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24/04/2015 Cidade submersa | piauí_103 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais

Edição 103 > _questões hídricas & políticas_II > Abril de 2015

Cidade submersa
A história do balneário argentino que desapareceu tragado pelas águas
por Josefina Licitra

No dia da inundação, Rubén Besagonill se levantou, olhou pela janela e procurou a roupa às pressas.
Eram duas da manhã de 10 de novembro de 1985, um domingo, e o vento sul fazia tremer os vidros
da casa. Foi até o quarto dos pais.

“Estou indo para Epecuén”, disse. “Querem ir comigo?”

Epecuén era uma cidadezinha turística localizada a sudoeste da província de Buenos Aires e a 8
quilômetros de Carhué, onde Besagonill estava. Ele pegou as chaves da caminhonete e abriu a porta
da rua.

“Vamos?”, insistiu. Sua mãe fechou os olhos e fez que não com a cabeça. O pai olhou para a rua – o
vento parecia ter agarrado o povoado pelos cabelos – e em seguida olhou para o filho. “Não”,
respondeu. “Não quero ver isso.”

Besagonill fechou a porta, entrou na caminhonete e em poucos minutos chegou à estrada. Estava

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assustado. Se o vendaval continuasse com aquela força, Epecuén inteira ficaria embaixo d’água. Não
era uma hipótese, mas uma certeza, o desenlace lógico de um desastre anunciado. O lago Epecuén –
que dava nome ao povoado e ficava a poucos metros da primeira linha de casas – vinha enchendo
havia meses, pondo à prova a resistência do talude, uma barreira de contenção com cerca de 5
metros de altura que, como um dique, fora sendo construída ao longo dos anos para proteger o local
de um eventual avanço das águas.

Mas dessa vez o talude suportaria? Epecuén estava dividida. De um lado, os “alarmistas”, que
prenunciavam um fim trágico. Do outro, aqueles que confiavam nas autoridades municipais e
provinciais, todas garantindo que qualquer transbordamento não superaria os 10 centímetros acima
do talude, que Epecuén nunca seria inundada e que a vila continuaria como sempre fora: um dos
principais centros de turismo de saúde da Argentina. Um manancial de águas altamente salinas que
colocava aquela estação de águas terapêuticas à altura das do Mar Morto.

Besagonill estava entre os alarmistas. E tinha suas razões. No dia anterior, sábado, 9 de novembro,
seu cunhado – piloto de fumigação – o levara em seu avião para mostrar Las Encadenadas, o sistema
de seis lagoas escalonadas que não têm saída para o mar, e cuja base é o lago Epecuén. Do alto, o
panorama era assustador: Besagonill vira o transbordamento das lagoas e as águas avançando ladeira
abaixo a uma velocidade impressionante, e entendera que o desastre era uma questão de horas.

Se a barreira cedesse e Epecuén fosse inundada, Besagonill calculou que conseguiria superar o golpe.
Tinha 22 anos, era jovem, nascera em Carhué e fazia apenas dois anos que se mudara para Epecuén,
onde seu pai era dono de um açougue e de um albergue. Mas em Epecuén havia velhos que tinham
passado a vida inteira lá e que perderiam mais do que uma casa: a água arrastaria também as
coordenadas do passado deles. O rapaz pensara nisso naquele sábado, e no domingo tornou a pensar,
a caminho de Epecuén. Naquela madrugada, a estrada – que margeava o lago – havia sido toda ela
bombardeada de pedras arremessadas pelas ondas. De quando em quando, Besagonill parava o carro
e tentava retirá­las, mas só conseguia deslocar as menores. As grandes, incrustadas no cimento
como ovos pré­históricos, davam a medida da força da água: estava fora de controle.

A rigor, a província de Buenos Aires inteira se encontrava paralisada. A região passava por uma das
piores enchentes de sua história, e 4,5 milhões de hectares tinham ficado alagados por uma cheia do
Salado, um rio que recebe afluentes de boa parte da Argentina. Os prejuízos – pela evacuação e
isolamento da população, e pela deterioração global da economia dos distritos atingidos – seriam
depois calculados em 1,5 bilhão de dólares. Naquele contexto, as águas eram um excesso impossível
de absorver e acabaram se acumulando em zonas de maior depressão, como a região em que ficava
Epecuén.

Naquela madrugada, o jovem levou o triplo do tempo para ir a Epecuén. E quando finalmente
conseguiu chegar, viu as pessoas caminhando pelas ruas contra o vento e sob um céu semiencoberto
pelas nuvens da tempestade que os alcançaria no dia seguinte. Alguns homens examinavam o talude:
estava muito fino. Do lado externo era uma pedra sólida, mas sua face interna se compunha de um
material calcário que vinha sendo corroído pelo choque das ondas. À noite, algumas pessoas
circulavam por ali. Umas estavam nas ruas; outras, em suas camas. Idolia e Oscar Bríquez, por
exemplo, donos de outro albergue, dormiam. Limitaram­se a suspender os móveis, sabendo que se o
dique se rompesse amanheceriam – como por fim aconteceu – com meio metro de água dentro de
casa. Mas o talude ainda estava inteiro, e as autoridades asseguraram que não havia riscos. Então os
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Bríquez fecharam os olhos. Como muitos outros.

“Como está o talude?”, perguntou Besagonill ao primeiro morador que encontrou. “Prestes a
estourar”, foi a resposta.

Ele sabia que o cenário era sombrio. Em tempos normais, o fluxo do Sistema de Lagunas
Encadenadas era contido por taludes – estradas vicinais ou rodovias construídas em elevação – que
demarcavam o limite entre uma lagoa alta e outra mais baixa. Mas naquele novembro de 1985, em
plena temporada de chuvas, a água subira tanto que mal se viam as divisões. No dia anterior, ao
sobrevoar a área com o cunhado, o rapaz constatara que o sistema inteiro era uma imensa catarata
que dissolvia os limites entre uma lagoa e outra.

Ainda no avião, Besagonill começou a fazer cálculos. Se o talude cedesse, a água chegaria a 40 metros
de sua casa. Era melhor não correr riscos. Assim que aterrissou, carregou a caminhonete com roupa,
geladeira, televisão. Catou a mulher e a filha de 1 ano e correu para Carhué, onde moravam seus pais,
para buscar refúgio em seu antigo quarto de solteiro.

Quando voltou a Epecuén, o povoado já era outro. No topo do talude, a água bufava e investia contra
as bordas. Postado na avenida principal, Besagonill escrutinou a muralha, de ponta a ponta, até que
se fixou num ponto e franziu a testa. O que era aquele brilho branco? De repente um ponto se
iluminou. Anos mais tarde, ele ainda não saberia precisar se o que viu fora o luar numa rápida brecha
entre as nuvens ou o clarão de um relâmpago. Diria apenas que aquele instante elétrico e lívido
cobriu as águas e lhe permitiu ver, num canto, uma espumarada vigorosa, uma fúria líquida a jorrar
de uma fissura.

“Olha lá! A barragem se rompeu!”, gritou alguém. Era uma voz de mulher: era só disso que ele se
lembrava.

Na outra extremidade de Epecuén, em frente a um lar de idosos, o dique finalmente cedia.

A água estava entrando.

Hoje, pouco se sabe de Epecuén. Situada a 520 quilômetros a sudoeste da cidade de Buenos Aires, a
vila serviu de locação para alguns videoclipes rodados na Argentina, alguns filmes nacionais e
estrangeiros, um famoso vídeo realizado pelo energético Red Bull (com 5,1 milhões de visualizações
no YouTube) e alguns ensaios fotográficos. Mas sempre figurava como um cenário apocalíptico.

Talvez por isso, assim como muita gente, eu também não sabia da existência da vila, ou melhor, de
suas ruínas. Só em março de 2012 encontrei o lugar, por acaso, quando preparava uma reportagem
sobre um arquiteto delirante, que na década de 30 semeara o interior da província de Buenos Aires
de edifícios públicos de porte monumental e futurista. O personagem se chamava Francisco
Salamone. Seguindo seu rastro, cheguei a Carhué e Epecuén: dois povoados onde haveria um Cristo,
uma sede de prefeitura e um matadouro projetados por ele.

O Cristo e a prefeitura ficavam em Carhué, e foi fácil encontrá­los. Mas a ida ao matadouro exigiu
mais alguns minutos de viagem que marcaram a diferença entre um povoado – Carhué – e um
espectro. Villa Epecuén, que passara mais de uma década coberta pelo lago, ressurgia lentamente à
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medida que a água evaporava, mostrando­se como um descomunal território fantasma repleto de
escombros e vestígios de uma vida.

Nunca tinha visto um cenário como aquele. Um lugar tão devastado e tão esquecido pelo mundo.

Mas até meados da década de 80 a cidade não havia sido aquilo. Epecuén fora o maior polo de
turismo termal da província de Buenos Aires e um dos mais importantes do país. Suas águas
mineralizadas – com uma concentração de sal até dez vezes mais alta do que os mares em geral –
eram comparadas às do Mar Morto, e por isso atraíam muitas pessoas em busca de tratamento ou
apenas para flutuar na salinidade daquela massa líquida. Fotos da época mostram enormes piscinas
públicas, castelos suntuosos e milhares de pessoas com expressão feliz, incapazes de imaginar o que
aconteceria.

Em 10 de novembro de 1985 o lago transbordou por razões naturais – excesso de chuvas –, mas
sobretudo por irregularidades numa obra pública, já então amplamente denunciadas: durante a
década de 70, funcionários das ditaduras militares de Juan Carlos Onganía, Roberto Levingston e
Agustín Lanusse compraram, a preço baixo, toda uma faixa de terrenos alagados e decidiram drená­
los – e valorizá­los – com a construção de um canal. A obra, que custou 30 milhões de dólares e foi
financiada com dinheiro público, esgotou os brejos e direcionou as águas, escorando­as, para o
Sistema de Lagunas Encadenadas onde ficava Epecuén. E isso foi o começo do fim.

Uma vez desencadeada a tragédia, as 800 pessoas com residência fixa na vila precisaram abandonar
suas casas, primeiro com a água pelos tornozelos, depois pela cintura, e por fim pelos ombros. Em
quinze dias tudo alagou e ficou submerso, inclusive o cemitério.

Eu deixara Epecuén para trás, mas sua imagem me perseguia: aquelas ruínas brancas pareciam a
mensagem cifrada de algo ainda maior, e mais obscuro. Restaram­me algumas perguntas. Como um
povoado desaparecera em silêncio? Que história ficara escrita em Epecuén?[1]

A primeira vez que conversei com Rubén Besagonill – antigo habitante de Epecuén, hoje o maior
empresário hoteleiro de Carhué, o povoado vizinho, para onde migrou boa parte da população – foi
no lobby de um de seus dois hotéis, um espaço amplo e fresco por onde circulavam idosos de roupão
a caminho das piscinas de águas termais. Ele tem os olhos azuis, o cabelo branco penteado para trás e
o ar de discreta prosperidade, talhada pelo trabalho, dos sitiantes europeus do interior argentino.

Besagonill tem o dom do detalhe: recordava a força do vento, o peso das pedras, as palavras ditas
quando o vendaval apertava. “No sábado, quando abandonei a vila, arranquei as portas, arranquei as
janelas, as privadas”, lembrou. “Quando comecei a retirar os batentes, uma vizinha que tinha um
chalé muito bonitinho se lamentou: ‘Ai, Rubén, não me diga que eu também vou ter de desmontar a
minha casa. Você está louco, não quebra tudo, faz só um murinho.’ Muita gente ainda achava que
bastaria erguer um muro de contenção para a água não entrar. Mas eu sabia o que estava para
acontecer. Se bem que nunca imaginei que o estrago seria tão grande.”

Entre três e sete da manhã de 10 de novembro de 1985, a lagoa cobriu os primeiros 300 metros do
povoado. Dos dois lados do talude, a água já estava no nível do terreno. As pessoas entrincheiradas
na zona atingida foram obrigadas a deixar suas casas imediatamente. Mas as que estavam fora

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acreditavam que a inundação não avançaria e – com o aval do governo, que continuava minimizando
a importância do episódio – ficaram esperando que a água recuasse. Até que, cinco dias depois,
chegou a notícia: as localidades situadas na parte alta do Sistema de Lagunas Encadenadas, em cuja
base ficava Epecuén, estavam sendo alagadas pela cheia do rio Salado e abriram as comportas para
que a água escoasse e seguisse corrente abaixo, até as áreas de maior depressão.

“Senhores, vem vindo uma onda gigante. Epecuén não vai se salvar. Restam 48 horas para a
evacuação total e compulsória da vila”, disse um funcionário, em 15 de novembro.

O que se seguiu foi o caos. A água do lago Epecuén subia e, por causa da corrosão do sal, queimava
tudo à sua passagem. Os moradores perceberam que deviam recolher seus pertences o quanto antes.
Com parte de suas coisas já a salvo em Carhué, Rubén Besagonill pôde medir o avanço da enchente.
Já na segunda­feira, dia 11, fez uma marca no muro de sua casa. Na terça­feira, as águas haviam
ultrapassado 30 centímetros da marca da véspera. Na segunda­feira seguinte, dia 18, a água tomou a
casa. E em 22 de novembro a marca subiu 3 metros acima do nível inicial – quase todas as casas,
inclusive a de Besagonill, ficaram submersas.

Villa Epecuén nasceu como estância turística no início do século XX. Era o reduto de uma classe alta
que, em busca de saúde, podia realizar longas travessias em coches. Num tempo em que a penicilina
ainda não havia sido descoberta, os visitantes creditavam à alta salinidade do lago o milagre da
longevidade. Em poucas décadas o povoado viveu uma explosão comercial. Em 1940, já oferecia 5
mil leitos, edifícios construídos ao gosto da Belle Époque, um hotel com escadarias de mármore e
uma insólita construção medievalesca – o famoso Castelo da Princesa – incrustada em plena planície
bonaerense e habitada por uma francesa de linhagem real.

O luxo, porém, durou pouco. Em 1945, o advento do peronismo, de raiz popular, alterou
sensivelmente a paisagem social de Epecuén. Surgiram hotéis sindicais, acorreram veranistas
assalariados, e alguns moradores históricos reagiram com horror ao novo cenário. A tal princesa,
Ernestina María Leontina Allaire, não chegou a assistir a essa mudança social, pois morreu em 1929.
Mas Helena Horvath, a nova proprietária a partir de 1944, manifestou sua aversão aos “negros de
merda”, como se referia aos recém­chegados.

Hoje, passados quase setenta anos, nada resta daquele edifício suntuoso. Nas ruínas de Epecuén
pode­se ver a placa “Aqui ficava o Castelo da Princesa”, mas atrás dela só há capim seco, árvores
branqueadas pelo sal e escombros. O castelo sobrevive apenas em alguns quadros pendurados nas
paredes de casas particulares. E nas vozes dos antigos habitantes, que falam da construção de um
modo meloso e mágico, como se aquilo fosse – e de certo modo foi mesmo – um rompante de Walt
Disney.

Marta Bonjour, uma mulher de 74 anos pertencente à família mais antiga de Epecuén, é quem guarda
mais recordações dessa mística. O pai e os irmãos executavam reparos no castelo, e a nova
proprietária, Helena Horvath, logo se afeiçoou a ela, à época uma menina.

Ela me esperava ansiosa, à porta de sua casa. Tinha um rosto largo e carnudo, uma boca de dentes
fortes e um corpo que parecia feito de materiais sólidos. Dentro, a sala era decorada com retratos de
casamentos e bebês, alguma natureza­morta e uns jogos de mesa empilhados num pequeno
aparador. Essa casa era a versão melhorada do pouco que o Estado dera a Marta depois da cheia, a
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título de indenização. Em termos patrimoniais, os demais moradores tiveram a mesma sorte:
receberam uma casa pré­fabricada e uma pequena soma, que em tempos de inflação em poucos
meses perdeu seu poder de compra.

Depois de falar do desamparo do Estado e da solidão – os filhos se casaram, ela enviuvou –, Marta
abriu um álbum com fotos antigas, que foi folheando de um modo cadenciado, como se recitasse um
poema. Numa das imagens apareceu o castelo: uma protuberância pétrea com uma menina na
frente, em pé. “Esta aqui sou eu.”

Marta começou a frequentar o castelo aos 4 anos. Com os cabelos loiros, compridos até a cintura, ela
conquistou Horvath, que não podia ter filhos. Começou a ser convidada para tomar lanche, para
brincar com outras crianças, para jantar, para dormir. Assim se passaram os anos: entre mármores,
faianças e talheres de prata que Marta – naquela tarde, em sua casa – evocava sem pausa, como se
desfiasse cenas de um sonho revisitado infinitas vezes.

“Você não tem ideia de como era Epecuén... Vinham mais de 70 mil pessoas por ano, um afluxo
concentrado em dois meses! Tinha uns festivais incríveis. Conheci todos os artistas, todos. Havia
dois campings lindos, e cada hotel enorme, e as águas termais... Tanta gente foi curada pelo lago.
Pessoas que chegaram de cadeira de rodas e voltaram a pé! Desculpa eu chorar, é que me dá tanta
tristeza... Se fosse hoje, você imagina o paraíso que seria Epecuén?”

Marta ficou em silêncio.

“Deixamos a vida lá. Até o castelo foi coberto pela água. Naquele 10 de novembro, o dia da
inundação, eu fazia aniversário. Quarenta e quatro anos. Mas naquele domingo não dei importância
para mais nada.”

Marta Bonjour morava a sete quadras do lago, numa zona relativamente alta. Mesmo assim, depois
que o talude rompeu, com o passar dos dias ela entendeu que também a sua seria uma casa arrasada.
Era preciso recolher tudo o mais rápido possível. O marido sugeriu levar as coisas à estação de trem
para que fossem transportadas em vagões de carga até Carhué, mas Marta, que vira os soldados
jogando as caixas de qualquer jeito dentro dos vagões, se negou a entregar seus objetos pessoais em
mãos tão descuidadas.

“De Epecuén só saio morta”, declarou. E se entrincheirou em casa. No início os soldados tentaram
retirá­la, mas depois desistiram, certos de que o tempo e a água a convenceriam. Passaram­se dez
dias. Durante esse período, Marta e o marido viram o povoado se transformar num lugar
abandonado e brumoso. A área mais baixa, próxima ao lago, já estava desmoronada. Dezenas de
caminhões transportavam pessoas e móveis, e toda Epecuén era uma grande diáspora de veículos
que atolavam na lama da estrada.

Até que um dia apareceu um funcionário da prefeitura. “Vocês não podem imaginar a massa de água
que vem descendo para Epecuén. Saiam assim que der”, disse.

Na noite de 20 de novembro, Marta e o marido partiram com alguns poucos pertences. Voltariam no
dia seguinte com um caminhão da prefeitura para resgatar o que ficara. Marta recorda a despedida.
No dia em que se foram para sempre, sua mascote ficou para trás, na água. Era uma lontra, Juanita.
Durante alguns anos, sempre que rondava a área, Marta via Juanita nadando por sobre o povoado.

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Depois de conversar com Marta, voltei para o hotel. Era a hora da sesta, um momento em que
ninguém estava disponível para entrevistas. Fui matar o tempo na piscina. Situada numa grande
varanda que parecia uma estufa, a piscina tinha águas salinas trazidas de Epecuén, que – como
anunciava um cartaz – serviam para tratar reumatismo, problemas de pele, estresse e doenças
articulares.

O líquido, morno, era sobretudo sólido. Quando a água ainda batia na altura do meu peito, meus pés
mal conseguiam tocar o fundo da piscina. Eu boiava, suspensa. De barriga para cima, como que
recostada, cruzei as mãos sob a cabeça, fechei os olhos e me deixei embalar. Epecuén teria sido isso?
Um útero acolhedor onde era possível descansar sem medo? Como teria ocorrido a traição, quando a
água se despiu da máscara e tragou o povoado?

Nem Epecuén nem Carhué parecem ter superado o trauma daqueles dias. A primeira é uma ruína
urbana que recorda, num loop taciturno, o derradeiro destino do paraíso perdido. E em Carhué – que
dependia do movimento econômico de Epecuén – não houve recuperação financeira nem anímica:
o povoado, quase trinta anos depois do desastre, era e continua sendo a encarnação de uma
depressão interminável.

Resolvi dar uma volta por Carhué. Era um dia de sol claro e cortante. Poucos carros na rua, algumas
motos e uma ou outra bicicleta. Quase ninguém na calçada. Ao lado da avenida Colón, a via principal,
um camping com churrasqueiras vazias desembocava num talude mais alto, onde começava a praia.
Fui até lá em cima e olhei do outro lado. Um deserto. Ao longe, recortavam­se dois guarda­sóis de
palha quase tocando a água.

Ali estava o lago, parecia um mar. Num determinado ponto do chão de areia grossa emergia a figura
de um Cristo na cruz. Tratava­se da escultura de Salamone – o tal arquiteto delirante, motor de
minhas investigações – com terços dependurados que um vento agressivo balançava. Um silvo
agudo, de giz riscando lousa, era o único som que se podia ouvir. Fui até a beira do lago. A água
límpida e de temperatura agradável se agitava em ondas mínimas, inofensivas.

À distância se divisava o cemitério. No trajeto até lá, encrespavam­se árvores altas e brancas, com os
galhos secos escancarados para o céu. Enveredei pelo caminho dos mortos. O lugar, a metros do lago,
tinha alguns túmulos com flores, mas os jazigos e nichos estavam quebrados.

Durante a inundação, o cemitério ficara coberto pela água. No final da década de 90, quando o lago
começou a recuar, afloraram timidamente cruzes, cúpulas e anjinhos de mármore de Carrara. Foi o
bastante para que algumas pessoas entrassem em pânico: diante de tal paisagem funérea, os poucos
turistas que ali aportavam jamais iriam querer se banhar naquelas águas.

Alguém, então, teve uma ideia: e se destruíssem tudo a marretadas, para que o cemitério continuasse
submerso? A proposta, longe de horrorizar a população, gerou um debate que culminou num
plebiscito, em 1997, convocado pelo próprio prefeito na época, Alberto Gutt: “Demolir o cemitério,
sim ou não?” Ganhou a opção sim – a defendida por Gutt –, e a parte mais alta do cemitério foi
triturada.

Naquele momento, ninguém imaginou que a água continuaria a recuar e que tudo voltaria a emergir
numa versão até mais sinistra: aos pedaços. É como agora se vê o cemitério. O lugar está seco – a
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água baixou por completo em 2012 –, mas exibe nichos e jazigos aniquilados a golpes de marretas.

A inundação do cemitério talvez seja o capítulo mais insólito da tragédia de Epecuén: todos os
moradores têm algo a contar sobre o fato. Um deles, Lito Sottovía, é pródigo em detalhes. Fundador
do Corpo de Bombeiros de Carhué, quando a água avançava foi um dos principais responsáveis pela
evacuação da vila.

Em 10 de novembro de 1985, Sottovía chegou a Epecuén com um mapa traçado pela prefeitura, no
qual se podia ver o município dividido por cores. A zona vermelha devia ser evacuada o quanto antes,
a amarela e a azul, nos dias seguintes. Sottovía começou com o trabalho pesado. Ele e seu batalhão de
homens esvaziaram casas e hotéis inteiros, levando todos os objetos até a estação de trem. Os
moradores resgatados nunca vinham sós: traziam plantas, cachorros, galinhas, e assim que saltavam
na lancha abraçavam os bombeiros e choravam, e os bombeiros choravam com eles.

Ao recordar esses dias, Sottovía suspira, enxuga os olhos e esfrega os braços: sua pele está arrepiada.
Na sala de sua casa, Mabel, a esposa, prepara o mate e faz o possível para amenizar as lembranças. O
marido fala, e ela tece comentários inócuos. Às vezes sai da sala e volta com mapas, recortes de
jornais, fotos. A certa altura traz uma caixa cheia de papéis. São revistas que haviam noticiado a
catástrofe.

“Quero mostrar essas fotos porque, quando você contar tudo isso, é capaz que digam ‘é mentira
desses velhos’”, explicou Mabel, apoiando a caixa na mesa. “Espia, esta é a revista Gente. Naquele
momento éramos as celebridades da província. Pouco depois se esqueceram de nós.”

Mabel virava as páginas. Via­se o povoado inundado, surgiam tomadas aéreas registrando a água na
altura dos telhados. De quando em quando despontavam fotos de caixões boiando. Numa delas
aparecia o marido, puxando um deles para terra firme. Ele chegou a se especializar nesse tipo de
remoção. Quando a água invadiu o cemitério e as portas de vidro dos nichos se quebraram, os
ataúdes começaram a boiar. Centenas de mortos ficaram à deriva. Ao saber disso, Sottovía pegou
uma lancha e durante vários dias tentou salvar os corpos. Laçava os caixões, amarrava­os um atrás do
outro e os puxava como vagões de trem pelas águas do lago.

“A gente se referia a eles como ‘flutuantes’. Assim que eu avistava os caixões, de binóculo, saía para
recolher e levar para o seco. Você não sabe como eles correm rapidinho pela água”, disse o bombeiro
aposentado, rindo com certo pudor.
“O problema é que alguns caixões estavam vazando. Quando eu voltava, minha mulher me mandava
tirar a roupa aí”, e apontou para a porta da rua, “e me fazia entrar em casa nu, por causa do cheiro
impregnado no tecido. Era um cheiro que penetrava na gente, como um gosto. Tudo o que a gente
comia tinha o cheiro das coisas.”

Já em terra firme, Sottovía empilhava os caixões numa caçamba puxada por um trator e os levava até
Carhué, para então distribuí­los o melhor possível. Alguns moradores identificavam seus mortos e os
sepultavam nos cemitérios de Pigüé ou de Puan, dois povoados próximos que logo ficaram sem
espaço. Outros não tinham onde enterrá­los: carregavam os caixões para casa e os guardavam na
garagem ou no quintal, até conseguir um lugar melhor. E ainda havia centenas de corpos sem
nenhuma identificação. Como não podiam exumá­los, porque já não tinham onde fazer isso, as
autoridades da prefeitura tomaram uma decisão: descarregaram aqueles corpos no necrotério do
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hospital, deixando­os a metros dos doentes.

Com o passar dos dias, a população de Carhué começou a desconfiar do entra e sai dos bombeiros no
hospital, e sobretudo do cheiro. Até que por fim a verdade veio a público. Estourou um escândalo e a
prefeitura teve que tomar uma atitude urgente: em duas semanas, o município comprou o terreno de
um particular e nele instalou, às pressas, um cemitério com um mausoléu central para os mortos não
identificados.

De início, porém, enquanto não havia essa fossa, tudo era um caos. Os corpos eram jogados de forma
desordenada e a tarefa de resgatar caixões chegou a se tornar quase que um serviço voluntário: quem
podia fazia.

“Você conta essas coisas, e ninguém acredita no que a gente passou”, disse Mabel, enquanto
continuava a me mostrar as fotos. Por suas mãos foram se sucedendo imagens da hecatombe, e
também das ruínas brancas, puros escombros, ressurgidas como fantasmas de sal e ferrugem. “O
mais difícil de acreditar é que tudo isso vai ser reconstruído. Mas pode escrever.”

“Todos estão indo pra lá... Era um lugar tão bonito, parecia um conto de fadas. Se eu tivesse um
terreno, já teria ido”, acrescentou Sottovía, e sorriu.

Muitos sonham em voltar. Mas somente um homem, Alfredo Pardiño, está de fato voltando.
Pardiño passou a vida inteira em Epecuén. Chegou com 2 anos de idade, e sua família participou do
desenvolvimento da vila. Em 1970, quando foi construído um imenso complexo de piscinas de água
doce, seu pai se tornou o zelador de todo aquele espaço. Era uma pequena autoridade. Com seu
salário, os Pardiño puderam ampliar a casa – de início bem modesta – e prepará­la para receber
turistas durante a temporada. Fizeram isso por mais de uma década. Até que veio a inundação e o
negócio, como tudo ali, afundou. Naquele tempo, Alfredo Pardiño já tinha 20 anos e energia
suficiente para desmontar a casa inteira. Tirou portas, janelas, sanitários. Poucos dias depois, viu o
lago invadir a vila e fugiu para Carhué com a família.

Só uma pequena parte de Epecuén não foi atingida. Era a Villa Lolalía, uma faixa de terreno na divisa
do município, perto da estação de trem, a primeira área do local a ser povoada, no início do século
XX. Depois Epecuén cresceu em direção ao lago. Estar mais perto da água era tentador e rentável, e
para lá se estendeu a urbanização, sem que ninguém imaginasse que a distância fosse um capital
valioso. Ao fim e ao cabo, porém, não fez diferença. Como não havia serviços básicos – telefone, luz
– nem onde se abastecer, as pessoas precisaram deixar também a Villa Lolalía. E as casas desabaram
por causa do abandono.

No entanto, os moradores dessa faixa não foram desapropriados nem perderam a titularidade dos
terrenos. Por isso a Villa Lolalía é a única zona de Epecuén que ainda tem proprietários particulares.
Alguns deles, diz Alfredo Pardiño, estão à espera de que algum incauto comece a construir em seus
terrenos para procurá­los depois que a moradia ficar pronta e então cobrar aluguel. Outros, porém,
sonham voltar para o torrão e reerguer o povoado, como fizeram os pioneiros em 1900. Já Pardiño,
titular de um terreno que era da avó, pretende construir uma casa com a ajuda de alguns amigos,
entre eles Carlos Coradini, ex­morador de Epecuén e administrador de uma página no Facebook que
reúne boa parte dos antigos habitantes da vila.

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Numa sexta­feira de julho de 2014, pedi que Coradini e Pardiño me mostrassem o terreno onde a
casa seria erguida. Não só concordaram em me levar, como se dispuseram a me guiar pelas ruínas de
Epecuén. Entramos no carro de Pardiño e partimos. À beira da estrada desfilava um séquito de
árvores calcinadas, construções arruinadas e água. À esquerda, o lago se espraiava imenso, calmo,
orlado por um debrum de sal que se acumulava nas margens qual elemento fóssil, espuma
endurecida pela história.

Desci do carro e recolhi um punhado de sal. Em minhas mãos, vi milhares de cristais pegajosos,
cintilando em meio a um silêncio absoluto, sem vento. Guardei um pouco num bolso e seguimos
viagem por uma costa sem barracas, guarda­sóis, nem casas. Puro horizonte.

“No verão a gente procura lugares como esse para tomar banho”, disse Pardiño. “A pele fica branca e,
se você deixa secar com o sal, depois não sabe como se limpar”, acrescentou o amigo. “Eu sempre
digo que para nós foi fácil aprender a nadar aqui”, completou. “Não tem como afundar.”

O caminho era instável. Ainda estava coalhado de valas e buracos da época da cheia, e era preciso
avançar aos trancos, com muita calma. Até que a certa altura passamos por um cartaz – “Bem­vindos
a Epecuén” – e nos deparamos com a paisagem de sempre. Descemos do carro. O cenário era
assustador. Mas meus companheiros o percorriam sem tristeza, animados.

E os dois se dedicaram a olhar.

Viram a igreja onde o padre – como todos sabiam – rezava a missa com o cálice cheio de Fernet.

Viram a mureta de meio metro que fora erguida ao redor do Hola Qué Tal, um restaurante que
acabou com 4 metros de água acima do telhado.

Viram as ruínas da casa dos Coradini, uma residência que a revista Construcciones havia apontado
como “obra exemplar de sua época”, e da qual só restava em pé uma escadaria de concreto que saía
dos escombros e morria no céu.

Viram os restos do supermercado El Pulpo, do hotel Plage, da pizzaria, dos quiosques, do castelo, da
casa do dr. Gasparri, da padaria de Córsico, da sorveteria que fazia sorvete de mate, da bonbonièrede
onde as crianças roubavam balas, da quadra de bocha com uma lousa onde as pessoas se inscreviam
para jogar.

Viram garrafas, mosaicos, pedaços de cadeiras, cacos de louça: resquícios de vida e de cor que
surgiam devastados sob crostas de sal.

Viram as gaivotas pairando sobre um grupo de flamingos, na única cena bucólica que poderia haver
nesse canto do mundo.

Viram as piscinas: bocas fétidas, miasmas de cheiro espesso, misto de sal e algas, a evocar uma
decomposição obscura, desmedida. Piñado se fixou especialmente nesse ponto – era ali que seu pai
tinha trabalhado – e depois tomou a direção oposta. Coradini o acompanhou. De quando em quando
pisavam em alguma rachadura do pavimento e se via jorrar um filete de água, mas eles nem se davam
conta. Ou não se importavam. Pareciam habitantes dos pampas num filme de mortos­vivos, onde os
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mortos, na verdade, eram as coisas.

Pouco depois, seguimos de carro ladeira acima, até o terreno de Piñado. A viagem foi curta, apenas
alguns minutos. Mas, à medida que avançávamos, a paisagem se enchia de uma estranha vitalidade,
feita de plantas verdes e emaranhadas. Numa curva do caminho, Piñado parou o carro, desceu e
sumiu entre umas árvores. Ouvimos um ruído metálico e um ranger de madeiras: abriu­se um portão
e Piñado acenou para que o seguíssemos a pé.

Do outro lado, o terreno era uma imensa superfície com grama, arbustos, montes de tijolos, árvores
frutíferas, uma caixa­d’água e um tablado no centro. No futuro, ali haveria uma casa.

“Na semana passada falei com um amigo que pediu para a gente lhe dar uma mãozinha. Ele tem um
terreno aqui ao lado, que era do avô, e também quer construir alguma coisa. É provável que eu logo
tenha meu primeiro vizinho”, disse Piñado, olhando para o amigo.

Mas Coradini não o escutava. Tinha o olhar perdido nos recantos do terreno. Ou em qualquer outra
coisa. “É estranho”, disse, voltando a si, “a água nunca chegou aqui em cima. E aí eu me pergunto...”,
dirigiu­se a ao amigo, “por que fomos embora? Quer dizer, por que não ficamos aqui? Por que não
subimos com barracas e pedimos que nos ajudassem a permanecer? As pessoas normalmente não
abandonam sua terra... Tudo bem, éramos jovens, não precisamos nos recriminar... Mas por que
fomos todos embora? O que deu na gente?”

Piñado encolheu os ombros e respondeu uma coisa inaudível. Mas não suspirou. Não chorou. Não
ofereceu nenhum lugar­comum da melancolia. Apenas fitou o assoalho de sua casa. Talvez estivesse
fazendo cálculos. Poucos dias antes ele havia assinado a escritura do terreno. Já tinha a fossa séptica,
o ponto de água, uma bomba, um gerador. E material para erguer as paredes, um banheiro e uma
churrasqueira.

“E depois”, ergueu a cabeça e sorriu, “quero subir. Não é loucura, mas quero fazer pelo menos dois
andares.”

Em volta havia campo, ovelhas, pedras: uma planície como qualquer outra.

“Para que dois...?”, perguntei, e a resposta veio rápida. O futuro morador quer subir para avistar
Epecuén. E quando finalmente chegar lá no alto, quem sabe o que ele verá.

[1] Em novembro de 2014, três anos depois de ter iniciado suas pesquisas, a autora publicou o livro El

Agua Mala [A Água Má].

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao­103/questoes­hidricas­politicas­ii/cidade­submersa 11/11

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