Sei sulla pagina 1di 153
André Valente de Barros Barreto Em busca de Eros: a “democracia natural do trabalho” ea relacao entre poder e afetividade no pensamento de Wilhelm Reich Dissertacao de mestrado apresentada a0 Departamento de Ciéncia Politica do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientacéo da Profa. Dra. Amnéris Angela Maroni. Este exemplar corresponde 4 redacio final da dissertagéo defendida e aprovada pela Comissao Julgadora em —~E/ & / 42. Banca: Prof.(a) Dr.(a) Amnéris A Prof.(a) Dr.(a) Oswaldo Gi: Prof.(a) Dr.{a) Glauco Arbi agosto / 1997 SRLIOTECA CENTRAL, cri-09 10003 1-2 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA. BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP B275¢€ Barreto, André Valente de Barros Em busca de Eros: a “demoeracia natural do trabalho” e @ relagdo entre poder e afetividade no pensamento de Wilhelm Reich / André Valente de Barros Barreto . - - Campinas, SP: [sn], 1997, Orientador: Amnéris Angela Maroni. Dissertacio (mestrado) - Universidade Estadual de Cam- pinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas, 1, Reich, Wilhelm, 1897- 1987. 2. Cigncia politica. 3. Psicandlise 4, Orgonomia. §. Filosofia, 1. Maroni, Amnéris Angela, II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humans. IIL-Titulo, Agradecimentos ee Uma dissertagdo de mestrado ¢ o resultado de uma produgao coletiva. Foram muitos os que, de forma mais ou menos direia, contribuisam para sua realizagto. Creio ser impossivel fazer justiga a todos. Gostaria, primeiramente, de‘agradecer 4 minha orieniadora, Profa, Dra, Amnéris Angela ‘Maroni, por ter me incentivado ao tema e acteditado no men trabalho. Sou muito grato aos profs. Drs. Oswaldo Giacdia Je. (Unieamp) ¢ Paulo Albertini (USP) pelas sugestdes, eriticas ¢ indicagées. ‘Meu obrigado a Eduardo Barreto, sempre disponivel para as questoes de informatica. A silvia Passos, agradego pela revisto ¢ sugestdes (além do café com bolachas). A José Angelo Gaiarsa, meu mestre, por tudo que me ensinou sobre Reich, na pritica. Aos amigos, pelo incansivel incentivo e pela enorme paciéncia nas minhas crises de ‘mestrando. Por iltimo, ¢ no menos importante, quero agradecer a todos que, com sets impostos, financiaram esta dissertagao, E a0 CNPq que foi o intermedidrio deste financiamento. A Myriam Valente Barreto indice Introducdo. Capitulo I - O principio funcional. A ciéncia revolucionatia de Freud. A teoria da genitalidade e a importancia do impulso orgastico... Seminério de Técnica Psicanalitica: bergo da andlise do carte © desenvolvimento da vegetoterapia. sn Capitulo Il - A questao da cultura. A heranga freudiana: o complexo de Edipo e a pulsio de morte. Cultura e sublimagao. Em busca da historia primitiva do Homem: psicandlise e marxismo.. ‘Masoquismo como impulso secundirio: © combate a pulsto de morte. Uma nova natureza humana... Capitulo III - Reich tributirio de Rousseati.. Wilhelm Reich e o romantismo revolucionari A teodicéia de Rousseau.. O Homem fragmentado. Aversao reichiana do mal: 0 assassinato de Cristo. Reich e a revisto da origem do mal. Em busca de uma nova subjetividade.. Reich ea critica ao marxismo... Subjetividade no campo social: a incapacidade emocional das massas.. A democracia do trabalho de Reich. BiLiogtAafia esse “86 quando o homem reconhecer que ele é fundamentalmente um animal, ele sera capaz de criar, uma verdadeira cultura.” W. REICH Introducio OC odecorrer de minha graduacdo em Ciéucias Sociais, chamou-me a atencao 0 fato N das varias teorias sociolégicas ¢ politicas privilegiarem a faculdade racional dos Homens, em detrimento de sua constituicio afctiva. O Homem era pensado a partir de suas caracteristicas cognitivas, sendo que seus afetos eram desconsiderados, como se nao merecessem atengio, ou eram posios de lado, em virtude de sas propriedades perturbadoras. As grandes utopias, por exermplo, tentavam estabelecer sociedades calculadas, construidas a partir de sees iumanos absolutamente previsiveis e exatos, cujas tarefas, preestabelecidas em beneficio de uma racionalidade geral, asemclhavant-se as de uma peca numa gigantesca maquina, sempre sob 0 absoluto controle de seus idealizadores. As teorias pareciam secas ¢ sem vida, repletas de ideais distantes, em busca de éxtases e prazeres regulamentados. Concentrando meus estudos na area de Ciéncia Politica, também nela, 0 poder, sex objeto de investigacto, era enfocado por um prisma légico ¢ a racionalidade parecia esgotar toda a dimensio do Homem politico, como se nenhuma outra constitiigéo humana importasse. Tudo muito caleulado, a ponto de no nos lembrarios mais, por exemplo, da Fortuna que, segundo Maquiavel, arbitra metade de nossas agdes, deixando somente a outra metade a nosso governo’. ‘Mas a Fortuna ~ dirdo os politicdlogos - est comprometida com 0 mito. Maquiavel representa a transicdo para a modernidade e, portanto, hoje, estamos livre desse mal. ) MAQUIAVEL NO principe. Os pensadores. 4 ed. Trad, ivio Xaver. Sio Panto, Nova Cultural, 1987, cap. XXV, pp. 103-5. Introducao 6 E verdade também que as utopias estdo fora de moda ¢ a rario, outrota elevada a condigdo de redentora da humanidade, perden muito do seu folego. Nao obstante, permantcce 0 grande abismo entre as teorias e a vida real, entre este Homem da ciéncia politica e o Homem comum que exerce a politica, que esti inserido nas relagdes de poder. As teorias pareciam eficazes para analisar ¢ explicar fatos e fendmenos sociais, porém, pouco colaboravam para transformé-los. A vida real das pessoas néo respondia 4 precisio matemdtica da teoria organizada com tal exigéncia logica. Além do mais, onde estavam as paixdes? Nao havia espaco para elas, para os momentos de delirio criativo ¢ inmprovisagao, tampouco para a loucura, 0 amor € o erotismo - talvex o que de melhor tenhamos. As paixdes, quando presentes, apareciam como empecilho 4 mais nobre grandeza dos Homens, sua racionalidade; como se provocassem forte reccio, talvez: pela nocdo de imprevisibilidade ou incerteza, algo que as tornasse um misto de perigosas e pouco sérias, quase infantis numa acepgao pejorativa, Afinal, a politica é, desde os gregos, o exercicio da racionalidade, pois no mundo antigo as aixées eram vistas como uma perturbatio animi, uma interferéncia mais ou menos contigente, que podia e devia ser submetida ao controle das faculdades superiores, tal como podemos aprender numa clissioa passagem do Fedro, de Platao, Nela, Sécrates compara a alma humana a tum coche, sendo cocheiro associado a razao em sua ardua tarefa de conduzir dois cavalos, um bbranco, outro negro, um belo, outro feio, este iiltimo simbolizando as paixées ou desejos inferiores, os quais por vezes se mostram incontroliveis?. Podemos ver nesta imagem ita espécie de paradigma da alma, uma matriz que desde o pensamento grego norteia as varias abordagens acerea da relagio entre razdo © paixto na cultura ocidental, muito emmbora o peso destes elementos sofra diferentes énfases nas diversas escolas ¢ nos diversos pensadores. Na perspectiva politica dos autores herdeiros desta tradigao, as paixdes humattas - ou afetos - sto tidas como a antitese da rario, sendo a elas conferida, portanto, a condigao, de obsticulos da politica ¢ da sociabilidade. © espaco politico é, por exceléncia, o espago racional, no qual os Homens devem agir segundo principios sélidos, capazes de conferir-lhes a confiabilidade ¢ previsibilidade necessarias para 0 convivio com os demiais, Ora, um Homem movido pela instabilidade dos sentimentos ndo pode garantir nada a ninguém, na medida em * FLATAO. Fedeo. rad. José Ribeiro Ferreira. Lisboa, Verbo, 1978, pp. 279-380. Introducio 7 ue oscila segundo os caprichos de seus afetos. A politica sé pode ser feita se cada um e todos forem confidveis, o que significa dizer, previsiveis em seus atos. Se ndo ha garantia interna para isto, faz-se necessdria uma garantia cxterna, tal como pensou Hobbes, para quem o Leviaté precisa de uma espada, vale dizer, da violencia, exatamente para conter a forga das paixdes na sua cterna sublevagdo da razto®. Se a razio ¢ constitutiva da sociabilidade, as paixdes, por se encontrarem em oposicdo Aquela, s4o confinadas a condicio de anti-sociais, tornam-se caracleristica do “nto social”, da natureza. Em outtos termos, a dicotomia entre razdio e paixio traz consigo um segundo antagonismo a ela associado: a oposigao entre natureza e cultura. As paixdes humanas, enquanto representantes do obscuro lado animal dos Homens, sua constituigao mais baixa e vil, acabaram sendo associadas aquilo que deve ser domado para que a civilizagao possa emergir etn todo seu esplendor. Criou-se uma dualidade entre afctos de um Indo, como caracteristica da condigao animal do Homem e, portanto, da natureza, ¢ razéio de outro Jado, como realizagdo da sociedade © do Homem civilizado. A constituigao de um corpo social racional ficou sujeita & capacidade de transgredirmos nossa propria natureza. O prego da cultua passout a ser um Homer racionalist, ‘uyjas paixdes so reprimidas, capaz por isso de dominar a natureza interna, bem como a natureza externa, Na idade moderna, inaugura-se na filosofia uma nova fase acerca da reflexdo sobre os condicionamenttos afetivos. A nocdo de controle sobre as paixdes ainda se mantém, em fumgao da necessidade do estabelecimento da propria ciéncia. Porém, abre-se campo a investigagdo da influencia dos afetos na produgao do conhecimento, independentemente de sua presenca perturbadora. Passa-se a estudar o funcionamento das paixdes dentro do processo cognitivo ¢ 0 conhecimento aparece como um produto do desejo; melhor dizencio, o desejo como uma espécie de vetor na producdo do conhecimento. Esta nova perspectiva no altera, no enttanto, 0 estatuto das paixdes', as quais somente ganhariam positividade no Tuminismo, ou no pré-romantismo * HOBBIS, T. Leviatl. Os penstdores Trad Joo Monteirs ¢ Maria Niza da Silva, So Paulo, Nova Cultural, 1997, segunda parte, cap. XVI, mp. 141-4, “CE. ROUANEI; 8. P. A razdo cativa. 3 ed, S8o Paulo, Brasitiense, 1990. Dia ele: “Podemos distinguir, em todos esses pensadores [dos séeulos XVI XVII, uma unidade evidente, Em quase odes, o reconhecimento do papel constitutive das paixdes no processo cognitivo foi acompanhado por uma descontianca residual, herdada de Introdugo & A perspectiva Iluminista de investigagao da influéncia das paixdes humanas na produgao do conhecimento, traz consigo o reconhecimento do papel dos fatores sociais neste processo, 0 que significa dizer que as condigdes responsaveis por um funcionamento indesejivel dos ‘mecanismos afetivos eram passiveis de ser transformadas. O problema consistiria, portanto, em oferecer aos Homens um meio social que lhes permitisse fazer 0 melhor uso possivel das Paixdes*. Rousseau, nés sabemos, com a critica da “degeneragao das paixdes” pela sociedade, bem como sua aposta numa posterior “regeneragao”, inaugura essa ntova tendéncia, Foi a partir deste cendrio que comecei a me interessar pela obra do psiquiatra austro- hiingaro Wilhelm Reich. Percorrendo areas to distintas como as ciéncias naturais ¢ biologia, medicina, psiquiatria € psicanilise, sociologia, filosofia e biofisica, Reich elabora uma critica ao modelo de pensamento caleado na repressio das paixdes lhumanas em favor de uma racionalidade absoluta, que se constituiria no elemento essencial de sustentagao do corpo social. No campo cientifico, é no mecanicismo - sistema de pensamento que confere & natureza as mesinas propriedades e leis da maquina, verdadeiro paradigma da ciéncia ¢ filosofia a partir do século XVII - que Reich identifica uma determinada forma de pensamento, cujos fundamentos remontam a um ricionalismo avesso as paixées. Faz do mecanicismo um de seus alvos centrais, nna tentativa de superagio do modelo vigente em favor de um novo paradigma biolégico, hase ara sua proposta de organizacio social, elaborada a partir de um Homem ceriamente racional, porém, portador de uma racionalidade construida a partir dos afetos e em concordncia com cles®, Reich denominou essa nova organizacto social ¢ politica de “democracia natural do trabalho”, cujo conceito central é 0 de auto-regulagio. periodes anteriores, quanto a legitimidade das paises, tanto do ponto de vista ético quanto propriamente cognitive. As paixdes detvaram de ser vistas como simples cbstéculos, e seu funcionamento real passou a ser Jnvestisado, sea que dessa nova perspectiva resultassc, no entanto, uma inversio da hierarquia tradicional, uc stribui A intligéncia um papel hegemdnico ou wma fungdo reguladora.” (1990:28-9) * Cf, ROUANET, 8. P. op. cit. pp. 15-34. ° CI. REICH, W. Bsicologia de masses do fascisme [1934]. 2 ed, Trad. Maria da Graga Macedo. $80 Paulo, Martins Fontes, 1988, pp. 911-24. Os livos de Reich, quando objetos de citacHo, serdoindicados pelas datas de pubicacao original ¢ da edicao aqui utilizada, Nesse caso: (1934/88). Este procedimento se aplicars também as obras de Introdugio 9 Seu ponto de partida é uma releitura da natureza, & qual confeve caractetisticas que, na perspectiva racionalista, sio exclusivas da cultura - como, por exemplo, a razio ~ e cujo estatuto ¢, a0 estilo do pensamento romantico, invertido em relagao ao modelo racionalista, A natureza nio € mais algo perigoso ou cadtico a ser dominado, transformado ou destnuido, mas algo a ser continuado, preservado ou favorecido. £ esta a fungdo da cultura para Reich, continuar, no plano da sociedade, as ieis positivas que imperam na natureza para que o Homem, a pattit da reconciliagdo com seus afetos, volte a integrar-se a ela ¢ ao cosmos. Cultura e natureza néo slo Por si categorias opostas no pensamento reichiano. Nao ha mais oposicdo inata entre o Homem natural e © Homem social, paixao € razio, embora haja a possibilidade de que isto venha a ovorrer. Estas categorias somente se opdem quando e sempre que a cultura se fundamentar em Principios, normas e valores que visem reprimir ¢ dominar a natureza humana, o que, para Reich, se traduz em frustragao da satisfacdo pulsional, em especial, da pulsdo sexual, o que, segundo ele, somente ocorre nas sociedades humanas de tipo patriarcal-antoritéria, ¢ em nenhuma ontra organizacio dos seres vivos’. A conseqiténcia, segundo Reich, ¢ o que se vé atualmente: destrutividade, crueldade, irracionalidade, dominacao, exploragao © neurose. Por transgredir a natureza, os Homens se véem diante da dor e do sofzimento, vale dizer, do “mal”. No campo psicanalifico, recolocando em panta o estatuto das paixdes humanas no eazpo da cultura, Reich apresenta sua proposta de reconciliacao entre natureza e cultura, afeto e rato, através da critica a teoria da cultura de Freud, questionando a universalidade do complexo de Edipo ¢ procurando diferenciar as pulsdes humanas - em nada anti-sociais ¢ egoistas ~ dos impulsos secundézios resultantes da repressdo por uma estrutura social autoritétia ¢ exploradora. Assim, enquanto Freud recorria, a partir de 1920, a uma pulsto de motte para explicar a origem do softimento humano, isto é, remetia a questo para uma relagdo intra- Psiquica (exclusivamente pulsional), Reich procura mostrar que a neurose continuava sendo, como havia proposto Freud no inicio, uma relagao interna-externa, um conflito entre desejo de satistacao € medo de punigdo imposio por uma moralidade repressiva, a servigo de uma sociedade dominadora, "Cf REICH, W. A inmupeio da moral sexual repressive [1932]. Trad, Silvia Montarroyos J. Siva Dias. Sio Paulo, ‘Martins Fontes, s/4, Introducto 10 Aliando a sua “matriz romantica” um temporiio viés marxista, Reich responde A questi dda existencia do sofrimento humuno, deslocando sua génese para o campo da cultura, uma cultura historicu enjo movimento se faz. em fungio do interesse de classe, Nao sio as pulsdes que devem ser sublimadas, como queria Freud, mas a cultura é que deve mudar, no sentido de slender mais adequadamente as pulses hhumanas, jf que, para Reich, é possivel uma equacao mais saudavel entre ambas. Este enfoque reforga a idéia de que a neurose 6 um problema social - fato que a psicandlise ndo reconbecia - 0 que implica na necessidade da criagéo de uma outra metodologia de trabalho analitico que atenda a0 problema da sade mental das massas, cxja raizes remetem para uma estrutura social repressiva. Em outras palavias, & necessério condicdes adequadas para um exercicio amoroso-sexual satisfatorio que atenda as necessidade bio- Psicolégicas das massas. Os universos interno e externo estavam corrclacionados, de modo que 0 empenho pela melhoria da satide psiquica das massas sé poderia dar resultados se também as Condicdes sécio-coondmicas fossem alteradas, o que significa dizer que a psicandlise precisava assumir sua responsabilidade politica para com a sociedade, jé que suas descobertas revelavam a necessidade de profundas transformagées sociais. Reich quer com isso mostrar que fatores Psicolégicos, econmico-sexuais ¢ sociolégicos sto insepariveis, © que implica uma profunda transformagao, tanto em termos econdmicos quanto morais, da Sociedade; na concepgio marxista, tanto estruturais quanto superestruturais, . A grande inquictagdo filoséfica que emerge da critica de Reich @ teoria da cultura de Freud diz respeito, portanto, & origem do mal ¢ da infelicidade humana, Afinal, como teriam os Homens chegado a condigao de destrutividade e softimento em que se encontram? Como, de seres livres, tornaram-se prisioneiros? Fartindo de uma concepedo de natureza positiva, Reich nao pode, evidentemente, como queriam os racionalistas, situar nela a origem do mal. Se o mal nao reside na natureza, resia a cultura, 0 campo dos “Homens em relagdo”. § por esse motivo que o Homem nasce livre, mas como escravo passa sua vida, como dix, Rousseau em Do contrato social *, Ora, se o Homem nasce livre ¢ torna-se eseravo é porque algo acontece no ambito do sovial que 0 leva a condigéo de escravo. F devido a uma determinada organizagio da vida social dos Homens que o mal se * ROUSSEAU, J.J. Do contrato social. Os pensadores 4 ed, ‘Trad, Lourdes Santos Machado, S30 Paulo, Nova Cultural, 1987, Introducao 11 engendra, vale dizer, a uma organizacio que asseuta seu fundamento na condenacio das paixdes hrumanas, por meio da repressio das pulsdes erdticas. Reich tetoma, assim, uma das imagens mais classicas da filosofia politica: a da pristo e do livramento. Tal como na alegoria da caverna de Platéo, em que o Homem encontra-se aprisionado no mundo sensivel e conhece somente as sombras projetadas nas paredes da caverna € 08 ecos que tela soam®, na alegoria reichiana, o Homem encouragado esti to familiarizado a vida aprisionada que é incapaz de re-conhecer a vida plena, a vida liberta. A prisdo reichiana fem a ver com uma certa gestio encrgética, imposta pela cultura e vivida no cotidiano, Os Prisioneiros desta caverna libertam-se quando aprendem a responder aos fluxos naturais de suas pulsdes e gerir suas energias de uma outra forma, Esta nova gestio energética - que perpassa no somente as mentes mas os corpos ~ possibilita, além de um novo Homem ¢ uma nova soviabilidade, uma nova relagio com 0 cosmos: 0 prisioncizo liberto ¢ uma espécie de ser cesmico, capaz de fazer jorrar a energia e, curiosamente, quanto mais se torna doador, mais a energia do cosmos 0 atravessa. A gencrosidade e a doaco de energia ao meio social faz do Homem livre um ser-de-passagem, um canal de cnergia cdsmica. E assim que Reich descreve Jesus, em O assassinato de Cristo¥. tle & vida e vida & pulsagto oésmica de energia, Aproximando-se de uma cerla nogio religiosa, Reich pie no centro desia experiéncia vivide a sensagdo de unidade com o universo, fruto da troca energética entre 9 Homem e o cosmos. Ele discute ainda acerca das eondigdes © possibilidades do Homem novamente se libertar da priséo emocional-energética em que se encontra, produto de suas relagdes sociais e politicas. ‘Ao resgatar as paixdes humanas no campo social, em oposigdo ao modelo racionalista predominante, zeabilitando a natureza, ¢ propondo um Homem social ¢ politico possuidor de afetos ~ que se constréi a partir deles - bem como uma cultura que nao se opottha a natureza, ‘mas que tenha nela sua matriz. ¢ forga modeladora, Reich, mais que proposigdes edricas acerca da sociedade almejaca, tece a possibilidade de uma nova prética politica a partir da subjetividade hhumana, deslocando a questo para o ambito da culttia. & ai, na subjetividade forjada no paleo das relagdes sociais ordinirias (negligenciado por determinadas teorias sociolégicas ¢ ° PLATA. B17 6 ags, JO REICH, W. O assassinato de Cristo [1951). 3 ed, Trad, Carlos RI, Viana. Sto Palo, Martins Fontes, 1987. ica. 6 cd. Trad. Maria Helena Percire, Lishoa, Fund, Calouste Gulbenkian, 1990, vo Vil, pp. Inteodugdo 12 interpretade de forma individualista por outras), que reside a priséo dos fHiomens, bem como a possibilidade de sua libertagao. Ele trabalha, assim, com a “sociedade real”, composta por pessoas due Possuem corpos, sentimentos € sensagdes, que tem medos, angiistias, desejos e todas as Paixdes humanas. Com isso, permite um deslocamento da reflexo abstrata do poder para 0 Ambito das relagoes interpessoais, para a politica do cotidiano - a meu ver, inaugurando esta tendéncia, Reich procura mostrar a importancia do universo micropolitico dos afetos na sustentagto e reprodugdo das grandes estruturas socinis. Isto significa dizer que qualquer transformacdo social deve necessariamente passar pelo universo subjetivo dos individuos em relacto, pela interface da “sociedade introjetada”. A critica da cultura como base para a critica da politica. A discussio que segue tenta, assim, dar conta da alegoria reichiana da pristo e do hvramento. Vale dizer que nos capitulos seguintes discutixernos como o Homem que nasce livre forna-se prisionciro, um ser humano encouragado. Primeito, com uma breve apresentagio de Reich, 2 partir de um de seus conceitos-chave: a compreensio do Homem, niio mais cindide pelo dualismo cartesiano, mas regido pelo principio funcional entre psique e soma, Posteriormente, com a critica & teoria cultural de Freud © sua oposigao entre natureza (pulsio) © cultura, fentando mostrar que € por meio de uma determinada trajetéria cultural, cuja principal caracteristica é a repressio pulsional, que podemos explicar, em Reich, a passagem da liberdade Para o aprisionamento, Neste ponto, aproximaremos Reich do filésofo sulgo Jean-Jacques Rousseau, uraa de suas matrizes hisicas, Otimista, Reich se lanca na busca de uma saida da Priso, da conquista da liberdade, da perspectiva de chegat a uma nova relagdo do Homem com © Homem e do Homem com o cosmos. £ onde encerraremos nosso percurso, discutindo a democes trabalho . 13 Capitulo I o principio funcional trajetdria de Wilhelm Reich & bastante original. Sua obra, nao obstante toda a A polémica suscitada, representa uma grande inovagao nos campos da psiquiatria ¢ Psicoterapia. Partindo da psicandlise de Freud, mais especificamente da teoria da libido, € tmantendo-se fiel & perspectiva orginica, Reich desemboca, no fim da vida, numa energia cosmica geral, « orgone. He permanece ligado a sua raiz mais forte, a biologia, da qual sua Psicologia munca se separa. Psiquismo sem base orgiinica nao faz sentido para Reich, como nto faz sentido separar psicologia © medicina, psique e corpo. E por esse motivo que se opée enfaticamente & defesa da andlise leiga' proposta por Freud e, antecipando uma critica bastante tual, diz que, com isso, teriamos “médticos que nada sabem da psique e psicanalistas que so Jgnorantes acerca do corpo” (In HIGGINS & RAPHAEL,1979:222). © que busea Reich, é¢ uma ratica clinioa que contemple corpo e alma, Seu trajeto, porém, ndo é claro desde o inicio e tampouco linear. Hi momentos em que conta apenas com “indicios” ou “intuigées”. A petsistencia ¢, no entanto, uma de suas mais fortes catacteristicas, e faz dele um cientista ao “velho esto”: metédico ¢ empirista, obcecado pela experimentagio. Por vezes, esse vigor assume ares cientificistas, como quando considera a ciéncia 0 iinico ¢ verdadeiro caminho para 0 | Freocupado em emancipar a psicandlise da medicing, Freud passou a defender, nos anos 20, idéia de que néo ‘édlicos pudessem exercer a pritica analtica, como, de fato, veio a ocorrey. Esta proposta gerom acirradas discussbes¢ ficou conhecida como a questio da andliseleiga. Reich, como mencionamos, cra contra, Acerca dos angumentos reichianos sobre este tema, cf. HIGGINS & RAPHAIL. Reich fala de Freud. Trad. Rernardo de $a Nogueira. Lisboa, Moracs, 1979, pp. 220-8. Cf. tarabém adiante neste enpitulo, © principio funcional 14 conhecimento. Sua personalidade & sempre forte c marcante e, ndo raro, torna-se presidente ou lider dos grupos a que pertence. £ assim, por exemplo, a sua passagem pela psicandlise, a qual acrescenta inovagdes de fundamental importancia técnico-tedticas. Podemos, sem risco de exagero, dizer que sem Reich a psicanilise seria outra. Ciente de sua trajetéria, Reich é capaz de trilhar caminhos préprios, o que the custa, além de intrigas ¢ difamagoes, seu desligamento da Associngio Internacional de Psioandlise (AIP) Nada parece poder impedi-lo de avancar nas pesquisas do que considera realmente importante, Este anseio pela verdade leva-o, desde seu contaio inicial com a obra de Freud, a perseguir’ uma idéia até o fim de sua vida: a energia libidinal, A firme convicgéo de que no centro de toda neurose existe uma disfungao genital faz de Reich © inimigo exemplar de uma sociedade que reverenciava mais o sofrimento que o prazer. Para ele nada pode ser mais potente que a verdade dos fatos c, frente a ela, as mentes mais obscuras se fazem iluminadas. A ingenuidade é mais uma de suas caracteristicas. Expulso, preso, banido, difamado, proibido, Reich acaba morto numa penitenciaria federal notte-americana. Triste fim, marcado pela suspeita de que tenha sido usado como cobaia em pesquisas com drogas pelo governo dos EUA”. Seu crime? Ter atribuido tamanha importancia a sexualidade e ao prazer. Nem seu mesire inspirador, Freud, havia ousado tanto. A animosidade parece nao ter diminuido apés quase 40 anos de sua morte. Suas investigagdes descobertas causaram forte impacto nao apenas em termos tedricos ¢ clinicos, mas também sécio-politicos. Por isso, sua trajetoria é marcada por muitas dificuldades e conflitos. Sua postuta, porem, sempre foi a de ir em frente, munca recuar. Ela marca de seu espicito irvequieto, A ciéncia revolucionaria de Freud Ags 21 anos de idade ¢ recém saido do exéreito, Reich entra para a Faculdade de Medicina de Viena, apés uma rapida passagem pelo curso de Dirvito, que logo abandona devido a sua grande afinidade com as ciéncias naturais, A paixio pela biologia remonta, assizt, aos primeiros impulsos de curiosidade do jovem Reich. No ano seguinte, 1919, durante uma conferéncia sobre anatomiz, toma contato com um folheto que sugetia aos estudantes de medicina a formacdo de um semindzio de sexologia, assunto praticamente negligenciado pelo * Cf. DADOUN, R Cem flores para Reich. Trad. Rubens Ferreira Frias. Sdo Paulo, Fditora Moraes, 1991, pp. 26-30. © principio funcional 15 curriculo oficial. Reich comeca a participar desse seminario mais como ouvinte que como debatedor. De inicio, as discussdes Ihe parecem estranhas, com abordagens pouco naturais acerca do tema, vindo posteriormente a perceber © motivo de sua estranheza: o fato da sexualidade sev tratada como algo conturbado ¢ obscuro*. A abordagem predominante no semindrio era a psicanalitica e é nele que Reich toma contato com a polémica obra freudiana. Antetiormente a psicandlise, prevalecia na psiquiatria a visto de que as doencas menttais tinham origem exclusivamente orgénica e cram transmitidas hereditariamente de pais para filhos. Isto significava que nada, ou muito pouco, podia ser feito pelas pessoas consideradas insanas, jA que a insanidade era uma doenga cerebral’. Nao se tratava a doenca mental como um problema psiquico e pouco se sabia a respeito®. Freud iniciou, assim, uma enorme revolugio junto & investigacdo dos distirbios mentais, 4 medida que estabeleceu de modo mais consistente e, por assim dizer, cientifico, a nogdo de “sistema psiquico” com leis de funcionamento ¢ estrutura proprias, Embora nao tenba descoberto 0 inconsciente - a nogao ja existia no século XVIII ~ Freud foi o primeiro a dar-the preciso enquanto fundamento psicolégico. No campo da sexologia também houve notdvel avanco, prineipalmente com sua polémica teoria da sexualidade infantil, que contestava a idéia, entio vigente, de que a sexualidade somente surgia na puberdade ¢ era sinénimo de procriagto. Foi também Freud o primeiro a insistir que no centro de toda neurose havia uma perturbagdo sexual, Suas descobertas representavam um marco no campo das psicoletapias, um grande passo na diregio da compreensio ¢ tratamento dos distirbios mentais. Porém, seu impacto nao se dew somente ai. Como o préprio Freud disse, a psicandlise, ao afirmar a existéncia de uma realidade Psiquica inconsciente muito mais ampla e determinante que a consciéucia racional dos Homens, den 0 tercciro grande golpe historico na megalomania da humanidade, depois de Copémnico, com a teoria heliocéntrica e de Darwin, com a teoria da evolugio’. “Cl. RECCH, W. A funcio do orgasmo [1942]. 14 ed. Trad, Maria Novak. Sio Paulo, Brusiliense, 1988, p, 28, ‘CE GAY, P. reucl: uma vide para o nosso tempo, Trad. Denise Bottman, Sto Paulo, Ci das Letras, 1989, pp. 123- 4, "Cf. REICH, W. A funedo do orgasmo. op. cit. p. 33. CF. GAY, P. op. cit. p. 131, 7 CE. GAY, P. op. cit. p. 410. © principio funcional 16 T, pois, essa grande revolucao no campo da psicologia e da propria cultura que encanta Reich desde scus tempos de faculdade. Ele vé Freud como um “Colombo que desembarcou numa praia e revelou um continente” (In HIGGINS & RAPHAEL,1979:67). E lendo os autores psicanalistas que Reich acaba optando pela carreira de psiquiatria. Os artigos “Leituras introdut6rias de psicandlise” ¢ “Trés contribuicdes para a teoria da sexualidade”, ambos de Freud, lhe causam especial impacto. f justamente pela porta da sexualidade que Reich entra para o universo psicanalitico, Suas leituras, porém, desde os tempos da faculdade, transitam por areas bastante variadas © vao desde romances a livros cientificos. Além da psicandlise, Reich dedica-se a ciéncia ¢ filosofia naturais, lendo autores como Moll, Semon, Forel, Driesch, Lange, Hertwig, Kammerer, Steinach ¢, em especial, Bergson, cuja obra The causa forte impacto, permanecendo presente durante toda sua vida. Nesse periodo, chega a ser chamado de “bergsoniano maluco” por ses colegas de faculdade, tamanho o gosto pelo fildsofo francés*. Ja como participante do seminario de sexologia, Reich se envolve rapidamentc com as discussées e, em especial, com a idéia de libido de Freud - uma energia respousavel pela Sexualidade humana - bem como com a questo das pulsdes", Seu primeiro artigo, apresentado Junto ao seminario, versava sobre 0 tema ¢ tinha 0 titulo de “Os conceitos de pulsto e libido de Forel a Jung”. Reich, neste trabalho, procuta estabelecer a conexao entre Freud ¢ as teorias do sexo conhecidas, chegando ja a sugerir a investigagdo da libido enquanto energia bioligica concreta, ‘A minhs atual eoria da identidade ¢ da unidade do funcionamento pscofisico tove a sua origem no pensamento Dpergsoniano,¢ se ornou em uma nova teoria da relagdo frncional entre 0 corpo e a mente” (REICH,1942/88:30) ° Ch REICH, W. A functo do orgasm. op. cit. p. 30. " Ecarcamos dese agora aj lain confusto ncrea dos cone de rust instinto. A ego Standard de Freud em pertugués bem como a espanhola aqui uilizada - optou por traduzir 0 termo Trieb por instinto, mato embora 8 traducio mais correta seja pulsto ou impulso. Freud utiliza o tcrmo Instinkt pouquissimas vezes em toda sua obra ¢ seu sentido ¢ claramentedistnto do de Trich, © meamo ocorre com Reich, cujas obras forum, em sua quase totalicnde,rraduzidas com « mesma imprecisto (a excecdo ¢a recent eigto de Andlise do cater, Martins Fontes, 1995, cuja revisto fi feita por Ricardo Amaral do Kege). Assia, optamos pelo termo pulséo como tradugao pata Trich em ambos autores. Cf, GARCIA-ROZA, Lutz Alfredo, Introducio a melapsicolosiafreudiana, wo. 3. Rio de Janeiro, Zahar, 1998, pp. 79-163; LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulario da psicanalise, 2 ed. Trad. Pedro ‘Tamen. S40 Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 394-420. Sobre a origem e evoluglio do conceito de instnto até sua cnivada pera a seminti feudiana, cf, ASSOUN, Paul-Laurent. Treud Nietzsche: seneTnancas¢ descrlhancas. ‘Trad, Maria Liicia Pereira, Sao Paulo, Brasiliense, 1989, nota 48, pp. 119-23. © principio fancions! 17 Ainda em 1919, torna-se presidente do enttdo chamado Seminario de Sexologia e, em busca de material para os debates, bate a porta do famoso enderego da Berggasse 19. A personalidade viva de Freud o impressiona muito", parecendo ser cle realmente um hornem extraordindtio. Seria o primeiro encontro de uma relagdo intelectual extremamente fecunda, muarcada por grandes descobertas e fortes desentendimentos. A partir dai, Reich dedica 14 anos i psicanilise c se aplica com “devocao irrestrita”, como ele mesmo diz, a investigar e descobrix, através da experimentagio, as bases biologicas da teoria da libido, que Ihe parece ser'o ponto fundamental da teoria psicanalitica. Mais que a idéia de inconsciente, para Reich, a principal descoberta e © niicleo da teotia de Freud foi o principio do funcionamento da energia - a teoria da libido, Foi isso que, segundo ele, diferenciou Freud dos outros psicdlogos. A propria teoria do inconsciente seria uma decorréncia da teoria da libido". Em 13 de outubro de 1920, Reich apresenta junto a Sociedade Psicanalitica de Viena ~ uum circulo de analistas reunidos ao redor de Freud - 0 trabalho “O conflito da libido « a ilustio de Peer Gynt”, uma anélise baseada no personagem titulo do drama esctito pelo noruegués Henrik Ibsen. Na sessao seguinte, entio com 23 anos ¢ ainda estudante de medicina, Reich & oficialmente admitido na Sociedade. Teoria da libido: em busca do quantitativo Como podemos perceber pelos titulos de seus primeiros traballios, a temtica da libido & grande objeto de investigagdo de Reich. Ele inicia seu trajeto psicanalitico dedicando-se oom afinco 4 teoria da libido de Freud, muito embora este jd fosse um tema negligenciado pelos psicanalistas. Freucl havia elaborado o conceito mais como um recurso tedrico, capaz de auxilid- Jona construgao de um sistema psiquico e, neste sentido, compreendia uma dimensto qualitativa © outra quantitativa, muito embora essa quantidade nao fosse mensunivel”®, E neste Freud que Reich alicerga suas idéias, 11 Cf. REICH, W. A funcio do orgasms. op. cit p. 39. Cf, HIGGINS & RAPHAEL. op. cit. p. 29. *9 Cf, LAPLANCHE & PONTALIS. op. cit, pp. 265-7. © principio funcional 18 Segundo Reich, Freud dizia nao ser possivel compreender por completo o que seja pulsio, jit que experimentamos apenas devivados dela, ou seja, as idéias e sentimentos sexuais. A pulsao ein si encontra-se mais no “fundo”, como diz Reich, no cerne biolégico dos Homens, e manifesta: se como um impulso emocional em busca de satisfagao. Percebemos o desejo, mas nao a propria pulsio. Diz ele: “Foi assim que interpretei Freud: é ao mesmo tempo ldgico que 2 prdpria pulsio' nao passa ser consciente, porque ela é 0 que nos regula ¢ governa. Nos somos 0 set objeto.” (1942/88:35) A pulsto $6 pode ser reconhecida através da manifestagdo de suas emogées. Assit, a libido de Freud € @ energia da pulsio sexual e nfo os desejos sexuais conscientes, como consideravam seus antecessores. Segundo Reich, em “Trés contribuicdes para a teoria da sexualidade”, Freud havia definido a libido como uma forga de energia variivel, capar de quantificar os processos de transformagéo na esfera sexual, diferenciando-a de “energia psiquica”, que possuia um carater qualitativo. Os processos sexuais seriam, assim, determinados Por um “quimicismo especial”. Em outras palavras, Freud reconhecia, embora hipoteticamente, tumna origemt fisico-somética para a libido. Pela primeira vez na historia, a psicologia se ligava & ciencia natural, ligagio esta que Reich vé com bons olhos: “A coisa mais importante que ja aconteceu na psiquiatria foi a descoberta de que a origem das neuroses era somtica, isto é que [...] a estase™® da libido era somtdtica.” (REICH In HIGGINS & RAPHAEL,1979:74) Ainda segundo Reich, Freud também havia estabelecido, em seu “Projeto para uma psicologia cientifica”, 0 principio quantitativo da “inércia neuronica”, segundo o qual a mente se encontea sob o dominio de um principio de estabilidade que garante a descarga dos estimulos desestabilizadores que a invadem de dentro ou de fora. Freud ainda defendia a idéia de que a mente tendia apenas a busca do prazer"®, lise foi no comego, Freud, 20s poucos, abandonou nfo apenas 0 elemento quantitativg do processo neurdtico, mas o proprio conceito de libido. Com ele, evidentemente, seguiu toda a psicandlise. Reich, no entanto, almeja recuperar esse trajeto: Freud havia desenvolvido o No texto 0 fradutor usou o termo instinto, que substituimos por pulsfa. CE. nota 10. **Estase é um conceito referente A quantidade de energia acumulada ¢ nio descarregada no ato sexual, ‘constituindo-se na energia mantenedora da neurose. Difere por completo de éxtase como alguns tradutores de eich chegaram a relacionar. Ver adiante neste capitulo. '6CE GAY, Pop. cit, p. 89, O principio funcional 19 quantitative enquanto conceito; Reich quer fazé-lo enquanto realidade', Note-se 0 quanto ele realmente se atém ao Freud do inicio, ao que apresenta uma base fisiolégica mais forte e cuja obra considera como a “primeiva psicandlise”, aquela que mais se aproxima de uma perspectiva cientifica, capaz, portanto, de conduzir a melhores resultados uo tratamento dos distiitbios Psiquicos. Reich também avanca tas investigagées acerca das pulsies e sua relagdo com o prazer. Segundo a nogao habitual da época, todo actimulo de tensdo somente poderia ser sentido como desprazer. Apenas a relaxagao provocaria prazer, Freud havia sugerido, porém, que 0 caso da sexualidade seria distinto, Em seus estudos, Reich descobre que tal distincdo ocorria pelo fato de haver uma aniecipagio psiquica do prazer responsével pela descarga de uma pequena quantidade de excitacio sexual, a qual, aliada a esperanca de satisfagdo maior no climax, obscurecia 0 desprazer caracteristico do momento anterior a descarga completa. Esse conhecimento foi a chave da sua posterior explicagdo funcional da atividade da pulsio sexual. A pulsio ¢ 0 prazer motor em si mesmo. O impulso sexual, neste sentido, “nao é senao a lembranca ‘motora de um prazer previamente experimentado” (REICH,1942/88:54). Alé ento, “impulso” era um conceito quantitative, enquanto “prazer” era qualitativo. Freud dizia que o impulso era determinado pela quantidade de excitagao, a libido. Reich, porém, acabava de afirmar que 0 prazer ¢ a natureza dos impulsos, uma qualidade psiquica, De acordo com os sistemas de pensamento aceitos, fatores quantitativos e qualitativos eram incompativeis, isto ¢, constitiam esferas totwlmente separadas. Sem ter consciéncia disso, Reich esboga os Priineiros passos em direcao a unificacao funcional do conceit quantitative da excitagao e do ‘conceito qualitativo do prazer. Tais questbes so reunidas por ele no ensaio “Sobre a energética das pulsses”, apresentado & Sociedade em 8 de junho de 1921, e publicado em 1923, Por nao se considera devidamente compreendido, Reich passa a dedicar-se somente a artigos clinicos, afastando-se dos ensaios tedricos. ‘Lo fator quanttativo, o principio da enengia que cu devo a Freud, ¢ é esse principio que me separa dos Potcanalistas... Iikido a que Freud se refer de modo hipotétice c que ele suger padesse ser de natureza quuimica, éume cnergis concrela, algo de muito concreto¢ fsico” (REICH In HIGGINS & RAPHAFL,1979:118), Cf também pp. 115-6. © principio funcional 20 Com as publicagdes de “Para além do principio do prazer”, em 1920, ¢ “O ego e o Id”, cm 1923, Freud afnstava-se cada vez mais de suas idéias iniciais , portanto, Reich dele. Nao somente as bases organicas ¢ a questao da libido enquanto energia sexual real exam postas de Jado mas, com a idéia de uma pulsto de morte, também a propria teoria da sexualidade perdia espago para uma “teoria do ego”. Falava-se agora em superego ¢ sentimenttos inconscientes de culpa. Alguns autores, acompanhando Freud, comecavain a separar pulses sexuais (libido) nao sexuais (as chamadas pulsdes do ego). A crescente énfase attibuidas a estas iltimas criava sum dualismo capaz de diminuir a importancia da pulsao sexual. Com relagdo a este momento de mmudancas, diz Reich, com leve toque de ironia ao final: “Era uma situacto muito confusa. Em vez de sexualidade, os analistas comecaram a falar de ‘Eros’, Terapetttas medfocres afirmavam estarem aptos a ‘por as imcios” no superego, um conceito que havia sido postulado teoricamente para ajudar a poreeber a estrutura psiquica, Operavam com ele como se se tratasse de um fato concretamente estabelecido, O Id era ‘man’; o superego sentava-se num trono com uma longa barba e era ‘ustero’, e 0 pobre do ego esforgava-se por ser um ‘medianeiro? para os dois. A descri¢io vivida e corrente dos fatos era substituida por um método ‘mecdnico, que parecia tornar desnecessario qualquer pensamento adicional. As discussGes clinicas foram sendo cada vez mais deixadas em segundo plano, ¢ comecou a especulagio... A sextialidade tornou-se algo indistinto; o conceit de ‘ibido’ foi despido de todos os tragos de contetido sexual e transformouse em uma figura de retorica. Desapareceu a seriedade das comunicacdes psicanaliticas: foi cada vez mais substitufda por um pathos, reminiscéncia de filésofos morais. Pouco a Pouco, a teoria das neuroses foi traduzida para a linguagem da ‘psicologia do ego’ A atmosfera estaya-se tornando refinadal.” (1942/88:113) Reich temia que a psicanilise se transformasse numa pritica especulativa, afastando-se de sua heranga empitista, A psicandlise de Reich ¢ uma pritica médica. Esta era, porém, uma delicada questo. Medicina versus psicologia e a relacdo entre psiquismo e organicismo A psicanilise mascera trazendo na bagagem toda a tradicao orginica da formacao neurolégica de Freud e da psiquiatria da época. Nao por acaso Freud havia postulado uma base fisiolégiea para sua psicologia do inconsciente - sua teoria da pulsio foi o primeiro passo - ¢ finka muito clara a idéia de que as doengas mentais apresentavam uma base organica. Ao mesmo tempo, porém, em que construia a psicanilise sobre uma base fisioldgica, Freud precisava romper com a visio médica que privilegiava o organico, Foi em 1905, com “Trés ensaios sobre a teoria da sexualidads”, que ele inverten a hicrarquia aceita na relagao corpo-mente e passou a considerar os processos psiquicos superiores aos sométioes, emancipando, por assim dizer, a principio funcional 21 Psicologia da medicina'*. Seus motivos, entretanto, parecem ter sido mais politicos que cientificos. Freud queria constituir a psicandlise de forma autonoma frente & medicina, com objeto € procedimentos proprios. Temia que a nascente ciéncia acabasse aprisionada pela ‘medicina como mais una de suas cspecialidades"®, provindo dai, inclusive, sua defesa enfatica da analise leiga’®. Freud partiu, assim, para uma supervalorizacao do psiquismo - que Reich chama de “psicologizacdo do fisiolégico” - ¢ que significa empregar a teoria do inconsciente, nao por um método de “bases cientificas”, mas em termos meramente psicoldgicos. Reich nao concorda ‘com isso. Para ele, os aspectos psiquicos, por si mesos, nao podem levar a lugar algum. Seu empenho € exatamente o de reunir 08 dois aspecios e investigar a base organica da pulsio sexual que esté na origem de toda enfermidade psiquica. Traté-las somente no campo psicolégico seria uma simplificacdo absurda dos processes clinicos. & claro que Reich nao esti negando os processos psiquicos. © problema é considerar apenas os elementos qualitativos, em detrimento dos quantitativos: “Neste terapo, estabelecia-se umn distingdo nitida entre a enfermidade psiquica € a enfermidade somitica. O tratamento psicanalitico excluia-se automaticamente nos casos em que se encontravam sintomas somdticos. Do Angulo do nosso conhecimento atual, isso era, claro, fundamentaimente incorrefo, Entreianto, era correto em termos da presungao de que as enfermidades psiquicas tinham causas psiquicas. Prevaleciam conceitos errados quanto as relagdes do funcionamento Psiquico ¢ somatico.” (REICH,1942/88:56) No outro extremo, a psiquiatria oficial, de base neurolégica, nao apenas se negava a accilar a etiologia sexual das neuroses, atendo-se somente a classificagio das anomalias, como se empenhava em desviar-Ihe a atengo, Queria provar que os psicétices eram assim por uma degeneracao hereditaria em seu proprio protoplasma. Havia uma grande disputa entre “psicogénicos” e “somatogénicos”. De um lado, a psiquiatria oficial, que se dizia cientifica Jidava apenas com quantidades ¢ energias, criticava a psicaniilise por se preocupar com Aqualidades psiquicas, ualificando-a, por isso, de flosofia, Do outro, a psicandlise, que se dcbatia na tentativa de auto afirmacio enquanto ciéncia propria, 0 que a levava a supervalorizar 0 psiquico em detrimento ao somiitico. De um anguio, a explicagao organica das enfermidades CE, GAY, Pop. cit. pp. 128-7. '? Outro forte receio de Freud quanto aoy ramos da puicandlise era ode que esta se tormasse una “pritica judaica”, um dos motivos do empenho em fazer de Jung seu principal discipalo e presidente da AIP. 2A lute pela anélisc leiga deve scr trayade uma hora ou outrs, Melhor agora do quse depois, Enquanto eu estiver vivo, vou impedir que a psicanilise sje tragada pela medicina”. (FREUD In GAY,1989:446) © principio funcional 22 psiquicas; de outro, a explicagao psicanalitica, No meio esti Reich, para quem ambas visdes eram reducionistas, tentando estabelecer uma ponte entre os fatores quantitativos da medicina e os qualitativos da psicanélise, entre psique e soma. Além disso, havia questionamento acerca da possibilidade de uma psicologia cientifico-natural, questo que se colocava aos psicanalistas da época, inclusive Reich. Segundo ele, havia trés conceitos basicos sobre a relagdo entre a esfera somdtica ¢ a osfera Psiquica, Um conceito “materialista mecanicista”, para o qual toda enfermidade ou manifestago Psiquica teria uma causa fisica. Um segundo, de fundamento religioso, que propunha haver uma ‘inica causa para toda enfermidade ou manifestagio psiquica, e que todas as enfermidades Somaticas eram também de origem psiquica, Essa era a formula do “idealismo metafisico”, que corresponde a idéia de que o espirito cria a matéria, © terceiro conceito estabelecia que processos psiquicos € somaticos funcionavam paralelamente uns aos outros, causando muitua influéncia, e por isso era chamudo de “paralelismo psicofisico”. Nenhum agradava a Reich, ja que todos supunham a separacio entre psique ¢ soma, “Nao havia, diz ele, nenhum cenceito funcional-unitério da relagao corpo-mente” (REICH,1942/88:70). Reich parte, entio, em busca desta perspectiva funcional unitiria, a qual posteriormente Viria a chamar de “principio funcional entre psique e soma”. No debate psicanalitico esta questo respondia pela oposi¢ao entre neurose atual ¢ psiconcurose. Freud dizia que a neurose atual decorria de perturbagdes na vida sexual dos pacientes, nto apresentando etiologia psiquica, € necessitando apenas de uria correcio na conduta sexual dos mesmos. J a psiconeurose apresentaria contetide psiquico ¢, por isso, estaria sujeita a tratamento psicanalitico. Reich, evidentemente, se opde essa divisio, chegando a escrever um livro a respeito ¢ dedicé-lo a Freud, Reich considera que tanto as neuroses atuais quanto as psiconeuroses sao uma vinica ¢ 1mesma categoria patelgica, jd que ambas apresentam tanto um nucleo atual (estase de libido) quanto uma estrutura psiconeurbtica”, 7" Ck. REICH, W. Fsiconstologia ¢ sociologia da vida sexual [1927], Trad. M.S.P. $40 Paulo, Global, 5/4. Este é na vYerdade, 0 subtitulo da obra original de 1927, eujo titulo correto € Die Funktion des Orgasmus. 0 livro de 1942, ecitndo no Brasil como A furtcéo do orgasmo, é uma obra totalmente diferente e cujo titulo original é The discovery of de orgone - part l Também neste caso os editores oplaram pelo subtitle, motivo de confusto exttre 0s leitores. * Cl também REICH, W, A funcio do orgasmo. op. cit pp. 85 e sgs. principio funcional 23 A teoria da genitalidade ¢ a importancia do impulso orgistico A descoberta de que nao havia distinedlo entre psiconcuroses € neuroses atuais é © porto de partida para 0 conceito de poténcia orgéstica e para a tearia reichiana da genitalidade, que se desenvolve entre 1922 e 1926. Sua compreensao, porém, se da a partir de um caso clinico imiciado em janeiro de 1921, no qual Reich tem que investigar mais pormenorizadamente problemas relacionados A masturbagao - trabalho esse posteriormente publicado sob o titulo “Scie a especificidade das formas de onanistic”, So 0s passos inicisis da “economia sexual”®3 ¢ da idéia de que a neurose encontra sua forga motriz na estase de libido, isto, na energia sexual ado descarregada, sendo a questéio da poténcia orgastica um ponto central no iratamento clinico, Segundo a teoria da genitalidade, toda neurose é mantida por uma determinada auantidade de energia, quantidade essa equivalente a energia acumulada ¢ nao desearregada orgasticamente, o que Reich chama de esiase sexual. O centro de suas investigagBes no campo da economia sexual ¢ a idéia de que, na poténcia orgistica, a descarga energética & completa, ow seia, é quantitativamente igual a tens acumulada. Ja na impotoncia orgistica iso ndo ocorre, de modo que ha uma “sobra” de energia ndo descarregada, responsavel pelos distixbios vegetativos e psiqnicos: “A gravidade de todas as formas de enfermidade psiquica estd dirctamente relacionada com a gravidade da perturbacio ‘Senital, As probabilidades de cura e 0 sucesso da cura dependem diretamente da possibilidade de estabelecer a capacidade para 4 satisfacao genital plena,” (REICH,1942/88:90) Em 28 de novembro de 1923, Reich apresenta, junto a Sociedade Psicanalitica de Viena, aquele que seria, em termos histéricos, 0 trabalho que cfetivamente iniciaria a teoria do orgasino: “Sobre a genitalidade, do ponto de vista da Prognose € terapia da psicandlise”, publicado no ano seguinte. Nele, Reich afirma substancialmente apenas duas coisas: que a perturbacdo genital era o mais importante sintoma da neurose, e que o prognéstico de umm paciente dependeria de urna avaliapdo de sua genitalidade. Houve discordancia geral. Alguns Psicanalistas afirmavam conhecer pacientes que, embora neurdtioes, etain capazes de realizar 'um ato sexual completo, o que leva Reich a questionar a concepgao vigente de poténcia sexual ¢ 0 termo foi crindo por Reich em 1928 ¢ adotado em 1984 pare diferenciae sett trabalho da psicanilise Propriamente dts, muito embora « consdere um prolongamento da psicenilie de Freud. Refere-sc a investigacdo os fatoresbio-psicolégicos ¢ socioligicos relacionados & administragdo da sexualidade, Ci. DADOUN, R op. cit pp. 177-81 ¢ HIGGINS & RAPHAEL, op. cit. p. 58 ~ nota 84. © principio faneionsl 24 a aprofundar suas investigagdes na diregio da fonte da energia da neurose, isto é, buscar o cerne somitioo desta energia, Segundo a concepcio de poténcia orgastica da época - ¢ diga-se de Passagemn, para muitos ainda hoje - um homem era tanto mais potente quanto maior mumero de relagdes completas conseguisse manter no menor periodo de tempo. © mesino ocorrendo com a mulher, em relagao ao orgasmo clitérico. Apés aprofundar suas pesquisas sobre a saiide genital, Reich passa a questionar este critério meramente quantitativo. Sua conclusio é de que, embora muitos homens fossem exelivamente potentes ¢ conseguissem realizar vérios atos sexuais numa tnica noite, no experimentavam prazer, experimentavam pouco prazer ou ainda, sentiam desprazer, 0 que, segundo ele, ocorria pelo fato de nao descarregarem adequadamente stua energia sexual. O critério de poténcia nao podia ser estabelecido, no caso dos homens, pelas capacidades eretiva e sjaculatéria dos pacientes, mas sim pela capacidade de entrega ao ato sexual e em especial ao orgasmo, de modo a haver uma descarga completa da energia acunmulada. Ou seja, tanto os aspectos quantitativos quanto os qualitativos deveriam estar associados A experiéncia sexual. Assia, Reich passa a redefinir 0 conceito de poténcia orgastica como, “a capacidade de abandonar-se, livre de quaisquer inibigdes, a0 fluxo de energia biolégica; a capacidade de descarregar completamente a excitacéio sexual reprimida, por meio de involuntdrias @ agradaveis convulsGes do corpo.” (1942/88:94) Isto significa que, apds uma descarga orgistica completa, uma pessoa ndo tem energia para alimentar fantasias erdticas, capazes de inicid-la em uma nova aventura sexual. Em outras Palaveas, aqueles que realizavam varios alos sexuais seguidos cram, na verdade, impotentes sexuais, pois nao conseguiam descarregar sua energia sexual, estando, por isso, sempre excitados. © novo conceito de poténcia orgastica reafirma a idéia anterior de Reich de que nido havia neurético orgasticamente potente. Suas caracteristicas mais importantes sao a convulstio bioenergética involuntéria do organismo e a completa solugao da excitagao, , A perturbagio da genitalidade passa a set g sintoma da neurose. Nao é mais 0 problema sexual no sentido freudiano que esti em questo, mas 0 problema genital no sentido de poténcia orgastica, Reich soma uma nova dimensao a teoria psicanalitica de sexualidade e libido. Isto significa que a formula freuidiana para a terapéutica das neuroses, embora correta, é incompleta, Nao basta que o paciente traga & consciéncia sua sexualidade reprimida. £ preciso que, com isso, cle também consiga eliminar a fonte de energia que mantém 4 neurose, a estase. Ou seja, & © principio funcional 25 preciso que 0 paciente recupere sua poténcia orgéstica, pois somente assim as proliferagoes Patol6gicas sto privadas de sua energia - principio de remociio de energia. As conquistas no campo terapéutico, porém, nio eram satisfaldtias. A energia sexual cravada nos sintomas era liberada com a dissolugio destes, o que representava apenas uma leve melhora da poiéncia do paciente. Esta liberacao, via sintomas, nfo garantia por si 9 0 restabelecimento da funcao orgéstica. Em outras palavras, s6 uma parte da energia se liberava; 0 paciente, no geral, continuava bloqueado. Isso leva Reich a investigar o que ocorre com a energia sexual bloqueada, além de manifestar-se como sintoma neurético. Ele vai justamente procurd-la no nio-genital, isto é, na primeira infiincia - atividades pré-genitais e fantasias ~ como sugetia a propria teoria psicanalitica da neurose, Inicialmente, Freud acreditava que ao se iniciar uma nova fase do desenvolvimento psico- sexual a precedente seria totalmente superada. Posteriovmente, conclui que numa determinada fase perduravam ainda resquicios das anteriores. A partir de endo, estabeleceu-se a idéia de que havia um desenvolvimento da pulsiio sexual, de um estigio pré-genital para um estagio genital”. Segundo a teoria psicanalitica, se grande quanttidade de energia se concentrasse nas fases pré-genitais (sugar, morder, habitos anais, eto), iria faltar energia para as fungoes propriamente genitais, o que sugere uma unidade - ¢ nao independéncia - entre as pulsdes sexuais, . Essas idéias estavam de acordo com a opinitio de varios psicanalistas de crescente Prestigio, aos quais Reich respeitava, como Sandor Ferenczi, Helene Deutsch e Otto Rank, que tentavamn, no entartto, dar explicagses psicolégicas ao ato sexual. Para estes autores, a excitagao genital era uma mistura de excitagdes pré-genitais, ¢ a cura consistiria num deslocamento de crotismo anal ¢ oral para 0 genital#®. Havia, por assim dizer, uma negagao da fungao biolégica da sexualidade, % Cf. FREUD, 8. “Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis - La angustia y la vida instintiva® {1993} In Obras sompletas. 4 ed. Tead. Lais Lopes-Ballestros V de Torres tomo Il. Madd Biblioteca Nueva, 1981, pp. 3146-64 Doravante no texto (1983/81). % Hiclene Deutsch, por exemplo, publicou tum livo sobre scxualidade feminina, no qual afigmava que a mulher no Possuia uma excitagto vaginal primivia, © gue havia era um deslocamento de excitagdes pré-genilas pata oer «neate sentido, a culminancia da salsfacio sexual da mulher se encontrava no ato de dar a Iiz. Ct REICH, W. A funcio do orgasme. op, cit. p 118. O principio funcional 26 Reich, no entanto, trabalha com a idéia de que qualquer intromissao de excitacdes nao- genitais no ato sexual enfraquecia a poténcia orgastica, Toda idéia psiquica durante o ato sexual 36 poderia prejudicar a concentracao na excitagao. Segundo ele, havia uma diferenca qualitativa entre a sexuatidade pré-genital ¢ genital, que se cncontrava exatamente na fungao do orgasm. Somente a segunda seria capaz de promover a descarga total da energia sexual, o que significa que a excitacao genital deveria ser desprendida, libertada, das misturas pré-genitais. A sexualidade pré-genital apenas proporcionava o aumento das tensoes vegetativas, nio podendo propiciar descarga. Uma profunda ruptura comecava a dominar a opinito psicanalitica sobre a fungao das pulsdes. Enquanto para os demais a cura se dava por um deslocamento da energia sexual, para Reich era preciso uma liberagdo da excitagho genital da pré-genital. © desenvolvimento independente da economia sexual frente a psicandlise comegou exatamente com esta distingao entre prazer pré-genital e genital, Reich expoe as conclusdes acerca de suas novas descobertas sobre a genitalidade e 0 novo conceito de poténcia orgastica no Congresso de Salzburgo, em abril de 1924 ¢, segundo suas préprias palavras, so muito bem recebidas. Publica-as um ano depois, sob 0 titulo “Observacées complementares sobre a importancia terapéutica da libido genital”. Seminario de Técnica Psicanalitica: bergo da andlise do cardter Neste mesmo ano de 1924, Reich torna-se presidente do “Seminario de ‘Técnica Psicanalitice de Viena”, criado dois anos antes, cujo principal objetivo era o de imelhorar a pritica analitica, jd que cram grandes os problemas de orem metodolégica, algo reconhecilo pelo proprio Freud?*. Attavés dos estudos realizados no Seminétio, enfatizando a questo da resistencig. na clinica - wina das maiores dificuldades enfrentadas pelos analistas - Reich dé um importante Passo no campo técnico-metodolégico, que logo o colocaria em oposigio a psicanalise. Em suas inwvestigagdes sobre a liberagio da angustia estasioa em excitaeto genital, associada agora ao 2 Muitos io os indicis de que Freud estavainsalseito com os reultades da técnica psicanaitcn. Ct, por exemplo, Punier In HIGGINS & RAPHAEL. op. ci. p. 69 - nota 105, (© principio funcional 27 problema das resistencias ¢, apoiando-se em especial na obra de Paul Schilder®", chega 4 idéia de carter. Era 0 carater do paciente que bloqueava a energia ¢ resistia a andlise. Caniter vem do grego e significa marear, gravar. Reich o utiliza, porém, como conceito relacionado a um processo de construgdo da personalidade, no qual defesas utilizadas desde a infancia sto incorporadas como forma de adaptaco ao meio, constituindo-se em mecanismo de protegao da pessoa contra experiéncias dotorosas**, Além disso, o carter permite & pessoa um funcionamento estével, na medida em que a mantém em contato com o mundo externo. Dai a resistencia do paciente A andlise, ao sentir 0 risco de desestruturacdo de sua couraga. Se por um lado, a couraga protege 0 paciente da dor, por outtto limita-o frente ao prazer, bloqueando suas possibilidades de mobilidade psiquica, representando rigidez de personalidade ¢ perda de espontaneidade. Na teoria psicanalitica anterior a Reich, carter possuia a definigio de uma configuracao de tracos estaveis de personalidade, embora mais como organizacao de conflitos internos, ¢ sem eficiéncia em termos de solucao dos mesmos**, E importante ressaltar que, para Reich, a couraca, isto é, a forma pela qual esta vai se constituir, ¢ determinada pelo meio, ¢ & por ai que a familia e 08 elementos sociais passam a garthar peso no trabalho clinico. Até entlo, a psicandlise considerava a ncwrose ou o sintomia neurdtico como distiirbios, algo doente num organismo que, de resto, era so: £0 sirtoma neurdtico individual era explicitamente encarado como um elemento estranho em um organismo psiquico, que sem ele seria slo... Dizia-se que uma parte da personalidade néo havia conseguido o total desenvolvimento em diregao & maturidade, permanecendo assim afrasada, em um esidgio anterior do desenvolvimento sexual. [sso resultava em uma ‘ixacao’, O que acontecia, entho, & qe essa parte isolada entrava em conflito com o resto do ego, pelo qual era mantida em repressio,” (REICH, 1942/88:38) Os trabalhos de Reich caminham para outras conclusdes. Ele introduz o conceito de “estrutura ce candter” como o problema patologico, de modo que o sinioma neurstice passa a sex * Schilder foi orientador de Reich em psiquiatria e desenvolven muito do que Reich veio a usar para sua niogdo de carter, como a articulaglo de fatores orginices ¢ priquicos e a idéia de totalidade. CZ. BROMBERG, M. H. “A fungao terapéutice do trabalho corporal: © ponte de vista psicologico”. Dissertagdo de mestrado em psicologia inica, PUC-SP, 1986, 2 Cf. ALDERTINI, P, Reich - historia das idéias ¢ formulacSes pare s educacio, Sto Paulo, Agora, 1994, p. 805 Cf. também DADOUN, R. op. cit. pp. 98-107. CE. GAV, Pop. cit. p. 812. © principio funcional 28 apenas a manifestagdo de um quadro maior, isto é, de um organismo doente em sua totalidade’®. Isto significa dizer que um sintoma neurético nao pode se desenvolver numa estrutura de cardler sauciavel, o que, segundo Reich, esta plenamente de acordo com a teoria psicanalitica da neurose. Com 0 conceito de “estratificagto da couraga” havia agora ume organizagao histérica ¢ sistematica, estruturalmente compreensivel, das forgas ¢ contradigdes psiquicas, isto é, havia uma relacdo entre estrutura ¢ desenvolvimento da neurose: “0 mundo total da experiéncia passada incorpora-se ao presente sob a forma de atitudes de cardter. O carter de wma pessoa é a soma total funcional de todas as experiéncias passadas.” (REICH,1942/88;129) Nao existia mais sentido em dicotomaizar o material histérico e 0 contemporaneo. Toda a histéria do individuo se encontra presente nos tragos de cardter. Um conflito ocorrido numa determinada idade deixa “marcas” que passam a conipor a personalidade do individuo, de modo a influencié-la de maneira automatica e propria, isto é, néo sendo percebidas como sintomas. Cada estrato da estrutura do cardter ¢ parte da historia de uma pessoa, conservada no tempo e ativa no presente. Jé era possivel trabalhar o presente e no mais ter que estar a procura de fatos de infancia. Esta era, evidentemente, uma grande inovagdo na psicandlise com importantes conseqtiéncins metodolégicas, Ao menos, Reich ainda pensava estar fazendo psicanilise’*. Ele considera que a verdadeira cura sé pode ser atingida através da eliminagio da base dos sintomas no cardter do paciente. O problema esta na compreensdo das situagées analiticas, que exigem, nao mais uma analise de sintomas, mas sim uma anuilise do carter. im seu trabalho clinico, Reich passa da primeira a segunda, embora ainda Ihe faltassem conhecimentos elinicos ¢ tecnicos adequados aquilo que ja havia desenvolvido teoricamente. Nesse. sentido, Reich ainda se utiliza do instrumental psicanalitico tradicional. Aos poucos, porém, o trabalho com os pacientes vai Ihe dando os elementos necessirios para uma nova pritica clinica, bem como para novas % Reich publica a idibia do enfoque globelizante da personalidade, ao invés da investigacdo de sintomasisolados, bem como de sua preocupacio em cicontrar tanto possivelsfatores putogénices, como adotar medidas prevents, ern seu primeirotivro: O cardter impulsive, de 1925. 9 fu afirmava estar apenas aplicando cocrentemente os principios analticos ao carder. Nio stbia que estava interpretando a teoria de Freud de wma forma que ele logo refetaria, Ainda nao tinha netihum pressentimento da ‘incompatibildade entre a teoria do orgasmo ¢ a posterior teotie psicanalitca das neuroses.” (RFICH,1942/88:149) © principio funcional 29 descoberias tedricas. Assim, no seio do Seminario, ¢ com o intuiio de aprimorar a técnica psicanalitica, nasce a andl cardter?. A téenica de andlise de cardter comeca apresentando uma série de mudangas metodolégicas em relagdo A psicandlise ortodoxa. A recuperagio da poténcia orgiistica do paciente est4, como ja vimos, no centro do trabalho clinico, dado que todo neurético possui uma perturbagdo em sua fungdo genital. Todas as atitudes patologicas que impedem tal recuperacao (resisttncias) devem ser identificadas ¢ climinadas. O trabalho se concentra, desta maneira, na quebra dos mecanismos de defesa do caréter, evitando interpretagdes de material inconsciente’*, Com 0 carter estruturado, © paciente apenas compreende intelechualmente seus problemas ¢ nada mais. Dai resulta a idéia de que o analista deve manter as varias resisténcias que irrompem na neurose de forma claramente separadas, eliminando-as uma a uttia, sempre a partir daquela que se encontra mais 4 superficie, por ser a mais consciente - 0 que era, segundo Reich, uma nogdo totalmente freudiana. A técnica caminha assim do superficial ao profundo, do ego inconsciente 20 Id, procurando incidir sobre aquilo que reprime o Id, resistencias e transferéncias, 0 que permite manter a nogdo de “eu” do paciente. t uma téenica verbal que se utiliza da andlise da expresso corporal do paciente, algo que Freud ji havia constatado no inicio de suas atividades clinicas*, e que Reich considera a “terceira tépica psicanalitica”™. 5 Em 1928, Reich publica um artigo intitulado “Técnica de interpretagdo e andlise das resistencias”, que seria © primeiro de muitos que comporiam 0 livre Andlise do cariter, publicado somente cn 1933. 4 4A anilise de carter néo pretende ser uma continuagio da técnica de Freud, tem antes origem na critica dt {écnica interpretativa, a0 mesmo tempo em que desenvolve de modo consistenle a antlise das resisténcins” (REICH In HIGGINS & RAPHAEL, 1979:192-8) Em uma famosa passagem do caso Dora escreve Freud: “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, convence-se de qute 03 mortais nao consegucm guardar segredo. Se 0s los est#o mudos, eles tagarclam com as ‘pontas dos dedos; a traicdo forga seu ceminho por todos os pores” (In GAV,1989:16-7). Sua constaiagio, ne ‘enlanto, parou por ai. * Annocdo de topica remonta a idéia de Freud que supoe uma diferenciaglo do aparelho psiquico num certo ‘mimero de sistemas, dotados de caracteristicas ou fungses diferentes ¢ dispostas numa certa ordem. Assim, a primeira topica, presente deade 1898, mas realmente desenvolvida s6 cm 1915, divide e aparelho psiquico em inconsciente, pré-consciente ¢ consciente. Ji a segunda t6pica, de 1920, substitu essa divisto herdade das citncias {isicas por outro de tipo antropomérfico: Id, o polo pulsional da personalidade; Ego, instincia representante dos interesses da fotalidade da pessoa, investdo de Iibido narcisica; e Superego, uma instancia que julga e critica, constituida a partir da interiorizacdo das exigéncias e das interdicdes parentais. Cf. LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulario da psicendlise. op. cit. pp. 505-9. Reich acreditava estar elaborando a terceira t6pica psicanalitica © principio funciona! 30 A resistencia apresentada pelos pacientes na clinica era a mesina que a pessoa vivia fora dela. © carter é © caminho para se identificar ¢ eliminar estas resistencias. O importante, portanto, é se ater a forma, isto é, & maneira pela qual funciona o carter de wma pessoa. Reich comega a perceber que os obsticulos nio aluam somente ao nivel psiquico do paciente, mas também ao nivel corporal. E quando surgem as primeiras “intuigdes” acerca da ancoragem fisiolégica dos fenémenos psiquicos e os passos clinicos iniciais na diregao de uma unidade funcional entre psique e soma. No trabalho analitico, poucos pacientes consegiam dizer tudo que Ihes vinha mente, como sugeria a técnica de livre associagdo. Eram comuns os casos em que o paciente ficava calado durante a sesso, de modo que nao havia andlise. Reich passa, entdo, a inovar na técnica para fugir a estas limitagSes. Se 0 paciente no fala, por exemple, 0 terapeuta observa de que matteira ele nao fala, reuttindo outros elementos de comunicaeso analitica além das palavras, Reich passa a observar todo 0 conjunto expressivo do paciente ©, junto ao “que” psicanalitico, introduz 0 “como” da andlise do eardter, isto é, a observagio da forma. E descobre um novo acesso ao inconsciente freudiano, que até entdo necessitava de palavras para se revelat: “J sabia que o ‘como’, isto é, a forma do comportamento ¢ das comunicacdes, era muito mais importante do que o que o paciente dizia ao analista. As palavras podem mentir. A expressfo munca mente, Embora as pessoas nio tenham consciéncia disso, a expressdo é a manifestacdo imediata do carter. Aprendi, com o tempo, # compreender a forma das proprias comunicacdes como expresses diretas do inconsciente... A compreensdo intelectual do inconsciente cra substituida pela percepeao imediata do paciente da sua propria expressdo,.. O paciente nao falava mais do seu Sdic: sentia-o.” (REICH, 1942/88:151) [o grifo é meu] Com isso ndo havia mais necessidade de persuadir o paciente das interpretacdes do aualista, muitas delas complicadas, tentando enquadrar os sonhos e fantasias do analisado em algumas das explicagdes tedricas da psicandlise. A andlise do cardter introduz a intexpretagao da expresso emocional*. © corpo ganla cena com toda sua expressividade. Ou seja, enquanto a psicanilise se atém & palavra, a investigagao da expresstio corporal yai até onde aquela'nao % Ags poucos Reich passa a estender suas critcas também a ouiros “dogmas” da pratica analitica, como por exemplo a famosa neutralidade do terapeuta que, segundo a tearia, deveria atuar como uma “folha branca de papel nna qual o paciente inscreve suas trensferéncias”, ou que o paciente devia apenas “lembrar”, nunca “fazer”, sendo a farefa principal da anilise levi-lo da aco d lembranga, Reich via em algumas destas normas ndo somente ‘mecanismos que visavarn preservar 2 imagem do terapeuta, como também ¢ principalmente manter-ihe a ‘utoridade, desvelando a prética de poder que Ihe era implicite. Reich talvez tenhs sido 0 primeiro a assialar &s relagées de poder presenics na prética clinica, © principio funcional 31 chega, até onde nio existe palavra. Isso parecia um importante passo, jd que a expressio corporal remetia 0 sujeito a uma experiéncia mais prinuaria do que a palavra””. A teoria da couraga de cardter decorre, portanto, das investigagdes de Reich acerca das resisténcias dos pacientes A terapia, ¢ se desenvolve sistematicamente a partir de 1926, contra as concepgées mecanicistas crescentes na psicandlise. © cardter total do paciente é que constituia a dificuldade de cura. O desenvolvimento da vegetoterapia Com sua expulsio da AIP, no Congresso de Lucena, em 1934, aparentemente motivada por questdes politicas - slegou-se que com a publicagdo da Psicologia de massas do fascismao, em 1933, em plena ascensio nazista, Reich tornara-se um risco para a Associagdo - Reich continua seus trabalhos, agora de forma autonoma. Em termos de teoria cientifica, passa a denominar sua contribuicao de economia sexual, e continua a buscar os fundamentos biolégicos da pulsio sexual, Em sew trabalho com masoquistas - em que procura refutar, como veremos no proximo capitulo, a nogao freudiana de uma pulsio de morte - Reich, a partir das sensagdes de “estouro” © “explosac” relatadas por pacientes, retira a iddia de uma funcao antitétioa entre pressdo interna (expansio) ¢ pressio da superficie (contracio), associando-as a sexualidade ¢ angiistia, E esta a chave pata aprofundar a relagdo entre sistemas psiquico e somitico, mais especificamente, entre sistema psiqnico e sistema nervoso auténomo (SNA). Inicia-se os chamados “experimentos bioelétrices”. A principal conclusao destas pesquisas & que todos os impulsos e sensacées bioldgicas do organismo, incluindo a sexualidade ¢ a angistia, podem ser sintetizados na antitese expansio/contragao em consonancia com o SNA - mais primitive ~ através dos sistemas simpatico (contragao) e parassimpatico (expansdo). O processo vital para Reich é uma continua alferndncia entre estes dois estados: * CE HIGGINS & RAPHAEL. op. cit. pp, 98-9 (mals notas 47-8) e pp. 187-9 (carta de Reich a Liebeck), % Einbora Reich tenha sido expulso cos quactros da AIP, Ernest Jones, hidgrafo oficial de Freed e pricanalisia, ‘egietou 0 episédio como uma “auto-exclusto®, Como é dificil imaginar umn tapso de tl invergadura - 0 que svi, Por si 86, revelador -resia a hipStesc de maf de Jones, 0 qual néo nutria por Reich os mais corditis afetos. Com relagio a este episédio, cf. HIGGINS & RAPHAEL, op. cit, pp. 223-34; e DADOUN. op. cit, pp. 300-4. © principio fancional 32 “A Sexualidade’ ndo podia ser mais que a funcéo biolégica de expansao ‘para fora do en’, do centro em direcao a periferia. Por seu lado, a angistia ndo seria sendo a direcao inversa, isto é, da periferia para o centro, ‘de volta para 0 cu’, Sao diregocs antitéticas do mesmo processo de excitacdo.” (REICH, 1942/88:227) [grifo meu] Sob este prisma, a scxualidade estd relacionada a funcao do sistema nervoso Parassimpatico, ao passo que a anguistia, a0 simpatico, o que esclarece profundamente as reagées € sensagies sentidas pelos pacientes no trabalho clinico. Torna-se claro porque um sentimento de angristia gera “opressio”, jd que seu quadto é de hipertensio cardiovascular, 0 que corresponde a.um estado de contragao simpaticoténica do organismo, Hé toda uma organizacdo somatica da qual emerge a sensagao de opressio relatada pelos pacientes. Ou seja, ado é uma “idéia” de opressio que estes relalam, mas uma sensacdo real, sentida somaticamente. Assitn, por exemplo, uma pessoa hipertensa: ela sofre de simpaticotonia cronica de angistia; no centro desta, encontra-se a angiistia orgistica, 0 medo da expansto e da convulsdo involuntitia, Dentro do principio de unidade entre psique ¢ soma, torna-se igualmente claro o sentido inverso, isto é, porque de uima seusacao de opressio decorre a angistia, Ambas dimensdes respondem, cada uma 4 seu modo, a um tinico processo de reagao global do individuo, A expatisdo biolégica ¢ experimentada, ao nivel fisiolégico profundo (SNA), como agio parassimpatica; no campo somatico-sensorial, como relaxaciio; ao nivel psiquico, como prazer. Jé a contracao biolégica apresenta-se, no campo fisiolégico (SNA), como aco simpética; em termos de sensagdo somatica, como tensio; ¢ ao nivel psiquico como desprazer ou angiistia. Esta é a base do principio funcional entre psique e soma, a patti da relagao antitética de expansio/contragao do sistema neurovegetativo. O mesmo estado que, em termes psiquicos, é sentido como prazer, em termes somuiticos 0 ¢ como relaxamento ¢ expansio. Psique e soma respondem, cada um a0 seu modo, ao mesmo proceso, mum ‘inico. sistema biol “As funcées biolégicas fundamentais de contragio e expanso aplicavam-se tanto ao campo psiquico quanto ao somético. Havia duas séries de efeitos antitéticos, € as seus elementos representavam as diversas profundidades do funcionamento bioldgico.” (REICH,1942/88:244) Qualquer predominancia de fungdo, seja de expansio ou de contracdo, representa uma perturbacdo da oscilagdo biolégica ¢ & nociva. lim outas palavras, 0 organismo vital deve tanto contrair quanto expandi, de acordo com sua necessidade, isto é, de acordo com a realidade do momento. Os sintomas, assim, no podem ser tratados isoladamentte, mas apenas em conexao com ¢ funcionamento biolégico total do corpo, ¢ em relagio com as fungoes de prazer e angustia: principio funcional 33 “Todo impulso psiquico é funcionalmente equivalente a uma excitagao somética definida, A idéia de que as funcoes do mecanismo psiquico funcionam apenas por si mesmas e influenciam 0 mecanismo somitico, que também funciona por si mesmo, ndo esta de acordo com os fatos reais. Um salto do psiquico para 0 Somiitico é inconcebivel, pois a pressuposicio de dois campos separados néo se aplica aqui... A maneira como uma idéia se origina de um impulso vegetativo é uma das questdes mais dificeis da psicologia.” (REICH,1942/88:290) Havia agora uma explicagao cientifica capar de mostrar de que maneiza corpo e psique interagem num processo unitario de mitua influencia. Mais uma vez, Reich retorna aos aspectos qualitativos e quantitativos. A psique é determinada pela qualidade, enquanto o soma pela quantidade. No entanto, a qualidade de uma atitude psiquica também depende da quantidade da energia somatica. Esse & 0 indicio de que a Psique emerge do, ou submerge no, profundo processo biofisiolégico, dependendo do estado deste. Segundo ele, temos a seguinte sequencia de funodes quando uma idéia no campo psiquico exerce influéncia no soma: a percepgto de um perigo funciona como uma inervacao simpaticotonica. A reserva psiquica expressa-se em rigidez vegetativa que altera o funcionamento do orgio, Esta rigidez, por sua vez, intensifica a angiistia. A fixagdo de uma exeitacto psiquica € produzida pelo estabelecimento de um estado especifico de inervacdo vegetativa. A anguistia intensificada exige um encouragamento, que € sindnimo de uma fixagao de cnergia vegelativa na couraga muscular. © encouragamento muscular perturba a possibilidade de descarga, aumenta a tensdo, etc. Assim, excitagdes psiquica e somdtica sto funcionalmente equivaientes, Diz Reich: “Bioenergeticamente, a psique ¢ 9 soma funcionam condicionando-se tnuiuamente e a0 mesmo tempo formando um sistema unilério,” (1942/88:290-1) A idéia de couraca de carater, que Reich desenvolvera alguns anos antes, em suas investigayes de aprimoramento da técnica psicanalitica, deixa de ser um conceito exclusivamente psiquico, como alé entio, para se tornar também somitico, passando a ser entendido como hipertonia muscular, isto é, como musculatura cronicamente tensionada: “O conceito de ‘identidade funcional’, que tive de introduzir, significa apenas que as atitudes musculares ¢ as atitudes de cardter tém a_mesma fitncao_no mecanismo_psiquico: podem substituir-se e podem influenciar-se mutuamente. Basicamente, néo podem separar-se. Sido equivalentes em sua fungao.” (REICH, 1942/88:280-1) (0 grifo é meu] Isso significa que as sensagées corporais sio os proprios fendmenos psiquicos no campo somatico ¢ nao simples manifestagses que 0s acompanham. Em outras palavras, a couraca de carter se expressa agora como couraga muscular e vice-versa, surgindo a nogéo de courage © principio funcional 34 muscular do carter, conc: Com isso muda também a nocao de neurose, que que introduz. 0 corpo como instrumento ativo na pratica clinica. de ser uma condicdo meramente psiquica: “A neurose ndo é mais que a soma total de todas as inibicGes cronicamente autométicas de excitacao sexual natural... Em 1929, comecei a compreender que © conflito original na enfermidade mental (a contradi¢ao insolivel entre o impulso para o prazer e a frustracio moralistica do prazer) esta fisiologic fruturalmente ancorado em uma perturbacéo muscular, A contradicao psiquica entre a sexualidade ¢a moralidade opera na profundidade biolégica do organismo, como a contradicao entre a excitagio agradavel ¢ o espasmo muscular.” (REICH,1942/88:221) lo grifo meu] E ainda: “Desse porto em diante, as neuroses aparecem sob uma {uz fandamentalmente diferente da que as envolvia na psicandlise. Nao sio apenas confi siquicos ¢_ fi infantis ndo_resolvidos. Essas fixacdes ¢ conflitos psiqticos causam perturbacoes fundamentais na reguiagem da energia bivelétrica e, desse modo, se tornam somaticamente ancoradas. Por essa razdo, néo & possivel, nem ¢ admissivel, separar os processos psiquico e somdtico. As perturbacdes psiquicas sig enfermidades eran iitico tfo_no campo psiquico, Uma deflexao do curso natural da energia bioligica encontra-se na base dessas perturbacées.” (1942/88:312-3) fo grifo é meu} A couraca, que agora significa rigidez muscular’, ¢ a teagdo aulomitica de um organismo cuja energia sexual contida nao pode ser descarregada. Tem de haver uma contrapressto de fota para impedir a pressao interna de descarregat. £ assim que um neurdtico desenvoive uma rigidez na periferia de seu corpo, uma couraga muscular, que realiza exatamente essa contrapressiio. © proceso psiquico que a psicanilise havia denominado de repressio Reich desenvolve em termios fisiolégicos: repressdo é tensionamento involuntirio da musculatura direcionada para contrapressionar os impulsos vegetalivos. Esta rigidez somitica, é bom frisar, mio é apenas um “acompanhamento” do mecanismo de repressto, mas sua parte mais essencial. A conseqiiéncia dessa rigidez & a perda de contato com o mundo e uma estranheza ante as sensacdes interiores. Toda tentativa de contato torna-se dolorosa e opaca, isto , 4, prejudicada em sua sensibilidade. A pessoa se encerra em si mestna: “A energia da vida sexual pode ser contida por tensées musculares cronicas, A cilera € a angiistia podem também ser bloqueadas por tensdes musculares. Dai em diante, descobri que sempre que eu dissolvia uma tensio muscular, irrompia uma das trés excitagces bisicas do corpo - angiistia, dio ou excitagao sexual. Eu tinha, claro, conseguido fazer isso antes pela iberagao de inibigces e atitudes puramente Jo cardter, Mas agora as irrupeées da energia vegetativa cram mais completas, mais jimpetuosas, mais emocionalmente sentidas e ocorriam mais rapidamente... Logo se * Embora « couraa muscular sea basicamente hipertOnica, rigor ela pode também ser hipotOnica, pos sex principio fundamental diz respite a uma condicido crénica do aparato muscular sxja por hipcr ot hipotonia, O principio funcional 85 esclareceram imimeras questées decisivas, concernentes ao relacionamento entre 4 mente ¢ 0 corpo.” (REICH,1942/88:230) Em termos técrico-metodolégicos, tais concepeées, decorténcia direta da iniciativa de Reich em aprimorar a técnica psicanalitica desde os anos 20, representam uma verdadeira revolugdo no campo das psicoterapias, Ja ¢ possivel trabalhar com a unidade psique/soma. A antiga analise do cardter alia-se « nova técnica de intervencio somiitica e nasce a vegetoterapia cardtero-analitica ¢, com ela, as psicoterapias corporais. O corpo torna-se um instrumento de trabalho clinico e a nova técnica implica a intervencdo direta nele: “Tratando essas emogses liberadas como mecanismos psiquicos de defesa, conseguimos enfim restaurar no paciente a sua motilidade sexual e sensibilidade biologica, Assim, dissolvendo atitudes erinicas de carder, produzimos reagdes no sistema nervoso vegetativo. A irrupcao no campo biolegice & muito mais completa carregada de encrgia, quanto mais completamente tratamos nao 55 as atitudes de caniier, mas também as atitudes musculares correspondentes. Isso faz com que uma parte do trabalho seja desviado dos campos psicoldgicos e caracterolégicos para dissolucio imediata da couraga muscular.” (REICH,1942/88:254) A vegetoterapia, sob a ética da economia sexual, vai mais longe que a terapia Psicanalitica, pois além de tornar consciente a matéria inconsciente, busca também libertar as energias vegetativas, restabelecendo 0 equilibrio biofisico ¢ libertando a poténcia orgéstica; une 95 processos quialitatives 40s quantitativos. Isto se realiza através da intervengao direta no sistema muscular do paciente de modo a, ao mobilizé-lo, promover uma alteraciio das forgas somaticas relacionadas ao conflito do paciente, 0 que facilita 0 afloramento des conteiidos emocionais e Imagéticos a ele associados. A mobilizacio somdtica permite afrouxar os mecanisms de dofesa, de modo que 0s contetidos possam emergir sob a forma de sensagdes, emocdes e idéias embrancas). For esse motivo, a forma torna-se o centro da técnica reichiana. E preciso que 0 terapeuta esteja atento as manifestacbes conporais do paciente, sua conmunicacao expressiva, para saber onde ¢ quanto intervir. Ou seja, o torapeuta deve observar como 0 paciente tra seus conflitos, para atuar sobre esta forma. , Através da forma, isto é, da composigfio de forcas bio-mectnicas (misculos, 0350s, tendbes, ete.), € possivel atingiv de modo mais vivo o significado da experiencia. Fa clinica ‘mostra ser recorrente, nos pacientes, a lembranca de periodos da infancia em que utilizavam de antficios sobre 0 comportamento vegetative para anular impulsos de édio, angistia ou amor, © principio funcional 36 como, por exemplo, prender a respiracao ou entijecer a musculatura abdominal". Com isso, Reich também abandona o método interpretative herdado da psicandlise: “Pode-se dizer que toda rigidee muscular contém a historia ¢ o significado da ‘sua origemn, Nao ¢ como se tivéssemos de deduzir a partir de sonhos ou de associagoes a maneita como se desenvolven a couraca muscular; a couraga é a forma na qual a experiéncia infantil é preservada como obsticulo ao funcionamtento” (REICH, 1942/88:255)" Com isso Reich evita os complicados redeios do psiquismo, bem como o abuso de interpretacdo por parte dos terapeutas, permitindo atingir o afeto de um modo mais rapido ¢ direto. De qualquer forma, isso jé nao é mesmo necessario, A neurose deixa de ser um distitrbio apenas de ordem psiquica, para ser, de uma maneita mais profunda, a expressdo de uma perturbagao cronica do equilibrio vegetativo e da motilidade natural. A idéia freudiana de que o inconsciente ndo era atingivel, mas tio somente seus derivados ~ correta para os métodos aplicados naquele tempo - estava superada. Com a vegetoterapia, o inconsciente pode ser atingido em sua manifestacao conereta, atvavés da musculatura, ja que os afetos de uma experiéncia, embora relacionados a determinado contetido, dependem da quantidade de energia vegetativa mobilizaca pela experiéncia, Mobilizada vegetativamente, através das tensoes musculares, a pessoa vive ou revive as sitagdes com toda a intensidade afetiva, como se ocorressem naquele exato instante. A pessoa age como na situagao original, © inconsciente, que a andlise do carater havia tornado visivel, agora mostra-se, também, passivel de intervengao dixeta: “O trabalho experimental no campo da economia sexual conseguive logo demonstrar que 0 ‘inconsciente’ de Freud esti presente e é concretamente percepiivel sob a forma de sensages e impulsos do meio vegetative” (REICH, 1942/88:63) ‘© 0 principal método da tcrapin psicanalitica é a ‘asociagho live, isto ¢, essencialmente falar ¢ comunicar, O Principal metodo ds vegetoterapia consiste na perturbacdo das atitades vegetativas involunticias (logo inconscientes). Ao contrério, na vegetoterapia, nio false - a climinagio da expressio oral intensiva consciente - é que é um dos principais métodes para trazer d superficie sentimentos¢ afetos vegetatives, enraizados em processos onganicos, antes que se tornem conscientes.. A associacto livre de idias ¢ substtuida pola livre revelagao de todas asatitudes vegelativas - especialmente acto muscular -caracteristices do paciente. A psicandlise & uma psicologia; a economia sexual ésexoiogia. A sexologia' é a ciéncia dos processos bioligicos, fsioldgices, emocionais ¢ soviais da -sexualidade” (REICH In HIGGINS & RAPHAEL,1979:286-7) [grifo de Reich] ** Ct. carta de Reich a English In HIGGINS & RAPHAEL. op. cit. pp. 192-8. © principio funcional 87 Reich faz questo de enfatizar que a vegetoterapia no rompe com a anzlise do caréter, mas, ao contrario, complementa-a. E © mesmo trabalho, s6 que em um estrato mais profundo do sistema biolégico. O objetivo, porém, ¢ 0 mesino, a saber, a restauracao do reflexo orgistico. Vemnos deste modo que, muito embora tenha nascido a partiy da psicanslise ¢ até certo Ponto com 0 intuito de aprimord-la, a vegetoterapia de andlise do carter ou cardtero-analitica representava uma série de mudancas metodolégicas, que nao cabiam dentro da ortodoxia psicanalitica. Ao introduzir primeiro 0 corpo visivel e o olhar e, posteriocmente, 0 corpo ativo ¢ a intervengao direta no paciente, Reich rompe com normas basicas da atividade clinica, dando ao terapeuta maior liberdade de atuagdo. As mudangas sto tanto teéricas como técnica: metodolégicas. © sprimoramento de sua teoria, bem como e, principalmente, da técnica, nfo param aqui. Reich continua a desenvolver pesquisas, que o conduzem a energia orgone ¢ a orgonoterapia, seu trabalho mais polémico por tratar néo mais de wma psicologia fisioldgica ou organica, como a vegetoterapia, mas de uma biofisica. Pudemos acomparhar, nesta trajetéria parcial do trabalho de Wilhelm Reich, © desenvolvimento, desde 2 psicandlise, da sta idéia de principio funcional entre psique e soma. Ao sustenti-la, porém, mais que qualquer outra coisa, Reich defende a idéia de um sex humano integral, composto de processos cognitivos, afetivos e somiticos (e, posteriormente, também cosmicos). E a partir deste “novo Homem” que Reich terd condicdes de otiticar 0 pensamento “racionalista” e © mecanicismo, que recorrem a uma dicotomia entre psique ¢ soma, ou entre 0 Homem social ¢ animal, reproduzindo a oposicao entre natureza e cultura. E essa oposigio que no ha em Reich, para quem biologia, sociologia ¢ psicologia devem estar presentes na comipreensio dos fenémenos humanos. Natureza e cultura nfo devem se opor, deve se completar. 0 que veremos no préximo capitulo. 38 Capitulo II eee A questaéo da cultura udemos acompanhar rapidamente, 10 ambito clinico, os principais pontos de tuptura entre Reich e a psicandlise ortodoxa, bem como os rumtios bastante originais de seu trabalho, apés seu afastamento dela. Vimos como, através da tentativa de aprimorar 0 trabalho analitico, Reich vai construindo wma pratica clinica que objetiva convergir Processos psiquicos ¢ somuiticos, na perspectiva de entender o ser humano de forma mais integral. Trabalhando sob a chancela da psicandlise por 14 anos, Reich trilha caminhos préprios ¢, embora assente suas investigagdes naquilo que considera mais importante em Freud, segue em diregio diversa a do movimento oficial. Com um inicio téo marginal, a ruptura tomna-se ‘inevitavel: Reich comeca rompendo, A consagracio deste rompimento di-se, como vimos, no congresso de Lucerna, em 1954, quando é expulso e desligado em definitivo dos quadros da AIP. Muitos atribuem ao fato de Reich filiar-se ao partido comunista e teansformar sua reflexdo psicanalitica em bases marxistas a principal razo de seus conlitos com Freud. Ele proprio chega a dar importancia a esse fato, qualificando-o como o grande motivo de desapontamento de Freud. E como se Reich, um clinico promissor, cientista natural ¢ poiquiatra Prédigo, tivesse degenerado para o marxismo'. Penso, porém, que esta ruptura ndo se nutre somente do campo politico-ideolégico, mas se reporia a um amplo conjunto de questdes, com taizes bem mais profundas nos dois autores. Creio mesmo que perpassa a personalidade de Freud € de Reich. Tanto um como o outro tentaram transportar paza o plano tedrico 0 enfoque de vida + Cf. HIGGINS & RAPHAEL. op. cit. p. 54. Agquestio da cultura 39 que melhor se adequasse s suas estruturas de cardter, para usar uma expresso reichiana, 0 que os colocou em rola de colisio. © modelo de Reich nao podia sex concebido por Freud. Com isso, quero realcar a idéia de que € muito pouco buscar explicagces no plano meramente tedrico- racional, Certamente, esse confronto germina em solo bem mais subjetivo. A relagto entre ambos foi marcada pela ambigitidade, um misto de admiracdo e respeito, com frustragdes ¢ desavengas, alids, bem ao estilo de Freud. Foi assim com alguns de seus principais seguidores que, apés alguns anos de afetos, tornaram-se desafetos, passaram de aliados a inimigos, de eleitos a exeluidos. Ocorreu com Jung, o “principe herdeiro” que se tornou banido, Adler, Rank, € mesmo com seu grande amigo Wilhelm Fliess, a quem chegou a chamar de scu “psicanalista”, e com quem, posteriormente, rompeu em definitivo®. Em passagem de A inferpretacio dos sonhos, Freud veconheceu, inclusive com bastante honestidade, que sempre precisou tanto de um bom inimigo quanto de urn fiel amigo em sua vida pessoal’, Reich fambém tinha temperamento mnito forte. Basta considerar seus esoritos, cut estilo é bem mais combativo que explicativo. Nao obstante tenham travado acizrados debates, tanto em suas discussdes como em seus livrost, pode-se dizer que pelo menos Reich manteve uma grande admiragdo © respeito pessoais por Freud®. £ verdade também que outros fatores, digamos mais externos, contribuiram para conturbar a relacio de Reich e seu mestre. Para aqueles que gostam de intrigas, fofocas © coisas do género ha farto material a este respeito. Reich foi vitima de uma série de caliinias por parte de colegas psicanalistas ¢ uma das questées que muito contzibuiram para isso, segundo ele £CE. GAY, P. op. cit. pp. 67 © 936 * CI. GAY, Pop. cit. pp. 67 € 516. * Reich afema tr sido O mat estar na cultura uma resposia au confertcia “A pofilaxi das newtoses”, Pronunciada na casa do proprio Freud em 12 dezembro de 1929: “Poucas pessoas sahem que a ‘Civilization and its descontonts, de Freud, resultou dessas discussdes sobre culture, como uma defesa contra 9 meu trabalho em desenvolvimento ¢ 0 ‘perigo’ que ele acareetava. As afirmagées com que Freud se opunta as minkas opiniges ‘apareceram no livro” (REICH In HIGGINS & RAPHALL,1979:179). Cf, também ROAZEN, P. Exeud.e seus discipulos Sio Patlo, Cultsix, 1978, p, $57. Segundo Reich, apes sua exposicdo, Freud teria comentado que a cultura estava ‘em primeino lugar frente ao individuo. Ci, HIGGINS & RAPHAEL. op. cit. pp. 53-4. ° “Por ditices ou ofensivos que possam ter sido os conflitos entre a psicanslise ¢ a economia sexual, ees munca nos Jevario a esquecer aquilo que devemos a toda a obra de Preusl.” (REICH In HIGGINS & RAPHAEL 1979:234) “ Sobre estas questbes, ¢ interessante conferir‘o item 1 da parte I do livro Reich fala de Freud, intitulado “Correspondencia”, no qual constam varias cartas, de ¢ para Reich, muito iustrativas, A questio da cultura 40 Proprio, foi sua insistencia na sexualidace e, em especial, sua teoria do orgasmno’. A vertente matxisia de Reich seria, assim, apenas um ponto, certamente significative, destas questées mais amplas, No plano tedrico & possivel sintetizar tais divergéncias passando por temas como a concepeao de Natureza e natureza humana, os estatutos da racionalidade e afetividade ¢ a tensa relagao entre o individuo ¢ a coletividade - taivez o drama fundador da psicologia, Todos temas bésicos pata a elaboragdo de wm pensamento filoséfico e politico, bem como para a formmulagao de uma escola psicoteripica. A esse grande conjunto de quesides damos o nome de teoria da cultura, Freud havia postulado uma teoria cultural que, sob a égide da universalidade do complexo de Edipo ¢ da pulsio de morte, inviabilizava qualquer saida positiva para as sociedades hhumanas, A repressio sexual era inevitivel © com ela 0 recalcamento das pulsdes. A destrutividade era uma tendéncia natural do humano ¢ restava a cultura minimizan suas manifestagdes. Acreditar na possibilidade de uma sociedade justa, equitativa, solidiria © saudavel, inmplicava necessariamente opor-se a proposigio cultural freudiana, Fazé-lo, mais que questionae 4 metapsicologia de Freud, significava combater uma concepeao filoséfica que conferia a natureza a responsabilidade pela infelicidade humana e propunha como saida a dominacio das Pulsées - conseqtientemente, das paixdes. Assim, © complexo de Edipo © a pulsto de morte Sumgent, na visio de Reich, como os elementos centrais de sustentagao de uma concepedo racionalista de natureza humana e de sociedade, ‘A problemitica principal nesta reflexao acerca da cultura diz respeito, portanto, a origem do mal e aos elementos responsiveis pelo sofrimento na vida dos Homens, Seria este inevitivel ou haveria possibilidade de uma cultura mais safsfatria? Estio os Homens condenados & conidigao de eternos prisioneiros - de si mesmos e de outrem - ou seriam eles capares de se ibertar e viver tama vida plena? Foram estes questoes que levarama Reich a construit uma critica 20 pensamento freudiano, colocando-se em campo oposio em relago a0 mesixe, ponto decisive em seu rompimento com a psicanalise. * Cf, HIGGINS & RAPHAEL, op. cit. pp. 108-7. A questio da culture 41 Natureza versus cultura, pulsdes versus razio, sexualidade versus repressfo, Eros versus Pulsio de morte, sociedade autoritéria versus destrutividade inata: este o confronto presente na critica de Reich a teoria da cultura de Freud. Através desta critica podemos acompanhat 0 moo como Reich organiza suas idéias em direcao a cultura, formulanido, a partiv de uma natureza humana positiva, uma nova concepgio de politica de tesponsabilidade individual e social, assentadas num ser humano portador de afetos. A heranca freudian: complexo de Edipo ea pulsio de morte Quando Reich entra para o circulo psicanalitico, em outubro de 1920, Freud jé havia Publicado dois importantes trabalhos sobre os quais se apoiava stta teoria da cultuva: Totem ¢ {abu *, em 1912, ¢ Para além do princtpio do prazcr *, neste mesmo ano de 1920. Em Totem ¢ ‘abu, na busca de uma nova referéneia capaz de ocupar o vazio deixado pela ja abandonada teoria da seducto, Freud procurou reconstruir a historia da constituigao da cultura humana, na perspectiva de fandamentar nos primérdios da civilizagdo a origem repressiva desta. Sustenton a necessidade de se dominar as pulsdes ¢ procuron instaurar 0 incesto como um interdito funclamental e universal na historia da humanidade, bem como no desenvolvimento psiquico dos individuos. Freud tentou, assim, situar esta nova referéncia na pré-historia da humanidade'. Ele elaborou, baseado em suas experiéncias elinicas, em leituras antropolégicas sobre o totemismo & em Darwin, uma hipotéiica ¢ ficcional"' histéria primitiva do Homem, na qual os filhos, revoltados contra a firania do pai comum que os proibia de possuirem as mulheres do grupo, resolveram em conjunto maté-lo, Instintos ciumentos, que Darwin afirmava ter descoberto junto 4 determinadas espécies animais, os teriam levado ao parricidio, Embora odiassem © pai por causa da privagdo sexual que este Ihes impunha, 0 sentimento dos filhos por ele era também de admiracio, constituindo uma relacdo ambivalente, Assim, passado o seittimento de dio, os fils FREUD, S. “Totem c tabu” [1912a] In Obras completes, tomo Ml. op. cit. pp. 1745-850. FREUD, §. “Mas alla del principio del placer” (1920] in Obras completas. tomo IIL op. cit. pp. 2507-41. '° CF GABBI JR, ©. F. Freud = racionalidade, sentido e referencia, Colego CLE. UNICAME, Campinas, 1994, p. 5. CE. também logo aciante nota £3, "" Embors 0 proprio Freud admitisse no texto que esta hipétese jamais tenia de fato ocorrio, as conseaiténcias teéricas desta foram tomadas como se baseadas em fatos consumados, criando, por vezes, uma delicada relagio ‘nireficgdo ¢realidade. Sobre o papel da fantasia na teoria freuiana, cf, LAPLANCHE & PONTALIS. Fantasia oviindri,fantasins das origonsorigens da fantasia. Trad. Alvato Cabral Ro de Janeiro, Zaha, 1988, A questio da cultura 42 se viram diante do remorso ¢ da culpa pelo que haviam feito. O pai morio tornou-se, desta forma, mais forte do que quando vivo, presente nas consciéncias de seus filhos assassinos. Na tentativa de amenizar sua culpa, estes teriam criado o totem - a representagio do proprio pai - proibido sua morte em reveréncia ao genitor, o que constituiu o primeiro tabu. Por outro lado, a eliminagio do pai teria tornado os filhos competidores entre si, em relagdo as mulheres, bem como ao poder deixado vago, instaurando um conflito generalizado, uma [uta de todos contra todos. A proibigio do incesto funcionou, neste momento, como a regulamentagao necessiria capaz de coibir as disputas internas por mulheres. Salvou a oxganizacio, porém, colocou 0 grupo em conflito com outros grupos, ja que a regra matrimonial tornara-se exogama. A proibi¢do ao incesto, isto é, de manter relagdes sexuais dentro do préprio la, feria constituido 0 segundo tabu. Seriam estas as duas proibigées presentes no totemisino, cuja cerimonia remontaria ao assassinato do pai tiranico por parte de seus filhos: nao matar totem ¢ nao manter reiacdes sexuais dentro do cla totémico, exatamente 0 que fizera Tidipo, © processo edipico pelo qual, como supunha Fret, todos passam na infancia, e que representa um momento fundamental no desenvolvimento psiquico do individuo, seria, um retorno ao parricidio primitivo originério da cultura, desde endo, introjetado ci nossas consciéncias por transmissio filogenética'’, 2 Geralmente o totem & representado por um animal ou planta. * Paremos aqui um inslante para um répido comentirio acerca da construgdo teérica do pensamento psicanalitico Desde resgatemos o problema da utilizagao de eapeculagdes no campo da cinta. Como nios mostra Monzani, Treud parece nunca ter desisido de construir a psicanalise sobre buses biolégicas, Ito significa dizer que, diferentemente do que pensam muitos, « pscanilise no & pura psicotogia, nom trabalha exclusivamente no campo do sentido «da significagto, Voltemes um poco no tempo. Com 0 abandon da teoria da sedugio em 1897, restava a Treud duas alternativas: ov optar por uma teoria da fantasia pura e simples, ox: buscar na heredltariedade © apoio de realdade que @ teoris a fentasix ndo proporcionava. 4 auséncia de uma base rea era algo gue purecia ‘ncomoder Feud, como nos masta iin Laplanche¢ Ponds (1984). Anim, predominou a segunda opyio que remontava d historia da humamidade, a flagénese, ou se, & possibilidade de que processos paiquicos cruciais & ‘expicie, vvides por nossos antepassados, pudessem ser fransmitdos a scus descendentes no mais perfeito estilo Jamarckista. Ox se, na tentativa de dar conta de uma fantasia, Treud acabou se wilizando de outra fantasia, Justamente a que tenta reconsttuir a histsria da civilizacto em paralelo com ¢ desenvolvimento do individu, Frend eleborou suas teorias sobre pressuposios bastante delicados. © primero, diz respeito & idea de que o desenvolvimento psiquico do individuo remonta & histéria da pripria civilizagdo, como se cada um de nds ‘epredusissenos os principaispassos de humanidace em nossa histria individual. £ @ novo de que a omtogénese repete a flogenese (MONZANI In PRADO JR.,1991). Hl também ai unt forte evolucionismo, na exata medida em que compara o estado primitivo da humanidade - a barbaric -& infancia, Io a crianga, em rlagdo ao ado, estara mum extigio de desenvolvimento psiquice equivalents ao dos primitives era relagdo nos civilizados.E nai A questio da cuitura 43 A cWwilizagdo para Freud se fundatia, porianto, a partir de um crime, cujo sentimento associado, decorrente da ambivaléncia afetiva, seria a culpa. Esta estaria na origem tanto da organizacdo social como das restrigdes morais e da tcligiao. Se um impulso sexaal levou 4 revolta dos filhos contra uma restrigao imposta pelo pai, a culpa decorrente de sua motte instaurou tanto a cultura quanto a consciéneia moral, 0 que nio se pode chamar de um inicio muito promissor: © a moral, sobre as necessidades da nova sociedade e sobre a peniténcia exigida pela consciéncia de Freud nio apenas afirmou a necessidade da dotninagdo sobre as pulsdes em favor da cultura, como também a instaurou como um fato universal que estaria na base do desenvolvimento da humanidade e do psiquismo humatto. Com a universalidade do complexo de ‘rianca primitivos se aproximariam da condigo que caraceriaa oneusétion baoe ‘mesmo paralelo é expresso em ‘lagHo a0 tabs do incesto, Tal como nassos antigo ancestaistivevama que abicar de ee ‘mpulos incestuosos Bars Constiuirem cuiturs, cada evianca também, para poder ter acesso a cultura, deve w submetee essa prolbigto, sob o risco de sucumbir 4 enfermidade mental e née poder viver: “civilizadamente” com seus taurado a proibicio do incesto, nossa cultura seria incerta, Permanecendo provayelmente mum estigio de burhivie ¢ promiscuidade. Este sco, de erta forma, passamos cada tum dens, quando sujitos aos sentimentos sexuais pelo progenitor da sexo oposto: Nhe dominar estas pulsdes ‘isnifica ndo superar & natureza rumo & cultura, wim passo pate ¢ enfermidade Psiquica, © neurético ¢ aquele que ‘Ho se liberta por completo dest relacio incestuose, de modo a vestar-Ihc um certo gtau de “infantilismo Friquice’, trgos de impulsosnaturas nfo devidemente domados. O “remote primitive” do animismo ¢ do passionalismo, da constituigdo uniforme da horda e da tentativa de tesponder 2 ti, to sentido de superar estas condicses rumo a tt individuation, racional. Ele & facio em elapes anteriores do desenvolvimente. t tibertagao desta rlagio que -gatante d ctianca um adequedo Getervolvimento psguico isto &, 0 mundo adult cvizado que Freud tnha por modelo, : © sezuneo pressupaso, decorrente do primero, diz respeito a rarsmisedo das caracteritcas hherdadas Peles nostosaticestris, que Freud chamou de “heranea de disposgdes adgivdas”,tinbore 2dmirador de Darwin, Freud nie hesiou em se uilizar de tests amarckista. Assim, o que ie ¢ heranca para 16s, foi adquirido na A questio da cultura 44 Edipo, a repressio as pulsdes sexuais ficou situada na origem da civilizagdo, na base constitucional da vida social. Cultuta e satisfaco pulsional estavam postas em campos opostos. Sua segunda obra, povém, de 1920, constituiu-se num texto mais problemitica porque Inviabilizava qualquer possibilidade de se construir uma cultura positiva. A partir de Para além de principio do prazer 0 conflito humano ganhava. unu ditensto pulsional ¢ tornava-se uma condi¢ao da propria natureza humana. Seb o “campo especulativo da metapsicologia” Freud procurow investigar a otigem do sofrimento de Homem, ndo no campo da historia da humanidade como em Totem e tabu, mas no campo bioldsico das pulsbes. Neste trabalho Freud sustentava a idéia de que, se por um lado, ha tuma fovea com tendéncia a um principio de constaucia de energia no aparelho psiquico, capar de proporcionar prazer, por outro, ha forgas que se pdem em sentido contrario, de modo que o resultado final nao se sealiza sempre em termos de prazer. As pulsdes posstiriam uma tendéucia natural & repeticéo, o que denominou de “obsessio de repeticao”"S, bem como de retorno a formas anteriores, ou seja, A involugao: “Uma pulsto seria, pois, uma tendéncia pripria do organico vivo a reconstrugao de um estado anterior, que o animado teve que abundonat sob 0 influxe de forcas exteriores, perturbadoras; uma espécie de elusticidade organica, ou. se Guiser, a mantfestagao da inércia na vida orgdnica.? (FREUD,1920/81:2525) Sua hipdtese foi que as formas primitivas (animado elementar) nao teriam tido ‘movimento préprio de transformagdo, fazendo-o somente por forga de pressdes externas, Sera, Portanio, exronea a impressio de serem as pulsdes organicas as vesponsiveis pela evolugao ¢ Progresso, quando, na verdade, estas se propoem a alcangar um “antigo fim”, Este fim “buscado? Pelas prlsdes onginicas seria, pata Freud, 0 retorno a uma condicto ja vivida, um primitive anterior uma vex abandonado pelo ser animado nos primérdios da propria vida. Isto significe ue As pulsdes sio conservadoras, tendendo ao retorno a um estado inanimado, ¢ que toda , "Freud chegou ¢ escrever neste trabalho que “nossa construcio eyeculativa etd mulo longe de toda cvidénci, «Produ urna impressto mistca, fazendo-nos suspeilos de haver tentadosaira todo custo de una emmburacosa stuagio” (1920/81:2530), fm 1985, esereveu a Jones dizerdo que “tudo isso é especulacdo tateante, até que xe fenha algo melhor? (In GAY,1989:369). A Reich também dria o mesmo (ver nota 19). "Sim outro trabalho, Freud ulizou, come explo desta obsessio de repetgto, a embriologia, bem como a ‘capacidade do organismo em se regenerar, a qual se deve as possibilidades de cura. C. FREUD. S, “Nuevas leeciones invroductoras al piconnalisis- Le angus yl vida iestintiva” [1983] in Obmgscomplats. tome Tl. op. cit. p 3161. A questio de cultura 45 evolugio foi decorréncia nao da acto delas, mas de influéncias exteriores ue vieram perturba Jas. Com isso, deduzia Freud: “Se como experiéncia'*, sem excecao alguria, temos que aceitar que todo 0 een ROPTE Por flundamentos internos, voltando ao inarghnico, poderomn chee A srmle ie 4 vida ¢ a morte, E com igual fundamento: O inanimando era ent que o Animado.” (1920/81:2526) [grifo de Freud} Diante disto ¢ incapaz de sustentar © duslisimo entre pulsdes eréticas (ou objetais) & pulsdes do ego", Freud passou a considerar duas grandes forgas opositoras, ambas pulsdes Prinuitias, responsiveis pela origem das psiconenroses: as pulsdes de ‘morte (Todestrieb) ¢ de Wida, ou “Eros”, Ditia ele uma décacla mais tarde em O mal estar na cultura _ Oi fendmencs vitais poderiam ser explicades pela interagio ¢ antagonismo de ambas, Forém, nio & nada fitcil demonstrar a ativilade desta hipotética pulsao de morte.” (1930/81:3050) “alureza husmana, Varios dos momentos cruciais da psicandlise se consteuiram sob esta nogao, Nunca, porém, como em Fara além do principio do prazer, a ceueldade hhavia ganho o estatuto de Pulsio, uma pulsio de morte, cuja evidencia estava melhor demonstrada no sadisimo. © mal fomnavarse intuinseco, a destrutividade era uma manifestacto da propria natureza humana, Como diz Gay, isso vinha confirmar 0 que a psicanalise jd pensava a respeito, que “os impulsos Fata ds Freud socrea do canter regressive das pulses repontave cm suas experiencia cinicas gers, Pepsiente nas obseebes de repetico de seus clientes -e mesmo de eu net, mc a quer us0u no texto posiiin unt lendncia ao desprezer. He porém ndo questionou a posibilidade disto nao ae. um processo Primario, como faz Reick. 1 Neste momento, Freud tazia a separagdo entre pulses objets cuja caractcisica €ra 0 investimento de libido {Comto nas pulses ensticas), e pulses do ego, ausentes de invesinento libidinal - uma modificagao do primeiro ‘iatiomo entre pulses sexusis ¢ de auto-conservagto, elahorudo em 1910, a libido, assim, somente estaria presente

Potrebbero piacerti anche