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Afinidades eletivas:
cibernética, ciências cognitivas
e a biologia do conhecer
CRISTINA MAGRO
grau de parentesco entre si nem com precisão conceitual, por uma surpreen-
ela, ciosos da relevância da definição dente recursividade, por sua recusa de
precisa de seus conceitos e da ne- associações intelectuais pontuais, de
cessidade do estabelecimento claro de pressupostos tradicionais, do vocabu-
metas em empreendimentos de cará- lário desgastado, das proposições li-
ter tão geral. Assim, quaisquer diver- nearmente encadeadas e sintéticas, da
gências acabaram, nesse contexto, por submissão à morfologia e à sintaxe cor-
constituir razões suficientes para a rentes quando essas não parecem ser-
emergência de novas linhagens teóri- vir para expressar adequada e concisa-
cas apartadas das demais, recusando mente seu pensamento.7 Sua hetero-
associações que eventualmente des- doxia, sua recusa dos pilares centrais
viassem das rotas de cada projeto. do pensamento ocidental, seu compro-
Das férteis discussões que marca- misso de pôr permanentemente em fun-
ram o período ciberneticista, segun- cionamento o mecanismo explicativo
do Dupuy, conhecemos então inúme- da teoria gerando as explicações neces-
ros produtos, muitos dos quais rejei- sárias de forma consistente são marcas
tam esses laços de família. Na sua pri- de seu pensamento.
meira fase, decisivamente desenca- Os efeitos colaterais dessa atitude
deada pelos trabalhos de Alan Turing admirável, no entanto, fazem-se sen-
e Gödel, a cibernética produziu a in- tir: mesmo quando os leitores de
teligência artificial e as ciências cog- Maturana se identificam com suas
nitivas em sua versão primeira, o idéias, especialmente pela possibilida-
cognitivismo; e, na segunda fase, prin- de que elas nos oferecem de tematizar
cipalmente graças à influência de a experiência e pela argumentação con-
Heinz von Foerster, produziu a ciber- sistente e diversa daquela a que
nética de segunda ordem ou segunda estamos habituados, costumeiramente
cibernética, e, com ela, as teorias do têm dificuldade de inserir suas discus-
caos, da complexidade, da auto-orga- sões em contextos mais amplos. Isso,
nização, da autopoiese esse último, por vezes, resulta tanto em compor-
o nome da hipótese explicativa da or- tamentos dogmáticos, indesejáveis e
ganização dos seres vivos com o qual mesmo incompatíveis com a própria
a biologia do conhecer e suas diver- teoria que o autor explicitamente
sas utilizações, em campos variados, afirma ser um domínio explicativo ao
ficaram conhecidas. lado de outros, cuja validade depen-
A obra de Humberto Maturana, de de de as respostas que ele engendra
certo modo, não escapa da crítica for- satisfazerem ou não às perguntas que
mulada por Dupuy ao insulamento pro-
posital dos descendentes da cibernéti-
7. Ver, a esse respeito, MAGRO, C. (1997), Apre-
ca. De uma elegância minimalista, o tra- sentação. In: MAGRO, C.; GRACIANO, M. e
balho de Maturana é assinalado por VAZ, N. (eds.). A ontologia da realidade. Belo Ho-
uma irremovível preocupação com a rizonte, Ed. UFMG, pp. 9-13.
que aplicaram ou usaram as implicações nada às áreas pretendidas que uma boa
do conceito de autopoiese em diferen- formulação sistêmica e complexa não
tes áreas é o livro de Mingers, que no pudesse explicitar. Além disso, acho
entanto não traz as aplicações no domí- que tais extensões podem obscurecer a
nio dos estudos lingüísticos, uma au- complexidade que resulta quando a
sência sintomática de que tanto o peso aplicação recursiva do mecanismo ex-
da tradição sobre a própria conceitua- plicativo da biologia do conhecer gera
lização da linguagem quanto a defini- fenômenos em outros domínios, entre-
ção estrita da disciplina dificultam a laçados entre si e com o organismo. Tal-
absorção de abordagens alternativas.26 vez estejamos com falta de boas for-
Esse é, sem dúvida, um assunto mulações sistêmicas, radicalmente sis-
controverso. Na revisão que Maturana têmicas
e os conceitos mais funda-
e Varela fazem do período desde a con- mentais da biologia do conhecer e sua
cepção da teoria, sob a forma de pre- implementação sob a forma de um me-
fácios à segunda edição do De maqui- canismo explicativo recursivo certa-
nas y seres vivos, Maturana recomenda mente preenchem, com refinamento
cautela ao se recusar a extensão do con- incomparável, esse espaço.
ceito, enquanto Varela é categórico ao Aliado ainda a essa transdiscipli-
preferir mantê-lo dentro da sua con- naridade transversal, o procedimento
cepção original, que se refere a proces- obstinadamente sistêmico e recursivo
sos moleculares. No meu próprio tra- das explicações de Maturana têm lhe
balho adoto a noção de autopoiese como valido os rótulos de holístico, ecoló-
caracterizadora da organização pecu- gico ou ainda a interpretação de sua
liar aos seres vivos, assumindo portan- teoria como uma cosmologia. Esta úl-
to uma postura mais semelhante à re- tima é, do meu ponto de vista, uma má
comendada por Varela, embora esteja associação. Do mecanismo explicativo
aberta à argumentação em favor de que da biologia do conhecer emergem múl-
aplicações do termo podem oferecer tiplos domínios de realidade, emergem
interessantes insights, guardadas as multiversa (em oposição ao universo con-
devidas peculiaridades dos domínios vencional). Pensá-la em termos de uma
aos quais é aplicado. No entanto, o que cosmologia totalizante associação
tenho visto até então é que as simples imediata que o termo me inspira pa-
extensões do termo não acrescentam rece-me um retrocesso nas conquistas
conceituais que o artigo Realidade...
tão bem sintetiza.27
communication. In: Biologia, Cognição, Lingua- Podia-se objetar que, sendo essa
gem e Sociedade Simpósio Internacional de uma teoria biológica, uma ciência do
Autopoiese. Belo Horizonte, Minas Gerais.
Worbook, 18-21 de novembro.
26. MINGERS, J. (1995), Self-producing systems.
Implications and applications of autopoiesis. Nova 27. MATURANA, H. (1997), Realidade: a busca
York e Londres, Plenum Press. da objetividade
, op. cit., pp. 243-326.
não são homogêneos para todos os se- interagir com pessoas em ambientes
res vivos nem para os indivíduos de não laboratoriais. Brooks produziu tam-
uma mesma espécie a todo instante. So- bém, e principalmente, pequenos robôs
bretudo, ela nos permite entender que que, dispensando um módulo central
essa diversidade não é decorrente de de controle e computação, interagem
déficits do emprego de mecanismos no meio em seus próprios termos,
cognitivos ou lingüísticos gerais, mas reflete Brooks. O que me parece rele-
é constitutiva dos processos do viver. vante nesse contexto é que ele está
Suas conseqüências para o ensino, nor- preocupado em observar diferentes
mal ou especial, para as relações inter- seres vivos interagindo em seu meio, e
pessoais, e mesmo para a modelagem está procurando entender a cognição a
de robôs são flagrantes. partir de uma reflexão biológica ou
Afirmei no início que Maturana an- etológica, se quisermos especificar me-
tecipava perguntas e soluções hoje per- lhor o tipo de fenômeno que Brooks
seguidas no âmbito das ciências da está preocupado em compreender em
cognição, da inteligência artificial, nos primeiro lugar.
estudos da linguagem, entre outros, e Em Biologia da autoconsciên-
acredito que tenha oferecido uma di- cia,39 Maturana sugere como devem
versidade de indicações de que isso é ser projetados sistemas artificiais que
assim. No entanto, como a inteligência participem da linguagem e possam ser
artificial parecia ser dependente dos ditos como exibindo conhecimento. O
pressupostos tradicionais que alimen- que se requer, nesse caso, é a constru-
tavam também as ciências cognitivas, ção de sistemas que, sendo plásticos,
tais como o representacionalismo e o flexíveis, possam participar de inte-
computacionalismo que Maturana re- rações e que tenham, como conse-
jeita, estimo precioso o trabalho desen- qüência delas, modificações recursivas
volvido no Laboratório de Inteligên- em seu mecanismo interno. Não cabe
cia Artificial do MIT, especialmente por especificar aqui em detalhes suas su-
Rodney Brooks, que é congruente com gestões, mas cumpre ressaltar que o que
o pensamento de Maturana, e livre dos ele propõe já vem hoje sendo experi-
preceitos subscritos pela inteligência mentado num centro de tecnologia que
artificial, seja ela cognitivista ou cone- abrigou, por tanto tempo, exatamente
xionista.38 Esse pesquisador é um dos as pesquisas para as quais a biologia
cientistas envolvidos no projeto do ce- do conhecer vem, há cerca de trinta
lebrado robô COG, que, com um míni-
mo de computação interna, é posto a
Intelligence witnout representation. Artificial
Intelligence, vol. 47, pp. 139-159.
38. Ver, especialmente, BROOKS, R. (1997), The 39. MATURANA, H. (1997), Biologia da
deep question a talk with Rodney Brooks. autoconsciência. In: MAGRO, C.; GRACIANO,
http://www.edge.org/3rd_culture/brooks/ M. e VAZ, N. (eds.). A ontología da relidade
brooks_.html. Culture, T.T.; idem. (1991), Humberto Maturana, op. cit., pp. 211-242.
anos, se construindo como uma poten- conhecer no bojo das controvérsias in-
te alternativa. telectuais com as quais os pesquisado-
res de nosso tempo estão familiariza-
Conclusão dos e de dinamizar a leitura dos textos
de Maturana, carentes de referências
Uma das articulações que, embora que guiem o leitor na complexa pro-
exiba incomparável fertilidade, nem blemática a que sua obra se dirige.
sempre é evidente ou igualmente visí- Fiz isto distinguindo essas idéias onde
vel para todos os pesquisadores, e que é preciso distinguir, e aproximando-as
decorre de uma amistosa familiarida- de outros trabalhos onde me pareceu
de com as ciências cognitivas, é o estí- possível e desejável aproximar. Espe-
mulo à reflexão sobre a própria prática ro ter deixado clara a sugestão de que
científica na qual esses mesmos pesqui- uma colaboração frutífera com a biolo-
sadores estão imersos. Ora, no caso das gia do conhecer é possível e surpreen-
diferentes teorias que aqui pus em con- dente, desde que se esteja disposto a
tato, sendo o próprio objeto de conhe- uma higienização do olhar, a abrir mão
cimento o conhecimento, indagar sobre de alguns dos princípios tradicionais
como está se dando o processo de de- mais arraigados em nosso pensamento
senvolvimento da investigação (ou co- científico e filosófico.
nhecimento científico) é, para dizer o
mínimo, uma tarefa instigante e neces-
sária. Assim é que desenvolvi meu ar-
gumento ao longo deste texto em tor-
no de dois eixos que dizem respeito à Recebido em 15/4/2002
prática científica das correntes teóricas Aprovado em 30/6/2002
para as quais estive tratando de narrar
uma história comum. Esses temas, quais
sejam, a questão da (inter)disciplina-
ridade e a medida de cientificidade, seja
ela oriunda das ciências exatas ou bio-
lógicas, foram aqui tomadas como re-
flexos da compreensão que cada um dos
movimentos teóricos tratados tem do
conhecimento na própria prática cientí-
fica, nesse modo particular de prática
social que é a ciência.
Assim, ao mesmo tempo que pro-
curei exibir esse exercício que cabe a
nós primordial e permanentemente Cristina Magro, professora do Departamento de
realizar, tratei de produzir um contex- Lingüística da Faculdade de Letras-UFMG.
to para a compreensão da biologia do E-mail: cmagro@metalink.com.br