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Belo Horizonte
2016
Marco Antônio Couto Marinho
Belo Horizonte
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 301.18(815.11)
Revisão Ortográfica e Normalização Padrão PUC Minas de responsabilidade do autor.
Marco Antônio Couto Marinho
____________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Teixeira de Andrade – PUC Minas (Orientadora)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Miguel da Silva de Almeida Chaves – UNL-Portugal (Co-orientador)
______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria José Nogueira – FJP (Banca Examinadora)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Flávio Sapori – PUC Minas (Banca Examinadora)
__________________________________________________________
Profa. Dra. Alessandra Sampaio Chacham – PUC Minas (Banca Examinadora)
A tese tem como objetivo apresentar aspectos estruturantes da vida social na região
metropolitana de Belo Horizonte a partir da construção de trajetórias de vida. Tal proposta
fundamenta-se na conjugação entre diversas abordagens de pesquisa adotadas nas Ciências
Sociais, principalmente a etnográfica e a biográfica. Tal escolha se deveu ao pressuposto da
indissociabilidade entre indivíduo e sociedade. Se através das trajetórias é possível avaliar
contextos e locais onde os sujeitos agem e têm suas experiências de vida, a etnografia por sua
vez oferece um importante recurso para a aproximação entre o pesquisador social e o universo
social do qual busca construir conhecimento. Recorrendo à junção dessas abordagens, no
desenvolvimento da tese levantou-se a perspectiva dos indivíduos, sujeitos que agem
socialmente, evidenciando tensões e complexidades do cotidiano de suas vidas durante a
transição para a vida adulta. Buscou-se por tal via contribuir para o amplo e recente debate
sobre novas configurações da desigualdade na sociedade brasileira, produzido nas ciências
sociais, em relação ao paradoxo, notado nos últimos 30 anos, da expansão do Estado Liberal
de Direito e da urbanização concomitantes ao crescimento das taxas de homicídios juvenis e
da persistência da desigualdade social optou-se pela construção de trajetórias de vida de
jovens da periferia. O campo de pesquisa foi o bairro Estrela D’alva, situado no município de
Contagem, Minas Gerais. O município está localizado na região metropolitana de Belo
Horizonte, e o bairro em si é caracterizado como uma área com concentração de famílias em
situação de pobreza e que desde a década de 2000 passa por problemas públicos relacionados
à violência e a expansão de atividades criminosas locais. Ao longo de mais de dois anos de
etnografia no Estrela D’alva busquei inserir-me nas esferas de sociabilidade juvenis que se
desenvolviam no bairro, tais como o hip-hop e a religião. Por meio da imersão etnográfica
nessas esferas e de observações do cotidiano do bairro em espaços públicos como praças e
ruas, comércio e serviços locais busquei estabelecer o contato com os jovens com quem
realizei as entrevistas biográficas. Na tese são apresentadas as trajetórias de Miro, Faro,
Maicon e Suzano.
The thesis aims to present structural aspects of social life in the metropolitan region of Belo
Horizonte from building life trajectories. This proposal is based on the combination between
various research approaches taken in the social sciences, especially the ethnographic and
biographical. This choice was due to the assumption of the inseparability between individual
and society. If through the trajectories can be assessed contexts and places where individuals
act and have their life experiences, ethnography in turn provides an important resource for
bringing together the social researcher and the social universe which seeks to build
knowledge. Using the combination of these approaches in the development of the thesis raised
the perspective of individuals, subjects who act socially, showing everyday tensions and
complexities of their lives until they enter adulthood. We sought for such via contribute to the
broad and recent debate on new inequality settings in Brazilian society, produced in the social
sciences in relation to the paradox, noted the past 30 years, the expansion of the liberal state
of concomitant law and urbanization to growth of youth homicide rates and the persistence of
social inequality we chose to build lives of young people from the outskirts of trajectories.
The research field is the neighborhood Estrela D’alva, in the municipality of Contagem,
Minas Gerais. This municipality is located in the metropolitan region of Belo Horizonte, and
the neighborhood itself is characterized as an area with a concentration of families in poverty
and that since the 2000s undergoes public problems related to violence and the expansion of
local criminal activity . For over two years of ethnography at Estrela D’alva I sought to insert
me in youth spheres of sociability that developed in the neighborhood, such as hip-hop and
religion. Through ethnographic immersion in these spheres and neighborhood everyday
observations in public spaces such as squares and streets, local shops and services sought to
establish contact with young people who realized the biographical interviews. The thesis
shows the trajectories of Miro, Faro, Maicon and Suzano.
IMAGEM 7- Distribuição percentual das famílias com até um salário mínimo – RMBH -
2010 .......................................................................................................................................... 83
IMAGEM 11- Vista de uma Rua: Belvedere e Cidade Nova - Belo Horizonte - 2014 .......... 95
IMAGEM 13 - Locais de votação segundo o grau de competitividade por votos para deputado
estadual – RMBH - 2006 .......................................................................................................... 98
IMAGEM 17 – Mapa de Kernel dos crimes violentos registrados no Estrela D’alva - 2010 117
QUADRO 3: Perfil das Pessoas Entrevistadas durante a etnografia – 2012 a 2014 .............. 122
LISTA DE GRÁFICOS
TABELA 1- Variação (%) populacional por períodos intercensitários e população total dos
municípios mais afetados pela metropolização e da RMBH - 1980 a 2010 ............................. 77
TABELA 2 - Faixas de rendimento domiciliar per capta, Belo Horizonte, Contagem, Betim,
demais municípios metropolitanos e RMBH -2010 ................................................................. 81
FOTO 1 - Início e final da Rua que faz divisa com Belo Horizonte próximo ao Portão 2 do
Zoológico - Estrela D’alva - 2014 ......................................................................................... 101
FOTO 2 - Rua e esquina próxima à Casa Amarela - Estrela D’alva - 2014 ........................... 101
FOTO 3 - Ruas próximas à Praça do Estrela D’alva - Estrela D’alva - 2014 ........................ 102
FOTO 4 - Fachada de uma igreja situada próximo a Rua Porto Seguro - Estrela D’alva - 2014
................................................................................................................................................ 102
FOTO 5 - Espaço Casa Amarela antes da reforma - Estrela D’alva - 2012 ........................... 135
FOTO 6 - Espaço após reforma e implantação do CRAS Casa Amarela-Estrela D’alva -2013
................................................................................................................................................ 136
FOTO 7 - Duelos de MC’s antes e após a implantação do Cras no espaço Casa Amarela -
Estrela D’alva – 2012 e 2013 ................................................................................................. 138
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 25
1.1 Meu encontro com a temática investigada na tese ........................................................ 27
1 INTRODUÇÃO
Esta tese tem como foco de estudo a vida social na periferia metropolitana de Belo
Horizonte, que chamo aqui de “vida social na marginal”. Refiro-me ao campo das relações
sociais instituídas historicamente em áreas que a literatura, bem como o senso comum,
denomina como periferia. Para tanto, realizei estudo etnográfico no Estrela D’alva, bairro
formado na divisa entre o município de Contagem e a região da Pampulha, área nobre do
município de Belo Horizonte e polo da Região Metropolitana. Nesta tese o termo periferia
refere-se aos locais, geograficamente próximos ou não, da área central de Belo Horizonte
ocupados por populações socialmente marginalizadas por desempenharem as funções menos
valorizadas, simbolicamente e financeiramente, na estrutura sociocupacional metropolitana.
Geralmente são pessoas que desempenham ocupações manuais e que exigem menos requisito
técnico-formal. Em uma sociedade na qual a escravatura está entre suas raízes históricas, a
intensa estratificação social e desigualdade estão intrinsicamente relacionadas à estrutura
ocupacional e produtiva desta sociedade, às posições ocupadas pelos indivíduos. Desta
maneira, a periferia é onde os grupos que estão à margem da estrutura produtiva e econômica
metropolitana residem. O que chamo aqui por “vida social na marginal” refere-se às
populações que desenvolvem suas vidas a partir desta posição na sociedade urbana brasileira
contemporânea. É nesse sentido de margem, de fronteira social que a noção de periferia é
abordada ao longo da tese.
Nas últimas décadas, de consolidação urbana das regiões metropolitanas brasileiras do
Sudeste, as periferias aparecem como palco dos episódios mais trágicos e violentos
emergentes nestas regiões. Os principais agentes representados como vítimas e algozes do
crescimento histórico dos índices de violência urbana têm sido a população do sexo
masculino, da segunda ou da terceira geração de filhos das pessoas que ocuparam a periferia
nas décadas de 1970 e 1980, no caso desta tese especificamente, o Estrela D’alva. Tais são os
agentes apresentados nas estatísticas e matérias jornalísticas que retratam e narram o
crescimento da violência ao longo das décadas seguintes, de 1990 e de 2000. Nesse sentido,
apresentou-se como pertinente ter em consideração ao estudar a “vida social na marginal”, os
sujeitos que ocupavam a cena pública destes espaços, cujas trajetórias juvenis ocorreram ao
longo do tempo em que a urbanização se consolidou, das duas décadas após a
redemocratização do sistema político formal brasileiro. Sendo que, nesta tese, as “trajetórias
juvenis” são narradas a partir de uma perspectiva biográfica.
26
Lançado este desafio, de compreender “a vida social na marginal” tendo como objeto
as “trajetórias juvenis na região metropolitana de Belo Horizonte”, a presente tese estrutura-se
em sete capítulos a contar com a Introdução e as Considerações Finais. Estes dois não serão
comentados a seguir, somente os capítulos que estão entre eles.
O Capítulo 1, intitulado de “Trajetória de Vida e Teorias Sociais” procura discutir a
trajetória de vida dentro das teorias sociais, como uma alternativa para a construção de
conhecimento fundamentada em uma abordagem que busca levantar atributos do contexto e
das subjetividades envolvidas para a compreensão do social. Para tanto tem como pilar a
fusão entre o método biográfico com outras metodologias e técnicas de pesquisa social, em
especial a etnografia. Partindo do pressuposto da indissociabilidade do fenômeno social, o
capítulo tece discussões sobre os contributos das abordagens etnográficas e biográficas e a
etnobiografia para o desenvolvimento de um conceito de trajetória de vida, tendo como
referência as trajetórias juvenis. Assim, o capítulo aborda também a discussão sobre transição
para a vida adulta proposta por Machado Pais (1991; 2009).
O Capítulo 2, intitulado Metropolização, Território e Vida Social, apresenta notas
gerais sobre urbanização e a metropolização de Belo Horizonte, a partir de uma discussão
mais ampla sobre o caso brasileiro. Em seguida aborda aspectos da expansão metropolitana
sobre a reconfiguração das desigualdades sociais considerando território e relações sociais,
identificando na RMBH a produção de um espaço urbano socialmente fragmentado. O
capítulo apresenta uma caracterização das áreas internas do território metropolitano em
perspectiva histórica e alguns aspectos das suas clivagens sociais por meio de indicadores
sociais sintéticos como o Índice de Bem Estar Urbano (NAZÁRIO, 2015), e dados
econômicos, políticos e de infraestrutura abordados na literatura consultada, apresentados,
sempre que possível a elucidar distinções e similaridades entre periferias e áreas não
periféricas. O debate sobre as reconfigurações da vida social no território leva em conta a
expansão demográfica, as relações de trabalho metropolitanas e os padrões de segregação
predominantes na configuração da paisagem social da região metropolitana.
O Capítulo 3, intitulado Situando o Campo, a Periferia: Estrela D’alva, aborda a
ocupação e o processo de urbanização no Estrela D’alva a partir de relatos de moradores e
reconstrói um pouco da história do lugar abrangendo acontecimentos que marcaram a vida
social em períodos das décadas de 1980, 1990 até o tempo da etnografia. A história do bairro
mostra que urbanização não ocorreu como direito, mas como uma moeda de troca por votos
na redemocratização do sistema político formal. Ao longo dos anos 2000, a periferia estava
com sua urbanização consolidada, contudo esse processo foi acompanhado da permanência da
27
Este texto procura enquadrar, teoricamente, o capítulo seguinte da tese, que irá ter um
pendor mais analítico. No presente momento conferiremos destaque ao conceito de trajetória
de vida, conceito que estimula a superação de paradigmas fundamentados em perspectivas
dicotômicas e pressupõe a indissociabilidade do fenômeno social. Reconhecendo que a
percepção do observador funde-se àquilo que observa (CORCUFF, 2001), a própria
construção do objeto feita pelo investigador social representa um produto da sua relação
social com este mesmo objeto. A trajetória de vida fundamenta-se no paradigma da
indissociabilidade entre o individual e o social, sendo a “realidade social” a dialética desta
relação permanente (BERGER; LUCKMANN, 1999), como fenômeno social total (MAUSS,
2003). A trajetória de vida é, portanto, o produto das conexões materiais e simbólicas
exercidas entre e pelos indivíduos por meio das quais elaboram seus cursos de vida, uns em
relação aos outros (CORCUFF, 2001). A centralidade conferida ao conceito de trajetória de
vida decorre, nesta tese, de reflexões epistemológicas que precederam o desenvolvimento do
trabalho de campo, nomeadamente, a escolha do terreno empírico, a seleção das fontes de
informação, a análise do material coletado e o momento final de composição da narrativa
expressa em linguagem textual.
A operacionalização aqui proposta do conceito de trajetórias de vida possibilita
complexificar a observação dos fenômenos sociais e ao mesmo tempo situá-los perante as
circunstâncias, os contextos e os espaços a partir dos quais indivíduos, ao longo de um tempo,
produzem a vida social. As trajetórias concretas serão aqui delineadas partindo, por um lado,
das representações que os sujeitos biografados produzem sobre suas próprias experiências
passadas e, por outro, do modo como projetam seus rumos de vida frente a horizontes de
possibilidades socialmente delimitados (BOURDIEU, 1996). A escolha por centralizar os
problemas a partir de tal perspectiva teve como objetivo identificar, a partir dos repertórios de
vida juvenis, os quadros de ação elaborados pelos sujeitos biografados e como estes projetam
socialmente os indivíduos frente o mundo social, a partir do contexto social da periferia
metropolitana de Belo Horizonte.
Do ponto de vista teórico-metodológico, a presente proposta assentou-se
fundamentalmente em duas estratégias: a biográfica e a etnográfica. Tais abordagens
constituem os veios que tornam possível a construção analítica, por via da narrativa, das
trajetórias de vida. Em seguida, procurar-se-á defender e justificar a importância de fundir
essas duas abordagens, entendendo-as como métodos distintos, mas ao mesmo tempo
32
Nesta tese a abordagem biográfica tem por objetivo principal considerar a voz dos
sujeitos como elementos chave para a compreensão das relações humanas em sociedade 1. A
partir deste tipo de abordagem, centrada aqui essencialmente em relatos de experiências de
vida de determinadas pessoas, pode-se capturar aspectos do cotidiano dos indivíduos e do
ambiente social em que essa atividade cotidiana tem lugar. O objetivo de usar a abordagem
biográfica na sociologia é o de compreender o social, distinguindo, por essa via, de parte das
abordagens biográficas produzidas na literatura, no jornalismo ou no quadro da psicologia
(BERTAUX, 2005; 2014; PERREN, 2012; CONDE, 1993; 1994)2. A relação entre o contexto
de vida dos sujeitos pesquisados e da sua história individual foi explorada nos relatos de vida
amplamente utilizados, por exemplo, em estudos dirigidos à compreensão da integração social
de populações migrantes e marginalizadas na metrópole de Chicago durante as primeiras
décadas do século XX (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014).
No presente trabalho optamos em conjugar o método biográfico com outras
metodologias e técnicas de pesquisa social, em especial a etnografia. Foram realizadas
entrevistas com pessoas não jovens, em busca de outros olhares sobre a vida social na
periferia além dos juvenis, e, também registradas, em equipamento de gravação de áudio,
conversas informais, cultos evangélicos, comícios políticos, entre outras atividades públicas
que ocorriam no bairro. A análise do material biográfico foi subsidiada pela consulta a
documentos históricos, fotografias antigas, informações públicas e notícias veiculadas pelas
mídias que trouxessem informações sobre a região do Estrela D’alva, o município de
Contagem e região metropolitana. Tal opção metodológica teve como referência ou inspiração
a análise sequencial dos dados proposta em Rosenthal (2014). A proposta deste autor tem
como objetivo central fornecer ao pesquisador social um panorama histórico ou sociopolítico
o mais amplo possível, que contextualize e situe as experiências de vida no tempo e espaço.
Com efeito, consideramos que a qualidade da análise social dos dados biográficos depende da
busca por outras fontes. Tal procedimento contribui para evitar equívocos derivados de
1
Essa preocupação em considerar a voz dos sujeitos como elemento de compreensão da cultura está presente
como premissa epistemológica na antropológica de Franz Boas (1858 – 1942) e de Malinowski (1884 – 1942).
2
A produção de narrativas biográficas como recurso de interpretação da realidade social nas ciências sociais, na
sociologia principalmente, é ainda alvo de um relativo descrédito por parte daqueles que aderem de modo
acrítico às correntes ideológicas quantitativistas (ROSENTHAL, 2004).
33
3
A “ilusão biográfica” representa mais uma crítica à posição metodológica focada em traçar panoramas
individuais de sujeitos históricos, como se fossem portadores naturais da capacidade de instaurar por si
mesmos projetos excepcionais e extraordinários à sociedade, alheio às estruturas sociais (BOURDIEU, 1996).
34
4
De um modo geral os estudos empíricos e biográficos realizados em contextos com problemas sociais graves
envolvendo a concentração de pessoas em situação de pobreza urbana e violência como envolve na presente
tese as distâncias sociais. Em A Máquina e a Revolta, Alba Zaluar (1994: 9-32) dedica todo o primeiro
capítulo O antropólogo e os pobres: Introdução metodológica e afetiva discutindo tal questão.
35
[...] deve-se ter em mente o fato de que a etnografia está, do começo ao fim, imersa
na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma
textual. O processo é complicado pela ação de múltiplas subjetividades e
constrangimentos políticos que estão acima do controle do escritor (CLIFFORD,
2002, p.21).
36
5
Ao buscar fugir de posturas estruturalistas que concebem a ação dos indivíduos apenas como pequenas
variações internas da estrutura, a análise situacional permite identificar a ação dos indivíduos frente ao mundo
social do qual são membros, no sentido de perceber na ação a capacidade de o indivíduo de subverter a ordem
estruturalmente imposta em seu benefício próprio (BOURDIEU, 2000).
37
A partir da realização de uma etnografia densa como proposto por Geertz (1989)
pode-se atingir um olhar aprofundado em relação aos sentidos e as representações sociais
expressas pelos interlocutores. Seguindo essa lógica, a etnografia representa um importante
recurso para situar e contextualizar socialmente as experiências individuais. E nesta direção
está o conceito de etnobiografia explorado em Gonçalves, Marques e Cardoso (2012) e em
Gonçalves (2012). Os autores realizam uma leitura sobre o sentido da biografia em trabalhos
etnográficos como, por exemplo, em Crapanzano (1980), no qual ao produzir um retrato de
Tuhami, uma biografia, produziu-se também uma nova possibilidade de se pensar uma cultura
e de refletir sobre o encontro entre pessoas (antropólogo e nativo). O conceito de
etnobiografia fundamenta-se na conciliação entre as narrativas feitas pelo nativo e a que o
antropólogo ou cientista social têm da cultura investigada.
Por etnobiografia Gonçalves, Marques e Cardoso (2012, p.29) definem:
6
Enquanto aspecto estruturante dos percursos de vida individuais em sociedade destacam-se as clivagens
estabelecidas por gênero, bem como por faixas de idade, agrupamentos etários que expressam fases da vida.
40
realizadas pelos agentes sociais, como uma matriz de pensamento por meio da qual o
indivíduo terá como base de orientação de sua ação. A incorporação desses esquemas
assegurará, em larga medida, que as ações produzidas decorrerão em um quadro de tendencial
ajustamento à realidade com base na qual eles mesmos foram gerados. A teoria bourdiana
aponta para a necessidade de o pesquisador social ficar atento à detecção de regularidades
sociais e de padrões nos estilos de vida adotados pelos indivíduos, situando-os frente aos
sistemas de estratificação socialmente estabelecidos, no sentido de descortinar as lógicas da
ação a partir de sua gênese social.
No pensamento de Bourdieu (2000) a compreensão dos percursos biográficos é
indissociável do conceito de habitus que tem como hipótese central que os comportamentos
individuais sejam coerentes com as condições materiais e simbólicas por meio dos quais se
foram produzindo. Tal conceito, forjado pelo autor do pensamento antigo grego e medieval,
introduziu uma nova perspectiva sobre a teoria da ação frente ao estruturalismo antropológico
vigente até a década de 1960, considerando a capacidade inventiva dos agentes sociais frente
à reprodução social (WACQUANT, 2007). Segundo este autor o termo remonta ao
pensamento aristotélico e esteve associado à teoria da virtude como um estado estabelecido do
caráter moral que orienta as condutas humanas, traduzido para o Latim como hábitus –
particípio passado do verbo ter /possuir – por Tomás de Aquino em Summa Theologiae como
uma capacidade de aquisição de uma disposição durável e que orienta as ações. A noção de
habitus remonta também o pensamento durkheimiano, weberiano e de outros pensadores
modernos e contemporâneos, mas é Bourdieu quem se dedicou, com maior profundidade, ao
desenvolvimento deste como teoria social7.
De modo sintético, em Bourdieu (2000), o habitus é representado enquanto “sistema
de disposições duradouras”, tal conceitualização chama a atenção para os comportamentos
sociais passíveis de serem observados como recorrentes ao longo de um tempo e espaço e
assim produz o efeito “estrutura”, por meio da qual a sociedade se estabelece enquanto tal
perante os indivíduos. O autor, a partir deste conceito, atenta o cientista social à observação
das “permanências”, das singularidades da ação que possam ser classificadas como “sistemas
de comportamento” como habitus. Tal conceito indica para a prática da pesquisa social a
necessidade de se identificar tais regularidades sociais, notáveis pela observação do
comportamento dos indivíduos frente às suas condições sociais de existência. E, assim,
Bourdieu define o habitus, “[...] uma maneira de ser, um estado habitual (em especial do
7
Para um aprofundamento histórico sobre este conceito consultar Wacquant, 2007.
41
situações sociais). Considerando o campo de pesquisa, esse percurso demarca nos indivíduos
memórias sobre experiências, situações e aprendizagens sociais que incluem as relações
familiares, de vizinhança e de trabalho, como experiências de socialização juvenil como o
hip-hop e os cultos de adolescentes e as células. Espaços de por meio dos quais eles acessam
os capitais econômicos, culturais, sociais e simbólicos socialmente valorados dentro e fora da
periferia. Considerando que, para o conjunto da sociedade, o acesso diferenciado a estes
capitais (econômico, cultural e simbólico) por parte dos indivíduos implica em uma
distribuição distinta dos agentes pelo espaço social global que, no caso desta tese, é
representado pelo contexto da RMBH.
Considerando que os percursos de vida dos indivíduos variam em função da
estratificação social pode-se afirmar que suas trajetórias expressam o pertencimento a uma
determinada classe social. Para Bourdieu (1989; 2007) o conceito de “classe social”
relaciona-se diretamente ao de “estrutura social” e “posição social”, para este autor a
sociedade estrutura-se por diferentes classes que ocupam posições distintas em tal estrutura.
Em Bourdieu (1989) “classe social” apresenta-se como uma construção teórica que se
operacionaliza pela identificação das relações entre agentes que ocupam posições similares ou
próximas no espaço social em função dos tipos de capitais que possuem conforme define o
autor.
O que faz uma classe social ser uma classe, ou seja, o que faz um certo universo de
indivíduos agirem de modo semelhante não é, portanto, a “renda”, mas a sua
construção afetiva e pré-reflexiva montada por uma segunda natureza comum que
tende a fazer com que toda uma percepção do mundo seja quase que magicamente
compartilhada sem qualquer intervenção de intenções e escolhas conscientes. Esse
acordo nunca explicitado [...] só pode ser adequadamente percebido enquanto acordo
pelos seus “resultados práticos” (SOUZA, 2011, p.408 – grifo nosso).
Tendo como referência o conceito de “classe social” adotado por Souza (2011), pode-
se pressupor que os percursos, estilos de vida e projeções sociais aspiradas pelos jovens
8
Para um aprofundamento a respeito do conceito de “classes sociais” nas ciências sociais e humanas consultar:
Carlos Silva, Manuel. Classes Sociais. Condição Objectiva, Identidade e Acção Colectiva, Vila Nova de
Famalicão, Edições Húmus, 2009.
44
residentes nas áreas classificáveis como periferia ou favelas situadas na RMBH são
fortemente condicionados pelas tensões e conflitos sociais que subjazem as relações de classe
no Brasil. A vida dura é uma condição histórica que define o lugar da “ralé” na sociedade,
seja como agricultores pobres no campo ou como favelados nas grandes cidades (SOUZA,
2010). Os conflitos sociais que emergem nas periferias e não em outros lugares, aponta a
profunda desigualdade social que demarca as experiências sociais nestes contextos. As
trajetórias juvenis nesta tese são atravessadas pelo crescimento da violência na periferia,
experiência de vida distinta das de jovens de classes médias e altas, como também, áreas
urbanas mais prósperas e valorizadas. A experiência juvenil investigada nesta tese é marcada
pelas relações e condição de classe estabelecida na recente sociedade brasileira urbana, e, ao
mesmo tempo, as trajetórias dos indivíduos não podem ser interpretadas como resultado
exclusivo das condições de existência. Neste sentido o texto prossegue com um debate sobre
como as trajetórias de vida são interpretadas à luz das teorias sociais que privilegiam a
capacidade da ação individual frente à sua sociedade de origem a partir da qual aprendeu a
orientar seus modos de agir, de pensar, de ser e de estar no mundo.
de risco envolvido na experiência de vida dos jovens que entrevistei? Não há como mensurar
tudo isso. Ainda assim é preciso ter como referência que na periferia a incerteza sobre o
futuro apresenta-se relacionada também ao risco de vitimização pela violência.
A questão para ter-se em mente é a especificidade da “ação reflexiva” (GIDDENS,
2000) na periferia perante os “sistemas de disposições permanentes” (BOURDIEU, 2000)
edificado nas relações intergeracionais e ao longo de percursos de vida já traçados pelos
jovens face ao contexto de “modernidade radicalizada”. Onde o indivíduo é representado
como agente ou sujeito supostamente mais disposto que em tempos anteriores da história
humana a – como sugere o sentido bourdiano do termo – recorrer a uma prática ou ação
reflexiva (GIDDENS, 2000). Nesta perspectiva a reflexividade é tida como uma forma
privilegiada de estruturação da ação dos indivíduos9. De acordo com este autor a
“reflexividade” pode ser concebida também como resultado da relação entre “poder” e
“ação”, a “agência”, compreendida enquanto capacidade autônoma que os indivíduos
possuem de agir sobre a reprodução do sistema social. Ao mesmo tempo, frente aos sistemas
de estratificação das sociedades, a capacidade de responder reflexivamente às situações de
risco depende do acesso que os indivíduos dispõem em acessar informações, comunicar-se e
deslocar-se no espaço social que Giddens (1989, p.45) denomina por carga capacitante da
ação.
A seu modo, Giddens (1989; 1991), retoma a perspectiva weberiana ao conceber as
instituições sociais como resultado da ação de indivíduos e, assim, põe em evidência a
agência humana enquanto elemento de análise privilegiado para a compreensão do social na
contemporaneidade. Neste prisma considerar-se-á que os indivíduos produzem suas ações nas
instituições não apenas a partir das regras e condutas socialmente associadas a elas, e sim,
segundo seus interesses, visões de mundo e aspirações construídas socialmente. As relações
aqui dizem respeito ao envolvimento dos indivíduos entre si e com as instituições, ambos
responsáveis por lhes proporcionar existência social. Para dar conta da complexidade
representada pelo conceito de sociedade, Giddens propõe uma série de variações do conceito
de ação reflexiva que expressam seus diferentes tipos de reflexividade exercidos em
sociedade10.
9
Para Giddens, “todo ser humano é reflexivo no sentido de que pensar a respeito do que se faz é parte integrante
do ato de fazer, seja conscientemente ou no plano da consciência prática. A reflexividade social se refere a um
mundo que é cada vez mais constituído de informação, e não de modos preestabelecidos de conduta. É como
vivemos depois que nos afastamos da tradição e da natureza, por termos que tomar tantas decisões
prospectivas” (2000, p.87).
10
Giddens (1991) a partir de diversas categorias diferencia tipos ou formas de ação reflexiva expressos na
“sociedade radicalizada” tais como reflexividade da sociedade, reflexividade social, reflexividade
47
modo que a contemporaneidade produziu novas formas de relações sociais fundamentadas nas
noções de “risco” e “confiança”.
Embora os estilos de vida sejam relacionados às condições de existência, normas e
expectativas sociais, decorrem também de exercícios reflexivos desenvolvidos pelos sujeitos,
no sentido de darem forma a uma determinada narrativa de autoidentidade, a uma
determinada idealização de si. Por seu turno, os projetos de vida são elaborados como uma
espécie de busca por aproximação a um estilo de vida idealizado que, em alguns casos,
corresponde também a uma concepção idealizada que o indivíduo projeta de si mesmo, neste
caso, orientada para o futuro, tendo em conta o horizonte de possibilidades socialmente
estabelecido, sem por ele ser determinado.
Na tese de Giddens (1989), os agentes sociais parecem possuir, nas sociedades da
modernidade radicalizada, cada vez mais informações, orientações reflexivas e disposições
para atuar sobre as condições de existência em que se encontram. Mas ao mesmo tempo, a
ação dependerá da capacidade e do poder que os indivíduos possuem para criar uma
“diferença” em relação ao estado de coisas ou ao curso de eventos preexistentes (GIDDENS,
1989). Novamente, a partir da noção de “agência”, indivíduo e estrutura confrontam-se a
partir de limites, muitas vezes quase intransponíveis, que estabelecem parâmetros sobre os
desenhos, as formas e os sentidos sociais esperados/projetados para as trajetórias de vida,
conforme sua condição ou situação de classe na sociedade.
Outros aspectos sociais permeiam a construção das narrativas realizadas pelos sujeitos
sobre si mesmos e sobre suas experiências no mundo, afetando a relação intersubjetiva
envolvida na pesquisa de campo - é o caso da fase de vida na qual o indivíduo se situa -
aspecto especialmente relevante para o presente estudo. Tal condição social pode ser
facilmente observada na sociedade, já estando relativamente consolidadas no senso comum,
de modo que as pessoas não estão livres dos constrangimentos sociais relativos à
estratificação etária da sociedade em que vivem. Os indivíduos ocupam status diferentes na
sociedade em função da variável “anos de idade” que, de certo modo, traduz-se como “tempo
de vida”. Ao longo do “tempo de vida” os indivíduos agem, realizam trânsitos e percursos
sociais, desenvolvem maneiras de agir perante os processos de reprodução social. Espera-se
que essas maneiras sejam relativamente coerentes com a parcela que possuem de “tempo de
vida”. A idade determina o papel desempenhado pelos indivíduos na divisão social do
49
11
Às idades da vida sempre estiveram associadas a normatividades sociais que representam demarcadores, ritos
de passagem, entre as várias fases da vida (PAIS, 2010).
50
representam marcos ou referências sociais como ritos que conferem aos indivíduos mudanças
de estatuto social.
Se as idades da vida estão associadas a normatividades sociais, estabelecidas
socialmente no que se refere às sequências das várias fases da vida como dos marcadores de
passagem entre elas, a noção de curso de vida tem como referência tanto as dimensões
individuais como as geracionais envolvidas nas trajetórias sociais dos indivíduos.
Considerando as premissas de Bourdieu (2000), nas sociedades os comportamentos sociais
esperados dos indivíduos são relativamente estruturados em torno de normatividades
estabelecidas pelo habitus e a organização do curso de vida em torno das fases representa uma
forma de expressão da “estrutura” sobre estruturação das experiências sociais dos indivíduos.
Embora as trajetórias não sejam determinadas por normas sociais, os comportamentos
individuais o são. Assim, os comportamentos são informados pelas normas que estruturam
socialmente ritos, expectativas e responsabilidades enquanto fases da vida (PAIS, 1991;
2010). Estas, por sua vez, demarcam as diferenças de participação social entre gerações
demográficas- passíveis de identificação por meio de agregados de dados estatísticos sobre
indivíduos, cujas idades situam-se dentro de certos limites culturalmente definidos como tais.
Ainda segundo Pais, as sociedades apresentam uma grande diversidade de condições
históricas, econômicas e culturais envolvidas na determinação das fronteiras estabelecidas
entre as fases da vida.
Reitera-se que as categorias etárias correspondem a construções sociais e não podem
ser reduzidas a meras variáveis biológicas em si mesmas. Deste modo, a noção de trajetória
aqui empregada afina-se à ideia de curso de vida ao invés da de ciclo de vida, esta última faz
referência a uma dinâmica biológica e previsível. Os cursos de vida referem-se à “[...]
trajetória social do indivíduo ao longo de sua vida, metaforicamente, ordenada através da
idade” (FERREIRA; NUNES, 2010, p.39). Em acordo com estes autores, o sentido
biologizante pressupõe o ordenamento da vida por meio de uma temporalidade cíclica e linear
projetada sobre a experiência juvenil e, ao mesmo, tempo reconhece que a idade não é um
atributo per se determinante desta.
Em articulação com o que foi dito no bloco anterior, a condição juvenil representa
uma fase da vida sociologicamente notável na sociedade da “modernidade radicalizada”
(GIDDENS, 1991); trata-se de uma fase intermediária ao considerarmos o curso de vida do
nascimento à morte, ou uma fase transitória, quando situada entre as fases “infantil” e
“adulta” (PAIS, 2010). Tendo como referência as premissas supracitadas, a condição juvenil
apresenta-se enquanto fase transitória entre fases. Arvora-se assim, numa condição peculiar
51
Além do mais, reconhece-se a juventude como uma etapa crucial da vida individual e
social, “[...] onde se joga toda uma parte dos modos e vias da reprodução económica, social e
cultural de uma sociedade” (PAIS, 1991, p. 946). Nessa perspectiva a “juventude” não
representa apenas um processo de formação individual/coletiva no sentido da pessoa vir a
12
A leitura do conjunto de leis (Artigo 227 da Constituição Brasileira) e estatutos (ECA, E. do Idoso, E. da
Juventude) indicam a fase adulta como um período de autonomia e de auto-responsabilização por seus
próprios atos, representando em tese a condição na qual o indivíduo possui um estatuto social distinto dos
demais. O jovem, por outro lado, representaria uma condição instável, de fronteira, entre o mundo infantil e o
mundo adulto. A juventude tem sido compreendida como fase de transição que, cada vez mais, nas sociedades
contemporâneas, assume um sentido de incerteza e de tensão em relação às possibilidades de vida adulta
(PAIS, 2009).
53
O roteiro teve por objetivo orientar a observação do espaço para aspectos definidos à
priori e que pudessem contribuir para a leitura da paisagem urbana e social da periferia
pesquisada. O roteiro foi organizado a partir dos seguintes tópicos: 1º. Aspectos físicos
(topografia, presença de córregos ou riachos; material/ acabamento externo das construções e
vias públicas; vegetação); 2º. Equipamentos/ Instituições (praças, campos de futebol, centro
cultural, posto de saúde, escolas, igrejas, assistência social, ONGs, associação de moradores,
delegacias, batalhões, postos da polícia militar e comércio local); 3º. Mobilidade Urbana
(aspectos relacionados à questão do transporte público: horário dos ônibus e uso e percepção
dos moradores a respeito); 4º. Vida Social (espaços que concentram interações juvenis,
centros de vida social no bairro: rua, igreja, bar, praça, entre outros; em diferentes turnos -
manhã, tarde, noite - dia de semana/final de semana). Por fim, a observação considerou
também a percepção corpórea sensorial, através da qual procurei atentar ao aroma dos espaços
e à dimensão sonora - barulhos, zonas de poluição sonora, zonas de silêncio.
Este capítulo apresenta breves notas sobre a expansão urbana brasileira ao longo dos
últimos 40 anos na RMBH, objetivando situar transformações e permanências observadas nos
padrões de ocupação demográfica e de desenvolvimento econômico e urbano na região. O
texto aborda aspectos relativos aos impactos das políticas de metropolização para a
reconfiguração da desigualdade social brasileira, tendo como foco a ocupação do espaço pelas
populações e sua relação com o desenvolvimento das atividades econômicas e, ao mesmo
tempo, permitindo a contextualização do ambiente macrossocial e história recente, em meio
ao qual foram edificadas as trajetórias juvenis apresentadas na tese. O capítulo seguinte
apresenta o contexto local da pesquisa de campo, o bairro Estrela D’alva, por meio de uma
retrospectiva dos processos da ocupação do bairro até o momento da pesquisa de campo
levando em consideração dados censitários e outros documentos, bem como entrevistas com
moradores mais antigos, contrapostas com descrições dos jovens e de outros agentes, como
lideranças religiosas e comunitárias.
3.1 Notas gerais sobre urbanização e a metropolização: o caso brasileiro visto da Região
Metropolitana de Belo Horizonte
Apesar de já existir uma rede de cidades desde o período colonial, somente em 1970 o
Brasil alcançou superioridade de população vivendo em áreas urbanas em relação às áreas
rurais, 55,9% (IBGE, 2014). A expansão de grandes aglomerações urbanas, que já ocorria
desde 1940, foi mais intensa no país entre as décadas de 1960 e 1980. Estima-se que neste
período cerca de 43 milhões de pessoas saíram do campo em direção às cidades, incluído o
efeito indireto da migração representado pelos filhos de migrantes rurais nascidos em
contexto urbano (BRITO, 2006). Tratou-se de um período de consolidação de uma política de
desenvolvimento econômico que privilegiou a formação de estruturas produtivas urbanas e
industriais articuladas por meio de uma rede urbana altamente polarizada e hierarquizada
pelas aglomerações metropolitanas (BITOUN; MIRANDA, 2009). Data desta época a
institucionalização política dos territórios metropolitanos por meio da Lei Complementar nº.
14, de 1973, que estabeleceu a delimitação de oito regiões metropolitanas (RM): São Paulo,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém. A RM do Rio de
Janeiro foi institucionalizada em 1974 a partir da Lei Complementar nº. 20, na fusão do antigo
Estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro. Destas nove RMs, três (SP, RJ e BH)
58
situavam-se na macrorregião Sudeste do país, duas na macrorregião Sul (POA e CTBA), três
na Nordeste (SSA, REC, FOR), uma na Norte (BEL) e nenhuma na macrorregião Centro-
Oeste.
A expansão das estruturas econômicas metropolitanas foi mais intensa nas RM’s
situadas na macrorregião Sudeste (Imagem 01), antigos polos econômicos de produção
cafeeira e agropecuária que passaram a polarizar os novos setores da economia brasileira
urbana (BRITO, 2006). Essa polarização acentuou o desequilíbrio econômico já existente
entre as grandes regiões brasileiras e, em 1970 a participação relativa da região Sudeste para o
Produto Interno Bruto (PIB) nacional era de 62,7%. Enquanto as macrorregiões Sul, Norte,
Nordeste e Centro Oeste apresentavam os seguintes valores respectivamente 16,7%, 2,3%,
11,7%, e 2,57%. Esse quadro sofreu poucas alterações ao longo das décadas seguintes, com
suave tendência de desconcentração. Em 2010 a região Sudeste contribuiu com 56,4% do PIB
e as demais regiões com 16,6%, 5,0%, 13,1%, e, 8,9%, consecutivamente (IBGE, 2014). Esse
desequilíbrio evidenciou-se também na distribuição demográfica no território urbano, as
RM’s da região Sudeste eram, e ainda são, as mais populosas. Em 1970 residiam cerca de
8.113.873, 6.879.183 e 1.619.792 habitantes nas RM’s de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
59
13
Segundo dados censitários, em 1960 os 10% mais ricos detinham 39,6% da renda nacional enquanto os 40%
mais pobres, 11,3%. Em 1980 esses valores eram 51% e 8,8%, respectivamente (IBGE, 1990).
14
De acordo com a perspectiva de Bourdieu (2007) as estruturas produtivas metropolitanas podem ser
interpretadas como socialmente seletivas, nas quais são forjadas ideologias sobre a igualdade de
oportunidades.
60
eles nas metrópoles, principalmente para morar em espaços dotados de infraestrutura urbana e
de serviços (CALDEIRA, 1984; CARDOSO, 1978; DURHAM, 1978; RIBEIRO, 2000). Essa
conjuntura pressionou parte dessas populações a se deslocar para as zonas pouco urbanizadas
e de escassa oferta de serviços, situadas nas bordas do núcleo metropolitano, áreas que foram
denominadas como periferias. Tal conjuntura, macrossocial, e suas dinâmicas econômicas,
políticas e culturais contribuem para a compreensão da morfologia social metropolitana e dos
tipos de fragmentação entre relações dos grupos socialmente distintos em seu território.
Em relação à organização territorial das relações sociais metropolitanas, prevaleceram,
entre as abordagens produzidas até a década de 1990, enfoques que identificaram-na a partir
de um padrão de segregação fundamentado na dicotomia centro e periferia (CALDEIRA,
2000; VALLADARES, 2000). Este padrão não era o único percebido pelos autores, e sim
aquele apresentado como mais significativo para a compreensão socioespacial das áreas que
formariam as grandes aglomerações urbanas. Na paisagem urbana da RMBH, por exemplo,
essa dicotomia centro-periferia materializou-se, a partir de políticas e dinâmicas
mercadológicas, por meio de padrões urbanísticos distintos entre os espaços centrais e os
periféricos. Nas áreas centrais a urbanização seguiu padrões “modernos”, internacionais, e
teve seu adensamento estruturado por edificações verticalizadas, enquanto, nas periferias
predominou uma urbanização “popular”, com edificações horizontalizadas, resultante,
principalmente, da “autoconstrução” (MENDONÇA, 2002)15.
A fragmentação da vida social notada no espaço urbano remonta à gênese da cidade
que foi concebida por aristocracias regionais e nacionais para substituir Ouro Preto como a
Nova Capital do Estado de Minas Gerais (REIS, 1994). A cidade de Belo Horizonte não
resulta de fenômeno natural, sua construção envolveu capitais e agentes políticos e sua
ocupação foi determinada por seus interesses, de modo que as piores ou melhores condições
de moradia estiveram relacionadas ao status sociocupacional dos indivíduos residentes e da
origem e posição social destes na estrutura política estabelecida. Em 1897, ano de sua
inauguração, a cidade já possuía duas favelas (GUIMARÃES, 1991). A favelização foi uma
alternativa habitacional encontrada por parcelas expressivas dos operários da construção civil
responsáveis pela edificação urbana de Belo Horizonte. Desde tal período prevaleceu uma
tendência de apartamento dos espaços de moradia dos grupos subalternos da estratificação
social em áreas distantes e/ou de pior qualidade urbana, rotuladas socialmente como
15
Segundo está autora, “a expansão do mercado imobiliário capitalista é significativa durante os anos oitenta e
constituiu importante mecanismo de mudança na estrutura socioespacial da região” (MENDONÇA, 2002,
p.06).
61
16
Definição adotada pelo Censo Demográfico de 2010 para identificação das moradias situadas em condomínios
fechados. Em 2010 na havia em algumas municipalidades uma média superior que a metropolitana em relação
a presença desse tipo de moradia (2,4% do total de domicílios): Belo Horizonte (3,4%), Ibirité (3,4%),
Brumadinho (4,8%) e Nova Lima (4,5%) (MENDONÇA; SOUZA; BORGES, 2015).
17
Duas mineradoras, Anglo Gold e Minerações Brasileiras Reunidas- MBR, detinham juntas 46% do território
municipal de Nova Lima, o equivalente a uma área de 210 km2 (ANDRADE, 2005).
63
18
Não reproduzirei aqui o debate já realizado nas ciências sociais sobre os conceitos de marginalidade e
exclusão, em Marques (2010), no capítulo 3, há um excelente debate sobre o tema.
64
mercado imobiliário e nem da regulação fundiária urbana exercida pelas políticas estatais;
ambas, foram importantes na determinação do “lugar dos pobres” na cidade. Os espaços nos
quais tais populações foram fixadas não se configuraram como áreas socialmente
homogêneas, se comparadas às das classes médias e altas, nem isoladas, como pressupõe uma
leitura rasa do conceito de “segregação”. Representam áreas integradas à rede urbana cujas
populações são diversas em atributos e em possibilidades de vida (CALDEIRA, 2000;
FELTRAN, 2010; MENDONÇA; MARINHO, 2015).
21
Retirado de htttp://imagens.google.com.br <favela e parabólicas>
67
22
A Imagem 2, ilustra o argumento de Telles (1993), no qual o consumo de bens sofisticados como visto pelas
antenas parabólicas em contraste com a precariedade das condições de moradia, uma contradição entre
ausência do direito habitacional e estilo de vida.
68
23
A reestruturação produtiva, interpretada pela literatura brasileira como transição do modelo produtivo
industrial fordista para o toyotista que tornou o mercado mais competitivo, aumentou a exigência de
qualificações e acentuou o desemprego e a pobreza urbana, sendo os jovens a categoria mais afetada por essas
transformações. Sobre a percepção dos trabalhadores sobre a reestruturação produtiva no Brasil. Ver:
Lombardi (1997).
69
24
Após 1988, de um modo geral, a criação ou a ampliação dos territórios RM’s não levou em consideração as
necessidades de gestão política, intrínsecas à escala metropolitana (BRITO, 2006).
25
O “grau de integração” indica níveis municipais de integração metropolitana a partir da análise multivariada
entre as seguintes variáveis: concentração e distribuição demográfica, produto interno bruto, rendimentos e
fluxos de população por meio de movimentos pendulares com destino ao trabalho e/ou estudo, a presença de
infraestruturas como portos e aeroportos (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2012).
70
Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza,
Campinas, Manaus, Vitória, Goiânia, Belém e Florianópolis. Apesar da relevância da escala
metropolitana, como atestam os dados de 2010, “escala fundamental da questão social
brasileira”, as RMs mantiveram-se “órfãs de interesse político” (RIBEIRO, 2004, p.07),
situação que Maricato (2011) descreveu como “metrópoles desgovernadas”.
A expansão urbana, componente fundamental das mudanças estruturais na sociedade
brasileira, não se trata de um processo estritamente demográfico, as metrópoles enquanto
lócus das atividades econômicas mais relevantes transformaram-se em difusoras dos novos
padrões de relações sociais, de produção e de estilos de vida (BRITO; SOUZA, 2005). Ao
mesmo tempo, a expansão metropolitana representa um desafio relativamente recente na
história brasileira e que se consolidou a partir de uma transição demográfica abrupta e pouco
planejada em relação aos seus impactos sociais (SANTOS, 2005; MARICATO, 2003a;
RIBEIRO, 2004). O que se observa até então é que, nas RMs, a desigualdade acentuou-se e
reconfigurou-se, e o conflito entre classes fundamentou-se em culpar as populações em
situação de pobreza pela “desordem urbana”, pelos problemas sanitários, morais e de
violência (RIBEIRO, 2004). Ressalta-se que, em relação à violência, nos casos mais extremos
como os homicídios juvenis, as periferias e favelas, não todas obviamente, concentraram a
maior parcela dos casos registrados pelos sistemas de saúde e de segurança pública
(MARINHO, 2012; ANDRADE; SOUZA; FREIRE, 2013). Feita tais considerações, o texto
prossegue a discussão relativa à metropolização brasileira a partir de algumas notas sobre a
expansão urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
26
Sobre as mudanças da composição populacional e processos de transição demográfica da RMBH, consultar:
Fernandes e Canettieri em “A Região Metropolitana de Belo Horizonte e a transição demográfica” (2015).
71
em 1995, eram 20, em 2000, 33 e, em 2002 atingiu sua composição atual com o total de 34
municipalidades, correspondentes a uma área de 9.467.797 km2 (Quadro 01).
Neves, Santa Luzia, São José da Lapa, Vespasiano e Esmeraldas; d) Vetor 4. Norte: Baldim,
Jaboticatubas, Matozinhos, Capim Branco, Pedro Leopoldo, Confins, Lagoa Santa; e) Vetor 5.
Leste: Sabará, Caeté, Taquaraçu e Nova União; f) Vetor 6. Sul: Nova Lima, Brumadinho e
Raposos, Rio Acima; g) Vetor 7. Sudoeste: Florestal, Juatuba, Mateus Leme, Igarapé, São
Joaquim de Bicas, Itatiaiçu, Rio Manso e Itaguara. (Imagem 05).
de Belo Horizonte (Gráfico 1). Essa dinâmica foi marcada pela redução dos fluxos
migratórios, queda da taxa de fecundidade (SOUZA, 2008), mas também pelo próprio
processo de reacomodação territorial da população que inicialmente tentou residir em Belo
Horizonte e depois migrou para outros municípios. A RMBH atraiu, predominantemente,
fluxos intraestaduais de migrantes com baixos níveis de rendimento e de escolaridade que
tentavam fixar residência em Belo Horizonte (SOUZA, 2008).
3.000.000
2.500.000
2.000.000
População
1.500.000
BH
1.000.000
500.000
Soma dos
outros munic.
0 metropolitanos.
1.940 1.950 1.960 1.970 1.980 1.991 2.000 2.010
Ano Censitário
Fonte: (IBGE, 2014) Censos Demográficos: 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010.
Elaborado pelo autor.
Tabela 1- Variação (%) populacional por períodos intercensitários e população total dos
municípios mais afetados pela metropolização e da RMBH - 1980 a 2010
É relevante destacar que a acomodação residencial das populações migrantes foi então
marcada por diversos trânsitos, envolveu mudanças de local de moradia entre bairros,
municípios, favelas ou periferias (SOUZA, 2008). Esse trânsito explica em parte os elevados
níveis de incremento populacional observados entre 1980 e 1991 em Contagem, que cresceu
60,3%, e em Betim 103,0% (Tabela 01). Movimento conflagrado em um cenário de
supervalorização dos preços dos alugueis e de imóveis em Belo Horizonte e de crescente
volume de oferta de terrenos a preços relativamente baixos situados nas áreas periféricas onde
a população pobre abriu novas frentes de expansão da área metropolitana. Esse processo foi
viabilizado político-territorialmente por uma consonância entre interesses do mercado
imobiliário e as chamadas políticas “públicas” de cunho habitacional. Neste período, como
visto recentemente, o crédito imobiliário destinado à população com baixos níveis de
rendimento, bem como pela construção de conjuntos habitacionais e distribuição dos sistemas
de transporte, viabilizou a expansão das zonas periféricas, como expresso por Mendonça:
A ocupação das fronteiras de Contagem com Belo Horizonte, onde está situado o
Estrela D’alva, foi impulsionada pela necessidade de “sair do aluguel” que atingia grande
79
parte da população cujos rendimentos alcançados pelo trabalho eram irrisórios perante os
valores estabelecidos pelas dinâmicas de especulação imobiliária ratificada pelo Estado
(MENDONÇA, 2002). O território metropolitano expandiu-se prioritariamente pela ocupação
daqueles que não podiam optar em morar em Belo Horizonte, exceto se em favelas, e tiveram
que recorrer à compra de terrenos em áreas não urbanizadas e pouco povoadas situadas em
municípios de fronteira com Belo Horizonte. As pessoas que, nas décadas de 1980 e 1990
ocuparam a região destacada na Imagem 06, podem ser reconhecidas como pioneiras na
abertura de fronteiras metropolitanas, que na prática referiam-se a espaços desprovidos de
infraestrutura e quase que isolados do acesso aos sistemas de mobilidade urbana.
O isolamento e carência de infraestrutura refletiu-se na arquitetura e na urbanização
dessas áreas, muitas vezes reproduzindo paisagens classificáveis como assentamentos
precários27ou “aglomerados subnormais”28. Este tipo de assentamento encontra-se com mais
frequência entre encostas próximas aos bairros ocupados por classes média e alta em Belo
Horizonte, como nas áreas conurbadas dos municípios metropolitanos (COSTA, 1994). Entre,
2000 e 2010, 11,6% dos novos domicílios construídos na RMBH foram caracterizados pelo
IBGE como “subnormais”. Segundo o IBGE (2015), em 2010, somente no município de Belo
Horizonte 13% da população moravam em alguma das 169 áreas qualificadas como favelas.
A questão habitacional na RMBH evidenciou uma notável contradição na produção
das políticas estatais. Se, estas foram responsáveis por gerar incentivos a instalação de
indústrias e garantir a integração dos principais setores da economia metropolitana aos
mercados nacionais e estrangeiros, na contramão, pouco contribuiu para possibilitar a
equidade de acesso à moradia e aos serviços urbanos às suas populações residentes. Na
RMBH conforme atestado em diversos estudos com diferentes abordagens – Mendonça
(2002), Azevedo e Mares Guia (2000), Costa (1994), Monte-Mór (1994), Guimarães (1991),
Souza (2008) – as políticas habitacionais e urbanas tenderam a demarcar no espaço as
diferenças entre classes sociais e, ao mesmo tempo, se mostraram alinhadas às dinâmicas
especulativas sobre o uso do solo urbano. Enfim, as ações estatais contribuíram para gerar no
espaço metropolitano uma estrutura social assimétrica, reproduziu paisagens urbanas que
27
Segundo definição do Ministério das Cidades (2010, p.9) os assentamentos precários referem-se ao “conjunto
de assentamentos urbanos inadequados ocupados por moradores de baixa renda, incluindo as tipologias
tradicionalmente utilizadas pelas políticas públicas de habitação, tais como cortiços, loteamentos irregulares de
periferia, favelas e assemelhados, bem como os conjuntos habitacionais que se acham degradados”.
28
O IBGE (2015) considera por aglomerado subnormal o “conjunto de, no mínimo, 51 unidades habitacionais
(barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até
período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma
desordenada e densa.”.
80
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de Diniz e Andrade, 2015.
Tabela 2 - Faixas de rendimento domiciliar per capta, Belo Horizonte, Contagem, Betim,
demais municípios metropolitanos e RMBH -2010
Espaços Faixas de domiciliar per capta em salários mínimos – 2010
metropolitanos
de referência Sem
rendimento
Até 1/4 > 1/4 até ½ > 1/2 até 1 >1 até 2 > 2 até 5 > 5 a 10 > 10 Total
Demais 31 37.145 82.589 232.744 433.667 378.163 245.855 78.998 33.146 1.522.307
municípios
da RM 2,4% 5,4% 15,3% 28,5% 24,8% 16,20% 5,2% 2,2% 100,0%
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de IBGE, 2014 – Censo Demográfico 2010.
As faixas de rendimento domiciliar per capta (Tabela 02) expõe que, a faixa de
rendimentos de “até ¼” de salário mínimo29 representou os rendimentos alcançados por
11,4% dos habitantes metropolitanos, 14,1% dos residentes em Belo Horizonte, 7,3%da
população de Contagem, 15,9% em Betim e 7,8% das pessoas residentes nos demais 31
municípios metropolitanos. As populações com tais faixas de rendimento enquadram-se na
definição de “extrema pobreza” e de “pobreza” adotadas pelas políticas sociais do Ministério
do Desenvolvimento Social (2015). Já as faixas de “> 2 até 5” e” > 5 a 10” – correspondente a
29
No mês de Julho de 2010, período de referência do Censo Demográfico de 2010, o valor do salário mínimo era
de R$510,00, por outro lado, segundo o DIEESE (2015) o valor do salário mínimo, necessário para quitar o
custo de vida em 2010, deveria ser de R$ 2.011,03, quase quatro vezes o valor real do salário mínimo.
82
valores aproximados aos definidos por Neri (2008) para classificação de uma suposta “nova
classe média”30 brasileira – encontramos o seguinte quadro: 14,7% da população da RMBH,
9% da população de Contagem, 6,8% da população de Betim e, 21,4% da população dos
demais 31 municípios metropolitanos. Quanto às faixas que agregam maior volume de
rendimentos,“> 10”, esta atingiu apenas 2,0% da população metropolitana residente, sendo
0,6% da de Belo Horizonte, 8,0% da de Contagem, 0,3% da de Betim e, 2,2% do conjunto dos
demais 31 municípios metropolitanos (Tabela 02).
O espaço metropolitano vem se estruturando, desde o início de sua expansão, segundo
a lógica centro-periferia, as áreas com menores níveis de rendimento tenderam a serem mais
distantes das áreas centrais de Belo Horizonte, das de Contagem e das de Betim. A
desigualdade de acesso à renda reflete o lugar socialmente ocupado pelas pessoas em
território metropolitano. Nas áreas centrais da zona urbana metropolitana e no Vetor Sul, por
exemplo, a proporção de famílias com rendimento domiciliar per capta de até um salário
mínimo era relativamente menor em comparação as áreas periféricas. Nessas áreas a faixa de
rendimento predominante situou-se na fronteira da condição de pobreza conforme classifica o
MDS (2015). A seguir uma forma de representação dos níveis de rendimento per capta, bem
como sua distribuição espacial entre os habitantes metropolitanos no território da RMBH
(Imagem 07).
30
Longe de se tratar de uma definição sociológica de classe social, o termo utilizado pelo autor refere-se a uma
identificação das populações segundo níveis de rendimento mensal domiciliar, segundo médias estatísticas da
distribuição de rendimento por faixas. Há uma série de trabalhos que discutem o sentido social dessa “nova
classe média” apresentado por Neri (2008) como, por exemplo, Souza (2012) que reconhece esse grupo como
uma nova configuração da classe trabalhadora, chamando-os por “batalhadores”.
83
Imagem 7- Distribuição percentual das famílias com até um salário mínimo – RMBH -
2010
31
De um modo geral, a literatura reconhece a migração ou movimento pendular como “[...] deslocamentos entre
o município de residência e outros municípios, com finalidade específica de trabalho e estudo.” (MOURA;
CASTELLO BRANCO; FIRKOWSKI, 2005, p.124).
85
2015).
A pendularidade contribui para gerar na metrópole a sensação de constante
movimento, proporcionado pelo vai e vem de pessoas que rotineiramente transitam longos
percursos da casa até o trabalho. Em média, a população residente nos municípios da periferia
que declarou trabalhar no polo metropolitano levava em torno de 1,13 horas para cumprir
cada percurso de ida ou de volta do trabalho ou escola para casa ou vice-versa (LOBO;
CARDOSO; MAGALHÃES, 2013). Os dados indicaram que os movimentos pendulares são
mais significativos para um conjunto de habitantes específicos que residem em áreas
periféricas adensadas e, ao mesmo tempo, situadas mais distantes da localização dos postos de
trabalho, e não é uma dinâmica disseminada com intensidade igual em todo o território
(Imagem 08).
O principal agente da expansão dos serviços de ônibus não foi o governo, mas
empresários particulares, a maioria dos quais também eram especuladores
imobiliários. [...] Ele tornou possível vender lotes no meio do mato e ajudou a criar
um tipo peculiar de espaço urbano no qual áreas ocupadas e vazias intercalavam-se
aleatoriamente por áreas vastas. Não havia nenhum planejamento prévio e as regiões
ocupadas eram aquelas nas quais os especuladores tinham decidido investir. Sua
estratégia era deixar áreas vazias no meio das ocupadas para que fossem colocadas
no mercado mais tarde por preços mais altos. [...] A urbanização da periferia foi
deixada principalmente para a iniciativa privada, com pouco controle ou ajuda das
autoridades governamentais (CALDEIRA, 2000, p.219-220).
pelo alto investimento de custo e de tempo que a baixa integração entre sistemas de trilhos e
viários produz. A RMBH conta somente com uma linha de metrô para atender mais de cinco
milhões de pessoas residentes, fora a população flutuante, dispersas em uma área de
9.467.797 km². Essa limitação para o atendimento das demandas de deslocamento atinge com
mais intensidade os grupos de menor acesso aos rendimentos monetários e prestígio social
(MENDONÇA; MARINHO, 2015): os segmentos da população mais pobres, geralmente
situados em espaços menos integrados ao sistema de transporte coletivo, e que possuem o
ônibus como principal alternativa (NAZÁRIO, 2015). Pode-se afirmar que, a escassez de
integração com o transporte de trilhos produz, inevitavelmente, a saturação viária e pressiona
os habitantes a buscar alternativas autônomas de transporte individual para o atendimento de
suas demandas cotidianas e coletivas.
Segundo o “Relatório Metrópoles em Números: crescimento da frota de automóveis e
motocicletas nas metrópoles brasileiras 2001/2011” (OBSERVATÓRIO DAS
METRÓPOLES; INCT 2012), Belo Horizonte foi a RM que registrou maior crescimento
relativo no número de automóveis destinados ao transporte de passageiros entre 2001 e 2011.
No primeiro ano da série a frota registrada na RMBH era de 841.060 unidades, em 2012 eram
1.880.608 automóveis, média de 94.504 novos veículos a cada ano. A frota de motocicletas,
por exemplo, passou de 89.394, em 2001, para mais de 368 mil em 2011, registrando um
crescimento de 312,5%. Por outro lado, neste mesmo período, a população de
aproximadamente cinco milhões de pessoas residentes, sem contar a população flutuante,
possuía, como opção de transporte apenas uma linha de metrô de superfície conjugada a um
sistema fragmentado de transporte por meio de ônibus. A desarticulação social percebida
entre o grande contingente populacional e o território metropolitano resultou, também, das
políticas que historicamente foram produzidas na RM para tal.
Em Azevedo e Mares Guia (2000), por exemplo, propõe-se uma análise sobre a gestão
do transporte na região metropolitana de Belo Horizonte a partir de um recorte temporal de
1978 a 1998. Neste período, os autores identificaram contextos políticos e administrativos que
travavam a possibilidade de materialização de uma estrutura de transportes coletivos que
integrasse população e território metropolitano. Ainda segundo o estudo realizado pelos
autores, a gestão política dos sistemas de transportes municipais e intermunicipais,
centralizada na esfera federal até 1988, foi consecutivamente transferida aos estados e aos
municípios, sem com isso, prever alternativas institucionais para o gerenciamento da
expansão e da consolidação destes sistemas, necessárias para arcar com as necessidades
impostas pela vida metropolitana. Tal constatação pode ser empiricamente notada por
89
qualquer pessoa que utiliza diariamente o descolamento por meio do transporte denominado
como público, principalmente o que realiza os itinerários mais longos/ demorados.
O fracasso da integração socioterritorial proporcionada pelos sistemas de transporte
coletivo metropolitano foi resultado alcançado por sucessivas políticas que envolveram a
criação e a extinção de instituições públicas destinadas ao gerenciamento do transporte das
pessoas residentes na RM (AZEVEDO; MARES GUIA, 2000). A ausência de consenso sobre
os problemas de mobilidade e de consolidação de projetos relevantes para dar respostas às
demandas metropolitanas foi produto da gestão política deste sistema, que esteve polarizada
em esferas privadas e diretamente relacionadas às empresas permissionárias do serviço de
transporte coletivo da RMBH:
32
A autora comparou áreas internas dos municípios metropolitanos, 189 áreas de ponderação que compõe a
RMBH segundo os critérios de divisão espacial e representação amostral do Censo Demográfico de 2010,
Nazário (2015) propõe uma análise multivariada representada pelo Índice de Bem-Estar Urbano – IBEU que
varia entre de 0 a 1, sendo que, quanto menor o valor menos bem estar urbano a área apresenta. O índice
abrange cinco dimensões da vida urbana: i) mobilidade, ii) condições ambientais, iii) condições habitacionais,
iv) atendimento de serviços coletivos e v) infraestrutura.
90
urbana variando entre 0,801 e 1,000 e, juntas, agregavam 36,2% da população residente na
RMBH. Por outro lado, 62 áreas (32,8% do total das 189) tiveram níveis ruins ou muito ruins
entre 0,001 a 0,700, onde residiam 27,4% da população da RM. As demais 70 áreas (37% do
território) apresentaram valores médios, de 0,701 a 0,800, e abrigavam 36,4% da população
metropolitana. Nem todos os habitantes metropolitanos eram confrontados com problemas de
acesso à mobilidade urbana, o que não representou um problema generalizado, e sim, afetou
mais os grupos sociais residentes nas periferias metropolitanas.
Os níveis ruins ou péssimos de acesso à mobilidade urbana situaram-se, sobretudo, em
áreas da periferia, sendo que, cerca de 20 delas situadas em municípios como Contagem,
Betim, Ribeirão das Neves, Santa Luzia Ibirité e Belo Horizonte. A autora realizou também
uma análise da composição do território metropolitano ao partir dos dados do IBEU- global
(Imagem 08) e identificou que os espaços localizados no município de Belo Horizonte,
sobretudo, nas áreas centrais, pericentrais e às situadas mais ao Vetor Sul. Principalmente,
tiveram melhores resultados em relação à qualidade de vida urbana.
As áreas cujos registros representavam situações piores de qualidade de vida urbana
situavam-se nos Vetores Oeste (Ibirité, Betim, Contagem) e Norte Central (Santa Luzia,
Vespasiano, Esmeraldas e Ribeirão das Neves). Por fim, a autora conclui:
A limitação dos dados censitários impede a identificação dos meios pelos quais
ocorrem os deslocamentos pendulares, se pelo transporte coletivo ou individual, bem como se
os deslocamentos são por outros motivos, além de trabalho e estudo. Se o acesso aos
transportes individuais cresceu, não se pode afirmar o mesmo em relação à evolução dos
sistemas de transportes coletivos metropolitanos (AZEVEDO; MARES GUIA, 2000). Tal
sistema apresentou-se insuficiente e pouco adequado às necessidades metropolitanas, ainda
que não se configure como um fenômeno generalizado, como exposto por Nazário (2015) por
meio do IBEU. Além da mobilidade, outros fatores associam-se à desigualdade de acesso à
qualidade de vida urbana, como a estratificação ocupacional altamente hierarquizada
observada na RMBH (MENDONÇA, 2002; MENDONÇA; MARINHO, 2015). Tal
91
Residir em uma área com melhor ou com pior qualidade de vida, mais ou menos
isolada do acesso ao transporte na RMBH, entre outras coisas, relacionou-se à posição
ocupada pelos indivíduos na estrutura produtiva metropolitana (MENDONÇA; MARINHO,
2015). Embora o endereço de residência não seja determinante da posição dos indivíduos na
estrutura produtiva, ele constitui uma relevante referência para identificar hierarquias sociais
92
A permanente urbanização dos espaços periféricos vai sendo configurada com uma
composição social predominantemente popular. Anuncia-se, entretanto, a norte, a
fragmentação socioespacial do território, com a formação de enclaves residenciais
de alta renda e áreas industriais de alta tecnologia, caracterizadas por mão de obra
especializada e padrão de consumo mais alto. Tudo indica que, mais uma vez,
mudanças iniciadas pela ação estatal vão gerar novas transformações na estrutura
socioespacial da metrópole (MENDONÇA; MARINHO, 2015, p.172).
93
A paisagem é um dos aspectos que mais evidenciam, por meio das estruturas materiais
construídas, o sistema de estratificação social. Composta por elementos físicos e humanos que
expressam disputas sociais, crenças e valores morais partilhados, a paisagem é objeto e agente
das dinâmicas em curso na sociedade (SANTOS, 1996). O conceito de paisagem na geografia
humana compreende tanto atributos dos lugares como das pessoas que lhe estão associados,
os elementos que caracterizam contextos sociais específicos, demarcam distinções de estilos
de vida e expressam as relações de poder na sociedade. O tema foi abordado por Bonameti
(2010) que buscou, por meio da compreensão de poder formulada por Michael Foucault e
Hobbes, identificar a relação entre paisagem urbana e poder enquanto estruturadores do
espaço da cidade. O referido autor enfatiza os significados e contribuições da arquitetura e
urbanismo neste processo de produção da paisagem urbana e como representação do poder
dos grupos a partir dos espaços construídos. A paisagem é lida como um elemento
demarcador das distinções e ao mesmo tempo um mecanismo de legitimação da posição
social dos indivíduos na sociedade.
O espaço urbano, muito mais que a “unidade espacial de reprodução da força de
trabalho” como defendeu Castells (1977), por meio de sua estética e composição material e
social, expressa representações que orientam as ações dos indivíduos e, assim, contribui para
a “naturalização” das relações sociais estabelecidas. A paisagem cumpre essa “função” ou
“papel” na estruturação da vida social, e é notável que os comportamentos humanos sejam
relativamente coerentes às paisagens sociais nas quais se inscrevem como sugere a teoria de
95
Imagem 11- Vista de uma Rua: Belvedere e Cidade Nova - Belo Horizonte - 2014
(ZALUAR, 1985).
Ao ter em conta as considerações supracitadas, as paisagens não se resumem à
imagem de elementos naturais e do relevo e arquitetura, as pessoas também são elementos
constituintes. As paisagens não são estáticas, elas se constituem do conjunto de fluxos e fixos
(SANTOS, 2000), elas expressam tanto as condições concretas e simbólicas, ou seja, as
representações sociais sobre a pobreza, a riqueza, a miséria, a violência, a segurança, a
insegurança, a desordem, a ordem, a racionalidade e a irracionalidade. Essas representações
indicam a natureza social dos lugares, que rotulam os estilos de vida conformados por suas
populações residentes. Essas diferenças se apresentam pertinentes inclusive no âmbito do
comportamento político de suas populações.
No caso do Estrela D’alva sua paisagem esta foi produzida durante um período de
transição do sistema político formal, na redemocratização, quando a urbanização da periferia
foi resultado de “ações coletivas33”. Ações que se traduziam em lutas e negociações feitas
entre associações de moradores e lideranças comunitárias com os candidatos em períodos
eleitorais. A etnografia mostrou que na democracia o voto apresentava-se ainda como uma
mercadoria política. Contudo, não era um comportamento político difundido em todo
território metropolitano, nas áreas ocupadas pelos estratos mais elevados (exceto em alguns
casos de condomínios fechados) nas quais a urbanização foi antecedente à ocupação
demográfica. No contexto recente, de acordo com análise da distribuição espacial dos votos
relativos aos candidatos a deputado estadual em Minas Gerais, no pleito de 2006, Rocha
(2011) identificou na RMBH aspectos que diferenciavam o comportamento político dos
4.216.690 de eleitores registrados, segundo o lugar de votação (zona eleitoral) que expressa o
local de moradia.
De uma maneira geral, as zonas eleitorais situadas nas periferias metropolitanas
apresentavam um elevado número de votos disputados entre poucos candidatos, enquanto que
“no núcleo da RMBH, especialmente no município de Belo Horizonte, a competição eleitoral
é significativamente maior” (ROCHA, 2011, p.04). O que o autor quer dizer é que a
concentração de votos em poucos candidatos, identificada em determinados locais de votação,
expressa baixa competitividade eleitoral, ou seja, representa uma forte aproximação de
candidatos específicos com áreas determinadas. O autor fundamenta seus argumentos a partir
da análise de clusters realizada entre locais de votação e número de votos destinados aos
33
Há toda uma literatura dedicada os chamados “novos movimentos sociais” que surgem nas periferias como
ator político relevante no processo de implantação de infraestrutura urbana e serviços básicos, a partir de
negociações de cunho político (LENARDÃO, 1997).
98
Fonte: Elaborado por Corrêa, 2011, com dados do TRE-MG. Retirado de :Rocha, 2011, p. 06.
Fonte: Elaborado por Palhares; Silva, 2013 com dados extraídos de IBGE, 2010; PRODABEL, 2000.
34
Em 2010, Contagem era o segundo município mais populoso no universo da RMBH com 603.442 habitantes, e
terceiro em relação ao total de 853 municipalidades do Estado de Minas Gerais (Censo Demográfico de
2010).Hoje, o município de Contagem está entre as regiões consideradas de médiodesenvolvimento humano:
na escala de zero a um (do menor para o maior IDH) mais precisamente 0,789 sendo que a educação é o sub-
100
índice mais próximo de 1 (0,901). Representa o 25º maior PIB do Brasil e o 3º maior de Minas Gerais, sendo
comércio e serviços o setor econômico melhor desenvolvido (66,13%), seguido da indústria (33,85%) e da
Agricultura (0,02%). Apesar do processo de industrialização e atividades econômicas situadas no município
sua taxa de desemprego em 2010 era de 9,6% (Fundação João Pinheiro) superior a média nacional que ficou
em 6,7% (IBGE, 2015).
35
Último mês de pesquisa de campo antes de minha estadia de dez meses como doutorando sanduíche na
Universidade Nova de Lisboa.
101
Foto 1 - Início e final da Rua que faz divisa com Belo Horizonte próximo ao Portão 2 do
Zoológico - Estrela D’alva - 2014
adulta, e outros tantos que nunca conseguem terminar suas casas. O projeto de conclusão da
fachada do imóvel costuma ser o adiado ao máximo e é comum muros e imóveis sem
revestimento, com tijolos aparentes e desgastados pelo tempo, e como os imóveis não seguem
um mesmo padrão específico, pois cada casa é literalmente única, variam em tamanho de
terreno, área construída, estilo arquitetônico, etc.
Enfim, a paisagem expressa especificidades dos modos de vida dos habitantes da
periferia e que contrastam e muito em relação à sua vizinha Pampulha.
Foto 4 - Fachada de uma igreja situada próximo a Rua Porto Seguro - Estrela D’alva -
2014
O território que denomino nesta tese por Estrela D’alva abrange um conjunto de
bairros, composto por: São Mateus, Tijuca, Confisco, Recanto da Pampulha, Estrela D’alva; e
103
4.1 Ocupação, urbanização e vida política no Estrela D’alva: décadas de 1980 e 1990
Foi porque eu morava de aluguel, casei e fui morar de aluguel, e o lugar que a gente
morava era lá no Pindorama, e lá era uma granja que a mulher passou para moradia,
meu marido mesmo nem abria a janela lá, e eu fui e falei que um dia eu ia ter algo
105
meu se Deus quiser, eu vou lutar pra isso. Mas se eu dependesse do meu marido ele
não lutava não, ele tinha medo de dívida, mas eu não tinha. Então, eu corri atrás, e
para eu ter esse lote aqui foi preciso eu dar tapa na cara [ser firme] do sujeito que
queria roubar o lote de mim, rasgar os documentos do contador todinho e espedaçar,
e derrubar eles tudo lá para eu ter esse lote aqui. Aí, o gerente da Minas Caixa ficou
sabendo e não deixou eu perder o lote, ele foi comprado pela Caixa. Tinha gente
querendo tomar esse lote aqui de mim, porque eram quatro lotes, eu arrumei quatro
lotes e então eu tinha que vender três para poder comprar um, porque eu não tinha
dinheiro para comprar todos, e aí eu escolhi esse daqui, e eles queriam tomar este
daqui de mim, na imobiliária, no contador, eles estavam de cambalacho comigo,
então eu fui e levantei de madrugada e cerquei o cara na esquina e rasguei os
documentos todos, eu arrisquei muito a minha vida por causa disso daqui, entendeu?
(Entrevista com Dona Maria, 2013).
A cisterna, ela ficava ali, não tinha bombeamento porque não tinha luz, puxava na
corda mesmo, até 1985 eu tive a cisterna desse jeito, depois, eu fiz um padrão de luz
lá no Estrela D’alva e puxei uns 700 metros de fiação, ida e volta dá 1.400 metros, e
trouxe luz para aqui, mas a luz chegava fraquinha, era a conta de ligar a geladeira, e
se fosse tomar banho tinha que desligar a geladeira. E eu fazia chup-chup e vendia,
era só eu que tinha luz aqui. (Entrevista com Dona Maria, 2013).
Não, não tinha buracão, ele era um rego de nada, e imediatamente vinha uma chuva
e ele formava e, quando agente assustou tinha mais de 90 graus chão à dentro, e
tinha uma nascente dentro dali, e essa nascente acho que foi desbarrancando por
debaixo, e aí eu acho que de uma vez a água passando por debaixo e com a chuva,
deve ser que estava oco lá assim, e caía de uma vez, e foi formando o buracão. [...]
Eu comprei aqui era lote, lote puro, com árvores de raízes muito profundas, então,
eu mesmo arranquei as raízes e a gente foi construindo aos poucos e hoje minha casa
está aí com onze cômodos (Entrevista com Senhor Antônio, 2013).
36
Para definição técnica do termo. Ver: GUERRA, A. Novo Dicionário Geológico-Geomorfológico. 8ª Ed. – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
107
37
Como uma espécie de herança do regime militar 1964-1988 as relações entre poder público e moradores das
periferias/favelas foi configurada de forma tensa e impunha aos moradores dessas áreas organizarem-se
enquanto movimentos comunitários, inspirados nos movimentos sindicais, mas articulados por meio do
catolicismo, como foi o caso da Pastoral da Favela (PF), criada entre 1979 e 1980, aproximadamente. A
instituição, PF, tornou-se uma organização bastante difundida entre as vilas e bairros populares de Belo
Horizonte. Posteriormente, a PF deu origem a dois outros importantes movimentos: a “Federação de Bairros e
Vilas”– FBV e a “União dos Trabalhadores da Periferia” – UTP. (CONTI, 2004; URBEL, 2009).
108
E nós queríamos que essa escola fosse municipal e não deu, por causa, que tinha
uma briga entre o Nilton Cardoso e o Ademir Lucas, o Nilton Cardoso era
governador e o Ademir Lucas era prefeito. E aí, não conseguimos municipalizá-la, e
aí ficou como estadual mesmo, e o Nilton Cardoso dava todo o apoio pra gente, e
liberava verba, e me convidava a ir lá, através de telegramas, assinar a verba da
escola e a prefeitura tinha doado móveis e um tanto de outras coisas mais para fazer
a escola aqui regular. Tinha quatro turnos, a gente começava a dar aula aqui era as
07:00h da manhã e terminava era as 22:00h, de noite, porque eram alunos demais,
eram mais de 1.200 alunos, muita criança mesmo, de 1ª a 4ª série e o pré-escolar de
1º, 2º e 3º períodos, que era o Pré-escolar Patinho Feliz, tudo funcionando ali,
naquelas lojas ali que você está vendo (Entrevista com Ilda B., Fundadora da
ACABSM: 2013).
Não tinha nada, não tinha escola, não tinha água, não tinha luz, não tinha asfalto,
não tinha ônibus, não tinha rede de esgoto, entendeu? Então, quando eu comecei a
correr atrás desses negócios era com o prefeito João Lima, que tinha ficado tomando
conta da prefeitura até o Nilton Cardoso ser eleito e entrar para lá. Então, eu enchia
uma caminhonete de crianças, e nós conseguimos a escola através disso, a gente
colocava os meninos para mijar no tapete do prefeito, lá onde é a Câmara Municipal,
e nós levávamos os meninos e eles mijavam lá. Os meninos diziam, “ah eu quero
fazer xixi”, e a gente dizia “pode fazer aí, pode fazer aí”, e o prefeito ficava olhando
assim, mas não podia fazer nada, e aí ele “vamos construir a escola lá”. (Entrevista
com Ilda B., Fundadora da ACABSM, 2013).
109
Em 1997, com base nas lutas desta entidade o “buracão” foi tampado com rejeitos e
detritos decorrentes da construção de um shopping em Contagem e, em seu lugar, criou-se
uma área pública sem nenhum tipo de ornamentação ou equipamento urbanístico. Após a
redemocratização a manutenção do poder político passava a depender dos votos de uma
população cujos direitos foram historicamente negligenciados pelo “Estado de Direito”, pela
“República”. Por outro lado, à medida na qual o Estado conseguia fixar equipamentos para
execução das políticas governamentais, menos incentivo a ACABSM recebia e menos
dependentes dela encontravam-se os personagens políticos, que passavam a utilizar outras
formas de mediação para a conquista de votos na região, como as “lideranças comunitárias”.
A perda de importância da ACABSM enquanto instituição mediadora da relação entre
população da periferia e representantes políticos governamentais gerou um descolamento e o
agenciamento dos votos passou a ser exercido por lideranças comunitárias desvinculadas das
associações de bairro ou sindicato. Entre estas, entrevistei José Estrela, uma pessoa que
atuava como liderança e ocupava cargo comissionado no governo municipal em função disso.
Ao questioná-lo sobre como partiu a ideia de tornar-se uma “liderança comunitária” ele disse
que isso não ocorreu de forma premeditada, não tinha a intenção ou qualquer planejamento
prévio nesse sentido e conclui: “As coisas foram acontecendo”. Foi numa época na qual
passava por dificuldades financeiras, estava casado e com filhos, era sua primeira família, e
seu carro fora apreendido por falta de quitação das taxas anuais de licenciamento obrigatório,
no dia em que houve um “tumulto” na porta da escola. No meio do burburinho uma pessoa
gritou em sua direção e disse “José vem cá, o fulano que está dando macarrão”. Era período
eleitoral e havia um político distribuindo macarrão e também uma candidata à prefeita estava
envolvida. Ao aproximar-se do portão da escola, José foi surpreendido com a pergunta: “José,
por que é que você não mexe com política? Você é um cara muito conhecido e tal, [...] pede
essa mulher um dinheiro, que ela te dá, você não está precisando? Pede ela uns dois mil, três
mil reais”. E José respondeu: “Ah, essa mulher não vai me dar isso não, você está doido?” E
então a pessoa retrucou: “você sabe como funciona?”, explicou:
Você marca uma reunião na sua casa e como você conhece muita gente, quanto mais
gente você tiver mais força você tem de liderança, é assim que funciona. Aí, ele foi e
me apresentou ela, e a candidata perguntou: você conhece muita gente? E aí eu
disse: conheço! E aí, eu consegui encher minha casa de gente, coloquei de 80 a 100
pessoas. Quando a mulher chegou e viu a casa cheia, ela ficou doida. Nesse início,
ela me deu o dinheiro combinado, eu me apaixonei primeiro pelo dinheiro, pois,
numa reunião já consegui tirar o meu carro! (Entrevista com José Estrela, Liderança
Comunitária, 2012).
110
Município de
Contagem 603.442 184.839 88,5 99,3 99,2 99,3
Município de
Contagem 13,7 59,1 39,2 39,1 60,9 14,4
Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de IBGE, 2013 - Censo de 2010.
neste sistema de informação, ou seja, público potencial das políticas assistenciais como, por
exemplo, o Programa Bolsa Família (Tabela 03).
Aposentado Não
Bairro Pessoas Com CTPS Sem CTPS Autônomo Outras
pensionista trabalha
O número de pessoas que não trabalham (75%) pode ser explicado pela falta de acesso
ao mercado formal e também pelo alto número de crianças e adolescentes na região. Do total
de pessoas cadastrados naquele tempo no CadÚnico, 1.967 tinham até 16 anos de idade.
113
Tijuca 236 44 60 10 68 13 20 21 0
R.
489 77 130 39 163 13 41 26 0
Pampulha
Total 4.339 801 1.277 249 1.329 116 335 227 1
Fonte: CadÚnico/GEPS março/2010.Nota: Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social de Contagem em 2013.
SãoMateus 177 38 34 62 18 25
Confisco 104 18 14 51 11 10
V. F. Mariano 149 44 11 69 13 12
Tijuca 63 15 6 21 12 9
R. Pampulha 143 41 14 65 11 12
consolidada como um espaço “marginal”, onde residia tanto o público alvo das políticas
focalizadas de assistência social como das políticas de repressão qualificada executada pelas
polícias. Em março de 2010 os moradores foram submetidos a um toque de recolher de 15
dias consecutivos. A história recente do Estrela D’alva foi também conformada por conflitos
sociais envolvendo violência policial e mortes brutais, a maior parte envolvendo pessoas
jovens.
38
O IHA, Índice de Homicídios na Adolescência, estima o risco de mortalidade por homicídio de adolescentes
que residem em um determinado território (Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República – SPDCA/SEDH, UNICEF, Observatório de Favelas e Laboratório de Análise da Violência –
LAV/UERJ).
39
Embora não tenha levantado dados de períodos anteriores e os relatos dos moradores sejam percepções, em
relação aos homicídios, brutais e recorrentes envolvendo pessoas jovens predominantemente, a etnografia
indicou se tratar de um problema mesmo recente na história do bairro, desde os últimos dez anos.
115
Enquanto países como a Dinamarca, Bélgica, Suiça, Roménia, entre muitos outros em
um grupo de mais de vinte, apresentaram médias inferiores a 2 homicídios por ano, em um
116
40
Termo corrente utilizado na periferia e que faz referência ao viciado em drogas ilícitas em geral. Pelas
conversas informais que realizei e entrevistas soube que o termo surgiu por causa dos viciados em crack, na
pedra, na nóia, daí, surge o noiado. Obviamente este termo vem de outros lugares, assim como as drogas e
armas utilizadas pelas redes criminosas locais, inclusive a polícia (Registros de Campo, 2013).
117
Imagem 17 – Mapa de Kernel dos crimes violentos registrados no Estrela D’alva - 2010
Fonte: Polícia Militar de Minas Gerais, 2010. Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social do município de Contagem em 2013.
No Estrela D’alva, desde que iniciei a etnografia, foi frequente ouvir comentários por
parte dos moradores e dos jovens entrevistados a respeito das regras sociais impostas pelo
narcotráfico. A proibição da prática de roubos dentro do território e a realização dos “toques
de recolher” eram as principais delas. Em relação à primeira, da proibição dos roubos, era
118
curioso notar um reconhecimento por parte dos moradores de que a presença do tráfico
contribuía para a inibição de roubos, neste ponto o narcotráfico conseguia legitimidade
perante os habitantes como será apresentado, inclusive nas trajetórias. Por outro lado nenhum
morador tinha orgulho de dizer que havia presença de grupos de narcotraficantes na sua
vizinhança. Neste contexto os moradores aprendiam a conviver em um ambiente em disputa,
por ordens sociais que se apresentavam como antagônicas, a estatal e a ordem imposta pela
criminalidade local. Em relação a esta última, além das mortes e outras violências, uma
prática imposta rotineiramente pelos narcotraficantes aos moradores eram os “toques de
recolher”.
Fontes: Imagens do Toque de Recolher produzidas pela Secretaria de Assistência Social do município de
Contagem em 2013. Adaptações feitas pelo autor.
Entre as pessoas com quem estive ouvi diferentes versões a respeito do “toque de
recolher” de março de 2010. Na percepção dos jovens:
Toque de recolher é o seguinte cara, não existe toque de recolher para gente do bem,
quando morre um cidadão de bem não existe toque de recolher. Sempre quando
morre um bandido, um neguinho do tráfico usa os outros guerreiros e vai até os
comércios e: “é pra fechar!, é pra fechar o comércio senão nós vamos meter bala,
vamos roubar, entendeu? Então é pra fechar a porra do comércio!”. Os comerciantes
se resguardam e fecham, entendeu? Até o dia que os caras falam: “tá normal, tá
normal”. (Entrevista com Miro, 2013).
Foi até mesmo devido à morte de um traficante, morreu, e aí, parou tudo. E
revoltaram, eu não sei direito o que aconteceu, o fulano, o que possuía mais moral
morreu, e o pessoal foi e mandou fechar o bairro todo, mandou parar tudo eu acho
que o toque foi devido a isso. (Entrevista com K., Jovem, sexo masculino, 23 anos).
Esse toque de recolher, eu vou falar para você aqui uma coisa, foi uma das melhores
coisas que já aconteceu aqui, na minha visão de líder, porque o governo não vinha
aqui, ninguém conversava com ninguém e hoje os líderes sentam na mesma sala
com esse Projeto da ONU, a agente conversa, então pra mim foi uma das melhores
coisas que aconteceu. E você deve pensar assim, “esse cara é louco”, é porque tem
coisa que tem que cair para depois levantar de novo. Aqui não vinha prefeito, não
vinha um secretário, não vinha nada, as lideranças cada um queria puxar só para o
seu lado, e hoje a gente tem uma visão mais ampliada disso, do que é uma
comunidade. (Entrevista com José Estrela, Liderança Comunitária, 2013).
e a moto parou e ficou com o motor ligado, isso por volta de umas 23:30h/00:00h, e
depois de um certo tempo a moto continuava ligada e a mãe: “engraçado, meu filho
estava aqui? Ele deixou a chave da moto ligada, tal, tal tal”, e algumas horas depois,
o corpo dos dois rapazes foi achado na parte alta do bairro, os dois foram
executados, foi um tiro na nuca de cada um, literalmente foi uma execução. E,
alguém disse, sempre tem esse que disse, e que provavelmente tenha sido a polícia
que teria executado, mas não foi a polícia local, mas uma outra polícia, uma equipe
que teria vindo de fora da comunidade para dentro da comunidade exatamente com a
função de executar, a ideia era execução. A partir desse pressuposto, e pelos dois
serem muito conhecidos na comunidade, e também, em parte queridos também,
porque eles tinham muito bom relacionamento aqui dentro da comunidade. E isso
eu quero deixar bem claro que, dos meninos que você ver trabalhando aqui, nenhum
deles vai aparentar ser um “cara mal”, não, não. Eles conversam, batem papo, são
bem articulados. E aí, o que aconteceu? As equipes que eles comandavam, as
ramificações, eles ficaram indignados, porque entenderam que houve execução. E é
uma coisa engraçada no próprio crime, “ah, eu posso matar um, matar dois, quatro
que me devem”, mas quando morre quer justiça (risos). E a galera toda ficou
revoltada, e tinha que ter justiça, então, “vamos mostrar agora o poder desse negócio
aqui”, e aí, surge outra ideia, “vamos mostrar que temos poder nesse lugar”. E
literalmente enviaram os meninos, a maioria de menor, passar em tudo e dizer “pode
fechar, porque se não fechar nós iremos destruir ou matamos quem abrir!”.
Começou pequeno, e o movimento rapidamente se alastrou porque o temor e o medo
tomaram conta. (Entrevista com Pastor T., PIBED, 2013).
Esse toque de recolher foi o seguinte, tinha um menino que morava ali, na Rua Praia
Formosa, antiga Rua L, e esse menino, ele aprontou muito aqui, inclusive aprontou
muito comigo na época do comércio, e a mãe dele, coitada, separada do pai, e o pai
era delegado lá no Rio de Janeiro e acobertava todos os problemas dele por aqui.
Nós chamávamos a polícia, ela vinha, e daqui a pouco estava ele, e vinha e falava
assim “meu pai tem a costa quente”, e eu fui e falei “olha então não apronta não,
porque senão você vai acabar tomando uma de verdade, com força”. Ele expulsou a
mãe dele de dentro de casa, e ficou à vontade, e quando foi um dia, lá, eles foram lá
entraram e mataram ele dormindo. E depois que matou ele, eles, os da turma dele,
foi quem deu o toque de recolher de dez dias. (Entrevista com Ilda B., Fundadora da
ACABSM, 2013).
41
Segundo comerciantes locais com os quais conversei informalmente os “traficantes” enviam crianças
mensageiras portando celulares, através dos quais os “traficantes” se comunicava com os comerciantes. Desse
modo, crianças na faixa de nove a onze anos de idade é que serviam de contato para a interlocução.
121
mais sérias através de telefonemas ostensivos. Por outro lado, à polícia não se via garantia de
resguardo frente ás ameaças feitas pelos grupos de narcotraficantes varejistas, pois, estes
permaneciam no território diariamente, vinte e quatro horas ininterruptas. Embora o Estrela
D’alva fosse jurisdição do 18º batalhão da polícia militar e coberto por uma delegacia
distrital, a polícia não tinham a mesma abrangência e fixidez quando comparada às quadrilhas
locais. Os comerciantes locais, frente a ameaças de agressão e de mortes, optaram por seguir
as regras de convívio comunitário ou leis impostas pelo tráfico de drogas, fazendo prevalecer
sobre a população da área sentimentos de medo e de insegurança.
O período de meados de 2010 até dezembro de 2012 foi marcado pela vinda do
Programa Conjunto “Segurança com cidadania: prevenindo violência e fortalecendo a
cidadania” no território impactado pelo “toque de recolher”. O Programa contou com recurso
de seis milhões de dólares do Fundo Espanhol para Alcance dos Objetivos do
Desenvolvimento do Milênio e foi apoiado pelos governos municipal e federal. O público-
alvo do programa abrangia crianças, adolescentes e jovens, entre 10 e 24 anos,
particularmente os residentes nas áreas mais vulneráveis, excluídos do sistema educativo,
vítimas de violência doméstica ou intergeracional envolvidos em atividades relacionadas com
drogas, tais como o tráfico. Assim, a presença desse programa de pacificação da ONU
indicava se tratar de uma área com sérios problemas de insegurança pública.
trecho inicial do capítulo introdutório de A Máquina e a Revolta no qual Alba Zaluar narra a
seguinte situação:
Atento a isso, procurei ao máximo, ter cautela para não infringir a rotina dos espaços
que frequentava. Em todas as ocasiões me apresentei às pessoas como sendo estudante de
Ciências Sociais da PUC Minas. E quando havia oportunidade de conversa, fazia questão de
explicar com mais detalhes os objetivos da pesquisa e minhas intenções com o lugar. As
primeiras visitas ao bairro de referência e os primeiros encontros com os moradores foram
mais informais, e apesar de insuficientes para estabelecer uma relação de confiança necessária
para iniciar as entrevistas, foram imprescindíveis para os primeiros passos da pesquisa
empírica. Este começo do campo foi importante para que pudesse me situar melhor no bairro
e, ao mesmo tempo, tornar-me conhecido aos olhos dos residentes locais, incluindo pessoas
relacionadas à dinâmica da comercialização ilegal de drogas. Etapa através da qual objetivei
fazer-me presente como pesquisador, ao passo que me sentia mais à vontade e confiante para
realizar observações sobre o contexto no qual buscava inserção.
Nas ocasiões em que notava resistência por parte de pessoas com as quais
intencionava fazer entrevista, explicava a elas, repetidas vezes se necessário, sobre minhas
intenções com a tese. Para quebrar a desconfiança foi preciso trazer a campo os recursos que
dispunha em mãos. Houve um caso em que levei a um determinado entrevistado, o Jeremias,
as publicações e outras evidências materiais da minha condição de estudante e de pesquisador
do assunto, após extensa apresentação, Jeremias cedeu-se à realização da entrevista. A
experiência empírica demonstrava que, antes de querer que o campo se abrisse para mim, era
necessário abrir-me a ele. Só assim eu pude quebrar, em parte, os constrangimentos gerados
pelo medo e desconfiança, inicialmente recíprocos, e que pareciam organizar a vida social
daquela região. De um modo geral, busquei “encaixar-me” às situações e ocasiões sociais das
quais tinha acesso, no sentido goffmaniano, atento aos assuntos, tipos de vestimentas, e outros
comportamentos que não causassem perturbações a ordem pública dos espaços que visitava.
Deste modo parti em busca de espaços públicos e privados através dos quais pudesse
iniciar as observações e assim, encontrar jovens que se dispusessem a contar para mim suas
experiências de vida. Por se tratar da constituição de trajetórias juvenis em contexto de
periferia metropolitana, pressupunha que suas sociabilidades transcorriam mais no contexto
125
do bairro. Partindo desse pressuposto e das visitas a campo tive acesso aos seguintes lugares
para realizar observações: i) A Praça do Estrela D’alva; ii) As batalhas de MC’s, no espaço do
CRAS- Casa Amarela; iii) A Primeira Igreja Batista do Estrela Dalva - PIBED; e, iv) A Praça
Complexo Esportivo São Mateus. Estes quatro espaços foram alvo de observações
sistemáticas em diferentes tempos da pesquisa. Frequentei a praça Estrela D’alva desde o
início do trabalho de campo, por se tratar de uma área pública de maior movimento e onde foi
possível fixar-me e observar seu espaço e as sociabilidades nele inscritas. Quanto ao duelo de
MC’s Casa Amarela, frequentei quinzenalmente, e por vezes semanalmente dependendo da
agenda de eventos, de fevereiro a setembro de 2013, quando os eventos de hip-hop no lugar
extinguiram-se. Durante esse período fiz também observações no complexo esportivo São
Mateus, onde se localiza o CRAS-Casa Amarela. A PIBED frequentei de agosto a dezembro
de 2013, e de modo menos sistemático até primeiro semestre de 2014 quando observei as
atividades de sábado que envolvem o culto dos jovens até 17 anos, e também o culto principal
regido para o público em geral.
Outra estratégia de observação consistiu na utilização dos serviços do comércio local.
Desde serviços de barbearia, padaria, sacolão (hortfruti), à lanchonete, loteria, supermercado,
sorveteria e farmácia. Ao utilizar esses serviços locais tive diversas oportunidades de realizar
observações e conversas informais no ambiente do bairro. Tais ocasiões proporcionavam
momentos de pesquisa que não se configuravam como constrangedores para aqueles que
frequentavam os espaços dos quais observava. Nestes espaços utilizava o celular como
ferramenta de pesquisa. De posse de um deste aparelho eletrônico, por meio das funções de
escrita de mensagem, registrei como se fosse numa caderneta, e de modo discreto, as
anotações em campo. Atualmente o uso do aparelho celular na periferia, como no restante da
cidade, está disseminado. Por isso, possibilitava uma forma de estar presente em lugares
públicos como comércios, mas sem chamar para mim as atenções do ambiente observado,
sem ter que diferenciar-me das pessoas através da revelação de minha identidade, como as
demais pessoas que utilizavam o espaço.
Contudo, exceto nos ambientes do comércio onde predominavam relações mais
informais, de um modo geral, identifiquei-me sempre como estudante. Explicava o que
pretendia fazer ali, mesmo quando notava que as coisas que eu dizia pareciam fazer pouco
sentido para os ouvintes. Por diversas vezes fui indagado sobre quais benefícios meu trabalho
poderia trazer para a vida concreta das pessoas do lugar. Sobre isso, não busquei criar
expectativas, apesar de notar que algumas pessoas do lugar pareciam sentir-se beneficiadas,
de algum modo, com minha presença naquele espaço. Houve um jovem MC, o Faro, que
126
42
Tal juventude é reconhecida pela academia e pelo senso comum através da categoria jovens da periferia, que
tende a reproduzir uma representação homogeneizante sobre as experiências juvenis dos estratos de baixa
renda ou pobres das sociedades urbanas e a reconhecê-los por qualidades negativas ou por carências. Ao
realizar, por exemplo, em dias aleatórios do mês de outubro de 2014, pesquisas de busca de imagens na
plataforma virtual www.google.com a partir do termo jovens da periferia encontrei preponderantemente
imagens de jovens negros e pardos. Não tive intenção de quantificar os resultados, mas predominaram imagens
que os situavam em esferas como i) violência e crime: jovens mortos, feridos, portando arma ou outros signos
que os retratam como criminosos ou como alvo de vigilância de policial ou de agentes privados em shopping;
ii) hip-hop: grafite em muros, grupos de dança, boné aba reta; iii) pobreza, assistência social e religião: jovens
desdentados, paisagens de favelas, de lixão, pichações, figuras religiosas da caridade como freiras, igrejas,
projetos sociais; iv) consumo: correntes no pescoço, calçados de grifes globais, celulares, dinheiro, carros,
mulheres sensuais.
127
com pessoas jovens e outros moradores, com o intuito de conquistar confiança, estabelecer
novos contatos para possíveis entrevistas e, ao mesmo tempo, realizar a observação. Deste
modo, uma primeira estratégia, que ocorreu anterior e até mesmo paralela ao “Oasis”,
consistia em engajar-me em alguma atividade junto a José Estrela que na época estava com
interesse em montar uma agenda de atividades para o Centro Cultural da Vila Francisco
Mariano, que estava prestes a ter sua obra concluída. A ideia era participar de forma
voluntária, no Centro Cultural, através da oferta de aulas de violão para iniciantes bem como
pela realização de palestras e cinema comentado. Contudo, até o presente momento, o local
ainda não foi ativado. Por isso essa estratégia inicial não se viabilizou.
Outro ponto a destacar é que não busquei realizar entrevistas a partir de espaços de
referência direta do tráfico de drogas (bocas ou biqueiras), meu objetivo foi de ouvir os
jovens a partir de outros espaços de referência. Dessa forma, poderia escapar aos estereótipos
associados ao envolvimento com o tráfico de drogas que, nas biqueiras seria mais difícil de
escapar desse viés. Os relatos e observações indicavam que a participação de adolescentes e
jovens no tráfico de drogas acontecia de variadas formas e nem sempre coincidia com as
expectativas que orbitam em torno do rótulo de “traficante de drogas”, como se expressa pelo
senso comum. O envolvimento com o tráfico nem sempre implicava em inserções absolutas
dos jovens nessas atividades criminosas. Houve casos de jovens relatarem situações através
das quais comercializaram, ocasionalmente, pequenas quantidades de drogas (geralmente
maconha) em lugares fora da região, locais de trabalho e outros círculos, em contextos
específicos de suas trajetórias de vida.
As observações em campo reforçavam a hipótese anterior, de que, encontrar os jovens
em outros espaços sociais e não em função de um suposto envolvimento direto ou não com a
criminalidade local seria o caminho de pesquisa a ser traçado. Meu interesse era pelas suas
trajetórias, que pressupus ser intercruzadas por dinâmicas sociais diversas, inclusive as
criminosas. Portanto, a tentativa de escapar do estereótipo de “traficante de drogas” não teve
intenção de negar a força da presença dessa atividade no território do bairro, mas de
reconhecer que outras perspectivas atravessavam as relações criminosas. O trabalho empírico,
observações e reflexões iniciais, indicavam que não seria preciso ir até a biqueira para
capturar aspectos importantes envolvidos nas relações da dinâmica do tráfico de drogas sobre
as trajetórias de vida dos jovens da área. Inclusive porque o crime e a violência não são as
únicas agências reguladoras da vida social na periferia e não estão alheios ao seu contexto
social, o próprio histórico da região indicava isso.
130
Neste capítulo são apresentadas as trajetórias de Miro e a de Faro, dois jovens que
conheci como MC’s durante a pesquisa etnográfica. Os percursos de vida de Miro e Faro
seguiram itinerários relativamente semelhantes ou “coincidentes” e traduzem em parte
aspectos estruturantes das trajetórias juvenis no Estrela D’alva. As trajetórias de indicam que
ambos tiveram suas experiências de vida balizadas pelos modos de vida e pelas práticas
culturais presentes na periferia como a religiosidade cristã, a arte por meio do hip-hop43 e,
mais recentemente, pelas dinâmicas econômicas e violentas produzidas em torno da
criminalidade local, representada pelo narcotráfico principalmente. Como apresentado ao
43
Historicamente o hip- hop está relacionado à cultura urbana negra estadunidense e aos movimentos políticos
juvenis da década de 1960 nos Estados Unidos, a partir de onde se difundiu. Atualmente o hip-hop continua a
ser caracterizado como movimento cultural marcante nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros
com forte viés político (ZENI, 2004; HERSCHMANN, 2000). Como afirma Marco Aurélio Paz Tella, o hip
hop é um movimento que tem sua base estruturada a partir de quatro expressões: “a primeira é a música,
denominada rap. A segunda, ligada ao rap, é a pessoa que controla os toca-discos, que faz a discotecagem, o
DJ (Disc Jóquei). A terceira é a dança, caracterizada pelo break. Por fim, a última arte é a pintura, que se
expressa pelo grafite” (PAZ TELLA, 2015, p.121).
132
decorrer deste capítulo os itinerários de vida dos referidos jovens tiveram em comum outros
aspectos sociais como o início do exercício de atividades remuneradas, a iniciação sexual
ainda na infância e o abandono escolar no início da adolescência. De um modo geral o
capítulo apresenta reflexões feitas em torno dos sentidos sociais assumidos pelas práticas
culturais desenvolvidas por Miro e Faro junto a outros jovens residentes na periferia e de seus
percursos sociais frente à condição juvenil de fase de transição para a vida adulta (PAIS,
2009). Tendo em consideração tais questões, apresento relatos da etnografia que caracterizam
o contexto a partir do qual as entrevistas biográficas foram realizadas. Tal descrição é útil
para situar socialmente o momento da fala dos sujeitos e ao mesmo tempo os passos da
pesquisa por meio dos quais a relação de alteridade foi construída. Na sequência suas
trajetórias serão apresentadas em conjunto tendo como base as descrições etnográficas e
outros registros de campo.
sábados à noite”. Somente após esse primeiro contato com os mc’s é que dei início à
etnografia aos sábados à noite, ao frequentar os Duelos de Mc’s da Casa Amarela44.
De um modo geral os frequentadores dos duelos eram moradores da própria periferia.
Uma vez ou outra compareciam também rappers de outras áreas da RMBH, da “Zona Oeste”,
de “Venda Nova”, do “Aglomerado da Serra”, da “Barragem Santa Lúcia”, e de outros
lugares, em geral de outras áreas periféricas da metrópole. Tirando essas exceções, o público
predominante era mesmo composto por jovens do próprio bairro; habitantes que se conheciam
desde a infância e que tinham em comum os percursos de vida mediados pelo convívio
comunitário religioso, escolar, enfim, pessoas que cresceram juntas e partilhavam amizades e
experiências de vida relativamente semelhantes. Embora tivesse sido convidado a estar
presente, para a maior parte do público eu era uma pessoa estranha, no sentido de que, mesmo
apresentando-me como estudante, muitos me viam como um agente externo, um observador
curioso e também suspeito. Deste modo, minha aproximação com este público foi lenta e
gradual, somente após seis meses de etnografia nos duelos é que consegui realizar a primeira
entrevista com um jovem MC, representado aqui pelo personagem Faro45, que, no decorrer do
trabalho de campo, veio a revelar-se um informante-chave.
É relevante destacar que a ideia inicial de usar o espaço Casa Amarela para fins
culturais decorreu das ações da ONU-Brasil fundamentadas em teorias de prevenção do crime
por meio do design ambiental que, na prática, consistia em reformas urbanísticas e
apropriação positiva de espaços públicos potencialmente ociosos e/ou
degradados/abandonados para tentar evitar que o espaço fosse utilizado para práticas ilícitas 46.
Tal ação ocorreu no final de 2011 quando a Casa foi utilizada para a realização projetos de
mídia tática pela ONG Oficina de Imagens, que envolviam a oferta de oficinas, cursos e
apresentações culturais47. De um modo geral os cursos e eventos abordavam temáticas tais
44
Soube da existência de tais duelos na PUC a partir de palestra proferida por uma representante da prefeitura
municipal de Contagem juntamente a uma técnica do Programa Conjunto – ONU Brasil em junho de 2012.
45
Personagem no sentido atribuído por Cardoso (2007), “pessoas personagem”, ao passo que a narrativa aqui
apresentada como qualquer construção narrativa envolve um caráter de confabulação.
46
A ideia de produção de espaços urbanos seguros fundamenta-se em um conjunto de teorias classificadas por
CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design). Sobre este tema consultar o Manual “Espaços
Urbanos Seguros: Recomendações de projetos e gestão comunitária para a obtenção de espaços urbanos
seguros” de Santos, Siqueira e Maranhão (2004), produzido através do Programa de Infraestrutura em Áreas
de Baixa Renda da Região Metropolitana do Recife (PROMETRÓPOLE) e da Prefeitura Municipal de Olinda
– PE e a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco CONDEPE/FIDEM. Este Manual
consiste numa adaptação do Manual Espacios Urbanos Seguros, elaborado pelo Governo do Chile, Ministério
do Interior e Ministério da Vivienda y Urbanismo e Fundación Paz Cuidadania, em 2003.
47
Implantado no bairro desde novembro de 2011 até julho de 2015 o Projeto de Mídia Tática baseou-se no uso
de metodologias de comunicação (noções de fotografia, manipulação de imagem e produção de vídeos) como
recurso de expressão de anseios de adolescentes e jovens que vivem em regiões de vulnerabilidade social. Os
jovens participantes eram motivados a agirem de modo coletivo, em pequenos grupos e em mutirão a
134
identificarem problemas e necessidades locais e a buscarem agir por soluções ou mesmo pela conscientização
da população local sobre os tais problemas (OFICINA DE IMAGENS, 2012).
135
Conforme definido a política social, o CRAS é “um estabelecimento que tem por
objetivo prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidades e riscos sociais nos territórios”
a partir da prestação de serviços de “proteção social básica” (MDS, 2009, p.09). Geralmente
conta com uma equipe composta por um par de psicólogos e três assistentes sociais
responsáveis por oferecer a “proteção social básica” a um conjunto médio de 5.000 famílias a
partir de oferta dos seguintes serviços: acolhida e entrevistas; visitas domiciliares; concessão
de benefícios como cesta básica, vale-transporte e fotografias para documentação;
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários a partir da oferta de atividades
recreativas para idosos, jovens e mulheres, encaminhamentos para outros órgãos públicos da
saúde e assistência social, atendimento psicológico individual e em grupo; elaboração de um
plano de ação para cada família com prioridade às beneficiárias dos programas de
transferência de renda; entre outros (MDS, 2009).
136
cadeiras, banheiro feminino e banheiro masculino, ou seja, um ambiente formal que fazia
lembrar o de um escritório ou de um consultório médico. Estabeleceu-se assim uma limitação
nas possibilidades de interação e organização do próprio espaço.
Foto 7 - Duelos de MC’s antes e após a implantação do Cras no espaço Casa Amarela -
Estrela D’alva – 2012 e 2013
dançarinos. Com movimentos fortes e precisos seus corpos giravam de ponta cabeça sobre o
piso preto e branco de porcelanato. Entre eles estava Miro. No período em que conheci este
jovem, assim como Faro, ele estava bastante envolvido com o movimento hip-hop; ambos os
jovens se apresentaram na época por seus nomes artísticos MC J e MC M 48.
Na seção seguinte são apresento as trajetórias dos dois, a iniciar pela de Faro, seguida
pela de Miro. Com o objetivo de conferir centralidade às suas falas, opto por construir a
narrativa a partir dos trechos das entrevistas. Optei também pelo recurso duplo da transcrição
literal das falas organizada em função dos objetivos desta tese de modo a apontar aspectos
relativos à transição para a vida adulta e os sentidos e representações das práticas sociais
produzidos pelos agentes.
Faro foi o primeiro jovem com quem realizei entrevistas biográficas. Até então havia
entrevistado somente moradores adultos, além de lideranças comunitárias. Conheci Faro no
48
São designações das letras iniciais de seus nomes artísticos, aqui não revelados para preservação do
anonimato.
140
mesmo momento no qual conheci Miro, durante um evento realizado no bairro pela Prefeitura
Municipal para receber o presidente das Nações Unidas no Brasil. Neste evento houve um
espaço reservado para apresentações culturais realizadas por jovens participantes de projetos
sociais vinculados à execução do Programa Conjunto – ONU. Foi neste dia em que Faro
convidou-me para conhecer as batalhas de mc’s da casa amarela. Seu convite não foi por
gentileza, Faro era um jovem muito bem articulado com pessoas de diversas esferas sociais e
naquela época participava de modo mais efetivo que os demais MC’s do bairro das atividades,
cursos e capacitações oferecidas pelo Programa da ONU. Além disso, Faro mantinha um
trânsito social bem articulado no bairro, fosse junto a lideranças políticas e religiosas, fosse
junto ao movimento hip-hop, tanto quanto junto a Imagens do narcotráfico. Vale a pena
recordar que, em função da sua rede social e das participações voluntárias nos projetos sociais
da ONU, Faro foi convidado para exercer o cargo de articulador social no CRAS - Casa
Amarela.
Quando o entrevistei, em 2013, Faro já trabalhava como articulador social no CRAS
Casa Amarela, onde realizava um turno de 40 horas semanais com remuneração mensal de
pouco mais de R$900,00. O cargo de articulador social é previsto pela Política Nacional de
Assistência Social (PNAS, 2009), ao passo que o CRAS é um equipamento da política
focalizada em territórios de “alta vulnerabilidade social”. O cargo é comum em bairros com
aglomeração de famílias em situação de pobreza, segregados, com problemas de violência
brutal (homicídios) e, por isso, a entrada de pessoas de fora do bairro, como os assistentes
sociais, não ocorre sem a mediação de um morador. Tal é o contexto do Estrela D’Alva e
outros em situação relativamente semelhante na RMBH.
A questão é que a efetivação das ações executadas pelos assistentes sociais dependia
da mediação feita por um “nativo”, de “alguém do lugar”, pelo menos no primeiro ano do
equipamento, até a equipe técnica ser familiarizada pela população local. Faro possuía o perfil
desejado pelo CRAS, era um destes, dotado do conhecimento necessário para desempenhar tal
função, inclusive para ajudar a manter a rotina do equipamento cujas atividades eram
desenvolvidas ao lado de um ponto de venda de drogas ilícitas, situado na praça anexa ao
CRAS. A trajetória de Faro é marcada pelo seu envolvimento na igreja e, por essa via, na vida
comunitária da periferia desde a adolescência, muito antes de trabalhar no CRAS.
Faro desempenhou o papel de interlocutor privilegiado ou de informante-chave no
desenvolvimento da pesquisa de campo indicando-me outros jovens e pessoas como pastores,
presidentes de ONG’s e de associação de moradores com quem tive a oportunidade de realizar
entrevistas ou de levantar outro tipo de informações sobre a história e vida social no bairro.
141
Faro apresentou-me ainda espaços relevantes da vida social e cultural no Estrela D’alva tais
como o Campo do Zé Gordo – espaço de prática futebolística, interação juvenil e que já foi
utilizado em tempos recentes para a prática de homicídios e outras violências – e o Monte,
uma espécie de mirante onde religiosos locais costumam desenvolver retiros espirituais e
práticas de exorcismo por meio da queima de objetos.
Diferentemente de Miro, que nunca mais vi, com Faro mantive contato durante toda a
etnografia e obtive um conjunto maior de dados sobre a vida no bairro a partir de sua
trajetória de vida. Com ele estabeleci um importante vínculo para o desenvolvimento da tese.
Quando fizemos as entrevistas, Faro estava com 21 anos de idade, residia no Estrela D’alva
desde que nasceu e pela primeira vez morava fora da casa de seu pai, em um barracão de
fundos alugado pela família de sua namorada, no mesmo bairro.
Desde os 13 anos de idade Faro exercia algum tipo de atividade remunerada, sendo a
maior parte em setores informais da economia. Sua carreira escolar encerrou-se quando tinha
14 anos, antes mesmo de completar os oito anos de escolarização fundamental prevista na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996). Estudou até o correspondente à antiga 7ª
série, hoje 8º ano. Quando criança frequentou a igreja metodista, tendo-se transferido, na
adolescência, para a igreja batista. E, embora se encontrasse formalmente desvinculado da
igreja quando nos conhecemos, sua namorada permanecia fiel, razão principal para que Faro
mantivesse um vínculo religioso, embora esbatido. Algumas vezes o encontrei na porta ou
mesmo dentro do templo da Primeira Igreja Batista do Bairro Estrela D’alva, a PIBED, nos
cultos de domingo.
Aos sábados à noite Faro participava das batalhas de mc’s. Por ser funcionário do
CRAS, ele ficava encarregado de portar a chave do lugar para que as batalhas pudessem ser
realizadas. Faro também atuava na organização de outros eventos relacionados à cultura hip-
hop no bairro e fora dele noutras áreas do município de Contagem por convite do governo
municipal. No bairro, além do trabalho no CRAS, ele prestava serviços de pintura e oficinas
de grafite. Em simultâneo, encontrava-se relativamente envolvido na vida política formal do
Estrela D’alva. Esse vínculo profissional proporcionava-lhe, com relativa frequência,
relacionamentos com vereadores e outras lideranças políticas locais, a exemplo de presidentes
de ONG’s.
As entrevistas foram realizadas no CRAS, na sua residência e na casa de seu pai, onde
o jovem acolheu-me demostrando sempre interesse e apreço pela pesquisa. Os trechos que
apresento a seguir representam percursos sociais marcantes em seu relato biográfico, foram
obtidos nesses três locais e serão apresentados em conjunto, compondo uma só narrativa.
142
Aqui, um menino vira homem mais cedo. A mulher vira mulher muito mais cedo.
Tem que aprender a correr por si mesmo, entendeu? Aprender a si virar no mundo
mesmo, porque a situação é infelizmente pra nós, é..., as portas são fechadas muito
mais vezes do que são abertas entendeu? Então a pessoa tem que aprender a si virar
aqui é precocemente, diferente da pessoa que não mora na periferia. A pessoa que
não mora na periferia, eu não digo todos, é claro, não todos, em geral tem uma vida
financeira melhor, mora às vezes num apartamento ou numa casa legal, num bairro
legal, tem um emprego bom, tem condição de manter o menino na escola sem ele ter
que trabalhar. Eu digo é que as pessoas aqui são mais evoluídas como homens e
como mulheres, evolui mais rápido para o cotidiano de vida, não digo na capacidade
de…, como eu posso dizer? Aqui não desenvolvem aquela questão do intelectual, do
estudo ou de uma formação. Isso, infelizmente, tem deixado a desejar, mas em
outras áreas desenvolve outras. O povo da periferia tem uma garra maior, luta mais
pelas coisas, acredita mais, tem uma esperança maior, que tem essa questão de
levantar todo dia cedo, de buscar a mudança, de buscar o melhor pra família.
Ah, eu não levava muito a sério a questão do estudo não [risos], tanto que nessa
época aí foi a época em que eu comecei a..., eu tomei bomba, peguei recuperação
demais, tinha uma época que eu saia da escola e tal. Teve ano lá que eu levei
suspensão por segurar B.O <problema> dos outros. Entendeu? Porque eu sabia que
ia dar expulsão do menino lá, e aí como eu já tinha um vínculo legal com a diretora
eu tentei segurar a onda e tal e acabei tomando uma. É porque o menino jogou uma
bomba garrafão pela janela de dentro da sala de aula, ele amarrou umas três bombas
garrafão e acendeu e aí o lerdão não sabia o que fazer “e agora? e agora? e agora? e
agora?” e um outro colega disse “a janela!, joga! Joga! Joga!”. E ele foi e jogou e na
hora estava passando a professora, e a professora estava grávida! E era a professora
de inglês, uma professora que a gente já não tinha assim..., um vínculo legal, é
porque ninguém sabia inglês e nós “pô professora, nóis mal sabe falar português
direito e a senhora quer enfiar esse inglês com nós?”. E a coitada estava grávida
ainda na época, e ela entrou na sala e o cabelo dela estava “Vap!” igual uma esponja
que subiu, a bomba estourou no alto e nem chegou a pegar no chão e aí estourou e
ela entrou com uma cara..., ela entrou tremendo: “olha vocês tudo aí ó!”. E veio a
diretora e todo mundo, todo mundo: “meu Deus do céu, olha só pra professora!”, e
você precisa ver o conflito que deu. E aí perguntaram: “quem foi? quem foi? quem
foi? quem foi?”, e ninguém nada, e “quem foi? quem foi? quem foi? quem foi?”. E
143
aí pá, o menino já tinha passado uns problemas, ele já era meio de conflito na escola,
aí o pessoal disse: “vocês todos que estão sentados perto da janela, vocês todos vão
descer!”. Pá, beleza, aí todo mundo desceu. Aí ela foi conversando com cada um:
“oh, se for você é isso, é isso e isso”, aí, “se for você é isso, e isso, e isso”, e foi para
o menino que jogou e falou “oh, se for você, você não entra mais aqui e nem em
escola nenhuma! Você vai ser expulso e vou é mandar já seu nome para a Secretaria
de Educação!”. E ela falou pra mim “E o que é que você está fazendo aqui?” e eu
falei “ah, eu estava lá perto da janela e o pessoal mandou descer”, e ela “então tá,
então fica aí!”. Aí nós fomos e falamos assim: “deixa nós conversar ali fora
primeiro, e tal”. E aí nós fomos lá e: “pô, e aí, o que é que a gente vai arrumar?” e aí
nós sentou e “véi o que é que a gente vai arrumar?”, aí o cara foi , “mas vocês viram
o que é que vai dar pra mim né, o que que vai dar pra mim” e aí, já é, “então vamos
tentar segurar o B.O dele”. E aí lá dentro ele falou “pô, e aí Dona Geralda e se for eu
e pá vai rolar isso mesmo?”, e aí um outro foi e jogou “ e se for eu? e se for eu? e
tal” pá, “ e se for eu? e se for eu? e se for eu?...”, aí beleza, então “oh Dona Geralda
é o seguinte...” e aí no momento ali tal eu joguei o K.O (um lero-lero) e falei: “sem
querer eu acendi e quando eu acendi, e eu lerdão demais não sabia o que fazia e fui
e joguei pela janela”. E aí, ela ouviu, ouviu, e depois quando eu terminei de falar ela
disse “eu sei que não foi você, mas pela sua atitude eu vou liberar vocês, entendeu?
Mas vocês estão na minha lista e são três dias em casa pra cada um”.
[...] Eu era doido pra sair da escola, eu nunca gostei de estudar, por causa disso, eu
não aguentava ter que chegar lá e ter que sentar dentro da sala de aula e ter que ficar
ouvindo o professor falar, e eu não estava interessado em arrumar amizades na
escola, tipo assim vou arrumar amizade na escola com gente que eu vejo todo dia?
Mas tem gente que já tomou bomba, ou tem gente que saiu da escola e queria voltar
por causa disso, porque na escola tinha aquela convivência entendeu, eu sempre
achei meio idiota isso, que gosta de ir pra escola como lugar de encontro, tem gente
que faz isso fraga.
Eu comecei bem cedo e antes da carteira era catando papelão, catando latinha,
vendendo chup-chup, eram essas coisas, e trabalhei em sapataria, o que você
imaginar eu acho que já fiz, antes de vir pra cá eu trabalhava como pintor, trabalhei
em restaurante, sai do restaurante e dei entrada na Cruz Vermelha lá na PUC [...]
trabalhando na Cruz Vermelha, cara. Tipo ou é do setor que você está, entendeu,
tipo eu trabalhei na PUC e depois fui para o colégio, ou eu melava muito o saco do
pessoal do colégio para que depois quando eu fosse mandado embora da Cruz
Vermelha eles me recontratassem, ou eu era mandado embora e ficava por isso
mesmo. Ter isso no currículo, eu já mandei meu curriculo pra um tanto de lugar e
ninguém nunca me chamou por causa disso não, entendeu, então não fez diferença
nenhuma.
Eu sei que tem alguns que voltou a trabalhar no colégio e tem outros que trabalham
na PUC e tal, mas é daqueles caras que gosta de melar um saco mesmo e de receber
ordens mesmo. Já no meu caso não, eu sempre fui assim pá, eu vou fazer aquilo que
eu acho que é certo. Eles me mandavam fazer coisas lá no colégio cara, não é
tirando não, mas não era trabalho meu não. Vamos supor, a secretária, porque lá não
tem coordenador nem outra coisa não, no começo ela jogava tudo em cima do Cruz
Vermelha, lá dentro o Cruz Vermelha era capacho. Vamos supor, tinham coisas que
eram pra entregar e que era para a mãe do aluno receber no mesmo dia e a aula lá é
12h30, e aí eu tinha que entregar o material antes da última aula, tipo no início da
última aula umas 11h40, e tinha umas caixinhas lá que eram de material que era pra
entregar e as mulheres te davam o negócio às 12h00 ou 12h10. Elas já sabiam que a
gente não ia olhar a caixa mais, porque o que era para ser entregue era só até 11h40,
depois o resto não era pra entregar, só no outro dia, e elas jogavam lá, entendeu. E
depois achavam ruim com a gente ainda, tipo assim “pô não entregou?” E aí a gente
falava “olha não tava aí, nós entregamos tudo, e esse negócio não tava aí”, e mesmo
assim, quem tomava era nóis. E aí passou um tempo que teve uma situação de que
144
[Sobre ter trabalhado na infância] Eu acho que é pela renda da casa, de dentro da
própria casa, às vezes o pai de família lá trabalha como pedreiro e não tem a carteira
assinada, ou às vezes o que recebe é um salário mínimo para cuidar de seis pessoas,
ele e mais seis. Você entendeu? Então aqui, infelizmente, o trabalho é bem precoce
mesmo. [...] A vulnerabilidade aqui é muito grande pela renda da família ser muito
pouca e tal, de ser difícil, do menino ter que trabalhar e estudar. Essa é uma forma
de você garantir a sua vida? É, mas é uma forma muito prolongada. Você consegue
se você for estudando e formando numa faculdade, você consegue ter uma vida
estável? Uma vida financeira estável? Tem condição sim, mas infelizmente aqui não
tem como a gente esperar esse tempo, a maioria das pessoas aqui não tem como
esperar o menino ter que estudar e ter que fazer uma faculdade, tem condição pra
isso, de manter o menino estudando pra depois começar a entrar no mercado de
trabalho? Tem que começar cedo e infelizmente ou o menor de idade não consegue
o trabalho ou o trabalho é muito pesado ou ele ganha pouco demais, e a
criminalidade aqui é a forma mais fácil de conseguir uma grana, é a mais fácil de
conseguir um dinheiro bom, entendeu? Eu nunca reclamei não, dá hora, mas hoje eu
tenho a visão de que tem como os caras melhorarem a sua situação como menor,
não, como “jovem aprendiz” como dizem, nem falam “menor” mais.
assim, teve várias situações [...] mas eu vou falar pra você, eu nunca vi usuário de
drogas aqui hibernar mesmo na droga igual eles lá. Na minha opinião, o uso de
drogas lá, na burguesia, é muito maior do que aqui dentro. Lá o movimento é…, é o
mesmo que tem aqui é o mesmo que tem lá, entendeu? Eu não sei, mas os caras…,
eu comecei a refletir foi por causa disso, “pô, a gente tem toda uma dificuldade de
vida, com polícia, com tráfico…, pra crescer na vida, pra você conseguir um trampo
e continuar a estudar”, e lá, os caras tem tudo. Eu acho que, pelo fato de terem tudo,
os caras querem é curtir. Os caras bebiam muito, os caras cheiravam muito, fumava
muito, então tipo assim, eu via aquilo e eu falava assim “eu não quero isso”. Pô, os
caras tem tudo aqui e não querem isso, enquanto a gente tá lá e não tem nada e tem
nego lutando pra poder ser alguém. E eu pensei assim, que, eu quero ser essa pessoa,
pra ser alguém, entendeu? E várias coisas, e tinha outros fatores também. Tinha
gente lá assim, que tinha uma boa condição mas, era mais tranquilo e tinha muitas
ideias legais. Mas, era tipo assim, um convívio diferente do que a gente tem aqui.
[...] os caras tem tudo, sei lá, os caras querem é curtir a vida e você não vê os caras
falando de Deus, e aqui não você sempre tem isso. Às vezes você está sentado e o
cara tá fumando um baseado, mas está falando de Deus, tipo “nó véi, Deus tá me
abençoando”, tipo assim os caras estão falando de coisas da bíblia, muitos deles já
passaram por igreja e tal, ou às vezes ainda tem uma questão de ir à igreja, não
muito forte, mas tem. Então eu acho que a fé aqui é uma questão muito grande, eu
acho assim, por não ter algo palpável assim, eles são de imaginar que existe um
Deus e que esse Deus está olhando pra você, está te protegendo eu acho que isso
assim dá uma autoestima.
Faro, articulador social: rotinas e outras situações vividas no CRAS
Com esse projeto da ONU que foi desenvolvido aqui eu comecei a participar de
algumas reuniões e, querendo ou não, com esse movimento do hip-hop na igreja que
já em si é um trabalho social e com a vinda da ONU a gente começou a desenvolvê-
lo ainda mais. Começou a ter mais visibilidade de propagar essa questão do trabalho
social. Aí, eles vieram com a ideia de introduzir um CRAS aqui no Casa Amarela. E
assim, eles estavam procurando alguma pessoa que pudesse desenvolver o trabalho
de articulador comunitário. Nesta época a coordenadora do CRAS na região do
Nacional estava conversando com o mestre-de-obras que estava trabalhando na
reforma o espaço Casa Amarela, o senhor Altair e, eu estava por perto e peguei o
bonde andando [ouvir ou entrar numa conversa de terceiros] e vi que ela estava
procurando um articulador e que tinha que ser alguém da comunidade. Ao ouvir essa
conversa fui até o Tustão que é um menino que cresceu comigo aqui e que faz um
trabalho social muito legal, ele dá aula de grafite no Educarte e é o presidente da
ONG Terra Banta. Ele representava a juventude da comunidade no Comitê da ONU,
e eu disse a ele, eu vi a J. conversando com o senhor Altair sobre uma vaga de
emprego de articulador e tal, e você poderia ver com ela isso pra mim. Então, ele
ligou para ela e agendou uma reunião para poder falar a meu respeito, para indicar-
me ao cargo. E, no dia da reunião, antes do Luiz chegar a dizer sobre mim ela disse a
ele: “antes de você falar eu quero dizer que conheci um colega seu, eu gostei dele e
acho que ele seria ideal”. Então, ele perguntou a ela quem era, e ela disse “o Faro”.
E ele respondeu a ela, “é do Faro mesmo que eu vim falar”. E assim foi, juntou-se o
útil ao agradável e, graças a Deus, hoje estou aqui.
A Bolsa Família saiu muito foi no início, mas não é só ele, é o Cadastro Único né. E
o que acontece, ia muito naquela questão “Ah, eu vou lá e, mês que vem, já estou
recebendo”, e não é assim que funciona, entendeu? Tem que passar pelo
atendimento, e depois, vai fazer o cadastro lá, e depois que entrar no cadastro único
vai demorar de 3 a 6 meses para ela ter acesso, isso se ela for do perfil. O Cadastro
Único tem vários benefícios: você é isento de taxas caso vá fazer uma prova, um
concurso público, tem uma diminuição tanto na conta de luz como na conta de água,
e se a mulher for dona de casa ela pode pagar o INSS dela por um valor mais barato,
e tem o Bolsa Família. Isso tudo dentro do Cadastro Único. Tem outras coisas
também como o Pronatec (Programa Nacional de Aprendizado Técnico) que é um
curso que você pode fazer e tal, tem outros benefícios. E é bom, tem mais de 600
146
cursos, eu mesmo estou querendo fazer um. A cesta básica não, se você chegar lá e
falar para a assistente social, se naquilo que ela falar ela for perfil ela já leva, só
depois é que a assistente social vai até a casa da pessoa por visita domiciliar para
saber se realmente ela está nesse perfil. Então, a procura pela cesta básica tem sido
grande.
[...] Às vezes as meninas lá [as técnicas e as assistentes sociais] às vezes ficam meio
piradonas comigo assim, porque eu sempre tento quebrar essa questão fraga, essa
questão técnica, de tentar ver a situação da pessoa de uma outra forma, não daquilo
que se estudou, mas de uma outra forma mesmo, tentar parar e pensar “o que essa
pessoa está vivendo?”. Elas estavam falando de uma questão dos meninos da escola,
do por que dos meninos não estarem indo e tal, e aí eu fui e falei “beleza, mas o que
a escola tem de atrativo pra esses meninos?” tipo assim o que é que o menino faz? O
que é que ele quer fazer da vida? Ele quer é estudar português e estudar matemática?
Às vezes o dom que ele tem na escola ele não acha, mas na rua ele acha. Vamos
supor que ele quer artes, e chega dentro da sala de aula a professora dá uma folha e
fala assim “faz um desenho”, tipo assim não te ensina arte. Poxa, o que é arte? O que
é que eu posso fazer? O que é que eu posso criar? Não te ensinam isso.
[...] Foi no mês passado, no início do mês passado, dia de semana, eu estava saindo
para almoçar, eu estava saindo do Cras e aí eu encontrei um camarada meu [um
amigo], eu parei para cumprimenta-lo e aí chegou a polícia “mão na cabeça!” e
abordou, até aí tudo bem, e aí o cara veio e me revistou e tudo, pá, beleza, e assim
que ele terminou de revistar eu meio que chateado com a situação pois tava indo
almoçar, eu abaixei a mão pois pensei “o cara terminou, então tá beleza” abaixei a
mão e tipo assim voltei ao normal. E então o cara foi e mandou-me voltar pra
mesma posição que eu estava e nisso aí o cara já achou que eu estava tirando ele
[ofendendo], o policial, então eu voltei pra mesma posição e olhei para o rosto dele
e fiz aquela cara de “pô, de novo!”. Nossa! O cara já ficou… “pô véi, você não
respeita não?” e não sei o que mais e chegou perto de mim e disse “é, você está se
achando demais, e não sei o que, não sei o que…” e deu um tapa na minha cara e
falou “ah, você é folgado, você é isso, você é aquilo” e chegou e boom, e deu-me
uma cabeçada e eu vi estrela na hora véi e depois até deu uma inchada, e aí ele já me
deu um bicudo [ponta pé forte] na perna, e depois já deu um bicudo na outra e já
mandou “abre essas pernas!”. E eu gelei, e pá, e o pessoal do Cras, uma das
funcionárias de lá tinha visto e disse “O que é isso? O que é isso? O menino trabalha
aqui, e não sei que mais…”. E ela foi lá e chamou as técnicas, assistente social “pô,
vai lá, olhar lá, o Faro tá apanhando da polícia lá fora lá e tal”, e as meninas já
correu e pá “que isso? O que está rolando? O menino trabalha com nós aqui”. E aí o
policial, maior arrogante, né? “É, mas não tá escrito na testa de ninguém se é
trabalhador ou não”, até aí tudo bem, mas aí “e o que é isso aí?” [perguntou o
policial], e aí, “é o Cras!” [respondeu a técnica], “E o Cras é de quê?” [perguntou o
policial], “É um equipamento público que a secretaria de desenvolvimento social, é
da secretaria de desenvolvimento social”. [...] Os caras saíram, esse que me bateu e
um outro camarada lá que respondeu as meninas de mal jeito, e um outro que estava
responsável pela viatura é que veio e que conversou comigo, e veio conversar
comigo e assim: “pô cara, nossa, mas você não pode fazer isso, você sabe que você
não pode fazer isso, e não dá nada para os caras quererem fazer alguma coisa com
você e tal”, e aí eu disse “mas o senhor mesmo viu que eu não fiz nada, pá não falei
nada, baixei a mão”, “você está errado” [respondeu o policial], mas nem por isso é
motivo pra cara sair me batendo assim não.
Eu não sei te falar desde quando, quando eu era criança eu frequenta a PIBED, e ela
era pequeninha, mas eu acho que depois que começou aqui e a população cresceu
também, eu não sei te falar assim quando foi isso, simplesmente eu acordei um dia e
fui reparar e tem muita igreja aqui, às vezes em um quarteirão tem umas três ou
quatro. Só nesse quarteirão aqui, se eu for contar, começando lá de baixo, tem uma
na esquina lá em baixo, tem uma aqui na esquina aqui de cima, tem essa daqui [em
147
frente a casa dele tem uma bem barulhenta], tinha uma outra ali na frente. Só nesse
quarteirão aqui, olha que a rua é grande e tem quatro, mas tem rua que é menor e
tem três igrejas. [Perguntei a ele o por que de tantas igrejas e o jovem
prosseguiu:]Antigamente era pela questão da fé, da fé mesmo, e hoje em dia parece
que virou moda você estar na igreja, então tem muita gente que não vive realmente
aquilo que está pregando, mas a ideia inicial desde sempre foi essa, tipo pelo
trabalho com vidas, com pessoas, então, se não tiver pessoas você não tem igreja,
então tipo assim tem que saber como os meninos estão, como as pessoas estão, e
devem acompanhar, e então se precisa de uma ajuda a gente vê o que pode fazer. A
ideia da célula é essa entendeu, faz o que acontece que a igreja que é grande demais
não pode fazer, de filtrar tudo assim, a célula filtra entendeu, o lider da célula está
responsável em acompanhar cada um.[...] É nessa visão a célula, porque tipo assim
eles gostam do trabalho muito em comunhão, pregam muito essa questão da união e
tal, e o amor entre as pessoas. E na igreja grande não tem como você ter isso, e tem
várias panelas, eles formam, e na célula tem como você acompanhar. Não tem como
o pastor [refere-se ao lider da PIBED] chegar assim e falar: “e o Marcão, como está
o Marcão?” ou “eu vou lá no Marcão.”. Ele tem outras coisas para resolver A igreja
vai crescendo e não dá pra ele acompanhar.
[...] Você está ali, e já está tudo ali, o que você tem que fazer é vender, é só ficar ali,
vai pegar o seu e vai vender, entendeu, é igual uma loja, você chega na loja e já tem
tudo lá, entendeu? É isso, é simplesmente isso. O dinheiro vai e entra, eu mesmo de
estar sentado lá, “pô estou sentado aqui já tem meia hora e já passou uns dez negos
aqui, imagina se eu ficasse aqui o dia inteiro?”, entendeu? Cada nego desse aí é
R$5,00, R$10,00 ou R$20,00 reais, o dia inteiro, imagina coloque aí uma 30 pessoas
por dia a R$10,00 contos, entendeu, e isso de dia, e de noite? E no final de semana?
Feriado? É muito maior, entendeu.
[...] É assim, eu mesmo ralo [trabalho] o mês inteiro pra ganhar R$900,00 e poucos
reais, sendo que o cara que está ali do meu lado na Casa Amarela, do meu lado
assim, está ali sempre no convívio ali, com um dia o cara tira o mesmo tanto que eu.
Os caras, de vez enquanto, eles tomam muito café lá e comem pão e tal, e às vezes,
os caras querem bancar e dizem “hoje eu é quem vou bancar o café” Tem muito
disso, cada dia é um. Aí, o que que pega? O cara tira uma carteira, do bolso, aquele
bolão de notas, não tá nem cabendo, de tanto dinheiro que está na carteira. Então,
tipo assim isso é ostentador véi, pô eu tô ralando pacaraí, [trabalhando muito] mas
eu ralo ali tranquilo até engordei, agora imagine para um pedreiro ou servente de
obras que o serviço é mais pesado e o salário é o mesmo ou, às vezes, é até menor e
vê uma situação dessa ele pensa “eu quero é uma vida dessa pra mim”. Eu mesmo
sentado ali [próximo ao Cras] porque tem dia que eu fico lá sentado pra fazer
alguma coisa, às vezes tenho que escrever alguma coisa e aí eu vou sentar lá fora. O
que acontece…? Só de eu estar ali, vai muito pela questão de roupa, da vestimenta
também, isso conta muito entendeu? Às vezes, só de eu estar sentado ali, já teve dia
que já chegou uns 10 negos: “pô, você não tem aí não?”. Aí, tipo assim: “não véi,
não tenho não”. Eles acham que se você está ali é pra vender. Aí, eu estou sentado
e…, pela vestimenta também, mais marginal como o pessoal fala, mais marginal e
aí, só de eu estar ali o pessoal: “ E aí, você não tem não?”. Então, eu vejo que ali o
lucro dos caras é grande, é grande, muito grande, muito grande mesmo porque toda
hora têm. Têm hora que os caras chegam lá as 10 horas da manhã querendo,
querendo e, tipo assim, às 10 horas da manhã você não acha ninguém, os caras estão
tudo dormindo essa hora, pois, virou a noite acordado… então é, tipo assim, é
simples, e é um mercado que às vezes você não o vê, mas ele está ali, [...], por
exemplo, você tá ali vendendo, vem um cara e você dá droga pra ele e pronto,
beleza. É um comércio que está ali, mas ninguém vê, entre aspas, ninguém vê. Mas
quando é roubo, furto ou alguma coisa assim, ou morte, aí tem polícia. [...]
[...] Se você chegar lá em baixo agora na Casa Amarela, não sei, mas qualquer
buraco ou buraco de tijolos, ou no meio do mato ali assim, você acha ali, entendeu?
Eu mesmo já cansei de encontrar: “Pô, tem um trem jogado ali…”. Então, entre
aspas, é muito fácil e teve até um problema com um menino aqui esses dias, o
menino estava iniciando, começando a vender, só que aí, o que acontece, deu
derrame [Quando o sujeito responsável por uma carga de drogas a perde ou a utiliza
para seu próprio consumo e deixa dívida aberta com seu “patrão”]. ou que alguém
roubou dele ou falou que lhe tinham roubado. Não sei, mas ele não usou, não chegou
a usá-la. E aí, o que pega, é que ele ficou devendo essa droga, mas não tinha
dinheiro pra pagar. E aí, o que ele fez? Ele roubou de outro para poder vender, para
poder pagar, entre aspas, foi mais ou menos isso, entendeu? E aí, o que é que pega?
Descobriram que ele tinha roubado, e o menino de quem ele roubou, pelo fato dele
ter crescido, ter estudado junto e tal, ele não quis fazer nada, não quis fazer nada, só
falou: “Pô velho, some daqui”. Ele não queria fazer nada, mas os outros meninos
queriam passar ele [matá-lo]. Hoje ele nem sai na rua, fica só dentro de casa, da casa
pra escola, da escola pra casa. A grande maioria, estuda na mesma escola ou, passou
pela mesma igreja, frequentou, sei lá, um mesmo lugar.
[...] Igual o caso daquele menino que deu o derrame, ele nem sai direito, ele não
pode ir até a casa amarela porque pode morrer, não pelo cara a quem está devendo,
mas pela mão de outro. Com todo mundo…, em todo lugar o cara fica com má fama
149
e, às vezes, o que acontece é que outro cara acaba cobrando essa questão. Tipo
assim, os caras vai muito naquela: “ah, a regra é essa”, então, tipo assim…: “a
punição tem que acontecer”. O menino mesmo me falou “ah o cara me roubou, mas
eu cresci com ele, pô, eu conheço a mãe dele, eu conheço…, e isso pra mim não é
nada não, eu não vou ficar aí…, eu não vou matar o cara por causa disso não”.
Como ele conseguiu pagar a droga de volta, então tipo assim, na boa. Mas se fossem
outros caras ele teria matado. No caso do Miro aconteceu isso daí. Olha só pra você
ver, ele tentou roubar o cara aqui, mas a qualquer lugar que vá, em todos os lugares,
querendo ou não você ouve falar. Como os caras sabiam que eu tinha muita ligação
com ele, os caras falaram “pô, o quê que aquele cara arrumou?”.
[...] tem o tal do tribunal, a gente brinca muito, fraga? Então tem um barraco…, e os
caras não estão matando, mas estão dando punição. Tem essa do corte do cabelo,
tem as que apanham à madeirada na cara. O caso do Miro mesmo, ele deu muita
sorte de não ter tomado…, e o caso dele nem foi o envolvimento com droga nem
nada, foi simplesmente por ter dado um entrevista para um jornal, acho que O
Tempo, de Contagem, saiu uma matéria lá que era mentira. Falou que a casa (o Casa
Amarela) tava fechada e que não poderia abrir, sendo que não foi isso. Foi um dia
que se fechou porque eu não podia estar, então, não tinha ninguém pra abrir. Então o
que acontece, um dos…, dos patrões, estava na reunião com a gente sobre o que
poderia ser feito, e eles já estavam cientes que não abriria esse dia, por causa disso.
Todo mundo tava ciente. Então beleza, passou essa semana, veio o final de semana e
não abriu porque não tinha ninguém pra abrir porque eu não estava. Aí, quando foi
na segunda, ou na terça-feira já saiu essa matéria no jornal. E aí, o que acontece?
Antes de eu chegar na Casa Amarela o cara já estava lá me esperando, e que alguma
coisa ia acontecer, pois, a gente tava na reunião e depois viu a matéria, e veio me
mostrar.
[...] entre aspas, porque o que acontece? A comunidade querendo ou não, eu não vou
dizer a comunidade, mas tem muita gente que, tipo assim, tem mais uma
proximidade com eles do que com a própria polícia. Foi um líder comunitário que
mostrou pra ele essa questão, ele veio e mostrou pra mim. O Miro só não apanhou
porque…, é Deus mesmo. Acho que Deus gosta muito dele. Igual naquele caso da
droga que ele tinha apanhado, só não morreu…, porque é Deus mesmo. O cara ainda
falou pra ele “sai daqui, senão vou matar você”. E o quê que pega? Ele saiu fora.
Porque o cara pensou, pensou, pensou “mas dessa vez agora eu vou matar”. Ele já
deu outros problemas entendeu? E aconteceu que ele já tinha saído fora.
Embora não ultrapassasse os 21 anos de idade, Faro apresentou ser uma pessoa com
bastante experiência de vida. O jovem trabalhava há dez anos, atuando em diversas ocupações
no mercado formal e informal metropolitano. Há sete anos havia abandonado a escola, não
residia na mesma casa que seus pais e estava prestes a ficar noivo, pretendendo casar-se nos
anos seguintes. Estava trilhando um caminho relativamente comum a tantos outros jovens do
bairro que, como ele, iniciaram suas experiências laborais ainda na infância. A inserção no
mundo do trabalho49 apresentou-se como um ponto de inflexão significativo nas trajetórias
juvenis no Estrela D’alva. É o que evidencia quando, por exemplo, refletindo sobre a vida de
homens e mulheres no bairro, diz que “aqui, um menino vira homem mais cedo. A mulher vira
mulher muito mais cedo. Tem que aprender a correr por si mesmo, entendeu? Aprender a si
virar no mundo mesmo, porque a situação é, infelizmente pra nós, as portas são fechadas
muito mais vezes do que são abertas entendeu?”. O uso da primeira pessoa do plural “nós”
indica que sua fala se dirige aos jovens da periferia e não aos de outras classes sociais.
Faro pôde perceber tais diferenças em seus de trânsitos metropolitanos fora da
periferia por laços adquiridos por meio das relações de trabalho quando ele foi um Cruz
Vermelha no Colégio Católico, onde teve a oportunidade de conviver com jovens de outras
classes sociais, médias e altas. O seu vínculo com os alunos do tal colégio, escola privada
tradicional de Belo Horizonte, foi estabelecido pelas relações de compra e venda das
“paradinhas” (maconha) por parte daqueles que tinham interesse de adquiri-la dentro da
escola e não na favela ou na biqueira. Era Faro quem corria o risco de ir até a biqueira e
trazer as “paradinhas” de modo seguro e entregar nas mãos dos alunos do colégio. Por
intermédio desse contexto, teve a oportunidade de interagir com jovens de outras classes
sociais fora de seu ambiente de trabalho e da periferia.
Contudo, sua relação com estes grupos não era horizontal, mas regulada pela
hierarquia social. Faro era visto por eles como cruz vermelha, não desfrutava do mesmo status
de “aluno da escola particular”, era um entre tantos funcionários da escola que estava ali para
servi-los, inclusive com as “paradinhas”. E foi a partir dessas relações que Faro frequentou
áreas como a Savassi e a Praça da Liberdade, onde pode conhecer um pouco mais dos estilos
de vida adotados por jovens de outras classes sociais. Enquanto estes podiam se preocupar em
gozar a vida e tinham como responsabilidade central a carreira escolar, na periferia os
49
Dimensão estruturante e central da vida em sociedade segundo autores do pensamento clássico das ciências
sociais como em Marx e Engels (1984) e em Durkheim (1977).
151
Miro é natural do Vale do Jequitinhonha50 e chegou ao Estrela D’alva aos cinco anos
de idade. Quando eu o entrevistei, Miro tinha 22 anos e morava com a mãe e mais três irmãos
em um domicílio de três cômodos, sem acabamento nem reboco. Quando nos conhecemos sua
atividade principal, embora não fosse remunerada, consistia na produção de eventos culturais
direcionados ao público juvenil do bairro. Tratavam-se de eventos vinculados ao universo do
hip-hop, como duelo de rimas, dança de rua, grafite e mostra de filmes (cineclube). Miro
frequentava as Batalhas de MC’s que ocorriam debaixo do viaduto Santa Tereza em Belo
Horizonte, além de mostra de filmes, shows e calouradas promovidos pela Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da UFMG. Miro estava fora do mercado formal de trabalho,
contrato ou com carteira assinada, para conseguir dinheiro prestava serviços de pintura em
estilo grafite, principalmente para os comerciantes do bairro. Contudo, eram trabalhos
esporádicos e que não lhe garantiam muita coisa, de modo que seu rendimento mensal era
inferior a um salário mínimo51.
Ao longo da conversa fez questão de declarar-se como “preto” e “favelado”. Ele
exerceu atividades laborais informais das mais diversas, sendo que seus percursos escolares,
religiosos e no crime foram marcados por descontinuidades. Apesar disso, concluiu o Ensino
Básico (LDB, 1996) e ingressou na universidade, abandonando-a logo no início.
Cerca de cinco meses após nosso encontro, Miro havia fugido do bairro devido uma
ameaça de morte que sofrera de narcotraficantes. O motivo de seu desaparecimento, segundo
disseram-me outros jovens, teria sido uma dívida com o narcotráfico local. Desde então, não o
vi mais, nem tive notícias sobre seu paradeiro. A seguir, a trajetória é apresentada por trechos
da entrevista que foram transcritos e estruturados a partir de uma seleção dos aspetos mais
significativos do seu relato.
Miro, memórias da infância no Bairro
Eu moro aqui desde os meus cinco anos de idade, vim pra cá porque minha avó
adoeceu lá no interior e como lá não tem estrutura pra atender, trouxeram pra BH.
Eu lembro que isso aqui tudo era mato, isso aqui tudo era mato, a praça ali, eu
lembro, a praça do Estrela D’alva era rua de terra e ali era tipo um parquinho com
uns brinquedinhos velhos e só depois de muito tempo que mudou. Tinha menos
casas, tinha bem menos casas aqui antigamente, eu lembro a maioria das casas
tinham quintal [...], esses dias eu estava falando com o meu irmão: “cara, olha aqui,
da varanda dos fundos, e você só vê casa, casa, casa, fraga, não tem mais a visão do
que tem mais a frente”, tipo cresceu muito, subiram vários barracos fraga, na
comunidade, a comunidade cresceu bastante. E aqui onde estamos agora era uma
mata, eu só vinha aqui quando tinha que ir pra escola, como o acesso ao São Mateus
50
Região de Minas Gerais, historicamente marcada desigualdades sociais extremas, pobreza, trabalho escravo e
ou semiescravo (boias frias), processos migratórios relacionados ao deslocamento de mão de obra para
lavouras de cana em outras regiões do Estado e em São Paulo (NUNES, 2001).
51
Segundo o IBGE (2015) o valor vigente do salário mínimo em 01 de janeiro de 2013 era de R$678,00.
154
era difícil e o buracão começava lá de cima, vinha de lá de cima e descia tudo isso
até chegar lá em baixo, eu acho que (no buracão) cabia nele um prédio de 10 ou 12
andares, de tão profundo que era, era cabuloso “impressionante”. Eu tinha uma vida
saudável como a de qualquer outra criança numa comunidade, brincava na rua,
estudava e tipo ia pra igreja.
[...] eu comecei a namorar, meu primeiro beijo na boca foi com 10 anos. Comecei a
namorar sério dentro de casa com 12 anos e a mina já tinha uns 14, uns dois anos
mais velha do que eu e fez uma sacanagem comigo fraga, poxa, me traiu. E aí eu
fiquei maior mal e, quer saber? “Por causa disso eu vou fazer sacanagem com todas
as meninas! Ela me sacaneou, mas nunca mais eu vou deixar uma mulher me
sacanear de novo”.
[...] e foi com meus 12 meu pai e minha mãe me batiam muito e muitas das vezes
por coisa besta, e eu estava cansado de apanhar à toa que fiquei duas semanas na
rua. Depois eu voltei fraga, aí tipo meus pais conversaram comigo e eu fiquei mais
de boa.
[...] e com os meus 13 anos eu catava latinha, dava pra arrumar uma graninha, catava
uma latinha, fazia alguns bicos pra alguns comerciantes pra mim tipo comprar um
ténis, fraga, pra mim sair aí, isso daí foi me deixando revoltado tipo poxa eu estava
ganhando pouco demais, ralando o dia inteiro e ganhando muito pouco.
Então, eu subia pra Praça da Liberdade tipo pra trombar com os roqueiros, depois eu
ia pra Praça Três Corações ali na Savassi que era a Praça dos emos, eu saía dos
roqueiros e ia pra praça dos emos. Sacou véi? E criei um laço muito forte com os
roqueiros, com os emos e com a galera do rap, fraga?, [...] a galera do hip-hop a
maioria é favelada mesmo, a galera do rock, a maioria, é tipo..., não vou dizer que
são ricos, mas vamos dizer, possuem uma condição de vida melhor, mas preferem
viver uma vida alternativa, sacou? O grupo de emos é uma distorção dos roqueiros,
sacou? É uma evolução dos roqueiros emotivos. Na galera dos emos tinha várias
classes, tinha uns neguim rico, tinha uns que tem a vida melhor e uns pobre também,
e rolava umas tretas com uns homossexuais, é muito loco. Toda sexta-feira eu
chegava e aí os caras: “olha o Miro, e aí, tem goró [bebida alcoólica] vamos brear,
vamos beber, vamos morrer aqui hoje de tanto beber!” [risos], aí eu saía de casa por
volta de 06h00 da tarde de sexta-feira e voltava em casa no sábado tipo uns meio
dia, muito bêbado, às vezes carregado, vomitando mano, fraga, mas aí tipo eu estava
num laço com a galera muito foda, porque a galera cuidava de mim. Fraga? [...] E
nessa época eu estava na escola e tinha época que eu queria estudar mesmo e tinha
época que eu era o capeta da escola, fraga, badernava… eu já tomei suspensão de
duas semanas na escola, fraga. No Van Cleber <escola> eu já fui expulso duas vezes
da mesma escola, já fui expulso e voltei pra escola. Fraga?. E tinha uma época que
eu era um dos melhores alunos da escola e tinha uma época que eu era, nó…, o
155
Naquela época e até hoje, pra muita gente, a escola é, para os alunos, pra você
encontrar os seus amigos, entendeu? A escola não é pra você estudar, fraga? A
escola é pra você encontrar os amigos e zuar, “azarar” mesmo, entendeu? Então na
época eu fazia de tudo pra ir pra escola e aí eu chegava e trombava com a galerinha:
“nó!!! Vamos zuar véi, vamos zuar com acara dos professores”, fraga, “vamos
matar aula”, saca?, “vamos pular o muro da escola pra sair fora”, a gente matava
aula na rua e quando acabava a aula a gente ia para a porta da escola e no final saia
todo mundo junto, essa era a nossa diversão na escola. Fraga mano?
E aí, tipo teve uma época que a galera estava passando de ano e eu ficando, eu fiquei
retido na 8ª série por três anos e não era porque eu era burro, era porque eu gostava
na escola da galera, fraga, eu era inteligente, mas queria ficar ali naquele espaço com
a galera, entendeu? Aí, nesse último ano que eu tomei bomba eu falei “poxa véi três
gerações dos meus amigos já se foram, ah, tá na hora de eu tomar um rumo”, aí foi
aí que eu falei “oh, esse ano eu vou estudar”, e aí foi que eu... “boom!”, repercutiu
na escola toda acho que durante o ano inteiro: “nossa, o Miro mudou assim, de uma
forma muito louca, ele agora tá fazendo os trampos na escola, tá ralando, tá
estudando pra caramba”. Então, teve uma época que eu cheguei a ganhar um premio
de melhor aluno da escola, cara, olha pra você ver onde chegamos? Teve uma
professora que chegou a chorar, fraga, ela disse “você me deu muito trabalho nessa
escola, teve dia que chagava em casa passando mal por culpa sua, eu tinha vontade
de matar você nessa sala, mas hoje você provou pra todo mundo que você é uma
lenda viva, que você pode realmente mudar se você quiser.”, saca, e aí eu pensei:
“poxa, realmente, cara.”, saca, com os professores era pra eu ter aprendido muito
mais coisas se eu tivesse interessado muito antes e foi aí que eu comecei a perceber
essas mudanças em mim mesmo..., e logo após com esse lance de eu estar entrando
no crime.
Eu fui da igreja durante muito tempo, era da igreja adventista até os meus 10 para os
11 anos de idade, aí dos meus 12 até os 14 anos eu tinha saído da igreja e depois eu
voltei pra igreja Batista, saca? Como eu sempre dancei eu estava com meus 15 anos
e tinha um Ministério de Dança na igreja, era o “Atos 2” na época era bacana
demais. Tipo, mas era super bacana porque era todo mundo pá adolescente e aquela
empolgação toda e todo mundo querendo um ajudar o outro, e fazendo trabalhos
sociais na comunidade, fraga? Fazendo visitas nas casas, que era chamado de
trabalho de campo, a gente ia até as casas dos adolescentes para eles colar com nós
lá nas células que são mini-cultos ministrados dentro das casas dos moradores daqui.
Primeiro você começa como discípulo mesmo de uma Célula e depois, quando você
já tiver bastante tempo e tal você é auxiliar de Célula, aí você ajuda o líder da
Célula, entendeu? E se ele faltar você está ali presente ou ele divide as tarefas com
você nos dias das ministrações. E aí, se você já acompanha há bastante tempo se
torna um auxiliar e aí depois você se torna Líder de Célula, e você tipo tem a sua
própria Célula. E quando você é líder há outro líder acima de você e tem outro acima
dele e assim por diante até chegar ao líder de governo que é coordenado pelo Pastor
que faz a liderança central.
E a gente fazia esse trabalho de campo chamando os adolescentes pra colar mesmo
dentro da igreja, colar nos movimentos que estavam rolando dentro da igreja. Na
escola mesmo eu já pregava o evangelho pra galera, pregava uns testemunhos,
falava da bíblia mesmo, falava de Deus e depois eu ia pra casa e fazia as minhas
obrigações, às vezes ajudava a minha mãe numa boa, e em casa eu tinha o meu
tempo de ler a bíblia e depois, mais tarde, eu ia curtir hip-hop evangélico mesmo.
156
Saca mano? À tarde eu trombava com os caras da igreja para ir ao monte orar ou
então a gente ficava lendo a bíblia um na casa do outro, isso era durante a semana.
No final de semana eu dedicava ao ensaio do grupo da igreja na sexta-feira, no
sábado eram as células que eram uns encontros no final de semana que a gente fazia.
Teve uma vez, isso eu estava na igreja ainda e nós fomos ao Tijuca para tocar umas
ideias com os diretores para fazermos ações sociais lá na escola Van Cleber. E a
gente foi e, beleza, realizamos a nossa ação, mas quando estávamos saindo do portão
da garagem da escola apareceu uma viatura, uma Blazer, e fez a abordagem. Nisso,
o porteiro da escola com medo fechou o portão e ficou do lado de dentro. E o
policial fez a abordagem em mim e no amigo meu, mas totalmente brutal, ele já
chegou batendo a nossa cara no portão da garagem, fraga? Usando agressão física
total, fraga? Batendo na nossa cara, e falando “quem são vocês? O que vocês estão
fazendo aí?”, e aí respondemos “nós estávamos aqui na escola”, [e aí o PM]
“mentira, mentira, e aí eu falei “pode perguntar pro porteiro, ele tá aqui dentro aqui”,
aí o policial foi abrir o portão e [perguntou ao porteiro] “eles estavam com você?
Eles estavam com você?”, e o porteiro disse “não, não, eu nem conheço esses
meninos aí não” ele tipo ficou com medo e aí o policial sentou o cacete em nós, e aí
a gente começou a gritar: “socorro! socorro! socorro! chama a diretora aí dentro da
escola, porque a gente tava com ela agora. Chama a diretora! Chama alguém!” E
ninguém. Aí nisso, eu acho que um dos alunos ouviu e chamou a diretora, fraga, e
nisso a diretora saiu e os policiais já estavam quase saindo e ela começou a pagar o
maior pau [dar bronca] pra eles e aí eles disseram “não, isso daqui é um bando de
vagabundo que estava na rua e a gente encontrou eles fazendo coisas erradas na rua”
e a diretora falou “como? Se eles acabaram de sair da escola? Eu acabei de
conversar com eles, eles fazem um trabalho social, ajudando outras pessoas e vocês
fazem essa abordagem violenta?” e aí ele respondeu “oh, se vocês quiserem
reclamar vão até a corregedoria!” e saíram andando, fraga. E aí, eu me senti muito
mal, e na hora eu comecei a chorar, na hora da abordagem eu fiquei normal, mas
depois que eles saíram eu comecei a chorar e aí eu falei “poxa, olha a que ponto nós
chegamos, a gente é da igreja e a gente veio até aqui pra fazer um trabalho super
bacana com os alunos e recebemos essa abordagem policial totalmente desastrosa.”
Aí, tipo nesse dia aí eu me senti muito, muito humilhado, como cidadão eu me senti
muito humilhado, saca, pelo poder público, poxa, não é assim que eles devem agir
com a gente, saca, esse dia pra mim foi um dos piores.
É tipo quando você está ali tentando fazer a coisa certa, fraga, e aí uma galera chega
e diz “parabéns!” é uma vez ou outra. Você não é bem valorizado, eles não te
valorizam entendeu, mas quando você erra os caras já vem pra cima de você irmão e
dizem: você não vai ministrar! Você não vai participar disso porque você está
errado, vai ficar tantos meses de banco! O banco é tipo um castigo porque você não
tem dezoito anos e ficou com a menina, você deu um beijo na menina e vai ficar
dois meses de banco, eu já fiquei de banco demais velho, eu pegava as menininhas
tudo, fraga, e isso era foda. E aí tipo enquanto o neguinho tá passando fome, fraga,
ali dando a oferta e todo mês os 10% do seu dízimo, eles colocam aquela pressão:
“oh, você tem que doar com o coração”, mas você tem que doar, entendeu? Mas
você tem doar “com o coração”. Saca?. Eu já vi aí em pregação neguinho dando
carro, dando cheque de R$1.000,00 [...] e o cara custou pra ter o carro, fraga, ralou
muito, e aí falam “tem que fazer isso com coração”, sempre colocando isso. Mas aí,
com os meus 17 anos fui ficando revoltado com algumas coisas que eu achava que
na minha visão eram erradas dentro da igreja e ainda são. E depois que você sai da
igreja você tem outra visão, fraga, aí na visão deles, preste atenção, na visão deles eu
estou contaminado pelo diabo, entendeu? Que é o diabo é quem está me cegando pra
eu estar falando essas coisas, aí tipo, você pensa: sou totalmente devoto a Deus,
entendeu? Eu tenho temor a Deus, eu falo é da igreja entendeu? E nisso, logo que
saí da igreja eu me envolvi com o tráfico. Fraga? Me envolvi!
157
Muitas das vezes você começa é vendendo uma droguinha ali, mas para a galera
mais pesada eles dizem “oh estou deixando com você 40 buchinhas de maconha”,
sacou? Isso é para galera que está há mais tempo, agora se você está começando
dizem “oh te dou 10 dolinhas ,”buchinhas”, aqui oh, você vende oito dolinhas e as
outras duas dolinhas são sua e você pode fumar ou você faz o seu lucro, seu
dinheiro”. Beleza vendi ali e estou vendendo e aí os caras falam assim “oh, o
moleque está crescendo, tá vendendo pra caramba, vou soltar mais droga na mão
dele.”, e por aí vai. [...] Aqueles meninos ficam ali o dia inteiro, ali. Sacou? Aquilo
ali é o comercio deles, aquilo ali é que é a lojinha deles e a galera que vem chega e
diz: “e aí mano, você tem R$5,00 contos de bagulho aí?” ou “nó, estou precisando
de um pó!”, ou, “quero uma pedra.”, fraga? Olha aqui é um ponto, ali é um ponto, na
rua de baixo da Praça do Estrela é outro ponto, lá na vila tem, na Sapolândia tem, no
morro tem. Entendeu? E funciona 24h por 48h por dia. O tráfico tem os seus
guerreiros, tem todos os seus setores, entendeu? Tem a galera que fica na biqueira52
e que, fica plantada na biqueira vendendo as drogas, a galera que fica por de trás
fazendo as mercadorias e os chefes, entendeu? E quando tem que levar a mercadoria
para fora você recebe uma quantia pra ir em tal lugar, mas é correr todo aquele risco,
você tinha que correr todo o risco de ser preso ou ser morto, entendeu? Pra garantir
que a droga fosse passada. E aí você começa a viver outra vida em prol do crime,
você começa a trabalhar para os chefões, entendeu? Você cria um compromisso,
mas chega uma hora que tipo você fica alienado e pensa: “Poxa eu tenho que perder
noite de sono porque de madrugada tem os noiados que vem comprar pedra
[crack]?”. E de dia você vai dormir e você tem umas 4 ou 5 horas de sono e à tarde
você volta de novo pra biqueira, fraga, trabalha muito.
E aí você começa, você está ali numa situação, nó não tenho um puto de dinheiro,
ah, vou sair para meter uma fita e aí o primeiro boy que eu encontrar na rua eu vou
assaltar mano, e a gente ia lá para Pampulha, ia lá pro alto da Afonso Pena, lá para a
Savassi e às vezes a gente pegava nosso próprio celular passava uma senhora:
“encosta! encosta! Vamos! Passa tudo que você tem, a carteira, o dinheiro, eu quero
tudo! Celular. Anda, anda, anda!”, e se reagisse você já começava a agredir, saca?:
“Não vai me dar não? boom!” dá um empurrão e pega as coisas e sai correndo, sai
correndo mano. E quando é loja, você tem que ter uma adrenalina muito cabulosa
pra você entrar nos lugares. Antigamente no começo era uns assaltinhos lero lero
roubo em padaria em comércio e antes de eu entrar suava a mão e meu sangue
começava a bater, a explodir querendo sair, e eu começava a ficar naquela
adrenalina e aí quando eu via que não dava mais que eu já estava todo neurótico eu
já entrava em cena fraga, eu já estava com a cabeça em outro lugar já não era mais
eu: “vamos todo mundo pro chão, todo mundo pro chão!, Eu quero é só o dinheiro,
só o dinheiro! Eu não vou matar ninguém, não vou fazer nada, eu quero é só o
dinheiro! Só o dinheiro! Anda rápido, anda, anda, anda!” e pegava e saía fora mano.
Pegava um táxi: “táxi, táxi, táxi!” e “vupt!”, e dentro do táxi eu deitava e trocava de
roupa, entendeu? E ficava escondendo a cara mesmo até chegar no destino.
Teve um assalto que eu fiz de uma carga de caminhão fraga, uns carinhas tinham
me chamado para meter uma cena na BR e paramos na pista, paramos o caminhão e
entramos e batemos e espancamos o motorista e roubamos tudo e ao final rendeu
R$5.235,00 para cada um. Mano, esses cinco mil eu gastei em menos de um mês e
no final quando eu fui olhar eu não tinha nada, nada, nada, gastei tudo com droga,
com mulherada, bebida, balada, não sobrou porra nenhuma pra mim, fraga. E você
não percebe véi que você está gastando aquela grana toda véi, você não percebe.
Gastei uma grana super foda e aí? Com nada mano. Com droga, com mulher e com
balada, e aí? Poxa eu não comprei uma blusa pra mim, não comprei uma meia e
minha meia tá furada e cheia de chulé e eu não comprei um ténis bacana e aí eu falo:
“e aí mano, tá vindo dinheiro, tá entrando muito dinheiro, mas tá saindo muito
52
Ponto de venda de droga, chamado também de boca de fumo ou simplesmente boca.
158
rápido”. Mas aí, quando eu vi que o crime não estava compensando, que eu estava
arriscando minha vida de tomar bala de outros traficantes, de guerra, ou de ser preso
ou de tomar tiro da própria polícia e eu falei: “ah não, meu dinheiro tá sendo muito
pouco aqui no crime”.
Por conta do índice de mortalidade que estava rolando, que é o que rolou lá há 3
anos atrás e que a galera estava morrendo direto aqui na quebrada fraga, e eu perdi
vários amigos, demais, demais [silêncio]. O último amigo meu morreu em um baile
funk ali da vila, por bobeira, e ele foi morto pelo próprio chefão, sem saber que ele
era o chefão, e o chefão sem saber que o menino trabalhava pra ele. Saca? Foi uma
confusão boba que resultou na morte de um dos meus melhores amigos fraga. E
outra, esse cara eu convivi com ele acho que uns 6 ou 7 anos e nunca, desde o
primeiro momento que eu conheci ele, eu nunca discuti ou falei ou gritei com ele
tipo: “Para! Você está errado!”, nunca, nós nunca discutimos. Toda vez que a gente
trombava eu chegava em casa soluçando de tanto rir, de tanto rir com esse cara, a
gente só ficava rindo, toda hora, fraga, todos os momentos que eu tive com esse cara
foram só momentos bons. Aí depois, em 3 de Julho do ano passado, esse cara é
encontrado morto ali atrás do campo com a orelha cortada e com vários tiros no
peito, saca, isso aí pra mim véi…, aí eu falei “o crime realmente não compensa, não
compensa mesmo.”. E aí quando eu estava começando a perceber isso, por causa
desse lance do índice de mortalidade veio para cá o projeto de mídia tática
desenvolvido pela Oficina de Imagens que é uma ONG lá de BH e eu comecei a
participar. No início eu não curtia muito as reuniões, mas aí eles foram começando a
mostrar umas coisas que eu fazia antigamente, fraga, ações que eu fazia e que era a
dança e o hip-hop, que estava transformando uma galera em outros lugares, aí eu
falei: “poxa, eu faço isso”, “será que eu realmente consigo mudar as pessoas?". E aí
eu fui começando a deixar de lado o crime, fraga, e aí quando eu decidi realmente eu
chamei os caras todos e cheguei de frente e falei: “até hoje eu nunca vacilei com
vocês, nunca vacilei com ninguém aqui no tráfico e, mano, vocês me conheceram aí
e eu sempre mexi com hip-hop, fraga, eu deixei de lado por causa do crime, mas eu
estou disposto a voltar para o meu movimento”. E aí os caras, os próprios caras do
crime me deram o maior apoio: “pô cara, realmente, bacana, vai lá, volta com seu
trampo”.
Então se eu estou neste mundão aqui, eu tenho que escolher: ou eu vou para o
caminho certo ou eu vou para o errado. Qual que é o caminho certo? É trampar
[trabalhar], fraga, ter um trampo honesto e ser um cidadão honesto. O caminho
errado é traficar, vender droga, entrar para o crime, é roubar, fraga, tipo, você tem
esses dois caminhos. E aí, qual é o lado que eu vou seguir? Então, você fica na
intermediária, você fica no meio, você não sabe se vai para o caminho certo ou para
o errado. E você estando no meio a rua vai te ensinando, oh, você tá vendo ali?
Morreu um neguinho. Por quê? Porque roubou a padaria do Zé. Olha lá, olha um
cidadão de bem sendo torturado por policiais. Saca? Poxa o neguinho do crime está
ganhando a vida, está ganhando muito dinheiro fraga. Poxa olha lá um cidadão de
bem, um favelado foi pra faculdade, sacou? […] E aí, você entra naquela, pois
quando você amplia mesmo os seus conhecimentos é aquilo, poxa, eu não quero ser
do caminho errado, mas também não quero ser do caminho do bem. Porque o
caminho errado é só o errado e o caminho do bem é só o caminho do bem, e a galera
do bem às vezes é leiga demais, são alienados entendeu, eles não querem se
informar e nem querem informar as pessoas. E agora? Agora fudeu tudo mano.
Poxa, então eu vou ser alternativo fraga, eu vou fazer as minhas paradas de bem,
mas quando eu ver que está errado eu vou a luta, sabendo que está errado eu vou
lutar contra, entendeu, então eu estou nesse meio, inserido nessa intermediária, é
esse o peso que a rua te traz, essa responsabilidade. E se você está entrando no
errado, segura sua onda então mano, você vai ter que segurar sua onda no errado
porque se você não segurar sua onda você cai. E aí você próprio vai se descobrindo,
o que você é, qual é o seu papel na sociedade através da rua.
Aos 22 anos de idade, ao passo em que se tornava adulto, fase na qual “amplia mesmo
os seus conhecimentos” como mencionou o jovem, Miro percebia-se numa situação de
fronteira, entre dois caminhos, “do bem” e “do mal”, dos quais tenta escapar por meio de vias
“intermediárias”. A posição de fronteira, corroborando a perspectiva trazida pela categoria
jovem da periferia em Feltran (2010), representou uma condição a partir da qual o jovem
realizou seus trânsitos sociais no território metropolitano, bem como sua transição para a
vida adulta (PAIS, 2009).
Na adolescência suas experiências noutros espaços metropolitanos ocorreram numa
época em que se encontrava desobrigado da rotina religiosa e com uma vida escolar dispersa.
Sem dinheiro, preto e favelado, Miro pegava a traseira do ônibus – que consistia em fazer a
viagem do bairro até o Centro de Belo Horizonte, dependurado na parte traseira do ônibus,
apoiado através das mãos sobre o suporte externo do cano de descarga do motor – e com isso
passou a frequentar outros bairros, áreas centrais de Belo Horizonte, a Savassi e também a
Praça da Liberdade53. Foi uma época em que ele transitou pela primeira vez com frequência
53
Tanto a Savassi como a Praça da Liberdade são espaços tradicionalmente ocupados por classes médias e
abastadas da RMBH. A região da Savassi é uma área famosa em Belo Horizonte por seus bares, restaurantes e
casas noturnas. Miro frequentava a Praça da Liberdade nas noites de sexta-feira, dia no qual ocorria
regularmente os duelos de MC’s debaixo do viaduto Santa Tereza, na região central de Belo Horizonte, e de lá
seguia para a referida praça.
160
para fora do bairro, interagindo com pessoas pertencentes a outras classes sociais com
preocupações e estilos de vida muito distintos dos seus. O que acontecia era que um jovem da
periferia “preto” e “favelado” dava o “pulão” e ia de traseira de ônibus e sem dinheiro para
áreas nobres Belo Horizonte, frequentando-as durante algum tempo, embora não possuísse
laços sociais e condições materiais que lhe permitissem prolongar muito essa estadia. Tais
experiências não representavam uma possibilidade de estabelecer vínculos de amizade fora da
periferia.
Na faculdade de Belas Artes, Miro deparou-se novamente com conflitos latentes que
medeiam as relações interclasses entre os indivíduos. Vale notar que em uma sociedade como
a brasileira, altamente hierarquizada e na qual as tentativas de nivelamento da interação em
nível horizontal entre indivíduos de classes sociais distintas, geralmente, configura-se de
forma tensa. Em suas experiências com os colegas de curso universitário Miro deparou-se
com tal limite. Questões relativamente simples colocadas nas interações com seus colegas tais
como “quem que você é? de onde você é?” e a reação dos mesmos em relação à origem social
de Miro “Nossa, você mexe com hip-hop?”, “Você é preto da favela?” geravam
constrangimentos recíprocos. A preocupação, interesse ou curiosidade de saber de onde ele
vinha e o modo como retrucaram suas respostas soava para Miro como um banho de água
fria: “[...] isso é uma facada no peito para uma pessoa que tipo mudou de vida. Fraga? Poxa
mano eu mudei e ainda tem gente que torce para eu estar na errada, fraga, para eu voltar
para o lugar de onde eu vim”.
A trajetória de Miro foi também orientada por outras tensões sociais decorrentes do
descompasso entre suas experiências de vida relativas à de transição para a vida adulta
(PAIS, 1991; 2010) e as normas morais das instituições sociais. Para uma pessoa que iniciou
o exercício do trabalho remunerado e das experiências sexuais ainda na infância, a regra da
proibição do namoro por não ter 18 anos de idade, como era imposta pela igreja, fazia pouco
sentido. Durante sua adolescência essa questão do namoro gerou conflitos na sua relação com
a igreja e contribuiu para afastá-lo da esfera religiosa. Nesse tempo, rompeu os laços com a
igreja, já havia abandonado a escola, sua família não foi mencionada quando tomou essas
decisões e a “rua” era seu principal espaço de interação e aprendizado social.
A trajetória de Miro, como expresso em seu relato, era balizada por categorias duais e
aparentemente excludentes representadas pelos “dois caminhos”, semelhante à dicotomia
moral teológica na construção das visões de mundo na periferia ratificadas pela sociedade em
geral ao restringir as possibilidades das escolhas a dois destinos possíveis: céu ou inferno. O
“caminho do bem”, ser “trabalhador de bem”, corresponderia à adesão ao comportamento
161
“fiel” como pessoa conformada em realizar grandes sacrifícios sem questionar nem reclamar,
sendo o céu uma promessa pós-morte. Por outro lado, o “caminho do mal” representaria uma
oposição radical a essa condição temerosa e por isso infernal como uma guerra, como
mencionado por Miro. Em sua trajetória demonstrou conhecer bem os “dois caminhos”, por
outro lado, sua busca por uma posição “intermediária” não o livrava dos constrangimentos
impostos por ambos os caminhos.
A via “intermediária” não consistia em um plano b, estratégico e previamente pensado
e sim uma saída feita no improviso e pela sua capacidade imediata de “agência”. Esta última é
municiada pelos saberes práticos, pelas condutas assimiladas da vida pública da periferia
como disse o jovem “é a rua é que vai te ensinando”. A via alternativa não possuía uma forma
clara, era instável e dependente das contingências “eu vou fazer as minhas paradas de bem,
mas quando eu vê que está errado eu vou à luta, sabendo que está errado eu vou lutar contra”.
Nessa época, da entrevista, Miro buscava para sua vida e a de seus manos outros rumos por
meio do hip-hop fora da igreja, fora do tráfico e desvinculado das políticas sociais e ONG’s.
Ao mesmo tempo, tinha como foco ações contrárias à adesão juvenil ao crime e à violência,
inclusive a estatal, sem com isso ter que optar pela religião: “o rap, a maioria das vezes faz
muito mais que a religião ou um cassetete em vão, fraga”.
O problema colocado por Miro é a encruzilhada na qual se encontrava, não queria
enquadrar-se nos caminhos tradicionalmente colocados pela sociedade aos jovens pretos e
favelados: a submissão (aceitar com bom grado o trabalho degradante e mal remunerado, “ser
alienado”) ou o crime (roubar, matar, traficar). Entre a cruz e a caldeira, Miro sabia que a está
última trazia consequência piores como a morte violenta, as sequelas físicas ou a prisão. Miro
sentia-se dividido, não encontrava na religião, no narcotráfico e nem nas possibilidades de
trabalho um caminho por onde seguir. Por outro lado, o hip-hop encontrava-se em fase de
desestruturação, de enfraquecimento após a saída dos projetos sociais e da não efetivação do
Centro Cultural Casa Amarela. Seus vínculos fora do bairro eram com moradores de outras
periferias, que também partilhavam de realidades relativamente semelhantes. De certo modo,
seus vínculos no bairro estavam enfraquecidos, Miro encontrava-se desiludido, buscava
alternativas, mas tinha como referência a vida social da periferia. Não tinha como deixa de ser
“preto” e “favelado”, condição da qual não podia escapar, ao mesmo tempo precisava de
dinheiro. O que fazer? Para onde ir? Essas eram as questões que se lhe apresentavam.
Em relação à participação de Miro no narcotráfico e noutras atividades criminosas,
poderia dizer que foi intensa e arriscada. Ao ver fotos de Miro do início do projeto mídia
tática notei-o franzino. Aquele foi um período no qual vivia uma desilusão em relação ao
162
favelas e em periferias só é muito rentável aos olhos de quem mora nesses lugares e vive com
parcos recursos - famílias mantêm-se com três salários mínimos ou menos, abaixo do mínimo
necessário (DIEESE, 2015).
Do ponto de vista mais subjetivo das trajetórias, nota-se que a narrativa de Miro
apresentou um tom mais individualista, embora ele participasse de eventos coletivos, em seu
discurso seu “eu” agia mais sozinho, enquanto que Faro fundamentava-se mais numa rede
social do bairro, não rompendo com espaços de socialização e integração importantes naquele
contexto, como a igreja. Para Miro, abandonar a igreja representou uma ruptura radical com o
mundo que defendeu ideologicamente na adolescência quando participou das células. Depois
que saiu da igreja, com 18 anos, Miro começou a participar de forma ativa do tráfico de
drogas no bairro e depois foi jurado de morte. As trajetórias dos jovens tinham em comum o
mesmo universo social, as igrejas, esquinas e ruas do Estrela D’alva no período do novo
milênio no qual pela primeira vez o bairro foi palco de episódios recorrentes de assassinatos e
outras violências dirigidas contra o público jovem, do sexo masculino principalmente.
Outro ponto em comum para Miro e de Faro diz respeito ao modo como praticavam
ações coletivas na periferia e como estas configuravam suas trajetórias de vida. Enquanto que
para as gerações anteriores o associativismo político produzido a partir do convívio religioso
esteve relacionado à superação de problemas de infraestrutura e ausência de serviços básicos
urbanos, na geração dos jovens biografados parecia haver uma soma distinta. Esta soma
contabilizava a urbanização precária e o isolamento geográfico justapondo-os à baixa conexão
com sistemas de mobilidade urbana metropolitana e à emergência da violência e das agências
criminosas instaladas na rotina do bairro como produtoras de mudanças significativas no
cotidiano comunitário. Se nos anos de 1980/1990 os furtos e roubos caracterizavam a
violência no bairro, na geração de Miro e Faro os “toques de recolher”, os assassinatos brutais
em espaços públicos e a incerteza em relação à confiança na polícia eram os balizadores da
insegurança e do medo rotineiro.
Além das questões supracitadas, na periferia muitos de seus habitantes são
confrontados desde a infância com a necessidade de contribuírem para a economia doméstica
e a arcarem individualmente suas necessidades de consumo. Essa configuração acarreta uma
antecipação da idade adulta pela necessidade de “evoluírem mais rápido para o cotidiano da
vida” como mencionou Faro. Essa antecipação os expõe a situações e riscos que exigem
decisões e responsabilidades típicas das relações do mundo adulto e, assim, comprometem a
progressão e a permanência escolar (CARDOSO, 2008). Ciente disso, Faro reconhece que
“uma vida financeira melhor, mora às vezes num apartamento ou numa casa legal, num bairro
165
legal, ter um emprego bom” são condições necessárias para manter o “menino na escola sem
ele ter que trabalhar”. Além do mais, o mercado ocupacional metropolitano até meados da
década de 1990, segundo Cardoso (2008), demandou basicamente por mão de obra pouco
qualificada e, desta forma a escolarização não representava per se uma alternativa para
obtenção de melhor posição laboral. A reestruturação produtiva, interpretada pela literatura
brasileira como transição do modelo produtivo industrial fordista para o toyotista que tornou o
mercado mais seletivo, aumentou a exigência de qualificações acentuando o desemprego e a
pobreza urbana, sendo os jovens a categoria mais afetada por essas transformações54.
Comparando indicadores educacionais do Brasil e de países como, por exemplo,
Portugal que há uma década registava também níveis elevados de abandono escolar antes da
conclusão do ensino obrigatório, Brandão, Saraiva e Matos (2012) identificam, em 2009,
diferenças significativas na quantidade de anos de estudos entre jovens dos dois países.
Enquanto no Brasil, em média, apenas 38% dos jovens de 18 a 24 anos haviam completado 11
anos de estudos, em Portugal 56% dos de 20 a 24 anos tinham pelo menos 12 anos de
escolaridade. Segundo os autores, o menor investimento na carreira escolar teria relação com
a escassez de recursos familiares e com a entrada precoce no mercado de trabalho, “o menino
aqui vira homem mais cedo”, como sintetizou Faro.
Como abordado no capítulo teórico, os percursos para a vida adulta na
contemporaneidade têm sido representados por experiências de vida que culturalmente
servem de referência simbólica para demarcá-los como a iniciação sexual, a saída de casa, o
primeiro trabalho remunerado, o casamento, o nascimento do primeiro filho (a), entre outras
que, no contexto europeu tendem a ocorrer em faixas de idade que mantém alguma
estabilidade (PAIS, 2009). Enquanto no Brasil essas idades sofrem variações significativas
segundo a classe social, como muitos outros aspectos sociais.
Durante a adolescência houve períodos nos quais ambos os jovens dedicaram-se com
afinco às atividades promovidas pela igreja; além dos cultos semanais atuaram como líderes
de Células – pequenos grupos de orações – e como integrantes de grupos de dança. Foi por
meio dessas atividades culturais religiosas promovidas pela Primeira Igreja Batista do Estrela
D’alva – PIBED, por exemplo, que tais jovens tiveram o contato inicial com a cultura hip-
hop, a partir da interação com outros jovens batistas residentes noutras periferias da região
metropolitana de Belo Horizonte. Até mesmo pelo fato de a igreja representar um espaço de
intenso trânsito social, de alta rotatividade de fiéis que, em função de adesões, abandonos,
54
Sobre a percepção dos trabalhadores sobre a reestruturação produtiva no Brasil, ver: Lombardi (1997).
166
retornos, novos abandonos, transformam este espaço numa constante arena de socialização na
periferia metropolitana. A etnografia indicou que no bairro as igrejas não nunca fecham suas
portas de modo absoluto às pessoas.
No caso dos jovens biografados, seus percursos na religião também foram marcados
por intermitências. Por motivos relativamente semelhantes tanto Miro quanto Faro, por mais
de uma vez, saíram da igreja ou foram expulsos dela. Sendo que, na adolescência esse
rompimento atingiu um sentido de ruptura mais profundo que, principalmente para Miro.
Havia uma incompatibilidade entre os percursos de vida dos jovens e os limites da moral
religiosa que proibia o namoro àqueles com idade inferior a 18 anos, independentemente de já
terem tido ou não experiências sexuais anteriores. Para Miro tal questão representou um ponto
de inflexão em sua trajetória, especialmente aos 17 anos, período no qual o rompimento com a
igreja representou um divisor de águas em sua trajetória, ratificou sua adesão ao narcotráfico.
Em termos estruturais, percebe-se que os percursos de vida dos jovens da geração da
faixa de idade de Faro, 21 anos, e Miro, 22 anos, foram marcados pelas dinâmicas sociais da
periferia, pelas mudanças e permanências relacionadas aos estilos de vida estabelecidos no
referido contexto social metropolitano. No período da entrevista, por exemplo, Faro realizava
eventos em espaços públicos do bairro a partir do hip-hop, bem como trabalhava como
“articulador social” no Centro de Referência da Assistência Social Casa Amarela, onde
acompanhava visitas domiciliares, atendimento ao público e participava de reuniões de
planejamento de estratégias para a aproximação dos assistentes sociais, responsáveis pela
aplicação da política social, junto à comunidade local. No mesmo período, Miro encontrava-
se desvinculado do narcotráfico há quase dois anos, exercia ações políticas em espaços
públicos a partir da promoção da cultura hip-hop tais como duelo de rimas, dança de rua e
mostras de filmes (cineclube).
Cinco meses após nosso encontro e a realização da entrevista, Miro encontrava-se
foragido da região devido a uma ameaça de morte que sofrera de narcotraficantes e, desde
então, não consegui ter acesso a nenhuma informação sobre seu paradeiro. Por outro lado,
Faro permaneceu no bairro onde pretendia casar-se e fixar residência em um barracão anexo à
casa de seu pai, além disso, continuar a realizar ações relacionadas ao hip-hop, gospel e
secular, bem como concluir alguma formação escolar e/ou profissional.
As trajetórias de Faro e Miro foram edificadas e estabelecidas na periferia
metropolitana, e a partir de um mesmo universo social55 de referência elaboraram suas
55
Ocupar um mesmo espaço social representa na teoria bourdiana o compartilhamento de experiências sociais
relativamente comuns aos dois jovens, que suas trajetórias foram orientadas a partir de campos sociais
167
experiências de vida. Além disso, são jovens que viveram com muita intensidade a infância
no bairro, as interações na rua, a convivência comunitária e a religiosa e, ao mesmo tempo, a
inserção precoce no mundo adulto. Ambos os jovens, começaram a trabalhar, enceraram a
carreira escolar e tiveram a iniciação sexual antes mesmo de completar 14 anos de idade.
Estes jovens também tiveram em comum, em suas trajetórias, períodos de intensa dedicação a
atividades religiosas, seguido pelo abandono da igreja, de participação com as dinâmicas do
narcotráfico local e o posterior desligamento, bem como exerceram práticas artísticas,
culturais e políticas relacionadas ao hip-hop.
As trajetórias destes jovens expressam determinados tipos de ação apreendidas dos
repertórios de conhecimento produzido das experiências passadas e regulares ao longo do
tempo na periferia pelas gerações mais velhas. A história de formação do bairro mostrou que
a urbanização do lugar ocorreu de modo integrado ao desenvolvimento das práticas culturais,
da prática religiosa principalmente, bem como do jogo político de permuta entre benfeitorias
urbanas e voto. Suas trajetórias foram edificadas a partir de matrizes discursivas relacionas
fundamentalmente à pregação religiosa e retórica político eleitoral em um contexto de
expansão das esferas midiáticas em geral e da violência traduzidas pelos jovens pela
linguagem crítica, poética e rimada do hip-hop.
As ações em espaços públicos fortaleciam suas identidades e ao mesmo tempo eram
úteis para testarem competências individuais valorizadas entre os jovens e para afirmarem-se
publicamente enquanto sujeitos com interesses e motivos próprios e legítimos. Conforme
argumenta Machado Pais (2008, p. 20), no contexto da vida cotidiana a dimensão visual
torna-se um “centro polimórfico”, nesse sentido carece interpretação e, ao mesmo tempo,
torna-se meio de interpretação “objeto e método de pesquisa”. A propagação de imagens e
mensagens difundidas como observado no hip-hop na periferia não servia apenas como
cenário para os eventos relacionados a essa cultura, mas demarcava o desejo de consolidação
de um novo espaço de práticas juvenis legítimas fora da igreja, da escola, do trabalho e do
tráfico.
específicos da vida social da periferia metropolitana, pressupõe que ambos possuam fontes relativamente
semelhantes de acesso a determinados capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, esportivo etc.),
que compartilham de uma mesma classe ou condição social perante os sistemas de estratificação estabelecidos.
(Bourdieu, 1997).
168
56
Contudo, havia participação de jovens envolvidos tanto no crime como na religião, combinação que expõe o
trânsito elaborado pelos jovens entre os “dois caminhos” ao mesmo tempo que buscam a mediação da “rua”,
um espaço “neutro” fora das instituições família, escola, trabalho e igreja, onde entre pares trocam
experiências, saberes e práticas da vida.
169
consumiam. Não era por oposição ao consumo, mas por falta de recursos, inclusive para
realização dos deslocamentos. Apesar disso, buscavam por meio do hip-hop inscrever no
espaço público uma nova gramática em contraposição às que já vinham sendo impressas pelas
agências religiosas e criminais principalmente. Na periferia os pontos de comercialização
ilícita de entorpecentes e as igrejas evangélicas pentecostais expandiram-se exponencialmente
nas últimas décadas e se tornaram relevantes marcas da identidade pública dessas áreas, de
modo que passaram a representar para a juventude a base de referência moral para construção
conceitual dos “dois caminhos” narrados por Miro.
De um modo geral, os percursos de vida dos jovens indicaram que suas ações se
estruturavam e orientaram-se em torno das dinâmicas da vida comunitária local, de modo
diferente das gerações mais velhas que estiveram envolvidas na construção do bairro, nas
lutas e disputas políticas e eleitorais pelo direito à infraestrutura urbana, os jovens lidam com
novos problemas como destaque à violência e a permanência de velhos problemas como a
segregação e o isolamento provocado pela falta de integração dos sistemas de transporte
público, entre muitos outros que caracterizam o contexto social da periferia metropolitana
contemporânea como mostrado no capítulo referente a metropolização e à urbanização do
Estrela D’alva.
171
Maicon e Suzano tiveram suas trajetórias marcadas pela participação na vida religiosa
e, embora com menor intensidade, na vida comunitária. Eles não participavam de atividades
ligadas ao hip-hop e nem outras ações culturais de intervenção no espaço público. Seus
percursos estabelecem fortes vínculos com laços coletivos, todavia orientados com mais
intensidade para os campos de relação familiar e profissional. Tanto Maicon quanto Suzano
focaram a vida em família como um projeto de vida, embora seus percursos sejam bastante
distintos. A decisão em oferecer uma centralidade à família em seus percursos de vida não foi
uma decisão antecipada e projetada desde sempre voluntária ou conscientemente; tem haver
com a construção dos aprendizados sociais, das estratégias, para lidar com as contingências do
cotidiano na periferia que tiveram de tomar. Assim, tais projetos convergem como à “adoção
estratégica de opções de estilo de vida, organizadas tendo em mente a projeção de uma
‘esperança de vida’ e normalmente balizadas por uma noção de risco” (GIDDENS, 1991,
p.147-48). No curso de suas experiências, ao terem de lidar com demandas práticas de cada
experiência, os projetos de vida foram sendo reorganizados e significados até o momento em
que se encontravam quando eu os conheci.
Para Suzano as dinâmicas do núcleo familiar composto por sua mãe e irmã, desde a
57
Retirado de: https://peregrinacultural.files.wordpress.com/2012/03/silhueta-familia-reunida.jpg/
172
infância orientaram o destino de suas ações no bairro e fora dele. Já no caso de Maicon, de
forma distinta a família também estava presente na sua narrativa. Seus pais se separaram na
infância e no bairro fazia amizades em busca de proteção contra os conflitos na escola. Ele
teve uma iniciação sexual ainda jovem, assim como outros tantos meninos do bairro, tal como
ilustrado nos percursos de Miro e Faro e ao final da adolescência, com o nascimento do
primeiro filho, buscou orientar sua vida em busca de um projeto familiar. E assim, Maicon
encarou tais acontecimentos como etapas de transição para a vida adulta: após a paternidade,
o casamento e a vida em família como projeto de vida.
Suzano morava na casa de sua mãe, era solteiro, não tinha filhos e trabalhava como
professor universitário. Era bacharel em administração, tinha MBA e outras pós-graduações
em Marketing, e dizia querer fazer o mestrado. Por outra via, Maicon não concluiu o ensino
básico, morava em uma casa construída por ele no mesmo terreno da sua mãe, irmão e irmã, e
trabalhava como operador de máquina empilhadeira em um dos muitos, e enormes, galpões de
armazenamento de mercadorias industriais situados à margem da via-expressa próximo ao
Estrela D’alva.
Do mesmo modo que Miro e que Faro, Maicon e Suzano são filhos da periferia,
pessoas de uma geração que experimentou durante a juventude um período histórico
caracterizado por profundas mudanças na estruturação da vida social cotidiana do Estrela
D’alva, notadas da seguinte forma: i) consolidação urbana do bairro (desde a época do
“buracão”); ii) crescimento da religiosidade cristã de vertente protestante neopentecostal; iii)
expansão dos serviços estatais após duas décadas de redemocratização do sistema político
formal; iv) fixação do narcotráfico no espaço público do bairro e a violência. Enfim, Maicon e
Suzano, como muitos outros jovens do bairro, tiveram em comum serem das gerações cuja
trajetória juvenil coincidiu com tal conjuntura, de mudanças na orientação normativa e social
da vida pública na periferia metropolitana. Tendo tais questões no horizonte, as trajetórias de
Suzano e de Maicon são apresentadas em seguida.
173
Conheci Suzano em uma noite de sábado, durante um dos inúmeros duelos de MC’s
da Casa Amarela que frequentei durante o ano de 2013. Ele não era MC nem frequentador
assíduo, havia passado no local apenas para conversar com jovens integrantes do Coletivo
Casa Amarela do qual Miro fazia parte. Naquela ocasião Faro estava próximo a mim e
comentou sobre Suzano. Disse que ele era repórter, que tinha formação superior e que morava
no bairro. Após Suzano conversar com os jovens do referido Coletivo dirigi-me até ele, em
companhia de Faro, e apresentei-me, falei dos meus objetivos ali, enfim, da tese que estava
desenvolvendo, das trajetórias juvenis lá no Estrela D’alva. Ele foi atencioso, trocamos nossos
números de telefone e algumas semanas depois ele recebeu-me em sua residência onde
realizamos a entrevista a partir da qual apresento sua trajetória de vida.
Suzano nasceu em Belo Horizonte, município no qual permaneceu até completar oito
anos de idade. Neste tempo morou no bairro Gameleira, sítio localizado na região oeste de
Belo Horizonte, onde está o tradicional Parque de Exposição homônimo. Nesta época morou
em área favelada do bairro Gameleira por onde passam dezenas de linhas de ônibus e uma
estação de metrô que possibilita o acesso a diversos espaços metropolitanos como Betim e
Contagem, e está a 12 minutos de metrô, carro ou ônibus do centro de Belo Horizonte.
58
Retirado de: http://fjupara.com.br/como-deixar-de-viver-a-sombra-de-alguem. Acesso em 04.abr.2016
174
Em 1993, ainda com oito anos de idade sua família mudou-se para a vila Francisco
Mariano, no Estrela D’alva. Nessa época o bairro já enfrentava os problemas de violência
relacionados à expansão de atividades criminosas, com diferentes configurações e proporções
daquela registrada na primeira década de 2000, quando houve o “toque de recolher”. Desde
que chegou à Vila Francisco Mariano, ela já havia se percebido em um espaço socialmente
estigmatizado “[...] as pessoas tinham vergonha de falar que moravam aqui, e quando
perguntavam: onde você mora? E aí as pessoas respondiam assim: ah... eu moro... é lá no
Tijuca59, hoje menos, a gente costumava dizer, se trata de uma periferia dentro da periferia”.
Suzano já havia notado a noção de paisagem moral que constitui muito dos territórios
periféricos, a exemplo do que morava.
A igreja também foi marcante na vida de Suzano. Até sete anos de idade frequentou a
igreja católica na qual foi batizado e cursou a Primeira Comunhão, e ao chegar ao Estrela
D’alva passou a frequentar a Igreja do Evangelho Quadrangular e, posteriormente, na
adolescência, a Primeira Igreja Batista do Estrela D’alva (PIIBED). Como para muitos outros
jovens do contexto, o convívio social mediado pela igreja representou uma importante
referência nas experiências sociais de Suzano em relação às interações como outros
moradores do bairro. Fora da esfera religiosa ele participou pouco da vida social do bairro, já
que havia frequentado escolas situadas na região da Pampulha e centro de Belo Horizonte, de
modo que em sua trajetória a “rua” não foi uma agência de socialização tão marcante.
Diferente de muitos outros jovens do bairro, as relações mediadas pela “casa” e pela “escola”
prevaleceram em contraposição às da “rua”. Além disso, Suzano teve um percurso escolar
linear, sem retenções ou abandonos e com rendimentos acima da média quando contrastado
com outros garotos da sua geração. Suzano trabalhou desde adolescência, mas não durante a
infância.
Durante a entrevista Suzano fez questão de destacar que quando chegou ao bairro, no
início da década de 1990, sua casa era de dois cômodos, não tinha reboco nem laje, apenas
coberta por telhado. A casa onde mora atualmente, bem como muitas outras coisas que
Suzano teve durante sua vida, como videogame e computador, além da possibilidade de fazer
cursos, foram resultados dos esforços e da gestão econômica de parcos rendimentos por parte
de sua mãe que, solteira criou os dois filhos. Seu pai afastou-se de do núcleo familiar quando
Suzano estava com dois anos de idade, tendo o mesmo ocorrido com o pai de sua irmã, Aline,
59
O Tijuca embora próximo não possuía a mesma má fama. Durante a etnografia fui ao Tijuca e notei que os
padrões de urbanização e de construção civil (casas de dois pavimentos, muitas delas com muro e acabamento)
eram mais frequentes e não havia áreas com aglomerados subnormais mesclados ao bairro como é no Estrela
D’alva.
175
cujo pai abandonou o núcleo familiar pouco tendo após a menina haver nascido. Filhos de
pais diferentes criados por uma mesma mãe, na favela. Suzano demonstrava admiração por
sua família, em especial pela a mãe, colocada por ele durante toda a sua narrativa como uma
figura central no ordenamento de seus percursos de vida. Nascida no norte de Minas Gerais,
numa região marcada por pobreza e estagnação econômica, sua mãe chegou a Belo Horizonte
aos 20 anos de idade. Sua intenção inicial era migrar para São Paulo, mas no caminho para
Belo Horizonte, por meio de uma pessoa com quem fez amizade no ônibus, conseguiu
emprego e decidiu tentar a vida na cidade.
Durante toda a entrevista sua mãe e sua irmã estiveram presentes, como foi durante
toda a sua vida, e deste modo, abri espaço para que elas também se manifestassem. Sua mãe
fez questão de participar e, deste modo, em alguns momentos da apresentação da trajetória de
Suzano há depoimentos de sua mãe, relativos a momentos específicos que viveram juntos.
Num primeiro momento, nós viemos para cá porque foi onde a gente pôde comprar.
A gente morava de aluguel e outra pessoa foi quem indicou essa casa para minha
mãe, e na época com o recurso que ela tinha era onde dava pra comprar, e aí ela
comprou aqui e nós viemos morar aqui por isso, pra sair do aluguel, num bairro que
era muito distante daquele que a gente morava em relação ao centro. Da Gameleira
ao centro a gente demorava 12 minutos, daqui, a gente demora no mínimo 50
minutos.
E viemos para cá. A vila era muito diferente, mas já tinha essa questão da violência,
tinha um estigma social muito grande, as pessoas tinham vergonha de falarem que
moravam aqui e se perguntassem as pessoas: “onde você mora?”. Iriam dizer: “Ah,
eu moro no Tijuca.”, às vezes hoje ainda tem um pouquinho disso, mas acho que
muito menos do que tinha antes, e a gente costuma dizer hoje que aqui era uma
periferia na periferia, sabe, a vila. E viemos para cá. Essa casa, ela era esse quarto, e
aqui tinha um quarto e ali tinha outro quarto, tudo de telhas e tijolos, e depois de um
tempo minha mãe começou a reformar e tal, até que chegamos a este formato que
temos hoje.
Minha mãe nasceu no norte de Minas, em uma cidade chamada Porteirinha, e veio
pra cá aos 22 ou 23 anos, pra tentar a vida né. E eu até brinco de que ela ia para São
Paulo e acabou parando em BH e ficou. Ela conheceu uma pessoa no ônibus, uma
amiga, essa pessoa disse a ela, “ah, vamos parar lá em casa”, e no outro dia ela
conseguiu emprego para minha mãe que acabou ficando em BH. Uma vida muito
sofrida, minha mãe é mãe solteira, ela separou-se do meu pai quando eu tinha dois
anos e meio, e foi lutando muito para criar a gente, pra dar educação. Eu tenho uma
irmã e no primeiro momento o pai dela morava com a gente e há uns dez anos, mais
ou menos, eles se separaram e ele foi embora. Ele era uma pessoa interessante, mas
com uma convivência muito complicada, ele era etilista.
176
A igreja aqui tem um papel legal que é o seguinte, a teologia que o pastor Terrinha
trabalha lida com as emoções e eu acho isso muito legal porque a escola já não
acessa mais o cara do tráfico, ninguém, nenhum órgão público e nenhuma política
pública acessa esse cara mais e a igreja fala com ele ainda. Então, ao passo que cada
fiel que ele ganha e que está nesse processo ele contribui para a mudança, porque o
cara vai e muda de vida, ele tem que mudar, porque senão não fica na igreja. Ou,
pode ser que seja só um período e o cara vai e sai, ou ele vai optar pela igreja ou ele
vai optar pelo crime, os dois são incompatíveis. E aí, tem uma ação da igreja que ele
trabalha com um método que é chamado de igreja em células de que, esse cara que
vai, ele tem que se tornar um multiplicador, só que ele multiplica na rede dele que
tem esses sujeitos, então eu acho muito legal. Tem muita gente que está na igreja
dele, muita gente, era gente muito complicada, esvaziou muito bar e muita boca
[ponto de venda e consumo entorpecentes ilícitos] o pastor Terrinha , então, não se
pode desconsiderar a importância social que ele e a igreja têm. Ainda que a gente
não concorde com a ordem teológica e mais um monte de outras coisas, tem umas
coisas que são muito legais, por exemplo, a menina que vai para lá ela tem que
seguir uma lógica então eu acho que isso evita pelo menos que essa menina
engravide nova. A igreja tem umas políticas que numa sociedade ideal você pode
concordar que não está certo e que muita coisa pode mudar, mas numa situação
como a daqui que é crítica eu torço muito para que ele, se hoje tem 2.000 fiéis, eu
torço para que ele chegue a 4.000, a 5.000, a 6.000 fiéis lá. Entendeu? Porque cada
um que ele tira é menos um.
É uma vida inteira estudando, eu até brinquei com minha mãe, eu estou fazendo 28
anos, faço 28 anos em setembro, e em 27 anos é o primeiro ano que eu não estou
estudando numa escola regular, sempre estudei. Minha mãe me obrigava a estudar,
mais que isso, me dava apoio e obrigava. Aqui em casa a lei já existia, o estudo é
compulsório, eu tinha que ir, tinha que ir mesmo. Então, eu fiz o ciclo regular, pré-
primário, acompanhava o boletim, se o boletim caísse ela queria saber o por que,
brigava, ela ia na escola, sabe, sempre muito presente, muito próxima. Eu acho que
eu vivi uma coisa muito interessante, eu sempre fui o primeiro da turma em tudo, em
matemática, em português, em todas as matérias, boas notas sempre, eu era aquele
cara que quando ia ter alguma coisa diziam “chama o Suzano e vamos fazer com
ele”. Mas eu nunca fui um cara parado, eu sempre sofri dessa hiperatividade,
conversava demais e ás vezes até atrapalhava a aula com os colegas de tanto
177
Eu lembro até de uma cena, isso eu já trabalhava, eu tinha 16 anos, já tinha o meu
dinheiro e, tecnicamente como a gente brincava, já era dono do meu nariz
[independente financeiramente] e uma vez eu cheguei muito cansado do trabalho e
falei assim, “nó mãe, eu acho que eu não vou na aula hoje não porque eu estou
muito cansado”, e ela olhou para mim assim e disse “o que seu moleque?”. Eu
andava daqui até o Madre Carmelita, e você sabe onde é a portaria dois do
zoológico? A portaria dois é um terço do caminho até o Madre Carmelita, então,
você anda mais dois tantos pra chegar à escola que eu estudava. E na época eu não
tinha grana para pagar ônibus, mesmo trabalhando, tinhas as dificuldades do dia a
dia da gente e aí, minha mãe disse: “O que seu moleque? Você não vai na aula?
Pegue suas coisas agora, organize, coloque na sua mochila e vasa! E eu vou ligar pra
escola para saber se você está lá, porque se você não tiver eu vou pisar no seu
pescoço!”. E eu tinha um medo quando ela falava que iria pisar no meu pescoço. E
aí, talvez por aquele dia [...], naquele momento, se ela não tivesse falado aquilo eu
tivesse parado tivesse tido outro rumo.
De novo vem a questão da minha mãe, ela sempre teve esse “faro” para essa coisa de
escola, Alice Nassif foi a escola que eu fiz o 1ª grau, era uma escola referência na
Regional Pampulha, uma escola muito boa, municipal, em Belo Horizonte. A gente
brinca que ela é a penúltima escola de Belo Horizonte, porque a última é a Anne
Frank que fica no bairro Confisco. E o Alice Nassif era uma escola fantástica com
projetos, sendo uma escola pública, com projetos muito avançados para a época. Eu
lembro que no 1º grau, da 6ª até a 8 ª série eu fiz parte de um grupo avançado de
geometria e matemática e tinha um 6º horário duas vezes por semana, e aí eles
selecionaram alunos que eles achavam que davam conta do grupo e nós fomos para
lá e tinha aulas só de geometria e matemática. E era muito engraçado porque a
mesma professora que dava aula para a gente no grupo avançado dava aula no
ensino regular, era uma experiência da escola plural, e era interessante porque a
gente estava muito à frente dos alunos da escola regular e essa galera não dava conta
de acompanhar.
Depois no 2º eu estudei no Madre Carmelita que era também uma escola fantástica e
referência na região da Pampulha, durante muito tempo uma escola polo de
educação profissional e tecnológica do Estado quando teve isso em Minas, antes de
cortarem, e era uma escola que tinha um ensino muito forte, inclusive o índice de
retenção era altíssimo por causa disso, era uma escola muito boa, boa no sentido de
que a educação era cobrada e tal, eu não acredito que bomba [retenção escolar]
resolva o problema de ninguém, mas era uma escola que cobrava mesmo, que tinha
uma disciplina muito forte e você tinha que se adequar àquele padrão e que virava
178
pra você e falava: “olha você não entra aqui do jeito que você quer, na hora que você
quer”.
Enfim, e tudo isso direcionado pela minha mãe. E para a gente conseguir a vaga no
Madre Carmelita? Tem uma história. Como eu morava em Contagem conseguir
uma vaga lá era uma loucura, eles não cediam mesmo, porque lá era Belo Horizonte.
E aí minha chegou e foi conversar com a diretora e chorou, e chorou, e minha mãe
chorava e eu olhava para minha mãe assim, [...] e não conseguia, e a diretora era
irredutível e ela foi e disse, eu vou conversar com essa diretora e eu fui com ela. E
primeiro a diretora foi e pagou um pau [não foi simpática] com aquela coisa do
preconceito, sabe, “vocês são periferia lá de Contagem e blá, blá, blá, blá, blá, blá,
blá, blá, blá, e aqui tem que dar resultado!”. Como se o lugar onde você mora
dissesse se você tem ou não tem a capacidade de estudar em determinada escola que
é pública, aliás, ela ia negar a vaga e eu olhei para minha mãe assim, e o olho dela
ficou vermelho, e minha mãe começou a chorar, a chorar: “E meu filho vai perder a
oportunidade, meu filho pode virar um malandro e não sei o quê, ele é bom, olha o
boletim dele aqui oh.”, e minha média 86, 92 e nas humanas eu sempre fui melhor,
então era 92, 93, 86 e coisa assim, e a diretora foi e olhou o boletim e disse assim
“engraçado né, então beleza, eu vou abrir uma exceção e nós vamos fazer uma
experiência”, e ela foi e aceitou-me matricular. E nós saímos de lá e minha mãe
ainda chorava e, eu lembro disso como se fosse hoje, quando a gente saiu da escola e
pisamos fora minha mãe parou de chorar, “Uai mãe, parou de chorar?”, e ela, “é pra
essa mulher dar-me essa vaga logo, que saco!”. [risos]. Porque de fato ela [a
diretora] achava que a escola era dela e na época só tinha por aqui o Maria de Salles
e era muito deficitário e essa diretora deu muita sorte porque no período do 2º grau
eu estava mais envolvido na igreja batista e então eu estava com um perfil mais light
[menos crítico], mas eu sempre tive um perfil muito questionador.
[MÃE DE SUZANO]: Rua? Aqui? Eles falam que meus filhos não tiveram infância
e eu falo que teve. O Suzano aprendeu a nadar com os primos dele, não sabe andar
de bicicleta até hoje porque na primeira vez que foi tentar caiu e machucou demais e
desistiu, entendeu? Bola na rua nunca jogou, não soltou papagaio. E para eles não
irem para a rua eu o mantinha sempre ocupado. Primeiro ele foi para o Curumim 60
né, eu o encaixei, ele saiu da creche e depois foi para o Curumim. E, do Curumim
foi trabalhar e nos finais de semana tem os primos, ele ia para a casa dos primos e lá
ele brincava, ele tinha a hora de lazer dele, e a avó dele fazia tudo, e com aquela
turma de primo. Ele era como eu, eu não podia ficar brincando na rua toda hora. Eu
não prendi, eu ocupei. A gente viajava, viajava juntos, e sempre foi muito tranquilo.
Só na rua que eu nunca gostei, de companhia, é melhor sozinho do que mal
acompanhado. O videogame eu dei a ele e ele quietou um pouco dentro de casa, e
depois veio o computador, e eu falei com ele, você ainda vai continuar no
videogame, mas eu ainda vou te dar um computador. A computação. E eu não tinha
como dar a ele um computador, e ele foi e entrou na aula de computação, eu
conversei com o pessoal lá da escola e eles me pediram alguma referência do lugar
que eu trabalhava e de quanto eu ganhava e aí eu pagava só a passagem para ele ir e
a metade do curso, meia bolsa né?. E depois que ele fez o curso, se eu deixasse ele ia
para a lan-house, e lan-house não. Nós já não pagávamos o aluguel e eu fazia a
compras e pagava as contas, separava o dinheiro da passagem, o de determinado
curso, o dinheiro da minha passagem e sobrava R$5,00, eu trabalhava ali no Padre
Eustáquio, e depois subia a Rua Padre Eustáquio e passava na Caixa e depositava
todo dia R$5,00, de cinco em cinco, às vezes até menos, mas eu acho que o mínimo
foi R$5,00, mas se sobrava era para ele. Até que num dia ele chegou aqui com um
amigo [Wender] que arrumava, vendia, fazia manutenção de computadores e
ensinava-o, ele [Suzano] era muito curioso e, ás vezes, ele aprendia e depois só para
ficar no computador ele ficava lá até de graça arrumando computador para o
60
O Projeto Curumim consistiu em uma política estatal que oferecia atividades socioeducativas para crianças de
7 a 12 anos, quase que projeto piloto do que viria a ser a Escola Integrada, que oferece atividades da mesma
natureza também no turno oposto ao horário escolar. Em Contagem, o Projeto tinha sede na Rua 1º de Maio,
940, Regional Nacional, no período da pesquisa de campo estava desativado.
179
Wender, e com isso aprendendo, isso era feriado, sábado e domingo, e a mulher do
Wender é também uma gracinha de pessoa. Aí o Wender pegou um computador de
outra pessoa para vender porque tinha comprado um computador melhor, dos
antigos mesmo, dos primeiros que saíram, e aí ele chegou e falou “ah mãe, o
Wender está vendendo o computador, um que a mulher está vendendo porque
comprou um melhor”, e aí eu virei para ele e falei “oh Suzano, quanto é o
computador?” e ele foi e falou assim “quinhentos reais”, que alegria, mas aqui não
tinha casa lotérica não, só lá no bairro Pedra Azul, e aí eu fui e falei com ele “oh
Suzano, você tem certeza que é quinhentos reais? O computador é bom?” porque eu
não entendia nada, e aí ele falou assim “é bom mãe, o computador, e não tem nada
para consertar ou para mexer e tal”, e eu fui e falei assim “você tem certeza?” e ele
foi e falou “oh mãe, eu tenho certeza”, aí eu fui lá e conversei com o Wender “você
dá garantia? Tem garantia no computador?” e ele “eu vou dar garantia para este
menino? Se acontecer alguma coisa a senhora vem cá e pega a peça, mas o
computador eu garanto que não vai dar problema e o computador é bom e tal e ela tá
vendando é porque comprou outro novo”, era pessoa que tinha muito dinheiro na
época e podia até ter dado a ele de presente. E teve muitas outras coisas, muitas
emoções, mas tem duas coisas na minha vida que eu não esqueço até hoje; na época
o salário não era nem R$90,00 (noventa reais), ele trouxe a nota e deu garantia, e eu
fui e falei assim “Suzano, ir lá com você eu não posso não, mas, mas eu te passo os
R$500,00 daqui a pouco pra você buscar o computador”, ele “o que? R$500,00
você tem?”, e ele ainda duvidou de mim e eu falei “é sim, R$500,00, e você sabia
que é mais de 5 salários mínimos”. Então são umas coisas que eu falo para eles, hoje
nós estamos numa época de vacas gordas, mas nós já passamos cada magrela.
61
Marília Campos foi prefeita do município de Contagem por dois mandatos consecutivos representando o
Partido dos Trabalhadores, PT. O primeiro mandato foi de 2005 a 2008, e o segundo, de 2009 a 2012.
180
era? Nós tinhamos uma espécie de legislativo que era um conselho com dois
representantes de cada sala e era o que garantiria que as informações chegariam
rapidamente a todos os alunos da escola, e tinha um coletivo com 6 (seis) pessoas
que coordenavam as ações, e eu era o presidente do Diretório, então assim, quando a
gente dava uma informação tudo chegava muito rápido nas salas, a gente reunia,
eram reuniões de 2 a 5 minutos no recreio e a coisa chegava. E eles sabiam na época
que nós colocaríamos os estudantes lá e aí rapaz, para minha surpresa, três dias
depois ligou a Cláudia Osceli “olá Suzano eu sou a C.O. a presidente da Funec, tudo
bem? Eu gostaria de bater um papo com você, como que a gente faz?”, e eu disse
“você pode vir aqui na escola.” Aí eu fui e falei assim, “essa mulher não vai vim
aqui, eu duvido que ela vai aparecer aqui nessa escola!”. E aí, a Cláudia foi, e nós
reunimos esse conselho todo, dava umas 25 (vinte e cinco) pessoas, e ela respondeu
à altura. Daquele momento em diante nós começamos a ter uma relação muito
próxima, nós simpatizamos muito fácil, eu gostei do jeitão dela de fazer as coisas e
ela viu que eu era um cara meio doido, assim, enfim, a gente deu certo. E naquele
momento eu comecei a sacar que a gente tinha que fazer alguma coisa pela
comunidade, pela escola, pra tentar melhorar e aí eu comecei a envolver-me nesses
movimentos para aprender, inclusive, como é que funcionavam as coisas. Um pouco
depois, eu vi que o movimento estudantil não era a minha praia, que eu não queria
mesmo, assim, eu não achava legal a forma como ele era construído. Então eu
comecei a militar no movimento de juventude partidária, no PT, minha mãe já era
filiada há mais tempo e eu desde 2005, onde eu continuei.
Eu sempre fui assim, aquele cara que liga e registra o protocolo: “não, não estou
concordando com a operadora não!”, que gosta de prestar contas, que liga, registra e
guarda o protocolo, eu tenho todos guardados. Eu acho que isso é um pouco da
escola também. A escola que eu estudei ensinou, e minha mãe também, de que a
gente não tem que abrir mão dos nossos direitos, nós não temos que abrir mão.
Entendeu? Quando você estiver errado você tem que admitir que errou e abaixar a
cabeça: “desculpa, eu errei”. Mas se você tem que ir e bater naquela tecla até que o
direito seja validado. Por exemplo, um dia desses nós fomos ao cinema e existe uma
Lei em Contagem que determina que os menores de 18 anos, sendo estudantes ou
não, ao apresentar a carteira de identidade têm que ter acesso à meia-entrada. Então,
eu fui lá com minha irmã, minha mãe estava também, e nós chegamos ao cinema e o
cara falou assim, “essa Lei não existe”, eu fui e mostrei a ele a Lei e aí ele foi e falou
assim, “essa Lei aí é facultativa!”, e eu disse “então deve ser facultativo o direito que
eu tenho de lhe dar um soco na cara e não ser preso! Já que a Lei não é para ser
cumprida, então todas as leis são facultativas.”. E aí eu registrei um protocolo lá na
administração do shopping, eu ia entrar com uma ação [judicial] contra o shopping,
o que é uma coisa boba, pois pra mim R$4,00 a mais ou a menos não vai fazer
nenhuma diferença. Mas é o conceito de Direito, eu tenho que ter o direito à meia
entrada, e que o outro tem também, e as pessoas muitas das vezes não vão fazer
valer, pois as pessoas se acomodam com isso. Desde cedo eu aprendi que tem que se
seguir a Lei, para que a Lei possa ser validada e para garantir os meus direitos
também.
Eu cresci vendo gente morrendo aqui, eu cresci vendo gente morrendo. A última
fase da minha infância, a pré-adolescência e adolescência e juventude foi toda nesse
território. Então, eu cresci aqui, eu construí minhas referências aqui, no Confisco, no
182
São Mateus, no Estrela D’alva, enfim, nesse território, e muita gente morreu. E a
gente tinha um ditado “Se se envolver? Vai morrer, não tem jeito!” é raro o cara
chegar aos 20/22 anos, morre, com raras exceções, morre, não tem jeito. Então,
desde muito cedo eu criei uma antipatia com isso, eu já sabia que era o que eu não
queria, não rolava, e durante um tempo a galera até olhava assim pra mim assim...
[pausa] porque minha mãe sempre orientou para não fazer favor a ninguém, e se eles
pedissem ela quebrava o pau com eles. E todo mundo sempre respeitou minha mãe
porque ela sempre foi muito próxima na comunidade, assim, do tipo, muita gente
que morreu aqui foi minha mãe que enterrou, porque durante muito tempo acontecia
que as pessoas morriam e eles não sabiam o que fazer com essas pessoas que
morriam. Ela era aquela pessoa que batia em cada porta e dizia “olha você pode dar
um real, dois ou três reais, para liberar o corpo”.
O crime é comércio, e as empresas evoluem, não é? E como administrador eu posso
dizer muito bem. Eu acho que eles estão mais inteligentes hoje e não só por causa da
tecnologia, é em gestão mesmo, por exemplo, antigamente o cara iria morrer porque
ele deve, hoje em dia o cara pega o seu patrimônio, a casa da sua mãe, e isso não é
só aqui não, é no país, [...], é meio complicado falar assim, mas é como uma
evolução da forma de comercializar e da forma de cobrar e eu acho que tem uma
regra: assassinato atrai imprensa e polícia, atrai visibilidade, e as empresas não
querem publicidade negativa, elas querem o espaço para fazerem o comércio, boca é
no bairro todo, não é só no bairro é na cidade, falar que boca é na periferia é lenda
urbana, está é na cidade toda. Mas o modelo de gestão está evoluindo, evoluindo eu
não sei se para melhor ou se para pior, mas está mais inteligente, mas tomando
outros contornos, o PCC fez isso, e em outros lugares por aí a fora, na tv também, as
faces sociais do crime. Não é? E isso dá um objeto de estudo legal demais, que é o
cara que distribui coisas nas comunidades. Eu me lembro de um caso de um amigo
meu falando, ele mora em Duque de Caxias, de que todos os sábados os traficantes
paravam uma rua, faziam um pagode e liberavam cervejas e mais cervejas de graça.
Mas eu acho que tem uma coisa assim de querer manter o território sem fazer muito
alarde do que está rolando, sabe? Mas tem caras que você percebe evidentemente
que são envolvidos, isso é natural, mas aqui é difícil você dizer quem é o bandido da
história, se é o cara que comete o crime porque precisa do mínimo na casa dele, o
mínimo que eu falo é comida mesmo, ou o cara que vem prender esse cara, o
histórico de violação da polícia aqui é direto e não é um ou dois casos não, é direto.
[MÃE DE SUZANO]: Vamos supor, morria matado, e aí eles não tinham dinheiro
nem pra ir lá liberar o corpo, entendeu? E aí, eu fazia a correria do dinheiro e todo
mundo ajudava e fazia a lista para liberar o corpo. Aqui, graças a Deus, nenhum
ficou sobre a terra. Na medicina você não paga para tirar o corpo, mas a questão é
que morria a maioria das vezes daquele jeito, daquele nipe [assassinado], ou então,
morria em casa doente e a família não sabia o que fazer e ia até eles e falava “pode
tomar o seu banho que eu estou correndo atrás”, e rapidinho já arrumava o enterro
pra ela e ia todo mundo, isso desde que eu cheguei aqui.
Eles falam que eu sou brava, mas eu não sou brava, mas eu vejo as coisas por esse
lado, se ele quisesse ter entrado para o meio da bandidagem ele tinha entrado, no
entanto, ele passa no meio de todo mundo e eles estão lá fumando, vendendo,
entregando, e a gente não tem nada com isso, eles não mexem com a gente e a gente
deixa eles lá na deles. Na porta da escola eles chegam e falam “olha, eu vou te dar
R$5,00 e você leva essa bolsa e tem que entregar lá em casa pra mim”, e se ele
chegasse aqui com um centavo ele tinha que explicar onde que ele arrumou... esse
negócio de achar para mim não existe.
[...] Um dia desses um policial veio atrás de um traficante aqui e quando ele chegou
na rua eu estava vindo de lá para cá e a polícia entrou e o cara correu e ele começou
a dar tiro, e não queria nem saber se iria pegar no cara ou se tinha gente na rua, e aí
quando o menino correu e o policial correu atrás e não deu conta de pegar ele na rua,
ele entrou dentro de uma casa que tinha uma menina deficiente. A menina deficiente
viu o menino entrando, e ela nem sabia quem tinha entrado, o primeiro portão aberto
ele entrou, só que ele não fechou o portão e o polícia veio atrás, e ela foi e passou na
183
frente, e eles já com o revolver na mão, e ela foi e falou assim “o que vocês querem
aqui? O que vocês querem aqui?” e eles foram e falaram “é que fulano entrou aqui”,
e ela disse “aqui ele não entrou não” e eles foram e bateram a cabeça dela no muro e
fez um galo daquele tamanho e depois começou a sangrar e eu fui e parei e olhei
para aquilo e fui e virei para ele [policial] “eu não estou te entendendo não? Ela é
bandida? Então, por que você fez isso com ela?” e ele disse e falou “é porque ela
queria impedir a gente de entrar” e eu fui e falei assim “primeiro, vocês não tem
mandato para entrar na casa dela, e segundo, mesmo que vocês tivessem só de olhar
para a cara dela dá para saber que ela é deficiente e mesmo se tivesse ela não iria
entender isso para te perguntar, mas o senhor entrou, não entrou?”, “sim, entramos
pegamos e já estamos trazendo já”, e aí todo mundo olhou para mim, porque aqui
eles cagam de medo de polícia, e eu fui e falei “cadê o mandato?”, “não precisa de
mandato para pegar vagabundo não! [respondeu o policial]”, e eu fui “deixa eu te
falar, aqui mora muito trabalhador, aqui não mora só bandido não, vocês dão tiro na
rua, vocês querem colocar ordem em um lugar e nem vocês têm, eu conheço muito
filho de policial por aí drogado, colegas seus drogados, quem é você para querer dar
essa moral”, e o menino foi algemado e jogou o menino no chão e começou a bater,
e eu fui e falei “a sorte sua é que eu não tenho um celular aqui com câmera pra
filmar isso, porque seu eu filmasse isso daqui não iria ficar de graça não”, as pessoas
aqui não endentem de lei, é um pessoal humilde, da favela, e eles abusam mesmo
[...], e eu falei, “ isso aí está errado. Ele não está algemado?”, [o policial respondeu]
“é que vocês dão muita cobertura para vagabundo”, e eu falei “nós não estamos
aqui para atrapalhar vocês a trabalhar, mas esse tipo de coisa que vocês estão
fazendo, vocês sabem que está errado, e vocês fazem isso com eles, mas faz isso
com um filho meu para vocês verem? Vocês ameaçam de matar, que vão passar à
paisana e que vão fazer isso e aquilo, como já ouvi vocês falarem aqui, faz isso com
um filho meu para vocês verem? O inferno que você vai entrar, eu vou lhe falar uma
coisa, o senhor vai brigar é com o capeta”, ele foi e falou assim “oh dona, a senhora
acha que está podendo mesmo, não é?”, eu fui e falei assim: “estou sim, você
acredita que eu estou podendo?” e aí tirei meu cartão de alimentação, meu cartão de
passagem, tirei minha identidade e tirei minha carteira e mostrei “aqui ó, eu sou
trabalhadora, você pode chegar no ponto de ônibus ali 05h50 e olha a fila de gente
que tem para pegar o ônibus, eu respeito os seus trabalhos, mas vocês tem que saber
que o seu direito começa onde o meu termina, e pare de bater no menino ou então
leva ele na viatura e resolve o que tem que resolver, mas bater pode parar agora”, e
aí, “é..., parem aí gente, essa mulher..., parem aí, é melhor parar para eu não ter
problema com essa mulher”, e eu falei “e é melhor vocês não terem problema
comigo eu já mandei buscar o celular que ficou lá em casa carregando”, e rapidinho
ele enfiou o rabo entre as pernas, procurou alguma coisa com o menino e não achou
e foi lá um e conversou com o outro e falou assim “mas a senhora sabe que ele está
com droga?”, e eu falei, “não, ele não está com droga, porque se ele tivesse vocês
teriam que ter trago a droga é do lado de dentro e ele veio sem droga”, e ele,
“desculpe, eu só perguntei se a senhora sabia se ele estava com droga”, e falei, “eu
não tenho que saber de nada, quem tem que saber é vocês”, e ele, “então, vem cá,
quem são esses traficantes que mantém o tráfico aqui”, eu falei, “não sei, eu não
ganho para isso, quem ganha para isso é vocês, os investigadores aqui são vocês, eu
não ganho para isso, eu não vendo droga, eu não compro droga, não consumo droga,
então quem tem que saber disso é vocês, e que, infelizmente vocês fazem-no
péssimo”, ele calou a boca e o menino estava lá dentro da rádio patrulha, “e agora
vocês vão levá-lo por que? Vocês não tinham mandato para pegar ele, só pegaram
porque ele correu e vocês foram atrás, se ele não tivesse corrido vocês também não
tinham, agora, ele é menor, e se a mãe não for, eu vou junto, porque quando a gente
precisa de uma viatura para socorrer uma pessoa, para levá-la ao médico vocês não
aparecem, ninguém pode vir, mas se foi baleado vem, e quando chega não quer
saber porque não, quer saber o tipo de bala que foi’, porque eles ficam igual urubu
em cima perguntando quem foi, e por causa da arma e não da pessoa em si, e
“quando chegar lá eu vou falar para o comandante de vocês não ficar gastando o
nosso dinheiro, o dinheiro de seis radiopatrulhas, uma moto e de vocês está saindo
do meu bolso, esse dinheiro deveria estar investido na saúde, e também na
segurança, na educação e em um muito de outras coisas aí, e muitos outros projetos
184
aí e vocês, o governo, não precisa deixar esses meninos aí”, mas sabe o que
acontece? Os policiais aqui, infelizmente, não são todos, eles sãos os piores
corruptos, eles chega aqui e você está com dinheiro e está com droga: “ó, passa o
dinheiro aí, e outro dia eu passo para buscar e eu não te levo não”, ele deixa o cara
com a droga e volta outro dia para buscar mais dinheiro, e o cara tem que ter. E
então todo mundo “você é louca, você é louca”, e eu falei, “doido é vocês que
deixam eles fazer o que quer e ficam aí caladinhos” e eu falo com você um negócio
meu estopim é curto, por isso eu falo “não se envolvam”, porque se eu ver um
policial batendo no meu filho por nada, eu avanço nele, aí sim que vou presa, e se eu
não partir para cima e dar uns tapas neles eu vou até o inferno mas resolvo tudo.
Eu sou um cara da minha família, eu adoro ficar com a minha família, e eu tenho
pouco tempo para ficarmos juntos, pouco, pouco tempo, se você quer esconder de
mim você vem para a minha casa. Eu estou em uma fase esse ano que eu estou
trabalhando muito, muito, estou trabalhando na Globo, estou trabalhando em uma
ONG aqui no bairro, eu estou trabalhando muito, mas muito mesmo, estou
trabalhando aqui na vila em um projeto que estamos construindo uma ONG aqui na
vila, de moradores da vila, estou trabalhando muito pesado, estou até sem tempo
para estudar, ano que vem eu volto a estudar, mas o trabalho social eu vou continuar
fazendo. Eu escrevo há três anos para um Instituto, que ajudei a criar, era um
movimento e nós criamos o Instituto, e nós tínhamos ganhado dois projetos na lei
estadual de incentivo à cultura, uns quinhentos mil reais mais ou menos, e
começamos um diálogo com a Globo agora para tentar colocar um programa no ar
que irá se chamar “Batucando: cultura negra na internet” para produzir junto à
Fundação Roberto Marinho dez programas pela internet de tv sobre temas afro-
brasileiros. Há alguns anos, olhando no espelho, porque às vezes a gente tem que
fazer essa ação e eu percebi uma coisa muito interessante, eu tenho raça, eu tenho
etnia, eu venho de um de lugar. Engraçado é que muita coisa aconteceu depois de
uma conversa com meu avô, eu conversava muito com ele antes dele morrer, pai da
minha mãe, ele morava no interior, no norte de Minas, e ele contava as histórias e eu
achei muito interessante que meu avô, até a geração dele, na família dele não houve
nenhuma mistura, ele era da cor da sua camisa [preta], negro, negro, negro, negro, e
próximo de onde ele morava tinha um quilombo, mas a gente não vem desse
quilombo, eu acho, mas tem o quilombo também. Eu achava interessante que meu
avô, embora negro, isso há 50 ou 60 anos atrás era fazendeiro, e eu achei essa
história muito interessante, algo que eu queria até pesquisar depois, ter tempo para ir
e fazer uma pesquisa sobre isso, sobre esses antepassados nossos. Porque um
fazendeiro negro há anos atrás é uma coisa um pouco estranha, e a nossa família não
tinha pouca terra lá, muita terra mesmo, a minha mãe tem hoje lá um sítio e tal, que
pena que a terra não vale nada [em termos monetários], mas é muita terra, são seis
irmãos e aí, dividiram entre os irmãos, eu achava muito interessante aquilo, e eu
comecei a ser provocado por essas questões. Em determinado momento eu conheci
uma amiga minha, a Eça, que é congadeira [do congado] e do candomblé e tentei
entender mais o que estava rolando e comecei a perceber o quanto esse processo de
exclusão é mais forte com pessoas que são negras. E aí eu comecei a lembrar, na
universidade eu era o único estudante negro da minha sala, na pós-graduação eu
também fui o único, fiz um MBA em Marketing, então rolou essa questão, comecei
a perceber que quando a pessoa é negra esse processo de exclusão é muito mais
evidente. É evidente, mas é mascarado, pois, você sabe que acontece, mas os
mecanismos que os constroem são muito sutis, e aí comecei a fazer essa discussão,
comecei a produzir alguns textos, muitos deles já foram publicados e agora eu estou
tentando estruturar isso e é a pesquisa que eu quero desenvolver no mestrado.
Quando se fala da juventude negra, em 2009, 2010 participei do Encontro Brasil
França promovido pela Fundação Perseu Abramo em São Paulo e lá estava uma
deputada francesa que é negra e falava desse processo, e eu comecei a acentuar as
leituras sobre esse processo e tentar perceber o que está acontecendo com os negros
185
do Brasil. E aí esses textos que eu escrevi partem desse pressuposto histórico, de que
nós estamos sendo constantemente excluídos e no recorte da juventude é pior ainda,
o jovem negro tem um histórico de violações do pior possível, nas favelas a maior
parte das pessoas são negras e, [...] quanto mais negra é a juventude, mais excluída
ela está.
Embora Suzano partilhasse do mesmo universo social da maioria dos jovens que
conheci durante a etnografia, seus percursos de vida destoavam, e muito, da maioria das
trajetórias juvenis que conheci no Estrela D’alva. Sua trajetória foi orientada a partir de um
relativo distanciamento em relação à vida social cotidiana do bairro, principalmente das
relações sociais que se estabeleciam durante os dias de semana no seu espaço público. A
“rua”, como metáfora de um caminho perigoso e marcado pelo envolvimento com atividades
ilegais, foi evitada por sua família desde que chegou ao Estrela D’alva. Sua mãe mantinha-o
ocupado fora do bairro ou dentro de casa. Dos oito aos doze anos Suzano frequentou o Projeto
Curumim, onde permanecia por todo o tempo do dia e só a noite ia para casa, aos finais de
semana a igreja e os “primos” ocupavam seu tempo. A gestão do tempo no cotidiano era
caracterizada por um acúmulo e intensidade de atividades e projetos que tinham como
princípio mantê-lo ocupado e longe das distrações da “rua”. Sua infância foi construída assim,
a partir de um repertório distinto. Ainda que sua mãe diga que ele “teve infância”, Suzano não
sabe andar de bicicleta, não soltou papagaio e não jogou bola na rua, nem brincou de pique-
esconde, rouba bandeira ou qualquer outra brincadeira infantil comumente vistas nas ruas da
periferia quando foi criança. Na Vila Francisco Mariano as casas são, em geral, apertadas e
desconfortáveis, e por isso ficar na rua é uma opção para muitos moradores, afastar-se dela,
ficar em casa pode ser muitas vezes um sacrifício.
Em casa, Suzano dedicava-se às atividades domésticas, fazia os deveres de casa e
jogava videogame. Seu cotidiano era relativamente diferente do vivido pelos demais jovens
do bairro, para os quais a rua assumia uma centralidade enquanto esfera de interação social
comparada à esfera doméstica. Além disso, Suzano estudava com seriedade e participava com
afinco das atividades políticas na escola e fazia cursos técnicos como o de informática.
Ganhou de sua mãe um computador ainda na adolescência, além do já mencionado
videogame, bens que não proporcionam apenas distração e entretenimento, mas acesso a
habilidades e informações, capitais socialmente valorizados. O distanciamento em relação às
dinâmicas do espaço público da periferia não foi uma escolha sua, seu cotidiano era
cuidadosamente projetado por sua mãe, pessoa que, apesar dos poucos recursos se esforçou e
186
muito para que o filho tivesse uma trajetória de estudo e trabalho diferente dos outros
moradores do bairro e distinta, inclusive, da sua própria.
O modo como Suzano relacionou-se com a vida pública da periferia, esse
distanciamento em relação à “rua” foi também proporcionado pelas escolas das quais
frequentou, todas situadas noutros bairros, todas em Belo Horizonte. Nem na escola ele
partilhava do mesmo ambiente das crianças/adolescentes do Estrela D’alva. Produziu-se uma
espécie de alteridade que, se por um lado sensibilizou Suzano para o lugar distinto que
ocupava quando comparado a seus colegas de escola, por outro alimentou também a
possibilidade de construção de um projeto de vida com mais alternativas que aquelas
vislumbradas pelos vizinhos. Em geral, na periferia, as relações sociais na escola são bastante
influenciadas pelas dinâmicas sociais estabelecidas na rua e as escolas onde estudou não
ficaram reféns de nenhum toque de recolher. Ele teve uma vida estudantil ativa, sem
abandonos e era comunicativo, foi presidente do grêmio onde participou da organização de
ações coletivas estudantis, inclusive de protestos. Seu percurso escolar foi também orientado
por uma vida familiar fundamentada numa ética do direito e que envolvia também deveres e
obrigações, como disse Suzano, a “lei do estudo compulsório”. Ele é de uma geração que
viveu sua trajetória juvenil no período de redemocratização do sistema político formal, e suas
experiências de vida expõem essa concepção sobre sua capacidade de ação, política e coletiva,
que ele, como muitos outros jovens da periferia demonstraram ter. Suzano presidiu o grêmio
estudantil, participou da juventude partidária, movimento político fora da escola. Por meio
deste último, teve a oportunidade de realizar viagens, participar de congressos e
manifestações políticas.
Por meio da escolarização, Suzano teve a oportunidade de acessar outros capitais
sociais que podiam ocupá-lo tempo o suficiente para mantê-lo distante da vida cotidiana do
bairro. E, deste modo, ele conseguia em parte escapar do efeito perverso que a segregação
exercia/exerce sobre a reprodução da pobreza nas periferias mais isoladas do centro
metropolitano, como é o caso do Estrela D’alva, onde os jovens que entrevistei tendiam a ter
redes sociais62 estruturadas nas relações locais, orientadas por dinâmicas endógenas,
orientadas para o próprio território da periferia. Por outro lado, a participação na vida
religiosa aproximava-o do cotidiano da periferia. Suas interações sociais mediadas pela igreja,
neste caso a PIBED, envolviam atividades com adolescentes e com pessoas de outras idades
62
A noção de redes social como proposta por (MARQUES, 2010), considerando as pessoas com as quais os
indivíduos mantêm vínculos que possam lhe proporcionar acesso a alguma forma de bem estar social. Segundo
o autor identificou em São Paulo, nas áreas mais distantes do centro metropolitano onde se concentram
pessoas em situação de pobreza as redes sociais tendiam a ser mais locais.
187
nas quais Suzano exercitava sua capacidade de escuta e de compreensão dos problemas
relatados por moradores do bairro que buscavam apoio e proteção social na instituição
religiosa.
Eu tinha uns vinte discípulos na época, era bem lotado, e muita gente que a gene
visitava, conhecia, conversava, e tinha essa referência da igreja mesmo, e tinha gente
que nem era discípulo seu e às vezes te cumprimentava na rua e que te admirava e
pedia para ir à casa dele porque estava com problema, então tomava muito tempo.
(Entrevista com Suzano, 2013).
Aos 28 anos de idade, Suzano demonstrou consciência das limitações morais que
envolvem a religião, mas quando tinha em consideração o contexto social brasileiro e a
situação de vida precária de periferias como o Estrela D’alva reconhecia a igreja como uma
instituição social necessária, e assim, defendeu sua legitimidade: “se hoje têm 2.000 fiéis, eu
torço para que ele chegue a 4.000, a 5.000, a 6.000 fiéis lá. Entendeu? Porque cada um que
ele tira é menos um” (Entrevista com Suzano, 2013). Enfim, a igreja era uma esfera relevante
de aprendizagem social por meio da qual Suzano ocupou seu tempo nos finais de semana,
durante toda a adolescência e podia participar de forma mais direta da vida comunitária na
periferia.
Embora Suzano já participasse de movimentos políticos estudantis desde a
adolescência, somente na idade adulta deu-se conta das questões raciais que configurava a
forma como os outros o percebiam, e por conseguinte, de como ele mesmo veio a perceber a
si mesmo no mundo. Somente no período da universidade, um ambiente social mais distante
do universo social e geográfico da periferia metropolitana, foi quando ele pode notar isso com
mais evidência, ao ponto de lhe chamar a atenção: ele era o único aluno negro em uma sala do
Curso de Administração de Empresas. Neste mesmo momento, em uma visita ao seu avô
materno, no Norte de Minas, percebendo-se negro por pele e história de vida, se viu como um
jovem negro. Tal questão aproximou Suzano ainda de sua família, que para ele transparecia
ser o próprio povo da periferia. A partir disso, Suzano passou a se ocupar novamente em
cuidar deste povo. A partir de seus trânsitos sociais e metropolitanos, através de suas redes
sociais, de dentro e de fora do bairro, passou a agenciar projetos sociais na periferia pela
submissão de projetos a leis de incentivo à cultura, tendo como fonte de recursos editais
públicos, parcerias com ONG’s e empresas privadas com fins lucrativos. Quando eu o
entrevistei, Suzano desenvolvia três projetos sociais, todos eles voltados para a população do
Estrela D’alva, especialmente os moradores da Vila Francisco Mariano, sendo que em um
deles abordava questões étnico-raciais.
188
Maicon me foi apresentado por Faro e o conheci em sua casa durante a realização do
ritual religioso denominado de “célula”. Em uma quinta-feira do mês de agosto de 2013, por
volta das 19h00, tive a oportunidade de participar de um encontro da célula liderada por
Maicon. Contando com este, além de mim, havia na ocasião um grupo de cinco pessoas, entre
elas Faro. Maicon foi muito atencioso, explicou-me como funcionava a célula, disse que os
integrantes se conheciam por intermédio da igreja e que nem todos estavam presentes naquela
quinta-feira. Uma vez por semana o grupo liderado por ele reunia-se em sua casa,
principalmente, e vez ou outra, na casa de algum outro membro do grupo de oração para as
190
do que ficar aí. Não vale à pena guardar mágoa, não devemos desprezar o outro, mesmo à
distância respeitá-lo, não devemos adiar isso”. Após a palestra, os debates e dos testemunhos
feitos em torno da leitura da história de Ezequias houve um intervalo para o lanche com
refrigerante e biscoitos e, por fim, um momento no qual Maicon apagou a luz e ligou uma
musica gospel em volume alto. Um momento no qual cada um iria orar em voz alta e pedir a
Deus o que precisava pedir. Assim o encontro foi encerrado. Antes de partir perguntei a
Maicon se ele se dispunha a participar da tese e semanas depois retornei à sua casa onde
realizamos a entrevista.
Quando realizamos a entrevista Maicon estava com 26 anos, morava junto à esposa e
ao filho, numa casa construída no mesmo lote da residência de sua mãe, do mesmo modo
fizeram sua irmã e seu irmão mais velhos. O terreno onde todos familiares de Maicon
construíram está situado entre o São Mateus e a Vila Sapolândia e a titularidade do imóvel foi
adquirida por usucapião. Desde que compraram o terreno, seus pais tiveram transtornos em
relação à titularidade, pois, quem os vendeu não era o proprietário e sim um golpista. A
situação de golpe gerou tensões também entre sua família e o proprietário legal que os via
como invasores. Antes de começarmos a entrevista, Maicon abriu a geladeira branca, com
freezer independente, e tirou uma garrafa de refrigerante e ofereceu-me para beber,
acompanhando o lanche: uma torta de frango, queijo, e depois, café. Com entusiasmo ele
apresentou-me sua mesa farta. Na sala, seu filho que também bebia refrigerante, jogava
videogame em uma televisão de 42 polegadas, tela de plasma. A entrevista foi realizada em
seu quarto de dormir, onde ele me mostrou no computador desktop, fotos de eventos que
havia participado na igreja.
Maicon nasceu no Estrela D’alva e quando estava com seis anos de idade seu pai
abandonou sua família e foi para São Paulo onde possuía parentes. Esse fato fez com que a
subsistência da sua família ficasse abalada logo no início de sua infância. Com o abandono, o
grupo doméstico viveu um período de empobrecimento em vista da inconstância nos
rendimentos de sua mãe que para manter a ele e aos outros filhos contava apenas com
empregos temporários, “biscates”, e com a venda de produtos de utilidade doméstica como
pano de prato e tapete de retalhos que confeccionava. Ela não tinha condições de arcar com
brinquedos, lanche, passagem de ônibus e nem material escolar para os filhos. Nesta fase,
ainda na infância, quando estava na escola e queria lanchar, Maicon costumava furtar,
utilizando como estratégia realizar a compra de um salgado (coxinha) para um amigo, e ao
realizar isso tinha a oportunidade de enfiar a mão no balaio da salgadeira e furtar outra
coxinha para si. Disse que às vezes achava que ela via seu ato, mas não o punia por
192
supostamente saber que ele fazia isso por necessidade e não por maldade, segundo a
percepção dele.
Aos dez anos de idade Maicon voltou a morar com o pai em um bairro do município
de Contagem, o Pedra Azul. Na ocasião, a relação era marcada por intensas brigas entre o
padrasto e o pai, que tentava reatar os laços com a família. No Pedra Azul Maicon trabalhou
um por um ano em um sacolão (hortifrutigranjeiro) de propriedade do pai e recebia por
semana um onerário no valor de R$5,00. Em tal período eles dormiam no próprio sacolão,
entre sacos de batatas. Durante o dia Maicon administrava o estabelecimento enquanto seu pai
saía para trabalhar em outra ocupação. O sacolão faliu e Maicon voltou a morar com a mãe.
Aos 14 anos trabalhou como auxiliar de jardinagem em uma loja no bairro e prestava serviço
também em outros bairros de moradia de classes médias localizados em Belo Horizonte,
como o Castelo onde visitou “casas bonitas”. Posteriormente, quando estava com 15 anos
trabalhou numa mercearia e depois como ajudante de padeiro em uma padaria.
Durante sua infância, adolescência e juventude Maicon frequentou diversas igrejas
protestantes no bairro: na infância a Assembleia de Deus e na adolescência a Batista, onde
permanecia até a data das entrevistas, embora entre os 15 e 16 anos de idade tenha vivido um
período fora da igreja. Na mesma época, estudou em Belo Horizonte, próximo ao portão2 do
jardim zoológico em uma escola onde casos de brigas e de depredação da escola, furtos e
porte de arma eram relativamente frequentes. Neste tempo buscou fazer amizades com grupos
envolvidos nestes eventos como estratégia para garantir proteção contra as ofensas de outros
grupos que agiam de modo semelhante. Aos 18 anos abandonou a escola, quando sua
namorada engravidou.
A expectativa da paternidade motivou-o a buscar trabalho, na tentativa de agregar os
recursos financeiros e materiais para custear a nova situação que estava por vir. Inicialmente
conseguiu trabalho em uma mercearia como empacotador de feijão e depois como auxiliar de
construção civil. Nesse período, os rendimentos semanais alcançados por meio deste último
eram na faixa entre R$90,00 e R$100,00 (que ao final do mês não atingia 1 salário mínimo à
época). Quando realizamos a entrevista Maicon trabalhava há oito anos em uma mesma
empresa, onde conseguiu ascendência de cargo por causa de sua dedicação. Em um enorme
galpão de estocagem de produtos de uma grande empresa aprendeu a operar a máquina
empilhadeira e desde então se manteve neste ramo. Embora este trabalho oferecesse a ele
carteira assinada, convênio médico e também almoço, Maicon sentia a necessidade de buscar
rendimentos em fontes alternativas. Ele vendia produtos de Avon, roupas e até mesmo
juntava, em um canto externo da casa, latinhas de alumínio e outros materiais recicláveis que
193
eram vendidos para depósitos de material recicláveis. Sua esposa também trabalhava fora de
casa como operadora de caixa num supermercado local e, por conta própria como manicure
em casa ou atendendo a domicílio de terceiros.
O projeto de assumir a gravidez da namorada e de constituir família foi encarado por
Maicon como uma espécie de sacrifício que ele estava disposto a viver, mesmo que tivesse
que abrir mão de sonhos pessoais e projetos individuais. Ele demonstrou em seu relato o
desejo de participar de um grupo familiar sólido, sem conflitos, diferente daquele que havia
dito na infância e adolescência; ao se saber pai, seu projeto de vida tornou-se, em certo
sentido, a conversão daquilo que o seu próprio pai não havia sido na dinâmica do seu próprio
núcleo doméstico, e para isso estruturou sua trajetória em torno das relações familiares e
religiosas como apresento a seguir a partir de trechos coletados em nossa entrevista.
Hoje somos três irmãos. Quando nós chegamos nessa comunidade aqui, no São
Mateus, a minha mãe mais o meu pai comprou o lote de um homem, só que esse
homem não era o dono do lote, ele se passou como dono. Tempos depois o
verdadeiro dono chegou e queria tomar o lote de várias pessoas que tinham
comprado. Ele viu que não conseguiu conseguiria? (ele morava em São Paulo) e
vendeu para outra pessoa, mas sem contar que estava invadido, que era invasão. A
gente comprou, mas para ele era invasão. O outro cara comprou, quando chegou
aqui viu que era invadido também, ele pegou e deixou para lá. Como tem muitos
anos que a gente mora aqui, a gente entrou com usucapião. Hoje nós temos a
escritura. Tinha um barranco que a gente escorregava em época de chuva, que a
gente criava porcos lá também, aproveitando para jogar no córrego que passava. O
meu primo morava bem no centro do buracão mesmo. Era um local muito assim,
complicado o acesso. Até para atravessar para ir para o Estrela Dalva, no único
supermercado que tinha época, o da Rosana, era complicado também porque só
tinha um escadão de acesso, foi mais de dez anos, tinha um escadão de acesso, a
chuva passava e sempre tinha uma morte. Teve o caso de uma menina, que ela caiu
no córrego, que ela foi parar na rede de tratamento, a mais de 5 ou 6 quilômetros
daqui mais ou menos. Ali na Sapolância já aconteceu também de chuva muito forte
e alagar tudo ali também, o córrego passa lá. Ali transborda. A linha invadia as casas
ali. Muito complicado.
Meu pai separou da minha mãe eu tinha6 anos. Ele foi para São Paulo, então
começamos a passar algumas dificuldades. Às vezes tinha que comer na casa da
minha tia. Brinquedos tinha pouco, pouca roupa. Brinquedos, quando a gente queria
algum, juntávamos eu e um grupo de amigos e íamos para o centro comercial roubar
brinquedos. Então a coisa que hoje parece boba, mas para uma criança que não tinha
brinquedo, ter um brinquedo era uma coisa... Ela vendia roupa [sua mãe]. Às vezes
ele [pai] mandava, às vezes não mandava dinheiro, então começou a ficar muito
complicado. Não era sempre que tinha. Eu não batia muito bem com a minha mãe, o
meu gênio com o dela não coincide. Até hoje nós conversamos muito pouco porque
é muito complicado. As necessidades que eu sabia que eu não podia pedir a ela, eu
tentava se virar na rua. Por exemplo, os brinquedos. A gente brincava de pique-
esconde, de garrafão, tico-tico-fuzilado, tinha o tal “hoje não secreto”, “hoje não” e
dava porrada, só que o “hoje não secreto” você não precisava ligar para um cara. Era
o mais traiçoeiro que tinha, por exemplo, falar assim “Vamos ligar o hoje não?”.
Ligou. Aí eu posso te bater e você pode me bater, e se você falar comigo “hoje não
194
secreto” eu não preciso ser ligado com você, porque é secreto, então você não tinha
que ir lá ligar para um cara. Você tomava porrada, você nem sabia que o cara ia te
bater porque você não era ligado com ele. Você via o cara aqui e ele te dava porrada.
Tinha o tal ABB, ABBL. É beijo na boca. Falava: “ABB: vai lá e beija aquele
menino”. “ABBL: beijo de língua. Vai lá e beija aquela menina”. Você tinha que
ficar escrito de caneta na mão, na época, isso já era na escola. Na escola, eu queria
lanchar e não tinha dinheiro, aí a proposta que o meu amigo me dava, porque ele
tinha o dinheiro do lanche dele, era eu ir lá comprar uma coxinha e eu tentar pegar
outra. Então eu comprava uma, era num cesto, aqueles balãozinhos feitos de bambu,
com uma tampa de um lado e do outro, com pano. A dona falava: “Pode pegar”. Eu
enfiava a mão para pegar uma, mas eu pegava duas tentando para ela não ver. Mas
eu acho que às vezes ela via. Acho que ela fingia que não via, não sei, porque acho
que era a necessidade.
Teve uma época depois, que meu pai voltou de São Paulo, ele queria voltar para a
minha mãe, minha mãe não queria mais, eu estava com meus 9 para 10 anos já. Meu
pai queria voltar para ela e ela não queria. Ele montou um comércio, um sacolão, e
todo dia depois da aula eu ia para lá. No bairro vizinho, Nova Pampulha. Chegava
da aula e ia trabalhar, com meus 10 anos. Trabalhava, trabalhava. Eu ia para a escola
e depois eu ficava o dia inteiro trabalhando. Às vezes, à noite eu saía com alguns
colegas. Lá era muito perigoso. Meu pai, na época, me pagava R$5,00 reais por
semana. Teve um dia que eu cheguei da aula, tinha uma viatura parada na porta, o
meu pai e o meu padrasto tinham pegado na briga. Aí foi o fim da picada e eu fui
morar com o meu pai. Foi uma época complicada, porque o meu pai tinha que sair
de madrugada, me deixava no sacolão, eu ficava dormindo debaixo das bancas, no
meio de saco de batata. Meu primo chegava pouco tempo depois. Depois não foi
dando certo o comércio, foi desandando, foi desandando, e ele vendeu. Eu voltei a
morar com a minha mãe. Trabalhei como jardineiro. O moço tinha uma loja de
jardinagem e montava jardins na região do Castelo, Ouro Preto ali, então cada dia eu
ia numa casa montar os jardins, o Pingo de Ouro, a Heras, aquela que vai, no muro,
aquela trepadeira, deixar ela podada. A grama, você tem que preparar o terreno dela
todo, a gente foi em casa de jogador, pessoas graduadas, nessa época eu tinha uns 14
anos, e não foi um tempo longo não. Acho que foi uns seis meses, mais ou menos.
Mas é um serviço que você pega rápido, entendeu? É um serviço que você pega
rápido. As pedras que você coloca de decoração, aquelas pedras brancas, as plantas,
uma que combina com a outra, a que pode ficar no sol e a que não pode. Trabalhei
em mercearia também. A minha irmã casou, o marido dela construiu uma
merceariazinha. Fui ajudante de padeiro também no Confisco, eu ajudava a fazer o
pão, porque ali a gente colocava a farinha, o reforçador e o fermento. Quando era
muito calor você colocava pouco fermento, porque o pão incha muito rápido. Aí está
a maquininha de pão, esses pãezinhos, a massa, ela tem que ter 2 quilos e meio a 2,8
quilos. Ela corta os tabletes mais ou menos assim, de uns 20 centímetros, a máquina
enrola, você vai colocando na forma e vai cortando com gilete para dar aquele
cortezinho do pão francês.
63
Para que o leitor possa ter uma ideia do conteúdo dos textos dirigidos pela PIBED aos líderes de células, em
anexo consta um texto referente à semana de 15 a 21 de novembro de 2015, intitulado por Como está a sua
vida? Você tem passado por provações e crises? Vamos aqui chamar as “crises” de “Provações”,
disponibilizado no site da respectiva igreja < http://pibed.com.br/site/wp-content/uploads/2015/06/15-a-21-de-
Novembro.doc.>. Consulta em 17 de Nov.2015.
196
Teve uma certa época que estava acontecendo isso, o crack e o tíner 64. Teve uma
época que o tíner estava mais que o crack. Nossa! Tíner era demais. Eles
misturavam tíner com chocolate, tíner com morango. Na porta de escola tíner era...
Nossa! O tíner estava muito violento. Cola e tíner, nossa. Muito tíner. Tíner, tíner,
tíner. Eu estava mais ou menos nessa época de escola mesmo. E, assim, nessa época
minha mesmo de 14, 15 anos aí que o tíner estava demais. Maconha aqui é quase
que normal. Pessoas que você acha que não usa, usa. Tanto a maconha quanto a
cocaína. Tem. Pessoas de todas as classes e tem o consumo local, que é muito
grande aqui. Principalmente quem fuma cigarro, não vai lá todo dia comprar o seu
cigarrinho? Quem bebe a sua cerveja, a sua pinga, não vai lá e comprar? Então é a
mesma coisa de estar comprando um cigarro, um maço de cigarros. Até que o
usuário, hoje, ele diminuiu mais a visão como monstro, não é uma imagem, tipo
assim, tão pesada. O cara é? É. Beleza, mas para a gente não influencia nada. Por
outro lado, às vezes até é um beneficio de certa parte, de um ponto de vista, se você
tiver alguém que é um conhecido seu que é o dono da boca, o traficante ali, então
você está tranquilo, você sabe que não vai ter problema. Porque os usuários que
vierem ou quem trabalha para eles e que vier caçar problema, ele impõe “aqui vocês
não mexem com moradores”. Então eles impõem, tem que impor isso aí, tanto que
esses tem muito tempo que eles estão à frente aí e até hoje eles estão de pé. Tinha
um amigo meu, hoje ele não mora aqui, mas ele fazia parte, vendia também.
Chegava a casa dele e ficavam expostos os tabletes de drogas, armas. Ele tinha
consideração por mim. Ele pegava peças de bicicleta a troco de droga e me dava,
para eu montar a minha bicicleta. Teve certo momento que um dia eu fui lá, os
meninos que trabalha para ele me ofereceu. Ele xingou o menino, queria bater no
menino: “Não faz isso com ele mais não. Ele não é disso”. Então, quer dizer, ele
vendia, mas não queria que o cara vendesse para mim não, entendeu? Então, tem
uma certa consideração, ele tem a consciência, ele sabe que isso faz mal. Ele,
cuidando da vida dele... Por exemplo, aconteceu um estupro, os caras vão lá e
matam. Roubo de carro ou moto aqui dentro é melhor você ir lá e falar com eles do
que falar com a própria polícia. Teve uma menina, eles roubaram a moto dela no
Estrela Dalva, os meninos correram atrás e acharam ela desmontada lá no Cabral,
sem as rodas. Ou seja, parece que foi o pessoal do Jardim do Lago. Tem muito
colega meu: “Ah, vou lá na sua casa lá só que o seu bairro é perigoso para caramba”.
“Pode ir lá. Não tem problema nenhum. Você pode deixar o seu carro na rua que
ninguém vai mexer”. Ninguém mexe, ninguém vai roubar o seu carro.
Maicon e a vida social dividida entre duas ordens: poder da polícia e poder do tráfico
Teve uma vez que nós estávamos no bar, jogando videogame, naqueles fliperamas.
Hoje não existem mais aqueles fliperamas. A polícia chegou, os policiais chegaram
sem nome de identificação nenhum, não tinha aquele nome, e começou a botar todo
mundo na parede. Teve um amigo meu que estava levantando ainda, ele já gritou
com ele “encosta na parede” e bateu nele. Ele bateu a cabeça na parede, subiu um
galo na hora. E xingando, batendo, e falando: “Nós vamos mostrar quem é que
manda, se é a polícia ou os vagabundos”. E dando chutes, batendo. Perguntou onde
que eu morava, eu apontei para a minha casa, ele me deu um tapa tão forte que eu
caí para o chão. Ele falou: “Tu vai embora para casa, então. Não quero ver você
mais aqui não”. Isso foi várias vezes. Então a polícia, aqui ela não tem respeito pelos
64
Tíner, ou thinner, é um tipo de solvente, mais concentrado que o querosene, indicado para remoção de tintas a
óleo quando acumulada em pincéis e/ou em outros instrumentos utilizados para pintura nos quais a tinta pode
acumular-se. Ele é também utilizado para diluição de produtos a base de nitrocelulose como lacas e vernizes
(Fonte: informações retiradas, em 24 de novembro de 2015, de sites aleatórios de empresas fabricantes de
Tíner que informavam sobre a utilidade do produto).
197
moradores não por causa dessa forma de agir. Ela só faz isso com quem não tem
nada a ver, e alguns com muita violência, muita violência. Com outros, já um pouco,
tipo assim, até passivo demais. Então acaba que vê que tem algo um pouco anormal,
levava o cara e soltava na esquina de cima. Mas isso aí eram os policiais corruptos
que tinham. Você não se sente tranquilo com a polícia te abordando aqui no bairro.
Aqui na comunidade a polícia não tem respeito. E acaba que quem não tem nada a
ver assume o pato só para ver, tipo assim, tá agindo, mas tá agindo com quem não
tem nada a ver. Entendeu como é que é? Isso é uma forma de maquiar o sistema.
Porque hoje a coisa ficou muito complicada. Entrou um sistema diferente, não era só
a polícia local. Veio batalhões de fora, vieram batalhões especializados. Então, hoje,
se ocorrer um fato desse de novo, eles já tem todos os... eles vão de cara naquelas
pessoas da primeira vez, do toque de recolher, que saiu prendendo um monte de
gente aí. Passaram aí fazendo a limpa. Então, assim, eles têm todos os dados. E hoje
preferem ficar um pouco mais omissas, e mais atuantes, a criminalidade. Não é
interferindo mais, mas era um pouco assim, um pouco mais, como é que se diz,
demonstravam mais. Tipo assim, o cara ficava na rua, esparrando, tipo assim, nessa
área aqui ninguém passa. Mais ou menos assim, ficava mais à mostra. Hoje em dia
não, é mais sossegado. Tipo assim está lá, mas fica mais é sossegado. Tipo assim,
pode passar, desde que não atrapalhe. Igual, já aconteceu um fato bacana aí. Tinham
algumas pessoas roubando o comércio, furtos, pequenos furtos, aí o pessoal que
estão no comando, essas pessoas falaram assim: “Não, aqui não rouba. Aqui não é
para roubar”. Deram uma lição neles “não pode roubar”. As casas também não
podem roubar, senão acontece a lição. Já aconteceu o fato de um rapaz estar
roubando casa e eles deram um tiro na mão do rapaz. O rapaz pegou e continuou
roubando. Dias depois eles mataram o rapaz. Teve outra vez que tinha um pessoal da
prefeitura canalizando o córrego na rua de baixo, e nessa canalização do córrego uns
rapazes foram lá e roubaram celular, carteira. Aí o indivíduo passou e falou: “Não
faz isso não. O cara é trabalhador, os caras ganham pouco. Devolve os negócios para
eles”. E essas mesmas pessoas falando que não iam devolver, porque se eles tinham
disposição e que era para o cara correr atrás. Quando deu à noite o cara matou esses
meninos que iam roubar esse pessoal. Então, desacreditou e achou que tinha a
situação sob controle, mas eles não aceitam esse tipo de atitude aqui no bairro.
A rua ensina como você deve se portar. Porque a rua tem todos os tipos de pessoas,
então você tem que saber conviver com isso. Por isso que eu te falei, a gente não
tem problema em estar saindo na rua e ver essas pessoas, essas pessoas ver a gente,
porque a gente tem que aprender a viver com isso. Porque se a gente não aprender a
viver com isso você está pondo a sua vida num certo risco. Ou você aprende a viver
com ela, com a rua, ou você se submete as situações assim, complicadas. Você tem
que mudar do bairro, você tem que ser expulso. Tem uma mulher lá que foi expulsa
da casa dela por falar coisas que não devia. Teve outra que foi morta porque falou
coisa que não devia. Na realidade, a primeira aula básica da rua é dos três
macaquinhos: cego, surdo e mudo. Não vejo, não ouço e não falo. As três leis
básicas são essas. Esse aí é o princípio. É igual a gente fala, eles estão aí e estão com
a gente na hora que precisa. Não é exposto assim. Está todo mundo, cada um no seu
canto, cada um no seu local, mas aconteceu algum problema, eles pegam e fazem
uma pressão. E até quem não conhece como que é o sistema aqui, o camarada, ele
não mata sem antes passar por tipo um conselho, senão acaba que fica um pouco
complicado para ele também. Até para matar alguém ele tem que ir lá e falar.
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Eu gostava da escola assim, não para estudar diretamente, gostava de ir por causa
dos amigos, das meninas, das brincadeiras. Mas diretamente para estudar, não. Mas
em todas as matérias eu não fui ótimo nem péssimo, era regular, era bom. Um
pouquinho de cada coisa eu sempre me esforcei. Não era o mais burro, mas também
não era o inteligente da sala. Eu fazia o meu dever. A minha parte eu conseguia
cumprir. Por mais que eu não estudava, as minhas provas eram boas, eu prestava
atenção, porque eu aprendo mais ouvindo do que lendo.
Com uns 16, 17 anos, teve uma época que eu não queria saber de estudar. Eu ia para
a escola, matava aula, quando eu tinha 12 anos, 13 anos eu ia normal, mas com os
meus 16, 17 anos já comecei a andar com pessoas diferentes, os meninos chegavam,
a gente ia para a praça e a gente matava aula, ia para a praça comer cachorro-quente
ou saía para pichar também. Já pichei. Hoje não existe mais pichação na
comunidade, mas anos atrás pichador era mato [comum]. Quanto mais pichava,
quanto mais alto for, mais perigoso o lugar em risco de queda que para o cara era o
máximo, eu ia mais por pilha de amigos mesmo.
A violência aproximadamente, de uns vinte anos atrás, sempre teve, mas não era tão
generalizada. Não eram todos os lugares. Hoje, cada lugar que você passa sempre
tem. E antigamente não, mas os locais mais perigosos sempre foi a Sapolândia, o
Morro do Cabrito e a Vila Francisco Mariana. Eram os três pontos assim, chaves.
Mas só que antigamente as brigas eram gigantes. Eles se encontravam em dez, vinte
pessoas e caiam na porrada com paulada, correntes, soco-inglês. Na época de escola
já aconteceu brigas assim, dos meninos de uma sala contra a da outra sala, da 4ª
série contra a 5ª série. Isso sempre acontecia, na hora da saída sempre tinha, então,
um sempre “comprava o boi do outro” [brigava por motivo de terceiros], nunca era
uma briga sozinho. Tipo assim, aquele grupinho ali a gente não mexe, aquele
grupinho é o grupo da pesada, como toda escola tem. Sempre tem aqueles que todo
mundo fica olhando e “nossa!”, é o destaque. Também porque as meninas gostam, e
os professores também tinham até um certo respeito para conversar. O professor
sempre temia um pouco. Hoje está um pouco melhor a escola, em termos disso.
Antigamente os meninos eram mais ousados com os professores, mas parece que
dentro da escola já deu uma diminuída: começaram a mudar a ideia de escola, que
estudar é preciso, ter uma formação melhor é necessário para ser alguém na vida.
Então os meninos, hoje, que estão estudando, estão mais focados em estudar mesmo.
Nos meus 15, 16 anos eu fiquei um tempo para conhecer um pouco do mundo; -
curiosidade de adolescente. [...] Então nessa época eu saí do Maria de Sales e fui
para o Alice Nassif, onde que eu comecei a andar com outros tipos de pessoas
totalmente diferentes, o Nassif fica de frente ao zoológico, no segundo portão. Então
lá a gente tinha a primeira aula, depois era o recreio, depois tinha duas aulas. Eu só
ficava na primeira aula. Do recreio a gente não voltava para a sala. E como era um
pouco longe, a gente invadia um ônibus, abria a porta à força, mais ou menos umas
vinte pessoas, trinta. Era muita gente, e vinha pichando e fazendo muita bagunça. E,
assim, para vim e ir também, então todo mundo juntava. O pessoal que estudava lá,
o pessoal reclamava: “O pessoal do Maria veio para cá e está acabando com a
escola”. (risos). A Alice Nassif. Então o pessoal saiu daqui para lá e acabou. Lá eles
ficaram revoltados. Roubo de celular, roubo de carro de professor. Um amigo meu
levava alicate, nós ‘cortava’ o arame do muro, pulava o muro, caía em cima do
trailer, do trailer pulava para o asfalto. E uma coisa assim, que hoje a gente reflete.
Qual que era o foco? Você ficar uma aula e ir embora para casa? Era melhor nem
entrar. Mas a questão era ser os ‘maioral’. Sempre no recreio tinha briga, eu nunca
fui de caçar briga não, mas eu andava mais com os meninos que caçavam briga. Eu
preferia ser amigo deles. Se acontecesse algum problema, os meninos estavam lá,
iam armados para a escola. Tinha, tinha. As meninas... Sempre passavam como a
gente fala o ferro para as meninas. As meninas seguravam o..., vamos supor, o ferro
chegava, e isso mobilizava, assim, isso dava um alvoroço. E o pessoal, tipo assim
era mais ou menos desse gênero aí. Muitos dessa época aí foram se graduando. Todo
199
mundo se graduou naquilo que investiu, ou seja, na criminalidade ou num curso que
ele estava fazendo. Ou seja, assim naquilo que eles se propuseram a fazer. Então
muitos que estavam já em prática, continuaram. Muitos faleceram. O Tiago, os pais
dele faleceram e ele morava sozinho. Ele tentou ir na igreja com nós, foi um tempo.
Às vezes não tinha comida na casa dele, ele vinha aqui. Teve um dia que ele
apanhou muito na rua, passou com a boca sangrando, me pediu um copo de água, eu
dei ele um copo de água. Aí ele saiu e falou que ia resolver um problema. Depois
saiu da igreja e continuou nessa vida. Teve um dia que a polícia invadiu a casa dele,
ele dormiu na garagem da minha casa. No outro dia de manhã que ele foi me contar
que dormiu lá. Até perguntei por que ele não tinha me chamado que eu o tinha
deixado entrar, ele falou que não quis me incomodar por causa da minha mãe. Mas
era tranquilo lá. Eu falei: “Não tem problema não”. E a rixa que ele teve, ele acabou
falecendo, na época ele tinha uns 20 anos, era roubo de carro, tráfico, assassinatos,
ele sempre se envolveu com isso aí. Teve outro amigo meu também que ele teve
uma rixa também, tomou vários tiros, mas não morreu. Depois que ele levou esses
tiros, ele mudou do bairro, nunca mais eu vi ele. Deve ter mais ou menos uns dez
anos que eu não vejo ele, ou mais. Mas eu sei que ele está vivo. E, assim, outros
estão até hoje no mesmo caminho, vários foram presos e alguns deles são os que
estão no..., no geral estudaram comigo. Eu vejo eles, tenho uma consideração
enorme e eles ficam felizes, a gente toca em assunto de escola, de outras épocas
assim e eles ficam felizes: “Nó, eu fico feliz por você não abaixar a cabeça para a
gente, fingir que não vê a gente. Porque tem muitos que não dá nem ideia. Eu sei
que essa vida que a gente está é complicada, cara, mas a amizade”. Não que a gente
é amigão, amigão, mas também não desprezo, só não faço as mesmas coisas.
Cumprimento e converso, tenho uma consideração porque foi época de escola que a
gente teve, foi época de infância e foi única. Então eu acho que como não apagou da
minha memória, da deles também não.
Quando a gente chega numa empresa grande e é novato, a gente é muito visado,
ainda mais quando você está passando por uma certa necessidade anterior e ainda
recente, e até estabilizar demora um pouco, você quer mostrar o máximo de si para
poder dar uma vida digna à sua família. Você quer manter seu emprego, você busca
aumentar um pouco a sua renda familiar, então a gente tem que dedicar ao máximo o
nosso emprego. Alguns companheiros não entendem esse ponto de vista, você
trabalhar, você cumprir seu horário, você não faltar, cumprir as ordens direitinho que
o chefe passa, a gente é visado de puxa-saco, baba-ovo. Vários nomes a gente leva.
Sempre trabalhando. Às vezes teve um deslize assim, mas não era o foco principal.
O foco principal é mostrar que a gente é capaz. Eu cheguei lá como auxiliar de
armazém, na época, oito anos atrás o salário mínimo estava em torno de R$ 500,00
dias dava uma comissão de R$180,00, R$170,00, dependia do que você tivesse de
produtividade. Então dava uma média de quase R$ 400,00 reais a mais, tirava mais
um salário de produção.
Você tem que trabalhar. Aí que está a chave do negócio, mas por a gente trabalhar
para buscar uma comissão melhor, eles ficam pegando no pé dos que não tem
compromisso ou que não estão passando certa dificuldade ou que estão acomodados
com aquele cargo. Eu, diferentemente, busquei tirar minha carteira, porque para
operar a máquina precisava de carteira, corri atrás, tirei minha carteira B, conversei
com meu superior e pedi uma oportunidade. Fui para operador de transpalete, fiquei
mais ou menos um ano e não estava satisfeito ainda, almejei mais, um cargo maior,
que era operador de empilhadeira. Eu estava trabalhando e ficava olhando os
operadores trabalhando: “será que um dia eu vou estar podendo operar uma máquina
dessa?”. Ela sobe doze metros de altura, a armazenagem dela. E conversei com meu
encarregado de novo, me esforcei, corri atrás e consegui a oportunidade de novo. As
criticas continuavam: “Ah, que você é peixe, você é puxa-saco. Tem fulano que tem
dez anos aí e não conseguiu a vaga. Você, com dois anos, conseguiu a vaga”. Mas
vai do esforço e da dedicação de cada um, se o cara tem dez anos lá, porque que hoje
ele está no cargo? Porque é acomodado. E assim foi, passei para operador de
plataforma também, trabalho aéreo, plataforma de elevação de trabalho aéreo. Você
trabalha em cima dela. Ela sobe até 14 metros de altura. A operação dela é superior,
não é no solo. A empilhadeira sobe para fazer todo tipo de trabalho: trabalho
elétrico; levantar eletricista ou encanador. Às vezes tomba alguma mercadoria, a
gente vai com a plataforma. Agora o encarregado já me procurou. Nem precisei
pedir essa vaga também, ele já falou que eu estou na lista dos que vão operar a
empilhadeira de plataforma articulada. Ela é o dobro de metros, ela é 25 metros de
altura. Então meu nome já está na lista para estar fazendo o curso dela. Então já está
vindo uma graduação, tipo assim, um autorreconhecimento, já viram o meu trabalho
e sabem da minha seriedade com o meu trabalho, da responsabilidade que eu tenho e
201
eles já colocam na lista. Igual à plataforma, eles que me chamaram também, agora a
articulada tem uma dela e uma sanfonada. Então você vê uma empresa dessa
dimensão, três mil e poucos funcionários. No galpão tem muito trabalho. Mas essa
articulada vai ser para o galpão novo que fizeram na parte lateral, onde lá vai ser
robotizado. É empresa alemã, a Schaeffler, e lá vai ser robotizado. Não sei se vai
gerar desemprego, porque a separação hoje é manual de mercadoria, produtos, vai
fazer isso muito rápido, numa velocidade incrível. No Youtube [Youtube.com] tem
alguns vídeos similares. Depois eu vou tá te mostrando como é que funciona. Lá
também tem mexicanos trabalhando, que são terceirizados da Schaeffler. Acho que
eles terceirizaram devido os mexicanos receberem em peso. Então um real hoje vale
seis pesos.
Eu estou trabalhado com eles na parte operacional. Como eu opero máquinas, eles
precisam de uma assistência. E também foi mais uma surpresa que eu tive, aonde eu
fui questionado por companheiros também, quarenta a cinquenta operadores de
empilhadeira porque que eu fui chamado para acompanhar eles? O trabalho do dia a
dia, para descer peças, para subir peças, na montagem de todo o material. Eu fui
chamado para estar trabalhando com eles. Às vezes tinha que ter algum trabalho
manual, mas às vezes mudava o ajudante, não era continuo, mas o trabalho
operacional, tipo assim, que trocou meu horário, que me colocou diretamente com
eles somente fui eu. Foi uma experiência bacana por estar conhecendo um pouco
mais da parte estrangeira, do qual eu não teria condições de estar indo para outro
país conhecer. Tive a oportunidade de conhecer aqui e fazer amizades. Porque entre
eles, eles não têm um relacionamento bom, diálogo entre eles. Eles chegam de
manhã um com o outro e não dá bom dia, não dá boa tardem nada um com o outro, e
com os brasileiros eles já dão bom dia porque nós somos mais aconchegantes,
relacionamos melhor. Eles não têm afinidade, não tem esse aconchego de chegar e
abraçar, não tem essa liberdade.
Olha, dos sonhos que eu tenho /é terminar a minha casa, pagar o meu carro, eu estou
construindo essa parte, terminar minhas dívidas e poder, tipo assim, minha esposa
hoje trabalha, o meu desejo é que ela ficasse em casa tomando conta da casa e do
meu filho, mas a necessidade não permite isso, aí sacrifica eu, sacrifica meu filho,
sacrifica ela. Creio que depois da minha casa concluída, o meu carro concluído, eu
vou poder desfrutar um pouco mais de mim. Porque hoje eu não vivo para mim. A
realidade é essa, eu não vivo para mim, eu vivo para a minha casa, para o meu filho,
para a minha esposa, para a célula. Tipo assim, “Maicon, hoje você vai fazer o que
você quer”. De falar assim: “Essa semana é sua. Se você quer pescar, você vai, se
você quer viajar, você vai. Vai fazer isso, aquilo”, eu não tenho condições de fazer
isso. Não tenho dinheiro, não tenho tempo, não tenho condições, então não posso me
comprometer a fazer, igual violão, morro de vontade de me aperfeiçoar com o
violão, de fazer rum curso de inglês, teologia, mas não tenho tempo, não tenho
tempo, não tenho verba, porque o orçamento já está todo comprometido. Eu saio
04h40 da manhã, eu chego lá as 05h00 horas, tomo café, 05h30 tem que bater o
ponto. Largo às 14h15, chego em casa as 14h40. Pego cedo, mas largo cedo. Às
vezes eu durmo, às vezes não. Muito difícil eu dormir.
Eu acho que hoje eu estou com praticamente 28 anos e vou fazer dez anos de casado.
Meu filho vai fazer oito. Então acho que para eu conseguir estar com o casamento
até hoje, acho que a gente firme até hoje tem que estar com a cabeça muito boa, se
estruturar no trabalho. Hoje dou conselhos para pessoas às vezes com pouca
diferença de idade minha e eles não entendem o que a vida já me fez passar, já me
fez sofrer. Na época que eu trabalhava na empacotadora de feijão eu ia de bicicleta
para economizar o vale-transporte. Eu trabalhava como servente lá no Camargos, às
202
vezes a comida azedava. Então passei já algumas dificuldades em casa. E o que mais
às vezes me machucava assim é de não ter condições de dar o que meu filho pedia,
ou minha esposa. Na época que eu não tinha carro, o meu filho gostava, aí tinha que
ficar pedindo favor os outros. Às vezes pegava carona com os outros, festa, os meus
parentes ofereciam carona. Já aconteceu de ir para festa e falarem que só tinha lugar
para a minha esposa. Se ela quisesse ir, tinha uma vaga e eu ficaria de fora. Isso aí
você se sente impotente, incapacitado de fazer alguma coisa. Mas eu guardei muitas
coisas para mim. Algumas coisas eu não compartilho com a minha esposa.
A minha esposa pega em média de um salário e meio por mês, eu recebo mais ou
menos, hoje, em torno de três salários e pouquinho, então, tem os descontos, ela faz
unha também, ajuda um pouco na mistura da semana. Às vezes um sacolão, uma
carne. Ela fez unha ali, pé e mão 20 reais, 20 reais ali. Já faz um sacolão. Ela larga
trabalho duas horas, tem o resto da tarde livre, quando pinta unha ela pega e faz.
Quando tem oportunidade pega umas latinhas, porque às vezes também não é em
todo lugar, a gente se sente constrangido também. Mas quem traz mais é minha
esposa, porque no trabalho dela, ela trabalha no caixa, as pessoas jogam no lixo do
caixa [a latinha], jogam lá e ela pega. Tipo assim, nem vê para onde que está
levando. Todo dia ela traz uma sacolinha. Então ajuda bastante na renda. Eu sempre
faço alguns trabalhos. Sempre que pinta alguma coisa eu procuro fazer, vender
alguma coisa. Eu já peguei produtos da Natura para vender junto com a minha
esposa, já peguei camisas com o meu irmão para revender, só que dá um pouco de
trabalho pra você receber, porque ninguém quer pagar à vista. Você tem que ter um
dinheiro para o giro, um dinheiro sobrando. A Natura é 21 dias na boleta e a pessoa
pede 30, 60 dias, dividir de duas vezes, e às vezes nem todo mundo paga. É uma
coisa que dá dinheiro.
Eu tentei trabalhar com a Polishop, mas ainda não tive a coragem. Só que é
complicado eu chegar para você e falar assim: “Olha, tenho um produto que eu
tenho para te vender aqui”, ele está em corpo, presente, você está vendo ele. Só que,
agora, uma está lá no site, você está vendo é uma foto. Eu te vendo, e você fala
comigo que estragou, e aí? Como que eu vou ficar com você? Tipo assim, eu teria
que ter uma disponibilidade muito boa de tempo, só que como é um site virtual, com
o notebook no meu trabalho, ou com o celular, eu vou lá e mostro “isso e isso”.
Onde eu for. Se eu for numa festa eu posso estar vendendo, se eu for à igreja eu
posso estar vendendo, na faculdade, na escola. Onde for eu posso estar vendendo.
Não precisa de você ir lá e bater cartão. Mas igual o lugar que a gente mora, eu visei
foi o local onde a gente mora, o pessoal aqui não conhece muito disso, internet.
Seria bacana, por exemplo, para quem mora em uma região mais nobre, aquelas
coisas de grill que tem na Polishop, aquelas escadas todas chiques, aqueles negócios
de polir. A fritadeira que não usa óleo. Uma das mais requisitadas é a fritadeira que
não usa óleo. E frita ótimo, perfeito sem óleo. O rapaz tem uma só para fazer
demonstração. Ele frita batata, frango, o que for. Então, assim, onde eu moro aqui
como é que eu vou vender um produto deste? Aqui, não tem clientela para isso. O
problema é o seguinte, a Polishop vende só no cartão de crédito. Tem muita gente
que vai pedir “passa o seu cartão que eu te pago”. Então eu não vou ficar passando o
meu cartão. Tem muita gente com o nome sujo [endividada/inadimplente], e falam:
“Eu até compro, mas eu não tenho cartão não”. E aí? “Você aceita cheque?”. Não
aceita cheque, é só cartão. Ele que tem que entrar no site, ele que tem que fazer todo
o trabalho. Tem muitas pessoas aqui sim, mas o que acontece, a realidade é que
muitas pessoas vivem de aparência.
Tem pessoas que tem carro e que vendem o almoço para comprar a janta e pagam a
prestação do carro todo mês. Fora é uma coisa, quando está lá na igreja é uma coisa,
mas você vai conhecer a vida pessoal e é outra. Na casa da pessoa, você chega lá, a
mesa é uma porta em cima de um caixote, a mesa da cozinha é um pedaço de vidro
quebrado. Então, se não tem condições de arrumar a casa primeiro, não tem porque
comprar um carro... Outros vão lá e compram um Honda Civic, mas não têm
dinheiro para fazer seguro para o carro. Como você tem um Honda Civic e não faz
seguro? O meu carro não é um carrão, é um carro médio e eu tenho seguro pelo Itaú.
203
pessoas trabalham desde a infância até a velhice, pois os rendimentos adquiridos por salário
ou aposentaria eram/são insuficientes, havendo sempre a necessidade de buscar rendimentos
extras, ou seja, mais trabalho: continuava no sacrifício.
Essa economia do trabalho exaure os corpos, tornando-os rapidamente fragilizados,
esgotados. Na contramão, alimenta-se a necessidade das múltiplas jornadas de trabalho tendo
em vista os custos da vida na cidade, ou na metrópole, e a demanda de consumo encarnada no
cotidiano ou no extraordinário. O acesso aos bens como automóvel e outros domésticos
comprometia seu parco orçamento, exercendo uma pressão sobre sua vida, conduzindo-a
ainda mais para dentro da periferia, pois, com isso, crescia sua dependência em relação ao
trabalho e em relação à manutenção dos laços comunitários que representavam também um
meio de aquisição de bem estar social. Para superar esses desafios, bastava manter a vida
como estava. Como mencionou “o tempo cura tudo”, ou seja, nessa perspectiva ele reconhecia
a falência da sua capacidade de agência indivíduo frente à estrutura, seu discurso revela o
sentimento de impotência do jovem da periferia, do pai de família em relação ao seu poder de
transformar a sociedade. Ao mesmo tempo em que Maicon experimentava um maior acesso
ao consumo percebido por ele como um sinal de vida melhor, ele experimentava o problema
do agravamento da violência na sociedade, e assim, o sinal de que a vida também mudara
para pior.
Maicon aderiu com naturalidade à “lei dos três macaquinhos”, a lei do silêncio, seus
percursos de vida foram orientados também pelas relações de medo e de insegurança mútua
decorrente do descontrole da violência por parte do Estado e uso privado da força por grupos
criminosos instalados no bairro. Desde a infância ele buscou em grupos delinquentes
proteger-se contra as brigas na escola e grupos delinquentes do bairro. E quando adulto, disse-
me sentir-se protegido por conhecer muitas pessoas que estavam envolvidas com a
criminalidade, ele via essas relações como positivas “[...] se você tiver alguém que é um
conhecido seu que é o dono da boca, o traficante ali, então você está tranquilo, você sabe que
não vai ter problema”. A fala de Maicon também coloca em evidência a seguinte questão: se é
vantajoso conhecer um dono de boca, é desvantajoso não conhecer, logo, um motivo a mais
para justificar a permanência no bairro, pois, mudar para outras periferias não seria uma boa
opção. Teria a desvantagem de não conhecer o “dono da boca”. O mesmo pode se dizer em
relação à comunidade religiosa, os vínculos, a rede social mantida por Maicon, ele
dificilmente reconstruiria novamente noutro lugar como o fez por toda a vida no Estrela
D’alva.
206
Tendo a periferia como princípio, meio e fim de suas ações, Maicon encontrava no
próprio bairro, algum tipo de projeção social, pela conquista de capitais simbólicos
valorizados no respectivo contexto. Os laços que havia construído durante os anos de
convivência no bairro, ainda que não eliminassem o medo e a insegurança frente ao avanço do
narcotráfico e dos embates deste com policiais, ainda o protegia no sentido de não ser um
estranho. Era um “trabalhador”, um “pai de família”, “homem da igreja”, construções que
além de adjetiva-lo dentro do mundo social, também enunciavam sua trajetória de vida no
presente e a forma como seria lido pelos vizinhos. Os laços confirmavam seu pertencimento
ao mesmo tempo em que lhe conferiam alguma estabilidade frente às tensões e disputas.
Na igreja era líder de célula, um posto que conferiu a ele um status semelhante a de
um conselheiro, quase um sub-pastor que realiza trabalho de escuta e aconselhamentos como
fazem padres e pastores junto à pregação religiosa. Em função da relevância da esfera
religiosa no Estrela D’alva, a detenção de um posto na instituição era uma forma de projeção
da imagem pessoal do indivíduo frente aos seus pares. Embora ainda em fase de construção e
sem acabamento externo, Maicon investia todo o seu relativo parco recurso financeiro na
construção de sua casa e equipamentos domésticos. Nas partes já concluídas havia
investimento em acabamento como piso em porcelanato, banheiro com box de vidro, teto de
gesso, telhado colonial, além de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos como geladeira,
televisão, videogame, computador, além de sofá, cama, armário de cozinha e demais peças do
mobiliário. Seu esforço era voltado não só para o bem estar de sua família, mas também para
a vida pública da periferia. A etnografia mostrou que, em um ambiente de relativa pobreza,
generalizada, como o Estrela D’alva (território do CRAS), há um enorme esforço das pessoas
em projetar uma imagem de prosperidade. Isso era visível no tráfico de drogas onde as
correntes, motos, tênis e equipamentos celulares eram exibidos ou na porta da igreja no culto
de sábado à noite, ou no de domingo, onde a fileira de carros lustrados estacionados e as
pessoas com vestidos longos, ternos ou roupas esportivas transitavam com graça e perfume.
Durante a entrevista Maicon contou-me sobre o efeito das “aparências” na periferia e
disse-me com certo orgulho o lhe dizem outros moradores do bairro, “Ah, que você é
magnata, você é sócio da empresa”, “Você está construindo outro andar na sua casa, você está
com carro”. Por outro lado, Maicon completou sua fala dizendo “Ninguém vê que você
comeu o pão que o diabo amassou.”, e assim ele próprio reconhecia que essas “aparências”
eram enganosas, não condiziam com a realidade vivida pelas pessoas. Em certa perspectiva,
embora todas as conquistas, de ser visto como “magnata”, Maicon continuava a comer o pão
que o diabo amassou, só que, de modo diferente, acompanhado de coca-cola e catchup. E, se
207
por um lado Maicon sentia seu esforço recompensado pelo acesso ao consumo e a mobilidade
adquirida dentro empresa, seu salário não subiria mais, pois, já não havia empilhadeiras acima
da que ele operava. Assim, Maicon via com pessimismo as possibilidades de aumentar sua
renda e de conseguir ter tempo e dinheiro para realizar projetos individuais, de ter tempo para
si.
Mariano. Por outro lado, para Maicon, devido ao localismo de suas relações sociais, realizou
poucos trânsitos sociais metropolitanos (fora da periferia), o Estrela D’alva representava a
“opção” natural onde passaria sua vida, sair do bairro custaria muito caro, pois sente-se
dependente dos laços estabelecidos na periferia, mantinha uma vida religiosa ativa e
considerava vantajoso conhecer as pessoas, inclusive as envolvidas no narcotráfico. De modo
distinto, Suzano sentia-se com uma obrigação moral em relação ao futuro da população da
periferia que, como ele, era predominantemente negra, e assim, continuava morando no bairro
onde exercia ações de cunho político-social. Enfim, dois caminhos distintos, que partem de
orientações diferentes e que levavam ao mesmo lugar: o Estrela D’alva.
209
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
65
Não é uma condição exclusiva das populações jovens, e sim o horizonte de expectativas laborais comuns a
estes sujeitos.
211
social da periferia, na qual o sacrifício é tido como um meio para se atingir a salvação, desde
que seja uma ação voluntária.
Na trajetória de Maicon, ele se sacrificou para dar conforto à sua família, ele se dispôs
a bancar sua vida familiar a partir de um padrão que de consumo fundamentado pela tríade
casa própria, automóvel, uma grande TV e geladeira. Tudo isso supostamente sustentado
pelo emprego “estável”, com carteira assinada. A casa mobiliada e equipada com
eletrodomésticos, as roupas réplicas de grifes mundialmente famosas, tudo isso sustentado por
uma narrativa de sacrifício legitimada pela retórica e pela prática religiosa da qual Maicon
manteve-se adepto. Ele adotou um tipo de comportamento ascético no sentido da ética
identificada no protestantismo por Weber (2009), que representa uma forma de compreensão
do mundo e da vida na qual o empenho e sucesso no mundo do trabalho refletiriam
diretamente o respeito para com Deus e a possibilidade de salvação.
A definição apresentada no dicionário etimológico on-line66 o termo sacrifício tem sua
origem no latim sacrificium, palavra composta por sacer e ficium cujo significado literal seria
"ato de fazer/manifestar o sagrado", ou, "ato de passar da esfera do profano para a esfera do
sagrado" que na língua portuguesa tem o sentido de "privação, voluntária ou forçada, de um
bem ou de um direito". De muitas formas a experiência social juvenil na periferia
metropolitana apresentou-se como um estar no mundo por meio do sacrifício, de
naturalização ou de crítica à privação voluntária ou forçada de um bem (material ou
simbólico) ou de um direito instituído formalmente ou pelos costumes. Esse foi o ponto de
inflexão de Faro, por exemplo, ao notar entre os jovens de outras classes sociais, alunos do
colégio particular católico, o direito de curtir a vida do qual eles dispunham e que, em certo
sentido, era interditado a Faro. Na sua percepção, era como se esse direito a curtir a vida
fosse socialmente proibido ao jovem da periferia que, pela necessidade, inicia cedo sua
inserção no mercado econômico metropolitano, geralmente como mão de obra para abastecer
postos de trabalho infantil ou trabalho “protegido”, como é caso do Cruz Vermelha. Além
disso, no campo da cidadania Faro tinha seus direitos violados pelo próprio Estado de Direito
como ilustrou sua narrativa no trecho que cita a ocasião na qual foi abordado violentamente
pela polícia na porta do CRAS quando saía para o almoço.
É nesse sentido que eu interpreto as tais trajetórias como trajetórias-sacrifício, per
serem percursos de vida de indivíduos que ocupam, corroborando com Feltran (2010), o
mesmo estatuto de um imigrante clandestino na própria sociedade. Os jovens da periferia
66
Consulta ao <http://www.dicionarioetimologico.com.br/sacrificio/> em 21 de Dezembro de 2015.
212
por meio da vida religiosa, ao ter contato com a vida pública do Estrela D’alva, ele teve
contato com os problemas vividos por outras famílias do bairro, inclusive a violência, e assim,
passou a adotar, por meio da religião, o trabalho voluntário como uma forma de doar-se às
pessoas do local que, como ele, negros de origem, estavam com vidas atravessadas pelas
consequências brutais da desigualdade social no Brasil como ele próprio mencionou sobre “a
violação dos direitos” enquanto uma condição permanente do jovem negro.
Enfim, na marginal os jovens elaboraram percursos de vida que envolveram o
trabalho precoce e precário intercalado ao tempo de estudo. Dentre os quatro jovens
biografados somente Suzano, o que começou a trabalhar mais tarde, com 15 anos, manteve
seu vinculo estudantil e conseguiu cursar e concluir o ensino superior. São raras as trajetórias
como as de Suzano que, apesar das dificuldades impostas pelos poucos recursos em um
núcleo familiar reduzido, conseguem alguma projeção profissional para outros campos de
ocupação, especialmente aquelas onde se exige maior e melhor qualificação e níveis
avançados de estudo. Apesar disso, com graus de comprometimento e atribuições variados,
todos os quatro foram durante algum tempo trabalhadores e estudantes simultaneamente,
condição penosa, e que geralmente interferia no desempenho e carreira escolar dos
indivíduos.
O outro aspecto estruturante das trajetórias juvenis na marginal¸ que denominei como
trajetória-orientada-para-dentro, ou simplesmente, orientação para dentro, diz respeito a
relações sociais e territoriais na região metropolitana de Belo Horizonte, visto com maior
profundidade no Estrela D’alva. As quatro trajetórias narradas indicam uma inclinação das
ações dos jovens para dentro do universo social da periferia. Embora as principais esferas de
interação juvenis estivessem mais visivelmente relacionadas à igreja, à família, ao trabalho, a
atividades culturais como hip-hop e, por algum momento de suas vidas ao crime, o espaço
público da periferia em geral, do campo do Zé Gordo até a praça do Estrela D’alva, sempre
haviam pessoas jovens na rua fazendo alguma coisa. O bairro configurava-se em um grande
mercado no qual os jovens podiam “trocar de igual”, a partir de relações horizontais, com
pares com quais se reconheciam como “nós”. Esse “nós”, uma amplificação do “eu”, traduz
um pouco a vida comunitária do lugar historicamente formado a partir de lógicas socialmente
excludentes – a periferia distante criada como efeito da ânsia de lucro e dos interesses das
políticas habitacionais e da especulação imobiliária. A arquitetura das construções
residenciais e das construções comunitárias é símbolo desse deslocamento e amplificação do
“eu” para o “nós”, no qual a casa é o resultado de uma construção de longa duração,
envolvendo amigos, vizinhos e familiares. Ao mesmo tempo, esse “nós”, representa uma
214
grupos no contexto metropolitano. Esse isolamento não corresponde tanto a uma situação de
clausura, mas fundamentalmente a uma restrição dos espaços de visibilidade e de
reconhecimento sociais disponíveis.
A orientação para dentro implica em uma discussão sobre relações sociais e território
na região metropolitana de Belo Horizonte e por isso remete a questões tratadas no capítulo
capitulo Metropolização, território e vida social. O fato da expansão metropolitana ter se
estruturado de modo a manter ou aumentar distâncias sociais entre indivíduos de classes
sociais distintas revela aspectos das dinâmicas macrossociais responsáveis pela organização
social do território metropolitano. Observou-se que essa dinâmica foi estruturada basicamente
por dois padrões de segregação que configuraram o espaço metropolitano tal como
apresentado, um caracterizado pela relação centro-periferia e outro por relações de
autossegregação decorrentes de classes médias e altas em áreas situadas nos vetores Sul e
Norte da RMBH (ANDRADE, 2001; MENDONÇA, 2002). Na RMBH a distinção social
entre os grupos esteve fortemente relacionada à segregação por local de moradia, fazendo
com estes se tornassem locais privilegiados das interações sociais, onde as pessoas
relacionavam-se fora do ambiente de trabalho, no dia a dia. Essas dinâmicas produziram
efeitos marcantes dos estilos de vida das pessoas que moram no Estrela D’alva, tendo em
vista que a ausência de infraestrutura de transporte coletivo e de massa metropolitano e o alto
custo do deslocamento proporcionam um relativo isolamento social de sua população ao
território do bairro.
Em 2010 a RMBH apresentava-se como um território socialmente fragmentado por
contrastes profundos entre a qualidade de vida urbana segundo o local de moradia como
apresentado em Nazário (2015) por meio do Índice de Bem Estar Urbano – IBEU. As
periferias apresentavam pior IBEU, uma maior proporção de famílias com rendimento
domiciliar per capta de até um salário mínimo (TONUCCI FILHO, MAGALHÃES,
OLIVEIRA, SILVA, 2015), de pessoas que realizavam deslocamentos pendulares com mais
frequência e duração média de uma hora por trecho casa trabalho/estudo (SOUZA, 2015). Nas
periferias também o comportamento político eleitoral apresentou especificidades (ROCHA,
2011), tendendo a ser mais refém das dinâmicas de troca de votos por benfeitorias urbanas e
assistência social. Além desses aspectos estruturais, a violência aparecia como um dos
principais vetores de desconforto, tendo em vista que foi justamente na região da periferia que
o volume mais significativo de homicídios se concentrou na transição entre o século XX e
XXI, atingindo com intensidade suas populações jovens (MARINHO, 2012). Os efeitos da
violência estendiam-se ainda sobre a segregação da vida metropolitana, que contribuiu para
216
fortalecer o isolamento social dos mais pobres em relação aos demais grupos residentes.
Essa fragmentação social do território, o distanciamento e a ausência espaços de
interação horizontal entre as classes reforça o isolamento social dos pobres. O isolamento foi
um aspecto marcante no Estrela D’alva desde sua gênese na década de 1980 até 2010, a vida
social foi orientada para a resolução de problemas específicos, de ordem coletiva, situados no
próprio território do bairro. Problemas desde a falta de infraestrutura à ausência de recursos
financeiros para velórios e sepultamentos, ou o fechamentodo “buracão”, a construção de
igrejas e moradias. Todas essas demandas foram depositadas nos esforços dos próprios
moradoresque dedicaram tempo e investiram seus recursos, por meio de esforços coletivos
principalmente, para dar respostas a problemas sociais que afetavam sua qualidade de vida
cotidianamente, segredando-os não apenas no que se refere ao especto estrutural, mas também
à cessão e garantia de direitos e condições básicas de sobrevivência. Esse movimento de
construir a periferia apresentou-se significativo nas trajetóras dos jovens, com outra
configuração e também mediada pela esfera religiosa.
No bairro relações são construídas e alimentadas, vínculos que conferem
inteligibilidade e reconhecimento às trajetórias dos sujeitos. Assim, Maicon edificou vínculos
e laços sociais fortes, duradouros na periferia. Sob esse último aspecto das trajetórias de Faro
e de Suzano não foram tão diferentes, mantiveram laços fortes na periferia e Miro também.
Este espaço representou o princípio, o meio e o fim para o qual suas ações convergiram,
embora não fosse exclusivamente orientada somente pelo território era partir deste que suas
vidas se estruturaram enquanto tais.
Deste modo, foi visível o impacto do local de moradia sobre a experiência urbana, do
peso do “endereço de residência” sobre as trajetórias de vida. Em sociedades, mais ou menos,
desiguais o “onde você mora” constitui uma face importante nas relações sociais. O acesso
aos bens sociais e serviços, num contexto de desigualdade como o brasileiro é mais ou menos
facilitado em função do local de moradia, não pelo espaço em si, mas pela dimensão social
que ele assume. A paisagem, o logradouro, o bairro assumem valores morais que extrapolam a
geografia física, de modo que “cada homem vale pelo lugar onde está; [...] por isso, a
possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do
território onde se está”. (SANTOS, 1987, p. 81).
Buscou-se aqui contribuir por meio da trajetória de vida para o amplo e recente debate
sobre novas configurações da desigualdade na sociedade brasileira produzido nas ciências
sociais, em relação ao paradoxo, notado nos últimos 30 anos, da expansão do Estado Liberal
de Direito e da urbanização concomitantes ao crescimento das taxas de homicídios juvenis e
217
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ANEXOS
ANEXO 1 – “Palavra pastoral/ler para todos”
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233
TIAGO 1:2-4
- Como está a sua vida? Você tem passado por provações e crises? Vamos aqui chamar as
“crises” de “Provações”.
- Muitas vezes, nesses momentos, tendemos a olhar somente para as circunstâncias: Mas é
exatamente em situações como essas, de crises, que devemos olhar para frente e não
esquecermos que em Cristo Jesus somos mais que vencedores!!
-Para vencermos as provações precisamos ter fé e perseverança, pois é a fé que nos leva à
vitória e à conquista dos nossos sonhos e de tudo o que Deus planejou para a nossa vida.
O Senhor sempre tem algo a nos ensinar quando permite que passemos por provações.
-Deus nos ama e por isso se importa conosco. Foi por amor a nós que Ele nos enviou seu
único Filho para pagar o preço por nós e assim vivermos pela graça (I João 4:9).
-Talvez você esteja em uma situação difícil de resolver, passando por um deserto e não
consiga enxergar esse amor. Mas não permita que as provações ceguem a sua fé.
- Deus permite que passemos pelas provas porque Ele nos ama e quer testar nossa fé, nossa
confiança n’Ele.
- As provações podem ser permitidas pelo Senhor para que possamos enxergar lá na frente as
maravilhas d’Ele em nossas vidas.
- Jó também passou por provações e o Senhor permitiu que satanás tocasse nos seus bens e
em sua família mas não permitiu que tirasse a vida dele (Jó 1:12). Contudo, Jó esperou no
Senhor e tudo que ele tinha perdido foi restituído em dobro! Ao final, ele passou a conhecer
verdadeiramente o amor de Deus! Se você está passando por provas, descanse e confie no
Senhor. Entregue sua vida a Jesus e experimente o amor d’Ele em sua vida!
- Já sabemos que Deus nos ama e se importa muito conosco, então por que temer? Ele nos
prometeu que estaria sempre conosco.
- Com o Senhor ao nosso lado podemos suportar as provações e sair delas vitoriosos!
- A Bíblia nos afirma que não seremos provados mais do que podemos suportar (I Cor
10:13). Então, não devemos murmurar, pois o Senhor, quando nos chamou para segui-lo, não
disse que o caminho seria fácil ou largo, mas nos prometeu que estaria conosco para sempre,
nos ajudando a caminhar.
- Se for preciso Ele carregará nosso fardo, abrirá o mar de novo em nossa frente para que
possamos passar por terra firme!
- Ele morreria de novo naquela cruz por mim e por você. Uma prova de amor maior do que
essa ninguém pode nos dar! Se você quer experimentar desse amor tão grande e
incondicional, então não perca essa oportunidade, aceite o amor que Jesus quer te dar hoje
mesmo!
- Se sua luta está muito grande, se seu fardo está muito pesado, saiba que o fardo do Senhor é
leve e essa sua luta vai se transformar na sua vitória amanhã.
- O Senhor é fiel e suas promessas se cumprirão na vida daqueles que crêem, pois Ele nunca
perdeu uma batalha! Na Bíblia temos muitas provas do amor e da fidelidade d’Ele para com o
Seu povo.
- Quando aceitamos Jesus como nosso Salvador devemos andar como Ele e não devemos
desistir jamais! Lutas nós sempre teremos, mas precisamos ter coragem e lembrarmos do que
o Senhor já fez por nós. Ele não quer que desistamos, mas sim que vençamos os desafios!
- A Bíblia também nos diz que se somos de Cristo, somos descendentes de Abraão e herdeiros
das promessas de Deus.
- Se você quer ver o agir de Deus na sua vida, a transformação da sua realidade atual, faça um
ato de fé e convide-O a fazer parte de sua vida e receba a vitória em meio às provações!
CONCLUSÃO:
As provações são inevitáveis em nossas vidas, mas se você crê, espere a vitória sem perder a
fé! Persevere porque o seu milagre vai chegar como afirma a Palavra de Deus em Hebreus 10:
35-37 ‘Não abandoneis, portanto a vossa esperança; ela tem grande galardão. Com efeito,
tendes necessidade de perseverança, para que havendo feito a vontade de Deus alcanceis a
promessa. E porque ainda dentro de pouco tempo, aquele que vem virá e não tardará. ”Deus
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nos ama e nos permite passar por provações para ao final nos dar a vitória! Se você quer andar
pelo caminho vitorioso, não tenha medo de passar pelas provas, pois o medo paralisa sua vida
e sua fé. Deixe Jesus conduzir a sua vida! Amém?! E não esqueça 21 dias de propósito para
fortalecer você!
PÃO DIÁRIO: SEGUNDA- 1 João 4 / TERÇA –Jó 1 / QUARTA –1 Coríntios 10 / QUINTA
–Romanos 8/ SEXTA –Hebreus 10 / SÁBADO – Apocalipse 2 / DOMINGO –Apocalipse 21.