo como un
recipiente que alberga la esencia del ser, el sujeto, se van consolidando nuevos postulados, como
hemos constatado anteriormente, según los cuales, aunque el entorno, el cuerpo y el sujeto sean, en
función de su representación en el cerebro, claramente distintos, el mundo cognitivo es un mundo
encerrado en sí mismo.”
3
Martin Heidegger, na obra Ser e tempo, desenvolveu o conceito de ser-aí (Dasein) relacionado com a
condição de existência do humano na manifestação de sua atualidade, ou seja, a existência humana
seria o lugar (Da) onde o ser (Sein) se manifesta.

4
[informação verbal]: “Em e-mail enviado à autora em 14 de setembro de 2010”.

Referências
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Artigo recebido em setembro de 2012. Aprovado em outubro de 2013.


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Juliana Coelho Gontijo, A tecnologia aplicada ao corpo.

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