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BACHELARD ­­ ALGUNS DADOS BIOGRåFICOS

(apontamentos)

Gaston Bachelard nasceu no dia 27 de Junho de 1884, em Bas­
sur­Aube,   onde   os   seus   pais   tinham   uma   loja   de   tabaco   e
jornais.   Em   1903,   entra   para   a   Administraçäo   dos   Correios,
onde ficará até 1913. Começa os seus estudos na Faculdade de
ciências.   Prepara   o   curso   dos   alunos   engenheiros   dos
telégrafos   e,   ao   mesmo   tempo,   termina   uma   licenciatura   em
matemática.   Mas   Bachelard   näo   será   Engenheiro,   depois   da
guerra, em 1919, entra para o ensino secundário como Professor
de   ciências   no   colégio   da   sua   cidade   natal.   Agregado   de
filosofia,   em   1922,   fica   em   Bas­Sur­Aube   como   professor   de
ciências e de filosofia. A Faculdade de Letras de Dijon chama­
o em 1930 e a Sorbonne, em 1940. Morre em Paris, no dia 16 de
outubro de 1962.

O senhor Bachelard! para mim, de certo, ele näo era
o   filósofo,   näo   era   o   cientista,   nem   o   membro   do
Instituto,   nem   o   poeta:   era   _alguém     especial,   um
homem espantoso que parecia compreender täo bem ser
ele e as coisas e os outros, um Senhor, generoso e
bom, que amava a vida, os homens e a água e o ar e
tudo... e que parecia dizer _obrigado. 
Durante   muitos   anos,   vi­o   aparecer   neste   corredor.
Dirigia­se   a   mim,   levava­me   ao   seu   gabinete,   onde
conversávamos   alguns   momentos,   antes   de   passar   à
sala _C, onde, com impaciência e alegria, dezenas e
dezenas   de   estudantes   o   esperavam.   Ele   entrava,
vestido   com   um   eterno   fato   escuro,   muito   ágil   e
vivo. O seu rosto: dois olhos negros, brilhando de
inteligência, barba e cabelos de um branco de neve.
E mäos que viviam, pensavam com o olhar, o sorriso,
todo o ser.
Conhecia bem os estudantes e só os tratava pelo nome
próprio.   Gostava   muito   deles   e   a   eles   se   ligava
depressa, desde que trabalhassem. Tudo queria saber
deles e näo podia pensar que eram infelizes.
O Senhor Bachelard, antes de mais nada, era bom e os
homens   bons,   os   que   chegam   a   pensar   que   tudo   no
mundo   é   bom,   näo   säo   assim   täo   vulgares;   conheci
alguns, e é isso que nos reconcilia com a vida.
Obrigado, Senhor Bachelard, graças a si fui um pouco
mais   feliz;   graças   a   si,   muitos   jovens   aprenderam
algumas coisas do que é a felicidade. Dentro de uns
cinquenta anos, um senhor idoso e uma idosa Senhora,
recordando   a   sua   juventude,   diräo   ainda:   "Ah!
Bachelard, conheci­o, que grande homem!"
Bom dia, Romeu.
Bom dia, senhor bachelard.
Pierre   Romeu,   Bibliotecário   da   secçäo   de
filosofia da Sorbonne.

nasci num país de regatos e de rios, num
recanto do vale de Champagne, no Vallage,
assim chamado por causa da quantidade dos
seus   vales.   O   vallage   tem   dezoito   léguas
de   comprimento   e   doze   de   largura.   É
portanto   um   mundo.   Näo   o   conheço
completamente:   näo   segui   todos   os   seus
rios.
Bachelard.

1. O SENSO COMUM E A CONSTRUÇÄO DA CIêNCIA: 
OS OBSTåCULOS EPISTEMOLGICOS

NOÇÄO DE OBSTåCULO EPISTEMOLGICO

Como   se   constrói   a   ciência?   como   progride   a   ciência?   (se   é


legítimo   falarmos   de   progresso   da   ciência,   questäo   a   que
voltaremos).   Quais   as   condiçöes   psicológicas   do   progresso   da
ciência? Säo estas algumas das questöes postas por Bachelard,
que admite que

é em termos de obstáculos que devemos pôr
o problema do conhecimento científico.
Bachelard.

Mas   seräo   esses   obstáculos   impedimentos   exteriores   (por


exemplo,   a   complexidade   de   determinado   fenómeno),   ou
impedimentos   interiores   (por   exemplo,   a   fraqueza   dos   nossos
sentidos)? Parece näo haver dúvida que, tanto num caso como no
outro,   há   determinado   impedimento,   determinado   obstáculo   a
erguer­se   e   a   impedir   o   caminhar   livre   da   descoberta
científica.
Mas Bachelard avançará afirmando que

é   no   próprio   acto   de   conhecer,


intimamente, que aparecem, por uma espécie
de   necessidade   funcional,   lentidöes   e
perturbaçöes.
Bachelard.

É, portanto, ao nível do acto de conhecer que surgem as causas
de estagnaçäo e mesmo de regressäo, causas de inércia, que säo
chamados   obstáculos   epistemológicos:   Como   se   a   luz   que   o
conhecimento do real implica, projectasse sempre determinadas
sombras.   A   epistemologia   deste   cientista­filósofo   será   assim
chamada   ­­   podemos   desde   já   fixar   a   característica   ­­   pelos
obstáculos e pelas rupturas, até mesmo pelas tentaçöes e erros
da ciência. 

A   sua   epistemologia   histórica   coloca­se


sob   o   signo   da   crise,   da   recusa,   do
obstáculo, do perigo.
René Poirier.
E se a história da ciência, vista por Bachelard, é a história
das suas rupturas, tentaçöes e erros, ela é também ­­   ­­ e
por isso ­­ a história dos impasses (obstáculos) que impedem o
desenvolvimento   científico,   na   via   da   racionalidade
matemática.
Os obstáculos epistemológicos (que alguns críticos consideram
na   linha   dos   complexos   freudianos)   pesam   assim   sobre   a
invençäo   científica   e   entravam­na:   na   realidade   eles   säo
constituídos   por   uma   rede   de   seduçöes   intuitivas,   de
esperanças ingénuas, de hábitos de pensamento que näo säo mais
que   falsas   facilidades,   explicaçöes   ilusórias,   falsas
analogias,   falso   ídolos,   falsos   ideais   de   explicaçäo   e   de
racionalizaçäo:
Quando se apresenta  à cultura científica,
o   espírito   nunca   é   jovem.   Ele   é   mesmo
muito   velho,   porque   tem   a   idade   dos   seus
preconceitos.   Aceder   à   ciência   é,
espiritualmente,   rejuvenescer,   é   aceitar
uma mutaçäo brusca que deve contradizer um
passado.
Bachelard.

Os   preconceitos   de   que   fala   Bachelard   seräo   os   obstáculos


anteriormente   referidos;   e   a   mutaçäo   brusca   referir­se­á   a
essa   necessidade   de   destruir   a   opiniäo   que   constitui   o
primeiro   obstáculo   a   ultrapassar   (ver   texto   1).   Mas   esses
obstáculos   epistemológicos,   essa   rede   de   hábitos   de
pensamento,   seduçöes   intuitivas,   explicaçöes   ilusórias...
resistem   por   vezes   bastante:   a   causa   dessa   resistência,
segundo Bachelard, encontrar­se­á no instinto conservativo que
acaba por levar a melhor sobre o instinto formativo:

Chega a uma altura em que o espírito gosta
mais   daquilo   que   confirma   o   seu   saber   do
que   daquilo   que   o   contradiz;   em   que
prefere   as respostas às questöes. Entäo,
o   instinto   conservativo   domina,   o
crescimento espiritual pára.
Bachelard.

Conta a este propósito Bachelard, em "A Formaçäo do Espírito
científico",   a   afirmaçäo   espirituosa   atribuída   a   um
epistemólogo   irreverente   que   afirmava   que   os   grandes   homens
säo úteis à ciência na primeira metade da sua vida e nefastos
na segunda metade... Contrariamente ao jovem, o homem de mais
idade torna­se regra geral, mais conservador.
Podemos, em suma, reter que, o obstáculo epistemológico, para
Bachelard, näo procede principalmente da natureza do objecto a
conhecer,   näo   é   um   obstáculo   objectivo,   mas   é   inerente   ao
nosso   próprio   espírito,   portanto,   mais   subjectivo   que
objectivo.

EXEMPLOS DE ALGUNS OBSTåCULOS EPISTEMOLGICOS   
a) A EXPERIêNCIA PRIMEIRA

Afirma   Bachelard   que,   na   formaçäo   do   espírito   científico,   o


primeiro   obstáculo   é   a   experiência   primeira,   aquela
experiência que antecede qualquer crítica: Ora näo pode haver
espírito científico se näo houver crítica. Assim, os chamados
conhecimentos primeiros säo extremamente frágeis, precisamente
porque näo foram filtrados pela razäo, porque correspondem  à
aceitaçäo imediata "do facto colorido e diverso".
"näo   podemos   ter   a   priori   nenhuma   confiança   no   ensino   que   o
dado imediato pretende dar­nos. Ele näo é um juiz, nem mesmo
uma   testemunha:   é   um   acusado   que   sabemos   que   mente.O
conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusäo."
Os   conhecimentos   primeiros,   as   primeiras   impressöes   näo
purificadas nem trabalhadas pela razäo pertencem ao domínio da
opiniäo, näo da ciência (ver texto 1).
Em   "A   formaçäo   do   Espírito   Científico",   Bachelard   analisa
longamente este obstáculo epistemológico (como aliás todos os
outros) a que chama de experiência primeira, comparando livros
de   ciência   do   século   dezassete   e   dezoito   com   livros   de   um
ensino   científico   moderno:   "Enquanto   os   primeiros   partem   da
natureza, se interessam pela vida quotidiana, eram livros de
vulgarizaçäo   (ver   texto   2),   nos   segundos   a   ciência   é
apresentada em relaçäo com uma teoria de conjunto:

O carácter orgânico é aí täo evidente que
seria   muito   difícil   saltar   capítulos.
Passadas   as   primeiras   páginas,   já   näo   se
deixa falar o senso comum.
Bachelard.

Como o texto 2 refere, no livro científico do século dezoito
"o   autor   conversa   com   o   seu   leitor   como   um   conferencista   de
saläo".   näo   säo   as   verdadeiras   razöes   científicas   do   troväo
que   aí   säo   analisadas,   mas   sim   razöes   de   ordem   psicológica,
receios e medos infundados, impressöes incómodas... 
Säo,   na   realidade,   livros   pré­científicos,   humorísticos   até,
por vezes: num outro livro do século dezassete, ainda citado
por   Bachelard,   um   erudito   começa   assim   a   sua   obra   sobre   os
cometas:

Visto   que   na   Corte   foi   discutido


calorosamente   se   o   cometa   era   macho   ou
fêmea,   um   dos   marechais   de   França,   para
terminar o diferendo dos outros, disse que
seria   necessário   levantar   a   cauda   desta
estrela   para   reconhecer   se   a   deveríamos
tratar por _a ou por _o...
Bachelard.

Acrescenta   Bachelard   que   um   sábio   moderno   näo   citaria   tal


opiniäo de um marechal de França. As imagens estäo, assim, na
base   de   um   conhecimento   empírico,   de   um   conhecimento   do
particular, contra o qual Bachelard se insurge:

Uma ciência que aceita as imagens é, mais
do   que   qualquer   outra,   vítima   das
metáforas.   Assim   o   espírito   científico
deve   lutar   continuamente   contra   as
imagens,   contra     as   analogias,   contra   as
metáforas.
Bachelard.

Tal como para os alunos do Liceu, para quem o pitoresco e as
imagens exercem uma grande atracçäo  (o caso das explosöes nas
aulas de química, por exemplo: o que mais tarde se recordará
näo   seräo   as   causas   objectivas   do   fenómeno,   mas   o
aborrecimento do Professor, o pânico de um vizinho tímido).
estas experiências muito vivas, muito imaginadas, seräo, para
Bachelard, centros de falsos interesses; e é neste sentido que
ele   diz   que   o   espírito   científico   se   deve   tornar   contra   a
natureza (ver texto 2).
Näo   esqueçamos   ainda   que   a   razäo,   a   causa   profunda   deste
obstáculo epistemológico, näo está  tanto na força dos factos
coloridos   e   diversos   apresentam,,   mas   em   nós   mesmos,   nas
nossas surdas paixöes, nos nossos desejos inconscientes. Daí a
insistência   com   que   Bachelard   fala   da   necessidade   de
psicanalisar   o   inconsciente   do   espírito   científico.   Por   isso
diz:

Näo nos podemos surpreender pelo facto do
primeiro   conhecimento   objectivo   ser   o
primeiro erro.
Bachelard.

b)  OS CONHECIMENTOS DO GERAL COMO OBSTåCULO AO CONHECIMENTO
CIENTïFICO

Um   dos   exemplos   que   Bachelard   nos   dá   na   obra   já   citada,   a


propósito   deste   obstáculo   epistemológico,   é   o   da   queda   dos
corpos.   Acusa   o   autor   os   Professores   de   filosofia   de
explicarem   de   forma   demasiado   simples   o   raciocínio   indutivo
fundamentado numa colecçäo de factos particulares e conduzindo
à lei científica geral: assim descrevem rapidamente a queda de
diversos corpos e concluem: todos os corpos caem.

Para se desculparem desta banalidade, eles
pretendem   mostrar   que   com   um   tal   exemplo
têm   tudo   o   que   é   preciso   para   marcar   um
progresso   decisivo   do   pensamento
científico...   e   julgam   assim   fundamentada
a sä doutrina de gravitaçäo.
Bachelard.

Generalizaçöes deste tipo seräo apressadas e fáceis (ver texto
3). E, mais uma vez, Bachelard insiste na necessidade de fazer
uma   psicanálise   do   conhecimento   objectivo   para   que   todas   as
seduçöes de facilidade sejam detectadas.
Com efeito, a procura apressada do geral conduz a maior parte
das   vezes   a   generalidades   mal   colocadas,   sem   ligaçäo   com   as
funçöes matemáticas essenciais do fenómeno.
Diz­se: todos os corpos caem; ou: todos os raios luminosos se
propagam em linha recta; ou: todos os seres vivos säo mortais,
equivale   a   colocar,   no   limiar   de   cada   ciência,   grandes
verdades   primeiras,   definiçöes   intangíveis.   E   Bachelard
acrescenta que era precisamente isso que se fazia nos livros
pré­científicos de física, no século dezoito, e de sociologia
do século vinte.

Podemo­nos   interrogar   sobre   se   essas


grandes   leis   constituem   pensamentos
verdadeiramente   científicos,   pensamentos
que sugiram outros pensamentos.
Bachelard.

Portanto,   estas   grandes   leis,   em   vez   de   activarem   e


estimularem   o   pensamento,   bloqueiam­no.   Estas   leis   gerais
definem melhor as palavras (caso de cair, todos os corpos caem
­­ o verbo aqui é suficientemente descritivo) do que as coisas
definem, quer dizer, identificam. Mas, 

Quanto   mais   curto   é   o   processo   de


identificaçäo,   mais   pobre   é   o   pensamento
experimental.
Bachelard.

E, como o texto 3 refere, em vez do enunciado: todos os corpos
caem   sem   excepçäo,   se   se   fizer   a   experiência   no   vazio,   num
tubo de Newton, chega­se a uma lei mais rica: no vazio, todos
os corpos caem com a mesma velocidade. E este será, isso sim,
um enunciado útil, base real de um empirismo exacto. Apesar de
que   esta   lei,   sendo   täo   completa,   täo   bem   acabada,   pode   por
isso     mesmo,   näo   fazer   avançar   mais   o   pensamento   e   a
experiência. O caso é que

à volta de um conhecimento muito geral, a
zona   de   desconhecido   näo   se   resolve   em
problemas precisos.
Bachelard.

A   generalidade   imobiliza,   portanto,   o   pensamento,   certas


variáveis   que   se   referem   ao   aspecto   geral   ensombram   as
variáveis   matemáticas   essenciais.   No   caso   citado   da
gravitaçäo,   a   noçäo   de   velocidade   esconde   a   noçäo   de
aceleraçäo.   Ora,   conclui   Bachelard,   é   a   noçäo   de   aceleraçäo
que corresponde à realidade dominante.
O   pensamento   científico   moderno,   ultrapassando   ou   devendo
sempre ultrapassar este obstáculo de generalidade, insiste em
precisar, em limitar, porque o que caracteriza o sábio moderno
é a objectividade e näo o universalismo: o
pensamento   deve   ser   objectivo,   só   é
universal   se   puder   sê­lo,   só   o   é   se   a
realidade autorizar.
Bachelard.

E   Bachelard   acrescenta   que   a   objectividade   se   confirma   na


precisäo   e   na   coerência   dos   atributos,   näo   em   colecçöes   de
objectos mais ou menos análogos.

O   que   limita   um   conhecimento   é   muitas


vezes mais importante para o progresso do
pensamento,   do   que   aquilo   que   aumenta
vagamente o conhecimento.
Bachelard.

Na   ciência   moderna,   há   mesmo   a   tendência   para   reduzir   as


quantidades observadas, mais do que para aumentá­las.

O ideal de limitaçäo deves ser uma meta a
atingir.   Um   conhecimento   a   que   falta   a
precisäo,   um   conhecimento   que   näo   é   dado
com   as   suas   condiçöes   de   determinaçäo
precisas näo é um conhecimento científico.
Um   conhecimento   geral   é   quase   totalmente
um conhecimento vago. 
Bachelard.

c)  O CONHECIMENTO UTILITåRIO COMO OBSTåCULO AO CONHECIMENTO
CIENTïFICO 

Há igualmente a considerar, como obstáculo epistemológico, "a
seduçäo   de   generalidades   mais   vastas",   no   âmbito   já   do
pensamento filosófico.

Uma doce letargia imobiliza a experiência;
todas   as   questöes   ficam   mudas   numa   vasta
visäo   do   mundo;   todas   as   dificuldades   se
resolvem   diante   de   uma   visäo   geral   do
mundo,   por   simples   referência   a   um
princípio geral da natureza.
Bachelard.

No   século   dezoito   dominava,   principalmente   a   ideia   de   uma


natureza   homogénea   e   harmónica,   onde   a   s   singularidades   se
anulavam   e   também   as   contradiçöes   e   as   hostilidades   da
experiência (ver texto 4).
Segundo Bachelard, para o espírito pré­científico, a unidade é
um princípio sempre desejado e, nesta linha, a experiência näo
se pode contradizer nem compartimentar. Qualquer dualidade é,
sim,   sinal   de   erro.   Compreende­se   hoje   que   este   desejo   de
unidade levante uma série de falsos problemas.
Conhecimento   utilitário   encontramos   ainda   em   numerosas   obras
do   século   dezoito   em   que   a   física   está   associada   a   uma
teologia,   em   que   a   Génese   é   considerada   como   uma   cosmogonia
científica e em que a história do Céu é considerada "segundo
as ideias dos poetas, dos filósofos e de Moisés".
Um   saber   que   se   afirma,   assim,   geral,   ultrapassando   a
experiência (porque era precisamente o domínio da experiência
que   o   faria   entrar   em   contradiçöes),   é   denunciado   por
Bachelard   como   anti­científico.   Em   vez   de   apresentarem   um
sistema,   como   muitas   vezes   anunciam,   estes   livros,   acima
citados, só däo uma amálgama de factos mal ligados. Säo obras
täo   inúteis   do   ponto   de   vista   filosófico   como   científico.   É
necessário   entäo   que   a   ciência   desponte   e   se   liberte   dos
obstáculos. 

É  tomando consciência desta revoluçäo que
se   pode   compreender   verdadeiramente   a
força   da   formaçäo   psicológica   do
conhecimento científico e que se apreciará
a   distância   do   empirismo   passivo   ao
empirismo activo e pensado.
Bachelard.

Bachelard ocupa­se ainda, na obra já referida e toda dedicada
a   este   assunto   ­­   A   FORMAÇÄO   DO   espírito   CIENTïFICO   ­­   de
outros obstáculos, como o obstáculo substancialista, 

feito   da   reuniäo   das   intuiçöes   mais


dispersas   e   mesmo   mais   opostas.   Por   uma
tendência   quase   natural,   o   espírito   pré­
científico bloqueia sobre um objecto todos
os   conhecimentos   a   ele   ligados,   sem   se
ocupar   da   hierarquia   das   funçöes
empíricas.
Bachelard.

Portanto, quando se unem directamente à substância qualidades
diversas,   tanto   uma   qualidade   superficial   como   uma   qualidade
profunda,   tanto   uma   qualidade   manifesta,   como   uma   qualidade
oculta, cai­se no chamado obstáculo substancialista. Também a
substancializaçäo tem, assim, um carácter vago e infinitamente
tolerante oposto a um verdadeiro movimento epistemológico que
vai do interior ao exterior das substâncias.
O CONHECIMENTO CIENTïFICO COMO RECTIFICAÇÄO 

O   estudo   dos   obstáculos   epistemológicos   revela   que,   para


Bachelard, todo o conhecimento científico é a rectificaçäo de
um conhecimento primário que se reconhece depois näo ser mais
que   um   erro   primário.   Assim,   a   verdade   näo   será   mais   que   o
conjunto de ideias rectificadas, e a ciência näo poderá nunca
abandonar­se à sonolência do saber.

Todo   o   saber   científico   deve   ser


reconstruído em todo o momento.
Bachelard.
A   noçäo   de   rectificaçäo   deve   ser   entendida   como   a   teoria   da
formaçäo dos conceitos ou, se quisermos, de deformaçäo, já que
é o próprio Bachelard que diz:

A   nosso   ver,   a   riqueza   de   um   conceito


científico   mede­se   pela   sua   potência   de
deformaçäo...   Para   englobar   novas   provas
experimentais   será   preciso...   deformar   os
conceitos primitivos. 
Bachelard.

A   formaçäo   de   novos   conceitos   consistiria,   portanto,   na


deformaçäo   de   conceitos   anteriores:   Por   rectificaçäo   e
aproximaçöes se conseguiria o progresso científico.

A rectificaçäo é uma realidade ou, melhor,
para   a   verdadeira   realidade
epistemológica,   já   que   é   o   pensamento   em
acto, no seu dinamismo profundo.
Bachelard.

Tem de haver portanto, na base da rectificaçäo, uma reforma do
pensamento, da sua capacidade inventiva, da sua autonomia, que
muitas   vezes   terá   de   rejeitar   a   priori   antigos   conceitos   de
forma a substituí­los por novos já modificados.

A   ciência   simplifica   o   real   e   complica   a


razäo.
Bachelard.

Há,   assim,   como   que   uma     oscilaçäo,   que   vai­vem   incessante


entre   a   razäo   e   o   real,   o   que   revela   um   conhecimento
verdadeiramente dinâmico.
Todo o conhecimento científico é, pois, a rectificaçäo de um
conhecimento   anterior.   Para   compreender   a   nova   linguagem   da
ciência   é   necessário   afastar   os   conhecimentos   comuns   e   uma
cultura   já   adquirida.   O   construído   deve   prevalecer   sobre   o
dado.   Certas   noçöes   só   se   compreendem   à   luz   de   determinadas
épocas históricas: Correspondem a emergências que caracterizam
o progresso da ciências por rupturas (ver texto 5)

A   RUPTURA   ENTRE   CONHECIMENTO   SENSïVEL   E   CONHECIMENTO


CIENTïFICO

A ideia fundamental da teoria da história das ciências, para
Bachelard, é a da ruptura que se pode considerar como uma das
mais célebres das noçöes epistemológicas deste autor.

É   necessário   aceitar   uma   verdadeira


ruptura   entre   conhecimento   sensível   e
conhecimento científico.
Bachelard.
E   isto   porque   o   objecto   nunca   é   um   objectivo   imediato:   tal
como   vimos   anteriormente   a   propósito   de   obstáculos
epistemológicos, as tendências do conhecimento sensível estäo
animadas de pragmatismo e de realismo imediatos, por isso näo
determinaräo   mais   que   uma   falsa   partida.   Donde   a   adesäo
imediata a um objecto concreto, 

compromete facilmente o ser sensível; é a
satisfaçäo   íntima;   näo   é   evidência
racional.
Bachelard.

É assim que Bachelard näo se cansa de afirmar, em muitas das
suas   obras,   que   o   "espírito   científico   contemporâneo   näo
poderia   estar   em   continuidade   com   o   simples   bom   senso"   (ver
texto   6).   e   que,   pelo   contrário,   as   suas   teses,   de   täo
arriscadas, chocariam o senso comum.
Assim, a ciência contemporânea näo se segue sem contas a uma
ciência   anterior;   haverá   sempre   rupturas   necessárias:   se   o
objecto de estudo é agora, por exemplo, o núcleo atómico, já
as   imagens   e   fórmulas   verbais   de   uma   física   clássica   näo
poderäo servir.

Uma   constante   transposiçäo   da   linguagem


rompe   entäo   a   continuidade   do   pensamento
comum e do pensamento científico.
Bachelard. 

Esta ruptura é täo nítida que, como afirma o autor (texto 6),
a filosofia inerente a estes dois tipos de pensamento tem que
ser também ela diferente: e é assim que o empirismo se liga ao
senso comum.

Temos   de   nos   opor   com   clareza   a   esta


filosofia   fácil,   que   se   apoia   sobre   um
sensualismo mais ou menos  franco, mais ou
menos   romanceado   que   pretende   receber   as
suas   liçöes   de   um   dado   claro,   nítido,
seguro,   constante,   sempre   oferecido   a   um
espírito aberto.
Bachelard.

Mas o racionalismo é solidário do conhecimento científico. Näo
se pode ser arrastado pelo peso dos conhecimentos comuns, näo
se   pode   hoje   em   dia   imaginar   um   corpúsculo   como   um   pequeno
corpo (texto 5), a ciência tem assim, como já se viu, que se
opor   à   opiniäo   (texto   1).   Näo   é   a   utilidade   que   pode
caracterizar um objecto no que respeita  às suas propriedades
essenciais, quer dizer, näo pode ser aquilo que nos é dado na
aparência que basta ao conhecimento científico: antes o que é
construído pela razäo.
Nada   surge   por   si.   Nada   é   dado.   Tudo   é
construído.
Bachelard.

Daí   que   Bachelard   fale   constantemente   em   purificar   as


substâncias   naturais   e   ordenar   os   fenómenos   desordenados:
purificaçäo e ordenaçäo estas que säo comandadas pela razäo.

A TEORIA DO PROGRESSO POR RUPTURAS: MATERIALISMO OU IDEALISMO
EM BACHELARD?

Em vez de uma concepçäo continuista da história da ciência e,
como   se   vê,     uma   visäo   mais   dialéctica,   segundo   a   qual   a
história   conhece   saltos,   revoluçöes,   mudanças,   rupturas:   por
isto   mesmo   alguns   têm   considerado   Bachelard   próximo   do
materialismo   histórico;   outros,   no   entanto,   negam   esta
atribuiçäo, na base de que para o cientista­filósofo francês
näo há causas historicamente exteriores à ciência que governem
o seu desenvolvimento. De facto ele afirma: 

no   destino   das   ciências   os   valores


racionais impöem­se.
Bachelard.

Näo há, portanto, nenhuma necessidade histórica, como para a
concepçäo materialista. Näo há causas exteriores à ciência que
a   expliquem,   mas   täo   somente   contam   para   este   efeito   os
conceitos científicos.

A tese e ruptura, de Bachelard, leva a que seja negada toda a
necessidade   de   desenvolvimento   histórico:   a   racionalidade
actual explica­se por si mesma, a ciência explica­se por um a
"vontade de razäo" e o conjunto dialéctico de que fala estará
envolto no dizer de alguns, numa atmosfera idealista, porque é
subjectiva   e   se   destina   a   opor­se   a   toda   a   dialéctica
objectiva baseada na existência de contradiçöes que formam uma
unidade no real. De facto, para os materialistas, o movimento
histórico faz­se através de antagonismos que opöem forças de
maneira contraditória; ora, para Bachelard, a negaçäo é sempre
referida   ao   espírito   e   à   razäo;   näo   é   uma   verdadeira
contradiçäo, mas só uma oposiçäo entre imaginaçäo e razäo, que
desaparece   logo   que   se   adopta   o   verdadeiro   espírito
científico.   Mas   apesar   de   defender   a   descontinuidade,
Bachelard   defende   o   progresso   da   ciência:   há   sucessivas
aproximaçöes   à   verdade,   na   medida   em   que   se   deve   dar   o
afastamento das opiniöes do senso comum.
O progresso científico será assim como uma luta com diversas
formas de ataque e também diversos métodos.

2. DA DESTRUIÇÄO DAS INTUIÇÖES EMPïRICAS æ NOÇÄO DE
  ULTRA­OBJECTO

A INTUIÇÄO SENSïVEL COMO OBSTåCULO AO CONHECIMENTO CIENTïFICO

Sabemos   já   em   que   consiste   a   intuiçäo   e   sabemos   também,   em


como   esta   operaçäo   do   entendimento   se   distingue   da   deduçäo
(ver Descartes).

Por   intuiçäo     näo   entendo   o   testemunho


instável   dos   sentidos,   nem   o   juízo
enganador   da   imaginaçäo   que   realiza
composiçöes   sem   valor,   mas   uma
representaçäo que é o acto da inteligência
pura e atenta...
Descartes.

Outros   filósofos,   no   entanto,   como   Bergson   (século   vinte)


defendem a intuiçäo como um dado imediato da consciência, mas
marcadamente   anti­intelectualista:   assim,   enquanto   Descartes
falava   em   acto   de   inteligência   pura   e   atenta,   Bergson
identificava   a   intuiçäo   com   "o   instinto   tornado
desinteressado" e afirmava a sua incomunicabilidade, o que  é
criticado por Bachelard: 

em   verdade,   näo   se   poderá   falar   de   um


conhecimento que näo seja comunicável.
Bachelard.

E   isto   porque,   sendo   incomunicável,   näo   é   discutível,   näo   é


criticável e fica fora do domínios, tanto da ciência como da
filosofia.   Bachelard   defende,   portanto,   que   os   resultados   de
uma intuiçäo podem e devem ser discutidos.
Para Bachelard, a intuiçäo situa­se em dois níveis: o sensível
e   o   racional.   A   intuiçäo   sensível   é   o   conjunto   de   imagens
sugeridas pela necessidade inata de explicar o mundo que nos
rodeia e a formaçäo destas imagens é espontânea:

a   intuiçäo   mais   simples   e   a   mais


fundamental,   é   a   da   homogeneidade   do
espaço.
Bachelard.

Imagens   espontâneas,   tal   como   acontece   com   os   estados   da


matéria, sólido, líquido... que näo levam a questöes, porque
fornecem   respostas   directas,   säo   elementos   da   explicaçäo
ingénua. Mas se estas imagens servem no domínio da arte, já o
mesmo näo acontece no domínio da ciência:

estas intuiçöes primeiras respondem, muito
cedo e completamente,  às questöes postas;
näo   favorecem   as   sínteses   complicadas   e
fecundas, näo sugerem experiências.
Bachelard.

E assim as intuiçöes sensíveis levam ao imobilismo, à negaçäo
do   próprio   espírito   de   investigaçäo   científica.   O   método
científico   tem   portanto   que   se   libertar   de   um   primeiro
movimento que é a final o engano dos sentidos e da intuiçäo. E
é nesta acepçäo que Bachelard diz:
näo   há   verdade   primeira,   só   há   erros
primeiros.
Bachelard.

Já   vimos,   de   resto,   no   primeiro   capítulo,   como   analisando   a


noçäo de obstáculo epistemológico, Bachelard refere a intuiçäo
sensível como primeiro obstáculo que tem que ser ultrapassado:
"compreendemos a natureza resistindo­lhe... diferentemente do
artista,   que   usa   livremente   as   imagens,   o   cientista   deve
julgar   e   analisar   constantemente   estas   mesmas   imagens.   As
intuiçöes   sensíveis,   portanto,   näo   podem   dar   um   conhecimento
imediato dos fenómenos e é preciso muitas vezes percorrer um
longo trajecto para ir das imagens às ideias" (ver texto 7).

As intuiçöes säo muito úteis: servem para
ser   destruídas.   Ao   destruir   as   suas
imagens primeiras, o pensamento científico
descobre as suas leis orgânicas.

Bachelard.

O VALOR DA INTUIÇÄO INTELECTUAL

As intuiçöes sensíveis devem ser substituídas pelas intuiçöes
racionais. 
Bachelard.

Vimos na rubrica anterior que Descartes considerava a intuiçäo
intelectual   como   o   acto   de   inteligência   pura   e   atenta.   A
intuiçäo   cartesiana   tinha,   como   já   foi   visto,   o   carácter
imediato da evidência e, tal como acontecia com os princípios
da   lógica   de   Aristóteles,   era   caracterizada   por   uma   grande
clareza aparente. Ora Bachelard faz uma crítica a este tipo de
evidência porque, sendo assim, o pensamento näo avança e nada
é descoberto. É certo que a intuiçäo racional tem que brotar
espontaneamente, mas ela nasce numa consciência profundamente
cultivada.
A intuiçäo racional para Bachelard, contrariamente à intuiçäo
cartesiana   e   à   intuiçäo   bergsoniana,   forma­se   na   acçäo,
triunfa   das   formas   estáticas,   opera   em   níveis   diversos   e
revela novos problemas:

Toda a intuiçäo procederá de uma escolha.
Bachelard.

Enquanto   Descartes   acredita   na   existência   de   elementos


absolutos   no   mundo   objectivo   que   podem   ser   conhecidos
directamente   e   na   sua   totalidade   e   que   estäo   completamente
afastados   da   dúvida,   Bachelard,   pelo   contrário,   pensa   que
todas as noçöes de base podem ser desdobradas, acompanhadas de
noçöes complementares e a intuiçäo terá, por assim dizer, de
escolher.   Temos   assim   "o   carácter   imediato   da   evidência
cartesiana perturbado" (ver texto 8).
O   carácter   imediato   da   evidência   cartesiana   é,   assim,
discutido:   para   Bachelard,   há   uma   "lenta   modificaçäo
espiritual   que   as   aproximaçöes   sucessivas   da   experiência
impöem". Quer isto dizer que näo é de uma vez, imediatamente,
que   se   apreende   uma   verdade,   só   nos   podemos   aproximar
lentamente da verdade, nunca possuí­la   ou intuí­la como que
num claräo do espírito.

é preciso reduzir o que näo se vê ao que
näo se vê.
Bachelard.

Näo poderemos, portanto, reduzir o que se vê ao que se vê (ver
texto   9)   e   é   assim   que   a   intuiçäo   intelectual   tem   vantagem
sobre a intuiçäo sensível: A coerência racional terá vantagem
sobre a experiência visual.

OBJECTO E ULTRA­OBJECTO

As imagens e as formas realistas dos objectos, aquilo que nos
é   dado   nas   primeiras   intuiçöes,   o   conhecimento   sensível   das
coisas ­­ tem de ser, como já vimos, ultrapassado, tem de ser
reduzido,   quando   se   pensa   em   termos   de   conhecimento
científico:

Toda   a   imagem   usada   para   descrever   um   mundo   que   se   näo   vê,


fenómenos   que   näo   aparecem,   deve   permanecer   sempre   em
instância de reduçäo.
Bachelard.

Mas tudo o que se reduz, que se elimina, deve permanecer, como
diz Bachelard, no conceito rectificado, como uma crítica que
foi feita, como um erro que foi detectado: a razäo terá de ser
polémica,   näo   arquitectónica   (ver   texto   10).   E   será,
precisamente, através da crítica e da dialéctica que se atinge
o ultra­objecto ou seja um objecto que apenas se retém aquilo
que se criticou.

Tal como surge na microfísica contemporânea, o átomo é o tipo
perfeito de ultra­objecto.
Bachelard.

O ultra­objecto será assim a näo­imagem; a noçäo de átomo que
vigorava   no   princípio   do   século   dada   como   uma   imagem   foi
entretanto   criticada   (mas   sugeriu   näos   suficientemente
numerosos   para   manter   um   papel   pedagógico   indispensável   em
qualquer iniciaçäo). O que significa que foram precisamente as
críticas   feitas   à   noçäo   de   átomo   que   hoje   "constituem   na
verdade a microfísica contemporânea".

O ULTRA­RACIONALISMO

Bachelard sempre opôs à razäo tradicional uma nova razäo, ao
racionalismo   rígido   dos   cartesianos   (ver   capítulo   seguinte),
um   novo   racionalismo   capaz   de   ir   além   de   certos   limites   que
lhe   pareciam   impostos,     de   um   saber   já   feito;   um   novo
racionalismo que irá experimentar novas vias, que duvida de si
próprio, que se torna dialéctico (ver texto 11).

'O que caracteriza o ultra­racionalismo  é precisamente a sua
força de divergência, a sua força de ramificaçäo.
Bachelard.

O   ultra­racionalismo   näo   significa   anti­racionalismo,   à


maneira   de   Bergson   ou   dos   existencialistas;   pelo   contrário,
trata­se   aqui   de   dar   à   razäo   toda   a   sua   força   e   dignidade,
libertando­a do "pecado original do empirismo". E libertando­a
também   da   intuiçöes   súbitas,   imediatas,   à   maneira   de
Descartes;   e   também   das   conclusöes   evidentes   e   apressadas.
Libertando­a,   a   final,   de   todos   aqueles   obstáculos   que
estudámos no primeiro capítulo.
É necessário entäo purificar a razäo e esta purificaçäo, por
estranho que pareça, vai fazer­se através da imaginaçäo: é ela
que   vai   permitir   a   passagem   do   racionalismo   ao   ultra­
racionalismo.   Eliminando,   ela   própria,   as   impurezas?   Que   é
como quem diz, os erros, as intuiçöes sensíveis, os obstáculos
variados? Sabe­se que näo é esse o papel da imaginaçäo.
O   que   acontece   é   mesmo   o   contrário:   a   imaginaçäo   aumenta   as
impurezas   e   torna­as   täo   evidentes   que   é   entäo   possível   ao
cientista desembaraçar­se delas. Mas o papel da imaginaçäo näo
termina, é sempre uma força dinâmica para a razäo purificada.
O ultra­racionalismo  é, assim, constituído pela razäo e pela
imaginaçäo. 

É nesta regiäo do ultra­racionalismo dialéctico que o espírito
científico   sonha.   É   aqui   que   nasce   o   sonho   que   se   aventura
pensando, que pensa aventurando­se, que procura uma iluminaçäo
do pensamento pelo pensamento.
Bachelard.

O   ultra­racionalismo   tem   que   ter   assim   a   capacidade   de   se


desligar do realismo ingénuo e das primeiras imagens. Quando
se   pensa,   por   exemplo,   nos   princípios   da   teoria   da
relatividade,   eles   näo   nasceram   de   uma   análise   directa   do
real. Por isso Bachelard diz:

näo se deduzem esses princípios de um exame da realidade, mas
de uma reflexäo sobre as condiçöes da realidade.
Bachelard.

E acrescenta ainda que, na mecânica clássica, näo se podia dar
uma significaçäo universal a uma velocidade particular, como a
velocidade   da   luz;   e   que   foi   necessário   um   estatuto
completamente   novo   para   utilizar   esta   velocidade,   para   fazer
dela uma peça da construçäo racional da experiência.
O   termo   _ultra­racionalismo   empregue   por   Bachelard   quererá
significar, em suma, o abandono de uma concepçäo racionalista
mais dogmática, a dos herdeiros de Descartes;  é uma operaçäo
nova do espírito, mais dialéctica, que se quer descrever:

'O   racionalismo   complexo   e   o   racionalismo   dialéctico   podem


reunir­se   de   maneira   abreviada   sob   a   designaçäo   de   ultra­
racionalismo.
Bachelard.

Estamos,   assim,   longe   da   razäo   tradicional,   fechada   em


princípios lógicos, como o do terceiro excluído, para o qual
uma coisa ou é ou näo é. Mas quando, em física, se pensa em
electröes,   átomos,   moléculas,   etc.,   näo   se   pode   estar   täo
seguro de uma realidade ser ou näo ser de determinada maneira:

do nosso ponto de vista nem tudo  é real da mesma maneira, a
substância   näo   tem   sempre,   em   todos   os   níveis,   a   mesma
coerência;   A   existência   näo   é   uma   funçäo   monótona;   ela   näo
pode afirmar­se por todo o lado e sempre no mesmo tom.
Bachelard

Se considerarmos a mecânica clássica e a mecânica ondulatória
verificamos   que   as   palavras   _onda   e   _corpúsculo   mudam   de
sentido.
Há   portanto   um   enriquecimento   e   uma   revitalizaçäo   quando   se
considera   a   palavra   ultra­racionalismo,   relativamente   a
racionalismo. A descoberta sede lugar à invençäo construtiva,
à   criaçäo   do   espírito   no   interior   das   leis   dinâmicas
formuladas pela inteligência:
Uma   mobilidade,   essencial,   uma   efervescência   psíquica,   uma
alegria   espiritual,   encontram­se   associadas   à   actividade   da
razäo.
Bachelard.

3. RAZÄO POLéMICA E RAZÄO CARTESIANA.
A PSICANáLISE DA CIêNCIA

Crítica à CONCEPÇÄO DA RAZÄO CARTESIANA

Há   uma   diferença   muito   grande,   acentua   Bachelard,   entre   o


espírito científico moderno e o simples espírito de ordem e de
classificaçäo   (ver   texto   12);   como   há   diferença   entre   o
espírito científico que anima o laboratório, que é teórico e
prático,   a   um   tempo,   que   teoriza   e   experimenta   e   o   espírito
científico dos filósofos, afastado da prática.
Descartes   tinha   conseguido,   é   certo,   "a   claridade   na
exposiçäo, ordem nas notas, distinçäo nos conceitos, segurança
nos   inventários".   E     assim,   com   ele,   se   poderia   adoptar   um
método   seguro,   mas   dogmático;   que,   para   Bachelard,   estava
certo   num   tempo   em   que   as   ciências   matemáticas   e   físicas
caminhavam com grande prudência. E ainda hoje, de resto, näo
há   físico   que   possa   cometer   um   erro   contra   as   regras
cartesianas (ver Descartes). 
Mas,   pergunta   Bachelard:   teräo   estas   regras   algum   interesse
vivo,   hoje,   além,   naturalmente,   do   seu   interesse   histórico?
Seräo   conselhos   que   os   físicos   se   esforçam   por   seguir?
Caminharäo a par da "ansiedade da ciência contemporânea"? 
E,   mais   ainda,   tratando­se   de   concepçöes   täo   simples,   elas
"afastaräo qualquer recurso aos paradoxos, sempre täo úteis".
Na realidade, näo há fenómenos simples, diz Bachelard, porque
um   fenómeno   é   sempre   um   tecido   de   relaçöes.   Também   näo   há
naturezas simples, substâncias simples, antes uma rede serrada
de atributos. E quanto às ideias simples, sabe­se que elas têm
de   ser   inseridas,   para   serem   compreendidas,   num   sistema
complexo de pensamentos e de explicaçöes; nunca poderäo ser a
base   definitiva   de   um   conhecimento,   como   o   eram   para
DEscartes. De resto, as investigaçöes experimentais e teóricas
sobre a estrutura dos espectros e a estrutura dos átomos däo
conta   dessa   nova   maneira   de   considerar,   a   nível
epistemológico, as noçöes de simples e de complexo:

pode­se dizer que um átomo que possui vários electröes é, de
certo   modo,   mais   simples   que   um   átomo   que   possui   um   só
electräo, porque, numa organizaçäo mais complexa, a totalidade
é mais orgânica.
Bachelard.

Descartes   explica   o   mundo,   diz   Bachelard,   mas   näo   explica   a


experiência,   o que será a verdadeira funçäo da investigaçäo
objectiva.

Lembremos   que   a   separaçäo   da   figura   e   do   movimento   é


objectivamente abusiva no reino da microfísica.
Bachelard.

Todos   os   físicos   modernos   acentuam   hoje   que   é   impossível


explicar   fenómenos   naturais   por   meio   das   figuras   e   dos
movimentos   dado   que   näo   se   pode   conhecer   ao   mesmo   tempo   a
figura e o movimento. As relaçöes de incerteza de que a física
moderna fala säo, afinal, obstáculos à análise absoluta deste
problema.   As   noçöes   de   base   devem   ser   apreendidas;   nas   suas
relaçöes,   os   fenómenos   elementares   da   microfísica
contemporânea   säo   complexos   e   näo   pode,   portanto,   haver
consenso entre o método científico contemporâneo e a ciência
cartesiana.
  Quando Bachelard defende uma epistemologia näo cartesiana o
que   ele   condena,   acima   de   tudo,   é   a   doutrina   das   naturezas
simples e absolutas. De resto, vimos já como a intuiçäo nesta
nova concepçäo deixa de ser primitiva, à maneira de Descartes
para passar a ser discursiva, há por assim dizer uma dualidade
fundamental,   visto   que   todas   as   noçöes   de   base   podem   ser
desdobradas, acompanhadas por noçöes suplementares; e, assim,
a   intuiçäo   para   Bachelard,   implicará   uma   escolha,   ficando
desta   forma   perturbado   o   carácter   imediato   da   evidência
cartesiana. A explicaçäo científica tem, portanto, na sua base
elementos complexos e condicionais e a dúvida tem uma funçäo
diferente da dúvida cartesiana:

guardar   uma   espécie   de   dúvida   decorrente   e   aberta   sobre   o


passado   de   conhecimentos   certos,   eis   ainda   uma   atitude   que
ultrapassa, prolonga e amplifica a prudência cartesiana e que
merece ser chamada näo cartesiana.
Bachelard.

Se compararmos o célebre exemplo cartesiano do bocado de cera
(ver textos de Descartes) com experiências actuais de uma gota
de   cera   na   microfísica   contemporânea,   apercebemo­nos   da
distância entre as duas concepçöes (ver texto 13).
  Uma   acçäo   construtiva,   uma   orientaçäo   para   o   complexo,   uma
dialéctica   näo­cartesiana   marca   de   facto   a   epistemologia   da
física actual.

A IMPORTâNCIA DO ERRO, MOTOR DO CONHECIMENTO

Vimos   já   no   primeiro   capítulo,   a   propósito   da   ruptura


epistemológica que, para Bachelard, o conhecimento científico
é a rectificaçäo de um conhecimento inicial e que a verdade é
feita de ideias rectificadas (ver texto 14). Neste sentido se
conhece   já   a   crítica   de   Bachelard   a   uma   ciência   que   se
abandona   à   "sonolência   do   saber"   isto   porque   todo   o   saber
científico deve, a cada momento, ser reconstruído.
O motor da revoluçäo científica, no que respeita às ciências
contemporâneas, é de facto a rectificaçäo que é a "verdadeira
realidade   epistemológica   porque   representa   o   pensamento   em
acto, no seu dinamismo profundo".
De certa forma se poderá entäo afirmar que 

o problema do erro tem a primazia sobre o problema da verdade.
Bachelard.

Querendo Bachelard com isto dizer que o erro é um dos tempos
da   dialéctica   que   é   necessário   atravessar   R.   como   também   já
foi observado no capítulo primeiro, a propósito dos obstáculos
epistemológicos,   as   causas   do   erro   concebem­se   como
essencialmente   subjectivas   e   daí,   como   veremos   a   seguir,   a
necessidade   de   se   proceder   a   uma   verdadeira   psicanálise   do
conhecimento objectivo com fins terapêuticos e catárticos.Esta
forma de encarar a _fonte dos erros como subjectiva leva a que
muitos autores considerem que Bachelard dá desta questäo uma
explicaçäo teórica e filosoficamente idealista.
Quando se diz que o erro é um dos tempos da dialéctica, que é
necessário   atravessar,   podemos   perguntar   o   que   se   deve
entender com rigor por este termo _dialéctica, qual a acepçäo
com que Bachelard o emprega?

a filosofia do näo distingue­se de uma dialéctica a priori. Em
particular ela näo se relaciona com as dialécticas hegelianas.
Bachelard.

Recusando   a   dialéctica   hegeliana,   Bachelard   torna   este


conceito um tanto impreciso: falar de movimento de animaçäo,
de mutaçöes, de "élain", do pensamento científico... Insurge­
se,   como   vimos,   contra   todas   as   concepçöes   fixistas,
imobilistas,   do   pensamento.   O   que   a   dialéctica   em   Bachelard
principalmente   marca   é   a   descontinuidade   da   história   dos
conhecimentos científicos: há na história das ciências saltos,
falhas ou, para empregar a expressäo mais conhecida e de que
já tratámos ­­ rupturas.
Ora   Esta   descontinuidade   caracteriza­se   por   movimentos   de
rectificaçäo   sucessivos.   Näo   há   na   história   da   ciência   um
progresso   por   acumulaçäo   simples,   antes   um   "arruinar"
constante   dos   princípios   iniciais;   destrói­se   para   criar.
Verifica­se assim, nesta concepçäo, a importância do erro: a
sua   constataçäo   vai   permitindo   aproximaçöes   sucessivas   da
verdade e impedindo que se adormeça sobre dogmas supostamente
considerados infalíveis.
Podemos verificar, mais uma vez, como tal teoria se afasta das
concepçöes cartesianas.

A PSICANáLISE DA CIêNCIA
   
O   erro   é   pois   importante   para   que   o   cientista   se   possa
aproximar da verdade.

Ao longo de uma linha objectiva, é preciso dispor a série dos
erros comuns e normais.
Bachelard.

A   psicanálise   permitirá   ­­   na   perspectiva   de   Bachelard   e


aplicada   ao   campo   da   ciência   ­­   compreender   e   curar:   a   cura
neste caso consiste em pôr em evidência o erro e a sua génese
para o suprimir; trata­se de um verdadeiro exorcismo do erro.
Outras questöes já anteriormente tratadas, como a teoria dos
obstáculos epistemológicos e a da rectificaçäo, relacionam­se,
como   se   compreende,   com   este   objectivo   de   Bachelard:
psicanalizar   a   ciência.   Trata­se   com   efeito,   de   reformar   o
pensamento, já que

O conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusäo.
Bachelard.

Bachelard fundamenta a tese da primazia do erro na existência
de   tendências   que   säo   verdadeiros   "instintos"   e   que
desorientam   o   conhecimento   do   fogo:   conhecemos   o   fogo   de
forma, por assim dizer, impura e é preciso um trabalho prévio
para que se atinja a objectividade científica (ver texto 15).
Hipóteses   e   divagaçöes   estäo   muitas   vezes   na   base   de   falsos
conhecimentos e elas säo falsas precisamente porque o espírito
se prendeu ao imediato, à fascinaçäo primeira, (basta um seräo
de inverno, o vento a soprar em volta da casa, uma fogueira
crepitante) e por isso é que Bachelard diz, no texto citado,
que   toda   a   objectividade,   devidamente   verificada,   desmente   o
primeiro   contacto   com   o   objecto.   Ante   a   crítica   científica,
tem   assim   que   se   dirigir   à   sensaçäo,   ao   senso   comum,   até   à
própria etimologia da palavra.
A   observaçäo   fogo   será   sempre   uma   observaçäo   hipnotizada,
porque a chama exerce tal seduçäo que é de facto nos domínios
da subjectividade que nasce este conhecimento que, näo sendo
objectivo,   näo   pode   ser   científico.   As   causas   do   erro   säo
portanto, sempre, essencialmente subjectivas. 
O   que   é   importante,   entäo,   que   toda   a     ciência   faça   é
precisamente   "descortinar   a   influência   e   os   valores
inconscientes   na   própria   base   do   conhecimento   empírico   e
científico" (ver texto 16).

A RAZÄO POLéMICA: A FUNÇÄO DA RAZÄO é PROVOCAR CRISES

Afirma   Bachelard   a   importância   de   uma   razäo   polémica   contra


uma   razäo   arquitectónica,   significando   esta   uma   determinada
estrutura relativamente fixa. Pelo contrário, ele defende que
se deve passar da estrutura à funçäo: 

a   descontinuidade   epistemológica   entre   a   física   e   a


microfísica   oferecem­nos   a   ocasiäo   de   uma   libertaçäo
prodigiosa:   a   libertaçäo   do   espírito   relativamente   a   si
próprio.
Bachelard.

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