-

A S N IN F AS DO VALE

Este é um livro onde a poesia e a revolta an-

dam de mãos dadas.
Nos vales poéticos, em meio às belezas da
natureza, desenvolve-seo drama da opressão do
homem pelo homem, e da conseqüenterevolta do
homem conlra o homem.
Chegará um dia eÍn que a cordialidadee a
justiça substituirãoa crueldadee a tirania?
E que caminho levaria a tal Íim: a violência
revolucionáriaque derruba e destrói,ou a paciên-
cia evangélica que visa a mudar o agressor pelo
exemplo e a pregação?
Possa cada leitor encontrar a resposta no seu
coraçâo e nas páginas deste livro.
 GIBRAN KHALIL GIBRAN

IIÍ|UALE
AS]II]IFAS
CHALUTA
TMDUçÃO DE MAÌ.ISOUR

AssociaçãoCult ur al
lnt er nacionalG ibr an
 ÍN D IC E
Tttulo do originalárabe:
ARAESAL.MURUJ

Montagemda capa:
EOUIPEDA ACIGI

I lustrações:
GIBRANKHALILGIBRAN
Marta, de Ben I
l mpressão:
A Cinza dos Séculose o Fogo Eterno 23
José Fagundes do Amaral & Cia Ltda
Rua do Livrdmento, 196 -Tel.243-7046 João, o Louco 4T
Distribuição:
CATAVENTODistribuidorade LivrosS.A.
Rua ConselheiroRamalho,928
01325 - São Paulo,SP
Tel .:289-0811

Direitos desta edição reseruadosa:

O MA N S O U RC H A LLITA
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20000 - Rio de Janeiro,RJ

B R A S IL

1978
 MARTA,DE BEN

A trás dest e Eu encar cer ado.

Tenho out no Eu. alado e í ivr e
C omp ar ados com seus sonhos,
ÍV l eus sonhos são com o ur na con- lda nas t r evês
F rneus desejos, com panados conl os seLis,
S ãu ccr - 'r our nr aaglt acão de esquelet os.
G ibr an

.
 /^ 1'
DEU F AI m or r eúquando el a es tav aai n-
da no ber ç o, e s ua m ãe m or r eu antes que
ela atingi s s eos dez anos " Pequena ór fã,
Íoi abandonadana ç as a de um v i z i nho po-
br e que v ív i a,c om s ua m ul here fi l hos ,das
sementese fr utos da ter r a, naquel aal dei a
isoladaentr eos bel osv al esdo Líbanr ::Ben.
Toda s as m anhãs ,s aía des c al ç a,v es ti -
da de tr apos , atr ás de um a v âc a l ei tei r a,
que levavaa pastar nos prados onde o ca-
pÍm er a m ai s abundante.Enquantoa v ac a
pastava,a pequena orfã ora cantava ccinì
os pássaros,ora chorava com o córrego,
or a contem pl av aas fl or es e as bor bol etas .
lnvejav aa v ac a por ter Ìanto que c om er .
Ao cr epús c ul o,aç oi tadapel a fom e, v ol *

'11
tava para aquele casebree sentava-secom
a f i l h a d o se u p ro te to ra co me r um pão de
n n i l h oc o m a l g u ma s ve rd u ra s e fr utas se-
c a s , p a r a d e p o i s e ste n d e r-see dor m ir so-
b r e a p a lh a n u a , d e se j a n d oq u e â vida fos-
s e u m s o n o co n tín u o .
Assim passaram-seos anos na vida da
p o b r e M a rta ,n o se i o d a s co l i n as e dos va-
l e s d i s t an te s.E e l a cre sci a co m o cr escem
as plantas, e os sentimentosse Íormavam
n e l a s e m q u e o p e rce b e sse como , se for -
m a o p e rÍu men a s fl o re s.E , p o uco a pouco,
a m e n i na to rn o u -se u ma mo ça, similar a
u m a t e r r a b o a e vi rg e m n a q u al o conhecí-
rnento não havia jogado suas sementes
n e m â e xp e ríê n ci ad e i xa d osu as m ar cas.
N o s , q u e p a ssa mo s a ma i or Par te de
n o s s â v i d a n a s ci d a d e s p o p u losas,quase
n a d a s a be mo sso b re a vi d a d o s habitantes
d a s a l d e i a si so l a d a sd o L íb a n o.O tur bilhão
d o m o d e rn i smon o s Íe z e sq u ecera filoso-
Í i a d a q ue l e mo d o d e vi d a b e lo e singelo'
1' ì
cheis d e v i r tude e i noc ênc i a.Som os m a"
terialmentemais ricos que os aldeões,mas
são eles os m ai s nobr es .N os m ui to s em ea-
trnos,e pouco ceifamos. Eles ceifam o que
semeam.Somos escravosda ambição, en-
quanto que o contentamentoos rnantém
sempr e l i v r es .Bebem os a v i da num a taç a
tur bada pel a am ar gur a. El es bebem ã
vida em toda a s ua l i m pi dez .
Mar t a hav i a j á c om pl etado 16 anos , ê
estava sentada um dia junto a um corrego
quandoouv i uo r uídode c as c oss obr e o pe*
dr egul ho do r i o. Vi r ou a c abeç a e v i u ur n
cavaleiro aproximar-selentamente.Quan-
do chegou perto dela, desmontou do seu
cavalo e c um pr i m entou- ac om um a di s ti n-
ção que el a nunc a hav i av i s to num hom em ,
e per E untou- l heque c am i nho dev i a tom ar
para chegar à costa. A moça não sabia, e
quis ir indagar. Mas o cavaleiro a deteve.
Seu olh,ar acariciava*lhe com luxúria os
pés desnudos e a pele tostada pelo sol. E
13

sorriacom tantadoçuraquê a moçaquase
desatoua chorar e ficou muda por motí-
vos que não sabia explicar.
No crepúsculodaqueledia, a vaca lei-
teira voltou sozinhapara casa.O protetor
de Marta procurou-amuito entre as coli-
nas,e sua mulherpassoua noitechorando
quietamentee repetindo:"Vi-a certa vez
em sonho,sendoatacadapor umafera sel-
vagem,e ela estavasorrindoe chorando
ao mesmotempo""
TaisÍoramos únicosÍatosque me Íoram
contadossobre Marta,naquelaaldeia bo-
nita ondetinhaido passaras minhasÍérias
de verão.
2.
Quando chegou o outono,voltei a Bei-
rute paracontinuarmeusestudos.Enquan-
to contemplava,certa tarde, a luta huma-
na na praçado mercado,aproximou-se de
minrum meninode uns cinco anos.vesti-
tJl
do de farrapose carregandouma bandeja
sobre a qual haviauns ramalhetesde Ílo-
nes.E com voz Íraca,tornadaquaseinaudí-
vel pelahumildade herdadae a submissão,
disse:
* Não quer comprar LlmasÍlores, se-
nhor?
Olhei para seu rosto pequeninoe páli-
do, para seus olhos veladospela necessi:
dade,parasua bocaentreaberta comouma
ferida num peito dolorido,para seus bra-
ços desnudose magros,e paratodo o seu
corpofrágilque pareciaumaÍlor emurche-
cida entreas floresfrescasde sua bande-
ja - olfreiparatudo isto num relance,e ex-
presseimínhasimpatiacom rlmsorrisotris-
te. Comprei-lheumasflorespara ganhara
sua conÍiança.Sentia que, atrás daquele
olhar melancolico, havlauíïì pequenoco-
raçãoesmagadopor uma dessastragédias
que tantas vezesvitimamos pobres sem
que a genterica lhes prestea menoraten-
15

ç ã o . Q ua n d ç l h e d i ri g i a p a l a v r a,olhou- nr ne
com espãnto"Pois habituara-se,como seus
s e m e l h a n te sh u mi l d e s, â se r inter pelado
c o m v o z á sp e ra p o r a q u e l e sque conside-
r a m o s me n i n o sd a s ru a s co mo coisas su-
i a s e d e sp re zíve i s,e n ã o co mo pequenas
a l m a s fe ri d a s p e l a s fl e ch a s do destlno'
P e r gu n te i -l h e :
Q ualéoteunorne?
Chamo-meFuad,senhor.
De quem es filho e onde estãoteus
pais?
- S o u Íi l h o d e Ma rta ,d e Ben.
- On d e e stá te u P a i ?
Abanou a cabeça e não responder.Jl, Ço'
mo se ignorasse o sentido da palavra"
. * E o n d e e stá tu a mã e , Fuad?
- Está doente em casa'
Estremeci ao ouvir cJsa ;'esposta,poús
p e r c e bi i me d i a ta me n teq u e a m ãe doer r te
e r a a q u e l a me sma N 4 a rtad e quem ouvina
o corneço da historia ern Ben' Aquela rne'
16
n[na que v i v i a no m ei o dos c am pos e dos
pr ados, pobr e m as i noc ente e fel i z , hav i a
sido ar r as tada pel o r i o da c i v i l i z aç ãov i ,
clada e d epos i tadana c i dade,v íti m aoa s ua
cegueirae da c r uel dadedo hom er n.
- Conduz e- m eaté el a; quer o v ê- l a.
Cam i nhouna m i nha fr ente,s i l enc i os oe
atônito.D e v ez em quando,v ol tav a- s epar a
ver ifica r s e r eal m enteo es tav a s egui ndo
Naquel asr uas i m undas ,onde o v ento s e
mistur a c om o s opr o da m or te, o m eni no
entrou numa casa qLiase em ruínas. Se-
gui- o at é um quar to r i m i do c uj os úni c ç s
moveiser am um a v el ha l âm padae um a c â-
nnamÍser a,na qual dor m i a um a m ul her .C
gar oto a ac or dou,e quandoel a m e v i u, di s *
se com voz entrecortadapela dor:
- Que quer de ÍÌìi m , o hom em ? C om -
pr ar um r es tantede v i da par a m anc há- l o
com suas pai x ões ?N ão tem v er gonhade
pr ocur arum a m ul herdoenteque s o es per a
a m or te?
17
 :ìas: "Marta morreu". e não acrescentg
Aproximei-me, e dissecom uma emoção
nada.
que desejavaÍosse maniÍestanas minhas
Tom ou as m ãoz i nhasdo fi l ho e as bei -
palavras:
- Não tenhas medo de mim, o Marta. iou com ar dor , e c onti nuouentr e s ol uç os :
- O r nundool har á par a m eu fi l ho c om
Nãovim aquicomoum animalÍaminto,mas
desdém e dirá: "É o Íruto do pecado, o fi-
como um homemcastigado.Sou um liba-
lho de Marta a prostituta,o filho da vergo-
nês da montanhaque vivi certotempo na'
nha." Por que os hom ens s ão c egos e i g-
quelesvales e povoadosvizinhosdos Ce-
nor ante s -N ão c om pr eendemque s ua m ãe
dros.
purificou sua infância com sofrimentos e
Comoveu-seao ouvir minhas palavras,
lágrimas, e resgatou sua vida pela priva-
e com umavoz ondese misturavam a ago'
nia,a súplicae a dor, disse: ção e a i nfel i c i dade.Vou m or r er , dei x an-
do-o sozinhoentre os meninosdas ruas. Se
- Veio com comPaixão.Possa o céu
por mim.E melhor,contudo,que ele sobreviver,talvez ajude o céu a casti-
pagar-lhe
gar aquel eque foi c r i m i nos opar a c om s ua
se vá antesque alguémo veia nestelugar
mãe e para com ele; e se morrer,encontrar-
de perdição.Sua piedadenão rnedevolve-
me-á esperandopor ele lá onde estão a luz
rá a'inocênoiae não lavarámeuspecados
e a paz.
e não afastaráa mão da morteprestesa se
me baniu, Retr u quei :
abatersobremìm.A Hunranidade
apê^
se o vir aqui.Peço-lhe, - Não, Marta, não és impura, embora a
e o condenará
vida te tivesse entregue às mãos dos im-
nâs, que não mencionemeu nome naque-
puros. As manchas do corpo não atíngem
les valessagrados.Ou,se o fizer,digaape-
18 l9
a a l ma i ma cu l a d a e, a n e ve am ontoadanão
rnataas sementesvivas"Estavida é uma ei-
ra de provaçõesonde os feixes das almas
s ã o de b u l h a d o sa n te s q u e dêem sua Ço-
l h e i ta :e i n fe l i ze sd a s e sp i gasabandonadas
f o r a d a e i ra ,'p o i s a s Ío rmigas da ter r a as
carregaráoe as aves do céu as apanharão,
e e l a s n ã o e n tra rã on o ca mpo do Senhor '
Foste ultrajada,e teul carrâsco é filho dos
p a l á ci o s, d o n o d e u ma gr ande Íor tuna,
m a s d e u ma a l ma p e q u e nina.Ës vítima de
u m a i n j u sti ça .Ma s é rn e l horser vítima do
q u e a u to r d a i n j u stl ça .Ë s um a flor pisada
p e l o a n i ma l q u e so b re vi veno homem. . "
C o n so l a -te .É me l h o r se r a Ílor pisada do
q u e o p é q u e p i sa a fl o r.
- S i m, so u víti rn a d e um a gr ande in-
j u s ti ça ." . E sta vase n ta d ajunto àquelaÍon-
t e q u a n d oe l e p a sso u" . . Falou- mecom do-
ç u r a. . . D i sse -meq u e e u er a bonita,e que
e l e me a ma va e n ã o me abandonar iaia-
m a i s. . . C u rvo u -seso b re m im e nr e beijou
20
Er a a pr i m ei r a v ez que al guém bei j av a a
pohr e o,* fãabandonadaque eu s em pr efo-
r a. . L ev ou- m e par a um a c as a i s ol ada.
Deu-rnevestidosbonitos e perÍumese pra-
tos r efinados .. . F eztudo i s s o c om um s or -
r iso qu e es c ondl a s uas i ntenç õesm al do-
sâs. . D epoi s ,s ati s Íezs eus apeti tesc om
r neLx cor po e s obr ec ar r egour ni nhaal m a dç
ver gon ha,e r ne abandonou,dei x ando nas
minhas entr am hasum a c ham a v i v a que s e
nutr iu de m i m n'ìes m ae s ai u par a es te m un-
do entr e l am entose gem i dos .. " N aquel a
casa isol ada,abandonou- m eo ç r i r ni nos o,
com meu fi Ihc , s em r ec ur s ose s em apoi o.
Quando os seLrsan'ligossouberam da mi-
nha infel i ç i dade,v i er am p!'oc ur ar - m e
simples m ente par a c om pr ar m eu c or po
cor n se u di nhei r o." .
Depoísde um a paus a,ol hou par a as al -
tur as e di s s e c om s eu úl ti m o s us pi r o:
- - ó j us ti ç a i nv i s ív el ,que m or as atr ás
dessas aparências terríveis, ó Ìu qLle ou-
ves as lamentações da minha alrna defi-
n h a nte ,a ti p e ço , u n i ca menteem ti cohfio"
T e m p e n a d e mi m. C o m tua m ão dir eita,
p r o t ej ee g u i a me u Íi l h o ,e c om tua mão es-
q u e r d a ,re ce b e mi n h a a l ma. . . Padr e nos-
s o q u e e stá s n o cé u . . . Santificadoseja
t e u n o me . . . Qu e ve n h a teu r eino' , Que
A CINZA
seja Íeita tua vontade na terra comCI " nc
c é u . . " P e rd o a -n o s n o ssos pecados. . -" DOS SECULOS
3. E O FOGO ETERNO
Q ua n d oro mp e ua a u ro ra,puser amo cor -
p o de Ma rta ,d e B e n , n u m caixão bar ato,e
dois mendigos carregaram-nae erìterra-
ram-na nurn campo abandonado,distante
Ó alma, quandoo ignorantediz:
da cidade, pois os padres recusaram-sea
"A alma desaparececom o corpo..
rezar sobre os seus restos e proibiram que E o que se vai não volta mais;"
seus ossos descansassemno cemitérioon- Dize-lheque as flores também passanl,
d e o cru ci fi xove l a so b re os tumulos'E so Mas as sementes Permanecem.
duas pessoasacompanharam-naaté a sua Assim é com a essênciada vida.
ú l t i m a mo ra d a : o se u fi l ho e um m oço a Gibran
quem a vida havia ensìnadoa connpaixão"

22
 :

.tfl

'ï
"{16A.C.}
{No Outosnodo Anso

A Nol r E tr or - r r xae .qur etude,e a v i da

par ou na C fi dadedo Sc ì u, ( ,J r naa ur YÌa, as
tarnpadasfonann-se apagando nas residên-
cias es pal hadasao r edor dos tem pl os gi -
gantesc osqLi er epous ar ndes de há s ec ul os
o ol i v el r ase C os l our os .D epc i s ,
no n- neidas
levar-ltou-se a lua e rrerteuseus raios sobre
a hr anc ur a das c ol ur tas de m ár m or e, gi -
gantes quË l /el ar i 'ì,no s r l ênc i o da noi te.
snbr e os al tar esdos deus es "e c ontem pl am
corn oi'gull^noas tqlrres dc il.-íbano sobre as
colinas distan"ltes

* nflalbecl';, ;l r f,Ì{rrtÌ;lrl f.{y'd, ,;r. í? citl,ír.cle d'e Êaui, o deu::

río ,S'ol.

25
 Naquelahora cheia de magia' quando
as almas dos que dormemse unem aos
sonhosdo infinito,Nassan,filho do Sacer-
dote Ahiram, chegou ao temPlo de As-
tarté*, carregandouma tocha' Com mãos
trêmulas,acendeuas lâmpadase pôs Íogo
aos incensórios.E os perÍumesda mirra
e do,incensosubirame estenderamsobre
a estátuada deusaum véu imaterial'simi-
lar ao véu que envolveo coraçãohuma-
no. Aioelhou-se,depois,peranteo altar cie
os
ébano incrustadode ouro e levantou
o
braçose os olhos para as alturas'Com
rostocobertode lágrimas,e com uma voz
"Pie-
entrecortadapelossuspiros,bradou:
dade, ó Poderosa Astarté, ó deusa do
amor e da beleza!Tem Pena de mim e
aÍastaa morte da bem-amadaque escolhi
por tua vontade' - . Vãostêm sido os remé-
n Era 7tÍr'a ilos ileusas pteìIitetos dos--Ienicios que i'''s
adorat)aÌn enl Tfio, iiit'on, BiOtos e Boatbeck'
que ocenile a chamo-d'a iiao u oelo sobre
o n'mne ite AÍrotlite'-íIeusa
àrãgo, o aìIotaram sob
ihe Vênus
e çIo dmor, e os romalìQÍ sob o nottlc
26
dios dos médicos e vãs as implorações
dos sacerdotes. Não resta senão apelar
par a teu nom e s agr ado.Ouv e m i nhas s ú-
plicas, olha para o esmagamentodo rneu
coração, e deixa ao meu lado a metade da
r ninha a l m a, par a que c om par ti l hem osos
prazeresdo amor e a beleza da juventude,
pois ambos são reflexos de ti mesma e
cantam a tua gl or i a.
"Destas profundezas, apelo para ti, ó
Astarté venerada, apelo para tua ternura.
Ouve-me, â mim, teu escravo Nassan, Íi-
lho do s ac er dote Ahi r am que c ons agr ou
sua vida ao serviço de teu altar. Amei uma
jovem entre as jovens e escolhi-apor com-
panheira. Mas os gênios nos invejaram e
insuflar amno s eu c or po del i c ado os ger -
mes de uma doença estranha,e enviaram
o mensageiroda morte para arrebatá-la.E
ele está, agora mesmo,ao lado da sua ca-
Dízif,ït i(la ma, rugindo como um tigre faminto, esten*
Q*
Q' iurellttld?' dendo sobre ela suas asas negras, amea-
daotelrza
27
 servos e aproximou-sedele respeitosa-
garras" 'rnente,e murnìuroL!ao seu ouvidg:'oMeu
çando-a corn suas
"P o r i sto , vi m a ti , h umilde' solícito' " Senhor,vossaamadaabriu os olhose vos
flor que chamoucom urgência.Vim avisar-vos."
Ap i e d a -ted e mi m e p ro te g e- a'ur na
verão da vi- Levantou-seNassane saiu depressa,se-
não experimentoua beleza do
d a , u rn p á ssa roq u e a i n d a n ão
ter m inousuâ guido pelo servo.Quandochegoujunto à
Salva- apar a doente,inclinou-sesobre ela e tomou-lhe
c a n ç ã oà a u ro rad a j u ve n tude'
e a a mão frágil, e beijou-a repetidasvezes
que voltemos a entoar tuas cançÕes
sacr lfícios cornose quisesseinsuÍlarnelavida da sua
g l o r ifi ca rte u n o me ,e ã o fer ecer
azeite per- própriavida. E ela virou para ele a cabe-
em teu altar, com vinho velho e
templos ça afundadaentre os travesseiros, e seus
f u m a d o ,e a co b ri r o ch ã o de teus
o deusa tábiosesboçaramum sorrisoque era o úl-
com rosas e iasmins' Salva-nos'
vençâ de seu corpomeigo,a úl-
d o s m i l a g re s,e fa ze co m q ue o amor timo movimento
am or ' "
â mo rte , o d e u sa d a mo r te e do tima luz de sua almano crepúsculo, o últi-
ern sl- mo adeusde"seu coraçãoprestesa pãrar
Permaneceuo lovern um minuto
e sus- para sempre.
lêncio,vertendost'rador em lágrimas
m im!
p i r os. D e p o i s, a cre sce n tou:"A' i de Depois, disse numa voz entrecortada:
vener ada "Os deusesestão-rnechamândo,o noivo
M e u s so n h o s e stã o p e rd idos' ó
minhas da minhaalma.E a morteestá chegando
Astarté, Íneu ÇCIraçãoestá morto'
l á g ri ma sq u e i rn a mr-me o s olhos' Ressusçl- para me separarde ti. Não te desesperes,
r nr - pois a vontadedos deusesé sagradae os
t a - m e p e l a tu a b o n d a d e ,e Euar da- m e
n h a a ma d a ." decretos da morte são iustos. Vou-me,
se'"ls
Entrou, então, no templo um dos

28
ouandoas taças do amor e da juventude çar entreos abismosda vida e da morte.
estãoainda cheiasem nossasmãos,e os Na quietudedaquelanoite,tremeramas
caminhosda vida se estendemdiante de pálpebrasdos que dormiam,e gemeua al-
nós.Vou-me,ó bem-amado, para o mundo ma das mulheres,e as criançassentiram
dos espíritos,mas voltarei a este mundo pavor;pois ressoavamnas trevasos gritos
porquea poderosaAstartédevolvea alma desesperados vindosdo paláciodo sacer-
dos enamoradosque partemantes de ter dote de Astarté.
gozadodos prazeresdo amor e da gloria . Quandorompeuo dia, acorreramos vi-
da juventude.Haveráoutro encontroentre zinhospara consolarNassane ampará-lo,
nós.ó Nassan,e beberemosjuntoso orva- mas não o encontraram.
lho da auroraem coposde narcisoe rego- Dias depois, uma caravanavinda do
zijar-nos-emoscCImos pássarosdos cam- * Oriente contou haver visto NassaneÉran-
pos,à luz do sol. Até à vista,meu amor!" do nos desertosdistantes,movendo-sesem
Sua voz sumiu,mas seus lábios conti- objetivocom as gazelas.
nuarama estremecercomo uma Ílor mur-
cha ao sopro dos zéfirosdo amanhecer' Passaram-se os séculos.As pegadasde
Quando,porém,Nassanlhe tocou a boca cada geração destruiamas pegadas das
com seus lábios,achou-ageladacomo a gerações anteriores,Os deuses antiEos
neve,e sentiú-thea alma doloridaesvoa- abandonaramo país. Outros deuseslhes
-- sucederam.Os majestosostemplosda Ci-
r ,-* "Estot)e's mortos, e Ele aos ressuscatou;
rnorrer d'e nooo, e oos tessüscítorá' outra
, tor-ooi'a -a'oÍLé'.
oez * dadedo Sol foramdemolidos.Os belospa-
o Buda: "Estooatnos otuteim nes"
e'a Ete üalta,reis.'' É dis.se
olrtrd's oezes até fácios converteram-seem po. Os jardins
te ,nund,o e hoie uottarnos, e tsoltoremos
qr,,e seiamos pe-rleitos coÍlo os ileuses'"

31
30
verdejantessecaram.Os campos férteis se
t r a n s fo rma râ m e m d e se rto. Subsistir am
apenas as ruÍnas gigantescas,como som-
b r a s d o g l o ri o so p a ssa d o .
M a s o s sé cu l o s q u e a n i quilamas r eali-
zaçõesdo homem nada podem contra setis
sonhos e seus sentimentos.Estes sbbre-
vivem com o espírito poderoso e eterno,
embora desapareçam aparentemente,co-
mo o sol desaparecede noite e a lua, de
dia.
2.
(Na primavera de 1890 D.C.)
A lu z j á se Ío i . O so l a caba de r ecolher
s e u m a n to d a s p l a n íci e sde Baalbeck.O
pastor ruma para as ruínas do templo, se-
g u i d o p o r se u re b a n h o ,e l á Se senta entr e
as colunas desnudas.As oveliìas se reco-
l h e m à su a vo l ta ,p ro o u ra ndosegur ançanâ
m e l od i ad e su a fl a u ta .
32
À mei a- noi te,quando o c éu j á hav i a l an-
çado as sementesdo amanhã nas trevas,
as pálpebras de Bala se cansaram dos
fantasm asque v i am ac or dadas .l nc l i nou-
se sobre seu braço, e o sono aproximou-se
e tocou-lhe os sentidos corn as pontas de
seus dedos. Libertando-seentão de seu Eu
adquiri do,r eenc Ç ntr ou- s ceom s eu Eu i n-
terior, sensívela sonhos superioresàs leis
do homem e ao seu ensino. E essa v[são
ampliou os campos em volta dele, e reve-
lou- lheos es c onder i j osdos s egr edos e ; s ua
alma se isolou da procissão do ternpo e
ergueu-se,sozinha,ccrrÌ pensamentoshar-
monios ose i déi asantec i padasE, . pel a pr í-
meir av ez na s ua ex i s tênc i a.v i s l um br ouas
causas da fom e es pi r i tual que per s egui a
sua juv entude:um a fom e Íei ta da doç ur a
.da vida e da s ua am ar gur a,dos gem i dos
do desejoe da paz da satisfação,e que não
encontr aal i m entoadequadonem nas gl o-
r ias do m undo nem nas r eal i z aç õesdos
século s .
33
 O pastor sentiu uma emoção diÍerente
subir das ruínasdo templo.Era uma emo-
ção delicadae misteriosa, que libertaa al-
ma comoa brasalibertao incenso,ou co-
mo os dedos,tocando as cordas,libertam
a rnelodia.E era uma emoção nova, nas-
cida de nada e de tudo, mas que cresceu
e evoluiuaté abranger-lhe todo o Eu ima-
terial. E toda essa emoção renovadorase
formou num minuto de sono, como de
um só minutopodemsurgiras imagensde
mil gerações,e como naçõesinteirasdes-
cendemde urnasó semente.
E contemplando as ruínasdo templo,seu
sono Íoi substituídopor um despertares-
piritual. Lá estavamos vestígiosmaltrata-
dos do altar e as colunasderrubadase as
paredesdesmoronantes. Mas Balaviu mui-
to alémdo presente.
Seu coraçãobatiacom
violência.Como um cego que recuperaa
vista,Íoi levadopor ondasde pensamentos
para um passado distante, e lembrou-se
34
dessascolunaseretas,e de lâmpadase in-
censóriosde prata em volta da estátuade
uma deusavenerada,e de sacerdotesres-
peitososfazendooferendasnum altar de
ébano incrustadode ouro. Lembrou-sede
iovénstocandonastrombetase nos cÍmba.
los e de jovenscantandopara a deusado
amor e da beleza,Viu tudo,istoem ima-
gens nítidase sentiuvibraçõesincompre-
ensíveisagitaremas profundezassilencio-
sas. Mas a lembrançanão nos devolvese-
não os reÍlexosde seres que vimos em
algumade nossasvidaspassadase senão
o eco de vozesquejá ouvimos.Querelação
pode existir enti"eessas recordaçõesmis-
teriosase o passadode um moçoque nas-
ceu entre horizontesestreitose passousua
juventudea zelar por um rebanhode ove-
lhas nos prados?
Levãntou-see caminhoupor entre'as
pedras desmoronadas, enquantosuas re-
cordaçõeslongínquasretiravamos veu

o e s q u e ci me n tod a su a i ma gínaçãocom o
a s m ã o s re ti ra ma te i a d e a ranhade um es-
p e l h o . Qu a n d o a ti n g i u o co ração do tem -
plo, deteve-se,como se houvesseno solo
u m í m ã q u e l h e i mo b i l i za sseos pés. Olhou
e v i u u ma e stá tu aj o g a d an o chão.Ajoelhou-
se ao seu lado sem saber o que fazia' As
emoções jorravam de seu ser como CIsan-
gue jorra das feridas graves' e as batftlas
de seu coração se aceleravam e se atra-
s a v a m co mo o n d a s d o ma r que sobem e
d e s c e m. B a i xo u o o l h a r, e gemeu, e cho-
r o u , po rq u e se n ti a u m i so l am entopenoso
q u e se p a ra vasu a a l ma d e um a alma for -
mosa que estava ao seu lado desde antes
mesm(ìque ele viesse a esta vida.
Tinha a sensação de ser apenas uma
c e n t e l h a q u e se ti n h a se p ar ado de Deus
a n t e s d o co me ço d o s te mPos.
' Sentiu o bater de asas suaves a esvoa-
çarem entre seu peito em fogo e seu cére-
b r o e m e b u l i çã o "
JO
Sentiu um amor poderosoenvolver-lhe
o coração e dominar-lhea alma, e sepa-
rá-lo do mundodas medidase das quan-
tidades- aqueleamorque falaquando:s
línguasda vida se calam,e que se ergue
como uma colunade luz quandoas trevas
escondemtudo.E esseamorencheua al-
ma de Bala com sentimentossuaves e
amargos,como o sol faz cresceras flores
e os espinhosao.ladouns dos outros.
Masque era esseamor?De ondevinha?
Quequeriade um jovemrecolhidocom seu
rebanhoentreaquelascolunasem ruínas?
Que era esse vinho vertido num coração
que nunca havia sido embriagadopelo
olhar das moças? Que eram essas can-
ções celestiaisacariciandoo ouvidode um
pastorque nuncahaviasido embaladopor
melodiasÍemininas?E que queriam de
Bala,desviadodo mundopor suasovelhas
e sua flauta?
O pastorfechouos olhosem lágrlmase
37
estendeuas rnãoscomo um mendigo,e
seus gemidos entrecortadose humildes,
expressando a queixae o desejo,se trans-
formaramem palavrasquaseinaudíveis:
'''Quemés tu, que estástão pertode meu
coração,tão longedos meusolhos?.Sepa-
ras meu Eu do meu próprioEu, e atas meu
presentea temposremotose esquecidos.
Seráso fantasmade uma fada que veio do
mundoda eternidademostrar-mequão vã
é a vida e quão Íracosos homens?Ou se-
rás a alma da rainhadas fadas que saiu
das fendas da terra para me enÍeitiçara
mente e ridicularizar-me perante minha
tribo?Quemés tu? E que é essaÍascina-
ção que me matae me ressuscitaao mes-
mo tempo?E que são essasemoçõesque
enchem meu coração de luz e Íogo? E
quemsou eu? E que é esseEu novoque
chamoEu, mas que me é estranho?Terei
absorvidoa água da vida com as vibra-
ções do éter e me tornadoassimum anjò
38
que vê e ouveos segredosdo invisível? Ou
fui embriagadopor um vinho e LrmÍiltro,
que me impedemde distinguiras verdades
racionais?
Calou-seum minuto.Seus sentimentos
se avolumavam, e sua almase agitava.Dis-
se: "ó tu, que aluz revelae aproxima,
mas
que a noiteescondee aÍasta,o espíritofor-
moso que pairasno espaçodos meusso_
nhos, despertaste- em mim sentimentos
adormecidoscomo sementesde floresen_
terradassob as camadasda neve,e pas_
saste como o zétiro carregadodo perfu_
me dos campose tocastemeus sentidos,
e eles vibrarame estremeceramcomo as
Íolh,asdas árvores!Mostra-tea mim,se es_
tiveresvestidade matéria,ou mandao so-
no fechar rninhaspálpebraspara que te
vejano meusonho,se estiveresliberadada
terra. Deixa-metocar-te. Deixa-me ouvir
tua voz. Rasgaesse véu que nos separa,
e destróiesse corpo que escondeminha
3g
divindade,e dá-me asas para que voe atrás
d e t i a o s p a l co s d o é te r su p e r ior ,se Íor lá
q u e h a bi ta s,e me a ch a re sd i g no de segulr -
Bala sussurravaao ouvido da noite es-
sas palavras,como o eco de uma melodia
q u e s e mo vi a n o Íu n d o d e seu peito' Ao
seu redor, as sombras da noite pareciam
evaporaçõessaídas de suas lágrimas' So-
bre as paredes dos templos, dançavam
imagensfeéricas da cor do arco-íris.
Assim mesmo, sentia-se feliz nas $uas
lágrimas. Procuravaenxergar o que havia
atrás das Íormas visíveis, através de urn
sonho belo e terrível,como um proÍetacon-
templa as estrelas do céu na esperança
de ver descer a Profecia' ' ,
Ap r oxi mo u -sea a u ro ra ,e a quietudees-
tremeceu à chegada da brisa matinal, e a
luz cor de violeta começoua infiltrar-seen-
tre as vibrações d-! éter. Sorriu o espaço
40
cCImos or r i o i nfel i zquando depar a no s o-
nho com sua bem-amada.Os pássarosdei-
xaram seus esconderijos nas fendas da*q
muralhas em ruínas, e começaram a can-
tar , anu nc i andoa c hegadado di a.
Bala, com a fronte em chamas, desper-
tou e ol hou pes adam enteem v ol ta de s i .
Com o Adão, quando D eus l he abr i r a os
olhos, es tr anhav atudo o que v i a. D epoi s ,
chamous uas ov el has ,e el as s e l ev antar am
e segui r am - noaos pr ados v er des .
Bala fi tav a o es paç o l ím pi do.Seus s en-
timentos se debatiam ante os enigmas da
existência,e evocavamas geraçõespassa-
das e futuras num relance, para, logo em
seçjuida,devolver-lhea saudade e o dese-
jo. Ach av a- s es epar adoda al m a de s ua al -
m a como o ol ho que não v ê a l uz . E, a c ada
gemido, destacava-seuma chama de seu
coração ennfogo.
Atíngi u o ar r oi o, c uj o m ur m úr i o r ev el a-
va os segredos dos campos. Sentou-se à
4't
sua margem,sob os salgueiros.Suasove-
lhas se espalharampara pastara erva.Go-
tas do orvalhobrilhavamna brancurade
sua lã.
Minutosdepois,sentiuas batidasde seu
coraçãose precipitareme as vibraçõesde
sua alma se tornaremmaisvelozes.Olhou,
inquieto,em volta de si e viu uma jovem
sair de entre as árvores ôarregandoum
cântarosobre o ombro e aproximar-sede-
vagar da Íonte, seus pés desnudoscober-
tos de rocio.
Quandochegouà fontee se inclinoupa-
ra encher o cântaro,olhou para o outro
lado, e seus olhos encontraramos olhos
de Bala,o pastor.Com um suspiro,deixou
os olhosem Bala,
cair o cântaroe recuo-u,
perdidq que encontrade re-
como um ser
pentealguémque lhe é conhecido,Passou-
se um minutocujos qegundoseram como
luzesque guiavamessesdois coraçõesum
parao outro.F, no silõncio,haviamelodias
42
estranhasque devolviamàs duas almas
lembrançasvagas de uma fonte e árvores
Íguaisàquelafonte e àquelasárvores.Ca_
da um olhavao outro com ternurae Íala_
va-lhesem palavras.
Quando'secompletouo entendimento e
o conhecimento entresuasalmas,atraves_
sou Balao arroio,atraídopor umaforçase_
creta,e Aproximou-se da moçae beijou-lhe
os lábios e os olhos sem que ela se mo_
vesse,como o perfumedo jasmimse entre_
ga sem resistênciaà brisa que passa.A
jovem apenasinclinoua cabeçasobre o
peitocomoalguémcansadoque encontrou
o repouso,mas seu coraçãoproclamavaa
alegría do despertar.Depois,olhou para
seucompanheiro com a expressão de quem
acha vãs todas as palavras,comparadas
com o s-iìêncio,
a linguagemdas afmas.
Caminharamos dois entreos salguei-
ros,.,
dgss entidadesunidasnuma só, dois
ouvidosatentosà inspiraçãodo amor,duas
43
aln'ìasinundadasda gloria da Íelicidade.
Atrásdeles,seguiamas ovelhas,apanhan*
do ocasionalmente as pontasdé uma hor-
taliçaou de uma flor. Os pássarosvinham
ao seu encontrode todos os lados'
Quandoatingirarna orla do vale, o sol
estendiapor cima das colinasseu manto
de ouro.Sentaram-se sobreuma pedra,em
volta da qual cresciamas violetas.A jo-
vem olhou nos olhos negrosde Bala"O
vento brincavacom seu cabelo,como se
quisesse beijá-la. Forças desconhecidas
puserampalavrasem seus lábios, e ela
disse com doçura:
- Astartédevolveunossasalmasa esta
vida para que não continuemos privados
dos prazeresdo amore da glÓriada juven-
tude,ó meuamado!
Bala fechouos olhos.A músicadas pa-
lavrasda moçaressuscitou as cenasde urn
sonhoque o haviavisitadomuitasvezes,e
sentiu asas invisíveiso carregarempara
4A
uma alcova estranha, onde iazia o corpÕ
inanimadode um a for m os a j ov em . Gr i tou,
aterrorizado. Depois, reabrindo os olhos,
viu aquela mesma moça sentadaao seu la-
do, os l ábi os s or r i dentesde am or , o ol har
r adiantede v i da. Seu r os to i l um i nou- s e,e
sua al m a v i br ou. Ex pel i u as i m agens da
aparição e esqueceuo passado e libertou-
se dos prantos . .
Os dois enamoradosabraçaram-see he-
ber amo v i nho dos bei j osaté a em br i aguez ,
e dormirarnenvoltosnos braços um do ou-
tro, até que a escuridãose foi e o calor do
sol os acordou.
45
JOAO,O LOUCO

"As perseguições não .atingem a alma quando

são ínjustas. Sócrates bebeu venêno com o
sorriso, e Paulo recebeu o apedrejamento
na alegria. É somente a nossa consciência.
que caüsa
quandoculpada,
""ttã,ilfrlicidade."
 1"
No vERÃo,
João ia todas as Ína_
nhãs ao c am po, c onduz i ndos eus
boi s e
bezerros,o arado no ombro, atento
ao can_
to do r oux i nol e ao r nur m úr i odas
fol has
nas árvores.
Ao meio dia, sentava_seà margem
do
ar r oio par a c om er s eu far nel , deíx ando
as
sobras sobre a refva para os pássaros
do
cér-r.
A ta r de, quando o poente r ec ol hi a
os
naiosda luz, voltava para Sua modesta
ca_
sa, sobr e um m or r o que dom i na pov oados
e tr igai s ,e c onv er s av a,
tr anqüi l o,c om s eLj s
velhos pai s . Ouv i a- fhesa pal av r âc hei a
da
experiênciados dias,até a chegadado so-
no e do descanso.
No inverno,reclinava-separa se aque-
cer junto à lareira. Observavaa natureza
atravésda pequenaianela,e meditava'O
bramido dos ventos nos vales, as colinas
recobertasde neve e as árvoresdesfolha-
das como indigentesdeixados lá Íora à
mercêdo Írio,Íaziam-norefletirsobrea mu-
dançadas estações.
Nas noites longas, esperavaque seus
pais fossemdormirpara abrir o armáriode
madeirae dele retirar o Novo Testamento'
Lia à luz de uma pequenalâmpada,obser-
vandocautelobamente seupai,que lhe proi-
bira a leitura daquelelivro, pois os sacer-
dotes proibemaos simplesde coraçãoco-
nheceremdiretamente os ensinamentos de
Jesus,ameaçando-os de excomunhão'
Assim passouJoão sua juventudeentre
os campos, tranôbordantesde belezase
milagres,e o Livro de Jesus,transbordan-
50
te de espíritoe de luz. Era por naturezaca-
lado e meditativo.Ouviamais do que Íala-
va. Seusolhoscontemplavam sempreo ho-
rizontedistanteonde a aurorase mistura-
va ao azul do firmamento.
Quandoia à igreja,voltavaentristecido,
pois as preleçõesque lá ouviaeram diÍe-
rentesdos ensinamentos que lia no Evan-
gelho,e as relaçõesdos crentescom seus
superioreseram diferentesda vida radian-
te descritapelo Nazareno.
2.
Chegoua primavera,e a neve fibertou
os campose as colinas.O que dela resta-
va nas altasmontanhas derretia-se
e corria
em arroiosnos vafessinuosos,parajuntar-
se depois e Íormar rios caudalososque
proclamavamcom seu Íragor o despertar
da natureza.As amendoeirase as macieí-
ras cobriram-sede flores. E brotaramas
tolhasnos álamose nos salgueiros.
E a rel-
51
va e as Ílorestransformaram os pradosem
tapetesmulticolcridos.
Cansou-seJoão da lareira e, sabendo
queseus.bois ansiavam tambémpetaliber-
dadedos pastosverdejantes, desatou-ose
conduziu-osaos prados'Levava,escondi-
do por baixo de sua roupa,o NovoTesta-
rnento.Pertodos camposdo Conventodo
Profetalsaías,que se eievacomo uma Íor-
talezapoderosaentreaquelascolinas,dei-
xou seus bois espalharem-se para pastar
e encostou-se numa rocha,dividindosua
menteentre a belezados vales e as pági"
nas do livro que fala do reinodo céu.
Era o dia um dos últimosda Quaresma
e os habitantesdaquelespovoados,que
obedeciam à proibiçãode comercarne,es-
peravam impacientementepela Páscoa'
Quantoa João, não fazia diferença,como
todosos pobres,entreos dias de abstinên-
eia e os outros,pois a sua vida toda era
umasucessãode cias-deabstinência' Sua
52
alimentaçãohabitualera o pão amassado
com suor. As inclemências da Quaresma
não estavâmno seu corpo,mas na sua al-
ma, que reviviao dramado Filhodo Ho-
mem e o Íim da sua vida nestaterra.
Os pássarosesvoaçavame namoravam
em voltade João.As pombas'chegavam em
bandosrápidos.As floresse inclinavamà
passagemcra brisa.João inter.rompia sua
leiturapara contemplaras torresdas igre-
jas espalhadas dos dois ladosdo vale.O
badalardos sinos transportava sua alma
atéa Jerusalém antiga,ondeseguiaos pas-
sos do Mestre,fazendoperguntasaos tran-
seuntessobreEle.Respondiam: "Aqui,Ele
curou o paralítico.
Aqui, devolveua vista
a um cego.Aqui,colocaramuma coroade
espinhossobre sua cabeça.Nesta praça,
deteve-separa Íalar em parábolasàs mul-
tidões,e naquelepalácioataram-no contra
uma colunae cuspiramna sua face e fla-
gelaram-no. Nestarua, perdoouà prostitu-
53
ta; e naquela,caiu ao chão sob o pesoda
sua cruz."
Durantehoras,João continuoua sofrer
corno Deus-homem, pelo corpo,e a sentir*
se gloriÍicadocom ele pelo espírito.Ao
rneiodia,levantou-se pala reunirseusbois,
rnasnão os encontrou,e começoua pro-
curá-los.Quandoatingiuo caminhoque
serpenteiaentrêos camposcomoas linhas
da mão,viu de longeum homemvestidode
preto,em pé no meiodos pomares.Correu
até ele e o reconheceupor um dos monges
do cohvento.Cumprimentou-o respeitosa-
mentee perguntou-lhe:"Viu por acasobois
caminhando nestesjardins, bom Padre?"
Olhou-oo monge,procurandoesconder
sua ira, e respondeuhipocritamente:
.* Sim, vi-os.Estãoali. Venhavê-los.
João seguiuo mongeaté o conventoe
viu os bois enclausurados numa cerca, e
guardadospor outro mongeque, com uma
vareta,batia nelestodas as vezesque se
mexiam.
54
QuandoJoão se adiantoupara aproxi-
mar-sedos bois,o mongeo seguroue gri-
tou em direçãoao convento:,,Eisaqui o
pastorcriminoso.Já o prendi."
Mongese noviçosacorreramde todosos
lados,lideradospelo Superior,quç se dís-
tinguiados demaispela finurade sua rou-
pa e a gravidadede seu semblante.Cerca-
ram todos João cornosoldadosimpacien-
tes por acabarcom sua presa.João olhou
parao PadreSuperiore perguntoucalma-
mente:"Que fiz eu para ser tratadocomo
criminoso, e por que me prenderam?"Res-
$i pondeu o Superiorcom uma Íace dura,
cheia de cofera,e com uma voz cortante
como uma serra: "Teus bois pastaramo
trigo do conventoe comeramas ramasno-
vas de seu vinhedo.prendemos-te porque
o pastor é responsávelpelos estragosde
seu rebanho."
Disse João em tom conciliador:,,São
animaisirracionais,meu padre. E eu sou
apenasum pobreque só possuios proprios
braços e estes bois. Deixai-melevá-lose
prometo-vosnunca maià trazê-losa estes
prados."
Adiantou-seo Superiore, levantandoo
dedo ao céu, disse:"Deusnos encarregoLl
de cuidar das terras do seu bem-amado
lsaías,o Poderoso.Nos as protegemosdia
e noitecom todo o nossoempenhoporque
sãosagradas. Comoo fogo,queimamquem
delasse aproximar.Se te recusaresa com-
pensaro conventopelo prejuízo,o pasto
se converteráem venenono estômagode
teus bois. Em todo caso, não poderásre-
cusar,pois manteremos teus bois em nos-
sa cercaaté que pagueso últimodinarque
deves."
Quandoo Superiorquis retirar-se,.ioão
o detevee disse com uma voz suplicante
e humilde: "Rogo-vos,meu Senhor, Por
essesdiassagradosquetestemunharam os
sofrimentos de Jesuse as lágrimasde Ma-
56
nialPermitique me vá cornmeusbois.Não
sejaisduroparacomigo.Sou um pobrecoi-
tado,e o conventoé rico e poderoso.Per-
doai minha distnaçãoe tende compaixão
da velhicede meu Pai,"
Olhou-oo Padree dissecom ironia:"O
Conventonão te perdoaráo peso de um
fio de cabelo,ó ignorante,sejaspobre ou
rico. E não apelesparaas coisassagradas,
pois conheço-lhesos segredose mìsté-
rios melhordo que tu. Se quisereslevar
teus bois,devesresgatá-lospor três dina-
res, pelo que eles pastaramno campo de
trigo."
DisseJoão com voz sufocante;"Padre,
não possuoum cêntimosequerdostrês di-
nares.Apiedai-vos de mim e da minhapo-
breza." Retrucouo padre, apÓspenteara
barba cerradacom os dedos:"Vai e ven-
de partede tua lerra e traze os três dina-
res. É melhor para ti entrar no céu sem
terra, do que provocara ira de lsaÍas,o
57
Poderoso,e passar a eternidadeno Íogo
do inferno."
Calou-seJoão um minuto.Mas, de re-
pente,seusolhosbrilharam.Seu rostodes-
contraiu-se.A expressãode súplicafoi su-
plantadapor uma expressãode Íorça e de-
terminação.Disse numa voz em que se
misturavamo timbre do conhecimento
eo
vigor da juventude:"Venderáo pobresua
terra,que lhe dá o pão e a vida,paraacres-
centar seu preço aos cofres do convento
repletosde ouro e prata?E justo que o po-
bre se torne mais pobre e que o desnudo
morrade Íome para que lsaías,o podero-
so, perdoe o delito de animaisesfomea-
dos?" Respondeuo Superiorcom sereno
orgulho:"Assimfalou JesusCristo:euern
tem recebemais e quem não tem perdeo
que tiver."
Ao ouviressaspalavras,João sentiuseu
coraçãorebelar-seno seu peito e sua alma
crescer,e sua estaturase agigantar,como
58
se a terra se tivesseelevadosob seuspés,
Sacou do Evangelhoque estava no seu
bolso,como o soldadosaca de sua arma
pa!'ase defender,e gritou,dizendo:,,Assim
brincaiscom os ensinamentos deste tivro,
'o
hipocritas!Assim utilizaiso que há de
,maissagradona vida paraestenderos ma-
les da vida.Ai de vós quandoo Filhodo
Homemvoltara esta terra.
"Destruirávossos conventose lançará
suas pedras neste vale, e porá fogo nos
vossosaltarese estátuas!Ai de vós quan-
do o sanguede Jesuse as lágrimasde sua
santa mãe se transÍormaremem torrente
que vos arrasteao abismo!Ai de vós que
vos curvaisdiantedos ídolosde vossaco-
biça;que escondeissob roupanegraa ne-
grurade vossasalmas;que oraiscom vos-
sos lábios,enquantoque vossoscorações
são mais duros gue as rochas;que vos
ajoelhaiscom humildadeao pé dos altares,
enquantoque vossas almas se rebelam

aontraDeus.Trouxestes-me por uma cila-
da a estelugarrepletode vossospecados,
e prendestes-me como um criminosopor
um pouco de caplm que o sol faz crescêr
paramim comoparavós. E quandovos rÕ-
guei em nome de Jesus,ristes de mim
como se fosse um demente.Tomaie exa-
rninaieste livro e mostrai-meonde Jesus
não foi compassivo. Lede este dramadivi-
no,e dizei-mequandoJesusdeixoude agir
com clemência: no SeuSermãoda Monta-
nha,ou na Praçado Mercado,quandode-
fendeua prostitutainfelizcontraseusper-
seguidores, ou no Golgota,quandoabriu
seus braçosna cruz para abraçartoda a
raça humana?Olhai,ó impiedosos, parã
estas cidadese aldeiaspobres,onde os
enfermose os pecadorese os mendigose
os orfãose as viúvase os sem-largemem
e sofrem,sem encontraramparo,enquanto
que vos gozaisaqui o repousoda pregui-
ça,e consumisos frutosde jardinsque não
60
T
I
plantastes.Nuncavisitaisum doente,nun"
ca vos preocupaiscom um prisioneiro,
nunca alimentaisum Íaminto,nunca aco-
lheis um errante,nuncaconsolaisum Íla-
gelado.Ao contrário,estendeisa mão para
o que a viúvaeconomizou, e parao gue o
lavradorpoupou para sua velhice."
Calou-seJoão um momento,e depois
disse com altiveze calma:"Vós sois mui-
tos, e eu sou sozinho.Fazeide mim o que
quiserdes.Os lobos devorama ovelhana
escuridãoda noite, mas os vestígiosdo
seu sanguepermanecem até que cheguea
aurorae se levanteo sol."
ir .Joãofalavacom uma Íorça
I
sobrenatural
que paralisavaos monges,emboraprovo-
I
j
casseneleso ódio e o deseiode vingança"
ri,
E, quaisüorvosfamintos,tremiamde raiva
{ e rangiamos dentesna expectativade um
r sinal do seu Superiorpara dilaceraro re*
I
ú
4
beldee esmagá-lo sob os pés.QuandoJoão
I
se calou,como amainaa tempestadeapós
61
abateros ramossoberbose as plantasse-
cas, gritou o Superior,dizendo:"Prendei
este criminosodesequilibrado, tirai-lheo
l-ivro das mãos e levai-oa uma das cetas
escurasdo convento.Pois quem blasfema
contraos escofhidosde Deusnão seráper-
doado nem nestavida nem na outra."
Os mongessaltaramsobre João como
ferassobreuma presa,e levaram-noà mas-
morra, agredindo-ono caminho, até â
exaustão,com murrose pontapés.
Na sua cela escura,contudo,João não
se sentiaum vencido,masum vitoriosoque
o inimigo conseguiraapenas aprisionar"
Olhou atravésda frestapara o vale cheio
de sol, e sua face se iluminou.Sentiuum
júbilo na alma e uma segurançadeliciosa,
em todo o ser.A cela não encarcerava se*
não o seu corpo.Sua alma pairava,livre,
por cÍma das.colinase dos prados.E os
maus tratos dos mongeshaviamatingido
somenteos seusmúsculos.Seussentimen*
62
tos estavamaconchegados, felizes,junto
ao Nazareno.Poís as perseguiçõesnão
atingema alma quando são injustas.Só-
crates bebeu o veneno com o sorriso,e
Paulorecebeuo apedrejamento na alegria.
É somentea nossa,consciência,quando,
culpada,que causa nossa inÍelícidade.
3.
Quandoa mãe de João soube o que
aconteceraa seu filho único, acorreuao
convento,apoiada na sua bengala,e se
jogouaos pés do Superior,chorandoe ro-
gando-lheque perdoassea insensatezdo
Íilho.Respondeuo Superior,com os olhos
no céu e o tom de quem está acima das
fraquezashumanas:"Nós perdoamosa
insensatezde seufilhoe esquecemos a sua
demência;mas o conventotem direitossa-
gradosque não nos é dado perdoar.Nós
aceitamoscom humildadeos errosdos ho-
mens,mas lsaías,o Poderoso,não perdoa
OJ
aos que danificanrseusvinhedose trigais.
Olhou-oa mãe atravésdas lágrimasqLle
caíam sobre suas faces enrugadaspela
velhice.Depois,retirouum colar de prata
que lhe envolviao pescoçoe depositou-o
nas mãosdo Superior,dizendo:"Não pos-
suo senãoeste colar,ó Padre.Foi um pre-
sentede minhamãequandome casei.Que
CIconventoo aceiteem compensação pe-
los delitosdo meu filho."
O Superiorapanhouo colare colocou-c
no bolso,dizendoa pobremulherque lhe
beijavaas mãosde gratidão:"Ai destage-
ração!Refletem-se nelaas advertências do
Livro, mas invertidas:agora são os filhos
que comema uva verdee os pais que têm
os dentesembotados. Vai, ó mulhervirtuo-
sa, e reza por teu filho demente,a fim de
q u e o céuoc ure."
Saiu João de seu cárcere e caminhoi.r
com vagar ao lado da mãe, que os anos
curvavamsobresua bengala.Em casa,le-
64
vou os bois as suasmanjedouras e sentou-
se com serenidadeà janelaa contemplar
o desaparecimento da luz. E ouviuseu pai
sussurrarà sua mãe: "Quantasvezes,ó
Sara,tu me contradisseste quandote aÍir-
mava que nosso filho estaüatocado pela
loucura.Agoravejo*te,enfim,convencida,
depoisque seu comportamento provoumi-
nhas palavras,e o reverendoPadreSupe-
rior te dissehoje o que venhodizendohá
anos."
Joãocontinuou a olharparao poente,on-
de as nuvensespessaseramcoloridaspelo
sol.
Chegoua Páscoa.E a abstinência cedeu
lugarà gula.
Na cidadede Becharre,haviamterrnina-
do de construira nova igreja,que se er-
guia entreas casascomo o paláciode um
emir entre os casebresde seus súditos.
O povo esperavaa chegadade um bis-
po para consagrá-la.rAo vê-lochegar,toda
65
 [-
a populaçãosaiu às ruas em sua homena-
geÍn. As aclamaçõesdos jovens,as invo-
caçõesdos padres,os sons dos címbalos,
o repicar dos sinos misturavam-se numa
sinfoniaalegre.Quandodesceudo seu ca-
valo ajaezadocom sela de seda e estribos
de prata, os chefes das famíliaso sauda-
ram com discursose poemas elogiosos"
Na novaigreja,paramentou-se com as ves-
tes episcopaisdouradas,colocou a tiara
incrustadade pedraspreciosas,e segurou
o cetro gravado com artísticosdesenhos
de ouro e prata.Conduziuentão a procis-
são ao redôrda igreja,cantandoe salmo-
diandocom os sacerdotes,envoltono per-
fume do incenso,iluminadopelasvelas e
as lâmpadasconduzidaspelos Íiéis.
Naquelahora, João estavade pé entre
um grupode pastorese agricultoresnuma
elevaçãopróxima à igreja, a contemplar
com olhostristesessascenase a lamentar
amargamente esteespetáculo:de um lado,
66
vestimentasde seda bordadae utensílios
de ouro e incensóriosde prata e pedras
preciosas- o, de outro lado, massasde
pobresmaltrapilhos, que tinhamvindodas
aldeiaspróximasparaassistirao esplendôr
da Páscoae à consagração da novaigreja.
De um lAdo,uma opulênciavestidade
seda e pedras preciosas;de outro lado,
uma pobrezaenvoltaem Íarrapos.
Lá, uma minoria poderosae rica para
quem a religiãosão salmodiase canìares.
Aqui,massashumanashumildese despre-
zadasque se regozijamem silênciocom a
ressurreição de Cristoe oramna aÍliçãode
seuscoraçõesoprimidos
Lá, uma tiraniaimpiedosa. E aqui,uma
submissãocega. Qual delas deu origem
à outra?Seráa tiraniauma árvorepossan-
te que não crescesenãonasterrasbaixas,i
Ou seráa submissãoum campoabandona-
do, onde só crescemespinheiros?
Tais eram as meditaçõese interroga-
 Ì-
ções que ocupavam a mente de João. Ti-
nha os braços apertados contra seu peito
c o m o p a ra i mp e d i -l od e se a br ir , tr ansfor -
m a n d o - sen u ma b o ca e n u m c lam or .
MaÍ a cerimônia havia acabado, porérn,
e o povo começado a dispersar-se,João
sentiu â presença de um espíritogue o en-
carregavade falar por ele. Era um impulso
misterioso gue o obrigava a agir âpesâr
d e s i me smo . A d i a n to u -se ,levantou os
o l h o s a o cé u , e d i sse n u ma voz poder osa
q u e d o mi n a vao s p re se n te se os com pelia
a ouvir:
"Ó Jesus, que estás sentado em meio à
luz celestial, olha para esta terra que CIn-
tem visitaste. Olha! Os espinheiros suÍo-
cam os ramalhetesde Ílores que ontem re-
gaste com o suor de Tua fronte. Olha, o
bom pastor. As garras dos lobos rasgaram
o corpo do cordeiro Írágil que carregaste
no colo. Teu ,sangue generoso se evapo-
rou da terra, Tuas lágrimas secaram nos
6S
olhos dos homens,Teu hálitofoi dissipa-
do pelosventosdo deserto.E este campo
que santificastecom Tuas pegadastrans-
formou-seem campo de batalhaonde o
tacão dos fortesesmagaos decaídose as
'mãosdos opressoresestrangulama alma
dos fracos.. . Os gritosdos oprimidosse
efevam das extremidadesdestas trevas"
mas não chegamaos que ocupamos tro-
nos em Teu nome.E os lamentosdos de-
sesperadosnão penetramo ouvido dos
que em Teu nome pregamdos púlpitos.
Poisas.ovelhas que enviasteparasuavizar
a vidaviraramferas.E a palavrade luz que
trouxestedo coraçãode Deusdesapareceu
no meiode tantoslivros;e levantou-se, no
seu lugar,um alaridoque abalaas almas.
"Edificaramigrejaspara gloriÍicarseus
própriosnomese cobriramas paredesde
seda e ouro, enquanto"deixavam nus os
corposde Teus eleitos,os pobres.Enche-
ram o espaçocom o perfumedo incenso
69
 \-
e a luz das lâmpadas,mas abandonaram
os que crêem em Ti. Sobrecarregaram o ca-seTeu pai corn palavraspronunciadas
ventocom cânticose salmos,mas perma-
necemsurdosao apelodos orfãose ao ge-
mido das viúvas.Volta,ó Jesus imortal,e
expulsados Teus templosos vendedores
de religião;pois transformaram-nos em
antrosondeimperamos répteisda hipocri-
sia e da astúcia.Vem pedir contasa esses
novoscésares,que extorquiramdo povo o
que lhespertencee o quepertencea Deus,
Vem examinara vinhaque plantastecom
ïua propriamão; suas raízesforam roídas
pelosvermes,e seusÍrutosforamesmaga-
dos sob os pés dos aventureiros. Os que
encarregaste de implantara paz dividiram-
se entresi e brigaram;e as vítimassão nos-
sas almas desamparadas e nossoscorã*
çõ e s e smagados ...
"Nassuasfestase celebrações têm a au-
dáciade levantara voz e dizer:'Gloriaa
Deusnas alturas,e paz e alegriana terra
7$
.."[
aos .homensde boa vontade'.Mas gloriÍi-
por lábioscriminosos e línguasinsinceras?
E haverápaz na terra enquantoos oprirni-
dos se esgotarnpara alimentaros opres-
sores? E haveráalegria enquantoos de-
serdadosconsiderama morte conro uma
salvação?
"Onde está a paz,ó Nazarenocheio de
ternura?Estaráno olhar de criançaspro-
curandoem vão o leite nos seiosde mães
esfomeadas, em casebresescurose frios?
Ou estaráno corpo dos necessitados que
almejamem vão o alimentoque os mon-
ges do Conventojogam aos seus gordos
porcos?Ondeestáa alegria,ó Jesuscheio
de luz? Estarána capacidadedo emir de
comprara forçados homense a honradas
mulheres,enquantopermanecemoscala-
dos, escravosna alma e no corpo?Ou es-
tará em nossos gritos de rebelião,logo
abafadospelas armas dos mercenários?
71
Í
À
 r

Estendea mão,o Jesuspoderoso,e ajuda- r avam: " Senti m os 'um aÍor ç a m ági c a per -
nos contrao punhoÍérreodo opressor;ou eor r e r nos s o c or po quando o ouv i m os :el e
fala com um a for ç a es tr anha,C ontudo,os
mandaa mortenos levaraos cemitérioson-
à sombrada Tua cruz, superiores sabem das nossas necessida-
de descansaremos
na esperança da Tua volta. Nossavida as- des mai s do que nós . E um er r o duv i dar
deles .'l
sim não é vida.É uma escuridãopovoada
por fantasmastemíveisque se sucedem Em m ei o a es s as v oz es , apr ox i m ou- s e
um do s s ac er dotese pr endeuJ oão e o en-
uns aos outros;é um vale onde pulularn
Ó Jesus,dessas tr ego u à pol íc i a,e a pol íc i a o entr egouao
as Íeras.Compadece-Te,
gover nadorM . as el e r ec us ou- s ea dar qual -
multidõesreunidasem Teu nome no dia
quer res pos taa s eus i nqui s i dor esl ,em br an-
da Tua ressurreição e salva-asde sua pro-
do:se de que a ati tude de J es us er a de s i -
pria humilhação e fraqueza'"
lêncio à fac e de s eus per s egui dor esF. oi
EnquantoJoão invocavao céu,'o povo
então r ec ol hi doa um a c el a da pr i s ão,on-
em volta dele estavadivididoentrea apro-
de dor m i u s er enam entes obr e a pedr a nua.
vaçãoe a censura.Uns gritavam:"Só dis-
Na m anhã s egui nte,c om par ec euo pai
se a verdade;e ele se dirigeao cÓupor
de João per anteos tr i bunai se tes tem unhou
todos nós, porquesomos realmenteopri-
pela d em ênc i ade s eu fi l ho úni c o,di z endo:
midos."Outrosdiziam:"É um possesso,
"Quantas vezes ouvi-o divagar na sua so-
quesó repete.oqueo demôniolhe inspira'"
lidão, m eus Senhor es ,e fal ar de c oi s as
Outrosse queixavam: "Nuncaouvimostais
estranhas que não correspondem à ver-
divagaçõesde nossospais e avós,e não
dade!
as queremosouvir agora'" Outrossussur*
T2 73

"Per.guntaiaos garotos da nossa zona,
Senhores.Freqüentaram-noe conhecem a
s u a f a s ci n a çã op o r u m mu n do longínquo.
P r o c u r ava md i a l o g a rco m e l e , m as ele nem
l h e s r e sp o n d i a ;e q u a n d o re spondia,suas
respostaseram ambíguas e sem conexão.
P e r g u nta ià su a mã e . E l a sa be melhor do
q u e q u al q u e ru m o a fa sta mentode seu Íi-
lho das realidades palpáveis. Muitas ve-
z e s v i u -o fi xa n d o o h o ri zo n te com olhos
d e v i d r o, e o u vi u -o fa l a r co m am or às ár -
v o r e s e có rre g o se fl o re s e e str elas,como
a s c r i a n ça s fa l a m à s co i sa s inanim adas.
P e r g u nta ia o s mo n g e s d o C onvento.Br i-
g o u c o m e l e s h á p o u co , d e spr ezando- lhes
o ascetismoe a devoção,e negandoâ san-
tidade das suas vidas. É demente, Senho-
res, mas é muito compassivopara comigo
e para com sua mãe. Ampara-nosem nos-
s a v e l hi cee n ã o me d e sa cri fíciospar a sa-
tisfazer às nossas necessidades, Tende
p e n a d el e , p o r n o ssa ca u sa , e per doai- lhe
7A
â demência em vista da sua ternura para
com seus pai s .'l
João foi l i ber tado,m as s ua dem ênc i afoi
aceita como um fato. Os jovens falavam
dele com s ar c as m o.As m oç as l he di r i gi am
olhar es pes ar os os ,di z endo: ,,O c éu é às
v€zesbem estranhono que Íaz: reuniu nes-
te moço a formosura do rosto e a pertur,
bação da mente, e contrastou a doce luz
dos seus ol hos c om a es c ur i dãode s ua al -
ma."
Ent r e aquel asc ol i nas e pr ados em bel e-
zados pelas flores,voltou João a sentar-se
perto dos seus bois. E, contemplandocom
olhos c hei os de l ágr i m asas c i dadese po-
voados espalhadosentre as colinas, repe-
tia, triste, com suspiros proÍundos: ,,Vós
sois mui tos , e eu s ou s oz i nho. D i z ei de
mim o que qui s er dese, faz ei de m i m o que
quise r des .'Osl obos dev or am a ov el ha na
escuridão da noite. Mas os vestígios do
seu s anEue per m anec ematé que c hegue
a aur or a e s e l ev anteo s ol .',
7q