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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Psicologia
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica

A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte

Ney Klier Padilha Netto

2012
2

UFRJ

A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte

Ney Klier Padilha Netto

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Rio de Janeiro

Fevereiro/2012
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A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte

Ney Klier Padilha Netto

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria


Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

___________________________________
Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso

___________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog

___________________________________
Profa. Dra. Claudia Amorim Garcia

Rio de Janeiro
Fevereiro/2012
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Padilha Netto, Ney Klier


A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte.
Ney Klier Padilha Netto. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2012
115 f.; 29,7 cm
Orientadora: Marta Rezende Cardoso
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-graduação em
Teoria Psicanalítica, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 113-115.
1. Pulsão. 2. Sexualidade. 3. Alteridade. 4. Psicanálise. 5.
Dissertação (Mestrado). I. Cardoso, Marta Rezende. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título
5

Dedicatória

Às minhas tias fadas-madrinhas Eleonora Ballista e Flavia Vasconcelos


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Agradecimentos

Agradeço ao meu Pai, à minha Mãe e ao meu Padrasto.


Aos meus irmãos Bruno, Bernardo e Brenno.
Às minhas tias Eleonora Ballista e Flavia Vasconcelos.
À Família Ballista: Avô José, Avó Cida e Ione.
À Sheila, pela organização doméstica.
Ao Professor Eduardo Ponte Brandão, pela orientação fundamental que antecedeu a
seleção de Mestrado, sem a qual eu não teria conseguido chegar até aqui.
À Professora Ana Beatriz Lima Cruz, pela influência positiva nos tempos de Graduação.
À Professora Ana Maria Rudge, pelo acolhimento na seleção de Mestrado.
À Professora Claudia Garcia, pelas excelentes trocas e pelo aprendizado.
Às Professoras Isabel Fortes e Regina Herzog, por participarem em diferentes
momentos das avaliações da minha Pesquisa.
Aos supervisores Carmen Tourinho e Paulo Ritter, pela ajuda no trabalho realizado no
Núcleo de Assistência em Saúde Mental Casa Verde.
A Sonia Caldas Serra e Sara Lipman, pelo trabalho clínico e pela ajuda no meu
aprendizado de como viver melhor, com mais saúde e mais felicidade.
Aos amigos de diferentes tempos, especialmente Leila Amorim.
Agradecimento especial a Ana Gazal e Evelyn Brasil pela amizade, assistência jurídica
e financeira nos dois últimos anos.
Ao Pedro Henrique Bernardes Rondon, pela imprescindível revisão da Dissertação.
À Professora Angela Perricone, pela introdução à Língua Francesa.
À CAPES, pelo financiamento da minha pesquisa.
Às companheiras de pesquisa, Patrícia Paraboni e Camila Farias Peixoto.
À minha orientadora Marta Rezende Cardoso, por acreditar no meu projeto de pesquisa,
pelo acolhimento, pela primorosa orientação, e por me oferecer ferramentas preciosas
ao longo destes dois últimos anos. Que a nossa parceria continue sempre.
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Resumo
A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte

Ney Klier Padilha Netto

Orientadora: Marta Rezende Cardoso

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação


em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Psicanalítica.

O principal objetivo deste trabalho é problematizar a noção de sexualidade em


Freud, explorando os fatores implicados em sua gênese e seu desenvolvimento. A
significação e os problemas trazidos pelo conceito de Pulsão Sexual são pontos
norteadores de nossa pesquisa.
O panorama da teoria e clínica psicanalíticas tem como um de seus operadores
centrais uma compreensão inovadora da sexualidade humana. O conceito de pulsão e,
em particular, o de Pulsão Sexual, possui lugar de destaque.
Considerada força constitutiva do psiquismo, a Pulsão Sexual foi explorada a
partir de diferentes perspectivas. As determinações e implicações desses
remanejamentos colocam dificuldades teóricas na questão do sexual e de sua relação
com a alteridade.
No primeiro dualismo pulsional, a Pulsão Sexual é força disruptiva, oposta às de
autoconservação, por seu caráter impetuoso e desestabilizador para o ego. Com a
emergência do conceito de narcisismo, a constituição egoica assume caráter
eminentemente sexual, e a oposição entre ego e sexualidade é problematizada. Na
segunda teoria das pulsões, fundamentada na contraposição entre Eros e Pulsão de
Morte, esta última constitui força disruptiva e destrutiva, cuja natureza não seria sexual.
Assim, a Pulsão Sexual passa a integrar o campo das Pulsões de Vida, que tendem à
ligação. O caráter hostil ao ego e à ligação fica neutralizado quanto à sua relação com a
Pulsão Sexual.
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Baseando-nos em Jean Laplanche e André Green, discutimos como conciliar na


obra freudiana os aspectos violentos e disruptivos da sexualidade humana com a
dimensão de ligação inerente a Eros.

Palavras-chaves: Pulsão, Sexualidade, Alteridade, Psicanálise, Dissertação


(Mestrado).

Rio de Janeiro

Fevereiro/2012
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Abstract

The violence of the sexual and the impact of the death drive

Ney Klier Padilha Netto

Tutor: Marta Rezende Cardoso

Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of


Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, as a part of the requisite for obtaining the Master's Degree in
Psychoanalytic Theory.

The main objective of this work is to problematize the notion of sexuality in


Freud, exploring the factors implicated in its genesis and development. The significance
and the problems brought by the concept of sexual drive are points that guide our
research.
The overview of theory and clinical psychoanalysis has as one of its central
operators a breakthrough understanding of human sexuality. The concept of drive, and
in particular of sexual drive, has a prominent place.
Considered the constitutive power of the psyche, the sexual drive was explored
from different perspectives. Measurements and implications of these rearrangements
pose theoretical difficulties in the matter of the sexual and its relation to otherness.
In the first instinctual dualism, the sexual drive is a disruptive force, opposed to
the self-preservation, for its impetuous character, destabilizing for the ego. With the
emergence of the concept of narcissism, the ego’s constitution takes on an eminently
sexual character, and the opposition between ego and sexuality is problematized. In the
second drive theory, based on the opposition between Eros and death drive, the latter is
a destructive and disruptive force, whose nature was not sexual. Thus, the sexual drive
becomes part of the field of life drives, which tend to linking. Its hostile character to the
ego and the linking is neutralized as to its relationship to the sexual drive.
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Drawing on Jean Laplanche and André Green, we discuss how to reconcile the
Freudian violent and disruptive aspects of human sexuality with the linking dimension
inherent to Eros.

Keywords: Drive – Sexuality – Otherness – Psychoanalysis – Dissertation (Master’s


Degree).

Rio de Janeiro
February/2012
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Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 12
Capítulo I – A descoberta da sexualidade na teoria freudiana ....................................... 19
I.1 – Os fatores sexuais na etiologia da histeria ......................................................... 19
I.2 – A noção de defesa .............................................................................................. 22
I.3 – As neuroses atuais .............................................................................................. 24
I.4 – A teoria da sedução ............................................................................................ 27
I.5 – Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade ..................................................... 31
I.6 – A sexualidade perversa polimorfa ...................................................................... 32
I.7 – A pulsão sexual .................................................................................................. 34
I.8 – A pulsão parcial .................................................................................................. 35
I.9 – Apoio e autoerotismo ......................................................................................... 38
I.10 – O alvo sexual no autoerotismo ......................................................................... 40
I. 11 – O desenvolvimento da sexualidade ................................................................. 42
Capítulo II – As dimensões da pulsão sexual na teoria das pulsões: disruptiva,
organizadora e protetora ................................................................................................. 45
II.1 – A primeira teoria das pulsões ............................................................................ 45
II.2 – A “virada” do Narcisismo ................................................................................. 48
II.3 – A nova ação psíquica: a ação narcísica ............................................................. 51
II.4 – A crise da primeira teoria das pulsões .............................................................. 54
II.5 – A segunda teoria das pulsões ............................................................................ 56
II.6 – Além do princípio de prazer ............................................................................. 57
II.7 – Compulsão à repetição e princípio de prazer: proximidade e distância............ 59
II.8 – A redução das excitações ao nível zero ............................................................ 62
II. 9 – Reivindicação da libido ................................................................................... 63
II.10 – O Eros narcísico .............................................................................................. 67
II.11 – As dimensões da sexualidade na teoria das pulsões ....................................... 69
Capítulo III – Pulsão sexual: ligação e “desligamento” na vida psíquica ...................... 72
III. 1 – A problemática da sedução em Freud............................................................. 72
III. 2 – A teoria da sedução generalizada ................................................................... 77
III. 3 – A prioridade do outro na constituição da pulsão sexual ................................. 79
III. 4 – A pulsão sexual: a busca por mais excitação .................................................. 81
III. 5 – A fonte da pulsão sexual na teoria da sedução generalizada .......................... 83
III. 6 – Pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte ............................................. 87
III. 7 – As correntes de Eros em André Green ........................................................... 92
III. 8 – As noções de objetalização e desobjetalização............................................... 95
III. 9 – A pulsão de morte: desobjetalização ou fragmentação do objeto? ................. 97
Considerações finais ..................................................................................................... 103
Referências bibliográficas ............................................................................................ 113
Introdução

Com a conceituação da pulsão sexual, Freud inaugura uma concepção original e


ampliada da sexualidade humana. O seu objetivo, ao explorar o território da
psicopatologia, consistiu, inicialmente, em desvendar as causas das doenças psíquicas,
recorrendo a diferentes métodos e abordagens clínico-teóricas, até vir a construir a sua
própria teoria da subjetividade humana e sua metodologia clínica: a psicanálise.
Segundo Petot (1991/1998, p. 702), o “conceito psicológico” de sexualidade no
mundo contemporâneo deriva diretamente das construções teóricas de Freud. Do final
do século XIX até meados do século XX, através de sua extensa produção clínico-
teórica, ele estabeleceu uma nova plataforma de trabalho e pesquisa. Desde então, a
psicanálise constitui um polo gerador de inúmeras indagações, contribuindo
incessantemente para a estruturação de novos saberes.
A ideia de sexualidade, presente na obra freudiana desde a década de 1890,
consolidou-se com o estabelecimento da noção de pulsão nos “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade”, publicados em 1905. Através dos conceitos de disposição
perverso-polimorfa, zona erógena, pulsão parcial e libido, a sexualidade configurou-se
como porta de entrada para a compreensão da vida psíquica. No presente trabalho,
pretendemos problematizar o conceito de pulsão sexual na obra freudiana, explorando
as suas diferentes dimensões, com a finalidade de elaborar a seguinte questão: qual a
abrangência, significação e quais os problemas teóricos trazidos pelo conceito de pulsão
sexual?
A pulsão sexual, diferentemente do instinto sexual, não se limita às atividades
repertoriadas da sexualidade biológica, mas constitui o fator primordial que impulsiona
toda a série de manifestações psíquicas, estando, portanto, no fundamento do aparelho
psíquico e de seu funcionamento. Freud inaugura, assim, uma nova e revolucionária
compreensão da sexualidade humana.
Michael Foucault, em sua arqueologia dos saberes, mostrou que a ideia de
sexualidade fora construída no século XIX pelo discurso médico, o que representou,
dentre inúmeros outros aspectos, o estabelecimento de uma nova divisão entre a norma
e o desvio (ROUDINESCO & PLON, 1998; GARCIA-ROZA, 1984). Trata-se de um
período histórico no qual o ideal patriarcal começou a declinar e novas formas de
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construção do saber emergiram. Dentro desse contexto, a preocupação com a questão da


sexualidade passa a ser compartilhada por todos os cientistas do final do século XIX
que, a partir de então, passam a concebê-la como fator imprescindível na determinação
da atividade humana.
Todavia, Roudinesco e Plon assinalam que Freud, “impregnado das mesmas
interrogações que seus contemporâneos, (...) foi o único dentre eles a inventar não a
prova do fenômeno sexual, mas uma nova conceituação capaz de traduzir, nomear ou
até construir essa prova”. Em busca de respostas para as causas do sofrimento psíquico,
Freud edificou toda uma teoria, construiu uma nova ciência, impulsionada
essencialmente por sua experiência clínica. Para isso, realizou grande ruptura teórica
com as ciências vigentes no período de surgimento da psicanálise, “estendendo a noção
de sexualidade a uma disposição psíquica universal e extirpando-a de seu fundamento
biológico, anatômico e genital, para fazer dela a própria essência da atividade humana”
(ROUDINESCO & PLON, 1998, op. cit., p. 704). Toda a teoria psicanalítica é
arquitetada a partir desta nova concepção de sexualidade.
Então, na primeira parte do presente trabalho, pretendemos reconstruir as
primeiras contribuições do percurso de Freud. Quais são os principais dados teóricos, as
formulações por ele avançadas que nos permitem circunscrever a sua concepção de
sexualidade? E, mais especificamente, em que contexto emerge o conceito de pulsão
sexual? Para atingirmos o nosso objetivo, iremos não apenas descrever algumas das
teorizações de Freud, mas também problematizá-las de acordo com a leitura de autores
pós-freudianos, especialmente Jean Laplanche.
Logo no inicio do seu percurso, na primeira metade da década de 1890, Freud
postulou a noção de defesa na qual o ego se defende de representações ligadas à vida
sexual do sujeito. Esta noção, precursora da teoria do recalcamento, marca o seu ponto
de ruptura com as concepções de Jean Martin Charcot e Joseph Breuer que o inspiraram
no começo de sua trajetória. Mais significativamente, a noção de defesa expressa a
singularidade e originalidade do pensamento freudiano, ao introduzir a lógica do
inconsciente. Lógica cujo fundamento é a suposição de que o inconsciente resulta de um
movimento defensivo na vida psíquica, que afasta ideias que seriam intoleráveis para a
esfera do ego. Estas, quando afastadas da consciência, têm os seus conteúdos
representativos desinvestidos e enfraquecidos, mas jamais extinguidos do psiquismo.
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Este movimento defensivo, definido posteriormente por Freud como recalcamento,


divide a psique humana, gerando o inconsciente.
Vale ressaltar que em seu pensamento o recalque incide fundamentalmente sobre
a sexualidade. Assim, o inconsciente é concebido como inconsciente sexual. Reside aí,
nesse fato, a singularidade essencial da psicanálise.
Para fundamentar a sua teoria do recalcamento, Freud recorrera primeiramente à
hipótese da sedução, acreditando que o recalque se aplicava às lembranças de atentados
sexuais perversos sofridos de forma passiva pelo sujeito em sua infância. Ao conceber o
inconsciente como resultado do recalque das cenas de sedução no psiquismo, a teoria da
sedução não sobreviveu ao impacto de novas descobertas freudianas: o papel da
sexualidade infantil e da fantasia na vida psíquica. Segundo essa nova perspectiva, a
criança não seria desprovida de atividade sexual, no sentido de ser reconhecidamente
capaz de construir, num plano inconsciente, inúmeras fantasias sexuais, apesar de sua
imaturidade biológica.
De acordo com a teoria da sedução, a sexualidade infantil era considerada como
fator latente e não constitucional, posto que passível de erupção apenas diante da ação
perversa e sedutora do adulto. O abandono dessa teoria em 1897 corresponde ao
reconhecimento da existência da sexualidade infantil; ao fazê-lo, Freud desconstrói o
caráter patológico desta. No final do século XIX, a sexualidade infantil, quando
manifesta, era considerada anormal, patológica e, portanto, perversa, no sentido de um
desvio da normalidade. Aliás, várias manifestações da sexualidade não restritas ao coito
com a finalidade de reprodução da espécie eram consideradas aberrações. A sexualidade
infantil, então, era totalmente inadmissível como normal ou constitutiva do sujeito, vista
a imaturidade do aparelho sexual nas crianças.
Freud acabará por ressignificar profundamente a noção de perversão, situando a
sexualidade infantil e perversa no fundamento da sexualidade humana. É justamente
nesse contexto que a noção de pulsão sexual irá emergir. A pulsão sexual é, portanto, a
ferramenta teórica que viabiliza a construção da teoria da sexualidade em Freud, teoria
que se revelará fundamental para a compreensão de todas as outras formulações que
compõem o conjunto de seu pensamento.
A pulsão sexual resulta de uma transposição psíquica da excitação sexual.
Transposição que se caracteriza pela transformação da excitação sexual somática em
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excitação psíquica. Ao postular que a excitação sexual emerge de diferentes zonas


corporais desde a infância, Freud inaugura uma concepção original e ampliada da
sexualidade: esta não se restringe à vida adulta e aos propósitos da reprodução, mas
constitui uma força em busca de satisfação, que pressiona o corpo desde o inicio da
vida, não estando limitada às excitações dos órgãos genitais, mas abrangendo excitações
ligadas ao corpo inteiro e, mais do que isso, ultrapassando o próprio registro corporal.
Freud denomina zonas erógenas as zonas corporais que servem como fonte de
excitação sexual. Esta excitação teria repercussões psíquicas e, justamente visando
tematizar as repercussões desta no âmbito representativo, ele virá a conceituar a pulsão
sexual. Ao se tornarem excitações psíquicas, as excitações sexuais somáticas estão
acompanhadas de equivalentes simbólicos e fantasias subjacentes. Assim, através da
sexualidade, Freud encontra a via mestra para tematizar o mundo representativo e,
consequentemente, as disfunções que acontecem nesse mundo. A noção de pulsão vem
viabilizar a exploração conceitual dos efeitos psíquicos da sexualidade no homem.
Como veremos na primeira etapa de nossa pesquisa, a conceituação da pulsão
sexual foi o ponto de partida para um dos principais eixos da teoria freudiana: a teoria
das pulsões. A construção dessa teoria, a partir de uma perspectiva metapsicológica,
assumiu diferentes formatos até atingir configuração definitiva em 1920.
Na segunda parte de nossa dissertação iremos problematizar as mudanças
sofridas na compreensão do conceito de pulsão sexual ao longo da obra freudiana,
explorando as diferentes dimensões que ela assume na primeira e na segunda teoria das
pulsões, assim como no momento intermediário entre elas no qual tem lugar a
formulação do conceito de narcisismo.
Uma das preocupações fundamentais de Freud foi encontrar a pulsão que se
oporia às pulsões sexuais. Inicialmente, postulou a oposição entre pulsão sexual e
pulsão de autoconservação, visando tematizar o conflito entre a sexualidade impetuosa e
o ego, entendido inicialmente como instância psíquica dessexualizada. A primeira teoria
das pulsões visava contemplar com maior profundidade as descobertas que marcaram o
inicio de seu percurso teórico: a oposição de forças estabelecida entre as moções sexuais
na esfera psíquica e a defesa acionada pelo ego contra a impetuosidade dessas moções.
O caráter disruptivo da sexualidade é um fato evidente nas primeiras
formulações de Freud. A pulsão sexual, segundo esta lógica inicial, é entendida como
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força desestabilizadora para o ego, suscitando medidas de controle e moderação. A


defesa psíquica, o recalcamento, incidiria justamente contra a agressão da pulsão sexual
à esfera egoica.
Com a descoberta do narcisismo na primeira metade da década de 1910, uma
grande reviravolta começa a se instaurar nessa teoria. A constituição do ego passa a ser
profundamente inserida dentro de uma problemática sexual. Para que haja a constituição
do ego, far-se-ia necessário o investimento libidinal nessa instância. Se antes a pulsão
sexual ameaçava constantemente a estabilidade do ego, agora ela é a própria matéria-
prima para a sua constituição.
A “introdução” do narcisismo promoveu, portanto, uma série de dificuldades
para a teoria das pulsões. O foco desta passa a ser a oposição entre libido do ego e libido
do objeto, dois modos de investimento de uma mesma pulsão: a pulsão sexual. Assim, a
proposta original de estabelecer uma oposição entre duas pulsões distintas encontra-se
seriamente comprometida. Soma-se a esse fato a observação dos fenômenos relativos à
compulsão à repetição, elementos que levarão Freud a formular uma segunda teoria
pulsional, recuperando a dualidade perdida com a descoberta do narcisismo.
O último dualismo pulsional proposto por ele, entre Eros e pulsão de morte,
trouxe inúmeras interrogações, tornando-se um dos pontos mais controversos de todo o
seu percurso. A libido, energia da pulsão sexual, incorporada ao conjunto das pulsões de
vida (Eros), teria a função de tornar a pulsão de morte inofensiva (FREUD, 1924/2007).
Diante dessa perspectiva, a sexualidade, no final da teoria freudiana, assume papel
diferente da força impetuosa, eminentemente perturbadora (LAPLANCHE &
PONTALIS, 1967/1982) que havia sido atribuída à pulsão sexual nos primeiros esboços
da teoria das pulsões.
Ao ser confinada ao conjunto das pulsões de vida, a pulsão sexual perde o seu
caráter também hostil à estabilidade do ego. Torna-se uma força que tende
exclusivamente à ligação e à manutenção dos laços vitais. Portanto, o problema teórico
que emerge a partir da construção da segunda teoria das pulsões diz respeito, em grande
parte, à dificuldade de conciliar os aspectos não ligados da sexualidade com essa
restrição da pulsão sexual ao domínio de Eros – princípio de ligação.
Nesse contexto, as contribuições de autores pós-freudianos como Jean
Laplanche e André Green mostram-se especialmente valiosas. Ambos os autores
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priorizam a questão da pulsão sexual em suas abordagens, reafirmando a importância da


magistral ampliação da sexualidade que Freud inaugura. Todavia, ao reestruturar os
elementos conceituais herdados da teoria freudiana, os dois autores vão trilhar diferentes
caminhos. Na terceira parte do nosso trabalho, exploraremos as contribuições desses
autores, com a finalidade de elaborar a seguinte questão: a sexualidade estaria ou não
restrita ao campo da ligação no âmbito psíquico?
Ao “fazer trabalhar” a teoria das pulsões, Jean Laplanche resgata elementos do
pensamento freudiano antes mesmo da conceituação da pulsão sexual, visando integrá-
los à luz de descobertas posteriores. Ao voltar-se para a problemática da sedução em
Freud, desde a teoria da sedução nos anos 1895-1897 até a noção de sedução materna
nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), Laplanche constrói argumentos
que servem como pilares para a formulação de sua teoria da sedução generalizada. Esta
vem a situar o adulto sedutor no fundamento da pulsão sexual, desconstruindo a ideia de
origem biológica da força pulsional.
A pulsão, segundo o autor, é sempre sexual, pois encontra a sua origem no
trauma provocado pela experiência inconsciente de sedução na qual o corpo-psiquismo
infantil sofre o impacto de mensagens sexuais emitidas pelo adulto na relação de
cuidados – relação esta imprescindível para a sobrevivência da criança. Veremos como
a partir daí Laplanche virá a conceber a ideia de uma oposição entre pulsão sexual de
vida e pulsão sexual de morte, promovendo a indissociação de pulsão e sexualidade.
Por sua vez, André Green estabelecerá estreita relação entre as noções de pulsão
sexual, Eros e libido a uma função objetalizante, que serviria como expressão psíquica
da sexualidade. De acordo com o seu pensamento, a função sexual, sendo objetalizante,
leva o funcionamento psíquico a estabelecer ligações, vinculando a força pulsional aos
objetos, e até mesmo à criação destes na ausência do objeto stricto sensu. Em
contraposição à sexualidade, atribui à pulsão de morte uma função destrutiva,
desobjetalizante, que conduz o funcionamento psíquico ao desligamento, à destruição
dos vínculos objetais e, assim, ao desmantelamento de Eros. Em sua expressão mais
radical, a pulsão de morte, através da desobjetalização, indicaria uma “dessexualização”
no âmbito psíquico.
Se Freud recorreu ao termo pulsão para descrever a sexualidade humana,
podemos questionar até que ponto é possível dissociar os conceitos de pulsão e
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sexualidade. Os remanejamentos operados em sua teoria não deixaram de promover


uma série de dificuldades no entendimento do conceito de pulsão sexual. O presente
trabalho de pesquisa pretende, portanto, explorar estas dificuldades, analisando os
conceitos que permeiam a sua concepção inovadora de sexualidade.
Todo o registro pulsional estaria inserido no campo da sexualidade, ou haveria
algo da ordem do “pulsional” que escaparia a esse campo? Sexualidade e pulsão seriam
ou não conceitos indissociáveis em Psicanálise?
Capítulo I
A descoberta da sexualidade na teoria freudiana

A descoberta do tema da sexualidade no percurso de Sigmund Freud abarca o


período entre 1890 e 1900, consolidando-se em 1905, com a publicação dos “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1969). De acordo com Jean
Laplanche, essa descoberta produz-se em três campos: a histeria, as neuroses atuais e o
campo da autoanálise de Freud – que, por sua vez, resultou em uma teoria dos sonhos
com base nesse material.
Neste primeiro capítulo, vamos explorar as primeiras etapas do percurso
freudiano, com a finalidade de delimitar os conceitos que viabilizaram a construção de
sua teoria da sexualidade. Como Freud chegou à sua concepção inovadora relativa ao
papel da sexualidade na vida psíquica? De que maneira concebeu a sexualidade no ser
humano? E, especialmente, através de quais recursos teóricos fundamentou sua teoria?
Essas questões constituem o primeiro eixo de nossa pesquisa.

I. 1 – Os fatores sexuais na etiologia da histeria


Há estreita relação entre o campo da psicopatologia e o tema da sexualidade nos
fundamentos da psicanálise. Os fatores sexuais na base de diferentes estados
patológicos do psiquismo – desde a neurose de angústia e a neurastenia até as
psiconeuroses – constituem a matéria-prima para as construções inovadoras de Freud.
Em sua nota de introdução aos “Três ensaios” na Standard Edition, James Strachey
aponta que as primeiras abordagens freudianas sobre o tema apoiaram-se em bases da
fisiologia e da química, mas logo atingiram territórios novos e próprios da psicanálise
(FREUD, 1905/1969, op. cit., p.121).
Formado em medicina na Universidade de Viena em 1881, Sigmund Freud
inicialmente tornou-se pesquisador de anatomia, explorando o sistema nervoso. No final
de 1885, estudou na França com Jean Martin Charcot – médico e professor de anatomia
e patologia da Faculdade de Medicina de Paris – em um curso ministrado em
Salpêtrière. Em seus comentários de editor da Standard Edition (FREUD, 1893-1895/
1969, p. 15), Strachey diz que os estudos de Freud sob a orientação de Charcot
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concentraram-se em grande parte sobre a problemática da histeria. Uma das


contribuições mais significativas de Charcot para os estudos sobre a histeria foi
reconhecer nas manifestações histéricas uma doença funcional com um conjunto de
sintomas bem definido, desprezando assim o diagnóstico de simulação. Para o
tratamento desses quadros patológicos, Charcot privilegiou o método da sugestão
hipnótica (GARCIA-ROZA, 1984).
Freud retornou a Viena em 1886, fixando-se na cidade para estabelecer uma
clínica de doenças nervosas. Grande parte de sua clientela apresentava sintomatologia
histérica. Entre os primeiros métodos utilizados para o tratamento de seus pacientes
estão a hidroterapia, a eletroterapia, e a cura pelo repouso – frequentemente
recomendados naquele tempo. A sugestão hipnótica também foi um recurso bastante
utilizado por ele. Em seus comentários de editor, Strachey nos informa (FREUD, 1893-
1895/1969, op. cit., p. 15) que quando os resultados desses tratamentos mostraram-se
insatisfatórios, pelo fato de apenas eliminar os sintomas, não removendo a causa da
doença, Freud recorreu ao método da hipnose de maneira diferente daquela proposta por
Charcot (GARCIA-ROZA, 1984, op. cit.).
A partir de 1889, Freud começou a utilizar o método catártico, empregado por
Joseph Breuer anos antes em um dos tratamentos mais significativos para a pré-história
da psicanálise – o tratamento de Anna O./Bertha Pappenheim. De acordo com Breuer,
os sintomas histéricos baseavam-se em cenas que ocorreram no passado da vida do
paciente, e que lhe causaram forte impressão, mas foram esquecidas (FREUD,
1914a/1969).
O método catártico, então, consistia em fazer o paciente remontar, através da
hipnose, à pré-história psíquica da doença, com a finalidade de localizar o
acontecimento traumático que teria desencadeado a patologia. O paciente, ao reproduzir
a cena traumática, revivendo-a, finalmente liberava a carga de afeto mobilizada pelo
acontecimento. Assim, os sintomas histéricos se dissolviam, pois representavam
justamente “um emprego anormal de doses de excitação que não haviam sido
descarregadas (conversão)” (Id., ibid., p. 19).
Esse emprego anormal da excitação, manifestado através de um distúrbio
sensorial sem correlato orgânico, corresponderia ao mecanismo de conversão histérica –
um afeto psíquico transformado em sintoma físico. A operação do método catártico,
21

então, promovia deliberadamente “a recondução da excitação da esfera somática para a


psíquica, e assim a resolução da contradição, através da atividade de pensamento e da
descarga da excitação por meio da fala” (FREUD, 1950 [1894a]/1969, p. 57).
Uma das consequências mais significativas da utilização do método catártico por
Freud foi a descoberta da presença de fatores sexuais associados ao momento
traumático, originador da doença: “(...) partindo do método de Breuer, vi-me envolvido
em considerações sobre a etiologia e o mecanismo das neuroses em geral (...) fui
obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar de causas determinantes
que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em fatores sexuais”
(FREUD, 1895a/1969, p. 273).
A sexualidade está presente nos escritos freudianos desde 1893, em uma discreta
menção no artigo feito com Breuer “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos
histéricos: uma comunicação preliminar”. Os autores publicaram esse artigo mais uma
vez no primeiro e único livro que realizaram juntos, os Estudos sobre a histeria
(BREUER & FREUD, 1893-1895/1969, op. cit.), publicado em 1895. Trata-se de uma
obra na qual apresentaram valiosa extensão de seus argumentos científicos, e na qual o
papel da sexualidade já estava muito mais preeminente, especialmente na seção
“Psicoterapia da histeria”, escrita por Freud (1895a/1969, op. cit.). Nessa seção do livro,
é possível identificar os aspectos nos quais Freud se distancia das proposições de
Breuer, em termos tanto teóricos quanto clínicos. Entre esses aspectos estão: a noção de
defesa; o abandono da hipnose e do método catártico; e, particularmente, a prioridade da
sexualidade na etiologia da histeria e de outras perturbações psíquicas.
De acordo com Laplanche (1970), os Estudos sobre a histeria representam, em
mais de um aspecto, uma “formação de compromisso” entre Freud e Breuer – que, ao
trabalharem juntos durante determinado tempo, decidiram publicar um livro, mas no
momento de publicá-lo não estavam realmente de acordo. Esse conflito residiu
precisamente na questão da sexualidade e sua primazia nos estados patológicos do
psiquismo. Para Freud, o represamento da sexualidade estaria sempre implicado na
etiologia das patologias psíquicas. Assim, partindo dos ensinamentos de Breuer e
Charcot, ele estabeleceu uma nova plataforma de trabalho e pesquisa, contendo
inovações e aprofundamentos jamais esboçados anteriormente.
22

I. 2 – A noção de defesa
Ao abandonar o método catártico, Freud começou a solicitar de seus pacientes
em estado consciente lembranças que os remetessem ao fato traumático. Por mais que
eles se esforçassem para lembrar-se do acontecimento, parecia haver uma barreira que
impedia o acesso às lembranças relacionadas ao trauma.
“Por meio de meu trabalho (...) eu tinha de superar uma força psíquica nos
pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes
(fossem lembradas)” – escreve ele (1895a/1969, op. cit., p. 283). Freud logo percebeu
que essa força era exatamente a mesma que desempenhara papel importante na geração
do sintoma neurótico, impedindo a representação patogênica de tornar-se consciente.
Não levou muito tempo para ele reconhecer as características predominantes
desse grupo de representações afastadas da consciência. “Eram todas de natureza
aflitiva, capazes de despertar afetos de vergonha, de autocensura e de dor psíquica, além
do sentimento de estar sendo prejudicado...” (Loc. cit.). Essas ideias ameaçadoras
geravam forte resistência por parte do ego, sendo responsáveis por grave conflito
interno. Mas de onde viriam essas ideias?
Em “As neuropsicoses de defesa”, Freud responde a essa pergunta: “é fácil
verificar que é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas
oportunidades para o surgimento de representações incompatíveis” (FREUD,
1894a/1969, p. 59). Segundo Strachey (Id., ibid., p. 56), apesar da forte influência de
Charcot e Breuer nos escritos freudianos dessa época, esse texto de 1894 já expõe os
elementos determinantes para a construção de uma nova teoria. Nesse sentido, a noção
de defesa, precursora da teoria do recalcamento, desempenha papel fundamental. Não
foi à toa que anos mais tarde Freud escreveu que a teoria do recalque é “a pedra angular
sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (FREUD, 1914a/1969, op. cit., p.
26).
A noção de defesa se baseia no conflito entre duas forças opostas no âmbito
psíquico – oposição que, ao atingir proporção extremada, seria o fator prioritário no
desencadeamento da psiconeurose.

(...) O ego do paciente teria sido abordado por uma representação que se mostrara
incompatível, o que provocara, por parte do ego, uma força de repulsão cuja finalidade
seria defender-se da representação incompatível. Essa defesa seria de fato bem-sucedida
(FREUD, 1895a/1969, op. cit., p. 284).
23

Porém, apesar de a representação incompatível ser forçada para fora da


consciência, o processo de defesa não a erradicaria totalmente do psiquismo.

A tarefa que o eu se impõe, em sua atitude defensiva, de tratar a representação


incompatível como “non-arrivée”, simplesmente não pode ser realizada por ele. Tanto o
traço mnêmico como o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não
podem ser erradicados. Mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu
transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto
– a soma de excitação – do qual está carregada (FREUD, 1894b/1969, p. 56).

Vale ressaltar o aparecimento do termo “soma de excitação” pelo qual Freud


designa o afeto. Essa “soma de excitação” pode tanto vincular-se como desvincular-se
de uma representação, podendo ser empregada em um destino completamente diferente
do da esfera representativa. Na histeria, por exemplo, o afeto desvinculado da
representação, ao invés de deslocar-se para outra representação – como no caso das
obsessões – seria investido em uma parte do corpo do paciente, transformando-se por
conversão num sintoma físico.
A dissociação entre afeto e representação, promovida pela defesa, é o
mecanismo-chave das psiconeuroses. Como consequência dessa dissociação, “a
representação fraca não tem então praticamente nenhuma exigência a fazer ao trabalho
de associação. Mas a soma de excitação desvinculada dela tem que ser utilizada de
alguma outra forma” (loc. cit.).
Essa “soma de excitação” constitui a prova dos limites do processo de defesa. O
ego pode afastar da consciência a representação que o desestabiliza e agride, mas
sofrerá as consequências da carga de excitação vinculada a ela – já que esta não é
passível de ser recalcada. Dessa forma, o que Freud denomina “soma de excitação”
aparece em 1894 como a força móvel das representações – força impetuosa,
insubordinável aos esforços defensivos do ego.
Ressaltemos ainda que até esse ponto – o ego sendo confrontado pela
representação incompatível e afastando-a da consciência – “os processos observados na
histeria, nas fobias e nas obsessões são os mesmos; daí por diante, seus caminhos
divergem” (loc. cit.). O que irá diferenciar a histeria, as obsessões e as fobias – esses
três grupos de patologias psiconeuróticas – será justamente o destino da “soma de
excitação” desvinculada da representação incompatível.
Ao basear-se em uma oposição de forças, a noção de defesa logo nos remete para
uma concepção quantitativa do aparelho psíquico. “Não se deve esquecer (...) que se
24

trata sempre aqui de uma comparação quantitativa, de uma luta entre forças
motivacionais de diferentes graus de vigor ou intensidade” (FREUD, 1895a/1969, op.
cit., p. 284).
Freud termina o seu importante texto de 1894 com a seguinte indicação –
imprescindível para o desenvolvimento ulterior de sua teoria:

(...) nas funções mentais, deve-se distinguir algo – uma carga de afeto ou soma de
excitação – que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos
meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se
espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada
pela superfície de um corpo (FREUD, 1894b/1969, op. cit., p. 66).

Estamos aqui diante do conceito de pulsão em sua fase embrionária. Com essa
indicação, podemos dizer que o aparelho psíquico é constituído não apenas por
representações, mas também por “quantidades” de excitação – que, ao se espalharem
pelos traços mnêmicos das representações, são responsáveis pela dinâmica da vida
psíquica. Essas “quantidades” de afeto – essas “somas” de excitação – estão na base dos
processos psíquicos, mas qual seria a origem dessas cargas de excitação?

I. 3 – As neuroses atuais
(...) uma vez que a excitação sexual somática atinja seu valor
limite, ela se converte continuamente em excitação psíquica (FREUD,
1895b/1969, p. 109).

O campo das neuroses atuais foi outro território fundamental para o


desenvolvimento da concepção freudiana de sexualidade, especialmente no que se
refere ao conceito de libido. Trata-se de um conceito que nos permite compreender a
transposição psíquica da sexualidade – isto é, a transformação da excitação sexual
somática em excitação sexual psíquica. Em seu artigo de 1895 sobre a neurose de
angústia (FREUD, 1895b/1969, op. cit., p. 110), Freud conceitua “uma excitação sexual
somática e um estado em que essa excitação se transforma num estímulo psíquico –
libido”.
A ideia contida na conceituação das neuroses atuais – grupo que, nessa época,
abrange a neurastenia e a neurose de angústia – se refere ao acúmulo de excitação
sexual que não encontra descarga no campo psíquico. Diferentemente do que ocorre no
campo das psiconeuroses – baseado nos efeitos do ingresso da excitação sexual na
25

esfera psíquica, do confronto dessa força sexual com o ego –, no campo das neuroses
atuais haveria insuficiência do processo de transposição da excitação sexual, ou seja, ela
não se transformaria em estímulo psíquico.
“Logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes neuróticos tinha
muito a ver com a sexualidade” – escreve Freud (1894b/1969, op. cit., p. 235). Na
neurose de angústia, haveria acúmulo de excitação somática, de natureza sexual. Esse
acúmulo seria acompanhado de um “decréscimo da participação psíquica dos processos
sexuais” (FREUD, 1895b/1969, op. cit., p. 109). Mas, de que modo se daria essa
participação psíquica dos processos sexuais?
Ao descrever o processo de transposição da excitação somática em excitação
psíquica, Freud oferece as seguintes indicações, tomando a sexualidade masculina como
exemplo na primeira delas:

Essa excitação somática se manifesta como uma pressão nas paredes das vesículas
seminais, que são revestidas de terminações nervosas (...) essa excitação visceral se
desenvolve continuamente, mas tem que atingir certa altura para poder vencer a
resistência da via de condução intermediária até o córtex cerebral e expressar-se como
um estímulo psíquico (loc. cit.).

Podemos supor que a tensão endógena cresce contínua ou descontinuamente, mas, de


qualquer modo, só é percebida quando atinge um determinado limiar. É somente acima
desse limiar que a tensão passa a ter significação psíquica, que entra em contato com
determinados grupos de ideias que, com isso, passam a buscar soluções (Id.,
1894a/1969, op. cit., p. 238).

Ao manifestar-se como estímulo no psiquismo, a excitação faz com que as


representações sexuais na esfera psíquica fiquem supridas de energia, passando então a
existir um “estado psíquico de tensão libidinal, que traz em si uma ânsia de eliminar
essa tensão” (FREUD, 1895b/1969, op. cit., p. 109). Fica clara a hipótese, então, de que
o aparelho psíquico é movido por uma energia proveniente dos processos sexuais
somáticos.
O que não é especificado nessa fórmula, como em grande parte dos textos
freudianos iniciais, é a origem dos processos representativos. Essas indicações se
referem à força dos processos psíquicos, assim como à origem dessa força; mas não
esclarecem o outro lado da questão: como o ato de representar torna-se possível? De
onde vêm essas “representações sexuais” que são supridas de energia à medida que as
excitações somáticas atingem determinado limiar, sendo convertidas em estímulos
psíquicos?
26

No “Rascunho E” de 1894, texto precursor do artigo de 1895, Freud apresentara


um modelo mais rebuscado em relação à transformação psíquica da sexualidade. A
tensão física, acima de certo nível, despertaria a libido psíquica. Na neurose de angústia,
essa tensão atingiria o limiar exigido para ser convertida em tensão psíquica, entretanto
“a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente: um afeto sexual não
pode ser formado, porque falta algo nos fatores psíquicos” (FREUD, 1894b/1969, op.
cit., p. 238).
É importante notar a clareza com a qual Freud concebe o estatuto do afeto aqui –
o afeto seria justamente o efeito do ingresso da excitação somática na esfera psíquica. E
não se trata de qualquer afeto nos quadros psicopatológicos analisados por ele. O que
está em jogo nesses quadros é o afeto sexual, decorrente de uma inscrição psíquica da
excitação. E é esse mesmo afeto que o ego, através do processo de defesa, nada pode
fazer para erradicar.
Nas neuroses atuais, entretanto, não haveria nem mesmo a ameaça desse afeto
sexual, pois haveria um comprometimento da sexualidade psíquica, uma falha nesse
processo de inscrição da excitação. “A neurose de angústia (...) é produto de todos os
fatores que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada”
(FREUD, 1895b/1969, op. cit., p. 110). Através do campo dessas neuroses, estamos
diante de um termo fundamental para a teoria psicanalítica, o de elaboração psíquica.
Trata-se de um termo que expressa

o fato de que uma excitação se incorpora ao circuito representativo e se liga a


representações, ou seja, entra no domínio específico da análise, das fantasias ou, para
utilizar um termo muito similar colocado em vigência por Lacan, da simbolização
(LAPLANCHE, 1970, op. cit., p. 34 – Tradução nossa).

A excitação endógena, ao atuar como uma força constante (FREUD,


1895b/1969, op. cit.), deve ligar-se a grupos de representações. Esse processo só é
possível através da conversão da excitação sexual somática em afeto sexual (excitação
sexual psíquica). Todavia, pode haver alienação entre essas duas esferas, psíquica e
somática, no rumo tomado pela excitação. Esse curto-circuito seria o grande
desencadeador da angústia.
A angústia resultaria de uma “deflexão da excitação somática da esfera psíquica
e no consequente emprego anormal dessa excitação” (Id., ibid., p. 108-109). A angústia
27

corresponderia justamente à excitação sexual não ligada psiquicamente. Ao fazer uma


analogia entre histeria e neurose de angústia, Freud pontua:

(...) tanto na segunda como na primeira, em vez de uma elaboração psíquica da


excitação, há um desvio dela para o campo somático; a diferença está apenas em que, na
neurose de angustia, a excitação, em cujo deslocamento a neurose se expressa, é
puramente somática (excitação sexual somática), ao passo que, na histeria, ela é psíquica
(provocada por um conflito) (FREUD, 1895b/1969, op. cit., p. 115).

Apesar de não ter explorado a problemática das neuroses atuais nos anos
subsequentes de sua trajetória, Freud jamais abriu mão desse ponto de vista. Ele
priorizou as psiconeuroses em relação às neuroses atuais em suas abordagens teóricas e
clínicas pelo fato de as primeiras estarem inseridas num âmbito psíquico. Ao aprofundar
a sua investigação sobre as causas das psiconeuroses, chegou a uma nova concepção – a
teoria da sedução.

I. 4 – A teoria da sedução
Após atribuir etiologia sexual às psiconeuroses, Freud formulou a teoria da
sedução – a qual postulava a existência de uma origem traumática para esse grupo de
patologias, decorrente da sedução exercida pelo adulto sobre a criança. A teoria da
sedução – a exemplo do que aconteceu com a noção de defesa e a teoria das neuroses
atuais – distanciou Freud ainda mais dos pressupostos de Breuer e Charcot, trazendo à
tona a singularidade de seu pensamento.
No artigo “As psiconeuroses de defesa” (FREUD, 1894/1969, op. cit.), foi
postulada a noção de defesa ou “recalcamento”. Agora, em 1896, com “Observações
adicionais sobre as psiconeuroses de defesa” (Id., 1896a/1969), são esquematizados de
forma mais detalhada os fatores responsáveis pelo acionamento da defesa. Se, no artigo
anterior, Freud já sugeria que o ego se defendia predominantemente das representações
sexuais incompatíveis, nesse novo artigo explora com maior profundidade a origem
dessas representações e o seu caráter traumático. Nesse momento teórico a prioridade da
sexualidade na etiologia das psiconeuroses é fato incontestável. Trata-se de uma
experiência sexual de cunho traumático cujos traços mnêmicos, e o afeto a eles ligado
desempenham papel preponderante.
“Em publicações anteriores, Breuer e eu já expressávamos a opinião de que os
sintomas da histeria só poderiam ser compreendidos se remetidos a experiências de
28

efeito traumático referindo-se esses traumas psíquicos à vida sexual do paciente” –


escreve Freud (1896a/1969, op. cit., p. 164).
Uma experiência sexual aflitiva, ao ocorrer na infância do paciente, só poderia
ser recalcada quando houvesse a ativação de seus traços mnêmicos posteriormente. Ou
seja, essa experiência só teria repercussão psíquica uma vez que o sujeito ingressasse na
puberdade, ou se aproximasse da mesma, pelo fato de a puberdade ser o período de
erupção da sexualidade. Assim, as excitações sexuais somáticas atingiriam o limiar
necessário para ser convertidas em excitações psíquicas. Nesse momento, Freud não
havia explorado ainda o território da sexualidade infantil.

(...) quando a experiência sexual ocorre durante o período de imaturidade sexual e sua
lembrança é despertada durante ou após a maturidade, a lembrança passa a ter um efeito
excitatório muito mais forte do que o da experiência na época em que ocorreu; e isso
porque, nesse ínterim, a puberdade aumentou imensamente a capacidade de reação do
aparelho sexual. (...) Os traumas da infância atuam de modo adiado, como se fossem
experiências novas, mas o fazem inconscientemente (Id., ibid., p. 167).

A relação entre experiência real e ativação posterior dos traços mnêmicos dessa
experiência carrega em si a pré-condição para o recalcamento. Este seria justamente
uma consequência do ingresso da excitação sexual na esfera psíquica. Com o aumento
da excitação e a consequente ativação de traços mnêmicos de experiências de cunho
sexual, presentes no psiquismo desde a infância, o efeito dessa vinculação entre afeto
sexual e representação seria aflitivo em demasia para o ego – que se defenderia desse
confronto com a sexualidade psíquica através do recalcamento.
Para Freud, apenas as representações de conteúdo sexual poderiam ser
recalcadas. Na segunda seção do “Projeto para uma psicologia científica”, manuscrito
de 1895 – que só veio a ser publicado em 1950 –, ele oferece preciosas indicações para
uma compreensão mais apurada da teoria da sedução. Deixa claro que “o recalcamento
é invariavelmente aplicado a ideias que despertam no ego um afeto penoso (de
desprazer) e segundo, a ideias provenientes da vida sexual” (FREUD, 1895c/1969, p.
404). Essa posição teórica foi reafirmada diversas vezes ao longo de seu percurso.

Se nos perguntarmos qual seria a causa desse processo patológico interpolado, só


poderemos indicar uma – a liberação sexual, da qual também há provas na consciência.
Isso está vinculado à lembrança do atentado; mas é altamente digno de nota o fato de
que ela não se vinculou ao atentado quando este foi cometido. Temos aqui um caso em
que uma lembrança desperta um afeto que não pôde suscitar quando ocorreu como
experiência, porque, nesse entretempo, as mudanças [trazidas] pela puberdade tornaram
29

possível uma compreensão diferente do que era lembrado (FREUD, 1895c/1969, p.


410).

Cada indivíduo na adolescência traria traços de memória que só poderiam ser


compreendidos com as manifestações de suas próprias sensações sexuais. Quando a
associação entre esses traços e a libido levasse esse indivíduo a uma lembrança de um
atentado sexual na infância, ele estaria mais suscetível aos efeitos traumáticos dessa
lembrança – que, agora, estaria ativada por intenso afeto sexual. “A análise indica que o
que há de perturbador num trauma sexual é, sem dúvida, a liberação do afeto” (Id., ibid.,
p. 411).
A “soma de excitação” vinculada à representação sexual, quando liberada, seria
o fator desencadeante do trauma – não a representação sexual em si, mas a força dessa
representação. Tratar-se-ia de uma força sexual agressiva, pouco apreensível pelos
recursos egoicos. O recalcamento constituiria justamente a defesa contra essa agressão
– essa invasão do afeto sexual no plano psíquico.
De acordo com Laplanche (1987/1992), a teoria da sedução se desenvolve em
três registros: o temporal, o tópico e o “tradutivo”. O registro temporal se refere à teoria
do trauma em dois tempos, à noção de a posteriori. Uma experiência só se torna
traumática em um segundo momento, através de sua lembrança ativada pelo afeto
sexual.
No primeiro tempo, o sujeito é confrontado por uma ação sexual cuja
significação não pode ser assimilada. Freud indica (FREUD, 1896a/1969, p. 169) que o
sujeito é sempre passivo diante do “atentado sexual”, inclusive nos casos de neurose
obsessiva. Nesses casos, a passividade da criança diante da ação do outro está encoberta
pela lembrança de uma posição ativa na ação sexual – que, na verdade, é sempre
posterior a um primeiro “atentado” no qual o sujeito foi passivo. A lembrança, se
deixada em suspenso, não é em si patogênica nem traumatizante. O que a torna
traumática é a sua revivescência, pela ressonância associativa entre duas cenas
separadas no tempo. “(...) Devido às novas possibilidades de reação do sujeito, é a
própria lembrança [através de sua vinculação com o afeto sexual], e não a nova cena,
que vai funcionar como fonte de energia traumatizante, como fonte autotraumatizante”
(LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 120).
30

Então, o que acontece no segundo tempo, autotraumático – segundo Laplanche –


, é o fato de que o ego não encontra uma solução via elaboração psíquica, mas sim
através de uma defesa patológica. Isso acontece devido ao segundo registro, tópico, do
processo – fundamentado na ideia de “ataque interno” por um objeto inicialmente
externo ao ego.
O primeiro tempo, o do “ataque” externo do adulto – da primeira cena sexual –,
corresponde ao tempo no qual a criança ainda não pode recalcar os traços dessa
experiência, pois esta ainda não recebeu uma significação sexual. Trata-se de uma
significação pré-sexual, e o sujeito pode apenas bloquear esses traços no local. No
segundo tempo, o sujeito tem os meios – ou seja, o ego desenvolvido – para enfrentar a
ativação via afeto sexual desses traços, mas encontra-se “voltado para uma verdadeira
guerra estratégica, agredido na face desarmada, ou seja, de dentro, atacado por uma
lembrança e não por um acontecimento” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 120).
Para Laplanche, o ego serve como uma espécie de “para-excitação” interno,
sendo a instância psíquica que amortece o impacto das intensidades afetivas e sexuais:

A recordação traumatizante, capaz de surpreender o eu ao agredi-lo a partir de seu


próprio interior, tinha o grande mérito de pôr em evidência toda a importância do eu
como instância de fronteiras múltiplas e maleáveis, criadas com a finalidade de
circunscrever a excitação (RIBEIRO, 1996, p. 51).

O terceiro registro, o “tradutivo”, está presente na carta 52 de Freud a Fliess


(1896b). Essa carta revela uma concepção tradutiva do recalcamento, na qual a sucessão
de cenas e suas relações são comparadas a processos de reinscrição e tradução, situando
o recalcamento no espaço que separa dois tempos psíquicos, comparando-o a uma falha
parcial de tradução (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit.; RIBEIRO, 1996, op. cit.).
Freud renunciou à teoria da sedução em 1897, constatando que as moções
sexuais atuavam no corpo infantil sem a necessidade de estimulação externa. No
entanto, permaneceu defendendo a ideia de que o recalque dessas moções promoveria
conflito psíquico que seria a causa da neurose. Em suas observações de editor da
Standard Edition, Strachey nos diz que até então a sexualidade infantil era concebida
como fator latente, passível de erupção somente pela intervenção sedutora de um adulto,
com resultados desastrosos para o sujeito posteriormente (FREUD, 1905/1969, op. cit.,
p. 122; ROUDINESCO e PLON, 1998).
31

A descoberta do papel da fantasia nos relatos de seus pacientes foi, no entanto, o


fator mais importante para o abandono da teoria da sedução. “Se os pacientes histéricos
remontam seus sintomas a traumas que são fictícios, então o fato novo que surge é
precisamente que eles criam tais cenas na fantasia” (FREUD, 1914a/1969, op. cit., p.
27). O que estaria na base das fantasias dos neuróticos seria justamente a sexualidade
infantil – fantasias que, segundo Freud, teriam a função de encobrir a atividade
autoerótica dos primeiros anos de infância. De acordo com Garcia-Roza (1984, op. cit.),
a sexualidade infantil e a fantasia eram os elementos teóricos que faltavam para a
construção da teoria freudiana da sexualidade.

I. 5 – Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade


Freud introduziu o conceito de inconsciente em A interpretação dos sonhos
(1900/1969) e a ideia de sexualidade infantil, apesar de já emergir no mesmo trabalho,
só veio a ser efetivamente desenvolvida nos “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” em 1905 (GARCIA-ROZA, 1984). Para Strachey, em seus comentários de
editor da Standard Edition, os “Três ensaios”, ao lado de “A interpretação dos sonhos”,
constituem indubitavelmente “as contribuições mais significativas e originais de Freud
para o conhecimento humano” (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 124).
Muitos dos elementos conceituais que se solidificaram com a construção dos
“Três ensaios” já estavam presentes no pensamento freudiano desde meados da década
de 1890. Entre esses elementos, a “soma de excitação” ou carga de afeto, intensamente
explorada nos primeiros escritos de Freud, finalmente encontra uma conceituação mais
profunda através da ideia de pulsão (Trieb).
Em seu Prefácio de editor dos Escritos sobre a psicologia do inconsciente,
escreve Luiz Alberto Hanns:

A inovação de Freud não reside em ter teorizado o conceito de Trieb, mas em tê-lo
inserido no arcabouço de uma teoria do conflito psíquico e, portanto, psicodinâmica.
Embora já empregasse o termo ocasionalmente, só a partir de 1905 (...) é que ele passa a
se servir mais sistematicamente da palavra Trieb (FREUD, 1915/2004, p. 139).

Segundo Strachey, apesar dos inúmeros acréscimos feitos aos “Três ensaios” em
edições posteriores, a essência dessa obra está presente desde a sua primeira publicação
(FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 121). No prefácio da terceira edição, em 1915, Freud
32

enfatizou a subordinação de suas ideias à experiência psicanalítica. A questão da


sexualidade, priorizada desde meados da década de 1890, exigiu aprofundamento
teórico devido aos impasses enfrentados em sua prática clínica.
Roudinesco & Plon (1998, op. cit., p. 704) sustentam que o material clínico
acumulado por Freud o apresentou a uma série de desafios, pois a sexualidade não se
manifestava sempre explicitamente através dos sonhos e das fantasias – ela se revestia
de diversas formas, “sob disfarces que era preciso saber decifrar”. Explicam que foi esse
o motivo que levou Freud a estudar as aberrações, as perversões sexuais e as origens da
sexualidade, pois os seus fundamentos não estavam nítidos nem acessíveis pelas
concepções vigentes no período de surgimento da sua teoria.

I. 6 – A sexualidade perversa polimorfa


Nos “Três ensaios”, a sexualidade é definida como perversa polimorfa. Trata-se
de uma sexualidade fragmentada em pulsões parciais que vagueiam entre objetos e
alvos perversos. A perversão se refere a um desvio em relação ao ato sexual normal,
descrito como o “coito que visa à obtenção do orgasmo por penetração genital, com
uma pessoa do sexo oposto” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982, p. 341-42).
No primeiro dos três ensaios, “As aberrações sexuais”, Freud começa a sua
exposição de ideias definindo os conceitos de objeto e alvo sexual. O objeto seria a
pessoa para a qual a atração sexual está dirigida, e o alvo seria a ação motivada pela
pulsão. “Partimos das aberrações da pulsão sexual com respeito a seu objeto e seu alvo,
e deparamos com a questão de sabermos se elas provêm de uma disposição inata ou são
adquiridas como resultado das influências da vida” – escreve ele (FREUD, 1905/1969,
op. cit., p. 218).
Assim, são indicados os caminhos pelos quais a questão da sexualidade humana
será explorada – seria ela naturalmente desviante do encontro genital com o sexo oposto
e dos propósitos da reprodução, ou os seus desvios seriam consequências de
intervenções externas? E, como esta sexualidade “desviante” se manifesta na vida
psíquica?
Freud se baseia no campo das psiconeuroses para elaborar essas questões.

Descobrimos que, nessas pessoas, a inclinação para todas as perversões é demonstrável


na qualidade de forças inconscientes e se denuncia como formadora de sintomas, e
33

pudemos dizer que a neurose é como que o negativo das perversões (FREUD,
1905/1969, op. cit., p. 218).

O que estaria na base das psiconeuroses seria justamente uma moção sexual
perversa, impedida em seu acesso à satisfação, afastada para longe do domínio da
consciência. Entretanto, através do sintoma neurótico, essa moção encontraria outra via
de satisfação – via muitas vezes penosa para o sujeito. Tratar-se-ia de uma moção
perversa por esta não estar subordinada ao primado da sexualidade genital, adulta e
“normal”. Essa moção seria a prova viva da sexualidade infantil, considerada perversa
e, portanto, patológica em muitas abordagens do panorama científico da época.
“(...) Os sintomas (...) representam a expressão convertida de pulsões que seriam
designadas de perversas (...) se pudessem expressar-se diretamente, sem desvio pela
consciência, em propósitos da fantasia e em ações” (FREUD, 1905/ 1969, op. cit., p.
157). Assim, Freud considera a neurose o negativo da perversão pelo fato de ser a
sexualidade perversa que está representada na sintomatologia neurótica. Trata-se de
uma sexualidade mais próxima de seu estado bruto e inicial.

Diante da ampla disseminação das tendências perversas, agora reconhecidas, fomos


impelidos ao ponto de vista de que a disposição para as perversões é a disposição
originária universal da pulsão sexual humana, e de que a partir dela, em consequência de
modificações orgânicas e inibições psíquicas no decorrer da maturação, desenvolve-se o
comportamento sexual normal (Id., ibid., p. 218).

Freud diz ser imprópria a “utilização reprobatória” (Id., ibid., p. 152) do termo
perversão, desafiando o caráter patológico atribuído a toda uma série de perversões por
outras teorias. A disposição perversa polimorfa é caracterizada por ele como algo
“universalmente humano e originário” (Id., ibid., p. 180).
Os rudimentos de atividades perversas estariam presentes nos processos sexuais
normais. Para exemplificar essa afirmação, Freud cita “certas relações intermediárias
com o objeto sexual (a caminho do coito), tais como apalpá-lo e contemplá-lo” – alvos
sexuais preliminares (Id., ibid., p. 141). Essas atividades não só promovem o prazer,
mas também intensificam a excitação até que o alvo sexual definitivo seja alcançado.
Entretanto, os argumentos freudianos referentes aos desvios em relação ao
objeto, ao alvo (processo que obtém prazer), e à fonte (uso de zonas corporais que não
são necessárias ao coito), “destroem no adulto a ideia de uma pré-formação, de uma
finalidade, pois o único objetivo atribuível a todos esses atos (...) não pode ser para um
34

fim biológico [reprodução], só pode ser pura e simplesmente o prazer” (LAPLANCHE,


1993/1997, p. 23).
As perversões mostram os destinos variados da sexualidade no ser humano. Se,
no caso do instinto (Instinkt), o alvo é a adaptação – nutrir-se, defender o seu território,
reproduzir-se –, no caso da pulsão (Trieb), o alvo é essencialmente a satisfação.
Enquanto os objetos do instinto são relativamente fixos, os objetos da pulsão podem
variar infinitamente. Nesse sentido, as perversões – com seus desvios em relação ao
objeto e ao alvo específicos – nos permitem estabelecer uma distinção mais clara entre o
que é da ordem da pulsão e o que é da ordem do instinto (SCARFONE, 1997).

I. 7 – A pulsão sexual
Freud recorreu ao termo pulsão (Trieb) para descrever a sexualidade humana – o
que já nos leva a questionar se as noções de pulsão e sexualidade não seriam, de fato,
indissociáveis em sua teoria. Ele definiu a pulsão como o conjunto de exigências
somáticas feitas ao psiquismo (FREUD, 1940 [1938]/1969). A ancoragem da pulsão no
corpo somático é uma constante em sua obra, desde os “Três ensaios” (1905/1969, op.
cit.) até o “Esboço de psicanálise” (1940 [1938]/1969).
A definição geral de pulsão foi acrescentada em 1915, na terceira edição dos
“Três ensaios”, e em sua essência permaneceu inalterada até o final do percurso
freudiano: por pulsão “deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de
uma fonte endossomática e contínua de excitação em contraste com um “estímulo”,
estabelecido por excitações simples vindas de fora” (Id., 1905/1969, op. cit., p. 159).
Diferentemente dos estímulos exteriores que chegam ao organismo, as pulsões
são estímulos de origem interna. “Diante dos estímulos exteriores, o recurso pode ser a
fuga ou a ação muscular; mas e diante da fome, ou do desejo sexual? Estes estímulos
levam o psiquismo a desenvolver uma série complexa de operações psíquicas para obter
a descarga” (GURFINKEL, 1993, p. 159).
Para Joel Birman, a pulsão constitui o conceito fundamental da metapsicologia
freudiana, pois a partir dele a psicanálise encontrou um caminho de articulação entre as
ordens do corpo e do psiquismo, no que para o autor consiste em um processo de
transposição. A ordem psíquica, ao passar a existir no plano da representação, “seria a
única capaz de regular as excitações corporais que, de outro modo, seriam uma fonte
35

permanente de desprazer” (BIRMAN, 1993, p. 108). Quando inscrita no âmbito


psíquico, a pulsão apresenta-se como afeto e como representante-representação.

(...) O princípio do prazer-desprazer regularia as demandas colocadas para a realização


dessa transposição, sendo a ordem psíquica considerada como único lugar possível onde
se realizaria o domínio e a ligação da insistente pressão pulsional (BIRMAN, 1993, p.
108).

Talvez um dos maiores desafios de toda a teoria sexual de Freud tenha sido
entender como o funcionamento psíquico está, de alguma forma, atrelado ao organismo
biológico do individuo, influenciando e subvertendo o seu funcionamento.
A pulsão pode ser caracterizada como força propulsora, derivada do interior do
organismo, existente na fronteira entre as ordens do corpo e da representação. Ao
subverter o organismo biológico, a pulsão – em sua busca ininterrupta de satisfação –
seria o fator que impulsiona a atividade psíquica. A sexualidade, conceituada por Freud
através da ideia de pulsão sexual, pode ser apontada, portanto, como fator motivador do
funcionamento psíquico.
“A pulsão sexual, diferente do instinto sexual, não se reduz às simples atividades
sexuais que costumam ser repertoriadas com seus objetivos e objetos, mas é um impulso
do qual a libido constitui a energia” (ROUDINESCO & PLON, 1998, op. cit., p. 629). É
este aspecto de irredutibilidade, tanto em relação à satisfação de uma necessidade
quanto em relação aos objetos de satisfação, que melhor caracteriza a pulsão.

I. 8 – A pulsão parcial
O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades
específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos
(FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 159).

O desenvolvimento da pulsão sexual é gradativo e se dá através de


“contribuições sucessivas de certo número de instintos1 componentes que representam
zonas erógenas específicas” (FREUD, 1940 [1938]/1969, op. cit., p. 164-165). As
1
A tradução em português da Edição standard brasileira das obras de Sigmund Freud apoia-se na
tradução inglesa de James Strachey. Segundo Roudinesco e Plon (1998, op. cit., p. 628), “parece que foi a
fidelidade à ideia freudiana de uma articulação da psicanálise com a biologia que norteou a escolha que
Strachey fez da palavra instinct, em lugar de drive”. No texto original de Freud, em alemão, o termo
utilizado não foi Instinkt, mas sim Trieb. “Em alemão, como em francês ou português, os termos Trieb e
pulsão remetem, por sua etimologia, à ideia de um impulso, independentemente de sua orientação e seu
objetivo” (loc. cit.).
36

pulsões parciais são manifestações fragmentadas, isto é, não integradas, da pulsão


sexual. As excitações que partem de diferentes zonas corporais como a oral, a anal e a
uretral, entre outras, transformam-se em excitações psíquicas – que, na concepção de
Freud, são efeitos de pulsões parciais, ainda não totalizadas ou organizadas, que
repercutem na esfera representativa.
Essas pulsões são essencialmente perversas, pois não estão subordinadas ao
primado da zona genital, isto é, derivam de diferentes zonas corporais, sendo portadoras
de diferentes alvos sexuais, relativamente independentes da genitalidade. O alvo dessas
pulsões evidentemente não é o encontro genital com o sexo oposto.
Numa leitura estrita da teoria freudiana, a pulsão sexual é o resultado da
convergência de pulsões perversas para o primado da zona genital. Em outras palavras,
a partir da puberdade, quando a sexualidade se manifesta predominantemente através de
excitações genitais, buscando como alvo o apaziguamento da tensão genital através do
contato com o objeto heterossexual (coito), a pulsão sexual está em plena vigência. A
pulsão parcial é, então, precursora da pulsão sexual.
Sublinhemos a importância do conceito de pulsão parcial para a teoria
psicanalítica. São as pulsões parciais que constituem a base da sexualidade infantil e,
dessa forma, a base da sexualidade humana – assim como são elas que desempenham o
papel predominante na formação de sintomas psiconeuróticos, já que o que é
fundamentalmente recalcado no psiquismo é a sexualidade infantil.
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1969, op. cit.),
a pulsão parcial aparece, na maior parte das vezes, em pares de opostos. Entre esses
pares, Freud menciona a pulsão do prazer de ver e a do exibicionismo, assim como a
pulsão de crueldade em suas formas ativa e passiva. A pulsão de crueldade, concebida
nesse momento como uma pulsão parcial da sexualidade, seria responsável pelo caráter
penoso dos sintomas neuróticos, com forte relação com o sofrimento psíquico do
sujeito. Freud afirma: “a contribuição desta (...) é indispensável à compreensão da
natureza sofrida dos sintomas e domina quase invariavelmente uma parte da conduta
social do doente” (Id., ibid., p. 158).
É também através da pulsão de crueldade, dessa ligação entre libido e
hostilidade, que é apontado um caminho para se explicar a transformação das moções
afetuosas em moções hostis – a transformação do amor em ódio. É interessante notar
37

que determinadas pulsões parciais – como, por exemplo, a pulsão de crueldade e a


pulsão do prazer de ver – nos trazem uma questão fundamental: qual seria a fonte
somática dessas pulsões?
A pulsão parcial é um impulso que se origina nos órgãos somáticos, através de
excitações cuja natureza química é especificamente sexual. A fonte da pulsão é um
processo excitatório que ocorre em um órgão. O alvo imediato da mesma consiste na
eliminação deste estímulo orgânico. As zonas erógenas correspondem aos diferentes
órgãos do corpo dos quais se originam as excitações. No caso da pulsão oral ou da
pulsão anal, essa fórmula pode ser compreendida com maior facilidade. Mas, no caso da
pulsão de crueldade ou da escopofilia, ela nos apresenta maiores desafios.
Segundo Freud (1905/1969, op. cit., p. 160): “na escopofilia e no exibicionismo
o olho corresponde a uma zona erógena; no caso da dor e da crueldade como
componentes da pulsão sexual, é a pele que assume esse papel”. Apesar dessa aparente
“resolução”, a questão é reconhecida por ele como muito mais difícil do que parece.
A pele, em determinadas partes do corpo, diferencia-se dos órgãos sensoriais,
transforma-se em mucosa e passa a servir como zona erógena – sendo assim a zona
erógena por excelência. Para Freud (Id., ibid., p. 173), “qualquer... parte do corpo pode
ser provida da excitabilidade da genitália e alçada à condição de zona erógena”. Mas,
em vez de ser derivada da “erogeneidade” da pele, a pulsão de crueldade não estaria
apenas associada a essa “erogeneidade”? E a pulsão do prazer de ver, por sua vez, no
lugar de ser derivada dos olhos, não estaria apenas associada a esse órgão sensorial?
Derivação e associação são processos diferentes e parecem indicar caminhos
para pensar a relação entre as propriedades erógenas do corpo e as suas repercussões
psíquicas. No que diz respeito à pulsão de crueldade e ao par escopofilia-exibicionismo,
Freud nos oferece preciosas indicações – destacando o papel da alteridade na vida
sexual infantil:

Contudo, devemos admitir que também a vida sexual infantil, apesar da dominação
preponderante das zonas erógenas, exibe componentes que desde o inicio envolvem
outras pessoas como objetos sexuais. Dessa natureza são as pulsões do prazer de olhar e
de exibir, bem como a de crueldade, que aparecem com certa independência das zonas
erógenas e só mais tarde entram em relações estreitas com a vida genital, mas que já na
infância se fazem notar como aspirações autônomas, inicialmente separadas da atividade
sexual erógena (Id., ibid., p. 180-181).
38

A questão da origem da pulsão parcial em determinada zona erógena acaba


resultando numa solução teórica extremamente difícil, cujos limites o próprio Freud
apontava em sua obra de 1905: “com independência ainda maior das outras atividades
sexuais vinculadas às zonas erógenas desenvolve-se na criança o componente de
crueldade da pulsão sexual” (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 181).
De fato, existe a excitação sexual somática, uma excitação corporal que,
indubitavelmente, parte de determinadas zonas, designadas erógenas por Freud. O
problema maior consiste em restringir a origem dos impulsos sexuais da vida psíquica
no espectro de excitações da vida sexual somática. Por mais que a excitação somática
seja transposta em excitação psíquica, a ideia de um funcionamento psíquico derivado
única e exclusivamente através de zonas erógenas é extremamente complicada. Toda a
repercussão psíquica da sexualidade – as fantasias, o mundo representativo – teria a sua
origem em um processo excitatório no corpo somático? As excitações de origem
orgânica seriam a única e exclusiva fonte da pulsão sexual?
Para trabalharmos esta questão, vamos explorar as noções de apoio e de
autoerotismo – imprescindíveis para a compreensão da origem da pulsão sexual na vida
psíquica.

I. 9 – Apoio e autoerotismo
Na teoria do desenvolvimento psicossexual, o primeiro objeto erótico de uma
criança é o seio da mãe que a alimenta. A criança, em um primeiro momento, ao sugar o
seio da mãe, obtém prazer ao ser satisfeita em sua necessidade de nutrição. “A atividade
sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só
depois torna-se independente delas” (Id., ibid., p. 171). Através desse processo de apoio
em uma função vital, os lábios transformam-se em uma zona erógena, origem da pulsão
parcial.
Esta pulsão, por sua vez, separa-se de seu objeto de apoio, torna-se autônoma e
passa a funcionar de maneira autoerótica. “A necessidade de repetir a satisfação sexual
dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento” (loc. cit.). Assim, a pulsão
parcial, precursora da pulsão sexual, emerge das “necessidades”, em um momento
mítico da história do sujeito, estruturando o funcionamento fantasístico (BIRMAN,
1984).
39

Fica apontado, portanto, que o autoerotismo não é o estado originário da pulsão


sexual, mas sim um estado secundário ao momento de apoio. Para Laplanche
(1993/1997, op. cit., p. 45), “o apoio comporta dois tempos: um funcionamento
conjunto, e depois um momento de tomada de distância ou de recuo”. O autoerotismo
seria justamente esse momento de tomada de distância ou de recuo em relação à
autoconservação – tempo de um “devir”, e não tempo originário.
Em relação ao autoerotismo, Freud escreve: “como o traço mais destacado dessa
prática sexual, salientemos que a pulsão não está dirigida para outra pessoa; satisfaz-se
no próprio corpo, é autoerótica” (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 170). O autoerotismo é
definido, então, como uma modalidade de satisfação sexual sem objeto externo. O
modelo dos lábios que beijam a si mesmos é bastante ilustrativo – uma busca totalmente
desvinculada da satisfação de uma necessidade e totalmente desvinculada de um objeto
externo.
Segundo essa perspectiva, a sexualidade infantil, quando autoerótica, não
conheceria objeto sexual. Laplanche questiona essa posição: a sexualidade autoerótica
seria sem objeto real, mas com um objeto fantasístico, ou seria ela absolutamente sem
objeto? “Para Freud, autoerotismo quer dizer ‘absolutamente sem objeto’, seja ele
exterior ao corpo próprio ou fantasiado: sem objeto exterior, mesmo que fosse um
objeto ‘exterior’ na fantasia” – explica (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 38).
Nos “Três ensaios”, Freud escreve o seguinte: “na época em que a mais primitiva
satisfação sexual estava ainda vinculada à nutrição, a pulsão sexual tinha um objeto fora
do corpo próprio, no seio materno. Só mais tarde vem a perdê-lo” (FREUD, 1905/1969,
op. cit., p. 210). Se o autoerotismo corresponde justamente a esse segundo momento – o
da perda do objeto externo –, poderíamos realmente pensá-lo sem levar em conta os
efeitos – isto é, as marcas ou os traços mnêmicos – derivados desse contato com o
objeto? Por qual motivo essas primeiras experiências não teriam efeito no espaço
interno, constituindo um objeto interno – isto é, um objeto na fantasia?
Freud denominou organizações pré-genitais as fases da vida sexual anteriores ao
primado das zonas genitais. Na primeira dessas fases, a organização oral ou canibalesca,
“a atividade sexual ainda não se separou da nutrição, nem tampouco se diferenciaram
correntes opostas em seu interior”, “o objeto de uma atividade é também o da outra, e o
alvo sexual consiste na incorporação do objeto” (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 187).
40

Assim, o alvo sexual nessa primeira fase, a incorporação do objeto, serve como modelo
para aquilo que posteriormente desempenhará um papel psíquico fundamental, a
identificação.
“Como resíduo dessa hipotética fase de organização (...) podemos ver o chuchar,
no qual a atividade, desligada da atividade de alimentação, renunciou ao objeto alheio
em troca de um objeto situado no próprio corpo” (loc. cit.). Mas o alvo sexual, antes
descrito como a incorporação do objeto, após essa primeira fase, passa a ser uma mera
descarga da tensão sexual no próprio corpo?
Vejamos como Laplanche tenta elucidar essa questão:

(...) para Freud, o próprio da sexualidade, o autoerotismo, não comporta fantasia, de


modo que não poderia haver relação de simbolização entre um objeto e outro; ele tem
um simples objeto de substituição, tomado no corpo próprio. O polegar da “sugação”
substitui o alimento, mas de modo puramente mecânico, e não significante
(LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 44).

Com a seguinte indicação freudiana, podemos esclarecer um pouco mais essa


questão: “está claro... que o ato da criança que chucha é determinado pela busca de um
prazer já vivenciado e agora relembrado. No caso mais simples, portanto, a satisfação é
encontrada mediante a sucção rítmica de alguma parte da pele ou da mucosa” (FREUD,
1905/1969, op. cit., p. 187). Então, na primeira situação descrita por Freud, a criança
busca um prazer já vivenciado – prazer que é rememorado através da atividade
autoerótica. Essa “busca de um prazer já vivenciado” exige que levemos em conta os
elementos psíquicos – isto é, o registro dos traços mnêmicos – dessa busca.

I. 10 – O alvo sexual no autoerotismo


O alvo sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satisfação
mediante a estimulação apropriada da zona erógena que de algum
modo foi escolhida. Essa satisfação deve ter sido vivenciada antes
para que reste daí uma necessidade de repeti-la (FREUD, 1905/1969,
op. cit., p. 173).

Segundo Laplanche (1993/1997, op. cit.), a ideia de estreita dependência do alvo


em relação a uma zona erógena, apesar de ser válida para algumas pulsões parciais, não
deveria ser tomada como modelo único para essas pulsões. Dizer que o alvo da pulsão
está sob o domínio de sua fonte resulta num grande empobrecimento do alvo na teoria:
“essa pobre zona erógena, sejam os lábios, o ânus ou o pênis, não tem outro alvo senão
41

a detumescência ou alguma coisa do gênero” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 36-


37). Essa posição nos remete para a problemática da pulsão de crueldade e do par
escopofilia e exibicionismo, exemplos de pulsões parciais nos quais o próprio Freud
reconheceu as limitações dessa fórmula geral (o alvo sexual encontra-se sob o domínio
de uma zona erógena).
O autoerotismo seria indissociável da fantasia e por esse motivo não poderia ser
reduzido a uma simples descarga da excitação em determinada parte do corpo. O alvo,
dentro desse contexto,

não é mais a descarga local do prazer de órgão, é uma metaforização e um fantasiar do


alvo alimentar. Se o alvo alimentar é a ingestão do alimento, o alvo sexual se torna a
incorporação que é um derivado do precedente, desta vez segundo a linha da similitude,
ou da metáfora (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 46).

Primeiramente Freud postula uma conjugação entre autoconservação e


sexualidade. A noção de apoio responde a um problema de origem – a origem da
sexualidade infantil. A força sexual seria derivada de uma função vital, dissociando-se
da mesma. A autoconservação, sendo anterior à sexualidade, promoveria uma abertura
perceptiva e motora do organismo infantil para o seu meio. Esta abertura seria
fundamental no que se refere ao advento do domínio da pulsão sexual na criança
(SCARFONE, 2005).
Com a noção de autoerotismo – a força sexual dissociando-se de uma função
vital –, Freud aponta para uma emergência, “que é uma defasagem [tempo de recuo],
uma espécie de metabolização ou de simbolização, segundo os caminhos de toda
associação (...) os caminhos da contiguidade e da semelhança” (LAPLANCHE, 1993/
1997, op. cit., p. 45). Laplanche relaciona o momento do autoerotismo com os termos
metabolização e simbolização. Quando Freud afirma que, no primeiro momento da
sexualidade (quando esta ainda está vinculada à nutrição), o alvo sexual é a
incorporação (processo precursor de importantíssimo mecanismo psíquico, a
identificação), podemos observar que a interpretação de Laplanche não está distante da
afirmação freudiana.
O problema reside na ênfase dada por Freud na questão do “prazer de órgão” –
prazer próprio do autoerotismo – logo após o momento de conjugação entre sexualidade
e autoconservação. Este “prazer de órgão”, essa descarga da tensão em determinada
parte do corpo, dificilmente estaria dissociada dos traços mnêmicos da primeira
42

experiência com o objeto – a de sucção do leite no seio materno, por exemplo. Por mais
que, no autoerotismo, o objeto externo esteja “perdido”, os efeitos desse encontro com o
objeto no espaço intrapsíquico devem ser levados em conta numa análise mais
aprofundada da questão.

I. 11 – O desenvolvimento da sexualidade
Para Freud (1905/1969, op. cit., p. 172), através do chuchar, exemplo de uma
primeira experiência autoerótica, observa-se as três características principais da
sexualidade infantil: “esta nasce apoiando-se numa das funções somáticas vitais, ainda
não conhece nenhum objeto sexual, sendo autoerótica, e seu alvo sexual acha-se sob o
domínio de uma zona erógena”.
Como foi visto anteriormente, a organização pré-genital oral corresponde à
primeira fase da vida sexual infantil. A segunda fase é denominada organização sádico-
anal, na qual “a divisão em opostos que perpassa a vida sexual já se constituiu, mas eles
ainda não podem ser chamados de masculino e feminino, e sim ativo e passivo” (Id.,
ibid., p. 187). Essas duas organizações, oral e anal só foram adicionadas na terceira
edição dos “Três ensaios”, em 1915. Uma terceira organização pré-genital, a fálica,
aparece apenas na sexta edição, de 1925.
Através da organização pré-genital anal, Freud apresentou um esquema mais
sofisticado da sexualidade infantil. A pulsão de domínio é designada como a pulsão
parcial responsável pelo polo ativo dessa organização.

A atividade é produzida pela pulsão de dominação através da musculatura do corpo, e


como órgão do alvo sexual passivo o que se faz valer é, antes de mais nada, a mucosa
erógena do intestino; mas há para essas duas aspirações opostas objetos que não
coincidem (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 187).

Com essa segunda fase, Freud mostra também que o autoerotismo não abarca a
totalidade da sexualidade infantil. “Nessa fase (...) já é possível demonstrar a polaridade
sexual e o objeto alheio, faltando ainda a organização e a subordinação à função
reprodutora” (loc. cit.). Então, esses dois fatores, a polaridade sexual e o objeto fora do
próprio corpo, já estão atuando nesse momento. A polaridade sexual se refere a um
modo de relação de objeto no qual o sujeito pode assumir psiquicamente uma posição
ativa ou passiva. Esse modo pode atrair boa parcela da atividade sexual, conservando-se
43

por toda a vida e até mesmo predominando sobre outros modos de relação. A
ambivalência afetiva e o sadismo são exemplos de manifestações psíquicas relacionadas
à fase anal.
A terceira organização pré-genital, denominada fálica, “exibe objeto sexual e
certo grau de convergência das aspirações sexuais para esse objeto” (FREUD,
1905/1969, op. cit., p. 188). Trata-se do período correspondente aos complexos de
Édipo e de castração, momento no qual a relação libidinal da criança com os pais atinge
o seu ápice e o seu declínio, e suas consequências para a vida psíquica têm importância
ímpar. Nessa terceira fase, a contribuição das zonas genitais para a atividade sexual já é
bastante intensa; entretanto, essa fase não se confunde com a organização genital – que
é definitiva na maturidade. Esse fato se dá porque na fase fálica apenas a genitália
masculina assume papel preponderante no âmbito psíquico. A polaridade sexual, antes
situada entre os polos ativo e passivo, dá lugar ao par de opostos fálico e castrado.
Com a chegada da puberdade, após o período de latência, ocorrem as mudanças
que desembocam na configuração definitiva da sexualidade. Atinge-se finalmente “a
concentração das pulsões parciais e sua subordinação ao primado da genitália”, “assim,
o estabelecimento desse primado a serviço da reprodução é a última fase por que passa a
organização sexual” (Id., ibid., p. 188). As perversões seriam o resultado de inibições ou
dissociações do desenvolvimento normal da vida sexual. A hipótese principal de Freud
consiste no fato de que a pulsão sexual do adulto “nasce mediante a conjugação de
diversas moções da vida infantil numa unidade, numa aspiração com um alvo único”
(Id., ibid., p. 218).
Se, nos dois primeiros ensaios sobre a teoria sexual – “As aberrações sexuais” e
“A sexualidade infantil” –, Freud insistiu no caráter perverso, menos regulado e
unificado da sexualidade – ou seja, em tudo aquilo que distancia a pulsão do instinto –,
no terceiro ensaio – “As transformações da puberdade” –, ele volta a aproximar a ordem
pulsional da ordem instintiva. “Quanto ao terceiro capítulo (...) pode-se dizer que é uma
volta ao instinto, ou a alguma coisa semelhante: uma volta, por um lado, à genitalidade,
e por outro a um objeto sexual, ‘a pessoa do sexo oposto’ (...) logo uma volta aparente
aos trilhos do instinto” – escreve Laplanche (1993/1997, op. cit., p. 24).
Até a puberdade, a vida sexual “atuava partindo de pulsões e zonas erógenas
distintas que, independendo umas das outras, buscavam certo tipo de prazer como alvo
44

sexual” (FREUD, 1905/1969, op. cit., p. 196). Assim, a essência do conceito de pulsão
não residiria apenas nas inúmeras possibilidades de satisfação através de diferentes
zonas erógenas, mas também nas inúmeras repercussões psíquicas derivadas (ou
associadas) desse amplo espectro de possibilidades.
A ordem psíquica, tendo a força pulsional como motor para o seu
funcionamento, seria um território aberto, enquanto a pulsão, por sua vez, seria uma
espécie de instinto perdido, sem pré-determinações e objetos fixos para alcançar a
satisfação. Essa ausência de fixidez de objetos, essa indeterminação em seus destinos,
permitiu ao fundador da psicanálise recorrer aos distúrbios no campo da libido para
explicar os estados patológicos do psiquismo.
A energia da pulsão sexual não apenas forneceria a força que sustenta os
sintomas neuróticos, mas seria a única fonte energética constante da neurose e a mais
importante de todas. Os sintomas são descritos como a atividade sexual dos doentes.
“(...) Tais sintomas são um substituto – uma transcrição, por assim dizer – de uma série
de processos, desejos e aspirações investidas de afeto, aos quais, mediante um processo
psíquico universal (o recalcamento), nega-se a descarga” (FREUD, 1905/1969, op. cit.,
p. 155).
A sexualidade perversa polimorfa, essencialmente infantil, está na base desses
sintomas. Essa é a grande diferença dos “Três ensaios” para os escritos freudianos da
década de 1890. A sexualidade perversa, constitutiva do psiquismo humano, se
desenvolve através de diferentes etapas, até chegar a uma configuração definitiva na
puberdade. São os percalços nesse caminho da pulsão sexual que estão implicados na
formação dos sintomas psiconeuróticos. Com a conceituação da pulsão em seus “Três
ensaios”, Freud inaugurou um dos eixos fundamentais de seu pensamento e de sua nova
visão sobre a sexualidade humana: a teoria das pulsões.
Capítulo II

As dimensões da pulsão sexual na teoria das pulsões:


disruptiva, organizadora e protetora

Na teoria freudiana, a pulsão sexual sempre esteve relacionada, de modo geral, à


constituição do aparelho psíquico. Essa dimensão constitutiva da sexualidade permitiu
ao fundador da psicanálise explorar, através dos distúrbios no campo da libido, os
diferentes estados patológicos do psiquismo. Por meio do conceito fundamental de
pulsão, Freud aprofundou a sua investigação sobre esses estados. “No decorrer de sua
obra, uma certeza inabalável sustenta seu procedimento: a sexualidade. Mas com a
mesma segurança, considera também que um fator antissexual funda o caráter conflitivo
do aparelho psíquico” (GREEN, 1988, p. 81). A busca por esse fator está na base da
teoria das pulsões.
Qual seria a pulsão não sexual que se contraporia às pulsões da sexualidade?
Essa questão norteou Freud em momentos teóricos cruciais: na primeira teoria das
pulsões – na qual ele estabeleceu a oposição entre pulsão sexual e pulsão do ego; na
introdução do conceito de narcisismo – na qual reconheceu o caráter sexual das pulsões
do ego, promovendo uma crise no primeiro dualismo pulsional; na segunda teoria das
pulsões, na qual a pulsão sexual foi contraposta à pulsão de morte. No presente capítulo,
pretendemos reconstruir esses momentos teóricos fundamentais, com o objetivo de
aprofundar a nossa investigação sobre o papel da sexualidade na vida psíquica.

II. 1 – A primeira teoria das pulsões


Como disse o poeta, todos os instintos orgânicos que atuam em
nossa mente podem ser classificados como “fome” ou “amor”
(FREUD, 1910a/1969, p. 224).

Na década de 1890, em sua descrição do conflito psíquico, Freud postulou a


oposição entre o ego – uma instância defensiva, recalcante – e a sexualidade. Entretanto,
para o ego não era atribuído um suporte pulsional específico (LAPLANCHE &
PONTALIS, 1982, op. cit.). Em relação à sexualidade, esse suporte já aparecia através
46

dos termos “soma de excitação” ou carga de afeto. As excitações psíquicas,


provenientes da vida sexual, ao se espalharem pelos traços mnêmicos das
representações, seriam responsáveis em grande parte pela dinâmica da vida psíquica –
constituindo a força móvel do mundo representativo.
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1969, op. cit.),
a oposição estabelecida entre ego e sexualidade adquire nova dimensão, pela
contraposição das funções vitais às pulsões sexuais. A noção de apoio ilustra bem essa
contraposição. A pulsão sexual derivar-se-ia da satisfação de uma função vital – a
alimentação, por exemplo – e desvincular-se-ia da mesma, tornando-se uma pulsão
independente e autoerótica.
Apesar de o lugar do ego no conflito psíquico ter sido frequentemente enfatizado
nos textos freudianos anteriores a 1910, sua relação com essas funções vitais não era
indicada. Em “A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” (Id.,
1910a), Freud formulou pela primeira vez o conceito de uma pulsão não sexual, que se
contraporia às pulsões da sexualidade. Em seus comentários de editor da Standard
Edition, Strachey diz que pela primeira vez Freud empregou o termo pulsão do ego,
identificando-o com as pulsões de autoconservação, atribuindo-lhe papel fundamental
no acionamento do recalque (Id., ibid., p. 219).
A conceituação da pulsão do ego reflete, então, um duplo aspecto: de um lado, o
ego confrontado pela sexualidade no conflito psíquico e, de outro, as funções vitais
diferenciadas da pulsão sexual nos “Três ensaios”.
Na primeira teoria das pulsões os termos pulsão de autoconservação e pulsão do
ego são equivalentes. Entretanto, são caracterizados com maior precisão quando
referidos a suas respectivas dimensões – pulsão do ego, quando participante do conflito
psíquico com a sexualidade, e pulsão de autoconservação, quando referente ao conjunto
das funções vitais do organismo (a alimentação, por exemplo). O conflito entre pulsão
sexual – que visa à obtenção da satisfação sexual –, e pulsão do ego – que visa à
autopreservação do indivíduo –, está fundamentada numa oposição entre duas forças
distintas que atuam na base do funcionamento psíquico. A energia da pulsão sexual, a
libido, estaria contraposta à energia-interesse da pulsão do ego.
É importante notar que, nessa primeira teoria, Freud consolida a posição na qual
os efeitos da sexualidade, em determinadas circunstâncias, seriam extremamente
47

perturbadores na esfera do ego. A pulsão sexual, em sua busca por satisfação, é


apontada como o fator que desestabiliza e agride os propósitos egoicos. “O ‘ego’ sente-
se ameaçado pelas exigências dos instintos sexuais e os desvia através de repressões;
estas, no entanto, nem sempre produzem o resultado esperado, mas levam à formação de
substitutos perigosos para o reprimido” (FREUD, 1910a/1969, op. cit., p. 225). O
recalque é concebido como a defesa contra essa ameaça de desestabilização psíquica.
O conflito entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação indica que a ação da
pulsão sexual, longe de ser adaptativa, em determinadas circunstâncias causaria
justamente o contrário da adaptação: subverteria o corpo somático e comprometeria o
seu funcionamento. No texto de 1910, Freud oferece, através da escopofilia, um
exemplo bastante elucidativo dessa ação disruptiva da pulsão sexual:

Suponhamos que o instinto sexual componente do olhar – o prazer sexual em olhar –


atraiu sobre si a ação defensiva dos instintos do ego, em consequência de suas
exigências excessivas, de maneira que as ideias através das quais seus desejos se
expressam sucumbam à repressão e sejam impedidas de se tornarem conscientes; nesse
caso, haverá uma perturbação geral da relação do olho e do ato de ver com o ego e a
consciência (Id., ibid., p. 225-26).

Assim, um órgão – no caso, o olho – seria o campo de ação de duas pulsões


distintas. Caso o papel erógeno do órgão em questão sofresse excessivo aumento, este
não ocorreria sem o aumento da excitabilidade e da inervação desse órgão – que se
manifestariam através de uma perturbação de suas funções a serviço do ego (Id., ibid.).
Ou seja, em determinada parte do corpo, a pulsão sexual se sobreporia excessivamente à
pulsão do ego, usurpando as possibilidades de atuação da última. “(...) Se o olhar (...)
pode se libidinizar até não ver mais nada na cegueira histérica, é porque é vítima de uma
excessiva erotização” (GREEN, 1988, op. cit., p. 35).
Contudo, para André Green (Ibid.), o conflito entre pulsão sexual e pulsão do
ego no texto de 1910 não apontaria para uma distância entre os campos da sexualidade e
do ego, mas para extrema proximidade entre ambos. Esse conflito “longe de designar
um fator não libidinal no Eu, no exercício de suas funções somáticas, testemunha, pelo
contrário, uma usurpação, uma invasão da libido do Eu” (Id., ibid., p. 37). Os ataques
histéricos revelariam semelhante invasão na esfera motora – através do mecanismo da
conversão –, assim como a onipotência do pensamento na neurose obsessiva mostraria a
“sexualização” do pensamento.
48

A construção da teoria das pulsões foi caracterizada por Freud (1930/1969) como
um processo tortuoso. Se a primeira teoria pulsional opôs a pulsão sexual à pulsão do
ego, essa oposição não vigorou absoluta, pois a noção de narcisismo veio redirecionar o
rumo do pensamento freudiano.

II. 2 – A “virada” do Narcisismo


A diferenciação da libido em uma própria ao Eu e outra aderida
aos objetos é uma ampliação necessária do pressuposto anterior, que
distinguiu as pulsões sexuais das pulsões do Eu (FREUD, 1914b/
2004, p. 100).

Green (1988, op. cit.) assinala que as duas fontes dos conceitos psicanalíticos
são, de um lado, a experiência clínica e, de outro, o horizonte epistemológico. Os
obstáculos enfrentados em sua prática clínica, assim como as críticas feitas pelos seus
opositores, levaram Freud a conceituar o narcisismo.
Na década de 1910, o reconhecimento do valor clínico e epistemológico da
psicanálise em diversos países, especialmente europeus, já era consideravelmente maior
que na década anterior. A extensão do movimento psicanalítico promoveu novas
teorizações e propostas clínicas por parte de outros médicos – que, em diferentes graus,
problematizaram, enriqueceram ou refutaram os pressupostos freudianos. Carl Jung,
cujo interesse estava voltado especialmente para as patologias psicóticas, questionou a
aplicabilidade da teoria da sexualidade para esse campo em particular.
Em seus comentários de editor da Standard Edition, Strachey diz que dentro
desse contexto, um dos motivos mais fortes que levaram Freud a escrever “Introdução
ao Narcisismo” (FREUD, 1914c/1969, p. 78) foi demonstrar, através do conceito de
narcisismo, uma alternativa à “libido” não sexual de Jung e ao “protesto masculino” de
Alfred Adler. Contudo, a noção de narcisismo esteve presente na teoria freudiana antes
mesmo de ser “introduzida” no ensaio de 1914.
O termo narcisismo – utilizado no panorama científico da época para designar
uma perversão na qual o sujeito tomava o próprio corpo como objeto sexual – apareceu
nos escritos de Freud pela primeira vez numa nota de rodapé da segunda edição dos
“Três ensaios”, em 1910. No texto “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua
infância” (FREUD, 1910b/1969), o termo narcisismo foi evocado para designar a
49

escolha de objeto própria da homossexualidade. “O menino reprime seu amor pela mãe;
coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a
que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor (...) encontra seus objetos de
amor segundo o modelo do narcisismo” (Id., ibid., p. 106).
No caso Schreber (1911), Freud aprofunda consideravelmente a sua investigação
sobre o narcisismo, situando-o como uma fase intermediária da vida sexual entre o
autoerotismo e o amor objetal. A etapa do narcisismo é concebida como uma “reunião”
das pulsões sexuais.

(...) Chega uma ocasião, no desenvolvimento do indivíduo, em que ele reúne seus
instintos sexuais (que até aqui estavam empenhados em atividades autoeróticas), a fim
de conseguir um objeto amoroso; e começa a tomar a si próprio, seu próprio corpo,
como objeto amoroso, sendo apenas subsequentemente que passa daí para a escolha de
alguma outra pessoa que não ele mesmo, como objeto (FREUD, 1911a/1969, op. cit., p.
68).

Em determinadas circunstâncias, a libido teria propensão a retornar e se


acumular nas etapas iniciais da vida sexual – tratar-se-ia de uma “fixação”. A fixação na
etapa narcísica seria o mecanismo-chave no desencadeamento de alguns quadros
psicóticos. “As pessoas que não se libertaram completamente do estádio do narcisismo
(...) têm nesse ponto uma fixação que pode operar como disposição para sua
enfermidade posterior” (Id., ibid., p. 70). Com o aprofundamento da noção de
narcisismo, a extensão da teoria da sexualidade para as psicoses estava, de fato,
consumada.
Na paranoia, por exemplo, a libido desvinculada do objeto, vincular-se-ia ao ego,
tornando-se responsável pelo “engrandecimento” deste. “Faz-se assim um retorno ao
estádio do narcisismo (que reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido),
no qual o único objeto sexual de uma pessoa é seu próprio ego” (Id., ibid., p. 79). A
regressão da libido poderia se dar até a fase mais arcaica da vida sexual, não se
restringindo à etapa narcísica.
Na demência precoce, por exemplo, “a regressão estende-se não simplesmente ao
narcisismo (manifestando-se sob a forma de megalomania), mas a um completo
abandono do amor objetal e um retorno ao autoerotismo infantil” (Id., ibid., p. 84). Fica
clara aqui a distinção entre autoerotismo e narcisismo. O autoerotismo seria anterior à
“reunião” das pulsões sexuais, constituindo a etapa de completa dispersão pulsional – da
sexualidade fragmentada e desintegrada.
50

Em “Introdução ao narcisismo” (1914), Freud ratifica as posições tomadas em


1911: o narcisismo não estaria restrito ao campo das perversões, mas constituiria uma
fase essencial na estruturação da vida sexual e do psiquismo. Ele chega à concepção de
que “originalmente o Eu é investido de libido e de que uma parte dessa libido é depois
repassada aos objetos; contudo, essencialmente, a libido permanece retida no Eu”
(FREUD, 1914b/2004, p. 99). Essa é a grande diferença do texto introdutório de 1914
para o caso Schreber de 1911: o narcisismo aparece aqui não apenas como fase
intermediária entre o autoerotismo e o amor objetal, mas como “estase” da libido na
esfera egoica – ponto de concentração da libido que nenhum investimento de objeto
permite ultrapassar completamente. Trata-se de uma definição estrutural, que reconhece
um investimento libidinal permanente no ego (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982, op.
cit., p. 287-288).
A introdução do narcisismo remanejou o foco da teoria para a oposição entre
libido do ego e libido dos objetos – dois caminhos tomados pela pulsão sexual. Essa
oposição lançou luz sobre diversos impasses enfrentados pela clínica psicanalítica e
ofuscou a primeira teoria das pulsões – a oposição entre pulsão do ego e pulsão sexual.
A sexualidade, ao invadir o território do ego, lançou um ponto de interrogação sobre a
teoria das pulsões. Como continuar concebendo o ego como instância dessexualizada?

Com o narcisismo, Freud pensava ter encontrado a causa da inacessibilidade de certos


pacientes à psicanálise. Tendo a libido se desviado dos objetos e tendo refluído para o
Eu, isto impedia qualquer transferência, em todos os sentidos do termo e, portanto, toda
elaboração da psicossexualidade que havia encontrado refúgio num santuário inviolável
(GREEN, 1988, op. cit., p. 10).

Nas neuroses, haveria o represamento da libido objetal, isto é, a libido


empregada nos objetos ficaria retida na fantasia – não se concretizando em ações
específicas para obter a satisfação na realidade externa. Já em determinadas
manifestações psicóticas – como, na paranoia –, o problema estaria situado no
represamento da libido do ego – sendo o delírio de grandeza uma consequência desse
acúmulo de libido na esfera egoica. Portanto, seriam as frustrações no campo do amor,
ou seja, as impossibilidades de investimento pleno nos objetos externos – de se obter a
satisfação sexual, em seu sentido mais amplo, através do contato com os objetos na
realidade externa –, que estariam na base desses processos de adoecimento psíquico.
51

A noção de narcisismo e seus desdobramentos mostram com excelência a


problemática das relações objetais. De um lado, o investimento libidinal é
imprescindível, pois é a partir desse investimento que o ego se constitui, podendo
repassar a energia libidinal para os objetos quando bem estruturado – evitando o
acúmulo de libido em sua esfera. Por outro, os impasses no processo de constituição
egoica estancariam as possibilidades de emprego adequado da energia libidinal nos
objetos, tornando o sujeito “escravo” de um acúmulo desestruturante de libido.
Dentro dessa perspectiva, o delírio de grandeza na paranoia já expressaria uma
tentativa de cura – uma tentativa de elaborar esse excesso na esfera egoica, de enviar
novamente porções da energia libidinal aos objetos. “Talvez só depois do fracasso do
delírio de grandeza que o represamento libidinal do Eu se torne patogênico e estimule o
inicio do processo de cura, que tanto nos impressiona na forma de enfermidade”
(FREUD, 1914b/2004, op. cit., p. 106).
É interessante notar que em algum momento da vida do sujeito essa libido não
repassada para os objetos foi fundamental para a sua constituição subjetiva. “Na
verdade, o delírio de grandeza em si não é nenhuma criação nova, mas, como sabemos,
a amplificação e explicitação de um estado que já existia antes (...) pode ser concebido
como um narcisismo secundário, superposto a outro, primário” (Id., ibid., p. 98).
O narcisismo primário, então, corresponderia justamente à etapa da vida sexual
na qual houve uma primeira “reunião” das pulsões sexuais – uma convergência das
pulsões parciais para um objeto específico, o ego. Essa convergência seria análoga a
uma ação fundante do ego – que necessitaria desse investimento maciço para constituir-
se. Seriam os problemas na constituição egoica – nesse investimento imprescindível da
libido no ego –, que estariam fortemente implicados em quadros psicóticos graves.

II. 3 – A nova ação psíquica: a ação narcísica


Na primeira elaboração dos “Três ensaios”, a pulsão sexual – inicialmente
fragmentada em pulsões parciais – encontraria a sua unificação mediante o objeto, na
fase genital da organização da libido. A partir da noção de narcisismo, essa unificação
se realizaria primeiramente através da constituição do ego – investido permanentemente
como objeto de satisfação. O ego – um objeto interno – seria a instância psíquica que
organizaria a fragmentação pulsional autoerótica (BIRMAN, 1984, op. cit.).
52

Essa unificação das pulsões parciais via narcisismo não anulou a hipótese
anterior da não subordinação das pulsões parciais ao primado da genitalidade. Essas
pulsões sucumbiriam a esse primado apenas no momento em que o indivíduo atingisse a
puberdade – período no qual se alcançaria a configuração definitiva da sexualidade.
Entretanto, assim como a concentração das pulsões parciais sobre a genitalidade, essas
pulsões não estariam reunidas em um investimento maciço no ego desde o inicio. O ego
necessitaria de uma ação fundante, de um tempo de constituição.
“É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja
presente no indivíduo desde o inicio; o Eu precisa antes ser desenvolvido” (FREUD,
1914b/2004, op. cit., p. 99). Anteriormente à constituição do ego, as pulsões
autoeróticas, espalhadas pelo corpo, alcançariam a satisfação independentes umas das
outras – não convergindo para um alvo sexual em comum.
O autoerotismo, apesar de não apresentar objeto externo – como indica o prefixo
auto –, dificilmente pode ser pensado sem objeto interno – isto é, sem objeto
“fantasístico”. “Como prova disto, temos o fato de que diante de todo comportamento
dito autoerótico de um analisado o psicanalista não deixa de procurar e encontrar a
fantasia subjacente” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 74).
No protótipo oral do autoerotismo, a sucção é determinada pela busca de um
prazer já vivido – a ser rememorado. Então, os traços de memória estariam
definitivamente em jogo na atividade autoerótica, mesmo nas mais primitivas. Esses
traços, contudo, apesar de subjacentes às excitações de diferentes partes do corpo, não
estariam coordenados, mas dispersos no espaço intrapsíquico – da mesma maneira que
as excitações corporais estão dispersas nas zonas erógenas. O ego, então, seria o agente
organizador desses traços, circunscrevendo as excitações psíquicas.
“O Eu é ligante; ele liga, ele é por definição total; para ele, trata-se de manter
juntas, de reunir todas as suas pulsões autoeróticas, e ao mesmo tempo contê-las, de
conter o autoerótico; conter o erótico, eventualmente englobando-o, totalizando-o”
(LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 76). Essa tarefa de circunscrever a excitação só
seria possível através do narcisismo primário – que, em 1914, coincide com os
momentos formadores do ego.
53

“(...) É necessário supor que algo tem que ser acrescentado ao autoerotismo, uma
nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo” (FREUD, 1914b/2004, op. cit.,
p. 99). Como entender essa ação constitutiva?
Essa questão é fundamental, pois a resposta nos remete à importância do objeto
externo na gênese do narcisismo. O narcisismo primário não estaria presente desde o
inicio, mas seria um dos efeitos decorrentes da relação da criança com o adulto – como
Freud indica com a expressão “His majesty, the baby” no texto de 1914. “Ao
repararmos na atitude de pais afetuosos para com seus filhos, seremos forçados a
reconhecer que se trata de uma revivescência e de uma reprodução de seu próprio
narcisismo, há muito abandonado” (Id., ibid., p. 110).
O investimento libidinal dos pais sobre a criança estaria na base do narcisismo
primário – que não surgiria automaticamente. A criança apenas reproduziria
internamente esse modo de relação, esse investimento intenso e imprescindível dos pais
sobre ela – investimento que, por sua vez, refletiria o inconsciente parental. O ego,
então, seria desenvolvido a partir desse investimento – a princípio externo, e depois
reflexo. Essa nova ação psíquica, então, corresponderia à “unificação do autoerotismo
(...) sobre um objeto único: mas sobre um objeto que é ele mesmo “auto”, um objeto
que é sempre interno, “reflexo”, e é justamente por isso que foi batizado com o nome
desse herói do espelho, Narciso” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 76).
O ego – objeto refletido – compreenderia a convergência das pulsões parciais
para a representação de uma imagem unificada do corpo. O narcisismo seria “uma
colocação em forma do autoerotismo, acarretando uma profunda mutação da
sexualidade, pelo fato de que a ação narcísica, a precipitação ou coagulação narcísica,
liga essa sexualidade” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 80). Em quadros
psicóticos severos – como a esquizofrenia ou demência precoce – a regressão ao
autoerotismo denunciaria justamente a ausência dessa ligação “narcísica” da
sexualidade.
O autoerotismo, então, seria a expressão da sexualidade não ligada pelo ego
“sintetizante” e “totalizador”, e por esse motivo promoveria efeitos perturbadores no
psiquismo. As excitações psíquicas – os traços de memória subjacentes às diferentes
zonas erógenas –, quando não circunscritas, não teriam como ingressar plenamente no
circuito representativo. A elaboração da força sexual estaria assim fortemente
54

comprometida. A ação narcísica asseveraria a elaboração dessa força, sendo, portanto, a


expressão do trabalho de ligação da sexualidade.

II. 4 – A crise da primeira teoria das pulsões


O conceito de narcisismo, ao colocar o ego como objeto de investimento
libidinal, subverteu a primeira teoria das pulsões. Até então, a pulsão sexual, ao buscar
seus objetos para atingir a satisfação, entrava em conflito com o ego – concebido como
instância dessexualizada. “Este inicialmente só (...) era conhecido como instância
recalcadora e censuradora (...), capaz de formar estruturas protetoras e produzir
formações reativas” (FREUD, 1920/2006, p. 172).
Ao considerar as dificuldades que a primeira teoria das pulsões acarretou em seu
percurso, Freud (1920/2006) menciona as críticas ao fato de – antes da conceituação do
narcisismo – o conceito de libido estar restringido à energia das pulsões sexuais
direcionadas ao objeto. A sua investigação constatou que frequentemente a libido era
retirada do objeto e dirigida ao ego, através de um processo de introversão. “Assim, o
Eu passou a fazer parte do nosso rol de objetos sexuais” (FREUD, 1920/2006, op. cit.,
p. 172-173).
Ao enfatizar a “sexualização” do ego – em contraposição à “sexualização” do
vínculo com o objeto externo –, Freud adiciona nova dimensão à sexualidade. A
estruturação do ego ocorreria à medida que este fosse investido libidinalmente. Se antes
a sexualidade – por conta da impetuosidade de suas exigências de satisfação – era
concebida como ameaçadora para o ego, com a noção de narcisismo a sexualidade é a
condição de possibilidade para a estruturação desse ego.
O narcisismo, apesar de ter sido “introduzido” oficialmente apenas em 1914, já
constituía noção importante nos escritos de Freud desde 1910 – mesmo ano no qual ele
formulou o primeiro dualismo entre as pulsões sexuais e de autoconservação. Trata-se
de um problema extremamente significativo para a primeira teoria das pulsões. Como
Freud conseguiu manter a oposição entre pulsão do ego e pulsão sexual, mesmo depois
da descoberta do narcisismo – primeiro, como uma fase intermediária entre o
autoerotismo e o amor objetal, e depois não apenas como uma fase da vida sexual, mas
como uma estase da libido no sistema egoico, garantindo a sua estruturação?
55

A energia das pulsões sexuais – a libido –, mesmo quando investida no ego,


estaria contraposta à energia-interesse, proveniente das pulsões do ego. Haveria
diferença entre o investimento feito pelas pulsões do ego via energia-interesse e o
investimento feito pelas pulsões sexuais no ego via libido.
A “confusão” promovida pela noção de narcisismo no quadro da oposição entre
pulsão sexual e pulsão do ego fica bem exemplificada com a seguinte afirmação: “(...) O
narcisismo não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo próprio
da pulsão de autoconservação, egoísmo que, em certa medida, corretamente
pressupomos estar presente em todos os seres vivos” (FREUD, 1914b/2004, op. cit., p.
97). Em outras palavras, as pulsões do ego atrairiam para si componentes libidinais. A
distinção entre energia-interesse e libido acabou não se sustentando, e pouca atenção foi
dada a ela nos textos de Freud, assim como nos comentários de autores pós-freudianos.
Segundo Laplanche, os argumentos que sustentaram a oposição entre
autoconservação e sexualidade na teoria freudiana foram tortuosos e frágeis. “Seria a
autoconservação, isto é, a nossa conservação em vida, que é posta em perigo pelo desejo
sexual? É uma posição que às vezes Freud propôs, mas nunca conseguiu manter”
(LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 84). Para ele, essa questão, longe de ser abstrata,
é fundamental para a psicanálise:

Se o eu é o grande reservatório da libido – se todas as nossas ações passam, finalmente,


pelo nosso amor a nós mesmos – se tudo aquilo que o ser humano faz supostamente para
conservar-se em vida só ocorre pelo fato de que ele se conserva em vida por amor a (...),
por amor ao outro e por amor a si mesmo – se o ser humano só vive por amor – por que
então manter um plano da autoconservação pura, onde um sujeito, na abstração, se
manteria em vida sem ter necessidade de amor? (Id., ibid., p. 83).

Com a “invasão” da sexualidade no campo do ego e da autoconservação, a


primeira teoria das pulsões não sobreviveu ao impacto do conceito de narcisismo. Ao
recapitular esse impacto, Green ressalta que o narcisismo, apesar de ter sido um
conceito bem recebido pelos analistas da época, “fazia a própria teoria sofrer a sedução
da qual ele mesmo era a expressão: a ilusão unitária, recaindo desta vez sobre a libido”
(GREEN, 1988, op. cit., p. 10). O ego e a autoconservação não constituiriam o fator
antissexual tão almejado por Freud em sua teoria dualista.
Laplanche (1993/1997, op. cit.) aponta para o fato de o narcisismo – e a
subsequente oposição entre libido do ego e libido dos objetos –, ao enfatizar a dimensão
“ligada” da sexualidade, acabou por promover um desequilíbrio no conjunto da teoria
56

freudiana. Os aspectos disruptivos da sexualidade perderam o seu lugar, precisando ser


resgatados – o que, de fato, aconteceu. Esses aspectos, resgatados posteriormente
através do inovador conceito de pulsão de morte, curiosamente, perderam a sua
dimensão sexual.

II. 5 – A segunda teoria das pulsões


(...) Se as pulsões de autoconservação também são de natureza
libidinal, talvez não exista nenhuma outra pulsão que não seja
libidinal. Ou ao menos não conseguimos imaginar nenhuma outra (...)
Ou não é este o caso? (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 173).

Em 1920, com a publicação de “Além do princípio de prazer”, Freud postula um


novo dualismo pulsional, que é definitivo em sua teoria. A oposição não está mais
centrada entre as pulsões sexuais e as de autoconservação, mas sim entre as pulsões de
vida e as de morte. Eros, conjunto das pulsões de vida, reúne as pulsões sexuais e as de
autoconservação – as duas pulsões tematizadas anteriormente. Através de Eros, “todos
os elementos constitutivos das teorias anteriores (...) nada mais são do que subconjuntos
reunidos por uma função idêntica: a defesa e a realização da vida (...) contra os efeitos
devastadores das pulsões de morte” (GREEN, 1988, op. cit., p. 11).
A dimensão sexual da autoconservação na teoria freudiana é consolidada a partir
desse reagrupamento. “(...) Mais do que nunca se torna necessário acentuar o caráter
libidinal das pulsões de autoconservação” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 173).
Entretanto, Green ressalta que, apesar de reunir as pulsões sexuais e de
autoconservação, Eros não faz frente apenas ao seu “temível adversário” – a pulsão de
morte – mas “sofre dissensões que dividem seu próprio campo, cada um de seus
subconjuntos estando em conflito com os outros no próprio seio das pulsões de vida”
(GREEN, 1988, op. cit., p. 11). O conflito psíquico entre o ego e a sexualidade
ameaçadora, assim como a oposição entre libido do ego e libido dos objetos, não
deixam de existir na teoria freudiana – o que não quer dizer que essa “reunião” via Eros
acomode bem todos os elementos conceituais anteriores.
No texto de 1920, ao analisar a absorção da autoconservação pela sexualidade,
Freud questiona a possibilidade de considerar todas as pulsões como sendo do campo da
libido. Assim, o termo libido poderia ser utilizado no sentido de força pulsional em
57

geral. Ele responde a essa indagação da seguinte forma: “... nossa concepção, desde o
inicio sempre foi dualista, e hoje, quando os termos opostos não são mais designados
como pulsões do Eu e pulsões sexuais, mas como pulsões de vida e pulsões de morte,
ela é ainda mais rigorosamente dualista do que antes” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p.
174). Como entender essa nova concepção dualista?
O objetivo de Eros é estabelecer unidades cada vez maiores, preservando-as –
em suma, unir, atar, ligar. Já o objetivo da pulsão de morte é desfazer conexões, destruir
coisas – levar o que é vivo a um estado inorgânico. As duas pulsões operam uma contra
a outra ou combinam-se mutuamente. “(...) O ato de comer é uma destruição do objeto
com o objetivo básico de incorporá-lo, e o ato sexual é um ato de regressão com o
intuito da mais íntima união” (FREUD, 1940 [1938]/1969, op. cit., p. 162). A ação
conjunta e mutuamente oposta das duas pulsões está base dos fenômenos da vida.
Ao lançar mão de exemplos para ilustrar a oposição entre Eros e pulsão de
morte, Freud recorre frequentemente às funções biológicas para esclarecer o seu
pensamento. Esse é um dos pontos mais marcantes da segunda teoria das pulsões: a
clareza na qual ele concebe os fenômenos psíquicos como repercussões daquilo que
ocorre no plano biológico. Todavia, vale ressaltar que esse apelo à biologia sempre foi
utilizado por ele. A sua teoria pulsional, em leitura estrita, é incompreensível sem o
recurso ao biológico. O próprio Freud reconheceu esse fato inúmeras vezes. “Tenho me
esforçado em manter afastado da psicologia tudo o que é de outra ordem (...) mas devo
admitir aqui que a suposição de uma separação entre pulsões (...) se apoia
primordialmente na biologia, embora em pequena parcela esteja também assentada
sobre bases psicológicas” (FREUD, 1914b/2004, op. cit., p. 101).
Outro ponto fundamental desse novo dualismo é a introdução do conceito de
pulsão de morte – a pulsão não sexual que estaria contraposta ao campo da sexualidade.
Como entender essa pulsão sem a dimensão sexual das outras?

II. 6 – Além do princípio de prazer


Na teoria psicanalítica, partimos do pressuposto de que os
processos psíquicos são regulados automaticamente pelo princípio de
prazer (FREUD, 1920/2006, p. 135).
58

A conceituação da pulsão de morte parte do questionamento sobre a


predominância do princípio de prazer na vida psíquica – que, em sua base, teria uma
tendência para a obtenção de prazer e evitação do desprazer. A fundamentação desse
princípio não é um dos pressupostos originais de Freud – trata-se de uma ideia derivada
das formulações de Gustav Fechner sobre o princípio de constância. Tampouco é uma
ideia que surge apenas em 1920. Desde 1895, em seu “Projeto para uma psicologia
científica”, Freud explora essa ideia de um princípio regulador na base dos processos
psíquicos.
Em A interpretação dos sonhos (1900/1969, op. cit.) e “Formulações sobre os
dois princípios do acontecer psíquico” (1911b/2004, op. cit.), ele aprofunda a sua
investigação sobre o princípio de prazer – que estaria contraposto a outro princípio, o de
realidade. Este último garantiria ao aparelho psíquico a possibilidade de adiamento da
satisfação, viabilizando a tolerância do desprazer quando necessária.
Os modos de funcionamento psíquico correspondentes a esses dois princípios
seriam o processo primário, relativo ao princípio de prazer, e o processo secundário,
relativo ao princípio de realidade. No processo primário, a energia psíquica circularia
livremente, passando de uma representação para outra, sem firmar-se em nenhuma –
através dos mecanismos de condensação e deslocamento. Os traços ligados às
experiências de satisfação, constitutivas do desejo, seriam reinvestidos plenamente
nesse modo de funcionamento, no qual a energia operaria de forma predominantemente
livre. Já no processo secundário, a energia psíquica estaria predominantemente ligada,
escoar-se-ia de forma controlada. As representações seriam investidas de uma maneira
mais estável (FREUD, 1911b/2004, op. cit.; LAPLANCHE & PONTALIS, 1982, op.
cit.). Se, em 1895, Freud postula a energia de inervação do neurônio na base desses
processos – em 1911, as excitações psíquicas já estão sendo reconhecidas como pulsões
sexuais e de autoconservação.
Os processos inconscientes seriam os mais antigos e primários, remanescentes de
uma fase na qual foram os únicos existentes (FREUD, 1911b/2004, op. cit.). O
inconsciente se refere primordialmente às manifestações da sexualidade infantil – que,
em algum ponto de seu desenvolvimento, seria impossibilitada de se manifestar
integralmente. Essa sexualidade precisaria ser contida – recalcada –, pelos seus efeitos
incompatíveis com as exigências da vida cultural e familiar da criança.
59

Tratar-se-ia de uma sexualidade que, com suas manifestações afetivas e


representativas, estaria constantemente ameaçando a estabilidade do ego – cuja função
seria a de inibir os processos inconscientes, moderando a descarga das excitações. A
sexualidade infantil, então, estaria fortemente relacionada aos processos primários e
inconscientes – que estariam totalmente subordinados ao princípio de prazer. O
desprazer, por sua vez, seria decorrente, entre outros fatores, de um acumulo excessivo
de tensão ou da perspectiva de uma consequência desagradável relacionada à obtenção
de prazer.

(...) Os fatos que nos levaram a crer na hegemonia do princípio de prazer na vida
psíquica (...) remontam à suposição de que o aparelho psíquico teria uma tendência a
manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou pelo menos
constante (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 136).

Entretanto, existiriam fenômenos psíquicos nos quais essa tendência estaria


fortemente contrariada pela atualização compulsiva de experiências desprazerosas –
experiências nas quais nenhuma obtenção de prazer poderia realmente estar em jogo.
Essas experiências não se confundiriam com os efeitos dos desejos recalcados
nem com os adiamentos e privações decorrentes do funcionamento do princípio de
realidade – no qual as exigências da realidade externa se sobreporiam ao princípio de
prazer. Esses fenômenos, situados aquém do recalcado e do princípio de realidade,
ativariam a repetição violenta de experiências penosas no plano psíquico. Ao avaliar
esses fenômenos através de diferentes caminhos – especialmente o dos sintomas da
neurose traumática –, Freud chega à noção-chave de compulsão à repetição.

II. 7 – Compulsão à repetição e princípio de prazer: proximidade e


distância
Através da repetição em determinadas brincadeiras infantis, no curso de
tratamentos psicanalíticos e nos sonhos das neuroses traumáticas, Freud (1920/2006, op.
cit.) avalia diferentes campos nos quais a repetição de experiências desprazerosas estaria
em maior ou menor proximidade com o princípio de prazer.
No primeiro campo – o da repetição em brincadeiras infantis –, as crianças
repetiriam nas brincadeiras “tudo aquilo que lhes causou forte impressão”, ab-reagindo,
dessa forma, “à intensidade da impressão que sofreram”, tornando-se, “por assim, dizer,
60

senhoras da situação” (Id., ibid., p. 143). A cada nova repetição, haveria o


aprimoramento dessa habilidade tão almejada de “domínio” da situação. Tratar-se-ia de
uma repetição que não contraria o princípio de prazer, estando bem próxima deste. “A
repetição, no sentido de reencontrar a identidade, constitui por si mesma uma fonte de
prazer” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 159).
No segundo campo – o do curso de tratamentos psicanalíticos, nos quais
experiências infantis extremamente penosas seriam presentificadas através da
transferência –, a compulsão à repetição sobrepor-se-ia ao princípio de prazer em todos
os sentidos. O paciente agiria de maneira completamente infantil, sinalizando que “os
traços recalcados das lembranças de suas primeiras experiências psíquicas” não estariam
“disponíveis em estado de enlaçamento e fixados” (loc. cit.). Esses traços, por não
estarem “capturados”, ficariam impossibilitados de operar no processo secundário – o
que acarretaria a impossibilidade de elaboração psíquica e, dessa forma, de instauração
plena do princípio de prazer.
No campo das neuroses traumáticas – manifestações nas quais o funcionamento
psíquico teria sofrido grande abalo –, os sujeitos reviveriam em seus sonhos o evento
traumático. Essa reprodução do acontecimento “terrível” jamais poderia se enquadrar no
propósito da realização de desejo – expressão do princípio de prazer – atribuído aos
sonhos até então.
Os sonhos traumáticos, estando aquém do domínio do princípio de prazer, levam
Freud à suposição de que estariam a serviço de outra tarefa, anterior a esse domínio.

De fato, acreditamos que esses sonhos buscam resgatar a capacidade do aparelho de


processar os estímulos que afluem quando do desencadeamento do medo –
processamento cuja ausência no passado foi causa da neurose traumática (Id., ibid., p.
156).

A função original do sonho, então, não seria afastar as causas que poderiam
interromper o sono, através da realização alucinatória do desejo. O sonho só assumiria
essa função posteriormente, depois que o domínio do princípio de prazer estivesse
instaurado no conjunto da vida psíquica. Haveria um “além” do princípio de prazer –
período anterior a esse propósito da realização de desejo. Com a ruptura da tendência
dominante ao prazer, os sonhos operariam a favor de uma “captura e fixação psíquica”
das impressões traumáticas, obedecendo ao processo de compulsão à repetição.
61

A compulsão à repetição, então, expressaria uma tendência “mais arcaica, mais


elementar e mais pulsional do que o princípio de prazer, o qual ela suplanta” (Id., ibid.,
p. 148). O trauma, sendo efeito do rompimento do para-excitação – espécie de camada
protetora do aparelho psíquico – criaria uma perturbação no funcionamento psíquico,
impedindo temporariamente a atuação do princípio de prazer. A compulsão à repetição,
então, expressaria uma tentativa de trabalho psíquico – de “captura” e “enlaçamento”
das impressões que não puderam ser processadas.
Se, nas neuroses traumáticas, os estímulos de origem externa estão na base da
perturbação psíquica, Freud reconhece que os estímulos de origem interna são capazes
de provocar efeito análogo. Esses estímulos seriam as pulsões, fontes internas de
excitação – representantes de forças que brotam no interior do corpo e que são
transmitidas para o psiquismo. Os impulsos provenientes das pulsões sucumbiriam, a
princípio, aos processos que operam com energia livre e móvel – os processos
primários. Esses processos exerceriam forte pressão, uma vez que a energia deslocar-se-
ia e condensar-se-ia no âmbito das representações de maneira instável, visando ao
escoamento das excitações de modo mais imediato.
O processo secundário corresponderia às modificações produzidas nessas “cargas
de investimento” quando capturadas e enlaçadas.

No caso de fracasso de enlaçamento, provocar-se-ia uma perturbação análoga à da


neurose traumática. Só depois de ter havido um enlaçamento bem sucedido é que se
poderia estabelecer o domínio irrestrito do princípio de prazer (e de sua modificação em
princípio de realidade) (FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 158).

O “processamento” das excitações seria a tarefa primordial do aparelho


psíquico, sendo anterior à instauração do princípio de prazer – que dependeria desse
“enlaçamento” das excitações psíquicas para entrar em execução e assim regular os
processos psíquicos em direção à obtenção de prazer. As manifestações da compulsão à
repetição exibem caráter “altamente pulsional”, pois sinalizam uma tentativa
imprescindível de domínio das excitações – evitando, dessa forma, uma perturbação
extrema do funcionamento psíquico, inundado por um “excesso” pulsional.
É interessante notar que, no primeiro modelo do aparelho psíquico, o processo
primário corresponde à ação das pulsões sexuais e do princípio de prazer – ao passo que
o processo secundário está referido às pulsões do ego e ao princípio de realidade. Com o
segundo modelo desse aparelho, o processo primário é análogo ao predomínio da ação
62

das pulsões de morte e o processo secundário corresponde predominantemente à ação


das pulsões sexuais. Esse fato é compreensível pelo caráter libidinal atribuído às pulsões
do ego, integradoras e preservadoras da vida, desde a formulação do conceito de
narcisismo.
Vale ressaltar que o termo “processo” nos remete para uma captura das
excitações – mesmo que instável e insuficiente, como no caso do processo primário.
Então o processo primário, já sendo de certa forma um “processamento” das excitações
psíquicas, levaria em conta a presença do trabalho de Eros – a energia não estaria
totalmente livre. “Os processos primários são os mais antigos – no início da vida
psíquica não existem outros – e podemos concluir que, se o princípio de prazer já não
estivesse atuante neles, não poderia fazer-se presente nos processos posteriores”
(FREUD, 1920/2006, op. cit., p. 181).
A sexualidade, então, estaria implicada em ambos os processos – primário e
secundário –, mesmo após a introdução da pulsão de morte. As questões que se
apresentam para a nossa pesquisa, de acordo com as informações exploradas, são as
seguintes: na teoria freudiana, a sexualidade, em termos psíquicos, estaria
“representada” primordialmente pela possibilidade de a força pulsional fixar-se e tornar-
se ligada? E, se assim for, a força pulsional não “capturada”, não ligada, não teria em si
uma dimensão sexual?
Para explorarmos essas questões, faz-se necessária uma investigação mais
aprofundada sobre a pulsão de morte – expressão do desligamento na vida psíquica e
única pulsão a que Freud não atribui caráter sexual.

II. 8 – A redução das excitações ao nível zero


Os fenômenos da compulsão à repetição levam Freud à seguinte questão: qual
seria a relação desses fenômenos com a vida pulsional?
Em 1920, a pulsão é caracterizada como “força impelente interna ao organismo
vivo que visa a restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar
devido a influência de forças perturbadoras externas” (Id., ibid., p. 160). Trata-se de
uma força historicamente adquirida, que atua sobre a matéria viva e que se distingue em
duas espécies: a pulsão de morte, que visa ao retorno a esse “estado anterior” – o estado
inorgânico – e a pulsão sexual, que está continuamente realizando a renovação da vida.
63

O caráter regressivo, compulsivo e irredutível da repetição nos fenômenos


observados por Freud corresponderia justamente à essência da pulsão. Todavia, esse
caráter regressivo seria próprio da pulsão de morte e não da sexual. “... O que ainda nos
incomoda é o fato de não podermos provar, justamente no caso da pulsão sexual, a
existência de um caráter de compulsão à repetição” (FREUD, 1920/2006, op. cit., p.
176).
Ao transpor a teoria da libido para a interação entre células, Freud oferece o
seguinte exemplo sobre a atuação da pulsão sexual: as pulsões sexuais, atuantes em cada
célula, tomariam outras células como objeto, neutralizando as tendências destrutivas
presentes nas mesmas. Essa tarefa de neutralização da morte estaria relacionada ao
princípio de prazer, cuja apreciação no texto de 1920 está submetida a uma “confusão
de propósitos”.
O princípio de prazer seria “uma tendência que está a serviço de uma função, a
de tornar o aparelho psíquico inteiramente livre da excitação, ou de manter a quantidade
de excitação constante, ou, ainda, de mantê-la tão baixa quanto possível” (Id., ibid., p.
180). Essa posição – que Freud alega ter sido crucial para a postulação da pulsão de
morte –, é uma das mais difíceis que estão contidas em “Além do princípio de prazer”
(1920), pelo fato de ele colocar em equivalência três processos diferentes – reduzir,
manter constante e suspender a carga de excitação.
Desses três processos, o único que realmente justifica a postulação da pulsão de
morte é o referente à redução total da carga de excitação. Se a tendência do princípio de
prazer corresponde à de tornar o psiquismo inteiramente livre da excitação, qual é o
sentido de evocar um “além” desse princípio? O que poderia ser mais extremo e radical
do que a redução das excitações ao nível zero?

II. 9 – Reivindicação da libido


A ambiguidade relativa à função do princípio de prazer será resolvida apenas em
“O problema econômico do masoquismo” (1924). No texto de 1924, Freud analisa com
maior profundidade a relação entre o princípio de prazer e as pulsões de vida e de morte
– relação cuja “confusão de propósitos” era evidente em “Além do princípio de prazer”
(1920). Ele atribui ao princípio de prazer uma importante função: a de resguardar não
apenas a vida psíquica, mas a vida orgânica em geral.
64

“(...) Não mais atribuiremos ao princípio do prazer apenas a função de guardião


da nossa vida psíquica, mas ousemos ampliar a sua função para guardião da vida
propriamente dita” (FREUD, 1924/2007, p. 105). A proposta freudiana de articular o
modelo do aparelho psíquico com o funcionamento biológico fica extremamente clara
com essa afirmação – a ponto de tornar-se impossível a compreensão apurada de sua
teoria sem a referência às bases biológicas de seu pensamento.
Ao atribuir ao princípio de prazer a importante função de resguardar a vida
psíquica – e, até mesmo, a vida em geral –, Freud jamais poderia fazê-lo coincidir com
o princípio de Nirvana – princípio de redução das excitações ao nível zero, proposto por
Barbara Low –, mencionado no texto de 1920 como equivalente ao princípio de prazer.
O princípio de prazer impediria justamente essa redução extrema e mortífera –
mantendo a soma de excitação em níveis constantes e satisfatórios para o
funcionamento psíquico.
Assim, Freud desfaz a equivalência absoluta entre prazer e redução de tensão,
enfatizando o fato de que o acúmulo de excitação pode ser sentido como prazeroso no
psiquismo, assim como a diminuição da tensão pode ser sentida como desprazerosa.
“(...) Muito embora prazer e desprazer estejam ligados a esse fator, não podemos mais
associá-los de modo direto ao aumento ou à diminuição dessa quantidade de
estimulação (...)” (Id., ibid., p. 106). O prazer e o desprazer dependeriam não apenas de
um fator quantitativo, mas também de um fator qualitativo – que, por sua vez, Freud
reconhece a dificuldade em delimitar.
Em relação às pulsões sexuais, Freud faz a correspondência entre estas e o
princípio de prazer – como sempre fez. O princípio de prazer visaria a uma regulação
qualitativa – e não apenas quantitativa – da carga de excitação. Todavia, o princípio de
prazer não seria primário no funcionamento psíquico, mas secundário ao princípio de
Nirvana – princípio mais elementar, associado às pulsões de morte.

(...) No curso do desenvolvimento dos seres vivos, houve uma modificação que
transformou o princípio de Nirvana, associado à pulsão de morte, no princípio de prazer
(...) A partir de agora não consideramos (...) como a mesma coisa (FREUD, 1924/2007,
p. 106).

Freud atribui à libido, energia da pulsão sexual, a força motora para a


transformação do princípio de Nirvana em princípio de prazer. E distingue claramente a
pulsão sexual da pulsão de morte através da seguinte afirmação: “(...) não é difícil
65

adivinhar de que força partiu essa modificação do princípio de Nirvana: só pode ter sido
da pulsão de vida, da libido, que impôs sua coparticipação na regulação dos processos
de vida, colocando-se lado a lado com a pulsão de morte” (FREUD, 1924/2007, op. cit.,
p. 106). Contudo, estranhamente ele não postula uma energia própria para a pulsão de
morte.
O princípio de Nirvana expressaria a tendência da pulsão de morte – a redução
quantitativa da carga de excitação. O princípio de prazer relacionar-se-ia com as
características qualitativas dessa redução, sinalizando o trabalho de Eros – que é
designado como “reivindicação da libido”, ou seja, a imposição feita pelas pulsões
sexuais no curso dos processos psíquicos e vitais. O princípio de realidade expressaria
as exigências da realidade externa, garantindo a possibilidade de adiamento da descarga
das excitações e a aceitação temporária da tensão gerada pelo desprazer. Apesar de seus
propósitos diferentes, nenhum desses três princípios destituiria o outro do poder (Id.,
ibid.).
Vale ressaltar que o princípio de prazer está relacionado com as exigências da
sexualidade desde a postulação do primeiro modelo do aparelho psíquico, na segunda
metade da década de 1890. No texto de 1924, Freud não contradiz exatamente a sua
hipótese inicial: as pulsões sexuais buscariam a descarga de forma impetuosa,
desconsiderando as exigências da realidade externa. O processo primário seria uma
modalidade de funcionamento psíquico no qual a energia circularia mais livremente, se
deslocando de uma representação para outra – ou promovendo a condensação das
representações. Tratar-se-ia de uma série de ligações “instáveis” da força pulsional, que
antecederia o processo secundário, no qual as ligações já seriam mais consistentes.
A hipótese contida em “Além do princípio de prazer” (1920) – de uma situação
psíquica na qual o trabalho de ligação da força pulsional estivesse seriamente
comprometido, a ponto de a descarga pulsional apresentar um caráter mais extremo e
radical do que aquele atribuído à busca por descarga das pulsões sexuais no processo
primário –, nos leva a seguinte questão: por que a redução total da carga de excitação –
o princípio de Nirvana do funcionamento psíquico – não teria em si uma dimensão
sexual? Por que a sexualidade estaria restringida ao trabalho de ligação – mesmo que
instável, como no caso do processo primário – da força pulsional?
66

A função atribuída à sexualidade só pode realmente ser compreendida por meio


de uma avaliação das proposições freudianas sobre a gênese da relação entre a pulsão
sexual e a pulsão de morte.

(...) Ao surgir, a libido teria encontrado a pulsão de morte – ou de destruição – já


predominando nos seres vivos (multicelulares). Essa pulsão de morte teria como meta
desfazer esses seres e conduzir cada um dos organismos elementares ao estado de
estabilidade anorgânica (FREUD, 1924/2007, op. cit., p. 109).

O surgimento da libido, então, corresponderia ao processo de promoção da vida.


A tendência originária do organismo para a morte seria subvertida pela libido – que, por
sua vez, perturbaria o curso original da vida, a tendência ao repouso absoluto. No
sentido estrito da teoria, não se trataria somente da morte psíquica, mas da morte
biológica. Esse é o motivo pelo qual Freud não articula o funcionamento do princípio de
Nirvana com os propósitos da libido.
A “biologização” da pulsão, presente desde as primeiras formulações sobre o
tema nos “Três ensaios” (1905/1969, op. cit.), atinge o seu ápice com a postulação da
pulsão de morte. Para Laplanche, não se trata nem mesmo de uma “biologização” – já
que a pulsão é uma força que atua sobre o corpo biológico –, mas de uma
“institualização”. “Sem dúvida, Freud utiliza ainda o termo Trieb para falar das pulsões
de vida (Lebenstriebe) e da pulsão de morte (Todestrieb) (...), mas na realidade tudo
mostra que existe ali uma volta ao instinto” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 91).
Essa volta está relacionada a uma concepção puramente endógena da pulsão. A
pulsão estaria presente no indivíduo “desde sempre”. As noções de apoio e autoerotismo
– tão fundamentais para a teoria da sexualidade – perderiam o sentido no quadro da
segunda teoria das pulsões. Se, nos “Três ensaios”, Freud utilizou uma série de
argumentos para derrubar a ideia de uma sexualidade pré-formada, em 1920 ele indica
que a pulsão sexual já está previamente dada.
Uma das consequências mais significativas dessa mudança foi o deslocamento
do narcisismo primário – antes, uma fase que seria posterior ao autoerotismo – para um
estado originário da vida do sujeito. Esse deslocamento é um ponto fundamental para a
ressignificação da sexualidade na teoria das pulsões.
67

II. 10 – O Eros narcísico


“É preciso identificar a pulsão sexual com Eros – que tudo preserva – e concluir
que a libido narcísica do Eu nasce dos estoques de libido utilizados pelas células
somáticas para aderirem umas às outras” – escreve Freud em 1920 (1920/2006, op. cit.,
p. 173). Essa afirmação nos permite destacar dois pontos fundamentais da “virada” de
1920: a restrição da sexualidade ao campo de Eros – princípio de ligação, que tudo
preserva –, e o deslocamento do narcisismo para um estado inicial da libido –
descaracterizando a definição inicial do narcisismo primário como uma fase
intermediária entre o autoerotismo e o amor objetal. Em “O ego e o id” (1923/2007),
Freud aprofunda essas duas questões, tornando mais claros alguns pontos de seu
pensamento.
Na segunda tópica, o aparelho psíquico está subdividido em três instâncias – id,
ego e superego, sendo o id a instância mais primordial, da qual o ego e o superego
derivar-se-iam. O id “contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento,
que está assente na constituição – acima de tudo, portanto, os instintos, que se originam
da organização somática e que aqui encontram uma primeira expressão psíquica”
(FREUD, 1940 [1938]/1969, op. cit., p. 158). Não é difícil supor que, nessa concepção,
as pulsões estão em confronto “desde sempre” – isto é, desde o primeiro momento em
que a vida orgânica se inicia.
No texto de 1923, a libido está acumulada inicialmente no id, sede das pulsões –
enquanto o ego encontra-se ainda em processo de formação. O id emitiria parte desta
libido, investindo-a nos objetos. O ego, quando mais fortalecido, tentaria se apoderar
dessa libido objetal, impondo-se como objeto de amor ao id. Freud não especifica qual
seria o motivo dessa imposição do ego ao id – imposição que é concebida por ele como
um narcisismo secundário. “O narcisismo do Eu é (...) um narcisismo secundário que foi
retirado dos objetos” (FREUD, 1923/2007, op. cit., p. 55). O narcisismo primário não
corresponderia mais a uma ação fundante do ego através do investimento libidinal, mas
a um estado inicial da libido – armazenada no id-ego indiferenciado.
Sobre a questão deste último ponto – o armazenamento da libido –, Freud variou
as suas respostas: dependendo do texto, a libido estaria inicialmente armazenada ou no
id ou no ego ou no id-ego indiferenciado. Esse problema na teoria reflete a imprecisão
da noção de narcisismo primário – haveria ou não um esboço do ego desde a origem?
68

“A interrogação... de saber se o Eu vem do Isso ou se existe um Isso e um Eu desde a


origem (questão da qual depende a localização do reservatório), Freud, na verdade, não
pôde responder” (GREEN, 1988, op. cit., p. 39).
Em “Esboço de psicanálise”, ao fazer a recapitulação definitiva dos pontos mais
importantes de sua teoria, Freud faz a seguinte afirmação: “é difícil dizer algo do
comportamento da libido no id e no superego. Tudo o que sabemos sobre ela relaciona-
se com o ego, no qual, a princípio, toda cota de libido é armazenada. Chamamos a este
estado absoluto de narcisismo primário” (FREUD, 1940 [1938]/1969, op. cit., p. 162).
Esse estado perduraria até o ego investir a sua libido nos objetos externos –
investimento que, a princípio, seria feito por intermédio da fantasia. Nesse
remanejamento, não fica claro o estatuto do autoerotismo – estado de dispersão
pulsional que o narcisismo viria a organizar. Tampouco fica elucidado o estatuto do
apoio nesse processo.
Laplanche assinala que o narcisismo primário, ao ser formulado como estado
originário do ser humano, não é distinguido do autoerotismo. A sequência
autoerotismo–narcisismo desaparece da teoria e o autoerotismo é definido simplesmente
como o modo de satisfação do estado narcisista. Nesse estado, a libido estaria “fechada”
no próprio corpo – isto é, haveria ausência total de relações com o meio. Esse
“fechamento” conduz à noção de uma sexualidade prioritariamente endógena, presente
desde os primórdios. Assim, o narcisismo primário perde “seu caráter de relação
especular com um objeto interno, para (...) ser quase sinônimo de estado “anobjetal””
(LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 81).

O narcisismo se torna um estádio biológico de início, o que nos reconduz (...) à tentativa
de descrever uma gênese endógena do ser humano. O narcisismo é (...) levado para trás,
para o biológico puro – como estado real do início. Além disso (...) o que era designado
outrora como autoerotismo é doravante subordinado a esse narcisismo de início (Id.,
ibid., p. 88).

Ao questionar o porquê do rebaixamento do autoerotismo, Laplanche


(1993/1997, op. cit.) chega à conclusão de que o “esquecimento” da fantasia como
constitutiva dessa modalidade de satisfação promoveu esse remanejamento – que, em
seu ponto de vista, apenas empobreceu a teoria da sexualidade.
A oposição entre Eros e pulsão de morte resultaria, então, em uma aparente
“resolução” do problema da origem da sexualidade. Hipoteticamente, a sexualidade
69

estaria vigorando desde o inicio – na tendência das células somáticas a aderirem umas
às outras, neutralizando as tendências destrutivas da pulsão de morte.
(...) Podemos imaginar um estado inicial como sendo o estado em que a energia total
disponível de Eros, a qual, doravante, mencionaremos como “libido”, acha-se presente
no ego-id indiferenciado e serve para neutralizar as tendências destrutivas que estão
simultaneamente presentes (FREUD, 1940[1938]/1969, p. 162).

Trata-se de um conflito que dificilmente pode ser classificado como psíquico – é


um conflito entre duas forças orgânicas, no qual uma delas se esforça para a
manutenção da vida.
Todos os elementos externos – o objeto externo, o contato da criança com o meio
– são deixados em segundo plano. O confronto entre Eros e pulsão de morte, essas duas
forças primordiais, precede qualquer impacto do meio externo sobre a criança. “São
verdadeiramente grandes “instintos” que dominam o combate, e que apenas vão se
concretizar no indivíduo” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 94-95).

II. 11 – As dimensões da sexualidade na teoria das pulsões

Pode-se dizer que a sexualidade é explorada através de três grandes eixos na


teoria das pulsões:
1- o do confronto entre o ego e a pulsão sexual, esta última sendo uma
pulsão desestabilizadora para o ego – eixo explorado desde a primeira
metade da década de 1890;
2- o da constituição do ego através do investimento da pulsão sexual – eixo
que se consolida a partir de 1914, com a “introdução” da noção de
narcisismo;
3- o da pulsão sexual como pulsão integradora, protegendo não somente a
vida psíquica, mas a vida orgânica dos efeitos da pulsão de morte –
eixo estabelecido a partir de 1920.

Freud jamais anulou um desses três eixos em sua teoria – o que não quer dizer
que essas três dimensões da pulsão sexual “convivam” bem e não promovam
contradições e dificuldades para a compreensão de sua teoria como um todo.
No conflito entre pulsão do ego e pulsão sexual, a pulsão sexual “era a força
submetida exclusivamente ao princípio de prazer, dificilmente educável, funcionando
70

segundo as leis do processo primário e ameaçando constantemente do interior o


equilíbrio do aparelho psíquico” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982, op. cit., p. 404).
Em contraposição ao princípio de realidade, o princípio de prazer seria a expressão da
sexualidade impetuosa, em busca da satisfação “a qualquer preço”, desestabilizando o
ego – necessitando de medidas de controle e inibição da descarga por parte deste.
A pulsão sexual corresponderia, então, a uma força disruptiva, diferente daquela
tematizada após a introdução da noção de narcisismo e da oposição entre libido do ego e
libido dos objetos – introdução que adicionou à pulsão sexual uma dimensão
organizadora. O ego seria constituído através do investimento da libido, energia da
pulsão sexual – investimento imprescindível para a organização das pulsões parciais,
isto é, para a constituição de um agente organizador da dispersão pulsional. Tanto em
sua dimensão disruptiva quanto em sua dimensão organizadora, a pulsão sexual seria a
expressão das excitações corporais na esfera psíquica – a expressão de uma “exigência
de trabalho” para o domínio dessas excitações.
Com a introdução da segunda teoria das pulsões e com o conflito entre Eros e
pulsão de morte, a pulsão sexual ganha uma terceira dimensão – a de proteção da vida
psíquica e orgânica. Essa pulsão, “torna-se, sob o nome de pulsão de vida, uma força
que tende à ligação, à constituição e manutenção das unidades vitais; e, em
contrapartida, é a sua antagonista, a pulsão de morte, que funciona segundo o princípio
de descarga total” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1982, p. 404). Como distinguir a
pulsão sexual de outrora da pulsão de morte “dessexualizada” – expressão do caráter
mais radical e extremo do funcionamento psíquico, a redução ao nível zero das
excitações? Afinal, a pulsão sexual da primeira teoria, em seu estado bruto, não visaria,
acima de tudo, a descarga total – desconsiderando os seus efeitos sobre a realidade
externa e adaptação do indivíduo? Não teria sido em 1905 que Freud definiu a pulsão
sexual como a mais irrefreável de todas?
A dimensão protetora da pulsão sexual pela via de Eros pode ser facilmente
confundida com uma função adaptadora – e, assim, instintiva. Paradoxalmente, Freud
conceituou a pulsão sexual – e não o instinto sexual – justamente para mostrar o fato de
a sexualidade humana apontar para uma busca de prazer irredutível à satisfação de uma
necessidade. O objeto sexual seria contingente e não se confundiria com o objeto
próprio ao instinto. A pulsão sexual não seria adaptativa, mas sim subversiva à ordem
71

natural. Então, como conciliar os aspectos desligados e “desligadores” da pulsão sexual


com Eros – princípio de ligação – na teoria freudiana?
Capítulo III

Pulsão sexual: ligação e “desligamento” na vida psíquica

Ao introduzir o conceito de pulsão de morte em sua teoria das pulsões, Freud


acreditava ter encontrado a pulsão não sexual que se contraporia às pulsões da
sexualidade. Entretanto, para fundamentar a oposição entre pulsão sexual e pulsão de
morte, restringiu a pulsão sexual ao domínio das pulsões de vida (Eros) – pulsões que
tendem à ligação e à manutenção dos laços vitais. Como conciliar os aspectos não
ligados da sexualidade em sua nova teoria das pulsões?
Para elaborar esta questão, vamos explorar as contribuições de Jean Laplanche e
André Green. Ao se dedicarem ao tema da sexualidade, ambos os autores apresentam
diferentes perspectivas para a elucidação do conceito de pulsão sexual na teoria
freudiana. Em linhas gerais, Laplanche resgata elementos presentes no pensamento de
Freud desde a teoria da sedução, vindo a situar a sedução originária no fundamento da
pulsão sexual, supondo, portanto, uma indissociação entre as noções de pulsão e
sexualidade. Como iremos acompanhar ao longo do presente capítulo, a pulsão de
morte, nessa visão teórica, abrange elementos inicialmente reconhecidos na pulsão
sexual.
Em contrapartida, assim como Freud, Green separa as noções de pulsão sexual e
pulsão de morte, situando aquela no conjunto das pulsões de vida, atribuindo a estas
uma função objetalizante. A Eros ele opõe a desobjetalização, manifestação da pulsão
de morte, cuja expressão mais radical sinaliza a presença de um processo de
“dessexualização” no âmbito do funcionamento psíquico.

III. 1 – A problemática da sedução em Freud


Em sua teoria da sedução, postulada entre os anos 1895 e 1897, Freud supunha
haver um trauma sexual na etiologia das psiconeuroses. Os traços de memória dessa
experiência sexual ocorrida na infância, quando ativados pelo afeto sexual após a
puberdade, promoveriam, em determinados casos, intenso distúrbio no funcionamento
73

psíquico. Esse distúrbio ocorreria uma vez que não houvesse simbolização das cenas de
sedução, mas o seu recalque.
A teoria da sedução corresponde à primeira teoria do trauma no pensamento de
Freud. Ao cair no limbo após o abandono dessa teoria em 1897, a dimensão de trauma
volta a nele ocupar lugar de destaque apenas duas décadas depois, com o interesse de
Freud pelas neuroses traumáticas. Não por acaso Jean Laplanche ressalta a forte
semelhança que existiria entre trauma da sedução e neurose traumática. Em ambas as
situações, o trauma resultaria essencialmente do despreparo do sujeito frente à
experiência traumática.

O despreparo da criança é fundamentalmente sinônimo (...) de certo estado infantil das


funções psíquicas, assim como do sistema sexual. Aquilo que advém, o incidente, o
acontecimento, aparece, do mesmo modo que na neurose traumática adulta, como
arbitrário (LAPLANCHE, 1987/1992, p. 114).

A criança, passivamente confrontada à irrupção da sexualidade adulta, não


estaria preparada para enfrentá-la. Trata-se de uma “experiência pré-sexual” que se
tornaria “sexual” quando o afeto sexual emergisse. O trauma aqui resulta dos efeitos “a
posteriori” dessa experiência e não dos efeitos imediatos, ao contrário do que ocorreria
na neurose traumática. O que está em jogo na teoria da sedução é o trauma sexual – o
afeto sexual dando vida aos traços de memória, desestabilizando a esfera do ego –,
enquanto nas neuroses traumáticas a questão sexual não é diretamente tematizada.
No inicio de seu percurso Freud identifica nas cenas de sedução a porta de
entrada para a compreensão do trauma e do inconsciente. As várias cenas suceder-se-
iam no tempo, simbolizando-se umas às outras. Mas as cenas de sedução vivenciadas
passivamente pelo sujeito na infância é que promoveriam efeitos patológicos no
psiquismo, pois somente estas seriam passíveis de recalcamento. E o recalcamento,
estando na gênese do inconsciente, seria o mecanismo formador dos sintomas
psiconeuróticos.
Na carta 52, Freud aprofunda a sua investigação sobre o trauma da sedução,
propondo a hipótese de que haveria na base do funcionamento psíquico um processo de
estratificação: “o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito de
tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias – a uma retranscrição”
(FREUD, 1896b {1950 [1892-1899]/1969}, op. cit., p. 281).
74

Neste contexto, as inscrições psíquicas dos acontecimentos equivalem a registros


de tempos sucessivos da vida. Na fronteira entre esses registros, a tradução do material
psíquico – transcrição de registros anteriores – faz-se necessária. “Cada transcrição
subsequente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Quando falta uma
transcrição subsequente, a excitação é manejada segundo as leis psicológicas vigentes
no período anterior” (FREUD, 1896b {1950 [1892-1899]/1969}, op. cit., p. 283). Ao
circunscrever a excitação, a transcrição do material psíquico viabiliza o bom
funcionamento do psiquismo. Assim, as excitações vinculadas aos traços de memória,
quando não circunscritas, constituem fonte contínua e perturbadora de tensão no aparato
psíquico.
Segundo esta visão, apenas os “eventos sexuais” estariam implicados no
processo traumático, por conta das “magnitudes das excitações causadas por eles” (Id.,
ibid., p. 284). O evento sexual, quando não traduzido, se atualizaria em fase posterior da
vida do sujeito, pelo fato de a excitação vinculada ao mesmo não ter sido inibida pela
tradução. Em outras palavras, a excitação mantém-se presentificada, como uma espécie
de “exigência de trabalho”, trabalho de “domínio” das excitações.
Nos quadros psicopatológicos analisados por Freud, o material psíquico
relacionado à experiência sexual traumática não é traduzido, mas recalcado, através de
um mecanismo defensivo descrito na carta 52 como análogo a uma falha de tradução.
Para Laplanche (1987/1992, op. cit.), as ideias contidas na carta 52 são
extremamente ricas, especialmente pelo fato de apresentarem um modelo do aparelho
psíquico cujo ponto fundamental consiste nas inscrições psíquicas das experiências do
sujeito com o seu meio, com o outro. Essa é apenas uma das ideias iniciais de Freud que
Laplanche resgata e busca problematizar, já que, de acordo com o seu pensamento, a
teoria da sedução oferece elementos extremamente fortes, tanto para a compreensão da
teoria da sexualidade, quanto para o pensamento psicanalítico como um todo:

Sua força reside na trama cerrada que liga a teoria aos dados da experiência analítica: é
uma teoria estreitamente intrincada com a experiência. Reside em pôr em jogo, já de
forma rigorosa e doravante insuperável, três fatores da racionalidade analítica: a
temporalidade do a posteriori, a tópica do sujeito e os laços tradutivos ou interpretativos
entre os roteiros ou as cenas (Id., ibid., p. 122).

Ao argumentar sobre os aspectos promissores da teoria da sedução, Laplanche


enfatiza que nessa teoria os impulsos da vida psíquica estariam intimamente
75

relacionados às lembranças das cenas de sedução, aos traços de memória das


experiências da criança com o adulto – ou seja, às inscrições psíquicas dos fatos de
sedução. Nesse sentido, a fantasia encontraria fundamento numa realidade mais ou
menos objetiva, nas experiências realmente vividas pelo sujeito. “Em última instância, o
principal argumento oposto à teoria da sedução (...) foi de que se trata de fantasias
forjadas pela criança para mascarar seus próprios desejos edipianos, portanto, suas
próprias pulsões ativas” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 119).
Apesar de seus pontos promissores, ao restringir a teoria da sedução a uma
situação contingente, Freud acaba por nela promover diversos impasses intransponíveis.
A essência do fenômeno da sedução não é questionada. A sua concepção se limitava ao
campo das relações perversas, no sentido estrito do termo, entre o adulto e a criança. O
inconsciente era, assim, concebido como psicopatológico e redutível à psicanálise, já
que o recalcamento, originador do inconsciente, seria uma defesa patológica contra o
ataque proveniente da lembrança das cenas de sedução (Id., ibid., p. 115-116; p. 123).
A noção de “ataque interno” por uma lembrança, por sua vez, também não é
problematizada. Com o abandono da teoria da sedução, a fantasia vem a ser colocada no
lugar de realidade psíquica, destituindo a realidade das cenas de seu papel fundamental
na constituição do inconsciente. Inevitavelmente, a fantasia acaba por encontrar a sua
origem não nas cenas de sedução, mas na pulsão. E a pulsão acaba por encontrar a sua
origem nas excitações somáticas. “(...) O movimento vai sempre no seguinte sentido:
excitações somáticas → pulsão → fantasia” (Id., ibid., p. 126-127).
Em outras palavras, os impulsos que caracterizam a vida psíquica são
assimilados a um movimento que partiria do “biológico” e não dos efeitos internos das
experiências do sujeito com o adulto sedutor. Em contrapartida, na teoria da sedução: “a
série causal se estabelecia de forma totalmente diferente, levando do mais profundo – as
lembranças das cenas – ao mais atualizado, os Impulse, verdadeiros precursores das
pulsões (Triebe) no pensamento freudiano” (Id., ibid., p. 127).
Apesar do abandono da teoria da sedução em Freud, Laplanche (1987/1992)
identifica na teoria freudiana um progresso em relação à factualidade das cenas de
sedução: a sedução precoce. A sedução deixa de ser explorada apenas no campo dos
atentados sexuais perversos, passando a ser considerada na relação primordial entre a
mãe (ou o adulto que exerce os cuidados maternos) e a criança. Este novo lugar
76

concedido à sedução fica bem delimitado em diversas passagens dos “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade” (1905), entre elas, ressaltemos uma particularmente
significativa:

(...) O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de
excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa –
usualmente, a mãe – contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria
vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o
substituto de um objeto sexual plenamente legítimo (FREUD, 1905/1969, op. cit., p.
210-211).

Para o adulto que exerce os cuidados maternos, essa sedução não seria
intencional ou deliberada. “A mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse
esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está despertando a pulsão
sexual de seu filho e preparando a intensidade posterior desta” (Id., ibid., p. 211). É
interessante notar que nessa afirmação Freud situa a sedução materna como o fator que
despertaria a pulsão sexual infantil. Todavia, no conjunto de seu pensamento, a pulsão
sexual não seria despertada pela sedução, mas sim pelas excitações das diversas zonas
erógenas do corpo somático. Segundo Freud, a pulsão sexual, em última instância,
emergiria espontaneamente, independendo dessa experiência de sedução “primária”.
Laplanche (1987/1992, op. cit., p. 116) assinala que os “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (1905) têm o grande mérito de ressignificar a noção de perversão,
demonstrando que o conjunto da sexualidade se desenvolveria “sob o signo da ausência
de meta e de objeto preestabelecidos, ou seja, numa errância que só no fim encontrará a
chamada sexualidade genital”. Todavia, apesar dessa ressignificação da noção de
perversão, o adulto perverso da teoria da sedução não se “beneficia” dessa nova
perspectiva, que poderia situá-lo na generalidade do desenvolvimento sexual humano.
Em outras palavras, Freud deixa de estender a sedução precoce à origem da sexualidade
infantil, não vindo a explorar, de forma mais clara, a possibilidade de essa sedução ser o
fator que desperta a “erogeneidade” do corpo infantil.
Apesar de continuar a levar em conta os efeitos da sedução exercida pelo adulto
sobre a criança após o abandono da teoria da sedução, para essa sedução Freud não
atribui de forma efetivamente explícita ou elaborada um papel constitucional, mas
mobilizador. Em contrapartida – como detalharemos a seguir – na visão de Laplanche, a
sedução do adulto não seria apenas um aspecto mobilizador da pulsão sexual, mas sim
77

constitutivo. A partir dessa concepção, o autor irá propor a teoria da sedução


generalizada.

III. 2 – A teoria da sedução generalizada


A teoria da sedução generalizada, proposta por Jean Laplanche, resgata
elementos de todas as etapas do percurso freudiano – desde a teoria da sedução em 1895
até o último dualismo pulsional entre Eros e pulsão de morte em 1920 –, reestruturando
profundamente esses elementos. O autor irá fundamentar a estrutura do aparelho
psíquico a partir justamente da experiência inconsciente e originária da “sedução”.
Enquanto na teoria da sedução em Freud, a sedução perversa, exercida pelo
adulto sobre a criança, correspondia a uma situação contingente, episódica, na teoria da
sedução generalizada, a sedução vem a corresponder, antes de tudo, a uma situação
antropológica fundamental – a relação entre o adulto e a criança em termos gerais. De
um lado, o adulto, com seu inconsciente sexual, essencialmente perverso – habitado
pela fantasia, pelos resíduos de sua sexualidade infantil – e, de outro, a criança, sem
inconsciente sexual a priori, apenas com suas montagens biológicas, situadas
predominantemente no nível da necessidade e não do desejo (LAPLANCHE,
1987/1992, op. cit.; LAPLANCHE, 2007).
Um dos pontos fundamentais da teoria de Laplanche é a distinção que estabelece
entre a gênese da sexualidade infantil e o desenvolvimento da relação perceptivo-
motora da criança. A emergência da sexualidade no ser humano não se confunde aqui
com as primeiras adaptações psicofisiológicas do bebê. “Inicialmente, falar da criança é
(...) falar de um indivíduo biopsíquico, e seria aberrante a ideia de um bebê puro
organismo, pura máquina, sobre o qual viria se enxertar não sei o quê, uma alma, um
psiquismo” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 99).
O autor distingue dois níveis para as montagens homeostáticas presentes no
organismo do bebê: um diretamente fisiológico e outro psicofisiológico ou instintivo –
comportamentos adaptativos, esquemas perceptivo-motores, etc. O bebê não estaria
fechado para o seu meio, nem seria desprovido de psiquismo. Ele é apenas um ser
profundamente desadaptado, incapaz de ajudar-se por conta própria, apesar de suas
78

montagens reguladoras. Esse bebê precisaria de “ajuda externa” para sobreviver (Id.,
ibid., p. 102-103).
Laplanche, então, explora a situação originária na qual a criança necessitaria da
ajuda do adulto para manter-se viva. Essa relação originária se estabelece em um duplo
registro: no primeiro, há uma relação interativa, no segundo, não há interação possível
pelo fato de haver extrema defasagem entre o psiquismo adulto – fundamentalmente
marcado pelos conteúdos sexuais e inconscientes – e o corpo-psiquismo infantil –
extremamente elementar. A balança é profundamente desigual.
“No ser humano, nem sempre há ação e reação iguais entre si, como quer a
física; nele, há um sedutor e um seduzido, um desviador e um desviado, conduzido para
longe das vias naturais” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 111). Do lado da
criança, a princípio, há apenas um organismo com suas montagens biológicas, pré-
formadas, e do lado do adulto, há a implantação de mensagens nesse organismo infantil
– “mensagens antes de tudo somáticas, inseparáveis dos significantes gestuais, mímicos
ou sonoros, que as transportam” (Id., 1993/1997, p. 14-15).
O adulto propõe à criança significantes impregnados de significação sexual
inconsciente, significantes verbais, não verbais e até mesmo comportamentais. Trata-se
de elementos inconscientes que impregnam os gestos, os dizeres, as ações dos adultos.
Este mundo sexual adulto não se caracteriza por um mundo objetivo que a criança tenha
que descobrir e aprender. Caracteriza-se “por mensagens no sentido mais amplo do
termo (linguísticas ou simplesmente linguageiras: pré ou paralinguísticas), que
interrogam a criança antes que ela as compreenda e às quais deve dar sentido e resposta,
o que é uma só e mesma coisa” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 133). Nesse
contexto de disparidade, de desigualdade entre dois polos, Laplanche identifica a
origem da pulsão sexual no ser humano.
Ao criar um vínculo de ternura e apego com a criança, o adulto introduz nesta os
elementos que fazem emergir a pulsão. “É na interação da ternura que desliza, que se
insinua a ação inconsciente do outro, a face sexual inconsciente da mensagem do outro”
(LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 60). A abertura perceptiva e motora da criança à
autoconservação permite a introdução desses elementos sexuais. Esse é o sentido que a
noção de apoio vem a adquirir na teoria de Laplanche.
79

Para exemplificar esse processo de implantação – ou intromissão, uma variante


mais violenta da implantação – dos significantes enigmáticos no corpo-psiquismo
infantil, Laplanche recorre à situação de amamentação: a mãe que oferece o seu seio
para alimentar a criança. Esse seio que alimenta e viabiliza a sobrevivência da criança,
imprescindível para a sua autoconservação, é o mesmo seio que carrega significações
sexuais, inconscientes para a mulher que o oferece. A mãe que se dirige à criança, de
maneira terna e protetora, não tem como evitar os efeitos de seu inconsciente “sexual”
sobre a sua comunicação com o bebê. Este recebe mensagens que impactam seu corpo,
necessitando de uma defesa, de uma “proteção” contra essa “invasão” de estímulos,
inevitável e imprescindível, decorrente dessa relação primordial.

(...) A relação de cuidados oferece, propõe lugares de implantação para aquilo que os
gestos adultos vão veicular como fantasias (...) utilizo esse termo em um sentido pouco
metafórico, pois a rigor não vejo por que a fantasia e a mensagem, a mensagem
veiculando uma fantasia inconsciente, não seriam tão bem implantadas em uma parte do
corpo – quanto no cérebro (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit, p. 61).

As zonas erógenas são lugares privilegiados de troca com o exterior, lugares de


cuidados, de polarização de algo externo. Através dos cuidados oferecidos pelo adulto à
criança algo externo vem enxertar-se no funcionamento endógeno. A fonte da pulsão
corresponderia, portanto, à implantação de um corpo estranho. Como consequência
desse fenômeno, a excitação endógena não está isenta do impacto de um elemento
exógeno, implantado no corpo.

III. 3 – A prioridade do outro na constituição da pulsão sexual


“É instrutivo que a criança, sob a influência da sedução, possa tornar-se perversa
polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso mostra que traz em sua
disposição a aptidão para elas” – escreve Freud nos “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (1905/1969, op. cit., p. 180).
Esta afirmação é bastante significativa, pois indica dois elementos fundamentais
para a compreensão da teoria da sedução generalizada. Ao mesmo tempo em que
reconhece a possibilidade de a sedução mobilizar e estimular a pulsão sexual infantil,
Freud afirma que a sedução não estaria no fundamento, nem da pulsão sexual, nem da
sexualidade perversa polimorfa. Haveria uma disposição inata para ambas. A teoria de
80

Laplanche oferece outra perspectiva exatamente no que se refere a essa questão,


desconstruindo a ideia de uma sexualidade infantil pré-estabelecida pelos fatores da
hereditariedade e da constituição.
De acordo com Laplanche (2007, op. cit.), Freud quando associa a excitabilidade
das zonas erógenas ao fenômeno da sedução, pressupõe a presença prévia de uma
sexualidade no organismo infantil – que independeria de qualquer fator externo. A
sedução apenas estimula o que já estaria ali, na constituição da criança. Mas, para
Laplanche, essa formulação é extremamente problemática, pois as condições hormonais
da sexualidade encontradas no homem após a puberdade estariam praticamente ausentes
na infância. “(...) Voltemos à endocrinologia. Sabemos que os hormônios sexuais e
hipofisários que existem já no nascimento logo decrescem, desde os primeiros meses,
até zero, e só voltam a subir na puberdade” (LAPLANCHE, 2000/2001, p. 23).
Portanto, a “erogeneidade” do corpo infantil, de acordo com o seu ponto de vista,
não pode ser atribuída aos fatores hereditários, mas ao contato com o outro, que
“erogeneiza” esse corpo, promovendo alteração orgânica no mesmo, implantando uma
sexualidade que não estaria ali a priori: a sexualidade infantil. “Nada permite afirmar
que a erogeneidade das zonas erógenas esteja ligada a uma tensão endógena inata” (Id.,
ibid., p. 24).
Em outras palavras, a sexualidade infantil não teria um mecanismo endógeno
inato. Para Laplanche, as excitações sexuais na infância são produto de uma “alteração”
orgânica provocada pelo fenômeno da sedução. Os termos “implantação” e “enxerto”,
dentro desse contexto, não podem ser mais precisos, posto que referidos a uma
sexualidade que adviria por via exógena, antes da maturação da sexualidade biológica.
“(...) Nossa concepção é a de uma vida sexual que surge, como um enxerto ou como
uma emergência (a questão fica em aberto), na vida de relação” (LAPLANCHE,
1993/1997, op. cit., p. 77).
A força pulsional agiria sobre o corpo biológico, mas não partiria do soma. Na
concepção de Laplanche, todo fenômeno psíquico tem um correlato corporal e
biológico. “(...) Todo processo humano é indissociavelmente biológico e psíquico” (Id.,
2007, p. 198 – Tradução nossa). Ele menciona dois tipos de fenômenos biopsíquicos: os
que correspondem a uma disposição geneticamente pré-estabelecida e os que não
correspondem a uma disposição inata. Desses dois tipos de fenômenos, não haveria um
81

mais biológico que o outro. A pulsão não seria menos biológica que o instinto, mas não
“nasceria” com o homem – não corresponderia a algo “pré-estabelecido”.

A pulsão não é mais psíquica do que o instinto. A diferença não passa então entre
somático e psíquico, mas sim entre aquilo que é por um lado inato, atávico e endógeno e
aquilo que, por outro lado, é adquirido e epigenético (porém não menos ancorado no
corpo) (LAPLANCHE, 2000/2001, op. cit., p. 17).

O grande problema na teoria freudiana estaria relacionado justamente ao


endogenismo da pulsão sexual. A gênese e a natureza da pulsão, para Laplanche, são
indissociáveis da comunicação inter-humana.

O autor assinala que a utilização do termo “biologizante” (e não “biológico”) em


seus escritos se refere à crítica a um aspecto da teoria freudiana, qual seja, o de tender a
atribuir à biologia a gênese da pulsão sexual. Para Laplanche, trata-se de um recurso
“abusivo” solicitar da biologia mais do que essa ciência pode afirmar. Por exemplo, a
biologia não poderia afirmar que a sexualidade infantil seria “inscrita geneticamente,
tanto em suas sequências parciais (e em suas fantasias correspondentes) quanto em sua
evolução (em estádios, por exemplo)” (LAPLANCHE, 1997, p. 1367 – Tradução
nossa).
Na visão de Laplanche (1987/1992), Freud tende a recorrer a uma “falsa
biologia” para tentar explicar a origem das manifestações psíquicas da sexualidade. Ao
abusar desse recurso, Freud acaba, segundo ele, aderindo à hipótese de uma origem
exclusivamente somática das pulsões, assim como à hipótese das fantasias filogenéticas
– fato que acarreta argumentos, de certa forma, frágeis, que tentam situar a origem da
vida psíquica nas excitações somáticas, pré-determinadas pelos fatores da
hereditariedade e da constituição.

III. 4 – A pulsão sexual: a busca por mais excitação


Como vimos, Laplanche (2000/2001, op. cit.) recorre aos “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1969, op. cit.), mais especificamente às noções
de sexualidade perversa polimorfa e de prazeres preliminares, para definir com maior
precisão a pulsão sexual no ser humano.

O sexual infantil é a grande descoberta de Freud. É o “sexual” alargado além dos limites
da diferença sexual, além do sexuado. É o sexual parcial, ligado às zonas erógenas,
82

funcionando segundo o modelo do Vorlust, onde vocês tornam a encontrar a palavra


Lust que quer dizer ao mesmo tempo prazer e desejo (LAPLANCHE, 2000/2001, op.
cit., p. 23).

O termo em alemão Vorlust designa “prazer-desejo-preliminar”. Para Laplanche


(Ibid.), a pulsão se diferenciaria do instinto justamente nesse quesito, expressando a
busca por mais excitação, sendo um prazer de acréscimo de tensão, em vez de
apaziguamento, de modo análogo às atividades sexuais preliminares.
“De fato, nada permite afirmar que o prazer-desejo infantil corresponde a uma
tensão fisiológica interna, nem que exija descarga” (LAPLANCHE, 2000/2001, op. cit.,
p. 23). Vale ressaltar que a utilização dos termos “apaziguamento” e “descarga”, no
contexto dessas afirmações, não diz respeito ao apaziguamento ou descarga pulsional,
mas ao apaziguamento e à descarga de tensão fisiológica.
A pulsão sexual infantil, tendo a sua origem no inconsciente, expressa uma
“busca sem fim”, não conhecendo apaziguamento. O “pulsional” está sempre carente de
ligação, sempre ambivalente. O “clímax” de toda atividade sexual não apaziguaria a
pulsão sexual. O “pulsional” sexual continua pressionando o corpo, independentemente
de qualquer orgasmo fisiológico, pois a sua origem não estaria situada no somático, mas
no inconsciente.

O objeto da psicanálise é o inconsciente, e o inconsciente é antes de tudo sexual no


sentido exato freudiano, o sexual pulsional, infantil, pré ou paragenital ou genital
infantil. É o sexual que tem sua fonte no próprio fantasma, certamente implantado no
corpo (LAPLANCHE, 2000/2001, op. cit., p. 27).

Do lado do instinto, então, estão o apaziguamento e o orgasmo. Do lado da


pulsão, está o prazer preliminar – que abrange os prazeres pré-genitais, assim como o
prazer genital infantil e o prazer paragenital.
Portanto, há no homem o instinto de autoconservação, a pulsão sexual e o
instinto sexual. O primeiro, o instinto de autoconservação, é logo recoberto pelos
fenômenos propriamente humanos e sexuais da sedução. A pulsão sexual, resultante das
alterações sofridas pelo corpo-psiquismo infantil através do contato com o outro, ocupa
lugar principal e decisivo no homem, do nascimento até a puberdade, “escondendo-se”
no inconsciente, constituindo o objeto da psicanálise. O instinto sexual, por sua vez,
emerge na puberdade, mas encontra o seu lugar ocupado pela pulsão sexual infantil,
estando ele subordinado ao seu universo fantasístico. “Este instinto é (...)
epistemologicamente muito difícil de definir à medida que no real e concretamente não
83

aparece em estado puro, mas em transações incertas com o sexual infantil que reina no
inconsciente” (Id., ibid., p. 28).
Enfim, a analogia que Laplanche estabelece entre os prazeres preliminares
(prazeres de “acréscimo de tensão”) e a pulsão sexual infantil é particularmente
significativa para a compreensão do “pulsional”, pois expressa claramente o fato de que
as excitações sexuais na infância – que perduram até o final da vida do homem – são
fruto de uma “erogeneidade” que não estaria instalada a priori no corpo humano. Essas
excitações, totalmente indissociáveis dos objetos fantasísticos, exprimem o caráter
subjetivo da sexualidade. O instinto sexual, esse sim pré-determinado e constitutivo do
homem, quando aflorado, estaria sempre confrontado pela pulsão sexual,
irremediavelmente infantil, fantasística, e inesgotável.

III. 5 – A fonte da pulsão sexual na teoria da sedução generalizada


Em “Pulsões e destinos das pulsões”, Freud define a pulsão como “conceito
limite entre o psíquico e o somático, como representante psíquico dos estímulos que
provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como medida da exigência de
trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo” (FREUD,
1915/2004, p. 148).
Na teoria da sedução generalizada essa “medida da exigência de trabalho” não é
exercida diretamente pelas fontes somáticas do corpo, mas por protótipos inconscientes.
As mensagens enigmáticas emitidas pelo adulto, carregadas de sentido e desejo,
impactam o corpo-psiquismo infantil.

Não é, como muitas vezes quer Freud, uma energia X que se engancharia, não se sabe
como, em representações. A pulsão é realmente a força própria das representações
quando estas se encontram colocadas num certo estatuto isolado, separado, que é o
estatuto do recalcado e do inconsciente originário (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit.,
p. 150-151).

Entretanto, a fonte da pulsão não é meramente representativa; ela é ancorada nos


aspectos somáticos das zonas erógenas, em consequência do fenômeno da sedução.
A defasagem entre o universo sexual adulto e as possibilidades de integração
desse universo pela criança está na origem da pulsão – uma origem traumática,
decorrente de forte disparidade entre dois polos, o adulto e o infantil. Haveria no
84

confronto entre o adulto e a criança uma relação de atividade-passividade – relação


totalmente assimétrica, pelo fato de o psiquismo do adulto ser infinitamente mais “rico”
que o da criança. Essa assimetria constitui o ponto de partida para o recalcamento
originário – recurso defensivo que divide o psiquismo infantil, originando as instâncias
psíquicas.
Através do mecanismo do recalcamento há “a constituição e a permanência de
um inconsciente, assim como o efeito “pulsão” indissociável dele” (LAPLANCHE,
1987/1992, op. cit., p. 138). O modelo do recalcamento, entendido como fracasso de
tradução, presente na carta 52 (FREUD, 1896b{1950 [1892-1899]/1969}, op. cit.) de
Freud a Wilhelm Fliess, é fundamental para a compreensão dos elementos-chaves da
teoria de Laplanche. A fonte da pulsão, segundo ele (1987/1992, op. cit.), é o resquício
inconsciente do recalcamento originário, isto é, a excitação não “inibida” pelo processo
de tradução.
Se na teoria da sedução restrita o inconsciente estava exclusivamente vinculado
às cenas de sedução recalcadas, na teoria da sedução generalizada o inconsciente é
igualmente indissociável das cenas de sedução não simbolizadas pelo processo de
tradução.
A constituição da força pulsional é concebida como sendo análoga à constituição
do inconsciente – que, segundo os modelos da carta 52 e da teoria da sedução
generalizada, abrangeria as excitações das inscrições psíquicas não inibidas pelo
processo de tradução. Em suma, não há uma separação entre pulsão e inconsciente.

A noção de um id ou de um inconsciente primários, não recalcados, parece-nos ligada a


uma falsa apreciação do lugar do biológico na psicanálise (...), é somente pela ação do
recalcamento originário que se constitui o inconsciente originário. O inconsciente, uma
vez constituído pelo recalcamento, é mesmo um id, torna-se uma natureza mesmo, uma
segunda natureza que “nos age” (LAPLANCHE, 1988, p. 100).

A concepção de Laplanche “não é a do advir do psíquico no vital, mas do advir


do sexual biopsíquico no pequeno ser humano também biopsíquico” (Id., 1993/1997,
op. cit., p. 15). Em outras palavras, o pequeno ser não seria desprovido de um
psiquismo, mas sim desprovido de um psiquismo “sexual”, pulsional – ou seja, não
haveria a priori uma instância psíquica análoga ao id nesse pequeno ser. O “pulsional”
no ser humano é fruto de uma situação traumática e constitutiva sobre o psiquismo
elementar da criança.
85

Se há uma “exigência de trabalho”, ela deve ser concebida como aquela exercida
pelo id – o conjunto de objetos-fontes de pulsão, resultantes do recalcamento originário,
ou seja, da separação entre pré-consciente/consciente e inconsciente no espaço
intrapsíquico. Em relação à definição do termo “objeto-fonte”, escreve Laplanche
(1981/1992, p. 239): trata-se do “impacto sobre o indivíduo e sobre o eu da estimulação
constante exercida, desde o interior, pelas representações-coisas recalcadas”.
A impossibilidade de a criança metabolizar inteiramente os conteúdos que lhe
chegam promove uma separação entre o que consegue simbolizar e o que não consegue.
Neste último caso, a excitação provocada pela mensagem não é controlada ou inibida. A
problemática do recalque originário insere-se nessa impossibilidade de metabolização
interna de tudo que vem do exterior. Trata-se de um processo em dois tempos.
O primeiro tempo é aquele no qual o corpo-psiquismo infantil recebe as
mensagens enigmáticas. A mensagem é simplesmente implantada ou inscrita. No
segundo tempo, aquilo que foi implantado no corpo-psiquismo infantil passa a operar
violentamente no mundo interno. A mensagem revivificada – atuando como um corpo
estranho interno (objeto-fonte de pulsão) – exige medidas de controle e integração da
excitação que desencadeia (LAPLANCHE, 2007, op. cit.; CARDOSO, 2002).
Os códigos inatos ou adquiridos que a criança dispõe são insuficientes para fazer
frente à mensagem enigmática. “A criança deve apelar a um novo código, improvisado
por ela, e recorrer aos esquemas fornecidos pelo ambiente cultural” (LAPLANCHE,
2007, op. cit., p. 199 – Tradução nossa). Essa “exigência de tradução” corresponde à
fundação do aparelho psíquico em nível pré-consciente, ou seja, à fundação do ego.

A tradução ou tentativa de tradução tem a função de fundar o aparelho psíquico, em


nível pré-consciente. O pré-consciente – essencialmente o ego – corresponde à maneira
que o sujeito se constitui, representa a sua história. A tradução das mensagens do outro
adulto é essencial para uma historicização, mais ou menos coerente (LAPLANCHE,
2007, op. cit., p. 200 – Tradução nossa).

Todavia, a tradução esboçada pela criança é sempre imperfeita, deixando restos.


Não há a possibilidade de se traduzir tudo, de inibir integralmente a excitação
provocada pela mensagem. Os restos de tradução, então, constituem-se em oposição ao
ego pré-consciente, formando o inconsciente – no sentido freudiano e literal do termo.
Vale ressaltar que a constituição do inconsciente na criança não é de modo algum
86

análoga a uma “cópia” do inconsciente sexual adulto. A teoria da sedução generalizada


não postula uma transmissão exógena do inconsciente ou da sexualidade.

(...) A gênese do inconsciente sexual (...) é um processo que envolve certamente a


mensagem estrangeira “implantada”, mas também a atividade autoconservadora da
criança frente a este ataque: defesa – domínio – simbolização – tradução. O inconsciente
sexual é o que escapa a esta atividade complexa do sujeito (...) (LAPLANCHE, 1997,
op. cit., p. 1368– Tradução nossa).

O trabalho de tradução “remodela” totalmente a mensagem. Reside aí a essência


da ideia de “metabolização”. Os conteúdos excitatórios, implantados na criança,
precisam ser metabolizados, sendo o inconsciente o resultado dos restos desse processo
de metabolização.
Laplanche (Id., 2007, op. cit., p. 200) define o termo “sexual” como a
“descoberta fundamental de Freud, que encontra sua fundação no recalcamento, no
inconsciente, no fantasma. É o objeto da psicanálise” (Id., ibid., p. 154 – Tradução
nossa). Ou seja, o “sexual” se refere às manifestações psíquicas da sexualidade,
insubordináveis às exigências da reprodução, à diferença entre sexos, à adaptação – em
suma, refere-se à concepção ampliada de sexualidade inaugurada por Freud. O “sexual”
corresponde à sexualidade perversa polimorfa e suas inúmeras possibilidades de
satisfação, tanto no âmbito corporal, quanto no “fantasístico”.
O inconsciente sexual, de acordo com o autor (LAPLANCHE, 1997, op. cit.),
apresenta as características já descritas na teoria freudiana: ausência de temporalidade,
de coordenação, de negação. Por resultar daquilo que escapou à tradução, o inconsciente
não é o domínio do “sentido”, mas dos significantes privados de seu sentido original,
não estando coordenados entre si. Em outras palavras, o inconsciente é o domínio dos
significantes “des-significados” os quais, por sua vez, apontam para o que não foi
passível de ser metabolizado pelo psiquismo infantil. Estes significantes inconscientes
são os grandes impulsionadores da atividade psíquica, subvertendo o corpo somático,
constituindo objetos-fontes da pulsão: pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte,
como veremos adiante.
87

III. 6 – Pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte


A noção de pulsão dá conta do fato de que não somos causas de
nós mesmos, mas que somos impulsionados (LAPLANCHE,
1987/1992, op. cit., p. 150).

Ao situar a sedução originária no fundamento da pulsão sexual, Laplanche nos


remete à seguinte questão: como situar a pulsão de morte – a pulsão não sexual na teoria
freudiana – nessa nova formulação teórica? Essa questão revela um aspecto
fundamental da crítica feita por Laplanche à teoria das pulsões em Freud.
De modo mais geral, a conceituação da pulsão de morte na obra freudiana
constitui o ápice de um movimento que, segundo Jean Laplanche, tende a privilegiar a
referência aos fatores hereditários e constitutivos do ser humano, negligenciando fatores
amplamente explorados no inicio do percurso teórico de Freud: a constituição do
inconsciente relacionada diretamente à sedução exercida pelo adulto sobre a criança; a
teoria do trauma em dois tempos; o ponto de vista tópico, no qual o ego sofre o ataque
de um elemento provindo do espaço intrapsíquico; e o ponto de vista tradutivo no qual o
recalque é concebido como uma falha de tradução.
Esses fatores, todos eles resgatados por Laplanche em sua teoria da sedução
generalizada, são especialmente pertinentes por ancorar a gênese da pulsão na relação
com o outro – situação descrita por ele como antropológica e fundamental: a relação
entre o adulto e a criança. Como vimos, o despreparo da criança frente às mensagens
enigmáticas que são veiculadas nessa relação é o protótipo de uma situação traumática e
constitutiva, originadora dos impulsos da vida psíquica.
Pode-se dizer que todo o esforço da teoria da sedução generalizada resume-se em
situar a sedução como o elemento fundador da pulsão sexual infantil, refutando a
hipótese de que haveria uma sexualidade perversa polimorfa a priori no corpo-
psiquismo infantil, assim como refutando a hipótese da existência de um id originário
nesse organismo elementar.
Na história do pensamento freudiano, distinguem-se duas teorias das pulsões. A
primeira, marcada pela dualidade entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação, e a
segunda, marcada pela dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte. A pulsão
sexual é o elemento comum entre essas duas formulações. Se, na primeira teoria das
88

pulsões, a fonte da pulsão sexual corresponde às excitações sexuais que brotam de


diferentes zonas erógenas, na segunda teoria, a pulsão sexual – parte integrante do
conjunto das pulsões de vida (Eros) – é uma força inerente ao organismo, que encontra
uma primeira expressão psíquica no id, a sede das pulsões.
Em relação à primeira teoria das pulsões, Laplanche identifica no dualismo entre
pulsão de autoconservação e pulsão sexual uma contraposição entre as funções de
autoconservação e a pulsão sexual, conceituada como força não subordinável aos
propósitos da adaptação. “A especificidade do sexual só se afirma quando é reafirmada,
de certa maneira, pelo menos potencialmente, a existência de um domínio do não-
sexual” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 26).
As funções de autoconservação constituiriam o domínio não sexual almejado por
Laplanche, estando contrapostas às pulsões sexuais. Assim, são claramente
diferenciadas as noções de função e pulsão, contrariando a tendência freudiana.
“Definindo-se a função no registro da pulsão, corre-se inversamente o risco de fazer
coincidir a pulsão com a função, no sentido de um funcionalismo da sexualidade” (Id.,
ibid., p. 30).
Haveria então uma diferença fundamental entre função de autoconservação,
pulsão sexual, e função sexual. Em relação à função, esta pode ser entendida como
análoga ao instinto na teoria de Laplanche, já que com os termos função de
autoconservação e função sexual, o autor quer designar instinto de autoconservação e
instinto sexual respectivamente. Vale aqui lembrar que tivemos a oportunidade de
explorar, em detalhes, essa distinção entre instinto de autoconservação, pulsão sexual e
instinto sexual no terceiro tópico do presente capítulo.
Ao desconstruir a ideia de pulsão de autoconservação, Laplanche busca apontar a
única e verdadeira pulsão em seu entender: a pulsão sexual. Mostra que, no inicio da
teoria das pulsões, “a pulsão sexual foi concebida o tempo todo por Freud como
agressor interno, como força desagregadora para o ego, e daí as manobras defensivas
desse último” (SCARFONE, 2005, op. cit., p. 111). Não é por acaso que, na teoria
freudiana, o recalcamento se aplica fundamentalmente à sexualidade infantil cujas
manifestações perversas são constantemente tematizadas como ameaçadoras para a
estabilidade do ego.
89

Todavia, Laplanche (1987/1992, op. cit.) identifica na descoberta do narcisismo


o marco de uma profunda reviravolta nos postulados iniciais da teoria da sexualidade.
Na metade da década de 1910, as contribuições de Freud enfatizavam os aspectos
ligados, “de ligação” e “totalizantes” da sexualidade.

A sexualidade ligada a um objeto total, aquela que se torna amor, quer seja amor pelo
outro, quer seja, de maneira correlativa e fundamental, amor por si mesmo, isto é,
narcisismo. É a descoberta do amor por um objeto total (o outro total, ou si mesmo
como ego, como objeto total) que é a novidade (Id., ibid., p. 154).

Como consequência do forte impacto do narcisismo na teoria das pulsões, houve


certo desequilíbrio no conjunto conceitual freudiano. A sexualidade desestabilizadora e
ameaçadora para o ego – apesar de jamais negada por Freud –, perdeu muito de sua
força devido à atenção dada à oposição entre libido do ego e libido dos objetos.
Nesse enfraquecimento teórico do “sexual” disruptivo, Laplanche identifica na
conceituação da pulsão de morte um retorno aos aspectos anteriormente reconhecidos
na pulsão sexual. Entre esses aspectos estariam aqueles menos narcísicos e mais
desestruturantes, fragmentados e fragmentadores da pulsão que, se efetivamente
problematizados, pouco se conciliariam com a restrição da pulsão sexual ao domínio de
Eros, princípio de ligação.
Eros, para Laplanche (1993/1997, op. cit., p. 22), seria apenas uma parte da
sexualidade, não abrangendo todos os aspectos da pulsão sexual. Se na primeira teoria
das pulsões a pulsão sexual “visava qualquer coisa exceto a unidade, e não estava ligada
por nenhum plano pré-estabelecido”, na segunda teoria, essa mesma pulsão tende a
estabelecer unidades cada vez maiores – seu objetivo passa a ser unir, atar, ligar.
Então, o que fazer com a sexualidade não ligada, aquela “que se pode dizer
‘desligada’ no sentido da pulsão, isto é, a sexualidade mudando de objeto, (...) tendo
como único objetivo: correr o mais depressa possível em direção à sua satisfação e ao
esgotamento completo do seu desejo” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 102-103)?
A pulsão de morte, de acordo com essa perspectiva, vem justamente reafirmar e
precisar aspectos essenciais da pulsão sexual não ligada: aqueles parciais, sujeitados ao
processo primário e à compulsão à repetição. Com base nesses dados, Laplanche lança
mão de uma proposição original: “pulsão de morte e pulsão de vida são dois aspectos da
pulsão sexual” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 155).
90

A pulsão sexual, não sendo uma força inerente ao organismo, também não sendo
simplesmente o resultado de uma transposição psíquica da excitação sexual somática,
seria a força subsequente ao trauma vivenciado pela criança através do fenômeno da
sedução.

O inconsciente recalcado é a origem das pulsões, pulsões sexuais de vida e de morte,


pulsões que podemos considerar – inversamente à famosa formulação de Freud – como
‘exigência de trabalho’ imposta ao corpo pela sua ligação com os significantes
inconscientes recalcados (LAPLANCHE, 2007, op. cit., p. 201 – Tradução nossa).

(...) é preciso admitir que o recalcamento originário faz nascer a pulsão de morte e a
situa no próprio núcleo do id, como núcleo da pulsão sexual (...) A pulsão de morte só
pode ser o ataque interno por objetos ao mesmo tempo estimulantes e perigosos para o
ego (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 103).

Toda a problemática da pulsão no pensamento de Laplanche está inserida


fundamentalmente numa questão objetal. Não é por acaso que ele utiliza o termo
“objeto-fonte” para definir a fonte da pulsão. A força pulsional, em termos gerais, é
gerada pela implantação (anteriormente à incorporação ou introjeção) de um “objeto”
no espaço intrapsíquico, que excita e mobiliza o corpo-psiquismo infantil, subvertendo
o soma, imperando sobre o instinto. Em outras palavras, a expressão objeto-fonte diz
respeito aos efeitos do contato com o objeto externo no espaço intrapsíquico. Mas esse
“objeto interno”, gerador da pulsão – esse “objeto-fonte” –, se reveste de diferentes
aspectos: parciais e totais.

(...) é o mesmo objeto-fonte que é simultaneamente (...) fonte tanto dos aspectos
mortíferos quanto dos aspectos sintetizantes da pulsão, segundo o aspecto – fragmentado
e parcial, ou total – de que se reveste. O mesmo objeto-fonte é simultaneamente índice e
objeto, objeto parcial e objeto total (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 156-57).

Ao tratarmos dos “objetos-fonte” de pulsão, mostra-se fundamental distinguir o


objeto total do objeto parcial, levando em conta o fato de que “o objeto parcial mal é um
objeto, mais próximo do índice do que do objeto ‘objetal’” (LAPLANCHE, 1987/1992,
op. cit., p. 156). A pulsão sexual de morte corresponderia ao efeito do objeto parcial –
instável, informe, fragmentado, mais voltado para a metonímia do que para a metáfora –
no espaço intrapsíquico.
A pulsão sexual de vida, por sua vez, corresponderia ao objeto total, estando
ligada ao objeto em via ou em ato de totalização, de modo predominantemente estável e
não fragmentado, mais voltada para o deslocamento metafórico do que para o
metonímico. O autor acrescenta que essa diferença entre objeto parcial e total o levou a
91

classificar, em determinados momentos, os dois tipos de pulsão como “pulsão de


índice” (pulsão sexual de morte) e “pulsão de objeto” (pulsão sexual de vida).
Entre o regime do processo primário (energia livre) e o regime do processo
secundário (energia ligada), existem formas intermediárias de circulação da energia.
Não haveria necessariamente uma oposição entre os dois processos, mas uma série
complementar, partindo da fragmentação absoluta do id até os processos narcísicos. A
libido, expressão psíquica da sexualidade, é o substrato energético de ambas as pulsões,
não havendo uma energia contraposta à libido. Neste ponto, Laplanche não está distante
das formulações de Freud. Embora tenha formulado dois tipos de pulsão, Freud jamais
admitiu a existência de dois tipos de energia pulsional. “Freud... nunca admitiu uma
energia especial para a pulsão de morte” (LAPLANCHE, 1987/1992, op. cit., p. 154-
155).
Enfim, a diferenciação entre pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte se
efetua, essencialmente, de acordo com os seguintes fatores da pulsão: sua relação com o
ego, sua finalidade, seu modo de funcionamento energético e seu objeto-fonte.
A pulsão sexual de morte, hostil ao ego, visa à descarga pulsional total, ao preço
do aniquilamento do objeto, funcionando segundo o princípio de energia livre. Seu
objeto-fonte corresponde aos aspectos clivados, unilaterais – aos indícios de objeto –,
no espaço intrapsíquico. Em contrapartida, a pulsão sexual de vida, consoante ao ego,
visa à síntese, à constituição e manutenção de laços, funcionando segundo o princípio
de energia ligada. Seu objeto-fonte corresponde ao objeto-total, regulador e apaziguador
(LAPLANCHE, 1988, op. cit.).
Na teoria de Laplanche, o sentido do princípio de Nirvana constitui a tendência
ao nível zero de excitação, análogo ao da teoria freudiana. Contrariamente a esse
princípio, o ego possui meios para manter a homeostase: “aceitar uma descarga ou
aumento de tensão moderados, evitar uma descarga ou tensão excessivas, evitar a
descarga e a tensão ainda que moderadas” (LAPLANCHE, 1988, op. cit., p. 106). Com
a oposição entre pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte, Laplanche sustenta que
as instâncias psíquicas são fundadas e funcionam através de um jogo complexo entre as
forças de ligação e desligamento da sexualidade. A sexualidade implantada através da
intromissão ou implantação dos significantes enigmáticos constitui a porta de entrada ao
território pulsional.
92

III. 7 – As correntes de Eros em André Green


André Green, em seu livro Chaînes d’Éros: actualité du sexuel (1997), busca
problematizar o lugar das noções de pulsão e sexualidade na psicanálise contemporânea.
Ele assinala a extrema redução do lugar concedido à sexualidade nas estratégias teóricas
e clínicas adotadas pelos psicanalistas na contemporaneidade. Dentro desse contexto, o
conceito freudiano de libido seria o único a poder explicar as variações, transformações,
fixações e regressões dos processos psíquicos. Este estaria desaparecendo, perdendo o
seu lugar central e imprescindível na teoria psicanalítica (GREEN, 1997/2003;
BOKANOWSKI, 1997).
Ao avaliar diferentes estratégias teóricas, Green analisa e discute, com particular
atenção, a teoria da sedução generalizada proposta por Jean Laplanche – que, ao
tematizar a ideia de inconsciente sem o peso da especulação “biologizante”, estaria
recusando a pulsão sexual como parte integrante de um id primeiramente ligado ao
soma e ao “biológico”. Trata-se de uma posição teórica cujo risco seria o de:

(...) abrasar o conceito freudiano (...) de pulsão esvaziando a ideia de sua ancoragem no
corporal, ou seja, remover sua dimensão “psicossexual”: a pulsão como elo eletivo entre
o corporal e o psíquico, como agente impulsionador do desenvolvimento e como agente
que tem poder de transformação psíquica (BOKANOWSKI, 1997, op. cit., p. 1353 –
Tradução nossa).

De acordo com Green, ao refutar a hipótese de uma origem somática das pulsões,
Laplanche estaria descaracterizando a proposta fundamental de Freud, assim como
promovendo uma ruptura entre o psiquismo e o resto do ser vivo. “Isto que Laplanche
defende é uma concepção semântica, psicológica e fundamentalmente intersubjetiva do
sexual (...) o soma está relegado às camadas ‘arqueológicas’ do sujeito” (GREEN,
1997/2003, op. cit., p. 137 – Tradução nossa).
Acrescenta o autor que, além disso, no pensamento de Laplanche, construído em
torno do “puro e enigmático significante”, tornar-se-ia extremamente difícil “distinguir
o alvo [da pulsão] que desperta o desejo de sua ancoragem subjetiva, tornando a sua
relação com o prazer extremamente problemática” (GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 111
– Tradução nossa). Green questiona, assim, como ficaria a estreita relação entre prazer
somático e pulsão sexual no pensamento de Laplanche, relação esta que, em sua leitura,
estaria supostamente obscurecida.
93

Ao examinarmos as críticas de Green endereçadas à teoria de Jean Laplanche,


vemos que ele não leva em conta duas indicações que nos parecem fundamentais nas
contribuições de Laplanche: o fato de que não haveria dissociação entre os fenômenos
psíquicos e somáticos, e a distinção entre força pulsional – resultante das experiências
do corpo-psiquismo infantil com o outro dos cuidados – e força instintiva – referente às
inclinações e comportamentos pré-determinados pelos fatores da hereditariedade e da
constituição. Todavia, a análise crítica de Green, ao trazer novamente o conceito
“clássico” de pulsão para o centro da discussão, é especialmente valiosa por nos
permitir aprofundar a problematização do conceito de pulsão sexual.
Green (Ibid.) ressalta que a sexualidade exerce papel central na atividade
psíquica, o que só pode ser compreendido através da noção incontornável de pulsão,
quando entendida como o representante psíquico das excitações endossomáticas. A
força da pulsão seria justamente a pressão exercida pelas excitações corporais no âmbito
psíquico. “Se o ‘outro’ não é claramente estranho a ela, a pressão produzida no aparato
físico (...) remete-nos para aquilo que habita o sujeito, superando de longe qualquer
fonte externa” (GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 110 – Tradução nossa). Pode-se
identificar aqui mais uma imprecisão na crítica feita por Green à teoria de Laplanche.
Não se trataria de uma fonte “externa” para a pulsão, mas do impacto de mensagens
sexuais advindas do outro no organismo infantil. Essa “quantidade de trauma”, esse
corpo estranho no espaço intrapsíquico seria a fonte da pulsão e não exatamente o outro.
Em outras palavras, os efeitos desse contato com o outro no âmbito psíquico é que
constituíriam essa fonte.
Todavia, é através da noção clássica de pulsão que, segundo Green (1997/2003,
op. cit.), teríamos uma via que parte das tensões somáticas e desemboca no mundo
representativo. A pulsão é concebida por ele como matriz originária, fonte e fundamento
da subjetividade. No caminho da fonte para o alvo, a pulsão torna-se operativa no
psiquismo. Fundamental nessa concepção é o fato de a subjetividade ter como fato
originador a transformação das excitações somáticas em excitações psíquicas – fato
teórico consoante com a perspectiva freudiana.
Assim, ao trazer de volta a fonte somática da pulsão para o centro da discussão,
Green (1997/2003, op. cit.) analisa e desenvolve o lugar crucial que ocupa, de um lado,
94

a pulsão, e, de outro, Eros, no que se refere ao desenvolvimento psíquico da função


sexual.
Em relação a Eros, o autor (Ibid.) sublinha a dupla necessidade de: primeiro,
destacar a entidade teórica que engloba as pulsões sexuais e de autoconservação – ou
seja, as pulsões que estão opostas à pulsão de morte; e, segundo, promover uma
distinção entre Eros, sexualidade e libido (BOKANOWSKI, 1997, op. cit.).
“A maior parte do que conhecemos sobre Eros – isto é, sobre o seu expoente, a
libido – foi obtida de um estudo da função sexual que, na verdade, segundo a opinião
dominante, ainda que não segundo a nossa teoria, coincide com Eros” – escreve Freud,
em “Esboço de psicanálise” (1940[1938]/1969, p. 165). Eros – conjunto das pulsões
sexuais e de autoconservação – não se confundiria com a libido nem com a função
sexual. A libido é o representante psíquico de Eros. Já a função sexual compreende
justamente o funcionamento da sexualidade no homem – as atividades sexuais e suas
repercussões psíquicas.

(...) a sexualidade, hoje considerada como uma função com o seu respectivo sinal, a
libido, é o que é perceptível dos fenômenos de Eros (...), embora presente desde o início,
no entanto, tem uma evolução, um desenvolvimento, e também sofre um declínio, com o
envelhecimento. Por seu lado, Eros é atemporal. (...) Os traços de experiências eróticas
(...) estão inscritos na psique para sempre e indelevelmente (GREEN, 1997/2003, op.
cit., p. 114-15 – Tradução nossa).

A pulsão sexual predominaria sobre a função sexual, sem dissociar-se dela.


Assim, Green propõe a ideia de uma corrente que liga Eros, seu expoente (a libido), e
sua função (sexualidade), com a finalidade de tematizar os diferentes registros de uma
vida erótica em sua dimensão ampliada. Na primeira extremidade da corrente está a
pulsão – o impulso em busca de satisfação, assumindo o papel de matriz subjetiva. Na
outra extremidade, estão as produções sublimatórias que conciliam as moções
pulsionais com as exigências da cultura. Entre os dois extremos, pode-se identificar
diversos elos estabelecidos pela pulsão sexual. As relações recíprocas entre excitação,
fantasia e linguagem estariam implicadas no processo de organização psíquica, assim
como em suas potencialidades para a desorganização (GREEN, 1997/2003, op. cit.;
BOKANOWSKI, 1997, op. cit.).
Ao associar as noções de sexualidade, libido e função sexual a uma corrente
erótica, Green (1997/2003, op. cit.) nos permite pensar nos processos que empurram o
sujeito em direção aos objetos, à criação e ao trabalho psíquico, fazendo frente aos
95

efeitos “desligadores” da pulsão de morte. A sexualidade seria, então, a fonte essencial


dos processos de representação e simbolização, ao trazer em si a marca de uma
satisfação sempre incompleta, assim como a contínua falta de um objeto garantido. Em
outras palavras, a indisponibilidade intermitente do objeto no inicio da vida levaria a
criança às primeiras construções psíquicas – processo que se perpetuará ao longo da
vida do sujeito.

III. 8 – As noções de objetalização e desobjetalização


A função sexual e sua manifestação, a libido, é o representante de
Eros, das pulsões de vida (GREEN, 1986a/1988, p. 62).

Para Freud, a pulsão é incognoscível e só pode ser conhecida através de seus


representantes (GREEN, 1986b/1990, op.cit.). Mas, o que seria o representante psíquico
da pulsão?
Para elaborar esta questão, Green lança mão das seguintes afirmações: (...) as
manifestações psíquicas (...) são consequências das desordens do organismo...”; “com a
excitação endossomática, alguma coisa parte da esfera somática e vem de encontro à
barreira somatopsíquica e penetra no psiquismo”; “há uma mensagem [proveniente do
soma] que passa e chega ao psíquico...” (GREEN, 1986b/1990, op. cit., p. 40-41).
Ao chegar à esfera psíquica, a excitação somática sofre um processo de
transposição, tornando-se excitação psíquica, sendo “representada” pelo representante
psíquico da pulsão – que não deve ser confundido com o representante-representação.
“Esse representante psíquico manifesta-se sob a forma de uma tensão (...) não é uma
representação, é uma tensão, é a imperiosa expressão de ter satisfação, mas (...) é sem
representação” (GREEN, 1986b/1990, op. cit., p. 42).
A dificuldade maior encontrada na teoria freudiana consistiria em detectar um
representante psíquico para a pulsão de morte, análogo ao que a libido representa para
Eros através da função sexual. “Freud revela que não possuímos nenhum indício
análogo ao que a libido representa para a função sexual para conhecer a pulsão de morte
de uma maneira tão direta” (GREEN, 1986a/1988, op. cit., p. 62). O aspecto essencial
na função sexual é a transformação sofrida pela excitação pulsional. De pura tensão
96

psíquica, a moção pulsional torna-se uma força vinculada à representação, viabilizando


os processos de simbolização.
Green (Ibid.) propõe, então, a hipótese segundo a qual a meta essencial da pulsão
de vida seria a de garantir esta função sexual, conceituada por ele como uma função
objetalizante. “(...) A meta objetalizante das pulsões de vida tem como consequência
principal realizar, mediante a função sexual, a simbolização” (Id., ibid., p. 68). O papel
de Eros não se restringe apenas ao de criar uma relação com o objeto (interno e
externo), mas também ao de transformar estruturas em objeto, mesmo quando o objeto
não está diretamente em questão. A possibilidade de investimento da força pulsional,
tanto nos objetos internos e externos quanto na própria criação de objetos, é o que
melhor caracteriza a função objetalizante – que, na ausência do objeto stricto sensu,
transforma estruturas em objetos.

A contingência do objeto é, a rigor, uma característica própria da pulsão sexual, já que a


partir do desvio o objeto pulsional não está mais determinado por sua materialidade. É
através dos processos de representação e de simbolização – ou através da linguagem,
uma aquisição especificamente humana – que o objeto pode ser indefinidamente
deslocado ou substituído, e mais do que isto, criado (GURFINKEL, 1993, op. cit., p.
163-164).

Apesar de a teoria das pulsões não poder ser totalmente provada pela
experiência, os conceitos trabalhados não podem ser dela dissociados, pois têm por
finalidade esclarecê-la. Assim, Green (1986a/1988, op. cit.) menciona o trabalho de luto
como exemplo dos processos de transformação característicos da função objetalizante,
em oposição à melancolia – que se opõe a esse trabalho e expressa outra função, na qual
os esforços da libido perdem a sua força. Mas, que outra função seria essa?
Trata-se da função desobjetalizante, expressão da pulsão de morte na vida
psíquica. A desobjetalização é o propósito da pulsão de morte que, por meio do
desligamento, ataca não somente os vínculos objetais estabelecidos por Eros, mas
também tudo o que poderia fazer as vezes de objeto, como o próprio ego, e o próprio
fato do investimento (SCARFONE, 2005, op. cit.). Ou seja, em sua expressão mais
radical, a função desobjetalizante, após desinvestir os demais objetos e desinvestir o
ego, desinveste o próprio processo de investimento.

Se, por um lado, a pulsão de morte faz referência à destruição – destruição do objeto,
destruição do vínculo com o objeto e destruição do próprio funcionamento psíquico –,
ela nomeia um aspecto que seria próprio da constituição psíquica e pulsional do homem
(GURFINKEL, 1993, op. cit., p. 170-171).
97

No pensamento de Green, essa função destrutiva é o representante psíquico da


pulsão de morte, em oposição à libido – representante de Eros no psiquismo.
Curiosamente, Green não atribui para a função desobjetalizante uma energia própria.
O autor (1986a/1988, op. cit.) ressalta que os mecanismos de ligação e
desligamento descritos por Freud como característicos de Eros e da pulsão de morte
constituem uma ideia correta, mas insuficiente. Em seu pensamento, a pulsão de vida
admite a coexistência dos mecanismos de ligação e desligamento, absorvendo parte da
pulsão de morte, transformando-a. Assim, as manifestações que resultam dessa absorção
não seriam interpretáveis no registro da pulsão de morte.
Haveria, essencialmente, uma dissimetria no jogo entre as pulsões: a ‘vida’ das
pulsões de vida compreenderia a “manutenção de uma dialética entre os movimentos de
ligação e desligamento em oposição à ‘morte’ das pulsões de morte, que seria a marca
de uma unilateralidade do desligamento, ou seja, a abolição da dialética própria a todo
sistema vivo” (SCARFONE, 2005, op. cit., p. 100). Levantamos neste ponto a seguinte
pergunta: quando a ação das pulsões de morte atinge o seu apogeu, a sexualidade não
entra mais em jogo?

III. 9 – A pulsão de morte: desobjetalização ou fragmentação do objeto?


Numa interessante nota de rodapé nos “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (1905), Freud escreve sobre a excitação pulsional: “para a psicanálise, o
essencial não é a gênese, mas sua relação com o objeto” (FREUD, 1905/1969, p. 170n).
Seguindo os passos de Freud, Green acrescenta: “... O objeto está presente desde
muito cedo na vida, mais cedo do que Freud nos permite pensar”; “Não há sexualidade
sem objeto” (GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 114, p. 136 – Tradução nossa). Esses
elementos de análise nos conduzem a uma outra questão: a ligação com o objeto é o
fator que realmente diferencia a pulsão sexual da pulsão de morte?
Conforme apontamos anteriormente, na teoria de Green não é possível pensar a
sexualidade (Eros) sem pensar a relação entre pulsão e objeto. “Eros (...) é inconcebível
sem (...) o objeto” (GREEN, 1986a/1988, op. cit., p. 36). A pulsão sexual leva a um
investimento objetalizante, mesmo na ausência do objeto stricto-sensu. A
impossibilidade de a pulsão sexual sempre encontrar satisfação mediante o objeto
98

externo estimula o funcionamento psíquico a criar objetos por meio dos processos de
representação e simbolização, por meio daquilo que Green denomina função
objetalizante. Em contrapartida, a pulsão sexual não é a única a vigorar no
funcionamento psíquico, pois há uma tendência à destruição dos investimentos objetais
por conta de uma aspiração ao nível zero de excitação, tendência expressa pela pulsão
de morte pela função desobjetalizante.
Mas por que a destruição dos vínculos objetais, assim como a descarga completa
da excitação, não teria em si uma dimensão sexual?
Ao tentar dar conta desta questão, Green traz à tona uma importante referência à
teoria de Laplanche: a pulsão sexual de morte.

Não me parece convincente postular “pulsões sexuais de morte” (Laplanche) em


oposição à existência da pulsão de morte. As pulsões sexuais de morte atribuem ao caos
das pulsões parciais uma destrutividade que certamente parece dominar o panorama por
muito tempo e não é apenas efeito da desorganização das pulsões sexuais. Não – há uma
destrutividade poderosa o suficiente para destruir os fenômenos de Eros. Eros, de
qualquer modo, não é imutável (GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 157 – Tradução nossa).

É interessante notar que Green recorre ao exemplo da pulsão parcial – precursora


da pulsão sexual na teoria freudiana –, para separar as noções de sexualidade e pulsão
de morte. A pulsão parcial em Freud, por caracterizar uma etapa inicial da pulsão
sexual, revelaria os aspectos mais disruptivos e fragmentados da sexualidade.
Entretanto, é importante ressaltar que haveria uma diferença na conceituação da pulsão
parcial na teoria de Laplanche. Segundo esta, a parcialidade da pulsão não estaria
confinada às excitações de diferentes partes do corpo não integradas psiquicamente pela
esfera do ego ou pelo primado da genitalidade. A pulsão parcial, de acordo com
Laplanche, seria correlata à força pulsional não vinculada a um objeto total, hostil à
ligação, à estabilidade dos investimentos e, dessa forma, à organização psíquica.
Tratar-se-ia de uma parcialidade relativa aos efeitos do objeto parcial no espaço
intrapsíquico, designando o ataque de elementos instáveis, informes e fragmentados à
esfera do ego. Vale ressaltar que esses elementos, correspondentes a diferentes partes do
corpo, seriam resultantes primeiramente do impacto da implantação de mensagens
sexuais sobre o corpo-psiquismo infantil, não de excitações sexuais somáticas que
emergiriam espontaneamente no inicio da vida.
Segundo essa perspectiva – a de Jean Laplanche – as manifestações da
sexualidade infantil estariam relacionadas ao fenômeno da sedução – fenômeno no qual
99

o adulto, ao “erogeneizar” o corpo da criança, promoveria uma alteração orgânica nesse


corpo, sendo a pulsão sexual uma consequência dessa alteração. Não haveria, portanto,
uma sexualidade infantil a priori. O corpo da criança tornar-se-ia um corpo
“erogeneizado”, fonte da pulsão sexual, a partir de seu contato com o outro. Essa
hipótese se distingue da proposta freudiana clássica – reafirmada por Green –, na qual a
pulsão sexual seria o resultado de uma transposição psíquica da excitação sexual
somática.
Pode-se dizer que Laplanche, ao situar a sedução originária no fundamento da
pulsão sexual, promove indissociação entre pulsão e sexualidade – assim como,
evidentemente, entre pulsão e objeto na sua teoria. A problemática “pulsional” revela-se
aí totalmente inserida dentro de uma problemática “objetal”, relacional. A própria
pulsão de morte estaria indissociada dessa questão sexual e objetal.

O que oponho (...) à objetalização e à pulsão objetal (onde eu veria um sinônimo da


pulsão de vida) é o que chamo de pulsão de indício, isto é, o momento em que o objeto
está reduzido a um simples indício dele mesmo. O objeto torna-se indefinidamente
transponível, isto é, deslocável sobre outros. É o momento em que a morte do objeto
está presente, onde o prazer é procurado em si mesmo e simplesmente através de um
signo, não mais através da manutenção do objeto. Isto é o que, a meu ver, Freud
expressava sob o termo de “pulsão sexual” no começo de sua obra: dizia que a pulsão
sexual procurava o prazer e não o objeto e que este último era secundário em relação a
ela (LAPLANCHE, 1986/1988, p. 101-102).

Ao postular a oposição entre forças de ligação e desligamento da sexualidade,


Laplanche associa as noções freudianas de narcisismo e Eros à pulsão sexual de vida –
força pulsional ligada à manutenção do objeto, ligada especificamente ao ego,
promovendo seus “efeitos totalizantes” e “totalizadores”. Em contrapartida, associa as
noções de pulsão parcial e sexualidade perversa polimorfa à pulsão sexual de morte –
força pulsional hostil à ligação, à simbolização e à estabilidade do ego, visando à
descarga impetuosa da energia libidinal.
Sabemos que a libido foi postulada por Freud como a expressão psíquica da
sexualidade – ou seja, a energia da pulsão sexual – e que ele jamais postulou uma
energia própria para a pulsão de morte. Seria a libido a única energia em jogo no
funcionamento psíquico?
Na teoria de Laplanche, a resposta é afirmativa. O autor não estabelece
necessariamente uma oposição entre duas pulsões, mas entre dois regimes – ligação e
desligamento – de funcionamento de uma mesma pulsão: a pulsão sexual. Já Green
100

estabelece a oposição entre duas funções – objetalizante e desobjetalizante –, que


designam duas pulsões diferentes – pulsão de vida e pulsão de morte. Green, assim
como Freud, não especifica uma energia própria para a pulsão de morte, mas também
não articula a função desobjetalizante com a descarga da energia libidinal.
É interessante notar, porém, a presença de um consenso entre as teorias de Green
e de Laplanche no que se refere à pulsão de vida e à função objetalizante. “Para mim, a
ideia do funcionamento mental ligado está absolutamente conforme com o que André
Green chama de objetalização” (LAPLANCHE, 1986/1988, p. 101). As divergências
entre os dois autores incidem, fundamentalmente, sobre a questão da pulsão de morte.
Ao contrário de Laplanche, Green acredita haver uma dissociação entre pulsão e
sexualidade, entre pulsão e objeto – inclusive sobre os efeitos desse objeto no espaço
intrapsíquico.
Se na teoria de Laplanche a destrutividade está relacionada à força das pulsões
parciais hostis ao ego, no pensamento de Green, há uma destrutividade que “está ligada
à função desobjetalizante, que é apenas uma variante do funcionamento das pulsões
parciais e cuja atividade assume a forma de uma força todo-poderosa de desvinculação”
(GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 157 – Tradução nossa). Mas – perguntamos nós –
desvinculação de quê?
O autor responde: “desvinculação do erótico, desvinculação do objeto, e –
finalmente – desvinculação dos aspectos positivos do narcisismo” (loc. cit. – Tradução
nossa). Este processo de desvinculação entre sexualidade e pulsão de morte teria caráter
mortífero e não corresponderia necessariamente ao funcionamento anárquico da
sexualidade perversa polimorfa. “É uma desvinculação que, em sua essência, é mais
destruidora do que anárquica ou caótica. É negativa em pelo menos dois sentidos: é
oposta ao positivo, e algo que aspira ao nada” (GREEN, 1997/2003, op. cit., p. 157 –
Tradução nossa).
Consideramos que Green não “sexualiza” a destrutividade. Muito pelo contrário,
uma vez que a função destrutiva toma frente à função sexual, haveria, nessa teorização,
uma desvinculação do “erótico”, uma “dessexualização” no âmbito psíquico. Dentro
desse contexto, sexualidade – dialética entre ligação e desligamento – e destruição –
abolição da dialética própria à sexualidade – seriam funções que expressam forças
101

diferentes, pulsão de vida e pulsão de morte, respectivamente, apesar de estarem


intrincadas no processo de manutenção da vida.
Na leitura de Green, a função desobjetalizante não deve, portanto, ser confundida
com a sexualidade perversa polimorfa, pré-narcísica e pré-genital – cujo caráter
desorganizado, caótico e perturbador deve ser atribuído à precariedade do intrincamento
entre Eros e pulsão de morte. Pode-se dizer que, essencialmente, quando a função
destrutiva (desobjetalizante) prevalece sobre a função sexual (objetalizante), ocorre um
processo de “dessexualização” dos processos psíquicos. Isto nos leva a concluir que,
para o autor, a expressão pura da pulsão de morte pode ser entendida como sendo
dissociável da sexualidade e da questão objetal.
Contudo, qual seria a origem dessa função desobjetalizante? O que promoveria
tamanha destruição dos vínculos com o objeto, das possibilidades de conectar e ligar a
força pulsional? E, mais importante, seria possível considerar qualquer manifestação da
vida psíquica totalmente dissociada dos efeitos do contato com o objeto externo – isto é,
dos efeitos dos objetos (ou indícios de objeto) no espaço intrapsíquico? Esta aspiração
“ao nada” atribuída à função desobjetalizante diria respeito ao que exatamente: à
ausência de qualquer relação com o objeto (interno ou externo) ou, mais
promissoramente, à ausência de qualquer “trabalho” psíquico?
“(...) Não concebo uma desobjetalização total até um ponto zero. Tal ponto só
pode ser visado de maneira assintótica” (LAPLANCHE, 1986/1988, op. cit., p. 101).
Segundo a perspectiva de Laplanche, não haveria um psiquismo livre de marcas, traços,
representações-coisas – enfim, objetos ou indícios de objetos –, decorrentes ou
resultantes da relação com o outro, que estimulariam a excitação do espaço
intrapsíquico, originando e acentuando a força pulsional. Como conceber um psiquismo
totalmente livre desses vestígios?
De acordo com a teoria de Laplanche, não podemos conceber a pulsão sem
considerar os efeitos do objeto no espaço intrapsíquico. Ao ser “pervertido” pela ação
do outro através do fenômeno da sedução, o corpo-psiquismo infantil carrega em si as
marcas dessa “perversão” que resulta no recalcamento originário e na constituição dos
objetos fontes de pulsão: pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte. Não há,
portanto, dissociação possível entre sexualidade e pulsão, entre pulsão e objeto, mas,
102

sim, entre o que seria metabolizável e o que não o seria nas mensagens sexuais advindas
do adulto.
Se a disparidade entre o universo sexual adulto e as possibilidades de integração
desse universo pela criança está na gênese da pulsão, isto quer dizer que nem tudo que
advém dessa primeira relação com o objeto, desse encontro de corpos, dessa veiculação
de mensagens, é passível de ser “simbolizado”. Em outras palavras, nem tudo que é
sexual – ou que advém do objeto – é passível de ser ligado, conectado.
Se, no pensamento de Green, não se pode pensar a sexualidade sem se pensar em
sua relação com o objeto, como restringir essa relação apenas ao plano da ligação,
objetalização e simbolização?
Então, onde e como situar o “sexual” não ligado, não passível de ligação? Como
conciliar o “sexual” não ligado com a função sexual – objetalizante – de Green e com a
noção de Eros em Freud? Não haveria um “sexual” situado além do princípio de prazer,
mais voltado para o princípio de Nirvana?
O campo da sexualidade não nos parece estar restrito ao campo da ligação, ao
campo do investimento pulsional, ao que é simbolizado no espaço psíquico. De outro
modo, permaneceria obscuro, na teoria, o estatuto e lugar dessa outra face, tão
fundamental, da sexualidade.
Considerações finais

(...) “pansexualismo” não quer necessariamente dizer que a


sexualidade seja “tudo”, mas que, em “tudo” haja, talvez,
sexualidade (LAPLANCHE, 1970/1985, p. 33).

No presente trabalho tivemos por objetivo problematizar o conceito de pulsão


sexual na obra freudiana, conceito que serve como uma espécie de chave mestra para a
teorização não apenas da sexualidade, mas da vida psíquica como um todo.
Iniciamos nossa investigação com a análise das primeiras etapas do percurso de
Freud, procurando explorar as principais ideias que delimitam a sua concepção
ampliada e inovadora de sexualidade. Buscamos, assim, reconstruir as etapas teóricas
que o levaram à conceituação da pulsão sexual.
Segundo a perspectiva inicial de sua teoria, as representações poderiam ser
recalcadas, mas a soma de excitação vinculada a estas não seria passível de
recalcamento. Essa soma de excitação que tanto pode vincular-se quanto desvincular-se
das representações, seria a energia de sustentação dos sintomas psiconeuróticos. Isso
porque a carga de afeto desvinculada da representação recalcada acabaria por vincular-
se a outra representação, ou viria a ser investida numa parte do corpo do sujeito. O
recalcamento, recurso defensivo que separa as representações de sua carga excitatória,
teria por objetivo proteger a integridade do ego, e é justamente o ego que se veria
ameaçado pelas representações sexuais e suas intensidades afetivas.
Freud postulou que o ingresso da excitação sexual na esfera psíquica desemboca
na formação do afeto sexual. Este, por sua vez, vincula-se a representações, “dando
vida” a estas. Diferentemente do que ocorre nas psiconeuroses, nas neuroses atuais
haveria uma falha nesse processo de transposição psíquica da sexualidade. Em
contrapartida a excitação sexual, quando transposta psiquicamente, resultaria em efeitos
traumáticos para o ego quando houvesse na esfera psíquica traços mnêmicos de
experiências ligadas a atentados sexuais perversos sofridos passivamente pelo sujeito
em sua infância. Reside aí a essência da teoria da sedução.
O que se tornaria traumático para o ego não seria a experiência sexual em si, mas
a lembrança desta, quando ativada pelo afeto sexual – que emergiria apenas na
puberdade. O afeto sexual não seria, no entanto, o único fator que ativaria a lembrança
104

das cenas de sedução no psiquismo, mas a ressonância associativa entre duas cenas
separadas pelo tempo. Ou seja, uma experiência atual remeteria a outra mais antiga,
promovendo a sua revivescência.
Apesar da sofisticação e complexidade de seus postulados, a teoria da sedução
torna-se problemática a partir de duas grandes descobertas freudianas: o papel da
sexualidade infantil e o da fantasia na vida psíquica. Segundo a nova concepção, a
criança não é desprovida de sexualidade e, portanto, não é desprovida de fantasias
inconscientes ligadas a esse mundo sexual. A fantasia é uma consequência da
transposição psíquica da sexualidade, um recurso representativo capaz de amortecer o
impacto das excitações sexuais na esfera psíquica.
As excitações sexuais não emergem apenas dos órgãos genitais, mas de
diferentes zonas corporais. A pele da criança, revestimento de seu corpo, seria a zona
erógena por excelência. Ao desconstruir a restrição da sexualidade normal e constitutiva
ao domínio das zonas genitais e aos propósitos da reprodução, Freud vê-se obrigado a
reavaliar a problemática das perversões sexuais. Vem, então, a postular a natureza
perverso-polimorfa da sexualidade humana. Nesse contexto, ele formula o conceito de
pulsão sexual nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), que vem
justamente aprofundar as suas descobertas anteriores. A pulsão é definida como a
medida da exigência de trabalho imposta ao psiquismo pelas excitações somáticas.
A sexualidade infantil, fundamentalmente perversa, é apontada por Freud como o
fator que estaria por trás dos sintomas psiconeuróticos. Os desejos, as fantasias, os
impulsos derivados de moções sexuais infantis, quando afastados do domínio da
consciência, refugiados no inconsciente, buscam a satisfação negada através de outras
vias, expressando o desejo infantil barrado. O conflito entre o ego e os impulsos
recalcados da vida sexual, quando extremado, promove intensa disfunção no
funcionamento psíquico, resultando em sintomas psicopatológicos. Com a finalidade de
fundamentar a oposição entre ego e sexualidade, Freud postulou a primeira teoria das
pulsões.
Na segunda parte de nosso trabalho, buscamos problematizar esta primeira
teoria, assim como as mudanças que sofreu após a descoberta do narcisismo e a
subsequente emergência de uma segunda teoria pulsional. Se inicialmente o nosso foco
foi delimitar as condições teóricas e clínicas que viabilizaram a conceituação da pulsão
105

sexual, agora o nosso olhar vem a se dirigir às diferentes dimensões que o conceito de
pulsão sexual assumirá ao longo da teoria das pulsões.
O primeiro dualismo pulsional entre pulsão de autoconservação e pulsão sexual
tinha como argumento de base o fato de a vida sexual gerar impulsos desestabilizadores
para o ego. Este, concebido por Freud desde a década de 1890 como instância psíquica
dessexualizada, aciona defesas contra impulsos, desejos e representações ligados à vida
sexual. A força do inconsciente corresponderia, portanto, à força desses impulsos
“detidos” – mas não extinguidos – pelo recalcamento.
Com a consideração de outras psicopatologias, como a esquizofrenia e a
paranoia, Freud foi desafiado a reavaliar a sua teoria da sexualidade. Chegou à
conclusão de que o ego também era objeto de investimento libidinal e que esse
investimento, quando bem estruturado, servia como fator organizador das pulsões
sexuais na esfera psíquica. O corpo infantil, inicialmente devassado por pulsões parciais
autoeróticas – isto é, pulsões sexuais fragmentadas, não investidas ainda em um objeto
externo – necessitaria de um agente organizador para a sua dispersão pulsional. A
descoberta do narcisismo, ou seja, a descoberta de um investimento da libido no ego,
objeto interno por excelência, acabou por delimitar qual seria esse agente organizador
da fragmentação pulsional: o próprio ego.
Se, na primeira teoria das pulsões, a força das pulsões de autoconservação era
dessexualizada, com a emergência do narcisismo, esta proposta teórica mostrou-se
inapropriada. A força libidinal empregada no ego seria indispensável para a sua
constituição, o que, evidentemente, veio a inserir a questão da constituição egoica numa
problemática eminentemente sexual. O ego é situado no rol dos objetos sexuais e assim
nasce a oposição entre libido do ego e libido dos objetos. A sexualidade, nesse
momento teórico, está claramente implicada em todo o registro pulsional.
Todavia, uma das preocupações fundamentais e permanentes de Freud foi
tematizar o fator que estaria contraposto à sexualidade. “A argumentação é
primeiramente clínica: o conflito psíquico exige que algo se oponha à sexualidade, que
seja posto em perigo por ela” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 83-84). Não sendo
o ego o fator antissexual almejado, a teoria das pulsões corre o risco de perder a
dualidade essencial entre duas forças opostas.
106

Com a introdução do inovador conceito de pulsão de morte, Freud, dentre muitas


outras determinações, visa recuperar a dualidade anteriormente perdida, contrapondo
pulsão de vida e pulsão de morte, situando a pulsão sexual no conjunto das pulsões de
vida (Eros), pulsões que tendem à ligação e à união. Em contrapartida, as pulsões de
morte tendem ao desligamento e à ruptura dos vínculos estabelecidos por Eros.
Ao associar a noção de pulsão sexual a Eros – princípio de ligação –, Freud nos
faz levantar a seguinte questão: qual seria o lugar, nessa segunda teoria pulsional, da
pulsão sexual não ligada – aquela não integrada pelo ego, que funciona conforme o
processo primário, buscando a descarga impetuosa e a satisfação de seu desejo pelas
vias mais curtas e imediatas? Esta pulsão, sexual e não ligada, estaria no campo das
pulsões de morte?
A resposta para Freud é negativa. A pulsão de morte designa uma pulsão não
sexual. Entretanto, em seu pensamento, todos os fenômenos vitais, inclusive os sexuais,
resultam de uma ação conjunta e mutuamente oposta entre as pulsões de vida e de
morte. Assim, as atividades ligadas à sexualidade humana não excluíram a ação das
pulsões de morte. Contudo, curiosamente, o “sexual” da pulsão passa a estar referido
estritamente a seus aspectos de ligação – seja ao ego, seja ao objeto, ou até mesmo, à
tendência das células somáticas a aderir umas às outras.

(...) O sexual, como Eros freudiano, se transformou no amor totalitário, sintetizante.


Quanto ao sexual desligado e desligador, precisamos de toda nossa boa vontade para
reconhecê-lo funcionando ali onde ele se esconde no sistema: precisamente sob a
máscara da destrutividade (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 95).

As pulsões de vida e de morte são tematizadas por Freud como duas forças
inerentes ao organismo, uma tendendo à manutenção e renovação da vida (Eros), a outra
visando levar o organismo a um estado supostamente anterior ao surgimento da vida, o
estado inorgânico. As repercussões psíquicas dessas duas forças orgânicas, Eros e
pulsão de morte, equivaleriam ao registro pulsional. Entretanto, essas duas forças
atuariam na matéria viva desde o mais remoto inicio da vida orgânica, como algo
inerente à constituição do sujeito.
O endogenismo da pulsão é fato incontestável dentro de uma leitura estrita de
sua teoria. E é justamente sobre a questão do endogenismo da pulsão que vem a incidir
a crítica feita por Jean Laplanche, ponto fundamental de nossa pesquisa, e que foi
explorado no terceiro capítulo de nossa dissertação.
107

De acordo com a leitura de Laplanche, a postulação da pulsão de morte


corresponde ao ápice de um movimento na teoria freudiana que privilegia os fatores
biológicos – e, para sermos mais exatos, endógenos – no movimento de constituição da
pulsão. A problematização da gênese do “pulsional” perde muito de sua força à medida
que a pulsão passa a ser concebida como uma força inerente ao organismo. Após a
segunda teoria pulsional, fica indicado que “as pulsões estão presentes desde toda a
eternidade, de modo que a gênese do sexual no indivíduo não é de modo algum um
problema” (LAPLANCHE, 1993/1997, op. cit., p. 95). Para este autor, com a gênese da
pulsão deixando de ser devidamente problematizada, não é de se surpreender que
justamente a conceituação da pulsão sexual, tendo em vista a sua evolução, tenha
apresentado pontos incompatíveis, difíceis de atingir uma conciliação.
Laplanche (Ibid., p. 90) assinala que a pulsão de morte vem a reafirmar três
fatores essenciais relativos à sexualidade, explorados previamente na teoria de Freud:

1- Uma força de desligamento, funcionando conforme o processo primário,


antecedendo a ligação e a estabilidade do processo secundário. Nas
primeiras etapas do percurso freudiano, a sexualidade fora tematizada
como força impetuosa, que exigia descarga no regime do processo
primário, desconsiderando os seus efeitos sobre o ego e a realidade
externa. Por esse motivo, o ego aciona uma defesa psíquica, o
recalcamento. A pulsão foi definida por Freud nos “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade” (1905) como a pulsão mais “irrefreável” de todas,
devido ao seu caráter impetuoso.

2- A prioridade do tempo “auto”, tempo refletido, na gênese da pulsão.


Laplanche retoma a questão do autoerotismo na qual a pulsão sexual
emerge primeiramente “apoiada” na satisfação de necessidades vitais,
separando-se destas, constituindo-se como pulsão independente e
autoerótica, ou seja, tornando-se uma força que busca no próprio corpo o
escoamento da excitação. Posteriormente, com a conceituação da pulsão
de morte, Freud tematiza estado “análogo” ao autoerotismo, denominado
masoquismo erógeno, no qual se estabelece uma primeira “liga” entre as
pulsões libidinais e as pulsões de morte. A pulsão de morte, fixada à
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libido, toma o próprio sujeito como objeto de satisfação. Este estado de


conjugação entre dor e prazer, agressividade e libido, corresponde aos
efeitos iniciais da força pulsional sobre o sujeito. Ou seja, o sujeito seria
o primeiro objeto de suas próprias pulsões, sexuais e de morte.

3- O ataque por um corpo estranho interno, “introduzido” no sujeito. Aqui,


Laplanche retoma os postulados da teoria da sedução em Freud, nos
quais o ego é agredido por um elemento interno, sexual, que o ataca.
Este elemento corresponde à lembrança das cenas de sedução no
psiquismo, funcionando como agressor interno quando associado ao
afeto sexual. O recalcamento, mais uma vez, é acionado contra esse
“agressor”. O modelo da carta 52 de Freud a Fliess, que concebe o
recalcamento como uma falha de tradução, apontava para os impasses
aos processos de simbolização. Décadas depois a postulação da pulsão
de morte, indicará, de modo análogo, o distúrbio causado no psiquismo
quando este não encontra vias apropriadas de simbolização, de captura e
“enlaçamento” das excitações, sofrendo o impacto traumático da força
pulsional. Em suma, Laplanche trava uma analogia entre o “autoataque”
presente na teoria da sedução, nos primórdios da psicanálise, e a
“autoagressão” que, mais de duas décadas depois, vem a noticiar os
efeitos da pulsão de morte na vida psíquica.

Ao avaliarmos esses três pontos propostos por Laplanche, podemos dizer que,
em sua visão, a pulsão de morte vem a reafirmar o ataque da pulsão sexual não ligada à
esfera do ego – que, por sua vez, serve como instância organizadora da dispersão
pulsional, constituindo o principal expoente das forças de ligação da sexualidade.
Ao situar a sexualidade no fundamento da pulsão, Laplanche é obrigado a
reavaliar a problemática da gênese do “pulsional” no homem. E, mais do que isso, é
obrigado a reavaliar o que seria a pulsão no homem. Para ele, a sexualidade infantil,
longe de ser fator constitucional do sujeito, resulta dos fenômenos sexuais e
inconscientes da sedução exercida pelo adulto sobre a criança. Trata-se aqui da sedução
109

“generalizada” e inconsciente, que vigora através da relação fundamental e


imprescindível entre adulto e criança no inicio da vida infantil – relação esta marcada
pelos cuidados maternos e de autoconservação.
A emergência da sexualidade corresponderia à força resultante do impacto de
mensagens sexuais do universo adulto sobre o corpo-psiquismo elementar da criança.
Assim, a “erogeneidade” do corpo infantil não seria despertada espontaneamente pelos
processos somáticos ou hormônios sexuais que, como se sabe, estão amplamente
inibidos na infância, mas sim pela ação sexual e inconsciente do adulto, que
“erogeneizaria” esse corpo.
Dessa forma, Laplanche desconstrói as ideias que tendem a reduzir o campo das
pulsões àquele das transposições das excitações somáticas em excitações psíquicas ou
das expressões psíquicas das forças inatas do organismo. A pulsão seria mais do que
uma “transformação” da excitação somática no âmbito psíquico, mas a excitação
resultante do impacto do universo sexual e fantasístico adulto sobre o organismo
elementar da criança.
Poderíamos perguntar aqui por que esta força resultante do trauma da sedução no
corpo-psiquismo infantil é denominada por Laplanche como força sexual? Em outras
palavras, por que, em seu pensamento, toda pulsão é concebida como pulsão sexual?
Primeiramente podemos dizer que, nessa perspectiva, a sexualidade humana não
é prioritariamente aquela que se desenvolve espontaneamente via neuro-hormonal. Ela
não é a prioritária porque dificilmente é apreensível em seu estado bruto, sem estar
subvertida por alguma outra coisa. A pulsão, então, corresponderia ao “sexual” infantil,
a esta outra coisa, que advém por via exógena, antes da efetivação da maturação sexual
biológica. Portanto, o “sexual implantado” não equivale à sexualidade biológica inata.
O corpo pulsional se sobrepõe ao corpo somático. “O adquirido precede o inato e
o subverte antecipadamente” (SCARFONE, 2005, op. cit., p. 110). Quando a maturação
biológica finalmente se efetua, quando o instinto sexual emerge, o seu lugar já está
ocupado pelo “pulsional” infantil. A pulsão toma o lugar do instinto e o destrona. As
possibilidades de o sujeito encontrar o prazer, seja através da relação com o objeto
externo, seja através da relação com o objeto interno, encontram-se totalmente
subordinadas a essa força pulsional que atua sobre ele.
110

Pode-se também dizer que essa força é sexual, segundo Laplanche, porque
carrega em si a marca da ação do outro, de uma alteridade, sobre o corpo-psiquismo
infantil. A ação do adulto sobre a criança é indissociável dos efeitos que a sexualidade
inconsciente do primeiro tem sobre a sua comunicação com a última. Esta ação é
indissociável do mundo representativo, das significações sexuais inconscientes –
daquilo que não pôde ser adequadamente simbolizado pelo próprio adulto. As
excitações corporais, pelas quais podemos alcançar a sexualidade humana, dificilmente
podem ser isoladas de seus traços de fantasia, de suas marcas subjetivas.
Enfim, na teoria da sedução generalizada de Laplanche, o “pulsional” advém do
contato humano, da comunicação intersubjetiva, das mensagens que são veiculadas
nessa comunicação. Dessa forma, pulsão e sexualidade são noções indissociáveis, pois
se a pulsão é o que advém do contato humano – e os conteúdos humanos estão
permeados de sexualidade – como pensar a pulsão sem pensar a sexualidade?
A leitura de Laplanche não corresponde ao “parecer final” de Freud sobre o
assunto. Ao associar o “erótico” da pulsão à ligação e à manutenção de unidades, Freud
indica, após a introdução do conceito de pulsão de morte, que os aspectos mais
violentos da vida psíquica sinalizariam a presença de uma pulsão de morte
dessexualizada. E, em relação à gênese da pulsão, indica que ambas as pulsões, erótica e
de morte, resultariam de forças inatas, atuantes no corpo independentemente de
qualquer contato da criança com o outro dos cuidados ou o adulto sedutor.
Procuramos mostrar igualmente que, em consonância com a perspectiva de
Freud, a leitura de André Green sobre a teoria das pulsões e o papel da pulsão sexual na
vida psíquica parece-nos priorizar os fatores endógenos no que concerne ao movimento
de constituição da pulsão. Em seu pensamento, a transformação da excitação somática
na esfera psíquica seria prioritária em relação aos efeitos do contato com o outro no
espaço intrapsíquico. A libido, representante psíquico de Eros, ou seja, a força que
representa a sexualidade somática no psiquismo, corresponderia a uma força de ligação
cujos efeitos seriam noticiados através de uma função objetalizante. Função esta que
tende ao investimento pulsional, a ligação ou vinculação da força pulsional aos objetos
e, na ausência do objeto stricto-sensu, garante a possibilidade de criação destes,
viabilizando o dinamismo próprio à vida psíquica.
111

Em contrapartida, Green aponta para as dificuldades de se detectar qual seria a


força análoga à libido que serviria como representante psíquico das pulsões de morte.
Ao explorar esta questão, propõe a seguinte hipótese: haveria uma força de
desligamento, expressa através de uma função desobjetalizante que, ao contrário da
função objetalizante, visaria à ruptura e destruição dos vínculos pulsionais. Eros
compreenderia uma dialética entre os movimentos de ligação e desligamento, enquanto
a pulsão de morte expressaria a unilateralidade do desligamento (SCARFONE, 2005,
op. cit.). De acordo com essa lógica, ao prevalecer sobre a função sexual (objetalizante),
a função destrutiva (desobjetalizante), indica uma “dessexualização” no âmbito
psíquico, uma destruição extremada não apenas dos vínculos aos objetos externos e
internos, mas também das possibilidades de criá-los e de neles investir.
Assim, Green levanta uma crítica à teoria de Laplanche, pois, em sua visão
haveria uma força pulsional dissociada do outro, do “erótico” e, portanto, da
sexualidade. Como vimos na terceira parte de nosso trabalho, a leitura de Green acaba
por desembocar nas mesmas dificuldades apresentadas na teoria freudiana no que se
refere ao papel do “sexual”. A sexualidade estaria apenas ao lado da ligação, do
investimento “objetalizante” e da criação? Por que a extrema destrutividade não teria
em si um caráter sexual?
Ressaltemos que apesar da ruptura estabelecida por Jean Laplanche em relação
às premissas fundamentais da teoria freudiana, a leitura que ele propõe não é estranha
aos postulados originais de Freud. Os remanejamentos e reestruturações que propõe em
sua teoria da sedução generalizada lançam luz sobre os problemas teóricos referentes à
conceituação da pulsão sexual.
Ao pressionar o corpo, a pulsão sexual desencadeia atividades representativas e,
mais significativamente, serve como motor para as mais diversas expressões humanas.
Parece-nos, contudo, que entre as expressões possíveis da pulsão sexual, incluem-se
aquelas menos apaziguadoras e mais violentas na vida psíquica, aquelas menos
integradoras e mais desestruturantes para o ego. Em outras palavras, parece-nos que a
sexualidade humana não está restrita aos campos da objetalização e Eros, tais como
descritos por André Green e Freud respectivamente.
A nossa conclusão, em concordância com Jean Laplanche, é que não podemos
enquadrar a sexualidade – aquela que atua de forma menos regulada, menos unificada,
112

definida por Freud como perversa polimorfa – dentro de uma fórmula que a restrinja aos
propósitos da ligação, da unificação e, até mesmo, da adaptação – como Freud parece
vir a sustentar a partir de sua conceituação de Eros.
Ao atribuir à libido uma função fundamentalmente adaptativa, vinculando-a a
um princípio homeostático que visa proteger não somente a vida psíquica, mas a vida
orgânica (FREUD, 1924/2007, op. cit.), não tenderia Freud a neutralizar a dimensão não
ligada da sexualidade, aquela desestabilizadora e agressora para o ego, para o psiquismo
e até mesmo para a adaptação do homem? Paradoxalmente, é Freud quem vem
inaugurar e fornecer as bases de uma concepção ampliada e revolucionária da
sexualidade humana na qual o “sexual” é entendido como força cuja repercussão
psíquica é tão vital quanto mortífera, tão estruturante quanto desestruturante, força
constitutiva e absolutamente subversiva, no homem, à ordem natural.
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