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Sherlock Holmes ~Aventuras secretas

Organizado por Carlos Orsi e Marcelo


A. Galvão

Primeira edição

Editora Draco

São Paulo

2012
© 2012 by Octavio Aragão, M arcelo A. Galvão, Carlos Orsi, Cirilo
S. Lemos, Romeu M artins, Alexandre M andarino, Rosana Rios,
Lúcio M anfredi

Baseado na obra de Sir Arthur Conan Doyle

Publisher: Erick Santos Cardoso


Produção editorial: Janaina Chervezan
Organização: Carlos Orsi e M arcelo A. Galvão
Revisão: Allana Dilene, Cirilo S. Lemos e José Roberto Vieira
Arte e capa: Ericksama

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Ana Lúcia M erege 4667/CRB7

Sherlock Holmes - Aventuras Secretas / organizado por Carlos Orsi


e
M arcelo A. Galvão. – São Paulo : Draco, 2012.

Vários autores.
ISBN 978-85-8243-000-2

1. Contos brasileiros I. Orsi, Carlos II. Galvão, M arcelo A.

CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos : Literatura brasileira 869.93

Primeira edição, 2012

Editora Draco
R. José Cerqueira Bastos, 298
Jd. Esther Yolanda – São Paulo – SP
CEP 05373-090
editoradraco@gmail.com
www.editoradraco.com
www.facebook.com/editoradraco
Twitter: @editoradraco
Índice
Capa
Folha de rosto
Créditos
O grande jogo – uma introdução por
Carlos Orsi
A aventura do americano audaz um
relato póstumo de John H. Watson, MD.
~ Octavio Aragão
Das reminiscências do Dr. Ormond
sacker, clínico geral ~ Marcelo A.
Galvão
A aventura do falso Dr. Watson ~ Carlos
Orsi
O caso do detetive morto ~ Cirilo S.
Lemos
O caso do desconhecido íntimo ~
Romeu Martins
A aventura do Penhasco dos Suicidas ~
Alexandre Mandarino
Um estudo em azul ~ Rosana Rios
O punhal adamantino do vazio ~ Lúcio
Manfredi
Os cronistas das aventuras secretas
O grande jogo – uma
introdução por Carlos Orsi

Bem-vindo ao maior jogo de todos!


Há um século – mais precisamente,
em março de 1911 – o sacerdote
anglicano Ronald A. Knox apresentou, a
um grupo de estudantes da Universidade
Oxford, uma palestra que continua a
repercutir entre os apreciadores da
literatura de mistério em geral, e das
investigações do Sr. Sherlock Holmes
em particular, até os dias de hoje.
Publicada mais tarde, a fala do
sacerdote receberia o título de Um
estudo da literatura de Sherlock
Holmes. Nesse trabalho, Knox (que
depois viria a se converter ao
catolicismo), com fantástica erudição e
fino senso de humor, aplica as
ferramentas do método de análise
bíblica conhecido como Alta Crítica às
aventuras do Grande Detetive
publicadas até então.
Uma das características da Alta
Crítica é a extrema atenção ao detalhe,
ao anacronismo, à contradição; um
objetivo comum desse tipo de teologia
é, por exemplo, tentar separar dos
Evangelhos o que Jesus realmente disse
do que seriam palavras postas em sua
boca por gerações posteriores de
editores e copistas.
Aplicado a Holmes, o método
pressupunha que as histórias de detetive
criadas por Arthur Conan Doyle eram,
na verdade, extratos das memórias de
uma pessoa real, o Dr. John H. Watson;
que todas as contradições, todos os
erros factuais e históricos, todos os
deslizes, enfim, não seriam fruto da
pressa natural de um escritor de ficção
preocupado em terminar logo a próxima
história (e receber o próximo cheque),
mas problemas que requereriam
elucidação e, mais ainda, indicadores de
duas vidas – as de Holmes e Watson –
vividas majoritariamente fora da página.
As falhas de Conan Doyle, enfim, não
eram mais falhas, e sim sinais de que a
narrativa escrita, qualquer narrativa
escrita, representa, no fim, uma moldura
inadequada para conter a riqueza da
vida.
Knox não sabia disso, mas sua
palestra satírica desencadeou um dos
mais populares esportes intelectuais do
século XX (e que segue firme pelo
século XXI): o Grande Jogo, uma
empreitada global na qual homens e
mulheres de todas as profissões buscam
desvendar qual a “verdade” por trás da
página: quem era o Rei da Boêmia?
Qual o primeiro-ministro inglês que
visitou Holmes na Rua Baker? Afinal,
Watson sofreu sua ferida de guerra no
ombro ou na perna? Por falar nisso,
quantas vezes Watson foi casado, afinal?
E o que ele quis dizer quando escreveu
que tinha uma experiência com mulheres
“que cobria três continentes”?
Grandes mentes dedicaram-se a jogar
o Jogo. Rex Stout (conhecido como
criador do detetive Nero Wolfe) sugeriu
que Watson era na verdade uma mulher,
amante de Holmes. Numa nota só um
pouco menos polêmica, médicos
digladiaram-se em torno da questão do
consumo de cocaína por Holmes (afinal,
uma solução de 7% seria capaz de
induzir ao vício?).
Outros pontos de contenda são o que
aconteceu exatamente com Holmes
durante o “Grande Hiato” – o período
em que o detetive esteve oficialmente
desaparecido, de 1891 a 1893 – e o que
aconteceu com Mary Morstan, a
primeira (ou segunda?) mulher do Dr.
Watson. Alguns dos trabalhos reunidos
nesta antologia oferecem novos pontos
de vista para essas questões.
Conan Doyle, dizem os biógrafos,
reagiu ao trabalho de Knox com um
misto de espanto e bom-humor. O
espanto, em si, é emblemático: de todas
as pessoas que se envolveram, no último
século, com Sherlock Holmes, seu
criador talvez tenha sido a que mais foi
pega de surpresa pela própria criatura.
Inspirado pelas técnicas de
diagnóstico de Joseph Bell – um
professor de Medicina que surpreendia
os alunos ao deduzir a profissão e a
doença dos pacientes a partir da
observação de detalhes como o formato
das mãos ou o estado das roupas –
Conan Doyle vislumbrou, inicialmente,
uma dupla de investigadores formada
por Sherringford Holmes e Ormond
Sacker.
Quando a primeira história, o
romance Um estudo em vermelho, foi
publicada, os nomes já haviam evoluído,
felizmente, para Sherlock Holmes e John
H. Watson. Mesmo assim, Conan Doyle
demorou para perceber o valor do que
tinha criado: quando se propôs a adaptar
Um estudo para o teatro, a peça
resultante, Anjo das trevas, tinha como
protagonista o Dr. Watson; Holmes
sequer aparece no texto, que nunca foi
encenado e ficou perdido até poucos
anos atrás.
O segundo romance, O signo dos
quatro, tinha tudo para ser a última
aventura da dupla: ele termina com
Watson noivo e a parceria da Rua Baker
quebrada. Mas, convidado pelos
editores da revista Strand, Conan Doyle
inicia a série de contos – seriam
cinquenta e seis, ao todo – que garantiria
seu nome na história da cultura mundial.
Sobre os contos, o escritor gabava-se
de ter criado um novo tipo de ficção: a
série de aventuras fechadas com
protagonista constante, uma evolução em
relação aos antigos folhetins, nos quais
o mesmo enredo é prolongado por um
sem-número de capítulos. Em termos
televisivos, Conan Doyle foi o inventor
do seriado, em oposição à telenovela.
Todo mundo provavelmente já ouviu
falar da decisão do escritor de fechar a
segunda série de contos – Memórias de
Sherlock Holmes, que seguiu às
Aventuras de Sherlock Holmes – com a
morte do detetive, para assim poder
dedicar-se aos romances históricos que,
sentia, eram sua verdadeira vocação. Há
quem considere um desses romances –
Rodney Stone, sobre o início da
popularização do boxe na Inglaterra, no
fim do século XVIII – a obra-prima do
autor, ao menos quanto aos méritos
literários.
A pressão do público e as ofertas
cada vez mais principescas de
pagamento acabaram levando Conan
Doyle a trazer Holmes de volta.
Primeiro, em O cão dos Baskervilles,
numa espécie de flashback – a história
se passa anos antes da luta do detetive
com o maligno professor Moriarty, luta
travada em 1891 e à qual, pelo que se
sabia até então, nenhum dos dois havia
sobrevivido – mas o sucesso de O cão
tornou inevitável a ressurreição do
detetive, que viria a protagonizar mais
três séries de contos: O retorno, O
último adeus e Histórias de Sherlock
Holmes, além de um romance, O Vale do
Medo.
Esta última aventura longa de
Sherlock Holmes é muito negligenciada
– poucas pessoas, em comparação com
quem já ouviu falar em O cão dos
Baskervilles ou O signo dos quatro,
sabem da existência de O Vale – o que é
uma injustiça.
Nesse livro, publicado em 1914,
Conan Doyle traz ao mundo duas novas
formas que viriam a ser exploradas à
exaustão pelos escritores de mistério: o
Gambito Birlstone – um tipo especial de
reviravolta de enredo que não vou
entregar aqui, mas que nas décadas
seguintes virou clichê – e o detetive
hard-boiled, o tipo durão que depois
seria celebrizado por Dashiell Hammett
e Raymond Chandler. Safra vermelha,
talvez o mais violento e visceral dos
romances de Hammett, pode ser lido
como um longo comentário a O Vale do
Medo.
Se os romances escritos após a
“morte” de Holmes são provavelmente
os melhores da série, quanto aos contos
há opiniões divergentes. O próprio
Conan Doyle comentava que, certa vez,
um fã se aproximara para lhe dizer que o
Holmes que voltara da morte não era
mais “o mesmo homem”, implicando
uma perda de qualidade nas histórias.
Como o crítico canadense
Christopher Redmond nota, os contos da
segunda fase muitas vezes têm um
componente adicional de
sensacionalismo e, até, de sensualidade:
há, neste período, vários casos
motivados por ciúme, adultério, desejo
sexual reprimido. Muitos dos enigmas,
também, parecem indignos do grande
detetive: mais de um crítico já notou
como é inverossímil a demora de
Holmes em decifrar o código elementar
da Aventura dos dançarinos, por
exemplo.
A última história de Holmes, O velho
solar de Shoscombe, é de 1926, apenas
quatro anos antes da morte de Arthur
Conan Doyle. A despeito disso, com
uma única exceção – Seu último adeus,
que se passa na iminência da I Guerra
Mundial – todos os contos relatam casos
ocorridos antes de 1904, a maioria deles
a partir de 1881. No fim, Conan Doyle
estava fazendo ficção histórica, agora
também por meio de Holmes.
Depois de trazer o grande detetive de
volta dos mortos, o autor fez as pazes
com o personagem: ele reconhecia que
era a renda gerada pela paixão popular
por Sherlock Holmes que lhe permitia
perseguir seus outros interesses, como a
disseminação do espiritismo, religião
que abraçou e da qual foi o principal
apóstolo no mundo de língua inglesa.
No que talvez tenha sido o maior
tributo do criador à criatura, Conan
Doyle jamais usou as aventuras de
Holmes para disseminar sua religião:
outro personagem do autor, o Professor
Challenger, converteu-se, mas Holmes
se manteve sempre um racionalista
impávido, reafirmando que “fantasmas
não são necessários”.
Hoje, Holmes está mais vivo que
nunca, no cinema, na televisão – não
apenas em adaptações indiretas, como
no caso do Dr. House (que talvez seja
um retorno ao Dr. Joseph Bell): há um
novo seriado, até o momento inédito no
Brasil, que transpõe as aventuras do
detetive para o mundo atual – nos
quadrinhos e, claro, neste livro.
Nas próximas páginas, autores
brasileiros entram no Grande Jogo,
explorando não só o que Holmes
realmente fez durante o Grande Hiato, a
verdadeira causa da morte de Mary
Morstan ou o que Watson fez com seus
últimos manuscritos, mas também a
relação entre o grande detetive, seu
autor, o Dr. Bell e um dos precursores
de Holmes na literatura, o detetive C.
Auguste Dupin, de Edgar Allan Poe.
Ah, sim: você também terá a
oportunidade de descobrir a verdade
sobre o Conde Drácula. E de entrar, por
sua própria conta e risco, no maior jogo
de todos: o da imaginação.
A aventura do americano
audaz um relato póstumo de
John H. Watson, MD. ~
Octavio Aragão

A CULPA FOI DE MEU PAI. O coronel


achava que a família Aragão, antes de
descer da Espanha para Portugal,
tinha como origem não uma tribo
visigoda, mas franco-normanda, pois
nosso nome poderia ter-se originado de
uma corruptela do termo “draco”. Com
o propósito de desvendar esse mistério,
papai ocupou metade do ramo europeu
da família radicado em Portugal em
busca de provas que incluíam brasões,
túmulos cruzados e genealogias
esquecidas por Deus.
Foi a busca pela origem semântica
que fez com que meu tio Justo de
Carvalho pesquisasse as informações
que agora vêm à tona, mais de um
século depois do ocorrido. Justo era
um médico que estudou em Londres, na
Royal Academy, e tinha contatos bons o
suficiente que permitissem sua entrada
em certos círculos que poderiam ser de
origem maçônica. O resultado foi uma
maleta de couro coberta de selos de
viagem e lotada de papéis velhos que,
por causa da mudança posterior a meu
casamento, chegaram às minhas mãos.
Entre réplicas pintadas em madeira
do brasão da família, nos quais touros
e árvores desenraizadas pairam sobre
fundos vermelhos, e algumas ações do
metrô de Paris, que durante meses
alimentaram minha ganância até o dia
em que se revelaram lixo, havia um
maço de manuscritos datados de 1898
a 1900. Várias correspondências de
meu avô Nicolas Aragão a meus tios,
algumas em inglês e francês, envoltas
em um pedaço de linho. Junto a esses
papéis, uma carta de tio Justo
explicando que a busca pelo Dragão
Lusitano (como ele chamava a
obsessão de meu pai), em lugar de
resolver enigmas, elevou a
complexidade das charadas a um nível
que surpreenderia o mais imaginativo
dos paranoicos.
Pois foi no Brasil de 2011 que,
finalmente, veio a público um relato
que, apesar de antecipado por muitos
pesquisadores, jamais havia sido
comprovado. Nas palavras do biógrafo
do maior investigador criminal de
todos os tempos, “esta é a verdade a
respeito de como o hálito do dragão
(sic) quase infectou a humanidade” e
porque as origens de minha família
talvez não devam ser desenterradas,
sob pena de exumar um pesadelo
expurgado pela força da mente de um
homem excepcional.
O que segue é a transcrição – com
todos os erros advindos da tentativa
frustrada de um brasileiro, que não é
um literato, em repassar as estruturas
gramaticais de um médico inglês
vitoriano – da narrativa perdida. Tomei
a liberdade de acrescentar algumas
notas explicativas para facilitar o
leitor contemporâneo e a visão do
universo dessas pessoas. Qualquer erro
que choque os puristas é de minha
inteira (ir)responsabilidade.

Octavio Aragão
Londres, 1894, das reminiscências de
John H. Watson, M. D.

MANTER UM HOMEM como Sherlock


Holmes morto não é fácil. Depois dos
eventos ocorridos em 1891, o duelo
final contra o Professor Moriarty e as
férias no Oriente, possivelmente
resolvendo assuntos inacabados com a
Srta. Irene Adler, seria natural que meu
amigo construísse um novo plano de
carreira. Qual não foi meu espanto ao
chegar ao cômodo sito à rua Baker
221B, respondendo a um chamado
urgente, encontrar meu companheiro de
aventuras bem de saúde.
– Que bom que pôde dispor de uma
folga dos afazeres profissionais, Watson.
Chegou bem a tempo de testemunhar o
inusitado.
Nenhuma palavra a respeito de minha
viuvez. Típico de Holmes, acreditar que
os mortos evanescem dos corações dos
vivos quando os mistérios que envolvem
o passamento deixam de existir. Em
compensação, tenho de admitir que
também estava pouco interessado nos
afazeres de meu amigo enquanto usava o
codinome Sigerson em suas andanças
pelo mundo. Considerava-me um pouco
cansado de tudo aquilo, mas jamais me
furtaria a um convite expresso, nem que
fosse, apenas, para afastar da cabeça
pensamentos mórbidos.
– Não me diga que está envolvido em
outro daqueles casos repletos de
minudências escabrosas – disse, ao
pendurar o sobretudo e o chapéu no
cabide em frente à janela. Fingi não
perceber a movimentação na calçada do
outro lado da rua.
– Vejo que desenvolveu um sentido
de preservação no que diz respeito aos
capangas de Moriarty que cercam a casa
– disse Holmes. – Melhor assim.
Deixemos o bom professor acreditar que
respeito nosso acordo fechado à beira
das quedas de Reichenbach, quando
forjamos nossas mortes. Assim
disporemos de tranquilidade para
resolver outros problemas, não menos
fascinantes, enquanto preparo minha
resposta ao bandido.
– Francamente, Holmes, acreditar que
aquele pústula respeitaria um acordo de
cavalheiros é quase tão surpreendente
quanto crer na possibilidade da vida
após a morte.
– Curiosa escolha de palavras,
Watson. Mas o que sabemos realmente
sobre a possibilidade de uma vida
prolongada pela eternidade?
– Por favor, você jamais foi
supersticioso. E com seus vastos
conhecimentos sobre química, só pode
estar brincando ao sugerir tal absurdo.
– É por causa de meus conhecimentos
em química que afirmo que as
possibilidades de regeneração de
tecidos envelhecidos ou até
mumificados são inúmeras. O que
impediria que um organismo fosse capaz
de produzir alguma combinação de
substâncias que rejuvenescesse as
células ou que retardasse o
envelhecimento?
– Não gosto do rumo dessa conversa.
Mesmo quando os fatos apontavam para
um evento sobrenatural, como no caso
de Sir Henry, herdeiro dos Baskervilles,
você jamais se deixou levar por
sugestões estapafúrdias.
– Talvez seja hora de rever alguns
preconceitos – levantou-se e buscou um
livro sobre a mesinha de centro.
Tratava-se de um compêndio
encadernado do Dailygraph, de Whitby,
referente ao ano de 1892.
Holmes comentou em tom crescente:
– Estava em peregrinação à Pérsia
nessa ocasião, mas soube da tempestade
que assolou a Inglaterra, causando
destruição e pânico. Dentre diversos
casos curiosos relacionados ao desastre,
um chamou minha atenção.
– Por acaso você se refere à escuna
que chegou ao porto de Whitby, sem
passageiros ou tripulação?
– Exato. Vejo que, mesmo com a dor
pelo passamento da Sra. Watson, ainda
consegue manter o foco no que... aflige
nossos compatriotas.
Tive a impressão que Holmes
pensava em dizer “no que interessa”,
uma frase que colocaria em xeque nossa
amizade de maneira irreversível, mas
foi digno o suficiente para evitar a
grosseria.
– Se não estou enganado, havia algum
falatório a respeito de um cão ou lobo
negro que teria fugido da embarcação, e
que foi motivo de grande desassossego
nas noites seguintes, não?
– Sim, falou-se a respeito disso –
complementou Holmes, com escárnio –,
mas sabemos que cães fantasmas
geralmente não são o que aparentam. De
acordo com esse artigo publicado em
oito de outubro de 1892, no Dailygraph,
por um correspondente cujo estilo
exacerbado resvala no mau gosto, as
pessoas que avistaram o Deméter
aproximando-se do porto na noite
anterior à chegada desastrosa
assustaram-se ao perceber que
“amarrado ao leme havia um cadáver, de
cabeça tombada, que balançava para
frente e para trás ao sabor do movimento
do barco”. E o desfile de horrores
continua, numa repetição de efeitos
calculados para emocionar o populacho.
Francamente, Watson, questiono a
respeito da qualidade da imprensa do
futuro se essa onda de sensacionalismo
continuar. Espero que as concessões
comerciais às quais você se permite ao
relatar nossas, como chama, aventuras,
jamais cheguem a esse nível.
– Meus editores na Strand Magazine
não desceriam tanto, Holmes, mas
jamais devemos nos esquecer do
público, que tem vontades e quereres.
Um pouco de emoção, creio, não está
completamente deslocado no texto
jornalístico.
– Ridículo. Faríamos um benefício a
todos se nos mantivéssemos restritos aos
fatos. Esses rompantes emocionais
deveriam ser proibidos, pois contribuem
para a manipulação da sua sacrossanta
vontade pública. Watson, as emoções
são a ferramenta dos ditadores, armas
perfeitas para o controle das massas.
Que teria sido da Revolução Francesa
sem os discursos inflamados de Danton,
Marat e Robespierre? Talvez apenas um
levante desordenado.
– Agora você é contra os ideais
revolucionários de seus bisavós,
Holmes? – perguntei, irônico.
– Ah, meu caro, os Vernet,
antepassados de minha mãe, jamais
foram revolucionários. Quando a
situação apertou, mudaram-se para esta
ilha. Infelizmente, perderam muito da
influência e das posses, mas não posso
reclamar, pois eu e meus irmãos fomos
muito bem criados. Não sei se os tão
propalados ideais revolucionários não
seriam apenas bazófia que serviria para
colocar tiranos no lugar de tiranos.
Ainda não vi revolução que não
fechasse um ciclo de 360 graus,
deixando tudo no mesmo lugar.
Sorri com as ideias reacionárias de
meu amigo. Ele, mais do que ninguém,
sabia que a situação política no mundo
era instável, com novas ideologias de
caráter radical brotando como ervas,
mas tratei de voltar ao tópico marítimo.
– E o navio fantasma, o que mais tem
a me dizer?
Holmes sublinhou com o dedo uma
passagem do encadernado, lendo.
– “Houve, é claro, um estrondo
imenso quando o navio atingiu o banco
de areia. Todos os mastros principais e
o cordame estavam atados e alguns
auxiliares despencaram. Mas o mais
estranho, no momento em que o barco
tocou o cais, um cachorro imenso saltou
do deck como uma bala e, correndo,
pulou sobre uma pequena duna”.
– Eis aí o quadrúpede – falei.
– O animal desapareceu, mas o
melhor vem depois – continuou Holmes
–, o repórter teve acesso ao corpo do
marinheiro preso ao leme e relatou: “o
homem estava simplesmente atado pelas
mãos, amarradas uma sobre a outra, a
um dos pegadores da roda do leme e
tudo bem seguro pelas cordas”. A seguir,
revela que havia feridas abertas pela
fricção das cordas, que cortaram a carne
até os ossos.
– É bem possível que tenha
acontecido – comentei. – Se o Deméter
atravessou tempestades, a movimentação
deve ter sido violenta.
– Foi o que pensei – respondeu
Holmes –, mas há mais detalhes
interessantes. Um cirurgião local, Dr.
Caffyn, atestou que o capitão estava
morto há dois dias e em seu bolso havia
uma garrafa que continha um papel
enrolado. Um artigo do dia seguinte,
afirmava, sabe-se lá com que acuidade,
que o defunto trazia um crucifixo
enrolado nos dedos.
– Um momento, se ele era o único a
bordo, quem o amarrou ao leme?
– Dizem que apertou as cordas com
os dentes. Queria saber sua opinião a
respeito desse detalhe. É possível?
– Talvez, se o desespero for grande,
mas não confiaria em nós atados assim.
Os músculos do maxilar são fortes, mas
os dentes talvez não aguentassem a
pressão.
Holmes soltou outra baforada.
– Ou seja, poderia haver outra pessoa
ali que, por algum motivo, queria
mascarar suas ações, dando a impressão
que o capitão prendeu-se sozinho.
– Mas o navio estava deserto, não é?
– De acordo com o papel que
acharam na garrafa, sim. Interpretaram o
manuscrito como se fosse o relato do
capitão, mas pelo que o Dailygraph
publicou, tenho a impressão de que o
texto foi escrito por alguém com um
vocabulário melhor do que seria
esperado não apenas da vítima, como da
ocasião em que os fatos sucederam.
– O jornalista pode ter sido
acometido por um surto de criatividade
e reescrito o original.
– É possível, mas segundo os
registros do cais, a carga do Deméter,
que consistia apenas de algumas caixas
grandes carregadas de terra,
desapareceu depois de reclamadas por
um certo Sr. Billington, advogado. Teria
pertencido a um cliente rico, que fretou
o barco especialmente para esse
transporte. O representante do Sr.
Billington, pelo que pude averiguar,
contraiu uma doença e morreu pouco
tempo depois do serviço. Imagine um
homem culto e de origem nobre,
viajando incógnito em companhia de seu
animal de estimação, um cão negro, por
exemplo, e acometido por uma doença
altamente contagiosa, motivo pelo qual
se viu obrigado a abandonar sua pátria,
sob ameaça de seus conterrâneos.
Lembre-se de que a Romênia é uma terra
conhecida por suas belas paisagens e
pela tendência ao misticismo.
– Concordo que tantos
desaparecimentos parecem
convenientes, mas você está mais
tortuoso que o normal.
– Meu caro, chamei-o aqui com certa
antecedência para conversarmos a
respeito dessas preliminares. Recebi
ontem este cabograma confirmando a
chegada de certo cavalheiro originário
dos Estados Unidos, que há semanas
enviou-me uma proposta de trabalho
irrecusável.
Holmes passou-me a carta, na qual se
lia uma história de dor e perda diante da
qual minha própria viuvez empalidecia.
Um velho milionário chamado Paul
Morris, dono de terras no Texas,
permitiu que seu único filho, Quincey, na
época com dezoito anos, viesse à
Inglaterra para cortejar uma certa Srta.
Westenra. Ao que parecia, de acordo
com a última carta enviada pelo rapaz, o
projeto arruinou-se, pois a moça
preferiu casar-se com um amigo do
pretendente, A. Holmwood, Lord
Godalming. Digno a ponto de não se
aborrecer com a decepção, Quincey
decidiu ficar para as bodas e
horrorizou-se quando, um mês antes do
casamento, a moça faleceu vítima de
uma doença indetectada pela ciência.
Neste ponto da leitura, levantei os olhos
para Holmes.
– Trata-se da mesma moléstia que
acometeu o representante de Billings?
– Pode ser, mas continue a leitura.
Depois da morte da Srta. Westenra, as
notícias tornaram-se esparsas. A última
carta, em tom de urgência, declarava sua
intenção de partir numa campanha
belicosa até os Cárpatos romenos, em
perseguição a um bandido que teria
manchado a honra de dois amigos, um
deles o tal A. Holmwood. As cartas de
Paul Morris endereçadas a Lord
Godalming não tiveram resposta e o
velho gastou parte da fortuna em busca
do filho.
– Por que ele não veio direto a nós?
Meu amigo franziu a testa.
– Não estávamos disponíveis, e
Morris viu-se obrigado a apelar para
amadores.
– Ao menos, parece-me correto
afirmar que o facínora atrás do qual
partiu o jovem Morris pode ser o cliente
de Billings e, numa suposição mais
arriscada, também o responsável pela
doença que abateu, no mínimo, duas
pessoas.
– Ainda é cedo para considerar tais
relações como fato, mas creio que
alguns detalhes serão esclarecidos em
segundos, já que nosso convidado acaba
de chegar.
Era verdade: um coche estava parado
junto à nossa porta e, apesar de não
poder enxergar com clareza o homem
que saía pela portinhola, deduzi pelo
andar que era alguém acostumado ao
lombo dos cavalos.
Em instantes, a Sra. Hudson bateu à
porta, anunciando o cavalheiro
Christopher Paul Morris, do Texas. Um
homem próspero, simples e forte, foi
minha conclusão imediata. A jaqueta de
couro puída nos cotovelos e a calça de
brim, típica dos mineiros de sua região,
contrastavam com as botas de qualidade,
provenientes do couro de algum animal
selvagem. O rosto, por volta de seus
sessenta anos, era saudável, mas
trespassado por sulcos. Imaginei se
conseguiria suportar a perda de um
primogênito com o mesmo aparente
estoicismo. Se a ausência de Mary já me
fazia sentir incompleto, o
desaparecimento de um filho a quem
tivesse dedicado vinte anos de minha
existência soava como a dor suprema.
– Sr. Holmes – disse o recém-
chegado, dirigindo-se a mim –, é um
prazer encontrá-lo depois de tanto
tempo.
Foi Holmes quem quebrou o mal-
estar:
– Creio que o senhor terá diversas
ocasiões para cumprimentar meu sócio e
amigo, o Dr. John Watson, pois sua
competência como médico é
reconhecida até pela Família Real, mas
receio que neste momento seja eu o
merecedor de sua vênia, Sr. Morris. Por
favor, acomode-se enquanto peço à Sra.
Hudson que providencie um chá de
ervas que alivie sua dor de cabeça.
O velho gaguejou:
– Como pode saber a respeito da
enxaqueca que me acompanha desde que
cheguei à Inglaterra?
Holmes torceu o canto direito da
boca, quase num esgar de satisfação:
– Os vincos na testa somados às
manchas avermelhadas nas pontas dos
dedos foram indícios suficientes de que
vem apertando as têmporas
constantemente. O engano a respeito de
nossas identidades chamou minha
atenção para o fato do senhor não estar
enxergando perfeitamente ou não dar a
devida importância aos detalhes, já que
seu temperamento minucioso o teria
levado a pesquisar tudo a meu respeito,
incluindo minha aparência. Confundir-
me com o meu amigo Dr. Watson, que é
um homem bem-apessoado, só poderia
ser resultado de uma distração
imperdoável ou de uma dor lancinate
que alterasse os sentidos, obrigando-o a
semicerrar os olhos.
Ao terminar a frase, foi encomendar o
chá à Sra. Hudson. O pobre velho
desabou na cadeira e pareceu acometido
por um ataque de histeria, algo em
desacordo com a aparência inicial.
– Se havia alguma dúvida que meu
filho pode ser encontrado – disse a mim
–, agora está tudo resolvido. Já
considero Quincey entre nós, são e
salvo.
Meu amigo, voltando ao recinto,
retrucou:
– Asseguro-lhe que não há mágica
alguma envolvida em meu trabalho.
Atrevo-me eventualmente a chamar de
arte o que professo, mas nem por isso
me apressaria em presumir que seus
problemas estão resolvidos, muito pelo
contrário. Gostaria de ouvir a respeito
de certos detalhes pouco aprofundados
em nossa correspondência, como, por
exemplo, o tipo de amizade entre seu
filho e Lord Godalming.
– Arthur e meu filho eram
aventureiros. Acamparam algumas vezes
às margens do Titicaca, cavalgaram
juntos e mantiveram a admiração mútua
mesmo ao disputar a mesma mulher.
Creio que foram amigos até o final, pois
Quincey, em sua última carta, que releio
vinte vezes ou mais por dia, assegurou-
me que iria até o fim do mundo para
vingar a honra de Arthur e dos novos
companheiros. Afirmou que, de acordo
com a criação que recebeu de mim, as
coisas não poderiam correr de maneira
diferente. Os filhos, Sr. Holmes, têm
uma maneira curiosa de responsabilizar
os pais por suas atitudes irresponsáveis.
Holmes tocou o ombro do consulente.
– Tenho certeza que seu filho soube
honrar o nome da família e fez o que
estava a seu alcance para levar o
criminoso à Justiça, mas concordo com
o senhor que tamanho ato de heroísmo,
cuja extensão ainda não conhecemos,
não pode passar em branco. A última
carta, por favor.
Percebi que Holmes estava decidido
a desvendar o mistério do jovem que
cavalgou até os Cárpatos, perdido numa
vingança que, se analisada de maneira
pertinente, não lhe dizia respeito.
Morris retirou a folha dobrada do
bolso do paletó e passou a Holmes, que
sacou a lupa e analisou o documento. O
texto, curto e direto, sem explosões
emocionais, dizia:
Estimado pai:
espero que esta pequena satisfação
de meus descaminhos o encontre em
boa saúde e desfrutando da merecida
tranquilidade de Old Corral.
Saiba que estou bem, na companhia
de bons e valentes companheiros,
cumprindo o que o senhor me ensinou:
tentando ser honesto com meus
sentimentos e fazer o melhor por quem
sinto afeição. Por causa de meus ideais
de honra e sinceridade, estou
empenhado numa aventura que, se não
isenta de perigos, ao menos é uma
cruzada justa, que resultará num
mundo melhor quando cumprirmos
nosso dever de cavalheiros.
Na antecipação do breve reencontro,
despeço-me por enquanto com um
abraço afetuoso.

Seu filho,
Quincey

– Esta missiva nos diz que a situação


na qual seu filho estava envolvido era
mais perigosa que o tom do texto deixa
transparecer – disse meu amigo. – A
carta foi escrita num momento de
relativo conforto entre diversas
situações extremas, pois as nódoas
acastanhadas no canto superior do
papel, vestígios de impressões digitais
de polegar direito, comprovam que o
jovem Quincey carregou rifles pouco
antes de sentar-se a uma mesa de mogno
sem cobertura de verniz, sobre a qual
escreveu esta carta em estado de
ansiedade. Os veios da madeira crua são
visíveis no verso do papel,
determinando a natureza do material
sobre a qual foi pressionado. Pelo
tremor de certas hastes horizontais,
principalmente nos Ts, o rapaz devia
estar em algum meio de transporte,
barco ou trem. Com certeza o segundo,
já que o ritmo dos grafismos é intenso,
diferente da sinuosidade que seria
impressa ao fluxo do texto caso
estivessem em um barco.
Depois de um segundo de
introspecção, seguido da entrada da Sra.
Hudson com o chá, Holmes devolveu a
carta a Morris.
– Quincey testemunhou eventos
surpreendentes ou estava ansioso por
descarregar a raiva, como os borrões
deixam antever. Notem que, em
determinado ponto, há uma mancha
maior, que destoa do resto dos traços
onde a pena feriu o papel, marcando o
local onde a ponta quebrou em
consequência da força empregada sobre
a superfície. Havia urgência em
escrever, pois a inclinação do
manuscrito denota pressa. Quincey e
seus companheiros deviam estar prestes
a sair em disparada, já que a assinatura
termina com um traço maior que o
necessário, a pena deslizando ao sabor
do meneio do pulso, ansioso para largar
seus afazeres caligráficos. Infelizmente,
a folha foi muito manuseada, o que
impede maiores análises, mas creio que
podemos inferir que o nível de tensão
emocional era alto, como se Quincey e
seus amigos estivessem a caminho de um
confronto definitivo. O que precisamos
fazer é entrevistar os companheiros de
viagem de seu filho e arrumar as peças
do jogo para que, eliminando o
impossível, o que restar, por improvável
que pareça, seja a verdade.
Paul Morris encarou o forro do teto,
saliva brilhando no canto da boca
entreaberta. Eu receava uma crise
nervosa, pois testemunhei alguns homens
privados da razão pela dor extrema
reagirem de maneira parecida antes de
cometerem uma loucura. Em lugar disso,
nosso visitante falou num fio de voz:
– Até onde sei, todos os
companheiros de viagem de meu filho
estão vivos. Além de Lord Godalming,
há um médico, Seward, que dirige uma
casa de lunáticos em Whitby, o
advogado Harker, que pelo que entendi,
foi quem começou toda essa história, e
um holandês que não se encontra mais na
Inglaterra. Disseram-me que esse velho,
apesar de cientista, é obcecado por
crendices e fantasmas, coisas caras a
vocês do velho mundo. Há também uma
moça, a esposa de Harker, que faz parte
da curriola. Todos voltaram vivos da
Romênia, ou seja, de onde largaram meu
filho, e recusam-se a me receber. Talvez
o senhor, como súdito da Coroa, tenha
mais sorte.
– Considero-me a seu serviço a partir
deste momento, Sr. Morris – disse
Holmes. – Não descansarei até que toda
a verdade venha à tona. A soma total de
meus honorários e a quantia devida a
meu sócio, o Dr. Watson, serão enviadas
ao senhor ao final do caso.
– Seja qual for o preço, o dinheiro é
seu. Apenas traga alguma notícia
definitiva.
Despedimo-nos e o acompanhamos
até a porta, para assegurar que os vigias
de Moriarty não tentassem nada. Um
lado meu chegou a torcer que algo
acontecesse, pois apostava que um
rompante daquele velho, no estado em
que se encontrava, acabaria por livrar
Londres de dois ou três facínoras, o que
não seria má ideia, mas nada aconteceu
e o norte-americano pôde voltar a seu
hotel, assombrado por uma entidade pior
que qualquer fantasma britânico.
Holmes fechou a porta.
– Watson, o jogo começou.
O plano de ataque de Holmes era
simples e direto: entrevistar todos os
envolvidos. Descobrimos o paradeiro
de Arthur Holmwood graças aos
contatos de Mycroft Holmes no Clube
Diógenes, em Pall Mall, e apenas a
influência do irmão mais velho de
Holmes foi capaz de dobrar a má-
vontade do herdeiro dos Godalming.
– Você bem sabe que vou cobrar por
esse favor, Sherlock – disse Mycroft
Holmes, afundado em sua poltrona
preferida na Sala dos Estranhos,
aposento reservado para a recepção dos
não-sócios do Clube. – Lord Godalming
não é alguém que eu possa ficar
importunando quando me dá na veneta.
Trata-se de um homem que já fez muito
pela Câmara dos Lordes e pela
Inglaterra, além de ser uma alma
torturada, verdadeiro herói romântico,
se é que este país já viu algum. Nem
queira saber o inferno pelo qual esse
cavalheiro já passou.
Holmes suspirou.
– Perdoe-me, Mycroft, mas é
exatamente isso que desejo perguntar a
Lord Godalming. Talvez sirva de
consolo saber que, em troca desse favor,
coloco-me a sua disposição para
qualquer serviço, pela metade do que
cobro normalmente.
– Combinado – respondeu o outro
Holmes. – Na semana que vem reserve
um horário em sua agenda. Um horário
longo.
– Vamos, Watson, receio que fomos
dispensados.
Mycroft esboçou um sorriso que
escavou suas bochechas.
– Você é o mais perspicaz da família,
Sherlock. Até a semana que vem.
A chuva à saída do Clube Diógenes
foi um alívio.

– O que pretende perguntar a Arthur


Holmwood? – perguntei, mais grosseiro
que o normal. – Se por acaso ele
abandonou o amigo à morte? É isso?
Porque, se for, talvez seja melhor
pendurarmos uma corda no teto e nos
enforcarmos aqui mesmo. Poupará
dinheiro e tempo à Corte.
O balanço do carro, ao contrário do
que seria de se esperar, atacava meus
nervos, mas Holmes, geralmente mais
afeito a crises de neurastenia, mantinha-
se imune ao mau humor, ocupado em
transformar o ambiente em uma sala
defumadora com as emanações do
cachimbo. Seriam duas horas de viagem
até Godalming Manors, chegaríamos por
volta do meio-dia, o que impregnaria
minhas roupas com o cheiro de tabaco
de tal maneira que já contabilizava a
fortuna que gastaria com a lavanderia.
Pensei que por mais que eu mesmo
cultivasse o hábito do fumo, um fog
particular não correspondia à minha
ideia de conforto.
Holmes passava o tempo olhando
pela janela do coche. Como não
consegui ver graça numa paisagem
nublada, saquei o Times, que trazia
notícias da guerra entre duas quadrilhas
ocorrida na noite anterior. Michael The
Peg e Peter Butler, criminosos que
ascenderam depois do desaparecimento
de Moriarty, tornaram-se sócios e
tentavam ampliar o território invadindo
casas de tolerância controladas pelo
bando do Coronel Sebastian Moran,
morto recentemente na prisão. A batalha
resultou em doze mortos e vinte feridos,
mas Peg e Butler escaparam da polícia,
que chegou ao local comandada pelo
inspetor Arthur Cross. O detalhe mais
curioso era que não havia referência a
quem estaria no comando da tropa de
Moran.
– Moriarty está tentando botar ordem
na casa – disse Holmes, lendo sobre
meu ombro –, ceifando o mato do
quintal, exterminando os parasitas e
recuperando o terreno perdido. Aposto o
quanto quiser, Watson, que Peg e Butler
não duram um mês.
Baixei o jornal, perplexo.
– E você acha isso correto? Esses
marginais se matando noite adentro,
ameaçando inocentes, transformando
Londres num açougue...
– Poupe-me dos sermões – disse
Holmes, com um sorriso. – Enquanto
estiverem envolvidos nessas guerras
particulares, podemos ficar
descansados. Derramar o sangue dos
inocentes não é do interesse de nenhuma
das partes, por enquanto. Os problemas
virão depois, quando o professor iniciar
os planos de unificação das diversas
quadrilhas do país. Isso, porém, ainda
demora uns meses e, além de tudo,
confio no inspetor Cross que, diferente
de Lestrade, tem um cérebro na caixa
craniana.
Por mais sentido que fizesse, o
discurso de Holmes me incomodava.
Pior do que evidenciar uma trégua com
o nefasto professor Moriarty, deixava
antever uma sombra de respeito pelo
facínora. Parecia que a estada no leste e
o convívio com a Srta. Adler, que,
convenhamos, era uma criminosa
aparentemente regenerada,
transformaram meu amigo em outra
pessoa.
O resto da viagem transcorreu em
silêncio, mas ao menos o céu abriu
assim que saímos do perímetro urbano.
A chegada a Godalming Manors
aconteceu sob um sol moderado. Fomos
recebidos por Arthur Holmwood a 500
metros da entrada da propriedade, sobre
um belo cavalo negro, trajando apenas
calça de montaria e uma camisa branca,
como um cavalariço. O único detalhe
que traía sua qualidade eram as
belíssimas botas de couro de jacaré. À
boleia trazia um rifle de caça da marca
Renfield e uma faca Bowie. Penduradas
do lado direito da sela, duas perdizes.
Mortas, é claro.
– Boa tarde, Lord Godalming – disse
meu amigo, pela janela do coche. – Sou
Sherlock Holmes e este é o Dr. John
Watson, meu associado. Espero que
tenha recebido o cabograma de meu
irmão Mycroft, anunciando nossa visita.
A impertinência de Holmes não
passou despercebida. O verbo anunciar
substituindo, de maneira canhestra, um
“solicitar” ou, por que não, “implorar”,
não caiu bem. Com o semblante fechado,
Holmwood respondeu olhando por cima
do coche, como se falasse com dois
criados impertinentes:
– Recebi a solicitação do Sr. Mycroft
Holmes e cedi a este encontro por honra
à memória de meu pai, o décimo
primeiro Lord Godalming, que
considerava seu irmão em alta conta. Se
os senhores tiverem a fineza de
seguirem, encontro-os à porta da
mansão.
O jovem taciturno deu meia-volta e
partiu trotando. Solicitei ao cocheiro
que se dirigisse ao prédio de contorno
geométrico. Chegamos antes de
Holmwood e dispensamos o coche,
estabelecendo que voltasse para nos
buscar por volta das três da tarde. O
homem ficou feliz quando coloquei em
seu bolso cinco shillings [1] além do
combinado, e saiu em direção ao
estábulo. Pouco depois, Holmwood
apareceu e desmontou com cuidado,
caindo sobre as pontas dos pés, e
apertou a mão de Holmes sem a
determinação que se costuma esperar de
pessoas genuinamente respeitadoras. Era
apenas um ato reflexo, mas meu amigo
não pareceu se importar.
– Talvez uma compressa ajude a
minorar a dor nas nádegas, pois três dias
suportando tamanho incômodo é tempo
demais – disse Holmes enquanto
segurava Lord Godalming num aperto
impossível de ser ignorado. A expressão
de surpresa do jovem foi impagável.
Esse era um dos motivos pelos quais
valia a pena ser colega de Sherlock
Holmes. Poucas pessoas têm o
privilégio de ver um nobre ser
humilhado de maneira tão original.
– Como pode saber que me
machuquei há três dias? – perguntou
Artur Holmwood, tentando se soltar. O
nariz adunco de Holmes aproximou-se
do rosto do cativo e, depois de um
segundo, respondeu com voz pausada.
– Eu não sabia até senhor confirmar.
Percebi que cavalga evitando encostar a
parte posterior do corpo na sela e que,
no momento em que saltou do cavalo,
evitou que seus calcanhares tocassem o
chão, jogando todo o peso do corpo nas
pontas dos pés. Se o acidente tivesse
acontecido ontem, o senhor não estaria
conseguindo tocar o chão, mas eu não
tinha certeza da quantidade de dias. O
que importa, porém, é que estou correto,
não é?
Holmwood soltou a mão e adentrou a
mansão como se Holmes tivesse parte
com o diabo. Sem esperar convite,
seguimos nosso anfitrião por uma
antessala vazia.
– Watson, estamos lidando com um
homem que não liga para as posses deste
mundo. Note como as paredes estão
cobertas por teias de aranha e perfurada
por inúmeros rombos decorrentes de
falta de conservação. Longe de
representar descaso, creio que Lord
Godalming decidiu apegar-se ao que
realmente importa, afastando-se dos
falsos luxos.
Aquele decididamente não era o
Holmes que conheci. Toda essa
conversa a respeito de lado material da
vida me lembrava alguns mendigos nas
ruas de Cabul, que quase sempre
terminavam suas pregações espetando o
corpo com agulhas de trinta centímetros,
como se aquilo comprovasse a
inexistência da dor. Todos, de acordo
com minhas observações, podiam ser
classificados em dois tipos; os
charlatões e os loucos.
Entramos no salão principal e demos
com Holmwood servindo-se da água de
uma ânfora de barro. Nada de vinho ou
bebidas fortes à vista, nenhuma
decoração nas paredes. Apenas uma
poltrona confortável frente à lareira e
uma mesa enorme, com quatro cadeiras.
– Cada vez gosto mais deste rapaz –
cochichou Holmes.
– Desculpem a falta de conforto –
disse o Lorde –, mas austeridade tem
sido meu principal objetivo há algum
tempo.
– Anos, talvez – respondeu Holmes. –
Afinal, demora algum tempo para se
livrar do acúmulo de posses que
gerações de nobres costumam reunir. As
intrincadas teias de aranha no teto
denunciam um desleixo que dura mais
do que poucos meses.
– Eu aceitaria um copo de água –
falei, tentando minimizar a grosseria de
Holmes. Enquanto aceitava a caneca,
percebi que os olhos daquele Lorde
eram comparáveis aos dos combatentes
veteranos. Tratava-se de um homem de
quase trinta anos, mas cujos ombros
envergavam como os de um velho,
mirando o chão a cada passo.
– O que querem, afinal? – perguntou.
– Informações a respeito do
paradeiro de Quincey Paul Morris –
disse Holmes.
Holmwood riu.
– O pai dele resolveu tomar uma
atitude? Largou a fazenda e veio saber o
que aconteceu ao filho?
– Digamos que depois de algumas
cartas que Milorde jamais respondeu, o
Sr. Paul Morris tenha resolvido ser mais
direto e contratou-me para desvendar o
mistério. Porém, creio que precisamos
de um mínimo de conforto para
iniciarmos os trabalhos.
Holmwood aproximou-se de Holmes.
– Não tenho intenção de ser ofendido
em minha casa por alguém que não
reconheço...
– ...como igual, Milorde? Seriam
essas as suas palavras? Pouco
condizentes com a atual postura
libertária e altruísta. Diferente da
mobília, velhos hábitos são difíceis de
abandonar, suponho.
Holmwood fechou o punho direito e
tentou atingir Holmes no rosto, mas foi
surpreendido pela velocidade de meu
amigo, que antecipou a investida,
assumindo postura de ataque de boxeur.
Acertou dois socos no baço e um no
queixo de Holmwood, derrubando-o
com um fio de sangue escorrendo do
lábio partido. Ao final da saraivada,
Holmwood mal se aguentava de pé, e
tivemos de sustentá-lo pelos braços,
com Holmes segurando um lenço com as
mãos enluvadas sobre o corte no beiço
do adversário.
– Há alguma cadeira aqui ou teremos
de expor Milorde ao chão gelado? –
perguntei. Holmwood, respirando com
dificuldade, apontou para uma porta que
levava ao corredor principal. De lá,
carregamos o herdeiro de Godalming
Manors até um escritório amplo, onde
sentou-se numa cadeira de espaldar
trabalhado, diante de uma escrivaninha
insculpida com motivos florais.
– Um belo projeto de Sir Robert
Lorimer, sem dúvida [2] – disse
Holmes, referindo-se à mobília. – Os
poucos móveis que restam são dignos de
constar numa mostra do melhor da
produção contemporânea. Lord
Godalming é um homem de bom gosto.
– E o senhor fala demais para quem
tem fama de circunspecto – respondeu
Holmwood, ganhando fôlego.
– Pode ser, mas estou aqui como
ouvinte. Se tiver a bondade de nos
contar sua versão dos fatos relacionados
ao desaparecimento do Sr. Morris,
prometo não interromper.
Holmwood transformou-se. Rugas
espraiaram como gavinhas, um reflexo
do velho que seria.
– Quincey jaz no solo impuro de um
castelo nos Cárpatos e isso é tudo.
– Longe de ser “tudo”, Milorde –
disse Holmes, quebrando a promessa –,
soa como um epitáfio mal redigido.
Deduzo que o senhor e seus amigos
abandonaram o companheiro ferido em
território hostil. Crime é um termo fraco
para o que perpetraram.
– Era necessário. Não teríamos como
voltar e enfrentar a horda de ciganos
caso se reorganizassem. Tínhamos de
cuidar dos vivos.
Holmes apoiou o quadril na
escrivaninha, buscando uma posição
mais confortável. Eu, porém, não
conseguia relaxar. Sentia ganas de
repetir a sessão de golpes que meu
amigo desferiu momentos antes, mas a
curiosidade pelo destino de Quincey
Morris impeliu minhas mãos a
segurarem o jovem-velho pela gola da
camisa e sacudir até, quem sabe, fazê-lo
vomitar o pouco do orgulho que deveria
fluir de um Lorde britânico, em lugar do
muco que aparentemente corria em suas
veias.
Holmes afastou-me, deixando claro
que estava no comando.
– Os detalhes do evento, Milorde.
Como chegaram a esse ponto? Creio que
as moças devem estar envolvidas, ou
não teriam se dado ao trabalho de levar
uma delas ao covil de um suposto
bandido. Qual o papel delas, além do
óbvio objeto de desejo, nessa tragédia?
– E qual mais poderia ser?
Precisávamos defender a honra das
moças no que fosse possível. Falhamos
no salvamento de Lucy das garras
daquele monstro, mas não deixaríamos
Jonathan passar pela mesma dor que eu.
Acrescentei o item “desrespeito pelo
sexo frágil” à lista de defeitos de Arthur
Holmwood. Holmes não parecia
alterado.
– Por monstro, suponho que o senhor
se refira ao nobre romeno que estava em
processo de mudança domiciliar para
Inglaterra.
– Não havia nada de nobre, ali.
Tratava-se de uma doença em forma
humana, um cancro.
– Desculpe, Lord Godalming, mas
apesar do peso de seu título e de sua
palavra, necessitamos de dados mais
concretos a respeito do caráter do
estrangeiro.
Holmwood abriu as gavetas da
escrivaninha e retirou um chumaço de
cartas nas quais identifiquei os nomes de
Quincey Morris e do Dr. John Seward.
Pensei que a peculiaridade deste caso
era o excesso de provas. Parecia que
todos os envolvidos anotaram seus
pontos de vista com obsessão patológica
[3].
Holmes reuniu os papéis com
cuidado, levantou-se e, com uma vênia
que continha um pouco de ironia, falou:
– Espero que Milorde não se importe
se levarmos esses documentos para
investigação detalhada. Prometo que não
sofrerão quaisquer danos, e serão
devolvidos o mais rápido possível.
– Nem pensar – respondeu
Holmwood. – Considero o favor que
meu pai devia a seu irmão mais do que
pago. Peço que se retirem da
propriedade e tenham certeza de que, se
os vir outra vez, tomarei providências
para que sejam deportados.
Holmes sorriu, pousando os papéis
sobre a mesa.
– Sendo assim, nos retiramos.
Watson, faça o favor de chamar nosso
cocheiro, sim?
Era a segunda vez que nos
expulsavam, o que me ofendia, mas
bastou prestar atenção em meu amigo
para compreender que a decisão de sair
era dele e não de Holmwood. Vinte
minutos depois, regressando a Londres,
arrisquei uma pergunta.
– Agora que estamos longe daquela
criatura lamentável, talvez você possa
me dizer por que saímos sem uma
resposta conclusiva.
– Mas temos a resposta, Watson –
disse Holmes enquanto vasculhava o
sobretudo –, e vamos sedimentar minhas
suspeitas assim que examinarmos uma
das evidências que Lord Godalming teve
a gentileza de nos ceder.
Em suas mãos duas folhas de papel
dobradas tremulavam. Holmes, num
momento de prestidigitação, separara os
papéis do maço de cartas de Holmwood
e, sem que nem mesmo eu percebesse,
guardara-as no bolso do casaco.
Tratava-se de um memorando escrito
por Lucy Westenra.

A primeira coisa que Holmes fez ao


chegar às dependências da Rua Baker
foi abrir as janelas, apesar do frio que
entrava, e suspender cada uma das
folhas de papel em um varal
improvisado. A segunda, logo depois de
solicitar uma refeição de rosbife com
batatas e três ovos, dois cozidos e um
cru, à Sra. Hudson – que teve de mudar
o cardápio em cima da hora e não ficou
muito feliz –, foi pedir que eu
localizasse o Dr. John Seward.
– Como diabos você espera que eu o
encontre? Não tenho contatos entre os
médicos do interior, principalmente os
especializados em abrir cabeças de
doidos.
– Claro que tem, Watson, e é
impossível que tenha esquecido detalhes
do caso do Signo dos Quatro. Dr.
Sommerton, o cirurgião de Hope Town
que nos ajudou naquela ocasião, prestou
serviços como residente em sanatórios
nas regiões de Basington e, adivinhe só,
Whitby. Acredito que as chances de uma
dessas casas de tratamento de loucos
serem o quartel-general do Dr. Seward
sejam acima de razoáveis.
Holmes estava correto, como de
costume, mas ainda assim a situação era
desconfortável. Eu havia apagado da
memória os detalhes do Signo dos
Quatro por um motivo simples: foi
durante aquela aventura que conheci
Mary. Mas essa não seria a única
dificuldade, pois procurar um colega
que não encontrava há sete anos, com o
qual não tinha nenhuma intimidade, e
questionar sobre seu passado
profissional não era agradável. Diante
de minha relutância, Holmes comentou:
– Custa-me acreditar que pequenos
entreveros de cunho social o impeçam
de ajudar um velho a reencontrar seu
filho. Devemos recordar que o cliente
está nos pagando uma quantia acima da
costumeira.
– Holmes – respondi ofendido –, sabe
muito bem que não preciso desse
dinheiro para sobreviver. Farei o que
me pede, mas a partir deste momento,
proíbo-o de me incluir em suas
negociações de preço com clientes.
Amanhã cedo parto em busca de
Sommerton, seja lá onde estiver, mas
hoje dou meu expediente por encerrado.
– Antes de sair, Watson, não quer
saber quem vai entrar nos próximos
segundos?
Parei a meio caminho da porta,
sobretudo pendurado no braço esquerdo.
– Mas quem poderia aparecer a esta
hora?
Mal terminei de falar e o aroma do
rosbife, esgueirando-se pela fresta da
porta, chegou-me às narinas. Jantamos e
descobri que estava faminto, mas não
conseguia desviar os olhos do varal
improvisado. Holmes também devorou o
repasto, mas deixou o ovo cru em
separado sobre um guardanapo.
Percebendo meu interesse pelos papéis,
falou:
– Quer saber o motivo das cartas
estarem expostas ao ar noturno? Espero
que o máximo de poeira grude nelas.
– Isso não estragaria as pistas que
poderiam restar em suas superfícies?
Você sempre reclama da desordem que
os policiais fazem nas cenas de crimes.
Isso não seria mais ou menos a mesma
coisa?
– A verdade é que não há mais pistas
nesses papéis velhos. Um detalhe
eventual advirá se acrescentarmos
alguns elementos à mistura. Eu poderia
borrifar talco ou cinza de cachimbo
sobre ele, mas não seria tão sutil quanto
o bombardeio das pequenas partículas
de pó. Assim, enquanto jantávamos, as
folhas ficaram expostas e devem estar
empoeiradas o suficiente para minhas
intenções.
Com essas palavras, Holmes apanhou
o ovo, levantou-se e desprendeu do
varal o memorando de Lucy Westenra.
Perfilou-o com a carta enviada por
Quincey Morris ao pai e, com uma
pequena escova de cerdas longas e
maleáveis, espalhou o pó negro por toda
a superfície. Imediatamente surgiram
pequenas nódoas nos cantos, muito
semelhantes, mas menores, que aquelas
percebidas na carta do americano, que
meu amigo identificara como marcas de
pólvora deixadas pelo dedo do filho de
nosso cliente.
OCTAVIO A RAGÃO

– Isso é sangue?
– Não exatamente, parece saliva, mas
deve servir para meus intentos. A Srta.
Lucy devia estar sofrendo com alguma
febre malsã e, se apresentava os
sintomas que imagino, deveria haver
certa quantidade de sangue em seu
cuspo.
Holmes quebrou o ovo e coletou a
clara numa pipeta, que misturou a uma
solução salina. Em seguida, recortou
pedacinhos da carta, jogou-os em dois
tubos de ensaio, gotejou a solução e
levou-os ao bico de Bunsen, onde logo
começaram a borbulhar.
– Sabe, meu amigo, este é um teste
precário, mas se eu estiver correto em
minhas suspeitas, não precisaremos de
outros experimentos. A solução final
para o desaparecimento de Quincey
Morris depende parcialmente das cores
que aparecerão nesses tubos. Vamos
torcer para que o resultado cromático
final seja o que espero. Veja, estão
estabilizando no tradicional tom
acastanhado, mas, como imaginava, não
tanto quanto seria de se esperar do
sangue de alguém saudável.
– E isso significa o quê?
– Ainda não sei. Esta será uma longa
noite de trabalho, mas creio que amanhã
terei uma ideia mais precisa do que nos
aguarda em Whitby.
– Então iremos até Seward?
Holmes, sem me encarar, respondeu:
– Apenas se ele não vier a nós
primeiro.

Reencontrar Sommerton foi fácil. Difícil


foi conseguir que se recordasse de John
Seward, de Whitby. Para um
profissional da medicina de longa data,
um assistente de dezoito anos é igual a
todos os outros assistentes de dezoito
anos: um par de mãos sem rosto. Depois
de duas horas de conversa, consegui que
recordasse alguém que poderia ser meu
alvo.
– Na verdade – falei –, procuro por
um grupo de pessoas. Já encontrei um
membro da Câmara dos Lordes chamado
Holmwood. Faltam o tal Dr. Seward, um
advogado chamado Harker e, o mais
difícil de todos, um cientista holandês
pouco ortodoxo...
– Van Helsing – interrompeu-me o
velho clínico. – Agora recordo o jovem
a quem o senhor se refere. Trata-se de
um rapaz magricela, cabelos muito
pretos, que seguia o holandês a todo
canto, sugando as bobagens do maníaco
como um mosquito impertinente. Dava
pena, parecia um cachorro atrás do
dono, buscando aprovação. Acho que
ainda está em Whitby, naquele hospício
degradado, apesar de bem-sucedido
financeiramente.
Tentando evitar as divagações de meu
interlocutor, perguntei sobre Van
Helsing.
– Insano – foi a resposta inflamada. –
Obcecado por superstições, essas
bobagens de espíritos obsessores,
íncubos e demais crendices de gente
iletrada.
– Não compreendo – retruquei –, não
é esse senhor um homem de ciência?
Como é possível que...
Interrompendo-me outra vez, o velho
levantou o tom de voz:
– O holandês chegou aqui convidado
e logo deu início a uma série de
palestras que denegriram por completo
sua reputação. Foi convidado a se
retirar em um ano, mas não antes de
formar uma tropa de admiradores
capitaneada pelo irresponsável Seward.
Tive o dissabor de assistir a uma de
suas aulas, e o que começou como uma
divertida conversa a respeito de culturas
do leste europeu enveredou pelo
caminho da loucura, ao sugerir que os
rituais proto-cristãos, que incluíam a
decapitação de cadáveres de suicidas,
tinham razão de ser e, dentro de certas
condições, seriam opções válidas para
se evitar males maiores, epidemias ou
coisa parecida. Como se cortar a cabeça
de um defunto pudesse impedir a
proliferação de micróbios.
– Se recordo corretamente, isso era
relacionado ao conceito de vampirismo
– comentei, olhos mais arregalados do
que gostaria. – Caso não fossem
decapitados, os suicidas voltariam para
sugar o sangue dos vivos, não é o que
acreditavam?
– Isso, isso, isso. A maior coleção de
asneiras obscurantistas que já ouvi no
ambiente acadêmico, um desserviço à
medicina e ao estudo da história natural.
Seward ficou marcado por essa devoção
ao holandês. O rapaz, antes reservado e
tímido, passou a cultivar hábitos
excêntricos, como gravar suas
experiências em aparelhos estranhos,
fonógrafos munidos de cilindros de cera,
e depois reproduzi-las tarde da noite,
atrapalhando o sono dos outros internos.
O ânimo tornou-se exaltado, como se
estivesse sempre à beira de uma crise de
nervos. Passou a se comportar como
quem está recebendo o dom da lua.
– Como um lunático, é o que o senhor
quer dizer?
Os olhos do velho convergiram,
quase estrábicos, e a boca assumiu a
forma de um V, tornando-o parecido com
as feições de uma ave de rapina. A calva
completava a impressão de um abutre.
– Eu disse o que queria dizer. Parecia
receber o dom da lua, o brilho de um
conhecimento indireto, assim como a lua
reflete a luz solar. Não era mais ele, mas
um aspecto de seu mestre ausente, ou um
espectro, tanto faz. Mas percebo que o
senhor quer o endereço desse não mais
tão jovem Dr. John Seward, a quem foi
delegado o posto de médico responsável
pelo hospício de Whitby. Creio que
tenho a localização por aqui.
Despedi-me do Dr. Sommerton e
voltei à Rua Baker, imaginando o que
haveria para a ceia, se é que haveria, já
que Holmes aparentemente embarcara
em outro de seus surtos de trabalho
ininterrupto, onde a ingestão de
nutrientes não era tema digno de nota até
o fim da investigação. No que dizia
respeito ao Dr. Sommerton, quedava-me
algo surpreso, pois não esperava um
arroubo filosófico de um homem prático,
mas pensei que Holmes teria gostado de
travar essa conversa tão rica em
imagens e teor literário, sem deixar de
ser científica.
Cheguei morto de fome aos aposentos
na Rua Baker, por volta das dezoito
horas, mas parei na escada ao perceber
vozes desconhecidas. Um jovial
Sherlock Holmes incitou-me a entrar.
– Vamos, Watson. Esperávamos sua
chegada para dar prosseguimento à
conversa.
Entrei, esquecido da fome, e deparei-
me com três pessoas, um casal na faixa
dos vinte e cinco anos, mas cuja metade
masculina aparentava mais idade, com
uma descuidada cabeleira encanecida. A
moça, bela porém magra a ponto de me
fazer questionar sua saúde, mantinha-se
de pé, diferente do suposto marido,
empertigado em uma de nossas cadeiras,
olhar alerta e desconfiado para qualquer
coisa que se mexesse; no caso, eu. O
terceiro visitante, recostado na estante
maior, aparentava a mesma idade dos
outros dois, mas certa falta de correção
no corte das roupas, cujo tecido era de
qualidade indiscutível, emprestavam-lhe
uma aparência desajeitada, como se
estivesse afogado na vestimenta de outra
pessoa.
– Watson, diga olá ao casal Jonathan
e Wilhermina Harker e ao Dr. John
Seward – e os olhos de Holmes
completavam capciosos, “eu não
disse?”.

A manga de Seward, uma polegada além


de seu braço, quase mergulhou na xícara
de chá, mas foi salva por um movimento
brusco, que fez o líquido dançar. Eu não
gostei de Seward, tenho de admitir, e a
antipatia foi mútua. Se aquele arremedo
era um médico competente, eu era um
faquir hindu.
– Olá – disse eu a todos, sem
deferências. Se a jovem, de longe a mais
digna de respeito e atenção imediata,
optava por manter-se na defensiva, eu
também não baixaria a guarda. Estava
cansado, por ter feito o que considerava
uma viagem inútil enquanto Holmes
acionava suas engrenagens e trazia
quase todos os envolvidos no caso até
as dependências na Rua Baker. Se ele
sabia como fazer isso, por que me
enviar para longe?
– Por favor, Watson, gostaria que
ouvisse o que esses cavalheiros e a
dama têm a dizer e depois
conversaremos a respeito de sua visita
ao Dr. Sommerton.
Ao ouvir o nome de Sommerton,
Seward levou um susto e concluí que as
chagas abertas em decorrência de sua
adoração a Abraham Van Helsing
latejavam. Em algum lugar dentro
daquele homem desajeitado, o rapaz que
gritava pelos corredores da
universidade ainda alugava um quarto e
promovia festas de vez em quando. Dei
um passo e ofereci a mão em
cumprimento. Depois de uma inspeção
rápida e subreptícia em meus dedos,
retribuiu.
– Muito prazer, Dr. Watson – falou
Seward. – Sou um admirador de seus
escritos.
Eu quase podia ler as entrelinhas não
expressas que certamente deveriam
relacionar a competência como biógrafo
de Holmes à minha suposta inadequação
ao serviço clínico. Há muito percebi a
tendência que as pessoas têm de me
julgarem mais idiota do que seria
possível, esquecendo que, em termos
literários, precisava focar o interesse
nos processos dedutivos de Holmes. Em
outras palavras, sempre me pareceu
incrível que acreditassem que eu seria
tão imbecil como meus textos
insinuavam e, em minha opinião, isso
falava mais a respeito da imbecilidade
delas.
– Obrigado, Dr. Seward – respondi. –
Agrada-me que tenha apreciado meus
textos que estão longe de fazer justiça
aos reais talentos de meu amigo
Sherlock Holmes.
– Poderíamos deixar as amenidades
de lado – interrompeu a dama – e
abordarmos o problema do
desaparecimento da carta de Lucy?
– Um peculiar e admirável senso de
urgência, Sra. Harker – disse Holmes,
sacando o memorando de Lucy
Westenra.
– Sr. Holmes – era a vez de Harker
falar com o tom falsamente amigável dos
rábulas –, o senhor se apoderou de
maneira indevida de um documento de
um cliente meu e amigo nosso, Sir
Arthur Holmwood, Lord Godalming.
Espero que compreenda que nossa vinda
aqui foi uma tentativa de reaver o
documento sem precisarmos acionar a
Scotland Yard e abrir um processo
contra o senhor.
Senti a cólera subir até o rosto, mas
Holmes aproximou-se de Harker e
respondeu:
– Pois tente prender-me e juro que,
em menos de um dia, reverto o jogo e
trancafio todos vocês em Newgate pelo
assassinato do visconde Vladimir
Tepesh, da Valáquia.
A convivência com Holmes ensinou-
me a esperar o impossível, mas aquela
virada nos acontecimentos foi
assustadora. Tratava-se de um complô
político para assassinar um nobre
estrangeiro? Lembrei dos planos do
arquiduque Franz Ferdinand e seu títere,
o conde Von Schlieffen, que
desbaratáramos havia três anos, em
Viena, e que visava desestabilizar os
governos da Europa continental em
busca de uma guerra cataclísmica,
jogando as economias do mundo num
inferno. Seria o desaparecimento desse
nobre valaquiano outra tentativa
desvairada de precipitar o mundo ao
genocídio? [4]
Diante da mudez dos interlocutores,
Holmes sacou do cachimbo. Agora era a
hora do espetáculo.
– Claro que os senhores podem não
dispor de tanto tempo – disse. – Dr.
Seward, de acordo com sua opinião,
qual a sobrevida de Lord Godalming?
Para meu espanto, Seward respondeu:
– Se os sintomas seguirem seu curso,
ele pode ter mais um ano ou dois, no
máximo. Arthur, talvez por conta do
sangue nobre, revelou-se o mais frágil
de todos.
– Depois de Quincey Morris, se não
me engano – acrescentou Holmes.
– Sim, depois de Quincey – dessa vez
foi Harker quem falou. – Pela lógica, eu
deveria ter sido o primeiro.
– Ou eu – interrompeu a dama.
– Holmes – falei –, seria pedir muito
que você esclarecesse os detalhes
enevoados deste caso? Por que Lord
Godalming não está aqui, já que o tal
memorando é tão importante? E que
história é essa de morte anunciada?
– Já ouviu falar em Marcellus de Sida
e Teriantropia? – perguntou Holmes.
Forcei a memória e dei com a
recordação de um epicurista grego
ligado à seita dos Antoninos que,
durante o reinado de Adriano, declarou
ter comprovado a possibilidade da
transformação de homens em feras.
– Sim, um grego que disse algumas
bobagens há muito tempo. O que tem
ele?
– Talvez Marcellus de Sida tenha
errado no geral, mas acertado no
particular, quando reportou pessoas
alteradas fisicamente, debilitadas,
portadoras de algum tipo de doença
sanguínea. Ao menos foi isso que a
análise das manchas na carta da Srta.
Lucy revelarou quando comparadas às
células enfraquecidas do sangue de Lord
Godalming. Não me olhe assim, Watson,
por favor, diga que percebeu o lenço que
guardei depois de limpar o sangue de
Arthur Holmwood naquela contenda.
Então o que eu achava que era uma
atitude compensatória de Holmes para
uma violência contra o homem que nos
recebera revelava-se um estratagema
para coleta de material.
– As duas amostras – continuou meu
amigo –, depois de misturadas com uma
solução salínica, assumiram a mesma
cor acastanhada, denotando uma anemia
aguda, uma baixa considerável de
células vermelhas em contraposição ao
número exagerado de células
bastonadas, brancas. Provavelmente a
mesma infecção grassava o sangue de
duas pessoas diferentes, comprometidas
por uma promessa de casamento.
“Enquanto solicitava a Watson –
Holmes voltou-se aos outros – que
encontrasse o Dr. Sommerton, levando
com ele metade dos criminosos que
vigiam minha casa dia e noite, despistei
os bandidos remanescentes, dirigindo-
me à biblioteca pública. Lá, empreendi
uma pesquisa que revelou detalhes de
uma doença do sangue considerada
como a base da licantropia pelo bom
Marcellus de Sida, a tal Teriantropia.
“As nunces do jogo começaram ficar
mais definidas e lembrei que a caligrafia
da carta enviada por Quincey Morris ao
pai demonstrava uma urgência temerária
que não condizia com o temperamento
de um jovem aventureiro criado nas
pradarias do Texas. O inimigo que
ameaçava seus companheiros parecia de
um tipo insidioso, daqueles contra os
quais os punhos são inúteis. Um
adversário no qual não se pode tocar.
Pareceu-me lógico que me avizinhava
do território de meu amigo Watson, e
que o monstro que procurava não seria
necessariamente um homem, mas algo
dentro do homem, uma doença. Decidi
confirmar algumas teorias.
“O episódio do naufrágio do Deméter
veio à mente depois do primeiro contato
com o Sr. Morris e somei os
ingredientes: um navio fantasma advindo
dos Cárpatos, um cão danado em fuga,
um funcionário da empresa morto por
doença desconhecida, uma jovem
nubente acometida de súbita
enfermidade e um grupo de aventureiros
vingativos que rumam aos... Cárpatos.
Um círculo fechado de prováveis causas
e efeitos. Bastaria que as amostras
sanguíneas da falecida e do Lorde
combinassem em suas discrepâncias
para que o padrão se completasse.
“Uma busca nos arquivos de imóveis
da região revelou o nome do comprador
do terreno da Abadia de Whitby, uma
ruína cujo principal valor histórico foi
ter sido conquistada em 867 por vikings.
Pesquisei a respeito da abadia e
descobri que permaneceu abandonada
até 1078, quando foi reinaugurada por
um templário chamado Regenfrith, sob
as ordens de William de Percy, o
normando. Henrique VIII, durante suas
diatribes com a Igreja Católica,
destruiu-a em 1540 e deve ter sido essa
aura herética que chamou a atenção de
um certo visconde valáquio de nome
Vladimir Tepesh, cujos antepassados no
século V ostentavam a insígnia do
Dragão, como podem ver nesta
reprodução impressa no Burke’s
Peerage and Gentry [5]. Consta que
Tepesh era um devasso levado por
apetites que consumiram sua fortuna e
saúde, além de provocarem a ira da
Igreja Católica e sua consequente
excomunhão. Porém, o detalhe que mais
chamou atenção foi a assinatura do
advogado encarregado pela venda da
propriedade: J. Harker.
“Bastou-me uma hora de leituras
salteadas das colunas sociais do
Dailygraph para identificar cada um dos
personagens de nosso pequeno drama. O
próspero e ambicioso bacharel Harker,
noivo da bela Srta. Wilhelmina Murray,
amiga da cortejada Lucy Westenra,
amada por três cavalheiros: Lord
Godalming, Dr. John Seward e o último
elo da corrente, o americano audaz
Quincey Morris. Lucy também foi
cortejada por Tepesh no momento em
que chegou à ilha. Meses depois, Lucy
morre, Tepesh foge e todos vocês,
representantes do melhor que o Ocidente
dispõe, correm para a vingança. Muito
romântico e simbólico.”
Neste momento, Holmes, até então
esquecido do cachimbo, buscou pelo
fumo no bolso do roupão.
– O único ponto falho do cenário era
a falta de um elemento aglutinador,
alguém que, permitam-me a figura de
linguagem, coagulasse o grupo numa
equipe coesa. Creio que Watson chegou
com essa resposta, não?
Finalmente, testemunhando a
ansiedade dos demais, compreendi
minha função no drama.
– Sim, Holmes– respondi –, houve um
quinto elemento masculino. Seu nome é
Van Helsing, um polêmico cientista
holandês, de quem o Dr. Seward era
discípulo.
– Aposto que o professor Van Helsing
convenceu-os, com a Bíblia do Rei
James em punho, a violar o túmulo da
futura Lady Godalming, separando a
cabeça do corpo, não? O homem deve
ser uma incongruência, supersticioso e
iluminista ao mesmo tempo. Imagino que
aqueles que perpetraram a, por assim
dizer, operação ficaram expostos a
grande quantidade do sangue da morta.
Harker estava lívido. Seward tremia
tanto que quase derrubou os livros da
estante. Apenas a moça mantinha-se
inalterada.
– Quais dos senhores – continuou
Holmes – demonstrou os primeiros
sintomas? Terá sido a fraqueza de Lord
Godalming, que o impede de cavalgar
com desenvoltura e mal aguenta
confrontar um adversário de meu porte?
Será a perda de peso repentina do Dr.
Seward, que faz com que suas roupas
pareçam folgadas? Ou a decadência
física do Sr. Harker, encanecido e
incapaz de sustentar-se longe da
bengala?
A Sra. Harker, então, deu dois passos
à frente e ergueu as saias,
despudoradamente, acima da perna
direita, revelando um hematoma na coxa.
– Ou teria sido eu a maculada?
Holmes retraiu-se com um esgar, mas
não conseguiu manter-se calado.
– Seus pecados, senhora, serão
julgados por uma Corte superior. Vocês
condenaram um homem doente à morte,
e talvez tenham precipitado uma sina
pior que a peste negra sobre a Inglaterra.
O sangue de vocês é uma arma:
transmite doenças ainda não
compreendidas, que matam em poucos
anos.
– E o que sugere que façamos? –
perguntou Harker.
– Duas coisas: que honrem seus
amigos e indiquem o paradeiro das
cinzas de Quincey Morris ao pai.
Depois terminem isso da mesma maneira
que começou, com um navio fantasma.
Wilhelmina Harker franziu os olhos.
– Cinzas? Faz sentido. Trata-se de
justiça poética.

Paul Morris estava vermelho de raiva.


Temi pela mobília.
– Não há corpo? – gritava o velho. –
Como assim não há corpo? Não
aceitarei a morte de meu filho sem um
corpo como prova.
Holmes retrucou.
– O motivo pelo qual não há corpo é
que os despojos de seu filho, juntamente
com a praga que o acometeu, foram
consumidos por chamas até tornarem-se
pó.
– Então degenerados afirmam que
incineraram o corpo de meu filho e
você, o famoso detetive, aceita sem
provas? Que valor tem a palavra dessas
pessoas?
Holmes agarrou o exemplar do
Dailygraph que jazia aberto no chão e
leu em voz alta.
– “O incêndio que consumiu o
Perséfone, escuna de propriedade de Sir
Arthur Holmwood, Lorde Godalming,
que vinha de uma viagem de vinte dias
aos Cárpatos romenos, encerrou as
vidas de seus ilustres passageiros.
Ainda não se sabe as causas do desastre
que não deixou sobreviventes, mas já se
tem notícia da identidade das vítimas,
apesar da impossibilidade do resgate
dos restos mortais, a esta altura
submersos a 500 milhas do porto de
Whitby. Pereceram na catástrofe, de
acordo com os registros de embarque, o
proprietário Sir Athur Holmwood,
membro da Câmara dos Lordes desde
1890, o casal Jonathan e Wilhermina
Harker, estimados membros da
sociedade, e o Dr. John Seward,
responsável pela clínica de tratamento
para vítimas de enfermidades mentais. A
escuna não contava com tripulação e
calcula-se que a inexperiência dos
tripulantes amadores tenha sido
responsável pelo desastre.
“Este jornalista não pode se furtar a
comparar este acidente com aquele que
vitimou o Deméter, em oito de agosto de
1892. Desta vez, apesar da perda, não
há espetáculo grotesco. A embarcação
consumiu-se ao longe, elevando uma
torre de fumaça de tal magnitude que a
fuligem chegou a escurecer os telhados
das casas dos pescadores, enlutando
parte do cais. Uma missa pela alma das
vítimas será ministrada na manhã de
domingo próximo, dia 26.”
Ao término da notícia, o velho Morris
estava encurvado, balbuciando
impropérios contra Holmes, a Rainha e
o Império Britânico, mas
indiscutivelmente derrotado. Holmes
levantou-se e amparou o cliente,
acrescentando em voz baixa que os
honorários não seriam cobrados.
À porta, os ombros de Paul Morris
voltaram à estatura original e, com olhos
marejados, disse:
– Quero ver pessoalmente. Dedicarei
meus últimos anos e todo meu dinheiro
em busca de uma prova, de um sinal.
Matarei cada cigano que cruzar a minha
frente nos Cárpatos e negar informações.
Ainda ouvirá falar de mim, Sherlock
Holmes. E de meu filho.
– Honestamente, senhor – respondeu
Holmes –, espero que não.
– Então é assim que acaba? –
perguntei. – Todos mortos seguindo os
seus conselhos e um velho a caminho de
um enterro prematuro. Não sente
remorso, Holmes?
Cabisbaixo, meu amigo suspirou
diante de minha crueldade.
– Tente compreender, Watson, que
aquelas pessoas que entraram por esta
porta há cinco semanas eram mortos
ambulantes, cada um deles receptáculo
de horrores ainda não catalogados pela
ciência.
– Sim, eu sei – insisti. – E você nos
privou da possibilidade de
descobrirmos as causas da moléstia,
carbonizando a todos. Torquemada
ficaria orgulhoso.
– E quem seria o responsável por
lidar com essa doença maldita, Watson?
Você? Sommerton? O holandês
tresloucado que começou tudo isso?
Admita que não temos, ainda, condições
de conter uma contaminação dessas.
Talvez daqui a cem anos, quem sabe,
mas não agora, não com esta medicina à
base de lancetagens e amputações.
Seríamos dizimados pelo hálito do
dragão, Watson. Prefiro permanecer
insone por meses, com as mortes dessas
cinco pessoas sobre minha cabeça, que
responder por uma epidemia.
E então, como última crítica antes do
cair dos panos, disparei:
– Mas e o cão, Holmes? O que foi
feito do cão?
– Lembra-se da teoria do nobre em
fuga e seu animal de estimação? Pois
imagine se um degenerado como Tepesh
não seria capaz de treinar um cão para
cumprir desígnios sanguinários, tais
como atacar o pescoço de seres
humanos? Nossas experiências mostram
que há indivíduos cuja perversidade
pode chegar a tais extremos. Agora, se o
cão for um transmissor da moléstia,
Watson, só nos restará apelar para a
Providência Divina.
Com essas palavras, Sherlock
Holmes dirigiu-se à escrivaninha onde
guardava seu estojo com a hipodérmica,
um ato que pensei ter sido abandonado
depois de nossa aventura em Viena. No
caminho, jogou-me parte do Dailygraph.
Percebi no canto esquerdo da página um
bloco de texto sob uma ilustração jocosa
representando um clérico atacado por
um lobo negro que buscava-lhe o
pescoço. Dizia a legenda:

O Cônego de Whitby, James Aarake,


digno representante do Partido
Conservador, cujo símbolo é um cão,
foi atacado ontem por um cachorro
vadio antes de embarcar para uma
viagem pelo continente, onde visitará
parentes em Portugal e Espanha, no
navio Foz do Douro. O cônego, apesar
de acamado e reclamar de fortes dores
de cabeça e sede, está fora de perigo e
recusou-se a adiar a viagem,
embarcando no mesmo dia. O cachorro,
porém, desapareceu. Parece um sinal
claro que o Fim dos Tempos se
aproxima... ao menos para os
conservadores.

Deixei o jornal cair e debrucei-me à


janela, acompanhando os pedestres, os
bandidos e todas as pequenas coisas que
estavam em seus pequenos lugares.
[1]Cinco shillings corresponderiam hoje a US$1,25. É preciso
lembrar que naquela época esse dinheiro era uma quantia razoável.
[2]Encontrar uma cadeira e uma escrivaninha criadas pelo arquiteto
Sir Robert Lorimer comprova que os Holmwood eram pessoas
ligadas aos interesses das classes menos favorecidas. Juntamente
com William M orris, M aud King, Godfrey Blount e Charles Rennie
M ackintosh, dentre outros, Lorimer foi um dos fundadores no
movimento Arts & Crafts, que pretendia projetar e produzir
artefatos de qualidade para os trabalhadores. Infelizmente, o custo
de tais projetos inviabilizava sua compra pelo que chamamos hoje
de “público-alvo” e tais utensílios e mobílias acabavam parando nas
mansões dos ricos bem-intencionados.
[3]Watson devia estar se referindo – de maneira ligeiramente
equivocada – ao termo existente no pequeno artigo publicado na
revista Lancet de março de 1891, de autoria do Dr. Sigmund Freud,
de Viena.
[4]Nem eu nem qualquer dos especialistas a quem apresentei este
documento faz ideia do que o Dr Watson está falando. Essa
aventura em Viena jamais foi documentada pelo biógrafo de
Sherlock Holmes.
[5]Improvável. O Burke’s Peerage and Gentry é um compêndio das
famílias nobres não da Europa, mas apenas da Inglaterra. As
chances de Holmes ter encontrado o brasão dos Draculea no Burke
são mínimas, para não dizer nenhuma. A não ser, claro, que ele
estivesse aludindo à família Drake ou qualquer outra com grafia
semelhante. É possível que Watson, em sua ânsia de simplificar a
vida dos leitores, tenha editado esta parte da elucidação do caso.
Das reminiscências do Dr.
Ormond sacker, clínico geral ~
Marcelo A. Galvão

– JOHN WATSON MORREU – anunciou


Sherlock Holmes, meu colega de
apartamento, assim que cruzou a porta
do no 221B da Rua Baker, segurando um
jornal e interrompendo meu desjejum.
– Watson? – franzi o cenho, enquanto
passava geleia de marmelada em uma
torrada. – O nome não me é estranho.
– Foi um ex-oficial médico do
exército que conheci no início do ano,
Sacker – Holmes disse, para em seguida
relembrar a ocasião em que nos
encontramos. Eu procurava por um lugar
barato e decente, próximo ao meu
consultório recém-inaugurado. Já estava
desistindo quando soube por Stamford,
um colega dos meus tempos no hospital
São Bartolomeu, que havia alguém
disposto a dividir as despesas das
acomodações na Rua Baker, a apenas
dois quarteirões do meu trabalho.
Stamford disse que eu era um homem de
sorte, pois um dos futuros inquilinos –
no caso, o tal John Watson – ficara
gravemente enfermo de forma
inesperada, provavelmente uma sequela
da febre entérica da qual fora vítima ao
servir no estrangeiro, sendo então
internado às pressas. Acabei, assim,
tornando-me colega de Sherlock
Holmes, detetive consultor.
– Ele faleceu devido àquela
enfermidade?
– Não pelo que consta no jornal –
Holmes abriu o periódico nas páginas
policiais. – O corpo do Dr. Watson foi
encontrado boiando no Tâmisa, com
sinais brutais de punhaladas.
– Céus! Espero que a Yard tenha
capturado o criminoso.
Holmes então sorriu daquele jeito
condescendente que eu havia visto antes
quando a Scotland Yard era mencionada.
– Não só não o capturaram como não
possuem nenhuma pista. É por isto
mesmo que vou oferecer meu serviço à
nossa valorosa força policial.
– Oferecer seus serviços? – as
palavras não soaram bem aos meus
ouvidos. – Existe alguma recompensa
pela captura do malfeitor?
– Nenhuma e nem precisaria. Pelo
pouco contato que tive com o Dr.
Watson, percebi que era um homem
digno e patriota, que não mereceria ter
um fim desses. É de lamentar que nossa
amizade não tenha continuado, e é por
este motivo que faço questão de
solucionar o caso sem nada cobrar.
– Desculpe-me, Holmes, mas devo
lembrá-lo de que o aluguel vence na
próxima semana e de que nossa situação
financeira não está boa. Acredito que
seja melhor concentrar-se em casos que
geram lucro e... – no entanto, era tarde
demais para discutir: Holmes já abria a
porta.
– Vamos até a delegacia da Rua Bow,
doutor. Pegue seu chapéu e aquela
caderneta na qual faz as anotações dos
meus casos. A sorte está lançada!
Minha paciência com Sherlock Holmes
diminuía a cada dia que passava.
Quatro meses atrás, meu entusiasmo
era tanto por conseguir boas
acomodações que nem me importei
quando Holmes listou uma série de
defeitos que dizia possuir, pois, nas suas
palavras, era “muito conveniente que
dois sujeitos conheçam o pior um do
outro, antes de começarem a morar
juntos”: tocava violino, fazia
experiências químicas, às vezes ficava
de mau humor.
Encolhi os ombros. Respondi apenas
que levantar cedo não era meu hábito
favorito, já que gostava de aproveitar a
vida noturna de Londres, voltando tarde
ao lar.
Pensando bem, muitos problemas
seriam evitados se eu tivesse prestado
mais atenção no que ele dissera.
Holmes não usava tanto o violino,
mas, quando o fazia, meus ouvidos
doíam por horas. A sala, por sua vez,
era onde realizava os experimentos
químicos, em um pequeno equipamento
instalado no canto: o lugar geralmente
fedia a enxofre, demorando horas para
que o ar ficasse respirável novamente,
mesmo depois de abrir todas as janelas.
Por último, não raro ele fechava a cara
por alguns dias seguidos, nos olhos uma
expressão vaga e sonhadora que, tenho
certeza, era resultado de algum
narcótico.
Aquelas excentricidades foram, aos
poucos, minando minha paciência. A
gota d’água seria a ocasião em que, após
ficar a noite inteira fora, retornei pela
manhã e encontrei Holmes desjejuando.
Ao me ver, sorriu de forma petulante e
em seguida descreveu o local onde eu
havia estado, a bebida que consumi e a
minha companhia – no caso, uma do
sexo frágil – apenas ao reparar em
detalhes mínimos nas minhas roupas.
Estupefato, naquele dia descobri que
ele era um detetive de consultas, um
homem que resolvia problemas
aparentemente insolúveis de pessoas, e
mesmo da polícia, mediante honorários
ou uma recompensa, ao usar da
observação precisa e dedução lógica. Vi
em diversas oportunidades seus clientes
– desde humildes empregados de
mansões até seus patrões ricos,
passando por membros da aristocracia –
maravilharem-se com os métodos
investigativos de Sherlock Holmes que,
diga-se de passagem, lembravam-me os
de Joseph Bell, um professor na
Universidade de Edimburgo com a
mania de adivinhar a origem de seus
pacientes através da observação – e que
quase me reprovou, numa época em que
eu estava distraído com os encantos de
uma linda irlandesinha ruiva.
Aquilo tudo me fez decidir que era
hora de deixar a Rua Baker. Mas, para
isto, eu precisaria de uma boa renda
para pagar sozinho o aluguel de um
apartamento, e aí residia o problema:
tinha poucos clientes e o hábito de
apostar em lutas de boxe e jogatinas só
me trouxera resultados ruins.
Foi então que decidi que poderia
ganhar algum dinheiro se transformasse
Sherlock Holmes em um personagem
ficcional.

– O assassino de John Watson já foi


capturado – disse o policial com cara de
fuinha, segurando uma pasta na qual
constava o histórico militar da vítima,
junto de uma fotografia. – É o homem
com quem ele dividia acomodações na
Rua Boulanger.
Boulanger era uma rua nas
proximidades do East End, região
conhecida pela sua decadência física e
moral, bem como pela alta
criminalidade. O inspetor Lestrade,
responsável pela investigação, explicou-
nos que, após uma denúncia anônima, a
arma do crime fora descoberta no quarto
de um certo Archibald Rakesh Simmons,
um contador filho de pai britânico e mãe
indiana.
– E qual seria o motivo dele
assassinar Watson? – Holmes perguntou,
depois de olhar a fotografia que
mostrava um jovem, bem-apessoado na
época em que defendia os interesses da
pátria. Sentado ao seu lado, percebi que
meu colega encontrava-se taciturno, sem
dúvida por não elucidar o crime a
tempo.
Lestrade encolheu os ombros e exibiu
um sorriso de dentes minúsculos.
– Isto ainda não ficou claro, mas é
apenas uma questão de horas para
estabelecê-lo. Pelo que soubemos
através do senhorio, é algo relacionado
a sacrifícios religiosos.
– Sacrifícios? – arregalei os olhos.
– Sim, doutor. O senhorio informou
que animais de estimação da vizinhança
desapareceram desde a chegada do Sr.
Simmons. Minha teoria é que foram
sacrificados em honra aos seus deuses
pagãos, já que ele é muçulmano. É
provável que o Dr. Watson tenha sido
ofertado para alguma divindade de um
panteão obscuro.
Fiquei de boca aberta, não
acreditando até que ponto a audácia
desses estrangeiros – pois Simmons, por
mais que fosse filho de um inglês, ainda
tinha sangue indiano nas veias e, assim,
continuava a ser estrangeiro – chegava
em solo britânico. Estava prestes a
demonstrar minha revolta quando
Holmes falou:
– É interessante notar que
muçulmanos são monoteístas e que
sacrifícios de animais, e muito menos de
humanos, não fazem parte de seus
costumes.
– Isto é irrelevante! – eu disse. – O
que importa é que um homem perigoso
está atrás das grades.
Mas Holmes não se dignou a
responder meu comentário. Ao invés
disto, inclinou-se na direção de
Lestrade:
– Importa-se se eu conversar com o
Sr. Simmons?

A primeira coisa que se notava em


Archibald Rakesh Simmons era que o
sangue ocidental fora subjugado pelo
oriental. O resultado da miscigenação
fora um jovem de cabelos negros lisos,
tez de uma tonalidade da água suja do
Tâmisa, e que nos observava com uma
expressão cansada no rosto. Tinha a
testa curta e as orelhas de abano, o
queixo saliente e a boca de lábios
grossos emoldurados por uma barba
rala. Por trás das lentes grossas dos
óculos, brilhavam olhos escuros em
pálpebras semicerradas, posicionados
muito próximos do nariz achatado. Os
braços compridos, quase que
desproporcionais ao corpo, acabavam
em mãos grandes de dorsos hirsutos e
que, no momento, agarravam as grades
da cela.
Não precisava ser médico para saber
que aquelas características físicas eram
típicas de um assassino de extrema
periculosidade. Mas meu conhecimento
científico mostrava mais: com base na
indolência apresentada, na miopia
avançada e na presença excessiva de
pelos nas mãos, conclui que Simmons
era um praticante inveterado do
onanismo, um vício que afetava homens
de vontade fraca, o que contribuía ainda
mais para a sua culpa.
– Sou inocente – declarou, depois que
Holmes o questionou sobre o caso.
Minha reação imediata foi uma
gargalhada ao ouvir o desplante do
sujeito; meu colega, no entanto, parecia
mesmo acreditar na inocência, pelo tanto
de perguntas feitas ao criminoso e
prontamente respondidas num tom
monocórdico.
O criminoso nos contou que o pai era
um ex-funcionário da Companhia das
Índias Orientais e a mãe, uma nativa de
Bombaim. Simmons havia sido criado
na Inglaterra, para o horror da família
do pai, que nunca aceitara o casamento
interracial e a prole mestiça – algo
completamente compreensível, diga-se
de passagem. O rapaz graduara-se com
louvor em Ciências Contábeis e
começava a carreira em um escritório
pequeno na City. [1] Por passar a maior
parte do tempo no trabalho, raramente
via ou conversava com o Dr. Watson,
não tendo motivo qualquer para matá-lo.
Não sabia dizer como a arma do crime
parou no seu quarto, e muito menos
sobre animais estripados nas
redondezas. Por fim, alegava que não
professava religião alguma.
Tudo mentira, óbvio.
Holmes pensava diferente.
– Simmons não é o assassino – ele
disse, ao deixarmos o distrito policial. –
E é por isto que iremos visitar o
endereço onde ele e Watson dividiam
acomodações.
– Mas, Holmes, este é um crime
comum, devidamente solucionado. Você
deveria usar sua energia para desvendar
casos complexos e, principalmente,
lucrativos.
– Os crimes comuns são justamente
os mais difíceis de solucionar, doutor –
replicou, enquanto caminhava na direção
de um cabriolé de aluguel. – É
frequentemente o mais misterioso,
porque não apresenta característica nova
ou especial de onde as deduções possam
ser tiradas. Pode escrever isto na sua
caderneta.
Holmes se referia às anotações que
eu fazia dos seus casos há algumas
semanas, quando lhe informei que
pretendia registrar seus feitos para
posterior publicação.
Meu verdadeiro intuito, no entanto,
era bem diferente.
A ideia havia surgido durante uma
conversa com um antigo colega da
universidade. Este conterrâneo de
Edimburgo, que gostava de escrever
romances históricos, ficara encantado
com as histórias que contei sobre
Holmes, e sugeriu que eu poderia
complementar minha renda se vendesse
os relatos dos casos do detetive
consultor para alguma publicação, como
a Strand Magazine.
Aquilo não me agradou muito, em um
primeiro momento. Holmes e suas
irritantes excentricidades não mereciam
ser imortalizadas em papel. Por outro
lado, eu não precisava me ater aos fatos.
Sempre me considerei um homem de
imaginação fértil e de enorme talento
literário, o que já era suficiente para
escrever uma história; assim, poderia
usar os casos de Holmes como
trampolim para a invenção de aventuras
inéditas. Em outras palavras: meu nada
estimado colega de acomodações
serviria de modelo para um personagem
ficcional bem mais interessante que o
original. Eu tinha planejado até o título
dessa série de histórias, composto pelo
nome do meio e de família daquele
colega de universidade que havia dado a
ideia: “Ignatius Doyle, Detetive
Consultor”.
Eu só precisava arranjar tempo para
escrever.

A Rua Boulanger era uma viela


flanqueada por sobrados antigos e
estreitos. Watson e Simmons dividiram
acomodações no no 23, que era uma
versão menor, mais feia e bolorenta do
apartamento da Rua Baker.
– Nunca simpatizei com Simmons –
disse Richard Bullock, proprietário do
imóvel onde morava com a esposa no
andar térreo, enquanto alugava o piso
superior. Em contraste com seu ex-
inquilino, Bullock era um perfeito
exemplar do típico homem inglês: alto,
robusto, de tez branca ligeiramente
ruborizada, cabelos e olhos claros. –
Mas ele pagava em dia e isto é
importante quando a pensão do exército
não cobre todas as nossas despesas.
Olhei para a manga direita vazia da
camisa que Bullock usava: seu braço
fora decepado no Afeganistão ao se
defender dos nativos selvagens. Holmes
perguntou:
– E o que pode nos dizer sobre John
Watson?
– Era um irmão de armas que nunca
nos deu problema. Parecia por demais
melancólico, talvez porque ainda não
estivesse completamente recuperado da
febre entérica.
– Tinha consultório?
O senhorio balançou a cabeça.
– Vez ou outra atendia alguém da
vizinhança. Mediante um pequeno
desconto no aluguel, tratava as dores de
cabeça, insônia e vertigem que sofro
desde que retornei do estrangeiro, e
também cuidava da saúde da minha
Eloise – Bullock disse e apontou para a
porta da cozinha que se abria.
Por um instante, pensei que estivesse
no paraíso, ante aquela visão angelical.
Eloise Bullock era uma jovem mulher
pequena, com cabelos de uma tonalidade
avermelhada típica de irlandeses, pele
imaculadamente branca e os olhos de um
azul celeste. A boca, diminuta e rubra,
podia passar por um botão de rosa de
tão bonita que era.
Apesar da beleza arrebatadora, meu
olhar treinado percebeu que havia algo
de errado na Sra. Bullock quando a vi
torcer as mãozinhas após sentar-se ao
lado do marido.
– Desculpe-me pela curiosidade, mas
em nome da Ciência – eu disse,
observando a figura delicada da esposa
do senhorio –, de qual enfermidade sua
esposa se tratava com o Dr. Watson?
Bullock suspirou antes de falar:
– Eloise sofre de histeria.
Era a resposta que eu esperava. A
histeria é uma doença típica do sexo
frágil e conhecida desde a época de
Platão, caracterizada por cólicas,
insônia, fastio, irritabilidade, entre
muitos outros sintomas. O tratamento
prescrito para melhorar a vida da
paciente – pois se trata de uma
enfermidade incurável – é a massagem
pélvica, realizada através de sessões de
estimulação vulvar, sempre conduzida
por um profissional médico. O objetivo
de tal procedimento é induzir a mulher a
alcançar o que nós chamamos de
paroxismo histérico, aliviando-se, então,
os sintomas deste mal.
Holmes continuou a questionar o
senhorio, mas minha atenção estava na
figura delicada da Sra. Bullock. Por
várias vezes nossos olhares se cruzaram
e percebi, de imediato, como aquela
jovem esposa ainda sofria e precisava
ser tratada. Despedimo-nos minutos
mais tarde, com Bullock dizendo que já
anunciara nos jornais os quartos para
alugar – afinal, perdera dois inquilinos
em uma só ocasião.
O dia seguinte passou sem novidades.
Holmes foi ao necrotério ver o cadáver
de John Watson e depois retornou
dizendo que ficaria fora por tempo
indeterminado; esperava que ao menos
ele estivesse tentando solucionar algo
lucrativo, pois meu consultório estava às
moscas. Assim, aproveitava aquelas
horas mortas para esboçar as aventuras
de Ignatius Doyle. O resultado, devo
confessar, era pífio, em parte porque o
ato de escrever se revelava mais difícil
do que pensava, mas também porque não
parava de pensar na pobre Sra. Bullock
e sua saúde fragilizada.
Era quase hora do jantar quando um
mensageiro bateu à porta, trazendo um
recado que me fez voltar com urgência
ao sobrado na Rua Boulanger.

– Minha esposa precisa de sua ajuda,


Dr. Sacker – disse Richard Bullock,
assim que entrei na sala. Além do
senhorio, encontrava-se no cômodo o
novo inquilino que ocupava, desde
aquela tarde, os antigos aposentos de
Simmons. Eu esperava que os Bullocks
tivessem melhor sorte com este homem,
mas duvidava, já que ele, um velho de
barba cheia e grisalha, tinha um nariz
enorme que denunciava uma provável
origem semita ou talvez mediterrânea.
Qualquer que fosse sua ascendência,
protegi minha carteira quando ele
passou por mim e subiu para seu quarto.
– Eloise está com todos os sintomas
do histerismo – Bullock continuou,
enquanto caminhávamos para o aposento
do casal, localizado nos fundos do andar
térreo. – Como não podemos mais
contar com o Dr. Watson, sugeriram que
eu contratasse o senhor, antes que algo
pior aconteça.
– Fez a coisa certa. Asseguro-lhe que
posso muito bem lidar com a hiperemia
pélvica de sua esposa.
O quarto dos Bullocks era minúsculo,
decorado com manchas de umidade e
móveis surrados, além de um biombo
que uma vez fora vermelho, mas que o
tempo transformara em um rosa pálido.
Eloise Bullock me aguardava de pé,
encostada na cama, as mãos pequeninas
e bem-feitas cruzadas na frente do
corpo, o olhar fixo no chão.
– Peço que nos deixe a sós – eu disse.
O marido prontamente obedeceu,
fechando a porta ao sair. A Sra. Bullock
levantou timidamente a cabeça e percebi
de imediato o quanto ela estava nervosa.
Pedi que fosse até o biombo e voltasse
vestindo anágua; nesse ínterim, tirei meu
paletó e enrolei as mangas da camisa
branca na altura dos cotovelos.
Eloise Bullock saiu detrás do biombo
com o queixo encostado no peito. A
anágua branca que usava insinuava uma
silhueta de ampulheta sob o tecido. Ela
se dirigiu ao leito conjugal, enquanto eu
estalava as juntas dos dedos,
preparando-me para a sessão de
tratamento.
É preciso frisar que não existe um
período exato para que o estado de
paroxismo histérico seja alcançado;
depende não apenas da paciente como
também da habilidade do médico. Na
minha experiência, fica entre dez
minutos a duas horas.
No caso da Sra. Bullock, eu
acreditava que teria um recorde quanto
ao tempo mínimo. Depois de três
minutos de estímulos, surgiram nela os
sinais típicos de que chegava naquele
estado: a pele ruborizada, a lubrificação
vulvar, as contrações rítmicas da
musculatura pélvica, os gemidos, tudo
isto era experimentado pela jovem
esposa com muita intensidade enquanto
deitada na cama. Eu a observava morder
os lábios, rolar os olhos para cima,
sentir o alívio que se aproximava e lhe
livraria daquele mal – pelo menos até a
próxima sessão.
De repente, ela abriu as pálpebras,
fixando-os num ponto por trás do meu
ombro. Percebi um movimento às
minhas costas e me virei.
Foi o que me salvou a vida.
Richard Bullock, um esgar
desfigurando-lhe o rosto e empunhando
uma enorme faca de cozinha, pulou
sobre mim. Ainda consegui jogar meu
corpo para o lado, mas não foi
suficiente: a ponta da arma entrou no
meu ombro.
Berrei de dor e ele arrancou a faca da
minha carne, preparando-se para atacar
outra vez. Eu não era o único a gritar
ali: enquanto Bullock esbravejava
“Vagabundos!”, sua esposa berrava
“Não, Dick, de novo não!”
seguidamente.
O senhorio avançou; só tive a
presença de espírito de levantar os
braços para proteger rosto e torso. A
lâmina desceu e abriu um corte profundo
no meu antebraço desnudo.
Eu sangrava profusamente de ambos
os ferimentos. Senti a temperatura do
meu corpo cair e uma onda de náusea me
engolfava, sinais característicos de que
eu entrava em estado de choque.
A porta do quarto se abriu com um
estrondo. A esperança de que a polícia
havia chegado brilhou como um farol
entre as trevas do desespero mas, para
minha decepção, era apenas o novo
inquilino no umbral.
Porém, com agilidade incomum para
um velho, ele agarrou o pulso de
Bullock e o torceu para trás, forçando-o
a soltar a faca. Em seguida, aplicou-lhe
uma rasteira; o senhorio estatelou-se no
chão. Ainda não satisfeito, o inquilino
saltou sobre Bullock, que se debatia
preso sob os joelhos do velho.
No meu canto, gemi ao ver que minha
camisa não só estava empapada como
também ganhara uma tonalidade rubra.
– A ajuda está a caminho – o velho
disse com uma voz jovial que não
combinava e, o mais estranho, era
conhecida. Com um gesto rápido, ele
passou as mãos pelo rosto; sua barba,
cabelos e nariz enorme sumiram, dando
lugar ao sorriso petulante de Sherlock
Holmes.
– Céus! – foi a última coisa que eu
disse antes da escuridão me envolver e
eu desmaiar.

Archibald Rakesh Simmons sorria na


sala do no 221B da Rua Baker, feliz que
estava por ter sua inocência provada.
Inocência em que, eu confessava, era
difícil de acreditar mesmo depois de
Holmes esclarecer o que havia ocorrido
dois dias atrás.
– O Sr. Bullock assassinou o Dr.
Watson – ele disse. Simmons e o
inspetor Lestrade escutavam com
atenção cada palavra de Holmes,
enquanto eu, de braço enfaixado, tentava
acreditar no que acontecera. – Comecei
a suspeitar ao entrevistar o Sr. Simmons
e verificar que não existia motivo para
que matasse o doutor. Minha conversa
com o Sr. Bullock confirmou que eu
estava no caminho correto, ao notar que
sua linguagem corporal em relação à
esposa sugeria um ciúme extremo.
– Quer dizer que Watson foi vítima de
um crime passional? – perguntei,
abanando a cabeça. – Não me lembro de
presenciar demonstração de ciúme por
parte do senhorio na ocasião da nossa
visita.
– Isto porque você se encontrava
distraído, Sacker – Holmes respondeu
com um sorriso de lado. Senti meu rosto
ruborizar, enquanto ele continuava –
Mas outro fato que contribuiu para o
assassinato foi a doença do Sr. Bullock.
Holmes explicou que, através de um
contato no governo britânico, tivera
acesso ao prontuário médico militar de
Bullock. O homem voltara do
Afeganistão com sífilis e, o pior de tudo,
recusara-se a tratar-se. Não demorou
muito para que a enfermidade evoluísse
para seu estágio mais avançado e lhe
atacasse o cérebro, causando não só
insônia, vertigem e dores de cabeça,
mas também mudanças na sua
personalidade e demência precoce.
– Minhas suspeitas – Holmes
prosseguiu – de que ele era mesmo o
assassino se concretizaram quando vi os
ferimentos no Dr. Watson. As
punhaladas somente poderiam ser
infligidas por alguém canhoto, o que era
o caso do Sr. Bullock. Na conversa que
tive com ele na prisão nesta manhã, ele
confessou que matou o médico durante a
sessão de massagem pélvica na sua
esposa. Achava que havia algo de
lascivo no tratamento e que a culpa era
do Dr. Watson.
– Isto é um absurdo! – reagi
indignado. – Não existe qualquer caráter
de libidinosidade ou devassidão no
estímulo vulvar. Sabe-se muito bem que
é desgastante para um médico fazer uma
paciente alcançar o estado do paroxismo
histérico.
– O problema, meu caro Sacker, é que
a mente doentia de Bullock não
interpretou os fatos desta forma. Quando
percebeu o que havia feito, ele jogou o
cadáver no Tâmisa e colocou a faca no
quarto do Sr. Simmons, de quem nunca
gostou pois, nas palavras dele, “o
homem tem a cor da pele igual à dos
afegãos selvagens”. Depois de ameaçar
a esposa se ela revelasse o crime, foi
necessário apenas enviar uma carta
anônima para a Yard e inventar a
história de sacrifícios de animais.
– Mas há algo que ainda não entendo
– Lestrade se manifestou, franzindo os
olhos pequenos de fuinha. – Como
poderia saber que o Dr. Sacker estaria
no sobrado da Rua Boulanger naquele
horário?
Holmes contou que não havia
qualquer prova que confirmasse sua
teoria de que Bullock era o assassino.
Por isto, arquitetou um plano e infiltrou-
se no sobrado como um inquilino
inofensivo. Uma vez lá, conversou com
Bullock sobre amenidades, depois
passou a reclamar da vida, da saúde e,
em poucos minutos, estavam falando
sobre suas doenças, incluindo a da
esposa dele.
– Insinuei que ela necessitava de um
especialista e que havia ouvido elogios
quanto à prática do Dr. Sacker. Não
demorou muito para que ele acatasse
minha sugestão. Eu sabia que o Sr.
Bullock precisava ser provocado para
que voltasse a agir – sorrindo, Holmes
então apontou para mim. – Sacker
cumpriu com perfeição o papel da isca
que atrai o predador.
Arregalei os olhos, não acreditando
no que acabara de escutar. Era assim
que Holmes me considerava: uma mera
isca! Conclui que aquele homem,
destituído de coração, frio e calculista,
seria capaz até mesmo de deixar um
amigo em um aposento escuro e na
presença de uma serpente venenosa
apenas para comprovar alguma teoria
maluca.
– Parabéns, Holmes! – Lestrade
cumprimentou o detetive. – Sua
sagacidade colocou atrás das grades um
assassino perigoso – virou-se para mim.
– Soube que o doutor é uma espécie de
biógrafo dele. Não tenho dúvida de que
estes relatos serão um sucesso tendo um
narrador confiável como senhor. Espero
com ansiedade pelo dia em que forem
publicados.
Esse dia, pensei enquanto esboçava
um sorriso educado para o policial, será
aquele em que o sol se puser sobre o
império britânico.
Um homem de sorte. Foi assim que
Stamford me chamou quando eu
consegui as acomodações da Rua Baker,
no começo do ano.
Ele estava brincando comigo. Sim,
esta era a única explicação que eu
encontrava, já que Stamford conhecia,
ainda que superficialmente, Sherlock
Holmes e suas excentricidades.
Uma brincadeira de mau gosto.
Após Lestrade e Simmons se
despedirem – e eu lavar por duas vezes
a mão que cumprimentara o estrangeiro,
pois, mesmo inocente da acusação de
assassinato, Simmons continuava a ser
um onanista –, coloquei Ignatius Doyle
para arder no fogo da lareira.
Já havia passado da hora de deixar
aquele apartamento, conclui, ainda mais
ao acordar alguns dias depois com o
inconfundível som de uma arma de fogo
sendo disparada. Verifiquei que Holmes,
em uma das suas extravagantes
variações de humor, resolveu
demonstrar seu patriotismo e decorar a
parede da sala com um VR – de Victoria
Regina – feito pelos buracos das balas
de revólver.
Eu pensava em investir o pouco
dinheiro que me sobrava em uma
especialização de oftalmologia –
descobri que, quando se tratava da
visão, as pessoas pagavam qualquer
coisa – ou na compra de um vibrador
eletromecânico, um aparelho caro, mas
que possibilitaria massagens pélvicas
em menos de dez minutos e,
consequentemente, o atendimento de um
número maior de pacientes.
Uma coisa era certa: precisava sair
do no 221B da Rua Baker o mais rápido
possível.
Ou acabaria por cometer um
assassinato.
[1] City é a forma reduzida de City of London, termo utilizado

para referir-se ao centro financeiro da Inglaterra.


A aventura do falso Dr.
Watson ~ Carlos Orsi

A NOTÍCIA DA MORTE de Mary Morstan


Watson me alcançou em um bar e antro
de ópio do porto de Túnis, onde Olaf
Sigerson, marinheiro norueguês, trocava
socos com um colega de tripulação,
Wolf Larsen, filho de dinamarqueses.
Enquanto a serragem sobre o piso
erguia-se em espirais com o movimento
rápido dos pés dos boxeadores,
enquanto as tábuas rangiam e bebiam
sangue, suor e saliva, os cristãos
presentes apostavam rodadas de bebida
para ver qual dos dois gigantes nórdicos
estaria de pé ao cabo de quinze minutos;
já os maometanos, proibidos por seu
Profeta de provar dos espíritos voláteis,
apostavam ouro.
Era no ouro dos turcos que Larsen e
Sigerson estavam interessados, e era
para os turcos, portanto, que se
esforçavam em manter a luta
interessante. Wolf era mais forte, uma
massa compacta de músculos, mas Olaf
tinha a velocidade ao seu lado, e uma
envergadura considerável.
Olaf havia acabado de entrar na
guarda de Wolf e atingira seus rins com
uma rápida sequência de direita-
esquerda-direita; como combinado, a
vítima dos golpes desceu os cotovelos
com força sobre os ombros do
adversário, lançando-o ao chão com um
grunhido.
Sigerson sentiu a serragem, salgada
de transpiração, nos lábios e na ponta da
língua enquanto se levantava e, ao
mesmo tempo, notou o homem de
Mycroft na multidão, com o lenço
amarelo que significava mensagem
urgente. No mesmo instante, o fino
tecido mental que era a personalidade
do marinheiro norueguês se desmanchou,
e voltei ao primeiro plano de meus
próprios pensamentos.
Sinalizei para Larsen que era hora de
acabar, e notei a ponta de sorriso em seu
rosto: por causa da queda, as apostas
haviam dado uma guinada e havia
dinheiro pesado investido contra
Sigerson. Logo, seria mais lucrativo se
meu adversário perdesse o combate. E
Larsen gostava de perder, quando a luta
era arranjada: ser subestimado, para ele,
era como ter uma carta na manga.
Antes que outros também notassem a
curva em seus lábios, livrei-o do sorriso
com um cruzado de esquerda.
A morte da mulher de Watson, da qual
fui informado após contar as moedas
ganhas com o combate, não me deixava
outra escolha senão retornar, incógnito,
a Londres. Gostaria de poder dizer que
o motivo principal era o desejo de
confortar meu melhor – talvez único –
amigo, mas o fato é que Watson não
poderia saber de minha presença. Era
cedo demais e, além disso, muito
perigoso.
O perigo era a verdadeira razão de
meu retorno: a possibilidade de que os
homens de meu inimigo tivessem
decidido levar a guerra aos que me eram
mais caros, resolvido tentar uma
desforra da Batalha de Reichenbach em
solo inglês. O homem de Mycroft disse-
me, enquanto me pagava uma generosa
caneca de um abominável vinho africano
de palmeira, que a Yard considerara a
morte de Mary acidental, mas quem
poderia saber com certeza?
Além disso, havia a questão da
fantástica herança de Mary, o Tesouro de
Agra: em seu pitoresco relato do caso
do Signo dos Quatro, Watson diz
claramente que a fortuna se perdeu antes
que se casassem. Mas nem todos
acreditam em tudo que sai na página
impressa.
Não sendo conveniente retornar à
Inglaterra sob a identidade de Sigerson,
foi como Vernet, o ator francês, que
voltei a avistar as areias de Albion.
Trabalhando num pequeno papel numa
montagem pouco inspirada de O doente
imaginário, mantive o consultório de
Watson em Kensington sob vigilância
por cerca de três semanas; o que
descobri preocupou-me.
Era evidente que a dor da perda de
Mary abalara-o profundamente. A tez
bronzeada que o acompanhava desde a
campanha do Afeganistão dera lugar a
uma visagem pálida, com o brilho e a
consistência da cera; e Watson mancava
ao caminhar, apoiando-se firmemente
numa bengala.
Esse último dado era importante: das
feridas que recebera na guerra e que
ainda o incomodavam anos depois, a da
perna sempre me parecera de caráter
mais nervoso – a velha cicatriz
lembrava-se de doer e latejar
principalmente nos momentos de intensa
angústia pessoal. Lamentei por meu
amigo.
Mas o que realmente me preocupou
foi ver que Watson saía, ao menos duas
noites por semana, na companhia de
Arthur Conan Doyle. O Dr. Doyle era
um oftalmologista e velho amigo;
escritor de grande mérito próprio,
ajudara Watson a publicar seus
primeiros manuscritos. Mas era,
também, um fervente apóstolo do
espiritismo; e, embora não reivindique
para meus poderes dedutivos a
capacidade de penetrar a névoa densa
da metafísica, sei muito bem que um
apóstolo sincero pode, muitas vezes, ser
usado como isca involuntária.

– Meu caro Sherlock, o que me pede é


impossível.
Sorri por baixo da barba ruiva de
Kent Cranston, livreiro e exportador de
tabaco de Boston, a identidade com que
me apresentara ao Clube Diógenes em
busca de uma audiência com Mycroft.
Era evidente que ele enxergara
diretamente através da maquiagem e de
meus maneirismos de plutocrata
americano; não esperaria menos do mais
arguto dos irmãos Holmes.
– Então – respondi – você deve ser
capaz de arranjar tudo em menos de uma
semana.
Podíamos conversar abertamente.
Estávamos numa sala especial do clube,
à prova de som – ostensivamente, para
impedir que os demais membros dessa
fraternidade dedicada à solidão e ao
isolamento fossem incomodados pelos
diálogos travados ali, mas que também
servia a outros fins.
Mycroft olhou de lado,
desconfortável. Eu sabia que a lisonja
poderia afetá-lo até certo ponto, mas que
ele logo veria, também, a necessidade
lógica do plano.
– Dr. Watson tem ferimentos de
guerra, e recebeu baixa honrosa. Não
podemos simplesmente convocar um
reservista ferido a serviço da Coroa, a
menos que haja uma emergência...
– Diga-lhe que é uma missão secreta.
Onde é que nossos homens estão sendo
atingidos por uma doença misteriosa...?
– Birmânia.
– Mande-o para lá. Para investigar a
causa da moléstia.
– “O beijo zayat” – disse Mycroft,
movendo a boca como se mastigasse
algo amargo. – Parece ser algum tipo de
ataque terrorista. Uma versão oriental da
varíola que os americanos usaram contra
seus índios. Suponha que ele fique
doente, também?
– Então, mande-o para Berlim. Ou
Atenas. Ou Buenos Aires. Mas tire-o de
Londres por pelo menos um mês.
– E o motivo para essa farsa
melodramática seria...?
– Investiguei alguns dos
espiritualistas com quem ele anda se
reunindo. Segui-o, misturando-me aos
invisíveis de Londres... varredores de
rua, acendedores de postes, cocheiros,
leiteiros, carteiros, entregadores. O
suposto médium do grupo, Finch, eu o
conheço. Era um batedor de carteiras
que atuava preferencialmente na saída
da ópera, até que ficou cego. Desde
então, vive de uma pensão por invalidez,
paga pela organização de Moriarty aos
seus.
– E Conan Doyle não desconfia de
nada? Foi ele quem apresentou Watson
ao grupo, diz você.
Encolhi os ombros:
– Conan Doyle é um caso à parte. Um
homem extremamente inteligente, mas
sua inteligência tem um ponto cego, que
é o sobrenatural. Suas funções críticas
simplesmente não funcionam aí. Um dia,
temo, acabará enganado por crianças,
acreditando em sílfides e dríades. E, de
qualquer modo, ele não é parte do
grupo: apenas fez as apresentações. Em
breve, Watson começará a frequentar as
sessões de Finch por iniciativa própria.
É aí que devemos intervir.
Mycroft fechou os olhos e baixou a
cabeça, imerso em meditação. Quase
sem mover os lábios, disse:
– Sua devoção à amizade é
encantadora, Sherlock – ele fez uma
pausa. – Mas eu não poderia justificar
um movimento tão amplo do maquinário
do Estado só para...
– Não se esqueça – interrompi-o,
lançando minha última cartada – de que
Watson é responsável pela custódia do
Tesouro de Agra. E se Finch ainda é
homem de Moriarty...

O rosto de John Hamish Watson me


encarou, um tanto quanto surpreso, do
outro lado do espelho. A temporada de
Molière havia se encerrado com um
fracasso moderado – pouco apetite para
comédia francesa no East End – mas o
produtor pagara o suficiente para que
Vernet pudesse manter o aluguel de um
quarto esquálido num cortiço próximo
ao teatro, sem atrair suspeitas.
Transformar-me em Watson não foi
difícil – e, ao mesmo tempo, foi uma de
minhas mais árduas empreitadas.
Fisicamente, o doutor, que sempre tivera
um porte atlético, emagrecera muito
desde a morte de Mary; eu era mais alto,
mas a necessidade de simular a ferida na
perna, e uma escolha adequada de traje,
daria conta disso. O formato do nariz,
corrigi com maquiagem, e o bigode
abundante era um bônus para o disfarce.
A dificuldade veio do fato de que,
pela primeira vez em minha carreira, eu
não criava um personagem, mas
reproduzia um homem. E isso fazia toda
a diferença. Mergulhar no psiquismo de
Sigerson ou Vernet sempre havia sido
relativamente simples: eles nada mais
eram do que reflexos de minha própria
mente. Mas tornar-se Watson mudava as
regras do jogo; recriar o doutor não
como eu o via, não como um reflexo de
mim mesmo, mas como ele de fato era.
Mycroft arranjou para que o Foreign
Office requisitasse os serviços de
Watson numa missão delicada nos
Estados Unidos – uma em que sua
combinação de experiência militar,
formação médica e trabalho como
detetive amador de fato se mostrariam
úteis. Como se tratava de um
incumbência secreta, pediram-lhe que
não comentasse nada com ninguém; e,
enquanto o som ritmado dos cascos dos
cavalos do coche preto que havia ido
buscá-lo, no silêncio da madrugada, era
tragado pelo fog, outro coche idêntico,
comigo dentro, fez a curva da esquina e
encostou diante da pacata casa de
Kensington.
Por sorte, nessa época Watson havia
parado de clinicar para, ostensivamente,
dedicar-se aos estudos, em busca de
uma especialização – seguindo,
conforme eu soube depois, os conselhos
de Conan Doyle, que se encantara com a
troca da clínica geral pela oftalmologia.
Eu certamente seria capaz de receitar
láudano para a histeria de uma velha
senhora, costurar uma ferida superficial
ou fixar um braço deslocado, mas
detestaria me ver em posição de extrair
um apêndice ou ser pressionado, por
uma mãe desesperada, a diagnosticar a
causa da febre debilitante de uma
criança.
Minha inserção na rotina e na pele de
Watson transcorreu sem problemas. A
empregada e o menino de recados
aceitaram-me sem pestanejar; e por dois
dias vivi a vida de um homem enlutado,
que assistira a tragédias demais em
menos de um ano – a morte violenta do
melhor amigo e, depois, a da própria
mulher.
Encontrei, no porão da casa, um baú
com todos os pertences de Mary, e uma
mala, menor, com os trajes e adornos
que vestira em seu último dia de vida; e,
entre os papéis de Watson, uma
descrição minuciosa do acidente que
custara a vida à mulher, além de cópias
de depoimentos prestados à polícia e
relatos de testemunhas.
Não havia dúvida de que ele estivera
trabalhando no caso – em parte como
escritor, em parte como marido, em
parte como médico, em parte como
detetive. Essa divisão de propósitos
tornava o trabalho especialmente
improdutivo, ainda que caudaloso.
O homem de Mycroft dissera que
Mary havia sido atropelada por um
cabriolé, mas essa não tinha sido uma
descrição exata: segundo os papéis de
Watson, o coração de Mary Morstan
Watson falhara no momento em que ela,
ao atravessar uma rua movimentada,
vira-se assustada por um grande cavalo
branco – o animal relinchara e empinara
subitamente, mas não havia chegado a
tocá-la: não houvera atropelamento de
fato.
Watson não se valia da música para
ajudá-lo a concentrar-se; não havia
violino na casa, e nem eu, depois de
assumir a identidade de meu amigo,
usaria um. Em vez disso, o doutor
preferia preencher folhas de papel com
frases ao acaso, pequenas filigranas,
caricaturas grotescas; vivendo-lhe a
vida, cobri dois fólios com iluminações
medievais antes de me convencer de que
o cocheiro envolvido no acidente não
tivera culpa nenhuma na morte de Mary.
Ele detivera o cavalo a uma distância
segura. Se fosse uma tentativa
deliberada de atropelamento, viu-se
interrompida cedo demais; o mesmo
valendo para uma tentativa de atingir a
vítima com os casos sem pisoteá-la,
ferindo-a ou incapacitando-a. E não
havia como prever que seu coração
escolheria aquela ocasião para parar:
durante o caso de O signo dos quatro,
Mary desmaiara algumas vezes, mas
sempre havia se recuperado.

Conan Doyle estava entretido com os


deveres da paternidade recente, e
portanto foi sozinho que, sob a falsa
pele de Watson, chamei um cabriolé e
dirigi-me ao endereço de William
Johnson.
Pelo que vi nos papéis pessoais de
Watson, Johnson também era um
veterano do Afeganistão, onde sofrera
com uma ferida gravemente infectada –
infecção da qual, num toque biográfico
que me pareceu mais fruto do desejo de
entreter o anfitrião à mesa do que
qualquer outra coisa, teria se recuperado
com a ajuda de um homem santo, um
herbalista tribal. O trabalho desse
feiticeiro, dizia a história, pusera-o no
caminho do espiritismo.
Ele havia se tornado amigo do casal
Watson após minha “morte”, por
intermédio de Conan Doyle, e até
frequentara a residência de Kensington,
presenteando Mary, em certa ocasião,
com um pequeno pente ornamentado que
trouxera do Oriente. Era em sua casa
que ocorriam as sessões espiritualísticas
coordenadas pelo punguista cego e
presumivelmente regenerado, Howard
Finch.
A casa era grande e bem localizada.
Fui recebido à entrada por um mordomo
que reconheceu minha presença com um
aceno da cabeça e me conduziu, sem
uma palavra, a uma grande biblioteca,
onde já se encontravam quatro outros
homens, Finch e Johnson entre eles. O
mordomo me indicou uma poltrona e
retirou-se.
Assim que a porta se fechou às nossas
costas, o anfitrião, um homem de
cabelos negros, porte médio e barbas à
Lincoln, levantou-se para me
cumprimentar:
– Bem-vindo, Watson! Com você, o
grupo da noite está completo. Tome seu
porto, fume um charuto e começaremos
em seguida.
Havia um decantador de cristal
entalhado na mesinha à minha direita,
cheio até a metade com um líquido cor
de rubi, pequenas taças combinando e
um umidificador ao lado. O ar da sala
estava tomado por uma fragrância doce
que provavelmente sufocaria o paladar
do vinho – e dos charutos –, mas
ninguém parecia se importar.
O homem sentado mais próximo ao
braseiro onde ardiam pequenos cubos de
uma madeira exótica, a provável fonte
do perfume que preenchia a biblioteca,
ergueu uma mão enluvada e disse, numa
espécie de rugido amistoso:
– Nada de álcool esta noite, Hamish!
– este era Clanton McDougal, um
gigante ruivo das Terras Altas
escocesas: e um nacionalista, para
referir-se a mim pelo nome gaélico.
Watson, ao mencioná-lo em seus diários,
era ambivalente. A personalidade
expansiva parecia causar-lhe ondas
sucessivas de simpatia e repulsa. –
Nada de álcool esta noite, pois teremos
uma grande revelação. Sem dúvida, uma
grande revelação, e quero todos de
olhos bem abertos! Sem ofensa, claro.
O sorriso cruel que McDougal lançou
na direção de Finch desmentia sua
última afirmação. O médium cego – um
homem baixo, magro e calvo que, como
convém ao batedor de carteiras, parecia
capaz de tornar-se invisível por um
mero ato de vontade, limitou-se a erguer
as sobrancelhas por detrás dos óculos
de lentes redondas, opacas. Ele usava
um pequeno distintivo na lapela – um
triângulo invertido de ouro, no centro do
qual ardia uma pupila de esmeralda.
Nos diários de Watson, o adorno era
descrito como “o signo da visão
metafísica”.
– McDoug está nos prometendo um
espetáculo há dias – disse o quarto
homem na sala, um jovem loiro chamado
Rupert Smith. Como Watson, havia
perdido a mulher recentemente. Depois
de Johnson, era o melhor amigo de
Watson entre os integrantes do grupo. –
Mas recusa-se a dizer do que se trata.
– Parte do efeito depende da
surpresa. Como escritor, estou certo que
Watson compreende – Clanton lançou
uma piscadela de opereta em minha
direção.
– Sou obrigado a concordar – disse,
numa imitação passável da voz de
Watson que não atraiu objeções. – Mas
uma das vantagens de ser escritor é
saber, de antemão, onde cada surpresa
está.
– Este é o meu privilégio nesta noite!
– Clanton voltou a rugir. – E então,
cavalheiros? Vamos?
Depois alguns pigarros e uma
tentativa malsucedida de riso forçado,
Johnson nos conduziu a uma sala menor,
fracamente iluminada por uma menorá
barroca de prata apenas parcialmente
preenchida, com velas em castiçais
alternados. A mobília restringia-se a
uma mesa redonda estreita e cinco
cadeiras. As velas exalavam uma
fragrância que contrastava – de uma
forma não de todo desagradável – com a
do braseiro da biblioteca. Finch
encontrou seu caminho com certa
dificuldade, sentindo móveis e paredes
com uma bengala fina.
Sentamo-nos, eu com Johnson à minha
direita e Finch à esquerda; Clanton que,
em altos brados, exigiu ficar ao lado de
Johnson, postou-se entre ele e Smith,
praticamente oposto a mim.
Como disse, a mesa era estreita;
teríamos de manter as mãos sobre ela, e
mal havia espaço para os dez pares.
– Tire as luvas, Clanton – disse
Johnson, seco. – Você sabe que a energia
precisa fluir desimpedida pela
corrente...
– Oh, mas vou tirá-las – disse ele –
assim que as luzes se apagarem. Você
tem a minha palavra.
Tomando a palavra do escocês como
garantia suficiente, Johnson assoprou as
velas; o cheiro da fumaça tornou-se um
pouco amargo, e dissipou-se devagar.
Tenho olhos que se acostumam bem à
escuridão, e o fato de meio minuto –
trinta batimentos cardíacos – terem
transcorrido sem que nenhum vulto
tomasse forma nas trevas convenceu-me
de que o aposento se encontrava, de
fato, totalmente isolado da luz.
– Pronto – era a voz de Clanton,
informando-nos de que tirara as luvas. –
Vamos lá.
Pusemos as mãos sobre a mesa; era
possível sentir o contato da mão dos
colegas de cada lado. Johnson começou
a entoar um cântico baixo, de sabor
oriental, e Finch logo se juntou a ele,
num murmúrio.
– Adelle está entre nós – disse o
médium, finalmente. A voz parecia vir
de todas as direções ao mesmo tempo:
certamente a acústica da sala havia sido
planejada com cuidado. – Ela quer que
Rupert, Ruppie, saiba que está bem; ela
já lhe disse isso antes, mas sabe que a
repetição o reconforta.
– Sim! Oh, sim! – no escuro, ouvi
Smith soluçar.
– Adelle sabe que isso o reconforta...
– prosseguiu Finch, numa voz que soava
genuinamente cheia de sentimento –
porque Adelle também sente-se
reconfortada ao vê-lo prosseguir com
sua vida na Terra. Adelle pede que
Ruppie não se apegue demais às
lembranças que não são do espírito, mas
da matéria... que não transforme objetos
em ídolos e altares pagãos, que não crie
bezerros de ouro do amor, mas conserve
o amor, puro, em seu coração...
A escuridão teria me permitido sorrir,
mas isso seria sair do personagem, um
luxo a que eu não poderia me dar.
Suponho que mesmo Watson, se não
estivesse comovido por uma perda
recente semelhante, teria notado o que
acontecia ali: o pobre homem estava
sendo induzido a abrir mão das joias da
mulher. A sugestão de que ele deveria
doá-las a uma “causa nobre” não
poderia estar muito longe.
Houve alguns momentos de silêncio,
quebrado apenas pelo choro baixo de
Smith, e então ouvimos a voz de
Clanton:
– Que diabo é isso? O que está
acontecendo?
– McDoug – ouvi-me dizer, na voz de
Watson –, comporte-se, por favor.
– Com mil demônios, Hamish, há algo
errado... eu...
Então ouvimos um impacto, depois
outro e, no escuro, a mesa virou.
Johnson desistiu rapidamente de
procurar cegamente pelas velas, que se
haviam espalhado quando a menorá caiu
no chão, e abriu a porta da sala para
deixar a luz entrar.
Clanton McDougal estava caído de
bruços, os olhos vidrados. Morto.
Sendo o único médico na casa,
Watson foi o primeiro a examinar o
corpo, mas não havia marcas evidentes,
lesões, cortes ou perfurações: apenas a
boca, tragicamente aberta, os olhos
enormes, a palidez da morte. Também
não havia respiração ou pulso. Sua testa
estava molhada de suor frio, e a
cabeleira ruiva ainda tinha um pouco do
cheiro adocicado do braseiro da
biblioteca.
Ouvi a voz de Watson pronunciar o
homem morto por ataque cardíaco. A
polícia, representada, tardiamente e não
muito bem, pelo inspetor Wilson, da
Scotland Yard, concordou com esse
diagnóstico.
O que Watson se furtou a descrever
aos policiais (e é duvidoso que Wilson
tivesse feito algo de útil com tal
informação) foram as coisas que
encontrou no bolso externo do paletó do
morto: não um, mas dois pares de luvas.
Além das pesadas manoplas de couro
que ele havia usado durante a reunião,
havia ainda um par de luvas e seda,
muito finas e justas – se ele as tivesse
usado, elas provavelmente teriam
reduzido a circulação em suas mãos.
E isso, claro, explicava praticamente
tudo. Pequenas incertezas e
ambiguidades restavam, apenas, e a
única realmente importante seria
resolvida, eu estava certo, assim que
retornasse a Kensington. O que me
deixaria com a parte realmente difícil do
problema para resolver: como agir para
que a trama macabra fosse desfeita, sem
que isso traísse meu retorno da tumba.

O pequeno laboratório médico de


Watson mostrou-se mais do que
adequado para as análises que tinha em
mente, e confirmaram a principal de
minhas suspeitas. Uma consulta aos
arquivos dos jornais convencera-me,
embora sem fornecer evidência cabal,
de que a morte de Adelle Smith tinha
sido da mesma natureza que a de Mary
Morstan Watson.
Confesso que era desconcertante ter
os fatos à ponta dos dedos e, ao mesmo
tempo, ser impotente para agir; estar
com as mãos atadas. Não poderia levar
o que sabia à Yard sem revelar minha
presença ou, o que seria praticamente a
mesma coisa, ver Watson retornar dos
EUA para ser saudado pelas autoridades
como o protagonista de um drama do
qual não participara.
Poderia, em vez disso, levar os fatos
a Mycroft, mas sua agência relutava em
agir contra cidadãos da Coroa dentro
das Ilhas Britânicas. Eu provavelmente
poderia contar com meu irmão para a
limpeza que teria de se seguir ao ajuste
de contas. Mas o acerto em si teria de
ser providenciado por mim mesmo.
Havia outras vidas em jogo, disso eu
bem sabia; os dois viúvos, Smith e
Watson, eram já homens marcados.
Clanton McDougal havia desvendado o
contorno geral da trama, mas não
prestara atenção aos detalhes; isso lhe
custara a vida. Minha tarefa seria, então,
torcer os detalhes a meu favor, sem que
o adversário se desse conta.
Este era, claro, meu maior trunfo: o
adversário não sabia que tinha um
adversário.
A oportunidade de informá-lo do fato
surgiu na sessão seguinte, marcada, por
questão de decoro, para quase dez dias
depois da morte de McDougal. A ela
compareceram os mesmos participantes
da sessão anterior, e Nancy McDougal, a
viúva de Clanton. Não sei se ela pedira
para assistir a uma sessão ou se havia
sido convidada, mas sua presença dava
ao procedimento todo uma aura de
perversidade que nem mesmo a
anestesia emocional de Watson foi capaz
de bloquear por completo.
Desta vez, o interregno na biblioteca
foi ainda mais curto, mas notei que
Smith deixava para trás, junto ao que
parecia ser um ídolo pagão de mármore
sobre o aparador da lareira, um pequeno
baú de bronze; as joias da família, sem
dúvida.
Ao sentar-se à mesa, na sala
iluminada pela menorá, Watson estava
agitado e, quase sem perceber, deixou-
se conduzir para a cadeira que lhe era
indicada por Johnson. Havia uma farpa
aguda de indignação sob a superfície de
sua mente.
Meu gentil biógrafo volta e meia
recorre ao recurso literário de fazer-se
de tolo, na página escrita, como meio
para ressaltar as qualidades do curioso
personagem que, em seus relatos, passa-
se por mim. Mas Watson está longe de
ser um tolo: trata-se de um homem
perspicaz. Apenas, como a maioria dos
integrantes da massa humana, não dispõe
do método necessário para converter
intuição em conhecimento.
Mas suas intuições eram profundas e
certeiras. Imerso em suas roupas,
maneirismos, aspecto e pensamentos, eu
estava plenamente consciente delas, e
sabia que, em breve, poderia usá-las a
meu favor.
No início da sessão, tivemos Adelle
Smith elogiando o desapego de Ruppie
em relação aos bens materiais; tivemos
Clanton McDougal garantindo à mulher
que tudo estava bem em Summerland, a
pitoresca sinonímia de “Paraíso”
gestada nos círculos espiritualistas. E
então, veio a minha vez.
– Watson – disse uma voz que parecia
pairar sobre a sala. Uma voz brusca,
quase grosseira, mas carregada de um
certo bom humor, uma ponta de
camaradagem e espírito esportivo.
Como não reconhecê-la? Era a minha
voz.
Ou, certamente, uma imitação
razoável.
– Watson!
Algo, então, começou a tomar forma
no ar, bem sobre o centro da mesa, um
pouco acima da posição onde, eu
estimava, estaria a menorá. Era uma
cascata fosforescente, que descia e
desfraldava-se do vazio; havia espaços
escuros nela que tomavam forma
lentamente.
Vozes nervosas sussurravam pela
mesa:
– O que você está vendo?
– Um véu!
– Não, é mais como um verme... um
fio... ou lábios que se abrem...
Isso é o que os outros disseram ver.
O que eu via, sem a menor sombra de
dúvida, era uma imagem em negativo do
rosto severo de Sherlock Holmes.
– Watson! – repetiu a voz, imperativa.
– É você, Holmes? Holmes! – ouvi-
me gritar.
– Chega de segredos, Watson! –
ordenou a voz. Tratava-se, claro, de
Finch falando; a imitação, de fato, já não
era mais tão boa. Mas ele deve ter
imaginado que, com o choque emocional
acumulado, Watson não notaria. – Mary
também está aqui, e também pede: chega
de segredos. O que está guardado deve
ser usado. Usado para fazer o bem.
Ouviu, Watson?
– Ouvi – respondi, submisso. A fala
era ambígua o bastante, mas para mim
ficou claro que Finch estava pescando
pelo tesouro de Agra.
E então a face de Holmes ondulou e
se contraiu, e começou a desaparecer, de
cima para baixo, até que o queixo sumiu
por último.
Passaram-se mais alguns segundos em
silêncio até que Johnson pressionasse
com o pé o botão que abria a porta para
a biblioteca.
Enfim, a luz entrou.

À saída da casa, enquanto nos


despedíamos uns dos outros, puxei
Johnson para um canto e lhe disse, num
sussurro:
– Isto é intolerável!
– Isto, o quê? – ele parecia
genuinamente surpreso.
– Johnson, Finch é uma fraude.
Holmes jamais teria dito o que disse ali.
E nem era uma boa imitação da voz de
Sherlock.
– Você deve estar enganado... – a
expressão escandalizada no rosto de
Johnson também não era exatamente uma
peça de boa atuação, mas ele estava no
caminho correto, usando o pânico e a
frustração que realmente sentia como
trampolim para dar viço às sobrancelhas
erguidas, aos olhos arregalados, à boca
aberta.
– E como ele conhece a voz de
Holmes, para poder imitá-la? – Watson
insistiu. – Duvido que já tenha sido
policial, ou um cliente. Teria sido um
criminoso? Johnson, você está sendo
miseravelmente enganado!
– Não pode ser! – seus ombros
relaxaram perceptivelmente quando lhe
ofereci a saída de ser não um cúmplice,
mas uma co-vítima. –Watson! – ele me
agarrou com força pelos braços. – Volte
daqui a cinco dias. Faremos uma nova
sessão, mais controlada. Para tirar a
dúvida.
Lancei na direção de Johnson um
olhar dúbio, mas o convite era
exatamente o que eu esperava. Tratava-
se, afinal, de um convite para o
assassinato de John H. Watson.

Devo dizer, antes de partir para o ato


final deste pequeno drama, que se
sempre hesitei em tomar a justiça em
minhas mãos, jamais me furtei à
responsabilidade da fazê-lo em todas as
ocasiões em que a necessidade se
impôs. Quando parti para minha sessão
final com Finch, o médium, foi com
plena consciência de que um homem –
talvez dois – possivelmente não estaria
vivo para assistir à alvorada do dia
seguinte.
Quando cheguei à casa de Johnson,
fingi surpresa ao me dar conta de que só
estavam lá, além de mim, o próprio
anfitrião e Finch. Conduzindo-me para
uma poltrona junto ao braseiro onde
ardiam as madeiras aromáticas – o
mesmo lugar onde McDougal havia se
sentado em sua última hora de vida –
Johnson sorriu e explicou-se:
– Os outros estão atrasados, mas já
devem estar chegando. – A verdade, eu
suspeitava, era que os demais
participantes da sessão tinham sido
informados de um horário ligeiramente
diferente do que me havia sido dado.
Tudo, claro, parte do plano.
Sorrindo, mas com um olhar um
pouco tenso, Watson sentou-se. Ele
estava lá, o soldado ferido e enviuvado,
para travar uma batalha; não lhe
agravada a dissimulação. Johnson
provavelmente atribuiu o fato de eu não
lhe apertar a mão e de manter minhas
próprias mãos nos bolsos do paletó
quase todo o tempo a essa variante
ingênua do nervosismo.
Isso, é provável, divertia-o, ainda
que secretamente. Sempre que as mãos
deixavam os bolsos era para realizar
gestos rápidos, o suficiente para dar a
meu anfitrião a convicção de que elas
estavam nuas, mas insuficiente para
revelar as finas teias de seda que
envolviam a ambas. Finch, que como
todo bom batedor de carteira também
era um prestidigitador de não pequeno
talento, certamente teria reconhecido a
manobra. Mas Finch era cego.
Logo, os demais componentes da
mesa estavam entre nós: eram os
mesmos da sessão anterior.
Todos me encaravam com um quê de
piedade. Suponho que Johnson tenha
inventado algum tipo de emergência
espiritual envolvendo Watson para
convocar uma sessão tão próxima à
anterior. Minha recusa em apertar mãos,
minha insistência em restringir meus
cumprimentos a acenos rápidos e curtos,
certamente era interpretada como sinal
de uma profunda dor íntima.
Na mesa, já na sala das sessões, fiz
questão de me sentar junto a Finch. Este
foi o momento mais delicado de toda a
operação: eu havia removido as luvas
em segredo há alguns minutos, e era
imperativo que a sessão tivesse início o
quanto antes para que a sensibilidade
exacerbada pelo contato prolongado
com a seda e pelo retorno pleno da
circulação realmente me ajudassem a
sobreviver à noite. Mas é óbvio que não
estava nos planos dos criminosos
deixar-me em contato direto com o
médium. O impasse teria de se resolver
a meu favor, e depressa.
No fim, não foi necessário mais que
um olhar desconfiado à direção de
Johnson para garantir que as coisas
fossem feitas do meu jeito: ele
acreditava, afinal, que tinha de fingir
estar ao meu lado para me manter ali, no
matadouro que eu pretendia transformar
em cadafalso.
E então todos estavam sentados, com
Finch à minha esquerda e Johnson diante
de mim. Antes que as luzes se
apagassem, notei que ele girava a
menorá. Tive vontade de sorrir, mas
então as luzes se apagaram, e o último
ato lançou-se rumo ao clímax.

Disse que à minha direita estava Finch;


é preciso acrescentar que, à direita de
Finch, sentava-se Rupert Smith. Era a
configuração ideal: para que a
substituição seja possível, é sempre
necessário que o prestidigitador esteja
entre duas pessoas do mesmo sexo que
ele próprio.
Não se trata de um truque
especialmente difícil, ainda mais se
realizado sobe o tampo de uma mesa
estreita e em completa escuridão. Nele,
o “artista” remove suas mãos num
movimento lento e preciso, de forma a
fazer com que as mãos das pessoas à
direita e à esquerda de si mesmo passem
a se tocar – substituindo-o, efetivamente.
A sensibilidade exacerbada pelo uso
da teia de seda (recomendado
explicitamente para esse fim pelo Sr.
Harry Houdini) permitiu-me detectar o
momento exato em que a remoção
ocorria. Clanton McDougal tivera a
mesma ideia, mas cometera dois erros:
primeiro, havia sido explícito demais
em seu propósito; segundo, supusera que
o taumaturgo na sala era Johnson, e não
Finch. Ambos os erros custaram-lhe a
vida. Não lhe ocorrera que, na escuridão
absoluta, um cego pode ser
especialmente letal.
Poucos segundos depois de feita a
substituição, o fantasma de Holmes
reapareceu sobre o centro da mesa.
Finch precisava das mãos livres para
operar o mecanismo oculto na menorá,
que erguia o pequeno mastro e
desfraldava o velame fluorescente com
o rosto do “detetive morto” em negativo.
E poucos segundos depois de iniciar-
se a aparição fantasmagórica, senti uma
leve picada no couro cabeludo. Sabia
que era Finch, em pé atrás de mim,
guiado até o alvo pelo cheiro da brasa
aromática que ardera na biblioteca e que
se impregnara em meus cabelos. Era
Finch, aplicando uma dose do mesmo
veneno que eu identificara no pente
ornamental de Mary Morstan Watson.
Uma resina de Nerium oleander, uma
planta asiática tão perniciosa que até
mesmo a carne assada sobre suas brasas
torna-se letal. Na forma e na dose
usadas por Finch, atuava como
estimulante cardíaco, mantendo-se
presente no organismo por várias horas
e predispondo a vítima à morte na
primeira emoção intensa, no primeiro
grande esforço após a aplicação.
No primeiro susto.
A atropina, extraída da beladona, é
um antídoto; e foi uma cápsula dessa
substância que rompi com os dentes,
após sentir o toque homicida.
Enquanto acreditava assassinar
Watson, Finch falava, imitando a voz de
Holmes; valendo-se da acústica especial
da sala, para que a fonte das palavras
não fosse localizada com precisão.
Falava sobre a necessidade de acreditar,
de ter fé, de pôr de lado o coração duro
e abrir-se para a esperança, coisas
assim.
Quando senti a mão de Finch a
reintroduzir-se entre a minha e a Smith,
girei de leve o pulso, arranhando-o com
minha abotoadura. Nerium oleander. O
terror, pensei, sorrindo com amargura na
escuridão, é um jogo onde cabem um,
dois, ou mais.
E então aumentei a tensão nos
músculos de minha garganta e abri a
boca para produzir a voz que ouvira,
pela última vez, emitindo um grito
medonho rumo ao redemoinho onde
desabavam as águas de Reichenbach.
– Finch! – o rugido sardônico do
fantasma do Prof. Moriarty encheu a
sala. – Que palhaçada é esta, Finch?
Quem autorizou esta operação?
– Quem é...? Que brincadeira...? –
Johnson, tentando entender o que se
passava. Moriarty cortou-o rapidamente:
– Cale-se, imbecil. Vou cuidar de
você na hora certa, verme. Meu negócio
agora é com Finch, este punguista
execrável. Fale, Finch. O que tem a
dizer?
– Professor... é a voz do professor...
mas o professor está...
– Morto? – Moriarty riu. – Não tenha
tanta certeza, Finch. E, se eu estiver? Os
mortos podem voltar, não podem, Finch?
Não é o que você diz a esses pobres
idiotas? Então, por que não eu? Vim
buscar, Finch, vivo ou morto, vim em
busca do que me pertence...
O grito agonizante do falso médium
irrompeu no mesmo instante em que
Johnson ativou o pedal que abria a porta
e trazia de volta a luz.
Inclinei-me rapidamente sobre o
cego, cujo corpo ainda se mantinha, em
equilíbrio precário, sobre a cadeira. Em
meu papel de Watson, fingi examiná-lo,
tentar reanimá-lo; afrouxei-lhe o colete,
a gravata. Tudo desnecessário: a
combinação de tensão e veneno
funcionara bem. O que eu manipulava
era nada mais que um cadáver.
Metade da justiça estava feita.
Johnson vinha em minha direção,
aturdido, mão estendida num gesto que
ao mesmo tempo pede e oferece ajuda.
– Watson, o quê...?
– Não há nada que possamos fazer –
falei, balançando a cabeça,
interpretando o papel de Watson
interpretando o papel de observador
inocente. – Mas acho que você gostaria
de ficar com isso.
Com essas palavras, transferi para a
palma estendida de Johnson o distintivo
de ouro e esmeralda que retirara da
lapela de Finch.
Num pequeno descuido, perfeitamente
justificável na emoção do momento,
apresentei o adorno com o alfinete
voltado para a frente e para fora – o que
abriu um corte longo, mas não muito
profundo, na mão do homem que havia
presenteado a mulher de Watson com um
pente envenenado.
Johnson olhou, aturdido, para a fina
linha de sangue que ia da base de seu
dedo mínimo até quase o polegar, e
então viu os olhos duros de Watson –
não os meus olhos imitando olhar do
médico mas, naquele momento, de fato e
indubitavelmente, os olhos de Watson –
e ouviu o sussurro:
– Por Mary.
Com um grito, deu-me as costas e
saiu correndo da sala, da casa. A Yard o
encontrou, morto, num beco a menos de
um quarteirão dali.

– Não posso dizer que me alegre a


notícia de que meu irmão é autor de um
duplo homicídio, Sherlock.
Dei de ombros:
– Eles não foram assassinados.
Foram executados. Enforcam-se
assassinos neste país, você sabe.
Mycroft não pareceu realmente
convencido:
– Apenas após um julgamento por
seus pares...
– Você certamente compreende as
circunstâncias – eu começava a sentir
uma ponta de irritação. – E nenhum júri
na Terra deixaria de condená-los.
– Eu disse que a notícia não me
alegrava – Mycroft agora assumia seu
tom mais cordial... O que, devo dizer,
não era muito. – Não que não via a
necessidade do procedimento. Você fez
bem, Sherlock. Dadas as circunstâncias.
Só uma coisa ainda me intriga...
– Sim?
– Clanton McDougal. O veneno,
como você diz, fragiliza o coração por
várias horas. Eles certamente não
esperavam que a morte ocorresse
exatamente ali. Ou esperavam?
– Também pensei no assunto. Mas
lembre-se de que a primeira reação de
Johnson, após a mesa virar, não foi abrir
a porta para dar entrada à luz, mas
vasculhar o chão... Em busca das velas,
supostamente.
– Ah.
Mycroft quase sorriu, ao
compreender a implicação.
– Alguma coisa tinha sido introduzida
na sala – continuei. – Alguma coisa
programada para assustar McDougal.
Algo que Johnson se ajoelhou sob a
mesa para recolher, antes de permitir
que a porta se abrisse e a luz entrasse.
Creio que o de Finch não era o único
olfato guiado pelo odor da madeira
queimada impregnado nos cabelos,
afinal. Respondendo à sua outra
pergunta, Finch e Johnson consideraram
necessário, sim, que McDougal
morresse durante a sessão: ele havia
expressado ceticismo de forma pública
e vexatória, e era preciso que o “mundo
espiritual” o “punisse” exemplarmente.
– E o quê foi introduzido na sala,
você sabe?
Retirei uma caixa de vidro do bolso
do paletó largo e coloquei-a sobre a
mesa. Ela continha um aracnídeo de
cerca de 15 centímetros de
comprimento, totalmente coberto de
pelos castanhos, exceto no cefalotórax,
nu e de um vermelho vivo, e dotado de
presas ameaçadoras.
– Apresento-lhe um exemplar do
solpúgido egípcio gigante, também
conhecido como aranha-do-sol, aranha-
de-camelo ou, entre os eruditos,
Galeodes arabs. Nossas tropas do
Afeganistão costumavam contar histórias
adoráveis a respeito dos indivíduos
dessa espécie, sobre como devorariam o
estômago de um camelo de dentro para
fora ou comeriam os pés e as mãos de
um soldado adormecido, sem que ele
notasse. Tudo muito interessante, mas
também muito falso, eu lhe garanto. O
solpúgido é perfeitamente inofensivo...
A menos que você seja um rato ou um
passarinho. Sua picada é dolorosa para
os humanos, porém. Encontrei-o ao
revistar a casa, na madrugada passada.
– Como Johnson conseguiu recolher
essa... criatura... do chão, no escuro, em
meio à confusão?
– Ora, Mycroft. O animal é
obviamente adestrado. Foi treinado para
seguir o cheiro da madeira queimada e,
depois, procurar a recompensa...
alimento, sem dúvida... nesta caixa. Que
também está impregnada por um odor
próprio. Johnson só teve que se abaixar
e segurar a caixa aberta, até que a
mudança no peso lhe dissesse que seu
adorável mensageiro havia retornado.
Essa aranha é muito rápida.
– Solpúgido – grunhiu Mycroft.
– Perdão?
– Solpúgidos não são aranhas. São
aracnídeos, mas não aranhas. Como os
escorpiões.
– Oh. Bem – típico de Mycroft:
sempre em busca da última palavra. –
Que seja.
– Quais seus próximos planos,
Sherlock?
– Bem... preciso “sair em viagem”
como Watson, para que a empregada da
casa em Kensington esteja esperando o
verdadeiro Watson quando ele voltar
dos Estados Unidos. Depois, pretendo
passar pela Ásia... Venenos e artrópodes
exóticos me interessam muito, você
sabe.
– Indubitavelmente.
– Pretendo encontrar, ou tentar
encontrar, o herbalista afegão que
cuidou de Johnson. Provavelmente foi
quem o apresentou ao solpúgido e ao
veneno. Fico imaginando o que ocorreu
entre esses dois homens... Se Johnson
corrompeu ou foi corrompido. O sol
nunca se põe em nosso império,
Mycroft, mas há facetas dele onde
parece que o sol nunca nasce. Adeus.
– Até breve, Sr. Cranston – ouvi-o
dizer, enquanto eu fechava a porta atrás
de mim.
O caso do detetive morto ~
Cirilo S. Lemos

PARIS PARECEU-ME O FOSSO para onde


eram sugadas as sombras da Europa.
Não sou homem de confessar temores,
mas devo dizer aqui que, desde o
primeiro instante em que pisamos o solo
francês, fui assaltado por sentimentos
ruins.
Um cabriolé escuro nos levou até a
Av. Champs-Élysées. Já era noite,
quando descemos do carro. Um
cavalheiro esperava por nós, apoiado
numa bengala com empunhadura de
âmbar. Tinha a compleição franzina e
bigodes alaranjados.
– Monsieur Bell? – ele disse.
– Dr. Joseph Bell, ao seu dispor. Este
é meu jovem assistente, o M. Arthur
Conan Doyle.
Apertamos as mãos.
– Sou Ignatius Xavier, da
Xavier&Xavier Advogados. Meu
escritório está tratando da papelada de
M. Dupin, que Deus o tenha – seu inglês
era fluente, embora o sotaque fosse bem
acentuado. – Uma grande perda para
este país nestes tempos tenebrosos.
O advogado nos indicou uma
carruagem semiencoberta pelo nevoeiro
que já começava a ganhar as ruas.
– A casa de M. Dupin tem quartos
quentes esperando a chegada dos
senhores.
Fizemos todo o caminho em silêncio.
O Dr. Bell, mãos cruzadas sobre o colo,
mantinha os olhos fechados como se
dormisse, enquanto, no banco diante de
nós, o advogado se esforçava para
exibir sua melhor face de consternação.
Vez ou outra, pequenos fachos de luz
vinham da rua e atingiam nossos rostos.
Eu suspirava ao balouçar suave do
carro, e tentava espantar os pensamentos
sombrios que me atribulavam.
A propriedade de Dupin era na Rua
Mazarin, perdida entre árvores cujas
folhas o outono espalhava pelo chão. Os
muros eram altos, encimados por pontas
de metal. Enquanto eu me perguntava
que homem seria capaz de escalar
aqueles paredões, meu olhar recaiu
sobre o casarão escuro, que se erguia
por trás. A fachada estava destruída pelo
tempo e algumas janelas haviam sido
bloqueadas por tábuas. Definitivamente,
a casa de um velho solitário a quem
faltara forças – ou mesmo interesse –
para impedir a decadência de seu lar.
Talvez o ocaso de um homem sem
descendência seja, também, o ocaso dos
elementos que compõem sua vida.
Xavier dispensou a carruagem. Abriu
o portão de ferro e nos conduziu pelo
jardim arruinado. Tive a impressão de
ter visto alguém, numa das raras janelas
sem tábuas, no lado esquerdo da casa.
Lancei um rápido olhar para o professor,
mas ele estava absorto nos próprios
pensamentos, os lábios se movendo
como se falasse consigo mesmo. Xavier
bateu à porta, e poucos instantes depois
um homem idoso abriu uma de suas
folhas.
– Boa noite, M. Teodosius –
cumprimentou o advogado, tirando o
chapéu.
– Boa noite, cavalheiros – devolveu o
velho, numa voz rascante. As
sobrancelhas cinzentas se uniam numa
linha sobre os olhos. – Tenham a
bondade de entrar. Auguste não gostaria
que seus convidados ficassem de pé na
soleira da porta, recebendo o vento frio
da noite.
Ao contrário de minha primeira
impressão, o Sr. Teodosius não era o
criado da casa, mas sim um “amigo de
longa data”, segundo suas palavras.
Devia ter reparado que não era um mero
empregado assim que vi o indiscreto
anel dourado em sua mão esquerda. Ele
pediu que o acompanhássemos até a
biblioteca, onde o corpo de Dupin era
velado.
– O Dr. Joseph Bell é médico em
Edimburgo. E o jovem que o acompanha
é seu pupilo – disse Xavier.
O velho olhou-nos sem muito
interesse.
– Auguste já havia falado do Sr. Bell.
Chegou aqui pouco depois que parti,
pretendendo aprender as brilhantes
técnicas analíticas de meu amigo.
– Sim – sorriu Bell.
– Ele disse que você era possuidor
um raciocínio afiado, mas que era
arrogante demais para enxergar as
coisas com clareza.
Não consegui decidir se o tom das
palavras de M. Teodosius era de
maldade proposital, ou apenas a acidez
trazida pela velhice.
– Dupin não sabia escolher as
pessoas com quem convivia – redarguiu
o professor.
O velho sorriu, desconcertado.
– Ali está nosso pobre amigo – ele
disse.
O corpo de C. Auguste Dupin,
coberto por um véu, repousava num
caixão de mogno bem no centro da sala.
Estava cercado por velas e flores.
Notícias de morte nunca são tão
poderosas quanto o momento em que nos
deparamos com sua materialidade. A cor
desapareceu do rosto do Dr. Bell. Não
era como ver um cadáver pelos olhos de
um médico. Perguntei-me como eu
próprio reagiria, se encontrasse meu
estimado professor deitado num caixão.
Diante de nós estava o Grande
Detetive Francês. O homem que
deslindara casos misteriosos como os
horríveis assassinatos das damas
L’Espanaye e da jovem Marie Roget,
cujos relatos, assentados por escrito, eu
tivera o prazer de devorar, e que me
inspiraram a fazer meus próprios
registros da participação decisiva de
Joseph Bell no caso de Lauriston
Gardens. Agora eu estava ali, velando-
lhe o corpo. Olhei para seu retrato em
cima do console da lareira, o rosto
anguloso de barba bem feita, os olhos
agudos mirando-me de volta. Um grande
contraste com o velho grisalho,
alquebrado e sem vida no meio da
biblioteca.
– M. Bell. Jovem Doyle – a voz de
Xavier sobrepôs-se aos murmúrios
pesarosos dos presentes. Acenava para
nós ao lado de Teodosius e de uma
dama. – Esta é a Sra. Ligeia Trevanion
de Tremaine – ele continou, quando nos
aproximamos. – É a única parente de
sangue de M. Dupin e, juntamente com
seu amigo e cronista, o M. Teodosius, e
o senhor, estarão presentes na leitura do
testamento. Senhora, este é o Dr. Joseph
Bell e seu pupilo, Arthur Conan Doyle.
Ligeia tinha os cabelos como uma
grinalda de prata descendo pelos
ombros, e os olhos azuis como gelo. A
idade não fora capaz de desvanecer sua
beleza, e mesmo as poucas rugas não
sulcavam seu rosto com severidade.
Faltou-me a presença de espírito do Dr.
Bell para beijar a mão enluvada, tão
enfeitiçado estava com a força que ela
irradiava. Não consegui dizer uma única
palavra enquanto estive perto daquela
fascinante mulher.
– Lamento nos conhecermos todos em
tão tristes condições – disse Ligeia.
– A morte de Auguste é uma perda
não só para a França, mas para o mundo
– respondeu o doutor. – Agradeço ao
Senhor pela graça de tê-lo visto com
vida.
– Estávamos combinando o melhor
momento para a leitura do testamento.
Se não houver nenhuma objeção,
poderíamos nos encontrar nesta mesma
biblioteca amanhã, após o funeral –
sugeriu Xavier.
Mais tarde, durante um rápido jantar,
ouvi Ligeia discorrer sobre literatura
dos mais variados povos para escapar
de sua própria tristeza. Era profunda
conhecedora do latim e do grego, do
árabe e de dialetos do subcontinente
indiano. Tamanha erudição, somada às
histórias contadas pelo Sr. Teodosius
(para minha grande surpresa, o
companheiro anônimo de Dupin em seus
três únicos relatos publicados), bem
como as observações argutas de meu
professor, fizeram-me sentir a figura
mais obtusa presente naquela casa. Não
podia me queixar, no entanto, pois uma
oportunidade única se mostrara: após o
funeral e a leitura do testamento, iria
pedir ao Sr. Teodosius seu parecer sobre
meu manuscrito, Um estudo em
vermelho.
O enterro do célebre C. Auguste
Dupin nada teve que o diferenciasse de
outros sepultamentos, a não ser a
presença de algumas figuras ilustres.
Personalidades da política e da alta
sociedade francesa vieram para um
último adeus no Cemitério de Pére-
Lachaise. Ligeia, mesmo coberta pelo
luto, fazia girar ao seu redor cavalheiros
de todas as idades e estirpes, mariposas
atraídas pela luz. Até mesmo eu, pobre
estudante de medicina, tive a honra de
apertar a mão de ninguém menos que o
Imperador do Brasil, que por aquela
ocasião estava em Paris devido a razões
médicas. Ele conversou brevemente com
o Dr. Bell e se retirou logo após o
término da cerimônia. Nunca havia visto
um membro da nobreza, Príncipe ou
Barão, tão despojado das pompas da
aristocracia.
Quando o ataúde desceu à sepultura,
as pessoas se tingiram de negro. Os
lamentos tornaram-se mais pungentes, as
lágrimas mais amargas, como se apenas
aí a súbita compreensão da finitude
desabasse sobre todos nós. Era aquele,
o fim.
Terminado o tributo à morte, só nos
restava retornar para a vida.
À tardinha reuniram-se na biblioteca
Dr. Bell, Ligeia, James Teodosius e o
advogado Ignatius Xavier. Este tinha um
grande envelope nas mãos, com o selo
de seu escritório, quando entrou, e
parecia um tanto ansioso por terminar
logo tudo aquilo. Por razões óbvias, não
pude estar presente na leitura. Para
dispor do tempo de forma mais
produtiva, subi ao meu quarto com a
intenção de revisar o manuscrito e pôr
em ordem algumas notas.
Abri as cortinas pesadas. O sol sobre
Paris era débil, estrangulado por cirros
densos. Um arremedo de luz penetrou no
aposento. Acendi uma vela e, com ela
num pires, sentei-me à cabeceira da
cama e pus-me a revisar meus escritos.
Pelo canto do olho, vi um homem
passar pela janela. Assustei-me, a vela
caiu sobre a cama. Apaguei a chama
depressa, depois corri até a janela, o
coração acelerado no peito. Olhei para
as ervas daninhas que sufocavam as
flores lá embaixo. Era uma altura
considerável até o chão. “Homens não
caminham pelos ares”, disse a mim
mesmo, mas logo a seguir meu sangue
gelou: empoleirado nos galhos das
árvores desfolhadas havia algo que não
posso descrever como deste mundo.
Tinha a forma de um homem muito
magro, cuja carne parecia composta de
sombras oscilantes. O demônio olhava
diretamente para mim. Pude ver a
Perversidade em seu rosto, uma
indefinível soma de todas as faces que
eu trazia na memória.
Batidas na porta me tiraram do
estranho transe em que me encontrava. A
criatura – espírito, demônio ou
imaginação – desapareceu no ar, no
instante seguinte.
Dr. Bell entrou no quarto.
– O que houve, Doyle? Parece que
viu um fantasma.
Olhei para a janela. O vento
balançava as cortinas.
– Nada, professor. Só estou um pouco
cansado.
Joseph Bell, um lógico empedernido,
desdenhava de qualquer forma de
superstição ou insinuação de
mediunidade, por isso não contei nada.
Não precisava ouvir gargalhadas
depreciativas. Não naquele momento.
– Como foi a leitura do testamento? –
tornei a acender a vela.
– Uma experiência interessante, de
fato.
– Então, podemos partir deste lugar o
mais rápido possível.
– Temo que não, meu caro Doyle.
– Por quê? – a pergunta saiu com
mais veemência do que o planejado.
Bell foi discreto o suficiente para fingir
não perceber.
– Preciso, antes, aparar alguns fios
que parecem estar soltos neste novelo.
Tem alguns minutos para conversar?
– Claro, professor – comecei a juntar
meus papéis antes que ele corresse os
olhos por alguma linha mal traçada.
– Como você viu, o advogado Xavier
nos reuniu na biblioteca mal chegamos
do funeral. A presença de um parente de
sangue e de um amigo caro a Dupin é
compreensível. Mas eu, Doyle, não
passo de alguém que, na juventude,
passou alguns meses em sua companhia
e que foi embora de relações cortadas.
Não há razão para minha presença aqui,
a meu ver, e a curiosidade aguçada,
como sabe, torna a espera mais longa.
Xavier pareceu levar horas para romper
o lacre do envelope e verificar se os
documentos estavam todos corretos nos
pormenores legais. Só então olhou para
nós três e, com um meio sorriso
cansado, pôs-se a ler a longa digressão
de Dupin sobre as faculdades mentais e
o que diferencia um homem são do
insano. No tocante à partilha de bens, o
testamento dizia simplesmente: “De
acordo com minha vontade, que
disponham dos meus bens após meu
passamento Lady Ligeia Trevanion de
Tremaine, minha única familiar neste
mundo, a quem deixo o montante de
cinco mil libras depositadas no Banco
Cox, de Londres; James Teodosius, meu
estimado amigo e companheiro de
aventuras, a quem deixo a propriedade
da Rua Mazarin, que não poderá ser
vendida antes de cinco anos; e Joseph
Bell, uma mente sem igual, a quem deixo
meu tesouro, o livro raríssimo e
inestimável que se encontra no cofre da
biblioteca, atrás do retrato sobre o
console da lareira”. Era como se
ouvíssemos sua voz pronunciar cada
palavra lida pelo advogado. Isso teve o
poder de alimentar a fogueira dos
pesares. Ligeia soluçava baixinho,
tentando esconder as lágrimas com um
lenço de seda perfumado. Teodosius
olhava para mim com olhos vermelhos e
a boca tremendo, como que arrebatado
por profunda emoção. Ficamos todos
sem saber o que dizer por um tempo, até
que Xavier se levantou e foi até a
lareira, dizendo: – A escritura da casa
para M. Teodosius e o dinheiro para
Lady Ligeia vão demandar algum tempo.
Mas o livro do Dr. Bell é uma questão
que podemos resolver agora mesmo.
“Ele retirou o quadro da parede com
cuidado, e um pequeno cofre se revelou.
A combinação para sua abertura estava
num outro envelope lacrado, que o
advogado trazia no bolso. Com um
rangido metálico, o cofre foi aberto e
revelou o que continha em seu interior:
um broche de ouro e mais nada.
“– O livro foi roubado – disse
Teodosius, mão ao peito, anel de ouro
rutilando.
“Xavier assegurou-nos ter visto o tal
livro ali há menos de dez dias. Era um
grande volume encadernado em couro, e
de aparência muito antiga. Segundo ele,
Dupin ficava nervoso ao falar dele e
nem mesmo permitia que suas páginas
fossem folheadas.”
– Estranho – eu disse.
– Também acho – Dr. Bell respondeu.
– É altamente improvável que um
homem lúcido como Dupin, mesmo em
idade avançada, cometesse o engano de
indicar uma localização para o livro,
não estando ele ali. Principalmente,
tendo o advogado por testemunha de que
tudo estava como devia estar. Creio que
Teodosius está com a razão: o livro foi
roubado. E o ladrão não o roubou por
ganância, pois deixou um broche de ouro
que, com certeza, possui algum valor.
Que conclusão tira disso, Doyle?
– Não faço ideia, professor.
Dr. Bell acendeu seu cachimbo e deu
uma longa tragada.
– Que M. C. Auguste Dupin não
queria que seu precioso livro caísse em
mãos erradas, e o legou a mim para que
o levasse para longe de tais garras –
soprou um anel de fumaça para o teto.
– Mas por quê?
– É isso que vamos descobrir, Doyle.
Estou pessoalmente interessado neste
pequeno mistério, e pretendo conversar
com nossos amigos para ver se consigo
alguma luz. Assim que terminar este
tabaco especial, se estiver de acordo.
Não, eu não estava de acordo. O
clima de morte pairava sobre aquela
casa, não me agradaria passar mais
tempo ali. Mas Dr. Bell estava com um
brilho familiar nos olhos, o que
significava que não iríamos a lugar
algum.

Ao anoitecer, encontramos Ligeia ao


piano. Executava com perfeição uma
partitura de Bach. Recostamo-nos nas
poltronas para apreciar. A melodia se
espalhava pelos cômodos escuros da
casa, rompendo o silêncio da Rua
Mazarin. Somente quando seus dedos
finos fizeram soar os últimos acordes,
ela se virou para nós. Estava chorando.
– Era a peça favorita de Auguste –
disse baixinho.
– Ele tinha o gosto refinado dos
eruditos – respondeu Bell, que ouvira a
música de pálpebras fechadas e dedos
entrelaçados, como se meditasse. –
Creio que isso seja um traço familiar. A
senhorita também tem dotes intelectuais
impressionantes, se me permite dizer. É
fluente nas línguas clássicas, em árabe,
conhece a literatura da Índia, a filosofia
dos alemães. Conhecimentos raros para
uma mulher.
Não havia nenhum traço de lisonja no
belo rosto de Ligeia.
– Gosto de alimentar meu cérebro,
Dr. Bell. Não há prazer maior neste
mundo que o conhecimento, não
concorda?
– Plenamente.
Ela encarou o professor.
– Essa conversa tem algo a ver com o
sumiço do livro que meu primo deixou-
lhe de herança, doutor?
Remexi-me na poltrona. Meu mestre
balançou a cabeça.
– Não seria tão indelicado com a
senhora neste momento de tristeza.
– Claro que não – ela suspirou. –
Pobre Auguste. Morrer assim, de
repente.
– A senhorita acompanhou seus
últimos dias. Ele apresentou alguma
anormalidade em sua saúde? Ou em sua
rotina? Lembro que Auguste seguia seus
hábitos quase compulsivamente.
– Ao contrário, doutor. Surpreendi-
me quando cheguei aqui, alguns dias
atrás, e o vi gozando de uma força que
não se costuma ver em homens dez anos
mais jovens que ele. E então,
subitamente, adoeceu. Sua bronquite se
agravou. Os pulmões estavam muito
fracos.
– Quando a hora da morte chega, não
há nada que o homem, jovem ou velho,
possa fazer – eu disse.
Ligeia discordou:
– O homem não se submete aos anjos,
nem se rende inteiramente à morte, a não
ser pela fraqueza de sua débil vontade.
– Creio que não seja uma simples
questão de vontade – riu Bell. – A morte
é um fenômeno inteiramente material.
Não há lógica em acreditar que exista
algo no espírito humano, e não me refiro
ao conceito teológico de alma, mas à
humanidade, que seja capaz de driblar a
morte, que não os conhecimentos
científicos aplicados à medicina.
– Há mais no mundo que apenas a vã
filosofia humana, meu caro doutor. Estou
certa de que seu jovem assistente
concorda comigo, não?
Pego de surpresa, eu não soube o que
responder.

M. Teodosius estendeu um cálice de


vinho para o professor e outro para mim.
– Diga-me, Dr. Bell. O que acha do
advogado de Auguste?
– Perdão?
– Xavier. Ele foi o último a ver o
livro no interior do cofre, com exceção
de meu pobre amigo. Poderia ter achado
que era valioso e ter sucumbido à
tentação – enquanto falava, quase aos
sussurros, o velho Teodosius olhava
desconfiado para a porta, como se
temesse que alguém entrasse de repente
na biblioteca.
Dr. Bell observava o quadro sobre a
lareira, as cores sóbrias e a composição
correta do retrato de C. Auguste Dupin
pintado por Vernet.
– E deixaria o broche? Não creio.
Além do mais, que evidência há de que
foi um roubo? Dupin pode ter tirado o
livro do cofre e guardado em outro
lugar. É muito difícil tecer teorias sem
evidências, além de imprudente. Estaria
sendo inconveniente se pedisse para
visitar o quarto dele?
Teodosius cheirou o vinho e bebeu
um gole. Sentiu o sabor amadeirado na
língua, colocou o cálice contra a luz.
– De forma alguma – disse ele, por
fim. – Queira me acompanhar.
O quarto de Dupin não era o melhor
da casa, percebi logo. Consistia numa
cama modesta, uma mesa de trabalho
antiga e um criado-mudo, no qual se
acumulavam pilhas de papéis,
correspondências, livros e mapas.
Segundo Teodosius, tudo estava
rigorosamente como o detetive tinha
deixado. Na parede, havia um pequeno
mural de cortiça repleto de fotografias e
recortes de jornal. O Dr. Bell se deteve
ali por algum tempo, após estudar o piso
e a janela sem nenhuma razão aparente.
– Von Bork – ele leu a legenda
garatujada em vermelho. Voltou-se para
a mesa de trabalho e examinou a
papelada. Gastou nisso cerca de quinze
minutos, nos quais Teodosius teve
grande dificuldade em disfarçar sua
impaciência.
– Por acaso pensou que o tal livro
estivesse por aqui? O larápio que o
roubou já deve tê-lo carregado para bem
longe a esta altura.
Dr. Bell ignorou o comentário.
– Diga-me, M. Teodosius: notou algo
de estranho no comportamento da Sra.
Ligeia?
Teodosius desviou os olhos,
aborrecido:
– Não creio ser apropriado falar da
prima de meu amigo. Auguste a estimava
muito. Seja o que for que estiver
insinuando, tenho certeza de que está
equivocado.
– Não estou insinuando coisa alguma,
meu senhor. Apenas estou considerando
alguns fatos. Por exemplo, o de que
Dupin possuía hábitos bem
estabelecidos.
– Os velhos dificilmente mudam os
hábitos de uma vida inteira. Ele era
metódico e seguia rigorosamente sua
rotina diária.
– Como trabalhar até tarde como
consultor do governo, suponho. À luz de
velas, em vez de uma lamparina a óleo.
– Ele não gostava do cheiro. Preferia
a luz das velas. Dormia com cinco delas
acesas no quarto.
O Dr. Bell olhou-nos com gravidade.
– Talvez devamos chamar a polícia,
cavalheiros. Acredito que Dupin, o
grande elucidador de crimes
misteriosos, tenha sido ele próprio
vítima de assassinato.
– O que está dizendo, homem!
Auguste morreu de causas naturais,
médicos atestaram isso.
– Pois digo-lhe que muitos médicos
não seriam capazes de distinguir o
cessar natural da respiração do lento
asfixiar causado por um assassino hábil
usando, digamos, um travesseiro de
plumas – Bell apontou para a janela.
Estava fechada, mas observando-a um
pouco mais atentamente, percebia-se que
o trinco tinha sido forçado.
O cálice de Teodosius espatifou-se no
chão. A cor havia fugido de seu rosto.
Ele desabou sobre uma cadeira. Fiz
menção de ajudá-lo, mas ele afastou-me
com um movimento brusco.
– Deixe-me em paz! Deixe-me em
paz! Se Auguste foi assassinado, doutor,
eu preciso saber quem foi.
O professor juntou os cacos de cristal
com a biqueira da bota.
– Talvez devesse ter uma conversa
com aquele cavalheiro ali – ele apontou
para a fotografia presa ao painel de
cortiça. – Von Bork. Prussiano. Nome
recorrente em diversos relatórios, cartas
e telegramas naquela escrivaninha.
Figura importante entre os atletas
parisienses, frequentador da alta
sociedade. E um agente do Kaiser. Ao
que parece, Dupin estava deslindando
uma teia de espiões sem sair de seu
quarto.
– Espiões! – espantei-me.
– Espiões – reiterou Bell. – É o que
me diz essa pilha de anotações.
– Precisamos fazer algo a respeito –
resmungou Teodosius. – Precisamos
conversar com a Sra. Ligeia.
– De acordo. Mas apenas a respeito
das investigações de Dupin. É melhor
não informá-la, por enquanto, da
suspeita de assassinato, até que algumas
coisas fiquem mais... claras.
O queixo de Ligeia caiu quando
soube da rede de espiões. Concordou
que o melhor a fazer era entregar os
papéis a respeito do prussiano às
autoridades. Seria esta a vontade de
Dupin. Quis chamar a polícia
imediatamente, mas Teodosius e Bell a
convenceram a esperar até a manhã
seguinte.
A noite de sono foi intranquila. Fui
açulado por pesadelos em que um
estranho homem de carne e sombra
chegava ao pé da minha cama com um
sorriso diabólico. “Sou o Demônio da
Perversidade”, ele sussurrava. Seu rosto
se transformava em outros, homens,
mulheres, velhos e crianças. O terror me
paralisava e eu não conseguia sequer
gritar. Os olhos dele queimavam com
chamas feitas do éter da maldade.
Acordei com um galo na madrugada,
e esperei a chegada do dia sentado
diante da lareira, espantando o sono com
um bom fumo. Um livro roubado, um
assassinato hipotético e um demônio a
me atormentar. Aquela casa era de fato
cheia de mistérios.

François Le Villard, inspetor da polícia


francesa, chegou à Rua Mazarin antes
das nove da manhã. Cumprimentou-nos a
todos e trancou-se com o Dr. Joseph
Bell e Teodosius na biblioteca por meia
hora. Depois saiu apressado, recusando
o desjejum que a Sra. Ligeia mandara
vir do Royal.
Eu estava curioso com a
movimentação na casa, mas não queria
ser indiscreto. Vesti um agasalho e fui
caminhar por entre os cadáveres das
árvores lá fora. Segui pela infinidade de
folhas espalhadas pelo gramado alto, o
orvalho umedecendo as barras da minha
calça. Sentei-me num banco nos fundos
da propriedade, quase encostado ao
muro. Acendi meu pequeno cachimbo e
fiquei assistindo às últimas línguas de
névoa serem aniquiladas pelo sol.
A certa altura, Dr. Bell surgiu por
entre as árvores. Veio em minha direção.
Irritei-me, sem saber exatamente a
razão.
– O que o senhor quer? – perguntei
com rispidez. Ele não tomou
conhecimento de minha irritação, o que
me aborreceu ainda mais.
– Tenho uma pequena tarefa que,
acredito, você vá apreciar – respondeu-
me, sentando ao meu lado. Nada
respondi, ele continuou: – O inspetor Le
Villard tem a mente arguta dos celtas.
Leu nos relatórios o que Dupin estava
perto de concluir sobre as atividades de
espionagem prussiana na cidade, e as
evidências que apontam Von Bork como
o cabeça de tudo. Está convencido de
que pode conseguir uma ordem de
prisão contra ele.
– E isso resolve o último caso de C.
Auguste Dupin.
– De forma alguma. O último caso de
C. Auguste Dupin é o mistério de seu
próprio assassinato. Foi por isso que ele
me quis aqui. Ele sabia que, se
porventura alguém viesse a tirar sua
vida, eu descobriria.
– Acha mesmo que ele foi
assassinado por agentes do Kaiser?
– É o que veremos, meu caro, é o que
veremos. Por hora, pedi a Teodosius que
acompanhasse Le Villard na diligência
até o hotel onde reside o Sr. Von Bork.
Pedi um relatório de tudo que pudesse
observar.
– Sabe muito bem que a capacidade
de observação dele está aquém da sua,
professor. Por que o senhor mesmo não
vai?
Ele se levantou.
– Porque preciso fazer algumas
coisas que ele não pode fazer por mim.
Solicitei ao advogado Xavier que não
tome nenhuma atitude ainda a respeito
do desaparecimento do livro. Farei uma
visita à Universidade de Paris.
Logicamente, eu poderia fazer as duas
coisas, mas precisaríamos ficar mais
tempo nesta casa.
– Não gosto desse lugar – eu disse.
– Por causa do Demônio da
Perversidade – atalhou Bell.
Arregalei os olhos, com surpresa.
– Como sabe?
– A quantidade de vezes que falou
isso enquanto dormia noite passada,
Doyle. Como se o próprio Diabo
habitasse seu sonho – ele respondeu e,
tomando o caminho de volta,
acrescentou. – Não permita que
pesadelos embotem sua razão, meu caro
aluno. Superstições e crendices não
caem bem para homens de ciência como
nós.
Sim, eu tinha plena convicção da
força do pensamento lógico. Mas como
confiar na razão se, enquanto o
professor Joseph Bell se afastava,
alguém envolto em sombras nos
observava da janela mais alta da casa?

Não sei se por minha lúgubre disposição


de espírito, os corredores da
universidade me pareciam escuros
demais, frios demais e, à exceção dos
ecos de nossos passos, silenciosos
demais. Réstias de luz atravessavam as
janelas empoeiradas e caíam sobre o
piso de mármore, criando formas que eu
tentava imaginar como desenhos
enquanto caminhava encolhido ao lado
do professor. Passamos por uma dezena
de portas, até ele deter-se diante de uma.
– Creio ser esta – disse, dando quatro
batidas. – Preciso pedir que me espere
aqui, caro Doyle.
– Aqui? Mas...
– O professor é um homem
excêntrico. Beira à misantropia. Não
gostaria de aborrecê-lo. Além disso,
serei breve.
Uma voz rouca convidou-o a entrar.
Dr. Bell empurrou a porta. Um cheiro
forte de mofo escapou da sala,
convencendo-me de que o melhor era
mesmo aguardar nas cadeiras ali fora. E
assim o fiz. Pouco tempo depois,
peguei-me lutando contra uma
inconveniente sonolência, resultado do
silêncio e de uma noite mal dormida.
Fechei os olhos por alguns instantes e
escutei uma voz gélida me sussurrar aos
ouvidos, vinda de um sonho: “Sei que
você quer machucá-lo. Pois eu posso
ajudar a fazer isso, se me permitir
entrar.” Senti um calafrio. Sem perda de
tempo, pus-me de pé para espantar o
sono. Com certeza, o ar parisiense não
me fazia bem.
Quando o doutor saiu da sala, quase
vinte minutos depois, tinha uma
expressão satisfeita no rosto.
– Presumo que conseguiu o que
queria – eu disse. Ele deu três tapinhas
em minhas costas.
– O professor é um homem fascinante,
Doyle. Em poucos minutos de conversa,
me deu mostras de seu brilhantismo não
só em sua área, a literatura, mas também
na matemática, que disse ser sua
segunda paixão. Mostrou-me alguns
rascunhos de um estudo no qual está
trabalhando, chamado Dinâmica de um
asteroide. É irônico que, nos dias de
hoje, seja preciso sair da Inglaterra para
se encontrar um inglês de tamanha
perspicácia.
– Ora, então esse homem que tanto o
impressionou é inglês? – perguntei,
acompanhando-o pelo corredor.
– Sim, Doyle. Mas um inglês como
poucos. E ele me contou coisas bem
interessantes a respeito da natureza do
livro desaparecido.
– Então, estamos aqui pelo livro.
– Não vejo por que não investigarmos
esta história enquanto aguardamos a
prisão do prussiano. Vamos ainda a
outro lugar, se não tiver objeção.
– Nenhuma – sorri, feliz por ficar
mais tempo longe da Rua Mazarin.
Tomamos um táxi até St. Roch, uma
ruazinha sinuosa de comércio modesto.
Nosso destino era o Antiquaire Violet,
uma pequena loja encravada numa
esquina de pouco movimento. Não fosse
a plaqueta onde se lia “aberto”, diria
que o lugar estava abandonado há anos.
Centenas de livros e quinquilharias se
amontoavam no espaço exíguo,
abarrotando prateleiras, mesas,
formando pilhas no chão. A sineta
anunciou nossa chegada. Um rapazote
desceu apressado por uma escada nos
fundos da loja e veio em nossa direção.
– Bom dia, cavalheiros. Sou Antoine.
Posso lhes ser útil?
– Certamente, meu jovem – respondeu
Dr. Bell. – Poderia nos ajudar e
encontrar o que procuramos.
– Se estão procurando por livros
raros, vieram ao lugar certo. Temos aqui
um exemplar de Spinoza que...
– Procuramos M. Armand.
O entusiasmo de vendedor do rapaz
desvaneceu-se. Ele balançou a cabeça
timidamente e desapareceu escada
acima. Voltou pouco depois,
acompanhado de um homem grisalho,
Armand.
– Vieram a mando da senhoria? – ele
parecia nervoso.
– Na verdade, não. Queremos saber
de certo livro, e fomos informados de
que o senhor poderia nos ajudar.
O homem enxugou a testa com um
lenço.
– E que livro seria esse?
– Um livro árabe.
O rosto de Armand se transformou
numa máscara de suspeita. Olhou bem
para Dr. Bell, depois para mim, como se
tentasse adivinhar-nos a intenção.
– Quem são vocês, afinal? Não me
parecem colecionadores.
– Sou Joseph Bell e este é Arthur C.
Doyle. Somos advogados. Estamos
fazendo um levantamento da trajetória
deste livro desde que foi roubado dos
verdadeiros donos, nossos clientes.
Pode nos ajudar, M. Armand?
– Houve um livro árabe por aqui.
Ninguém pergunta por ele há muitos
anos. Desde o tempo das antigas
proprietárias – Armand respondeu,
hesitante.
Vi o professor tirar algo do bolso e
dar a ele. Dinheiro, calculei depois.
Afastaram-se, conversando em voz
baixa. Não pude ouvir do que falavam.
O tal Antoine começou a desfiar
amenidades sobre o tempo, às quais eu
respondia com monossílabos
desinteressados, até a conversa
finalmente terminar e o Dr. Bell me
arrastar para fora da loja.
Enquanto caminhávamos, ele me
perguntou o que achara do lugar.
– Empoeirado demais para o meu
gosto – disse eu.
Ele gargalhou.
– Acabamos de sair da antiga
Livraria L’Espanaye e é isso que tem a
me dizer? Pelo visto, sua percepção
para ares pesados só funciona na Rua
Mazarin.
Olhei para a loja que já diminuía na
distância, perplexo ao ponto de tropeçar
numa saliência da calçada.
– Quando vai me explicar o que está
acontecendo, professor?
– Em breve, Doyle, em breve. Antes,
preciso enviar alguns telegramas
urgentes para um amigo nos trópicos e
esperar por uma resposta.

Retornamos à Rua Mazarin uma hora


após o anoitecer. Teodosius ainda não
havia voltado da diligência com Le
Villard. Ligeia e o advogado Xavier
estavam sentados ao pé da lareira,
observando, mudos, o lento crepitar das
chamas. Nem mesmo o pesar era capaz
de empalidecer a beleza magnífica
daquela mulher. Ela parecia irradiar um
brilho mais pungente que o fogo que
aquecia a sala. Mas, apesar de Ligeia,
as trevas daquela casa me envolveram
feito um abraço de morte assim que
entramos.
Enquanto o professor puxava a
conversava, eu começava outra vez, em
minha cadeira, a me sentir sufocado
pelas sombras e sussurros do vento.
Ouvi um ruído abafado vir de trás das
paredes. Duas pancadas e um intervalo,
como alguém tocando tambor na
cadência de um coração.
– O que é isso?
– Perdão? – Ligeia voltou-se para
mim.
– Não, nada. Acho que cochilei.
O professor me olhou como um adulto
olha para uma criança que acaba de
dizer que há um monstro em seu armário.
Afundei na cadeira, envergonhado e
irritado. Como eles podiam não ouvir,
se parecia pulsar cada vez mais pela
casa inteira? Era um coração, tinha
certeza, o bater de um coração pesado
penetrando fundo nos ouvidos,
martelando no fundo do cérebro, um
coração que parecia dizer: estou aqui,
carregado de dor e sombra.
A porta se abriu. Teodosius e Le
Villard entraram. Coração batendo.
– Acharam o prussiano? – perguntou
Dr. Bell, enchendo o fornilho de seu
cachimbo.
Foi Le Villard quem respondeu:
– Sim. Onde o monsieur disse que
estaria. Só não contávamos que o sujo
tivesse uma arma diabólica. Um rifle de
ar comprimido que por pouco não
explodiu nossas cabeças.
Coração batendo.
– Mas o pegaram, afinal de contas? –
insistiu Xavier.
– Se eu soubesse que passaria um
transtorno tão grande, Dr. Bell, jamais
teria atendido ao seu pedido – disse
Teodosius, a respiração entrecortada.
Parecia ainda mais envelhecido. As
bolsas de pele ao redor de seus olhos
estavam arroxeadas. – Estive a ponto de
sofrer um ataque do coração.
Batendo. O teto parecia estar
subindo, a sala, girando devagar.
– Meu Deus – Ligeia levou a mão à
boca. – Alguém se feriu?
– Não. Felizmente. Mas Von Bork
negou categoricamente ter algo a ver
com o assassinato de Dupin – respondeu
Le Villard. Quando se deu conta de que
falara demais, tentou se desculpar. Uma
cortina de constrangimento desceu sobre
a sala.
Ligeia estava lívida.
– Auguste foi assassinado? – ela
perguntou. Fazia força para manter
presas as lágrimas. – Exijo saber.
– Queríamos ter certeza antes de
atormentá-la com essa hipótese –
gaguejou Teodosius. – É só uma
suspeita, que cai por terra agora que
prussiano apresentou seus álibis.
– É claro que ele tem bons álibis –
disse Dr. Bell, acendendo
tranquilamente seu cachimbo. – Porque
o assassino é outro.
Como numa peça teatral, todas as
atenções se voltaram para ele.
– O que está dizendo é muito sério.
Todos sabem que Dupin, que Deus o
tenha, morreu de causas naturais.
– Não fique tão nervoso, advogado
Xavier – retrucou o doutor. – Houve, de
fato, um assassinato, e seu perpetrador
está nesta sala.
Foi como uma ordem para o coração
acelerar suas batidas infernais. Eu suava
frio, os nervos em frangalhos. Xavier,
Bell, Teodosius, Le Villard, Ligeia,
todos se encaravam, suspeitos e
angustiados, observados pelo Demônio
da Perversidade, cujas faces só eu
enxergava e cujo coração só eu ouvia.
– A França perdeu sua maior mente
dedutiva – Dr. Bell começou sua
explanação. – Eu mesmo tive o prazer
de aprender uma coisa ou outra com C.
Auguste Dupin em minha juventude, e
hoje aplico esse conhecimento na
prática diária da medicina. Conheci-o o
suficiente para saber que era um homem
de rigorosa rotina, avesso às mudanças
de hábito. E essa peculiaridade, que
alguns dizem se tratar de uma forma de
obsessão, agravou-se com a idade, como
me atestou seu grande amigo e
assistente. Ele mesmo preparava suas
refeições, arrumava seus aposentos,
organizava seus arquivos. Era
sistemático ao ponto de acender exatas
cinco velas novas todas as noites, por
não suportar a escuridão completa da
madrugada.
– Auguste não tolerava o cheiro de
óleo – confirmou Teodosius. – Dizia que
atacava sua bronquite. Cinco era o
número ideal: quatro era escuro, seis era
claro.
– Obrigado. Comecei a desconfiar de
que algo estava errado quando
descobrimos que o livro havia sido,
muito provavelmente, roubado. O ladrão
não se interessara por um broche de
ouro, indicando que não era dinheiro
buscava.
– Dupin poderia tê-lo guardado em
outro lugar – sugeriu Le Villard.
– Foi o que pensei. Mas estou certo
de seu advogado discorda dessa
hipótese... – Dr. Bell voltou-se para
Xavier. Coração acelerado.
– Eu mesmo vi o livro no cofre
poucos dias antes – disse o advogado. –
Apesar da idade, ele ainda estava bem
lúcido.
– Ao verificar seu quarto, percebi
que o trinco da janela havia sido
forçado – o professor prosseguiu. – Mas
ainda estava trancada. Um ladrão
poderia trancar a janela por dentro?
Claro que não. Foi o próprio Dupin
quem tentou abri-la – retirou cinco velas
semiderretidas do bolso do e colocou-as
lado a lado. Uma delas era maior que as
outras. – Esta aqui queimou bem mais
lentamente que as outras, a julgar pelo
seu tamanho. O que não é estranho, já
que é uma vela especialmente preparada
para, quando queimada, produzir uma
fumaça perigosa para quem tem os
pulmões enfraquecidos pela bronquite.
A certa altura da noite, Dupin tentou
abrir a janela para respirar ar puro.
Atrapalhou-se com o trinco, desistiu,
voltou a dormir. Foi lentamente
asfixiado, até vir a morrer em sua
própria cama.
– Isso é uma grande besteira –
alterou-se Xavier. – Uma fantasia que
beira ao ridículo. Envenenado por uma
vela! E que substância seria essa?
Bell deu de ombros.
– Ainda não tive tempo de descobrir.
– Ora, vamos – grunhiu Le Villard,
envergonhado por meu professor.
O espectro de sombra circulava por
entre os presentes, sibilando perfídias
em seus ouvidos, lambendo seus
pescoços, olhando-me com lascívia.
Quando desviei o rosto, atormentado,
deparei-me com Ligeia a me encarar.
Estremeci.
– Concordo que até então era apenas
uma suspeita – disse Bell. – A janela, as
velas, o livro desaparecido. Mas minha
mente insistia em tentar ligar os fatos, e
eu precisava encontrar uma conexão.
Dupin investigava uma rede de espiões,
mas qualquer um que examinasse a
situação com um pouco de cérebro – o
inspetor corou – veria que ele estava
distante demais da ameaça de agentes
estrangeiros. Eles nem mesmo sabiam de
sua existência, ou estavam interessados
nela. Não, a conexão era o livro árabe.
– Então por que nos mandou atrás do
prussiano? – perguntou Le Villard,
irritado.
– Ora, Dupin tinha evidências o
suficiente para prendê-lo, não?
– E por que me mandou junto? –
murmurou Teodosius, sombriamente. O
Demônio da Perversidade envolvia seus
braços de sombra ao redor dele, como
uma meretriz lânguida.
– Porque não o queria por perto, já
que é o assassino.
– Como ousa? – berrou Teodosius.
– É bom se explicar, Bell, ou mando-
o prender por injúria – ameaçou Le
Villard.
O professor não parecia abalado,
continuava fumando seu cachimbo.
– Teodosius assassinou o homem que
o acolheu e foi seu amigo por uma vida
inteira, apenas para pôr as mãos num
velho alfarrábio. Tudo começou a ficar
ainda mais claro quando visitei um
especialista em literatura da
Universidade de Paris. Um homem
excepcional que me contou umas
coisinhas bem interessantes sobre o
livro árabe. Em essência, ele trata de
bruxaria, deuses arcanos, rituais
malignos e loucura. Diz a lenda que foi
escrito com sangue. Um livro
amaldiçoado, que só interessaria a
ocultistas, sociedades secretas e a tolos
irracionais o suficiente para se
considerarem magos. Existem
comprovadamente apenas dois
exemplares, um na Argentina, outro na
França. Este último pertencia à viúva
L’Espanaye, assassinada por um
orangotango que, dizem as línguas
supersticiosas, foi conjurado por magia
negra. Visitei sua antiga loja, cujo
proprietário atual era seu antigo
ajudante. Ele disse que, pouco antes dos
crimes, dois jovens cavalheiros tentaram
comprar o livro. Um deles tinha um anel
de ouro com uma pirâmide e uma
serpente, símbolo de pelo menos três
ordens ocultistas já extintas. Como esse
que Teodosius imprudentemente ainda
usa e é a primeira coisa que nele se
repara. Fiz um esboço dele e o mostrei.
O antiquário reconheceu-o, fortalecendo
minha teoria.
“O próximo passo foi enviar um
telegrama a um amigo advogado
argentino, Jorge Guillermo Borges. Ele
checou os livros de registro da
Biblioteca Nacional de Buenos Aires –
Bell balançou o telegrama diante do
rosto. – Teodosius cometeu o segundo
erro neste Grande Jogo: usou seu
verdadeiro nome. Apresentou-se como
pesquisador para tentar ter acesso ao
livro, mas foi desmascarado. Frustrado,
retornou à França.
“Havia torrado sua fortuna em busca
de um tesouro mágico. Voltou a dividir a
casa com seu antigo amigo, Dupin.
Acabou descobrindo que este, num
estranho desvio moral, surrupiara o
livro na Rua Morgue quando lá estivera
investigando os crimes. No entanto,
Dupin considerava o livro perturbador
demais e não permitia que ninguém, nem
mesmo seu amigo, se aproximasse dele.
Foi então que Teodosius planejou matá-
lo, aproveitando-se de seus pulmões
doentes. E assim o fez – o professor
parecia satisfeito com sua explicação. –
Ele mesmo preparou uma vela com
veneno e garantiu que ela fosse para o
quarto junto com as outras quatro que
Dupin exigia. Lentamente a fumaça
intoxicou o velho detetive até
interromper sua respiração. Teodosius
então roubou o livro e tentou fazer tudo
parecer absolutamente normal. Só não
contava que Dupin citasse o livro em
seu testamento, o que acabou chamando
a atenção para seu desaparecimento.
Preenchi muito deste relato com
suposições minhas, é claro, mas acredito
não haver dificuldades em reunir provas
que as corroborem. Basta um exame
químico da vela para todos saberem que
minhas deduções estão corretas.
– Isto é um ultraje – Teodosius estava
fora de si. Levantou-se de sua cadeira,
verdadeiro animal ensandecido, e
atirou-se contra o Dr. Bell. Os dois
caíram no chão, engalfinhados. Eu
parecia enxergar a cena como se imerso
num tonel d’água, apenas formas
nebulosas, apenas sons distantes. Só o
coração parecia vivo, e com ele o
Demônio da Perversidade. Xavier e Le
Villard tentavam segurar Teodosius, mas
o velho parecia ter adquirido força
sobrenatural.
Ligeia levantou-se, majestosa e
terrível feito um anjo.
– Basta – ela disse. Vi o Demônio da
Perversidade cambalear para trás,
amedrontado com sua autoridade, e
dissolver-se no escuro. As forças de
Teodosius desapareceram de repente.
Ele foi arrancado de cima do professor
e atirado sobre o carpete. Tremia como
alguém com epilepsia, os olhos vítreos,
espuma branca enchendo a boca.
Enquanto Dr. Bell se debruçava sobre
ele e administrava-lhe os primeiros
socorros, arrastei-me para fora dali.
Quando dei por mim, estava
soluçando entre as árvores mortas. Na
janela mais alta da casa, Ligeia me
observava. Depois, sumiu atrás das
cortinas. Não a vi mais. Disseram-me
que ela partiu naquela mesma noite, sem
uma palavra sequer.
Teodosius morreu sem dizer onde o
livro estava, fulminado por um ataque
cardíaco. O professor não ficou
desapontado com isso. Não estava
interessado em velhos alfarrábios
ocultistas. Ficamos em Paris mais alguns
dias, hospedados no Royal, até a perícia
da vela ser concluída. Descobriu-se que
havia óleo de raiz de tuvalu na parafina,
uma substância inodora e altamente
tóxica quando se acumula em lugares
fechados. Nunca saberíamos se a teoria
de Bell estava correta em cada
pormenor. Mas ele estava com a razão a
respeito da vela, então podia estar sobre
todo o resto.
A nuvem negra que me pressionava
havia desaparecido quase
completamente.
Não nego, nem negarei nestas
páginas, que vem daqueles dias na Rua
Mazarin meu profundo desejo de
investigar os fenômenos do espírito,
pelo qual sou hoje, nos anos de minha
maturidade, severamente criticado. Este
interesse foi o germe da gradual
separação entre Joseph Bell, defensor
ferrenho da lógica, e eu. Ele jamais
autorizou a utilização de seu nome, ou
qualquer elemento que remetesse à sua
vida, nos casos que registrei. Por isso,
muito do que escrevi é apenas fantasia.
Mas, apesar do nome que o respeito a
um sábio homem me forçou a utilizar,
Sherlock Holmes e John H. Watson
foram, para todos os efeitos, pessoas
reais.
O caso do desconhecido
íntimo ~Romeu Martins

FOI COM AR MELANCÓLICO que dispensei o


cabriolé alugado, diante do hospital
onde iria encontrar um homem que, esta
era minha impressão naquele momento,
poderia ter sido o amigo mais íntimo
que jamais tive. A melancolia não dizia
respeito à proximidade das festas
natalinas, que se misturava ao frio
enregelante do fim de tarde. Não eram
as cobranças familiares, nem as
movimentações das compras de fim de
ano que me ocupavam a mente naquele
dia. Também não era a pobreza ao meu
redor, no bairro mais mal afamado de
Londres. Nada disso. As sombras que
me caíam sobre a cabeça nada tinham a
ver com preocupações cotidianas da
grande maioria das pessoas que eu
conhecia.
A angústia que sentia, enquanto me
encolhia dentro de meu casacão e
caminhava por uma trilha até a portaria
do prédio centenário, não dizia respeito
ao mundo em que eu vivia, mas sim a
outro, que poderia ter sido.
Passei pelo pórtico e quase fui
atropelado pelos médicos e enfermeiras
que davam plantão no Hospital de
Londres, em uma correria aparentemente
desorganizada para atender uma ainda
maior multidão de pacientes. Ali, na
zona sul de Whitechapel Road, entre as
explosões de violência que acometem
prostitutas e marinheiros bêbados, o que
não faltavam eram pessoas a serem
remendadas. Já havia tido minha
experiência em hospitais, mas nada que
se comparasse àquilo. Por isso mesmo,
tratei de ficar o mais longe possível do
trajeto dos profissionais e, ao mesmo
tempo, erguia a cabeça à procura de um
rosto vagamente conhecido.
Preciso fazer justiça: o médico
esperado não demorou a aparecer. Ele
reconheceu meu sem-jeito de longe e
veio em minha direção com o braço
erguido, o que me fez pular do canto
onde estava para saudá-lo, como faria a
alguém que me trouxesse uma corda em
caso de afogamento:
– Dr. Stamford, há quanto tempo não
nos víamos? Desde meus dias
estudando, por conta própria, nos
laboratórios do primeiro hospital em
que o senhor trabalhava, não?
Ele parou diante de mim antes de me
responder à saudação. Por certo, estava
examinando minha aparência,
determinando o quanto eu havia mudado
nos quase sete anos que separavam o
momento da última vez em que havíamos
nos encontrado. Certamente já não era
mais tão magro quanto ele se lembrava
de mim, minha barriga crescera desde
que contraíra matrimônio, sabia bem
disso.
– Muito tempo, meu caro. Pode me
chamar de Phil, por favor. Como deve
imaginar, passei as últimas semanas
relembrando em detalhes a derradeira
vez em que nos vimos.
Apertamos as mãos com força.
Stamford não havia mudado tanto quanto
eu, notei.
– Percebo o porquê, claro. Também
não tenho pensado em outra coisa nestes
dias, desde que recebi sua
correspondência, Phil. Curiosamente,
aquela ocasião em que nos vimos já era
especial para mim de qualquer maneira,
antes mesmo de eu ficar sabendo dos
inesperados eventos que nosso encontro
rápido provocou em seu paciente.
O doutor pareceu não entender do que
eu falava à primeira vista, mas logo a
compreensão surgiu em seu olhar.
– Claro, claro. O senhor se refere à
descoberta que fez exatamente quando
entrávamos no laboratório de química!
O reagente que leva o seu nome, capaz
de identificar manchas de sangue em
qualquer superfície. Uma substância
que, desde o dia em que o senhor
registrou a patente e a lançou
comercialmente, faz parte do
instrumental de toda força policial de
respeito.
Ainda que indireto, o elogio deve ter
me deixado corado.
– Aquele reagente precipitado pela
hemoglobina foi o que me permitiu
encontrar um sócio capitalista e abrir
minha empresa de produtos químicos
voltados à medicina legal. Desde então,
nos esforçamos para lançar pelo menos
um produto novo ao ano, com a mesma
eficiência para ajudar a resolver crimes.
Meus pesquisadores trabalhavam em
uma nova técnica de identificação de
impressões digitais, quando fiz a ronda
pelas nossas salas de estudos pouco
antes de vir aqui encontrá-lo.
– Devo reconhecer que havia perdido
contato com tais realizações, mas desde
que este caso me caiu nas mãos, passei a
acompanhar com interesse seus inventos
– neste momento, ele consultou um
relógio de bolso preso ao jaleco, antes
de continuar. – Por isso mesmo, sei o
quanto o senhor é ocupado, agradeço
por ter aceitado meu convite e posso
levá-lo agora até onde está meu antigo
colega de profissão.
Dito isso, Stamford me indicou que o
seguisse por uma escadaria lateral.
Enquanto enfrentávamos os degraus de
pedra, ele comentava que, finalmente,
havia compreendido o interesse que eu
manifestava, quando estudante, em igual
e obsessiva medida por experimentos de
química e por notícias escandalosas de
crimes. E o porquê da minha escolha por
ser um autodidata.
– De fato – concordei com ele –, não
havia muitos professores a quem
pudesse recorrer, uma vez que estava
desbravando uma área nova. Por isso,
corri o risco de ser considerado um
excêntrico indisciplinado, não é mesmo?
Aquela foi a deixa para devolver a
meu interlocutor a cor rubra nas faces.
Ele sabia que eu havia lido seus
comentários a meu respeito, feitos para
o homem que iríamos visitar. O rubor
que percebi comprovava que o trecho
específico dos manuscritos a que tive
acesso era verdadeiro, ao menos. E
Stamford aproveitou bem a deixa,
contrastando o novo toque vermelho em
seu rosto com a brancura da roupa que
usava, mas também a usou para voltar a
me agradecer pelo tempo despendido
naquele encontro.
– Como disse, sei o quanto é
ocupado, por dirigir uma companhia tão
grande assim.
– Nem tanto, doutor. Uma das
consequências do tamanho de meu
empreendimento é ter pessoas que hoje
fazem o que antes me dava tanto prazer
em realizar: as pesquisas científicas.
Tanto que pude dedicar o tempo
normalmente gasto com questões
burocráticas à leitura atenta de todo o
material que o senhor me encaminhou.
Foi só mencionar isso para o médico
que caminhava ao meu lado estacar de
súbito.
– O senhor leu tudo? Mas eu mandei
há tão pouco tempo e eram tantos
papéis! O equivalente a quatro romances
e a dezenas de relatos menores...
– Cinquenta e seis desses textos
menores, para ser exato. Sessenta
manuscritos ao todo. Parece surpreso,
doutor. Acha mesmo que eu teria alguma
condição de resistir a ler atentamente o
material, dado o conteúdo que, o senhor
mesmo bem reconheceu, ser do meu
interesse?
O jovem médico se aproximou de
mim e tocou em meu ombro, fazendo o
mesmo rosto que, presumo, deveria
dedicar àqueles a quem era obrigado a
dar notícias sobre a proximidade da
morte.
– Seria tão fácil quanto falso eu dizer
que posso imaginar o que sentiu ao ler
aqueles textos. Creio que ninguém
poderia se pôr no lugar do senhor, para
saber o que se passa em seu espírito
com toda esta situação tão inusitada.
Não posso negar o quanto estava
confuso desde que, em meu escritório,
recebera o baú repleto de papéis
escritos com uma caligrafia que ficava
mais errática com o tempo. Desvendar a
forma, no entanto, não era mais difícil
do que aceitar o conteúdo, com tudo o
que dizia respeito a mim. Ou, pelo
menos, a uma versão possível de mim,
da minha vida, do meu passado e, até
mesmo, do meu futuro...
Por isso tudo, com tamanha confusão,
não me sentia à vontade para desabafar
a respeito com o médico, que conheci
superficialmente anos antes e de quem
não ouvira falar desde então. A única
coisa que me ocorreu responder foi:
– Esta parte do hospital é bem mais
tranquila que o ponto onde entrei, não?
Àquela altura havíamos passado por
uma sucessão de corredores, deixando
para trás a movimentação que me
recebera. Stamford entendeu e respeitou
minha mudança de assunto, ao mesmo
tempo em que voltamos a caminhar, num
ritmo mais lento que o usado para
vencer os degraus de pedra.
– De fato, quanto maior a
especialidade médica requisitada pelos
pacientes deste setor, menor a
frequência dos profissionais autorizados
a andar por aqui. O senhor deve saber
que, no ano passado, recebemos neste
hospital um paciente que vem causando
furor na imprensa e entre a alta
sociedade inglesa e de outros países.
– O senhor se refere a quem os
jornalistas chamam de Homem Elefante?
– Joseph Carey Merrick, sim, este
homem que a imprensa trata nesses
termos. É um paciente do meu colega
Frederick Treves, encontra-se naquele
quarto, ao fim deste corredor – ele me
apontou o local com um giro de cabeça,
para onde olhei por cima do ombro. –
Se ainda mantém os mesmos interesses
em relação à anatomia humana de
tempos atrás, meu caro, aquele homem é
o campo de pesquisa mais cobiçado
entre todos os especialistas dessa
modalidade da ciência médica. Nunca
antes se viu tamanha criatividade da
natureza para distinguir o corpo de um
ser humano em relação a seus pares.
Ele tinha razão. Em outros tempos,
em outra vida, não poderia resistir à
oportunidade de examinar o Homem
Elefante, por um instante que fosse. Ver
com meus próprios olhos as
deformidades naturais com as quais o
jovem, a poucos metros de onde eu
estava, nascera, descritas de forma tão
espetaculosa pelos pasquins da cidade.
Porém, no estado de ânimo em que me
encontrava, toda minha atenção estava
reservada para outro paciente no
extremo oposto do mesmo corredor.
– Treves e outros de meus colegas
costumam dizer que, de certo modo,
também estou tratando de um caso tão
notável quanto o de Merrick. Apenas
não chama tanto a atenção dos leigos,
porque as deformidades sobre as quais
estou tratando – ele fez o que escritores
e atores chamam de pausa dramática,
enquanto buscava no bolso as chaves
para a porta grossa e escura à nossa
frente – não estão no corpo.
O breve duelo entre a chave e a
fechadura ecoou nas paredes e na minha
cabeça até ser decretada a vencedora.
Foi a vez, então, das dobradiças
rangerem para nos dar passagem para
um quarto muito mais iluminado que eu
poderia esperar. Vinha, das amplas
janelas que davam para um pátio, luz
suficiente para que eu visse o
alojamento de móveis simples. Entre
eles, destacava-se a cama onde estava
deitado o homem que viera encontrar.
– Sr. Sherlock Holmes, este é o Dr.
Watson – disse ele, invertendo a ordem
de uma apresentação feita anos antes, em
um início de tarde de verão, em outro
hospital.
Com passos apertados, aproximei-me
da cama onde jazia o único paciente a
ocupar o quarto amplo. Estava bem
coberto com mantas; apenas a cabeça e
parte do peito estavam visíveis, além de
um braço semiesquelético por onde
recebia medicação diretamente em uma
veia saliente e quase preta de tão roxa.
A magreza não era a única diferença
marcante entre aquela criatura à minha
frente, em 1887, e o jovem em minha
memória de 1881.
Quando o vi pela primeira, e até
aquele momento, única vez, Watson
estava voltando combalido da Segunda
Guerra Afegã. Retornava à Inglaterra
ferido e adoentado, mas vivo. Não tinha
certeza de que poderia dizer o mesmo da
figura cadavérica e amarelada diante de
mim. Com muita atenção, percebi
lentíssimos movimentos do tórax,
indicando que alguma forma de
respiração ocorria ali. Mas vida, de
verdade? Eu me permitia ter algumas
dúvidas. Atrás de mim, Stamford
continuava a falar de assuntos técnicos e
insistia na comparação com o outro
ocupante da mesma ala do Hospital de
Londres.
– Consegui autorização para
transferi-lo para este quarto graças ao
apoio de Francis Carr Gomm, o
presidente da comissão hospitalar. Eu o
convenci de que o caso de Watson era,
de certa forma, tão excepcional quanto o
do paciente de Treves, para o qual tanto
se esforçaram a fim de conseguir verbas
que lhe garantissem a estadia vitalícia
nesta instituição. Felizmente, a maioria
dos membros da comissão concordou
com minha avaliação e pude iniciar o
tratamento de meu antigo colega assim
que o identificamos...
– E como foi essa identificação? Pelo
que me disse na carta que chegou junto
com os manuscritos de Watson, ele
estava vivendo como um indigente em
Whitechapel há anos. Talvez, desde o
dia em que desapareceu, após nosso
encontro.
O médico se posicionou a meu lado,
diante da figura inerte e indiferente a
nós.
– Realmente. O coitado estava sem
condições de continuar no abrigo
público em que morava. Mal se
alimentava há semanas, segundo o
testemunho dos mendigos do local. A
saúde dele vinha piorando nos últimos
meses, tinha surtos constantes de
violência, até que foi dado como morto
após um desses ataques no qual dizia
estar sendo perseguido. Quando
apareceram policiais para liberar o
corpo, constataram que ele ainda
respirava e encontraram em seu bolso
uma única possibilidade de
identificação. Era a chave da caixa-forte
de um banco, o Cox & Company, de
Charing Cross.
– Onde estava a mala de metal, com
todos aqueles papéis que o senhor me
enviou semana passada – arrisquei.
– Isso mesmo, Sr. Holmes. Quando
abriram o baú, os agentes pensavam se
tratar de um escritor frustrado. Afinal,
aquelas podiam, à primeira vista,
parecer memórias reais, mas citavam
pessoas, situações e mesmo locais
inexistentes. Os homens da Scotland
Yard encarregados do caso sabiam
melhor do que ninguém que nunca houve
nenhum inspetor Lestrade na
organização, por exemplo. Mesmo
assim, resolveram investigar se havia
algo de verdadeiro na identidade do
homem que assinava quase todos
aqueles relatos: John H. Watson.
Pensando ser o pseudônimo de algum
autor de romances policiais, eles
indagaram todas as editoras da City e
logo passaram para as revistas que
aceitam imprimir tais textos, mas nada.
Nem London Society, All the Year
Round, Temple Bar, Boy’s Own Paper
ou algum outro periódico nunca
receberam qualquer amostra daquele
material antes.
O olhar profissional do médico
identificou alguma dobra na mangueira
que levava a medicação líquida de um
saco pendurado sobre a cama para o
braço de Watson. Sem demora,
providenciou um ângulo que julgava
mais correto para o cano e prosseguiu
com sua explicação.
– O segundo passo dos agentes foi
julgar que talvez houvesse, em meio a
tanta ficção, algo de real nos textos que
leram superficialmente. Fizeram então a
descoberta de que, por incrível que
pudesse parecer, o indigente era mesmo
formado em medicina pela Universidade
de Edimburgo, algo que eles julgavam
estar entre as maiores fantasias dos
manuscritos. Então me localizaram, aqui
neste hospital, por eu ter servido como
auxiliar dele em meu início de carreira.
Foi uma ironia do destino eu estar
trabalhando tão próximo de onde ele foi
encontrado, neste mesmo bairro. Ao ter
acesso aos escritos que aparentemente
foram a principal ocupação de meu ex-
colega nestes anos, passei a remontar um
caso que deve entrar para a história do
estudo das doenças da mente.
Mesmo com toda a discussão
ocorrendo ao seu redor, a pobre alma
não dava sinais de entendimento. Se a
esperança do doutor era que seu
paciente reagisse à minha presença no
quarto, certamente ficou frustrado. O
rosto de Watson, encovado e
precocemente envelhecido, com rugas
bem demarcadas e cabelo ralo sobre a
cabeça, não expressava nada além de
uma estranha palidez sulfurosa,
semelhante à dos que sofrem de males
hepáticos.
Contudo, ainda que o fígado tenha
sofrido agressões, era o funcionamento
do cérebro dele que ocupava as
preocupações gerais, não só da equipe
de alienistas reunida por Stamford, mas
as minhas também.
– E quando foi o doutor, e não mais
os policiais, a analisar o conteúdo do
baú, encontrou outros dados reais nos
papéis. Incluindo aí a descrição da
única ocasião em que nós três estivemos
juntos, no laboratório químico, conforme
ele escreveu nas primeiras páginas do
que chamou de Um estudo em vermelho.
Tal recordação provocou efeito
imediato no jovem médico. Ele deixou
momentaneamente a postura profissional
mantida durante todo o encontro até ali
para deixar transparecer o quanto o caso
o estava afetando pessoalmente. A
excitação em sua voz era evidente.
– De todas as pessoas do mundo,
apenas o senhor pode entender como me
senti ao ler tais linhas. Watson fez um
relato bastante preciso do dia em que o
encontrei em um bar, quando ele voltou
da guerra: sobre como me contou a
respeito das desventuras que teve no
campo de batalha, do ferimento sofrido,
da gastrenterite que contraiu e sobre
como precisava de alguém para dividir
as despesas no aluguel de algum quarto
barato...
– O que o levou a me indicar para
ele, uma vez que, por coincidência, eu
também havia lhe pedido sugestões de
pessoas para o mesmo fim, na época em
que ainda estava tentando me
estabelecer financeiramente. Cheguei a
lhes dizer que tinha uma casa em vista,
na Rua Baker, e combinei de encontrá-lo
no dia seguinte, algo que nunca ocorreu,
pois ele simplesmente deixou de
comparecer ao nosso compromisso. A
partir dali, ao que parece, a mente de
John H. Watson passou a construir uma
nova realidade, na qual dividimos uma
casa naquela rua. Mas, como ele ficou
sem saber o endereço certo, inventou um
número aleatório: jamais houve um
221B na Rua Baker; os poucos meses
em que morei lá, antes de montar minha
empresa, foram suficientes para saber
que o número mais alto daquela rua
curta e estreita é o 85. Da mesma forma
que jamais, em minha vida, pensei em
ser um “detetive consultor”, o cargo que
ele me reservou naquela vida fictícia.
Provavelmente não por nossa
presença, o combalido Watson
movimentou-se pela primeira vez desde
minha entrada no quarto. Um movimento
espasmódico contraiu seu rosto e o fez
erguer os braços, o que agitou o
ambiente e demandou a atenção imediata
de Stamford. Porém, não durou mais do
que alguns segundos. Logo, o doutor
retomou a conversa do mesmo ponto em
que paramos.
– A fixação com esse mundo de
investigadores também me surpreendeu,
mesmo tendo a oportunidade, como tive,
de conhecer os hábitos de leitura dele no
breve período em que fui seu ajudante
no Barts. Watson sempre foi interessado
nessas revistas baratas e, bem me
lembro, era um entusiasta das histórias
de raciocínio de Edgar Allan Poe e de
Émile Gaboriau. Mesmo assim, nunca
poderia imaginá-lo a escrever
obsessivamente sobre crimes,
assassinatos, roubos, investigados por
ele...
– Por ele e por mim, doutor! O que
pode ter havido de tão marcante naquela
nossa brevíssima entrevista para fazê-lo
dedicar tamanha energia para escrever
sobre mim da maneira que fez? Como se
eu fosse um gênio da lógica?
Antes de responder, o especialista
cruzou os braços diante do peito,
voltando a recompor sua figura
profissional. Até a cadência da voz
voltou ao ritmo professoral.
– Minha opinião é a de que o gatilho
ocorreu quando você pareceu adivinhar,
do nada, a origem dele como sendo
alguém que havia acabado de voltar da
guerra no Afeganistão.
– Sabia que diria isso. Porém, a
explicação é muito mais simples do que
a suposta cadeia de deduções que ele me
imaginou capaz de fazer. Jamais me
lembraria disso espontaneamente, mas
desde que li o episódio passei a forçar a
memória: a verdade é que um antigo
professor de vocês, Joseph Bell, estava
em Londres para uma série de
compromissos no hospital em que nos
encontramos. No caminho, ele passou do
lado de fora do tal bar e os viu lá. Bell
comentou no laboratório que havia visto
o senhor com outro ex-aluno, que ele
sabia ter servido como cirurgião-
assistente no Quinto Regimento. Quando
vocês apareceram por lá, pouco mais
tarde, logo imaginei que seu
acompanhante era o tal tipo de quem ele
me falara minutos antes.
Ainda sustentando um figurino
inspirado naquele austríaco com teorias
sobre a mente humana, Stamford
continuou a coçar o queixo e a me
relatar suas conclusões.
– Mesmo assim, a impressão que ele
teve de suas capacidades deve ter tido o
mesmo impacto que ocorreria caso
encontrasse na vida real personagens
literários como o Dupin, de Poe, ou
LeCoq, de Gaboriau. Isso deve ter dado
origem à monomania que o consumiu,
fazendo-o escrever uma nova vida para
ele e criar uma para a figura que passou
a idealizar. Ou seja, o senhor, meu caro
Sherlock Holmes, como se os dois
fossem um detetive de contos policiais e
seu ajudante, vivendo aventuras à altura,
ou superiores, às dos modelos da ficção.
Um sinal de que a mente de Watson
sofria com tamanhos delírios é bem
notável: mesmo com o empenho
demonstrado à lógica, em várias
passagens ele podia ser totalmente
incoerente. Até mesmo em detalhes
relacionados à vida real dele, como o
local em que foi ferido na guerra,
variava entre o joelho e o ombro, de
uma história para outra.
Dedicamos um tempo em silêncio
observando Watson, como que tentando
enxergar além da casca em
decomposição para ir direto à sua
mente. O sol se punha lá fora, e as
sombras se alongavam dentro do quarto,
riscando chão, paredes e nossos
pensamentos.
– Existe alguma chance... – hesitei em
fazer a pergunta para a qual já sabia a
resposta. – Alguma hipótese de ele ter
escrito aquilo tudo apenas como
inspiração literária? Que soubesse a
diferença entre a realidade e a
literatura?
– Pelos testemunhos de pessoas que
conviveram com ele antes de ser trazido
para cá, devo dizer que não. Todos
dizem que ele afirmava ter solucionado
os mais impressionantes casos, ao lado
de um grande detetive e que, se havia
perdido contato com o amigo, era por
culpa dos planos de algum vilão
fantasticamente inteligente a ponto de
dominar o submundo da Inglaterra.
Watson acusava o tal inimigo de impedi-
lo de encontrar a casa que um dia havia
dividido com o maior detetive do
mundo, antes de um casamento que dizia
ter feito, mas do qual não há sinal algum
de ser real. Parecia viver com a
esperança de, um dia, o antigo parceiro
vir resgatá-lo dos lugares miseráveis
onde vivia.
O médico deu um longo suspiro antes
de prosseguir.
– Para saber mais sobre o
funcionamento desta singularidade,
teríamos que o submeter a um
questionário específico. Mas, como
pode ver, o estado em que Watson
chegou até nós impossibilita qualquer
abordagem técnica. Passamos o dia em
vigília, esperando ele recobrar a
consciência, mas temo pelo pior em
breve.
– O doutor se refere...
Ainda de braços cruzados, agora com
o rosto coberto pelas sombras
crepusculares, Stamford mirou em meus
olhos para dar o derradeiro diagnóstico.
– John H. Watson está morrendo,
Sherlock Holmes. A vida de privações,
desde que ele sumiu misteriosamente,
cobra-lhe um preço bem alto. Durante
muitos dos tais surtos, ele ficava
violento e era tratado com violência por
seus companheiros das ruas. Além de
uma série de doenças pulmonares,
hepáticas, epidérmicas, entre outras, o
coitado tem uma coleção de ossos
quebrados mal cicatrizados, de marcas
de facadas, e mesmo de tiros, nunca
devidamente tratadas. Há toda sorte de
infecções em seu corpo desnutrido.
Ele pôs uma das mãos em minhas
costas e com a outra voltou a consultar o
relógio, antes de finalizar a lista de
desgraças que acometiam o homem sob
sua responsabilidade.
– Por isso mesmo, por acreditar que
em breve ele deve estar morto, achei
melhor lhe dar a chance de vê-lo uma
última vez. Os manuscritos dizem tanto
respeito ao senhor quanto à ciência
médica, tinha que lhe dar a chance de lê-
los antes desta despedida. Agora, vou
deixá-los a sós, pois tenho que resolver
outras pendências antes de encerrar o
plantão. Uma enfermeira vai
acompanhá-lo até a saída, quando o
senhor estiver pronto para partir.
Obrigado novamente por ter vindo, Sr.
Holmes. Boa noite.
O amigo mais íntimo que jamais tive.
Era assim que eu pensava diante
daquele homem, praticamente um total
desconhecido para mim. Como poderia
evitar esse aparente paradoxo, depois de
ler sobre a vida alternativa que ele criou
para mim? Seja usando a imaginação ou
sendo vítima de alucinações
patológicas, não importa. Só sei que
ninguém havia me dedicado tamanha
atenção quanto aquele desconhecido
íntimo. Nem mesmo minha família.
Watson recriou minha imagem.
Reconstruiu meu passado. Imaginou um
futuro para mim. Chegou a narrar como
morreu e como voltou da morte aquele
Sherlock Holmes sobre o qual escreveu.
Haveria alguma maneira de eu não me
deixar impressionar com tamanha
demonstração de fé?
O que eu diria a ele se tivesse
oportunidade, se não soubesse tarde
demais de todo o trabalho que tivera
para tecer aquela existência ficcional na
qual eu era uma pessoa tão
impressionantemente capaz? A verdade
é que não encontrei palavras para me
expressar, mesmo sem ter a certeza de
que ele seria capaz de entender algo, nas
circunstâncias em que estava.
Lembro bem que, ao lado de seu leito
hospitalar, observei o movimento de
seus olhos por baixo das pálpebras.
Pensava, naquele momento, se ele não
estaria vivenciando outras aventuras ao
meu lado, vivendo em sua mente
adormecida uma existência melhor do
que a realidade que matava seu corpo.
Deixei o hospital logo em seguida,
mergulhado nas dúvidas e ainda mais
melancólico do que quando havia
chegado lá. De fato, como previsto por
Stamford, Watson não resistiu até o fim
do ano. Se foi, levando consigo todas as
respostas que jamais terei. Seu cérebro
foi estudado com os métodos da
medicina disponíveis no país mais
poderoso do mundo. Mesmo assim,
tenho poucas dúvidas de que tão logo
não será possível chegar a alguma
conclusão definitiva. Restam apenas
especulações.
Na comparação feita por Stamford
com o Homem Elefante, que também iria
encontrar a morte pouco mais de dois
anos depois de minha ida àquele
emaranhado de corredores, levantaram-
se muitas teorias. Assim como a
natureza fez de Merrick uma criatura
com epiderme e musculatura tão
disformes, haveria a possibilidade de a
estrutura cerebral de Watson ser distinta
das de outras pessoas em algum nível,
ainda impossível de ser identificado.
Impossível, também, dizer se ele
nascera assim ou se foi consequência
dos traumas da guerra. Mas quais seriam
essas supostas distinções? Teria acesso
a um mundo semelhante e, ao mesmo
tempo, diferente do nosso? Uma
realidade enxergada por ele de maneira
tão nítida quanto qualquer um de nós vê
as banalidades do cotidiano, sem maior
esforço?
Ainda que com alguma vergonha,
devo admitir: cheguei a ocupar muito do
meu tempo livre, depois do segundo e
último encontro com Watson, pensando
se não haveria mesmo um vilão com
mente privilegiada por trás de tudo. Um
adversário tão ardiloso que alterou o
passado de seus inimigos: desviou-me
de uma carreira de detetive para me
tornar um químico de razoável sucesso;
tirou do caminho um certo inspetor
Lestrade da Scotland Yard; e fez o
destino ser especialmente cruel com um
pobre médico com a habilidade de
enxergar tudo o que poderia, deveria, ter
sido...
Um ponto que jamais comentei com
ninguém, antes de lançar tinta a estas
páginas, foi o modo perturbador com
que me reconheci em muitas das
descrições feitas por Watson em suas
estranhas memórias de um mundo que
não houve. Aquele Sherlock Holmes
auxiliado por ele compartilhava comigo
alguns gostos sobre os quais apenas
pessoas muito próximas de mim, tais
como minha falecida esposa e meus
filhos, saberiam mencionar. Um exemplo
que me ocorre agora é a minha, ou devo
dizer, a nossa?, preferência por música
alemã à frente da italiana ou da francesa.
Ou a dificuldade em jogar papéis velhos
fora, entre várias outras coincidências,
se é que posso chamar desse jeito algo
tão fora do comum. Uma assustadora
dúvida sobre qual de nós é o mais real
me assola quando me lembro de detalhes
assim, a ponto de me perder em tais
pensamentos por dias inteiros,
afundando em camadas de
possibilidades...
Sim, sei que isso soa feito loucura,
que se Philip K. Stamford lesse tais
desabafos, possivelmente aproveitaria a
estrutura agora vazia do Hospital de
Londres para estudar a minha mente,
como tentou fazer com a de John H.
Watson. Na verdade, na incapacidade de
entender a química mais interior do
cérebro de meu cronista, a instituição
preservou o órgão acinzentado dele em
formol, da mesma forma que fez com o
esqueleto do pobre Joseph C. Merrick.
Tudo isso, bem como os manuscritos do
baú, os quais devolvi depois de fazer
uma cópia de cada linha lá contida,
repousa em um ambiente especial do
hospital de Whitechapel, como exemplo
dos casos que desafiaram a equipe de
especialistas da instituição.
Watson e Merrick estão destinados a
serem classificados como aberrações
naturais, enigmas perpétuos para nossos
parcos conhecimentos científicos neste
fim de século, que muitos querem ter
sido o da razão. Nada do que sei sobre
química ou do comportamento humano
pode ajudar nessa tarefa,
desafortunadamente.
Tudo o que pude fazer por este amigo
íntimo que jamais tive, na
impossibilidade de ajudar a decifrar
seus mistérios, foi escrever este texto
que encerra os casos descritos pelo
doutor Watson, destinados a só vir a
público depois que eu tiver me juntado a
ele em algum outro plano de existência.
A aventura do Penhasco dos
Suicidas ~ Alexandre
Mandarino

FOI NA PRIMAVERA DE 1944 que o corpo de


Vince Belch apareceu na praia. Beachy
Head, despenhadeiro a oeste da pequena
cidade de Eastbourne, no sul da
Inglaterra, era salpicado por quedas
mortais, em uma macabra estatística
mantida às escondidas para evitar o que
as autoridades locais chamavam de
“estímulo”. Mesmo sem números
oficiais, o local ganhou o apelido não
tão lisonjeiro de Penhasco dos Suicidas.
Vince, pernas e braços fraturados, olhos
verdes apontando para o cinzento sol do
que se passa por praia na costa sul
inglesa, era apenas mais um deles.
Como aconteceu com os outros suicidas
daquele ano – as quedas haviam
aumentado, graças à Guerra –, a morte
de Vince mereceu um pequeno obituário
nos jornais locais e comentários dos
moradores, mas era apenas um dado a
mais na longa e antiga lista de vidas
ceifadas pelo estranho precipício.
Parecia um milagre que as longas
paredes de Beachy Head, que se
estendiam por 160 metros até o mar
cheio de pedregulhos, mantivessem-se
brancas após séculos de sangue.
Alguns destes dados passavam pela
mente do Inspetor Wells enquanto ele
caminhava pelas estradas de South
Downs naquele início de tarde de terça-
feira. Andava a passos lentos, como
quem não está muito certo de sua
missão. O velho Coronel Adams o havia
persuadido a ir até o vilarejo de Birling
Gap, a oeste dos penhascos de Beachy
Head, buscar o aconselhamento de um
ancião, um recluso que morava por ali
desde a primeira década do século. O
sol brilhava tímido quando Wells
alcançou o portão de entrada de uma
antiga propriedade rural, que certamente
já havia visto melhores dias. O jardim
de entrada estava mal cuidado, com
ervas tomando o lugar de algumas flores
e o capim discretamente se embrenhando
entre o caminho de pedras. A pouca
distância viam-se as ruínas do que
vários anos antes havia sido uma
criação de abelhas: ferramentas, potes e
barris vazios e enferrujados
amontoavam-se em um galpão que
parecia não contar com a presença
humana há muito tempo. Ainda sem
entender por que Adams enviara-o ali,
Wells tirou seu chapéu, subiu os dois
degraus que levavam à entrada da casa e
bateu na porta. Dois ou três minutos se
passaram antes que o rosto avermelhado
de uma criada aparecesse pelo vão da
porta entreaberta, fitando Wells com
uma expressão curiosa.
– Sr. Sherringford, por favor – disse
Wells.
– Oh. Eu... Vou ver como ele está,
senhor – disse a moça, demonstrando
que o velho Sherringford não devia
receber muitas visitas. Cinco minutos
mais se passaram antes que ela
retornasse e introduzisse Wells em um
antiquado mas limpíssimo vestíbulo. A
criada indicou uma porta à esquerda e o
inspetor se viu em um vasto estúdio, que
fazia as vezes de escritório e biblioteca.
Um ancião de cerca de 90 anos,
agasalhado de maneira exagerada para o
tempo que fazia, fumava cachimbo
afundado em uma pesada e confortável
poltrona de couro. À entrada de Wells,
ele se levantou com extrema dificuldade,
apoiando-se em uma bengala com
empunhadura de madrepérola. Pousou o
cachimbo sobre um aparador de canto e
estendeu a mão, ligeiramente trêmula.
– Boa tarde – disse a voz um tanto
rouca, mas ainda firme. – Annie me
disse que é o Inspetor Wells.
– Sim, Sr. Sherringford. Sou do
departamento de polícia de Eastbourne,
a cidade vizinha. Vim por recomendação
do Coronel Adams, que me disse ser um
velho amigo do senhor.
– Hm, sim. Eastbourne, claro. Você
sabe, anos... não, décadas... atrás eu lhe
teria dito todos estes dados antes mesmo
que você me informasse sobre eles. Mas
é um hobby que abandonei. Um velho
deve ser seletivo ao usar o cérebro,
espero que me entenda.
– Err, entendo, creio que entendo, Sr.
Sherringford. O Coronel...
– Adams, sim, pelo que ouvi.
Lembro-me bem dele, claro. Um homem
astuto e robusto, ainda que um tanto
teimoso.
Wells não pôde deixar de sorrir frente
à descrição acurada de Adams e
respondeu:
– Sim, senhor. Claro, ele está
aposentado já há cerca de quinze anos.
– Aposentado? – reagiu o velho
Sherringford, surpreso. – Quinze anos,
então?... Sim, é claro. O tempo se revela
o pior dos assassinos. Jamais suspeito
dele – tornou a sentar em sua poltrona,
indicando uma cadeira de braços para
Wells. – Mas, sim, Inspetor Wells. Por
que o bom e velho Adams o mandou
aqui? – disse, voltando a baforar em seu
cachimbo.
– Bem... – Wells parecia incerto
sobre por onde começar; e até mesmo se
deveria. Adams não estaria gagá
mandando-o até ali? Em que aquele
ancião, que claramente havia deixado
seus melhores anos para trás, poderia
auxiliá-lo? Pigarreou e esforçou-se em
continuar:
– Tem a ver com Beachy Head.
– O Penhasco dos Suicidas – disse
Sherringford, continuando então com voz
empostada:

The first land we sighted was called


the Dodman,
Next Rame Head off Plymouth, off
Portsmouth the Wight;
We sailed by Beachy, by Fairlight
and Dover,
And then we bore up for the South
Foreland light [1].

Wells observou-o, um tanto


constrangido. O ancião sorriu e disse:
– Uma velha canção de marinheiros.
Sabe, Beachy Head tem uma longa
história. Sua lista de suicidas já era
extensa e antiga quando vim morar aqui,
mais de 40 anos atrás. Quarenta anos... –
estacou, pensativo. – Sabe que as cinzas
de Engels foram jogadas do topo de
Beachy Head, em 1895? O que fala
muito sobre os tempos em que vivemos.
O inspetor olhou-o, já claramente
convencido de que a viagem até ali
havia sido uma perda de tempo, e
perguntou:
– Quem é Engels?
– Hm, tempos modernos, realmente –
reagiu o ancião, examinando o policial à
sua frente. – Mas continue, meu caro
Inspetor, o que há de especial neste
último suicida?
Wells tossiu e continuou:
– Seu nome era Vince Belch. Era um
sapateiro, morador de Eastbourne há
pouco mais de dez anos. Tinha 35 anos,
saudável, casado. Seu corpo foi
encontrado arrebentado sobre as pedras
ao pé de Beachy Head, preso entre a
costa e a maré que subia. Isso foi ontem
de manhã.
– Ontem? E por que veio aqui apenas
hoje de tarde?
Wells não conseguiu disfarçar certa
irritação:
– Parecia apenas mais um suicídio,
senhor.
– Hm.
– Mas há uma circunstância estranha:
o corpo foi encontrado pela manhã por
um oficial da Marinha, um jovem cabo
chamado Peter Daniels. Parece
totalmente fora de suspeita, claro –
Sherringford olhou para Wells com um
certo ar de pena. – Mas é isso que nos
intriga, senhor: Daniels estava naquele
ponto da praia, logo abaixo do
penhasco, há várias horas, realizando
uma espécie de ronda. Os militares, o
senhor sabe, têm deixado grupos de
oficiais de vigília em alguns pontos da
costa britânica, com a Guerra e tudo o
mais.
– Hm. Eu ajudei os oficiais britânicos
em 1914. Era uma outra Guerra, ao
mesmo tempo mais e menos sangrenta,
mais e menos ingênua. Mas os oficiais já
eram como certamente ainda são hoje:
muito pouco brilhantes.
Wells estava começando mesmo a se
enfezar, mas calou-se em respeito ao
Coronel Adams. Continuou:
– Como eu dizia, senhor, ele estava
de vigia naquele ponto da costa entre a
meia-noite e as seis da manhã, quando
encontrou o cadáver. E ele garante que o
corpo não caiu, senhor. Foi colocado
ali.
– Ele pode ter dormido. Ou
simplesmente o corpo caiu em um baque
surdo, principalmente se foi sobre uma
pedra, e ele não escutou a queda.
– Aí é que está, senhor. O corpo
estava a apenas trinta metros dele. E ele
tem certeza de que não estava ali antes.
– Havia luz? Uma fogueira, tochas,
holofotes ou coisa parecida?
– Não, Sr. Sherringford. Daniels
estava totalmente no escuro. E o farol no
topo do penhasco está desativado.
Danificado acidentalmente pela
artilharia canadense.
– Belle Tout, sim. Mas há um farol
também ao pé do penhasco.
– Sim, senhor. Seus holofotes não
iluminam direito aquela área em
especial, justamente por isso Daniels
estava posicionado ali, escondido.
– Hm. Este é um corpo que não gosta
de luz – disse Sherringford, divertido. –
Tenho certeza que a hora da morte, dada
pelo médico legista, é de pelo menos
duas ou três horas antes da descoberta
do corpo. Estou certo?
– Sim, meu senhor – disse Wells,
visivelmente espantado com o ancião. –
Como sabe disso?
– Gostaria de ver o corpo, Inspetor.
E, por favor, note que esta é uma
ocasião especial. Não saio desta
propriedade com muita frequência,
graças às fortes dores reumáticas. Mas,
sim, este caso parece ser diferente. O
velho Adams estava certo. Agradeça-o
por tê-lo mandado me visitar. Um ancião
não costuma ter muito com o que se
ocupar por estas bandas. Não nos
últimos 30 anos, pelo menos.
– Há mais uma coisa, senhor. – disse
Wells, antes de levar a mão ao bolso do
paletó e tirar um pequeno pedaço de
papel amarelo dobrado. Passou-o para
Sherringford. O ancião abriu e nele leu a
expressão The Fall [2]. Estava escrita
em letras maiúsculas de forma, à caneta.
– Foi encontrado nesta manhã, pela
viúva do morto, a Sra. Trish Belch, junto
com as cartas. Mas o carteiro afirma não
ter colocado isto na caixa. Outra pessoa
o fez.
Sherringford olhou para o papel. Um
pequeno sorriso apareceu em seu rosto.
– Hm. Ou isso confirma o que eu
penso ou nega veementemente. E então
saberei que estou no escuro. Vamos até
Eastbourne, Inspetor.

Uma curta viagem de carro largou


Sherringford e Wells na delegacia de
polícia de Eastbourne. Era o meio da
tarde e estava um clima agradável, mas
o ancião apresentou-se encapotado e
andava lentamente. O médico-legista
abriu a gaveta que continha o corpo do
sapateiro. Feridas, cortes e hematomas
horríveis cobriam seus braços, pernas e
tórax. O rosto do morto estava
perturbadoramente calmo, como se
dormisse. O legista disse, em tom
casual:
– Morto entre a meia-noite e as
quatro da madrugada de ontem.
Saudável, 35 anos. A autópsia não
revelou sinais de álcool ou nenhum tipo
de substância entorpecente. Deve ter
caminhado no escuro e caído, ou
simplesmente se jogado, Deus preserve
sua alma. A causa da morte, obviamente,
foram os ferimentos causados pela
queda.
– Impossível – disse Sherringford.
– O quê? O que quer dizer, senhor? –
perguntou o Inspetor Wells, enquanto o
legista olhava o ancião com desprezo.
– Impossível. Quero dizer, o adjetivo
que assinala a total incapacidade prática
de um dado fato ter acontecido. Não
pode ter sido assim.
O legista tornou a falar:
– Meus anos de prática médica legal
e a autópsia garantem que não há traços
de veneno, doença contagiosa,
ferimentos de bala, ferimentos de armas
brancas. Também não há indícios de
infarto, nenhuma doença ou causa
natural. Nada. Apenas os ferimentos da
queda.
– E eu digo: impossível. Por um
motivo simples: não houve queda. Este
homem não caiu. Foi colocado ali. Até
com certo cuidado, se me permite dizer.
Por isso o oficial da Marinha não
escutou a queda. Desculpe-me, caro
doutor, mas é um erro comum e
perfeitamente perdoável: o senhor, como
não achou o que procurava, aceitou o
que encontrou.
– Como assim? – disse o médico, já
irritado.
– Uma vez que não encontrou balas,
facadas e todas estas coisas vis, aceitou
os ferimentos da queda. Afinal, é um
corpo do Penhasco dos Suicidas e o
senhor viu o que estava esperando ver:
mais um suicida. Mas estes ferimentos
não foram provocados pela queda. Não
houve queda. Não sou médico, caro
doutor, mas tenho certeza que, se voltar
a examinar sob outra ótica, concordará
que este homem foi espancado e
arrastado.

Durante a viagem de volta até sua antiga


propriedade de apicultor amador,
Sherringford voltou a interrogar Wells
sobre o caso:
– O legista confirma, agora, que as
lesões eram de espancamento e baques
contra um terreno rochoso. Parece que
nosso triste Sr. Belch foi surrado até a
morte. Ele era robusto, ainda que não
ameaçador. De toda forma, um sujeito
difícil de ser morto assim – disse, mais
para si mesmo do que para Wells que, a
essa altura, olhava o ancião com novos
olhos, ainda que um tanto descrentes.
Sherringford continuou: – Quero falar
com a viúva, Sr. Wells. A Sra. Trish
Belch. O morto deixa filhos?
– Não. Não tinham filhos. Mas ele
tinha dois irmãos mais novos, que
moravam com ele. Os três eram órfãos,
o senhor sabe. O irmão do meio, Victor
Belch, é... bem, é um caso complicado.
Ele tem a mentalidade de uma criança,
praticamente um imbecil.
– Perigoso?
– Duvido muito, senhor. Amigável e
infantil, apesar de bastante grande. Um
destes sujeitos naturalmente fortes,
sabe? Tem seus trinta anos, acho, mas
pensa como um menininho de cinco.
Bastante triste, na verdade. Não é
agressivo e idolatrava o irmão, que
praticamente o criou desde que tinham,
respectivamente, vinte e quinze anos de
idade.
– E o outro irmão? – perguntou o
velho.
– Irmã, na verdade. Mary Belch, de
apenas 15 anos de idade. Moça
realmente encantadora. Aluna brilhante,
especialmente em literatura inglesa e
biologia. Passei a tarde de ontem
checando fatos sobre todos os
envolvidos e conversando com a
maioria deles, o senhor entende.
– E a viúva?
– Sra. Trish Belch, pouco mais velha
que ele, com 39 anos. Os dois se
conheceram ainda antes de virem morar
aqui, em algum lugar do norte, pelo que
sei. Parece uma mulher correta, um tanto
calada. Está visivelmente destroçada
pela morte do marido. É de dar pena.
Mas, claro, desconfio de todos.
Sherringford pensou e então
perguntou:
– Quem era o médico do morto?
– O Dr. Terrence Usher. Está em
Eastbourne há quase vinte anos. Também
falei com ele ontem.
– Esteve ocupado, Inspetor Wells.
– Ora, bem, senhor, é a minha função.
Mas o Dr. Terrence me garantiu que não
havia nada de errado com a saúde física
e mental do morto. Na verdade, senhor,
ele foi o único dos interrogados que
chegou a ventilar a hipótese de
homicídio, mas na hora achei que fosse
apenas sua imaginação falando mais
alto. É um destes homens eloquentes, de
presença inegável, se é que me entende.
Difícil deixar de notá-lo quando começa
a falar.
– Ele disse que desconfiava de
homicídio, então? Meu caro Wells,
desejo falar com todas estas pessoas
ainda amanhã, se for possível. Minha
intromissão não oficial pode ser difícil
de ser explicada, então lhe peço que
fique a manhã e tarde de amanhã em
minha casa, enquanto os interrogo.
Quero que pensem que o senhor está
conduzindo as investigações e não se
sintam ameaçados com a minha
presença.
Wells considerou esta última frase
arrogante e pretensiosa, mas preferiu
calar-se. Em seu íntimo, nutria um misto
de irritação e espanto crescentes por
aquele velho de nariz adunco.
Ao chegarem à propriedade de
Sherringford, os dois estavam prestes a
se despedir quando Annie, a criada,
veio até o portão e disse, intrigada:
– Sr. Sherringford, não sei como
desconfiou, mas realmente foi como o
senhor disse. Veja, encontrei cerca de
uma hora depois de terem saído. Alguém
o escorregou pelo vão da porta da
frente.
Na mão da criada havia um pedaço
de papel amarelo, dobrado. Sherringford
pegou-o, com uma velocidade que o fez
soltar um curto gemido de dor
reumática, e desdobrou-o. Bem no meio,
escrito à caneta com a mesma letra que
adornava o bilhete encontrado antes,
The House [3].
O velho olhou para Wells e disse:
– A Casa... Por favor, Inspetor, é
importante que cheque ainda hoje a casa
do morto. Aliás, cheque duas casas. Vá
até a casa do morto...
– Já foi revistada de cima a baixo,
senhor – interrompeu o inspetor.
– Tanto melhor: significa que já tem
um mandado. Volte lá ainda hoje e, por
favor, traga-me todos os documentos
pessoais que encontrar. Principalmente
diários, anotações, calendários, esse
tipo de coisa. Gostaria de fazer isso eu
mesmo, mas minha agilidade é coisa do
passado.
– E a segunda casa?
– Visite o médico, o tal Dr. Terrence.
Peça a ele a ficha médica completa do
triste Sr. Belch. Até logo, Inspetor. Já
anoitece e a leitura é um dos poucos
lazeres que ainda me restam. O
reumatismo me impede de tocar meu
violino, que reúne fungos tristemente em
um canto. Já meus outros hobbies se
tornaram impossíveis ou foram
proibidos pelas novas leis da Rainha.
Tempos modernos, tristes e velozes.
Lerei, Inspetor. Até amanhã de manhã.
Não muito pela manhã, por favor. Pode
trazer os parentes na ordem em que
desejar, mas deixe o bom médico por
último. Boa noite.
Na manhã seguinte, às dez e meia, o
Inspetor Wells apresentou-se à casa de
Sherringford acompanhado dos dois
irmãos, Mary e Victor. Wells mostrou-se
visivelmente constrangido por ter de
levar o irmão mais novo e, assim que
esteve sozinho com Sherringford, após
as devidas apresentações, sussurrou
para ele:
– Há mesmo necessidade de
interrogar o rapaz, senhor? Ele é uma
criança, como lhe disse.
– Então, vamos lhe fazer apenas duas
perguntas, Inspetor – disse o ancião,
parecendo divertido com as
preocupações do policial. – Vamos falar
com a irmã, primeiro. Deixe entrar a
jovem Srta. Mary Belch, Annie.
A criada saiu e introduziu no estúdio
uma menina loira, bonita, de olhos
verdes atentos e inteligentes. Parecia
estar calma e até aproveitando a
situação, como quem registra um detalhe
importante de sua própria vida para a
posteridade. Sherringford apontou-lhe
uma poltrona perto da janela e ela se
sentou.
– Srta. Mary, quero crer que a
senhorita seja fã de contos policiais.
Wells e a jovem olharam o velho com
espanto. Aquela pergunta não fazia
sentido.
– Err... Sim, meu senhor. Gosto muito.
Especialmente dos americanos. O novo
romance americano.
– Ah, sim. Sim. O chamado roman
noir. Pessoalmente, acho mera
brutalidade, mas sou apenas um velho.
Minha geração é a vitoriana. Peço que
me perdoe, Srta. Mary, ao preferir a
companhia de nomes mais amenos. Sente
falta de seu irmão?
– Muita, meu senhor – disse a moça,
com olhar repentinamente triste. –
Muito. Ele era como um pai para mim.
Eu tinha apenas cinco anos quando
nossos pais morreram em um terrível
acidente de trem, e desde então ele tem
sido irmão e pai para mim e para Victor.
– Gosta de Victor?
– Todos gostam de Victor –
Sherringford pareceu perceber um tom
protetor para com o irmão deficiente
mental.
– Gostaria de fazer uma brincadeira
com a senhorita. Permite?
Mary o olhou, relutante, antes de
aceitar.
– É simples. Um método moderno,
que vi, aliás, em um destes novos
romances policiais que a senhorita diz
gostar – ela, por algum motivo, corou. –
Escreverei cinco nomes em um papel e a
senhorita escreverá ao lado a primeira
palavra que lhe passar pela cabeça.
Peço que seja honesta e sincera. A
primeira palavra que lhe ocorrer após
ler cada nome, por favor. É importante –
sacou de um bloco e escreveu cinco
nomes.
A moça demorou-se pouco tempo, já
demonstrando estar novamente divertida
com a situação, e devolveu o papel.
Nele se podia ler:

Vince – Saudade
Victor – Bondade
Mary – Eu
Benchy Head – Alto
Doença – Saúde

Sherringford olhou para as anotações,


sorriu e então disse:
– Muito obrigado, Srta. Mary. Fico
feliz que tenha vindo. Pode esperar
alguns minutos lá fora, por favor? Em
breve, falarei com seu irmão.
– Posso falar com ele?
– E contar sobre o que lhe perguntei?
Certamente, senhorita. Não estamos em
um romance, lembre-se disso – disse
Sherringford, divertido. Mary pareceu
corar e apressou um pouco mais sua
saída.
Assim que se viu a sós com Wells, o
ancião disse:
– Hm, repare, inspetor, que o único
tópico com que ela respondeu com uma
palavra de sentido oposto e não afim foi
Doença. Sugestivo. Mas, claro, o
propósito deste “teste” não foi
psicológico, mas de ordem prática –
ajeitou o cachimbo e continuou. – Caro
Inspetor, faça-me o favor: feche aquela
janela lateral. Está entrando uma
corrente de ar.
Wells levantou-se e fechou os
postigos de madeira. O velho tocou a
sineta e a cabeça de Annie surgiu pela
porta:
– Deixe entrar o Sr. Victor Belch, por
favor.
Um homem de trinta anos, enorme,
com um sorriso ingênuo e curioso,
entrou pela porta. Tinha os modos de
uma criança de uns seis anos de idade.
Sherringford disse, em um tom de voz
que Wells ainda não o ouvira usar:
– Olá, Victor. Sente-se, por favor.
Preciso que me ajude a ajudar o seu
irmão, Vince.
Um olhar desconfiado formou-se no
rosto do deficiente, que se sentou bem
na ponta da cadeira.
– Estamos todos tristes que Vince
tenha morrido na queda. Precisamos
apenas descobrir se ele caiu sem querer,
ou se matou – Sherringford falava
lentamente, como se escolhesse as
palavras certas.
– Ele não se matou – disse Victor. –
Vince era feliz.
– Acha que ele caiu por acidente,
então? Isso resolve a questão – Victor
sorriu levemente. – Uma pena aquele
penhasco. Uma queda tão alta. O corpo
tão destroçado – Victor parecia
inabalável. – O rosto estava
irreconhecível – o rapaz teve um
sobressalto e voltou a ficar calado.
Wells olhou espantado para
Sherringford. O ancião observou o
jovem e apenas disse:
– É isso. Obrigado, Victor, por ter
vindo falar comigo. Tenho certeza que
seu irmão teria aprovado.
O rapaz levantou-se mas, antes que
pudesse sair do estúdio, Sherringford
disse:
– Ah, faça um favor a este velho, meu
rapaz. Está muito quente aqui. Poderia
abrir aquela janela, ali ao canto? – e
apontou para a mesma janela que Wells
havia acabado de fechar. O inspetor
mexeu-se desconfortavelmente em sua
cadeira. Victor abriu os dois postigos e
depois se retirou, timidamente.
– O que tem em mente? – disse Wells,
perturbado. – O senhor viu o corpo,
sabe que o rosto estava intocado. Para
que perturbar a dor de um irmão?
– Exatamente, Wells. Uma queda de
160 metros e nada acontece com o rosto.
Nada. Pernas, braços e tronco moídos,
mas o rosto perfeito. Não acha estranho?
E seu legista não percebeu esse fato,
pobre diabo. Nosso rapaz é muito forte.
Muito forte mesmo. Aquela janela, que
pedi que fechasse, está emperrada há
anos. Fecha com facilidade, mas para
ser aberta é preciso ser forçada com
aquele pé-de-cabra ali no canto. E,
ainda assim, veja com que facilidade ele
a abriu. Bem, o que me trouxe da casa
do morto e do consultório do médico?
Wells apresentou um diário grosso,
de capa em couro avermelhado, e
algumas fichas dentro de pastas de papel
espesso.
– O diário é de Vince. Vários
acontecimentos corriqueiros da vida de
um sapateiro de cidade pequena. Mas
veja as páginas que estão dobradas. Já li
o diário inteiro, claro.
Sherringford correu os olhos por
todas as páginas e deteve-se nas páginas
marcadas por Wells. Nelas, liam-se
trechos curiosos:
“Tenho certeza de que ele estava me
olhando de forma ameaçadora. Ele sabe
de meu passado e de meu amor por
Trish. Pobre diabo. Mas não há de me
matar”.
“Victor duvida de mim, mas eu sei o
que vi naquela tarde. Homens estranhos
no farol de Beachy Head. Chego mesmo
a achar que são nazistas. Espiões de
Hitler. Não, não acho. Tenho certeza.
Ainda nesta semana, descerei e
investigarei o que está havendo.”
“Todos eles me odeiam, querem me
matar. Eu sei disso. Mas somente Trish
me escuta. Victor e Mary não me ouvem,
são apenas duas crianças. Trish sabe que
estou certo. Mas ele, não. Ele, não.
Malditos sejam os dois e sua história.”
“Foi quando vi a estranha nuvem em
formato de carneiro. Acinzentada como
chumbo, parecia querer cair sobre a
minha cabeça. Corri pelos campos,
sabendo que aquilo poderia significar
morte.”
“Girei e girei novamente. Não havia
dúvida. O ranger agudo em minha
cabeça, com toda a certeza deste mundo,
vinha daquela maçaneta. É o bronze. Eu
sei disso. É o bronze. Preciso me
proteger.”
“Querem me envenenar. Me matar.
Estão usando de todos os subterfúgios e
objetos possíveis. Desta vez foi o
açucareiro. Tenho para mim que aquilo
ali era ralo e claro demais para ser
açúcar. Joguei todo o conteúdo na pia e
deixei a água correndo por meia-hora.”
“Maldito violino! Que ânsias estes
sons abomináveis me despertam.” (Esta
frase, em especial, fez Sherringford
torcer levemente o nariz.)
“Hoje descerei ao farol. Sei o que vi.
São nazistas. Trish não me ouve nessa
questão, mas tenho certeza de que ele
está envolvido com os espiões. Ele
apenas se disfarça de médico. Em minha
próxima consulta, irei colocá-lo contra a
parede.”
Sherringford fechou o diário e disse a
Wells:
– Então nosso morto tinha problemas
com o bom doutor. O contrário também
se aplicaria? Deixe-me ver as fichas
médicas.
O velho correu os olhos e examinou
por vários minutos o retrato médico de
anos da vida de Vince Belch.
– Deve ter sido um homem muito
forte e saudável. Uma gripe, dez anos
atrás. Uma dor de garganta com
rouquidão, pouco depois. Consultas
regulares, mas nenhum problema grave
de saúde.
– Bem, senhor, não vejo nada de
estranho nisso. Ou irregular. Vince era
mesmo uma pessoa bastante saudável e
aparentava isso.
– Sim, está certo, nada de estranho
nisso. Mas, nisto, sim. Veja.
E apontou para Wells as datas dos
exames e consultas.
– Após anos a fio se consultando, não
há nenhum registro de consultas ou
exames nos últimos cinco anos. Nada.
Como diz, isso também pode ser normal.
Mas eu duvido. O diário e estes exames
me fizeram mudar de ideia. Quero falar
com o Dr. Terrence agora. Aliás, faz-se
mesmo mister que eu o interrogue antes
de falar com a viúva. Se a bela e triste
Sra. Belch, como você diz, chegar antes,
peça-lhe que espere. Instruirei Annie a
esse respeito.
Após o almoço, foi a vez do Dr.
Terrence Usher aparecer na antiquada
casa de campo. Sherringford logo
entendeu as palavras usadas por Wells
na descrição do médico. Era um homem
gordo, alto, enérgico e que chamava
muito a atenção. Ao entrar no estúdio,
sentou-se, um misto de atento e irritado,
fitando o ancião.
– Sim, aqui estou. Inspetor Wells, isto
é uma situação correta?
– Asseguro-lhe que sim. Pode confiar
no Sr. Sherringford.
– Humpf. Pois então, pergunte.
O velho olhou-o, intrigado, e disse:
– Por que acha que o Sr. Vince Belch
foi assassinado, quando todos os
indícios levam a acidente ou suicídio?
– Temo que ele tenha sido empurrado
– disse, escolhendo as palavras.
– Hm. Empurrado. O senhor viu o
corpo?
– Não, não vi. Mas li nos jornais.
Estava destroçado, em consequência da
queda.
– Então, o senhor não viu os
ferimentos pessoalmente?
– Não, como já disse – afirmou o
médico. – Só li os jornais.
– Por que acha que ele foi
empurrado?
– Ele era meu paciente. Eu o conhecia
há anos. Não havia nada de errado com
ele, seja física ou mentalmente.
– E, no entanto, ele tem um irmão...
simplório.
O médico pareceu confuso:
– Ora, meu senhor, não é assim tão
simples. Vários fatores estão
envolvidos, complexos demais para um
leigo, se me permite dizer. E a irmã é
normal, aliás.
– Sim. Uma imaginação muito fértil.
Fértil até demais.
Terrence fitou Sherringford, curioso:
– Aonde o senhor quer chegar?
Foi a vez do velho olhá-lo com
cuidado e escolher suas palavras. Wells
estava atônito, virando os olhos de um
canto a outro da sala, como quem assiste
a um jogo de tênis.
– Quero chegar, caro doutor, ao
assassino.
– Então concorda comigo que ele foi
assassinado?
– O senhor pensa em alguém em
especial? Que poderia tê-lo empurrado?
– Ele era um homem forte e, como já
reiterei, saudável.
– Sim, reiterou várias vezes.
– Para que alguém o empurrasse do
alto de Beachy Head, teria que ser
alguém conhecido. Alguém em quem ele
confiasse. Alquém que ele... amasse.
Sherringford estreitou os olhos
enquanto fitava o Dr. Terrence e
perguntou:
– O senhor tem uma... pessoa
específica em mente, pelo visto?
– Temo que sim, senhor.
– Se importa de compartilhar conosco
suas suspeitas?
– Não seria muito ético, senhor.
– Mas pensa em alguém forte, pelo
que disse?
– Oh, não, meu senhor. Me entendeu
totalmente errado. Não seria necessário
esse tipo de força. Falo do amor. Do
amor mais forte.
– Entre um homem e uma mulher? –
perguntou Sherringford.
O médico enrubesceu. Um silêncio
constrangedor surgiu na sala, cortado
finalmente por uma tosse do Inspetor
Wells. Sherringford disse:
– Tenho apenas mais uma pergunta,
meu bom doutor. O senhor vem do norte,
não? Qual cidade?
O médico ia falar algo, mas pareceu
ter se dado conta de que um policial
estava presente. Fechou a boca e tornou
a abri-la, dizendo:
– Northampton.
– Muito obrigado. É tudo, doutor.
Quando o médico já estava na soleira
da porta de comunicação com o
vestíbulo, Sherringford elevou a voz
rouca e disse:
– Doutor! Espere. Só mais uma coisa
sem importância – e mostrou-lhe as
fichas médicas de Vince. – Por que o
senhor Belch não o consultou, seu
médico pessoal, nos últimos cinco anos?
Terrence ficou vermelho e abaixou os
olhos. Conseguiu apenas balbuciar:
– Ele... Ele era muito saudável, como
lhe disse.
– É tudo. Obrigado. Se a assassina
estiver aí, pode deixá-la entrar – disse,
em tom jocoso. O médico bateu em
retirada.
Wells levantou-se de um salto:
– O quê? A Sra. Trish é a assassina?
– Meu bom Wells, eu a deixei por
último, não foi? Mas acalme-se. Sente-
se. Parece até mesmo um velho amigo
meu... Ele sempre tirava as conclusões
mais absurdas. Aliás, também era
médico. Bom doutor – e permaneceu
perdido em pensamentos nostálgicos até
ser finalmente interrompido por Wells.
– Do que está falando? E a Sra. Trish
é a assassina?
– Hã? Ah… Hm, ora, Wells. Espere.
Fique no seu camarote especial e
assista.
Após o toque da sineta, Annie
apareceu e confirmou que a Sra. Trish
Belch já havia chegado. Segundos
depois, uma bela mulher morena
aparentando quarenta anos foi levada à
presença de Sherringford. Trajava
negro, em luto pesado e tinha os olhos
vermelhos. Sentou-se delicadamente à
poltrona de canto e olhou para os dois
homens, entristecida.
– Boa tarde. A senhora vem de
Northampton, acredito?
– Sim.
– E lá, quem sabe, foi cortejada por
um bem-sucedido médico em início de
carreira; talvez ele a tenha pedido em
casamento. Teve um caso com o Dr.
Terrence Usher?
Os olhos da viúva pareceram sair das
órbitas, ressaltando a vermelhidão ao
seu redor. Ela abriu a boca para falar,
mas desistiu. Abaixou a cabeça e
chorou. Wells estava boquiaberto e
chegou mesmo a pôr-se de pé por alguns
instantes. Finalmente, rubra, ela se pôs a
falar:
– Não um caso, senhor. Nada
aconteceu. Usher, a quem eu só conhecia
de vista, nutria um amor platônico por
mim. E isto, um belo dia, desembocou
em uma torrente atrapalhada de
palavras, um anel caríssimo e uma
proposta de casamento que pegou a
todos nós de surpresa. Foi algo
constrangedor, percebo hoje. Poucas
semanas após a minha óbvia negativa, o
médico saiu da cidade e mudou-se para
algum lugar ao sul. Conheci Vince,
fiquei apaixonada por ele, nos casamos
e então, por puro acaso, viemos morar
aqui. Vince, que Deus o abrigue, havia
tido êxito em conseguir uma boa posição
como sapateiro em Eastbourne. Eu sabia
que o médico estava morando aqui, mas
aquele episódio havia se passado mais
de dez anos antes. Não vi nenhum
problema. Assim como não vejo qual a
relação com o caso. Meu marido caiu,
senhor. Foi um acidente. E ele não sabia
do meu problema com o doutor.
– Nunca contou a ele sobre este
episódio? Nem mesmo quando Usher se
tornou seu médico pessoal?
– Não é como se tivéssemos um vasto
rol de médicos à nossa disposição por
aqui, Sr. Sherringford. Além do mais,
não vi motivos para contar algo do qual
eu mesma mal me recordava. Lembre-se,
havia sido apenas uma proposta de
casamento recusada. Um episódio sem
importância e, bem, eu mal via o doutor.
Eu nem mesmo pensava no assunto. Para
todos os efeitos, encarava o Dr. Usher
apenas como o médico pessoal dele.
– Tenho certeza de que é assim, Sra.
Trish. Perguntei apenas para confirmar
se havia deduzido corretamente – voltou
a acender o cachimbo. – Então, acha que
seu marido teve morte acidental? Acha
que ele escorregou e caiu, ou algo
assim?
– Sim, claro. Vince era feliz, jamais
teria se suicidado.
– E, no entanto, as evidências
apontadas pelos jornais levam a crer
que foi suicídio.
– Eu o conhecia melhor que os
jornais, Sr. Sherringford.
– Sim. Sabia que seu marido achava
que estava sendo seguido? Ele lhe falou
dos espiões nazistas?
A mulher voltou a arregalar os olhos:
– O quê? De que está falando?
– Ah, vejo que não leu os diários de
seu marido. Louvável. De verdade –
disse, apanhando o livro vermelho.
– Não, não os li. Deixo esse...
trabalho para a polícia. E para o senhor,
pelo visto – e olhou com desprezo de um
para outro.
– São males do nosso ofício, minha
senhora. É tudo. Mas fique tranquila. Já
sei o que aconteceu. Amanhã pela manhã
terei todas as respostas e, com isso,
também nosso amigo Wells aqui. E, com
ele, a polícia. E, com a polícia, também
os jornais e as companhias de seguros –
sorriu, piscando um olho para a viúva,
que tremeu. – Boa noite, madame.
Assim que ela saiu, Sherringford se
levantou e, apoiado em sua bengala,
disse a Wells:
– Por hoje é só, Wells. Peço que me
deixe aproveitar o tempo livre dessa
noite que já se aproxima para me
dedicar às minhas leituras.
– Mas... é isso?
– Ora, sim. Já saí muito pelo mundo
como um cão perdigueiro, farejando
pistas e coletando objetos sem
importância. Agora, dou-me ao luxo de
sentar e pensar. É tudo que um velho
pode fazer, logo, é nisso que tive que me
tornar um mestre. Dizem que velhos
hábitos nunca mudam, mas é uma
mentira: eles mudam, graças às
mudanças de saúde. O corpo muda os
hábitos, que por sua vez mudam o corpo.
E assim seguimos.
– Sim, sim, mas e o caso?
– Ora, você parece mesmo o meu
velho amigo. Saudoso e querido
Watson... Tudo tem sua hora, Wells,
tudo. Vá dormir e amanhã pela manhã
terei sua resposta. Já a tenho, mas
preciso de confirmações. Para isso, terei
de ler este diário atentamente e
comparar com algumas velhas anotações
médicas que coletei ao longo dos
últimos anos.
– Devo prender algum deles? O
médico, que claramente está mentindo
sobre algum ponto? A mulher, que foi
incriminada pelo médico quase
nominalmente? O irmão, que teria força
para derrubá-lo? Até amanhã de manhã
qualquer um poderá fugir.
– Não, o assassino não fugirá. Este
assassino não precisa fugir, Wells,
porque sempre nos alcança. Esteja aqui
amanhã às onze da manhã. Ah, mais uma
coisa: desconfio que, ao chegar à sua
casa esta noite, vá achar em sua caixa
postal ou sob a sua porta um terceiro
bilhete em papel amarelo. Não importa
o que estiver escrito nele, não mande
prender nosso bom amigo, o Dr.
Terrence. Boa noite. – Saiu do estúdio,
recolhendo-se em seu quarto no andar
superior.
Wells tomou o carro e foi o mais
rápido possível para sua casa. Antes de
entrar no terreno, checou a caixa de
cartas. Não havia nada. Sentiu um misto
de decepção e alívio, misturados com
alegria pelo velho finalmente ter errado.
Mas a sensação durou pouco: ao entrar
na sala de estar, lá estava ele, passado
em algum momento da noite sob a porta.
O bilhete amarelo. Avançou sobre ele,
desdobrou-o e lá estava escrito, desta
vez em letra batida à máquina:
Usher

Na manhã seguinte, após uma noite


quase insone, Wells correu para a casa
de Sherringford, onde chegou às dez e
meia. Quando estava no vestíbulo, ouviu
a voz do velho falar para Annie, dentro
do estúdio:
– Ora, mande-o esperar meia hora.
Essa geração mais nova não respeita a
pontualidade.
Longos trinta minutos se passaram até
que Sherringford aparecesse à porta e,
com um gesto de sua bengala, mandasse-
o entrar.
– E então? Finalmente tem a
resposta? – disse Wells, em um tom
irritado e zombeteiro. – Sinceramente,
Sr. Sherringford, duvido muito que o
senhor tenha deduzido alguma coisa
sobre este caso aqui, sentado em sua
poltrona.
– Hm. Ora, eu vi o corpo, que era o
que eu precisava ver neste caso.
Interroguei os envolvidos. Com a idade,
meu caro Wells, descobri que metade do
que eu fazia era fruto de puro
diletantismo. Menos é mais, como deve
ter ouvido falar. Não posso deixar de
concordar, ainda que tardiamente –
disse, acendendo o cachimbo.
– Quem é o assassino?
– Não há assassino. Não é um
homicídio.
– Então voltamos ao ponto de partida.
Ele se suicidou?
– Não, já havíamos eliminado isso.
Ele não se suicidou.
– Então foi um acidente! Ele
escorregou e caiu!
– Meu pobre Wells, não houve queda!
Não esqueça disso. Os ferimentos são
de espancamento.
– Mas quem é o assassino? Quem o
espancou?
– Victor Belch o espancou depois de
morto, moendo seus braços e pernas e
parte de seu corpo. Mas veja que ele
não teve coragem de fazer o mesmo com
o rosto do irmão, que realmente amava.
– Mas por que alguém faria isso? E
depois de morto? Quem o matou, se não
foi o irmão?
Sherringford caminhou até a mesa de
centro e apontou para o diário de Vince:
– Não há assassinato. Espiões
nazistas no farol? Perseguições
misteriosas? Veneno no açucareiro?
Adultérios? Ora, faça-me o favor, Wells.
Todos os indícios estão aí. Vince Belch
morreu de causas naturais. Panfobia.
– Hã?
– Sim, panfobia. Trata-se do medo de
tudo. De praticamente tudo. A pobre
vítima vai piorando após os trinta anos
de idade, começa a desconfiar de tudo, a
ter medo dos vizinhos, dos parentes, do
próprio médico, da esposa, de toda a
cidade, de paredes vazias, do ar à sua
volta, de faróis e penhascos, de nuvens e
chuvas, de passado e futuro. Até que
morre. Sim. Morre de medo. Não como
em um infarto ou susto. Estas causas
ainda seriam detectáveis por um bom
médico, mas seu legista está longe disso,
se me permite. Um susto forte pode fazer
o coração parar; causar um infarto. Mas
ainda seria detectável. Com a panfobia,
a pessoa não é morta. Ela nem mesmo
morre, no sentido mais completo desta
palavra. Ela... Simplesmente deixa de
viver. Assim.
– Isso... é... Isso é inacreditável, Sr.
Sherringford. Panfobia? Nunca ouvi
falar disso!
– É algo raro, realmente. Só havia
lido sobre ela em contos de ficção e
pelos jornais; ainda não a havia
encontrado pessoalmente.
– Que coisa esquisita. Pobre homem.
– Sim. E pobre Victor Belch que, ao
encontrar o irmão que tanto amava
morto, no topo de Beachy Head,
espancou-o selvagemente, porque sabia
da vergonha do irmão em relação à sua
doença. Sabia que seu irmão e quase pai
envergonhava-se de seus medos. Victor
sentia isso em uma estranha empatia, por
compartilhar característica similar.
Espancou-o para simular ferimentos de
uma queda ou de um suicídio e depois,
incapaz de empurrar o irmão tão
selvagemente penhasco abaixo, ou de
permitir que o rosto que amava se
deformasse, desceu-o cuidadosamente e
pousou-o no chão, sem perceber que o
fazia próximo de um oficial da Marinha,
cuja presença seria o único indício de
que não havia acontecido uma queda.
Credite isso à Guerra, se assim o
desejar.
– Mas e o médico? Por que ele não
disse sobre a doença do morto?
Certamente ele devia saber. E por que
acusou a viúva, uma mulher que já havia
amado?
– A resposta para as duas perguntas é
por rancor. O Dr. Terrence Usher
jamais perdoou Trish Belch, e a
indiferença desta em relação àquele
episódio o irritava ainda mais, porque
nem mesmo fora rejeitado. Havia sido
esquecido, varrido para baixo do tapete
da memória. A Sra. Belch tinha 19 anos,
aquele médico mais velho, que conhecia
apenas de vista, nunca teve chance. Um
médico orgulhoso, que nunca se
conformou por não tê-la conquistado.
Trish, que tinha enorme carinho pelo
marido, a quem amava profundamente.
Foi graças a este amor que tolerou a
estranha doença que atormentava o
homem, a terrível panfobia. Em alguns
casos, em algumas personalidades mais
ardentes e orgulhosas, o amor estagnado,
não levado a cabo, transforma-se em
rancor e até mesmo ódio.
– Então, o médico escondeu as fichas
que continham informações sobre a
doença de Vince para poder acusar a
própria mulher que um dia amou?
– E que talvez ainda amasse! Mas
esse sentimento ele jamais admitiria
ainda possuir; não após aquele
acontecimento que, em sua mente
contaminada pelo orgulho doentio, seria
sempre lembrado como uma vergonhosa
rejeição. Uma rejeição que, mais cedo
ou mais tarde, seria vingada. Para o
médico orgulhoso, foi perturbador
descobrir que aquela mulher o havia
rejeitado mas aceitara, e amara, um
homem doente, enfermo. Escondeu as
fichas, causando a estranha ausência de
cinco anos de consultas médicas. Uma
interferência nos assuntos da polícia
pela qual ele ainda pode ser
responsabilizado, claro. Ele o fez para
que a morte não soasse natural. Lembre-
se de que ele foi o único a insistir que se
tratava de um homicídio. Com isso,
poderia se dar ao luxo de fingir que
acreditava na culpa de Trish. E, de
maneira ainda mais cruel, afetar Trish de
maneira prática: se a morte fosse
considerada homicídio ou suicídio, e
não uma morte por doença natural, ela
não receberia nada do seguro de vida de
seu marido.
– Quanto rancor...
– Sim. Temo que Eastbourne esteja
mal das pernas no quesito hospitalar, Sr.
Wells, tendo um passadista rancoroso e
vingativo como médico de família e um
velhote distraído como legista.
– Err... Acho que sim, senhor. Mas e
ela? Por que não falou da doença de seu
marido?
– Assim como o irmão dele, estava
respeitando sua vontade... E a vergonha
que tinha de sua doença e de como ela
estava deteriorando sua lógica e seus
pensamentos.
– É impressionante. E os avisos, os
bilhetes nos papéis amarelados?
– Hm. Frutos de uma mente jovem,
afetuosa, inteligente, imaginativa e
apegada ao irmão.
– Mary?
– Sim. Os bilhetes eram a ação da
única outra pessoa normal neste caso,
não atormentada por problemas de
ordem mental nem de rancor amoroso,
condições muitas vezes tão parecidas.
Bilhetes de alguém que tentava ajudar
nas investigações, da única pessoa que
queria a verdade à tona. Eu mesmo os
interpretei de forma errada durante a
metade do tempo. Mas o estranho, e aqui
me arrisco a deixar a lógica de lado, é
que mesmo assim, fragmentados e fora
de seu propósito original, eles
funcionaram. O primeiro, The Fall, me
chamou a atenção para a queda em si. E,
como vimos, logo descobri que não
havia acontecido queda alguma, seja por
homicídio, acidente ou suicídio. Desta
vez o Penhasco dos Suicidas foi
inocentado. O segundo bilhete, The
House, me levou a pedir-lhe que
investigasse os diários e documentos nas
casas do morto e de seu médico. Foi só
depois de ter me dado conta da possível
presença de uma doença como a
panfobia no caso é que percebi que os
bilhetes não eram fragmentados, mas
formariam uma frase. Foi quando
imaginei qual seria o terceiro bilhete e
lhe pedi, de certa forma em tom de
piada, mas também a sério, que não
mandasse prender o médico por causa
dele.
– Usher.
– Sim. Ironicamente, havia alguém
chamado Usher no caso.
– Mas disse que os bilhetes enviados
por Mary formavam uma frase.
– Ora, The Fall of the House of
Usher. Edgar Allan Poe. Roderick
Usher, personagem principal do conto,
sofre de um medo de todas as coisas,
que termina por matá-lo. Foi a forma
encontrada por Mary de nos ajudar a
elucidar a morte de seu irmão sem que
isso desrespeitasse seus desejos, na
cabeça dela. E, claro, obviamente, uma
ajuda típica de uma mente jovem afeita a
enigmas excitantes da ficção.
– Não teria percebido isso, não
conheço esse conto.
– Hmpf. Os tempos modernos...
– Senhor, eu... Agradeço
imensamente.
– Ora, não há problema algum. Eu lhe
agradeço, meu caro, por permitir que
Sherlock Holmes voltasse à cena mais
uma vez.
– Holmes? O senhor é Sherlock
Holmes?
– Sim, Sherringford é apenas um
nome que adotei nos últimos dez anos
para evitar que me encontrassem. Mas
creio que finalmente fui esquecido.
Wells arregalou os olhos, sua
respiração parou e tentou, de forma
tipicamente britânica, mas sem sucesso,
disfarçar uma forte emoção em sua voz:
– Não, meu senhor. Jamais será
esquecido. Peço que... Perdoe minha
ignorância e falta de respeito até então.
Se ao menos soubesse. Eu, de certa
forma, devo-lhe a minha existência.
– Hm? O que quer dizer?
– Meu nome é James Wells Wiggins,
Sr. Holmes. Meu pai era Wiggins, que o
senhor tanto ajudou em Londres, durante
a juventude.
– Wiggins... dos Irregulares? Os
Irregulares da Rua Baker? – a voz de
Holmes parecia embargada. Os olhos do
velho piscavam com uma luminosidade
aquosa e nostálgica, agora enxergando o
passado claramente.
– Sim, meu senhor. Não fosse por sua
ajuda e inspiração, meu pai teria sido
apenas mais um vagabundo a morrer nas
ruas londrinas. Eu lhe agradeço, em
nome dele, em meu nome e de todas as
pessoas que o senhor ajudou ao longo
destes anos. Destas décadas.
Holmes piscava os olhos, talvez
disfarçando lágrimas. Aproximou-se de
Wells, pousou-lhe a mão no ombro e
disse, com a voz embargada e ainda
perdida nos labirintos vitorianos:
– Ora, sem problema algum, Watson.
O jogo continua.
[1]Spanish Ladies, tradicional canção naval inglesa. Seu primeiro
registro conhecido provavelmente é o datado de 1796.
[2]A Queda.
[3]A Casa.
Um estudo em azul ~ Rosana
Rios

There ´s the scarlet thread of


murder running through the
colorless skein of life , and our
duty is to unravel it, and isolate it
, and expose every inch of it .

“A study in scarlet” – Sir Arthur


Conan Doyle
I – Ana Rosa

EM ABRIL DE 2000, quando eu cursava


o último semestre da faculdade, passei a
dividir um apartamento com Ana Rosa.
Vira-a pelo campus em anos anteriores,
é claro; sua beleza incomum jamais me
passaria despercebida. Agora, porém,
não só ela já era bacharel como havia
terminado a Escola de Polícia e
estagiava numa delegacia da cidade.
Quem me deu essas informações e nos
pôs em contato foi o Estéfano, que fora
da turma dela e de quem eu ficara amigo
porque meu trabalho final de graduação
tinha afinidades com sua dissertação de
mestrado. Eu parecia um sonâmbulo
naqueles meses: pesquisar direito
corporativo estava me pondo louco, e
precisava urgentemente me mudar da
república em que morava, pois as
festinhas dos estudantes não me
deixavam dormir. O problema é que
minha mesada era mínima e os bicos que
eu fazia na época não rendiam muito.
– Engraçado – ele riu, quando eu
disse que procurava alguém que não
gostasse de festa para dividir um apê. –
É a segunda pessoa que me diz isso
hoje. Conhece a Ana Rosa?
Claro que eu conhecia a Ana Rosa.
Todo mundo conhecia a Ana Rosa. Ela
passara o curso de Direito inteiro
evitando se envolver com os
conquistadores do campus. Alguns
rejeitados até espalharam que ela
gostava de mulher, mas ninguém
acreditou. Ela era simplesmente areia
jurídica demais para nossos
caminhõezinhos acadêmicos.
O fato é que o Estéfano lhe telefonou
e naquela mesma noite fui encontrá-la
num apartamento do Centro, no primeiro
andar do número 221 da Rua ***, Bloco
B. Ela abriu a porta sorrindo. Usava
calça jeans e blusa azul clara. Era uma
visão celestial.
– Você deve ser o Fernando. Não se
espante com o tamanho do apartamento...
A sala é conjugada com a cozinha, mas
tem dois quartos. Pertence ao meu pai, e
ele mesmo me aconselhou a arrumar uma
colega pra dividir as despesas. O
condomínio é um assalto.
– Bem – eu disse –, não pertenço ao
sexo que seu pai espera, mas posso
arcar com o valor que o Estéfano
mencionou. E sou tão organizado que
chego a ser chato.
– Eu sei – ela sorriu e acrescentou,
delicada: – Não se ofenda, é que depois
que nosso amigo ligou fui me informar
sobre você. Acho que vamos nos dar
bem, eu também não fumo e sou maníaca
por organização... Venha ver se gosta do
quarto.
Fui. Gostei. Acertamos a divisão das
despesas, e no dia seguinte eu me mudei.
Já estava apaixonado, mas sabia que
não devia deixar que ela percebesse.

II – O mistério da Lauriston House

Fazia alguns meses que dividíamos o


apartamento, e eu me sentia no paraíso.
Ela também apreciava rock clássico, e
ambos adorávamos pizza de quatro
queijos, a especialidade da panificadora
da esquina. Dividíamos as despesas por
dois; e o pai dela nunca desconfiou de
que eu não era exatamente uma ex-
colega com vocação para freira
chamada Fernanda.
Então, numa sexta-feira fria e
chuvosa, saímos juntos pela primeira
vez. Passava de meia-noite e eu estava
no quarto digerindo um artigo sobre
direito corporativo, quando ela bateu na
porta antes de entrar. Eu já ia
fantasiando uma mulher sedutora, num
negligé transparente, irrompendo
apaixonadamente porta adentro... Mas
Ana entrou usando casaco e botas de
sola grossa, com o celular numa mão e
dois guarda-chuvas na outra.
– Fê, você me faria um favor enorme?
– ela perguntou.
Havia recebido um telefonema da
sétima DP, onde estagiava. Sempre que
estourava alguma emergência à noite ou
em feriados, Ana Rosa era chamada.
Estava se especializando em
averiguações tediosas, investigações
bizarras, interrogatórios desimportantes.
– Tenho de encontrar um detetive na
Lapa. Disseram que a parede de uma
casa podre de velha desabou e revelou
uns ossos humanos. É coisa de no
máximo uma hora, lavrar a ocorrência e
esperar a polícia científica. Se me levar
lá, fico em dívida com você...
Eu não lhe negaria absolutamente
nada nesta vida e provavelmente nas
próximas. Levaria Ana Rosa em meu fiel
e detonado carrinho até a China, se
preciso. E à noite, com chuva e avenidas
congestionadas, ir do Centro de São
Paulo à Lapa talvez fosse mais difícil
que atravessar a Ásia para comprar
rolinhos primavera em Beijing.
Pois foi. Rodamos muito para chegar
à região próxima das estações
ferroviárias.
O detetive Tobias era um sujeito
sonolento, vestido num terno impecável;
esperava-nos numa rua sem saída
encravada na Lapa de Baixo, diante da
pilha enlameada de entulho que era a
casa desabada. Viu Ana e nem se deu ao
trabalho de perguntar quem eu era.
– Ótimo, você chegou. Por conta
disso perdi um casamento, minha mulher
vai me matar... Um vizinho ligou para a
DP há algumas horas, quando as paredes
desabaram. Os moradores da rua vieram
conferir o desabamento e uns garotos
encontraram ossos misturados com os
tijolos bem ali – apontou para um canto
obscuro mais enlameado ainda. –
Antigamente isto era uma pensão, mas
disseram que fechou há décadas, a casa
estava abandonada. Aqui estão os nomes
do vizinho que telefonou e do menino
que achou os ossos. Chamei a perícia e
a PM vai interditar o terreno. Assim que
removerem a ossada, você pode ir. Até
segunda!
Ele sumiu tão rapidamente que
parecia ter se teletransportado. Ana
suspirou.
– Obrigada por me trazer, Fê. Isto vai
demorar mais do que eu esperava, é
melhor você ir para casa. Depois eu
pego uma carona com os PMs.
Eu não ia deixá-la ali sozinha, no
meio da noite, da chuva e do barro. Se o
sujeito não tinha se importado por haver
um civil no meio da investigação, eu me
sentia no direito de ficar. Jurei a Ana
Rosa que observar aquilo seria ótimo
para meu trabalho de graduação. Ela não
acreditou, mas não discutiu. Fechou o
guarda-chuva, tirou um par de luvas
estéreis da bolsa, colocou-as e foi
conferir a tal parede do canto nos
fundos. Fui atrás dela.
A casa parecia ser uma das
construções mais antigas da Lapa. Eu me
lembrava de ter lido que naquela zona
haviam morado engenheiros que vieram
da Inglaterra para construir a ferrovia.
Vinha daí a coleção de nomes ingleses
dados às ruas do bairro.
Foi a primeira vez que vi Ana Rosa
em ação; já mostrava, no começo da
carreira, o dinamismo que a tornaria
famosa na polícia paulista. Afastou
tijolos com as mãos enluvadas e
pudemos ver os ossos, iluminados pela
lâmpada da rua. Havia vestígios de
tecidos e restos nojentos de vermes, mas
nada vivo se mexia ali àquela altura.
Ana pegou na bolsa uma lanterna com a
qual iluminou o entulho. Pisquei. Sob a
luz que se fez, a cena se revestiu de azul.
Alguns ossos estavam cobertos de
manchas dessa cor, e ela passou a
recolher, com uma pinça de metal,
fragmentos que foi colocando em
saquinhos plásticos. Nesse meio tempo,
um camburão estacionou ali perto, e
logo novas lanternas inundaram o local
de luz.
Um senhor se aproximou,
acompanhado por um PM e um rapaz.
Ana o apresentou: era Dr. Humberto,
médico legista do IML e consultor da
Polícia Científica. Não parecia
contrariado por trabalhar numa sexta-
feira chuvosa de madrugada; com a
ajuda do rapaz, provavelmente um
estagiário, foi liberando a ossada do
entulho. Falava sem parar a cada osso
que descobria e a cada fragmento de
material que Ana lhe mostrava. Quando
o corpo surgiu por inteiro, o rapaz sacou
uma câmera e começou a fotografar a
cena.
A chuva cessara de vez e eu fechei o
guarda-chuva. Ana tinha a testa franzida
e parecia esquecida de que eu estava ali.
Quase saltou de susto quando comentei:
– Esse pobre coitado passou muito
tempo aqui...
– Oitenta anos, no mínimo – desandou
a falar o legista. – Era homem e idoso, a
julgar pelo desgaste nas juntas. Sem
sinal de violência. Pode ser que tenha
morrido de velhice. Se bem que ninguém
ia emparedar um corpo se a morte não
fosse suspeita.
– Emparedar? – murmurei, vendo a
lua surgir entre as nuvens e a cena ficar
mais azul.
– As paredes junto ao corpo são parte
de um cubículo oculto atrás da cozinha –
ele revelou, indicando o entulho. –
Alguém pôs o corpo aqui e cimentou
qualquer entrada que houvesse. Pelo
padrão da decomposição, calculo que o
óbito aconteceu na década de 1920.
Minha amiga levantou com a pinça
um fragmento de papel que encontrara
no chão.
– Eu diria década de 1930 – disse,
olhando aquilo contra a luz. – Encontrei
parte de um manuscrito. Consigo ler
Lauriston Hou gust 930 dear fri...
Inglês? Não sei o que é Lauriston, mas
se a notação for August 1930, indica que
ele estava vivo nessa data.
– É uma carta! – exclamei. – Esse
dear fri deve ser dear friend, querido
amigo.
– Veja isto, detetive – Dr. Humberto
resmungou, por trás da vítima.
Ana abaixou-se para ver o que ele
indicava num dos ossos. Concluiu:
– O osso do ombro foi ferido e
calcificou. Suponho que este senhor
tenha tomado um tiro no ombro, mas não
foi isso que o matou.
– Supôs certo – o médico assentiu. –
Uma bala de fuzil antigo, acredito; deve
ter fraturado o osso e atingido a artéria
subclávia. Aposto que um fragmento da
bala ainda se aloja no interior do osso.
Bem, fizemos o que era possível aqui.
Assim que acabarmos com as fotos,
vamos remover tudo. No laboratório
terei mais recursos para estudar o
material.
Aquela era a deixa para que eu e Ana
fôssemos embora, mas ela continuava
parada lá, com uma ruga na testa que a
fazia tremendamente sedutora.
– O que o senhor acha que é isto,
doutor? – perguntou, erguendo algo na
pinça.
– Parece borracha... – ele ajeitou os
óculos para olhar a tripinha de coisa
negra que ela encontrara. – Onde foi que
vi uma coisa assim...? – de repente,
sorriu. – Claro! Na Faculdade de
Medicina. Poderia jurar que é um
pedaço de tubo de estetoscópio, um
modelo antigo.
Ela pôs o fragmento de borracha em
outro saquinho e entregou a ele.
– Então nossa vítima pode ter sido
médico, e viveu numa pensão da Lapa
de Baixo. Morreu em idade avançada no
começo da década de 1930. E seu corpo
foi emparedado.
O céu ameaçava clarear. Eram quase
quatro horas; à difusa iluminação da rua,
misturada à das lanternas, o azul se
espalhava. Senti uma necessidade insana
de cafeína. Como se ouvisse meus
pensamentos, o PM, que nos observava,
comentou:
– Vi um boteco aberto na rua de
baixo. Deve ter café.
Fomos os dois em busca da bebida,
enquanto o legista tratava da remoção da
ossada e Ana encarava a tarefa ingrata
de bater nas casas vizinhas para
interrogar as testemunhas.
Quando conseguimos convencer o
dono do boteco a preparar café fresco e
nos servir para viagem, mais uma
viatura chegara, e um sujeito de terno
observava outro PM passar fitas de
isolamento policial em torno do terreno.
O carro do IML estava pronto para
partir e minha amiga me esperava.
Presenteou-me com seu mais sedutor
sorriso ao sentir o cheiro de café.
– Você é um anjo – disse, guardando
os papéis na bolsa. – Temos uma dívida
de honra.
Parecia mais animada que antes; por
isso, mais que por interesse genuíno,
indaguei:
– Descobriu alguma coisa com os
vizinhos?
– Ninguém sabe nada sobre o corpo –
respondeu –, mas disseram que a casa
era uma antiga pensão. Hospedou
trabalhadores ingleses da ferrovia, a
São Paulo Railway. E sabe como este
lugar se chamava em 1900? Pensão
Lauriston. Aquele fragmento devia ser
mesmo de uma carta que a vítima não
postou. Lauriston House. August 1930.
Dear friend...
Terminamos o café e minha amiga
revisou suas anotações enquanto eu
conduzia o carro de volta à nossa rua; a
padaria da esquina já estava abrindo as
portas.

III – O fio azul do crime

Ela continuou trabalhando no caso,


embora mal tenhamos conversado nos
dias que se seguiram. Eu retomei minha
paixão silenciosa e meu trabalho de
graduação. E ela ficava fora a maior
parte do tempo. Eu a imaginava
investigando, e minha visão de
investigação policial era romântica:
incluía carruagens percorrendo ruas
londrinas e detetives geniais deixando a
polícia de boca aberta ao desmascarar
assassinos. Eu tinha passado anos lendo
Conan Doyle.
Uma semana após aquela noite, Ana
chegou em casa exausta e jogou uma
pasta sobre a mesa. Fazia muito frio, e
eu sentia tantas saudades de casa que
tinha preparado a receita do chocolate
quente que minha mãe fazia. Uma
leiteira cheia.
– Que aroma delicioso é esse? – o
rosto dela brilhou assim que entrou.
Sorri e lhe enchi uma caneca com o
líquido fumegante.
– Fernando, eu te amo – ela suspirou
após o primeiro gole.
Quase derrubei a leiteira antes de
raciocinar que ela estava apenas
reagindo ao chocolate. Todo mundo sabe
que as mulheres consideram chocolate o
melhor substituto para o sexo. Xinguei-
me interiormente pela ideia infeliz de
oferecer-lhe a bebida, mas era tarde
demais.
– Você parece cansada – eu disse,
servindo-me também. – Como vai sua
investigação?
– Não vai a lugar nenhum – foi a
resposta desanimada. – Meus chefes, o
Tobias e o G.L., encerraram o caso. Não
leva a nada, disseram. Os ossos vão
para a vala comum e fui designada para
a averiguação sobre uns corpos
desenterrados numa favela da Zona
Leste. Um massacre acontecido há anos,
coisa de gangues de droga rivais.
Não pude esconder o
desapontamento. Fantasiava Ana
desvendando aquele crime e via-me a
seu lado dando entrevistas, escrevendo
um livro, vendendo os direitos a
Hollywood para um filme com Angelina
Jolie no papel da policial e Brad Pitt
como seu roommate. Eu.
– No fundo, não posso culpar o
Tobias – ela continuou; andou até seu
quarto e voltou trazendo um livro. – Os
resultados da perícia só me sugeriram
conclusões bizarras...
Era um volume que eu lhe emprestara
naqueles dias: The complete Sherlock
Holmes.
– Tenho seguido o fio da investigação
entre os escombros da Lapa e o Instituto
Médico Legal. Dr. Humberto confirma
que a vítima foi morta no início da
década de 1930. Por envenenamento...
ele diz que as manchas azuis nos ossos
são vestígios de sulfato cúprico penta-
hidratado. Como foi administrado, é
impossível adivinhar. Era um homem
robusto com mais de oitenta anos, e suas
iniciais eram J.H.W: na cena, foram
encontrados mais pedaços do
estetoscópio e restos de uma maleta de
couro com essas iniciais gravadas.
Encontrei também registros de que um
navio inglês aportou em Santos em julho
de 1928, trazendo passageiros ingleses
destinados a São Paulo, imigrantes que
vinham trabalhar na São Paulo Railway
Company. Entre os nomes deles decifrei
o de um Dr. J. H. Wilson, médico. E
confirmei as iniciais com outro pedaço
de carta recuperada na cena. Veja na
pasta azul.
Abri a pasta que ela deixara sobre a
mesa e achei uma cópia digitalizada do
tal fragmento. Dizia: dear D emain yo
mble serv ohn H. W.
– Suponho que seja uma assinatura,
algo assim: Dear D, I remain your
humble servant, John H. W... Mas o que
me deixou intrigada foi isto aqui.
Ela abriu meu livro na primeira
aventura de Sherlock Holmes, A study in
scarlet – Um estudo em vermelho – e
apontou um parágrafo. Peguei o volume
e li:
– ...I served at the fatal battle of
Maiwand. There I was struck on the
shoulder by a Jezail bullet, which
shattered the bone and grazed the
subclavian artery.
– É a narrativa do Dr. Watson, o
cronista de Holmes... – murmurei.
– Exatamente. Eu estava lendo isso
esta semana, e quase engasguei. Um
médico inglês, John Hamish Watson, que
tomou uma bala no ombro no
Afeganistão, em 1880, no mesmo osso
que nossa vítima. O narrador das
investigações do detetive inglês. Fui
pesquisar: a última aventura de Holmes
se deu em 1914, porém Watson teria
publicado outras crônicas, até 1927.
Alguns estudiosos julgam que o ano de
sua morte seria 1929, mas...
– Ana – eu a interrompi, fechando o
livro. – O Dr. Watson foi um
personagem criado por Conan Doyle, só
isso. Ele não existiu.
– Eu sei – ela admitiu, indo se servir
de mais chocolate. – Mas não é uma
coincidência estranha? Então tive a
ideia de consultar um ex-professor do
cursinho, especialista em literatura
inglesa. Ele concordou em nos receber.
Daqui a uma hora e meia.
– Nos receber? – eu disfarcei a
excitação. – Já sei, você precisa de
outra carona.
– Professor Arthur mora a algumas
estações de metrô daqui – ela me fitou
com o ar ofendido. – Só achei que você
gostaria de ir porque tem fascinação por
histórias policiais.
Não precisei implorar para ir junto, o
que eu faria sem hesitar: foi só começar
a gaguejar e ela desandou a rir. Pode ter
sido efeito do chocolate, ou quem sabe
ver-me fazer papel de idiota espantou
seu cansaço. Quando saímos, logo
depois, ela estava animadíssima.
A noite nublada deixava as ruas
azuladas e me fazia pensar que
estávamos seguindo o tênue fio azul de
uma meada muito embaraçada. Mas eu
não me importava.

IV – O que o professor tinha a dizer

Descemos do metrô na estação


Marechal Deodoro, e Ana enveredou
pelas ruas de Santa Cecília até uma
viela sem saída. No portão descascado
de uma casa térrea, tocou a campainha
sob a placa que dizia “fundos”. O portão
se abriu com um clique e rumamos por
um corredor estreito, até uma edícula
espremida entre dois muros. Lá, sentado
na soleira da porta sob a lâmpada, um
sujeito precocemente envelhecido
terminava um baseado.
– Há quanto tempo, Aninha! – o
professor exclamou.
Ana Rosa nos apresentou antes de
submergir no abraço do homem. Ele
parecia mais alegre do que deveria
estar, e nos levou a uma saleta escura
que cheirava a maconha velha.
– Sua dissertação de mestrado foi
sobre Conan Doyle, não foi? – ela
explicou o motivo da visita. –
Procuramos informações sobre
personagens das histórias de Sherlock
Holmes.
Ainda sorridente, ele desandou a
falar; mas bem depressa se tornou
furioso.
– Claro, minha dissertação foi uma
análise comparativa das cronologias de
Baring-Gould e Klinger. Eu ia
aprofundar as conclusões no doutorado,
mas as bestas da Universidade puxaram
meu tapete. Instabilidade emocional,
alegaram. E daí? Quem é que nunca teve
um probleminha com a polícia? Um
bando de hipócritas, uns imbecis, isso é
o que eles são...
– Mas as cronologias, professor
Arthur – Ana interrompeu a sequência
de palavrões que se sucedeu. – Achei
discrepâncias sobre o ano em que o Dr.
Watson teria morrido.
– Discrepâncias! – ele soltou uma
gargalhada histérica. – Isso é pouco,
depois de todas as discussões na
internet... e a Polícia Federal
censurando sites que ousam fugir aos
cânones. Acordos com a Interpol, eles
dizem. Textos protegidos pela lei de
direitos autorais... Doyle morreu em
1930, qualquer proteção dos direitos de
sua literatura já teria expirado. E
ninguém pode controlar a internet. Se
tiram um site do ar, no dia seguinte
aparecem dezenas de outros!
Vimos um computador ligado na sala,
soterrado entre jornais e roupa suja.
– Poderia nos indicar esses sites,
professor? Eu agradeceria muito.
Ainda sem parar de falar, e oscilando
entre a euforia e o furor, ele se sentou
diante do computador e sacudiu o mouse
com força até o pobre rato resolver
funcionar.
– Não liguem para a lentidão, esta
porcaria está obsoleta, mas faz a
conexão. Eu é que não sou escravo da
máfia da informática! Não preciso de
licenças nem de antivírus, e eles que
venham me prender se quiserem. A
pirataria é o último bastião da liberdade
de expressão!
Um acesso de tosse o fez levantar-se
e ir para a porta, onde ficou
vociferando. Ana ocupou o assento que
ele deixara e foi clicando na lista de
links que aparecera.
Eram comunidades e grupos de
discussão sobre Holmes, Watson, Conan
Doyle, literatura policial inglesa. Alguns
estavam fora do ar; quando ela clicava
aparecia uma mensagem dizendo que a
página fora excluída por ordem do
Ministério da Justiça. Ela parou num dos
últimos, cujo endereço era
www.sherlockholmesfoireal.net.
A página inicial do site trazia uma
explicação que nos intrigou.
Em 1886, o médico e escritor
escocês Arthur Ignatius Conan Doyle
recebeu um original de um antigo
colega da Universidade de Edimburgo.
O amigo ter-lhe-ia pedido que o
ajudasse a publicar uma história real,
mudando os nomes dos personagens e
as localidades citadas. Doyle prometeu
divulgar a obra como sua e, em
novembro de 1887, a revista Beeton’s
Christmas Annual publicava A study in
scarlet. O sucesso levou à publicação
de outras histórias, enviadas a Doyle
pelo autor – um médico cuja
convivência com certo detetive
particular, sempre incógnito, levara-o
a testemunhar crimes e escândalos que
o governo britânico preferiria manter
ocultos. Naturalmente, a crença
popular de que tudo aquilo não
passava de ficção fornecia um
esconderijo ostensivo, protegendo o
anonimato das personagens reais.
Tudo correu bem até que, em
dezembro de 1893, a revista Strand
Magazine publicou o conto The final
problem, narrando a morte do detetive
na Suíça, ocorrida em 1891. Há
depoimentos de que na época Doyle se
sentiu livre de um peso que o oprimia, e
embora alguns digam que ele se
cansara de escrever sobre aqueles
personagens, a verdade é que o
incomodava o fato de levar crédito por
obras que não criara. Nos anos que se
seguiram publicou outros textos, e
apesar de o clamor público pedir mais
histórias policiais, apenas em 1903 o
escritor escocês voltaria a escrever
sobre o finado detetive, ressuscitando-
o. Especula-se se tal ressurgimento
teria realmente ocorrido. O consenso é
de que as novas histórias fossem
criações de Doyle, escritas com o
consentimento de seu amigo médico: o
homem que dera origem ao personagem
estaria mesmo morto desde a década
anterior. Contudo, várias de suas
investigações tinham envolvido
membros das famílias reais europeias e
suas ramificações – as casas de
Bourbon, Orléans e Bragança,
Habsburgo, Nassau, Saxe-Coburgo /
Windsor e outras – o que gerou
esforços de governos variados para
impedir que fatos revelados nos contos
e novelas fossem tidos por reais. Eles
poderiam ser encarados como a ponta
de um iceberg, e fazer naufragar não
apenas monarquias ainda existentes,
mas gerar um caos sem precedentes no
frágil equilíbrio político mundial. Por
mais de um século houve escamoteação
de informações, abdicações, sumiços e
mortes inexplicáveis, dentro e fora das
famílias envolvidas. E isso se manteve
insuspeito até o surgimento da internet.
Nós sabíamos que de teorias de
conspiração a rede mundial está cheia...
mas aquilo parecia sério. Ana encontrou
links semelhantes em inglês, espanhol e
francês; e, em outra janela, demos com
um fórum em português. Professor
Arthur devia visitá-lo com frequência,
pois estava logado e tinha um dos
tópicos aberto. Minha amiga digitou na
caixa de mensagens:
> Alguém sabe qual a data mais
provável da morte do Dr. Watson?
Várias respostas apareceram. As
primeiras diziam:
> Pergunta estúpida. A morte de W.
foi ocultada, como as outras.
> Acabaram com ele quando
perceberam que ia falar.
Depois de várias nesse teor, uma
mais longa nos chamou a atenção:
> Pelas cronologias aceitas, W. teria
morrido em 1929. Há quem diga que foi
antes, e há autores que defendem que
estaria vivo em 1939. Numa carta
atribuída a C.D., citada numa revista de
1928, encontra-se o seguinte trecho:
“My old friend W. has travelled to
South America and tells me I should do
the same. I have, however, other
plans.” Se era ao Watson real que Doyle
se referia, é possível que o doutor tenha
terminado seus dias na Argentina ou no
Brasil, junto às comunidades britânicas
lá radicadas.
Tínhamos acabado de ler isso quando
uma flutuação na energia elétrica fez as
luzes piscarem e o computador
reinicializar ruidosamente. Ana se
levantou e procuramos o professor.
Encontramo-lo de novo na soleira da
porta, fumando outro baseado e falando.
– É natural que escondessem os fatos
da opinião pública. Mas exageraram.
Por que tantos jornalistas sumiram
nestes cem anos? Por que nunca se
divulgou o desenlace do caso de Jack, o
Estripador? Por que pessoas ligadas à
nobreza morreram tão de repente...?
Outro acesso de tosse o tomou. Fosse
pelo efeito da maconha, ou por seu
estado mental ser bastante confuso, não
adiantou fazermos mais perguntas. Ele
só vociferava contra o governo, a
polícia, as pessoas que não permitiam
que se pensasse “fora dos cânones”.
Saímos de lá depois de ele abraçar
Ana Rosa várias vezes, fazendo-me
rilhar os dentes de ciúmes. Maluco ou
não, drogado ou não, o professor era
esperto demais para o meu gosto. E o
bom humor de minha amiga se esvaíra,
quando alcançamos o metrô.
– Ele sempre foi assim? – perguntei,
enquanto voltávamos à estação.
– No cursinho era brilhante – ela
confidenciou. – Fazia a história da
literatura ganhar vida, mencionava o
mestrado e as tais cronologias. Corriam
boatos de que usava drogas, mas nunca
acreditei... e parece que me enganei.
Voltamos para casa em silêncio. Ela
estava condoída pela decadência de seu
ex-professor, mas eu me fechara
totalmente à compaixão, depois de todos
aqueles abraços.

V – Novos embaraços no fio da meada

Depois daquilo, os sonhos


começaram. Eu, que nunca lembrava o
que sonhava, passei a acordar com
cenas perturbadoras na mente. Flashes
da casa demolida, que parecia a Pensão
Lauriston ou a casa do professor. Ossos
com manchas azuis transformavam-se
em ferros retorcidos que me lembravam
das imagens impressionantes, vistas na
televisão e nos jornais, do acidente em
que morrera Diana, a ex-esposa do
Príncipe de Gales.
Não falei nada disso a Ana Rosa. Ela
já tinha problemas suficientes com que
se preocupar, envolvida na tal
investigação sobre as gangues de anos
atrás. Isso, aliás, levava-a com
frequência ao IML, e a se encontrar com
o Dr. Humberto.
Num domingo de manhã, eu estava
fazendo café quando ela veio do quarto,
pronta para sair, o que era incomum.
Aos domingos costumávamos nos
levantar tarde e tomar um café tardio,
comentando os acontecimentos da
semana.
– O café está pronto – avisei.
Ana resmungou alguma coisa sobre
ter de atender à mensagem de um colega,
mas não saiu imediatamente. Servi-lhe o
café.
– Você é um bom amigo, Fê – ela
suspirou, entre um gole e outro. –
Aquela investigação do médico morto na
Lapa... sabe que é confidencial, não
sabe?
– Você acha que eu sairia falando
sobre detalhes de uma investigação
policial? – resmunguei, ofendido. – Eu
jamais prejudicaria seu trabalho!
– Não é com o trabalho que me
preocupo – ela interrompeu, veemente. –
Na última semana o Tobias e o G.L.
vieram com sermões sobre a
impropriedade de se investigar casos
que a Secretaria de Segurança mandou
encerrar... Óbvio, referiam-se à ossada
da pensão.
– Você ainda está investigando,
então? – indaguei, indignado, pois se
uma fração daquelas teorias de
conspiração fosse verdadeira, a polícia
deveria mais é escarafunchar tudo.
– Estou, mas a coisa é mais
complicada do que eu imaginava, e vai
piorar. Depois que fomos visitar o
professor, eu conferi de novo os sites
que juram que a história de Holmes foi
real. Porém nenhum dos que vimos
continuava no ar. Então recorri aos que
se atêm aos cânones... E confirmei que
Sir Arthur Conan Doyle morreu em 7 de
julho de 1930. Em 1928 ele fez uma
viagem à Holanda e Escandinávia, e
quando voltou teve um ataque cardíaco.
Ficou doente uns tempos e faleceu no
mês de julho.
– Alguma coisa suspeita na morte
dele? – agora eu estava intrigado.
– Nada, a não ser que alguns dos
sintomas de sua doença poderiam ser
atribuídos ao envenenamento por sulfato
de cobre... E o fato de a morte ter
ocorrido pouco antes que a de nossa
vítima. Fui pesquisar também a São
Paulo Railway. Queria descobrir mais
sobre a Pensão Lauriston e o Dr. J. H.
Wilson... A SPR comandou a construção
de ferrovias por aqui de 1856 a 1946,
foi responsável pela vinda de muitos
imigrantes ingleses. E adivinhe só: os
registros da companhia ficavam na Luz,
a principal estação da linha que se
chamou Santos-Jundiaí. A concessão aos
ingleses durou noventa anos. Expirou no
dia 7 de novembro de 1946. E na
madrugada do dia 6 de novembro, sabe
o que aconteceu?
– O que, criatura?! – minha expressão
de ansiedade devia ser patética.
– Um incêndio terrível irrompeu na
Estação da Luz. Começou de madrugada
e tomou toda a ala leste. Os jornais
relatam o inferno que foi aquilo: tetos
desabando, chamas consumindo a maior
parte do prédio... E os arquivos da
ferrovia foram completamente
destruídos. Quando muito, sobrou a torre
do relógio.
Desanimei. Cada fio da meada que
Ana seguia ia dar num embaraço cheio
de nós.
– O incêndio não foi investigado?
– Foi. Afirma-se que teria sido
criminoso, mas não achei nada sobre a
resolução do caso. Não se sabe quem
botou fogo na estação ou por quê. Só
podemos supor...
– ... que foi, literalmente, queima de
arquivo – afirmei, num meio sorriso.
Mas ela não riu. Levantou-se, pegou a
bolsa e, já na porta, disse:
– Fê, lembre-se de que nada disso
deve transpirar. E agora preciso ir até o
IML. Pois, ao que parece, a queima de
arquivo continua... Um amigo da 77a DP
me telefonou há meia hora. Encontraram
ontem à noite um corpo em Santa
Cecília. O exame preliminar acusou
morte por overdose. Cocaína.
– Professor Arthur – murmurei.
Ela saiu sem dizer nada. E eu senti
voltarem à minha mente as imagens dos
sonhos.
VI – Uma luz na escuridão

Foi num canto do cemitério, no


enterro do professor, que eu vi o tal
sujeito. Tinha a sensação de já tê-lo
visto antes, mas não conseguia recordar
onde ou quando. Maduro, terno escuro,
sobretudo. O estereótipo do espião.
Óbvio demais para ser de verdade...
Ana se mostrara agradecida quando
eu me oferecera para acompanhá-la ao
funeral, mas estivera calada a tarde
toda, só quebrando o mutismo para
desejar condolências aos familiares, tios
e primos que não pareciam nada
abalados com o falecimento de Arthur.
Já eu me sentia culpado por ter sentido
ciúmes de um homem que morreria em
poucos dias.
Ficamos pouco tempo lá, saímos
assim que o caixão desceu à campa. O
homem de sobretudo nos acompanhou
com o olhar.
Um toque no celular de Ana a fez
conferir uma mensagem, pouco antes de
chegarmos à estação de metrô mais
próxima. Ela parou, observando a tela
do celular, e eu perguntei:
– O que foi? Não me diga que estão
chamando da DP na sua folga.
– Não – ela respondeu. – É uma
mensagem do Dr. Humberto. Ele também
recebeu ordens veladas para esquecer
certos fatos... Então decidimos
conversar apenas em locais discretos.
Acaba de me chamar para um encontro
em meia hora, num café nos Jardins. Ele
diz que vai levar uma pessoa. Se quiser
vir comigo, é bem-vindo. Só não se
esqueça de que...
– Já sei, agora o caso é confidencial
ao quadrado. Ao cubo. Mais alguma
coisa?
– Tenha em mente que a morte do
professor Arthur não foi acidente ou
suicídio, embora no atestado de óbito e
no BO conste overdose acidental. Ele
podia adorar um baseado, mas não era
usuário de cocaína ou drogas pesadas.
Pense nisso.
Eu pensei, durante o tempo em que
tomamos o metrô. Desembarcamos na
estação Trianon-Masp e seguimos para
uma travessa da Peixoto Gomide. O café
lembrava um pub londrino; no balcão
próximo à rua, passamos por dois
gorilas que nos analisaram da cabeça
aos pés. E numa mesa nos fundos, atrás
de um biombo, Dr. Humberto tomava
chá Earl Grey junto a uma senhora que
vestia um casaco de corte impecável.
Armani, avaliei.
– Então – disse a mulher, que
aparentava quase noventa anos e levava
a xícara aos lábios com a mão cheia de
anéis –, você é a policial que assinou a
ocorrência. Tão jovem.
Uma garçonete veio trazer cardápios.
Senti-me inclinado a pedir chocolate
quente, mas contive-me a tempo e pedi
chá. Ana estendeu a mão para a velha
senhora.
– Prazer em conhecê-la. O doutor
disse que a senhora veio por causa do
corpo...?
Ela pousou a xícara e apertou com
vigor a mão de minha amiga.
– Assim que li a notícia do
desabamento da casa, mandei um
funcionário averiguar. Quando
apareceram as iniciais J. H. W., resolvi
vir pessoalmente. Venho sempre à
capital fazer compras. E não podia
permitir que um velho amigo fosse
enterrado em vala comum.
Dr. Humberto não tocara em seu chá.
Mexia-o sem parar com a colher de
prata.
– A senhora... – ele ia dizer um nome,
mas calou-se em resposta a um olhar da
mulher. – A senhora aqui presente
reivindicou os restos mortais. Seus
advogados cuidaram de tudo, e a ossada
está neste momento sendo trasladada a
uma cidade no interior do estado. Ela
queria mais detalhes do caso... e eu
sugeri uma conversa... não-oficial... com
vocês.
A mulher riu, a dentadura brilhando
ostensivamente sobre a borda da
chávena.
– Esta conversa não está
acontecendo, sabem. Não estou aqui.
Estou descansando no quarto do hotel
depois das compras, antes que o
motorista e o enfermeiro me levem para
casa.
Relanceei os olhos para os gorilas na
entrada do café. Que bom que não
estávamos ali. Aqueles dois eram o tipo
de pessoa que eu adoraria esquecer que
tinha conhecido.
Ana Rosa esperou a garçonete servir
o chá. Então discorreu sobre nossa ida à
pensão desabada na Lapa, as
características da vítima e os objetos
recolhidos no local. Mencionou o
encerramento do caso pela polícia, mas
não disse nada sobre personagens de
ficção.
– Entendo – a mulher assentiu. – E
agora é a minha vez.
A narrativa dela foi longa, porém
como não tenho a capacidade de
memória de Ana, que lembra cada
palavra dita, vou relatar apenas o
resumo do que consegui reter.

VII – A história da velha senhora

Vamos chamá-la Mary. Seu pai viera


ao Brasil antes da Primeira Guerra para
trabalhar na São Paulo Railway, e se
hospedara na Lauriston House. Sua mãe
era filha de italianos e vinha da Vila
Romana à Lapa de Baixo todas as
semanas, entregar massas caseiras que
sua família preparava. Com pai inglês,
mãe brasileira e avós italianos, a menina
crescera trilíngue.
A pensão, nas primeiras décadas do
século XX, não era frequentada apenas
pelos hóspedes; nos fins de semana,
famílias inglesas ou ligadas à SPR
apareciam para o chá da tarde, e o lugar
fervilhava com as conversas dos
trabalhadores e pró-sindicalistas da
Lapa.
Num desses dias, a pequena Mary
conheceu um amigo de seu pai, Dr.
Wilson. Era um senhor idoso que usava
uma bengala encastoada de prata.
Encantou-se com a menina e lhe contava
histórias, nos fins de semana em que a
família visitava os Lauriston. Contos de
fadas e elfos, seres mágicos das colinas
da Escócia e das charnecas do
Yorkshire. Dizia que ela o lembrava de
Constance, uma moça que tinha amado.
Esteve presente quando Mary
comemorou dez anos com um bolo
preparado pela Sra. Lauriston, esposa
do dono da pensão. Presenteou-a com
um caderno e lhe ensinou a arte de
manter um journal, um diário,
registrando seu dia-a-dia. Naturalmente,
as primeiras coisas que a garota
registrou foram as histórias contadas
pelo amigo. Talvez por isso ela
recordasse bem as ocasiões em que não
ouviu histórias...
Em um domingo de agosto de 1930,
Mary escreveu no diário que naquele dia
seu pai discutiu com outros cavalheiros
ingleses na pensão, sobre assuntos que
ela não conseguia compreender; e
mencionou que Dr. Wilson estava triste e
abatido num canto. Nem reparara nela, e
a garota tivera de se distrair folheando o
álbum de artigos de jornal que a Sra.
Lauriston costumava recortar e lhe
mostrar. Naquele dia, em particular, não
havia receitas ou poemas no álbum,
como de costume: apenas a notícia da
morte de um escritor inglês famoso.
Semanas depois, quando seus pais
visitaram a pensão, ela registrou que o
local estava vazio. Dr. Wilson não se
encontrava lá e outros hóspedes que a
menina conhecia também haviam
sumido. A Sra. Lauriston tinha os olhos
vermelhos e falava em sussurros.
A garota perguntara pelo médico.
Responderam-lhe que fora embora, o
que lhe pareceu estranho: a bengala dele
estava caída na sala, junto à poltrona em
que costumava sentar-se. O pai e a mãe
retiraram-se cedo, sem esperar pelo chá.
E muito tempo se passou sem que
visitassem a Lauriston House de novo.
Naquele ano, a menina registrou a
agitação da cidade e as diatribes do pai
sobre as mudanças no governo
brasileiro. Em 1933 as páginas do
journal de Mary foram tomadas pela
descrição emocionante de sua primeira
viagem de navio. O pai deixara o
emprego na S.P. Railway e levara a
família para Londres, onde moraram um
tempo antes de fixar residência nas
Midlands. Ela pôde então conferir as
colinas e charnecas das histórias que
jamais esquecera.
Em 1940, o falecimento de seu pai e a
agitação da guerra na Europa trouxeram
a menina e a mãe de volta ao Brasil.
Não vieram a São Paulo, porém; embora
a família italiana ainda morasse na Vila
Romana, fixaram-se no interior. Pouco
tempo depois sua mãe se casou de novo,
com um fazendeiro. E o journal de Mary
ficou esquecido entre seus pertences,
pois passara a frequentar um colégio
interno onde estudavam filhas de
fazendeiros abastados.
Casou-se jovem, com o filho de uma
família da região; teve filhos, netos e
bisnetos. Acomodada na vida
interiorana, suas vindas a São Paulo se
resumiram a viagens de compras e
estadias em hotéis. Mas jamais
esquecera a infância passada entre a
Vila Romana e a Lapa de Baixo, e
recorrera ao velho diário em busca de
histórias para contar aos netos.
Nos últimos anos, ganhara um
computador do bisneto favorito, e a
idade não a impediu de se habituar aos
meandros da rede. Assim, descobrira
coisas interessantes... inclusive, o
encontro da ossada de uma vítima
misteriosa numa ex-pensão desabada.
– Ele foi um homem bom – ela disse,
levantando-se. – Gostava de viver no
Brasil, longe das coisas perigosas que
viu na Europa. Dr. Humberto insinua que
foi assassinado. Não sei se é verdade,
mas sei que pelo menos terá um túmulo.
E alguém para rezar por ele...
Cumprimentou-nos com a cabeça e
saiu com passo firme. Os gorilas foram
com ela, um adiante e um na retaguarda.
E nós ficamos ali terminando nosso chá.
VIII – Ana Rosa mostra o que pode fazer

Enquanto eu pagava a conta, Ana


conversou com o legista a sós. Não me
deixei tomar pelo ciúme dessa vez. A
morte do professor já me havia feito
sentir suficientemente ridículo.
Começava a anoitecer quando fomos
embora, e minha amiga estava
anormalmente calada, com a ruga que eu
já conhecia no meio da testa. No metrô,
ela disse:
– Vou ter de ir até a DP agora, Fê.
Mas estarei em casa às oito e meia da
noite. Você poderia pedir uma pizza
quando eu estiver para chegar?
– Claro – respondi. – Quatro queijos,
tamanho médio?
– Tamanho grande – ela retrucou, num
sorriso amplo. – Teremos um convidado.
E sumiu na massa de gente que seguia
para o embarque da linha verde. Eu
embarquei em outra linha, intrigado com
aquela história de convidado.
Às 20h25 telefonei para o disque-
pizza e fiz o pedido. Às 20h30 em ponto
ouvi a chave girar na fechadura e vi Ana
Rosa entrar no apartamento. Tinha o
andar leve de quem não tem uma única
preocupação na vida. Avisou que ia
tomar banho.
Às 20h40, o interfone tocou. Eu já
havia separado o dinheiro da pizza e ia
descer para buscá-la, mas Ana correu
para a sala e pegou o interfone. Não era
o entregador.
– Ele pode subir – disse ao porteiro.
Às 20h43 ela abriu a porta e deixou
entrar em nossa sala o sujeito de
sobretudo, que tínhamos visto no enterro
do professor Arthur.
– Boa noite. Espero que o senhor
goste de pizza de quatro queijos. E de
ouvir histórias, pois tenho uma bem
interessante para contar... Sente-se, por
favor.
O homem parecia tão perdido quanto
eu.
– Recebi um recado – começou –,
dizendo para comparecer a este
endereço hoje... e gostaria de saber
como a senhorita obteve meu nome e
telefone.
– O senhor não vai se arrepender por
ter vindo – disse ela, sorrindo. – A
padaria da esquina faz a melhor pizza do
bairro. Aliás, aquela foi a primeira
construção da rua. Sabia que
antigamente esta era chamada a “Rua do
Padeiro”?
Então eu me lembrei de onde o vira.
Era o homem que estivera na casa
desabada, comandando o isolamento do
local. Resolvi me apresentar; mas, mal
abri a boca, ele disse:
– Eu sei quem você é. Só não sei por
que estou aqui.
Ana apareceu com uma garrafa de
vinho e pôs-se a sacar a rolha.
– Porque o senhor é um agente da
Polícia Federal encarregado de casos de
extradição – respondeu, tranquila. – Eu
o vi no dia em que encontramos o corpo,
e me lembrei de tê-lo visto ano passado,
num seminário sobre relações
internacionais. Bastou um acesso à rede
para me certificar. Não é segredo que a
PF está em entendimentos com a polícia
britânica sobre os tratados de extradição
Brasil-Inglaterra. E, no dia seguinte à
morte do professor Arthur, li a notícia
da prisão de um traficante inglês no
bairro de Santa Cecília.
Ele pegou a taça de vinho que ela
oferecia. De repente, parecia estar se
divertindo.
– Entendo. Disse que iria me contar
uma história? Suponho que seja mera
ficção.
– Fair enough, como diriam os
ingleses – ela respondeu, sentando-se. –
Claro, trata-se de ficção. Poderia até
começar com Era uma vez... Vejamos.
Há mais de um século, viveu na Europa
um homem excepcional. Tinha um
talento incomum para a investigação e
fez com que muitos criminosos fossem
apanhados. Desvendou também intrigas
e negociações que a Scotland Yard
preferiria ocultar, e escolheu manter-se
incógnito. Tinha um bom amigo, que o
acompanhou a vida toda e relatou
algumas de suas atividades. Por que
razão eles decidiram publicá-las, com a
ajuda de um escritor, eu não sei. Mas sei
que isso causou agitação entre muita
gente, e que desde então certos grupos,
não chegaria a chamá-los associações,
asseguraram-se de que aquelas
revelações permanecessem na esfera da
ficção. Se, para conseguir isso, tivessem
de recorrer ao crime, não hesitariam.
“Num estranho acidente, durante uma
viagem à Suíça, o investigador morreu.
E seu cronista, ao perceber que a
própria vida era vigiada, resolveu
emigrar para a América do Sul. Por um
tempo viveu em paz, mas manteve
correspondência com o amigo escritor e
acabou sendo descoberto. Estava
escrevendo a ele quando leu nos jornais
a notícia de sua morte. É possível que
naquele momento ele tenha decidido
denunciar o que sabia estar ocorrendo;
mas faleceu logo depois. Assassinado?
Talvez. O casal que o hospedava
provavelmente sofreu ameaças e
colaborou com a ocultação do corpo.
Por alguns anos tudo parecia estar
enterrado, ou emparedado, mas havia
registros do assunto entre imigrantes
ingleses, quem sabe nos arquivos da
companhia britânica estabelecida no
Brasil. Coincidência ou não, na véspera
de a papelada passar às mãos do
governo local, um incêndio destruiu a
estação ferroviária onde ela se
encontrava. E a verdade continuou
oculta. Na Europa havia, porém, pontas
soltas: cartas antigas, diários,
lembranças incômodas que despertaram
o interesse de estudiosos de literatura.
“Na segunda metade do século XX,
certas informações vieram à tona, aos
poucos. Contudo, só seriam divulgadas
com o advento da rede mundial de
computadores. E teriam permanecido
enredadas na meada complexa das
teorias de conspiração e lendas urbanas,
não fosse por algumas pessoas
inoportunas, como meu ex-professor.
Criaturas discretas, como certa senhora
de posses que vive no interior do estado
e tem excelente memória, não
apresentariam problemas. Nem policiais
assoberbados de trabalho nas DPs
paulistanas, mais que felizes em deixar
alguns casos nas mãos da PF. E daí, se o
assassinato de um notório drogado
passasse por suicídio? Bastava saber
que, no dia seguinte, um traficante
internacional de cocaína fora apanhado
pela Polícia Federal e estava em vias de
extradição para a Inglaterra. Restavam,
então, apenas testemunhas acidentais do
caso. Uma estagiária inconveniente e um
futuro bacharel de Direito... Mas, para
alegria das instituições policiais, essas
testemunhas são sensatas o suficiente
para contentar-se em saber qual a
verdade por trás das teorias bizarras. E
para distinguir a realidade da ficção.”
Os segundos de silêncio que se
seguiram foram interrompidos pelo
toque do interfone.
A pizza chegara. Eu ia saindo para ir
buscá-la na portaria, e ouvi o
comentário do sujeito:
– Quatro queijos, a senhorita disse?
Excelente. Nada como corroborar o
clichê de que, neste país, tudo termina
em pizza.

XIX – A Conclusão

Aparentemente nada mudou, depois


daquela noite. Nós dois tivemos, claro,
alguns debates – regados a chocolate
quente – sobre o conceito de justiça e os
prós e contras da discrição quando se
trata com a imprensa e a opinião
pública. Não chegamos a conclusões
fechadas sobre isso, mas concordamos
em manter o assunto apenas entre nós.
No mês seguinte, Ana Rosa foi
efetivada como detetive e transferida a
outra DP. Continuou seguindo fios
emaranhados nas meadas intricadas do
crime. E eu, após uma epifania,
transformei em picadinho o material que
o Estéfano me passara sobre direito
corporativo. Meu trabalho final de
graduação foi dirigido a aspectos do
direito internacional, com ênfase em
tratados de extradição. Tive até ajuda de
um setor da Polícia Federal, que me deu
acesso a cópias de processos bem
interessantes.
O resto é história. Ana Rosa hoje é
uma das policiais mais respeitadas do
estado. Encontramo-nos ocasionalmente,
já que, no momento, trabalho na
superintendência da PF.
Ainda sou apaixonado por ela. Ela
sabe, e finge não saber. Eu finjo que não
sei que ela sabe. E ela finge que não
sabe que... ah, não importa.
Às vezes sonho com aquela
madrugada de chuva, em que estivemos
juntos numa cena de crime tomada pela
cor azul. Vejo os ossos com as manchas
de sulfato de cobre, vejo as paredes
desabadas, vejo vermes e ferros
retorcidos manchados de sangue. Sangue
azul. E ao acordar desses sonhos estou
ofegante, coração disparado, uma ferida
aberta de novo.
O que faço, então? Vou até a estante e
recupero meu precioso The complete
Sherlock Holmes. Pacifico meu coração
mergulhando na ficção. Pois tudo que
está contido nestas quatrocentas e
oitenta páginas não pode passar de
ficção.
Pura, deliciosa, mas inegável ficção.
São Paulo, novembro de 2026.
O punhal adamantino do vazio
~ Lúcio Manfredi

“Omne mortales qui ubique sunt”


– expressão latina

1
DOIS HOMENS À BEIRA do abismo.
Indivíduos com uma inclinação maior
para a metáfora certamente não
deixariam de ver as ressonâncias
ominosas desta cena. Quanto a mim,
prefiro deixar as metáforas aos poetas e
me ater aos fatos, que não poderiam ser
mais simples. Dois homens à beira do
abismo. Não é um confronto de vida ou
morte, porque nenhum de nós dois está
destinado a viver. Há muito sei que seria
esse o final da minha carreira. Talvez
não exatamente aqui, talvez não
exatamente hoje, mas assim, de qualquer
forma. Eu e Moriarty, sozinhos, frente a
frente. Sem seus asseclas fiéis, sem meu
devotado assistente. Dois homens à
beira do abismo.
Moriarty me encara, seus frios olhos
cinzentos tão cientes do fim quanto os
meus. Ele me fala, mas o bramido das
águas encobre as palavras. Pelo
movimento de seus lábios, porém,
percebo que repete o meu nome várias
vezes. Holmes... Holmes... Holmes.
Estará me ameaçando? Estará se
gabando? Faz alguma diferença?
Durante dez anos nos enfrentamos sem
nos confrontar. Duas mentes
privilegiadas, de lados opostos da lei. O
imperador do crime e o investigador
solitário. O homem que viveu para o
poder e o homem que viveu pela
verdade. O líder da matilha e o lobo da
estepe. E é aqui que nossos passos
paralelos finalmente desembocam. Nesta
trilha estreita, a duzentos e cinquenta
metros de altura, onde as Cataratas de
Reichenbach esperam sob o cinzento céu
suíço para nos tragar a ambos.
Meu corpo se retesa. Com um urro
animalesco, Moriarty se atira sobre mim
e agarra-me com seus longos braços.
Cambaleamos juntos à beira do
abismo.

Fui despertado pelo uivo distante de


um cão. Antes mesmo de abrir os olhos,
soube que estava deitado numa cama, e
o odor pungente no ar, uma mistura de
álcool, éter e amoníaco, informou-me
que a cama era um leito de hospital.
Imaginei que alguém, talvez o próprio
Watson ao voltar apressado do
Englischer Hof, tivesse me encontrado
desfalecido e providenciado a
internação em um hospital suíço. Qual
não foi a minha surpresa, portanto,
quando meus olhos depararam com o
cenário familiar da enfermaria do
Charing Cross Hospital. Contudo, logo
em seguida me dei conta de que não
sentia dores pelo corpo, o que seria de
esperar se eu tivesse miraculosamente
sobrevivido a uma queda das Cataratas
de Reichenbach, e a situação tornou-se
clara. Era evidente que eu estivera sob
cuidados médicos por tempo suficiente
para que os ferimentos se curassem e,
como não me lembrava de coisa alguma,
com certeza passara a maior parte desse
período inconsciente, quiçá por efeito
da medicação que me fora administrada.
Em algum momento dessa recuperação,
Watson conseguira que eu fosse
transladado da Suíça de volta para
Londres.
Uma enfermeira gorducha notou que
eu havia despertado e, depois de
perguntar como estava me sentindo, saiu
para chamar o médico. Este veio cerca
de três minutos depois, acompanhado de
um assistente. Era um homem alto, de
cabelos brancos bem aparados, nariz
aquilino e queixo largo. A fronte ampla
evidenciava uma aguda inteligência,
confirmada pelo olhar penetrante, atento
aos detalhes. Apresentou-se como o Dr.
Joseph Bell, e a seu assistente como “o
jovem Arthur Doyle”. O nome me
causou espanto. Não o de Doyle, a quem
nunca vira mais gordo, mas o do Dr.
Joseph Bell que, até onde eu sabia,
lecionava na faculdade de medicina da
Universidade de Edimburgo. Comentei o
fato e ele riu com gosto, evidentemente
satisfeito por descobrir que eu conhecia
sua reputação como professor.
– Isso foi há muito tempo. Senti falta
de clinicar. Por isso, vim para cá. E
ainda convenci um de meus alunos mais
promissores a me acompanhar como
assistente. – Fez uma pausa dramática. –
Preste atenção a esse nome, Sr.
Sigerson. O senhor ainda ouvirá falar
muito no Dr. Arthur Conan Doyle!
O jovem Doyle abaixou a cabeça,
num gesto de humildade. De minha
parte, não era o nome do rapaz que me
interessava, mas o que o Dr. Bell usara
para se referir a mim. Por que Watson
teria me registrado sob um nome falso?
Seria essa preocupação um indício de
que Moriarty também sobrevivera às
cataratas, ou era uma forma de me
proteger contra a fúria vingativa de seus
capangas, especialmente Sebastian
Moran? Só havia uma maneira de
descobrir. Questionei o Dr. Bell sobre
as circunstâncias em que eu fora levado
até ali. Qual havia sido a extensão dos
meus ferimentos? Em que hospital suíço
eu ficara antes de ser transferido para o
Charing Cross, e durante quanto tempo?
O Dr. Bell me encarou como se
tivessem brotado asas do meu nariz. Do
que eu estava falando? Eu não fora
transferido de nenhum hospital suíço.
Havia sido admitido ao Charing Cross
Hospital depois de ter sido encontrado
inconsciente, condição em que
permanecera durante três dias e meio,
sem que nenhum dos exames atinasse
com a causa de tão estranho coma, do
qual acabara de despertar.
Refleti sobre essas informações.
Watson certamente se desdobrara para
ocultar as circunstâncias reais sob um
falso pretexto, o que só ratificava minha
dedução inicial de que corria perigo de
vida, e eu quase pusera o disfarce a
perder com minhas perguntas
imprudentes. Desconversei, alegando
que, durante o sono, tivera um longo e
elaborado sonho no qual me encontrava
na Suíça, e a súbita volta à consciência
me confundira por um momento. Essa
explicação aparentemente convenceu o
Dr. Bell, que comentou ser essa uma
ocorrência relativamente comum em
casos de longos períodos de
inconsciência. Mas urgia falar com
Watson e, assim, solicitei ao médico que
fizesse a gentileza de entrar em contato
com o bom doutor que me trouxera até
ali, para que eu pudesse agradecê-lo
pessoalmente. Foi a vez do jovem Doyle
reagir com perplexidade.
– O senhor foi trazido por uma
mulher, Sr. Sigerson. Sei disso porque
eu mesmo preenchi a ficha de admissão.
Tenho o nome dela anotado aqui –
consultou a ficha, à procura da
informação e, ao encontrá-la, sorriu
satisfeito. – A bondosa criatura à qual o
senhor deve sua vida é a Srta. Irene
Adler.
3

Irene Adler! Um nome do passado,


que só contribuía para tornar o problema
mais complexo. Duas possibilidades se
apresentavam perante o meu espírito. A
primeira era a de que tivesse sido a
Srta. Adler, e não Watson, quem me
encontrara após o confronto com
Moriarty. A outra alternativa era a de
que, sabendo que seu nome seria um
chamariz tão seguro para meus inimigos
quanto o meu próprio, Watson decidira
agir por interposta pessoa e pedira à
Srta. Adler para assumir a frente da
situação. Nenhuma dessas explicações
me parecia satisfatória, e ambas
levantavam mais perguntas do que
respondiam. A tremenda coincidência de
encontrar-se a Srta. Adler nos arredores
de Meiringen na mesma ocasião em que
Moriarty preparava-se para me
emboscar era tão implausível que nem
merecia ser considerada. Se ela estava
lá era porque sabia o que estava prestes
a acontecer, o que eu julgava por demais
inquietante. Por outro lado, por que
Watson pediria a ajuda de Irene Adler,
dentre todas as pessoas do mundo?
Somente uma hipótese que me ocorria, e
estava ligada ao fato de que Irene Adler
era a única mulher que me derrotara.
Watson pode ter pensado que a
inteligência viril da Srta. Adler mostrar-
se-ia um recurso útil contra Moriarty ou
quem quer que estivesse ameaçando a
minha vida.
Essas e outras dúvidas me corroíam
por dentro. Apesar disso, o Dr. Bell
insistiu para que eu passasse mais um
dia inteiro em observação antes de me
dar alta, muito embora eu aparentasse
ter retornado à mais perfeita condição
de saúde. Tamanha era minha
impaciência que, quando pus os pés fora
do hospital, não quis sequer passar em
casa para trocar de roupa. Tomando a
precaução de me afastar algumas
quadras antes de fazer sinal para um
hansom escolhido ao acaso, embarquei
no carro e forneci ao cocheiro o
endereço de Watson em Paddington.
Ninguém atendeu quando chamei à
porta. Aquilo era deveras estranho.
Mesmo que Watson tivesse saído para
visitar um paciente, sua mulher haveria
de estar em casa. Então, lembrei-me de
que, pouco antes de partirmos para a
Suíça, a boa Mary Morstan Watson
demonstrava os primeiros sinais de uma
doença que quase certamente era tísica.
É possível que seu estado piorasse
subitamente, obrigando Watson a largar
todos os seus negócios para conduzir a
esposa a uma casa de repouso. Isso,
inclusive, explicaria por que ele se vira
na contingência de encarregar outra
pessoa de cuidar do meu retorno à
Inglaterra, ainda que não justificasse a
escolha de Irene Adler. Não obstante, a
equação continuava em aberto. Seria de
esperar que Watson deixasse, ao menos,
a criada para tomar conta da casa e,
mais ainda, que lhe confiasse algum
recado para mim, dando conta do que
estava acontecendo.
Sentindo um mau pressentimento,
considerei que o melhor seria entrar na
casa. Tinha certeza de que Watson me
perdoaria a indiscrição, ainda mais
sabendo que eu a cometia em nome do
seu bem-estar. Precisava me certificar
de que não havia nada de podre no reino
da Dinamarca. Abri a porta com uma
gazua que sempre carrego comigo para
esse fim. Parado no umbral, chamei
Watson uma última vez, antes de
concretizar a invasão. Como o silêncio
continuava a ser minha única resposta,
entrei.
Deparei com uma sala vazia, não
apenas de ocupantes como de qualquer
sinal de ocupação. Não havia mobília
alguma, bem como tapetes no chão ou
quadros nas paredes. Apreensivo, visitei
cômodo por cômodo e, por toda parte,
encontrei apenas aquela mesma nudez
desoladora. Dir-se-ia que ninguém
jamais residira naquele endereço ou,
pelo menos, que ele já não era habitado
havia algum tempo. De fato, a poeira se
acumulava no chão e a tinta na parede
mostrava-se rachada em vários pontos.
A impressão geral era de abandono e
decadência, e não fazia o menor sentido.
Mesmo que Watson tivesse sido
obrigado a abandonar a casa às pressas,
por qualquer motivo que fosse, ou ainda
que tivesse sido vítima da sanha
vingativa de meus adversários – e meu
coração estremeceu ao pensar nessa
possibilidade – isso teria se passado há
apenas poucos dias. Nada justificava
tamanha deterioração.
Um fato inexplicável só permanece
inexplicável enquanto não encontramos
uma explicação. É um truísmo, mas um
truísmo no qual podemos confiar. De
momento, o destino de Watson era mais
importante que as lamentáveis condições
de sua habitação. Era evidente que
Watson ou bem fugira ou fora
sequestrado. Em ambos os casos,
encontrava-se em perigo e, em momento
algum, tive motivos para duvidar de que
a origem do perigo fosse sua longa e
bem conhecida associação comigo.
Minha única pista era Irene Adler.

Bastou um olhar à expressão com que


Irene Adler me recebeu para saber que
jamais daria, por vontade própria, as
informações que eu esperava obter dela.
A Srta. Adler claramente tinha um bom
motivo para manter sua boca fechada, e
o motivo era o punhal atravessado em
sua garganta.
Desde que o caro Watson publicou
Um escândalo na Boêmia, especulou-se
bastante sobre a natureza de minhas
relações com a Srta. Adler. Mexericos
desse calibre umas poucas vezes me
irritavam, outras tantas me divertiam
mas, no mais das vezes, passavam-me
despercebidos. Que o tolo espírito
romântico da época fantasiasse à
vontade, pouco se me dava. A
admiração que sentia pela extraordinária
inteligência de Irene Adler – que, como
já tive ocasião de mencionar, pensava
com a desenvoltura e a profundidade de
um homem – jamais se converteu em
qualquer tipo de arrebatamento e, na
verdade, não tornei a encontrá-la desde
que se me escapara pelos dedos da mão,
por assim dizer. E, contudo, ver seu
corpo coberto de sangue no sofá da sala
de Briony Lodge provocou em mim uma
sensação muito próxima à de um nó na
garganta.
Briony Lodge foi um tiro no escuro.
Eu não tinha qualquer motivo para supor
que a encontraria ali. Afinal, a Srta.
Irene Adler deixara a residência logo
depois de se tornar a Sra. Irene Norton,
até onde eu sei para nunca mais voltar.
Entretanto, como ela tornara a usar o
nome de solteira, inferi que tivesse se
divorciado do Sr. Norton. Havia uma
chance de que, ao fazer isso, ela também
decidisse regressar à sua antiga casa e,
como não tinha nenhum palpite melhor,
decidi arriscar. E, com efeito, ali estava
ela, embora não exatamente nas
condições em que esperava encontrá-la.
Desta vez, não me foi preciso usar a
gazua para entrar. Andava apressado
pela Av. Serpentine, os passos tornados
leves pelo coração pesado, inquieto com
o que pudesse ter acontecido a meu
amigo, quando avistei as luzes acesas do
pequeno, mas elegante sobrado. Se não
chegava a ser uma confirmação de que a
Srta. Adler estava de volta, ao menos
fortalecia a hipótese. A porta da rua
escancarada, porém, adicionava uma
nota de inquietante estranheza, que me
fez apertar o passo. A pouco menos de
dois metros, ouvi um grito agudo,
lancinante. Desatei a correr. Ninguém
saiu pela porta ou pelas amplas janelas.
No entanto, ao entrar, encontrei apenas
Irene Adler. Sozinha e morta, na sala de
estar.
Não havia nada que pudesse fazer por
ela no momento, de modo que passei
pelo corpo e corri para o quintal dos
fundos, na esperança de que o assassino
tivesse fugido por ali. O quintal
encontrava-se imerso nas sombras, mas
não se via vivalma, nem no terreno, nem
nas ruas adjacentes. Se o criminoso
tomara aquela rota, devia ser uma
pessoa muito ágil. Voltei ao interior da
casa e revistei seus aposentos. Não
encontrei ninguém. Não havia sinais de
luta. O nicho oculto sob um painel
deslizante da parede, onde outrora a
Srta. Adler guardara a fotografia do
príncipe da Boêmia, estava vazio.
Impossível dizer se algo fora roubado
dali. Terminado o exame da casa, que
não me trouxe qualquer pista relevante,
ajoelhei-me junto ao cadáver.
A Srta. Adler continuava sentada no
sofá, numa pose casual, o braço direito
ainda estendido para o lado, apoiado
sobre o encosto, a cabeça caída para
trás. Quase se poderia pensar que ela
adormecera durante uma conversa
particularmente entediante, não fossem o
punhal, a poça de sangue que lhe
escorria da garganta, empapando o
vestido, e a expressão de horror que
distorcia seu belo rosto. Tudo indicava
que ela fora surpreendida pela morte e
mal tivera tempo para reagir. Mas como
poderia ser isso, se o punhal fora
cravado pela frente? Era impossível que
a Srta. Adler não tivesse visto o
agressor se aproximar com a arma na
mão, ainda mais uma tão grande e
ricamente ornamentada como aquela.
Era um punhal de lâmina tripla, com a
guarda em forma de lótus estilizado. A
empunhadura reproduzia uma cabeça de
feições animalescas com uma expressão
raivosa, os olhos esbugalhados, a boca
arreganhada num ríctus, exibindo uma
fileira de dentes pontiagudos. Eu já vira
uma arma semelhante, ainda que não
idêntica, uma única vez. Tratava-se de
um souvenir trazido do Oriente por um
velho amigo, um coronel inglês que fora
um dos poucos ocidentais a atravessar
as fronteiras fechadas do Tibet. De
acordo com ele, o punhal era um
phurba, uma arma ritual associada às
divindades que, de acordo com as
crenças locais, acossavam o espírito do
morto no além, e cujas feições a
empunhadura buscava reproduzir. De
fato, se o coronel entendeu direito o que
seu intérprete explicou, acreditava-se
que o punhal era, ele mesmo, uma
manifestação da divindade iracunda. Seu
significado simbólico ficava evidente no
epíteto que os tibetanos lhe davam, o
“Punhal Adamantino do Vazio”. Era
empregado em rituais funerários e
exorcismos.
Jamais se soube que fosse usado para
assassinar alguém.

Já era noite alta quando cheguei ao


221B da Rua Baker. A morte de Irene
Adler não só acrescentara novos
complicadores, como me colocava
diante de um beco sem saída. Eu agora
tinha certeza de que Watson estava
fugindo ou caíra nas mãos de pessoas
que não hesitariam em acabar com a sua
vida e, no entanto, encontrava-me de pés
e mãos atados. Precisava refletir,
repassar a cadeia de eventos, atrás de
algum detalhe que tivesse me escapado.
E, claro, sempre havia a possibilidade
de que Watson tivesse deixado uma
mensagem no apartamento que
dividíramos durante tanto tempo.
Estava ansioso para tomar um banho
e, atendidas as necessidades do corpo,
deixar a mente livre para encontrar seu
caminho em meio ao emaranhado de
fatos. Mas, por algum motivo, minha
chave recusava-se a entrar na fechadura.
Até onde me era dado perceber, a
fechadura não havia sido trocada e eu
estava com a chave certa, mas os dois
objetos se recusavam a entrar num
acordo. Sem tempo ou paciência a
desperdiçar, retirei do bolso a gazua.
Foi assim, com o gancho na mão e
inclinado sobre a porta, que a Sra.
Hudson me surpreendeu.
– Quem é você? – rugiu minha
senhoria de muitos anos. – Por que está
tentando arrombar o apartamento do Sr.
Holmes?
– Sra. Hudson – obtemperei –, não
está me reconhecendo?
– Por que deveria? – rosnou ela. –
Nunca o vi em toda a minha vida!
A idade deveria estar afetando a
acuidade visual da Sra. Hudson. Mesmo
à noite, a iluminação das lâmpadas seria
mais do que suficiente para ela ver
minhas feições com clareza.
– Sou eu – disse-lhe, num tom
tranquilizador –, Sherlock Holmes.
A Sra. Hudson deu uma gargalhada
sarcástica.
– O senhor deve ser louco se acha
que eu seria capaz de confundi-lo com
meu inquilino! E, de mais a mais, Sr.
Holmes já se recolheu a seus aposentos.
Senti uma curiosa torção na boca do
estômago.
– A senhora está me dizendo que há
alguém no meu apartamento?
– Não! Estou dizendo que há alguém
no apartamento do Sr. Holmes, e esse
alguém é Sr. Holmes!
– A senhora tem certeza?
– Eu mesma lhe dei boa noite há
coisa de vinte minutos. Agora saia, antes
que eu chame a polícia!
Achei melhor não insistir. Não queria
envolver a polícia antes de explorar, por
mim mesmo, a nova pista, que me
levaria certamente a descobrir o
assassino de Irene Adler e
provavelmente o paradeiro de Watson.
Resmungando uma desculpa qualquer,
virei as costas e fui saindo. Podia sentir
o olhar desconfiado da Sra. Hudson em
minha nuca.
Como não queria que nem ela, nem o
impostor que se fazia passar por mim
pudessem observar meu destino, entrei
por uma ruela estreita, do lado oposto
da Rua Baker e, depois de dobrar à
direita, vi-me diante da porta dos fundos
de Camden House. Eu sabia que a casa
estava desocupada há anos e, como se
situava bem diante do 221B, fornecia-
me um ponto de observação discreto e
mais do que adequado.
Abri a porta com a gazua e atravessei
os cômodos que só as trevas densas
habitavam, até chegar a uma sala de cuja
janela tinha-se uma vista perfeita do meu
apartamento. As peças recentes do
quebra-cabeça rodopiavam inquietas em
meu cérebro. Que um impostor fosse
suficientemente hábil para se passar por
mim e enganar a Sra. Hudson estava
dentro da esfera de possibilidades. Mas
que ela me tomasse por outra pessoa, eis
algo que me intrigava sobremaneira.
Teria a queda nas Cataratas de
Reichenbach desfigurado o meu rosto a
tal ponto? Ou, antes de me levar ao
Charing Cross Hospital, Irene Adler
tinha conseguido, de alguma forma,
disfarçar as minhas feições para que os
homens de Moriarty não pudessem me
identificar? Foi com certa ansiedade que
examinei o meu reflexo no vidro da
janela. Foi com certa decepção que
encontrei apenas a mesma face que me
olhava do espelho todas as manhãs.
Nada, naquele rosto, me ajudava a
decifrar esse enigma.
Da imagem, meu olhar derivou para a
janela tão conhecida. A persiana estava
aberta e uma luz forte ardia na sala.
Depois das palavras da Sra. Hudson,
não foi propriamente uma surpresa
perceber que havia um homem sentado
na minha poltrona, de perfil para a
janela. A cabeça aprumada, os ombros
quadrados, os traços bem definidos
eram inconfundíveis.
Eu estava olhando para mim mesmo.
6

Fosse quem fosse o outro Holmes, o


sujeito era bom. Os mínimos detalhes na
postura, na maneira como segurava o
cachimbo, na leve inclinação da cabeça,
tudo na simulação era perfeito. Era-me
impossível não ficar fascinado, mesmo
sabendo que tamanho perfeccionismo
deveria dar, antes, ensejo ao alarme do
que à admiração. Da mesma forma, não
atinava com o motivo. Por que alguém
se daria a tanto trabalho para colocar um
farsante em meu lugar? E de que modo
esse farsante se conectava com o
desaparecimento de Watson e o
assassinato de Irene Adler?
Uma débil luminosidade coruscou do
meu lado esquerdo, desviando-me a
atenção. Olhei na direção do brilho.
Uma mariposa com as asas
fosforescentes adejava junto ao canto
onde a parede e o teto se encontravam.
O formato das asas era semelhante ao da
mariposa Vandeleur, descoberta por
Rodger Baskerville nos tempos em que
posava de naturalista. Dois detalhes
contrariavam essa identificação. O
primeiro era a sobredita fosforescência,
uma característica absolutamente inédita
nessa raça de mariposas. O segundo era
o formato do corpo que, àquela distância
e semioculto nas sombras, pouco se
assemelhava ao de um inseto. Por uma
ilusão das mais curiosas, dava a
impressão de ter algo singularmente
humano e eu acreditava, até mesmo,
entrever um par de pernas balouçando-
se no ar.
Bizarrices entomológicas, entretanto,
estavam longe de ser a minha prioridade
naquela noite. Ao relancear para a
janela do meu apartamento, constatei
que o falso Holmes já não estava em sua
poltrona, que era a minha. Um frêmito de
excitação tomou conta do meu corpo ao
ver seu vulto ganhar a calçada, envolto
num sobretudo, com o indefectível boné
de couro de veado protegendo-lhe a
cabeça. Corri em direção à porta, não
sem antes notar que a estranha mariposa
também se havia ido. Naquele momento,
isso pouco se me dava.
A caçada ia começar.

Eu o seguia a uma distância segura,


não tão longe que corresse o risco de
perdê-lo de vista ao dobrar uma
esquina, nem tão perto que pudesse
alertá-lo. Àquela hora da noite, a Rua
Baker estava praticamente vazia, exceto
por um ocasional hackney ou coche de
passagem. Eu tinha uma visão bastante
clara e desimpedida de suas costas, tão
semelhantes às minhas, avançando num
passo firme. O reverso da medalha era
que, caso olhasse por sobre o ombro,
ele também me avistaria com a mesma
nitidez. Mas o falso Holmes não olhou
por sobre o ombro. Pelo contrário,
seguia determinado, como um homem
que conhece bem seu destino e tem
pressa em atingi-lo.
Ao longe, ouvia-se o uivo contínuo de
um cão enamorado da Lua. Era tão
parecido com o som que me despertara
na véspera que se poderia supor tratar-
se do mesmo animal. O que,
naturalmente, seria bastante improvável.
Subimos a Rua Baker Superior, minha
presa e seu caçador. Muito antes de
chegarmos a St. John´s Wood, eu já tinha
certeza quanto ao local aonde nos
dirigíamos. Quando o impostor entrou na
Av. Serpentine, vi que não me enganava.
Era a prova incontestável de que a morte
de Irene Adler e a impostura do falso
Holmes constituíam partes de um mesmo
complô contra mim. Só não me era dado
compreender o que o levava, talvez de
volta, à cena do crime.
Discretamente, aproximei-me da
janela de Briony Lodge e espiei seu
interior. Não vi sinal do homem que
acabara de adentrar. O corpo da Srta.
Adler e o punhal tibetano também não
estavam mais à vista. Amaldiçoei-me
interiormente por não ter comunicado o
assassinato à Scotland Yard. Mas eu
queria chegar ao fundo do mistério antes
de envolver a incompetência burocrática
da polícia. O resultado é que agora, com
as evidências do crime removidas, eu
era o único em condições de chegar ao
fundo do mistério.
Os uivos do cão davam a impressão
de estar mais próximos. Entrei na casa,
com cuidado para não alertar minha
presa. Não ouvi qualquer sinal de sua
presença no andar de cima, de modo que
presumi que ele tivesse se encaminhado
para o quintal. A hipótese mais provável
era de que a vítima e a arma tivessem
sido levadas para os fundos da casa a
fim de serem enterradas, e de que ele
viera, quer se encarregar do serviço,
quer verificar se a tarefa fora executada
a contento. Portanto, foi para lá que me
dirigi, sempre movendo-me de modo
sorrateiro.
Continuava não vendo o outro
Holmes, mas a porta dos fundos
encontrava-se escancarada, o que
contava a favor da minha interpretação
dos fatos. O que não contava a favor da
minha interpretação dos fatos, porém,
foi o que aconteceu quando cruzei o
umbral da porta e, em vez do quintal de
Briony Lodge, eu me vi nas charnecas de
Dartmoor.
Um caminho estreito de grama seguia
sinuoso pela charneca. À minha direita,
erguia-se um morro abrupto e salpicado
de penedos, cuja encosta formava um
penhasco escuro, com samambaias e
silvas crescendo nos seus nichos. Todos
os vestígios da Inglaterra moderna
haviam como que desaparecido. Em seu
lugar, eu podia contemplar as ruínas do
que pareciam ser as casas e sepulturas
dos homens pré-históricos que outrora
ali teriam vivido, os imensos monólitos
que assinalavam seus templos. A única
ligação com o cenário contemporâneo
do qual eu acabara de emergir era o
uivo do cão, que continuava soando com
um volume crescente.
Antes que eu tivesse tempo de me
refazer do espanto, o dono do uivo
surgiu à minha frente. Era um animal
enorme, negro, envolto numa aura de
chamas. De suas presas arreganhadas, a
saliva gotejava em cascata, respingando
o solo lamacento sob suas patas
dianteiras. Os olhos dardejavam faíscas
de uma ferocidade preternatural. A
expressão das faces assemelhava-se
tanto à do ídolo esculpido na
empunhadura do phurba que um poderia
ter sido o modelo do outro.
Não era o cão dos Baskerville, por
certo, uma vez que aquele, eu mesmo o
abatera a tiros. Mas inquestionavelmente
saíra da mesma lavra e, junto com a
mariposa Vandeleur, apontava para um
novo candidato ao papel de mente
criminosa por detrás dos
acontecimentos. Eu não sabia como
Rodger Baskerville fizera para criar a
ilusão de me transportar à charneca, mas
o canzarrão pintado com tinta
fosforescente era um truque conhecido,
que não me mistificara da primeira vez e
não me mistificaria agora. Movendo a
mão lentamente para não atiçar a fera,
tirei a arma do bolso, fiz a mira com
cuidado entre os olhos do cão e apertei
o gatilho. Continuei apertando até
esvaziar o tambor. O sangue não jorrou,
o animal não caiu, seus olhos nem
piscaram.
Com um rosnado trovejante, que mais
parecia o ruído de muitas águas, o cão
demoníaco saltou sobre mim. Caímos os
dois embolados no chão, sua carantonha
sobre a minha enquanto os dentes
aguçados buscavam o meu pescoço. Eu
tentava mantê-los à distância,
empurrando seu focinho com ambos os
braços, mas a força do animal não
tardaria em sobrepujar a minha. Sua
baba gelada escorria pelo meu rosto,
encharcando-me o peito. Senti os
músculos começando a ceder, o hálito
frio da criatura cada vez mais próximo,
tornando quase impossível respirar.
– Aqui, Sr. Holmes! – gritou uma voz
conhecida a meu lado. – Pegue!
Alguém enfiou um objeto pontiagudo
na minha mão direita, o pescoço do cão
pressionando meu antebraço. Pelo tato,
identifiquei o punhal tibetano, mas não
tinha tempo a perder com conjecturas.
Com um movimento rápido,
desvencilhei o braço e cravei a lâmina
em sua carne escura. Em vez de sangue,
um líquido inodoro e incolor jorrou
sobre mim, ao mesmo tempo em que a
hedionda besta como que se dissolvia no
ar com um ganido de dor.
O Dr. James Mortimer estava sentado
ao meu lado, sobre uma pedra.
– Atavismos! – exclamou. – Sempre
aparecem nas horas mais impróprias...

8
Fui despertado pelo uivo dolorido do
cão se desvanecendo à distância. Antes
mesmo de abrir os olhos, o odor
pungente no ar, uma mistura de álcool,
éter e amoníaco, informou-me que eu
estava de volta ao hospital. O Dr.
Mortimer continuava sentado ao meu
lado, mas agora em uma cadeira. Olhei-
o, surpreso. Havia coisas demais fora de
contexto e minha mente continuava
enevoada mas, aos poucos, fui
elaborando uma hipótese que dava
sentido à maior parte dos fatos.
Apesar de todos os meus esforços, o
falso Holmes percebera que estava
sendo seguido e me armara uma
emboscada. Assim que pus os pés na
casa, ele deve ter me atacado com uma
seringa e injetado uma substância
alucinógena em meu sangue. Alguém me
encontrara vagando a esmo, mergulhado
no delírio, e me trouxera para o hospital.
Uma explicação simples, elegante, que
só não explicava a presença do Dr.
Mortimer ao meu lado.
– Você teve sorte, meu bom homem! –
disse o médico, num tom jovial. – Se eu
não o tivesse visto quando estava a
caminho da residência de um amigo, por
estas alturas estaria sob as rodas de um
coche.
“Meu bom homem”, repeti
mentalmente. Então, ele também não me
reconhecera. Não ousei perguntar quem
era o amigo que ele estava indo visitar.
Mas pelo menos, seu relato ia ao
encontro de minhas suposições. Por
outro lado, a aparição providencial do
Dr. Mortimer no momento mesmo em
que eu deparava com indícios de que
Rodger Baskerville não só sobrevivera
ao nosso confronto, como arquitetara um
complexo plano de vingança contra mim,
não podia ser coincidência.
– Por um acaso – sondei – a visita
que você estava a caminho de fazer tem
alguma relação com o retorno de Rodger
Baskerville?
O Dr. Mortimer arregalou dois olhos
espantados.
– Não sei de onde o cavalheiro tirou
essa ideia, nem como ouviu falar da
falecida ovelha negra dos Baskerville –
respondeu – mas asseguro-lhe que não.
Eu estava indo ver um grande amigo
que, infelizmente, está às portas da
morte.
E, embora eu não seja dado a
metáforas, suas palavras seguintes
cravaram um punhal certeiro em meu
peito:
– Certamente já ouviu falar dele. O
famoso detetive, Sr. Sherlock Holmes.
Era demais para mim. Levantei-me da
cama, disposto a esclarecer de vez
aquele mistério.
– Onde você vai? – protestou o Dr.
Mortimer. – Ainda não se recuperou da
carraspana!
– Fique certo de uma coisa, Dr. James
Mortimer – retruquei, frio. – Meus
problemas não têm nada a ver com o
flagelo do álcool.
E saí, antes que ele pudesse dizer
mais alguma coisa.
Tratei de voltar à casa de Irene Adler.
Fora lá que eu perdera a pista do falso
Holmes. Esperava retomá-la ou, ao
menos, encontrar evidências para a
teoria de que eu tinha sido drogado. O
que eu não esperava encontrar, contudo,
era o corpo de Irene Adler de volta ao
seu lugar e pose habituais, ainda com o
phurba enterrado na garganta.
Aproximei-me da falecida Srta. Adler,
tomado por uma espécie mórbida de
fascinação. A pose fora reconstituída
nos mínimos detalhes. Por que o
assassino dar-se-ia a esse trabalho? Isto
é, partindo-se do princípio, ainda por
demonstrar, de que o autor daquele
quadro vivo e o autor do assassinato
fossem a mesma pessoa. Tudo o que eu
conseguia pensar era que se tratava de
alguma elaborada armadilha e, nesse
caso, a arapuca só poderia ter sido
armada para capturar uma pessoa – este
seu criado.
– Não se mova! – gritou Gregson,
irrompendo pela porta da frente.
Não querendo ficar atrás, Lestrade
entrou logo a seguir, bradando:
– O senhor está preso!

Hipnose coletiva. Era a única


sugestão plausível. A droga que o falso
Holmes me injetara explicava as minhas
alucinações, mas não o fato de ninguém
ser capaz de me reconhecer. Porém, se
todos os meus conhecidos tivessem sido
hipnotizados, sua reação passava a fazer
sentido. Sabe-se que os faquires da
Índia dominam essa técnica, e é possível
que Sebastian Moran a tenha aprendido
durante suas andanças pelo Oriente.
Contudo, isso tornava a desviar minhas
suspeitas para sua direção inicial,
Moriarty, afastando-as de Rodger
Baskerville. A menos que Baskerville e
Moriarty juntassem forças. Seria
possível que todos os meus inimigos
tivessem sido arregimentados numa
perversa conspiração para me destruir?
Tais eram os sombrios pensamentos
que passavam pela minha cabeça a
caminho da Scotland Yard, sentado na
viatura entre Gregson e Lestrade,
mergulhado num mutismo mórbido.
Lestrade, contudo, era incapaz de ficar
calado muito tempo e logo começou a se
gabar.
– Sabíamos que, se usássemos o
cadáver como isca, o assassino não
tardaria a se mostrar! Engenhoso, não
acha?
Não me dei ao trabalho de responder.
– Aprendemos com o melhor –
acrescentou Gregson. – Sherlock
Holmes, que Deus guarde sua alma!
Aquilo não estava certo. Gregson e
Lestrade jamais me atribuiriam um
crédito, quando podiam guardar os
méritos para si. O comportamento
peculiar era uma prova adicional de que
suas faculdades haviam sido alteradas, e
a hipnose, cada vez mais, parecia-me a
opção mais indicada.
– Sou Sherlock Holmes – disse, já
sabendo de antemão a inutilidade das
palavras.
Como eu previra, os dois policiais
limitaram-se a trocar um sorriso mofino.
– Se pretende personificar alguém,
deveria se informar melhor, meu amigo.
– Não leu o relato do Dr. John
Watson?
– Sherlock Holmes morreu meses
atrás, numa queda nas Cataratas
Reichenbach!
Não adiantava insistir. O conclave
que se erguera contra mim conseguira
convencer o mundo da minha morte e,
até desmascarar meu diabólico
adversário, ou adversários, ninguém
estaria em condições de reconhecer
minha identidade.
Depois de um interrogatório que deve
ter sido frustrante para os dois policiais,
e que tampouco a mim foi de grande
valia, conduziram-me a uma cela
apertada e escura, onde ficaria
confinado até que meu destino se
decidisse em instâncias superiores.
Durante três dias e meio, nenhuma
novidade se produziu. Eu era alimentado
em horários regulares, mas a comida que
me serviam era sensaborona e pouco
fazia para saciar uma fome que não era
de alimento. Ocasionalmente, Gregson e
Lestrade revezavam-se na tentativa de
arrancar de mim alguma informação,
mas como eu não tinha nenhuma que lhes
agradasse, iam-se embora, esbravejando
promessas ameaçadoras.
E então, no final do quarto dia,
Watson veio me visitar.
A princípio, ele me olhou com a
mesma expressão neutra de todos os
outros, e ver os olhos vazios de
reconhecimento no rosto da pessoa que
me era mais cara no mundo terá sido,
talvez, o pior de todos os golpes.
– Gregson disse-me que o senhor
alega ser Sherlock Holmes – declarou,
num tom formal. – Vim lhe pedir, em
nome dos céus, que não faça isso.
Em seguida, aproximou-se da porta
da cela, de modo a que suas palavras
seguintes só fossem ouvidas por mim.
– Tenha cuidado, Holmes! –
sussurrou. – Você está em perigo mortal!
10

Fosse um homem mais emotivo e ter-


me-iam saltado lágrimas aos olhos. Meu
bom amigo não fora afetado pela
hipnose coletiva! Estava vivo, estava
bem e sabia quem eu era! Sendo uma
pessoa prática, no entanto, contive a
emoção e preferi questioná-lo sobre o
perigo mortal que ele dizia pairar sobre
mim, e que indubitavelmente tinha
relação com o mistério de sua casa
vazia. Mas Watson cortou minhas
perguntas com um gesto premente:
– Tudo se esclarecerá no seu devido
momento. Agora, não posso falar muito.
Digo-lhe apenas isto: você não está
onde pensa estar e nada é o que parece.
Gregson e Lestrade não são Gregson e
Lestrade, nem Irene Adler é Irene Adler.
– Meu caro Watson, só lhe falta dizer
que eu tampouco sou Sherlock Holmes.
– Não, você é Holmes. Mas eu não
sou Watson.
Fiquei tão perplexo que devo ter
piscado.
– Se você não é Watson, então quem
é?
– Já disse que não posso explicar. É
imprescindível, para sua salvação, que
encontre a resposta por si mesmo.
– Eis a maior prova de que você fala
a verdade quando alega não ser Watson
– comentei, não sem um travo de
amargura. – Watson jamais fala por
enigmas.
Watson, ou quem quer que fosse,
ignorou meu comentário.
– Examine suas lembranças, Holmes.
Elas são a chave.
E, dizendo isso, enfiou a mão no
paletó, de onde tirou um embrulho que
me passou por entre as grades.
– Você também precisará disto.
Examinei seu conteúdo, espantado.
Voltei-me para Watson, em busca de
maiores esclarecimentos, mas ele já não
estava lá. Sopesei o objeto em minhas
mãos, sem atinar com o propósito que
poderia ter para mim.
Era o punhal tibetano.
11

Tudo tem uma explicação. Uma única


explicação, a explicação que se encaixa
aos fatos como a chave no cadeado da
nossa ignorância. Posso não conhecê-la,
posso não dispor de todos os dados, mas
os dados que me escapam não deixam de
existir por causa disso, e a explicação
está lá, oculta, à espera de ser
descoberta por uma mente aguçada o
bastante para persegui-la. Uma mente
como a minha, por exemplo, e digo isso
sem a menor sombra de vaidade, mas
também sem essa lamentável falha de
caráter que se costuma chamar de “falsa
modéstia”. Se há uma pergunta, há uma
resposta. E se há uma resposta, eu posso
descobri-la. Era nisso que eu
acreditava. Era nisso que eu tinha de
acreditar.
O punhal jazia sob o meu travesseiro,
longe das vistas, assim o esperava, de
Gregson, Lestrade ou de qualquer
funcionário da Scotland Yard que
porventura viesse ter comigo. É claro
que, a dar crédito ao Watson/não-
Watson, nenhuma dessas pessoas
trabalhava realmente para a Scotland
Yard e talvez eu nem sequer estivesse na
cadeia. Onde estaria, então? Preso por
Moriarty num calabouço preparado para
simular uma delegacia policial? Num
hospício, que a minha alucinação
interpretava como a sede da Scotland
Yard? De acordo com What’s on, a
solução para o enigma encontrava-se em
minhas lembranças, mas o que isso
quereria dizer? Passei, repassei e tornei
a passar e repassar a sequência de
eventos desde que despertara no
hospital de Charing Cross, sem nenhum
resultado efetivo. O único fato além de
qualquer contestação era o fato de que
nem todos os fatos eram fatos. Mas onde
terminava a realidade e onde começava
o delírio? E quais eram suas causas?
Minha mente estava imersa em trevas
ainda mais densas que as de minha cela,
fosse lá onde fosse. Mas foi na cela, e
não no meu espírito, que afinal fez-se a
luz. E quando digo luz, refiro-me a uma
luminosidade real, concreta, um ponto
luminoso que se acendeu sobre a minha
cabeça como uma daquelas lâmpadas
elétricas que Joseph Swann exibira em
1878 à Sociedade Química de
Newcastle e que começavam a ser
instaladas em alguns lares londrinos.
Minha atenção foi imediatamente atraída
pelo brilho e se deparou com uma velha
conhecida, a criatura que eu vira na casa
vazia e que tomara erroneamente por
uma mariposa Vanderleur com asas
pintadas a tinta fosforescente. Agora que
podia examiná-la com mais vagar,
constatei que não era uma mariposa.
Era uma fada.
As grandes asas desfraldadas e
luminescentes eram as de uma borboleta,
mas seu corpo, gracioso e diminuto, era
inequivocamente humano. Usava um
curto saiote diáfano que deixava
entrever todos os detalhes de uma
anatomia feminina. Parecia-se bastante
com as ilustrações das fadas que se
pode encontrar nos livros infantis, mas
lembrava muito mais as representações
clássicas da deusa Psiquê, cujas
desventuras foram contadas por Lúcio
Apuleio. O detalhe que mais me causava
admiração, contudo, era o rosto.
Fada ou Psiquê, ela tinha o rosto de
Irene Adler.
Puxei da memória o que sabia sobre
as fadas. De acordo com o folclore, elas
eram criaturas bem diferentes, e muito
mais maliciosas, do que a versão
sanitizada que aparecia nos recém-
publicados livros de Andrew Lang.
Paracelso, o famoso alquimista do séc.
XVI, supunha que fossem espíritos
elementais, mas algumas pessoas
acreditavam que as fadas eram a alma
dos mortos, o que talvez explicasse o
rosto de Irene Adler. O mais importante,
para a minha presente situação, porém,
era que as lendas lhes atribuíam poderes
ilusionistas e, em muitos contos, elas
desencaminhavam inocentes camponeses
com visões enganadoras. Eu não estava
disposto a acreditar em fadas mas,
quando se elimina o impossível, o que
sobra, por improvável que pareça, deve
ser a verdade.
– Elemental, meu caro Holmes? –
disse uma voz sarcástica atrás de mim.
Voltei-me, surpreso. O Prof. Moriarty
estava sentado ao meu lado.

12

– O desespero realmente conduz as


pessoas por estranhos atalhos – riu-se
Moriarty. – Quem diria que o grande
Sherlock Holmes, a epítome do
racionalismo, passaria a acreditar em
contos de fadas?
– Como entrou aqui? – vociferei. – E
como sabe o que eu estava pensando?
Moriarty fez um gesto de desdém.
– Ah, por favor! Poupe-me de ter de
brindá-lo com mais um daqueles
enfadonhos truques mentais que você
mesmo gosta de exibir para bestificar os
pobres de espírito. – Fez uma curta
pausa antes de acrescentar: – Quanto à
primeira pergunta, uma questão
formulada a partir de premissas
errôneas não tem de fato uma resposta,
tem?
Encarei-o, a desconfiança se
espalhando por todo o meu corpo.
– Por que você diz isso?
– Não é óbvio? – Moriarty
arreganhou os dentes num sorriso
animalesco. – Porque eu não estou aqui!
Suas últimas palavras terminaram
num rosnado, que prosseguiu enquanto a
mão direita erguia-se até o topo da
ampla testa e tateava à procura de
alguma coisa que logo se revelou ser um
fecho automático contínuo. Moriarty
puxou o fecho para baixo e a pele de seu
rosto se abriu em duas metades, que
tombaram para os lados, expondo uma
carranca de olhos esbugalhados e presas
salientes, que a princípio tomei pelas
fauces do cão de Baskerville, mas que
logo constatei ser algo ainda mais
inacreditável e incomparavelmente mais
terrível. Minha mão tateou sob o
travesseiro, até encontrar a única arma
que eu tinha.
O envoltório carnal de Moriarty caiu
a seus pés como uma trouxa de roupa
suja. Com o punhal tibetano em riste,
preparei-me para enfrentar a divindade
iracunda diante de mim.

13

A sede da Scotland Yard se dissolveu


ao meu redor, feito a cera de uma vela
sob a ação da chama. Eu estava, agora,
em uma planície lisa e cinzenta, que se
estendia a perder de vista sob um céu
negro como saco de crina. O único
elemento do cenário anterior que
persistia, além da horrenda criatura
diante de mim, era a fada com o rosto de
Irene Adler, que voejava ao meu redor,
as asas tilintando num pânico frenético.
Formas estranhas espreitavam no
horizonte, girafas em chamas, árvores
ressequidas de onde pingavam relógios
que se liquefaziam, estruturas ovoides
indefinidas. Mas nada era mais bizarro
do que a Lua, um estranho globo
luminoso que exibia o meu próprio
rosto, de cujas feições pendiam gavetas
entreabertas com puxadores esféricos.
Ela despertava em mim um eco
desconfortável, uma intuição na fímbria
da consciência, que provocava mas
recusava-se a se entregar. Tanto pior
para ela. Assuntos mais urgentes
requisitavam a minha atenção com
premência.
A divindade iracunda era idêntica ao
entalhe no cabo do punhal que eu
segurava em minhas mãos. Teria talvez
três metros de altura e, se não fosse uma
entidade sobrenatural, dificilmente se
compreenderia como coubera no metro e
oitenta de Moriarty. Seu corpo era todo
negro. Ela estava nua e de suas
grotescas partes pudendas gotejava um
filete contínuo de sangue, que se
acumulava a seus pés numa poça escura
e espessa. Seus quatro longos braços
terminavam em garras compridas,
aceradas, que dilacerariam meu pescoço
muito antes que eu tivesse a chance de
lhe apunhalar o corpo. Avançava na
minha direção com um passo regular,
quase tranquilo, que contrastava com sua
expressão distorcida pela ferocidade.
Minha única chance era acertá-lo
antes que se aproximasse mais de mim.
Mirei no terceiro olho, enquistado no
centro da testa. Não havia motivo para
supor que fosse sua parte mais
vulnerável mas, como eu nada sabia
sobre divindades tibetanas, tampouco
havia motivo para supor o contrário. O
phurba cruzou a distância que nos
separava com um zunido agudo e se
enterrou na pupila chamejante. Sem nem
sequer se abalar, o deus ergueu o
primeiro de seus braços esquerdos,
retirou o punhal e o arremessou ao chão,
onde a lâmina ficou se balouçando,
semienterrada na areia cinzenta.
Lembrei-me do Coronel Runciter
dizendo que, de acordo com as crenças
do budismo tibetano, o phurba era uma
manifestação física da própria
divindade, e compreendi a tolice que
fora atacar o deus com o que, no final
das contas, era uma parte dele mesmo.
Em pânico, a borboleta-fada-psiquê
voou até o punhal e pousou sobre o
cabo, sem nunca parar de agitar as asas.
Parecia querer me dizer alguma coisa
que eu não compreendi. Minha atenção
se dividia entre manter uma distância
segura do meu atacante e tentar lembrar
as palavras exatas do Coronel Runciter,
na esperança de encontrar alguma
informação que me ajudasse a
sobreviver.
Muito tempo atrás, o Coronel Glenn
Runciter tinha sido meu cliente, num
caso que aceitei a pedido do meu
irmão. Depois disso, tornei a encontrá-
lo duas ou três vezes, sempre no Clube
Diógenes, quando ia visitar Mycroft.
Foi numa dessas vezes que ele me
mostrou o phurba, uma relíquia que
trouxera consigo após conseguir
penetrar incógnito nas fronteiras do
Tibet que, como todos sabem, é uma
região proibida aos ocidentais.
O deus deu uma patada com seu
segundo braço esquerdo, da qual só
consegui me desviar graças aos reflexos
rápidos. Uma fração de segundo de
atraso teria arrancado a minha cabeça.
Ele balançou a dele, como que perplexo
por eu ter me esquivado, e corrigiu o
rumo, novamente em meu encalço.
“Pensei que os budistas não
acreditassem em deuses”, comentei,
quando Runciter me falou sobre as
divindades iracundas. “E não
acreditam”, ele respondeu, cortando a
ponta de um charuto. “Pelo menos, não
no sentido que os hindus ou os gregos
acreditavam.”
Meus pequenos passos humanos não
eram páreo para as passadas de gigante
do deus. Fui acometido pela sensação de
estar em um pesadelo no qual, por mais
que eu corresse, continuava no mesmo
lugar. Tarde demais, comecei a
compreender que as propriedades
geométricas daquele lugar alucinatório
não eram as mesmas do nosso espaço
quotidiano.
“Você tem de se lembrar, meu caro
Holmes, que poucas religiões pagãs
atingiram o grau de sofisticação
psicológica do budismo.” Runciter
acendeu o charuto e sorveu-o com um
evidente deleite. “Para eles, os deuses
existem, mas não são exatamente
reais.”
O deus me ergueu com seus quatro
braços poderosos, como se não passasse
de uma trouxa de roupa suja. Sua
carantonha me fulminava com o tríplice
olhar, a bocarra escancarada num
abismo ígneo. Impotente, aguardei a
morte que certamente viria, destroçado
pelas garras e dentes da criatura que me
escolhera como presa.
“Para os budistas, os deuses são um
tipo de alucinação, um agregado de
forças atávicas, impressões mentais e
lembranças pessoais que a consciência
experimenta quando se encontra num
estado alterado.” Nuvens cinzentas de
fumaça nimbavam a cabeça de
Runciter, fazendo com que ele mesmo
se assemelhasse às divindades
espectrais que descrevia. “Um desses
estados ocorre quando a pessoa se
encontra suspensa entre a vida e a
morte.”
Em vez de me desmembrar, porém, o
horrendo nume atirou meu corpo longe.
Minhas costas se chocaram contra uma
daquelas exóticas árvores ressequidas
com um golpe que, em outras
circunstâncias, teria me estraçalhado a
espinha. Mas não ali. O relâmpago de
dor que subiu pelas minhas vértebras
misturou-se à euforia da revelação. Eu
agora sabia onde estava e como fazer
para escapar.
Procurei o punhal, que continuava no
mesmo ponto onde se enterrara. Pode ter
sido apenas animismo da minha parte,
mas eu seria capaz de jurar que as asas
da minha pequena Psiquê fosforescente
agora batiam num ritmo mais alegre.
Não era uma fada, muito menos a alma
de Irene Adler. Era uma personificação
da minha própria alma. Como tudo o
mais naquele mundo, uma pseudo-
realidade gerada pela mistura entre
minhas lembranças e forças atávicas
despertadas pela proximidade da morte.
Forças que a minha mente delirante
condensara na figura da divindade
iracunda.
Corri em direção ao punhal, tomando
o cuidado de me manter à distância do
deus. Alucinatórias ou não, suas garras
ainda podiam me fazer em pedaços. Mas
ele não se moveu. Ficou observando
com uma expressão imperscrutável,
enquanto meus dedos agarravam o cabo
do phurba e o arrancavam do chão. Era
a arma certa. O alvo é que estava
errado.
Com um único movimento certeiro,
cravei o punhal no meu peito.

14

– O que o levou a tomar a decisão de


usar o punhal em você mesmo? –
perguntou o minúsculo lama, a pele toda
enrugada confundindo-se com a túnica
cor de açafrão. Estavam na nave do
templo, cercados por mandalas
coloridas e budas dourados, diante dos
quais ardiam minúsculas velas
cintilantes.
– Parecia a coisa certa a fazer –
respondeu Holmes, depois que o
intérprete traduziu as palavras de
Thubten Gyatso. – Se era a minha
consciência que gerava aquela
realidade, interromper a consciência
logicamente deveria dissolver a
alucinação. Não é o que acontece nos
pesadelos?
O décimo-terceiro dalai-lama abriu
um sorriso, que se expandiu à medida
que o intérprete falava.
– E o que aconteceu depois?
– Voltei a mim com as águas da
catarata borrifando meu rosto. Deveria
ter percebido antes, quando senti o
hálito inesperadamente frio do cão na
minha cara. Mas, claro, ainda não
dispunha de todos os elementos.
Thubten Gyatso assentiu. Dispor de
todos os elementos era muito importante.
– Eu estava deitado sobre uma
saliência rochosa que aparou a minha
queda – prosseguiu Holmes. – A força
da cachoeira, porém, não tardaria a me
derrubar. É incrível, mas só posso
concluir que a experiência toda não
durou mais do que uns quantos segundos.
– O tempo não significa nada quando
a consciência se encontra no bardo –
retrucou o Dalai Lama.
– Bardo? – perguntou Holmes, que
pela primeira vez ouvia a expressão.
– O estado suspenso que a
consciência habita quando não está nem
aqui, nem lá.
Holmes ponderou a informação. Fora
atrás desses esclarecimentos que ele
viajara até ali, enfrentando mil
peripécias para driblar a férrea
vigilância que os chineses exerciam
sobre as fronteiras do país. Usava a
identidade de um explorador norueguês
chamado Sigerson, nome que lhe fora
sugerido pela própria experiência de
quase morte que buscava compreender.
– Seja como for – concluiu –, eu
estava de volta ao tempo real, onde cada
segundo contava. Foi com dificuldade
que consegui saltar da saliência para o
paredão rochoso. O menor desvio de
cálculo ter-me-ia precipitado no abismo
que já tragara Moriarty. Mas saltei e,
depois de escalar o paredão, eis-me
aqui.
Thubten Gyatso fez um sinal quase
imperceptível com a mão. Um auxiliar
aproximou-se, depositando diante dele
um incensário já aceso. O lama enfiou a
mão no bolso e retirou dela um punhado
de ervas aromáticas, que despejou sobre
o incensário. Uma nuvem adocicada
ergueu-se entre os dois homens.
– Você teve uma experiência
importante – disse Gyatso, o olhar
perdido nas volutas de fumaça –, mas
não soube enfrentá-la como deveria.
– Como assim? – perguntou Holmes,
sem conseguir evitar uma nota defensiva
na voz.
– Se tivesse deixado sua consciência
se fundir sem temor ao corpo ilusório do
deus, teria se libertado da roda do
karma e atingido o estado de Buda no
Sambhogakaya. Ao fugir dele, contudo,
conseguiu apenas voltar para este
mundo, que não é nem mais nem menos
real do que as alucinações
experimentadas no bardo. – Thubten
Gyatso, o dalai-lama, suspirou,
resignado. – Enfim, sempre resta a
esperança de que você se lembre disso
da próxima vez que estiver morto.
Holmes não disse nada. Acabara de
notar que a fumaça do incensário tinha
uma forma suspeitosamente parecida
com uma carranca de olhos
esbugalhados.
Os cronistas das aventuras
secretas

Natural de Jundiaí (SP) é jornalista


especializado em cobertura de temas
científicos e escritor. Já publicou os
volumes de contos Medo, Mistério e
Morte (1996) e Tempos de Fúria (2005)
e os romances Nômade (2010) e Guerra
Justa (2010). Seus trabalhos de ficção
aparecem em antologias como a
Imaginários v. 1 (2009), revistas e
fanzines no Brasil e no exterior.
é apreciador de diversos gêneros
literários. Seus contos já foram
publicados em sites e na revista
Scarium (edições nº 21, 23 e 25). Foi
premiado no 3º Concurso Literário da
Scarium – Categoria Horror (2006), na
16ª edição do Prêmio Cataratas (2007)
e primeiro lugar na votação do júri no 2º
Prêmio Braulio Tavares (2008). BLOG
galvanizado.wordpress.com

Doutor e mestre em Artes Visuais pela


Escola de Belas Artes - EBA, UFRJ
(2007 e 2002). É professor Adjunto
Nível 1 da Escola de Comunicação -
ECO/UFRJ. Autor do romance A Mão
que Cria (2006) e editor da antologia de
contos Intempol (2000). Lançou seu
primeiro álbum de quadrinhos no
universo Intempol, Para tudo se acabar
na quarta-feira (2011). É co-autor do
livro Imaginário Brasileiro e Zonas
Periféricas (2005), com a professora
doutora Rosza Vel Zoladz, e publicou
artigos em revistas como Arte e Ensaios
e Nossa História.
nasceu em Nova Iguaçu, Baixada
Fluminense, em 1982. Foi ajudante de
marceneiro, de pedreiro, de sorveteiro,
de marmorista, fritou hambúrgueres,
vendeu flores, criou peixes briguentos e
mais um monte de coisas, sempre
carregando os livros debaixo do braço.
Então se cansou dessa vida e foi estudar
História. Desde então se dedica a
escrever, dar aulas, ouvir música e fazer
feliz a moça ingênua que aceitou ser
mãe dos seus filhos. Com um livro
debaixo do braço. Publicou em
coletâneas como Imaginários v. 3
(2010) e lançou o elogiadissimo
romance, O Alienado (2012).
é jornalista especializado em divulgação
científica e escritor de ficção fantástica
com predileção pela Era Vitoriana, da
qual Sherlock Holmes é um grande
representante. Foi um dos autores
brasileiros citados na obra de referência
Steampunk Bible, organizada por Jeff
VanderMeer e S.J. Chambers; é membro
de grupos como The Isadora Klein
Amateur Mendicant Society e
Sociedade Histórica Desterrense;
recebeu a maior condecoração
concedida pelo Conselho Steampunk
nacional: a comenda da Ordem da
Caldeira.
é autor de contos de fantasia, FC e
mistério. Foi jornalista por 15 anos nas
áreas de cultura e tecnologia de veículos
como Jornal do Brasil, O Dia, Conecta,
Manchete e outras revistas mensais e
jornais diários, escrevendo sobre
música, cinema, artes plásticas,
quadrinhos, informática e games.
Traduziu autores como Grant Morrison
(The Invisibles) e China Miéville (Rei
Rato). Mantém desde 1997 o projeto de
música eletrônica Chip Totec. Escreve
no site Hypervoid e edita a revista de
literatura fantástica Hyperpulp.
é autora de Lit. Fantástica, Infantil,
Juvenil. Em 22 anos de carreira
produziu ficção, teatro, roteiros (TV e
quadrinhos), Publicou mais de 100
obras e recebeu os prêmios: Cid. de
Belo Horizonte (1990), Bienal Nestlé de
Literatura (1991), Prêmio Abril de
Jornalismo (1994), Menção Altamente
Recomendável da FNLIJ (1995, 2006) e
foi finalista do Prêmio Jabuti (2008).
Mora em São Paulo com a família, uma
enorme biblioteca e uma coleção de
dragões.
SITE www.segredodaspedras.com.
BLOG rosanariosliterature.blogspot.com
nasceu em São Paulo, em 1970, e vive
no Rio de Janeiro desde 2001. É
escritor e roteirista da TV Globo, com
contos publicados nas antologias
Intempol (2001), Histórias do Olhar
(2002), Como Era Gostosa a Minha
Alienígena (2002), Vinte Voltas ao
Redor do Sol (2005), Dez Contos de
Terror (2009), Galeria do Sobrenatural
(2009) e na coletânea Paradigmas 3
(2009). Em 2010,
publicou seu primeiro romance, Dom
Casmurro e os Discos Voadores.

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