AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, Giorgio: O que é o
contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 25-51.
O autor inicia o texto aludindo à importância da terminologia na filosofia, e
propõe que o termo “dispositivo” seja decisivo na estrutura do pensamento de Foulcault. Partindo de uma entrevista de 1977, Agamben resume três pontos que podem compor uma definição para o termo. Nesse sentido, dispositivo: é um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título; tem sempre uma função estratégica; e resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. Seguindo essa definição inicial, busca traçar uma genealogia de “dispositivo”, referindo a outro termo utilizado anteriormente por Foulcault em seu livro A Arqueologia do Saber: “positivité”. Segundo Agamben, o termo, análogo a “dispositivo”, provém da filosofia hegeliana. Nesta, o conceito se significa a partir da oposição entre “religião natural” e “religião positiva”, e pode ser entendida como o elemento histórico, conforme elucida Hyppolite, citado no ensaio. É a positividade a coerção que interioriza no sistema de crenças e dos sentimentos dos indivíduos toda a carga de regras, ritos e instituições impostas por um poder externo. Foulcault, para o autor, tem como base de seu pensamento a investigação dos modos concretos em que as positividades / dispositivos agem nas relações, nos mecanismos e nos jogos de poder. Mais adiante, analisa a definição do termo “dispositivo” encontrada nos dicionários franceses de uso comum, e destaca três significados distintos: um jurídico, um tecnológico e um militar. Afirmando que todos estão presentes no pensamento foulcaultiano, o autor sugere que as três definições tenham surgido de um único significado, e se propõe a buscar o contexto histórico em que o termo moderno se originou. Partindo de pesquisas próprias, Agamben define o conceito de oikonomia segundo a genealogia teológica. O termo, grego, surge quando se começa a discutir sobre a Trindade. Assim, oikonomia é um conceito que se define por meio da cisão de Deus entre ser e ação: é apenas o modo como se dá sua administração. Para o autor, esta ação, ou práxis, não tem quaisquer fundamentos na ontologia, e é esse desvario a herança deixada pela teologia da oikonomia à cultura ocidental. O termo grego, trasladado para o contexto teológico latino, revela a sua relevância para a compreensão do objeto analisado no ensaio: oikonomia é traduzido como dispositio. Isto posto, é razoável afirmar que o conceito de dispositivo, conforme o uso na obra foulcaultiana, carrega toda a esfera semântica referida. Ademais, se relaciona mesmo com o Gestell de Heidegger. Positividade, Gestell e dispositivo, assim, apontam todos para o sentido de oikonomia dos teólogos: um conjunto de práxis, de instituições, etc., cujo objetivo é gerir, administrar os gestos e os pensamentos dos indivíduos. Agamben, então, propõe uma divisão do existente em dois grupos distintos: os seres viventes (substâncias) e os dispositivos nos quais são capturados. Em sua concepção, dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (p. 40). Os sujeitos estão entre as substâncias e os dispositivos, e resultam de sua relação. Um mesmo ser vivente pode, assim, ser lugar de múltiplos processos de subjetivação. O capitalismo é, em seu ponto de vista, marcado por uma intensa acumulação e proliferação de dispositivos, e estes não são um simples acidente, tendo sua raiz no próprio processo de hominização do homo sapiens, separando ser e ação, e assim tirando o vivente de si mesmo e da relação imediata com o ambiente que o cerca. Ademais, há em todo dispositivo o desejo de felicidade, e é na captura e na subjetivação deste desejo que se constitui a potência específica daquele. A estratégia que se deve adotar na relação com os dispositivos é, desse modo, a busca pela liberação do que foi capturado e separado por estes, e sua restituição ao uso comum. É essa a compreensão do autor, em consonância com Trebazio, do termo “profanar”: restituir ao uso e à propriedade dos homens o que era sagrado ou religioso. Para ele, toda separação conserva um núcleo religioso, e o dispositivo que a regula é o sacrifício. A profanação atua, portanto, como um contradispositivo, restituindo ao uso o que foi ritualmente separado. Todo dispositivo implica um processo de subjetivação, e visa à criação de corpos dóceis, que se assujeitam assumindo sua identidade. Portanto, só enquanto máquina subjetivante o dispositivo é também máquina de governo. O problema dos dispositivos contemporâneos reside justamente em sua incapacidade de subjetivação, sendo antes marcados por um processo de dessubjetivação. A negação da verdade de um sujeito não gera, nesses dispositivos, a verdade de um novo sujeito: o que há é uma indiferença recíproca entre subjetivação e dessubjetivação. Por fim, o autor alerta para um triunfo da oikonomia. Não há, nas sociedades contemporâneas, submetidas por uma enormidade de processos dessubjetivantes, uma subjetivação real, restando apenas um corpo social inócuo, tratado pelos dispositivos de poder, paradoxalmente, como terroristas virtuais. Esse governo providencial do mundo o conduz à catástrofe, e é daqui que advém o caráter de urgência da profanação.