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Olóòrisà - escritos sobre a religião dos orixás A Filha-de-Santo - Giselle Cossard-Binon

coordenador e tradutor Carlos Eugênio Marcondes de Moura (Texto publicado pela primeira vez em Afro-Asia,
autores RogerBastide ... (et al.). - São Paulo: Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia, 2-3:5-36, 1966).
ÁGORA, 1981

·.
Os descendentes dos africanos trazidos outrora ao Brasil como
escravos permaneceram fiéis à cultura de seus antepassados, em que
pese a adversidade. Os centros religiosos - candomblés - reivindi-
cam a tradição nàgó originária do Golfo do Benin, à qual se somam
algumas vezes reminiscências bantus do Congo ou de Angola. Os
Nàgós acreditam em um Deus inacessível e longínquo, que delegou
poderes a divindades- Ofl~à- intermediárias entre Ele e os homens.
Cabe ao· chefe do candomblé dar a conhecer a vontade destas divinda-
des por meio do jogo da adivinhação . Ele deve também organizar as
festas, durante as quais as divindades apoderam-se do corpo dos ini-
ciados. Estes últimos trazem o nome de yawo, que significa em nagô
"esposa do orf$à". A idéia africana do casamento místico perdeu-se
entretanto no Brasil e as relações do ser humano com seu or1~à são as
mesmas dos pais em relação aos filhos. Os iniciados são chamados
"filhos ou filhas-de-santo" e os chefes dos candomblés, "pai ou mãe-
de-santo" , em decorrência do sincretismo que assimilou cada divin-
dade a um santo católico .
Ayawo é um ser escolhido pelo ori~à a fim de que este possa, por
meio do transe, descer entre os humanos e voltar à Terra. A iniciação
tem por objetivo condicionar a pessoa escolhida - em geral uma
mulher - de modo que ela entre em transe no momento desejado e em
circunstâncias precisas e muito controladas. Por ocasião da reclusão,
treinamentos metódicos estabelecem condicionamentos que são desen-
cadeados por um certo número de sensações definidas. O comporta-
mento ritual obedece assim a um padrão rigoroso, tanto na intimidade
quanto em público, e jamais cede lugar à anarquia. Quando o ón~à

• Estas observações foram feitas no candomblé de João da Goméa , baiano m\la


lado em Caxias, subúrbio do Rio de Janeiro, em 1946.
O texto foi publicado originalmente no Journal de la Société dt•s Amencam\lt'\
Musée de l'Homme. Paris, Tome LVIII : 57-77, 1969.
casos interessam vivamente os psiquiatras, são de fato doen te!. mcn
\nlf ,, ;\ l'c:rrn, deve dançar e mimar lendas conhecidas e o menor gesto, tais e podem-se citar numerosas filhas-de-santo que, antes dt: sua ini
passo têm sua importância. A sala onde acontecem as festas é
11 llll' IIOI ciação, submeteram-se a tratamento em hospitais psiquiátricos, .'1Citl
11111tc.:utro . Cada cerimônia é uma representação religiosa, da qual obter o menor sucesso. Diz-se nesses casos que o ón$à "segura a cabe
pari icipam a tores e espectadores. Por ocasião do retorno do ór4à à ça dela", isto é, que ele consolida sua cabeça, seu espírito. É.conve·
Terra, os trajes rituais, as insígnias levadas pelas iniciadas em transe, niente notar que tais casos são excepcionais. A maioria das iniciadas é
O\ ritmos, os cantos e a coreografia perpetuam lendas que formam perfeitamente normal. Cada ser carrega em si os desejos, as tendências
uma herança preciosa e que a y awo transmite de geração em geração. que a educação, o meio ambiente e os acontecimentos reprimiram ao
É o património da comunidade . longo da existência, a tal ponto que a personalidade inicial encontra-
A yawo tem, além disto, uma segunda missão. Através dela são se, devido a isto, mais ou menos modificada. É esta personalidade de
transmitidas as mensagens que o õri'.$à destina aos humanos, tanto a base que a iniciação reforça e amplia. Enquanto a psicoterapia pro-
ela quanto às pessoas à sua volta. Quanto mais antiga sua iniciação, cura exteriorizar a causa do mal, o que não deixa de apresentar seus
mais a personalidade de seu ón$à (isto é, a que ela possui em estado de perigos, pois corre-se o risco de fazer vir à tona conflitos que talvez
transe) aumenta de importância. Continua a corresponder ao arqué- fosse preferível deixar adormecidos e sepultados nas profundezas do
tipo tradicional, mas adquire nuances segundo cada indivíduo . Pouco inconsciente, a iniciação, pelo contrário, reforça o compartimento
a pouco, o ón$à adquire o hábito de falar e com o tempo e a experiên- estanque no sentido indivíduo-ón$à. É no inconsciente que se dá o de-
cia desenvolvem-se os signos de um saber pessoal: dupla visão, profe- sabrochar da nova personalidade .
cia, língua secreta, conhecimentos de plantas, remédios, etc. "Com o .Na realidade, a barreira é hermética apenas em um determinado
tempo, o santo vai se desenvolvendo", ao que se diz. Esta faculdade sentido. O ón$à pode modificar os impulsos, os desejos da iniciada.
se desenvolve mais, ou menos, segundo os casos , mas a evolução se dá Deixa-lhe recados, cuja origem a iniciada não reconhece, ao voltar a si .
sempre sem que a iniciada tenha conhecimento dela, da mesma forma "Vou deixar is~o na cabeça de minha filha", diz o ór"4à. Ao desper-
que a escolha de se tornar filha-de-santo deu-se independentemente de tar, a iniciada, ignorando porque mudou de opinião, modificará seu
sua vontade, sem que até mesmo tenha existido um esforço de sua comportamento, em função da vontade do õr4à. Isto pode levá-la a
parte para chegar lá. · orientar de modo diferente sua vida sentimental, a dar outro rumo à
Existe portanto na yawo a justaposição de dois estados para- sua vida financeira, a tomar novas decisões relativas ao trabalho, à
lelos: o estado normal, consciente e o estado de transe, inconsciente, família, ou simplesmente a parar de beber ...
considerado divino. Mesmo quando a iniciada está desperta e cons- Finalmente, o ón$à pode transmitir ordens ou conselhos através
ciente, sua segunda personalidade, inconsciente- a que se diz perten- de uma terceira pessoa que, no final do transe da iniciada, transmitir-
cer ao ón$à - continua a pensar, agir, observar e influir sobre sua lhe-á seu recado, tomando as devidas precauções, de tal forma que as
vida e a dos demais seres humanos. No subconsciente se encontra cria- revelações não causem um choque excessivo na yawo, se estiverem em
do e plasmado um segundo eu muito coerente e muito extenso. Se a contradição com sua vontade. Ela dispõe do livre arbítrio e pode acei-
iniciada nada sabe deste outro eu, a recíproca não é verdadeira. O tar ou recusar submeter-se às injunções a ela transmitidas, sabendo
ón$à conhece tudo a respeito de sua filha e sua influência pode ser que sua rebelião será punida de modo inelutável e imprevisível, mais
considerável. dia, menos dia.
O ón$à controla diretamente a fisiologia da iniciada e reforça seu Vê-se, portanto, a importância que a determinação do ón$à prote-
potencial vital. Em certos casos, a iniciação não teve outros motivos. tor exerce. Ligado a cada ser humano a partir do momento de sua con-
Diz-se então que a yawo foi iniciada devido a uma doença, que pode cepção, ele corresponde a uma estrutura inata. Determinar o ón$à é,
ser muito precisa: tuberculose, úlcera estomacal ou anemia grave. na realidade, perceber o núcleo das disposições que cada indivíduo
O õn$à age também sobre sua vida psíquica, através da criação recebeu de herança e que constituem a sua estrutura somato-
de uma segunda personalidade ampliada, dado que participa do divi- psicológica. Através delas se determinam os delineamentos de sua
no, o que leva à sublimação de certas inibições que tenham podido conduta, mas elas não formam a totalidade do ser humano. Devido às
provocar desequilíbrios nervosos e psicoses. Certas iniciadas, cujos
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circunstâncias e ao meio ambiente, as aquisições faisificaram, às vezes O tipo Obaluaê é desajeitado, pesado, fechado. (~ fl cq (li:n lc
muito profundamente, essas disposições primordiais e a personalidade mente um pessimista que estraga suas oportunidades, devido 11 uma
do indivíduo não corresponde mais com exatidão à sua estrutura pri- mentalidade auto-destruidora.
mitiva. A evolução trouxe com ela ·desvios e as possibilidades que se O tipo ()~(>si é ágil, nervoso, refinado, interessa-se po1 I mhl,
ofereciam ao indivíduo não puderam ser realizadas . É por isso que a nem sempre é perseverante e é instável em seus a fetos.
determinação do ôri$à protetor é freqüentemente difícil e é preciso O tipo O$àlá é calmo, lento, teimoso, fechado, age em silêncio c
toda a arte do pai-de-santo para que ela seja bem sucedida. jamais perdoa uma ofensa.
Quando a pessoa entra em estado cataléptico, o pai-de-santo O tipo Yãsan é vivo, conquistador, ativo, ciumento e até mesmo
observa com muito cuidado os gestos que ela faz ao cair e eles podem cruel e colérico.
fornecer indicações preciosas sobre a natureza do ôri$à. Ele, da mes- O tiP.O Õ$um corresponde à beleza gorda, a quem todas as home-
ma forma, nota a qual ôri$à são dirigidas as cantigas entoadas naquele nagens são devidas. Algumas vezes preguiçoso, interesseiro, sabe aliar
momento . a falta de cuidados à sedução. _
Todos estes sinais são importantes, porém devem ser confirma- O tipo Yémánjá irrita-se com facilidade, é instável, generoso,
dos através do jogo da a9ivinhação. É assim que será obtido o odu, mas somente até certo ponto. Tem tendências maternais e aprecia a
isto é, o signo que marca cada destino. Através do odu, se conhece o solidão.
ôri$à dono da cabeça e também o ôri$à ou os ôrz~à que acompanham e O tipo Nàná é velho antes do tempo, taciturno, emburrado e
matizam o caráter do indivíduo. fechado, extremamente vingativo e muito trabalhador.
Se examin~rmos as iniciadas, agrupando-as por cada ôrf$à, pode- O problema se complica na medida em que, com muita freqüên-
remos notar •que elas possuem freqüentemente traços em comum, cia, o caráter básico não é muito aparente e pode ser modificado através
tanto no plano fisiológico quanto no psicológico. Seus corpos pare- da influência mais ou menos importante dos ôrz~à secundários revela-
cem trazer mais, ou menos profundamente, segundo os indivíduos, a dos no odu. Um ôrf$à secundário pode mesmo procurar impor-se no
marca das forças mentais e psíquicas que os animam. lugar daquele que é o dono da cabeça. Segundo os membros do can-
Convém distinguir inicialmente os indivíduos ligados a um ôrz~à
masculino e os ligados a um ôrz~à feminino e que podem ser uns e
e
domblé, o equilíbrio máximo ocorrerá quando o indivíduo determi-
nado por um primeiro tipo masculino e um segundo tipo feminino, ou
outros homens ou mulheres. Esta distinção mostra uma polarização vice-versa. Ao modelar o inconsciente sobre o arquétipo divino, a ini-
dos seres, alguns mais combativos, outros, pelo contrário, mais orien- ciação permite reforçar a estrutura de base da yawo e favorece o seu
o
tados em direção à conciliação ou à sedução, que não implica abso- desabrochar.
lutamente em que um homem que pertença a uma divindade feminina Ao sair da iniciação, a yawo é a eleita da divindade e assim per-
tenha tendências homossexuais. Acontece que certos elementos do manecerá até a morte. O que quer que faça e o que quer que pense em
candomblé o afirmam, mas isto não corresponde a uma realidade pro- seguida, jamais poderá voltar atrás e_desmanchar o que foi feito. Mais
funda . Trata-se apenas de uma espécie de desculpa, que lhes permite ainda que esposa ou filha do deus, é sua escrava. Depositária da força
justificarem-se a seus olhos e aos olhos dos outros. divina, deve cuidar de mantê-la intacta, evitando tudo aquilo que
Em cada categoria dos ôri$à se distinguem também os ôri$à puder prejudicá-la ou quebrá-la. Sabe que os seres e mesmo os objetos
velhos e outros mais jovens·. Isto também é encontrado no caráter do que a cercam podem ser os vetares, conscientes ou não, de influências
indivíduo. Um parece ter sido sempre velho e o outro, ao contrário, eventualmente maléficas. Deve, portanto, cuidar para não fazer nada
sempre criança, como se levássemos sempre dentro de nós a marca de que permita essas influências exercerem-se sobre ela. É por isso que
uma das idades da vida. deve observar um grande número de preceitos a ela ensinados pela
o tipo Õgún é magro, nervoso, musculoso, de temperamento mãe pequena, mas que ela deve aprender sobretudo observando as
difícil, cheio de iniciativas, batalhador, conquistador. outras, sem nunca fazer perguntas. Eles formam a regra de vida da
O tipo Sàngó é adiposo e tem tendência à obesidade. Aprecia o iniciada, qualquer que seja seu grau de iniciação.
~o.-o, é hcdo~ista e algumas vezes tende à preguiça. É visceral.

l
O conjunto dessas proibições integram as kizila, do quimbundo

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ÁIJila. Alfonso aa ~ilva Rego diz: "Em Angola existe uma palavra
que expr ime uma idéia que encontramos em todos os lugares, a idéia e estragá-los, dando trajes ou calçados a qualquer pesson . lkvc 1cw
daq uil o que não é bom, que não convém, que é contrário à tradição lher os cabelos que fica ram presos no pente, ou os que co rtou, c 1 0~{1
o u à etiqueta, àquilo que se deve fazer, etc . É a palavra kijila" 1 • los na água. Enterra os restos de comida que acaso tenha deixad o no
As kizila são numerosas e não é fácil classificá-las. As influên- prato e cuida para que animal algum venha desenterrá-los e comê los.
~ode todavia dá-los a um cachorro, pois este animal é consagrad o u
cias maléficas podem provir de certos pontos do espaço ou do tempo
mais particularmente ligados aos ~ú2 e às almas. Assim é que yawo Ogún e também a Obaluaê, devido ao sincretismo que assimila este
ón~à a São Roque.
evita colocar-se de costas para uma janela ou para uma porta; não se
senta na s_oleira da porta; não atravessa as encruzilhadas em diagonal, Certos gestos devem ser feitos seguindo um sentido, uma ordem
pois os ~ú moram nas aberturas e nas encruzilhadas. Não toma que não pode ser transgredida. Nunca deve vestir suas roupas pelo
banho de mar; evita os cemitérios. Cuida de orientar o lugar onde avesso, deve enfiar saias e vestidos pela cabeça e tirá-los também pela
dorme (esteira ou cama), de maneira que seus pés não fiquem voltados cabeça. Se enrolou as mangas, deve desenrolá-las antes de se despir.
para a rua, pois é assim que se colocam os defuntos . A Morte poderia Não pode deixar os sapatos com a sola voltada para cima e nem deve
enganar-se e levá-la. Não~ sai de casa quando está batendo meio-dia, deixá-los um por cima do outro. Se entra em uma igreja pela primeira
seis horas ou meia-noite. Não varre a casa e não lava louças e panelas vez, deve penetrar pela porta principal e sair por ela. Se entra em um
depois que a noite cai. bosque ou no mato, deve sair pelo mesmo caminho.
Da mesma forma não lhe são favoráveis certas fontes de calor e Não pode comer determinados alimentos. Após sua iniciação, a
certas cores . A yawo evita o sol forte e só sai com a cabeça coberta. yawo cuida de observar se determinados pratos a incomodam, deven-
Evita queimar-se, beber ou comer algo muito quente. Se é filha de do evitá-los daí por diante. Trata-se geralmente de pratos consagrados
Yémánjá ou de Õ~àlà, evita ficar perto de azeite de dendê que esteja a seu ón~à. As informações obtidas em relação a este assunto são con-
fervendo . Não deve dar as costas à chama, provenha ela do fogão ou traditórias. A maior parte das pessoas de candomblé consideram proi-
de um fósforo que acenderem por detrás dela. Não usa preto ou roxo. bidas as comidas - e sobretudo a carne dos animais - oferecidas ao
ón~à que é o protetor da iniciada, por respeito a este último.
. , deve
Se for filha de Yémánjá, não usa vermelho; se for fi lha de Õsàlà
usar somente o branco. Acrescente-se a estas proibições as comidas consagradas ao ón~à do
Os outros seres podem carregar consigo más influências e ela pai-de-santo e algumas vezes ao óri$à do odojon do "barco" 3 • João
não deve deixar ninguém se sentar ou se deitar em sua esteira ou da Ooméa, consul tado a respeito em determinada ocasião, respondeu
cama. Não terminará o que outra pessoa começou; não pode fechar o que era necessário sobretudo que a jovem yawo experimentasse de
que alguém abriu e evita deixar gavetas, caixas ou malas abertas. Não tudo após a iniciação e que deveria observar o que lhe fazia mal, evi-
come o resto dos outros, não usa suas roupas, não come e nem bebe tando-o daí por diante. Mesmo assim, as pessoas mais antigas do can-
em recipientes já usados por alguém. Não recolhe o lixo com as mãos; domblé sentem um certo prazer em interrogar maliciosamente as
não recolhe o lixo que a outra pessoa varreu. Cuida para que ninguém jovens yawo para saber se comem este ou aquele a limento consagrado
passe o braço, a mão ou um objeto qualquer em cima de sua cabeça, a seus àri$à. Se elas respondem que não respeitaram as· proibições, as
pois é lá que está seu ón~à. mais antigas não cjeixam de comentar suas respostas com ironia.
Como os objetivos de que se serve - e mais particularmente as É preciso enfim assinalar um hábito muito particular: se por
roupas que usa- são impregnados de força, ela não pode esbanjá-los acaso se come um alimento proibido, não se deve pronunciar seu
nome . Por exemplo, a melancia consagrada a Yãsan é chamada de
"inhame vermelho". Um dia chegamos na Ooméa e João da Ooméa
1 Rego, Afonso da Silva. "Etnorreligiosidade negra". Estudos sobre a etnologia estava à mesa, acompanhado por três ogã, comendo caranguejos
do Ultramar Português. Vol. 11. Coleção Estudos, Ensaios e Documentos, n? 84. azuis, caçados no mangue. Sabendo que este animal é co nsagrado a
Lisboa , 1961, p . 307.
2 E~ll : divindade inferior , que exerce junto às demais o papel de mensageiro e
criad o.
1
As i n i c i a~ões geralmen1e se fa zem por grupos.• denominados ' ' barcos" . 11. p ri
mcira in iciad a do gru po recebe o no me de odofon.
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Obaluaê e que em princípio é proibido comê-lo, não fizemos o menor imediatamente a boca e a força de suas palavras não correrá o ris~o c.J c
comentârio e preparâvamo-nos para saudar cada um deles, quando diminuir, passando através de uma boca suja.
uma pessoa antiga da casa apressou-se em dizer-nos: "Tâ vendo, seu Passa em seguida a abluções mais íntimas. Vivendo cm um tlcs
pai estâ comendo siri!". O tom empregado era.tão decisivo, que não conforto total , com um material rudimentar, em uma promiscuidatlc
percebemos o erro no emprego da palavra "siri", caranguejo do mar, contínua, ayawo deve entregar-se a uma limpeza rigorosa, que está na
que não é comida proibida, em lugar da palavra "caranguejo". Mais base de suas crenças, pois precisa estar sempre em condições de rece-
tarde.' ela me explicou que se eu tivesse feito algum comentârio e pro- ber o àrf$à, visto que seu corpo é o suporte dele. Assim sendo, o pró-
nunciado a palavra "caranguejo" , mais ninguém poderia continuar prio banho obedece a um verdadeiro ritual, pois ele ressacraliza quoti-
comendo, pois teríamos advertido a divindade da ofensa que se lhe dianamente o receptâculo do deus. A yawo só pode utilizar âgua
fazia, ao passo que tinham tentado induzi-la em erro, ao falar de morna ou fria. Começa por lavar a boca por meio de três goles suces-
"siri". · · sivos, que ela cospe. Lava em seguida os órgãos sexuais. Derrama em
A yawo aprende o que deve fazer quando vem ao terreiro e qual seguida um pouco de âgua no topo da cabeça, após dizer "ago, meu
deve ser sua atitude em r~lação ao pai-de-santo, aos mais velhos e aos pai" (ou "minha mãe"). Dê-me permissão, meu pai (ou minha mãe).
membros de seu " barco". Comparece ao terreiro sempre que possível. Agora pode ensaboar-se, mas é preciso evitar as esponjas do mar, pois
Toma cuidado em chegar lá de " corpo limpo", isto é, sem ter tido são ligadas às almas ...
relações sexuais desde a noite anterior. Caso contrârio, deve tomar um Deve tomar um banho de chuveiro e trocar de roupa antes das
banho antes de sair de casa . Ao chegar, não cumprimenta ninguém . seis da tarde . Vestida com roupa limpa, volta a pedir a bênção a seu
Des~an~a um instante no quintal e vai trocar de roupa, pondo os trajes pai. À noite, antes de ir deitar em sua esteira, no rõnko, pede-lhe per-
habituais do candomblé. Em seguida vai saudar os E~ú, dando-lhes as missão para tanto e dâ um doba/e diante dele.
costas e esfregando os pés na terra. Após dâ um doba/e no rõnko4 A yawo não pode dormir de costas. Não se pode despertá-Ia
diante do poste central, diante das quartinhas sagradas no quarto do~ bruscamente, sobretudo chamando-a por seu nome de batismo. Se ela
àrt'sà, no de Oba/uaê e no de à~àlà. Dá em seguida um doba/es diante demora para acordar, é preciso dar-lhe alguns tapinhas na planta dos
de seu pai-de-santo e pede-lhe a bênção, bem como a da mãe pequena, pés e chamâ-la baixinho por sua dijinaB. Uma vez de pé, pode sentir-se
da yamoro, dos ogã 6 e de todas as que são mais antigas do que ela. um tanto insegura e tonta. Deve então dar três pequenos saltos no
Somente então cobre a cabeça com um oja branco, que amarra sob a , mesmo lugar.
forma de turbante, pois não se pode receber uma bênção com a cabeça As distâncias tornaram-se muito grandes entre ela e o pai-de-
coberta. santo, mesmo se, antes de ser iniciada, tivesse com ele relações amisto-
Se dorme no terreiro, levanta-se com o nascer do sol, pois não sas. Agora não é a primeira a lhe dirigir a palavra, não brinca mais
pode estar dormindo quando o sol estiver quente e seria de muito mau com ele e não lhe faz Qlais perguntas. Se quer pedir-lhe algo, não o faz
gosto seu pai não encontrâ-la de pé, quando ele acordasse. Seu p'ri- diretamente, mas recorre à mediação da mãe pequena, que transmite
meiro trabalho é lavar a boca e o rosto para apagar eventualmente os seu pedido, se julgar que deve fazê-lo. Jamais fica de pé diante do pai-
traços de uma alma que tivesse vindo rondâ-Ia durante a noite a fim de de-santo, e sim agachada, com a cabeça baixa. Não come mais à sua
colher em seus lâbios "o mingau das almas". Gilberto Freyre cita este mesa, não dorme mais em sua casa, não bebe cerveja ou álcool em sua
~ostume, que ainda é escrupulosamente observado nos dias de hoje 7 • presença. Torna-se excluída do círculo de seus amigos.
E p~r esta razão que a iniciada sempre deixa um copo de água perto da Durante um ano tem direito a um prato que seu pai lhe dá ao
esteira. Se por acaso a chamarem durante a noite, ela poderâ lavar distribuir a comida, mas ela vai comer na cozinha do fundo, no barra-
cão ou no rõnko, após pedir a bênção a seu pai e às pessoas mais anti-
4
gas . No fin al desse período compra tudo aquilo de que tem necessida-
Rõnko. quarto secreto do terreiro, onde se desenrolam as in iciações.
5 de e vai cozinhar no fundo do terreiro, com as outras iniciadas. Com
Saudação da iniciada, que deita de bruços no chão.
~ Mãe pequ.ena, yamoro, ogã: pessoas que têm um posto no terreiro .
8 Dijina: nome africa no dado à iniciada.
Freyre , Gtlberto . Casa grande e senxala, Paris, 1952, p. 277.

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freqüência, os pratos são preparados em comum e os mantimentos são tinha sido preparada. Comunicou-nos baixinho sua surpresa, pot ém
comprados reunindo os recursos de todas as yawo. Aquela que tem limitou-se a isso. João da Goméa iniciou a cerimônia c no montcnl o
pouco dinheiro beneficia-se da generosidade de suas irmãs, pois de fazer a oferenda aos E.Jú da rua, descobriu que o prato de f'arora
jamais se nega comida a quem se encontra em situação difícil. não estava diante dele. Ficou encolerizado, reclamou em altos brados
Algumas vezes, entretanto, seu pai a chama e dá-lhe de sua mão e censurou asperamente "aquelas que já tinham idade suficiente para
o "bolo de comida" (aboro) que tira do prato e coloca em sua boca. saber destas coisas, que não prestavam atenção em nada, que não
Ela agradece, pedindo-lhe a bênção: "Abença, meu pai! - Meu Pai providenciavam para que nada faltasse, etc., etc.'' Cada uma baixou a
(àn$à) lhe abençoe." É uma maneira de receber um pouco da força do cabeça, em meio ao maior silêncio. A mãe pequena e a yamoro não
pai-de-santo, de participar de seu O.Je e é uma honra para a iniciada. disseram uma palavra. Após o sacrifício, na cozinha dos fundos, per-
Muitas vezes as mais antigas também repetem o gesto, reforçando guntamos à yamoro o porquê de sua falta de reação. "O que eu podia
desta forma os laços espirituais no seio da comunidade. fazer?" respondeu . "Nosso pai não deu ordens ... Perguntar-lhe se era
Pouco a pouco a yawo organiza-se para gozar de algum conforto preciso preparar a farofa? Deus me livre! la parecer que eu sabia mais
durante o tempo que passa no terreiro. Assim que seus meios financei- do que ele e que queria lhe dar uma lição! Somos todas pequenas, não
ros lhe permitem, compra um baú, no qual guarda seus trajes de can- sabemos nada, não somos nada. É ele quem dá ordens. Mesmo se ele
domblé, seu prato e caneca de ágate, o lençol, um cobertor, a bacia se esquece de alguma coisa, não podemos dizer nada ... "
para se lavar, uma toalha de rosto, um pedaço de sabonete, etc. Divi- Assim, mesmo se indevidamente censurada, a yawo deve evitar
de geralmente esse baú com uma ou duas irmãs de "barco". Os baús tentar se desculpar. Escuta com a cabeça baixa e pede respeitosamente
são guardados no rõnko, ao .longo das paredes, e colocados sobre pe- a bênção daquele que lhe passa uma reprimenda, a fim de implorar
quenos bancos de madeira que os protegem da umidade do solo. Em seu perdão.
1960 havia cerca de trinta deles no rõnko da Goméa. É somente com seus irmãos e irmãs de iniciação que pode
As filhas-de-santo que moram nas redondezas guardam suas falar com maior liberdade. Através das provações comuns, o barco
coisas em casa e não têm baús no rõnko. Algumas comparecem com fo rjou ligações sólidas. Possui pequenos segredos, unidade e solidarie-
menos regularidade e quando participam das grandes festas instalam- dade. Um interdito muito rigoroso, que proíbe quaisquer relações
se nas casas de suas irmãs que residem na vizinhança ou em edifica- sexuais entre os membros do mesmo "barco", depura esta amizade de
ções situadas no interior do terreiro, fora da casa de João da Goméa. todo e qualquer equí voco. Esta proibição vigora em relação às outras
A jovem iniciada deve se mostrar extremamente circunspecta em iniciadas mais jovens ou mais velhas, mas em grau menor. Se marido e
seu relacionamento com as yawo mais antigas. Deve observar com o mulher encontram-se diante da contingência de passar pela iniciação,
maior escrúpulo as regras de precedência e para isso é preciso que co- o pai-de-santo providencia para que eles não façam parte do mesmo
nheça a ordem de feitura das diferentes iniciadas, pois elas são por de- barco. De qualquer maneira, o número de iniciados do sexo masculino
mais susceptíveis em relação a esse ponto. Não deve esquecer nunca é pouco elevado e a maior parte deles é homossexual.
que em todas as atividades do terreiro tem de se apagar diante daque- As yawo do "barco" comem, cozinham e dormem juntas. Se um
las que são mais antigas do que ela. Deve cuidar para não tomar dos membros encontra-se em situação difícil, é para seu "barco" que
nenhuma iniciativa sem que tenha recebido ordens nesse sentido. Não ele se volta . Incumbe ao odojon representar e dirigir o grupo que
pode sequer assinalar os erros que observou por parte de alguém e forma a primeira célula da comunidade.
nem se permitir qualquer tipo de comentário. Isto vigora para todos Resta à jovem yawo aprender tudo o que diz respeito ao ritual e
os escalões. Um dia, quando tudo já estava preparado para o sacrifí- aos àn$à: como cuidar de sua quartinha sagrada, como se comportar
cio a E.Jú, a yamoro percebeu subitamente que a farofa9 do pade 10 não durante o candomblé e as diferentes cerimônias. Pouco a pouco pro-
cura descobrir os segredos do candomblé, o "fundamento".
9 Nesse sentido passará por grandes dificuldades, pois ninguém
Mistura de farinha de mandioca e azeite de dendê.
10
Oferenda a Et~ú. que precede todas as cerimônias, a fim de que nada possa lhe ensinará as cantigas, danças ou gestos apropriados. Como não
perturbar a festa. pode 'fazer nenhuma pergunta, deve observar, com a cabeça e os olhos

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baixos, sem nunca demonstrar que está parecendo atenta ou interessa- conseguiu reencontrá-las na memória, apesar de umu boa vo tHaJc cvi
da demais. Logo descobre que muita curiosidade pode prejudicá-la. dente. No entanto, passados alguns dias, assist imos a c~ IU mc~l ll:t t' CI i
Isto se deve por um lado ao fato de que as mais antigas não procuram mônia e a cantiga lhe veio aos lábios aparentemente scrn nenhum
divulgar o que sabem, pois correm o risco de se verem ultrapassadas esforço.
pelas mais jovens, e por outro lado devido a que não é bom aprender . Isto mostra muito bem que o ensino nunca se faz de modo sist c
depressa demais, pois tudo o que se faz no candomblé pode acarretar, mático. "Isto vem com o tempo ... ", dizem as mais antigas. Desta
em caso de erro, conseqüências extremamente prejudiciais para si e forma, através de um hábito lentamente adquirido, o saber da yawo
para os outros. Se uma filha-de-santo antecipasse determinadas inicia- incrusta-se no mais profundo de seu ser.
tivas, poderia provocar o descontentamento das divindades, devido a A primeira obrigação da yawo em relação ao àri$à é ocupar-se
conhecimentos mal assimilados, utilizados sem muita consciência de em cuidar (ose) de sua quartinha sagrada. Só pode fazê-lo se for filha
seu significado. As divindades poderiam então desencadear catás- de um àn!jà feminino (yaba 14 ) . Caso contrário, encarrega disso uma
trofes, chegando à lortcura e até mesmo à morte. ''O Tempo não gosta outra iniciada que pertença de preferência a seu "barco", com a con-
do que se faz sem ele" , dizem. as mais antigas. . dição de que ela seja umayaba. Como compensação pelo trabalho que
A yawo logo percebe que, por ocasião das cerimÔnias fechadas e teve (mas não se trata de um pagamento), receberá um presentinho,
dos sacrifícios ou do bod 1, há sempre iniciadas mais antigas que se tal como uma vela para seu àn!jà, uma garrafinha de mel ou um
colocam diante dela. Se levantar demais a cabeça, é logo chamada à pedaço de sabão da Costa. O presente é mais uma homenagem ao
ordem por um "Baixa a cabeça, yawo!" É preciso, portanto, ter muita àn$à que um agradecimento à própria iniciada.
paciência e perseverança. No entanto, quando houver muito trabalho, Em princípio o ose deveria ser feito cada semana. Na realidade é
se ela não hesitar em depenar as galinhas, cozinhar a comida das raro que isto aconteça, pois muitas vezes as iniciadas moram longe do
divindades, costurar os trajes dos àr~à por ocasião das iniciações, terreiro e nem sempre estão livres no dia consagrado ao àn!jà, devido a
varrer , lavar e carregar baldes de água, ganhará pouco a pouco a con- obrigações familiares ou profissionais.
fiança das antigas. Criará amizades e em troca de longas horas de tra- - A mãe pequena faJ o ose de todas as quartinhas sagradas pelo
balho adqui rirá, prestando atenção nas conversas, conhecimentos pre- menos duas vezes por ano , por ocasião das ·festas de 9$QSi e de Yãsan.
ciosos. Se se esforça em comparecer a cada festa, aprenderá as dife- O ose é obrigatório após as cerimônias fúnebres que se desenrolam no
rentes cantigas e os passos de dança. terreiro, quando uma iniciada morre. Quando ayawo vem ao terreiro,
À medida que o tempo passa, a yawo adquire maior segurança. contenta-se em trazer flores e acender velas ao pé do àn!jà.
Dança melhor, sabe responder às cantigas e despertar do transe as Se ela é yaba, tendo dinheiro, compra uma bacia de louça ou de
yawo mais recentes, que por sua vez lhe devem respeito. As distâncias metal prateado ou dourado, ou então de cobre vermelho, segundo o
entre ela e as mais antigas se atenuam . O conhecimento do ritual àn!jà e coloca dentro dela a quartinha sagrada de seu àn!jà. Compra
entranha-se lentamente nela. Gestos e palavras, danças e melodias igualmente pratos, que servirão para as diferentes oferendas.
acabam por se tornar automatismos indissociáveis; seu registro alcan- Após a iniciação, a yawo deve fazer oferendas a seu àn!jà, decor-
ça tamanho grau, que eles não podem mais serem rememorados isola- rido um determinado lapso de tempo, a fim de renovar a fo rça de que
damente. Quando quisemos verificar as letras de certas cantigas com o foi revestida. Essas cerimônias têm o nome de "obrigações". O pai-
alabe'l, foi preciso cantá-las, pois ele só as reconhecia acompanhadas de-santo providencia para fazê-las coincidir com as datas das grandes
da melodia. Muitas vezes o próprio pài-de-santo sentia dificuldade em festas. Com efeito, durante esse período, o terreiro está cheio de ini-
descrever-nos determinados rituais sem mimar seus diversos episó- ciadas, que assistirão aos sacrifícios, ajudarão a cantar, a cozinhar e a
dios. Não pudemos registrar a cantiga entoada durante os sacrifícios cuidar daquelas que fazem suas oferendas. Os ogãs estão presentes, a
para o egún 13 por ocasião das cerimônias fúnebres (a$e$e), pois ele não fim de tocar os atabaques e fazer o àn!jà dançar, se for o caso. É por
11
Bori: oferenda à " cabeça" . isso que, em geral, as "obrigações", da mesma forma que as inicia-
12
Alabe: chefe da orquestra de candomblé.
13 Egún: duplo da pessoa morta, alma. 14
Yaba: órt~à feminino, filha de um órt~à femimno.

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ções, inserem-se no ciclo das festas de ()~<)si e de Yãsan. Depreende-se que seus componentes providenciem determinado material p:11 a a
desse fato que a data não corresponde exatamente ao aniversário do cerimônia:
dia do Nome, que marca a entrada da yawo na seita. De qualquer ma-
neira, a obrigação não pode preceder esse aniversário. É mesmo um - uma esteira nova ;
costume deixar correr um certo tempo após essa data, pois caso - dois lençóis;
contrário poderia parecer que a yawo tem pressa em adquirir antigüi- - um pequeno travesseiro, com uma fronha bordada (após um
dade, o que seria considerado de extremo mau gosto e arriscaria lhe ano de feita, a yawo tem o direito de usá-lo);
trazer infelicidade, pois o àri~à poderia ficar ofendido com isso ... - velas;
As "obrigações" devem ocorrer após um, três e sete anos após a - uma saia e uma camisa brancas;
iniciação.
. .
A "obrigação" de um ano compõe-se de um bori e de um
ammal de duas patas. A de três anos compreende um bori e o sacrifí-
- dois oja. 15

cio de um animal de quatro patas. A de sete anos reveste-se de mais Enfim, se bem que não seja obrigatório, é de bom gosto não
importância, pois é ela que marca a passagem a uma classe superior, a esquecer de oferecer uma feijoada aos ogã e às pessoas que têm posto
dos ebamin. no terreiro, e que poderá ser consumida após o candomblé que se
A obrigação de um ano tem lugar em um momento qualquer, seguirá às oferendas.
após o aniversário do dia do Nome, que marcou a entrada da yawo na Nos dias que a precedem, as quartinhas sagradas são purificadas
seita. Os membros do barco tentam agrupar-se sob a direção do odo- através de um ose.
fon, que deve, enquanto chefe do grupo, reunir o dinheiro necessário O "barco" eS(::!ra a data escolhida pelo pai-de-santo. Três dias
e entregá-lo ao pai-de-santo . Se uma das iniciadas não tem dinheiro, antes , um ou mais galos são sacrificados a E$ú. No. dia determinado,
as demais cotizam-se, a fim de pagar sua parte. O próprio pai-de- cada um toma seu banho, veste roupa branca e senta-se sobre a
santo não sabe quanto cada uma deu . Por ocasião da iniciação, ele esteira. A cerimônia começa por um bori, que compreende o sacrifício
quase não levou em conta as diferenças entre as quantias desembolsa- de um pombo, acompanhado muitas vezes pela oferta de um peixe. As
das por cada uma das noviças. Algumas talvez não tivessem dado -y awo permanecem três dias deitadas, sem tomar banho, ou trocar de
nada. Utilizou a quantia global para comprar antes de mais nada o roupa. Levantam-se apenas para as abluções matinais ou vespertinas.
que era necessário a cada uma delas : potes, quartinhas, objetos a Toda manhã a mãe pequena dá a cada uma delas um pedaço de obi,
serem sacralizados, animais para os sacrifícios ... Em seguida, em fu n- que é mastigado e engolido com um gole de água. Decorridos três
ção da quantia que sobrou, mandou costurar os trajes de cada àn~à. a dias, faz-se o sacrifício de uma galinha para o àn~à, acompanhado de
fim de que cada um deles fosse honrado da melhor forma possível. diversos alimentos. As yawo ainda permanecem três dias no quarto
Da !llesma forma, o "barco" se mostra coeso e junta todos os dos àn~à. Dormem ali, mas têm permissão de circular durante o dia
seus recursos em comum , quando se trata das "obrigações" . Apesar no terreiro, evitando o sol e o calor do fogão. Comem a comida que o
disso, é raro que a iniciada conte com os outros. Extremamente pai-de-santo manda servir-lhes, mas não tomam banho e não mudam
orgulhosa e suscetível, para ela é uma questão de honra gastar o que de roupa. Se não lhes for possível ficar tanto tempo assim no terreiro,
for necessário a fim de fazer suas oferendas . Muitas delas trabalham o pai-de-santo pode proceder aos sacrifícios destinados ao àn~à
anos a fio, economizando o que podem, a fim de reunir o dinheiro imediatamente após o bori e, nesse caso, o tempo de reclusão é apenas
necessário, vivendo miseravelmente, a fim de ter um dia a possibili- de três dias. No dia dos sacrifícios, ou no dia seguinte, ocorre o can-
dade de oferecer a todos uma festa esplêndida em honra de seu àri'sà. domblé, durante o qual o àn~à incorpora-se e dança.
É isto que torna a yawo industriosa, dedicada ao trabalho, cheia ·de A obrigação termina pelo "despacho" 16 • As iniciadas deixam o
recursos em meio à adversidade. "Meu santo há de me ajudar .. . "
Cheia de fé no futuro, possui uma energia e uma coragem que não são 15 Ojá: panos enfeitados com franjas ou rendas.
costumeiras entre outros elementos da sociedade. 16 Cerimônia durante a qual as sobras das oferendas são reunidas e jogadas em
Quando o "barco" reuniu o dinheiro necessário, é preciso ainda um rio ou no mato , dependendo do caso.

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terreiro somente no dia seguinte, após ter pedido a bênção do pai-de- receber oferendas, procede-se à cerimônia, geralmente pot ocusi!'lo úa
santo e de todas as filhas-de-santo presentes. A mãe pequena joga obrigação de três anos ou da de sete anos. Acontece algumas vc:t.cs que
água por cimé! da soleira da porta, antes que elas saiam à rua. As esta cerimônia ocorra mais cedo. Quando se inclui no ciclo de uma
iniciadas são submetidas a um "resguardo" de três dias (abstenção de obrigação (um ano, três, sete anos), é realizada três dias após os sacri-
bebidas alcoólicas, pimenta e relações sexuais). fícios ao órt'sà dono da cabeça.
Em princípio, a obrigação de três anos reúne todo o " barco", a A mãe ·pequena lava em primeiro lugar uma pedra (ou um objeto
exemplo da obrigação de um ano. Nenhum dos membros do grupo de metal, dependendo do óri$à), bem como o recipiente que a conterá.
deveria fazer esta obrigação antes do odojon. Este uso, no entanto, é Esta primeira lavagem é feita com água pura e sabão da Costa. Faz-se
cada vez menos respejtado, se bem que então não faltem críticas, uma segunda lavagem com abo 11 • Coloca-se no recipiente uma moeda,
trazendo como conseqüência algumas discórdias. No entanto, uma búzios e, algumas vezes, um bracelete de metal.
parte do " barco" chega geralmente a se pôr de acordo e entrega A cerimônia consiste no sacrifício de um animal de quatro patas,
globalmente determinada quantia de dinheiro ao pai-de-santo. acompanhado de quatro galinhas, ou então de um ou de vários animais
Um ou vários galos são oferecidos a E~ú. Três dias após tem de duas patas. Após entoar três ou sete cantigas para o órf$à, o pai-de-
lugar o bori; passados mais três dias, são feitas as oferendas aos óri$à. santo executa o sacrifício, seguindo o ritual de sempre. A iniciada
Compreendem um animal de quatro patas, acompanhados de quatro permanece sentada sobre a esteira e o ón~à dono da cabeça não
animais de duas patas. A iniciada deve cumprir um "resguardo" de incorpora. A iniciada não recebe o sangue do sacrifício sobre a testa e
sete dias. o peito.
A "obrigação" de sete anos tem mais importância que a ante- De agora em diante nenhuma oferenda a um óri$à secundário
rior, pois ericerra o ciclo de aprendizado da yawo e marca sua entrada poderá ser feita sem que o óri$à principal também a receba. Por
na categoria das ebamin. Mesmo quando a yawo completa sete anos ocasião de uma obrigação, cada ón~à secundário receberá uma
de iniciada, só é considerada ebamin após ter cumprido esta obriga- oferenda, seja um animal de duas patas, seja um simples prato de
ção. Poderá então encurtar a saia, usar sobre a blusa uma segunda comida, por ocasião dos sacrifícios destinados ao óri$à dono da cabe-
blusa flutuante e transparente, geralmente de tule ou de renda (bata), ça. Existem, porém, incompatibilidades entre certos óri$à. Assim é
amarrar o oja na cintura e não mais à altura do peito e manter a cabe- que $àngó não pode comer ao mesmo tempo que Yemãja. Nesse caso,
ça coberta com um turbante, quando dança no barracão. Não usará faz-se um intervalo de três dias entre os sacrifícios.
mais numerosos colares de várias voltas, mas apenas um ou dois cola- Vimos que, a partir de sua concepção, o indivíduo está colocado
res de uma só volta, tal qual o runjebe, feito de coral e de contas mar- sob a proteção de um ón~à que é o dono de sua cabeça. Este ón~à
rons, consagrado a Yãsan. Durante esta cerimônia, o pai-de-santo faz-se acompanhar por um espírito infantil, ere, e por um criado que é
corta uma mecha de cabelos no alto da cabeça da yawo e coloca-lhe no seu mensageiro, que executa suas vontades e que, em seu nome,
pescoço o ke/e que ela usou por ocasião da iniciação. Ela não o tirará "trabalha" para ele: E$ú. Este, portanto, não é um órt~à comum.
durante vinte e um dias. O "resguardo" é de sete dias. A cerimônia Ocupa uma· posição subalterna mas, apesar de tudo, extremamente
comporta um sacrifício a E$ú, em seguida um bori e, três dias após, a importante na hierarquia divina. Colocado sob a autoridade do óri$à,
oferenda·de um animal de quatro patas para o óri$à. Esú não se serve dos seres humanos para se incorporar, apesar de
Após esta cerimônia, a iniciada tem o direito de conhecer o o~orrerem raras exceções a esta regra, quando ele é o dono da cabeça.
nome de seu óri$à, que foi anunciado ao público no dia de dar o Exatamente como o órisà, ·Ê$ú pode ser fixado em um suporte
Nome, por ocasião das cerimônias de iniciação. material, o que permite fazê-lo trabalhar a vontade, destinando-se-lhe
O "assentamento" do odu é destinado a sacralizar as pedras ou oferendas apropriadas. Nesse caso, ~ú não se encontra mais somente
os objetos de metal, de modo a estabelecer ua.1a ligação entre a inicia- sob a direção do óri$à, mas também sob a do ser humano. Este deve
da e o óri$à (ou os óri$à) que acompanharr o dono da cabeça. mostrar-se muito prudente e cuidar para não fazer muitas oferendas a
Pode ser levado a efeito em datas muito variáveis, determinadas
pelo jogo da adivinhação. Quando se sabe que determinado óri$à quer 17 Líquido obtido através da maceração de certas plantas.

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~ú sem fazê-las também ao ór~à, de tempos em tempos. Caso con- tomadas em seu sentido literal. Quando o ón~m ap:lll'l.l' l' \ IIli lllh.t
trãrio, ocorreria um desequilíbrio e o óri$à, ciumento dos favores con- acaba de ser iniciada, diz-se que ele está "deitado" . ()uando \ III J.H' 11111
cedidos ao seu servidor, poderia muito bem desinteressar-se de seu ón$à do mesmo tipo, diz-se que ele põe o precedente "d~· Jtll'lh m"
filho e não protegê-lo mais com a mesma solicitude. 4ú poderia então Quando surge um terceiro, diz-se que ele põe o segundo "de Jodh m" l'
agir CO!llO bem lhe aprouvesse, o que não deixaria de criar sérias per- o primeiro "de pé". Estes termos, "deitado", "de joelhos", " de pl•",
turbações na vida do interessado. Não se deve nunca perder de vista não implicam em nenhum valor espacial. É um modo de marcar uma
que os trabalhos executados com o auxílio de ~ú são sempre peri- progressão na hierarquia.
gosos e que é muito importéilite proteger-se de eventuais efeitos negati- No interior do mesmo "barco" os ón$à permanecem sempre em
vos. Aqueles que fazem 4ú trabalhar devem tomar um cuidado parti- pé de igualdade. Se, por exemplo, hã dois Ô$QSI~ como no "barco"
cular com seu óri$à. dos dezenove 18 , o segundo por ordem de entrada não pode "levantar"
Por ocasião da iniciação, E~ú recebeu oferendas, da mesma o primeiro; assim, o (J~çJsi de Jinãngola não podia levantar o (J~f)si de
forma que acontece por ocasião das obrigações. É porém ao E$ú do Sesetu, pois ambos faziam parte do mesmo "barco". Foi preciso espe-
terreiro que são feitas tais oferendas, o que equivale a dizer que elas se rar , até que surgisse um outro O$(JS1'. Foram iniciados quatro
destinam ao 4ú do pai-de-santo. Este E~ú representa todos os demais "barcos ". Em um barco de quatro apareceu um 0$9Sr~ o de Talembe,
e de certa forma é por seu intermédio que o E~ú individual de cada ini- o qual levantou o Ô$(JS1' de Sesetu. O 0$9si de Jinãngola teve de espe-
ciada recebe o que lhe é devido. Chega porém uma hora, determinada rar o O.Jf)si de Kitalamungongo, em um barco de dez, a fim de ser
pelo jogo de adivinhação do pai-de-santo, em que é necessãrio que levamado por sua vez.
uma iniciada trate mais particularmente do seu E$ú. Deve, então, Assim, cada vez que em um "barco" encontram-se dois ou mais
cuidar de "assentar" seu ~ú, a ·run de poder fazer-lhe oferendas ón$à do mesmo tipo, criam-se filiações distintas a partir de cada um
di retas. deles . No "barco" de dezenove se criaram imediatamente quatro filia-
A iniciação e as diversas obrigações, que retornam a intervalos ções, a partir dos quatro $àngó que nele se encontravam.
preciso~ . permitem à força sagrada, ao a~e, de se transmitir à filha-de- Se bem que o O$e se transmita sempre das mais antigas às mais
santo. novas, a filha-de-santo , cujo órr$à foi levantado pelo de uma filha
O a~e lhe é comunicado de várias maneiras: mais jovem, é devedora desta última. Demonstra seu reconhecimento
passa diretamente do pai-de-santo a cada iniciada, por ocasião fazendo-lhe presente de uma galinha para seu ón$à, quando a mais
das diferentes obrigações; jovem faz oferendas, por ocasião das "obrigações" de um ou de três
comunica-se também de uma filha-de-santo a outra, seguindo a anos. Na realidade, esse costume não está mais sendo seguido. Devido
ordem de iniciação; a um número muito grande de iniciadas, ninguém sabe mais muito
transmite-se igualmente de modo global de "barco" a "barco", bem como se estabelecem as filiações e em que sistema cada um se
pois o "barco" forma um todo, no interior do qual cada membro é insere.
solidário com os demais. O erro de uma iniciada diminui a força de Apesar de tudo, esse sistema muito sutil permite conservar uma
todo o "barco", bem como a das iniciadas que virão em seguida. Por estrutura extremamente precisa, que reforça as ligações já existentes
outro lado, esse erro não prejudica em. nada a força das iniciadas mais ao nível do "barco". Graças a este fato, o sistema conserva intacta
antigas. sua coesão. Aqui não há lugar para cisões ou dissidências. A comuni-
Al~m disso, estabelece-se uma filiaç_ ã o entre os óri$à do mesmo dade fo rma um todo indivisí vel.
tipo, à medida que eles aparecem na sucessão dos "barcos". A regra estrita da vida quotidiana, as oferendas que devem ser
Considera-se que o ón$à provoca a vinda de um outro do mesmo tipo. feitas aos im$à impõem á yawo uma disciplina rigorosa e uma luta
Diz-se então que "ele o chama". sem tréguas. Não somente deve trabalhar para ganhar o pão-de-cada-
Inversamente, os últimos a chegar empurram para diante os dia, mas deve ainda enfrentar despesas de monta. As própria oferen-
ón$à mais antigos e os fazem subir na escala hierárquica. Utilizam-se,
então expressões que poderiam dar margem à confusão, se fossem ~w O " barco" das dezenove (yawo) é o quinto grupo das iniciadas da Goméa.

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da ~ implicam em somas elevadas, às quais acrescente-se o "dinheiro variadas. O àr~à manifesta seu descontentamento agi tH.lo \Oiltl' 1l\
do ~;hão", que representa o preço do trabalho do pai-de-santo e o seu acontecimentos e a filha-de-santo vê a sorte abandoná-lu . PcHkt fi o
gunho, os presentes em dinheiro à yamoro e à mãe pequena, os pre- emprego,- ficará doente, passará por dificuldades financeiras. 'J'od ~"
sentes de menor importância a todas aquelas que deram sua contri- essas circunstâncias desfavoráveis são então imputadas aos im:yd cm·o
buição por ocasião \las cerimônias, a feijoada e as bebidas dos ogã. A lerizados. Foi assim que vimos atri buir-se uma tentativa de suicídio ao
yawo deve ta111bém, por ocasião de cada "obrigação" , confeccionar fato de que a filha-de-santo havia se recusado a observar determi-
um traje novo para seu àn~à e comprar-lhe pouco a pouco insígnias nadas proibições , durante o período em que trazia o kele ao pescoço .
tão ricas quanto possível. Se for o caso, deve adquirir uma terrina pa- Em outra ocasião, quando uma iniciada foi atingida pela hemiplegia,
ra o "assento". concluiu-se que ela era vítima da vingança de seu àri'sà Oba/uaê. Com
Essas múltiplas despesas impõem-lhe enormes sacrifícios·. efeito, algum tempo antes ela, em atitude de desafio , havia-lhe ofere-
Apesar de todos os seus esforços, acontece com freqüência ela não cido uma ... banana, quando, na verdade, chegara · o momento de
poder assumir compromissos tão pesados. Não perde, entretanto, a oferecer-lhe um animal de quatro patas.
esperança e sua coragem não diminui. Mesmo as mais preguiçosas e O àn~à pode manifestar mais diretamente sua cólera, inflingindo
descuidadas procuram febrilmente um emprego, antes das festas de ele mesmo uma punição corporal à sua filha. De repente, a filha-de-
Õ~9si e de Yãsan_. Com o dinheiro ganho, podem comprar um pano, santo entra em transe, seu àrr~à incorpora e vai para o mato, sem que
uma blusa, uma saia nova. Ninguém pode imaginar a quantidade de nenhuma das pessoas à sua volta consiga retê-lo ou segui-lo. Perma-
trabalho, de serões e o cansaço que a entrada em público, nos dias de nece lá durante várias horas e até mesmo durante vários dias, e regres-
festa, representa para as filhas-de-santo. Muitas delas não disporão, sa em um estado lamentável: descalça, com as roupas em frangalhos,
de manhãzinha, dos trocados necessários para comprar um sanduíche enrolada em folhas de urtiga ou em ramos de cansanção, cujos longos
ou um cafezinho antes de voltar para casa. Elas, no entanto, tiveram espinhos aguçados penetram profundamente em sua carne. Quando
sua hora de glória. Mantendo o olhar distante, parecendo nada ver, ele consente em deixar o corpo da filha-de-santo, ela desperta em meio
não perderam sequer um detalhe enquanto dançavam : o brilho de sa- a grandes sofrimentos; machucada e humilhada. Este castigo tem o
tisfação no olhar de seu pai, o frêmito de sua narina, o porte de sua nome de. inkita, idêntico ao da prova do mato , que faz parte da inicia-
cabeça, que naquele momento pareceu ainda mais altivo. Sabem que ção. Aqui, porém, a inkita assume um sentido de puniçãõ. O àr~à
ele está contente e orgulhoso de suas filhas, orgulhoso da Goméa e pode inflingi-la a qualquer filha de santo, inde.pendente de seu grau de
esse orgulho, comum a todos os membros da comunidade, é por si só iniciação . O próprio pai-de-santo não lhe escapa.
uma homenagem aos deuses . A punição algumas vezes assume formas diferentes. éJ'm a filha-
Pode acontecer que a fé da yawo vacile. Ela se cansa, não observa de-santo, que estava apaixonada por um outro iniciado, foi conde-
mais as proibições, freqüenta menos assiduamente o terreiro, não nada por seu àrr~à a permanecer três dias no rõnko, deitada em um
comparece mais nos dias de festa , insurge-se contra a autoridade abso- colchão recheado com sete quilos de milho torrado."Quando desper-
luta de seu pai-de-santo. Corre então o risco de ser cruelmente cas- tou do transe, seu cor~ estava bastante dolorido.
tigada. · Presenciamos o seguinte caso: uma filha~de-santo, que se aban-
Apesar da extrema sujeição da filha-de-santo a seu pai, não donava à bebida e não freqüentava mais.a Goméa, surgiu em um dia de
incumbe a ele inflingir-lhe um castigo. Vimos uma única vez João da festa, em meio a uma chuva torrencial. Estava em transe e o àrt~à
Goméa levantar a mão sobre um dos filhos. Tratava-se de um menino incorporado parou na entrada e deu o ila 19 , a fim de chamar a atenção
de nove anos, criado na Goméa e que se mostrou insuportável. A da assistência e ser reconhecido por todos. Em seguida se atirou no
palmada que recebeu era a mesma que todo bom pai de família teria chão e rolou na lama até a entrada do barracão. Os ogã e as iniciadas
administrado em caso semelhante. mais antigas foram correndo tentar levantá-lo, mas em vão. O õr~à
No interior do candomblé, o castigo não vem de um ser humano, ultrapassou a soleira e continuou rolando até os atabaques, enquanto
por mais elevado que ele seja na escala hierárquica. São os próprios
deuses que punem os culpados. O castigo pode assumir formas muito 19 G rito especifico de cada óri~à e que permite seu reconhecimento .

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Ioda, a~ iniciadas o rodeavam, a fim de tentar dissimular a cena aos dos participantes. Ao fazer reviver as lendas dos dcu,cs, "WH'OI(IHII•l
olhurc~ profanos. Transportado para o ronko, o órt$à explicou que assegura a transmissão do patrimônio cultural. A prc-.crH,:u dm omtJ
incorporou-se no momento em que a iniciada encontrava-se em casa, suscita, através da alegria comum, uma explosão de fcrvw 1111\lrw l'
sem a menor vontade de comparecer à festa e que ele a havia trazido a permite a fusão com o sagrado. Através da filha-de-santo, cknH'nln
pc; de muito longe, para castigá-la em público. essencial de acesso ao divino, a comunidade transcende a condu;tlo
Pode acontecer que o ór~à incorporado inflija um castigo à humana e assegura sua libertação espiritual.
culpada e ordene aos membros do candomblé assegurar sua execução.
Obedecendo seu comando, os ogãs vão cortar galhos de goiabeira,
denominados atori e, acompanhados pelas iniciadas presentes, batem
na filha-de-santo em transe. Seria contra a regra uma filha-de-santo
mais jovem bater em uma mais velha. Nesse caso as iniciadas mais
jovens entram em transe e são os 'or~à incorporados que castigam a
culpada.
Note-se que, se as irmãs de "barco" estiverem presentes, seus
ón$à não demoram para incorporar e, solidários, pedem para sofrer o
mesmo castigo. Com efeito, as irmãs de um mesmo "barco" integram
uma unidade e o erro de uma delas recai sobre as demais. Este tipo de
punição recebe o nome de ~imba.
É portanto sempre através do ón$à que os erros são sanciona-
dos. Ele também serve de freio e de regulador de possíveis excessos e
adverte aquelas que por sua vez poderiam sentir-se tentadas a errar.
Dessa forma, asyawoaprendem que no mais fundo delas mesmas um
outro eu implacável as julga. Além do mais, a revelação, perante
todos, dos erros cometidos, o espetáculo do castigo recebido e, algu-
mas vezes, a participação do grupo nesse castigo, tanto para
administrá-lo quanto para recebê-lo, permitem manter a coesão e a
disciplina no seio da comunidade.
Plasmada em seu inconsciente à imagem divina, a yawo sai
engrandecida dessa experiência. Seu potencial vital aumentou, sua
harmonia e seu equilíbrio interior foram reforçados. A nova motiva-
ção de sua existência afirma sua personalidade. Através de sua função
religiosa, ela ocupa um lugar de primeira linha na sociedade. Goza da
consideração do grupo e extrai desse fé;ltO um certo orgulho, se bem
que em contra-partida sofra a servidão que tal posição lhe impõe.
Consciente da grandeza de seu papel, dobra-se com alegria a uma dis-
ciplina e a uma certa moral que a elevam aos olhos de todos. Aceita
sem hesitação as noites sem dormir, o cansaço, o esforço quotidiano
em seu trabalho, a fim de enfrentar os encargos financeiros acarreta-
dos pelas oferendas e pelos trajes suntuosos do órt$à.
Por ocasião da Festa, o esplendor das roupas, dos cantos e da
dança, a profusão de luzes e cores satisfarão as aspirações estéticas

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