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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais

Marco Antônio Couto Marinho

VIDA SOCIAL NA MARGINAL:


trajetórias juvenis na periferia metropolitana de Belo Horizonte

Belo Horizonte
2016
Marco Antônio Couto Marinho

VIDA SOCIAL NA MARGINAL:


Trajetórias juvenis na periferia metropolitana de Belo Horizonte.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientadora no Brasil: Prof. Dra. Luciana Teixeira de


Andrade.

Coorientador em Portugal: Prof. Dr. Luís Miguel da Silva


de Almeida Chaves.

Área de concentração: Cidades: Cultura, Identidades e


Modos de Vida.

Belo Horizonte
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Marinho, Marco Antônio Couto


M338v Vida social na marginal: trajetórias juvenis na periferia metropolitana de
Belo Horizonte / Marco Antônio Couto Marinho. Belo Horizonte, 2016.
235 f. : il.

Orientadora: Luciana Teixeira de Andrade


Coorientador: Luís Miguel da Silva de Almeida Chaves
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

1. Desigualdade social. 2. Belo Horizonte, Região Metropolitana de (MG). 3.


Periferias. 4. Urbanização. 5. Adolescentes e violência. I. Andrade, Luciana
Teixeira de. II. Chaves, Luís Miguel da Silva de Almeida. III. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais. IV. Título.

CDU: 301.18(815.11)
Revisão Ortográfica e Normalização Padrão PUC Minas de responsabilidade do autor.
Marco Antônio Couto Marinho

VIDA SOCIAL NA MARGINAL:


trajetórias juvenis na periferia metropolitana de Belo Horizonte.

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais.

Orientador no Brasil: Prof. Dra. Luciana Teixeira de


Andrade.

Co-Orientador em Portugal: Prof. Dr. Luís Miguel


da Silva de Almeida Chaves.

Área de concentração: Cidades: Cultura, Identidades


e Modos de Vida.

____________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Teixeira de Andrade – PUC Minas (Orientadora)

________________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Miguel da Silva de Almeida Chaves – UNL-Portugal (Co-orientador)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria José Nogueira – FJP (Banca Examinadora)

________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Flávio Sapori – PUC Minas (Banca Examinadora)

__________________________________________________________
Profa. Dra. Alessandra Sampaio Chacham – PUC Minas (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2016.


AGRADECIMENTOS

Primeiramente aos jovens e moradores do Estrela D’alva por toda gentiliza e


colaboração.
À Capes pela possibilidade de cursar com bolsa o doutorado em Ciências Sociais, e ao
professor Luis Baptista diretor do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade
Nova de Lisboa onde realizei durante dez meses o estágio sanduíche no exterior.
A todo o apoio prestado por Luciana Teixeira de Andrade que do início ao fim sempre
com interesse e dedicação guiou meus passos, muito obrigado.
Ao Miguel Chaves, que sempre foi uma referência para o desenvolvimento desta tese
como Co-orientador em Portugal.
Especial a Manuel Carlos Silva, da Universidade do Minho, pelas trocas intelectuais e
pelos dez meses de estadia em sua casa no bairro de Belém, em Lisboa. Especial
agradecimento aos colegas da Cripta como Paulo Barcelos, Juliana Doretto, Vanina Dias, Pau
Casanellas, Marta Silva, Yvette, Diogo, Liliane Rosas, Eudes, Régia, Rômulo Góes, Gustavo
Boto, Suzano, e aos amigos de Cascais, Léo, Joana e Samuel. Agradeço aos colegas da
Unilivrecoop Dimas Antônio de Souza, Dilma Fróes (in memoriam) pelo apoio durante a
realização do curso enquanto desenvolvíamos o Diagnóstico da Criança, do Adolescente e do
Jovem de Belo Horizonte.
Todas as pessoas do Observatório das Metrópoles com quem pude participar de
pesquisas fundamentais como Marcelo Ribeiro, Jupira Mendonça, Alexandre Magno Diniz,
Flávio Freire, Dalva Souza, Naiane Loureiro, entre muitos outros.
Enfim, aos meus irmãos, pais, amigos, não caberia aqui listar todas as pessoas das
quais devo gratidão, em especial à Clarice, e à Fabiana e também ao Lei.
RESUMO

A tese tem como objetivo apresentar aspectos estruturantes da vida social na região
metropolitana de Belo Horizonte a partir da construção de trajetórias de vida. Tal proposta
fundamenta-se na conjugação entre diversas abordagens de pesquisa adotadas nas Ciências
Sociais, principalmente a etnográfica e a biográfica. Tal escolha se deveu ao pressuposto da
indissociabilidade entre indivíduo e sociedade. Se através das trajetórias é possível avaliar
contextos e locais onde os sujeitos agem e têm suas experiências de vida, a etnografia por sua
vez oferece um importante recurso para a aproximação entre o pesquisador social e o universo
social do qual busca construir conhecimento. Recorrendo à junção dessas abordagens, no
desenvolvimento da tese levantou-se a perspectiva dos indivíduos, sujeitos que agem
socialmente, evidenciando tensões e complexidades do cotidiano de suas vidas durante a
transição para a vida adulta. Buscou-se por tal via contribuir para o amplo e recente debate
sobre novas configurações da desigualdade na sociedade brasileira, produzido nas ciências
sociais, em relação ao paradoxo, notado nos últimos 30 anos, da expansão do Estado Liberal
de Direito e da urbanização concomitantes ao crescimento das taxas de homicídios juvenis e
da persistência da desigualdade social optou-se pela construção de trajetórias de vida de
jovens da periferia. O campo de pesquisa foi o bairro Estrela D’alva, situado no município de
Contagem, Minas Gerais. O município está localizado na região metropolitana de Belo
Horizonte, e o bairro em si é caracterizado como uma área com concentração de famílias em
situação de pobreza e que desde a década de 2000 passa por problemas públicos relacionados
à violência e a expansão de atividades criminosas locais. Ao longo de mais de dois anos de
etnografia no Estrela D’alva busquei inserir-me nas esferas de sociabilidade juvenis que se
desenvolviam no bairro, tais como o hip-hop e a religião. Por meio da imersão etnográfica
nessas esferas e de observações do cotidiano do bairro em espaços públicos como praças e
ruas, comércio e serviços locais busquei estabelecer o contato com os jovens com quem
realizei as entrevistas biográficas. Na tese são apresentadas as trajetórias de Miro, Faro,
Maicon e Suzano.

Palavras-chave: Desigualdade social. Trajetórias Juvenis. Transição para a vida adulta.


Região Metropolitana de Belo Horizonte. Periferia.
ABSTRACT

The thesis aims to present structural aspects of social life in the metropolitan region of Belo
Horizonte from building life trajectories. This proposal is based on the combination between
various research approaches taken in the social sciences, especially the ethnographic and
biographical. This choice was due to the assumption of the inseparability between individual
and society. If through the trajectories can be assessed contexts and places where individuals
act and have their life experiences, ethnography in turn provides an important resource for
bringing together the social researcher and the social universe which seeks to build
knowledge. Using the combination of these approaches in the development of the thesis raised
the perspective of individuals, subjects who act socially, showing everyday tensions and
complexities of their lives until they enter adulthood. We sought for such via contribute to the
broad and recent debate on new inequality settings in Brazilian society, produced in the social
sciences in relation to the paradox, noted the past 30 years, the expansion of the liberal state
of concomitant law and urbanization to growth of youth homicide rates and the persistence of
social inequality we chose to build lives of young people from the outskirts of trajectories.
The research field is the neighborhood Estrela D’alva, in the municipality of Contagem,
Minas Gerais. This municipality is located in the metropolitan region of Belo Horizonte, and
the neighborhood itself is characterized as an area with a concentration of families in poverty
and that since the 2000s undergoes public problems related to violence and the expansion of
local criminal activity . For over two years of ethnography at Estrela D’alva I sought to insert
me in youth spheres of sociability that developed in the neighborhood, such as hip-hop and
religion. Through ethnographic immersion in these spheres and neighborhood everyday
observations in public spaces such as squares and streets, local shops and services sought to
establish contact with young people who realized the biographical interviews. The thesis
shows the trajectories of Miro, Faro, Maicon and Suzano.

Keywords: Social inequality. Youth trajectories. Transition to adulthood. Metropolitan


region of Belo Horizonte. Periphery.
LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 1 - Mapa da divisão político territorial das macrorregiões e unidades da federação -


Brasil - 2015 ............................................................................................................................. 58

IMAGEM 2 - Favelas e Parabólicas - Rio de Janeiro - 2015 ................................................... 66

IMAGEM 3 - Zona Conurbada da RMBH vista a partir do limite geomorfológico imposto


pela Serra do Curral- Imagem de Satélite -2014 ...................................................................... 72

IMAGEM 4 - Zona Conurbada da RMBH - Imagem de Satélite - 2014 ................................. 73

IMAGEM 5 - Eixos de expansão metropolitana- RMBH – 2010 ............................................ 74

IMAGEM 6 - Sistema viário principal do município de Contagem -1990 .............................. 78

IMAGEM 7- Distribuição percentual das famílias com até um salário mínimo – RMBH -
2010 .......................................................................................................................................... 83

IMAGEM 8- Pendularidade relativa dos municípios da RMBH- 2010 ................................... 86

IMAGEM 9 - Índice de Bem-Estar Urbano - Áreas de Ponderação da RMBH - 2010 ........... 91

IMAGEM 10 - Localização dos grupos ocupacionais no território metropolitano, segundo as


áreas de ponderação da RMBH –2010 ..................................................................................... 93

IMAGEM 11- Vista de uma Rua: Belvedere e Cidade Nova - Belo Horizonte - 2014 .......... 95

IMAGEM 12 - Vista de uma Rua: Estrela D’alva e Nova Pampulha – Contagem e B. H. -


2014 .......................................................................................................................................... 95

IMAGEM 13 - Locais de votação segundo o grau de competitividade por votos para deputado
estadual – RMBH - 2006 .......................................................................................................... 98

IMAGEM 14- Localização da área de estudo no contexto metropolitano e de Contagem –


RMBH – 2013 .......................................................................................................................... 99

IMAGEM 15 - Imagem de Satélite da área de abrangência do território social de referência


das trajetórias juvenis, o “Estrela D’alva”- 2013 ................................................................... 103

IMAGEM 16 – Mapa de Kernel - ocorrências policiais registradas no Estrela D’alva 2010117

IMAGEM 17 – Mapa de Kernel dos crimes violentos registrados no Estrela D’alva - 2010 117

IMAGEM 18 – Imagens veiculadas na Mídia sobre o Toque de Recolher – Estrela Dalva –


2010 ........................................................................................................................................ 118
LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Municípios segundo o ano de criação, de instalação e de incorporação à RMBH


.................................................................................................................................................. 71

QUADRO 2 - Características das pessoas e dos domicílios - Estrela D’alva e Contagem -


2010 ........................................................................................................................................ 111

QUADRO 3: Perfil das Pessoas Entrevistadas durante a etnografia – 2012 a 2014 .............. 122
LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 - Evolução demográfica- Belo Horizonte-BH e Agrupamento dos outros


municípios metropolitanos - 1940 a 2010 ................................................................................ 76

GRÁFICO 2 - Quantidade de municípios da RMBH segundo o nível de integração


metropolitana entre os anos censitários de 2000 e de 2010 ...................................................... 80
LISTA DE TABELAS

TABELA 1- Variação (%) populacional por períodos intercensitários e população total dos
municípios mais afetados pela metropolização e da RMBH - 1980 a 2010 ............................. 77

TABELA 2 - Faixas de rendimento domiciliar per capta, Belo Horizonte, Contagem, Betim,
demais municípios metropolitanos e RMBH -2010 ................................................................. 81

TABELA 3 - População residente cadastrada no CadÚnico e beneficiários do Programa Bolsa


Família - Estrela D’alva - 2010 .............................................................................................. 112

TABELA 4 -Situação no mercado de trabalho da população residente cadastrada no


CadÚnico – Estrela D’alva – 2010 ......................................................................................... 112

TABELA 5 - População residente cadastrada no CadÚnico segundo a escolaridade - Estrela


D’alva - 2010 .......................................................................................................................... 113

TABELA 6 - Famílias cadastradas no CadÚnico segundo a faixa de rendimento familiar –


Estrela D’alva - 2010 .............................................................................................................. 113

TABELA 7 - Taxa de mortalidade por 100.000 habitantes, segundo a causa homicídio em


residentes - Contagem - 2003 a 2008 ..................................................................................... 115

TABELA 8 - Número de Homicídios Tentados e Consumados – Contagem – 2007 a 2009 115

TABELA 9 - Número de Homicídios Tentados e Consumados , Roubos e Crimes não


violentos - Estrela D’alva - 2007 a 2009 ................................................................................ 116
LISTA DE FOTOS

FOTO 1 - Início e final da Rua que faz divisa com Belo Horizonte próximo ao Portão 2 do
Zoológico - Estrela D’alva - 2014 ......................................................................................... 101

FOTO 2 - Rua e esquina próxima à Casa Amarela - Estrela D’alva - 2014 ........................... 101

FOTO 3 - Ruas próximas à Praça do Estrela D’alva - Estrela D’alva - 2014 ........................ 102

FOTO 4 - Fachada de uma igreja situada próximo a Rua Porto Seguro - Estrela D’alva - 2014
................................................................................................................................................ 102

FOTO 5 - Espaço Casa Amarela antes da reforma - Estrela D’alva - 2012 ........................... 135

FOTO 6 - Espaço após reforma e implantação do CRAS Casa Amarela-Estrela D’alva -2013
................................................................................................................................................ 136

FOTO 7 - Duelos de MC’s antes e após a implantação do Cras no espaço Casa Amarela -
Estrela D’alva – 2012 e 2013 ................................................................................................. 138

FOTO 8 - Jovens e Grafites – Estrela D’alva-2013................................................................ 168


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 25
1.1 Meu encontro com a temática investigada na tese ........................................................ 27

2 TRAJETÓRIAS DE VIDA E TEORIAS SOCIAIS ......................................................... 31


2.1 A componente biográfica ................................................................................................. 32
2.2 A componente etnográfica ............................................................................................... 35
2.3 Trajetória de vida: produto da tensão entre ação e estrutura sociais. ........................ 39
2.3.1 Trajetórias e estruturas societais .................................................................................... 39
2.3.2 Trajetórias, ação e projeto de vida individual ................................................................ 44
2.3.3 Trajetórias: juventude, fases e etapas da vida ................................................................ 48
2.4 Os roteiros de observação e de entrevista: a construção dos instrumentos de pesquisa
.................................................................................................................................................. 54
2.4.1 Roteiro de Observação .................................................................................................... 55
2.4.2 Roteiro de entrevista........................................................................................................ 55

3 METROPOLIZAÇÃO, TERRITÓRIO E VIDA SOCIAL............................................. 57


3.1 Notas gerais sobre urbanização e a metropolização: o caso brasileiro visto da Região
Metropolitana de Belo Horizonte .......................................................................................... 57
3.2 A metropolização a e fragmentação da vida social no território ................................. 59
3.3 A expansão da RMBH e as reconfigurações da vida social no território .................... 70
3.4 Expansão demográfica, relações de trabalho e território metropolitano .................... 84
3.5 Paisagens metropolitanas na RMBH: espaço urbano e fronteira social ..................... 94

4 SITUANDO O CAMPO, A PERIFERIA: ESTRELA D’ALVA .................................... 99


4.1 Ocupação, urbanização e vida política no Estrela D’alva: décadas de 1980 e 1990 . 104
4.2 A periferia consolidada: pobreza e violência ............................................................... 110
4.3 Vida social, violência e narcotráfico no Estrela D’alva ............................................... 114
4.4 Estrela D’alva: estratégias para imersão no campo de pesquisa ............................... 121

5 AS TRAJETÓRIAS DE MIRO E FARO ....................................................................... 131


5.1 O contexto do encontro e das entrevistas com os jovens ............................................. 132
5.2 A Trajetória de Faro ...................................................................................................... 139
5.2.1 Considerações da trajetória de Faro ............................................................................ 150
5.3 A Trajetória de Miro ...................................................................................................... 152
5.3.1 Considerações da trajetória de Miro ............................................................................ 159
5.4 Miro e Faro, considerações sobre suas trajetórias ...................................................... 162

6 AS TRAJETÓRIAS DE MAICON E SUZANO............................................................. 171


6.1 A Trajetória de Suzano .................................................................................................. 173
6.1.1 Considerações sobre a Trajetória de Suzano ................................................................ 185
6.2 A Trajetória de Maicon.................................................................................................. 189
6.2.1 Considerações sobre a Trajetória de Maicon ............................................................... 203
6.3 Considerações, trajetórias de Maicon e de Suzano ..................................................... 207

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 209

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 219


ANEXO 1 – “Palavra pastoral/ler para todos” ................................................................. 231
ANEXO 2 – “2015 – Ano de conquista das promessas de Deus” ..................................... 233
25

1 INTRODUÇÃO

Esta tese tem como foco de estudo a vida social na periferia metropolitana de Belo
Horizonte, que chamo aqui de “vida social na marginal”. Refiro-me ao campo das relações
sociais instituídas historicamente em áreas que a literatura, bem como o senso comum,
denomina como periferia. Para tanto, realizei estudo etnográfico no Estrela D’alva, bairro
formado na divisa entre o município de Contagem e a região da Pampulha, área nobre do
município de Belo Horizonte e polo da Região Metropolitana. Nesta tese o termo periferia
refere-se aos locais, geograficamente próximos ou não, da área central de Belo Horizonte
ocupados por populações socialmente marginalizadas por desempenharem as funções menos
valorizadas, simbolicamente e financeiramente, na estrutura sociocupacional metropolitana.
Geralmente são pessoas que desempenham ocupações manuais e que exigem menos requisito
técnico-formal. Em uma sociedade na qual a escravatura está entre suas raízes históricas, a
intensa estratificação social e desigualdade estão intrinsicamente relacionadas à estrutura
ocupacional e produtiva desta sociedade, às posições ocupadas pelos indivíduos. Desta
maneira, a periferia é onde os grupos que estão à margem da estrutura produtiva e econômica
metropolitana residem. O que chamo aqui por “vida social na marginal” refere-se às
populações que desenvolvem suas vidas a partir desta posição na sociedade urbana brasileira
contemporânea. É nesse sentido de margem, de fronteira social que a noção de periferia é
abordada ao longo da tese.
Nas últimas décadas, de consolidação urbana das regiões metropolitanas brasileiras do
Sudeste, as periferias aparecem como palco dos episódios mais trágicos e violentos
emergentes nestas regiões. Os principais agentes representados como vítimas e algozes do
crescimento histórico dos índices de violência urbana têm sido a população do sexo
masculino, da segunda ou da terceira geração de filhos das pessoas que ocuparam a periferia
nas décadas de 1970 e 1980, no caso desta tese especificamente, o Estrela D’alva. Tais são os
agentes apresentados nas estatísticas e matérias jornalísticas que retratam e narram o
crescimento da violência ao longo das décadas seguintes, de 1990 e de 2000. Nesse sentido,
apresentou-se como pertinente ter em consideração ao estudar a “vida social na marginal”, os
sujeitos que ocupavam a cena pública destes espaços, cujas trajetórias juvenis ocorreram ao
longo do tempo em que a urbanização se consolidou, das duas décadas após a
redemocratização do sistema político formal brasileiro. Sendo que, nesta tese, as “trajetórias
juvenis” são narradas a partir de uma perspectiva biográfica.
26

Lançado este desafio, de compreender “a vida social na marginal” tendo como objeto
as “trajetórias juvenis na região metropolitana de Belo Horizonte”, a presente tese estrutura-se
em sete capítulos a contar com a Introdução e as Considerações Finais. Estes dois não serão
comentados a seguir, somente os capítulos que estão entre eles.
O Capítulo 1, intitulado de “Trajetória de Vida e Teorias Sociais” procura discutir a
trajetória de vida dentro das teorias sociais, como uma alternativa para a construção de
conhecimento fundamentada em uma abordagem que busca levantar atributos do contexto e
das subjetividades envolvidas para a compreensão do social. Para tanto tem como pilar a
fusão entre o método biográfico com outras metodologias e técnicas de pesquisa social, em
especial a etnografia. Partindo do pressuposto da indissociabilidade do fenômeno social, o
capítulo tece discussões sobre os contributos das abordagens etnográficas e biográficas e a
etnobiografia para o desenvolvimento de um conceito de trajetória de vida, tendo como
referência as trajetórias juvenis. Assim, o capítulo aborda também a discussão sobre transição
para a vida adulta proposta por Machado Pais (1991; 2009).
O Capítulo 2, intitulado Metropolização, Território e Vida Social, apresenta notas
gerais sobre urbanização e a metropolização de Belo Horizonte, a partir de uma discussão
mais ampla sobre o caso brasileiro. Em seguida aborda aspectos da expansão metropolitana
sobre a reconfiguração das desigualdades sociais considerando território e relações sociais,
identificando na RMBH a produção de um espaço urbano socialmente fragmentado. O
capítulo apresenta uma caracterização das áreas internas do território metropolitano em
perspectiva histórica e alguns aspectos das suas clivagens sociais por meio de indicadores
sociais sintéticos como o Índice de Bem Estar Urbano (NAZÁRIO, 2015), e dados
econômicos, políticos e de infraestrutura abordados na literatura consultada, apresentados,
sempre que possível a elucidar distinções e similaridades entre periferias e áreas não
periféricas. O debate sobre as reconfigurações da vida social no território leva em conta a
expansão demográfica, as relações de trabalho metropolitanas e os padrões de segregação
predominantes na configuração da paisagem social da região metropolitana.
O Capítulo 3, intitulado Situando o Campo, a Periferia: Estrela D’alva, aborda a
ocupação e o processo de urbanização no Estrela D’alva a partir de relatos de moradores e
reconstrói um pouco da história do lugar abrangendo acontecimentos que marcaram a vida
social em períodos das décadas de 1980, 1990 até o tempo da etnografia. A história do bairro
mostra que urbanização não ocorreu como direito, mas como uma moeda de troca por votos
na redemocratização do sistema político formal. Ao longo dos anos 2000, a periferia estava
com sua urbanização consolidada, contudo esse processo foi acompanhado da permanência da
27

concentração socioespacial de famílias em condição de pobreza, bem como o aumento dos


episódios de violência no espaço público do bairro. O capítulo apresenta também a percepção
dos moradores sobre a violência praticada pelo narcotráfico no Estrela D’alva como os
“toques de recolher”. Por fim, conclui apresentando uma narrativa sobre minha imersão no
respectivo campo de pesquisa.
O Capítulo 4, intitulado por As trajetórias de Miro e Faro inicia-se com a
apresentação do contexto do meu encontro com os jovens que conheci como mc’s. Nessa
parte tento apresentar ao leitor um pouco das circunstâncias que eles vivenciavam na época
quando realizamos as entrevistas. A primeira trajetória narrada é a de Faro, com quem
estabeleci um importante vínculo de pesquisa, interlocutor chave. Na sequência a trajetória de
Miro. Embora ambos estivessem envolvidos na produção do hip-hop no bairro, relacionavam-
se de modo distinto com essa atividade cultural e com a vida social e comunitária da periferia.
Por fim uma consideração sobre a trajetória de ambos.
No Capítulo 5 apresento As trajetórias de Maicon e Suzano, duas trajetórias focadas
em projetos de vida em família, a partir de perspectivas muito distintas. Maicon era líder de
célula e foi através de um convite mediado por Faro que estabeleci o contato com ele.
Participei da célula como ouvinte e observador, e posteriormente obtive de Maicon seu
consentimento para ouvir o relato de suas experiências de vida. Suzano conheci durante um
duelo de mc’s da Casa Amarela, também foi-me indicado por Faro como um jovem com
curso superior, repórter e que morava no Estrela D’alva. Suas trajetórias, Maicon e Suzano,
embora todas as diferenças, convergiam para um mesmo espaço, a periferia: o Estrela D’alva.
Por fim, nas Considerações Finais teço apontamentos sobre dois aspectos notados
como estruturantes das trajetórias juvenis que denominei como trajetória-sacrifício e por
orientação para dentro que traduzem a condição marginal a partir da qual Faro, Miro,
Maicon e Suzano narraram suas experiências de vida no contexto social da região
metropolitana de Belo Horizonte.

1.1 Meu encontro com a temática investigada na tese

Meu primeiro contato com questões sociais e problemas de pesquisa relacionados ao


espaço urbano metropolitano e à questão infância e juventude ocorreu durante o curso de
graduação em geografia (2003-2007). A geografia urbana e a cultural foram áreas centrais na
monografia, em especial durante o período que fiz estágio no Instituto da Criança e do
Adolescente-ICA da Proex/PUC Minas (2005). Nesta instituição permaneci até o ano de
28

2010, quando já desempenhava a função de assistente de pesquisa e tive a oportunidade de


participar de projetos de extensão que abordavam temáticas relacionadas à infância e
juventude como: trabalho infantil, violência doméstica, diagnósticos sobre a situação da
infância e adolescência em municípios, políticas públicas, direitos, violência nas escolas,
sistema de justiça infanto-juvenil, homicídios e uso de drogas.
No mestrado, de 2010 a 2012, atuei como pesquisador associado ao grupo de trabalho
Violência e Organização Social do Território, vinculado ao Observatório das Metrópoles,
através do Programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/INCT/CNPq. Por meio desse
vínculo desenvolvi a dissertação que abordou os temas homicídio e metropolização na Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Neste trabalho foram utilizados,
fundamentalmente, dados disponibilizados por agências da saúde e da polícia que
compreendiam registros relativos às vitimas desse tipo de crime residentes em alguns dos 34
municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, nos períodos compreendidos entre
1998 e 2008 (saúde) e de 2008 a 2010 (registros policiais). A distribuição socioespacial feita
por meio de georreferenciamento indicou altas concentrações de homicídios na RMBH em
áreas de municípios classificadas como periferias metropolitanas, espaços conurbados à Belo
Horizonte, situados em: Contagem, Betim, Ribeirão das Neves, Vespasiano, Santa Luzia e
Esmeraldas. Na RMBH os seis municípios citados, junto à capital, concentraram 97% dos
homicídios registrados pelas agências públicas da saúde no período de 1998 a 2008. Os dados
de 2008 a 2010 indicavam a mesma geografia.
Outro resultado apontado na dissertação de mestrado como recorrente foi o perfil
predominante das vítimas dos homicídios: pessoas jovens, com idade entre 15 e 29 anos, do
sexo masculino, de cor-raça parda ou preta, residentes em determinadas áreas da periferia
metropolitana. Aliado a isso, prevaleceu o uso de armas de fogo como o principal instrumento
utilizado, bem como a ocorrência das mortes em logradouros públicos em comparação às
ocorridas em espaços privados como hospitais, centros de saúde ou residências. A utilização
maciça de armas de fogo em assassinatos ocorridos em lugares públicos favorece a hipótese
de associação entre tais mortes e a presença de grupos criminosos territorial e socialmente
instalados nas periferias metropolitanas.
No primeiro ano do curso de doutorado em Ciências Sociais (2012-2016) participei do
desenvolvimento do projeto de pesquisa Territórios violentos e trajetórias juvenis: um estudo
na RMBH, financiado pelo CNPq e coordenado pelas professoras Luciana Andrade e Rita
Fazzi do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. O objetivo geral foi
investigar as relações entre a incidência de homicídios, o processo de metropolização e as
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distintas trajetórias de jovens na Região Metropolitana de Belo Horizonte. A intenção deste


projeto era tanto abrir novas frentes de pesquisa sobre a temática no ambiente da universidade
quanto produzir conhecimento sobre a experiência juvenil nas periferias afetadas pela
violência homicida em contextos metropolitanos a partir de abordagens mais qualitativas.
Também participaram alunos da graduação e mestrado em ciências sociais da PUC que,
integrados a este projeto por meio de um grupo estudos ou bolsa de iniciação científica,
desenvolveram monografias e dissertações de mestrado sobre tal temática. Minha participação
neste projeto foi decisiva para o desenvolvimento da tese, além das preciosas trocas realizadas
entre os colegas durantes as discussões de textos e relatos de pesquisa, e apresentação de
projetos sociais nas periferias como Fica-Vivo e o Programa Conjunjo das Nações Unidas por
meio do qual pude conhecer o bairro Estrela D’alva.
A pesquisa no bairro possibilitou uma melhor leitura dos fenômenos metropolitanos e
sociais no território local. Na região estudada, os jovens desenvolviam-se em meio a mortes e
diversos tipos de violências e outras situações que caracterizaram as condições de vida na
periferia. Pressupondo que o contexto de sociabilidades local tenha um forte impacto sobre a
construção das trajetórias de vida dos jovens, principalmente os residentes nas regiões
segregadas e intensamente afetadas pela violência letal, busquei aproximar-me deste contexto
social. Ao mesmo tempo considerando que os percursos de vida na periferia não são limitados
a isso. São construídos a partir de outras esferas da vida das quais os jovens participam, no
bairro e além dele, em seus trânsitos locais e metropolitanos. Enfim, a partir de tal
problemática que será exposta ao longo do texto a tese apresenta a trajetória de vida como
alternativa para a compreensão da integração social juvenil a partir do contexto da periferia
metropolitana.
31

2 TRAJETÓRIAS DE VIDA E TEORIAS SOCIAIS

Este texto procura enquadrar, teoricamente, o capítulo seguinte da tese, que irá ter um
pendor mais analítico. No presente momento conferiremos destaque ao conceito de trajetória
de vida, conceito que estimula a superação de paradigmas fundamentados em perspectivas
dicotômicas e pressupõe a indissociabilidade do fenômeno social. Reconhecendo que a
percepção do observador funde-se àquilo que observa (CORCUFF, 2001), a própria
construção do objeto feita pelo investigador social representa um produto da sua relação
social com este mesmo objeto. A trajetória de vida fundamenta-se no paradigma da
indissociabilidade entre o individual e o social, sendo a “realidade social” a dialética desta
relação permanente (BERGER; LUCKMANN, 1999), como fenômeno social total (MAUSS,
2003). A trajetória de vida é, portanto, o produto das conexões materiais e simbólicas
exercidas entre e pelos indivíduos por meio das quais elaboram seus cursos de vida, uns em
relação aos outros (CORCUFF, 2001). A centralidade conferida ao conceito de trajetória de
vida decorre, nesta tese, de reflexões epistemológicas que precederam o desenvolvimento do
trabalho de campo, nomeadamente, a escolha do terreno empírico, a seleção das fontes de
informação, a análise do material coletado e o momento final de composição da narrativa
expressa em linguagem textual.
A operacionalização aqui proposta do conceito de trajetórias de vida possibilita
complexificar a observação dos fenômenos sociais e ao mesmo tempo situá-los perante as
circunstâncias, os contextos e os espaços a partir dos quais indivíduos, ao longo de um tempo,
produzem a vida social. As trajetórias concretas serão aqui delineadas partindo, por um lado,
das representações que os sujeitos biografados produzem sobre suas próprias experiências
passadas e, por outro, do modo como projetam seus rumos de vida frente a horizontes de
possibilidades socialmente delimitados (BOURDIEU, 1996). A escolha por centralizar os
problemas a partir de tal perspectiva teve como objetivo identificar, a partir dos repertórios de
vida juvenis, os quadros de ação elaborados pelos sujeitos biografados e como estes projetam
socialmente os indivíduos frente o mundo social, a partir do contexto social da periferia
metropolitana de Belo Horizonte.
Do ponto de vista teórico-metodológico, a presente proposta assentou-se
fundamentalmente em duas estratégias: a biográfica e a etnográfica. Tais abordagens
constituem os veios que tornam possível a construção analítica, por via da narrativa, das
trajetórias de vida. Em seguida, procurar-se-á defender e justificar a importância de fundir
essas duas abordagens, entendendo-as como métodos distintos, mas ao mesmo tempo
32

complementares, de pesquisa social.

2.1 A componente biográfica

Nesta tese a abordagem biográfica tem por objetivo principal considerar a voz dos
sujeitos como elementos chave para a compreensão das relações humanas em sociedade 1. A
partir deste tipo de abordagem, centrada aqui essencialmente em relatos de experiências de
vida de determinadas pessoas, pode-se capturar aspectos do cotidiano dos indivíduos e do
ambiente social em que essa atividade cotidiana tem lugar. O objetivo de usar a abordagem
biográfica na sociologia é o de compreender o social, distinguindo, por essa via, de parte das
abordagens biográficas produzidas na literatura, no jornalismo ou no quadro da psicologia
(BERTAUX, 2005; 2014; PERREN, 2012; CONDE, 1993; 1994)2. A relação entre o contexto
de vida dos sujeitos pesquisados e da sua história individual foi explorada nos relatos de vida
amplamente utilizados, por exemplo, em estudos dirigidos à compreensão da integração social
de populações migrantes e marginalizadas na metrópole de Chicago durante as primeiras
décadas do século XX (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014).
No presente trabalho optamos em conjugar o método biográfico com outras
metodologias e técnicas de pesquisa social, em especial a etnografia. Foram realizadas
entrevistas com pessoas não jovens, em busca de outros olhares sobre a vida social na
periferia além dos juvenis, e, também registradas, em equipamento de gravação de áudio,
conversas informais, cultos evangélicos, comícios políticos, entre outras atividades públicas
que ocorriam no bairro. A análise do material biográfico foi subsidiada pela consulta a
documentos históricos, fotografias antigas, informações públicas e notícias veiculadas pelas
mídias que trouxessem informações sobre a região do Estrela D’alva, o município de
Contagem e região metropolitana. Tal opção metodológica teve como referência ou inspiração
a análise sequencial dos dados proposta em Rosenthal (2014). A proposta deste autor tem
como objetivo central fornecer ao pesquisador social um panorama histórico ou sociopolítico
o mais amplo possível, que contextualize e situe as experiências de vida no tempo e espaço.
Com efeito, consideramos que a qualidade da análise social dos dados biográficos depende da
busca por outras fontes. Tal procedimento contribui para evitar equívocos derivados de

1
Essa preocupação em considerar a voz dos sujeitos como elemento de compreensão da cultura está presente
como premissa epistemológica na antropológica de Franz Boas (1858 – 1942) e de Malinowski (1884 – 1942).
2
A produção de narrativas biográficas como recurso de interpretação da realidade social nas ciências sociais, na
sociologia principalmente, é ainda alvo de um relativo descrédito por parte daqueles que aderem de modo
acrítico às correntes ideológicas quantitativistas (ROSENTHAL, 2004).
33

conclusões precipitadas fundamentadas em autointerpretações ou autoapresentações


intrínsecas aos relatos biográficos e ao mesmo tempo romper com noções prévias do
entrevistador em relação ao seu universo e/ou objeto de pesquisa. Em sentido heurístico, trata-
se de propor um constante exercício entre reflexão (teoria) e prática de pesquisa de modo a
possibilitar a interpretação dos trajetos sociais dos indivíduos em sociedade.
De posse dos dados, levantados segundo a perspectiva da análise sequencial
(ROSENTHAL, 2014), o pesquisador social possui condições de produzir uma narrativa
sociológica a partir das experiências de vida dos sujeitos biografados. Este tipo construção
narrativa estrutura-se pela descrição estrutural, diacrônica e temática das experiências de vida,
como propõe Bertaux (2005) pela noção de curso de vida. Segundo Bertaux, o curso de vida
não se trata apenas de um ordenamento lógico de relatos dispersos em torno de um tema de
pesquisa definido a priori, e sim da construção de uma narrativa própria e elaborada em
relação aos sentidos e representações sociais expressas pela voz de indivíduos, processo
definido como ideologia biográfica por este autor, e como ilusão biográfica por Pierre
Bourdieu (1996). A ilusão fundamenta-se no fato de as experiências individuais não
configurarem por si mesmas uma “história”, no sentido de reconhecer que não há um fio
condutor natural que orienta subjetivamente a vida individual. Pelo contrário, a narrativa
construída a partir dos relatos biográficos resulta de esforços de racionalização conscientes e
inconscientes, da construção de artifícios capazes de estabelecer conexões coerentes entre
memórias, relatos e questões abordadas em entrevista, tanto por parte do sujeito como do
objeto da biografia, investigador e investigado (BOURDIEU, 1996).
Compreende-se aqui que a questão levantada por Bourdieu (1996) não foi uma
tentativa de aniquilação ou de descrédito epistemológico relativo ao uso do método biográfico
e sim um alerta sobre a necessidade do rigor metodológico necessário à sua aplicação 3. No
fundo, Bourdieu procurava acautelar que os relatos de experiências de vida fossem
interpretados como construção social, como resultantes da “qualidade social do mercado”, no
qual são oferecidos, em especial, da própria situação de pesquisa (BOURDIEU, 1996, p.189).
A partir deste “mercado no qual é oferecida a biografia” as experiências individuais ocorrem e
demarcam singularidades sobre estruturas de distribuição dos diferentes tipos de capital,
material e simbólico vigentes na sociedade.

3
A “ilusão biográfica” representa mais uma crítica à posição metodológica focada em traçar panoramas
individuais de sujeitos históricos, como se fossem portadores naturais da capacidade de instaurar por si
mesmos projetos excepcionais e extraordinários à sociedade, alheio às estruturas sociais (BOURDIEU, 1996).
34

O desafio colocado pelo pensamento bourdiano é pensar o conjunto da sociedade, suas


conjunturas macrossociais e seus contextos locais, a partir da análise dos trajetos sociais dos
indivíduos e vice-versa. Nesta perspectiva os trajetos individuais expressam os campos de
possibilidades inscritos aos sujeitos a partir de um espaço social orientado (BOURDIEU,
1996) segundo posições sociais hierarquicamente estabelecidas pelas práticas sociais, pela
cultura. Embora as trajetórias sejam produtos singulares da relação entre elementos objetivos
e subjetivos, em situações e contextos específicos, são produtos sociais. As condições de
sociais de existência geradas a todo instante pela ação dos indivíduos projetam seus rumos de
vida, em torno de uma determinada ordem sustentada por relações de poder desiguais sobre o
acesso e distribuição dos bens sociais materiais e simbólicos (BOURDIEU, 1983).
Ao mesmo tempo os relatos que compõe a narrativa das trajetórias de vida são também
um produto da intersubjetividade estabelecida na interação do sujeito biografado com o
sujeito cientista social. Ou seja, não se trata apenas de memórias produzidas a partir de
experiências passadas, e sim de representações reelaboradas pelos sujeitos biografados na
ocasião da entrevista. E não só isso, a “ocasião da entrevista” reflete o momento da vida pelo
qual passa o entrevistado. Este último independe do pesquisador social e pode compor seu
relato de campo; por outro lado, a situação de entrevista é em boa parte dependente da relação
de alteridade construída entre os agentes envolvidos. Este é um ponto chave da produção de
dados: a informação depende de como o pesquisador social irá se posicionar perante a
situação de entrevista, que implicará na qualidade da alteridade firmada e orientará a
produção dos relatos e a seleção de memórias empreendida pelo entrevistado. A narrativa
biográfica não se limita, portanto, a uma mera descrição de relatos de experiências de vida
cedidos voluntariamente por uma determinada pessoa em uma situação de pesquisa, embora
tal descrição seja sua principal matéria prima.
Tendo em consideração esse último aspecto, da relação de alteridade, optamos pela
etnografia como um recurso de pesquisa social capaz de dirimir o efeito que as distâncias
sociais existentes entre pesquisador e sujeito biografado4 possam gerar sobre a produção e a
interpretação dos relatos biográficos. Impõe-se, portanto, uma necessidade de, neste caso, e à
semelhança do que sucede em muitos contextos de pobreza com o qual o pesquisador
experiência uma situação de afastamento social, proceder a uma familiarização do exótico
(VELHO, 1981). A etnografia tem, além disso, o condão de permitir contextualizar os

4
De um modo geral os estudos empíricos e biográficos realizados em contextos com problemas sociais graves
envolvendo a concentração de pessoas em situação de pobreza urbana e violência como envolve na presente
tese as distâncias sociais. Em A Máquina e a Revolta, Alba Zaluar (1994: 9-32) dedica todo o primeiro
capítulo O antropólogo e os pobres: Introdução metodológica e afetiva discutindo tal questão.
35

depoimentos de entrevista e confrontá-los com as práticas observadas de natureza não


discursiva.

2.2 A componente etnográfica

A etnografia é aqui representada como forma de produzir uma “descrição densa”


(GEERTZ, 1989) de uma cultura com vistas a compreender a maneira de viver e interpretar o
mundo a partir do ponto de vista nativo. Tal empreitada não constitui tarefa simples, implica a
disposição para coletar informações muito amplas e dispersas nos quadros da vida social e
que muitas vezes não estão explícitos na fala e reflexão dos sujeitos estudados. Trata-se assim
de um ofício complexo, exigindo rigor na captação das experiências sociais e seu registro,
bem como sistematização através das práticas de pesquisa descritas por Roberto Cardoso de
Oliveira a partir da tríade “olhar, ouvir e escrever” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978). Essas
práticas exigem, em função do objetivo de pesquisa, um período de tempo suficiente para que
a imersão profunda no campo e o estreitamento de relações sociais com a população estudada
se tornem possíveis. O fazer etnográfico envolve também outras práticas de pesquisa em que a
distância em relação ao campo também é exigida, no sentido de proporcionar a reflexão
acerca dos dados coletados, vislumbrando lacunas e ausências, e também a recolha de dados
de natureza geográfica, histórica, econômica, entre outros que possam lançar luz sobre o
contexto social investigado, mas que não podem ser recolhidos no local.
Em avaliação de monografias canônicas da tradição antropológica, a exemplo de Os
Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, o historiador James Clifford
(2002) defende que a narrativa etnográfica ultrapassa, e muito, os limites da pesquisa de
campo. Para Clifford, ainda que a pesquisa de campo tenha se configurado como um
instrumento fundamental para a coleta de dados empíricos, bem como a presença do
antropólogo em campo produzido transformações na forma de perceber e avaliar os modos de
vida, sociedade e culturas diversos, é por meio da escrita que a etnografia alcança seu efeito
último. Tal produção narrativa nutre-se de diferentes experiências que demarcam a presença
do cientista social em campo, a interação com seus interlocutores e seus exercícios de reflexão
e intepretação sociológica e antropológica por meio da elaboração da escrita,

[...] deve-se ter em mente o fato de que a etnografia está, do começo ao fim, imersa
na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma
textual. O processo é complicado pela ação de múltiplas subjetividades e
constrangimentos políticos que estão acima do controle do escritor (CLIFFORD,
2002, p.21).
36

A aplicação do método etnográfico permite também a identificação de palavras e de


expressões linguísticas, categorias nativas por meio das quais estrutura-se socialmente o
discurso dos grupos estudados, de confrontar o “ponto de vista do nativo” com o conjunto de
observações realizadas em campo (MALINOWSKI, 1976). Segundo o autor a fala do nativo
congrega expressões que são específicas de seus mundos sociais, e assim, contribuem para
esclarecer os sentidos suas práticas. A etnografia nesta perspectiva compreende o produto de
um processo relacional que envolve um conjunto de falas e de sentidos cuja intersubjetividade
apresenta-se como um fio invisível que orienta a construção das narrativas, neste caso, as
trajetórias de vida. Na presente tese, a etnografia apresentou-se como um tipo de abordagem
de pesquisa que permitiu uma aproximação singular entre o cientista social e o universo social
investigado, embora a compreensão da lógica dos discursos falados dependa, igualmente, do
conhecimento acumulado de fatores como o contexto e a situação na qual ocorrem
(BOURDIEU, 2000) 5.
A etnografia envolve, portanto, a relação do investigador com o contexto estudado, de
manter-se presente tempo o suficiente para observar e compreender o sentido das
circunstâncias e situações que compõe as redes sociais e as dinâmicas do cotidiano. A imersão
etnográfica permite o registro de eventos “imponderáveis” (MALINOWSKI, 1976), de
fenômenos não previstos a priori e que, notados em campo, fornecem, por vezes, a chave
compreensiva necessária para o estabelecimento das conexões entre ações individuais e estilos
de vida, no quadro de uma determinada cultura. Neste sentido, a busca por entendimento
sobre estes fenômenos, como observado em Geertz (1989), perpassa pela escuta atenta da fala
do nativo e dos sentidos e representações sociais que assumem perante sua cultura. Para
Geertz a cultura é um sistema semiótico, uma teia de significados na qual todos estão
enredados e a partir da qual é possível interpretar a “fala do nativo”, simbolicamente
sustentada em suas práticas sociais (GEERTZ 1989). Em uma perspectiva bourdiana, tal
concepção equivaleria a reconhecer, em profundidade, as estruturas sociais que se encontram
na gênese dos discursos e práticas sociais.
De um modo geral, nota-se entre os diversos autores citados, uma preocupação comum
em situar os discursos e as práticas dos indivíduos, de localizá-las perante uma determinada
ordem social, como colocado pela epistemologia de Bourdieu (2000), no sentido de que a
interpretação da linguagem depende da interpretação dos contextos e situações sociais nas

5
Ao buscar fugir de posturas estruturalistas que concebem a ação dos indivíduos apenas como pequenas
variações internas da estrutura, a análise situacional permite identificar a ação dos indivíduos frente ao mundo
social do qual são membros, no sentido de perceber na ação a capacidade de o indivíduo de subverter a ordem
estruturalmente imposta em seu benefício próprio (BOURDIEU, 2000).
37

quais ocorrem. A premissa converge ao posicionamento da antropologia interpretativa


proposta por Geertz (1989) que compreende a etnografia como método capaz de oferecer
recursos fundamentais, dos quais não se pode abrir mão, para a realização de uma leitura
social dos “fluxos de comportamento”. Ou seja, de que as ações dos indivíduos estruturam-se
socialmente, e, ao mesmo tempo, apresentam-se socialmente estruturadas, de que as práticas e
discursos feitos por indivíduos sejam carregados de sentidos que orientam simbolicamente
comportamentos assumidos socialmente. Nesta perspectiva a etnografia apresenta-se como
uma prática interpretativa, bem como os demais campos de produção do conhecimento
humano, produto de uma complexa hermenêutica orientada por teorias e práticas a partir das
quais se produz a análise social.
A observação do universo social no qual os agentes realizam suas práticas cotidianas,
onde tecem suas vidas ao longo de um tempo permite ao cientista social atingir “camadas”
mais profundas da realidade social investigada (GEERTZ, 1989). A profundidade atingida
pela observação etnográfica dependerá, sobretudo, da qualidade da aproximação alcançada
entre o cientista social e o mundo social investigado, da relação de alteridade estabelecida em
campo junto aos seus interlocutores principais. Estes últimos não são apenas o canal de
contato do etnógrafo com o mundo social sobre o qual busca estabelecer interpretações, mas
sim seus principais intérpretes. E assim, como define Geertz (1989) trata-se dos agentes que
fornecerão à narrativa etnográfica a interpretação em primeira mão da cultura investigada,
com um ponto de vista privilegiado.
A etnografia permite aproximar ou alinhar as distintas vozes que compõem a narrativa
em torno de um eixo comum. Neste interim é pertinente destacar que a “voz do nativo”,
embora seja um elemento chave na construção da narrativa etnográfica se trata de um material
relativamente secundário perante todo o processo de aplicação deste método. Secundário no
sentido de ser um dos muitos subprodutos da pesquisa sobre as trajetórias de vida, ao passo
que as entrevistas e todas as demais observações de campo só sejam possíveis após reflexões
teóricas e levantamentos de dados feitos a priori pelo pesquisador social. Este último, com
quem o nativo divide a voz, faz a regência da narrativa final que é expressa por meio da
criação de um material iconográfico (GEERTZ, 1989). Reiterando que, a qualidade da
interpretação dos relatos obtidos por meio de entrevistas e de encontros registrados em áudio
ou em anotações de campo dependerá da natureza e da qualidade da aproximação alcançada
pelo cientista social em relação ao mundo social que intenciona conhecer. Esse aspecto, que
caracteriza e qualifica a realização da pesquisa etnográfica na presente tese, apresenta-se
como um recurso utilizado durante o levantamento e a interpretação dos relatos biográficos.
38

A partir da realização de uma etnografia densa como proposto por Geertz (1989)
pode-se atingir um olhar aprofundado em relação aos sentidos e as representações sociais
expressas pelos interlocutores. Seguindo essa lógica, a etnografia representa um importante
recurso para situar e contextualizar socialmente as experiências individuais. E nesta direção
está o conceito de etnobiografia explorado em Gonçalves, Marques e Cardoso (2012) e em
Gonçalves (2012). Os autores realizam uma leitura sobre o sentido da biografia em trabalhos
etnográficos como, por exemplo, em Crapanzano (1980), no qual ao produzir um retrato de
Tuhami, uma biografia, produziu-se também uma nova possibilidade de se pensar uma cultura
e de refletir sobre o encontro entre pessoas (antropólogo e nativo). O conceito de
etnobiografia fundamenta-se na conciliação entre as narrativas feitas pelo nativo e a que o
antropólogo ou cientista social têm da cultura investigada.
Por etnobiografia Gonçalves, Marques e Cardoso (2012, p.29) definem:

[...] o produto de uma relação e de suas implicações a partir da interação entre


pessoas situadas em suas perspectivas de vidas e culturas, tendo como pano de fundo
suas percepções sobre a alteridade, [...], como um modo de definir a complexa forma
de representação do outro que se realiza enquanto construção de um diálogo.

O etno de etnobiografia é derivado da etnografia, de sua potência narrativa que


implica a relação complexa e produtiva entre um altere um ego. Deste modo, esta
auto narração de si através do encontro com um outro, produz o que designamos por
flexibilidade e experimentações nas identidades individuais e coletivas
(GONÇALVES; MARQUES; CARDOSO, 2012, p.10).

É importante frisar que o conceito de etnobiografia, como o de trajetória de vida, não


representa uma tentativa de produzir uma visão autêntica de dentro da cultura por privilegiar o
ponto de vista nativo e sim, uma narrativa, produto da interação entre pessoas situadas em
suas respectivas vidas e culturas. Assim, na produção das trajetórias de vida, como no da
narrativa etnobiografia, o texto final apresenta uma narrativa composta por “pessoas
personagem”, “estórias”, ao passo que não serão as pessoas em si que estarão presentes e sim
representações produzidas por elas próprias e pelo cientista social. Como qualquer construção
narrativa, a elaboração das trajetórias envolve um caráter de confabulação (CARDOSO, 2007)
entre relatos biográficos e etnografia.
Por ser produto dessa junção narrativa, biográfica e etnográfica, a trajetória de vida
expressa-se como resultado da tensão latente entre os constrangimentos sociais impostos por
uma determinada ordem social estabelecida e as ações dos indivíduos, considerando o
contexto de pesquisa e a alteridade estabelecida no encontro entre pesquisador e sujeito
biografado. Longe de querer nesta tese esgotar o debate em torno das ideias apresentadas
39

nesta seção, o texto prossegue com o desenvolvimento do argumento da trajetória de vida a


partir de um debate sobre percursos de vida, ação e estruturas sociais.

2.3 Trajetória de vida: produto da tensão entre ação e estrutura sociais.

Nesta seção pretende-se aprofundar a noção de trajetória, enquadrando-a a partir de


dois enfoques presentes na sociologia contemporânea, um mais preocupado em destacar como
os cursos de vida devem ser compreendidos a partir das estruturas sociais; outro conferindo
maior protagonismo aos próprios atores individuais, enquanto produtores da sua história e da
própria ordem social. Inicialmente abordar-se-á a perspectiva que parte da compreensão do
todo para as partes, que compreende o social mais a partir do movimento estrutura/indivíduo,
do que o contrário. Na sequência, realiza-se uma contraposição, a partir de premissas focadas
mais na compreensão do social a partir do movimento indivíduo/sociedade.

2.3.1 Trajetórias e estruturas societais

Ao reiterar o pressuposto básico de que as experiências de vida dos indivíduos não


ocorrem no vácuo, e sim incrustadas em estruturas sociais, seguindo essa linha de
argumentação bourdiana (BOURDIEU, 1983; 1989; 1996; 2000)6, os percursos de vida são
concebidos como produto de interações produzidas segundo um movimento dialético. Este
movimento ocorre entre a interioridade e a exterioridade da experiência social como a
“dialética da interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade.”
(BOURDIEU, 2000, p.163). E assim, a vida dos indivíduos é concebida como resultado da
relação que estes estabelecem a partir das condições materiais e simbólicas de existência por
meio das quais estruturam seus modos de agir e de estar no mundo; simultaneamente como
agentes de reprodução e de transformação social.
A contribuição de Bourdieu (2000) representa um avanço sobre a noção de
normalidade durkheimiana, a partir da qual as trajetórias individuais podem ser notadas como
atreladas a determinadas regularidades sociais observáveis e por meio das quais a sociedade
estrutura-se. De acordo com Bourdieu, a experiência social deve ser entendida, em parte,
como um processo de incorporação da realidade social objetiva, sob a forma de esquemas
disposicionais. Estes esquemas estarão depois na origem das percepções, práticas e escolhas

6
Enquanto aspecto estruturante dos percursos de vida individuais em sociedade destacam-se as clivagens
estabelecidas por gênero, bem como por faixas de idade, agrupamentos etários que expressam fases da vida.
40

realizadas pelos agentes sociais, como uma matriz de pensamento por meio da qual o
indivíduo terá como base de orientação de sua ação. A incorporação desses esquemas
assegurará, em larga medida, que as ações produzidas decorrerão em um quadro de tendencial
ajustamento à realidade com base na qual eles mesmos foram gerados. A teoria bourdiana
aponta para a necessidade de o pesquisador social ficar atento à detecção de regularidades
sociais e de padrões nos estilos de vida adotados pelos indivíduos, situando-os frente aos
sistemas de estratificação socialmente estabelecidos, no sentido de descortinar as lógicas da
ação a partir de sua gênese social.
No pensamento de Bourdieu (2000) a compreensão dos percursos biográficos é
indissociável do conceito de habitus que tem como hipótese central que os comportamentos
individuais sejam coerentes com as condições materiais e simbólicas por meio dos quais se
foram produzindo. Tal conceito, forjado pelo autor do pensamento antigo grego e medieval,
introduziu uma nova perspectiva sobre a teoria da ação frente ao estruturalismo antropológico
vigente até a década de 1960, considerando a capacidade inventiva dos agentes sociais frente
à reprodução social (WACQUANT, 2007). Segundo este autor o termo remonta ao
pensamento aristotélico e esteve associado à teoria da virtude como um estado estabelecido do
caráter moral que orienta as condutas humanas, traduzido para o Latim como hábitus –
particípio passado do verbo ter /possuir – por Tomás de Aquino em Summa Theologiae como
uma capacidade de aquisição de uma disposição durável e que orienta as ações. A noção de
habitus remonta também o pensamento durkheimiano, weberiano e de outros pensadores
modernos e contemporâneos, mas é Bourdieu quem se dedicou, com maior profundidade, ao
desenvolvimento deste como teoria social7.
De modo sintético, em Bourdieu (2000), o habitus é representado enquanto “sistema
de disposições duradouras”, tal conceitualização chama a atenção para os comportamentos
sociais passíveis de serem observados como recorrentes ao longo de um tempo e espaço e
assim produz o efeito “estrutura”, por meio da qual a sociedade se estabelece enquanto tal
perante os indivíduos. O autor, a partir deste conceito, atenta o cientista social à observação
das “permanências”, das singularidades da ação que possam ser classificadas como “sistemas
de comportamento” como habitus. Tal conceito indica para a prática da pesquisa social a
necessidade de se identificar tais regularidades sociais, notáveis pela observação do
comportamento dos indivíduos frente às suas condições sociais de existência. E, assim,
Bourdieu define o habitus, “[...] uma maneira de ser, um estado habitual (em especial do

7
Para um aprofundamento histórico sobre este conceito consultar Wacquant, 2007.
41

corpo) e, em particular, uma predisposição, uma tendência, uma propensão, uma


inclinação” (2000, p.163 – grifo nosso). Tal inclinação ou orientação, como prefiro tratar,
representa o efeito das relações sociais passadas sobre a capacidade de ação social realizada
pelos indivíduos. Nesta perspectiva, determinadas formas de agir em sociedade duráveis ao
longo de um tempo social e transponíveis entre gerações de pessoas que convivem em
condições de existência relativamente semelhantes e que configuraram como estilos de vida
socialmente estabelecidos, distintos e distintivos.
Em Bourdieu, o habitus apresenta-se enquanto uma espécie de mediador entre
indivíduo e sociedade, o conceito busca captar as vias pelas quais esta última se torna
depositada nas pessoas e o modo como se constituem as disposições duráveis ou “[...]
capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos
determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações do seu meio social existente” (WACQUANT, 2007, p.36). Tal conceito evoca
para si as marcas deixadas pela repetição cotidiana das práticas culturais ao longo do tempo
como referências estruturantes do comportamento dos indivíduos em sociedade. Estes, em
sociedade, relaciona-se ao caráter “transponível” do habitus ao longo do tempo, da dimensão
contextual e situacional – onde e como ocorre essa transmissão dos comportamentos sociais
duráveis – que explicita, como relevante, o contexto interacional no qual as experiências
sociais são produzidas.
A partir das ideias supracitadas, pode-se afirmar que os percursos sociais tracejados
por indivíduos assumem uma morfologia coerente à ordem social vigente, seja afirmando-a,
reproduzindo-a, negando-a, dificilmente seriam exóticos a ela, e por serem distintos e
distintivos expressam determinadas condições sociais. Situar o contexto no qual os indivíduos
agem, ao longo do tempo, implica situá-los perante os seus círculos sociais de referência
localizados no espaço social, físico e simbólico. A partir disto, a construção de trajetórias
implica aprofundar a análise sobre as condições de existência em que se desenvolve o
permanente processo de socialização e aculturação dos agentes sociais, e, no fundo, a sua
própria produção enquanto agentes.
Partindo do pressuposto de que a existência das sociedades depende da existência de
regularidades socialmente estabelecidas ao longo do tempo, sob a forma de comportamentos
sociais por parte dos indivíduos, Bourdieu (2000) elabora seu conceito de trajetória social.
Segundo este autor, tal trajetória é compreendida como os itinerários percorridos pelos
agentes segundo sua experiências de vida e de acordo com sua origem social e determinada
posição presente, antecedida por todas as outras posições sociais (leia-se, experiências e
42

situações sociais). Considerando o campo de pesquisa, esse percurso demarca nos indivíduos
memórias sobre experiências, situações e aprendizagens sociais que incluem as relações
familiares, de vizinhança e de trabalho, como experiências de socialização juvenil como o
hip-hop e os cultos de adolescentes e as células. Espaços de por meio dos quais eles acessam
os capitais econômicos, culturais, sociais e simbólicos socialmente valorados dentro e fora da
periferia. Considerando que, para o conjunto da sociedade, o acesso diferenciado a estes
capitais (econômico, cultural e simbólico) por parte dos indivíduos implica em uma
distribuição distinta dos agentes pelo espaço social global que, no caso desta tese, é
representado pelo contexto da RMBH.
Considerando que os percursos de vida dos indivíduos variam em função da
estratificação social pode-se afirmar que suas trajetórias expressam o pertencimento a uma
determinada classe social. Para Bourdieu (1989; 2007) o conceito de “classe social”
relaciona-se diretamente ao de “estrutura social” e “posição social”, para este autor a
sociedade estrutura-se por diferentes classes que ocupam posições distintas em tal estrutura.
Em Bourdieu (1989) “classe social” apresenta-se como uma construção teórica que se
operacionaliza pela identificação das relações entre agentes que ocupam posições similares ou
próximas no espaço social em função dos tipos de capitais que possuem conforme define o
autor.

Com base no conhecimento do espaço das posições, podemos recortar classes no


sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições
semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a
condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses
semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes. (BOURDIEU, 1989,
p.136).

A teoria bourdiana incita na pesquisa social a necessidade de situar os agentes perante


os sistemas de estratificação social, de identificar os efeitos de pertencer a uma mesma “classe
social” sobre seus percursos de vida. Segundo a perspectiva deste autor envolve os indivíduos
que se relacionam a partir de condições econômicas e culturais relativamente semelhantes em
uma sociedade. Tais condições encontram-se imbricadas umas nas outras, e assim “classe
social” em Bourdieu abrange uma diversidade de condições de vida que o autor sintetiza em
duas vertentes: (i) a objetiva, ao passo que compreende as relações sociais definidas pelas
condições materiais de existência; e ii) a simbólico representativas, ao passo que as distinções
de classe se exprimem nos hábitos e estilos de vida adotado pelos agentes sociais (CARLOS
43

SILVA, 2009)8. O conceito de classe expressa condições de existência distintas


experimentadas pelos indivíduos em sociedade e similitudes, e assim, pode-se reconhecer que
indivíduos de classes distintas tenderão a reagir de modos distintos aos processos de
reprodução e de mudança de funcionamento estrutural da sociedade como, por exemplo,
processos de urbanização, de industrialização ou qualquer outro que implique em mudanças
radicais nos modelos de produção material e das relações de trabalho na sociedade
(BOURDIEU, 1989).
O debate contemporâneo sobre as classes sociais no Brasil passa por divergências
epistemológicas demarcadas principalmente entre perspectivas economicistas versus noções
menos materialistas, que consideram a dimensão simbólica e cultural da experiência humana
em sociedade. No contexto brasileiro, destaca-se a leitura contemporânea da teoria bourdiana
feita por Jessé de Souza, que tem como foco o conceito de classe social e de desigualdade na
respectiva sociedade. Na obra “A ralé brasileira: quem é e como vive” este autor procurou
caracterizar, por meio da descrição de comportamentos sociais e das condições de existência,
os modos de vida das populações pertencentes as “classes populares” no Brasil. Embora
Souza realize uma análise histórica retrospectiva da desigualdade na sociedade brasileira e sua
estrutura de classes desde o final do século XIX, sua análise centra-se na primeira década do
século XXI. A classificação feita por Souza (2011), para definir a posição social ocupada
pelas classes populares brasileiras por “ralé”, ou como “batalhadores” em (SOUZA, 2010),
tem como objetivo lançar visibilidade sobre o conflito que demarca das relações de classe
nesta sociedade. A “ralé” é composta por pessoas de cor, de pele parda e preta principalmente,
representa uma classe social que abrange os moradores de favelas e de periferias, tais como os
jovens representados nesta tese. Por classe social Jessé define.

O que faz uma classe social ser uma classe, ou seja, o que faz um certo universo de
indivíduos agirem de modo semelhante não é, portanto, a “renda”, mas a sua
construção afetiva e pré-reflexiva montada por uma segunda natureza comum que
tende a fazer com que toda uma percepção do mundo seja quase que magicamente
compartilhada sem qualquer intervenção de intenções e escolhas conscientes. Esse
acordo nunca explicitado [...] só pode ser adequadamente percebido enquanto acordo
pelos seus “resultados práticos” (SOUZA, 2011, p.408 – grifo nosso).

Tendo como referência o conceito de “classe social” adotado por Souza (2011), pode-
se pressupor que os percursos, estilos de vida e projeções sociais aspiradas pelos jovens

8
Para um aprofundamento a respeito do conceito de “classes sociais” nas ciências sociais e humanas consultar:
Carlos Silva, Manuel. Classes Sociais. Condição Objectiva, Identidade e Acção Colectiva, Vila Nova de
Famalicão, Edições Húmus, 2009.
44

residentes nas áreas classificáveis como periferia ou favelas situadas na RMBH são
fortemente condicionados pelas tensões e conflitos sociais que subjazem as relações de classe
no Brasil. A vida dura é uma condição histórica que define o lugar da “ralé” na sociedade,
seja como agricultores pobres no campo ou como favelados nas grandes cidades (SOUZA,
2010). Os conflitos sociais que emergem nas periferias e não em outros lugares, aponta a
profunda desigualdade social que demarca as experiências sociais nestes contextos. As
trajetórias juvenis nesta tese são atravessadas pelo crescimento da violência na periferia,
experiência de vida distinta das de jovens de classes médias e altas, como também, áreas
urbanas mais prósperas e valorizadas. A experiência juvenil investigada nesta tese é marcada
pelas relações e condição de classe estabelecida na recente sociedade brasileira urbana, e, ao
mesmo tempo, as trajetórias dos indivíduos não podem ser interpretadas como resultado
exclusivo das condições de existência. Neste sentido o texto prossegue com um debate sobre
como as trajetórias de vida são interpretadas à luz das teorias sociais que privilegiam a
capacidade da ação individual frente à sua sociedade de origem a partir da qual aprendeu a
orientar seus modos de agir, de pensar, de ser e de estar no mundo.

2.3.2 Trajetórias, ação e projeto de vida individual

Se as condições de existência são, representadas pela ideia de estrutura social,


essenciais para contextualizar socialmente as trajetórias dos indivíduos ao longo de suas
vidas, o contrário também pode ser afirmado: as trajetórias são fundamentais para a produção
de conhecimento sobre a sociedade. É nesta perspectiva que os esforços para o
desenvolvimento desta tese foram empreendidos, buscar compreender a dimensão biográfica,
responsável em dar o tom de singularidade das experiências de vida frente as suas situações e
contextos sociais. A dimensão biográfica nas trajetórias não é compreendida apenas como
matéria prima para a composição da narrativa, e sim, como possibilidade de análise da ação
dos indivíduos frente às estruturas sociais. Ao considerar tal aspecto nas trajetórias, buscou-se
amparo teórico na sociologia de Anthony Giddens, em especial em seu conceito de agência. É
como se, em boa medida os percursos de vida resultassem da “agência” que representa a
capacidade de ação do indivíduo, na qual ele próprio decide os rumos a serem assumidos em
suas vidas, na medida em que “[...] poderia, em qualquer fase de uma dada sequência de
conduta, ter atuado de modo diferente” (GIDDENS, 1989, p.07 - grifo nosso). O “diferente”,
no sentido de contrariar ou não as expectativas sociais, ou de desenvolver projeções reflexivas
do futuro, por meio do conhecimento produzido das suas experiências passadas e presentes
45

simultaneamente. O termo “diferente”, corroborando por Giddens (1989), refere-se às marcas


que os indivíduos cravam na sociedade, ao conjunto de transformações que produzem sobre
esta última e que não implica necessariamente em negações da ordem estabelecida.
Tendo como referência a ordem social dominante, estabelecida na contemporaneidade
nas sociedades ocidentais, reconhecida em Giddens (1991) como “modernidade radicalizada”,
os indivíduos conduziriam suas vidas a partir do exercício reflexivo fundamentado em noções
de “risco” e de “confiança” em contraposição à noção de destino. O determinismo associado
às “sociedades tradicionais” vai dando lugar na “modernidade radicalizada” ao reforço e ao
incentivo de uma consciência reflexiva e à sua mobilização na ação, em um cenário
estruturado por incertezas (GIDDENS, 1991). Tal deslocamento é representado pela
sobreposição da noção de risco sobre a noção linear e determinística de destino, embora não
se deva, conforme o respectivo autor, necessariamente a vida no mundo atual ser de fato mais
arriscada do que a que se viveu no passado. O sentimento de risco relaciona-se mais à
incerteza vislumbrada em relação futuro que, sociologicamente, está vinculado ao modo como
os indivíduos integrar-se-ão aos processos de reprodução e de transformação da sociedade.
Para Giddens (1991; 2000) antes da “modernidade radicalizada” as expectativas em
relação aos rumos de vida estruturavam-se em percursos mais lineares, e assim, as trajetórias
podiam ser compreendidas como sendo relativamente previsíveis. A hipótese, colocada por
este autor, é de que na “sociedade de risco” haja uma maior tentativa, necessidade ou
oportunidade, ou tudo isso junto, por parte dos indivíduos em buscar a partir de sua ação ter o
máximo de controle possível sobre seus percursos sociais que refletirão nos rumos de vida
assumidos. Ao passo que, o risco estabelece-se enquanto dimensão estruturante da
experiência social, conforme defendido em (GIDDENS, 1991; 2000) as ações dos indivíduos
teriam como eixo estruturante a busca por escolhas que proporcionem segurança frente ao
cenário de incertezas na contemporaneidade.
A proposta expressa no conceito de “agência” em Giddens (1989; 1991; 2000)
centraliza-se na ideia de emergência, de modo mais radicalizado na contemporaneidade, do
indivíduo como agente autônomo sobre a produção da sociedade que, por isso, torna-se
diversificada, mais complexa e indecifrável aos indivíduos. É como se a situação de risco
provocasse uma tensão sobre o indivíduo forçando-o a buscar saídas.
Como considerar as trajetórias dos jovens do bairro Estrela D’alva, edificadas nesse
contexto de riscos, violências e resistência? Como imaginar as incertezas de uma vida
transcorrida em um contexto de periferia metropolitana, onde havia altas taxas de homicídios
e outras violências contra crianças, adolescentes e jovens, inclusive mulheres? Qual é o nível
46

de risco envolvido na experiência de vida dos jovens que entrevistei? Não há como mensurar
tudo isso. Ainda assim é preciso ter como referência que na periferia a incerteza sobre o
futuro apresenta-se relacionada também ao risco de vitimização pela violência.
A questão para ter-se em mente é a especificidade da “ação reflexiva” (GIDDENS,
2000) na periferia perante os “sistemas de disposições permanentes” (BOURDIEU, 2000)
edificado nas relações intergeracionais e ao longo de percursos de vida já traçados pelos
jovens face ao contexto de “modernidade radicalizada”. Onde o indivíduo é representado
como agente ou sujeito supostamente mais disposto que em tempos anteriores da história
humana a – como sugere o sentido bourdiano do termo – recorrer a uma prática ou ação
reflexiva (GIDDENS, 2000). Nesta perspectiva a reflexividade é tida como uma forma
privilegiada de estruturação da ação dos indivíduos9. De acordo com este autor a
“reflexividade” pode ser concebida também como resultado da relação entre “poder” e
“ação”, a “agência”, compreendida enquanto capacidade autônoma que os indivíduos
possuem de agir sobre a reprodução do sistema social. Ao mesmo tempo, frente aos sistemas
de estratificação das sociedades, a capacidade de responder reflexivamente às situações de
risco depende do acesso que os indivíduos dispõem em acessar informações, comunicar-se e
deslocar-se no espaço social que Giddens (1989, p.45) denomina por carga capacitante da
ação.
A seu modo, Giddens (1989; 1991), retoma a perspectiva weberiana ao conceber as
instituições sociais como resultado da ação de indivíduos e, assim, põe em evidência a
agência humana enquanto elemento de análise privilegiado para a compreensão do social na
contemporaneidade. Neste prisma considerar-se-á que os indivíduos produzem suas ações nas
instituições não apenas a partir das regras e condutas socialmente associadas a elas, e sim,
segundo seus interesses, visões de mundo e aspirações construídas socialmente. As relações
aqui dizem respeito ao envolvimento dos indivíduos entre si e com as instituições, ambos
responsáveis por lhes proporcionar existência social. Para dar conta da complexidade
representada pelo conceito de sociedade, Giddens propõe uma série de variações do conceito
de ação reflexiva que expressam seus diferentes tipos de reflexividade exercidos em
sociedade10.

9
Para Giddens, “todo ser humano é reflexivo no sentido de que pensar a respeito do que se faz é parte integrante
do ato de fazer, seja conscientemente ou no plano da consciência prática. A reflexividade social se refere a um
mundo que é cada vez mais constituído de informação, e não de modos preestabelecidos de conduta. É como
vivemos depois que nos afastamos da tradição e da natureza, por termos que tomar tantas decisões
prospectivas” (2000, p.87).
10
Giddens (1991) a partir de diversas categorias diferencia tipos ou formas de ação reflexiva expressos na
“sociedade radicalizada” tais como reflexividade da sociedade, reflexividade social, reflexividade
47

A reflexividade estabelece-se enquanto recurso cujo fim último é a administração ou o


enfrentamento dos riscos e das oportunidades com os quais os indivíduos defrontam-se dia a
dia (GIDDENS, 1991). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da capacidade reflexiva
apresenta-se como o poder de resposta dos indivíduos às condições de existência a que estão
submetidos. Esta última depende, segundo ele, do acesso que os indivíduos dispõem às
informações especializadas socialmente, difundidas em contextos de “modernidade
radicalizada” e marcadas pelo exponencial aumento de conhecimentos propiciado pelos
sistemas periciais, estabelecidos pela modernidade, conhecimentos que são abordados como
cargas capacitantes da ação dos indivíduos (GIDDENS, 1991). O autor destaca ainda a
questão da difusão informacional de conhecimentos especializados pelas mídias como uma
característica estruturante da sociedade radicalizada. Pois, disponibilizam aos indivíduos uma
diversidade de experiências socializadoras que extravasam, e muito, o seu mundo cotidiano e
alimenta de sentidos o agir social em tal mundo.
Na perspectiva de Giddens (1989), os percursos de vida devem ser equacionados como
resultado da monitorização reflexiva da ação, para a qual concorre, em simultâneo, a
consciência prática e a reflexiva. Isso, contudo, depende sempre das competências que os
atores sociais adquirem para racionalizar as suas ações perante os quadros de ação. A
“consciência prática” apresenta-se como um nível de consciência acionado em situações
rotinizadas, mais condicionado pelas condições objetivas de existência que é invadida por
saberes ou conhecimentos especializados. Giddens não deixa de sublinhar, como se vê, o
efeito por vezes profundo ou mesmo inapelável das condicionantes sociais sobre as trajetórias
sociais dos indivíduos, embora destaque sua capacidade de racionalização sobre a produção
da ação social, compreendida como processo contínuo de “[...] entendimento teórico que os
indivíduos mantêm sobre as bases da sua atividade” (GIDDENS, 1989, p.04).
A administração reflexiva da vida, segundo Giddens (1991), tem relação com outros
dois conceitos centrais na sua abordagem da “modernidade radicalizada” e com a
problemática da ação estratégica do sujeito nesse quadro social e histórico: os conceitos de
“estilo de vida” que se opõe à noção de “modo de vida” mais característico de sociedades
“tradicionais”. Nas sociedades modernas o ritmo de mudança e de transformação da vida
social cujas “as ondas de transformação social penetram através de virtualmente toda a
superfície da Terra” (GIDDENS, 1991, p.14). Além disso, o autor defende que a natureza das
instituições modernas não encontra correspondência em períodos históricos precedentes, de

institucional, reflexividade prática, reflexividade discursiva, entre outras.


48

modo que a contemporaneidade produziu novas formas de relações sociais fundamentadas nas
noções de “risco” e “confiança”.
Embora os estilos de vida sejam relacionados às condições de existência, normas e
expectativas sociais, decorrem também de exercícios reflexivos desenvolvidos pelos sujeitos,
no sentido de darem forma a uma determinada narrativa de autoidentidade, a uma
determinada idealização de si. Por seu turno, os projetos de vida são elaborados como uma
espécie de busca por aproximação a um estilo de vida idealizado que, em alguns casos,
corresponde também a uma concepção idealizada que o indivíduo projeta de si mesmo, neste
caso, orientada para o futuro, tendo em conta o horizonte de possibilidades socialmente
estabelecido, sem por ele ser determinado.
Na tese de Giddens (1989), os agentes sociais parecem possuir, nas sociedades da
modernidade radicalizada, cada vez mais informações, orientações reflexivas e disposições
para atuar sobre as condições de existência em que se encontram. Mas ao mesmo tempo, a
ação dependerá da capacidade e do poder que os indivíduos possuem para criar uma
“diferença” em relação ao estado de coisas ou ao curso de eventos preexistentes (GIDDENS,
1989). Novamente, a partir da noção de “agência”, indivíduo e estrutura confrontam-se a
partir de limites, muitas vezes quase intransponíveis, que estabelecem parâmetros sobre os
desenhos, as formas e os sentidos sociais esperados/projetados para as trajetórias de vida,
conforme sua condição ou situação de classe na sociedade.

2.3.3 Trajetórias: juventude, fases e etapas da vida

Outros aspectos sociais permeiam a construção das narrativas realizadas pelos sujeitos
sobre si mesmos e sobre suas experiências no mundo, afetando a relação intersubjetiva
envolvida na pesquisa de campo - é o caso da fase de vida na qual o indivíduo se situa -
aspecto especialmente relevante para o presente estudo. Tal condição social pode ser
facilmente observada na sociedade, já estando relativamente consolidadas no senso comum,
de modo que as pessoas não estão livres dos constrangimentos sociais relativos à
estratificação etária da sociedade em que vivem. Os indivíduos ocupam status diferentes na
sociedade em função da variável “anos de idade” que, de certo modo, traduz-se como “tempo
de vida”. Ao longo do “tempo de vida” os indivíduos agem, realizam trânsitos e percursos
sociais, desenvolvem maneiras de agir perante os processos de reprodução social. Espera-se
que essas maneiras sejam relativamente coerentes com a parcela que possuem de “tempo de
vida”. A idade determina o papel desempenhado pelos indivíduos na divisão social do
49

trabalho; o “tempo de vida” é a referência para determinar o “tempo” da aposentadoria, bem


como de ter o direito de ingressar em determinados cargos ou funções laborais. O ingresso na
carreira militar, por exemplo, na educação escolar básica, entre tantas outras formas de
participação social tem como base a segmentação etária representada pelas mudanças
biológicas do corpo, desde o nascimento, sua respectiva capacidade produtiva, até a morte
(PAIS, 1991).
De um modo geral, a análise sociológica incorpora o pressuposto de que os modos de
organização das atividades produtivas e a forma como as pessoas participam da vida social é
variável em função da fase da vida em que se situam os indivíduos. A existência de uma
sociologia da infância, da juventude, da velhice evidencia isto (PAIS, 1991). A questão
colocada por Pais (1991) pode ser notada, em geral, em campos mais diversos da produção de
conhecimento na sociedade, desde surveys de pesquisas de intenção de voto ou de tendências
de mercado até os censos demográficos produzidos pelos órgãos governamentais. O cálculo
da idade (“tempo de vida”) orienta a produção no campo do Direito e as políticas públicas em
geral são orientadas pelas diferenças etárias, que servem como demarcadores do tempo de
existência dos indivíduos e dos papeis que devem exercer socialmente, acarretando
expectativas em torno de seus comportamentos. Traduzido em Pais (1991), os indivíduos são
constrangidos a agirem de forma coerente à fase da vida em que se encontram no aqui e
agora, perante a fase que atravessam, do status etário, social e político do qual desfruta no
“tempo presente” como criança, adolescente, adulto ou idoso.
Do ponto de vista sociológico, importa considerar a juventude como uma fase da vida
na qual os indivíduos preparam-se de modo mais prático e concreto para desempenhar
funções e ocupar posições ou estatutos sociais típicos da vida adulta, variando entre as
sociedades e segmentos em seu interior. As faixas de idade demarcam regularidades sociais
que expressam, entre distintas gerações, modos de sentir e de participar da vida coletiva,
classificadas como fases da vida. Convencionalmente designadas desde a modernidade por
“infância”, “juventude”, “idade adulta” e “velhice” (PAIS, 1991; 2010)11, as fases da vida
representam referências socialmente partilhadas em relação a organização do curso de vida,
de planificação de determinados tipos de participação social dos comportamentos individuais
esperados ou projetados tendo como base o tempo cronológico de existência. Embora essas
padronizações não impeçam os indivíduos de experimentarem singularmente seus percursos
de vida, elas informam sobre o acesso aos direitos e deveres político-jurídicos e, assim,

11
Às idades da vida sempre estiveram associadas a normatividades sociais que representam demarcadores, ritos
de passagem, entre as várias fases da vida (PAIS, 2010).
50

representam marcos ou referências sociais como ritos que conferem aos indivíduos mudanças
de estatuto social.
Se as idades da vida estão associadas a normatividades sociais, estabelecidas
socialmente no que se refere às sequências das várias fases da vida como dos marcadores de
passagem entre elas, a noção de curso de vida tem como referência tanto as dimensões
individuais como as geracionais envolvidas nas trajetórias sociais dos indivíduos.
Considerando as premissas de Bourdieu (2000), nas sociedades os comportamentos sociais
esperados dos indivíduos são relativamente estruturados em torno de normatividades
estabelecidas pelo habitus e a organização do curso de vida em torno das fases representa uma
forma de expressão da “estrutura” sobre estruturação das experiências sociais dos indivíduos.
Embora as trajetórias não sejam determinadas por normas sociais, os comportamentos
individuais o são. Assim, os comportamentos são informados pelas normas que estruturam
socialmente ritos, expectativas e responsabilidades enquanto fases da vida (PAIS, 1991;
2010). Estas, por sua vez, demarcam as diferenças de participação social entre gerações
demográficas- passíveis de identificação por meio de agregados de dados estatísticos sobre
indivíduos, cujas idades situam-se dentro de certos limites culturalmente definidos como tais.
Ainda segundo Pais, as sociedades apresentam uma grande diversidade de condições
históricas, econômicas e culturais envolvidas na determinação das fronteiras estabelecidas
entre as fases da vida.
Reitera-se que as categorias etárias correspondem a construções sociais e não podem
ser reduzidas a meras variáveis biológicas em si mesmas. Deste modo, a noção de trajetória
aqui empregada afina-se à ideia de curso de vida ao invés da de ciclo de vida, esta última faz
referência a uma dinâmica biológica e previsível. Os cursos de vida referem-se à “[...]
trajetória social do indivíduo ao longo de sua vida, metaforicamente, ordenada através da
idade” (FERREIRA; NUNES, 2010, p.39). Em acordo com estes autores, o sentido
biologizante pressupõe o ordenamento da vida por meio de uma temporalidade cíclica e linear
projetada sobre a experiência juvenil e, ao mesmo, tempo reconhece que a idade não é um
atributo per se determinante desta.
Em articulação com o que foi dito no bloco anterior, a condição juvenil representa
uma fase da vida sociologicamente notável na sociedade da “modernidade radicalizada”
(GIDDENS, 1991); trata-se de uma fase intermediária ao considerarmos o curso de vida do
nascimento à morte, ou uma fase transitória, quando situada entre as fases “infantil” e
“adulta” (PAIS, 2010). Tendo como referência as premissas supracitadas, a condição juvenil
apresenta-se enquanto fase transitória entre fases. Arvora-se assim, numa condição peculiar
51

de fronteira na qual o indivíduo encontra-se embrenhado num processo contínuo e mais


intenso que os vividos antes, em relação à construção de expectativas sobre o “vir a ser”.
Trata-se por isso de um tempo no qual o sujeito tende a uma maior reflexividade e busca por
ações autônomas, com a finalidade de se afirmar socialmente enquanto indivíduo membro e
agente de reprodução da sociedade.
Em meio à pluralidade de possibilidades de vivenciar as experiências juvenis, da
indeterminação presente no cenário contemporâneo que se configura como imprecisão e
incerteza (GIDDENS, 1991) os demarcadores de passagem da transição entre infância e fase
adulta (PAIS, 2009) tornam-se mais imprecisos e menos determinantes sobre os cursos de
vida, mas, nem por isso, menos importantes para sua análise. Se na modernidade
“radicalizada” os percursos de vida tendem a ser menos lineares e previsíveis, pode-se colocar
como hipótese que estão menos determinados pelo cumprimento de metas ou rituais sociais
pré-estabelecidos. Ao mesmo tempo, a reprodução da sociedade implica a integração dos
indivíduos através de rituais como o casamento, a integração econômica pelas dinâmicas de
trabalho e produção, a crença em divindades e mitos religiosos, como expõe as trajetórias de
vida tratadas nesta tese.
É necessário considerar que as experiências de vida dos indivíduos são inapreensíveis
em sua totalidade, de que são passíveis de serem selecionadas segundo interesses específicos
a partir dos quais se busque elaborar uma narrativa. A construção das trajetórias juvenis na
presente tese envolve, portanto, a seleção de determinados percursos sociais, de experiências
específicas consideradas úteis para a compreensão da condição social mais ampla, que
envolve a experiência juvenil metropolitana e a transição para a vida adulta. Segundo
Machado Pais (1991, p.945) tal é caracterizada na contemporaneidade por determinados
demarcadores de passagem como a “[...] inserção económica, independência económica,
constituição de lar próprio, comportamentos em relação ao consumo, ao dinheiro e ao lazer,
comportamentos familiares, estratégias matrimoniais e respectivos sistemas de valores”. De
um modo geral, todos esses demarcadores indicam a constituição de uma relação de
autonomia do indivíduo, de inserção e independência econômica que condizem com
experiências relacionadas a uma emancipação por meio do qual os jovens supostamente
adquirem as credenciais para sua integração ao mundo adulto.
Se quando crianças, geralmente, são os pais a assumir as funções de manutenção da
vida doméstica, quando o jovem torna-se adulto há uma carga simbólica que ele assume como
provedor do seu mundo, como agente de seu “destino”. Sua trajetória é então orientada pelos
itinerários sociais, bem como por rumos assumidos a partir de ações deliberadas pelos
52

indivíduos. Considera-se que a trajetória juvenil representa um ponto chave para a


compreensão da sociedade. O “destino” dos jovens reflete o destino das gerações anteriores,
mostra o resultado dos processos sociais que são contínuos no tempo, a “reacomodação”
geracional na estrutura social existente. Na sociedade contemporânea essa reacomodação é
tida como menos determinada, embora não esteja livre dos constrangimentos estruturais.
Tendo em vista as considerações tecidas até aqui, considera-se que a trajetória de vida
seja um constructo elaborado a partir de um conjunto específico de percursos sociais, narrados
pelos sujeitos biográficos durante entrevista, e que para os propósitos da tese, foram
selecionados em função dos objetivos de pesquisa e de questões apontadas pela pesquisa de
campo, etnografia e reinterpretados pelo cientista social. A pré-seleção dos tipos de percursos
sociais a serem investigados teve como referência o fato de tratar-se de trajetórias de pessoas
socialmente classificadas como “jovens”, a partir do pressuposto teórico de que os “jovens”
são socialmente classificados não apenas pelo atributo etário, e sim por experiências de vida
específicas, tipos de interação e formas de integração social que demarcam o sentido da
participação juvenil nos processos de reprodução e mudança da sociedade (PAIS, 2009).
Ainda segundo as premissas deste autor, nas sociedades contemporâneas as experiências
juvenis, embora diversas e dependentes dos contextos e contingências a partir das quais se
edificam, são demarcadas por percursos sociais específicos que envolvem geralmente relações
escolares, familiares, afetiva entre pares, laborais, sexuais, culturais e comunitárias. Tais
percursos são relevantes para compreensão da condição juvenil que, segundo a perspectiva
trazida por Pais (2009), delineia socialmente etapas da transição para a vida adulta12.

[...] não obstante, independentemente de as fronteiras entre as várias fases de vida se


encontrarem sujeitas a uma crescente indeterminação, continuam a ser valorizados
determinados marcadores de passagem entre as várias fases de vida, havendo um
reconhecimento genérico quanto às idades mínimas para se ter relações sexuais,
deixar a escola, casar ou ter filhos. (PAIS, 2009, p.374).

Além do mais, reconhece-se a juventude como uma etapa crucial da vida individual e
social, “[...] onde se joga toda uma parte dos modos e vias da reprodução económica, social e
cultural de uma sociedade” (PAIS, 1991, p. 946). Nessa perspectiva a “juventude” não
representa apenas um processo de formação individual/coletiva no sentido da pessoa vir a

12
A leitura do conjunto de leis (Artigo 227 da Constituição Brasileira) e estatutos (ECA, E. do Idoso, E. da
Juventude) indicam a fase adulta como um período de autonomia e de auto-responsabilização por seus
próprios atos, representando em tese a condição na qual o indivíduo possui um estatuto social distinto dos
demais. O jovem, por outro lado, representaria uma condição instável, de fronteira, entre o mundo infantil e o
mundo adulto. A juventude tem sido compreendida como fase de transição que, cada vez mais, nas sociedades
contemporâneas, assume um sentido de incerteza e de tensão em relação às possibilidades de vida adulta
(PAIS, 2009).
53

atingir ou não um determinado grau de “maturidade”, de “socialização” ou de formação


esperada do self, mas uma etapa socialmente delicada por envolver a transmissão dos capitais
econômicos e simbólicos entre as gerações de distintas classes na sociedade. Sob esse prisma
reconhece-se que a “juventude” representa uma etapa ou fase da vida decisiva no processo de
produção e de reprodução das desigualdades em sociedade, sendo por isso, uma fase na qual
afloram com mais intensidade conflitos sociais estabelecidos a partir das tensões entre as
classes em torno dessa transferência dos capitais aos jovens.
A noção de trajetória juvenil é então compreendida a partir de um conjunto de
percursos sociais compostos de experiências de vida expressas por meio de narrativas que
expõe rumos e projetos de vida assumidos pelos indivíduos jovens. Os rumos ou direções
assumidas nas trajetórias alteram ou ratificam sentidos assumidos pelos indivíduos frente aos
seus percursos e, assim são compreendidos como produtos da ação reflexiva e projetada pelos
indivíduos frente às possibilidades de vida e representadas por um “futuro possível e
desejável”. Os percursos indicam rumos tomados e direções que traduzem “projetos de vida”
inscritos na trajetória dos sujeitos. A noção de “futuro” mais adotada para compreensão das
trajetórias juvenis não se fundamenta em especulações decorrentes de questões colocadas aos
jovens por perguntas ao final de uma entrevista, como: “o que você pretende fazer de sua
vida?”. Tal, relaciona-se à noção de “projeção para o futuro” que representa na prática os
pontos inflexão ao decorrer dos rumos de vida que expressam projetos assumidos pelos
jovens durante um determinado tempo de suas vidas.
Na proposta de Schutz (1979), o conceito de “projeto de vida” remete a um plano de
ação que um indivíduo procura realizar, em relação a alguma esfera de sua vida (laboral,
escolar, afetiva, entre outras), um processo dinâmico, relativamente indeterminado, a partir
das quais os percursos de vida são trilhados. Segundo as premissas deste autor as ações dos
indivíduos têm como objetivos, entre outros, a busca de um “futuro possível” fundamento por
uma “visão de futuro” socialmente construída e subjetivamente percebida. Tais “visões de
futuro” configuram-se segundo as contingências da vida prática e as conjunturas
macrossociais a partir das quais os indivíduos reconhecem seu “mundo da vida”. Trata-se, no
fundo, de projeções fundamentadas nos percursos já trilhados pelos indivíduos em tempos
passados e vislumbradas a partir de exercícios retrospectivos e prospectivos coerentes com os
sentidos subjetivos e objetivos que as experiências sociais assumem para os sujeitos ao
decorrer de seus percursos de vida. Para o estudo dos aspectos que se encontram na base do
desenvolvimento dos projetos de vida, Shutz (1979), propõe a distinção analítica entre os
motivos "in-order-to” e os motivos “because-of”. O "in-order-to” representariam os motivos
54

passíveis de explicitação por meio de documentos ou registros como sugere a noção de


dimensão objetiva da existência na teoria bourdiana. Já os “because-of”, grosso modo, estão
na ordem do sujeito, da particularidade das suas experiências de vida subjetivamente
elaboradas. Enfim, o conceito de projeto de vida em Shutz (1979) representa também um
esforço de análise que busca equalizar a tensão entre indivíduo e coletividade por meio dos
quais os “jovens” elaboram suas trajetórias.
Os rumos de vida podem ser compreendidos como resultados de aspirações em
momentos específicos e traduzem objetivos percebidos como passiveis de serem perseguidos
pelos indivíduos. O “projeto de vida”, longe de ser produto de um cálculo matemático ou
fundamentado em um processo histórico linear, representa a orientação assumida nos
percursos trilhados e resultante de processos complexos e dinâmicos que incluem variáveis
subjetivas e estruturais. É certo que a noção de “projeto de vida” pode assumir perspectivas
muito diversas, opostas, exóticas, quando reconhecemos a pluralidade de contextos, situações
e atributos sociais dos indivíduos que, no interior de uma sociedade, situam-se numa mesma
“fase da vida” remetendo, no caso desta tese, ao conceito plural “juventudes”. Nesse sentido,
a elaboração dos rumos de vida é elemento constituinte das trajetórias narradas, indicando os
sentidos sociais assumidos nos percursos traçados pelos sujeitos. Tais elaborações dependem
sempre dos campos de possibilidades expressos pelos contextos socioeconômico e culturais
que circunscrevem as experiências juvenis.

2.4 Os roteiros de observação e de entrevista: a construção dos instrumentos de pesquisa

O desenvolvimento de uma pesquisa, como no caso da etnográfica, depende mais de


esforços de pesquisa capazes de tornar apreensível ao olhar o ambiente urbano, físico e social,
do que em função de fatores não controlados por quem faz a pesquisa. Depende do esforço de
aproximação entre universos relativamente distintos, do pesquisador e dos sujeitos
pesquisados. Essa proximidade permite a interlocução necessária para que a entrevista alcance
a profundidade que exigem as questões de pesquisa. Essa aproximação não é fruto de relações
espontâneas, resultam da criação de instrumentos de pesquisa capazes de mediar a relação de
pesquisador com o campo. O primeiro desses instrumentos consistiu em um roteiro de
observação que descrevo brevemente a seguir.
55

2.4.1 Roteiro de Observação

O roteiro teve por objetivo orientar a observação do espaço para aspectos definidos à
priori e que pudessem contribuir para a leitura da paisagem urbana e social da periferia
pesquisada. O roteiro foi organizado a partir dos seguintes tópicos: 1º. Aspectos físicos
(topografia, presença de córregos ou riachos; material/ acabamento externo das construções e
vias públicas; vegetação); 2º. Equipamentos/ Instituições (praças, campos de futebol, centro
cultural, posto de saúde, escolas, igrejas, assistência social, ONGs, associação de moradores,
delegacias, batalhões, postos da polícia militar e comércio local); 3º. Mobilidade Urbana
(aspectos relacionados à questão do transporte público: horário dos ônibus e uso e percepção
dos moradores a respeito); 4º. Vida Social (espaços que concentram interações juvenis,
centros de vida social no bairro: rua, igreja, bar, praça, entre outros; em diferentes turnos -
manhã, tarde, noite - dia de semana/final de semana). Por fim, a observação considerou
também a percepção corpórea sensorial, através da qual procurei atentar ao aroma dos espaços
e à dimensão sonora - barulhos, zonas de poluição sonora, zonas de silêncio.

2.4.2 Roteiro de entrevista

Em relação à construção do roteiro de entrevista busquei seguir a tradição dos estudos


qualitativos e biográficos, conforme revisão feita por Mallimaci e Béliveau (2006). Tais
trabalhos privilegiam as entrevistas abertas e orientadas por uma guia composta por temas
pré-definidos. Por guia, entendo um roteiro bastante resumido, somente com ideias chave que
servem como referência na condução da entrevista. A intenção desse tipo de roteiro é de
gerar maior liberdade de expressão através da fala, o que deixa o entrevistado livre para
abordar assuntos que ele julgar pertinente. Trata-se de um estilo de entrevista não dirigida,
como coloca Jean Poupart (2008), ao discorrer sobre métodos qualitativos nas ciências
sociais.
Para a presente pesquisa, de construção de trajetórias juvenis, adotei como os
seguintes temas como referência, roteiro, a partir do qual orientei o desenvolvimento das
entrevistas biográficas: i) as memórias da infância; ii) as relações familiares; iii) as atividades
de lazer; iv) as relações escolares; v) as relações laborais; vi) vida religiosa; vii) as relações
com as dinâmicas de violência e crime instituídas no território do bairro; viii) vida social
comunitária; ix) trânsitos metropolitanos; x) projetos de vida. Busquei, a partir de tais temas,
apreender aspectos sociais relativos às relações dos indivíduos no bairro, pensadas também a
56

partir de seu contexto metropolitano.


Durante a pesquisa foram realizadas também entrevistas com pessoas não-jovens,
como moradores mais antigos do bairro e lideranças culturais, religiosas e políticas atuantes
no contexto temporal, cultural e histórico de realização da etnografia. Tais lideranças, de um
modo geral, eram pessoas residentes no bairro há mais de dez anos, ou seja, pessoas que
vivenciaram antes e junto às pessoas da geração jovem as transformações sociais ocorridas na
periferia nos últimos trinta tais como: i) memórias dos tempos da urbanização do bairro, desde
a época do buracão aos dias atuais; ii) o contexto político do bairro; iii) a violência nas
décadas anteriores e a expansão do narcotráfico local nos anos 2000; iv) percepções sobre a
vida social na periferia e suas populações jovens; v) vida religiosa e associativismo
comunitário; vi) relação entre moradores e representantes políticos e a produção de políticas
públicas direcionadas para as populações das periferias.
Partindo do pressuposto de que a entrevista representa também uma oportunidade de
suscitar discursos reflexivos por parte dos entrevistados, busquei ouvir mais e interferir
menos, e assim, possibilitar que outras questões, não previstas no roteiro, pudessem emergir.
A ideia foi mesmo de, conciliar os objetivos da pesquisa com o respeito a expressividade
daqueles que, por algum outro motivo que não controlo através da pesquisa, cederam tempo e
atenção, que se traduziram na forma de relatos e de confidências sobre instantes preciosos de
suas vidas.
57

3 METROPOLIZAÇÃO, TERRITÓRIO E VIDA SOCIAL.

Este capítulo apresenta breves notas sobre a expansão urbana brasileira ao longo dos
últimos 40 anos na RMBH, objetivando situar transformações e permanências observadas nos
padrões de ocupação demográfica e de desenvolvimento econômico e urbano na região. O
texto aborda aspectos relativos aos impactos das políticas de metropolização para a
reconfiguração da desigualdade social brasileira, tendo como foco a ocupação do espaço pelas
populações e sua relação com o desenvolvimento das atividades econômicas e, ao mesmo
tempo, permitindo a contextualização do ambiente macrossocial e história recente, em meio
ao qual foram edificadas as trajetórias juvenis apresentadas na tese. O capítulo seguinte
apresenta o contexto local da pesquisa de campo, o bairro Estrela D’alva, por meio de uma
retrospectiva dos processos da ocupação do bairro até o momento da pesquisa de campo
levando em consideração dados censitários e outros documentos, bem como entrevistas com
moradores mais antigos, contrapostas com descrições dos jovens e de outros agentes, como
lideranças religiosas e comunitárias.

3.1 Notas gerais sobre urbanização e a metropolização: o caso brasileiro visto da Região
Metropolitana de Belo Horizonte

Apesar de já existir uma rede de cidades desde o período colonial, somente em 1970 o
Brasil alcançou superioridade de população vivendo em áreas urbanas em relação às áreas
rurais, 55,9% (IBGE, 2014). A expansão de grandes aglomerações urbanas, que já ocorria
desde 1940, foi mais intensa no país entre as décadas de 1960 e 1980. Estima-se que neste
período cerca de 43 milhões de pessoas saíram do campo em direção às cidades, incluído o
efeito indireto da migração representado pelos filhos de migrantes rurais nascidos em
contexto urbano (BRITO, 2006). Tratou-se de um período de consolidação de uma política de
desenvolvimento econômico que privilegiou a formação de estruturas produtivas urbanas e
industriais articuladas por meio de uma rede urbana altamente polarizada e hierarquizada
pelas aglomerações metropolitanas (BITOUN; MIRANDA, 2009). Data desta época a
institucionalização política dos territórios metropolitanos por meio da Lei Complementar nº.
14, de 1973, que estabeleceu a delimitação de oito regiões metropolitanas (RM): São Paulo,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém. A RM do Rio de
Janeiro foi institucionalizada em 1974 a partir da Lei Complementar nº. 20, na fusão do antigo
Estado da Guanabara ao Estado do Rio de Janeiro. Destas nove RMs, três (SP, RJ e BH)
58

situavam-se na macrorregião Sudeste do país, duas na macrorregião Sul (POA e CTBA), três
na Nordeste (SSA, REC, FOR), uma na Norte (BEL) e nenhuma na macrorregião Centro-
Oeste.

Imagem 01 - Mapa da divisão político territorial das macrorregiões e unidades da


federação - Brasil - 2015

Fonte: IBGE (2015).

A expansão das estruturas econômicas metropolitanas foi mais intensa nas RM’s
situadas na macrorregião Sudeste (Imagem 01), antigos polos econômicos de produção
cafeeira e agropecuária que passaram a polarizar os novos setores da economia brasileira
urbana (BRITO, 2006). Essa polarização acentuou o desequilíbrio econômico já existente
entre as grandes regiões brasileiras e, em 1970 a participação relativa da região Sudeste para o
Produto Interno Bruto (PIB) nacional era de 62,7%. Enquanto as macrorregiões Sul, Norte,
Nordeste e Centro Oeste apresentavam os seguintes valores respectivamente 16,7%, 2,3%,
11,7%, e 2,57%. Esse quadro sofreu poucas alterações ao longo das décadas seguintes, com
suave tendência de desconcentração. Em 2010 a região Sudeste contribuiu com 56,4% do PIB
e as demais regiões com 16,6%, 5,0%, 13,1%, e, 8,9%, consecutivamente (IBGE, 2014). Esse
desequilíbrio evidenciou-se também na distribuição demográfica no território urbano, as
RM’s da região Sudeste eram, e ainda são, as mais populosas. Em 1970 residiam cerca de
8.113.873, 6.879.183 e 1.619.792 habitantes nas RM’s de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
59

Horizonte e, em 2010, 19.683.975, 11.835.708 e 4.883.970 habitantes respectivamente.


O adensamento demográfico das áreas metropolitanas ocorreu, sobretudo, em função
de “migrações internas frutos dos desequilíbrios econômicos e sociais nas regiões de origem,
e acabavam por reproduzi-los nas regiões de destino” (BRITO; SOUZA, 2005, p.49). Foi a
partir dessa constatação, da persistência das desigualdades em meio às mudanças
modernizadoras do ponto de vista técnico e socialmente conservadoras, que diversas
abordagens nas ciências sociais e humanas buscaram desvelar os processos socioespaciais que
contribuíam para a emergência das contradições urbanas13. Destacam-se as abordagens
voltadas à compreensão da organização social dos territórios metropolitanos que
consideraram o modo como populações migrantes fixaram-se nas metrópoles. Essas
abordagens levaram em consideração o acesso à moradia, ao trabalho e aos serviços urbanos
básicos, bem como os efeitos das políticas habitacionais e de geração de emprego sobre este
processo (CARDOSO, 2008; KOWARICK, 1983; PORTELA; VESENTINI, 1988;
RIBEIRO, 2004; SANTOS, 2005; SOUZA; BRITO 1998). Tendo como referência as
contribuições trazidas pela literatura sobre urbanização brasileira, enunciarei algumas
perspectivas que sintetizam consensos gerais alcançados pelos autores acerca deste tema e que
se afiguram particularmente indispensáveis para o desenvolvimento do argumento da tese.

3.2 A metropolização a e fragmentação da vida social no território

A primeira característica relevante da urbanização, notadamente reconhecida pela


bibliografia, refere-se ao descompasso entre o volume do adensamento demográfico e da
oferta de postos de trabalho existentes. Na RMBH, como em outras grandes regiões
metropolitanas, o inchaço populacional não foi acompanhado de uma expansão da estrutura
produtiva e econômica. Tal conjuntura, inevitavelmente, produziu segmentações entre suas
populações residentes, de modo que as parcelas ficaram situadas em posições instáveis em
relação ao acesso ao trabalho formal, mais distantes dos postos com melhor remuneração e
que gozavam de prestígio social14, e tiveram comprometidos seu acesso à moradia. De um
modo geral, os níveis de rendimentos acessados por meio do trabalho, para a maior parcela
dos postos disponíveis aos migrantes, eram incompatíveis com o custo de vida encontrado por

13
Segundo dados censitários, em 1960 os 10% mais ricos detinham 39,6% da renda nacional enquanto os 40%
mais pobres, 11,3%. Em 1980 esses valores eram 51% e 8,8%, respectivamente (IBGE, 1990).
14
De acordo com a perspectiva de Bourdieu (2007) as estruturas produtivas metropolitanas podem ser
interpretadas como socialmente seletivas, nas quais são forjadas ideologias sobre a igualdade de
oportunidades.
60

eles nas metrópoles, principalmente para morar em espaços dotados de infraestrutura urbana e
de serviços (CALDEIRA, 1984; CARDOSO, 1978; DURHAM, 1978; RIBEIRO, 2000). Essa
conjuntura pressionou parte dessas populações a se deslocar para as zonas pouco urbanizadas
e de escassa oferta de serviços, situadas nas bordas do núcleo metropolitano, áreas que foram
denominadas como periferias. Tal conjuntura, macrossocial, e suas dinâmicas econômicas,
políticas e culturais contribuem para a compreensão da morfologia social metropolitana e dos
tipos de fragmentação entre relações dos grupos socialmente distintos em seu território.
Em relação à organização territorial das relações sociais metropolitanas, prevaleceram,
entre as abordagens produzidas até a década de 1990, enfoques que identificaram-na a partir
de um padrão de segregação fundamentado na dicotomia centro e periferia (CALDEIRA,
2000; VALLADARES, 2000). Este padrão não era o único percebido pelos autores, e sim
aquele apresentado como mais significativo para a compreensão socioespacial das áreas que
formariam as grandes aglomerações urbanas. Na paisagem urbana da RMBH, por exemplo,
essa dicotomia centro-periferia materializou-se, a partir de políticas e dinâmicas
mercadológicas, por meio de padrões urbanísticos distintos entre os espaços centrais e os
periféricos. Nas áreas centrais a urbanização seguiu padrões “modernos”, internacionais, e
teve seu adensamento estruturado por edificações verticalizadas, enquanto, nas periferias
predominou uma urbanização “popular”, com edificações horizontalizadas, resultante,
principalmente, da “autoconstrução” (MENDONÇA, 2002)15.
A fragmentação da vida social notada no espaço urbano remonta à gênese da cidade
que foi concebida por aristocracias regionais e nacionais para substituir Ouro Preto como a
Nova Capital do Estado de Minas Gerais (REIS, 1994). A cidade de Belo Horizonte não
resulta de fenômeno natural, sua construção envolveu capitais e agentes políticos e sua
ocupação foi determinada por seus interesses, de modo que as piores ou melhores condições
de moradia estiveram relacionadas ao status sociocupacional dos indivíduos residentes e da
origem e posição social destes na estrutura política estabelecida. Em 1897, ano de sua
inauguração, a cidade já possuía duas favelas (GUIMARÃES, 1991). A favelização foi uma
alternativa habitacional encontrada por parcelas expressivas dos operários da construção civil
responsáveis pela edificação urbana de Belo Horizonte. Desde tal período prevaleceu uma
tendência de apartamento dos espaços de moradia dos grupos subalternos da estratificação
social em áreas distantes e/ou de pior qualidade urbana, rotuladas socialmente como

15
Segundo está autora, “a expansão do mercado imobiliário capitalista é significativa durante os anos oitenta e
constituiu importante mecanismo de mudança na estrutura socioespacial da região” (MENDONÇA, 2002,
p.06).
61

“favelas”, “mucambos”, “cafuas” e “periferias” (GUIMARÃES, 1991).


À medida que a urbanização de Belo Horizonte se tornou mais densa, a cidade
expandiu seus limites e as áreas ainda não urbanizadas tornaram-se espaços relativamente
mais próximos ao centro urbano. O movimento de ocupação das bordas do território político-
administrativo acabou por conectar outros municípios e caracterizando grande parte da
expansão metropolitana, foi responsável pela conformação da atual da morfologia urbana
desta região (ver Imagem 03). As periferias passavam a representar “naturalmente” o lugar de
moradia de determinados grupos de pessoas da sociedade, dos detentores de menores posses
materiais e simbólicas situados na base ou na margem da estratificação produtiva. Na RMBH,
ao Norte e ao Oeste, a constituição das paisagens periféricas foi também marcada pela
presença de Conjuntos Habitacionais. Tais conjuntos representam o resultado das políticas
habitacionais destinadas a “solucionar” o problema de moradia das pessoas situadas nos
estratos mais baixos da hierarquia ocupacional (MENDONÇA, 2002). Segundo esta autora,
esse tipo de habitação correspondeu a 8% do total de moradias desta região metropolitana em
1991, sendo que, próximo a elas é comum haver habitações populares de outras naturezas
autoconstruídas e faveladas. Em parte, a periferização da pobreza, independentemente da sua
geografia de oposição ao centro, pode ser compreendida como produto das pressões exercidas
por mercados de especulação imobiliária urbana vinculada à produção das políticas
habitacionais, urbanísticas e de outras naturezas que determinaram o lugar ocupado pelos
mais pobres na cidade.
Desde a década de 1990 a literatura apontou também a relevância de outro padrão de
segregação socioespacial na conformação dos territórios metropolitanos brasileiros,
representado por um significativo deslocamento de populações pertencentes aos estratos
médios e altos e que buscavam novos espaços de moradia e de convívio social relativamente
isolados das áreas centrais ou populares. Esse movimento, das classes médias e altas,
envolveu não apenas espaços de moradia, mas também os de lazer, consumo, escolarização,
entre outros. Tal dinâmica reconfigurou as relações destes grupos com os espaços públicos e
privados metropolitanos, aproximou-os entre pares relativamente homogêneos em termos de
atributos sociais, individuais e coletivos. Essa “autossegregação” foi viabilizada pelo
cercamento de espaços públicos e privados com muros e vigilância privada armada e
permanente. Dando origem a espaços que foram classificados por diferentes denominações na
literatura como enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000), Barrios cerrados (CORVALAN,
2004) ou condomínios fechados (ANDRADE, 2001; MENDONÇA, 2002). Na RMBH esse
tipo de ocupação assumiu formas variadas, verticais e horizontais e desenvolveu-se,
62

principalmente, no sentido Sul de Belo Horizonte atingindo as áreas próximas ao município


de Nova Lima e áreas específicas de espaços situados ao Norte em Lagoa Santa e Vespasiano.
Tais localizações incidiram sobre áreas com relativa abundância de recursos naturais e ao
mesmo tempo próximas aos espaços dotados de serviços, infraestrutura e circulação de capital
(ANDRADE, 2001).
A partir de padrões distintos, as casas em vilas ou condomínios fechados16 resultaram
da ocupação de áreas menos urbanizadas e situadas nas bordas metropolitanas, dinâmica
semelhante à da periferização. O processo envolveu ainda práticas informais e ilícitas de
ocupação do solo configuradas pelo exclusivismo de uso de logradouros e de praças públicas
em condomínios fechados por meio do levante de muros e de vigilância armada particular
que, deste modo, constrangem o direito público de ir e vir por parte de pessoas residentes
noutros espaços (FERNANDES, 2008, p.54). Esse tipo de ocupação do solo, embora seja
também caracterizada como ilegal por privatizar logradouros e outras áreas públicas como as
praças, não foi alvo de desapropriação ou de qualquer outra ação política estatal violenta
como as historicamente destinadas aos moradores de áreas socialmente classificadas como
periferias ou favelas na RMBH (GUIMARÃES, 1991; ANDRADE, 2005). A expansão dos
enclaves fortificados na região metropolitana foi também resultado da especulação
imobiliária. No sentido Sul, por exemplo, essa prática foi agenciada por grupos proprietários
de grandes extensões de terra17.
É relevante destacar que a expansão dos enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000) não
extinguiu o padrão centro-periferia, mas reconfigurou as contradições e intensificou a
polarização social metropolitana. Esse novo padrão, a autossegregação, foi compreendido
como uma espécie de fuga realizada por parte dos estratos médios dos problemas urbanos,
com destaque à poluição e à violência (ANDRADE, 2001; 2005; CALDEIRA, 2000). Esse
movimento teve forte relação simbólica com a difusão do sentimento de medo da violência,
que se fundamenta na criminalização dos pobres, denominado por Caldeira (2000) pela
expansão da fala do crime. A expansão dos enclaves ocorreu concomitante à periferização da
pobreza, e assim, tais dinâmicas socioespaciais reforçaram a polarização entre as classes mais
antagônicas da estratificação e a fragmentação das suas relações sociais.

16
Definição adotada pelo Censo Demográfico de 2010 para identificação das moradias situadas em condomínios
fechados. Em 2010 na havia em algumas municipalidades uma média superior que a metropolitana em relação
a presença desse tipo de moradia (2,4% do total de domicílios): Belo Horizonte (3,4%), Ibirité (3,4%),
Brumadinho (4,8%) e Nova Lima (4,5%) (MENDONÇA; SOUZA; BORGES, 2015).
17
Duas mineradoras, Anglo Gold e Minerações Brasileiras Reunidas- MBR, detinham juntas 46% do território
municipal de Nova Lima, o equivalente a uma área de 210 km2 (ANDRADE, 2005).
63

A fragmentação da vida social no território expressa não só as relações de


desigualdade de acesso à moradia, mas a incongruência estrutural envolvida na expansão
urbana, notada entre o expressivo volume demográfico e a escassez de oportunidades de vida.
Essa incongruência foi interpretada como o resultado de um “capitalismo das economias
periféricas”, estruturado a partir de um “mercado restringido” (CARDOSO; FALETTO, 1975,
p.124). Corroborando com tal perspectiva, Santos (2001) compreende que a estrutura
produtiva e econômica dos espaços metropolitanos não teve como fim proporcionar o
desenvolvimento humano e sim, integrar mercados econômicos domésticos e internacionais.
Segundo este autor, uma economia industrial dependente e comprometida em promover
lucros para uma cadeia produtiva internacional teria como característica fundamental a baixa
integração interna associada a limitação de inserção laboral das populações urbanas. Um
modelo de desenvolvimento econômico qualificado como “excludente” e desvinculado de um
projeto de desenvolvimento social (KOWARICK, 1979) que produziria, entre outras coisas,
segmentos populacionais “excluídos” (ZALUAR, 1985, p.12). Segundo Zaluar, aos
“excluídos” e aos seus espaços de moradia prevaleceram representações dominantes,
relacionados à pobreza e à incivilidade. Tais grupos sociais foram denominados como
“marginais”18 (CASTELLS, 1983) e foram considerados como um efeito inevitável do
modelo de desenvolvimento econômico-industrial urbano predominante nos países
“subdesenvolvidos” situados, sobretudo, no hemisfério sul ocidental.
Independentemente do grau de latitude planetária envolvida, a expansão das grandes
cidades, em diferentes contextos e períodos históricos, foi interpretada como processo
conflitivo, de reconfiguração dos espaços e das disputas sociais, responsável em gerar a
“marginalização” de parcelas específicas das suas populações residentes. Inúmeros estudos
demonstraram que o processo de urbanização de cidades como Belo Horizonte, Brasília, São
Paulo, Nova York ou Chicago dependeu e, ainda depende da mão de obra do “outro”, de
pessoas que teoricamente não representavam o “sujeito” ou o “usuário” da cidade. Em
Chicago dos anos de 1920 os marginais foram classificados por Park (1978) a partir da noção
de estrangeiro herdada de Simmel (2005, p.265) como “[...] um elemento do qual a posição
imanente e de membro compreendem, ao mesmo tempo, um exterior e um contrário”, como
um “out-sider”. Para Park (l978) a “marginalização” foi uma condição e/ou situação social
que atingiu mais intensamente os imigrantes de primeira ou de segunda geração. Embora o
autor também englobasse ao conceito os indivíduos de comportamento socialmente

18
Não reproduzirei aqui o debate já realizado nas ciências sociais sobre os conceitos de marginalidade e
exclusão, em Marques (2010), no capítulo 3, há um excelente debate sobre o tema.
64

classificado como inadequado às normas de conduta e aos princípios convencionalmente


determinados, mesmo que por desajustamento psicológico.
Nos EUA, durante a transição do século XX para o XXI, a marginalidade ou a
marginalização social foi interpretada como uma dinâmica de exclusão cultural e econômica,
caracterizada por conflitos étnicos socialmente estabelecidos (WACQUANT, 2006). A
condição marginal é compreendida pelo autor como um produto inerente das relações de
poder nas sociedades contemporâneas e, por isso, não pode ser compreendida como residual,
nem cíclica, nem transitória. E sim como resultado da desintegração da condição dos
assalariados em garantir equidade social responsável em desconectar as relações sociais entre
populações das periferias e as dos centros de poder e, assim, contribuiu para a reconfiguração
neoliberal do Estado Providência (WACQUANT, 2006). Deste modo, a “margem” na grande
cidade representaria tanto os grupos subalternizados como seus espaços de interação e
habitação, e assim, tornar-se-iam lugares e paisagens nas quais as tensões e os conflitos
sociais estariam polarizados.
No contexto latino-americano contemporâneo a formação das grandes cidades
implicou também na marginalização de imensas parcelas de suas populações como resultante
das limitações geradas pelo modelo de desenvolvimento econômico dependente
internacionalmente (KOVARICK, l975). Segundo este autor, foi característico nas grandes
cidades deste continente a constituição de áreas nas quais acumularam-se segmentos
populacionais que não lograram inserir-se de forma efetiva no sistema produtivo, isto é,
grupos ou indivíduos que não alcançavam o estatuto de proletários, engrossando, quanto
muito, as fileiras dos exércitos de mão-de-obra de reserva. Foi também marcante neste
contexto o “isolamento social dos pobres urbanos” (KAZTAM, 2001) como mecanismo de
manutenção de estruturas sociais extremamente desiguais. Embora as idiossincrasias do
contexto latino-americano, essa perspectiva dialoga com premissas norte-americanas
(WACQUANT, 2006) ao reconhecer na segregação produzida pela pobreza um elemento
central de reprodução e de acirramento das desigualdades cujos efeitos envolvem restrições ao
espaço público, a segmentação social dos serviços urbanos e a geografia da violência nos
territórios das grandes cidades.
Por outro lado, a metrópole é também um ambiente de diversidade cultural e de
intensos trânsitos sociais, o que torna mais complexa a mensuração da segregação a partir de
um ou mais atributos sociais isolados, bem como seus efeitos sobre a vida social. Nesse
sentido, a segregação envolve diversos tipos de restrições as relações socialmente
estabelecidas e pode assumir formas como “segregação escolar”, “segregação por idade”,
65

“segregação urbana”, “segregação residencial”, “segregação étnica”, entre muitas outras


(BRUN, 1994). Do ponto de vista metodológico, Sabatini e Sierralta (2006), discorrem sobre
os limites e as possibilidades de uso de métodos de medição da “segregação residencial” e as
escalas geográficas envolvidas. Estes autores ponderam sobre a necessidade de superação dos
limites epistemológicos envolvidos nos estudos sobre a segregação que, na maior parte,
fundamentam-se em análises quantitativas. Para Sabatini e Sierralta (2006) as abordagens
quantitativas aplicam índice de dissimilaridade, mas deveriam incorporar também abordagens
qualitativas capazes de alcançar dimensões subjetivas envolvidas no problema.
A segregação envolve dimensões que vão além da análise restrita do local de
residência em si mesmo. Ela tem sua gênese fora destes territórios em múltiplas escalas
geográficas e sociais e relaciona-se, por exemplo, às formas pelas quais as populações
“marginais” integraram-se aos mercados econômicos e simbólicos da sociedade urbana. É
relevante destacar o peso das atividades classificadas como “informais”19 para a inserção
econômica e social de indivíduos nas sociedades urbanas.
Em 2009, 37,4% da população brasileira trabalhava no setor informal, sendo a
proporção ainda maior entre jovens e idosos. Segundo os dados, para pessoas com 60 anos ou
mais, a taxa atingia 71,7%, e entre a população jovem de 16 a 24 anos, fixava-se nos 46,5%
(BARBOSA FILHO; MOURA, 2012). Entre 1997 a 2003, por exemplo, a população
brasileira ocupada nas atividades informais20 cresceu cerca de 7,8%, incremento que
representou cerca de um milhão de pessoas, passando de 12,8 milhões para 13,8 milhões
(IBGE, 2005). Aos “circuitos inferiores da economia urbana” que são, em muitos casos,
compostos de ocupações precárias e desprotegidas, integraram-se mais intensamente as
pessoas com menor nível de acesso à escolarização e à renda, a população classificada como
“pobre” no contexto urbano: “[...] ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma
posição relativa inferior dentro da sociedade como um todo.” (SANTOS, 2000, p.29).
A informalidade representou também o meio pelo qual parcelas significativas dessas
populações acessaram a moradia: “foi a “solução” que o desenvolvimento urbano, no Brasil,
deu para grande parte dos moradores das grandes cidades” (MARICATO, 2003a, p. 80). A
informalidade, segundo a autora, não esteve desvinculada das práticas especulativas do
19
Segundo a definição do IBGE (2012:286) em consonância com as definições da Organização Mundial do
Trabalho, o trabalho informal compreende: “trabalho sem carteira assinada, incluindo os trabalhadores
domésticos, empregadores e trabalhadores por conta própria que não contribuem para a previdência social,
trabalhadores não remunerados, bem como os trabalhadores na produção para o próprio consumo e na
construção para o próprio uso”.
20
A informalidade não é uma dimensão exclusiva dos circuitos inferiores, pode estar presente em inúmeras
atividades, desde as que envolvem grandes capitais, médios, bem como as atividades de sobrevivência de
populações marginalizadas no mercado de trabalho (MELO; TELES, 2000; SANTOS, 2003).
66

mercado imobiliário e nem da regulação fundiária urbana exercida pelas políticas estatais;
ambas, foram importantes na determinação do “lugar dos pobres” na cidade. Os espaços nos
quais tais populações foram fixadas não se configuraram como áreas socialmente
homogêneas, se comparadas às das classes médias e altas, nem isoladas, como pressupõe uma
leitura rasa do conceito de “segregação”. Representam áreas integradas à rede urbana cujas
populações são diversas em atributos e em possibilidades de vida (CALDEIRA, 2000;
FELTRAN, 2010; MENDONÇA; MARINHO, 2015).

Imagem 02 - Favelas e Parabólicas - Rio de Janeiro - 2015

Fonte: Autor desconhecido, 201521.

A história recente apresenta as metrópoles brasileiras como complexos mosaicos


formados de contextos, situações e paisagens distintas, antagônicas, com territórios
estruturados cada vez mais por um padrão de segregação classificado pela “proximidade física
e distância social” (RIBEIRO, 2004, p.18). Segundo tal perspectiva, o espaço urbano
metropolitano pode ser compreendido como resultado da reacomodação dos diferentes
estratos sociais por meio de relações altamente hierarquizadas, nas quais as pessoas são
reconhecidas como “naturalmente desiguais” em termos de poder social e, por isso, ocupam
posições distintas na escala da “honra social”. Desta forma as RM’s estruturam como espaços
privilegiados de desenvolvimento econômico e cultural e, ao mesmo tempo, do inverso, como
áreas de concentração de miséria, de violência física e simbólica, de poluição e de catástrofes
como enchentes e desmoronamentos (MARICATO, 2003b). As tragédias e os outros
problemas urbanos, bem como as virtudes dos espaços privilegiados, não estiveram
dissociados da desigualdade de acesso à cidade por parte de suas populações residentes.

21
Retirado de htttp://imagens.google.com.br <favela e parabólicas>
67

O acesso à cidade foi mediado pelas relações de trabalho, e assim, se historicamente o


acesso à seguridade e bem-estar social no Brasil esteve relacionado aos circuitos formais da
economia, como propõe o conceito de “cidadania regulada” (SANTOS, 1998), a cidadania
dos grupos vinculados à informalidade estaria supostamente em risco. O acesso aos
rendimentos por meio dos setores informais que, por vezes, pode ser superior aos atingidos
nos circuitos formais, ocasiona prejuízos no sentido de integração política e moral dos
indivíduos e expressa o conflito social de grupos que acessam ao consumo desvinculado do
acesso à cidadania (TELLES, 1993)22.
Por outro lado, os setores formais são diversificados e altamente hierarquizados, e
assim, a formalidade laboral também não representou per se uma forma de acesso à cidadania
que, historicamente, tem sido negada no Brasil às suas populações “pobres” (SANTOS,
2000). Pode-se considerar então que a integração social destas populações foi conflituosa, ao
passo que o trabalho formal, “de carteira assinada”, também não representou uma saída da
condição de pobreza conforme expressa o conceito de “trabalhador pobre” proposto por
Zaluar (1985). O trabalho formal, distante de representar uma alternativa frente à condição de
pobreza, como levantado junto aos habitantes do Conjunto Habitacional Cidade de Deus na
década de 1980 pela referida autora, assumia representações negativas, principalmente para as
populações jovens filhas dos migrantes. Percebido por uma parcela dos jovens como uma
espécie de sacrifício degradante, física e moralmente, em função da parca valorização
monetária e simbólica alcançada pelos “trabalhadores” de Cidade de Deus, o trabalho formal
perdera legitimidade frente aos demais circuitos econômicos possíveis aos “pobres urbanos”
(ZALUAR, 1985). A categoria “trabalhadores pobres” evidenciava o abismo hierárquico
estabelecido entre níveis de rendimento e de seguridade social distribuídos na estrutura
ocupacional formal.
As perspectivas supracitadas remetem à compreensão da vida metropolitana o conceito
de espaço social de Bourdieu (1997), no qual a posição ocupada pelos indivíduos no espaço
urbano reflete sua posição na estratificação socialmente estabelecida. Na reflexão
bourdiesiana, a estrutura produtiva determina e reflete os níveis de acesso a recursos materiais
(riqueza) e simbólicos (status e prestígio) por parte dos indivíduos. De tal modo, o espaço
urbano pode ser compreendido como resultado das relações de poder e produtivas,
estabelecidas entre classes sociais (BOURDIEU, 1997). No caso brasileiro, de uma sociedade

22
A Imagem 2, ilustra o argumento de Telles (1993), no qual o consumo de bens sofisticados como visto pelas
antenas parabólicas em contraste com a precariedade das condições de moradia, uma contradição entre
ausência do direito habitacional e estilo de vida.
68

altamente hierarquizada, a estratificação ocupacional evidencia bem esse “abismo” que


distingue socialmente os indivíduos em função da posição desempenhada no trabalho. Se,
magistrados e desembargadores podem atingir rendimentos mensais superiores a R$
100.000,00 reais, 78,0% das pessoas ocupadas na RMBH em 2010 alcançaram rendimentos
mensais de até R$ 1.530,00 (IBGE, 2014). O volume maior de pessoas com baixos
rendimentos não é um evento aleatório, relacionando-se, segundo Cardoso (2008), com a
estrutura ocupacional dos mercados metropolitanos, composta predominantemente de
ocupações que exigem pouca escolarização ou qualificação profissional para seu
desempenho23. Ou seja, a maior parte das ocupações formais nas RMs gera parcos níveis de
rendimento e de acesso ao prestígio social.
A fragmentação socioespacial metropolitana, em outra perspectiva, relacionou-se
também à gestão política a partir da qual os territórios metropolitanos foram concebidos
(RIBEIRO, 2004). Conforme o autor, devido à extinção dos organismos de planejamento
metropolitano criados na década de 1970, associada às mudanças de gestão política e
territorial metropolitana estabelecida na Constituição Federal de 1988, as RMs ficaram
“órfãs” de instâncias de governo metropolitanas. A oitava constituição federal, a de 1998, por
meio do § 3º do Artigo 25.1, transferiu aos Estados a autonomia política para criação e
ampliação das suas regiões metropolitanas sem estabelecer critérios básicos sobre a
governabilidade destes territórios. Além disso, a governança metropolitana foi comprometida
pelo modelo de federalismo instituído na nova Carta Magna, fundamentada em três níveis
autônomos e integrados de governo: o federal, o estadual e o municipal (ROCHA; FARIA,
2004). O federalismo brasileiro contribuiu para desencadear um amplo e acelerado processo
de desmembramentos territoriais destinados à emancipação de novas municipalidades,
gerando um número elevado de municípios, incompatíveis com a gestão territorial dos
problemas sociais (ROCHA; FARIA, 2004). Segundo os autores, as RM’s são repletas de
casos peculiares de administração pública ao passo que envolve distintos municípios
integrados em um mesmo sistema produtivo urbano, social e econômico, territorialmente
submetido a uma fragmentação das relações políticas proporcionada pelo modelo de
federalismo brasileiro tornou mais complexo o exercício de “cooperação metropolitana”
(ROCHA; FARIA, 2004).

23
A reestruturação produtiva, interpretada pela literatura brasileira como transição do modelo produtivo
industrial fordista para o toyotista que tornou o mercado mais competitivo, aumentou a exigência de
qualificações e acentuou o desemprego e a pobreza urbana, sendo os jovens a categoria mais afetada por essas
transformações. Sobre a percepção dos trabalhadores sobre a reestruturação produtiva no Brasil. Ver:
Lombardi (1997).
69

Se em 1980 havia 3.974 municipalidades, em 1990 o número chegou a 4.491, a 5.560


em 2000, e, em 2010 atingiu-se um total de 5.565 (IBGE, 2014). Essas mudanças refletiram
na a composição e número de RM’s e, em 2010 o Brasil contava com 38 aglomerações
urbanas institucionalizadas como RM’s e como Regiões Integradas de Desenvolvimento
Econômico – RIDEs, sendo 35 e 3 respectivamente (OBSERVATÓRIO DAS
METRÓPOLES, 2012). Grande parte das novas incorporações municipais não se baseou em
fundamentos técnicos, sociais e econômicos e sim em decisões políticos alheias à governança
das RMs e, assim, essa política contribuiu para a incorporação de municípios,
independentemente de suas relações metropolitanas24. Ou seja, não considerou a
metropolização como um processo “[...] capaz de gerar dinâmicas territoriais de concentração
e difusão dos artefatos econômicos, políticos, sociais e culturais em determinados
aglomerados metropolitanos” (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2012, p.02). Nesse
sentido, as mudanças políticas após 1998 proporcionaram nas RMs uma evidente discrepância
socioterritorial entre a aglomeração urbana afetada pelas dinâmicas metropolitanas com a
morfologia político administrativa dos territórios instituídos.
Em função de tais questões uma alternativa para identificação de municípios em RMs
efetivamente metropolitanas foi proposta pela rede Observatório das Metrópoles (2006;
2012), com o objetivo de identificar nos territórios municipais impactados pela
metropolização. Para tanto, desenvolveu-se o indicador “grau de integração metropolitana”
que mensura níveis de integração municipal às dinâmicas metropolitanas25. Tal indicador
oferece sete níveis de integração: i) polo, ii) extensão do polo, iii) nível muito alto, iv) nível
alto, v) nível médio, vi) nível baixo e vii) nível muito baixo de integração. Os níveis são
mensurados em relação ao conjunto dos municípios que fazem parte de uma RM, e por isso,
sujeitos a variações relativas. Em 2010, período de referência do último recenseamento
realizado no país, a população urbana atingiu a casa dos 160.925.792 habitantes, (84,4% da
população total residente). Destes, 85.406.427, 53,1%, residiam em alguma das 38 principais
aglomerações urbanas brasileiras, que comportavam 444 municípios e estavam distribuídas
entre 22 Unidades da Federação – UFs. Destes 85.406.427, cerca de 69.115.806 (80,9%)
residissem em 15 aglomerações urbanas reconhecidas como sendo metropolitana segundo os
níveis de “integração” adotados pelo Observatório das Metrópoles (2012): São Paulo, Rio de

24
Após 1988, de um modo geral, a criação ou a ampliação dos territórios RM’s não levou em consideração as
necessidades de gestão política, intrínsecas à escala metropolitana (BRITO, 2006).
25
O “grau de integração” indica níveis municipais de integração metropolitana a partir da análise multivariada
entre as seguintes variáveis: concentração e distribuição demográfica, produto interno bruto, rendimentos e
fluxos de população por meio de movimentos pendulares com destino ao trabalho e/ou estudo, a presença de
infraestruturas como portos e aeroportos (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2012).
70

Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza,
Campinas, Manaus, Vitória, Goiânia, Belém e Florianópolis. Apesar da relevância da escala
metropolitana, como atestam os dados de 2010, “escala fundamental da questão social
brasileira”, as RMs mantiveram-se “órfãs de interesse político” (RIBEIRO, 2004, p.07),
situação que Maricato (2011) descreveu como “metrópoles desgovernadas”.
A expansão urbana, componente fundamental das mudanças estruturais na sociedade
brasileira, não se trata de um processo estritamente demográfico, as metrópoles enquanto
lócus das atividades econômicas mais relevantes transformaram-se em difusoras dos novos
padrões de relações sociais, de produção e de estilos de vida (BRITO; SOUZA, 2005). Ao
mesmo tempo, a expansão metropolitana representa um desafio relativamente recente na
história brasileira e que se consolidou a partir de uma transição demográfica abrupta e pouco
planejada em relação aos seus impactos sociais (SANTOS, 2005; MARICATO, 2003a;
RIBEIRO, 2004). O que se observa até então é que, nas RMs, a desigualdade acentuou-se e
reconfigurou-se, e o conflito entre classes fundamentou-se em culpar as populações em
situação de pobreza pela “desordem urbana”, pelos problemas sanitários, morais e de
violência (RIBEIRO, 2004). Ressalta-se que, em relação à violência, nos casos mais extremos
como os homicídios juvenis, as periferias e favelas, não todas obviamente, concentraram a
maior parcela dos casos registrados pelos sistemas de saúde e de segurança pública
(MARINHO, 2012; ANDRADE; SOUZA; FREIRE, 2013). Feita tais considerações, o texto
prossegue a discussão relativa à metropolização brasileira a partir de algumas notas sobre a
expansão urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

3.3 A expansão da RMBH e as reconfigurações da vida social no território

A expansão urbana da área metropolitana de Belo Horizonte ocorre desde a década de


1940, teve maior impulso no período entre 1960 e 1980, e arrefeceu-se nas décadas seguintes.
No período de sua institucionalização enquanto Região Metropolitana, em 1973, durante o
último período de governos militares, no qual foi delimitada político administrativamente a
partir de um conjunto de 14 municípios. Desde então, a região passou por significativas
alterações de composição demográfica26 e morfologia urbana, sendo que, após 1988 seu
território político administrativo sofreu significativas alterações a partir de desmembramentos
e incorporações de novos municípios. Em 1989 a RMBH já era composta por 18 municípios,

26
Sobre as mudanças da composição populacional e processos de transição demográfica da RMBH, consultar:
Fernandes e Canettieri em “A Região Metropolitana de Belo Horizonte e a transição demográfica” (2015).
71

em 1995, eram 20, em 2000, 33 e, em 2002 atingiu sua composição atual com o total de 34
municipalidades, correspondentes a uma área de 9.467.797 km2 (Quadro 01).

Quadro 01 - Municípios segundo o ano de criação, de instalação e de incorporação à


RMBH
Ano de
Nº Nome do Município Ano de Criação Ano de Instalação Incorporação à
RMBH
1 Baldim 1948 1948 1999
2 Belo Horizonte 1893 1897 1974
3 Betim 1938 1938 1974
4 Brumadinho 1938 1938 1989
5 Caeté 1714 1840 1974
6 Capim Branco 1953 1953 1999
7 Confins 1995 1997 1995
8 Contagem 1911 1948 1974
9 Esmeraldas 1901 1901 1989
10 Florestal 1962 1962 1997
11 Ibirité 1962 1962 1974
12 Igarapé 1962 1962 1989
13 Itaguara 1943 1943 1999
14 Itatiaiuçu - - 2002
15 Jaboticatubas 1938 1938 2000
16 Juatuba 1992 1993 1993
17 Lagoa Santa 1938 1938 1974
18 Mário Campos 1995 1997 1995
19 Mateus Leme 1938 1938 1989
20 Matozinhos 1943 1943 1999
21 Nova Lima 1891 1891 1974
22 Nova União 1962 1987 1999
23 Pedro Leopoldo 1923 1923 1974
24 Raposos 1948 1948 1974
25 Ribeirão das Neves 1953 1953 1974
26 Rio Acima 1948 1948 1974
27 Rio Manso 1962 1962 1997
28 Sabará 1711 1711 1974
29 Santa Luzia 1847 1856 1974
30 São Joaquim de Bicas 1995 1997 1995
31 São José da Lapa 1992 1993 1993
32 Sarzedo 1995 1997 1995
33 Taquaraçu de Minas 1962 1962 2000
34 Vespasiano 1948 1948 1974
Fonte: Andrade, 2009, p. 04.

Desde 1989, foram incorporados 20 novos municípios à RMBH, um incremento que


ocorreu de forma alheia às dinâmicas metropolitanas envolvidas. Como resultado, formou-se
um território desajustado entre as áreas afetadas pela metropolização e sua jurisdição político-
administrativa e gerando assim a necessidade de melhor delimitação técnica da natureza
72

metropolitana dos municípios. Nessa perspectiva Diniz e Andrade (2015) identificaram na


RMBH, com dados censitários de 2010 que, do universo de 34 municipalidades, apenas 22
estavam integradas, em diferentes níveis, à dinâmica da metropolização. Deste modo, 12
municipalidades não se configuravam como metropolitanas, segundo o índice adotado pelos
autores, a “integração metropolitana” (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2012).
O desnivelamento dos municípios em relação à “integração”, identificado em Diniz e
Andrade (2015), tem relação com a forma pela qual a expansão metropolitana ocorreu
alcançando mais algumas municipalidades do que outras, bem como pelas incorporações
municipais após 1988. Ao longo de mais de cinco décadas a metropolização da RMBH
resultou em uma imensa mancha urbana que se estendeu ao Oeste e ao Norte. A conurbação
atingiu principalmente os municípios que possuem fronteira com o polo Belo Horizonte,
enquanto os limites geográficos ao Sul e ao Sudeste impostos pela declividade do relevo ao
longo da Serra do Curral (Imagens 03 e 04).

Imagem 3 - Zona Conurbada da RMBH vista a partir do limite geomorfológico imposto


pela Serra do Curral- Imagem de Satélite -2014

Fonte: GoogleMaps, 2015. Adaptado pelo autor.


73

Imagem 04 - Zona Conurbada da RMBH - Imagem de Satélite - 2014

Fonte: GoogleMaps, 2015. Adaptado pelo autor.

A morfologia da mancha urbana da RMBH indica em quais sentidos a ocupação


residencial e as atividades econômicas desenvolveram-se territorialmente (Imagens 3; 4). A
mancha urbana atingiu um conjunto específico de municípios, principalmente os que
possuíam fronteira com Belo Horizonte. Com o objetivo de descrever os sentidos alcançados
pela metropolização Diniz e Mendonça (2015) propuseram uma nova configuração sobre os
grupos de municípios classificados como “vetores de expansão metropolitana”, atualizando a
proposta analítica proposta originalmente por Brito e Souza (1998) para a RMBH. A leitura
mais recente deste indicador, produzida por Diniz e Mendonça (2015), demonstra mudanças
nos arranjos dos vetores de expansão urbana. O município de Esmeraldas, por exemplo,
encontra-se situado no conjunto de municípios que conformam o Vetor Norte Central,
enquanto Taquaraçu de Minas e Nova União no Vetor Leste, e Itatiaiuçu, Rio Manso e
Itaguara no Vetor Sudoeste.
Os vetores, que representam agrupamentos de territórios municipais organizados de
acordo com os sentidos alcançados pela metropolização segundo os pontos cardeais
geográficos, são redefinidos em Diniz e Mendonça (2015) a partir da seguinte divisão
socioterritorial da RMBH: a) Vetor 1. Belo Horizonte, o núcleo da RMBH; b) Vetor 2. Oeste:
Contagem, Betim, Ibirité, Sarzedo e Mário Campos; c) Vetor 3. Norte Central: Ribeirão das
74

Neves, Santa Luzia, São José da Lapa, Vespasiano e Esmeraldas; d) Vetor 4. Norte: Baldim,
Jaboticatubas, Matozinhos, Capim Branco, Pedro Leopoldo, Confins, Lagoa Santa; e) Vetor 5.
Leste: Sabará, Caeté, Taquaraçu e Nova União; f) Vetor 6. Sul: Nova Lima, Brumadinho e
Raposos, Rio Acima; g) Vetor 7. Sudoeste: Florestal, Juatuba, Mateus Leme, Igarapé, São
Joaquim de Bicas, Itatiaiçu, Rio Manso e Itaguara. (Imagem 05).

Imagem 5 - Eixos de expansão metropolitana- RMBH – 2010

Fonte: Diniz e Mendonça, 2015, p.36.


75

O agrupamento dos vetores propostos em Diniz e Mendonça (2015) traz em comum à


proposta anterior de vetorização, de Brito e Souza (1998), o reconhecimento de que a
expansão urbana atingiu mais os municípios situados nos vetores Oeste e Norte Central. Tal
geografia relacionou-se à localização das atividades industriais dos municípios cortados pela
Rodovia Federal BR-381 que conecta a RMBH aos principais polos econômicos do país com
destaque a RM de São Paulo, bem como pela distribuição dos sistemas viários que conectam
os municípios metropolitanos à Belo Horizonte (BRITO; SOUZA, 2005; ANDRADE, 2009;
DINIZ; MENDONÇA 2015). Os municípios mais impactados pela presença de atividades
industriais foram e ainda são Contagem e Betim, o primeiro sediou a Cidade Industrial
(primeira fase em 1946 e outra em 1970 com expansão de grandes depósitos do setor terciário
como o CEASA e a MAKRO) e, Betim, a Refinaria Gabriel Passos (1968), o Distrito
Industrial Paulo Camilo e a FIAT Automóveis (1976).
A expansão urbana nos municípios dos Vetores Norte e Norte Central ocorreu a partir
da ampliação do eixo viário Avenida Presidente Antônio Carlos na década de 1940,
responsável por conectar o Complexo Arquitetônico da Lagoa da Pampulha (inaugurado em
1943) e a cidade universitária (UFMG) à área central de Belo Horizonte. Nestes vetores foi
menos significativa a presença de atividades industriais, de urbanização e o adensamento
demográfico configurou-se por abertura de loteamentos destinados à acomodação de
populações com baixos rendimentos, em áreas pouco urbanizadas e relativamente distantes
dos espaços mais dinâmicos da economia metropolitana. Este processo resultou num tipo de
ocupação urbana interpretada como “cidades dormitórios”, semelhante às “cidades satélites”.
Ambos os casos referem-se a espaços intrametropolitanos caracterizados por uma forte
dependência em relação ao núcleo com maior dinamismo econômico (FREITAG, 2002;
FARIA, 1991; OJIMA; BONIFÁCIO SILVA; PEREIRA, 2007). Dentre as inúmeras
consequências da relação metropolitana destacam-se os deslocamentos cotidianos,
intermunicipais, realizados por populações jovens e adultas por motivo de trabalho ou de
estudo, os “movimentos pendulares”. Esses movimentos, bastante característicos da vida
metropolitana, são significativos na conformação de estilos de vida e de práticas sociais e
serão abordados no item seguinte que trata da conformação social do território, expansão
demográfica e relações de trabalho.
Embora a metropolização tenha iniciado nos anos de 1940, ela foi mesmo intensa nas
décadas posteriores, de 1960 a 1980, período caracterizado por um elevado ritmo de
crescimento em direção às periferias metropolitanas. De modo que, em 2010, o volume de
população dos demais municípios metropolitanos superou o polo metropolitano, o município
76

de Belo Horizonte (Gráfico 1). Essa dinâmica foi marcada pela redução dos fluxos
migratórios, queda da taxa de fecundidade (SOUZA, 2008), mas também pelo próprio
processo de reacomodação territorial da população que inicialmente tentou residir em Belo
Horizonte e depois migrou para outros municípios. A RMBH atraiu, predominantemente,
fluxos intraestaduais de migrantes com baixos níveis de rendimento e de escolaridade que
tentavam fixar residência em Belo Horizonte (SOUZA, 2008).

Gráfico 1 - Evolução demográfica- Belo Horizonte-BH e Agrupamento dos outros


municípios metropolitanos - 1940 a 2010

3.000.000

2.500.000

2.000.000
População

1.500.000
BH

1.000.000

500.000
Soma dos
outros munic.
0 metropolitanos.
1.940 1.950 1.960 1.970 1.980 1.991 2.000 2.010

Ano Censitário

Fonte: (IBGE, 2014) Censos Demográficos: 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010.
Elaborado pelo autor.

O relativo crescimento da população e sua incorporação à “soma dos outros


municípios metropolitanos (Tabela 01) foi impulsionado, entre outros motivos, pela pressão
exercida por elevados níveis de custo de vida e de preço da terra sobre as populações de
menor acesso aos rendimentos. Essa pressão dinamizou migrações intrametropolitanas, gerou
uma considerável mobilidade residencial interna na RMBH, sendo a periferia distante o
destino onde muitos fixaram residência definitiva (SOUZA; BRITO, 2008). Esse movimento
atingiu com mais intensidade as áreas de fronteiras dos municípios vizinhos a Belo Horizonte.
A permanência neste município, por parte dos mais pobres, viabilizou-se também por meio da
provisão de formas alternativas de moradia socialmente estigmatizadas (GUIMARÃES,
1991).
77

Tabela 1- Variação (%) populacional por períodos intercensitários e população total dos
municípios mais afetados pela metropolização e da RMBH - 1980 a 2010

Anos censitários Variação (%) populacional por


Municípios mais afetados períodos intercensitários
pela metropolização
1980 1991 2000 2010 1980 a 1991 1991 a 2000 2000 a 2010

Belo Horizonte 1.780.839 2.020.161 2.238.526 2.375.151 13,4 10,8 6,1

Contagem 280.470 449.588 538.017 603.442 60,3 19,7 12,2

Betim 84.193 170.934 306.675 378.089 103,0 79,4 23,3

Subtotal 2.145.502 2.640.683 3.083.218 3.356.682 23,1 16,8 8,9

Total Metropolitano 2.681.778 3.522.908 4.357.942 4.883.970 31,4 23,7 12,1

Fonte: IBGE, Censos Demográficos, 1980, 1991, 2000 e 2010.


Elaborado pelo autor.

É relevante destacar que a acomodação residencial das populações migrantes foi então
marcada por diversos trânsitos, envolveu mudanças de local de moradia entre bairros,
municípios, favelas ou periferias (SOUZA, 2008). Esse trânsito explica em parte os elevados
níveis de incremento populacional observados entre 1980 e 1991 em Contagem, que cresceu
60,3%, e em Betim 103,0% (Tabela 01). Movimento conflagrado em um cenário de
supervalorização dos preços dos alugueis e de imóveis em Belo Horizonte e de crescente
volume de oferta de terrenos a preços relativamente baixos situados nas áreas periféricas onde
a população pobre abriu novas frentes de expansão da área metropolitana. Esse processo foi
viabilizado político-territorialmente por uma consonância entre interesses do mercado
imobiliário e as chamadas políticas “públicas” de cunho habitacional. Neste período, como
visto recentemente, o crédito imobiliário destinado à população com baixos níveis de
rendimento, bem como pela construção de conjuntos habitacionais e distribuição dos sistemas
de transporte, viabilizou a expansão das zonas periféricas, como expresso por Mendonça:

[...] O binômio Estado/incorporadores imobiliários produziu uma estrutura


metropolitana segregada, onde, ao lado da produção periférica de loteamentos
populares, ocorre a intensificação do mercado de moradia para as categorias
dirigentes, nas áreas mais centrais, em processo de crescente auto-segregação destas
categorias. [...] Estado e mercado imobiliário vem reproduzindo a dinâmica centro-
periferia na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MENDONÇA, 2003, p.03-
04):
78

Essa dinâmica de periferização afetou diretamente a urbanização dos municípios


metropolitanos. Como resultado produziu nestes municípios uma relativa desconexão entre a
malha viária construída e suas sedes municipais, as populações que passavam a ocupar áreas
situadas em fronteiras municipais com o município Belo Horizonte. A seguir uma ilustração
de como a fronteira com tal município foi determinante na ocupação do território do
município de Contagem, onde situa-se o bairro Estrela D’alva, local de desenvolvimento da
pesquisa de campo da presente tese (Imagem 06).

Imagem 6 - Sistema viário principal do município de Contagem -1990

Fonte: 1º Revisão do Plano Diretor do Contagem Contagem, 2006:49.


Adaptado pelo Autor.

A ocupação das fronteiras de Contagem com Belo Horizonte, onde está situado o
Estrela D’alva, foi impulsionada pela necessidade de “sair do aluguel” que atingia grande
79

parte da população cujos rendimentos alcançados pelo trabalho eram irrisórios perante os
valores estabelecidos pelas dinâmicas de especulação imobiliária ratificada pelo Estado
(MENDONÇA, 2002). O território metropolitano expandiu-se prioritariamente pela ocupação
daqueles que não podiam optar em morar em Belo Horizonte, exceto se em favelas, e tiveram
que recorrer à compra de terrenos em áreas não urbanizadas e pouco povoadas situadas em
municípios de fronteira com Belo Horizonte. As pessoas que, nas décadas de 1980 e 1990
ocuparam a região destacada na Imagem 06, podem ser reconhecidas como pioneiras na
abertura de fronteiras metropolitanas, que na prática referiam-se a espaços desprovidos de
infraestrutura e quase que isolados do acesso aos sistemas de mobilidade urbana.
O isolamento e carência de infraestrutura refletiu-se na arquitetura e na urbanização
dessas áreas, muitas vezes reproduzindo paisagens classificáveis como assentamentos
precários27ou “aglomerados subnormais”28. Este tipo de assentamento encontra-se com mais
frequência entre encostas próximas aos bairros ocupados por classes média e alta em Belo
Horizonte, como nas áreas conurbadas dos municípios metropolitanos (COSTA, 1994). Entre,
2000 e 2010, 11,6% dos novos domicílios construídos na RMBH foram caracterizados pelo
IBGE como “subnormais”. Segundo o IBGE (2015), em 2010, somente no município de Belo
Horizonte 13% da população moravam em alguma das 169 áreas qualificadas como favelas.
A questão habitacional na RMBH evidenciou uma notável contradição na produção
das políticas estatais. Se, estas foram responsáveis por gerar incentivos a instalação de
indústrias e garantir a integração dos principais setores da economia metropolitana aos
mercados nacionais e estrangeiros, na contramão, pouco contribuiu para possibilitar a
equidade de acesso à moradia e aos serviços urbanos às suas populações residentes. Na
RMBH conforme atestado em diversos estudos com diferentes abordagens – Mendonça
(2002), Azevedo e Mares Guia (2000), Costa (1994), Monte-Mór (1994), Guimarães (1991),
Souza (2008) – as políticas habitacionais e urbanas tenderam a demarcar no espaço as
diferenças entre classes sociais e, ao mesmo tempo, se mostraram alinhadas às dinâmicas
especulativas sobre o uso do solo urbano. Enfim, as ações estatais contribuíram para gerar no
espaço metropolitano uma estrutura social assimétrica, reproduziu paisagens urbanas que

27
Segundo definição do Ministério das Cidades (2010, p.9) os assentamentos precários referem-se ao “conjunto
de assentamentos urbanos inadequados ocupados por moradores de baixa renda, incluindo as tipologias
tradicionalmente utilizadas pelas políticas públicas de habitação, tais como cortiços, loteamentos irregulares de
periferia, favelas e assemelhados, bem como os conjuntos habitacionais que se acham degradados”.
28
O IBGE (2015) considera por aglomerado subnormal o “conjunto de, no mínimo, 51 unidades habitacionais
(barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até
período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma
desordenada e densa.”.
80

expressam significativas diferenças de qualidade de vida capazes de representar o profundo


contraste que estrutura as relações sociais no Brasil.
Na RMBH a assimetria social está territorializada na relação entre municípios, de
modo que alguns desses polarizam os fluxos de capitais e de pessoas, como Belo Horizonte,
Contagem e Betim, mais impactados pelas dinâmicas metropolitanas (DINIZ; ANDRADE,
2015). Os autores, a partir de dados dos censos demográficos de 2000 e de 2010 e através de
aplicação de instrumentos metodológicos desenvolvidos pelo Observatório das Metrópoles
(2012) relativos aos “níveis de integração metropolitana” identificaram que: i) entre os 34
municípios da RMBH, 8 possuíam níveis de integração metropolitana “baixo” ou “muito
baixo”; ii) 11 municípios apresentavam níveis “médio de integração metropolitana”; iii) 8
foram classificados com “nível alto”; iv) 6 como “muito alto”, além do “polo” Belo
Horizonte. Ao compararem a integração metropolitana entre 2000 e 2010, os autores
identificaram crescimento do número de municípios integrados (Gráfico 02).

Gráfico 2 - Quantidade de municípios da RMBH segundo o nível de integração


metropolitana entre os anos censitários de 2000 e de 2010

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de Diniz e Andrade, 2015.

O nível de integração reflete também a estrutura econômica historicamente implantada


nos municípios e os desdobramentos da fixação demográfica. Destaca-se a permanência da
maior integração econômica desempenhadas por três municipalidades Belo Horizonte,
Contagem e Betim que, em 2010, contribuíram com 81,5% do valor total do Produto Interno
Bruto – PIB metropolitano. Esse valor correspondeu, no respectivo período, a 34,4% do PIB
contabilizado no Estado de Minas Gerais. Ao desagregar o valor e a participação relativa de
cada um destes municípios em relação ao PIB Metropolitano têm-se a seguinte distribuição,
81

Belo Horizonte com R$ 51.661.760.000 (42,5% do PIB da RM), Contagem com R$


28.297.360.000 (23,3%) e Betim com R$ 18.539.693.000 (15,2%). Tais valores expressam
um PIB médio per capta de R$ 21.748,25 em Belo Horizonte, de R$74.950,56 em Contagem
e de R$ 30.743,31 em Betim. Contudo, a riqueza produzida nestes municípios não reflete o
acesso à renda por parte dos residentes como supõe a noção representada pelo PIB médio per
capta.

Tabela 2 - Faixas de rendimento domiciliar per capta, Belo Horizonte, Contagem, Betim,
demais municípios metropolitanos e RMBH -2010
Espaços Faixas de domiciliar per capta em salários mínimos – 2010
metropolitanos
de referência Sem
rendimento
Até 1/4 > 1/4 até ½ > 1/2 até 1 >1 até 2 > 2 até 5 > 5 a 10 > 10 Total

47.464 287.372 542.727 788.520 473.277 180.561 33.643 13.086 2.366.650


Belo
Horizonte
2,0% 12,1% 22,9% 33,3% 20,0% 7,60% 1,4% 0,6% 100,0%

15.987 27.848 80.655 149.066 133.401 89.937 57.126 47.974 601.994


Contagem
2,7% 4,6% 13,4% 24,8% 22,2% 14,90% 9,5% 8,0% 100,0%

8.633 51.279 88.975 128.543 72.291 22.799 3.167 1.180 376.867


Betim
2,3% 13,6% 23,6% 34,1% 19,2% 6,00% 0,8% 0,3% 100,0%

Demais 31 37.145 82.589 232.744 433.667 378.163 245.855 78.998 33.146 1.522.307
municípios
da RM 2,4% 5,4% 15,3% 28,5% 24,8% 16,20% 5,2% 2,2% 100,0%

109.229 449.088 945.101 1.499.796 1.057.132 539.152 172.934 95.386 4.867.818


RMBH
2,2% 9,2% 19,4% 30,8% 21,7% 11,10% 3,6% 2,0% 100,0%

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de IBGE, 2014 – Censo Demográfico 2010.

As faixas de rendimento domiciliar per capta (Tabela 02) expõe que, a faixa de
rendimentos de “até ¼” de salário mínimo29 representou os rendimentos alcançados por
11,4% dos habitantes metropolitanos, 14,1% dos residentes em Belo Horizonte, 7,3%da
população de Contagem, 15,9% em Betim e 7,8% das pessoas residentes nos demais 31
municípios metropolitanos. As populações com tais faixas de rendimento enquadram-se na
definição de “extrema pobreza” e de “pobreza” adotadas pelas políticas sociais do Ministério
do Desenvolvimento Social (2015). Já as faixas de “> 2 até 5” e” > 5 a 10” – correspondente a

29
No mês de Julho de 2010, período de referência do Censo Demográfico de 2010, o valor do salário mínimo era
de R$510,00, por outro lado, segundo o DIEESE (2015) o valor do salário mínimo, necessário para quitar o
custo de vida em 2010, deveria ser de R$ 2.011,03, quase quatro vezes o valor real do salário mínimo.
82

valores aproximados aos definidos por Neri (2008) para classificação de uma suposta “nova
classe média”30 brasileira – encontramos o seguinte quadro: 14,7% da população da RMBH,
9% da população de Contagem, 6,8% da população de Betim e, 21,4% da população dos
demais 31 municípios metropolitanos. Quanto às faixas que agregam maior volume de
rendimentos,“> 10”, esta atingiu apenas 2,0% da população metropolitana residente, sendo
0,6% da de Belo Horizonte, 8,0% da de Contagem, 0,3% da de Betim e, 2,2% do conjunto dos
demais 31 municípios metropolitanos (Tabela 02).
O espaço metropolitano vem se estruturando, desde o início de sua expansão, segundo
a lógica centro-periferia, as áreas com menores níveis de rendimento tenderam a serem mais
distantes das áreas centrais de Belo Horizonte, das de Contagem e das de Betim. A
desigualdade de acesso à renda reflete o lugar socialmente ocupado pelas pessoas em
território metropolitano. Nas áreas centrais da zona urbana metropolitana e no Vetor Sul, por
exemplo, a proporção de famílias com rendimento domiciliar per capta de até um salário
mínimo era relativamente menor em comparação as áreas periféricas. Nessas áreas a faixa de
rendimento predominante situou-se na fronteira da condição de pobreza conforme classifica o
MDS (2015). A seguir uma forma de representação dos níveis de rendimento per capta, bem
como sua distribuição espacial entre os habitantes metropolitanos no território da RMBH
(Imagem 07).

30
Longe de se tratar de uma definição sociológica de classe social, o termo utilizado pelo autor refere-se a uma
identificação das populações segundo níveis de rendimento mensal domiciliar, segundo médias estatísticas da
distribuição de rendimento por faixas. Há uma série de trabalhos que discutem o sentido social dessa “nova
classe média” apresentado por Neri (2008) como, por exemplo, Souza (2012) que reconhece esse grupo como
uma nova configuração da classe trabalhadora, chamando-os por “batalhadores”.
83

Imagem 7- Distribuição percentual das famílias com até um salário mínimo – RMBH -
2010

Fonte: Tonucci Filho, Magalhães, Oliveira e Silva, 2015, p.82.

Enfim, as assimetrias informam sobre a posição dos indivíduos e grupos na estrutura


produtiva e de estratificação social, mostra divisão do poder de consumo entre as famílias,
fator que envolve as relações de trabalho, tipos de ocupação no tempo livre, a condição
residencial e os deslocamentos no território, temas discutidos na sessão seguinte.
84

3.4 Expansão demográfica, relações de trabalho e território metropolitano

A expansão urbana e o adensamento demográfico da RMBH estiveram diretamente


relacionados às relações de trabalho na sociedade. Dentre muitos outros fatores que podem
trazer luz à formação do território metropolitano, as relações de trabalho são, sem dúvida,
uma das mais diretamente perceptíveis. De modo geral, por exemplo, interferiram no
adensamento demográfico de Contagem e Betim a construção e edificação de estruturas
industriais. Em 2010, estes dois municípios junto à Belo Horizonte, concentravam 87% dos
postos de trabalho formais da RMBH, segundo informações do Censo Demográfico de 2010.
Considerando, inclusive os postos relativos aos funcionários do Estado, bem como os criados
por causa da construção de estruturas urbanas.
São muitos os casos descritos pela literatura nos quais a construção de grandes
estruturas urbanas relacionou-se ao adensamento demográfico de áreas urbanizadas por estas
populações de construtures civis como foi o caso de Belo Horizonte (GUIMARÃES, 1991), o
de Brasília e da formação das cidades satélites (CUNHA, 1997), em São Paulo (MARICATO,
2003a). Esses municípios tornaram-se indutores dos movimentos migratórios em busca de
melhores condições de vida e legitimados pelo projeto de vida centrado no trabalho urbano,
assalariado, com as garantias da carteira assinada por meio de uma possível inserção no
mercado de trabalho formal metropolitano. Tal indução não pode ser confundida com uma
noção mecânica, de relação causal determinista entre população e postos de trabalho. É
resultado de uma conjuntura de significativo desequilíbrio macroeconômico entre mesos e
microrregiões e reforçado pela polarização metropolitana. Em Minas Gerais, dos seus 853
municípios, resultante de emancipações de cunho político após 1988, a maior parte deles não
apresenta estrutura econômica capaz de absorver e manter suas populações naturais, sendo a
RMBH um dos principais destinos de tais pessoas.
A metropolização representou a acomodação das populações migrantes em um
território recentemente urbanizado, com isso, impactou em mudanças de estilo de vida e gerou
novas configurações das relações sociais na sociedade brasileira. Dentre tais configurações
sociais notadas na RMBH, destacam-se as relacionadas ao acesso ao trabalho e à moradia, da
movimentação das populações no território metropolitano em função dos deslocamentos
cotidianos entre casa e trabalho, que a literatura classificou por “movimentos pendulares”31. É

31
De um modo geral, a literatura reconhece a migração ou movimento pendular como “[...] deslocamentos entre
o município de residência e outros municípios, com finalidade específica de trabalho e estudo.” (MOURA;
CASTELLO BRANCO; FIRKOWSKI, 2005, p.124).
85

um componente da vida metropolitana o trânsito de indivíduos entre municípios distintos com


destino ao local de trabalho ou de estudo. Em 2010, na RMBH, cerca de 587.700 pessoas
realizavam movimentos pendulares por motivo de trabalho ou de estudo, em torno de 12% da
população residente (SOUZA, 2015). Em 2000, esse movimento era de 8,6% da população
residente na época, envolvendo aproximadamente 374.426 pessoas. Quando comparado com
o mesmo movimento em 2010, registrou-se um crescimento relativo de 56,9% da
pendularidade na região metropolitana.
De acordo com Souza (2015) a partir de dados do Censo Demográfico de 2010, a
pendularidade por motivo de trabalho envolveu cerca de 501.190 pessoas (85,3% do volume
total dos movimentos pendulares e 10,3% da população residente) e os movimentos por
motivo de estudo atingiram cerca de 109.610 pessoas (correspondente a 2,4% da população
residente). Em 2010 os movimentos pendulares, atingiram cerca de 12,0% da população
residente e 21,9% da população total ocupada da RMBH, sendo que, destes, 475.393 pessoas
(94,9%) retornavam para casa diariamente (SOUZA, 2015). Esse crescimento da
pendularidade pode ser relacionado ao reaquecimento do mercado de trabalho metropolitano a
partir de 2003 (CARDOSO, 2008). Por outro lado, ele pode indicar aumento ao acesso à
renda e da capacidade de consumo das populações que, associado às políticas de redução de
impostos e de incentivo ao crédito destinado à compra de automóveis, proporcionou uma
expansão dos meios individuais de deslocamento no território como observado entre 2000 e
2010 (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES; INCT, 2012). O aumento do volume de
habitantes metropolitanos que realizaram movimentos pendulares, entre 2000 e 2010 expõe
um aumento da demanda dos habitantes em realizar deslocamentos intermunicipais. Assim,
emerge a questão da estrutura de sistemas de transportes coletivos existentes, vias e outros
recursos urbanos destinados a garantir a integração social da população ao território
metropolitano.
Por outro lado, o volume de movimentos pendulares apesar de ser relativamente
elevado – é superior ao da população residente na maior parte dos municípios mineiros, em
2010, apenas três, entre 853, possuíam população residente superior a 587.700 pessoas (Belo
Horizonte (2.375.151 hab.), Uberlândia (604.013 hab.) e Contagem (603.442 hab.) – não
atinge de forma homogênea a RMBH. As cidades que possuem áreas classificadas como
“dormitórios” (FREITAG, 2002; FARIA, 1991; OJIMA et al, 2007) possuíam uma
pendularidade mais intensa. Geralmente essas áreas situavam-se em municípios de fronteira a
Belo Horizonte como Vespasiano, Santa Luzia, Ribeirão das Neves, Ibirité e Raposos, no
quais esse movimento envolveu mais de 50% da população ocupada em 2010 (SOUZA,
86

2015).
A pendularidade contribui para gerar na metrópole a sensação de constante
movimento, proporcionado pelo vai e vem de pessoas que rotineiramente transitam longos
percursos da casa até o trabalho. Em média, a população residente nos municípios da periferia
que declarou trabalhar no polo metropolitano levava em torno de 1,13 horas para cumprir
cada percurso de ida ou de volta do trabalho ou escola para casa ou vice-versa (LOBO;
CARDOSO; MAGALHÃES, 2013). Os dados indicaram que os movimentos pendulares são
mais significativos para um conjunto de habitantes específicos que residem em áreas
periféricas adensadas e, ao mesmo tempo, situadas mais distantes da localização dos postos de
trabalho, e não é uma dinâmica disseminada com intensidade igual em todo o território
(Imagem 08).

Imagem 8- Pendularidade relativa dos municípios da RMBH- 2010

Fonte: Souza, 2015, p.184.


87

Entre os trabalhadores pendulares houve o prevalecimento de dois perfis ocupacionais


específicos: i) ocupações médias (ocupações artísticas e similares; de escritório; de
supervisão; técnicas; da saúde; da educação; de segurança pública, da justiça e dos correios);
e, ii) trabalhadores no secundário (trabalhadores da indústria moderna; da indústria
tradicional; dos serviços auxiliares e da construção civil) – responsáveis por 56,1% do
movimento registrado na RMBH em 2010 (SOUZA, 2015). Consoante Souza, a maior parcela
dos trabalhadores pendulares tinha níveis de rendimento e de escolarização relativamente
baixos, exceto entre os que residiam no núcleo Belo Horizonte ou no Vetor Sul.
Embora os movimentos pendulares e outros deslocamentos não computados pelo pelos
Censos, como os por motivos de lazer ou cultural, tratem-se de demandas inerentes à vida
social metropolitana, os sistemas de transportes coletivos disponíveis a estes movimentos
pouco contribuíram para garantir a integração social da população residente e flutuante ao
território da RMBH. Essa característica não é aleatória, tendo em vista que no caso desta
região, como noutras grandes aglomerações urbanas, o sistema de transporte desenvolveu-se a
partir da lógica de mercados particulares favorecidos pela produção das políticas de
mobilidade urbana. Essa dinâmica gerou uma estrutura de constrangimentos sobre as
possibilidades de os habitantes metropolitanos transitarem de forma mais integrada e livre em
função de itinerários extremamente limitados, de custo relativo elevado e de qualidade
questionável. Na RMBH essa conjuntura de desarticulação da mobilidade urbana coletiva foi
também um produto do modo como as linhas de transportes e seus itinerários se expandiram
no território e pelo modo como foram projetados, geralmente para viabilizar práticas de
especulação imobiliária semelhantemente ao processo descrito por Caldeira no contexto
paulistano:

O principal agente da expansão dos serviços de ônibus não foi o governo, mas
empresários particulares, a maioria dos quais também eram especuladores
imobiliários. [...] Ele tornou possível vender lotes no meio do mato e ajudou a criar
um tipo peculiar de espaço urbano no qual áreas ocupadas e vazias intercalavam-se
aleatoriamente por áreas vastas. Não havia nenhum planejamento prévio e as regiões
ocupadas eram aquelas nas quais os especuladores tinham decidido investir. Sua
estratégia era deixar áreas vazias no meio das ocupadas para que fossem colocadas
no mercado mais tarde por preços mais altos. [...] A urbanização da periferia foi
deixada principalmente para a iniciativa privada, com pouco controle ou ajuda das
autoridades governamentais (CALDEIRA, 2000, p.219-220).

Conforme indicou a bibliografia, os sistemas de transporte consolidados na RMBH


podem ser considerados como um dos fatores que contribuíram para manter a segregação da
vida social entre os diferentes grupos e áreas metropolitanas. Esse contributo manifestou-se
88

pelo alto investimento de custo e de tempo que a baixa integração entre sistemas de trilhos e
viários produz. A RMBH conta somente com uma linha de metrô para atender mais de cinco
milhões de pessoas residentes, fora a população flutuante, dispersas em uma área de
9.467.797 km². Essa limitação para o atendimento das demandas de deslocamento atinge com
mais intensidade os grupos de menor acesso aos rendimentos monetários e prestígio social
(MENDONÇA; MARINHO, 2015): os segmentos da população mais pobres, geralmente
situados em espaços menos integrados ao sistema de transporte coletivo, e que possuem o
ônibus como principal alternativa (NAZÁRIO, 2015). Pode-se afirmar que, a escassez de
integração com o transporte de trilhos produz, inevitavelmente, a saturação viária e pressiona
os habitantes a buscar alternativas autônomas de transporte individual para o atendimento de
suas demandas cotidianas e coletivas.
Segundo o “Relatório Metrópoles em Números: crescimento da frota de automóveis e
motocicletas nas metrópoles brasileiras 2001/2011” (OBSERVATÓRIO DAS
METRÓPOLES; INCT 2012), Belo Horizonte foi a RM que registrou maior crescimento
relativo no número de automóveis destinados ao transporte de passageiros entre 2001 e 2011.
No primeiro ano da série a frota registrada na RMBH era de 841.060 unidades, em 2012 eram
1.880.608 automóveis, média de 94.504 novos veículos a cada ano. A frota de motocicletas,
por exemplo, passou de 89.394, em 2001, para mais de 368 mil em 2011, registrando um
crescimento de 312,5%. Por outro lado, neste mesmo período, a população de
aproximadamente cinco milhões de pessoas residentes, sem contar a população flutuante,
possuía, como opção de transporte apenas uma linha de metrô de superfície conjugada a um
sistema fragmentado de transporte por meio de ônibus. A desarticulação social percebida
entre o grande contingente populacional e o território metropolitano resultou, também, das
políticas que historicamente foram produzidas na RM para tal.
Em Azevedo e Mares Guia (2000), por exemplo, propõe-se uma análise sobre a gestão
do transporte na região metropolitana de Belo Horizonte a partir de um recorte temporal de
1978 a 1998. Neste período, os autores identificaram contextos políticos e administrativos que
travavam a possibilidade de materialização de uma estrutura de transportes coletivos que
integrasse população e território metropolitano. Ainda segundo o estudo realizado pelos
autores, a gestão política dos sistemas de transportes municipais e intermunicipais,
centralizada na esfera federal até 1988, foi consecutivamente transferida aos estados e aos
municípios, sem com isso, prever alternativas institucionais para o gerenciamento da
expansão e da consolidação destes sistemas, necessárias para arcar com as necessidades
impostas pela vida metropolitana. Tal constatação pode ser empiricamente notada por
89

qualquer pessoa que utiliza diariamente o descolamento por meio do transporte denominado
como público, principalmente o que realiza os itinerários mais longos/ demorados.
O fracasso da integração socioterritorial proporcionada pelos sistemas de transporte
coletivo metropolitano foi resultado alcançado por sucessivas políticas que envolveram a
criação e a extinção de instituições públicas destinadas ao gerenciamento do transporte das
pessoas residentes na RM (AZEVEDO; MARES GUIA, 2000). A ausência de consenso sobre
os problemas de mobilidade e de consolidação de projetos relevantes para dar respostas às
demandas metropolitanas foi produto da gestão política deste sistema, que esteve polarizada
em esferas privadas e diretamente relacionadas às empresas permissionárias do serviço de
transporte coletivo da RMBH:

[...] a nova administração encontrou os empresários do setor fortalecidos,


organizados em um sindicato moderno e atuante que congregava todas as empresas
permissionárias do serviço de transporte coletivo da região metropolitana. Através
dessa associação, dotada de uma infra-estrutura técnica capaz de controlar e
processar todos os dados e informações referentes à operação do sistema, os
empresários conseguiram forjar um mecanismo de pressão considerável, com força
suficiente para encaminhar eficazmente os interesses do setor (AZEVEDO; MARES
GUIA, 2000, p. 117).

A tendência de insuficiência do transporte público em cobrir o território metropolitano


também pode ser notada noutras RM’s brasileiras. Em estudo recente sobre a qualidade de
vida nas metrópoles brasileiras por meio do Índice de Bem Estar Urbano – IBEU32, Nazário
(2015) identificou que, quanto à mobilidade urbana relativa ao conjunto das 15 RM’s
nacionais o IBEU alcançou a marca de 0,383, resultado inferior à média do índice que
classifica três níveis de bem estar entre 0 e 1: i) de 0 a 0,500 ruim ou péssimo, ii) de 0,501 a
0,800 intermediário, iii) de 0,801 a 1,000 excelente. A comparar o IBEU de mobilidade
urbana entre as RM’s a autora deparou-se com um expressivo déficit, sendo que a RMBH
apresentou índice de 0,365, menor que a média e superior apenas quando comparado à região
metropolitana de São Paulo, cujo IBEU foi17 vezes menor que a média geral das RM’s e, ao
do Rio de Janeiro cujo índice foi 37 vezes menor que o IBEU global das RM’s.
Ao comparar os níveis de mobilidade urbana entre as áreas internas da RMBH, 189
áreas de ponderação do Censo 2010, Nazário (2015) também encontrou uma discrepância
significativa nos valores. Cerca de 57 áreas (30,2%) apresentavam níveis de mobilidade

32
A autora comparou áreas internas dos municípios metropolitanos, 189 áreas de ponderação que compõe a
RMBH segundo os critérios de divisão espacial e representação amostral do Censo Demográfico de 2010,
Nazário (2015) propõe uma análise multivariada representada pelo Índice de Bem-Estar Urbano – IBEU que
varia entre de 0 a 1, sendo que, quanto menor o valor menos bem estar urbano a área apresenta. O índice
abrange cinco dimensões da vida urbana: i) mobilidade, ii) condições ambientais, iii) condições habitacionais,
iv) atendimento de serviços coletivos e v) infraestrutura.
90

urbana variando entre 0,801 e 1,000 e, juntas, agregavam 36,2% da população residente na
RMBH. Por outro lado, 62 áreas (32,8% do total das 189) tiveram níveis ruins ou muito ruins
entre 0,001 a 0,700, onde residiam 27,4% da população da RM. As demais 70 áreas (37% do
território) apresentaram valores médios, de 0,701 a 0,800, e abrigavam 36,4% da população
metropolitana. Nem todos os habitantes metropolitanos eram confrontados com problemas de
acesso à mobilidade urbana, o que não representou um problema generalizado, e sim, afetou
mais os grupos sociais residentes nas periferias metropolitanas.
Os níveis ruins ou péssimos de acesso à mobilidade urbana situaram-se, sobretudo, em
áreas da periferia, sendo que, cerca de 20 delas situadas em municípios como Contagem,
Betim, Ribeirão das Neves, Santa Luzia Ibirité e Belo Horizonte. A autora realizou também
uma análise da composição do território metropolitano ao partir dos dados do IBEU- global
(Imagem 08) e identificou que os espaços localizados no município de Belo Horizonte,
sobretudo, nas áreas centrais, pericentrais e às situadas mais ao Vetor Sul. Principalmente,
tiveram melhores resultados em relação à qualidade de vida urbana.
As áreas cujos registros representavam situações piores de qualidade de vida urbana
situavam-se nos Vetores Oeste (Ibirité, Betim, Contagem) e Norte Central (Santa Luzia,
Vespasiano, Esmeraldas e Ribeirão das Neves). Por fim, a autora conclui:

Essa distribuição espacial dos resultados do IBEU denuncia a manutenção de um


padrão desigual de urbanização, sendo o polo altamente dotado de recursos e as
periferias metropolitanas, com evidente sobreposição de carências, sobretudo nas
áreas conurbadas com Belo Horizonte, Contagem e Betim. Assim, se a extensão das
periferias sobre o território metropolitano da RMBH foi, inicialmente, caracterizada
pela proliferação de assentamentos marcados pela precariedade de infraestrutura e
de serviços coletivos, essa análise do IBEU sinaliza para a permanência desse
padrão, ainda que em menores proporções e orientada para pontos espaciais
específicos (NAZÁRIO, 2015, p.355).

A limitação dos dados censitários impede a identificação dos meios pelos quais
ocorrem os deslocamentos pendulares, se pelo transporte coletivo ou individual, bem como se
os deslocamentos são por outros motivos, além de trabalho e estudo. Se o acesso aos
transportes individuais cresceu, não se pode afirmar o mesmo em relação à evolução dos
sistemas de transportes coletivos metropolitanos (AZEVEDO; MARES GUIA, 2000). Tal
sistema apresentou-se insuficiente e pouco adequado às necessidades metropolitanas, ainda
que não se configure como um fenômeno generalizado, como exposto por Nazário (2015) por
meio do IBEU. Além da mobilidade, outros fatores associam-se à desigualdade de acesso à
qualidade de vida urbana, como a estratificação ocupacional altamente hierarquizada
observada na RMBH (MENDONÇA, 2002; MENDONÇA; MARINHO, 2015). Tal
91

estratificação expressou-se sobre a produção do espaço urbano e das paisagens de modo a


evidenciar diferenças significativas de qualidade de vida urbana que demarcam as distinções
sociais.
Imagem 9 - Índice de Bem-Estar Urbano - Áreas de Ponderação da RMBH - 2010

Fonte: Observatório das Metrópoles Ribeiro; Ribeiro, 2013, p.194.

Residir em uma área com melhor ou com pior qualidade de vida, mais ou menos
isolada do acesso ao transporte na RMBH, entre outras coisas, relacionou-se à posição
ocupada pelos indivíduos na estrutura produtiva metropolitana (MENDONÇA; MARINHO,
2015). Embora o endereço de residência não seja determinante da posição dos indivíduos na
estrutura produtiva, ele constitui uma relevante referência para identificar hierarquias sociais
92

no espaço urbano. Essa afirmação é corroborada pelo retrato da “morfologia social do


território metropolitano” da RMBH produzido por Mendonça e Marinho (2015), relativo ao
ano de 2010. O estudo identificou a permanência da concentração de grupos superiores da
hierarquia sociocupacional nos espaços de melhor qualidade urbana, zonas centrais,
pericentrais e ao sul. Por outro lado, os trabalhadores situados em segmentos inferiores da
estratificação produtiva ocupavam, predominantemente, as zonas periféricas.
Embora os dados (Imagem 08) não permitam identificar com maior detalhamento essa
dinâmica dos espaços internos metropolitanos, eles evidenciam as seguintes mudanças e
permanências nos padrões de organização da vida social no território da RMBH ao longo de
quatro décadas:

Uma permanência se destaca: a constante diferenciação socioespacial, em que pese


uma sociedade mais complexa e mais mesclada. Os grupos superiores na hierarquia
social continuam concentrados nos espaços centrais do município-polo e sua
extensão ao sul, pelo município de Nova Lima. Ao oeste, nos espaços industriais,
mantém-se também a constante transformação na direção de uma composição social
superior nas suas áreas mais centrais: centro do Barreiro, em Belo Horizonte, região
do Eldorado e sua expansão até o centro de Contagem e o centro de Betim. A
novidade, em 2010, nesses espaços, é a significativa presença de categorias
dirigentes e de profissionais empregados de nível superior, bem como pequena
diminuição da participação de grupos populares.

A permanente urbanização dos espaços periféricos vai sendo configurada com uma
composição social predominantemente popular. Anuncia-se, entretanto, a norte, a
fragmentação socioespacial do território, com a formação de enclaves residenciais
de alta renda e áreas industriais de alta tecnologia, caracterizadas por mão de obra
especializada e padrão de consumo mais alto. Tudo indica que, mais uma vez,
mudanças iniciadas pela ação estatal vão gerar novas transformações na estrutura
socioespacial da metrópole (MENDONÇA; MARINHO, 2015, p.172).
93

Imagem 10 - Localização dos grupos ocupacionais no território metropolitano, segundo


as áreas de ponderação da RMBH –2010

Fonte: Mendonça e Marinho, 2015, p.167.


94

Por fim, ao longo dessa sessão, procuramos apresentar retratos da morfologia


socioespacial metropolitana, sem com isso nos deter somente às relações econômicas. O
modo como a política urbana foi conduzida pelo Estado não representou incapacidade ou
ingerência sobre a regulação do uso do solo e sim do resultado de ações politicamente
instituídas e articuladas aos interesses de agentes privados detentores de poder econômico e
fundiário. Em uma conjuntura de desigualdades extremas, tais dinâmicas político-econômicas,
como as observadas na RMBH, contribuíram para reproduzir e reconfigurar as assimetrias
sociais e produziram no espaço urbano as marcas dessa desigualdade a partir da edificação de
paisagens demarcadoras da posição social dos indivíduos. Tendo em vista tal perspectiva a
sessão seguinte dedica-se a discussão sobre as paisagens metropolitanas e seus contrastes
sociais por meio do espaço urbano consolidado.

3.5 Paisagens metropolitanas na RMBH: espaço urbano e fronteira social

A paisagem é um dos aspectos que mais evidenciam, por meio das estruturas materiais
construídas, o sistema de estratificação social. Composta por elementos físicos e humanos que
expressam disputas sociais, crenças e valores morais partilhados, a paisagem é objeto e agente
das dinâmicas em curso na sociedade (SANTOS, 1996). O conceito de paisagem na geografia
humana compreende tanto atributos dos lugares como das pessoas que lhe estão associados,
os elementos que caracterizam contextos sociais específicos, demarcam distinções de estilos
de vida e expressam as relações de poder na sociedade. O tema foi abordado por Bonameti
(2010) que buscou, por meio da compreensão de poder formulada por Michael Foucault e
Hobbes, identificar a relação entre paisagem urbana e poder enquanto estruturadores do
espaço da cidade. O referido autor enfatiza os significados e contribuições da arquitetura e
urbanismo neste processo de produção da paisagem urbana e como representação do poder
dos grupos a partir dos espaços construídos. A paisagem é lida como um elemento
demarcador das distinções e ao mesmo tempo um mecanismo de legitimação da posição
social dos indivíduos na sociedade.
O espaço urbano, muito mais que a “unidade espacial de reprodução da força de
trabalho” como defendeu Castells (1977), por meio de sua estética e composição material e
social, expressa representações que orientam as ações dos indivíduos e, assim, contribui para
a “naturalização” das relações sociais estabelecidas. A paisagem cumpre essa “função” ou
“papel” na estruturação da vida social, e é notável que os comportamentos humanos sejam
relativamente coerentes às paisagens sociais nas quais se inscrevem como sugere a teoria de
95

Bourdieu (2000) pensada sobre o efeito do espaço enquanto paisagem, enquanto


representação social.
Na RMBH o espaço urbano, observado por meio das suas paisagens construídas,
expõe imagens contrastantes que evidenciam diferenças profundas de qualidade de vida entre
grupos sociais que habitam seu território. Somente no núcleo metropolitano, 13% da
população (307.038 pessoas) viviam em favelas em 2010, espaços que representam paisagens
morais, ou seja, são vistas como reflexo da moral das suas populações. É relativamente
comum, as pessoas terem suas identidades vinculadas às representações sociais que incidem
sobre seu “lugar de origem”, como subentendesse em perguntas ordinárias nas interações
entre pessoas ao se conhecerem como “você mora?” ou “de onde é você?”. O valor atribuído
aos indivíduos na sociedade confunde-se com as representações assumidas pelas paisagens e a
ela associadas (SANTOS, 1996).

Imagem 11- Vista de uma Rua: Belvedere e Cidade Nova - Belo Horizonte - 2014

Fonte: GoogleMaps, 2015.

Imagem 12 - Vista de uma Rua: Estrela D’alva e Nova Pampulha – Contagem e B. H. -


2014

Fonte: GoogleMaps, 2015.


96

Paisagens tão distintas (Imagens 11 e 12) revelam o limite do conceito de “área


urbana” adotado pelos órgãos de governo como o IBGE. A urbanização da periferia foi um
processo bastante particular, feita por processos políticos distintos da urbanização das áreas
centrais metropolitanas, principalmente. Embora na época da pesquisa de campo as ruas e
avenidas do Estrela D’alva estivessem quase que 100% cobertas por capa asfáltica e a maioria
dos domicílios integrados às redes de esgoto, abastecimento de água e de energia elétrica, sua
urbanização seguiu padrões diferentes. Essa diferença pode ser notada na qualidade das
calçadas, praças, postes de iluminação pública, e na geometria dos arruamentos. Tudo isso na
periferia é de pior qualidade se comparado a de áreas urbanas não periféricas da RMBH. Esse
é o ponto que destaco, da ratificação da desigualdade e das distinções sociais impressas no
próprio espaço público urbano.
A área central de Belo Horizonte, por exemplo, contrasta ainda mais com os padrões
urbanísticos frequentemente encontrados nas periferias. Na região abrangida pelo Anel da
Avenida do Contorno (Imagem 11), o alinhamento dos quarteirões, o design de praças e
jardins, seguem padrões internacionais como os boulevards franceses ou outros, as
edificações geralmente resultam de projetos desenvolvidos por profissionais arquitetos e
engenheiros com prazo de conclusão previsto nos projetos, enquanto que, nas periferias
predominam a autoconstrução e a edificação completa do imóvel pode se estender por toda a
vida. Obviamente a metrópole não expandiria tão rápido se houvessem regras muito rígidas
sobre a produção das moradias. A questão é que não houve planejamento nem sobre o modo
como foi feito o parcelamento dos loteamentos. Em geral no Estrela D’alva predomina a
ausência de titularidade sobre a posse dos terrenos. Além disso, na área central da metrópole o
mobiliário urbano é coerente aos padrões arquitetônicos e estéticos predominante nessas
áreas. Contudo, essa dinâmica não é exclusiva da região cercada pela Avenida do Contorno,
pois regeu a paisagem de áreas situadas noutras zonas metropolitanas habitadas por grupos
“superior” e “superior-médio”.
A qualidade das paisagens expressa aspectos relativos à sua composição social,
resulta do valor relativo dos capitais econômicos e simbólicos dos indivíduos, concentrados
ou dispersos em áreas metropolitanas específicas. Nas periferias havia maior diversidade de
tipos de pessoas em relação à cor de pele ou raça-cor, como parda, preta e branca, enquanto
que nas áreas ocupadas predominantemente por grupos médios e altos da estrutura produtiva
metropolitana havia predominância de pessoas de cor branca (MENDONÇA; MARINHO,
2015). Aos moradores de periferias e favelas são associadas imagens de pessoas marginais,
traficantes de drogas e criminosos responsáveis em perturbar a paz das grandes cidades
97

(ZALUAR, 1985).
Ao ter em conta as considerações supracitadas, as paisagens não se resumem à
imagem de elementos naturais e do relevo e arquitetura, as pessoas também são elementos
constituintes. As paisagens não são estáticas, elas se constituem do conjunto de fluxos e fixos
(SANTOS, 2000), elas expressam tanto as condições concretas e simbólicas, ou seja, as
representações sociais sobre a pobreza, a riqueza, a miséria, a violência, a segurança, a
insegurança, a desordem, a ordem, a racionalidade e a irracionalidade. Essas representações
indicam a natureza social dos lugares, que rotulam os estilos de vida conformados por suas
populações residentes. Essas diferenças se apresentam pertinentes inclusive no âmbito do
comportamento político de suas populações.
No caso do Estrela D’alva sua paisagem esta foi produzida durante um período de
transição do sistema político formal, na redemocratização, quando a urbanização da periferia
foi resultado de “ações coletivas33”. Ações que se traduziam em lutas e negociações feitas
entre associações de moradores e lideranças comunitárias com os candidatos em períodos
eleitorais. A etnografia mostrou que na democracia o voto apresentava-se ainda como uma
mercadoria política. Contudo, não era um comportamento político difundido em todo
território metropolitano, nas áreas ocupadas pelos estratos mais elevados (exceto em alguns
casos de condomínios fechados) nas quais a urbanização foi antecedente à ocupação
demográfica. No contexto recente, de acordo com análise da distribuição espacial dos votos
relativos aos candidatos a deputado estadual em Minas Gerais, no pleito de 2006, Rocha
(2011) identificou na RMBH aspectos que diferenciavam o comportamento político dos
4.216.690 de eleitores registrados, segundo o lugar de votação (zona eleitoral) que expressa o
local de moradia.
De uma maneira geral, as zonas eleitorais situadas nas periferias metropolitanas
apresentavam um elevado número de votos disputados entre poucos candidatos, enquanto que
“no núcleo da RMBH, especialmente no município de Belo Horizonte, a competição eleitoral
é significativamente maior” (ROCHA, 2011, p.04). O que o autor quer dizer é que a
concentração de votos em poucos candidatos, identificada em determinados locais de votação,
expressa baixa competitividade eleitoral, ou seja, representa uma forte aproximação de
candidatos específicos com áreas determinadas. O autor fundamenta seus argumentos a partir
da análise de clusters realizada entre locais de votação e número de votos destinados aos

33
Há toda uma literatura dedicada os chamados “novos movimentos sociais” que surgem nas periferias como
ator político relevante no processo de implantação de infraestrutura urbana e serviços básicos, a partir de
negociações de cunho político (LENARDÃO, 1997).
98

candidatos a deputado estadual de 2006 (Imagem 13).

Imagem 13 - Locais de votação segundo o grau de competitividade por votos para


deputado estadual – RMBH - 2006

Fonte: Elaborado por Corrêa, 2011, com dados do TRE-MG. Retirado de :Rocha, 2011, p. 06.

Os dados apresentados na Imagem acima expressam assimetrias significativas no


comportamento eleitoral, notado pela distribuição espacial dos votos e expõe uma relação
entre aumento de urbanização e aumento da competição (ROCHA, 2011), ou seja, os locais de
votação identificados com concentração alta tiveram maior presença nos municípios do
entorno metropolitano, as novas frentes de expansão periféricas. Por outro lado, a maior parte
dos locais de votação, classificados como de dispersão “média” e “alta”, situavam-se no
município de Belo Horizonte. Enfim, nas periferias os processos de urbanização e ocupação
do solo seguiram caminhos muito diversos e, muitas vezes, não lineares ao longo do tempo,
mas em geral vinculados à dinâmicas político eleitorais como a etnografia mostrou. Os dados
de Rocha (2011) evidenciam as particularidades do comportamento eleitoral nessas áreas,
onde a disputa eleitoral tem sido caracterizada pela baixa competitividade. A seguir o texto
prossegue com uma contextualização do bairro Estrela D’alva.
99

4 SITUANDO O CAMPO, A PERIFERIA: ESTRELA D’ALVA

Neste capítulo apresento uma descrição de aspectos sociais e históricos do Estrela


D’alva, abordando dimensões políticas, culturais e econômicas envolvidas, desde o período da
ocupação do bairro até a realização da etnografia. Praticamente todos os dados apresentados
são derivados da etnografia, dos depoimentos de moradores antigos. Não encontrei
documentos históricos sobre a formação da área junto à prefeitura municipal de Contagem,
somente vagas menções sobre fazendas que existiam na Regional Nacional, a regional
administrativa na qual o Estrela D’alva está politicamente situado em seu território municipal.
Inicialmente o Capítulo apresenta dados de localização geográfica, continuando a
discussão sobre paisagens iniciada ao fim do Capítulo anterior.

Imagem 14- Localização da área de estudo no contexto metropolitano e de Contagem –


RMBH – 2013

Fonte: Elaborado por Palhares; Silva, 2013 com dados extraídos de IBGE, 2010; PRODABEL, 2000.

A periferia metropolitana onde a pesquisa etnográfica e as entrevistas biográficas


foram realizadas localiza-se ao oeste do município de Contagem34 próximo à fronteira com o

34
Em 2010, Contagem era o segundo município mais populoso no universo da RMBH com 603.442 habitantes, e
terceiro em relação ao total de 853 municipalidades do Estado de Minas Gerais (Censo Demográfico de
2010).Hoje, o município de Contagem está entre as regiões consideradas de médiodesenvolvimento humano:
na escala de zero a um (do menor para o maior IDH) mais precisamente 0,789 sendo que a educação é o sub-
100

município polo da RMBH e à portaria 2 do Jardim Zoológico de Belo Horizonte (Imagem


14).
Segundo os moradores mais antigos, a história de ocupação da área limítrofe à Belo
Horizonte tem relação com a infraestrutura urbana já existente na região da Pampulha, através
da qual possuíam acesso ao transporte coletivo até o centro da capital mineira. Até os dias
atuais, através do transporte “público” ou coletivo existente, é mais fácil deslocar-se até o
centro de Belo Horizonte do que até a área industrial de Contagem. Vindo de Belo Horizonte
saindo da Pampulha, seguindo o muro do Jardim Zoológico até o Portão 2, chega-se à
fronteira municipal entre Contagem e Belo Horizonte, onde situa-se o Estrela D’alva. Neste
percurso que liga Belo Horizonte a Contagem a paisagem sofre mudanças significativas em
relação aos padrões construtivos e urbanísticos. À medida que se vai em direção da Pampulha
ao campo de pesquisa, a qualidade da capa asfáltica também sofre alterações: na periferia sua
qualidade é inferior e, além disso, o arruamento e a largura das calçadas são menos
padronizados.
A mudança nos padrões construtivos é a evidência mais clara, quando transitamos pelo
espaço metropolitano da extrema desigualdade que envolve a estratificação social no Brasil.
Ilustro a seguir algumas imagens de locais comuns do bairro, por onde transitei incontáveis
vezes durante a etnografia, imagens registradas com câmera fotográfica do aparelho celular.
Todas tiradas no mês de agosto de 201435.

índice mais próximo de 1 (0,901). Representa o 25º maior PIB do Brasil e o 3º maior de Minas Gerais, sendo
comércio e serviços o setor econômico melhor desenvolvido (66,13%), seguido da indústria (33,85%) e da
Agricultura (0,02%). Apesar do processo de industrialização e atividades econômicas situadas no município
sua taxa de desemprego em 2010 era de 9,6% (Fundação João Pinheiro) superior a média nacional que ficou
em 6,7% (IBGE, 2015).
35
Último mês de pesquisa de campo antes de minha estadia de dez meses como doutorando sanduíche na
Universidade Nova de Lisboa.
101

Foto 1 - Início e final da Rua que faz divisa com Belo Horizonte próximo ao Portão 2 do
Zoológico - Estrela D’alva - 2014

Fonte: Fotografia do Autor, 2014.

Foto 2 - Rua e esquina próxima à Casa Amarela - Estrela D’alva - 2014

Fonte: Fotografia do Autor, 2014.

No Estrela D’alva, há predominância da arquitetura “espontânea”, a autoconstrução na


qual o morador constrói sua residência com recursos próprios durante férias e/ou finais de
semana. As casas foram e continuam sendo construídas por partes, sem um projeto prévio,
através de puxadinhos para cima ou para os lados, constituem projetos de uma vida inteira,
fator que torna o processo construtivo gradual, lento, indeterminado e realizado ao longo da
vida. Há casos de pessoas que efetivamente só conseguem concluir a casa ao final da vida
102

adulta, e outros tantos que nunca conseguem terminar suas casas. O projeto de conclusão da
fachada do imóvel costuma ser o adiado ao máximo e é comum muros e imóveis sem
revestimento, com tijolos aparentes e desgastados pelo tempo, e como os imóveis não seguem
um mesmo padrão específico, pois cada casa é literalmente única, variam em tamanho de
terreno, área construída, estilo arquitetônico, etc.
Enfim, a paisagem expressa especificidades dos modos de vida dos habitantes da
periferia e que contrastam e muito em relação à sua vizinha Pampulha.

Foto 3 - Ruas próximas à Praça do Estrela D’alva - Estrela D’alva - 2014

Fonte: Foto do Autor, 2014.

Foto 4 - Fachada de uma igreja situada próximo a Rua Porto Seguro - Estrela D’alva -
2014

Fonte: Foto do Autor, 2014.

O território que denomino nesta tese por Estrela D’alva abrange um conjunto de
bairros, composto por: São Mateus, Tijuca, Confisco, Recanto da Pampulha, Estrela D’alva; e
103

três vilas: Francisco Mariano, Morro do Cabrito e Sapolândia (Imagem 15).

Imagem 15 - Imagem de Satélite da área de abrangência do território social de referência


das trajetórias juvenis, o “Estrela D’alva”- 2013

Fonte: Google Maps– 2013.

A opção em considerar esse conjunto de bairros e vilas como um único territorio


social também foi realizada pelo Programa Conjunto das Nações Unidas, por corresponder à
área na qual ocorreu em março de 2010, o maior toque de recolher da história do lugar,
durante quinze dias consecutivos. As trajetórias dos jovens foram construídas tendo como
referência o território social a partir do qual eles tiveram suas experiências de vida e este não
coincide com a demarcação do planejamento urbano municipal que utiliza critérios artificiais
para delimitar onde começa e onde termina um bairro, independentemente das relações de
vizinhaça exercidas pelos seus moradores.
O Bairro Estrela D’alva centraliza os serviços públicos e privados que atendem
moradores residentes nos bairros São Mateus, Tijuco, Recanto da Pampulha e Confisco, bem
como às favelas Sapolândia, Francisco Mariano e Morro do Cabrito, conformando assim,
uma região de convívio social que serve como referência espacial e simbólica para os
habitantes dessas áreas. Por isso a escolha do nome Estrela D’alva e não outro para classificar
o território social de referência das trajetórias juvenis. Tecidas tais considerações, que
procuram esclarecer como e porque o nome Estrela D’alva foi elaborado, para o
desenvolvimento da pesquisa de campo o texto prosseguirá com uma caracterização
104

sociodemográfica do referido território social (Imagem 15) que também é conceitualizado


pelo termo periferia nesta tese.
Destaca-se também o entorno do Estrela D’alva, onde estão localizados galpões de
armazenamento de bens industriais, de empresas de transporte e de logística e também pelo
Centro de Distribuição e Abastecimento de alimentos CEASA, onde moradores da região
encontram oportunidades de trabalho. Geralmente são ocupações que exigem baixa
qualificação técnica e possibilita níveis de remuneração na faixa do salário mínimo. Em 2013
havia seis escolas municipais, e somente uma de ensino médio. Em síntese, trata-se de uma
região onde residem pessoas pouco qualificadas, onde há muitas desempregadas e vulneráveis
(CadÚnico/GEPS, 2010). Ali as forças políticas estão acostumadas com o voto como moeda
de troca. Essa vulnerabilidade política é reforçada pela situação e fronteira política
administrativa da área, situado na divisa entre municípios, os governos locais tendem a
negligenciá-los, fato que ocorreu e ainda ocorre com o Estrela D’alva.

4.1 Ocupação, urbanização e vida política no Estrela D’alva: décadas de 1980 e 1990

A ocupação do Estrela D’alva teve como referência inicial a ausência de infraestrutura


urbana, de serviços básicos e o fato dos loteamentos clandestinos decorrentes de
parcelamentos de fazendas e chácaras de veraneio entre o final dos anos 1970 e ao longo da
década de 1980 (Registros de Campo, 2013). Processo de parcelamento do solo segundo o
qual Souza e Brito (2008) relacionam à dinâmica imobiliária destinada à acomodação das
populações de baixa renda que não conseguiam fixar-se no núcleo metropolitano. Segundo
indicou o relato dos moradores os loteamentos eram feitos de modo informal, alheio a
qualquer tipo de planejamento urbano e ambiental e sem regularização fundiária e por isso,
gerou conflitos sobre a posse do imóvel ao passo que o recibo de compra adquirido não tinha
valor jurídico.
Embora toda a clandestinidade que caracterizou o processo de parcelamento do solo e
a ocupação do sítio geográfico onde foi construído o Estrela D’alva, houve morador que
adquiriu imóvel por meio de financiamento público, como apresenta o relato de uma
moradora pioneira do Bairro, Dona Maria, que conta porque saiu de Belo Horizonte em
direção ao Estrela D’alva.

Foi porque eu morava de aluguel, casei e fui morar de aluguel, e o lugar que a gente
morava era lá no Pindorama, e lá era uma granja que a mulher passou para moradia,
meu marido mesmo nem abria a janela lá, e eu fui e falei que um dia eu ia ter algo
105

meu se Deus quiser, eu vou lutar pra isso. Mas se eu dependesse do meu marido ele
não lutava não, ele tinha medo de dívida, mas eu não tinha. Então, eu corri atrás, e
para eu ter esse lote aqui foi preciso eu dar tapa na cara [ser firme] do sujeito que
queria roubar o lote de mim, rasgar os documentos do contador todinho e espedaçar,
e derrubar eles tudo lá para eu ter esse lote aqui. Aí, o gerente da Minas Caixa ficou
sabendo e não deixou eu perder o lote, ele foi comprado pela Caixa. Tinha gente
querendo tomar esse lote aqui de mim, porque eram quatro lotes, eu arrumei quatro
lotes e então eu tinha que vender três para poder comprar um, porque eu não tinha
dinheiro para comprar todos, e aí eu escolhi esse daqui, e eles queriam tomar este
daqui de mim, na imobiliária, no contador, eles estavam de cambalacho comigo,
então eu fui e levantei de madrugada e cerquei o cara na esquina e rasguei os
documentos todos, eu arrisquei muito a minha vida por causa disso daqui, entendeu?
(Entrevista com Dona Maria, 2013).

Logo do início da ocupação do Estrela D’alva seus moradores deparavam-se com o


problema da falta de titularidade fundiária: “pra eu ter esse lote aqui foi preciso eu dar tapa na
cara”. O caso Dona Maria é ilustrativo do processo de periferização da RMBH descrito nos
capítulos anteriores; cansada de pagar aluguel em Belo Horizonte convenceu seu marido a
viver em um bairro novo, geograficamente distante do centro, e relativamente isolado por ser
pouco assistido pelos sistemas de transporte coletivo e de massa metropolitanos. Ela teve que
tomar medidas extremas, rasgou os “documentos”, bem como teve de buscar o financiamento
com o extinto Banco Minas Caixa. Dona Maria foi uma moradora, entre muitos outros,
pioneiros da ocupação de uma área literalmente de fronteira urbana e social, situada nas
margens da legalidade e da ilegalidade “terreno irregular financiado pelo governo”. Sua
residência acumula os registros dessa história, em um dos quartos próximos à cozinha era a
cisterna contou-me.

A cisterna, ela ficava ali, não tinha bombeamento porque não tinha luz, puxava na
corda mesmo, até 1985 eu tive a cisterna desse jeito, depois, eu fiz um padrão de luz
lá no Estrela D’alva e puxei uns 700 metros de fiação, ida e volta dá 1.400 metros, e
trouxe luz para aqui, mas a luz chegava fraquinha, era a conta de ligar a geladeira, e
se fosse tomar banho tinha que desligar a geladeira. E eu fazia chup-chup e vendia,
era só eu que tinha luz aqui. (Entrevista com Dona Maria, 2013).

A história contada pelos moradores mostrava que a de ocupação da periferia foi


orientada pela condição marginal, de fronteira, híbrida entre lícito e ilícito, por meio da qual a
área foi anexada à mancha urbana metropolitana. Diferentemente de Dona Maria, outros
moradores optaram pela invasão ao invés da compra do terreno. Uma ação que fazia sentido à
medida que as pessoas que compravam não adquiriam a titularidade do imóvel, permaneciam
em situação irregular perante a Lei. As áreas onde a invasão prevaleceu deram origem às
atuais vilas Sapolândia, Francisco Mariano e Morro do Cabrito (Registros de Campo, 2013).
106

O modo como o Estrela D’alva foi ocupado, loteamentos clandestinos, durante a


expansão metropolitana nas décadas de 1970/1980 gerou também graves consequências
ambientais para seus habitantes. O solo do lugar, de constituição geológica
predominantemente calcária, sem um planejamento para a drenagem e esgotamento sanitário
por décadas (este corria a céu aberto) deixou exposta sua superfície que não suportou o
impacto das chuvas tropicais provocando a erosão do solo. Essa erosão atingiu uma proporção
drástica na década de 1990, originando uma enorme voçoroca36, uma cratera, que ficou
conhecida no local como “buracão”, que atingiu principalmente as áreas de vale do relevo,
onde o escoamento das águas era mais intenso, onde hoje está situado o CRAS- Casa
Amarela.
Segundo o relato do Senhor Antônio, morador também antigo no bairro, com quem
tive oportunidade de realizar entrevista, a erosão aconteceu concomitantemente ao
adensamento do bairro:

Não, não tinha buracão, ele era um rego de nada, e imediatamente vinha uma chuva
e ele formava e, quando agente assustou tinha mais de 90 graus chão à dentro, e
tinha uma nascente dentro dali, e essa nascente acho que foi desbarrancando por
debaixo, e aí eu acho que de uma vez a água passando por debaixo e com a chuva,
deve ser que estava oco lá assim, e caía de uma vez, e foi formando o buracão. [...]
Eu comprei aqui era lote, lote puro, com árvores de raízes muito profundas, então,
eu mesmo arranquei as raízes e a gente foi construindo aos poucos e hoje minha casa
está aí com onze cômodos (Entrevista com Senhor Antônio, 2013).

A história da periferia é representada pela capacidade de superação das contingências


diárias decorrentes da estrutura social extremamente desigual pela qual a metrópole expandiu-
se. Após narrar sobre o problema antigo, o “buracão”, Senhor Antônio conclui seu relato com
um tom de vitória: “e hoje minha casa está aí com onze cômodos”. Do mesmo modo Dona
Maria narra suas conquistas como a ligação clandestina à rede elétrica que lhe garantia fontes
de renda alternativas “eu fazia chup-chup e vendia, era só eu que tinha luz aqui”.
Durante a etnografia pude conhecer imagens da cratera por meio de uma filmagem
feita pela associação de moradores do bairro São Mateus onde tive ideia da dimensão que a
erosão assumiu ao longo dos anos de 1990 e início dos anos 2000. Durante esse período, o
“buracão” representou um dos principais problemas do lugar, era responsável em
proporcionar tragédias humanas representadas por episódios desmoronamento de casas e de
morte de pessoas:

36
Para definição técnica do termo. Ver: GUERRA, A. Novo Dicionário Geológico-Geomorfológico. 8ª Ed. – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
107

E dentro do buracão não ficou ninguém, e na beirada do buracão ficou, e alguns


caíram lá embaixo com a casa e tudo, e teve gente que morreu, teve uma menina de
cinco anos que a enxurrada carregou ela e nós fomos achá-la juntamente com o
Corpo de Bombeiros lá na Lagoa da Pampulha. A Defesa Civil era quem ajudava,
vinha chuva e a gente ligava para a Defesa Civil e a gente passava a noite
socorrendo as pessoas. (Entrevista com Dona Maria, 2013).

Diante deste e de outros problemas de natureza estrutural os moradores buscavam


remediar os efeitos da condição individual de pobreza de cada um por meio de ações coletivas
como mutirões e comunidades religiosas. Em um território formado por migrantes de diversas
origens, a maior parte natural do próprio Estado de Minas Gerais, a religiosidade
fundamentada no catolicismo representava o principal ponto de convergência dos vínculos
sociais do lugar. Por meio da convivência religiosa não só fortaleciam seus vínculos sociais –
na década de 1980 não existia sede de igreja católica na região e eles utilizam suas próprias
casas para realizarem novenas e funerais – como encontravam meios para organizarem-se em
torno dos problemas locais37.
Este foi também um tempo caracterizado pelos efeitos da redemocratização formal do
sistema político do país sobre a estruturação das ações coletivas na periferia, notados no
deslocamento político mediado pela religião para as associações de moradores. Estas, após a
Constituição Federal de 1988, passam a integrar o sistema político formal, a partir de vínculos
estabelecidos entre moradores e bairros e candidatos a cargos políticos, e não mais pela
mediação do padre católico. Como resultado desse processo de incorporação burocrática das
organizações políticas civis da periferia, foi fundada em 1993 a Associação Comunitária dos
Amigos do Bairro São Mateus/ACABSM, através da Lei Municipal nº 2.553.
A associação era sediada na casa de uma moradora que era a presidente e fundadora.
Ela desempenhava um papel de liderança comunitária independente da igreja. Não era mais o
padre o principal representante político do Estrela D’alva, e sim, um morador local, foi uma
forma de simbolizar a chegada da “democracia” na sociedade. Por outro lado, a instituição
ACABSM possuía pouquíssimo poder de representação política, se comparada ao que a
instituição católica possuía para fazer frente ao lobby dos grupos que dominam de fato os
rumos da produção das políticas públicas. Deste modo, embora a constituição da ACABSM

37
Como uma espécie de herança do regime militar 1964-1988 as relações entre poder público e moradores das
periferias/favelas foi configurada de forma tensa e impunha aos moradores dessas áreas organizarem-se
enquanto movimentos comunitários, inspirados nos movimentos sindicais, mas articulados por meio do
catolicismo, como foi o caso da Pastoral da Favela (PF), criada entre 1979 e 1980, aproximadamente. A
instituição, PF, tornou-se uma organização bastante difundida entre as vilas e bairros populares de Belo
Horizonte. Posteriormente, a PF deu origem a dois outros importantes movimentos: a “Federação de Bairros e
Vilas”– FBV e a “União dos Trabalhadores da Periferia” – UTP. (CONTI, 2004; URBEL, 2009).
108

pudesse representar a criação de um instrumento de ação política mais eficaz e adequada ao


novo cenário político nacional, sua capacidade de ação tornava-se mais limitada sem a
instituição religiosa por trás, e assim, refém do jogo político eleitoral instaurado após 1988.
Deste modo, a ação da associação passou a ser vinculada a personagens políticos que a
utilizava como braço direito para a conquista de votos na disputa eleitoral. Como não existiam
CRAS ou nenhum outro tipo de equipamento desta natureza na época, o Estado colonizava a
ACABSM, que exercia um papel central de agente executor da política de assistência social
governamental sobre a periferia. Deste modo, cabia à ACABSM a distribuição de benefícios
como cestas básicas, tickets de leite, vales gás, e, além disso, viabilizava registros de
nascimento e de óbito, transporte para conduzir os moradores aos sepultamentos em
cemitérios, organizava festas de rua e comícios eleitorais. Na sede da associação funcionou a
primeira escola infantil existente no bairro, o pré-escolar “Patinho Feliz”.

E nós queríamos que essa escola fosse municipal e não deu, por causa, que tinha
uma briga entre o Nilton Cardoso e o Ademir Lucas, o Nilton Cardoso era
governador e o Ademir Lucas era prefeito. E aí, não conseguimos municipalizá-la, e
aí ficou como estadual mesmo, e o Nilton Cardoso dava todo o apoio pra gente, e
liberava verba, e me convidava a ir lá, através de telegramas, assinar a verba da
escola e a prefeitura tinha doado móveis e um tanto de outras coisas mais para fazer
a escola aqui regular. Tinha quatro turnos, a gente começava a dar aula aqui era as
07:00h da manhã e terminava era as 22:00h, de noite, porque eram alunos demais,
eram mais de 1.200 alunos, muita criança mesmo, de 1ª a 4ª série e o pré-escolar de
1º, 2º e 3º períodos, que era o Pré-escolar Patinho Feliz, tudo funcionando ali,
naquelas lojas ali que você está vendo (Entrevista com Ilda B., Fundadora da
ACABSM: 2013).

Vinculada às ações executadas pela ACABSM, estava sempre a relação personificada


de agentes políticos, o “Nilton Cardoso”, o “Ademir Lucas”. Em momento algum a moradora
citou que a escola deveria ser instalada por causa de um “direito” à educação, previsto na
Constituição Federal de 1988. Desta forma foi conduzida também a implantação da
infraestrutura urbana básica no bairro e do asfaltamento do bairro, como refém das disputas de
cunho eleitoreiro. Ao mesmo tempo, a construção da escola decorreu também de pressões
políticas exercidas pela ACABSM sobre o governo municipal da época.

Não tinha nada, não tinha escola, não tinha água, não tinha luz, não tinha asfalto,
não tinha ônibus, não tinha rede de esgoto, entendeu? Então, quando eu comecei a
correr atrás desses negócios era com o prefeito João Lima, que tinha ficado tomando
conta da prefeitura até o Nilton Cardoso ser eleito e entrar para lá. Então, eu enchia
uma caminhonete de crianças, e nós conseguimos a escola através disso, a gente
colocava os meninos para mijar no tapete do prefeito, lá onde é a Câmara Municipal,
e nós levávamos os meninos e eles mijavam lá. Os meninos diziam, “ah eu quero
fazer xixi”, e a gente dizia “pode fazer aí, pode fazer aí”, e o prefeito ficava olhando
assim, mas não podia fazer nada, e aí ele “vamos construir a escola lá”. (Entrevista
com Ilda B., Fundadora da ACABSM, 2013).
109

Em 1997, com base nas lutas desta entidade o “buracão” foi tampado com rejeitos e
detritos decorrentes da construção de um shopping em Contagem e, em seu lugar, criou-se
uma área pública sem nenhum tipo de ornamentação ou equipamento urbanístico. Após a
redemocratização a manutenção do poder político passava a depender dos votos de uma
população cujos direitos foram historicamente negligenciados pelo “Estado de Direito”, pela
“República”. Por outro lado, à medida na qual o Estado conseguia fixar equipamentos para
execução das políticas governamentais, menos incentivo a ACABSM recebia e menos
dependentes dela encontravam-se os personagens políticos, que passavam a utilizar outras
formas de mediação para a conquista de votos na região, como as “lideranças comunitárias”.
A perda de importância da ACABSM enquanto instituição mediadora da relação entre
população da periferia e representantes políticos governamentais gerou um descolamento e o
agenciamento dos votos passou a ser exercido por lideranças comunitárias desvinculadas das
associações de bairro ou sindicato. Entre estas, entrevistei José Estrela, uma pessoa que
atuava como liderança e ocupava cargo comissionado no governo municipal em função disso.
Ao questioná-lo sobre como partiu a ideia de tornar-se uma “liderança comunitária” ele disse
que isso não ocorreu de forma premeditada, não tinha a intenção ou qualquer planejamento
prévio nesse sentido e conclui: “As coisas foram acontecendo”. Foi numa época na qual
passava por dificuldades financeiras, estava casado e com filhos, era sua primeira família, e
seu carro fora apreendido por falta de quitação das taxas anuais de licenciamento obrigatório,
no dia em que houve um “tumulto” na porta da escola. No meio do burburinho uma pessoa
gritou em sua direção e disse “José vem cá, o fulano que está dando macarrão”. Era período
eleitoral e havia um político distribuindo macarrão e também uma candidata à prefeita estava
envolvida. Ao aproximar-se do portão da escola, José foi surpreendido com a pergunta: “José,
por que é que você não mexe com política? Você é um cara muito conhecido e tal, [...] pede
essa mulher um dinheiro, que ela te dá, você não está precisando? Pede ela uns dois mil, três
mil reais”. E José respondeu: “Ah, essa mulher não vai me dar isso não, você está doido?” E
então a pessoa retrucou: “você sabe como funciona?”, explicou:

Você marca uma reunião na sua casa e como você conhece muita gente, quanto mais
gente você tiver mais força você tem de liderança, é assim que funciona. Aí, ele foi e
me apresentou ela, e a candidata perguntou: você conhece muita gente? E aí eu
disse: conheço! E aí, eu consegui encher minha casa de gente, coloquei de 80 a 100
pessoas. Quando a mulher chegou e viu a casa cheia, ela ficou doida. Nesse início,
ela me deu o dinheiro combinado, eu me apaixonei primeiro pelo dinheiro, pois,
numa reunião já consegui tirar o meu carro! (Entrevista com José Estrela, Liderança
Comunitária, 2012).
110

Cada vez mais o papel de liderança comunitária associava-se ao carisma pessoal, à


popularidade e à capacidade de indivíduos em viabilizar, em períodos eleitorais, a eleição de
determinados candidatos. Na redemocratização, as disputas eleitorais se sobrepuseram ao
direito das pessoas e isso gerou uma situação de desgaste, de saturação por parte dos
moradores, que, por sua vez, acreditavam em mudanças a partir dessa nova estrutura política
vigente no país. Ao mesmo tempo em que ACABSM perdia força enquanto espaço de
representação coletiva, e as lideranças comunitárias, como José Estrela, atuavam de modo
mais individualizado; na esfera religiosa os pastores evangélicos emergiam como novas
lideranças políticas relacionadas à ação coletiva na periferia como foi o caso do líder principal
da Primeira Igreja Batista do Estrela D’alva.
Enfim, quanto à ocupação e ao processo de urbanização do bairro, pode-se dizer que
foi lento e gradual, executado por “etapas” principalmente durante os períodos eleitorais, e
esteve relacionado às dinâmicas de troca de votos por “favores”. A urbanização não se
consolidou como direito e sim como moeda resultado das trocas políticas em torno do voto,
concomitante ao período de redemocratização do sistema político formal, tempo de referência
das trajetórias de vida dos jovens que entrevistei. Período no qual o bairro também viu crescer
os problemas relacionados à violência e ao cometimento de crimes em espaços públicos.

4.2 A periferia consolidada: pobreza e violência

Após trinta anos da história de ocupação do sítio, em 2010, a urbanização da periferia


estava consolidada no tocante a estar integrada aos serviços públicos básicos e inserida na
malha urbana (TORRES; MARQUES, 2001). Esta era a situação do Estrela D’alva que
contava com uma cobertura de rede de esgoto, acesso à rede de distribuição de água e à rede
elétrica que abrangia em torno de 96% dos 5.765 dos domicílios contabilizados pelo censo
demográfico de 2010 (Quadro 02). Sua paisagem social já estava construída, claro que em
constante processo de mudança, mas as ruas que lá existem serão aquelas, dificilmente os
governos irão construir outras, as escolas e praças também, tudo feito especialmente para os
“pobres”, tudo com qualidade inferior que nas áreas ocupadas por classes médias e altas.
111

Quadro 2 - Características das pessoas e dos domicílios - Estrela D’alva e Contagem -


2010
(%) de
Total de (%) de (%) de (%)
População domicílios
Domicílios domicílios domicílios domicílios
Área residente com Rede
particulares com Rede de com Rede com Coleta
(N) Distribuidora
(N) Esgoto Elétrica de Lixo
de Água
Bairro Estrela
D’alva 20.169 5.765 85,2 99,7 99,7 99,9

Município de
Contagem 603.442 184.839 88,5 99,3 99,2 99,3

(%) de (%) de (%) de


(%) de (%) de
(%) de pessoas pessoas pessoas
pessoas de pessoas de
Área pessoas de 15 responsáveis responsáveis responsáveis
cor-raça cor-raça
a 29 anos do sexo do sexo de 15 a 29
preta e parda branca
Feminino Masculino anos
Bairro Estrela
D’alva 15 69,5 29,5 43,2 56,8 18,6

Município de
Contagem 13,7 59,1 39,2 39,1 60,9 14,4

Fonte: Elaborado pelo autor com dados extraídos de IBGE, 2013 - Censo de 2010.

Os dados censitários de 2010 apresentados aqui, embora sucintos, mostram que o


Estrela D’alva encontrava-se em situação social pior que o município de Contagem em
relação ao número relativo de pessoas responsáveis por domicílios do sexo feminino e de
pessoas com idade de 15 e 29 anos (Quadro 02). A comparação também apontava que a
presença de jovens com níveis mais baixos de escolarização era relativamente superior no
bairro. Em Contagem, a situação era a seguinte, 33,1% haviam cursado até o ensino
fundamental, 56,5% ensino médio, 9,6% curso superior, 0,7% pós-graduação lato sensu e
0,1% pós-graduação stricto sensu 0,1.
A urbanização do bairro, a cobertura e o acesso aos serviços apresentados
anteriormente através do Quadro 2 representam resultados de inúmeros processos históricos,
políticos e sociais relacionados também à participação das associações de bairros, igrejas e
outras formas de ação coletiva consolidadas no bairro. Ações que contribuíram para moldar
sua paisagem urbana e seus espaços públicos e a consolidar a área como periferia como
espaço social “marginal”, situado nas “margens” da estrutura política e econômica da RMBH.
Em 2010, muito antes da inauguração do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS)
Casa Amarela e da Cozinha Comunitária, a região continuava a ser identificada por meio da
concentração de pessoas em situação de pobreza. Segundo os dados disponíveis sobre essa
população no Cadastramento Único – CadÚnico, em 2010, 4.756 pessoas estavam cadastradas
112

neste sistema de informação, ou seja, público potencial das políticas assistenciais como, por
exemplo, o Programa Bolsa Família (Tabela 03).

Tabela 3 - População residente cadastrada no CadÚnico e beneficiários do Programa


Bolsa Família - Estrela D’alva - 2010
Total de Pessoas
Bairro/ Vila cadastradas
Com Bolsa Família Sem Bolsa Família

São Mateus 628 312 316

Confisco 497 270 227

Vila Franc. Mariano 535 286 256

Estrela D’alva 2.354 1.424 930

Tijuca 237 109 128

Recanto da Pampulha 505 272 233

Total 4.756 2.673 2.094


Fonte: CadÚnico/GEPS março/2010.Nota: Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social do município de Contagem em 2013.

As Tabelas 04, 05 e 06 expõem um detalhamento da situação de trabalho, escolaridade


e da faixa de renda declaradas pelas pessoas que estavam cadastradas no CadÚnico em 2010.

Tabela 4 -Situação no mercado de trabalho da população residente cadastrada no


CadÚnico – Estrela D’alva – 2010

Aposentado Não
Bairro Pessoas Com CTPS Sem CTPS Autônomo Outras
pensionista trabalha

São Mateus 631 40 11 20 14 464 82

Confisco 522 37 8 7 17 395 58


V. F. M. 536 22 7 10 12 408 77
Estrela
2.135 122 25 38 53 1.593 304
D’alva
Tijuca 235 17 2 5 9 163 39

R. Pampulha 488 13 10 10 15 348 92

Total 4.547 251 63 90 120 3.371 652


Fonte: CadÚnico/GEPS março/2010.Nota: Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social do município de Contagem em 2013.

O número de pessoas que não trabalham (75%) pode ser explicado pela falta de acesso
ao mercado formal e também pelo alto número de crianças e adolescentes na região. Do total
de pessoas cadastrados naquele tempo no CadÚnico, 1.967 tinham até 16 anos de idade.
113

Tabela 5 - População residente cadastrada no CadÚnico segundo a escolaridade -


Estrela D’alva - 2010
5ª. a 8ª Fund. Médio Médio Superior

Bairro Pessoas Analfabeta
Incompleto.
4ªCompleta
Incompleto. Completo Incompleto Completo Completo

S. Mateus 631 114 204 39 182 15 43 33 0

Confisco 285 39 71 17 101 6 30 20 0

V. F.M 562 111 170 29 189 12 33 18 0

E. D’alva 2.133 416 642 115 626 57 168 109 1

Tijuca 236 44 60 10 68 13 20 21 0
R.
489 77 130 39 163 13 41 26 0
Pampulha
Total 4.339 801 1.277 249 1.329 116 335 227 1
Fonte: CadÚnico/GEPS março/2010.Nota: Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social de Contagem em 2013.

Tabela 6 - Famílias cadastradas no CadÚnico segundo a faixa de rendimento familiar –


Estrela D’alva - 2010
Faixa de rendimento familiar
Total de
Bairro
Famílias De 40,01 Até De 60,01 Até De 120,01 Acima de
Até 40,00
60,00 120,00 Até 155,00 155,00

SãoMateus 177 38 34 62 18 25

Confisco 104 18 14 51 11 10

V. F. Mariano 149 44 11 69 13 12

Estrela D’alva 622 140 97 246 66 73

Tijuca 63 15 6 21 12 9

R. Pampulha 143 41 14 65 11 12

Total 1.258 296 176 514 131 141


Fonte: CadÚnico/GEPS março/2010.Nota: Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social de Contagem em 2013.

Por fim, passadas duas décadas após a redemocratização, a pobreza, o isolamento


social e geográfico mantiveram-se como características marcantes na história do Estrela
D’alva. Ao mesmo tempo, outras questões passaram a compor significativamente a vida
social do bairro tais como o desenvolvimento do mercado de drogas ilícitas e os episódios de
violência no espaço público. Na primeira década do século XXI a periferia se apresentava
114

consolidada como um espaço “marginal”, onde residia tanto o público alvo das políticas
focalizadas de assistência social como das políticas de repressão qualificada executada pelas
polícias. Em março de 2010 os moradores foram submetidos a um toque de recolher de 15
dias consecutivos. A história recente do Estrela D’alva foi também conformada por conflitos
sociais envolvendo violência policial e mortes brutais, a maior parte envolvendo pessoas
jovens.

4.3 Vida social, violência e narcotráfico no Estrela D’alva

Se ao longo das duas primeiras décadas de ocupação do bairro a falta de infraestrutura


e ausência de serviços urbanos básicos caracterizavam-se como principais problemas
coletivos dos moradores, ao final da primeira década do século XXI esses problemas foram
“substituídos” por outros como a violência homicida e a expansão de atividades criminosas
locais, do narcotráfico principalmente. Segundo os entrevistados, a violência associada à
presença do narcotráfico no bairro é relativamente recente, não sendo anterior aos anos de
2006/2007. Não significa que o bairro não passasse por problemas relacionados à violência,
porém, com outra configuração. Em 2008, Contagem era o 13º município com maior Índice
de Homicídios de Adolescentes – IHA38 no ranking nacional das municipalidades com mais
de 200 mil habitantes, com 4,55 de IHA39.
O problema do crescimento da violência e da maior ocorrência de homicídios não era
um problema exclusivo do Estrela D’alva representava um fenômeno difundido noutras áreas
do município de Contagem e da região metropolitana (MARINHO, 2012). Embora os
registros de ocorrências de homicídios consumados e as tentativas em todo o município de
Contagem, a partir de 2007, tenha apresentado uma tendência de queda, na área do 18º
Batalhão de Polícia Militar que abrange o Estrela D’alva houve crescimento.

38
O IHA, Índice de Homicídios na Adolescência, estima o risco de mortalidade por homicídio de adolescentes
que residem em um determinado território (Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República – SPDCA/SEDH, UNICEF, Observatório de Favelas e Laboratório de Análise da Violência –
LAV/UERJ).
39
Embora não tenha levantado dados de períodos anteriores e os relatos dos moradores sejam percepções, em
relação aos homicídios, brutais e recorrentes envolvendo pessoas jovens predominantemente, a etnografia
indicou se tratar de um problema mesmo recente na história do bairro, desde os últimos dez anos.
115

Tabela 7 - Taxa de mortalidade por 100.000 habitantes, segundo a causa homicídio em


residentes - Contagem - 2003 a 2008
Total de óbitos por Taxa de mortalidade por
Ano População
homicídio homicídio
2003
95 565.258 16,8
2004
99 573.870 17,3
2005
118 593.420 19,9
2006
308 603.374 51,0
2007
293 613.251 47,8
2008
134 617.749 21,7
Fonte: Epidemiologia/SMS/Contagem - Sistema de Informação de Mortalidade- SIM.
Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela representante da Secretária de Assistência
Social do município de Contagem em 2013.

Note-se que os dados obtidos pelo Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) de


2008 são inferiores ao total registrado pela polícia relativo ao mesmo ano. Embora os
registros de ocorrências de homicídios consumados e as tentativas em todo o município de
Contagem, a partir de 2007, tenha apresentado uma tendência de queda, na área do 18º
Batalhão de Polícia Militar que abrange o Estrela D’alva houve crescimento. É importante
ressaltar que não obtive acesso aos dados de pessoas desaparecidas, nos quais, incluem
certamente casos de mortes sem vestígios, sem corpo encontrado, desaparecido.

Tabela 8 – Número de Homicídios Tentados e Consumados – Contagem – 2007 a 2009


HOMICÍDIOS
Área por Batalhão da Polícia Militar 2007 2008 2009 TOTAL
Consumados
Área 18º BPM – (Cobre o Estrela 43 138 118 299
D’alva outros bairros)
Área 39º BPM – (Cobre restante de 35 83 57 175
bairro da Regional Nacional)
Total 78 221 175 474
Tentados
Área 18º BPM – (Cobre o Estrela 77 145 140 363
D’alva outros bairros)
Área 39º BPM – (Cobre restante de 44 135 94 273
bairro da Regional Nacional)
Total 121 280 234 636
Fonte: Polícia Militar de Minas Gerais, 2010. Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social do município de Contagem em 2013.

Enquanto países como a Dinamarca, Bélgica, Suiça, Roménia, entre muitos outros em
um grupo de mais de vinte, apresentaram médias inferiores a 2 homicídios por ano, em um
116

pequeno sítio geográfico, o Estrela D’alva, tinha números exorbitantes (WAISELFISZ,2010,


2011). A seguir apresentamos alguns dados sobre homicídios consumados e os tentados
relativos ao Estrela D’alva.

Tabela 9 - Número de Homicídios Tentados e Consumados , Roubos e Crimes não


violentos - Estrela D’alva - 2007 a 2009
Número de Homicídios Tentados e Consumados, Roubos e Crimes não violentos* – Estrela D’alva
Crimes
Homicídio Homicídio Total (Consumado e
Ano Roubos não
Tentado Consumado Tentado)
violentos
2007 3 3 6 15 78
2008 6 6 12 39 386
2009 11 9 20 19 355
Total 20 18 38 72 819
Fonte: Polícia Militar de Minas Gerais, 2010.
Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela representante da Secretária de Assistência
Social do município de Contagem em 2013. *Crimes considerados como não violentos: furtos, ameaças,
vias de fatos e outros considerados pela PMMG como sendo de menor potencial ofensivo.

As ocorrências policiais registradas no período demonstram crescimento do número de


ocorrências de homicídios consumados no Estrela D’alva. Por outro lado, o crescimento dos
assassinatos foi acompanhado por diminuição do número de ocorrências de roubos e furtos
registradas no referido território social. Esse quadro reforça a hipótese de que tais mortes
estejam associadas ao período no qual o narcotráfico buscava consolidar-se no bairro com o
estabelecimento de suas regras de convívio social, que incluía a “proibição” aos roubos e
furtos cometidos na região, com intuito de evitar a presença da polícia no local. De acordo
com os jovens que entrevistei a “época das mortes” foi também um período no qual o número
de noiados40 no bairro era grande, e estes, pelo efeito narcótico do crack tendiam a envolver-
se com mais frequência nestes crimes contra o patrimônio. Por outro lado, os governos
tendiam a explicar essas mudanças em função da presença policial supostamente mais efetiva
no local.
Embora ocorressem em todo o território, os crimes registrados nas ocorrências
policiais tenderam a concentrar-se em determinados espaços como ilustrado nas duas Imagens
seguintes.

40
Termo corrente utilizado na periferia e que faz referência ao viciado em drogas ilícitas em geral. Pelas
conversas informais que realizei e entrevistas soube que o termo surgiu por causa dos viciados em crack, na
pedra, na nóia, daí, surge o noiado. Obviamente este termo vem de outros lugares, assim como as drogas e
armas utilizadas pelas redes criminosas locais, inclusive a polícia (Registros de Campo, 2013).
117

Imagem 16 – Mapa de Kernel - ocorrências policiais registradas no Estrela D’alva 2010

Fonte: Polícia Militar de Minas Gerais, 2010.


Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela representante da Secretária de Assistência
Social do município de Contagem em 2013.

Imagem 17 – Mapa de Kernel dos crimes violentos registrados no Estrela D’alva - 2010

Fonte: Polícia Militar de Minas Gerais, 2010. Adaptações feitas pelo autor. Dados disponibilizados pela
representante da Secretária de Assistência Social do município de Contagem em 2013.

No Estrela D’alva, desde que iniciei a etnografia, foi frequente ouvir comentários por
parte dos moradores e dos jovens entrevistados a respeito das regras sociais impostas pelo
narcotráfico. A proibição da prática de roubos dentro do território e a realização dos “toques
de recolher” eram as principais delas. Em relação à primeira, da proibição dos roubos, era
118

curioso notar um reconhecimento por parte dos moradores de que a presença do tráfico
contribuía para a inibição de roubos, neste ponto o narcotráfico conseguia legitimidade
perante os habitantes como será apresentado, inclusive nas trajetórias. Por outro lado nenhum
morador tinha orgulho de dizer que havia presença de grupos de narcotraficantes na sua
vizinhança. Neste contexto os moradores aprendiam a conviver em um ambiente em disputa,
por ordens sociais que se apresentavam como antagônicas, a estatal e a ordem imposta pela
criminalidade local. Em relação a esta última, além das mortes e outras violências, uma
prática imposta rotineiramente pelos narcotraficantes aos moradores eram os “toques de
recolher”.

Imagem 18 – Imagens veiculadas na Mídia sobre o Toque de Recolher – Estrela Dalva –


2010

Fontes: Imagens do Toque de Recolher produzidas pela Secretaria de Assistência Social do município de
Contagem em 2013. Adaptações feitas pelo autor.

Os “toques de recolher” consistiam em uma ordem de esvaziamento dos espaços


públicos, a partir da imposição feita aos comerciantes e aos prestadores de serviços públicos,
de encerrarem compulsoriamente suas atividades, impedindo dessa forma o acesso da
população local aos mesmos. Segundo interlocutores, os “toques de recolher” ocorriam no
bairro periodicamente, com duração de algumas horas ou um dia completo. Essas práticas
serviam como exibição pública do poder dos narcotraficantes sobre a vida local e tinha um
tom punitivo, pois, coincidentemente ocorriam momentos depois de episódios de morte pela
polícia ou prisão de pessoas envolvidas no tráfico. Em 2010 o Estrela D’alva passou pelo
maior “toque de recolher” de sua história, o fato foi divulgado em mídia televisiva em rede
nacional:

Quinze pessoas foram presas acusadas de promoverem toque de recolher em um


bairro de Contagem na região metropolitana de Belo Horizonte. Entre os acusados
estão duas mulheres. A ordem foi dada após a morte de dois homens suspeitos de
119

envolvimento com o tráfico de drogas. Os policiais civis e militares cumpriram mais


50 mandatos de prisão, busca e apreensão. Só nessa rua cinco pessoas foram presas e
até um helicóptero foi usado(Jornal Nacional, Rede Globo, Matéria Veiculada em
Março de 2010, S/D).

Neste sacolão a faixa mostra o medo dos moradores “Alguns comerciantes ai de


cima, eles foram ameaçados, a gente ouviu o boato de um e de outro e antes de
chegar até nós também, preferimos nos resguardar” [fala de comerciante
entrevistado pela repórter narradora]. Há uma semana o comércio na região está
assim, com as portas fechadas, o motivo é um toque de recolher imposto por
criminosos, uma represália contra a ação da polícia militar que na última sexta-feira
teria matado dois supostos traficantes em uma troca de tiros (Jornal da Alterosa,
Rede Alterosa, Matéria Veiculada em Março de 2010).

Entre as pessoas com quem estive ouvi diferentes versões a respeito do “toque de
recolher” de março de 2010. Na percepção dos jovens:

Toque de recolher é o seguinte cara, não existe toque de recolher para gente do bem,
quando morre um cidadão de bem não existe toque de recolher. Sempre quando
morre um bandido, um neguinho do tráfico usa os outros guerreiros e vai até os
comércios e: “é pra fechar!, é pra fechar o comércio senão nós vamos meter bala,
vamos roubar, entendeu? Então é pra fechar a porra do comércio!”. Os comerciantes
se resguardam e fecham, entendeu? Até o dia que os caras falam: “tá normal, tá
normal”. (Entrevista com Miro, 2013).

Isso normalmente é coisa de 24 horas, entendeu. De 12 horas ali, fechou ali, e no


outro dia, tranquilo. Só que aí, a polícia veio e mandou abrir tudo de novo, e
disseram: “oh, podem ficar tranquilo que a gente vai fazer a ronda aqui, e dar
segurança, e tal”. E aí aconteceu que eles voltaram de novo [os traficantes] e
mandaram fechar direto, e falaram: “olha, vocês não quiseram fechar então agora
vocês vão fechar por tempo indeterminado”. E desde então nós ficamos com tudo,
uns dez dias, fechado. E aí fechou tudo, fechou os comércios, fechou a farmácia,
posto de saúde, escola, tudo. Ônibus rodava aqui escoltado, alguns ônibus foram
incendiados, a escola fechada, foi um trem de loco aqui (Entrevista com Faro, 2013).

Foi até mesmo devido à morte de um traficante, morreu, e aí, parou tudo. E
revoltaram, eu não sei direito o que aconteceu, o fulano, o que possuía mais moral
morreu, e o pessoal foi e mandou fechar o bairro todo, mandou parar tudo eu acho
que o toque foi devido a isso. (Entrevista com K., Jovem, sexo masculino, 23 anos).

Na percepção de outros moradores:

Esse toque de recolher, eu vou falar para você aqui uma coisa, foi uma das melhores
coisas que já aconteceu aqui, na minha visão de líder, porque o governo não vinha
aqui, ninguém conversava com ninguém e hoje os líderes sentam na mesma sala
com esse Projeto da ONU, a agente conversa, então pra mim foi uma das melhores
coisas que aconteceu. E você deve pensar assim, “esse cara é louco”, é porque tem
coisa que tem que cair para depois levantar de novo. Aqui não vinha prefeito, não
vinha um secretário, não vinha nada, as lideranças cada um queria puxar só para o
seu lado, e hoje a gente tem uma visão mais ampliada disso, do que é uma
comunidade. (Entrevista com José Estrela, Liderança Comunitária, 2013).

A situação foi a seguinte, dois meninos, quando eu falo menino, obviamente


grandões, dois patrões, eles eram patrões mesmo, tinham mais de 21 anos de idade,
eles estavam conversando e um foi levar o outro em casa, e mãe viu a moto parando,
120

e a moto parou e ficou com o motor ligado, isso por volta de umas 23:30h/00:00h, e
depois de um certo tempo a moto continuava ligada e a mãe: “engraçado, meu filho
estava aqui? Ele deixou a chave da moto ligada, tal, tal tal”, e algumas horas depois,
o corpo dos dois rapazes foi achado na parte alta do bairro, os dois foram
executados, foi um tiro na nuca de cada um, literalmente foi uma execução. E,
alguém disse, sempre tem esse que disse, e que provavelmente tenha sido a polícia
que teria executado, mas não foi a polícia local, mas uma outra polícia, uma equipe
que teria vindo de fora da comunidade para dentro da comunidade exatamente com a
função de executar, a ideia era execução. A partir desse pressuposto, e pelos dois
serem muito conhecidos na comunidade, e também, em parte queridos também,
porque eles tinham muito bom relacionamento aqui dentro da comunidade. E isso
eu quero deixar bem claro que, dos meninos que você ver trabalhando aqui, nenhum
deles vai aparentar ser um “cara mal”, não, não. Eles conversam, batem papo, são
bem articulados. E aí, o que aconteceu? As equipes que eles comandavam, as
ramificações, eles ficaram indignados, porque entenderam que houve execução. E é
uma coisa engraçada no próprio crime, “ah, eu posso matar um, matar dois, quatro
que me devem”, mas quando morre quer justiça (risos). E a galera toda ficou
revoltada, e tinha que ter justiça, então, “vamos mostrar agora o poder desse negócio
aqui”, e aí, surge outra ideia, “vamos mostrar que temos poder nesse lugar”. E
literalmente enviaram os meninos, a maioria de menor, passar em tudo e dizer “pode
fechar, porque se não fechar nós iremos destruir ou matamos quem abrir!”.
Começou pequeno, e o movimento rapidamente se alastrou porque o temor e o medo
tomaram conta. (Entrevista com Pastor T., PIBED, 2013).

Esse toque de recolher foi o seguinte, tinha um menino que morava ali, na Rua Praia
Formosa, antiga Rua L, e esse menino, ele aprontou muito aqui, inclusive aprontou
muito comigo na época do comércio, e a mãe dele, coitada, separada do pai, e o pai
era delegado lá no Rio de Janeiro e acobertava todos os problemas dele por aqui.
Nós chamávamos a polícia, ela vinha, e daqui a pouco estava ele, e vinha e falava
assim “meu pai tem a costa quente”, e eu fui e falei “olha então não apronta não,
porque senão você vai acabar tomando uma de verdade, com força”. Ele expulsou a
mãe dele de dentro de casa, e ficou à vontade, e quando foi um dia, lá, eles foram lá
entraram e mataram ele dormindo. E depois que matou ele, eles, os da turma dele,
foi quem deu o toque de recolher de dez dias. (Entrevista com Ilda B., Fundadora da
ACABSM, 2013).

O “toque” configurou-se como um conflito em relação à ordem pública, afetando


diretamente a vida de dezenas de milhares de pessoas residentes na região. Durante 15 dias o
comércio e serviços ficaram impedidos de funcionar. Segundo a percepção de três lideranças
comunitárias com que fiz entrevista, o “toque de recolher” foi percebido de diferentes formas,
inclusive em relação à percepção dos jovens. O fato é que as versões não coincidiam. Nem
mesmo as vinculadas pela grande mídia.
Se levarmos em conta que o “toque” tenha sido uma represália contra a morte de um
ou dois jovens pela polícia, esta ação seria também uma forma de declararem luto e ao mesmo
tempo insatisfação com tal situação como fizeram os grupos criminosos locais exigindo dos
comerciantes do bairro Estrela D’alva o fechamento do comércio por quase um dia41.
Contudo, como muitos comerciantes não aderiram ao mando e passaram a receber ameaças

41
Segundo comerciantes locais com os quais conversei informalmente os “traficantes” enviam crianças
mensageiras portando celulares, através dos quais os “traficantes” se comunicava com os comerciantes. Desse
modo, crianças na faixa de nove a onze anos de idade é que serviam de contato para a interlocução.
121

mais sérias através de telefonemas ostensivos. Por outro lado, à polícia não se via garantia de
resguardo frente ás ameaças feitas pelos grupos de narcotraficantes varejistas, pois, estes
permaneciam no território diariamente, vinte e quatro horas ininterruptas. Embora o Estrela
D’alva fosse jurisdição do 18º batalhão da polícia militar e coberto por uma delegacia
distrital, a polícia não tinham a mesma abrangência e fixidez quando comparada às quadrilhas
locais. Os comerciantes locais, frente a ameaças de agressão e de mortes, optaram por seguir
as regras de convívio comunitário ou leis impostas pelo tráfico de drogas, fazendo prevalecer
sobre a população da área sentimentos de medo e de insegurança.
O período de meados de 2010 até dezembro de 2012 foi marcado pela vinda do
Programa Conjunto “Segurança com cidadania: prevenindo violência e fortalecendo a
cidadania” no território impactado pelo “toque de recolher”. O Programa contou com recurso
de seis milhões de dólares do Fundo Espanhol para Alcance dos Objetivos do
Desenvolvimento do Milênio e foi apoiado pelos governos municipal e federal. O público-
alvo do programa abrangia crianças, adolescentes e jovens, entre 10 e 24 anos,
particularmente os residentes nas áreas mais vulneráveis, excluídos do sistema educativo,
vítimas de violência doméstica ou intergeracional envolvidos em atividades relacionadas com
drogas, tais como o tráfico. Assim, a presença desse programa de pacificação da ONU
indicava se tratar de uma área com sérios problemas de insegurança pública.

4.4 Estrela D’alva: estratégias para imersão no campo de pesquisa

Nesta seção é apresentada uma descrição da entrada em campo, considerando seus


aspectos empíricos, situacionais, número de entrevistas, estratégias de observação e
aproximação com os sujeitos para a realização das entrevistas biográficas e com moradores e
lideranças comunitárias locais. Um panorama geral dos interlocutores entre os quais as
entrevistas foram realizadas pode ser observado no Quadro 03, logo a seguir.
122

Quadro 3: Perfil das Pessoas Entrevistadas durante a etnografia – 2012 a 2014


Identidade de
Perfil do Faixa de Gênero Total de pessoas
Atributos necessários
Entrevistado idade entrevistadas
Homem Mulher

Jovens da Ter vivido no Estrela


18 a 29 anos 7 1 8
periferia D’alva desde a infância.
Residir no Estrela D’alva
desde o período de
Moradores 40 anos ou
ocupação inicial do bairro 3 3 5
pioneiros mais
na década de 1980 até
meados de 1990.
Liderança comunitária
autônoma, presidente de
Lideranças
Indiferente ONG, presidente de 3 2 5
políticas locais
associação de moradores, e
/ou pastor evangélico.
Representantes
Gestor do Cras-Casa
do poder Indiferente 1 0 1
Amarela.
público
Fonte: Resultados da Pesquisa.

A realização das entrevistas ocorreu durante a realização da etnografia, de modo


integrado ao desenvolvimento do trabalho de campo. Parece óbvio, mas não é. Quando digo
de forma integrada refiro-me ao estabelecimento de laços de confiança necessários para que
os entrevistados sentissem-se mais à vontade em minha companhia. A estratégia adotada
rejeitava assim entrevistas de imediato, descomprometidas de um vínculo ou proximidade,
mínima que fosse, entre pesquisador e interlocutores. Busquei ambientar-me e fazer-me aceito
para então, a partir da relação estabelecida, propor a possibilidade e as condições que
configuraram cada entrevista. Tinha a consciência de que, por se tratar de trajetórias de jovens
que conviveram próximos a violências e homicídios, a aquisição de confiança com os
possíveis sujeitos biográficos seria fundamental. Realmente, as entrevistas dependeram de
encontros anteriores e outras experiências que tive oportunidade de participar junto aos
entrevistados. Tendo em vista tais considerações, preocupei-me, neste texto, em apresentar as
estratégias e os dilemas enfrentados ao longo do desenvolvimento empírico e metodológico
da pesquisa e a forma como se deu o processo de realização das entrevistas e construção das
trajetórias.
A construção das trajetórias de vida, conciliando métodos biográficos e etnográficos,
foi orientada pela discussão presente no capítulo teórico e por reflexões que orientaram meu
olhar perante a realidade social investigada. Por se tratar de uma etnografia em um espaço no
qual não possuía pessoas conhecidas, uma terra estranha, minha aproximação com o local, e
123

posteriormente, com os entrevistados, dependeu inicialmente do acesso a “informantes-


chave”, pessoas que pudessem apresentar-me o território e viabilizar encontros com
moradores locais. As entrevistas foram feitas em momentos específicos posteriores às etapas
de observação viabilizadas por meio de estratégias de inserção e de fixação no campo.
A área escolhida para a realização desta tese foi, e ainda tem sido, impactada por
dinâmicas relacionadas à violência criminosa. Um “território violento” como muitos gostam
de classificar. A violência, que não é um fenômeno estático no tempo e no espaço social,
tornou-se nas últimas décadas uma das principais referências em relação à área e a mídia
jornalística vem contribuindo para isso. Apesar do sensacionalismo midiático, reconhecia que
minha inserção no bairro escolhido não poderia ser abrupta. Os primeiros passos em campo
deveriam ocorrer de modo que eu pudesse adentrar na vida do bairro sem colocar em risco os
interesses de pesquisa. Desde julho de 2012, comecei a visitar a região do Estrela D’alva no
município de Contagem. Um bairro estranho para mim até então, e que me foi apresentado
inicialmente por uma liderança comunitária, José Estrela, meu primeiro interlocutor na
pesquisa. Através dele pude conhecer pessoas e frequentar alguns lugares no bairro, iniciando
assim a minha ambientação no lugar. Contudo, nos primeiros meses de campo não consegui
vínculos que pudessem proporcionar visitas mais sistemáticas. Nesse início de trabalho de
campo o primeiro lugar que pareceu passível de observação foi a praça do bairro Estrela
D’alva, onde se concentra o comércio, e que serve também de referência para moradores de
bairros vizinhos. Minhas visitas à praça foram desacompanhadas de José Estrela, ou qualquer
outra pessoa que tive a oportunidade de conhecer. Ao longo do texto retomo sobre o papel dos
informantes-chave na pesquisa.
Sozinho, na praça, podia observar parte do cotidiano do bairro, tendo a oportunidade
de estar próximo em momentos de descontração e lazer comunitário. Contudo, a relação de
familiarização entre o pesquisador e o campo dependia de outras entradas, além da praça, o
que contribuiu para identificação, de pontos mais estratégicos para realizar observações como
os comércios do entorno. Apesar disso, considero que o início do trabalho foi marcado por
observações em circunstâncias das quais, eu como pesquisador, encontrava-me na fase de
assimilação inicial e familiarização com o lugar. Tendo a oportunidade de, inclusive,
proporcionar o mesmo aos moradores locais em relação à minha presença. Nesse período
houve ocasiões nas quais me senti como um “estranho no ninho”, ou seja, notado nitidamente
como alguém de fora do bairro, o que produzia em mim uma sensação de insegurança em
relação até onde e sobre o que meu olhar poderia investigar. Por vezes, senti um pouco de
receio em expor-me àquele contexto de forma indevida ou invasiva e, identifiquei-me com o
124

trecho inicial do capítulo introdutório de A Máquina e a Revolta no qual Alba Zaluar narra a
seguinte situação:

Imagine-se estacionando seu carro particular na rua de um bairro de pobres cujo


nome permanecia nas manchetes dos jornais como um dos focos da violência
urbana, um antro de marginais e bandidos. [...] Conhece apenas um jovem que lhe
foi apresentado [...]. (ZALUAR, 1985, p.09).

Atento a isso, procurei ao máximo, ter cautela para não infringir a rotina dos espaços
que frequentava. Em todas as ocasiões me apresentei às pessoas como sendo estudante de
Ciências Sociais da PUC Minas. E quando havia oportunidade de conversa, fazia questão de
explicar com mais detalhes os objetivos da pesquisa e minhas intenções com o lugar. As
primeiras visitas ao bairro de referência e os primeiros encontros com os moradores foram
mais informais, e apesar de insuficientes para estabelecer uma relação de confiança necessária
para iniciar as entrevistas, foram imprescindíveis para os primeiros passos da pesquisa
empírica. Este começo do campo foi importante para que pudesse me situar melhor no bairro
e, ao mesmo tempo, tornar-me conhecido aos olhos dos residentes locais, incluindo pessoas
relacionadas à dinâmica da comercialização ilegal de drogas. Etapa através da qual objetivei
fazer-me presente como pesquisador, ao passo que me sentia mais à vontade e confiante para
realizar observações sobre o contexto no qual buscava inserção.
Nas ocasiões em que notava resistência por parte de pessoas com as quais
intencionava fazer entrevista, explicava a elas, repetidas vezes se necessário, sobre minhas
intenções com a tese. Para quebrar a desconfiança foi preciso trazer a campo os recursos que
dispunha em mãos. Houve um caso em que levei a um determinado entrevistado, o Jeremias,
as publicações e outras evidências materiais da minha condição de estudante e de pesquisador
do assunto, após extensa apresentação, Jeremias cedeu-se à realização da entrevista. A
experiência empírica demonstrava que, antes de querer que o campo se abrisse para mim, era
necessário abrir-me a ele. Só assim eu pude quebrar, em parte, os constrangimentos gerados
pelo medo e desconfiança, inicialmente recíprocos, e que pareciam organizar a vida social
daquela região. De um modo geral, busquei “encaixar-me” às situações e ocasiões sociais das
quais tinha acesso, no sentido goffmaniano, atento aos assuntos, tipos de vestimentas, e outros
comportamentos que não causassem perturbações a ordem pública dos espaços que visitava.
Deste modo parti em busca de espaços públicos e privados através dos quais pudesse
iniciar as observações e assim, encontrar jovens que se dispusessem a contar para mim suas
experiências de vida. Por se tratar da constituição de trajetórias juvenis em contexto de
periferia metropolitana, pressupunha que suas sociabilidades transcorriam mais no contexto
125

do bairro. Partindo desse pressuposto e das visitas a campo tive acesso aos seguintes lugares
para realizar observações: i) A Praça do Estrela D’alva; ii) As batalhas de MC’s, no espaço do
CRAS- Casa Amarela; iii) A Primeira Igreja Batista do Estrela Dalva - PIBED; e, iv) A Praça
Complexo Esportivo São Mateus. Estes quatro espaços foram alvo de observações
sistemáticas em diferentes tempos da pesquisa. Frequentei a praça Estrela D’alva desde o
início do trabalho de campo, por se tratar de uma área pública de maior movimento e onde foi
possível fixar-me e observar seu espaço e as sociabilidades nele inscritas. Quanto ao duelo de
MC’s Casa Amarela, frequentei quinzenalmente, e por vezes semanalmente dependendo da
agenda de eventos, de fevereiro a setembro de 2013, quando os eventos de hip-hop no lugar
extinguiram-se. Durante esse período fiz também observações no complexo esportivo São
Mateus, onde se localiza o CRAS-Casa Amarela. A PIBED frequentei de agosto a dezembro
de 2013, e de modo menos sistemático até primeiro semestre de 2014 quando observei as
atividades de sábado que envolvem o culto dos jovens até 17 anos, e também o culto principal
regido para o público em geral.
Outra estratégia de observação consistiu na utilização dos serviços do comércio local.
Desde serviços de barbearia, padaria, sacolão (hortfruti), à lanchonete, loteria, supermercado,
sorveteria e farmácia. Ao utilizar esses serviços locais tive diversas oportunidades de realizar
observações e conversas informais no ambiente do bairro. Tais ocasiões proporcionavam
momentos de pesquisa que não se configuravam como constrangedores para aqueles que
frequentavam os espaços dos quais observava. Nestes espaços utilizava o celular como
ferramenta de pesquisa. De posse de um deste aparelho eletrônico, por meio das funções de
escrita de mensagem, registrei como se fosse numa caderneta, e de modo discreto, as
anotações em campo. Atualmente o uso do aparelho celular na periferia, como no restante da
cidade, está disseminado. Por isso, possibilitava uma forma de estar presente em lugares
públicos como comércios, mas sem chamar para mim as atenções do ambiente observado,
sem ter que diferenciar-me das pessoas através da revelação de minha identidade, como as
demais pessoas que utilizavam o espaço.
Contudo, exceto nos ambientes do comércio onde predominavam relações mais
informais, de um modo geral, identifiquei-me sempre como estudante. Explicava o que
pretendia fazer ali, mesmo quando notava que as coisas que eu dizia pareciam fazer pouco
sentido para os ouvintes. Por diversas vezes fui indagado sobre quais benefícios meu trabalho
poderia trazer para a vida concreta das pessoas do lugar. Sobre isso, não busquei criar
expectativas, apesar de notar que algumas pessoas do lugar pareciam sentir-se beneficiadas,
de algum modo, com minha presença naquele espaço. Houve um jovem MC, o Faro, que
126

numa noite de sábado apresentou-me para um grupo de colegas frequentadores do duelo de


MC’s - Casa Amarela, da seguinte forma: “[...] o Marcão é estudante, tá fazendo o estudo dele
aqui na região. O cara é gente boa, ele é quem vai fazer a ponte entre a gente e a
universidade” (Anotação em Caderneta de Campo – abril de 2013). Essa frase soou para mim
como uma expectativa dele de que eu poderia levá-los à PUC para apresentarem um duelo de
MC’s para o público universitário.
Considerei que essa expectativa não prejudicaria a relação de pesquisa. Uns dois
meses depois o grupo se apresentou no campus da PUC Betim. Acabei por realizar a “ponte”
com a universidade através de um estudante da PUC que conhecia e que fazia parte da gestão
do Diretório Central dos Estudantes – DCE. Numa noite de quinta-feira, em abril de 2013,
levei em meu carro quatro jovens MC’s, liderados por Faro, para apresentarem suas rimas
provocativas no pátio central da universidade, no evento quinzenal “virada cultural do DCE”.
Os quatro jovens, durante todo o caminho, cantarolaram rimas enquanto eu guiava o
automóvel até Betim. Estavam empolgados. Depois da apresentação vieram comentando,
enquanto eu dirigia, sobre os argumentos e palavras escolhidas para as rimas. Um deles
comentou “aí, galera, tentei falar de biblioteca, e essas coisas que fazem parte do mundo
deles, da universidade”. E disseram também que optaram por assuntos e temas mais leves,
sem abordar a violência. Os versos tiveram argumentos cordiais, diziam sobre o jovem da
periferia42, da sua música e, de vez em quando, arriscavam a falar coisas que consideravam
ter sentido para o “mundo deles”, dos estudantes da PUC.
A experiência que tive com aquele grupo, a partir do evento da PUC-Betim, contribuiu
para aproximar-me mais dos jovens. E, dos quatro MC’s, Faro foi com quem estabeleci
relação de interlocução direta na pesquisa, realizamos três entrevistas, e através dele conheci
outras pessoas e com isso fui garantindo laços que justificavam minha permanência em
campo. Faro foi um “informante-chave”, papel anteriormente desempenhado por outro
interlocutor, o José Estrela. Cada um dos interlocutores desempenhou papéis diferentes em

42
Tal juventude é reconhecida pela academia e pelo senso comum através da categoria jovens da periferia, que
tende a reproduzir uma representação homogeneizante sobre as experiências juvenis dos estratos de baixa
renda ou pobres das sociedades urbanas e a reconhecê-los por qualidades negativas ou por carências. Ao
realizar, por exemplo, em dias aleatórios do mês de outubro de 2014, pesquisas de busca de imagens na
plataforma virtual www.google.com a partir do termo jovens da periferia encontrei preponderantemente
imagens de jovens negros e pardos. Não tive intenção de quantificar os resultados, mas predominaram imagens
que os situavam em esferas como i) violência e crime: jovens mortos, feridos, portando arma ou outros signos
que os retratam como criminosos ou como alvo de vigilância de policial ou de agentes privados em shopping;
ii) hip-hop: grafite em muros, grupos de dança, boné aba reta; iii) pobreza, assistência social e religião: jovens
desdentados, paisagens de favelas, de lixão, pichações, figuras religiosas da caridade como freiras, igrejas,
projetos sociais; iv) consumo: correntes no pescoço, calçados de grifes globais, celulares, dinheiro, carros,
mulheres sensuais.
127

determinados períodos da pesquisa. Em parte, a necessidade de conseguir novos


colaboradores dessa natureza deve-se à dinâmica da vida das pessoas com as quais estabelecia
esse tipo de relação. Nem sempre estavam disponíveis para atender às minhas demandas e
pelo próprio campo cuja duração ultrapassou o período três anos. Tendo em vista tais
questões, adotei como estratégia para manter minha conexão com o bairro, a busca atenta por
pessoas que pudessem desempenhar esse papel de “informante-chave”.
Os processos de realização das entrevistas tiveram relação com as etapas e as
estratégias empíricas e metodológicas adotadas anteriormente e que as viabilizaram. Não
houve um padrão de tempo nem quantidade de entrevistas por indivíduo pré-determinada, elas
tiveram tempos de duração e etapas distintas, não seguiu padrões de mensuração.
Corroborando com a bibliografia sobre o tema, compreendi que a entrevista em profundidade
se tratava mesmo de um “fenômeno empírico, definido por sua própria história” (KIRK;
MILLER, 1986, p.10). Segundo estes autores, a atividade no campo, necessária para a
pesquisa qualitativa, varia entre a rigidez metodológica e a maleabilidade do pesquisador. É
sensível aos contextos e as conjunturas e, por isso, distancia-se dos consensos comuns a
outros tipos de pesquisa que envolvem situações mais estáveis e, supostamente, passíveis de
controle. Portanto, a realização das entrevistas não ocorreu a partir de uma fórmula pronta, e
sim, do esforço em adaptar-me ao campo, ao ponto de torná-lo apreensível aos interesses de
pesquisa.

Uma pesquisa qualitativa exige do pesquisador uma adaptação ao campo. Sua


posição não é a de um experimentador em face a “objetos”, mas de um ator em um
sistema social: através do campo, ele entra na vida de pessoas que não o
aguardavam, mas que aceitam acolhê-lo, por um tempo limitado, em seu cotidiano.
(ALAMI; DESJEUX; GARABUAU-MOUSSAOUI, 2010, p.88).

Dessa forma, a pesquisa de campo, considerada como situação excepcional segundo os


autores supracitados, se constituía um processo dinâmico cujos rumos iam se redesenhando ao
longo de minha permanência e interações na região. Não se tratava de um trabalho reto, mas
cheio de meandros como geralmente faz um rio para superar as agruras impostas por um
relevo repleto de variações geomorfológicas.
Outro ponto que contribuiu no início da pesquisa foi um programa de prevenção de
homicídios infanto-juvenis desenvolvido pela Organização das Nações Unidas do Brasil.
Ponto que abordo com mais profundidade no capítulo seguinte. Foi um período de maior
atenção do governo em torno dos problemas sociais da área. E assim, nessa época alguns
espaços destes bairros foram alvo de intervenções urbanísticas e também implantação de
128

equipamentos públicos como a cozinha comunitária da Vila Francisco Mariano, o CRAS-


Casa Amarela, a reforma de requalificação urbana da praça do complexo esportivo do bairro
São Mateus. Além disso, a ONU atraía a presença constante de representantes do governo
municipal de Contagem, inclusive do prefeito eleito em outubro de 2012, Carlin Moura
(apelidado na região de “bracinho” por conta de uma deficiência física em seu braço direito) e
da ex-prefeita Marília Campos que por mais de uma ocasião a vi na região.
Em 2012, no final do segundo semestre, encontrei oportunidades de participação em
atividades promovidas pelo programa das Nações Unidas. Tratava-se de ações coletivas que
faziam lembrar a ideia de mutirão, mas tinham um caráter artificial, não decorriam de
mobilizações promovidas pelos próprios moradores da periferia. Apesar disso, por serem
ações coletivas gerava algum tipo de aproximação útil para a pesquisa a partir do contato que
proporcionava entre os participantes. Uma dessas atividades consistiu na “Mão na Massa”,
uma ação coletiva envolvendo basicamente o público infanto-juvenil, representantes da ONU,
da prefeitura municipal e lideranças comunitárias. Essa atividade compunha o “Projeto
Oásis”, cujo objetivo era fazer ações que gerassem resultados rápidos e publicamente visíveis
a partir da requalificação urbana e paisagística de espaços de uso coletivo como escolas e
praças. Em dois dias de trabalho árduo que envolvia jardinagem, alvenaria e pintura
intercaladas a momentos lúdicos e pedagógicos através de oficinas realizadas por
profissionais vinculados à ONU. A intenção do “Oásis” era fortalecer vínculos e laços de
confiança entre os moradores locais, participei de atividades no interior da escola Estadual
Maria de Salles, no bairro São Mateus e também no interior e parte externa da escola
Municipal Sônia Braga, no bairro Confisco. O projeto pretendia a troca de experiência com o
público alvo da ação: crianças, adolescentes e jovens. As atividades de “mão na massa” eram
intercaladas com tempos de almoço, lanche e oficinas recreativas, através das quais era gerado
um tipo de aproximação específica com o campo. Foram dois finais de semana, um em
novembro e outro em dezembro de 2012, através dos quais tive oportunidade de aproximar-
me de jovens grafiteiros responsáveis em dar o toque de arte na intervenção. Inclusive o
contato inicial com o primeiro “informante-chave”, o José Estrela, foi intermediado por uma
representante da assistência social municipal acompanhada de uma agente das Nações Unidas
que conheci em evento na PUC Minas.
Na época, José Estrela, por possuir status de liderança comunitária, integrava a equipe
de líderes locais parceiros do programa de pacificação da ONU. Junto a José Estrela, buscava
encontrar pontos por meio dos quais pudesse estabelecer vínculos com a área, e passar a
frequentá-la de modo mais sistemático, com o objetivo de estabelecer contatos mais contínuos
129

com pessoas jovens e outros moradores, com o intuito de conquistar confiança, estabelecer
novos contatos para possíveis entrevistas e, ao mesmo tempo, realizar a observação. Deste
modo, uma primeira estratégia, que ocorreu anterior e até mesmo paralela ao “Oasis”,
consistia em engajar-me em alguma atividade junto a José Estrela que na época estava com
interesse em montar uma agenda de atividades para o Centro Cultural da Vila Francisco
Mariano, que estava prestes a ter sua obra concluída. A ideia era participar de forma
voluntária, no Centro Cultural, através da oferta de aulas de violão para iniciantes bem como
pela realização de palestras e cinema comentado. Contudo, até o presente momento, o local
ainda não foi ativado. Por isso essa estratégia inicial não se viabilizou.
Outro ponto a destacar é que não busquei realizar entrevistas a partir de espaços de
referência direta do tráfico de drogas (bocas ou biqueiras), meu objetivo foi de ouvir os
jovens a partir de outros espaços de referência. Dessa forma, poderia escapar aos estereótipos
associados ao envolvimento com o tráfico de drogas que, nas biqueiras seria mais difícil de
escapar desse viés. Os relatos e observações indicavam que a participação de adolescentes e
jovens no tráfico de drogas acontecia de variadas formas e nem sempre coincidia com as
expectativas que orbitam em torno do rótulo de “traficante de drogas”, como se expressa pelo
senso comum. O envolvimento com o tráfico nem sempre implicava em inserções absolutas
dos jovens nessas atividades criminosas. Houve casos de jovens relatarem situações através
das quais comercializaram, ocasionalmente, pequenas quantidades de drogas (geralmente
maconha) em lugares fora da região, locais de trabalho e outros círculos, em contextos
específicos de suas trajetórias de vida.
As observações em campo reforçavam a hipótese anterior, de que, encontrar os jovens
em outros espaços sociais e não em função de um suposto envolvimento direto ou não com a
criminalidade local seria o caminho de pesquisa a ser traçado. Meu interesse era pelas suas
trajetórias, que pressupus ser intercruzadas por dinâmicas sociais diversas, inclusive as
criminosas. Portanto, a tentativa de escapar do estereótipo de “traficante de drogas” não teve
intenção de negar a força da presença dessa atividade no território do bairro, mas de
reconhecer que outras perspectivas atravessavam as relações criminosas. O trabalho empírico,
observações e reflexões iniciais, indicavam que não seria preciso ir até a biqueira para
capturar aspectos importantes envolvidos nas relações da dinâmica do tráfico de drogas sobre
as trajetórias de vida dos jovens da área. Inclusive porque o crime e a violência não são as
únicas agências reguladoras da vida social na periferia e não estão alheios ao seu contexto
social, o próprio histórico da região indicava isso.
130

As conversas informais e as entrevistas feitas com jovens e com moradores mais


antigos corroboravam a tese de que até meados da década de 1990 a violência não se
constituía como problema endêmico na região. Segundo os relatos e conversas informais os
homicídios crescerem ao longo da primeira década de 2000. Em 2010, com o “toque de
recolher” a área ficou midiaticamente conhecida pelos problemas de violência e a vinda de
programas sociais nacionais e internacionais representavam a respostas das agências de
governo (civil ou estatal) em relação aos problemas de violência e mortes que passava o local.
Estes pontos que narrei até o momento foram úteis para a definição de alguns pontos
da pesquisa que iriam compor as trajetórias na tese, bem como as possíveis circunstâncias
através das quais ocorreriam. Além de entrevistas com moradores e lideranças comunitárias,
com jovens realizei oito entrevistas biográficas com objetivo de construir trajetórias de vida,
destas uma foi com uma jovem, sexo feminino, e as outras sete eram do sexo masculino.
Considerando somente as entrevistas nas quais consegui alcançar um maior nível de
profundidade, nas quais os entrevistados ofereceram-me material biográfico mais completo,
somam-se 4 entrevistas, todas com jovens do sexo masculino. E são estas compõe os dois
capítulos seguintes nos quais apresento as trajetórias de vida de Faro e Miro, e, Maicon e
Suzano.
131

5 AS TRAJETÓRIAS DE MIRO E FARO

Neste capítulo são apresentadas as trajetórias de Miro e a de Faro, dois jovens que
conheci como MC’s durante a pesquisa etnográfica. Os percursos de vida de Miro e Faro
seguiram itinerários relativamente semelhantes ou “coincidentes” e traduzem em parte
aspectos estruturantes das trajetórias juvenis no Estrela D’alva. As trajetórias de indicam que
ambos tiveram suas experiências de vida balizadas pelos modos de vida e pelas práticas
culturais presentes na periferia como a religiosidade cristã, a arte por meio do hip-hop43 e,
mais recentemente, pelas dinâmicas econômicas e violentas produzidas em torno da
criminalidade local, representada pelo narcotráfico principalmente. Como apresentado ao
43
Historicamente o hip- hop está relacionado à cultura urbana negra estadunidense e aos movimentos políticos
juvenis da década de 1960 nos Estados Unidos, a partir de onde se difundiu. Atualmente o hip-hop continua a
ser caracterizado como movimento cultural marcante nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros
com forte viés político (ZENI, 2004; HERSCHMANN, 2000). Como afirma Marco Aurélio Paz Tella, o hip
hop é um movimento que tem sua base estruturada a partir de quatro expressões: “a primeira é a música,
denominada rap. A segunda, ligada ao rap, é a pessoa que controla os toca-discos, que faz a discotecagem, o
DJ (Disc Jóquei). A terceira é a dança, caracterizada pelo break. Por fim, a última arte é a pintura, que se
expressa pelo grafite” (PAZ TELLA, 2015, p.121).
132

decorrer deste capítulo os itinerários de vida dos referidos jovens tiveram em comum outros
aspectos sociais como o início do exercício de atividades remuneradas, a iniciação sexual
ainda na infância e o abandono escolar no início da adolescência. De um modo geral o
capítulo apresenta reflexões feitas em torno dos sentidos sociais assumidos pelas práticas
culturais desenvolvidas por Miro e Faro junto a outros jovens residentes na periferia e de seus
percursos sociais frente à condição juvenil de fase de transição para a vida adulta (PAIS,
2009). Tendo em consideração tais questões, apresento relatos da etnografia que caracterizam
o contexto a partir do qual as entrevistas biográficas foram realizadas. Tal descrição é útil
para situar socialmente o momento da fala dos sujeitos e ao mesmo tempo os passos da
pesquisa por meio dos quais a relação de alteridade foi construída. Na sequência suas
trajetórias serão apresentadas em conjunto tendo como base as descrições etnográficas e
outros registros de campo.

5.1 O contexto do encontro e das entrevistas com os jovens

Um elemento chave para a análise social da fala de um indivíduo é situá-la no tempo e


no espaço perante as situações e contextos (BOURDIEU, 2000) a partir dos quais esse
depoimento é elaborado. Partindo deste pressuposto apresento relatos do momento em que
viviam os jovens na época em que nos conhecemos. É sobre o momento que vivia o bairro,
durante o período da etnografia, que iniciarei o capítulo relativo às trajetórias de Miro e de
Faro. O texto é redigido na primeira pessoa do singular a partir dos registros de campo.
Iniciei o trabalho no terreno empírico fazia pouco mais de um ano de implantação no
bairro Estrela D’alva do Programa Conjunto - ONU Brasil. Os moradores há muito vinham
sendo confrontados com a presença de visitantes de outros lugares como São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília e até europeus que transitavam pelas ruas do bairro interessados pelo lugar.
Meu contato inicial com os jovens foi mediado por um evento realizado pela Prefeitura
Municipal e pela ONU – Brasil, que contou com a presença de lideranças comunitárias,
imprensa local, docentes, pesquisadores, estudantes oriundos de universidades e muitos
representantes do poder político municipal.
Neste dia tive a oportunidade de assistir a uma apresentação de rappers e de b-boys do
bairro em um palco grande e bem equipado, montado na parte inferior do complexo linear São
Mateus, coberto por uma tenda branca. Ao final do evento aproximei-me dos rappers e de b-
boys, entre eles estavam Miro e Faro. Apresentei-me como estudante “interessado em
conhecer o bairro e sua vida social” e os jovens disseram para eu “colar lá nos duelos aos
133

sábados à noite”. Somente após esse primeiro contato com os mc’s é que dei início à
etnografia aos sábados à noite, ao frequentar os Duelos de Mc’s da Casa Amarela44.
De um modo geral os frequentadores dos duelos eram moradores da própria periferia.
Uma vez ou outra compareciam também rappers de outras áreas da RMBH, da “Zona Oeste”,
de “Venda Nova”, do “Aglomerado da Serra”, da “Barragem Santa Lúcia”, e de outros
lugares, em geral de outras áreas periféricas da metrópole. Tirando essas exceções, o público
predominante era mesmo composto por jovens do próprio bairro; habitantes que se conheciam
desde a infância e que tinham em comum os percursos de vida mediados pelo convívio
comunitário religioso, escolar, enfim, pessoas que cresceram juntas e partilhavam amizades e
experiências de vida relativamente semelhantes. Embora tivesse sido convidado a estar
presente, para a maior parte do público eu era uma pessoa estranha, no sentido de que, mesmo
apresentando-me como estudante, muitos me viam como um agente externo, um observador
curioso e também suspeito. Deste modo, minha aproximação com este público foi lenta e
gradual, somente após seis meses de etnografia nos duelos é que consegui realizar a primeira
entrevista com um jovem MC, representado aqui pelo personagem Faro45, que, no decorrer do
trabalho de campo, veio a revelar-se um informante-chave.
É relevante destacar que a ideia inicial de usar o espaço Casa Amarela para fins
culturais decorreu das ações da ONU-Brasil fundamentadas em teorias de prevenção do crime
por meio do design ambiental que, na prática, consistia em reformas urbanísticas e
apropriação positiva de espaços públicos potencialmente ociosos e/ou
degradados/abandonados para tentar evitar que o espaço fosse utilizado para práticas ilícitas 46.
Tal ação ocorreu no final de 2011 quando a Casa foi utilizada para a realização projetos de
mídia tática pela ONG Oficina de Imagens, que envolviam a oferta de oficinas, cursos e
apresentações culturais47. De um modo geral os cursos e eventos abordavam temáticas tais

44
Soube da existência de tais duelos na PUC a partir de palestra proferida por uma representante da prefeitura
municipal de Contagem juntamente a uma técnica do Programa Conjunto – ONU Brasil em junho de 2012.
45
Personagem no sentido atribuído por Cardoso (2007), “pessoas personagem”, ao passo que a narrativa aqui
apresentada como qualquer construção narrativa envolve um caráter de confabulação.
46
A ideia de produção de espaços urbanos seguros fundamenta-se em um conjunto de teorias classificadas por
CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design). Sobre este tema consultar o Manual “Espaços
Urbanos Seguros: Recomendações de projetos e gestão comunitária para a obtenção de espaços urbanos
seguros” de Santos, Siqueira e Maranhão (2004), produzido através do Programa de Infraestrutura em Áreas
de Baixa Renda da Região Metropolitana do Recife (PROMETRÓPOLE) e da Prefeitura Municipal de Olinda
– PE e a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco CONDEPE/FIDEM. Este Manual
consiste numa adaptação do Manual Espacios Urbanos Seguros, elaborado pelo Governo do Chile, Ministério
do Interior e Ministério da Vivienda y Urbanismo e Fundación Paz Cuidadania, em 2003.
47
Implantado no bairro desde novembro de 2011 até julho de 2015 o Projeto de Mídia Tática baseou-se no uso
de metodologias de comunicação (noções de fotografia, manipulação de imagem e produção de vídeos) como
recurso de expressão de anseios de adolescentes e jovens que vivem em regiões de vulnerabilidade social. Os
jovens participantes eram motivados a agirem de modo coletivo, em pequenos grupos e em mutirão a
134

como “desigualdade social”, “violência estatal e polícial”, “crime”, “consumo de drogas”,


“cidadania e direitos” (OFICINA DE IMAGENS, 2012). Além disso, o projeto utilizava
como estratégia a valorização de práticas culturais presentes no universo social da periferia
como a dança de rua (break), a produção de poesias estruturadas por rimas ritmicas (no estilo
e batida do rap), o grafite, produção audiovisual através de fotografia e vídeo e noções básicas
de internet. Os cursos eram regulares, quinzenais ou semanais, gratuitos e sem exigência de
pré-requisitos. Não havia processos seletivos, os cursos eram abertos a quem neles
manifestasse interesse. A intervenção da ONG atraía assim a atenção dos jovens do bairro.
Poderia dizer que, de todas as intervenções urbanísticas ou culturais realizadas pela
ONU direcionadas ao público infantojuvenil no Estrela D’alva, a apropriação cultural do
espaço Casa Amarela foi uma das que mais impactou os percursos de vida de jovens do
bairro. Não tive dúvidas de que a Oficina de Imagens atingira parte de seus objetivos no
bairro: logo que a ONG encerrou seu trabalho as atividades culturais na Casa Amarela foram
mantidas por iniciativa dos próprios jovens moradores, entre os quais se contavam Miro e
Faro. Quando os jovens iniciaram os Duelos de MC’s, a Casa Amarela ainda encontrava-se
sem teto, sem portas, sem pintura, sem piso nem banheiro.
Embora o hip-hop já fosse conhecido pela juventude do Estrela D’alva, essa atividade
cultural estava concentrada no âmbito religioso, em grupos de dança e rap. Após as oficinas
de mídia tática essa prática cultural assumiu um caráter político focado em intervenções
direcionadas para o espaço público da periferia. Uma das questões reinvindicadas pelos
jovens neste período era que o espaço Casa Amarela tivesse sua construção concluída e nele
fosse implantado um Centro Cultural Municipal gerido pelos moradores locais que, neste
caso, seriam os próprios realizadores das Batalhas de MC’s. O governo municipal não
partilhando do mesmo interesse e entendimento sobre o futuro do espaço, pretendia
transformá-lo em equipamento da política de assistência social. Nessa disputa de interesses
em torno do destino a atribuir ao espaço Casa Amarela os jovens saíram como perdedores. A
“batalha” foi ganha pelo governo municipal que, com recursos partilhados do governo federal,
realizou a obra para implantação de um Centro de Referência da Assistência Social, o CRAS
Casa Amarela.

identificarem problemas e necessidades locais e a buscarem agir por soluções ou mesmo pela conscientização
da população local sobre os tais problemas (OFICINA DE IMAGENS, 2012).
135

Foto 5 - Espaço Casa Amarela antes da reforma - Estrela D’alva - 2012

Fonte: Fotografia do Autor, 2012.

Conforme definido a política social, o CRAS é “um estabelecimento que tem por
objetivo prevenir a ocorrência de situações de vulnerabilidades e riscos sociais nos territórios”
a partir da prestação de serviços de “proteção social básica” (MDS, 2009, p.09). Geralmente
conta com uma equipe composta por um par de psicólogos e três assistentes sociais
responsáveis por oferecer a “proteção social básica” a um conjunto médio de 5.000 famílias a
partir de oferta dos seguintes serviços: acolhida e entrevistas; visitas domiciliares; concessão
de benefícios como cesta básica, vale-transporte e fotografias para documentação;
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários a partir da oferta de atividades
recreativas para idosos, jovens e mulheres, encaminhamentos para outros órgãos públicos da
saúde e assistência social, atendimento psicológico individual e em grupo; elaboração de um
plano de ação para cada família com prioridade às beneficiárias dos programas de
transferência de renda; entre outros (MDS, 2009).
136

Foto 6 - Espaço após reforma e implantação do CRAS Casa Amarela-Estrela D’alva -


2013

Fonte: Fotografia do Autor, 2013.

Durante a reforma do espaço, entre meados de agosto e início de novembro de 2012,


os duelos de mc’s foram interrompidos na Casa Amarela, tendo os jovens passado a realizar
quase semanalmente eventos desse tipo noutras áreas públicas do bairro. Neste tempo
presenciei os duelos na Praça do Estrela D’alva e na praça São Mateus. As atividades
promovidas incluíram também apresentações de filmes na rua, ao ar livre, por meio do uso de
projetor e um pano estendido sobre um muro como ilustrado a seguir.
137

Foto 7 - Mostra de filme ao ar livre na Rua A realizada durante a reforma do espaço


casa amarela: Estrela D’alva-2012

Fonte: Fotografia do Autor, 2012.

Terminada a reforma do espaço Casa Amarela e feita a inauguração do CRAS em


novembro de 2012, novas regras e situações passavam a mediar, e ao mesmo tempo a criar
constrangimentos burocráticos, no que se referia ao acesso dos jovens ao espaço. As batalhas
de MC’s sofreram mudanças significativas em termos organizativos: passou a ser necessária a
autorização formal para uso do lugar e um jovem deveria portar a chave, ao passo que o
espaço permanecia trancado aos sábados. O jovem responsável passou a ser o Faro. Com
efeito, em resultado de sua participação nas atividades do Programa Conjunto ONU-Brasil,
Faro recebeu um convite de representantes do governo municipal para trabalhar no CRAS
como articulador social, como se verá adiante.
O impacto do CRAS sobre a realização das batalhas não se resumiu à introdução de
novas regras, diz respeito à própria arquitetura e tipos de ambientes projetados para o espaço.
Estes eram adequados para receber atividades da política de assistência e não para a
realização de eventos de natureza cultural, nem artística, ainda mais nos moldes dos que lá
ocorriam. Se antes, os duelos aconteciam em um prédio inacabado onde os jovens tinham a
liberdade de pintar as paredes com as cores que quisessem e de introduzir elementos
funcionais e decorativos como, por exemplo, um palanque e jogos de luzes em estilo
underground, no CRAS o espaço disponível era uma sala com paredes brancas e sem
revestimento acústico, piso de porcelanato e liso, sem palco ou palanque, luzes brancas,
138

cadeiras, banheiro feminino e banheiro masculino, ou seja, um ambiente formal que fazia
lembrar o de um escritório ou de um consultório médico. Estabeleceu-se assim uma limitação
nas possibilidades de interação e organização do próprio espaço.

Foto 7 - Duelos de MC’s antes e após a implantação do Cras no espaço Casa Amarela -
Estrela D’alva – 2012 e 2013

Fonte: Fotografia do Autor, 2013.

A princípio, tais mudanças organizativas e estruturais impostas por meio da


implantação do CRAS pareceram não abalar o ânimo dos jovens que continuavam a realizar
os eventos aos sábados, sempre com início por volta das 20h00 e término previsto para no
máximo 00h00, uma vez que não havia isolamento acústico. A cada noite de sábado havia
uma batalha de MC’s que consistia em pequenos torneios ou campeonatos com cerca de dez
duelos. Cada um destes era disputado em até três rounds com 90 segundos de duração. De um
modo geral havia um público cativo tanto de ouvintes e como de MC’s participantes. À
medida que a noite avançava para o duelo final, o público animava-se e se ouviam pessoas em
coro repetindo em tom alto de voz a palavra “row” com os braços estendidos, e por fim, com
aplausos decidiam, até o duelo final. O vencedor da batalha era aquele considerado por todos
como o melhor MC da noite.
Era comum haver jovens que exibiam um figurino que eles próprios definiam como
estilo vagabundo, um conjunto de roupas casuais composto por camisas e bermudas largas
com estampas, tênis de skatista, bonés aba reta, cabelo rastafári, careca ou tingido.
Ocasionalmente havia nas batalhas momentos reservados para os grafites em alguns muros do
entorno, declamação de poesias e apresentações de grupos de rap. Sempre que havia a
exibição espontânea do break, a manifestação do hip-hop mais vinculada à dança com estética
e estilo das ruas, não pude deixar de notar a forte impressão de autocontrole b-boys, os
139

dançarinos. Com movimentos fortes e precisos seus corpos giravam de ponta cabeça sobre o
piso preto e branco de porcelanato. Entre eles estava Miro. No período em que conheci este
jovem, assim como Faro, ele estava bastante envolvido com o movimento hip-hop; ambos os
jovens se apresentaram na época por seus nomes artísticos MC J e MC M 48.
Na seção seguinte são apresento as trajetórias dos dois, a iniciar pela de Faro, seguida
pela de Miro. Com o objetivo de conferir centralidade às suas falas, opto por construir a
narrativa a partir dos trechos das entrevistas. Optei também pelo recurso duplo da transcrição
literal das falas organizada em função dos objetivos desta tese de modo a apontar aspectos
relativos à transição para a vida adulta e os sentidos e representações das práticas sociais
produzidos pelos agentes.

5.2 A Trajetória de Faro

Fonte: Registros de Campo, 2013. Adaptado pelo autor.

Faro foi o primeiro jovem com quem realizei entrevistas biográficas. Até então havia
entrevistado somente moradores adultos, além de lideranças comunitárias. Conheci Faro no

48
São designações das letras iniciais de seus nomes artísticos, aqui não revelados para preservação do
anonimato.
140

mesmo momento no qual conheci Miro, durante um evento realizado no bairro pela Prefeitura
Municipal para receber o presidente das Nações Unidas no Brasil. Neste evento houve um
espaço reservado para apresentações culturais realizadas por jovens participantes de projetos
sociais vinculados à execução do Programa Conjunto – ONU. Foi neste dia em que Faro
convidou-me para conhecer as batalhas de mc’s da casa amarela. Seu convite não foi por
gentileza, Faro era um jovem muito bem articulado com pessoas de diversas esferas sociais e
naquela época participava de modo mais efetivo que os demais MC’s do bairro das atividades,
cursos e capacitações oferecidas pelo Programa da ONU. Além disso, Faro mantinha um
trânsito social bem articulado no bairro, fosse junto a lideranças políticas e religiosas, fosse
junto ao movimento hip-hop, tanto quanto junto a Imagens do narcotráfico. Vale a pena
recordar que, em função da sua rede social e das participações voluntárias nos projetos sociais
da ONU, Faro foi convidado para exercer o cargo de articulador social no CRAS - Casa
Amarela.
Quando o entrevistei, em 2013, Faro já trabalhava como articulador social no CRAS
Casa Amarela, onde realizava um turno de 40 horas semanais com remuneração mensal de
pouco mais de R$900,00. O cargo de articulador social é previsto pela Política Nacional de
Assistência Social (PNAS, 2009), ao passo que o CRAS é um equipamento da política
focalizada em territórios de “alta vulnerabilidade social”. O cargo é comum em bairros com
aglomeração de famílias em situação de pobreza, segregados, com problemas de violência
brutal (homicídios) e, por isso, a entrada de pessoas de fora do bairro, como os assistentes
sociais, não ocorre sem a mediação de um morador. Tal é o contexto do Estrela D’Alva e
outros em situação relativamente semelhante na RMBH.
A questão é que a efetivação das ações executadas pelos assistentes sociais dependia
da mediação feita por um “nativo”, de “alguém do lugar”, pelo menos no primeiro ano do
equipamento, até a equipe técnica ser familiarizada pela população local. Faro possuía o perfil
desejado pelo CRAS, era um destes, dotado do conhecimento necessário para desempenhar tal
função, inclusive para ajudar a manter a rotina do equipamento cujas atividades eram
desenvolvidas ao lado de um ponto de venda de drogas ilícitas, situado na praça anexa ao
CRAS. A trajetória de Faro é marcada pelo seu envolvimento na igreja e, por essa via, na vida
comunitária da periferia desde a adolescência, muito antes de trabalhar no CRAS.
Faro desempenhou o papel de interlocutor privilegiado ou de informante-chave no
desenvolvimento da pesquisa de campo indicando-me outros jovens e pessoas como pastores,
presidentes de ONG’s e de associação de moradores com quem tive a oportunidade de realizar
entrevistas ou de levantar outro tipo de informações sobre a história e vida social no bairro.
141

Faro apresentou-me ainda espaços relevantes da vida social e cultural no Estrela D’alva tais
como o Campo do Zé Gordo – espaço de prática futebolística, interação juvenil e que já foi
utilizado em tempos recentes para a prática de homicídios e outras violências – e o Monte,
uma espécie de mirante onde religiosos locais costumam desenvolver retiros espirituais e
práticas de exorcismo por meio da queima de objetos.
Diferentemente de Miro, que nunca mais vi, com Faro mantive contato durante toda a
etnografia e obtive um conjunto maior de dados sobre a vida no bairro a partir de sua
trajetória de vida. Com ele estabeleci um importante vínculo para o desenvolvimento da tese.
Quando fizemos as entrevistas, Faro estava com 21 anos de idade, residia no Estrela D’alva
desde que nasceu e pela primeira vez morava fora da casa de seu pai, em um barracão de
fundos alugado pela família de sua namorada, no mesmo bairro.
Desde os 13 anos de idade Faro exercia algum tipo de atividade remunerada, sendo a
maior parte em setores informais da economia. Sua carreira escolar encerrou-se quando tinha
14 anos, antes mesmo de completar os oito anos de escolarização fundamental prevista na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996). Estudou até o correspondente à antiga 7ª
série, hoje 8º ano. Quando criança frequentou a igreja metodista, tendo-se transferido, na
adolescência, para a igreja batista. E, embora se encontrasse formalmente desvinculado da
igreja quando nos conhecemos, sua namorada permanecia fiel, razão principal para que Faro
mantivesse um vínculo religioso, embora esbatido. Algumas vezes o encontrei na porta ou
mesmo dentro do templo da Primeira Igreja Batista do Bairro Estrela D’alva, a PIBED, nos
cultos de domingo.
Aos sábados à noite Faro participava das batalhas de mc’s. Por ser funcionário do
CRAS, ele ficava encarregado de portar a chave do lugar para que as batalhas pudessem ser
realizadas. Faro também atuava na organização de outros eventos relacionados à cultura hip-
hop no bairro e fora dele noutras áreas do município de Contagem por convite do governo
municipal. No bairro, além do trabalho no CRAS, ele prestava serviços de pintura e oficinas
de grafite. Em simultâneo, encontrava-se relativamente envolvido na vida política formal do
Estrela D’alva. Esse vínculo profissional proporcionava-lhe, com relativa frequência,
relacionamentos com vereadores e outras lideranças políticas locais, a exemplo de presidentes
de ONG’s.
As entrevistas foram realizadas no CRAS, na sua residência e na casa de seu pai, onde
o jovem acolheu-me demostrando sempre interesse e apreço pela pesquisa. Os trechos que
apresento a seguir representam percursos sociais marcantes em seu relato biográfico, foram
obtidos nesses três locais e serão apresentados em conjunto, compondo uma só narrativa.
142

Faro, memórias e representações sobre o bairro e a vida na periferia

A comunidade em si também era uma coisa meio desorganizada, os espaços, como


praças, eram bem ruins mesmo, a infraestrutura do bairro era bem ruim. Aqui no
local em que nós estamos agora, a Casa Amarela, antes aqui era um buracão e que
servia também de depósito de lixo, esgoto a céu aberto. A praça que tínhamos aqui
era horrível, né? Hoje é a Praça do Estrela D’alva, mas era horrível, muito feia,
jogada às traças mesmo e a prefeitura raramente vinha aqui, a quadra de futebol a
gente não tinha, o máximo que a gente tinha era o campo do Zé Gordo. Como eu
posso falar… o único entretenimento que a gente tinha era só o campo ali, entendeu?
Fora os espaços formais, o futebol na rua era o que mais tinhamos, os peões, a
bolinha de gude, o pique-esconde, a gente usava era a rua mesmo, os becos e as
próprias casas mesmos, a gente chegava e entrava e escondia, a gente tinha muita
guerra de frutas também, frutas podres que a gente pegava quando o sacolão
fechava. Teve uma vez que fomos brincar e teve aqui um racionamento de luz e
naquele escurão danado e nós lá brincando, as brincadeiras eram essas, mas antes, a
situação aqui era bem mais complicada, o bairro era meio desorganizado, né? Então
havia pichação, o pessoal tava pichando muito o bairro, havia roubos em mercearias
e tal, e até roubando roupas nos varais mesmo, tinham muitos viciados e morte aqui
era direto.

Aqui, um menino vira homem mais cedo. A mulher vira mulher muito mais cedo.
Tem que aprender a correr por si mesmo, entendeu? Aprender a si virar no mundo
mesmo, porque a situação é infelizmente pra nós, é..., as portas são fechadas muito
mais vezes do que são abertas entendeu? Então a pessoa tem que aprender a si virar
aqui é precocemente, diferente da pessoa que não mora na periferia. A pessoa que
não mora na periferia, eu não digo todos, é claro, não todos, em geral tem uma vida
financeira melhor, mora às vezes num apartamento ou numa casa legal, num bairro
legal, tem um emprego bom, tem condição de manter o menino na escola sem ele ter
que trabalhar. Eu digo é que as pessoas aqui são mais evoluídas como homens e
como mulheres, evolui mais rápido para o cotidiano de vida, não digo na capacidade
de…, como eu posso dizer? Aqui não desenvolvem aquela questão do intelectual, do
estudo ou de uma formação. Isso, infelizmente, tem deixado a desejar, mas em
outras áreas desenvolve outras. O povo da periferia tem uma garra maior, luta mais
pelas coisas, acredita mais, tem uma esperança maior, que tem essa questão de
levantar todo dia cedo, de buscar a mudança, de buscar o melhor pra família.

Faro, interações na escola

Ah, eu não levava muito a sério a questão do estudo não [risos], tanto que nessa
época aí foi a época em que eu comecei a..., eu tomei bomba, peguei recuperação
demais, tinha uma época que eu saia da escola e tal. Teve ano lá que eu levei
suspensão por segurar B.O <problema> dos outros. Entendeu? Porque eu sabia que
ia dar expulsão do menino lá, e aí como eu já tinha um vínculo legal com a diretora
eu tentei segurar a onda e tal e acabei tomando uma. É porque o menino jogou uma
bomba garrafão pela janela de dentro da sala de aula, ele amarrou umas três bombas
garrafão e acendeu e aí o lerdão não sabia o que fazer “e agora? e agora? e agora? e
agora?” e um outro colega disse “a janela!, joga! Joga! Joga!”. E ele foi e jogou e na
hora estava passando a professora, e a professora estava grávida! E era a professora
de inglês, uma professora que a gente já não tinha assim..., um vínculo legal, é
porque ninguém sabia inglês e nós “pô professora, nóis mal sabe falar português
direito e a senhora quer enfiar esse inglês com nós?”. E a coitada estava grávida
ainda na época, e ela entrou na sala e o cabelo dela estava “Vap!” igual uma esponja
que subiu, a bomba estourou no alto e nem chegou a pegar no chão e aí estourou e
ela entrou com uma cara..., ela entrou tremendo: “olha vocês tudo aí ó!”. E veio a
diretora e todo mundo, todo mundo: “meu Deus do céu, olha só pra professora!”, e
você precisa ver o conflito que deu. E aí perguntaram: “quem foi? quem foi? quem
foi? quem foi?”, e ninguém nada, e “quem foi? quem foi? quem foi? quem foi?”. E
143

aí pá, o menino já tinha passado uns problemas, ele já era meio de conflito na escola,
aí o pessoal disse: “vocês todos que estão sentados perto da janela, vocês todos vão
descer!”. Pá, beleza, aí todo mundo desceu. Aí ela foi conversando com cada um:
“oh, se for você é isso, é isso e isso”, aí, “se for você é isso, e isso, e isso”, e foi para
o menino que jogou e falou “oh, se for você, você não entra mais aqui e nem em
escola nenhuma! Você vai ser expulso e vou é mandar já seu nome para a Secretaria
de Educação!”. E ela falou pra mim “E o que é que você está fazendo aqui?” e eu
falei “ah, eu estava lá perto da janela e o pessoal mandou descer”, e ela “então tá,
então fica aí!”. Aí nós fomos e falamos assim: “deixa nós conversar ali fora
primeiro, e tal”. E aí nós fomos lá e: “pô, e aí, o que é que a gente vai arrumar?” e aí
nós sentou e “véi o que é que a gente vai arrumar?”, aí o cara foi , “mas vocês viram
o que é que vai dar pra mim né, o que que vai dar pra mim” e aí, já é, “então vamos
tentar segurar o B.O dele”. E aí lá dentro ele falou “pô, e aí Dona Geralda e se for eu
e pá vai rolar isso mesmo?”, e aí um outro foi e jogou “ e se for eu? e se for eu? e
tal” pá, “ e se for eu? e se for eu? e se for eu?...”, aí beleza, então “oh Dona Geralda
é o seguinte...” e aí no momento ali tal eu joguei o K.O (um lero-lero) e falei: “sem
querer eu acendi e quando eu acendi, e eu lerdão demais não sabia o que fazia e fui
e joguei pela janela”. E aí, ela ouviu, ouviu, e depois quando eu terminei de falar ela
disse “eu sei que não foi você, mas pela sua atitude eu vou liberar vocês, entendeu?
Mas vocês estão na minha lista e são três dias em casa pra cada um”.

[...] Eu era doido pra sair da escola, eu nunca gostei de estudar, por causa disso, eu
não aguentava ter que chegar lá e ter que sentar dentro da sala de aula e ter que ficar
ouvindo o professor falar, e eu não estava interessado em arrumar amizades na
escola, tipo assim vou arrumar amizade na escola com gente que eu vejo todo dia?
Mas tem gente que já tomou bomba, ou tem gente que saiu da escola e queria voltar
por causa disso, porque na escola tinha aquela convivência entendeu, eu sempre
achei meio idiota isso, que gosta de ir pra escola como lugar de encontro, tem gente
que faz isso fraga.

Faro, na intersecção entre trabalho precoce e abandono escolar

Eu comecei bem cedo e antes da carteira era catando papelão, catando latinha,
vendendo chup-chup, eram essas coisas, e trabalhei em sapataria, o que você
imaginar eu acho que já fiz, antes de vir pra cá eu trabalhava como pintor, trabalhei
em restaurante, sai do restaurante e dei entrada na Cruz Vermelha lá na PUC [...]
trabalhando na Cruz Vermelha, cara. Tipo ou é do setor que você está, entendeu,
tipo eu trabalhei na PUC e depois fui para o colégio, ou eu melava muito o saco do
pessoal do colégio para que depois quando eu fosse mandado embora da Cruz
Vermelha eles me recontratassem, ou eu era mandado embora e ficava por isso
mesmo. Ter isso no currículo, eu já mandei meu curriculo pra um tanto de lugar e
ninguém nunca me chamou por causa disso não, entendeu, então não fez diferença
nenhuma.

Eu sei que tem alguns que voltou a trabalhar no colégio e tem outros que trabalham
na PUC e tal, mas é daqueles caras que gosta de melar um saco mesmo e de receber
ordens mesmo. Já no meu caso não, eu sempre fui assim pá, eu vou fazer aquilo que
eu acho que é certo. Eles me mandavam fazer coisas lá no colégio cara, não é
tirando não, mas não era trabalho meu não. Vamos supor, a secretária, porque lá não
tem coordenador nem outra coisa não, no começo ela jogava tudo em cima do Cruz
Vermelha, lá dentro o Cruz Vermelha era capacho. Vamos supor, tinham coisas que
eram pra entregar e que era para a mãe do aluno receber no mesmo dia e a aula lá é
12h30, e aí eu tinha que entregar o material antes da última aula, tipo no início da
última aula umas 11h40, e tinha umas caixinhas lá que eram de material que era pra
entregar e as mulheres te davam o negócio às 12h00 ou 12h10. Elas já sabiam que a
gente não ia olhar a caixa mais, porque o que era para ser entregue era só até 11h40,
depois o resto não era pra entregar, só no outro dia, e elas jogavam lá, entendeu. E
depois achavam ruim com a gente ainda, tipo assim “pô não entregou?” E aí a gente
falava “olha não tava aí, nós entregamos tudo, e esse negócio não tava aí”, e mesmo
assim, quem tomava era nóis. E aí passou um tempo que teve uma situação de que
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gerou um negócio lá porque eu ia demais falar lá com o diretor e criei um vínculo


com ele, o cara era super gente boa. E o que acontecia é que tudo que era com a
gente levava primeiro pra secretária chefe, só que lá como as meninas melavam o
saco dela e nós não, quem sobrava era sempre nós. E acontece que, a partir do
momento que nós criamos um vínculo com o diretor tudo que acontecia, a gente
estando errado ou não, pelo menos eu levava direto pra ele e falava “olha, aconteceu
isso..., e eu fiz isso, isso, isso, e aconteceu isso e isso, e o pessoal fez isso e tal”. E
quando chegava no ouvido da secretária que ia passar pró diretor pra ver o que ia
resolver, a gente já tinha chegado lá, e chegava lá e [o diretor falava]“eu já resolvi,
já conversei com Faro e tal”. E ela ficava puta comigo “como assim? Não. Você tem
que aprender a respeitar a hierarquia, de vocês conversarem comigo, e é eu é quem
vai levar pra ele, você não precisa ficar levando coisas pra ele [diretor], ele não tem
que ficar ouvindo vocês não”. E ela ficava puta comigo e aí eu comecei, vinha ela
falando “você tem que fazer isso, isso, e isso e tal”, e eu, “olha, no meu contrato não
tá isso não”, às vezes eles me botavam pra carregar aqueles garrafões de água, pesa
uns 18 litros ou uns 20 kilos, e aí eu falava assim “oh, não vou carregar não porque
no meu contrato, tá falando que eu só posso carregar até 15 kilos, [risos], e mais do
que isso eu não posso carregar não”, e eu fazia isso só pra encher o saco mesmo,
cara, dependendo da pessoa eu não fazia mesmo, eles gostam de montar em cima
mesmo, montavam mesmo, o serviço delas e elas botava nóis pra fazer, e às vezes
eram elas que faziam o serviço errado e quem tomava era nóis.

[Sobre ter trabalhado na infância] Eu acho que é pela renda da casa, de dentro da
própria casa, às vezes o pai de família lá trabalha como pedreiro e não tem a carteira
assinada, ou às vezes o que recebe é um salário mínimo para cuidar de seis pessoas,
ele e mais seis. Você entendeu? Então aqui, infelizmente, o trabalho é bem precoce
mesmo. [...] A vulnerabilidade aqui é muito grande pela renda da família ser muito
pouca e tal, de ser difícil, do menino ter que trabalhar e estudar. Essa é uma forma
de você garantir a sua vida? É, mas é uma forma muito prolongada. Você consegue
se você for estudando e formando numa faculdade, você consegue ter uma vida
estável? Uma vida financeira estável? Tem condição sim, mas infelizmente aqui não
tem como a gente esperar esse tempo, a maioria das pessoas aqui não tem como
esperar o menino ter que estudar e ter que fazer uma faculdade, tem condição pra
isso, de manter o menino estudando pra depois começar a entrar no mercado de
trabalho? Tem que começar cedo e infelizmente ou o menor de idade não consegue
o trabalho ou o trabalho é muito pesado ou ele ganha pouco demais, e a
criminalidade aqui é a forma mais fácil de conseguir uma grana, é a mais fácil de
conseguir um dinheiro bom, entendeu? Eu nunca reclamei não, dá hora, mas hoje eu
tenho a visão de que tem como os caras melhorarem a sua situação como menor,
não, como “jovem aprendiz” como dizem, nem falam “menor” mais.

Faro, trânsitos metropolitanos e relações interclasse

[Época que trabalhou na Cruz Vermelha em um colégio de classe média em um


bairro tradicional de Belo Horizonte]: Quando eu estava esperando um ônibus e aí
tinha um aluno lá esperando. Ou às vezes assim, eu estava lá na lanchonete
vendendo umas paradinhas lá e os alunos que estavam lá na lanchonete, comendo
lá, acabavam conversando. E nesses lugares que eu ia, eu nunca ia acompanhado
com eles, entendeu? Eu chegava lá e os encontrava “ai, você está aí e tal”. Era
assim, entendeu? Não tinha aquela questão da amizade.

[...] a Savassi, eu ia muito a Savassi, ou às vezes ali no viaduto também. Mas, ia


mais é na Savassi mesmo. Até mesmo porque eu conhecia os meninos do Colégio lá,
que tem uma vida diferente da daqui, “ah tenho que conhecer uns lugares
diferentes”, [...] e lá e eu virava lá, ou então…, já chegou de ir pra casa de alguém,
ou às vezes ia para o ponto e esperava o ônibus, ou às vezes eu vinha mais cedo,
entendeu? Já rolou de eu vir a pé, do centro prá cá, gastei umas 2 horas e meia, eu
estava meio doidão também [risos], teve uma vez que vim pichando…, então tipo
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assim, teve várias situações [...] mas eu vou falar pra você, eu nunca vi usuário de
drogas aqui hibernar mesmo na droga igual eles lá. Na minha opinião, o uso de
drogas lá, na burguesia, é muito maior do que aqui dentro. Lá o movimento é…, é o
mesmo que tem aqui é o mesmo que tem lá, entendeu? Eu não sei, mas os caras…,
eu comecei a refletir foi por causa disso, “pô, a gente tem toda uma dificuldade de
vida, com polícia, com tráfico…, pra crescer na vida, pra você conseguir um trampo
e continuar a estudar”, e lá, os caras tem tudo. Eu acho que, pelo fato de terem tudo,
os caras querem é curtir. Os caras bebiam muito, os caras cheiravam muito, fumava
muito, então tipo assim, eu via aquilo e eu falava assim “eu não quero isso”. Pô, os
caras tem tudo aqui e não querem isso, enquanto a gente tá lá e não tem nada e tem
nego lutando pra poder ser alguém. E eu pensei assim, que, eu quero ser essa pessoa,
pra ser alguém, entendeu? E várias coisas, e tinha outros fatores também. Tinha
gente lá assim, que tinha uma boa condição mas, era mais tranquilo e tinha muitas
ideias legais. Mas, era tipo assim, um convívio diferente do que a gente tem aqui.
[...] os caras tem tudo, sei lá, os caras querem é curtir a vida e você não vê os caras
falando de Deus, e aqui não você sempre tem isso. Às vezes você está sentado e o
cara tá fumando um baseado, mas está falando de Deus, tipo “nó véi, Deus tá me
abençoando”, tipo assim os caras estão falando de coisas da bíblia, muitos deles já
passaram por igreja e tal, ou às vezes ainda tem uma questão de ir à igreja, não
muito forte, mas tem. Então eu acho que a fé aqui é uma questão muito grande, eu
acho assim, por não ter algo palpável assim, eles são de imaginar que existe um
Deus e que esse Deus está olhando pra você, está te protegendo eu acho que isso
assim dá uma autoestima.
Faro, articulador social: rotinas e outras situações vividas no CRAS

Com esse projeto da ONU que foi desenvolvido aqui eu comecei a participar de
algumas reuniões e, querendo ou não, com esse movimento do hip-hop na igreja que
já em si é um trabalho social e com a vinda da ONU a gente começou a desenvolvê-
lo ainda mais. Começou a ter mais visibilidade de propagar essa questão do trabalho
social. Aí, eles vieram com a ideia de introduzir um CRAS aqui no Casa Amarela. E
assim, eles estavam procurando alguma pessoa que pudesse desenvolver o trabalho
de articulador comunitário. Nesta época a coordenadora do CRAS na região do
Nacional estava conversando com o mestre-de-obras que estava trabalhando na
reforma o espaço Casa Amarela, o senhor Altair e, eu estava por perto e peguei o
bonde andando [ouvir ou entrar numa conversa de terceiros] e vi que ela estava
procurando um articulador e que tinha que ser alguém da comunidade. Ao ouvir essa
conversa fui até o Tustão que é um menino que cresceu comigo aqui e que faz um
trabalho social muito legal, ele dá aula de grafite no Educarte e é o presidente da
ONG Terra Banta. Ele representava a juventude da comunidade no Comitê da ONU,
e eu disse a ele, eu vi a J. conversando com o senhor Altair sobre uma vaga de
emprego de articulador e tal, e você poderia ver com ela isso pra mim. Então, ele
ligou para ela e agendou uma reunião para poder falar a meu respeito, para indicar-
me ao cargo. E, no dia da reunião, antes do Luiz chegar a dizer sobre mim ela disse a
ele: “antes de você falar eu quero dizer que conheci um colega seu, eu gostei dele e
acho que ele seria ideal”. Então, ele perguntou a ela quem era, e ela disse “o Faro”.
E ele respondeu a ela, “é do Faro mesmo que eu vim falar”. E assim foi, juntou-se o
útil ao agradável e, graças a Deus, hoje estou aqui.

A Bolsa Família saiu muito foi no início, mas não é só ele, é o Cadastro Único né. E
o que acontece, ia muito naquela questão “Ah, eu vou lá e, mês que vem, já estou
recebendo”, e não é assim que funciona, entendeu? Tem que passar pelo
atendimento, e depois, vai fazer o cadastro lá, e depois que entrar no cadastro único
vai demorar de 3 a 6 meses para ela ter acesso, isso se ela for do perfil. O Cadastro
Único tem vários benefícios: você é isento de taxas caso vá fazer uma prova, um
concurso público, tem uma diminuição tanto na conta de luz como na conta de água,
e se a mulher for dona de casa ela pode pagar o INSS dela por um valor mais barato,
e tem o Bolsa Família. Isso tudo dentro do Cadastro Único. Tem outras coisas
também como o Pronatec (Programa Nacional de Aprendizado Técnico) que é um
curso que você pode fazer e tal, tem outros benefícios. E é bom, tem mais de 600
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cursos, eu mesmo estou querendo fazer um. A cesta básica não, se você chegar lá e
falar para a assistente social, se naquilo que ela falar ela for perfil ela já leva, só
depois é que a assistente social vai até a casa da pessoa por visita domiciliar para
saber se realmente ela está nesse perfil. Então, a procura pela cesta básica tem sido
grande.

[...] Às vezes as meninas lá [as técnicas e as assistentes sociais] às vezes ficam meio
piradonas comigo assim, porque eu sempre tento quebrar essa questão fraga, essa
questão técnica, de tentar ver a situação da pessoa de uma outra forma, não daquilo
que se estudou, mas de uma outra forma mesmo, tentar parar e pensar “o que essa
pessoa está vivendo?”. Elas estavam falando de uma questão dos meninos da escola,
do por que dos meninos não estarem indo e tal, e aí eu fui e falei “beleza, mas o que
a escola tem de atrativo pra esses meninos?” tipo assim o que é que o menino faz? O
que é que ele quer fazer da vida? Ele quer é estudar português e estudar matemática?
Às vezes o dom que ele tem na escola ele não acha, mas na rua ele acha. Vamos
supor que ele quer artes, e chega dentro da sala de aula a professora dá uma folha e
fala assim “faz um desenho”, tipo assim não te ensina arte. Poxa, o que é arte? O que
é que eu posso fazer? O que é que eu posso criar? Não te ensinam isso.

[...] Foi no mês passado, no início do mês passado, dia de semana, eu estava saindo
para almoçar, eu estava saindo do Cras e aí eu encontrei um camarada meu [um
amigo], eu parei para cumprimenta-lo e aí chegou a polícia “mão na cabeça!” e
abordou, até aí tudo bem, e aí o cara veio e me revistou e tudo, pá, beleza, e assim
que ele terminou de revistar eu meio que chateado com a situação pois tava indo
almoçar, eu abaixei a mão pois pensei “o cara terminou, então tá beleza” abaixei a
mão e tipo assim voltei ao normal. E então o cara foi e mandou-me voltar pra
mesma posição que eu estava e nisso aí o cara já achou que eu estava tirando ele
[ofendendo], o policial, então eu voltei pra mesma posição e olhei para o rosto dele
e fiz aquela cara de “pô, de novo!”. Nossa! O cara já ficou… “pô véi, você não
respeita não?” e não sei o que mais e chegou perto de mim e disse “é, você está se
achando demais, e não sei o que, não sei o que…” e deu um tapa na minha cara e
falou “ah, você é folgado, você é isso, você é aquilo” e chegou e boom, e deu-me
uma cabeçada e eu vi estrela na hora véi e depois até deu uma inchada, e aí ele já me
deu um bicudo [ponta pé forte] na perna, e depois já deu um bicudo na outra e já
mandou “abre essas pernas!”. E eu gelei, e pá, e o pessoal do Cras, uma das
funcionárias de lá tinha visto e disse “O que é isso? O que é isso? O menino trabalha
aqui, e não sei que mais…”. E ela foi lá e chamou as técnicas, assistente social “pô,
vai lá, olhar lá, o Faro tá apanhando da polícia lá fora lá e tal”, e as meninas já
correu e pá “que isso? O que está rolando? O menino trabalha com nós aqui”. E aí o
policial, maior arrogante, né? “É, mas não tá escrito na testa de ninguém se é
trabalhador ou não”, até aí tudo bem, mas aí “e o que é isso aí?” [perguntou o
policial], e aí, “é o Cras!” [respondeu a técnica], “E o Cras é de quê?” [perguntou o
policial], “É um equipamento público que a secretaria de desenvolvimento social, é
da secretaria de desenvolvimento social”. [...] Os caras saíram, esse que me bateu e
um outro camarada lá que respondeu as meninas de mal jeito, e um outro que estava
responsável pela viatura é que veio e que conversou comigo, e veio conversar
comigo e assim: “pô cara, nossa, mas você não pode fazer isso, você sabe que você
não pode fazer isso, e não dá nada para os caras quererem fazer alguma coisa com
você e tal”, e aí eu disse “mas o senhor mesmo viu que eu não fiz nada, pá não falei
nada, baixei a mão”, “você está errado” [respondeu o policial], mas nem por isso é
motivo pra cara sair me batendo assim não.

Faro, religião e convívio comunitário

Eu não sei te falar desde quando, quando eu era criança eu frequenta a PIBED, e ela
era pequeninha, mas eu acho que depois que começou aqui e a população cresceu
também, eu não sei te falar assim quando foi isso, simplesmente eu acordei um dia e
fui reparar e tem muita igreja aqui, às vezes em um quarteirão tem umas três ou
quatro. Só nesse quarteirão aqui, se eu for contar, começando lá de baixo, tem uma
na esquina lá em baixo, tem uma aqui na esquina aqui de cima, tem essa daqui [em
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frente a casa dele tem uma bem barulhenta], tinha uma outra ali na frente. Só nesse
quarteirão aqui, olha que a rua é grande e tem quatro, mas tem rua que é menor e
tem três igrejas. [Perguntei a ele o por que de tantas igrejas e o jovem
prosseguiu:]Antigamente era pela questão da fé, da fé mesmo, e hoje em dia parece
que virou moda você estar na igreja, então tem muita gente que não vive realmente
aquilo que está pregando, mas a ideia inicial desde sempre foi essa, tipo pelo
trabalho com vidas, com pessoas, então, se não tiver pessoas você não tem igreja,
então tipo assim tem que saber como os meninos estão, como as pessoas estão, e
devem acompanhar, e então se precisa de uma ajuda a gente vê o que pode fazer. A
ideia da célula é essa entendeu, faz o que acontece que a igreja que é grande demais
não pode fazer, de filtrar tudo assim, a célula filtra entendeu, o lider da célula está
responsável em acompanhar cada um.[...] É nessa visão a célula, porque tipo assim
eles gostam do trabalho muito em comunhão, pregam muito essa questão da união e
tal, e o amor entre as pessoas. E na igreja grande não tem como você ter isso, e tem
várias panelas, eles formam, e na célula tem como você acompanhar. Não tem como
o pastor [refere-se ao lider da PIBED] chegar assim e falar: “e o Marcão, como está
o Marcão?” ou “eu vou lá no Marcão.”. Ele tem outras coisas para resolver A igreja
vai crescendo e não dá pra ele acompanhar.

Tinha que ir atrás da pessoa e se tem um problema o cara te liga na madrugada, eu


levantava e vamos lá, vamos ver o que está pegando, é uma parada séria. O cara já
foi parar no hospital e nós, então, vamos lá. Você entendeu, no João XXIII, no
Odilon Behens? Muita coisa já aconteceu, teve um caso que foi de um menino
nosso que se envolveu com o tráfico e tal e acabou matando um outro camarada ali
por causa de coisa boba, e aí o cara sumiu, né?. […] Teve um vizinho dele que tinha
tomado uma bala no ombro, pegou no ombro, mas passou pelo osso e atravessou o
braço dele inteiro e saiu na mão do vizinho dele que foi parar no hospital, e a gente
foi atrás. Já teve também casos de ter que intermediar algumas coisas, assim tipo
briga dos caras, fraga, quando sabia que podia gerar algum conflito a gente ia e
sentava com um e, depois, sentava com o outro e tentava sentar com todos juntos pra
poder resolver. E com essa questão da célula eu já estava nervoso eu fiquei muito
chateado com a questão da célula porque, pô, você dá seu tempo, você dá o sangue
para os caras e não sei o que mais pra muitos caras tá numa vida legal, sair dessa e
tal. E infelizmente o que você vê é os meninos tipo saindo, cada um para um canto e
uns foram presos, o outro tá paraplégico, tem nego que matou e tá fugido, outros que
quase morreram. Você entendeu? À beira da morte assim e eu fiquei puto, eu fiquei
triste com isso “pô estou aqui fazendo meu trabalho, tentando e tal e tudo com os
caras e a maioria deles infelizmente, tudo que a gente lutava para os caras não ser, e
hoje eles são.” Entendeu? Eu fiquei puto e “quer saber? Eu vou largar esse trem!”, e
aí eu larguei a célula.

Faro, o convívio com o narcotráfico no bairro

Já cansei de ver quando eu ficava ali no morro do Cabrito, eu já vi jogador do


Cruzeiro, jogador do América. Eu no momento, agora, eu não tenho subido muito
mais lá não, os conhecidos que tinha lá a maioria já morreu ou tá preso, ou mudou e
tal. Mas eu já cansei de ver jogador do Cruzeiro, jogador…, mais de base né. Pô, o
cara tá na televisão, tá jogando, então você conhece. Já vi muitas conversas de lá,
assim…, tá iniciando o final de semana e um cara lá recebeu um telefone, um
telefone, e aí que acontece? Era um…, eu não sei de onde era o cara, mas ele tinha a
nota [dinheiro], e aí o cara já colocou no viva-voz pra gente poder ouvir, e tipo
assim, era um playboy, e pá…, e eles iam encontrar em algum lugar na Pampulha,
numa mansão lá, eu não sei, e o cara disse “é que eu estou querendo fazer uma festa
e vai rolar por uns 3 dias, sexta, sábado e domingo, e…, manda uma parada pra
mim”, é cara que têm…, é playboy, playboy. Mas o mercado é grande pra fora. Mas
é tanto externo, quanto interno. E vai muito do nível do cara também. Qual que é o
nível que você está dentro do esquema? “Ah, eu sou vapor” esse fica mais em
baixo…, e aí vai subindo de nível, vai subindo de nível e aí o cara já tem aquele
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crescimento mais forte.

[...] Você está ali, e já está tudo ali, o que você tem que fazer é vender, é só ficar ali,
vai pegar o seu e vai vender, entendeu, é igual uma loja, você chega na loja e já tem
tudo lá, entendeu? É isso, é simplesmente isso. O dinheiro vai e entra, eu mesmo de
estar sentado lá, “pô estou sentado aqui já tem meia hora e já passou uns dez negos
aqui, imagina se eu ficasse aqui o dia inteiro?”, entendeu? Cada nego desse aí é
R$5,00, R$10,00 ou R$20,00 reais, o dia inteiro, imagina coloque aí uma 30 pessoas
por dia a R$10,00 contos, entendeu, e isso de dia, e de noite? E no final de semana?
Feriado? É muito maior, entendeu.

[...] É assim, eu mesmo ralo [trabalho] o mês inteiro pra ganhar R$900,00 e poucos
reais, sendo que o cara que está ali do meu lado na Casa Amarela, do meu lado
assim, está ali sempre no convívio ali, com um dia o cara tira o mesmo tanto que eu.
Os caras, de vez enquanto, eles tomam muito café lá e comem pão e tal, e às vezes,
os caras querem bancar e dizem “hoje eu é quem vou bancar o café” Tem muito
disso, cada dia é um. Aí, o que que pega? O cara tira uma carteira, do bolso, aquele
bolão de notas, não tá nem cabendo, de tanto dinheiro que está na carteira. Então,
tipo assim isso é ostentador véi, pô eu tô ralando pacaraí, [trabalhando muito] mas
eu ralo ali tranquilo até engordei, agora imagine para um pedreiro ou servente de
obras que o serviço é mais pesado e o salário é o mesmo ou, às vezes, é até menor e
vê uma situação dessa ele pensa “eu quero é uma vida dessa pra mim”. Eu mesmo
sentado ali [próximo ao Cras] porque tem dia que eu fico lá sentado pra fazer
alguma coisa, às vezes tenho que escrever alguma coisa e aí eu vou sentar lá fora. O
que acontece…? Só de eu estar ali, vai muito pela questão de roupa, da vestimenta
também, isso conta muito entendeu? Às vezes, só de eu estar sentado ali, já teve dia
que já chegou uns 10 negos: “pô, você não tem aí não?”. Aí, tipo assim: “não véi,
não tenho não”. Eles acham que se você está ali é pra vender. Aí, eu estou sentado
e…, pela vestimenta também, mais marginal como o pessoal fala, mais marginal e
aí, só de eu estar ali o pessoal: “ E aí, você não tem não?”. Então, eu vejo que ali o
lucro dos caras é grande, é grande, muito grande, muito grande mesmo porque toda
hora têm. Têm hora que os caras chegam lá as 10 horas da manhã querendo,
querendo e, tipo assim, às 10 horas da manhã você não acha ninguém, os caras estão
tudo dormindo essa hora, pois, virou a noite acordado… então é, tipo assim, é
simples, e é um mercado que às vezes você não o vê, mas ele está ali, [...], por
exemplo, você tá ali vendendo, vem um cara e você dá droga pra ele e pronto,
beleza. É um comércio que está ali, mas ninguém vê, entre aspas, ninguém vê. Mas
quando é roubo, furto ou alguma coisa assim, ou morte, aí tem polícia. [...]

[...] Se você chegar lá em baixo agora na Casa Amarela, não sei, mas qualquer
buraco ou buraco de tijolos, ou no meio do mato ali assim, você acha ali, entendeu?
Eu mesmo já cansei de encontrar: “Pô, tem um trem jogado ali…”. Então, entre
aspas, é muito fácil e teve até um problema com um menino aqui esses dias, o
menino estava iniciando, começando a vender, só que aí, o que acontece, deu
derrame [Quando o sujeito responsável por uma carga de drogas a perde ou a utiliza
para seu próprio consumo e deixa dívida aberta com seu “patrão”]. ou que alguém
roubou dele ou falou que lhe tinham roubado. Não sei, mas ele não usou, não chegou
a usá-la. E aí, o que pega, é que ele ficou devendo essa droga, mas não tinha
dinheiro pra pagar. E aí, o que ele fez? Ele roubou de outro para poder vender, para
poder pagar, entre aspas, foi mais ou menos isso, entendeu? E aí, o que é que pega?
Descobriram que ele tinha roubado, e o menino de quem ele roubou, pelo fato dele
ter crescido, ter estudado junto e tal, ele não quis fazer nada, não quis fazer nada, só
falou: “Pô velho, some daqui”. Ele não queria fazer nada, mas os outros meninos
queriam passar ele [matá-lo]. Hoje ele nem sai na rua, fica só dentro de casa, da casa
pra escola, da escola pra casa. A grande maioria, estuda na mesma escola ou, passou
pela mesma igreja, frequentou, sei lá, um mesmo lugar.

[...] Igual o caso daquele menino que deu o derrame, ele nem sai direito, ele não
pode ir até a casa amarela porque pode morrer, não pelo cara a quem está devendo,
mas pela mão de outro. Com todo mundo…, em todo lugar o cara fica com má fama
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e, às vezes, o que acontece é que outro cara acaba cobrando essa questão. Tipo
assim, os caras vai muito naquela: “ah, a regra é essa”, então, tipo assim…: “a
punição tem que acontecer”. O menino mesmo me falou “ah o cara me roubou, mas
eu cresci com ele, pô, eu conheço a mãe dele, eu conheço…, e isso pra mim não é
nada não, eu não vou ficar aí…, eu não vou matar o cara por causa disso não”.
Como ele conseguiu pagar a droga de volta, então tipo assim, na boa. Mas se fossem
outros caras ele teria matado. No caso do Miro aconteceu isso daí. Olha só pra você
ver, ele tentou roubar o cara aqui, mas a qualquer lugar que vá, em todos os lugares,
querendo ou não você ouve falar. Como os caras sabiam que eu tinha muita ligação
com ele, os caras falaram “pô, o quê que aquele cara arrumou?”.

[...] tem o tal do tribunal, a gente brinca muito, fraga? Então tem um barraco…, e os
caras não estão matando, mas estão dando punição. Tem essa do corte do cabelo,
tem as que apanham à madeirada na cara. O caso do Miro mesmo, ele deu muita
sorte de não ter tomado…, e o caso dele nem foi o envolvimento com droga nem
nada, foi simplesmente por ter dado um entrevista para um jornal, acho que O
Tempo, de Contagem, saiu uma matéria lá que era mentira. Falou que a casa (o Casa
Amarela) tava fechada e que não poderia abrir, sendo que não foi isso. Foi um dia
que se fechou porque eu não podia estar, então, não tinha ninguém pra abrir. Então o
que acontece, um dos…, dos patrões, estava na reunião com a gente sobre o que
poderia ser feito, e eles já estavam cientes que não abriria esse dia, por causa disso.
Todo mundo tava ciente. Então beleza, passou essa semana, veio o final de semana e
não abriu porque não tinha ninguém pra abrir porque eu não estava. Aí, quando foi
na segunda, ou na terça-feira já saiu essa matéria no jornal. E aí, o que acontece?
Antes de eu chegar na Casa Amarela o cara já estava lá me esperando, e que alguma
coisa ia acontecer, pois, a gente tava na reunião e depois viu a matéria, e veio me
mostrar.

[...] entre aspas, porque o que acontece? A comunidade querendo ou não, eu não vou
dizer a comunidade, mas tem muita gente que, tipo assim, tem mais uma
proximidade com eles do que com a própria polícia. Foi um líder comunitário que
mostrou pra ele essa questão, ele veio e mostrou pra mim. O Miro só não apanhou
porque…, é Deus mesmo. Acho que Deus gosta muito dele. Igual naquele caso da
droga que ele tinha apanhado, só não morreu…, porque é Deus mesmo. O cara ainda
falou pra ele “sai daqui, senão vou matar você”. E o quê que pega? Ele saiu fora.
Porque o cara pensou, pensou, pensou “mas dessa vez agora eu vou matar”. Ele já
deu outros problemas entendeu? E aconteceu que ele já tinha saído fora.

[...] Olha, eu já vi em casos de briga de família, mas hoje os caras [narcotraficantes]


evitam muito de participar porque, infelizmente, tem direto, então o cara não tem
que ficar se envolvendo com briga de família. Em caso de roubo, igua o roubo do
colégio lá aí os caras “pô, quem é que tá roubando aqui a escola dos meninos, e
tal?”. Vamos supor, ou se está roubando a droga um do outro, ou às vezes é um
usuário que está dando problema, às vezes é um cara que tá no tráfico e que tá
vendendo pra eles lá e que tá dando problema, então assim, essas coisinhas como
“oh, o cara pichou o bairro”, então isso aí já é motivo. Vamos dar um exemplo, essa
aí da escola. Ah, roubaram a escola, e aí a directora fala isso com alguém da
comunidade que trabalha lá, e aí, daquele passa pra mãe de um aluno “roubou a
escola”, e essa notícia vai, vai…, até chegar lá. Passa por, por outro, até chegar lá. E
quando chega, chega no ouvido deles [narcotraficantes] e eles “por que é que está
acontecendo isso? Tem que resolver”. Não é que vai directamente, mas a notícia vai
correndo, correndo até chegar. Na época do toque de recolher mesmo era pra fechar
tudo, e tudo fechou escola, posto de saúde, tudo, até as igrejas. Só que o que
acontece é que o pastor não quis fechar, o Terrinha, “ah, não vou fechar porque a
gente não está aqui sob o comando de traficante, nem nada!”. E aí, na casa dele ele
recebeu um telefonema de um cara que estava preso, ameaçando ele, que se ele não
fechasse poderia acontecer alguma coisa. Foi a única que não fechou. Teve um aqui
que abriu e eles mandaram fechar, e aí eles fecharam, mandou fechar e eles
fecharam. Eu não sei explicar o que realmente aconteceu, mas eu fiquei sabendo
isso.
150

5.2.1 Considerações da trajetória de Faro

Embora não ultrapassasse os 21 anos de idade, Faro apresentou ser uma pessoa com
bastante experiência de vida. O jovem trabalhava há dez anos, atuando em diversas ocupações
no mercado formal e informal metropolitano. Há sete anos havia abandonado a escola, não
residia na mesma casa que seus pais e estava prestes a ficar noivo, pretendendo casar-se nos
anos seguintes. Estava trilhando um caminho relativamente comum a tantos outros jovens do
bairro que, como ele, iniciaram suas experiências laborais ainda na infância. A inserção no
mundo do trabalho49 apresentou-se como um ponto de inflexão significativo nas trajetórias
juvenis no Estrela D’alva. É o que evidencia quando, por exemplo, refletindo sobre a vida de
homens e mulheres no bairro, diz que “aqui, um menino vira homem mais cedo. A mulher vira
mulher muito mais cedo. Tem que aprender a correr por si mesmo, entendeu? Aprender a si
virar no mundo mesmo, porque a situação é, infelizmente pra nós, as portas são fechadas
muito mais vezes do que são abertas entendeu?”. O uso da primeira pessoa do plural “nós”
indica que sua fala se dirige aos jovens da periferia e não aos de outras classes sociais.
Faro pôde perceber tais diferenças em seus de trânsitos metropolitanos fora da
periferia por laços adquiridos por meio das relações de trabalho quando ele foi um Cruz
Vermelha no Colégio Católico, onde teve a oportunidade de conviver com jovens de outras
classes sociais, médias e altas. O seu vínculo com os alunos do tal colégio, escola privada
tradicional de Belo Horizonte, foi estabelecido pelas relações de compra e venda das
“paradinhas” (maconha) por parte daqueles que tinham interesse de adquiri-la dentro da
escola e não na favela ou na biqueira. Era Faro quem corria o risco de ir até a biqueira e
trazer as “paradinhas” de modo seguro e entregar nas mãos dos alunos do colégio. Por
intermédio desse contexto, teve a oportunidade de interagir com jovens de outras classes
sociais fora de seu ambiente de trabalho e da periferia.
Contudo, sua relação com estes grupos não era horizontal, mas regulada pela
hierarquia social. Faro era visto por eles como cruz vermelha, não desfrutava do mesmo status
de “aluno da escola particular”, era um entre tantos funcionários da escola que estava ali para
servi-los, inclusive com as “paradinhas”. E foi a partir dessas relações que Faro frequentou
áreas como a Savassi e a Praça da Liberdade, onde pode conhecer um pouco mais dos estilos
de vida adotados por jovens de outras classes sociais. Enquanto estes podiam se preocupar em
gozar a vida e tinham como responsabilidade central a carreira escolar, na periferia os

49
Dimensão estruturante e central da vida em sociedade segundo autores do pensamento clássico das ciências
sociais como em Marx e Engels (1984) e em Durkheim (1977).
151

compromissos assumidos com o trabalho e com a religião eram precoces e prioritários em


relação à escola. Faro não foi pressionado familiarmente a se destacar na escola, em sua vida
houve mais cobrança e fiscalização em relação à frequência a igreja. O abandono escolar foi
mencionado por ele como uma decisão sua, em momento algum ele citou algum tipo de
interferência familiar relacionada seu desempenho escolar: “eu não levava muto a sério a
questão do estudo não [risos]”.
A escola era notada por Faro como uma instituição falida e sem objetivo concreto para
a vida dos jovens na periferia, a exemplo de quando questiona: “mas o que a escola tem de
atrativo pra esses meninos? Tipo assim o que é que o menino faz? O que é que ele quer fazer
da vida? Ele quer é estudar português e estudar matemática? Às vezes, o dom que ele tem, na
escola ele não acha, mas na rua ele acha”. Em contraposição aos aprendizados da escola,
estava o saber e a arte da “rua”, espaço percebido por ele como privilegiado e estruturante da
experiência social na periferia onde os saberes necessários para a reprodução da vida podiam
ser acessados.
Segundo a visão de Faro, os saberes valorizados na periferia não são puramente
instrumentais. Conforme colocou, embora o “povo da periferia” fosse portador de menos
“competências intelectuais” de caráter escolar, possuía, por outro lado, um sentimento de fé
que na prática se traduzia em uma disposição maior para a superação das contingências
cotidianas como ele próprio explicou: “uma garra maior, [...], que tem essa questão de
levantar todo dia cedo, de buscar a mudança, e de buscar o melhor pra família”. Na
narrativa de sua trajetória, as ações foram orientadas para projetos mais coletivos que
individualistas, indicando a centralidade das relações comunitárias na conformação de seus
percursos sociais. Esse coletivismo foi destacado por ele ao mencionar o modo como a igreja
congrega seus fiés, mas não só isso, como um estilo de vida constituído na periferia.
Se fora da periferia Faro possuía poucos vínculos sociais, seus trânsitos metropolitanos
deram-se por laços fracos e por relações de subalternidade. Dentro do bairro ele era conhecido
por religiosos, narcotraficantes, comerciantes, jovens do movimento hip-hop e lideranças
comunitárias. Mantinha um trânsito social intenso e diversificado, estabelecendo relações com
diferentes agentes. Sua trajetória é marcada pela capacidade de realização de ações coletivas
junto a outros jovens como forma de potencialização de sua própria ação na conquista de seus
interesses. Na escola segurou um “B.O” [problema] para evitar que um colega sofresse
expulsão após atirar pela janela da sala de aula uma bomba garrafão. No Colégio Católico
Faro buscou, por meio de parcerias com seus colegas também cruzes vermelhas, unir forças
contrárias à imposição de tarefas por parte da secretária do colégio.
152

Fosse na escola, no colégio ou no bairro, Faro buscava escapar da condição de


subalternidade da qual, ele e seus pares estavam socialmente submetidos. Ele, como muitos
outros jovens do Estrela D’alva, ocupavam os postos mais baixos da hierarquia ocupacional
da estrutura produtiva e econômica metropolitana. Faro trabalhou como pedreiro, garçom,
pintor, cruz vermelha, entre tantas outras ocupações que não lhe conferiam um status
desejado. São ocupações que nos países do “1º mundo”, nos Estados equivocadamente
denominados como “desenvolvidos”, são frequentemente desempenhadas por imigrantes
clandestinos. Por outro lado, dentro do bairro encontrava oportunidades de desempenhar
ocupações que lhe conferiam algum tipo de prestígio social reconhecido no âmbito das
relações locais e comunitárias como foi na igreja e no hip-hop. Diferentemente das diversas
ocupações desempenhadas por Faro no mercado ocupacional metropolitano, as atividades
comunitárias permitiam a ele assumir um protagonismo maior, em relação à escola também.
Tais atividades não envolviam as relações de classe nem as hierarquias que atravessam o
mercado ocupacional. Na igreja foi líder de célula, “foi ali que eu fiz minha vida, dentro da
igreja”, no hip-hop foi Mestre de Cerimônias.
Por outro lado, tais tipos de participação social não proporcionavam a ele
reconhecimento social fora da periferia, suas possibilidades de vida, de interação e de
obtenção de reconhecimento social encontravam-se muito circunscritas ao próprio bairro.

5.3 A Trajetória de Miro

Na tarde de quarta-feira, dia 19 de junho de 2013, após percorrer o bairro a pé e ter


feito observações na Praça do Estrela D’alva aproveitei para ir até o CRAS Casa
Amarela e encontrar com Faro, sabia que ele estaria em horário de trabalho, seria
mesmo um encontro mais rápido cuja intenção era de reforçar o laço de pesquisa
com tal interlocutor. Ao chegar aguardei por 20 minutos e Faro recebeu-me bem, já
tínhamos feito uma entrevista e o jovem sentia-se mais à vontade comigo. Fomos
para fora do prédio do Cras em busca uma sombra que estivesse sobre algum dos
vários bancos de concreto que compõem o mobiliário urbano da praça do São
Mateus a fim de sentarmos um pouco e conversarmos. Permanecemos sentados por
uns trinta minutos, bem próximo à lateral do edifício do CRAS onde conversávamos
acerca da rotina do bairro naquele tempo até que fomos surpreendidos com Miro que
apareceu vindo em nossa direção e em tom alto de voz dizia com entusiasmo: “[...]
pela primeira vez, pela primeira vez cara, hoje eu assinei um papel pra galera fazer
uso da minha imagem, fraga?. Foi maior emocionante, pra usar minha imagem na
TV, eu fiquei maior felizão, aí, nó, doido!”. Iniciamos um bate papo os três e Miro
que até então havia demonstrado pouca disponibilidade em relação à minha presença
ali enquanto pesquisador, apresentava-se mais aberto. Logo que Faro retornou ao
seu posto de trabalho e permaneci sentado com Miro no mesmo banco da Praça do
São Mateus onde iniciamos a entrevista. (Registros de Campo, 2013).
153

Miro é natural do Vale do Jequitinhonha50 e chegou ao Estrela D’alva aos cinco anos
de idade. Quando eu o entrevistei, Miro tinha 22 anos e morava com a mãe e mais três irmãos
em um domicílio de três cômodos, sem acabamento nem reboco. Quando nos conhecemos sua
atividade principal, embora não fosse remunerada, consistia na produção de eventos culturais
direcionados ao público juvenil do bairro. Tratavam-se de eventos vinculados ao universo do
hip-hop, como duelo de rimas, dança de rua, grafite e mostra de filmes (cineclube). Miro
frequentava as Batalhas de MC’s que ocorriam debaixo do viaduto Santa Tereza em Belo
Horizonte, além de mostra de filmes, shows e calouradas promovidos pela Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da UFMG. Miro estava fora do mercado formal de trabalho,
contrato ou com carteira assinada, para conseguir dinheiro prestava serviços de pintura em
estilo grafite, principalmente para os comerciantes do bairro. Contudo, eram trabalhos
esporádicos e que não lhe garantiam muita coisa, de modo que seu rendimento mensal era
inferior a um salário mínimo51.
Ao longo da conversa fez questão de declarar-se como “preto” e “favelado”. Ele
exerceu atividades laborais informais das mais diversas, sendo que seus percursos escolares,
religiosos e no crime foram marcados por descontinuidades. Apesar disso, concluiu o Ensino
Básico (LDB, 1996) e ingressou na universidade, abandonando-a logo no início.
Cerca de cinco meses após nosso encontro, Miro havia fugido do bairro devido uma
ameaça de morte que sofrera de narcotraficantes. O motivo de seu desaparecimento, segundo
disseram-me outros jovens, teria sido uma dívida com o narcotráfico local. Desde então, não o
vi mais, nem tive notícias sobre seu paradeiro. A seguir, a trajetória é apresentada por trechos
da entrevista que foram transcritos e estruturados a partir de uma seleção dos aspetos mais
significativos do seu relato.
Miro, memórias da infância no Bairro

Eu moro aqui desde os meus cinco anos de idade, vim pra cá porque minha avó
adoeceu lá no interior e como lá não tem estrutura pra atender, trouxeram pra BH.
Eu lembro que isso aqui tudo era mato, isso aqui tudo era mato, a praça ali, eu
lembro, a praça do Estrela D’alva era rua de terra e ali era tipo um parquinho com
uns brinquedinhos velhos e só depois de muito tempo que mudou. Tinha menos
casas, tinha bem menos casas aqui antigamente, eu lembro a maioria das casas
tinham quintal [...], esses dias eu estava falando com o meu irmão: “cara, olha aqui,
da varanda dos fundos, e você só vê casa, casa, casa, fraga, não tem mais a visão do
que tem mais a frente”, tipo cresceu muito, subiram vários barracos fraga, na
comunidade, a comunidade cresceu bastante. E aqui onde estamos agora era uma
mata, eu só vinha aqui quando tinha que ir pra escola, como o acesso ao São Mateus

50
Região de Minas Gerais, historicamente marcada desigualdades sociais extremas, pobreza, trabalho escravo e
ou semiescravo (boias frias), processos migratórios relacionados ao deslocamento de mão de obra para
lavouras de cana em outras regiões do Estado e em São Paulo (NUNES, 2001).
51
Segundo o IBGE (2015) o valor vigente do salário mínimo em 01 de janeiro de 2013 era de R$678,00.
154

era difícil e o buracão começava lá de cima, vinha de lá de cima e descia tudo isso
até chegar lá em baixo, eu acho que (no buracão) cabia nele um prédio de 10 ou 12
andares, de tão profundo que era, era cabuloso “impressionante”. Eu tinha uma vida
saudável como a de qualquer outra criança numa comunidade, brincava na rua,
estudava e tipo ia pra igreja.

[...] eu comecei a namorar, meu primeiro beijo na boca foi com 10 anos. Comecei a
namorar sério dentro de casa com 12 anos e a mina já tinha uns 14, uns dois anos
mais velha do que eu e fez uma sacanagem comigo fraga, poxa, me traiu. E aí eu
fiquei maior mal e, quer saber? “Por causa disso eu vou fazer sacanagem com todas
as meninas! Ela me sacaneou, mas nunca mais eu vou deixar uma mulher me
sacanear de novo”.

[...] e foi com meus 12 meu pai e minha mãe me batiam muito e muitas das vezes
por coisa besta, e eu estava cansado de apanhar à toa que fiquei duas semanas na
rua. Depois eu voltei fraga, aí tipo meus pais conversaram comigo e eu fiquei mais
de boa.

[...] e com os meus 13 anos eu catava latinha, dava pra arrumar uma graninha, catava
uma latinha, fazia alguns bicos pra alguns comerciantes pra mim tipo comprar um
ténis, fraga, pra mim sair aí, isso daí foi me deixando revoltado tipo poxa eu estava
ganhando pouco demais, ralando o dia inteiro e ganhando muito pouco.

Miro, trânsitos metropolitanos e relações interclasse

E com os meus 14 anos eu comecei a ir para o centro da cidade [Belo Horizonte],


comecei a dar role no centro, nó mano [falou empolgado], eu dava o pulão, fraga,
pulava a roleta ou ia de traseira mano, ia de traseira daqui até lá no centro e às vezes
os homi [a polícia] me pegava [...], paravam e davam na gente altas cacetadas,
fraga, e faziam voltar mané. Mas aí tipo eu comecei a dar role no centro, ia para
Savassi, ia para o Sion, ia lá para o Parque das Mangabeiras, ia para a Serra, Santa
Efigênia, Horto, dando role naquilo tudo, no centrão todo. [...] ia sozinho, a maioria
das vezes eu ia sozinho, poucas vezes eu ia com amigos meus pra mostrar, eu falava
“nó, vamos num lugar doido que eu conheci”, [...] e foi com a galera do duelo de
mc’s que fazem um rap lá toda sexta feira, eu fechava com a galera toda sexta-feira
lá no rap [No centro de Belo Horizonte]. E saía do rap na sexta-feira e subia para a
Praça da Liberdade tipo para encontrar outra galera, porque nessa época eu não era
só do hip-hop eu era do rock também.

Então, eu subia pra Praça da Liberdade tipo pra trombar com os roqueiros, depois eu
ia pra Praça Três Corações ali na Savassi que era a Praça dos emos, eu saía dos
roqueiros e ia pra praça dos emos. Sacou véi? E criei um laço muito forte com os
roqueiros, com os emos e com a galera do rap, fraga?, [...] a galera do hip-hop a
maioria é favelada mesmo, a galera do rock, a maioria, é tipo..., não vou dizer que
são ricos, mas vamos dizer, possuem uma condição de vida melhor, mas preferem
viver uma vida alternativa, sacou? O grupo de emos é uma distorção dos roqueiros,
sacou? É uma evolução dos roqueiros emotivos. Na galera dos emos tinha várias
classes, tinha uns neguim rico, tinha uns que tem a vida melhor e uns pobre também,
e rolava umas tretas com uns homossexuais, é muito loco. Toda sexta-feira eu
chegava e aí os caras: “olha o Miro, e aí, tem goró [bebida alcoólica] vamos brear,
vamos beber, vamos morrer aqui hoje de tanto beber!” [risos], aí eu saía de casa por
volta de 06h00 da tarde de sexta-feira e voltava em casa no sábado tipo uns meio
dia, muito bêbado, às vezes carregado, vomitando mano, fraga, mas aí tipo eu estava
num laço com a galera muito foda, porque a galera cuidava de mim. Fraga? [...] E
nessa época eu estava na escola e tinha época que eu queria estudar mesmo e tinha
época que eu era o capeta da escola, fraga, badernava… eu já tomei suspensão de
duas semanas na escola, fraga. No Van Cleber <escola> eu já fui expulso duas vezes
da mesma escola, já fui expulso e voltei pra escola. Fraga?. E tinha uma época que
eu era um dos melhores alunos da escola e tinha uma época que eu era, nó…, o
155

capeta dentro da escola.

Miro, experiências escolares na periferia

Naquela época e até hoje, pra muita gente, a escola é, para os alunos, pra você
encontrar os seus amigos, entendeu? A escola não é pra você estudar, fraga? A
escola é pra você encontrar os amigos e zuar, “azarar” mesmo, entendeu? Então na
época eu fazia de tudo pra ir pra escola e aí eu chegava e trombava com a galerinha:
“nó!!! Vamos zuar véi, vamos zuar com acara dos professores”, fraga, “vamos
matar aula”, saca?, “vamos pular o muro da escola pra sair fora”, a gente matava
aula na rua e quando acabava a aula a gente ia para a porta da escola e no final saia
todo mundo junto, essa era a nossa diversão na escola. Fraga mano?

E aí, tipo teve uma época que a galera estava passando de ano e eu ficando, eu fiquei
retido na 8ª série por três anos e não era porque eu era burro, era porque eu gostava
na escola da galera, fraga, eu era inteligente, mas queria ficar ali naquele espaço com
a galera, entendeu? Aí, nesse último ano que eu tomei bomba eu falei “poxa véi três
gerações dos meus amigos já se foram, ah, tá na hora de eu tomar um rumo”, aí foi
aí que eu falei “oh, esse ano eu vou estudar”, e aí foi que eu... “boom!”, repercutiu
na escola toda acho que durante o ano inteiro: “nossa, o Miro mudou assim, de uma
forma muito louca, ele agora tá fazendo os trampos na escola, tá ralando, tá
estudando pra caramba”. Então, teve uma época que eu cheguei a ganhar um premio
de melhor aluno da escola, cara, olha pra você ver onde chegamos? Teve uma
professora que chegou a chorar, fraga, ela disse “você me deu muito trabalho nessa
escola, teve dia que chagava em casa passando mal por culpa sua, eu tinha vontade
de matar você nessa sala, mas hoje você provou pra todo mundo que você é uma
lenda viva, que você pode realmente mudar se você quiser.”, saca, e aí eu pensei:
“poxa, realmente, cara.”, saca, com os professores era pra eu ter aprendido muito
mais coisas se eu tivesse interessado muito antes e foi aí que eu comecei a perceber
essas mudanças em mim mesmo..., e logo após com esse lance de eu estar entrando
no crime.

Miro, adolescência e vida religiosa no bairro

Eu fui da igreja durante muito tempo, era da igreja adventista até os meus 10 para os
11 anos de idade, aí dos meus 12 até os 14 anos eu tinha saído da igreja e depois eu
voltei pra igreja Batista, saca? Como eu sempre dancei eu estava com meus 15 anos
e tinha um Ministério de Dança na igreja, era o “Atos 2” na época era bacana
demais. Tipo, mas era super bacana porque era todo mundo pá adolescente e aquela
empolgação toda e todo mundo querendo um ajudar o outro, e fazendo trabalhos
sociais na comunidade, fraga? Fazendo visitas nas casas, que era chamado de
trabalho de campo, a gente ia até as casas dos adolescentes para eles colar com nós
lá nas células que são mini-cultos ministrados dentro das casas dos moradores daqui.
Primeiro você começa como discípulo mesmo de uma Célula e depois, quando você
já tiver bastante tempo e tal você é auxiliar de Célula, aí você ajuda o líder da
Célula, entendeu? E se ele faltar você está ali presente ou ele divide as tarefas com
você nos dias das ministrações. E aí, se você já acompanha há bastante tempo se
torna um auxiliar e aí depois você se torna Líder de Célula, e você tipo tem a sua
própria Célula. E quando você é líder há outro líder acima de você e tem outro acima
dele e assim por diante até chegar ao líder de governo que é coordenado pelo Pastor
que faz a liderança central.
E a gente fazia esse trabalho de campo chamando os adolescentes pra colar mesmo
dentro da igreja, colar nos movimentos que estavam rolando dentro da igreja. Na
escola mesmo eu já pregava o evangelho pra galera, pregava uns testemunhos,
falava da bíblia mesmo, falava de Deus e depois eu ia pra casa e fazia as minhas
obrigações, às vezes ajudava a minha mãe numa boa, e em casa eu tinha o meu
tempo de ler a bíblia e depois, mais tarde, eu ia curtir hip-hop evangélico mesmo.
156

Saca mano? À tarde eu trombava com os caras da igreja para ir ao monte orar ou
então a gente ficava lendo a bíblia um na casa do outro, isso era durante a semana.
No final de semana eu dedicava ao ensaio do grupo da igreja na sexta-feira, no
sábado eram as células que eram uns encontros no final de semana que a gente fazia.

Teve uma vez, isso eu estava na igreja ainda e nós fomos ao Tijuca para tocar umas
ideias com os diretores para fazermos ações sociais lá na escola Van Cleber. E a
gente foi e, beleza, realizamos a nossa ação, mas quando estávamos saindo do portão
da garagem da escola apareceu uma viatura, uma Blazer, e fez a abordagem. Nisso,
o porteiro da escola com medo fechou o portão e ficou do lado de dentro. E o
policial fez a abordagem em mim e no amigo meu, mas totalmente brutal, ele já
chegou batendo a nossa cara no portão da garagem, fraga? Usando agressão física
total, fraga? Batendo na nossa cara, e falando “quem são vocês? O que vocês estão
fazendo aí?”, e aí respondemos “nós estávamos aqui na escola”, [e aí o PM]
“mentira, mentira, e aí eu falei “pode perguntar pro porteiro, ele tá aqui dentro aqui”,
aí o policial foi abrir o portão e [perguntou ao porteiro] “eles estavam com você?
Eles estavam com você?”, e o porteiro disse “não, não, eu nem conheço esses
meninos aí não” ele tipo ficou com medo e aí o policial sentou o cacete em nós, e aí
a gente começou a gritar: “socorro! socorro! socorro! chama a diretora aí dentro da
escola, porque a gente tava com ela agora. Chama a diretora! Chama alguém!” E
ninguém. Aí nisso, eu acho que um dos alunos ouviu e chamou a diretora, fraga, e
nisso a diretora saiu e os policiais já estavam quase saindo e ela começou a pagar o
maior pau [dar bronca] pra eles e aí eles disseram “não, isso daqui é um bando de
vagabundo que estava na rua e a gente encontrou eles fazendo coisas erradas na rua”
e a diretora falou “como? Se eles acabaram de sair da escola? Eu acabei de
conversar com eles, eles fazem um trabalho social, ajudando outras pessoas e vocês
fazem essa abordagem violenta?” e aí ele respondeu “oh, se vocês quiserem
reclamar vão até a corregedoria!” e saíram andando, fraga. E aí, eu me senti muito
mal, e na hora eu comecei a chorar, na hora da abordagem eu fiquei normal, mas
depois que eles saíram eu comecei a chorar e aí eu falei “poxa, olha a que ponto nós
chegamos, a gente é da igreja e a gente veio até aqui pra fazer um trabalho super
bacana com os alunos e recebemos essa abordagem policial totalmente desastrosa.”
Aí, tipo nesse dia aí eu me senti muito, muito humilhado, como cidadão eu me senti
muito humilhado, saca, pelo poder público, poxa, não é assim que eles devem agir
com a gente, saca, esse dia pra mim foi um dos piores.

É tipo quando você está ali tentando fazer a coisa certa, fraga, e aí uma galera chega
e diz “parabéns!” é uma vez ou outra. Você não é bem valorizado, eles não te
valorizam entendeu, mas quando você erra os caras já vem pra cima de você irmão e
dizem: você não vai ministrar! Você não vai participar disso porque você está
errado, vai ficar tantos meses de banco! O banco é tipo um castigo porque você não
tem dezoito anos e ficou com a menina, você deu um beijo na menina e vai ficar
dois meses de banco, eu já fiquei de banco demais velho, eu pegava as menininhas
tudo, fraga, e isso era foda. E aí tipo enquanto o neguinho tá passando fome, fraga,
ali dando a oferta e todo mês os 10% do seu dízimo, eles colocam aquela pressão:
“oh, você tem que doar com o coração”, mas você tem que doar, entendeu? Mas
você tem doar “com o coração”. Saca?. Eu já vi aí em pregação neguinho dando
carro, dando cheque de R$1.000,00 [...] e o cara custou pra ter o carro, fraga, ralou
muito, e aí falam “tem que fazer isso com coração”, sempre colocando isso. Mas aí,
com os meus 17 anos fui ficando revoltado com algumas coisas que eu achava que
na minha visão eram erradas dentro da igreja e ainda são. E depois que você sai da
igreja você tem outra visão, fraga, aí na visão deles, preste atenção, na visão deles eu
estou contaminado pelo diabo, entendeu? Que é o diabo é quem está me cegando pra
eu estar falando essas coisas, aí tipo, você pensa: sou totalmente devoto a Deus,
entendeu? Eu tenho temor a Deus, eu falo é da igreja entendeu? E nisso, logo que
saí da igreja eu me envolvi com o tráfico. Fraga? Me envolvi!
157

Miro, narcotráfico, roubo e outros crimes

Muitas das vezes você começa é vendendo uma droguinha ali, mas para a galera
mais pesada eles dizem “oh estou deixando com você 40 buchinhas de maconha”,
sacou? Isso é para galera que está há mais tempo, agora se você está começando
dizem “oh te dou 10 dolinhas ,”buchinhas”, aqui oh, você vende oito dolinhas e as
outras duas dolinhas são sua e você pode fumar ou você faz o seu lucro, seu
dinheiro”. Beleza vendi ali e estou vendendo e aí os caras falam assim “oh, o
moleque está crescendo, tá vendendo pra caramba, vou soltar mais droga na mão
dele.”, e por aí vai. [...] Aqueles meninos ficam ali o dia inteiro, ali. Sacou? Aquilo
ali é o comercio deles, aquilo ali é que é a lojinha deles e a galera que vem chega e
diz: “e aí mano, você tem R$5,00 contos de bagulho aí?” ou “nó, estou precisando
de um pó!”, ou, “quero uma pedra.”, fraga? Olha aqui é um ponto, ali é um ponto, na
rua de baixo da Praça do Estrela é outro ponto, lá na vila tem, na Sapolândia tem, no
morro tem. Entendeu? E funciona 24h por 48h por dia. O tráfico tem os seus
guerreiros, tem todos os seus setores, entendeu? Tem a galera que fica na biqueira52
e que, fica plantada na biqueira vendendo as drogas, a galera que fica por de trás
fazendo as mercadorias e os chefes, entendeu? E quando tem que levar a mercadoria
para fora você recebe uma quantia pra ir em tal lugar, mas é correr todo aquele risco,
você tinha que correr todo o risco de ser preso ou ser morto, entendeu? Pra garantir
que a droga fosse passada. E aí você começa a viver outra vida em prol do crime,
você começa a trabalhar para os chefões, entendeu? Você cria um compromisso,
mas chega uma hora que tipo você fica alienado e pensa: “Poxa eu tenho que perder
noite de sono porque de madrugada tem os noiados que vem comprar pedra
[crack]?”. E de dia você vai dormir e você tem umas 4 ou 5 horas de sono e à tarde
você volta de novo pra biqueira, fraga, trabalha muito.

E aí você começa, você está ali numa situação, nó não tenho um puto de dinheiro,
ah, vou sair para meter uma fita e aí o primeiro boy que eu encontrar na rua eu vou
assaltar mano, e a gente ia lá para Pampulha, ia lá pro alto da Afonso Pena, lá para a
Savassi e às vezes a gente pegava nosso próprio celular passava uma senhora:
“encosta! encosta! Vamos! Passa tudo que você tem, a carteira, o dinheiro, eu quero
tudo! Celular. Anda, anda, anda!”, e se reagisse você já começava a agredir, saca?:
“Não vai me dar não? boom!” dá um empurrão e pega as coisas e sai correndo, sai
correndo mano. E quando é loja, você tem que ter uma adrenalina muito cabulosa
pra você entrar nos lugares. Antigamente no começo era uns assaltinhos lero lero
roubo em padaria em comércio e antes de eu entrar suava a mão e meu sangue
começava a bater, a explodir querendo sair, e eu começava a ficar naquela
adrenalina e aí quando eu via que não dava mais que eu já estava todo neurótico eu
já entrava em cena fraga, eu já estava com a cabeça em outro lugar já não era mais
eu: “vamos todo mundo pro chão, todo mundo pro chão!, Eu quero é só o dinheiro,
só o dinheiro! Eu não vou matar ninguém, não vou fazer nada, eu quero é só o
dinheiro! Só o dinheiro! Anda rápido, anda, anda, anda!” e pegava e saía fora mano.
Pegava um táxi: “táxi, táxi, táxi!” e “vupt!”, e dentro do táxi eu deitava e trocava de
roupa, entendeu? E ficava escondendo a cara mesmo até chegar no destino.

Teve um assalto que eu fiz de uma carga de caminhão fraga, uns carinhas tinham
me chamado para meter uma cena na BR e paramos na pista, paramos o caminhão e
entramos e batemos e espancamos o motorista e roubamos tudo e ao final rendeu
R$5.235,00 para cada um. Mano, esses cinco mil eu gastei em menos de um mês e
no final quando eu fui olhar eu não tinha nada, nada, nada, gastei tudo com droga,
com mulherada, bebida, balada, não sobrou porra nenhuma pra mim, fraga. E você
não percebe véi que você está gastando aquela grana toda véi, você não percebe.
Gastei uma grana super foda e aí? Com nada mano. Com droga, com mulher e com
balada, e aí? Poxa eu não comprei uma blusa pra mim, não comprei uma meia e
minha meia tá furada e cheia de chulé e eu não comprei um ténis bacana e aí eu falo:
“e aí mano, tá vindo dinheiro, tá entrando muito dinheiro, mas tá saindo muito

52
Ponto de venda de droga, chamado também de boca de fumo ou simplesmente boca.
158

rápido”. Mas aí, quando eu vi que o crime não estava compensando, que eu estava
arriscando minha vida de tomar bala de outros traficantes, de guerra, ou de ser preso
ou de tomar tiro da própria polícia e eu falei: “ah não, meu dinheiro tá sendo muito
pouco aqui no crime”.

Por conta do índice de mortalidade que estava rolando, que é o que rolou lá há 3
anos atrás e que a galera estava morrendo direto aqui na quebrada fraga, e eu perdi
vários amigos, demais, demais [silêncio]. O último amigo meu morreu em um baile
funk ali da vila, por bobeira, e ele foi morto pelo próprio chefão, sem saber que ele
era o chefão, e o chefão sem saber que o menino trabalhava pra ele. Saca? Foi uma
confusão boba que resultou na morte de um dos meus melhores amigos fraga. E
outra, esse cara eu convivi com ele acho que uns 6 ou 7 anos e nunca, desde o
primeiro momento que eu conheci ele, eu nunca discuti ou falei ou gritei com ele
tipo: “Para! Você está errado!”, nunca, nós nunca discutimos. Toda vez que a gente
trombava eu chegava em casa soluçando de tanto rir, de tanto rir com esse cara, a
gente só ficava rindo, toda hora, fraga, todos os momentos que eu tive com esse cara
foram só momentos bons. Aí depois, em 3 de Julho do ano passado, esse cara é
encontrado morto ali atrás do campo com a orelha cortada e com vários tiros no
peito, saca, isso aí pra mim véi…, aí eu falei “o crime realmente não compensa, não
compensa mesmo.”. E aí quando eu estava começando a perceber isso, por causa
desse lance do índice de mortalidade veio para cá o projeto de mídia tática
desenvolvido pela Oficina de Imagens que é uma ONG lá de BH e eu comecei a
participar. No início eu não curtia muito as reuniões, mas aí eles foram começando a
mostrar umas coisas que eu fazia antigamente, fraga, ações que eu fazia e que era a
dança e o hip-hop, que estava transformando uma galera em outros lugares, aí eu
falei: “poxa, eu faço isso”, “será que eu realmente consigo mudar as pessoas?". E aí
eu fui começando a deixar de lado o crime, fraga, e aí quando eu decidi realmente eu
chamei os caras todos e cheguei de frente e falei: “até hoje eu nunca vacilei com
vocês, nunca vacilei com ninguém aqui no tráfico e, mano, vocês me conheceram aí
e eu sempre mexi com hip-hop, fraga, eu deixei de lado por causa do crime, mas eu
estou disposto a voltar para o meu movimento”. E aí os caras, os próprios caras do
crime me deram o maior apoio: “pô cara, realmente, bacana, vai lá, volta com seu
trampo”.

Miro, a busca por novos rumos de vida

E aí eu voltei e eu comecei participar fodasticamente, permanentemente, das ações


<projeto mídia tática>, aí eu me formei, ano passado, eu me formei no 3º ano
[último ano do ensino médio] na Cesec [Centro de Educação Continuada] e comecei
a dar oficinas de break, a fazer oficinas de rima, me formei, e aí comecei a fazer
curso de literatura e eu me formei como poeta. Hoje eu sou escritor e poeta. E depois
eu comecei a fazer curso de designer fotográfico, fazer edições e tal, e aí logo nesse
ano eu fui e entrei pra faculdade. Mano eu comecei a chorar e eu pensei “eu não
acredito que eu estou tendo essa capacidade! De chegar até aqui, poxa, por que eu
não percebi isso antes?” “por que eu não percebi esse mundo novo antes?”. Cara, aí
eu fui e falei “caralho, que foda! Um preto da favela, um negão da favela que tava
no crime entrou pra faculdade.”, que loco! Tipo no início eu fiquei empolgadasso,
mas tive proximidade com poucos alunos, saca, porque a maioria tipo é nariz em pé
[arrogante] e olha pra você assim e diz: “Quem que você é? De onde você é?”. E aí
eu dizia: “sou…, faço uns trampos de hip-hop, moro na quebrada tal”. E os caras:
“Nossa! Você é de lá? Poxa, beleza o seu trabalho heim cara!”. Saca? Tipo pelo meu
contexto, eu moro na favela, eu sou preto e moro na favela e mexo com hip-hop:
“Nossa, você mexe com hip-hop?”, “Você é preto da favela?”. E isso é uma facada
no peito para uma pessoa que tipo mudou de vida. Fraga? Poxa mano eu mudei e
ainda tem gente que torce para eu estar na errada, fraga, para eu voltar para o lugar
de onde eu vim.
159

Então se eu estou neste mundão aqui, eu tenho que escolher: ou eu vou para o
caminho certo ou eu vou para o errado. Qual que é o caminho certo? É trampar
[trabalhar], fraga, ter um trampo honesto e ser um cidadão honesto. O caminho
errado é traficar, vender droga, entrar para o crime, é roubar, fraga, tipo, você tem
esses dois caminhos. E aí, qual é o lado que eu vou seguir? Então, você fica na
intermediária, você fica no meio, você não sabe se vai para o caminho certo ou para
o errado. E você estando no meio a rua vai te ensinando, oh, você tá vendo ali?
Morreu um neguinho. Por quê? Porque roubou a padaria do Zé. Olha lá, olha um
cidadão de bem sendo torturado por policiais. Saca? Poxa o neguinho do crime está
ganhando a vida, está ganhando muito dinheiro fraga. Poxa olha lá um cidadão de
bem, um favelado foi pra faculdade, sacou? […] E aí, você entra naquela, pois
quando você amplia mesmo os seus conhecimentos é aquilo, poxa, eu não quero ser
do caminho errado, mas também não quero ser do caminho do bem. Porque o
caminho errado é só o errado e o caminho do bem é só o caminho do bem, e a galera
do bem às vezes é leiga demais, são alienados entendeu, eles não querem se
informar e nem querem informar as pessoas. E agora? Agora fudeu tudo mano.
Poxa, então eu vou ser alternativo fraga, eu vou fazer as minhas paradas de bem,
mas quando eu ver que está errado eu vou a luta, sabendo que está errado eu vou
lutar contra, entendeu, então eu estou nesse meio, inserido nessa intermediária, é
esse o peso que a rua te traz, essa responsabilidade. E se você está entrando no
errado, segura sua onda então mano, você vai ter que segurar sua onda no errado
porque se você não segurar sua onda você cai. E aí você próprio vai se descobrindo,
o que você é, qual é o seu papel na sociedade através da rua.

5.3.1 Considerações da trajetória de Miro

Aos 22 anos de idade, ao passo em que se tornava adulto, fase na qual “amplia mesmo
os seus conhecimentos” como mencionou o jovem, Miro percebia-se numa situação de
fronteira, entre dois caminhos, “do bem” e “do mal”, dos quais tenta escapar por meio de vias
“intermediárias”. A posição de fronteira, corroborando a perspectiva trazida pela categoria
jovem da periferia em Feltran (2010), representou uma condição a partir da qual o jovem
realizou seus trânsitos sociais no território metropolitano, bem como sua transição para a
vida adulta (PAIS, 2009).
Na adolescência suas experiências noutros espaços metropolitanos ocorreram numa
época em que se encontrava desobrigado da rotina religiosa e com uma vida escolar dispersa.
Sem dinheiro, preto e favelado, Miro pegava a traseira do ônibus – que consistia em fazer a
viagem do bairro até o Centro de Belo Horizonte, dependurado na parte traseira do ônibus,
apoiado através das mãos sobre o suporte externo do cano de descarga do motor – e com isso
passou a frequentar outros bairros, áreas centrais de Belo Horizonte, a Savassi e também a
Praça da Liberdade53. Foi uma época em que ele transitou pela primeira vez com frequência

53
Tanto a Savassi como a Praça da Liberdade são espaços tradicionalmente ocupados por classes médias e
abastadas da RMBH. A região da Savassi é uma área famosa em Belo Horizonte por seus bares, restaurantes e
casas noturnas. Miro frequentava a Praça da Liberdade nas noites de sexta-feira, dia no qual ocorria
regularmente os duelos de MC’s debaixo do viaduto Santa Tereza, na região central de Belo Horizonte, e de lá
seguia para a referida praça.
160

para fora do bairro, interagindo com pessoas pertencentes a outras classes sociais com
preocupações e estilos de vida muito distintos dos seus. O que acontecia era que um jovem da
periferia “preto” e “favelado” dava o “pulão” e ia de traseira de ônibus e sem dinheiro para
áreas nobres Belo Horizonte, frequentando-as durante algum tempo, embora não possuísse
laços sociais e condições materiais que lhe permitissem prolongar muito essa estadia. Tais
experiências não representavam uma possibilidade de estabelecer vínculos de amizade fora da
periferia.
Na faculdade de Belas Artes, Miro deparou-se novamente com conflitos latentes que
medeiam as relações interclasses entre os indivíduos. Vale notar que em uma sociedade como
a brasileira, altamente hierarquizada e na qual as tentativas de nivelamento da interação em
nível horizontal entre indivíduos de classes sociais distintas, geralmente, configura-se de
forma tensa. Em suas experiências com os colegas de curso universitário Miro deparou-se
com tal limite. Questões relativamente simples colocadas nas interações com seus colegas tais
como “quem que você é? de onde você é?” e a reação dos mesmos em relação à origem social
de Miro “Nossa, você mexe com hip-hop?”, “Você é preto da favela?” geravam
constrangimentos recíprocos. A preocupação, interesse ou curiosidade de saber de onde ele
vinha e o modo como retrucaram suas respostas soava para Miro como um banho de água
fria: “[...] isso é uma facada no peito para uma pessoa que tipo mudou de vida. Fraga? Poxa
mano eu mudei e ainda tem gente que torce para eu estar na errada, fraga, para eu voltar
para o lugar de onde eu vim”.
A trajetória de Miro foi também orientada por outras tensões sociais decorrentes do
descompasso entre suas experiências de vida relativas à de transição para a vida adulta
(PAIS, 1991; 2010) e as normas morais das instituições sociais. Para uma pessoa que iniciou
o exercício do trabalho remunerado e das experiências sexuais ainda na infância, a regra da
proibição do namoro por não ter 18 anos de idade, como era imposta pela igreja, fazia pouco
sentido. Durante sua adolescência essa questão do namoro gerou conflitos na sua relação com
a igreja e contribuiu para afastá-lo da esfera religiosa. Nesse tempo, rompeu os laços com a
igreja, já havia abandonado a escola, sua família não foi mencionada quando tomou essas
decisões e a “rua” era seu principal espaço de interação e aprendizado social.
A trajetória de Miro, como expresso em seu relato, era balizada por categorias duais e
aparentemente excludentes representadas pelos “dois caminhos”, semelhante à dicotomia
moral teológica na construção das visões de mundo na periferia ratificadas pela sociedade em
geral ao restringir as possibilidades das escolhas a dois destinos possíveis: céu ou inferno. O
“caminho do bem”, ser “trabalhador de bem”, corresponderia à adesão ao comportamento
161

“fiel” como pessoa conformada em realizar grandes sacrifícios sem questionar nem reclamar,
sendo o céu uma promessa pós-morte. Por outro lado, o “caminho do mal” representaria uma
oposição radical a essa condição temerosa e por isso infernal como uma guerra, como
mencionado por Miro. Em sua trajetória demonstrou conhecer bem os “dois caminhos”, por
outro lado, sua busca por uma posição “intermediária” não o livrava dos constrangimentos
impostos por ambos os caminhos.
A via “intermediária” não consistia em um plano b, estratégico e previamente pensado
e sim uma saída feita no improviso e pela sua capacidade imediata de “agência”. Esta última é
municiada pelos saberes práticos, pelas condutas assimiladas da vida pública da periferia
como disse o jovem “é a rua é que vai te ensinando”. A via alternativa não possuía uma forma
clara, era instável e dependente das contingências “eu vou fazer as minhas paradas de bem,
mas quando eu vê que está errado eu vou à luta, sabendo que está errado eu vou lutar contra”.
Nessa época, da entrevista, Miro buscava para sua vida e a de seus manos outros rumos por
meio do hip-hop fora da igreja, fora do tráfico e desvinculado das políticas sociais e ONG’s.
Ao mesmo tempo, tinha como foco ações contrárias à adesão juvenil ao crime e à violência,
inclusive a estatal, sem com isso ter que optar pela religião: “o rap, a maioria das vezes faz
muito mais que a religião ou um cassetete em vão, fraga”.
O problema colocado por Miro é a encruzilhada na qual se encontrava, não queria
enquadrar-se nos caminhos tradicionalmente colocados pela sociedade aos jovens pretos e
favelados: a submissão (aceitar com bom grado o trabalho degradante e mal remunerado, “ser
alienado”) ou o crime (roubar, matar, traficar). Entre a cruz e a caldeira, Miro sabia que a está
última trazia consequência piores como a morte violenta, as sequelas físicas ou a prisão. Miro
sentia-se dividido, não encontrava na religião, no narcotráfico e nem nas possibilidades de
trabalho um caminho por onde seguir. Por outro lado, o hip-hop encontrava-se em fase de
desestruturação, de enfraquecimento após a saída dos projetos sociais e da não efetivação do
Centro Cultural Casa Amarela. Seus vínculos fora do bairro eram com moradores de outras
periferias, que também partilhavam de realidades relativamente semelhantes. De certo modo,
seus vínculos no bairro estavam enfraquecidos, Miro encontrava-se desiludido, buscava
alternativas, mas tinha como referência a vida social da periferia. Não tinha como deixa de ser
“preto” e “favelado”, condição da qual não podia escapar, ao mesmo tempo precisava de
dinheiro. O que fazer? Para onde ir? Essas eram as questões que se lhe apresentavam.
Em relação à participação de Miro no narcotráfico e noutras atividades criminosas,
poderia dizer que foi intensa e arriscada. Ao ver fotos de Miro do início do projeto mídia
tática notei-o franzino. Aquele foi um período no qual vivia uma desilusão em relação ao
162

custo-benefício proporcionado pelo caminho do mal. Durante a entrevista, ao mencionar essa


época disse-me: “ah não, meu dinheiro tá sendo muito pouco aqui no crime”. Seu argumento
era semelhante à noção de caminho de volta narrada em Feltran (2010, p.98), no qual a
euforia inicial incitada pelo acesso ao consumo foi, meses depois, substituída pelas agruras
desse ofício na contabilidade entre riscos e ganhos. Contudo, a desilusão de Miro não se
resumia a questão do envolvimento nas atividades ilícitas; incidia também sobre o “caminho
do bem” que era visto como alienante e pouco valorizado em termos monetários “poxa, estou
ganhando pouco demais véi, nó…, ralando o dia inteiro e ganhando muito pouco”. A vida
social na periferia mostrava ao jovem que no tráfico de drogas ele tinha acesso a um
rendimento que no trabalho honesto não conseguiria alcançar, por outro lado, corria risco de
vida.
Por fim sua trajetória apresenta uma perspectiva sobre a periferia, no caso a região do
Estrela D’alva, como um campo em disputa, entre ordens sociais divergentes, como espaço
socialmente segregado e situado às margens da estrutura econômica metropolitana. A vida de
Miro e Faro, bem como das demais pessoas da geração que nasceu e/ou cresceu neste
contexto foi atravessada por disputas que se expressavam materialmente e simbolicamente
entre “dois caminhos” ou como um “beco sem saída”, conforme explicou Miro. A consciência
sobre tais “caminhos” possibilitava a ele projetar-se para um o lugar onde gostaria de estar na
sociedade, mas não lhe proporcionavam, contudo, o tipo de inserção social que sonhava ter.
Entre o “bem” e o “mal” caminhou Miro, na corda bamba, o jovem que gozava de um
estatuto social semelhante ao de imigrantes clandestinos na sua própria sociedade
(FELTRAN, 2010), por isso denominei marginal o itinerário por onde trilhou seus percursos
de vida. Por fim, longe de esgotar as possibilidades de análise de sua trajetória, os percursos
sociais de Miro expõem uma condição extrema da experiência juvenil metropolitana edificada
às margens dos centros de poder político e econômico da RMBH.

5.4 Miro e Faro, considerações sobre suas trajetórias

Embora as trajetórias de Miro e Faro tenham em comum os itinerários sociais


relativamente semelhantes – rua, igreja, trabalho, escola, hip-hop, violência, tráfico de drogas
e projetos sociais - as formas como chegaram à idade adulta foram distintas. Ao passo que
Miro teve de fugir do bairro por ameaça de morte, o segundo permaneceu. Pode-se dizer que
são trajetórias que expressam duas formas de viver a juventude na periferia, ambas
confrontadas com a escassez de capital econômico e simbólico. Questões como o abandono
163

da escola durante o ensino básico e a inscrição precoce em um mercado de trabalho


caracterizado pela escassez de trabalho e que, quando há oferta, predominam postos com
baixas remunerações e condições precárias de trabalho, são relevantes para compreensão dos
percursos de vida de Faro e Miro. Mas não só isso.
Os moradores do Estrela D’alva, não só os jovens, contavam também com uma
reduzida oferta de serviços de mobilidade urbana (NAZÁRIO, 2015), de modo que tinham a
mobilidade e a possibilidade de circulação pela cidade comprometidas, grande parte em
virtude de estrutura de transporte deficitária e ineficiente. O bairro formou-se próximo à
região da Pampulha numa área de difícil acesso tendo em consideração a estrutura de
transporte coletivo metropolitano existente (AZEVEDO; MARES GUIA, 2000). Esse
“isolamento” geográfico e social foi um fator estruturante das trajetórias de Miro e de Faro,
tornando mais custoso construir e manter vínculos sociais duradouros fora do território da
periferia.

Embora a periferia situe-se em um contexto mais amplo de oportunidades que é o


metropolitano, a concentração de pessoas em situação de pobreza, como caracterizado pelo
Estrela D’alva, acentuava os efeitos da segregação social. De um modo geral, Faro e Miro
tinham suas redes de relacionamentos sociais compostas por pessoas do bairro, as pessoas de
fora eram vinculados a projetos sociais ou eram moradores de outras periferias da RMBH.
Essa limitação socioterritorial fazia com que as relações sociais na escola, na igreja, na praça,
no campo de futebol ou na “rua” fossem em geral com pessoas da periferia, ou seja, suas
experiências e projetos de vida estiveram circunscritos ao ambiente do bairro. No bairro o
narcotráfico, a igreja e o hip-hop apresentaram-se como esferas de interação juvenil e
contribuíam para reprodução desse direcionamento da vida para dentro do bairro. Esse
movimento de “orientação para dentro” indicava a existência de um significativo mercado de
trocas materiais e simbólicas, endógeno e particular da periferia. As vias do trabalho lícito, da
igreja e do hip-hop (mais ou menos conjugadas) permitiam aos seus participantes a obtenção
de capitais simbólicos socialmente partilhados entre as pessoas que partilhavam das condições
de existência de Miro e Faro, onde trocavam moedas que promoviam a valorização ou
visibilidade pública positiva, mas, em muitos casos não garantiam, capital econômico.
Ainda sobre as oportunidades oferecidas no bairro, mesmo que o narcotráfico se
apresentasse como uma opção rentável à percepção de Miro e de Faro, faz-se necessário
considerar que eles possuíam como parâmetros para avaliar isso suas próprias condições de
existência. Em outros termos, trabalhar no varejo do narcotráfico em biqueiras localizadas em
164

favelas e em periferias só é muito rentável aos olhos de quem mora nesses lugares e vive com
parcos recursos - famílias mantêm-se com três salários mínimos ou menos, abaixo do mínimo
necessário (DIEESE, 2015).
Do ponto de vista mais subjetivo das trajetórias, nota-se que a narrativa de Miro
apresentou um tom mais individualista, embora ele participasse de eventos coletivos, em seu
discurso seu “eu” agia mais sozinho, enquanto que Faro fundamentava-se mais numa rede
social do bairro, não rompendo com espaços de socialização e integração importantes naquele
contexto, como a igreja. Para Miro, abandonar a igreja representou uma ruptura radical com o
mundo que defendeu ideologicamente na adolescência quando participou das células. Depois
que saiu da igreja, com 18 anos, Miro começou a participar de forma ativa do tráfico de
drogas no bairro e depois foi jurado de morte. As trajetórias dos jovens tinham em comum o
mesmo universo social, as igrejas, esquinas e ruas do Estrela D’alva no período do novo
milênio no qual pela primeira vez o bairro foi palco de episódios recorrentes de assassinatos e
outras violências dirigidas contra o público jovem, do sexo masculino principalmente.
Outro ponto em comum para Miro e de Faro diz respeito ao modo como praticavam
ações coletivas na periferia e como estas configuravam suas trajetórias de vida. Enquanto que
para as gerações anteriores o associativismo político produzido a partir do convívio religioso
esteve relacionado à superação de problemas de infraestrutura e ausência de serviços básicos
urbanos, na geração dos jovens biografados parecia haver uma soma distinta. Esta soma
contabilizava a urbanização precária e o isolamento geográfico justapondo-os à baixa conexão
com sistemas de mobilidade urbana metropolitana e à emergência da violência e das agências
criminosas instaladas na rotina do bairro como produtoras de mudanças significativas no
cotidiano comunitário. Se nos anos de 1980/1990 os furtos e roubos caracterizavam a
violência no bairro, na geração de Miro e Faro os “toques de recolher”, os assassinatos brutais
em espaços públicos e a incerteza em relação à confiança na polícia eram os balizadores da
insegurança e do medo rotineiro.
Além das questões supracitadas, na periferia muitos de seus habitantes são
confrontados desde a infância com a necessidade de contribuírem para a economia doméstica
e a arcarem individualmente suas necessidades de consumo. Essa configuração acarreta uma
antecipação da idade adulta pela necessidade de “evoluírem mais rápido para o cotidiano da
vida” como mencionou Faro. Essa antecipação os expõe a situações e riscos que exigem
decisões e responsabilidades típicas das relações do mundo adulto e, assim, comprometem a
progressão e a permanência escolar (CARDOSO, 2008). Ciente disso, Faro reconhece que
“uma vida financeira melhor, mora às vezes num apartamento ou numa casa legal, num bairro
165

legal, ter um emprego bom” são condições necessárias para manter o “menino na escola sem
ele ter que trabalhar”. Além do mais, o mercado ocupacional metropolitano até meados da
década de 1990, segundo Cardoso (2008), demandou basicamente por mão de obra pouco
qualificada e, desta forma a escolarização não representava per se uma alternativa para
obtenção de melhor posição laboral. A reestruturação produtiva, interpretada pela literatura
brasileira como transição do modelo produtivo industrial fordista para o toyotista que tornou o
mercado mais seletivo, aumentou a exigência de qualificações acentuando o desemprego e a
pobreza urbana, sendo os jovens a categoria mais afetada por essas transformações54.
Comparando indicadores educacionais do Brasil e de países como, por exemplo,
Portugal que há uma década registava também níveis elevados de abandono escolar antes da
conclusão do ensino obrigatório, Brandão, Saraiva e Matos (2012) identificam, em 2009,
diferenças significativas na quantidade de anos de estudos entre jovens dos dois países.
Enquanto no Brasil, em média, apenas 38% dos jovens de 18 a 24 anos haviam completado 11
anos de estudos, em Portugal 56% dos de 20 a 24 anos tinham pelo menos 12 anos de
escolaridade. Segundo os autores, o menor investimento na carreira escolar teria relação com
a escassez de recursos familiares e com a entrada precoce no mercado de trabalho, “o menino
aqui vira homem mais cedo”, como sintetizou Faro.
Como abordado no capítulo teórico, os percursos para a vida adulta na
contemporaneidade têm sido representados por experiências de vida que culturalmente
servem de referência simbólica para demarcá-los como a iniciação sexual, a saída de casa, o
primeiro trabalho remunerado, o casamento, o nascimento do primeiro filho (a), entre outras
que, no contexto europeu tendem a ocorrer em faixas de idade que mantém alguma
estabilidade (PAIS, 2009). Enquanto no Brasil essas idades sofrem variações significativas
segundo a classe social, como muitos outros aspectos sociais.
Durante a adolescência houve períodos nos quais ambos os jovens dedicaram-se com
afinco às atividades promovidas pela igreja; além dos cultos semanais atuaram como líderes
de Células – pequenos grupos de orações – e como integrantes de grupos de dança. Foi por
meio dessas atividades culturais religiosas promovidas pela Primeira Igreja Batista do Estrela
D’alva – PIBED, por exemplo, que tais jovens tiveram o contato inicial com a cultura hip-
hop, a partir da interação com outros jovens batistas residentes noutras periferias da região
metropolitana de Belo Horizonte. Até mesmo pelo fato de a igreja representar um espaço de
intenso trânsito social, de alta rotatividade de fiéis que, em função de adesões, abandonos,

54
Sobre a percepção dos trabalhadores sobre a reestruturação produtiva no Brasil, ver: Lombardi (1997).
166

retornos, novos abandonos, transformam este espaço numa constante arena de socialização na
periferia metropolitana. A etnografia indicou que no bairro as igrejas não nunca fecham suas
portas de modo absoluto às pessoas.
No caso dos jovens biografados, seus percursos na religião também foram marcados
por intermitências. Por motivos relativamente semelhantes tanto Miro quanto Faro, por mais
de uma vez, saíram da igreja ou foram expulsos dela. Sendo que, na adolescência esse
rompimento atingiu um sentido de ruptura mais profundo que, principalmente para Miro.
Havia uma incompatibilidade entre os percursos de vida dos jovens e os limites da moral
religiosa que proibia o namoro àqueles com idade inferior a 18 anos, independentemente de já
terem tido ou não experiências sexuais anteriores. Para Miro tal questão representou um ponto
de inflexão em sua trajetória, especialmente aos 17 anos, período no qual o rompimento com a
igreja representou um divisor de águas em sua trajetória, ratificou sua adesão ao narcotráfico.
Em termos estruturais, percebe-se que os percursos de vida dos jovens da geração da
faixa de idade de Faro, 21 anos, e Miro, 22 anos, foram marcados pelas dinâmicas sociais da
periferia, pelas mudanças e permanências relacionadas aos estilos de vida estabelecidos no
referido contexto social metropolitano. No período da entrevista, por exemplo, Faro realizava
eventos em espaços públicos do bairro a partir do hip-hop, bem como trabalhava como
“articulador social” no Centro de Referência da Assistência Social Casa Amarela, onde
acompanhava visitas domiciliares, atendimento ao público e participava de reuniões de
planejamento de estratégias para a aproximação dos assistentes sociais, responsáveis pela
aplicação da política social, junto à comunidade local. No mesmo período, Miro encontrava-
se desvinculado do narcotráfico há quase dois anos, exercia ações políticas em espaços
públicos a partir da promoção da cultura hip-hop tais como duelo de rimas, dança de rua e
mostras de filmes (cineclube).
Cinco meses após nosso encontro e a realização da entrevista, Miro encontrava-se
foragido da região devido a uma ameaça de morte que sofrera de narcotraficantes e, desde
então, não consegui ter acesso a nenhuma informação sobre seu paradeiro. Por outro lado,
Faro permaneceu no bairro onde pretendia casar-se e fixar residência em um barracão anexo à
casa de seu pai, além disso, continuar a realizar ações relacionadas ao hip-hop, gospel e
secular, bem como concluir alguma formação escolar e/ou profissional.
As trajetórias de Faro e Miro foram edificadas e estabelecidas na periferia
metropolitana, e a partir de um mesmo universo social55 de referência elaboraram suas

55
Ocupar um mesmo espaço social representa na teoria bourdiana o compartilhamento de experiências sociais
relativamente comuns aos dois jovens, que suas trajetórias foram orientadas a partir de campos sociais
167

experiências de vida. Além disso, são jovens que viveram com muita intensidade a infância
no bairro, as interações na rua, a convivência comunitária e a religiosa e, ao mesmo tempo, a
inserção precoce no mundo adulto. Ambos os jovens, começaram a trabalhar, enceraram a
carreira escolar e tiveram a iniciação sexual antes mesmo de completar 14 anos de idade.
Estes jovens também tiveram em comum, em suas trajetórias, períodos de intensa dedicação a
atividades religiosas, seguido pelo abandono da igreja, de participação com as dinâmicas do
narcotráfico local e o posterior desligamento, bem como exerceram práticas artísticas,
culturais e políticas relacionadas ao hip-hop.
As trajetórias destes jovens expressam determinados tipos de ação apreendidas dos
repertórios de conhecimento produzido das experiências passadas e regulares ao longo do
tempo na periferia pelas gerações mais velhas. A história de formação do bairro mostrou que
a urbanização do lugar ocorreu de modo integrado ao desenvolvimento das práticas culturais,
da prática religiosa principalmente, bem como do jogo político de permuta entre benfeitorias
urbanas e voto. Suas trajetórias foram edificadas a partir de matrizes discursivas relacionas
fundamentalmente à pregação religiosa e retórica político eleitoral em um contexto de
expansão das esferas midiáticas em geral e da violência traduzidas pelos jovens pela
linguagem crítica, poética e rimada do hip-hop.
As ações em espaços públicos fortaleciam suas identidades e ao mesmo tempo eram
úteis para testarem competências individuais valorizadas entre os jovens e para afirmarem-se
publicamente enquanto sujeitos com interesses e motivos próprios e legítimos. Conforme
argumenta Machado Pais (2008, p. 20), no contexto da vida cotidiana a dimensão visual
torna-se um “centro polimórfico”, nesse sentido carece interpretação e, ao mesmo tempo,
torna-se meio de interpretação “objeto e método de pesquisa”. A propagação de imagens e
mensagens difundidas como observado no hip-hop na periferia não servia apenas como
cenário para os eventos relacionados a essa cultura, mas demarcava o desejo de consolidação
de um novo espaço de práticas juvenis legítimas fora da igreja, da escola, do trabalho e do
tráfico.

específicos da vida social da periferia metropolitana, pressupõe que ambos possuam fontes relativamente
semelhantes de acesso a determinados capitais (cultural, social, econômico, político, artístico, esportivo etc.),
que compartilham de uma mesma classe ou condição social perante os sistemas de estratificação estabelecidos.
(Bourdieu, 1997).
168

Foto 8 - Jovens e Grafites – Estrela D’alva-2013

Fonte: Fotografia do Autor, 2013.

Os jovens por meio do conjunto instrumental proporcional pelas expressões do hip-


hop compunham também uma nova gramática contrária ao envolvimento juvenil com o crime
e, ao mesmo tempo, apresentava-se crítica à religião e a política desempenhada pelos
governos56. Isso, contudo, não impede o envolvimento com o narcotráfico, avaliado como
caminho do mal, mas ainda assim um dos únicos disponíveis para acessar bens, serviços e a
recursos que são exigidos pela vida cotidiana, mas que não são oferecidos como deveria pelo
Estado em função de interesses e propósitos enviesados. Se o mundo do trabalho, ser um
“trabalhador de bem”, se localiza num ponto ideal, por vezes as frustrações e
constrangimentos da precariedade da vida na periferia expõem a urgência de rotas e percursos
alternativos: o narcotráfico, a arte, o esporte, a religião, a política.
Por outro lado, diferentemente da religião e do tráfico de drogas que possuíam fontes
de recursos seguras, o hip-hop era patrocinado basicamente pelos parcos recursos juvenis.
Para realizarem suas atividades os jovens contavam com equipamentos de som emprestados
da secretaria municipal de cultura, mas o transporte do material, as tintas para os grafites e
tudo o mais ficava por conta deles. Ao permanecerem no hip-hop os jovens precisavam
resistir às tentações da “forma mais fácil se conseguir uma grana, mais fácil de conseguir um
dinheiro bom” como disse Faro a respeito do tráfico de drogas, ou à comodidade oferecida
pela igreja que possuía espaço, palco, equipamentos e público cativo. Nas diversas ocasiões
das quais estive junto a Miro e seus pares notei que não havia um momento destinado a
realização de um lanche, nem um sorvete ou cachorro quente, eles simplesmente não

56
Contudo, havia participação de jovens envolvidos tanto no crime como na religião, combinação que expõe o
trânsito elaborado pelos jovens entre os “dois caminhos” ao mesmo tempo que buscam a mediação da “rua”,
um espaço “neutro” fora das instituições família, escola, trabalho e igreja, onde entre pares trocam
experiências, saberes e práticas da vida.
169

consumiam. Não era por oposição ao consumo, mas por falta de recursos, inclusive para
realização dos deslocamentos. Apesar disso, buscavam por meio do hip-hop inscrever no
espaço público uma nova gramática em contraposição às que já vinham sendo impressas pelas
agências religiosas e criminais principalmente. Na periferia os pontos de comercialização
ilícita de entorpecentes e as igrejas evangélicas pentecostais expandiram-se exponencialmente
nas últimas décadas e se tornaram relevantes marcas da identidade pública dessas áreas, de
modo que passaram a representar para a juventude a base de referência moral para construção
conceitual dos “dois caminhos” narrados por Miro.
De um modo geral, os percursos de vida dos jovens indicaram que suas ações se
estruturavam e orientaram-se em torno das dinâmicas da vida comunitária local, de modo
diferente das gerações mais velhas que estiveram envolvidas na construção do bairro, nas
lutas e disputas políticas e eleitorais pelo direito à infraestrutura urbana, os jovens lidam com
novos problemas como destaque à violência e a permanência de velhos problemas como a
segregação e o isolamento provocado pela falta de integração dos sistemas de transporte
público, entre muitos outros que caracterizam o contexto social da periferia metropolitana
contemporânea como mostrado no capítulo referente a metropolização e à urbanização do
Estrela D’alva.
171

6 AS TRAJETÓRIAS DE MAICON E SUZANO

Fonte: Autor desconhecido, 2015.


Adaptado pelo autor. Imagem faz referência a uma família reunida 57.

Maicon e Suzano tiveram suas trajetórias marcadas pela participação na vida religiosa
e, embora com menor intensidade, na vida comunitária. Eles não participavam de atividades
ligadas ao hip-hop e nem outras ações culturais de intervenção no espaço público. Seus
percursos estabelecem fortes vínculos com laços coletivos, todavia orientados com mais
intensidade para os campos de relação familiar e profissional. Tanto Maicon quanto Suzano
focaram a vida em família como um projeto de vida, embora seus percursos sejam bastante
distintos. A decisão em oferecer uma centralidade à família em seus percursos de vida não foi
uma decisão antecipada e projetada desde sempre voluntária ou conscientemente; tem haver
com a construção dos aprendizados sociais, das estratégias, para lidar com as contingências do
cotidiano na periferia que tiveram de tomar. Assim, tais projetos convergem como à “adoção
estratégica de opções de estilo de vida, organizadas tendo em mente a projeção de uma
‘esperança de vida’ e normalmente balizadas por uma noção de risco” (GIDDENS, 1991,
p.147-48). No curso de suas experiências, ao terem de lidar com demandas práticas de cada
experiência, os projetos de vida foram sendo reorganizados e significados até o momento em
que se encontravam quando eu os conheci.
Para Suzano as dinâmicas do núcleo familiar composto por sua mãe e irmã, desde a

57
Retirado de: https://peregrinacultural.files.wordpress.com/2012/03/silhueta-familia-reunida.jpg/
172

infância orientaram o destino de suas ações no bairro e fora dele. Já no caso de Maicon, de
forma distinta a família também estava presente na sua narrativa. Seus pais se separaram na
infância e no bairro fazia amizades em busca de proteção contra os conflitos na escola. Ele
teve uma iniciação sexual ainda jovem, assim como outros tantos meninos do bairro, tal como
ilustrado nos percursos de Miro e Faro e ao final da adolescência, com o nascimento do
primeiro filho, buscou orientar sua vida em busca de um projeto familiar. E assim, Maicon
encarou tais acontecimentos como etapas de transição para a vida adulta: após a paternidade,
o casamento e a vida em família como projeto de vida.
Suzano morava na casa de sua mãe, era solteiro, não tinha filhos e trabalhava como
professor universitário. Era bacharel em administração, tinha MBA e outras pós-graduações
em Marketing, e dizia querer fazer o mestrado. Por outra via, Maicon não concluiu o ensino
básico, morava em uma casa construída por ele no mesmo terreno da sua mãe, irmão e irmã, e
trabalhava como operador de máquina empilhadeira em um dos muitos, e enormes, galpões de
armazenamento de mercadorias industriais situados à margem da via-expressa próximo ao
Estrela D’alva.
Do mesmo modo que Miro e que Faro, Maicon e Suzano são filhos da periferia,
pessoas de uma geração que experimentou durante a juventude um período histórico
caracterizado por profundas mudanças na estruturação da vida social cotidiana do Estrela
D’alva, notadas da seguinte forma: i) consolidação urbana do bairro (desde a época do
“buracão”); ii) crescimento da religiosidade cristã de vertente protestante neopentecostal; iii)
expansão dos serviços estatais após duas décadas de redemocratização do sistema político
formal; iv) fixação do narcotráfico no espaço público do bairro e a violência. Enfim, Maicon e
Suzano, como muitos outros jovens do bairro, tiveram em comum serem das gerações cuja
trajetória juvenil coincidiu com tal conjuntura, de mudanças na orientação normativa e social
da vida pública na periferia metropolitana. Tendo tais questões no horizonte, as trajetórias de
Suzano e de Maicon são apresentadas em seguida.
173

6.1 A Trajetória de Suzano

Fonte: Autor desconhecido, 201558.

Conheci Suzano em uma noite de sábado, durante um dos inúmeros duelos de MC’s
da Casa Amarela que frequentei durante o ano de 2013. Ele não era MC nem frequentador
assíduo, havia passado no local apenas para conversar com jovens integrantes do Coletivo
Casa Amarela do qual Miro fazia parte. Naquela ocasião Faro estava próximo a mim e
comentou sobre Suzano. Disse que ele era repórter, que tinha formação superior e que morava
no bairro. Após Suzano conversar com os jovens do referido Coletivo dirigi-me até ele, em
companhia de Faro, e apresentei-me, falei dos meus objetivos ali, enfim, da tese que estava
desenvolvendo, das trajetórias juvenis lá no Estrela D’alva. Ele foi atencioso, trocamos nossos
números de telefone e algumas semanas depois ele recebeu-me em sua residência onde
realizamos a entrevista a partir da qual apresento sua trajetória de vida.
Suzano nasceu em Belo Horizonte, município no qual permaneceu até completar oito
anos de idade. Neste tempo morou no bairro Gameleira, sítio localizado na região oeste de
Belo Horizonte, onde está o tradicional Parque de Exposição homônimo. Nesta época morou
em área favelada do bairro Gameleira por onde passam dezenas de linhas de ônibus e uma
estação de metrô que possibilita o acesso a diversos espaços metropolitanos como Betim e
Contagem, e está a 12 minutos de metrô, carro ou ônibus do centro de Belo Horizonte.

58
Retirado de: http://fjupara.com.br/como-deixar-de-viver-a-sombra-de-alguem. Acesso em 04.abr.2016
174

Em 1993, ainda com oito anos de idade sua família mudou-se para a vila Francisco
Mariano, no Estrela D’alva. Nessa época o bairro já enfrentava os problemas de violência
relacionados à expansão de atividades criminosas, com diferentes configurações e proporções
daquela registrada na primeira década de 2000, quando houve o “toque de recolher”. Desde
que chegou à Vila Francisco Mariano, ela já havia se percebido em um espaço socialmente
estigmatizado “[...] as pessoas tinham vergonha de falar que moravam aqui, e quando
perguntavam: onde você mora? E aí as pessoas respondiam assim: ah... eu moro... é lá no
Tijuca59, hoje menos, a gente costumava dizer, se trata de uma periferia dentro da periferia”.
Suzano já havia notado a noção de paisagem moral que constitui muito dos territórios
periféricos, a exemplo do que morava.
A igreja também foi marcante na vida de Suzano. Até sete anos de idade frequentou a
igreja católica na qual foi batizado e cursou a Primeira Comunhão, e ao chegar ao Estrela
D’alva passou a frequentar a Igreja do Evangelho Quadrangular e, posteriormente, na
adolescência, a Primeira Igreja Batista do Estrela D’alva (PIIBED). Como para muitos outros
jovens do contexto, o convívio social mediado pela igreja representou uma importante
referência nas experiências sociais de Suzano em relação às interações como outros
moradores do bairro. Fora da esfera religiosa ele participou pouco da vida social do bairro, já
que havia frequentado escolas situadas na região da Pampulha e centro de Belo Horizonte, de
modo que em sua trajetória a “rua” não foi uma agência de socialização tão marcante.
Diferente de muitos outros jovens do bairro, as relações mediadas pela “casa” e pela “escola”
prevaleceram em contraposição às da “rua”. Além disso, Suzano teve um percurso escolar
linear, sem retenções ou abandonos e com rendimentos acima da média quando contrastado
com outros garotos da sua geração. Suzano trabalhou desde adolescência, mas não durante a
infância.
Durante a entrevista Suzano fez questão de destacar que quando chegou ao bairro, no
início da década de 1990, sua casa era de dois cômodos, não tinha reboco nem laje, apenas
coberta por telhado. A casa onde mora atualmente, bem como muitas outras coisas que
Suzano teve durante sua vida, como videogame e computador, além da possibilidade de fazer
cursos, foram resultados dos esforços e da gestão econômica de parcos rendimentos por parte
de sua mãe que, solteira criou os dois filhos. Seu pai afastou-se de do núcleo familiar quando
Suzano estava com dois anos de idade, tendo o mesmo ocorrido com o pai de sua irmã, Aline,

59
O Tijuca embora próximo não possuía a mesma má fama. Durante a etnografia fui ao Tijuca e notei que os
padrões de urbanização e de construção civil (casas de dois pavimentos, muitas delas com muro e acabamento)
eram mais frequentes e não havia áreas com aglomerados subnormais mesclados ao bairro como é no Estrela
D’alva.
175

cujo pai abandonou o núcleo familiar pouco tendo após a menina haver nascido. Filhos de
pais diferentes criados por uma mesma mãe, na favela. Suzano demonstrava admiração por
sua família, em especial pela a mãe, colocada por ele durante toda a sua narrativa como uma
figura central no ordenamento de seus percursos de vida. Nascida no norte de Minas Gerais,
numa região marcada por pobreza e estagnação econômica, sua mãe chegou a Belo Horizonte
aos 20 anos de idade. Sua intenção inicial era migrar para São Paulo, mas no caminho para
Belo Horizonte, por meio de uma pessoa com quem fez amizade no ônibus, conseguiu
emprego e decidiu tentar a vida na cidade.
Durante toda a entrevista sua mãe e sua irmã estiveram presentes, como foi durante
toda a sua vida, e deste modo, abri espaço para que elas também se manifestassem. Sua mãe
fez questão de participar e, deste modo, em alguns momentos da apresentação da trajetória de
Suzano há depoimentos de sua mãe, relativos a momentos específicos que viveram juntos.

Suzano, da Gameleira para o Estrela D’alva

Num primeiro momento, nós viemos para cá porque foi onde a gente pôde comprar.
A gente morava de aluguel e outra pessoa foi quem indicou essa casa para minha
mãe, e na época com o recurso que ela tinha era onde dava pra comprar, e aí ela
comprou aqui e nós viemos morar aqui por isso, pra sair do aluguel, num bairro que
era muito distante daquele que a gente morava em relação ao centro. Da Gameleira
ao centro a gente demorava 12 minutos, daqui, a gente demora no mínimo 50
minutos.

E viemos para cá. A vila era muito diferente, mas já tinha essa questão da violência,
tinha um estigma social muito grande, as pessoas tinham vergonha de falarem que
moravam aqui e se perguntassem as pessoas: “onde você mora?”. Iriam dizer: “Ah,
eu moro no Tijuca.”, às vezes hoje ainda tem um pouquinho disso, mas acho que
muito menos do que tinha antes, e a gente costuma dizer hoje que aqui era uma
periferia na periferia, sabe, a vila. E viemos para cá. Essa casa, ela era esse quarto, e
aqui tinha um quarto e ali tinha outro quarto, tudo de telhas e tijolos, e depois de um
tempo minha mãe começou a reformar e tal, até que chegamos a este formato que
temos hoje.

Minha mãe nasceu no norte de Minas, em uma cidade chamada Porteirinha, e veio
pra cá aos 22 ou 23 anos, pra tentar a vida né. E eu até brinco de que ela ia para São
Paulo e acabou parando em BH e ficou. Ela conheceu uma pessoa no ônibus, uma
amiga, essa pessoa disse a ela, “ah, vamos parar lá em casa”, e no outro dia ela
conseguiu emprego para minha mãe que acabou ficando em BH. Uma vida muito
sofrida, minha mãe é mãe solteira, ela separou-se do meu pai quando eu tinha dois
anos e meio, e foi lutando muito para criar a gente, pra dar educação. Eu tenho uma
irmã e no primeiro momento o pai dela morava com a gente e há uns dez anos, mais
ou menos, eles se separaram e ele foi embora. Ele era uma pessoa interessante, mas
com uma convivência muito complicada, ele era etilista.
176

Suzano, igreja e experiência religiosa

Eu frequentei [a igreja] há muito tempo quando o pastor Terrinha chegou, dos 13


anos até os 17 anos, e antes disso frequentei a igreja quadrangular. Lá na Gameleira
e no Padre Eustáquio eu fiz a primeira comunhão e essas coisas todas na igreja
católica, normal, isso eu tinha de seis para sete anos de idade, e aos domingos havia
a escola bíblica dominical, chegava no domingo de manhã a gente ai pra lá.
Dediquei muito tempo mesmo, por exemplo, domingo de manhã havia a tenda de
oração, era ás sete horas da manhã [07h00], e depois eu já ficava para a escola
bíblica, depois tinha as reuniões com o pessoal do ministério, e depois no almoço a
gente voltava para casa e depois retornava no primeiro culto da tarde, às cinco horas
[17h00] e aí encontrava o grupo do ministério de louvor também, então assim,
quando não tinha uma coisa tinha outra e durante a semana era a célula, uma vez por
semana, além da célula não sei se tem hoje, tinha o discipulado e fazíamos estudos
bíblicos e visita às casas das pessoas e eu tinha uns vinte discípulos na época, era
bem lotado, e muita gente que a gente visitava, conhecia, conversava, e tinha essa
referência da igreja mesmo, e tinha gente que nem era discípulo seu e às vezes te
cumprimentava na rua e que te admirava e pedia para ir à casa dele porque estava
com problema, então tomava muito tempo.

A igreja aqui tem um papel legal que é o seguinte, a teologia que o pastor Terrinha
trabalha lida com as emoções e eu acho isso muito legal porque a escola já não
acessa mais o cara do tráfico, ninguém, nenhum órgão público e nenhuma política
pública acessa esse cara mais e a igreja fala com ele ainda. Então, ao passo que cada
fiel que ele ganha e que está nesse processo ele contribui para a mudança, porque o
cara vai e muda de vida, ele tem que mudar, porque senão não fica na igreja. Ou,
pode ser que seja só um período e o cara vai e sai, ou ele vai optar pela igreja ou ele
vai optar pelo crime, os dois são incompatíveis. E aí, tem uma ação da igreja que ele
trabalha com um método que é chamado de igreja em células de que, esse cara que
vai, ele tem que se tornar um multiplicador, só que ele multiplica na rede dele que
tem esses sujeitos, então eu acho muito legal. Tem muita gente que está na igreja
dele, muita gente, era gente muito complicada, esvaziou muito bar e muita boca
[ponto de venda e consumo entorpecentes ilícitos] o pastor Terrinha , então, não se
pode desconsiderar a importância social que ele e a igreja têm. Ainda que a gente
não concorde com a ordem teológica e mais um monte de outras coisas, tem umas
coisas que são muito legais, por exemplo, a menina que vai para lá ela tem que
seguir uma lógica então eu acho que isso evita pelo menos que essa menina
engravide nova. A igreja tem umas políticas que numa sociedade ideal você pode
concordar que não está certo e que muita coisa pode mudar, mas numa situação
como a daqui que é crítica eu torço muito para que ele, se hoje tem 2.000 fiéis, eu
torço para que ele chegue a 4.000, a 5.000, a 6.000 fiéis lá. Entendeu? Porque cada
um que ele tira é menos um.

Suzano em casa e na escola: nada de rua

É uma vida inteira estudando, eu até brinquei com minha mãe, eu estou fazendo 28
anos, faço 28 anos em setembro, e em 27 anos é o primeiro ano que eu não estou
estudando numa escola regular, sempre estudei. Minha mãe me obrigava a estudar,
mais que isso, me dava apoio e obrigava. Aqui em casa a lei já existia, o estudo é
compulsório, eu tinha que ir, tinha que ir mesmo. Então, eu fiz o ciclo regular, pré-
primário, acompanhava o boletim, se o boletim caísse ela queria saber o por que,
brigava, ela ia na escola, sabe, sempre muito presente, muito próxima. Eu acho que
eu vivi uma coisa muito interessante, eu sempre fui o primeiro da turma em tudo, em
matemática, em português, em todas as matérias, boas notas sempre, eu era aquele
cara que quando ia ter alguma coisa diziam “chama o Suzano e vamos fazer com
ele”. Mas eu nunca fui um cara parado, eu sempre sofri dessa hiperatividade,
conversava demais e ás vezes até atrapalhava a aula com os colegas de tanto
177

conversar. Eu sempre tive uma característica, que ainda hoje me acompanha, de


conseguir fazer várias coisas ao mesmo tempo, então, eu conversava com o cara e
ouvia o professor ao mesmo tempo, e conseguia entender o que ele estava falando, e
nem todo mundo tem essa característica e alguns acabavam se atrapalhando. Quando
tinha trabalho, por exemplo, na escola, isso na faculdade e na pós-graduação
também, sempre as pessoas queriam participar do meu grupo, eu dava a lógica do
trabalho e o trabalho sempre dava certo, enfim, eu sempre dediquei-me muito aos
estudos. Na turma não tinha muitos alunos dedicados, a turma pendia para aqueles
caras que diziam “que saco, o que eu estou fazendo aqui?”, ou tipo, “por que essa
aula não acaba logo? Não estou querendo ficar aqui mais”. Tinha muitos que
achavam que chegar à 8ª série tava bom e que chegar ao 2º grau tava excelente, isso
90%. Dos meus amigos, que continuamos amigos depois do 1º ou do 2º grau
[correspondente ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio respectivamente], que
estudamos junto, eu posso te dizer porque eu tenho relação com muitos deles que, de
uma turma de 30 alunos, menos de 5 foram para o Ensino Superior. E não foi por
falta de oportunidade não, tiveram as mesmas oportunidades que eu e uns tiveram
até mais como uma família com uma estrutura melhor e tal e não toparam. A vida
tomou outros rumos como as meninas, a maior parte tem filhos, a maioria delas.
Agora eu estou com 27 anos e tem gente que teve filho há mais de dez anos atrás,
com 17, 18, 19 ou 20 anos já estava engravidando ou já estava no segundo filho.

Eu lembro até de uma cena, isso eu já trabalhava, eu tinha 16 anos, já tinha o meu
dinheiro e, tecnicamente como a gente brincava, já era dono do meu nariz
[independente financeiramente] e uma vez eu cheguei muito cansado do trabalho e
falei assim, “nó mãe, eu acho que eu não vou na aula hoje não porque eu estou
muito cansado”, e ela olhou para mim assim e disse “o que seu moleque?”. Eu
andava daqui até o Madre Carmelita, e você sabe onde é a portaria dois do
zoológico? A portaria dois é um terço do caminho até o Madre Carmelita, então,
você anda mais dois tantos pra chegar à escola que eu estudava. E na época eu não
tinha grana para pagar ônibus, mesmo trabalhando, tinhas as dificuldades do dia a
dia da gente e aí, minha mãe disse: “O que seu moleque? Você não vai na aula?
Pegue suas coisas agora, organize, coloque na sua mochila e vasa! E eu vou ligar pra
escola para saber se você está lá, porque se você não tiver eu vou pisar no seu
pescoço!”. E eu tinha um medo quando ela falava que iria pisar no meu pescoço. E
aí, talvez por aquele dia [...], naquele momento, se ela não tivesse falado aquilo eu
tivesse parado tivesse tido outro rumo.

De novo vem a questão da minha mãe, ela sempre teve esse “faro” para essa coisa de
escola, Alice Nassif foi a escola que eu fiz o 1ª grau, era uma escola referência na
Regional Pampulha, uma escola muito boa, municipal, em Belo Horizonte. A gente
brinca que ela é a penúltima escola de Belo Horizonte, porque a última é a Anne
Frank que fica no bairro Confisco. E o Alice Nassif era uma escola fantástica com
projetos, sendo uma escola pública, com projetos muito avançados para a época. Eu
lembro que no 1º grau, da 6ª até a 8 ª série eu fiz parte de um grupo avançado de
geometria e matemática e tinha um 6º horário duas vezes por semana, e aí eles
selecionaram alunos que eles achavam que davam conta do grupo e nós fomos para
lá e tinha aulas só de geometria e matemática. E era muito engraçado porque a
mesma professora que dava aula para a gente no grupo avançado dava aula no
ensino regular, era uma experiência da escola plural, e era interessante porque a
gente estava muito à frente dos alunos da escola regular e essa galera não dava conta
de acompanhar.

Depois no 2º eu estudei no Madre Carmelita que era também uma escola fantástica e
referência na região da Pampulha, durante muito tempo uma escola polo de
educação profissional e tecnológica do Estado quando teve isso em Minas, antes de
cortarem, e era uma escola que tinha um ensino muito forte, inclusive o índice de
retenção era altíssimo por causa disso, era uma escola muito boa, boa no sentido de
que a educação era cobrada e tal, eu não acredito que bomba [retenção escolar]
resolva o problema de ninguém, mas era uma escola que cobrava mesmo, que tinha
uma disciplina muito forte e você tinha que se adequar àquele padrão e que virava
178

pra você e falava: “olha você não entra aqui do jeito que você quer, na hora que você
quer”.

Enfim, e tudo isso direcionado pela minha mãe. E para a gente conseguir a vaga no
Madre Carmelita? Tem uma história. Como eu morava em Contagem conseguir
uma vaga lá era uma loucura, eles não cediam mesmo, porque lá era Belo Horizonte.
E aí minha chegou e foi conversar com a diretora e chorou, e chorou, e minha mãe
chorava e eu olhava para minha mãe assim, [...] e não conseguia, e a diretora era
irredutível e ela foi e disse, eu vou conversar com essa diretora e eu fui com ela. E
primeiro a diretora foi e pagou um pau [não foi simpática] com aquela coisa do
preconceito, sabe, “vocês são periferia lá de Contagem e blá, blá, blá, blá, blá, blá,
blá, blá, blá, e aqui tem que dar resultado!”. Como se o lugar onde você mora
dissesse se você tem ou não tem a capacidade de estudar em determinada escola que
é pública, aliás, ela ia negar a vaga e eu olhei para minha mãe assim, e o olho dela
ficou vermelho, e minha mãe começou a chorar, a chorar: “E meu filho vai perder a
oportunidade, meu filho pode virar um malandro e não sei o quê, ele é bom, olha o
boletim dele aqui oh.”, e minha média 86, 92 e nas humanas eu sempre fui melhor,
então era 92, 93, 86 e coisa assim, e a diretora foi e olhou o boletim e disse assim
“engraçado né, então beleza, eu vou abrir uma exceção e nós vamos fazer uma
experiência”, e ela foi e aceitou-me matricular. E nós saímos de lá e minha mãe
ainda chorava e, eu lembro disso como se fosse hoje, quando a gente saiu da escola e
pisamos fora minha mãe parou de chorar, “Uai mãe, parou de chorar?”, e ela, “é pra
essa mulher dar-me essa vaga logo, que saco!”. [risos]. Porque de fato ela [a
diretora] achava que a escola era dela e na época só tinha por aqui o Maria de Salles
e era muito deficitário e essa diretora deu muita sorte porque no período do 2º grau
eu estava mais envolvido na igreja batista e então eu estava com um perfil mais light
[menos crítico], mas eu sempre tive um perfil muito questionador.

[MÃE DE SUZANO]: Rua? Aqui? Eles falam que meus filhos não tiveram infância
e eu falo que teve. O Suzano aprendeu a nadar com os primos dele, não sabe andar
de bicicleta até hoje porque na primeira vez que foi tentar caiu e machucou demais e
desistiu, entendeu? Bola na rua nunca jogou, não soltou papagaio. E para eles não
irem para a rua eu o mantinha sempre ocupado. Primeiro ele foi para o Curumim 60
né, eu o encaixei, ele saiu da creche e depois foi para o Curumim. E, do Curumim
foi trabalhar e nos finais de semana tem os primos, ele ia para a casa dos primos e lá
ele brincava, ele tinha a hora de lazer dele, e a avó dele fazia tudo, e com aquela
turma de primo. Ele era como eu, eu não podia ficar brincando na rua toda hora. Eu
não prendi, eu ocupei. A gente viajava, viajava juntos, e sempre foi muito tranquilo.
Só na rua que eu nunca gostei, de companhia, é melhor sozinho do que mal
acompanhado. O videogame eu dei a ele e ele quietou um pouco dentro de casa, e
depois veio o computador, e eu falei com ele, você ainda vai continuar no
videogame, mas eu ainda vou te dar um computador. A computação. E eu não tinha
como dar a ele um computador, e ele foi e entrou na aula de computação, eu
conversei com o pessoal lá da escola e eles me pediram alguma referência do lugar
que eu trabalhava e de quanto eu ganhava e aí eu pagava só a passagem para ele ir e
a metade do curso, meia bolsa né?. E depois que ele fez o curso, se eu deixasse ele ia
para a lan-house, e lan-house não. Nós já não pagávamos o aluguel e eu fazia a
compras e pagava as contas, separava o dinheiro da passagem, o de determinado
curso, o dinheiro da minha passagem e sobrava R$5,00, eu trabalhava ali no Padre
Eustáquio, e depois subia a Rua Padre Eustáquio e passava na Caixa e depositava
todo dia R$5,00, de cinco em cinco, às vezes até menos, mas eu acho que o mínimo
foi R$5,00, mas se sobrava era para ele. Até que num dia ele chegou aqui com um
amigo [Wender] que arrumava, vendia, fazia manutenção de computadores e
ensinava-o, ele [Suzano] era muito curioso e, ás vezes, ele aprendia e depois só para
ficar no computador ele ficava lá até de graça arrumando computador para o

60
O Projeto Curumim consistiu em uma política estatal que oferecia atividades socioeducativas para crianças de
7 a 12 anos, quase que projeto piloto do que viria a ser a Escola Integrada, que oferece atividades da mesma
natureza também no turno oposto ao horário escolar. Em Contagem, o Projeto tinha sede na Rua 1º de Maio,
940, Regional Nacional, no período da pesquisa de campo estava desativado.
179

Wender, e com isso aprendendo, isso era feriado, sábado e domingo, e a mulher do
Wender é também uma gracinha de pessoa. Aí o Wender pegou um computador de
outra pessoa para vender porque tinha comprado um computador melhor, dos
antigos mesmo, dos primeiros que saíram, e aí ele chegou e falou “ah mãe, o
Wender está vendendo o computador, um que a mulher está vendendo porque
comprou um melhor”, e aí eu virei para ele e falei “oh Suzano, quanto é o
computador?” e ele foi e falou assim “quinhentos reais”, que alegria, mas aqui não
tinha casa lotérica não, só lá no bairro Pedra Azul, e aí eu fui e falei com ele “oh
Suzano, você tem certeza que é quinhentos reais? O computador é bom?” porque eu
não entendia nada, e aí ele falou assim “é bom mãe, o computador, e não tem nada
para consertar ou para mexer e tal”, e eu fui e falei assim “você tem certeza?” e ele
foi e falou “oh mãe, eu tenho certeza”, aí eu fui lá e conversei com o Wender “você
dá garantia? Tem garantia no computador?” e ele “eu vou dar garantia para este
menino? Se acontecer alguma coisa a senhora vem cá e pega a peça, mas o
computador eu garanto que não vai dar problema e o computador é bom e tal e ela tá
vendando é porque comprou outro novo”, era pessoa que tinha muito dinheiro na
época e podia até ter dado a ele de presente. E teve muitas outras coisas, muitas
emoções, mas tem duas coisas na minha vida que eu não esqueço até hoje; na época
o salário não era nem R$90,00 (noventa reais), ele trouxe a nota e deu garantia, e eu
fui e falei assim “Suzano, ir lá com você eu não posso não, mas, mas eu te passo os
R$500,00 daqui a pouco pra você buscar o computador”, ele “o que? R$500,00
você tem?”, e ele ainda duvidou de mim e eu falei “é sim, R$500,00, e você sabia
que é mais de 5 salários mínimos”. Então são umas coisas que eu falo para eles, hoje
nós estamos numa época de vacas gordas, mas nós já passamos cada magrela.

Suzano, estudante como ator político

Eu formei com 14 anos o primeiro grau e comecei a trabalhar e estudar já no


segundo grau, eu estudava a noite, eu era office boy, foi minha primeira profissão, e
aí eu trabalhava lá no centro de Belo Horizonte, na Fundação Lucas Machado pelo
CESAM [Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador de Minas Gerais] e naquele
momento foi quando eu comecei a envolver-me mais com os movimentos políticos,
movimento estudantil e movimento de juventude que era algo que não existia direito
ainda, porque os movimentos de juventude estavam cada estava fazendo uma coisa,
a juventude partidária pensava nela, o movimento estudantil mais ligado a esta
juventude pensava no deles, o pessoal do hip-hop estava começando a caminhar nos
guetos com os interesses deles e tal, a igreja também, o pessoal evangélico que aqui
cresceu muito enfim, cada um na sua. Então, eu comecei pelo movimento estudantil,
minha primeira conferência foi nos anos de 2000, da constituinte escolar em Belo
Horizonte e eu comecei a interssar-me por eses temas, fui presidente de grêmio
estudantil. Em 2005, eu já estava no curso técnico da FUNEC Novo Progresso nós
criamos lá o Diretório Estudantil e aí nós tínhamos um problema na escola, é porque
ela era assaltada todos os dias, o cara já parava na porta da escola e estendia a mão,
“cadê minha quentinha?”, isso era todo dia, foi quando a Marília61 assumiu o
governo, e tinha muito roubo, muita violência e começou naquela época o boato que
a FUNEC ia fechar. Nós achamos que a princípio fosse um boato, enfim, porque em
mudança de governo gera-se essa coisa para criar muita turbulência né. E aí eu fiz
um contato com o Lindomar, o secretário de Educação na época, e o Lindomar não
tinha respondido esse contato que foi feito por escrito, e aí eu fui e fiz tipo uma
ameça porque eu era muito estourado, fui aprendendo a ser mais diplomático com a
vida, enviei uma carta para o Lindomar falando que se ele não nos atendesse eu iria
colocar 500 (quinhentos) estudantes pelados na porta da prefeitura. Eu já tinha feito
uma manifestação com 200 (duzentos) no Laguna. Nós tinhamos uma organização
neste Diretório que era muito interessante, nós criamos uma estrutura muito
inspirada numa observação que eu tinha feito do funcionamento do governo, e o que

61
Marília Campos foi prefeita do município de Contagem por dois mandatos consecutivos representando o
Partido dos Trabalhadores, PT. O primeiro mandato foi de 2005 a 2008, e o segundo, de 2009 a 2012.
180

era? Nós tinhamos uma espécie de legislativo que era um conselho com dois
representantes de cada sala e era o que garantiria que as informações chegariam
rapidamente a todos os alunos da escola, e tinha um coletivo com 6 (seis) pessoas
que coordenavam as ações, e eu era o presidente do Diretório, então assim, quando a
gente dava uma informação tudo chegava muito rápido nas salas, a gente reunia,
eram reuniões de 2 a 5 minutos no recreio e a coisa chegava. E eles sabiam na época
que nós colocaríamos os estudantes lá e aí rapaz, para minha surpresa, três dias
depois ligou a Cláudia Osceli “olá Suzano eu sou a C.O. a presidente da Funec, tudo
bem? Eu gostaria de bater um papo com você, como que a gente faz?”, e eu disse
“você pode vir aqui na escola.” Aí eu fui e falei assim, “essa mulher não vai vim
aqui, eu duvido que ela vai aparecer aqui nessa escola!”. E aí, a Cláudia foi, e nós
reunimos esse conselho todo, dava umas 25 (vinte e cinco) pessoas, e ela respondeu
à altura. Daquele momento em diante nós começamos a ter uma relação muito
próxima, nós simpatizamos muito fácil, eu gostei do jeitão dela de fazer as coisas e
ela viu que eu era um cara meio doido, assim, enfim, a gente deu certo. E naquele
momento eu comecei a sacar que a gente tinha que fazer alguma coisa pela
comunidade, pela escola, pra tentar melhorar e aí eu comecei a envolver-me nesses
movimentos para aprender, inclusive, como é que funcionavam as coisas. Um pouco
depois, eu vi que o movimento estudantil não era a minha praia, que eu não queria
mesmo, assim, eu não achava legal a forma como ele era construído. Então eu
comecei a militar no movimento de juventude partidária, no PT, minha mãe já era
filiada há mais tempo e eu desde 2005, onde eu continuei.

Suzano e a política fora da escola: a luta pelo Direito

Eu sempre fui assim, aquele cara que liga e registra o protocolo: “não, não estou
concordando com a operadora não!”, que gosta de prestar contas, que liga, registra e
guarda o protocolo, eu tenho todos guardados. Eu acho que isso é um pouco da
escola também. A escola que eu estudei ensinou, e minha mãe também, de que a
gente não tem que abrir mão dos nossos direitos, nós não temos que abrir mão.
Entendeu? Quando você estiver errado você tem que admitir que errou e abaixar a
cabeça: “desculpa, eu errei”. Mas se você tem que ir e bater naquela tecla até que o
direito seja validado. Por exemplo, um dia desses nós fomos ao cinema e existe uma
Lei em Contagem que determina que os menores de 18 anos, sendo estudantes ou
não, ao apresentar a carteira de identidade têm que ter acesso à meia-entrada. Então,
eu fui lá com minha irmã, minha mãe estava também, e nós chegamos ao cinema e o
cara falou assim, “essa Lei não existe”, eu fui e mostrei a ele a Lei e aí ele foi e falou
assim, “essa Lei aí é facultativa!”, e eu disse “então deve ser facultativo o direito que
eu tenho de lhe dar um soco na cara e não ser preso! Já que a Lei não é para ser
cumprida, então todas as leis são facultativas.”. E aí eu registrei um protocolo lá na
administração do shopping, eu ia entrar com uma ação [judicial] contra o shopping,
o que é uma coisa boba, pois pra mim R$4,00 a mais ou a menos não vai fazer
nenhuma diferença. Mas é o conceito de Direito, eu tenho que ter o direito à meia
entrada, e que o outro tem também, e as pessoas muitas das vezes não vão fazer
valer, pois as pessoas se acomodam com isso. Desde cedo eu aprendi que tem que se
seguir a Lei, para que a Lei possa ser validada e para garantir os meus direitos
também.

Eu denunciei esses dias em uma matéria [jornalística] só no nosso território aqui a


Farmácia Pública não tem remédio? Faltam remédios básicos tipo o A.S, o Dipirona,
depois te envio até o link da matéria que nós fizemos. O Posto de Saúde não tem
médico, e as pessoas quando chegam ao Posto são referenciadas para a UPA
[Unidade de Pronto Atendimento] lá no Ressaca, e ao chegar lá por não ser um caso
da Atenção Básica de Saúde não conseguem atendimento porque você é classificado
como verde, na classificação do SUS [Sistema Único de Saúde] como verde, azul,
amarelo, laranja e vermelho, quem chega ao Posto é verde, há não ser que seja uma
urgência. E quando você chega não tem o médico no Posto e como você é verde,
inclusive crianças, enviam você para a UPA o médico também não te atende porque
181

você é verde e tem um monte de amarelo e de vermelho e tecnicamente você deveria


ter sido atendido no seu Posto, mas no seu Posto não tem médico. Os direitos são
violados há todo momento. Os meninos na escola e aí eu acho uma atrocidade, por
exemplo, aqui tinha uma escola de Ensino Médio, uma Funec, e foi trazida um
pouco antes da Cláudia Osceli ser presidente numa época em que potencializaram
todas as ações da Funec, e do nada, em uma canetada o governo tirou a escola daqui,
entendeu? Colocaram aqui uma Cozinha Comunitária, que é uma política pública
muito importante, em um lugar em que as pessoas não querem uma Cozinha
Comunitária, aqui na vila as pessoas estão morrendo é porque elas não têm acesso à
Cultura, não têm acesso à Educação, porque não tem projetos integrados com a
juventude, porque a escola não dá conta dos meninos, a escola é quadrada para eles.
Ao invés de um Centro Cultural, construíram uma Cozinha Comunitária, e aí tem
um Centro Comunitário, mas este tem outro recorte e não tem nada haver com o que
foi pensado e com a obra que nós havíamos ganhado pelo OP [Orçamento
Participativo], então foi desrespeitada uma decisão que foi coletiva. Mas por quê?
Isso não tem outro nome para mim que não seja a violação de direitos.

Suzano, o terno da formatura e sua Mãe

[MÃE DE SUZANO]: Ele ia formar a 8ª série, os colegas dele tudo ia de terno e só


ele quem não tinha. E, eu pagando o material lá do depósito pra gente construir aqui
e eu pagava o depósito por semana porque eu era diarista, eu trabalhava por dia,
então eu juntava o dinheiro e toda semana eu passava lá e pagava e ia juntando o
material. E aí eu falei “não Suzano, desta vez, meu filho, eu sinto muito, mas não
tem jeito porque eu não posso ficar devendo o depósito e se eu conversar com o
Norberto ele vai deixar pagar mês que vem, mas acontece que eu vou acumular
conta e vai ser mais difícil. Eu sei que você está formando a 8ª série, mas depois
você vai lá e conversa com o diretor ou com alguém lá e você vai e pega o
certificado. E aí, eu fui e cheguei lá na casa em que eu trabalhava, gente boa demais,
demais, demais uma pena que morreu, mas a família é da gente ter muita saudade até
hoje [pausa, emociona-se, com um choro contido continua o depoimento], era dia de
jogo do Brasil, e ele era professor de costura lá no Senac, ele dava aula ainda, e aí
ele chegou e perguntou “e aí, e o Suzano passou? Passou? Passou?”, e eu fui e falei
“passou de ano graças a Deus, ano que vem é outro sofrimento, só que ele não vai
pegar o certificado não porque infelizmente não teve como conseguir a roupa para
ele, porque nós fomos olhar terno, e até para alugar eu não vou dar conta”, ele foi e
falou “o quê? Você tem coragem de falar isso comigo? Repete isso aí!”, e eu falei,
“é uai! Eu não tenho condição!”, e ele fazia terno, fazia tudo e eu falei para
aproveitar porque fazer um terno ficava caro demais. E eu fui embora, e aí ele foi e
chamou os genros e os filhos dele, reuniu, isso foi ele quem me disse, e compraram
pano, sapato e gravata, a camisa, a calça e o paletó eles fizeram e na época ele ainda
estava em fase de crescimento e eles fizeram a bainha até com jeito de aumentar, e
até teve que aumentar depois. E aí, quando foi no dia ele chegou para mim e falou
assim “Oh Dona L., eu estou precisando conversar com o Suzano porque eu preciso
da ajuda dele e é só com ele, fala para ele dar um pulinho aqui”, e eu falei “ele está
estudando e trabalhando, a que hora ele vai poder?”, e, “fala com ele para dar um
jeitinho”. E foi o Suzano lá, e quando chegou lá era para provar o terno, e aí provou,
ele tinha feito o terno pelo corpo do filho dele, e fez o terno. E o Suzano foi e falou
assim “mãe, a senhora não vai acreditar no que eu tenho pra dizer para a senhora!”, e
eu, “o que o senhor Victor tanto queria com você? Eu até fiquei preocupada!”, e ele,
“o meu terno de formatura!”.

Suzano, vida social no bairro e convívio com a violência

Eu cresci vendo gente morrendo aqui, eu cresci vendo gente morrendo. A última
fase da minha infância, a pré-adolescência e adolescência e juventude foi toda nesse
território. Então, eu cresci aqui, eu construí minhas referências aqui, no Confisco, no
182

São Mateus, no Estrela D’alva, enfim, nesse território, e muita gente morreu. E a
gente tinha um ditado “Se se envolver? Vai morrer, não tem jeito!” é raro o cara
chegar aos 20/22 anos, morre, com raras exceções, morre, não tem jeito. Então,
desde muito cedo eu criei uma antipatia com isso, eu já sabia que era o que eu não
queria, não rolava, e durante um tempo a galera até olhava assim pra mim assim...
[pausa] porque minha mãe sempre orientou para não fazer favor a ninguém, e se eles
pedissem ela quebrava o pau com eles. E todo mundo sempre respeitou minha mãe
porque ela sempre foi muito próxima na comunidade, assim, do tipo, muita gente
que morreu aqui foi minha mãe que enterrou, porque durante muito tempo acontecia
que as pessoas morriam e eles não sabiam o que fazer com essas pessoas que
morriam. Ela era aquela pessoa que batia em cada porta e dizia “olha você pode dar
um real, dois ou três reais, para liberar o corpo”.
O crime é comércio, e as empresas evoluem, não é? E como administrador eu posso
dizer muito bem. Eu acho que eles estão mais inteligentes hoje e não só por causa da
tecnologia, é em gestão mesmo, por exemplo, antigamente o cara iria morrer porque
ele deve, hoje em dia o cara pega o seu patrimônio, a casa da sua mãe, e isso não é
só aqui não, é no país, [...], é meio complicado falar assim, mas é como uma
evolução da forma de comercializar e da forma de cobrar e eu acho que tem uma
regra: assassinato atrai imprensa e polícia, atrai visibilidade, e as empresas não
querem publicidade negativa, elas querem o espaço para fazerem o comércio, boca é
no bairro todo, não é só no bairro é na cidade, falar que boca é na periferia é lenda
urbana, está é na cidade toda. Mas o modelo de gestão está evoluindo, evoluindo eu
não sei se para melhor ou se para pior, mas está mais inteligente, mas tomando
outros contornos, o PCC fez isso, e em outros lugares por aí a fora, na tv também, as
faces sociais do crime. Não é? E isso dá um objeto de estudo legal demais, que é o
cara que distribui coisas nas comunidades. Eu me lembro de um caso de um amigo
meu falando, ele mora em Duque de Caxias, de que todos os sábados os traficantes
paravam uma rua, faziam um pagode e liberavam cervejas e mais cervejas de graça.
Mas eu acho que tem uma coisa assim de querer manter o território sem fazer muito
alarde do que está rolando, sabe? Mas tem caras que você percebe evidentemente
que são envolvidos, isso é natural, mas aqui é difícil você dizer quem é o bandido da
história, se é o cara que comete o crime porque precisa do mínimo na casa dele, o
mínimo que eu falo é comida mesmo, ou o cara que vem prender esse cara, o
histórico de violação da polícia aqui é direto e não é um ou dois casos não, é direto.

[MÃE DE SUZANO]: Vamos supor, morria matado, e aí eles não tinham dinheiro
nem pra ir lá liberar o corpo, entendeu? E aí, eu fazia a correria do dinheiro e todo
mundo ajudava e fazia a lista para liberar o corpo. Aqui, graças a Deus, nenhum
ficou sobre a terra. Na medicina você não paga para tirar o corpo, mas a questão é
que morria a maioria das vezes daquele jeito, daquele nipe [assassinado], ou então,
morria em casa doente e a família não sabia o que fazer e ia até eles e falava “pode
tomar o seu banho que eu estou correndo atrás”, e rapidinho já arrumava o enterro
pra ela e ia todo mundo, isso desde que eu cheguei aqui.

Eles falam que eu sou brava, mas eu não sou brava, mas eu vejo as coisas por esse
lado, se ele quisesse ter entrado para o meio da bandidagem ele tinha entrado, no
entanto, ele passa no meio de todo mundo e eles estão lá fumando, vendendo,
entregando, e a gente não tem nada com isso, eles não mexem com a gente e a gente
deixa eles lá na deles. Na porta da escola eles chegam e falam “olha, eu vou te dar
R$5,00 e você leva essa bolsa e tem que entregar lá em casa pra mim”, e se ele
chegasse aqui com um centavo ele tinha que explicar onde que ele arrumou... esse
negócio de achar para mim não existe.

[...] Um dia desses um policial veio atrás de um traficante aqui e quando ele chegou
na rua eu estava vindo de lá para cá e a polícia entrou e o cara correu e ele começou
a dar tiro, e não queria nem saber se iria pegar no cara ou se tinha gente na rua, e aí
quando o menino correu e o policial correu atrás e não deu conta de pegar ele na rua,
ele entrou dentro de uma casa que tinha uma menina deficiente. A menina deficiente
viu o menino entrando, e ela nem sabia quem tinha entrado, o primeiro portão aberto
ele entrou, só que ele não fechou o portão e o polícia veio atrás, e ela foi e passou na
183

frente, e eles já com o revolver na mão, e ela foi e falou assim “o que vocês querem
aqui? O que vocês querem aqui?” e eles foram e falaram “é que fulano entrou aqui”,
e ela disse “aqui ele não entrou não” e eles foram e bateram a cabeça dela no muro e
fez um galo daquele tamanho e depois começou a sangrar e eu fui e parei e olhei
para aquilo e fui e virei para ele [policial] “eu não estou te entendendo não? Ela é
bandida? Então, por que você fez isso com ela?” e ele disse e falou “é porque ela
queria impedir a gente de entrar” e eu fui e falei assim “primeiro, vocês não tem
mandato para entrar na casa dela, e segundo, mesmo que vocês tivessem só de olhar
para a cara dela dá para saber que ela é deficiente e mesmo se tivesse ela não iria
entender isso para te perguntar, mas o senhor entrou, não entrou?”, “sim, entramos
pegamos e já estamos trazendo já”, e aí todo mundo olhou para mim, porque aqui
eles cagam de medo de polícia, e eu fui e falei “cadê o mandato?”, “não precisa de
mandato para pegar vagabundo não! [respondeu o policial]”, e eu fui “deixa eu te
falar, aqui mora muito trabalhador, aqui não mora só bandido não, vocês dão tiro na
rua, vocês querem colocar ordem em um lugar e nem vocês têm, eu conheço muito
filho de policial por aí drogado, colegas seus drogados, quem é você para querer dar
essa moral”, e o menino foi algemado e jogou o menino no chão e começou a bater,
e eu fui e falei “a sorte sua é que eu não tenho um celular aqui com câmera pra
filmar isso, porque seu eu filmasse isso daqui não iria ficar de graça não”, as pessoas
aqui não endentem de lei, é um pessoal humilde, da favela, e eles abusam mesmo
[...], e eu falei, “ isso aí está errado. Ele não está algemado?”, [o policial respondeu]
“é que vocês dão muita cobertura para vagabundo”, e eu falei “nós não estamos
aqui para atrapalhar vocês a trabalhar, mas esse tipo de coisa que vocês estão
fazendo, vocês sabem que está errado, e vocês fazem isso com eles, mas faz isso
com um filho meu para vocês verem? Vocês ameaçam de matar, que vão passar à
paisana e que vão fazer isso e aquilo, como já ouvi vocês falarem aqui, faz isso com
um filho meu para vocês verem? O inferno que você vai entrar, eu vou lhe falar uma
coisa, o senhor vai brigar é com o capeta”, ele foi e falou assim “oh dona, a senhora
acha que está podendo mesmo, não é?”, eu fui e falei assim: “estou sim, você
acredita que eu estou podendo?” e aí tirei meu cartão de alimentação, meu cartão de
passagem, tirei minha identidade e tirei minha carteira e mostrei “aqui ó, eu sou
trabalhadora, você pode chegar no ponto de ônibus ali 05h50 e olha a fila de gente
que tem para pegar o ônibus, eu respeito os seus trabalhos, mas vocês tem que saber
que o seu direito começa onde o meu termina, e pare de bater no menino ou então
leva ele na viatura e resolve o que tem que resolver, mas bater pode parar agora”, e
aí, “é..., parem aí gente, essa mulher..., parem aí, é melhor parar para eu não ter
problema com essa mulher”, e eu falei “e é melhor vocês não terem problema
comigo eu já mandei buscar o celular que ficou lá em casa carregando”, e rapidinho
ele enfiou o rabo entre as pernas, procurou alguma coisa com o menino e não achou
e foi lá um e conversou com o outro e falou assim “mas a senhora sabe que ele está
com droga?”, e eu falei, “não, ele não está com droga, porque se ele tivesse vocês
teriam que ter trago a droga é do lado de dentro e ele veio sem droga”, e ele,
“desculpe, eu só perguntei se a senhora sabia se ele estava com droga”, e falei, “eu
não tenho que saber de nada, quem tem que saber é vocês”, e ele, “então, vem cá,
quem são esses traficantes que mantém o tráfico aqui”, eu falei, “não sei, eu não
ganho para isso, quem ganha para isso é vocês, os investigadores aqui são vocês, eu
não ganho para isso, eu não vendo droga, eu não compro droga, não consumo droga,
então quem tem que saber disso é vocês, e que, infelizmente vocês fazem-no
péssimo”, ele calou a boca e o menino estava lá dentro da rádio patrulha, “e agora
vocês vão levá-lo por que? Vocês não tinham mandato para pegar ele, só pegaram
porque ele correu e vocês foram atrás, se ele não tivesse corrido vocês também não
tinham, agora, ele é menor, e se a mãe não for, eu vou junto, porque quando a gente
precisa de uma viatura para socorrer uma pessoa, para levá-la ao médico vocês não
aparecem, ninguém pode vir, mas se foi baleado vem, e quando chega não quer
saber porque não, quer saber o tipo de bala que foi’, porque eles ficam igual urubu
em cima perguntando quem foi, e por causa da arma e não da pessoa em si, e
“quando chegar lá eu vou falar para o comandante de vocês não ficar gastando o
nosso dinheiro, o dinheiro de seis radiopatrulhas, uma moto e de vocês está saindo
do meu bolso, esse dinheiro deveria estar investido na saúde, e também na
segurança, na educação e em um muito de outras coisas aí, e muitos outros projetos
184

aí e vocês, o governo, não precisa deixar esses meninos aí”, mas sabe o que
acontece? Os policiais aqui, infelizmente, não são todos, eles sãos os piores
corruptos, eles chega aqui e você está com dinheiro e está com droga: “ó, passa o
dinheiro aí, e outro dia eu passo para buscar e eu não te levo não”, ele deixa o cara
com a droga e volta outro dia para buscar mais dinheiro, e o cara tem que ter. E
então todo mundo “você é louca, você é louca”, e eu falei, “doido é vocês que
deixam eles fazer o que quer e ficam aí caladinhos” e eu falo com você um negócio
meu estopim é curto, por isso eu falo “não se envolvam”, porque se eu ver um
policial batendo no meu filho por nada, eu avanço nele, aí sim que vou presa, e se eu
não partir para cima e dar uns tapas neles eu vou até o inferno mas resolvo tudo.

Suzano, o jovem negro

Eu sou um cara da minha família, eu adoro ficar com a minha família, e eu tenho
pouco tempo para ficarmos juntos, pouco, pouco tempo, se você quer esconder de
mim você vem para a minha casa. Eu estou em uma fase esse ano que eu estou
trabalhando muito, muito, estou trabalhando na Globo, estou trabalhando em uma
ONG aqui no bairro, eu estou trabalhando muito, mas muito mesmo, estou
trabalhando aqui na vila em um projeto que estamos construindo uma ONG aqui na
vila, de moradores da vila, estou trabalhando muito pesado, estou até sem tempo
para estudar, ano que vem eu volto a estudar, mas o trabalho social eu vou continuar
fazendo. Eu escrevo há três anos para um Instituto, que ajudei a criar, era um
movimento e nós criamos o Instituto, e nós tínhamos ganhado dois projetos na lei
estadual de incentivo à cultura, uns quinhentos mil reais mais ou menos, e
começamos um diálogo com a Globo agora para tentar colocar um programa no ar
que irá se chamar “Batucando: cultura negra na internet” para produzir junto à
Fundação Roberto Marinho dez programas pela internet de tv sobre temas afro-
brasileiros. Há alguns anos, olhando no espelho, porque às vezes a gente tem que
fazer essa ação e eu percebi uma coisa muito interessante, eu tenho raça, eu tenho
etnia, eu venho de um de lugar. Engraçado é que muita coisa aconteceu depois de
uma conversa com meu avô, eu conversava muito com ele antes dele morrer, pai da
minha mãe, ele morava no interior, no norte de Minas, e ele contava as histórias e eu
achei muito interessante que meu avô, até a geração dele, na família dele não houve
nenhuma mistura, ele era da cor da sua camisa [preta], negro, negro, negro, negro, e
próximo de onde ele morava tinha um quilombo, mas a gente não vem desse
quilombo, eu acho, mas tem o quilombo também. Eu achava interessante que meu
avô, embora negro, isso há 50 ou 60 anos atrás era fazendeiro, e eu achei essa
história muito interessante, algo que eu queria até pesquisar depois, ter tempo para ir
e fazer uma pesquisa sobre isso, sobre esses antepassados nossos. Porque um
fazendeiro negro há anos atrás é uma coisa um pouco estranha, e a nossa família não
tinha pouca terra lá, muita terra mesmo, a minha mãe tem hoje lá um sítio e tal, que
pena que a terra não vale nada [em termos monetários], mas é muita terra, são seis
irmãos e aí, dividiram entre os irmãos, eu achava muito interessante aquilo, e eu
comecei a ser provocado por essas questões. Em determinado momento eu conheci
uma amiga minha, a Eça, que é congadeira [do congado] e do candomblé e tentei
entender mais o que estava rolando e comecei a perceber o quanto esse processo de
exclusão é mais forte com pessoas que são negras. E aí eu comecei a lembrar, na
universidade eu era o único estudante negro da minha sala, na pós-graduação eu
também fui o único, fiz um MBA em Marketing, então rolou essa questão, comecei
a perceber que quando a pessoa é negra esse processo de exclusão é muito mais
evidente. É evidente, mas é mascarado, pois, você sabe que acontece, mas os
mecanismos que os constroem são muito sutis, e aí comecei a fazer essa discussão,
comecei a produzir alguns textos, muitos deles já foram publicados e agora eu estou
tentando estruturar isso e é a pesquisa que eu quero desenvolver no mestrado.
Quando se fala da juventude negra, em 2009, 2010 participei do Encontro Brasil
França promovido pela Fundação Perseu Abramo em São Paulo e lá estava uma
deputada francesa que é negra e falava desse processo, e eu comecei a acentuar as
leituras sobre esse processo e tentar perceber o que está acontecendo com os negros
185

do Brasil. E aí esses textos que eu escrevi partem desse pressuposto histórico, de que
nós estamos sendo constantemente excluídos e no recorte da juventude é pior ainda,
o jovem negro tem um histórico de violações do pior possível, nas favelas a maior
parte das pessoas são negras e, [...] quanto mais negra é a juventude, mais excluída
ela está.

6.1.1 Considerações sobre a Trajetória de Suzano

Embora Suzano partilhasse do mesmo universo social da maioria dos jovens que
conheci durante a etnografia, seus percursos de vida destoavam, e muito, da maioria das
trajetórias juvenis que conheci no Estrela D’alva. Sua trajetória foi orientada a partir de um
relativo distanciamento em relação à vida social cotidiana do bairro, principalmente das
relações sociais que se estabeleciam durante os dias de semana no seu espaço público. A
“rua”, como metáfora de um caminho perigoso e marcado pelo envolvimento com atividades
ilegais, foi evitada por sua família desde que chegou ao Estrela D’alva. Sua mãe mantinha-o
ocupado fora do bairro ou dentro de casa. Dos oito aos doze anos Suzano frequentou o Projeto
Curumim, onde permanecia por todo o tempo do dia e só a noite ia para casa, aos finais de
semana a igreja e os “primos” ocupavam seu tempo. A gestão do tempo no cotidiano era
caracterizada por um acúmulo e intensidade de atividades e projetos que tinham como
princípio mantê-lo ocupado e longe das distrações da “rua”. Sua infância foi construída assim,
a partir de um repertório distinto. Ainda que sua mãe diga que ele “teve infância”, Suzano não
sabe andar de bicicleta, não soltou papagaio e não jogou bola na rua, nem brincou de pique-
esconde, rouba bandeira ou qualquer outra brincadeira infantil comumente vistas nas ruas da
periferia quando foi criança. Na Vila Francisco Mariano as casas são, em geral, apertadas e
desconfortáveis, e por isso ficar na rua é uma opção para muitos moradores, afastar-se dela,
ficar em casa pode ser muitas vezes um sacrifício.
Em casa, Suzano dedicava-se às atividades domésticas, fazia os deveres de casa e
jogava videogame. Seu cotidiano era relativamente diferente do vivido pelos demais jovens
do bairro, para os quais a rua assumia uma centralidade enquanto esfera de interação social
comparada à esfera doméstica. Além disso, Suzano estudava com seriedade e participava com
afinco das atividades políticas na escola e fazia cursos técnicos como o de informática.
Ganhou de sua mãe um computador ainda na adolescência, além do já mencionado
videogame, bens que não proporcionam apenas distração e entretenimento, mas acesso a
habilidades e informações, capitais socialmente valorizados. O distanciamento em relação às
dinâmicas do espaço público da periferia não foi uma escolha sua, seu cotidiano era
cuidadosamente projetado por sua mãe, pessoa que, apesar dos poucos recursos se esforçou e
186

muito para que o filho tivesse uma trajetória de estudo e trabalho diferente dos outros
moradores do bairro e distinta, inclusive, da sua própria.
O modo como Suzano relacionou-se com a vida pública da periferia, esse
distanciamento em relação à “rua” foi também proporcionado pelas escolas das quais
frequentou, todas situadas noutros bairros, todas em Belo Horizonte. Nem na escola ele
partilhava do mesmo ambiente das crianças/adolescentes do Estrela D’alva. Produziu-se uma
espécie de alteridade que, se por um lado sensibilizou Suzano para o lugar distinto que
ocupava quando comparado a seus colegas de escola, por outro alimentou também a
possibilidade de construção de um projeto de vida com mais alternativas que aquelas
vislumbradas pelos vizinhos. Em geral, na periferia, as relações sociais na escola são bastante
influenciadas pelas dinâmicas sociais estabelecidas na rua e as escolas onde estudou não
ficaram reféns de nenhum toque de recolher. Ele teve uma vida estudantil ativa, sem
abandonos e era comunicativo, foi presidente do grêmio onde participou da organização de
ações coletivas estudantis, inclusive de protestos. Seu percurso escolar foi também orientado
por uma vida familiar fundamentada numa ética do direito e que envolvia também deveres e
obrigações, como disse Suzano, a “lei do estudo compulsório”. Ele é de uma geração que
viveu sua trajetória juvenil no período de redemocratização do sistema político formal, e suas
experiências de vida expõem essa concepção sobre sua capacidade de ação, política e coletiva,
que ele, como muitos outros jovens da periferia demonstraram ter. Suzano presidiu o grêmio
estudantil, participou da juventude partidária, movimento político fora da escola. Por meio
deste último, teve a oportunidade de realizar viagens, participar de congressos e
manifestações políticas.
Por meio da escolarização, Suzano teve a oportunidade de acessar outros capitais
sociais que podiam ocupá-lo tempo o suficiente para mantê-lo distante da vida cotidiana do
bairro. E, deste modo, ele conseguia em parte escapar do efeito perverso que a segregação
exercia/exerce sobre a reprodução da pobreza nas periferias mais isoladas do centro
metropolitano, como é o caso do Estrela D’alva, onde os jovens que entrevistei tendiam a ter
redes sociais62 estruturadas nas relações locais, orientadas por dinâmicas endógenas,
orientadas para o próprio território da periferia. Por outro lado, a participação na vida
religiosa aproximava-o do cotidiano da periferia. Suas interações sociais mediadas pela igreja,
neste caso a PIBED, envolviam atividades com adolescentes e com pessoas de outras idades

62
A noção de redes social como proposta por (MARQUES, 2010), considerando as pessoas com as quais os
indivíduos mantêm vínculos que possam lhe proporcionar acesso a alguma forma de bem estar social. Segundo
o autor identificou em São Paulo, nas áreas mais distantes do centro metropolitano onde se concentram
pessoas em situação de pobreza as redes sociais tendiam a ser mais locais.
187

nas quais Suzano exercitava sua capacidade de escuta e de compreensão dos problemas
relatados por moradores do bairro que buscavam apoio e proteção social na instituição
religiosa.

Eu tinha uns vinte discípulos na época, era bem lotado, e muita gente que a gene
visitava, conhecia, conversava, e tinha essa referência da igreja mesmo, e tinha gente
que nem era discípulo seu e às vezes te cumprimentava na rua e que te admirava e
pedia para ir à casa dele porque estava com problema, então tomava muito tempo.
(Entrevista com Suzano, 2013).

Aos 28 anos de idade, Suzano demonstrou consciência das limitações morais que
envolvem a religião, mas quando tinha em consideração o contexto social brasileiro e a
situação de vida precária de periferias como o Estrela D’alva reconhecia a igreja como uma
instituição social necessária, e assim, defendeu sua legitimidade: “se hoje têm 2.000 fiéis, eu
torço para que ele chegue a 4.000, a 5.000, a 6.000 fiéis lá. Entendeu? Porque cada um que
ele tira é menos um” (Entrevista com Suzano, 2013). Enfim, a igreja era uma esfera relevante
de aprendizagem social por meio da qual Suzano ocupou seu tempo nos finais de semana,
durante toda a adolescência e podia participar de forma mais direta da vida comunitária na
periferia.
Embora Suzano já participasse de movimentos políticos estudantis desde a
adolescência, somente na idade adulta deu-se conta das questões raciais que configurava a
forma como os outros o percebiam, e por conseguinte, de como ele mesmo veio a perceber a
si mesmo no mundo. Somente no período da universidade, um ambiente social mais distante
do universo social e geográfico da periferia metropolitana, foi quando ele pode notar isso com
mais evidência, ao ponto de lhe chamar a atenção: ele era o único aluno negro em uma sala do
Curso de Administração de Empresas. Neste mesmo momento, em uma visita ao seu avô
materno, no Norte de Minas, percebendo-se negro por pele e história de vida, se viu como um
jovem negro. Tal questão aproximou Suzano ainda de sua família, que para ele transparecia
ser o próprio povo da periferia. A partir disso, Suzano passou a se ocupar novamente em
cuidar deste povo. A partir de seus trânsitos sociais e metropolitanos, através de suas redes
sociais, de dentro e de fora do bairro, passou a agenciar projetos sociais na periferia pela
submissão de projetos a leis de incentivo à cultura, tendo como fonte de recursos editais
públicos, parcerias com ONG’s e empresas privadas com fins lucrativos. Quando eu o
entrevistei, Suzano desenvolvia três projetos sociais, todos eles voltados para a população do
Estrela D’alva, especialmente os moradores da Vila Francisco Mariano, sendo que em um
deles abordava questões étnico-raciais.
188

Suzano ao longo de sua vida sempre manteve um pé dentro e outro pé fora da


periferia, isso porque seus trânsitos fora da periferia foram, pelo menos na idade adulta,
ocupando postos de trabalho que pareciam refletir outra posição social, de modo que ocupava
posições e espaços que eram predominantemente assumidos por pessoas de classes sociais
médias e altas. Seguindo tal percurso de vida Suzano manteve-se relativamente protegido dos
problemas gerados pela expansão das práticas criminosas no bairro, principalmente do
narcotráfico, mas não totalmente. Pois, mesmo não envolvido o risco era premente, pois,
como relatado por sua mãe, na periferia, a polícia agia como se todos fossem suspeitos e
criminosos, com desrespeito indiscriminado aos direitos sociais, civis e políticos dos
moradores. Em sua narrativa Suzano demonstrava haver percebido que a singularidade ou
excepcionalidade de seus percursos de vida em relação aos da maioria de jovens do bairro,
não o tornava socialmente distinto destes indivíduos, tinham em comum uma mesma origem
social, eram jovens negros como ele. Tratava-se assim de uma posição marcada por
ambivalências no jogo dos pertencimentos. Ao mesmo tempo em que partilhava uma origem
com os jovens do Estrela D’alva, os percursos e escolhas feitas por Suzano a partir das
relações que pôde estabelecer estabeleceram para ele um lugar social que também o
diferenciava. A partir do complexo entrecruzamento de marcadores sociais da diferença e de
percursos de vida, Suzano encarnava o paradoxo de ser semelhante e diferente dos jovens de
sua geração, seus vizinhos e amigos. Sua consciência a respeito dessa relação se traduzia em
ações práticas, em projetos sociais que desenvolvia cujo público alvo era os próprios
moradores do bairro.
A narrativa de Suzano mostrou que, apesar dos distanciamentos, a vida comunitária da
periferia, as relações locais e familiares, orientaram em grande medida os sentidos de suas
ações, sua trajetória de vida. No período da adolescência envolveu-se com ela mais por meio
da religião e na idade adulta por meio dos projetos sociais. Em ambos os casos centralizava
seus esforços em ações que pudessem gerar bem estar para as pessoas do bairro. Como se
houvesse por parte de Suzano, de sua família, uma dívida moral em relação aos moradores do
lugar, cujo pagamento deveria ser feio por meio da prestação de trabalho social. Uma
gramática que deu sentido e orientou seus rumos de vida, e que ele manteve quando adulto.
De um lado, seguindo as orientações da mãe desde criança, continuava a estar relativamente
distante da periferia, ocupado durante toda a semana em mais de dois empregos, trabalhava
como repórter, era militante de partido político de esquerda, mantinha ainda algum tipo de
participação no movimento estudantil. Por outro lado, mantinha-se presente no bairro; mesmo
após ter se formado e conseguido trabalho de nível superior, continuava a residir na vila
189

Francisco Mariano onde também desenvolvia os tais projetos sociais.


Suzano morava na Vila Francisco Mariano, junto a sua mãe e irmã, continuou a
orientar suas ações para a manutenção da vida em família e ao mesmo tempo para a vida
comunitária do Estrela D’alva, encarava os moradores quase que como uma grande família
(partilhavam de uma solidariedade, por ter consciência da origem social e étnico-racial
comum). Durante a vida essa orientação para dentro da periferia, para sua vida social, foi
marcante em sua trajetória.

6.2 A Trajetória de Maicon

Fonte: Google-imagens, 2015. Nota: adaptado pelo autor.

Maicon me foi apresentado por Faro e o conheci em sua casa durante a realização do
ritual religioso denominado de “célula”. Em uma quinta-feira do mês de agosto de 2013, por
volta das 19h00, tive a oportunidade de participar de um encontro da célula liderada por
Maicon. Contando com este, além de mim, havia na ocasião um grupo de cinco pessoas, entre
elas Faro. Maicon foi muito atencioso, explicou-me como funcionava a célula, disse que os
integrantes se conheciam por intermédio da igreja e que nem todos estavam presentes naquela
quinta-feira. Uma vez por semana o grupo liderado por ele reunia-se em sua casa,
principalmente, e vez ou outra, na casa de algum outro membro do grupo de oração para as
190

atividades de aconselhamento e apoio moral/espiritual que constituíam a célula. Diferente da


dinâmica ritualística da igreja, como no caso da PIBED, caracterizada pela repetição de textos
e parábolas bíblicas, durante a célula os participantes tinham um tempo reservado para a
exposição de ideias, de sentimentos e de dificuldades no relacionamento familiar, conjugal ou
profissional frente aos demais membros do grupo. Além disso, a célula era também um
espaço de trânsito religioso, tendo em vista que nem todos que participavam mantinham-se
fiéis, havendo sucessivos abandonos e retornos à igreja. A célula de Maicon era
supervisionada por outro líder chamado de governo, responsável por acompanhar o
desenvolvimento de doze células por meio de reuniões periódicas. Ao todo eram doze
governos administrando doze células cada um, e acima deles um pastor principal denominado
como líder de governo.
Após Maicon e os demais participantes apresentarem-me como funcionava a célula e
ouvirem os motivos de minha visita ao local, os jovens iniciaram o ritual com a leitura de um
texto cujo título era “Ponha em ordem a sua casa” que contava a história de Ezequias. Este
estava doente e Deus enviou o profeta para lhe dizer “ponha em ordem a sua casa, pois o seu
dia está chegando”. Ezequias estava em lamentação e começou a falar com Deus, “oh Deus,
lembre-se do eu fui e já fiz, não me deixe morrer, não”, então, Deus pede para o profeta
retornar e dizer “você não vai morrer, te acrescentarei mais 15 anos e cumprirei promessas em
sua vida”. A partir dessa narrativa, Maicon comentou das dificuldades da vida cotidiana de
cada um e ressaltou a importância dos laços familiares (casamento, pai, filho, irmão) e a
necessidade de reatá-los, se necessário, como analogia à parábola de “colocar em ordem a
casa” (Registros de Campo, 2013).
A palavra de Deus era dirigida aos membros da célula e a fé religiosa era colocada
como um caminho capaz de dissolver males, os problemas recorrentes dos moradores do
bairro como desemprego, aluguel atrasado e outras dívidas, dependência química e
envolvimento com crimes. Naquela noite Maicon comentou o caso de dois homicídios que
ocorreram nos últimos quinze dias no bairro, um às 14h30 e outro às 16h00, ambos em
espaços públicos, um deles na rua principal do bairro: “foi um traficante, nessa rua detrás
aqui, e que a polícia recolheu, não sei se é verdade, cinquenta e sete capsulas no chão. Foram
mais de 40 tiros só na cabeça dele”, outro integrante da célula fez questão de ressaltar que
“pai de família não morre, é só traficante mesmo”. Por fim, Maicon encerrou a leitura do texto
dizendo “não sabemos o dia de amanhã e por isso devemos procurar a Deus”. Depois
perguntou aos participantes sobre o que estavam entendendo do texto, e logo em seguida, ele
próprio respondeu dizendo “é melhor arrumar o seu quarto e prolongar o seu tempo de vida
191

do que ficar aí. Não vale à pena guardar mágoa, não devemos desprezar o outro, mesmo à
distância respeitá-lo, não devemos adiar isso”. Após a palestra, os debates e dos testemunhos
feitos em torno da leitura da história de Ezequias houve um intervalo para o lanche com
refrigerante e biscoitos e, por fim, um momento no qual Maicon apagou a luz e ligou uma
musica gospel em volume alto. Um momento no qual cada um iria orar em voz alta e pedir a
Deus o que precisava pedir. Assim o encontro foi encerrado. Antes de partir perguntei a
Maicon se ele se dispunha a participar da tese e semanas depois retornei à sua casa onde
realizamos a entrevista.
Quando realizamos a entrevista Maicon estava com 26 anos, morava junto à esposa e
ao filho, numa casa construída no mesmo lote da residência de sua mãe, do mesmo modo
fizeram sua irmã e seu irmão mais velhos. O terreno onde todos familiares de Maicon
construíram está situado entre o São Mateus e a Vila Sapolândia e a titularidade do imóvel foi
adquirida por usucapião. Desde que compraram o terreno, seus pais tiveram transtornos em
relação à titularidade, pois, quem os vendeu não era o proprietário e sim um golpista. A
situação de golpe gerou tensões também entre sua família e o proprietário legal que os via
como invasores. Antes de começarmos a entrevista, Maicon abriu a geladeira branca, com
freezer independente, e tirou uma garrafa de refrigerante e ofereceu-me para beber,
acompanhando o lanche: uma torta de frango, queijo, e depois, café. Com entusiasmo ele
apresentou-me sua mesa farta. Na sala, seu filho que também bebia refrigerante, jogava
videogame em uma televisão de 42 polegadas, tela de plasma. A entrevista foi realizada em
seu quarto de dormir, onde ele me mostrou no computador desktop, fotos de eventos que
havia participado na igreja.
Maicon nasceu no Estrela D’alva e quando estava com seis anos de idade seu pai
abandonou sua família e foi para São Paulo onde possuía parentes. Esse fato fez com que a
subsistência da sua família ficasse abalada logo no início de sua infância. Com o abandono, o
grupo doméstico viveu um período de empobrecimento em vista da inconstância nos
rendimentos de sua mãe que para manter a ele e aos outros filhos contava apenas com
empregos temporários, “biscates”, e com a venda de produtos de utilidade doméstica como
pano de prato e tapete de retalhos que confeccionava. Ela não tinha condições de arcar com
brinquedos, lanche, passagem de ônibus e nem material escolar para os filhos. Nesta fase,
ainda na infância, quando estava na escola e queria lanchar, Maicon costumava furtar,
utilizando como estratégia realizar a compra de um salgado (coxinha) para um amigo, e ao
realizar isso tinha a oportunidade de enfiar a mão no balaio da salgadeira e furtar outra
coxinha para si. Disse que às vezes achava que ela via seu ato, mas não o punia por
192

supostamente saber que ele fazia isso por necessidade e não por maldade, segundo a
percepção dele.
Aos dez anos de idade Maicon voltou a morar com o pai em um bairro do município
de Contagem, o Pedra Azul. Na ocasião, a relação era marcada por intensas brigas entre o
padrasto e o pai, que tentava reatar os laços com a família. No Pedra Azul Maicon trabalhou
um por um ano em um sacolão (hortifrutigranjeiro) de propriedade do pai e recebia por
semana um onerário no valor de R$5,00. Em tal período eles dormiam no próprio sacolão,
entre sacos de batatas. Durante o dia Maicon administrava o estabelecimento enquanto seu pai
saía para trabalhar em outra ocupação. O sacolão faliu e Maicon voltou a morar com a mãe.
Aos 14 anos trabalhou como auxiliar de jardinagem em uma loja no bairro e prestava serviço
também em outros bairros de moradia de classes médias localizados em Belo Horizonte,
como o Castelo onde visitou “casas bonitas”. Posteriormente, quando estava com 15 anos
trabalhou numa mercearia e depois como ajudante de padeiro em uma padaria.
Durante sua infância, adolescência e juventude Maicon frequentou diversas igrejas
protestantes no bairro: na infância a Assembleia de Deus e na adolescência a Batista, onde
permanecia até a data das entrevistas, embora entre os 15 e 16 anos de idade tenha vivido um
período fora da igreja. Na mesma época, estudou em Belo Horizonte, próximo ao portão2 do
jardim zoológico em uma escola onde casos de brigas e de depredação da escola, furtos e
porte de arma eram relativamente frequentes. Neste tempo buscou fazer amizades com grupos
envolvidos nestes eventos como estratégia para garantir proteção contra as ofensas de outros
grupos que agiam de modo semelhante. Aos 18 anos abandonou a escola, quando sua
namorada engravidou.
A expectativa da paternidade motivou-o a buscar trabalho, na tentativa de agregar os
recursos financeiros e materiais para custear a nova situação que estava por vir. Inicialmente
conseguiu trabalho em uma mercearia como empacotador de feijão e depois como auxiliar de
construção civil. Nesse período, os rendimentos semanais alcançados por meio deste último
eram na faixa entre R$90,00 e R$100,00 (que ao final do mês não atingia 1 salário mínimo à
época). Quando realizamos a entrevista Maicon trabalhava há oito anos em uma mesma
empresa, onde conseguiu ascendência de cargo por causa de sua dedicação. Em um enorme
galpão de estocagem de produtos de uma grande empresa aprendeu a operar a máquina
empilhadeira e desde então se manteve neste ramo. Embora este trabalho oferecesse a ele
carteira assinada, convênio médico e também almoço, Maicon sentia a necessidade de buscar
rendimentos em fontes alternativas. Ele vendia produtos de Avon, roupas e até mesmo
juntava, em um canto externo da casa, latinhas de alumínio e outros materiais recicláveis que
193

eram vendidos para depósitos de material recicláveis. Sua esposa também trabalhava fora de
casa como operadora de caixa num supermercado local e, por conta própria como manicure
em casa ou atendendo a domicílio de terceiros.
O projeto de assumir a gravidez da namorada e de constituir família foi encarado por
Maicon como uma espécie de sacrifício que ele estava disposto a viver, mesmo que tivesse
que abrir mão de sonhos pessoais e projetos individuais. Ele demonstrou em seu relato o
desejo de participar de um grupo familiar sólido, sem conflitos, diferente daquele que havia
dito na infância e adolescência; ao se saber pai, seu projeto de vida tornou-se, em certo
sentido, a conversão daquilo que o seu próprio pai não havia sido na dinâmica do seu próprio
núcleo doméstico, e para isso estruturou sua trajetória em torno das relações familiares e
religiosas como apresento a seguir a partir de trechos coletados em nossa entrevista.

Maicon, memórias da infância no bairro e relações familiares

Hoje somos três irmãos. Quando nós chegamos nessa comunidade aqui, no São
Mateus, a minha mãe mais o meu pai comprou o lote de um homem, só que esse
homem não era o dono do lote, ele se passou como dono. Tempos depois o
verdadeiro dono chegou e queria tomar o lote de várias pessoas que tinham
comprado. Ele viu que não conseguiu conseguiria? (ele morava em São Paulo) e
vendeu para outra pessoa, mas sem contar que estava invadido, que era invasão. A
gente comprou, mas para ele era invasão. O outro cara comprou, quando chegou
aqui viu que era invadido também, ele pegou e deixou para lá. Como tem muitos
anos que a gente mora aqui, a gente entrou com usucapião. Hoje nós temos a
escritura. Tinha um barranco que a gente escorregava em época de chuva, que a
gente criava porcos lá também, aproveitando para jogar no córrego que passava. O
meu primo morava bem no centro do buracão mesmo. Era um local muito assim,
complicado o acesso. Até para atravessar para ir para o Estrela Dalva, no único
supermercado que tinha época, o da Rosana, era complicado também porque só
tinha um escadão de acesso, foi mais de dez anos, tinha um escadão de acesso, a
chuva passava e sempre tinha uma morte. Teve o caso de uma menina, que ela caiu
no córrego, que ela foi parar na rede de tratamento, a mais de 5 ou 6 quilômetros
daqui mais ou menos. Ali na Sapolância já aconteceu também de chuva muito forte
e alagar tudo ali também, o córrego passa lá. Ali transborda. A linha invadia as casas
ali. Muito complicado.

Meu pai separou da minha mãe eu tinha6 anos. Ele foi para São Paulo, então
começamos a passar algumas dificuldades. Às vezes tinha que comer na casa da
minha tia. Brinquedos tinha pouco, pouca roupa. Brinquedos, quando a gente queria
algum, juntávamos eu e um grupo de amigos e íamos para o centro comercial roubar
brinquedos. Então a coisa que hoje parece boba, mas para uma criança que não tinha
brinquedo, ter um brinquedo era uma coisa... Ela vendia roupa [sua mãe]. Às vezes
ele [pai] mandava, às vezes não mandava dinheiro, então começou a ficar muito
complicado. Não era sempre que tinha. Eu não batia muito bem com a minha mãe, o
meu gênio com o dela não coincide. Até hoje nós conversamos muito pouco porque
é muito complicado. As necessidades que eu sabia que eu não podia pedir a ela, eu
tentava se virar na rua. Por exemplo, os brinquedos. A gente brincava de pique-
esconde, de garrafão, tico-tico-fuzilado, tinha o tal “hoje não secreto”, “hoje não” e
dava porrada, só que o “hoje não secreto” você não precisava ligar para um cara. Era
o mais traiçoeiro que tinha, por exemplo, falar assim “Vamos ligar o hoje não?”.
Ligou. Aí eu posso te bater e você pode me bater, e se você falar comigo “hoje não
194

secreto” eu não preciso ser ligado com você, porque é secreto, então você não tinha
que ir lá ligar para um cara. Você tomava porrada, você nem sabia que o cara ia te
bater porque você não era ligado com ele. Você via o cara aqui e ele te dava porrada.
Tinha o tal ABB, ABBL. É beijo na boca. Falava: “ABB: vai lá e beija aquele
menino”. “ABBL: beijo de língua. Vai lá e beija aquela menina”. Você tinha que
ficar escrito de caneta na mão, na época, isso já era na escola. Na escola, eu queria
lanchar e não tinha dinheiro, aí a proposta que o meu amigo me dava, porque ele
tinha o dinheiro do lanche dele, era eu ir lá comprar uma coxinha e eu tentar pegar
outra. Então eu comprava uma, era num cesto, aqueles balãozinhos feitos de bambu,
com uma tampa de um lado e do outro, com pano. A dona falava: “Pode pegar”. Eu
enfiava a mão para pegar uma, mas eu pegava duas tentando para ela não ver. Mas
eu acho que às vezes ela via. Acho que ela fingia que não via, não sei, porque acho
que era a necessidade.

Maicon, relações familiares e experiências laborais na infância

Teve uma época depois, que meu pai voltou de São Paulo, ele queria voltar para a
minha mãe, minha mãe não queria mais, eu estava com meus 9 para 10 anos já. Meu
pai queria voltar para ela e ela não queria. Ele montou um comércio, um sacolão, e
todo dia depois da aula eu ia para lá. No bairro vizinho, Nova Pampulha. Chegava
da aula e ia trabalhar, com meus 10 anos. Trabalhava, trabalhava. Eu ia para a escola
e depois eu ficava o dia inteiro trabalhando. Às vezes, à noite eu saía com alguns
colegas. Lá era muito perigoso. Meu pai, na época, me pagava R$5,00 reais por
semana. Teve um dia que eu cheguei da aula, tinha uma viatura parada na porta, o
meu pai e o meu padrasto tinham pegado na briga. Aí foi o fim da picada e eu fui
morar com o meu pai. Foi uma época complicada, porque o meu pai tinha que sair
de madrugada, me deixava no sacolão, eu ficava dormindo debaixo das bancas, no
meio de saco de batata. Meu primo chegava pouco tempo depois. Depois não foi
dando certo o comércio, foi desandando, foi desandando, e ele vendeu. Eu voltei a
morar com a minha mãe. Trabalhei como jardineiro. O moço tinha uma loja de
jardinagem e montava jardins na região do Castelo, Ouro Preto ali, então cada dia eu
ia numa casa montar os jardins, o Pingo de Ouro, a Heras, aquela que vai, no muro,
aquela trepadeira, deixar ela podada. A grama, você tem que preparar o terreno dela
todo, a gente foi em casa de jogador, pessoas graduadas, nessa época eu tinha uns 14
anos, e não foi um tempo longo não. Acho que foi uns seis meses, mais ou menos.
Mas é um serviço que você pega rápido, entendeu? É um serviço que você pega
rápido. As pedras que você coloca de decoração, aquelas pedras brancas, as plantas,
uma que combina com a outra, a que pode ficar no sol e a que não pode. Trabalhei
em mercearia também. A minha irmã casou, o marido dela construiu uma
merceariazinha. Fui ajudante de padeiro também no Confisco, eu ajudava a fazer o
pão, porque ali a gente colocava a farinha, o reforçador e o fermento. Quando era
muito calor você colocava pouco fermento, porque o pão incha muito rápido. Aí está
a maquininha de pão, esses pãezinhos, a massa, ela tem que ter 2 quilos e meio a 2,8
quilos. Ela corta os tabletes mais ou menos assim, de uns 20 centímetros, a máquina
enrola, você vai colocando na forma e vai cortando com gilete para dar aquele
cortezinho do pão francês.

Maicon, a igreja e experiências religiosas na periferia

Eu era da Assembleia de Deus, desde quando meus pais frequentavam, tem


Assembleia de Deus na Rua Atalaia, é a mesma igreja, era terça, quinta e domingo,
três vezes por semana, só culto, não tinha ensinamentos só para jovens, ou só para
crianças, ou para casal ou para noivos. É culto, culto. Hoje, se você for lá comigo eu
te mostro, pessoas que estavam lá vinte anos atrás que a única coisa que mudou é
que quem era solteira, é casada, quem já era casada, é mãe, quem já era mãe, é avó,
quem era avó, é bisavó. Então só estão os filhos dos filhos dos filhos. Poucas
195

pessoas de fora que aderiu, a Assembleia de Deus perdeu um mando de campo


muito grande por não ter trabalho de campo, inclusive um casal da Assembleia de
Deus fez o curso de Casados para Sempre foi na Igreja Batista, a proposta da Igreja
Batista é bem diferente, é bem tentadora.
Na PIBED, eu comecei lá nos meados de 2007, 2008. Por eu ter vindo da
Assembleia, que tem uma mente tão fechada e tão com as portas viradas para o
mundo assim, e a PIBED foi uma evolução para a comunidade, para a vida pessoal
de cada um. Foi onde que o pastor teve uma visão assim, grande. Deus usou o pastor
tremendamente, com a visão acima de todas as expectativas, porque ninguém
acreditaria no que está acontecendo hoje, no que foi construído, o que influenciou
em várias famílias, na vida de vários jovens, várias pessoas. Várias pessoas ficaram
conhecendo e sabendo como que é, o diferencial que fez. Eu comecei através de uma
célula do meu vizinho que mora de frente a minha casa, eu comecei a ir à célula, fui
conhecendo a célula onde que eu firmei e falei: “Quero ser um líder de célula”, uns
dois anos depois. É orgulho ser um líder. Eu já tenho orgulho de ser um líder. E,
assim, a coisa influencia muito, porque às vezes pesa para a gente, a gente intervir
na vida pessoal de cada um. Você aconselhar jovens, adolescentes, pessoas casadas e
às vezes mexe até com as nossas próprias emoções pessoais, nos pensamentos
pessoais. Coloca à prova, coloca você em dúvida alguns questionamentos que alguns
fazem. Pessoas casadas que não conseguem ter um casamento fielmente, outros
adolescentes que estão namorando e não conseguem ter uma vida de abstinência
total, não conseguem estar na escola sem brigar, não conseguem estar na escola.
Porque a ministração, cada semana é um tema. “Característica da vida no deserto”,
isso é um tema. Qual que é a vida no deserto? O deserto é você estar com sua vida
espiritual falha, a sua vida financeira falha, a sua vida familiar falha. Então isso aí
significa a vida no deserto. “Oito razões pelas quais você deve orar”, isso aqui é
outro tema. Pelo site da igreja você consegue imprimir essas células, não precisa
fazer nenhum cadastro, “Como viver em santidade63”, então tem todos esses temas.
O que é santidade? É você ter uma vida de devoção somente a Deus. Discípulos com
decisões erradas. Tem dia que a gente está lá e nem sempre a gente está vivendo
isso, mas a gente tem que aplicar isso, entendeu? Por mais que nós, às vezes,
estamos falhos, mas nós não podemos ir lá e expor, falar assim “eu tô errado...”.
Não. É tentar corrigir nosso problema e os dos outros também. Já tive pessoas na
minha célula sob efeito de droga, sob efeito de álcool. E aqui é para todo mundo.
Aqui não é só para quem está na igreja não, aqui é para todo mundo. Eu fico feliz
dele estar vindo, mesmo vindo nessa situação, demonstra que você tem interesse
com Deus, interesse em mudar e melhorar. Ele começou a chorar, assim “eu tô
consciente do que eu tô fazendo. Eu tô drogado, fumei um baseado, bebi, mas eu tô
chorando aqui não é porque realmente eu estou necessitando, estou passando
dificuldade, vocês podem orar para mim?”. Então, assim é receber a pessoa de todas
as formas. Pessoas que não acreditam em Deus já estiveram na minha célula,
sobrinhos meus, que acham que não existe nem o inferno nem o céu. Então, assim, é
complicado.

63
Para que o leitor possa ter uma ideia do conteúdo dos textos dirigidos pela PIBED aos líderes de células, em
anexo consta um texto referente à semana de 15 a 21 de novembro de 2015, intitulado por Como está a sua
vida? Você tem passado por provações e crises? Vamos aqui chamar as “crises” de “Provações”,
disponibilizado no site da respectiva igreja < http://pibed.com.br/site/wp-content/uploads/2015/06/15-a-21-de-
Novembro.doc.>. Consulta em 17 de Nov.2015.
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Maicon, o consumo interno de drogas e a expansão do narcotráfico no bairro

Teve uma certa época que estava acontecendo isso, o crack e o tíner 64. Teve uma
época que o tíner estava mais que o crack. Nossa! Tíner era demais. Eles
misturavam tíner com chocolate, tíner com morango. Na porta de escola tíner era...
Nossa! O tíner estava muito violento. Cola e tíner, nossa. Muito tíner. Tíner, tíner,
tíner. Eu estava mais ou menos nessa época de escola mesmo. E, assim, nessa época
minha mesmo de 14, 15 anos aí que o tíner estava demais. Maconha aqui é quase
que normal. Pessoas que você acha que não usa, usa. Tanto a maconha quanto a
cocaína. Tem. Pessoas de todas as classes e tem o consumo local, que é muito
grande aqui. Principalmente quem fuma cigarro, não vai lá todo dia comprar o seu
cigarrinho? Quem bebe a sua cerveja, a sua pinga, não vai lá e comprar? Então é a
mesma coisa de estar comprando um cigarro, um maço de cigarros. Até que o
usuário, hoje, ele diminuiu mais a visão como monstro, não é uma imagem, tipo
assim, tão pesada. O cara é? É. Beleza, mas para a gente não influencia nada. Por
outro lado, às vezes até é um beneficio de certa parte, de um ponto de vista, se você
tiver alguém que é um conhecido seu que é o dono da boca, o traficante ali, então
você está tranquilo, você sabe que não vai ter problema. Porque os usuários que
vierem ou quem trabalha para eles e que vier caçar problema, ele impõe “aqui vocês
não mexem com moradores”. Então eles impõem, tem que impor isso aí, tanto que
esses tem muito tempo que eles estão à frente aí e até hoje eles estão de pé. Tinha
um amigo meu, hoje ele não mora aqui, mas ele fazia parte, vendia também.
Chegava a casa dele e ficavam expostos os tabletes de drogas, armas. Ele tinha
consideração por mim. Ele pegava peças de bicicleta a troco de droga e me dava,
para eu montar a minha bicicleta. Teve certo momento que um dia eu fui lá, os
meninos que trabalha para ele me ofereceu. Ele xingou o menino, queria bater no
menino: “Não faz isso com ele mais não. Ele não é disso”. Então, quer dizer, ele
vendia, mas não queria que o cara vendesse para mim não, entendeu? Então, tem
uma certa consideração, ele tem a consciência, ele sabe que isso faz mal. Ele,
cuidando da vida dele... Por exemplo, aconteceu um estupro, os caras vão lá e
matam. Roubo de carro ou moto aqui dentro é melhor você ir lá e falar com eles do
que falar com a própria polícia. Teve uma menina, eles roubaram a moto dela no
Estrela Dalva, os meninos correram atrás e acharam ela desmontada lá no Cabral,
sem as rodas. Ou seja, parece que foi o pessoal do Jardim do Lago. Tem muito
colega meu: “Ah, vou lá na sua casa lá só que o seu bairro é perigoso para caramba”.
“Pode ir lá. Não tem problema nenhum. Você pode deixar o seu carro na rua que
ninguém vai mexer”. Ninguém mexe, ninguém vai roubar o seu carro.

Maicon e a vida social dividida entre duas ordens: poder da polícia e poder do tráfico

Teve uma vez que nós estávamos no bar, jogando videogame, naqueles fliperamas.
Hoje não existem mais aqueles fliperamas. A polícia chegou, os policiais chegaram
sem nome de identificação nenhum, não tinha aquele nome, e começou a botar todo
mundo na parede. Teve um amigo meu que estava levantando ainda, ele já gritou
com ele “encosta na parede” e bateu nele. Ele bateu a cabeça na parede, subiu um
galo na hora. E xingando, batendo, e falando: “Nós vamos mostrar quem é que
manda, se é a polícia ou os vagabundos”. E dando chutes, batendo. Perguntou onde
que eu morava, eu apontei para a minha casa, ele me deu um tapa tão forte que eu
caí para o chão. Ele falou: “Tu vai embora para casa, então. Não quero ver você
mais aqui não”. Isso foi várias vezes. Então a polícia, aqui ela não tem respeito pelos

64
Tíner, ou thinner, é um tipo de solvente, mais concentrado que o querosene, indicado para remoção de tintas a
óleo quando acumulada em pincéis e/ou em outros instrumentos utilizados para pintura nos quais a tinta pode
acumular-se. Ele é também utilizado para diluição de produtos a base de nitrocelulose como lacas e vernizes
(Fonte: informações retiradas, em 24 de novembro de 2015, de sites aleatórios de empresas fabricantes de
Tíner que informavam sobre a utilidade do produto).
197

moradores não por causa dessa forma de agir. Ela só faz isso com quem não tem
nada a ver, e alguns com muita violência, muita violência. Com outros, já um pouco,
tipo assim, até passivo demais. Então acaba que vê que tem algo um pouco anormal,
levava o cara e soltava na esquina de cima. Mas isso aí eram os policiais corruptos
que tinham. Você não se sente tranquilo com a polícia te abordando aqui no bairro.
Aqui na comunidade a polícia não tem respeito. E acaba que quem não tem nada a
ver assume o pato só para ver, tipo assim, tá agindo, mas tá agindo com quem não
tem nada a ver. Entendeu como é que é? Isso é uma forma de maquiar o sistema.

Porque hoje a coisa ficou muito complicada. Entrou um sistema diferente, não era só
a polícia local. Veio batalhões de fora, vieram batalhões especializados. Então, hoje,
se ocorrer um fato desse de novo, eles já tem todos os... eles vão de cara naquelas
pessoas da primeira vez, do toque de recolher, que saiu prendendo um monte de
gente aí. Passaram aí fazendo a limpa. Então, assim, eles têm todos os dados. E hoje
preferem ficar um pouco mais omissas, e mais atuantes, a criminalidade. Não é
interferindo mais, mas era um pouco assim, um pouco mais, como é que se diz,
demonstravam mais. Tipo assim, o cara ficava na rua, esparrando, tipo assim, nessa
área aqui ninguém passa. Mais ou menos assim, ficava mais à mostra. Hoje em dia
não, é mais sossegado. Tipo assim está lá, mas fica mais é sossegado. Tipo assim,
pode passar, desde que não atrapalhe. Igual, já aconteceu um fato bacana aí. Tinham
algumas pessoas roubando o comércio, furtos, pequenos furtos, aí o pessoal que
estão no comando, essas pessoas falaram assim: “Não, aqui não rouba. Aqui não é
para roubar”. Deram uma lição neles “não pode roubar”. As casas também não
podem roubar, senão acontece a lição. Já aconteceu o fato de um rapaz estar
roubando casa e eles deram um tiro na mão do rapaz. O rapaz pegou e continuou
roubando. Dias depois eles mataram o rapaz. Teve outra vez que tinha um pessoal da
prefeitura canalizando o córrego na rua de baixo, e nessa canalização do córrego uns
rapazes foram lá e roubaram celular, carteira. Aí o indivíduo passou e falou: “Não
faz isso não. O cara é trabalhador, os caras ganham pouco. Devolve os negócios para
eles”. E essas mesmas pessoas falando que não iam devolver, porque se eles tinham
disposição e que era para o cara correr atrás. Quando deu à noite o cara matou esses
meninos que iam roubar esse pessoal. Então, desacreditou e achou que tinha a
situação sob controle, mas eles não aceitam esse tipo de atitude aqui no bairro.

Maicon e os três macaquinhos: as três leis básicas da rua

A rua ensina como você deve se portar. Porque a rua tem todos os tipos de pessoas,
então você tem que saber conviver com isso. Por isso que eu te falei, a gente não
tem problema em estar saindo na rua e ver essas pessoas, essas pessoas ver a gente,
porque a gente tem que aprender a viver com isso. Porque se a gente não aprender a
viver com isso você está pondo a sua vida num certo risco. Ou você aprende a viver
com ela, com a rua, ou você se submete as situações assim, complicadas. Você tem
que mudar do bairro, você tem que ser expulso. Tem uma mulher lá que foi expulsa
da casa dela por falar coisas que não devia. Teve outra que foi morta porque falou
coisa que não devia. Na realidade, a primeira aula básica da rua é dos três
macaquinhos: cego, surdo e mudo. Não vejo, não ouço e não falo. As três leis
básicas são essas. Esse aí é o princípio. É igual a gente fala, eles estão aí e estão com
a gente na hora que precisa. Não é exposto assim. Está todo mundo, cada um no seu
canto, cada um no seu local, mas aconteceu algum problema, eles pegam e fazem
uma pressão. E até quem não conhece como que é o sistema aqui, o camarada, ele
não mata sem antes passar por tipo um conselho, senão acaba que fica um pouco
complicado para ele também. Até para matar alguém ele tem que ir lá e falar.
198

Maicon: entre o aprendizado escolar e as experiências sociais na periferia

Eu gostava da escola assim, não para estudar diretamente, gostava de ir por causa
dos amigos, das meninas, das brincadeiras. Mas diretamente para estudar, não. Mas
em todas as matérias eu não fui ótimo nem péssimo, era regular, era bom. Um
pouquinho de cada coisa eu sempre me esforcei. Não era o mais burro, mas também
não era o inteligente da sala. Eu fazia o meu dever. A minha parte eu conseguia
cumprir. Por mais que eu não estudava, as minhas provas eram boas, eu prestava
atenção, porque eu aprendo mais ouvindo do que lendo.

Com uns 16, 17 anos, teve uma época que eu não queria saber de estudar. Eu ia para
a escola, matava aula, quando eu tinha 12 anos, 13 anos eu ia normal, mas com os
meus 16, 17 anos já comecei a andar com pessoas diferentes, os meninos chegavam,
a gente ia para a praça e a gente matava aula, ia para a praça comer cachorro-quente
ou saía para pichar também. Já pichei. Hoje não existe mais pichação na
comunidade, mas anos atrás pichador era mato [comum]. Quanto mais pichava,
quanto mais alto for, mais perigoso o lugar em risco de queda que para o cara era o
máximo, eu ia mais por pilha de amigos mesmo.

A violência aproximadamente, de uns vinte anos atrás, sempre teve, mas não era tão
generalizada. Não eram todos os lugares. Hoje, cada lugar que você passa sempre
tem. E antigamente não, mas os locais mais perigosos sempre foi a Sapolândia, o
Morro do Cabrito e a Vila Francisco Mariana. Eram os três pontos assim, chaves.
Mas só que antigamente as brigas eram gigantes. Eles se encontravam em dez, vinte
pessoas e caiam na porrada com paulada, correntes, soco-inglês. Na época de escola
já aconteceu brigas assim, dos meninos de uma sala contra a da outra sala, da 4ª
série contra a 5ª série. Isso sempre acontecia, na hora da saída sempre tinha, então,
um sempre “comprava o boi do outro” [brigava por motivo de terceiros], nunca era
uma briga sozinho. Tipo assim, aquele grupinho ali a gente não mexe, aquele
grupinho é o grupo da pesada, como toda escola tem. Sempre tem aqueles que todo
mundo fica olhando e “nossa!”, é o destaque. Também porque as meninas gostam, e
os professores também tinham até um certo respeito para conversar. O professor
sempre temia um pouco. Hoje está um pouco melhor a escola, em termos disso.
Antigamente os meninos eram mais ousados com os professores, mas parece que
dentro da escola já deu uma diminuída: começaram a mudar a ideia de escola, que
estudar é preciso, ter uma formação melhor é necessário para ser alguém na vida.
Então os meninos, hoje, que estão estudando, estão mais focados em estudar mesmo.
Nos meus 15, 16 anos eu fiquei um tempo para conhecer um pouco do mundo; -
curiosidade de adolescente. [...] Então nessa época eu saí do Maria de Sales e fui
para o Alice Nassif, onde que eu comecei a andar com outros tipos de pessoas
totalmente diferentes, o Nassif fica de frente ao zoológico, no segundo portão. Então
lá a gente tinha a primeira aula, depois era o recreio, depois tinha duas aulas. Eu só
ficava na primeira aula. Do recreio a gente não voltava para a sala. E como era um
pouco longe, a gente invadia um ônibus, abria a porta à força, mais ou menos umas
vinte pessoas, trinta. Era muita gente, e vinha pichando e fazendo muita bagunça. E,
assim, para vim e ir também, então todo mundo juntava. O pessoal que estudava lá,
o pessoal reclamava: “O pessoal do Maria veio para cá e está acabando com a
escola”. (risos). A Alice Nassif. Então o pessoal saiu daqui para lá e acabou. Lá eles
ficaram revoltados. Roubo de celular, roubo de carro de professor. Um amigo meu
levava alicate, nós ‘cortava’ o arame do muro, pulava o muro, caía em cima do
trailer, do trailer pulava para o asfalto. E uma coisa assim, que hoje a gente reflete.
Qual que era o foco? Você ficar uma aula e ir embora para casa? Era melhor nem
entrar. Mas a questão era ser os ‘maioral’. Sempre no recreio tinha briga, eu nunca
fui de caçar briga não, mas eu andava mais com os meninos que caçavam briga. Eu
preferia ser amigo deles. Se acontecesse algum problema, os meninos estavam lá,
iam armados para a escola. Tinha, tinha. As meninas... Sempre passavam como a
gente fala o ferro para as meninas. As meninas seguravam o..., vamos supor, o ferro
chegava, e isso mobilizava, assim, isso dava um alvoroço. E o pessoal, tipo assim
era mais ou menos desse gênero aí. Muitos dessa época aí foram se graduando. Todo
199

mundo se graduou naquilo que investiu, ou seja, na criminalidade ou num curso que
ele estava fazendo. Ou seja, assim naquilo que eles se propuseram a fazer. Então
muitos que estavam já em prática, continuaram. Muitos faleceram. O Tiago, os pais
dele faleceram e ele morava sozinho. Ele tentou ir na igreja com nós, foi um tempo.
Às vezes não tinha comida na casa dele, ele vinha aqui. Teve um dia que ele
apanhou muito na rua, passou com a boca sangrando, me pediu um copo de água, eu
dei ele um copo de água. Aí ele saiu e falou que ia resolver um problema. Depois
saiu da igreja e continuou nessa vida. Teve um dia que a polícia invadiu a casa dele,
ele dormiu na garagem da minha casa. No outro dia de manhã que ele foi me contar
que dormiu lá. Até perguntei por que ele não tinha me chamado que eu o tinha
deixado entrar, ele falou que não quis me incomodar por causa da minha mãe. Mas
era tranquilo lá. Eu falei: “Não tem problema não”. E a rixa que ele teve, ele acabou
falecendo, na época ele tinha uns 20 anos, era roubo de carro, tráfico, assassinatos,
ele sempre se envolveu com isso aí. Teve outro amigo meu também que ele teve
uma rixa também, tomou vários tiros, mas não morreu. Depois que ele levou esses
tiros, ele mudou do bairro, nunca mais eu vi ele. Deve ter mais ou menos uns dez
anos que eu não vejo ele, ou mais. Mas eu sei que ele está vivo. E, assim, outros
estão até hoje no mesmo caminho, vários foram presos e alguns deles são os que
estão no..., no geral estudaram comigo. Eu vejo eles, tenho uma consideração
enorme e eles ficam felizes, a gente toca em assunto de escola, de outras épocas
assim e eles ficam felizes: “Nó, eu fico feliz por você não abaixar a cabeça para a
gente, fingir que não vê a gente. Porque tem muitos que não dá nem ideia. Eu sei
que essa vida que a gente está é complicada, cara, mas a amizade”. Não que a gente
é amigão, amigão, mas também não desprezo, só não faço as mesmas coisas.
Cumprimento e converso, tenho uma consideração porque foi época de escola que a
gente teve, foi época de infância e foi única. Então eu acho que como não apagou da
minha memória, da deles também não.

Maicon, primeiro filho e a inserção na vida adulta: o projeto de vida em família

Quando eu conheci ela, a minha esposa hoje, eu conheci ela estudando. Eu já


estudava e aí ela engravidou e decidimos morar junto. Foi um susto. Eu fiquei feliz e
preocupado “o que que eu vou fazer?”, eu tinha 18 anos, cara. E eu morava num
cômodo só, onde é a minha garagem. Ali era o meu quarto, minha sala e minha
cozinha, o banheiro, ela estava grávida, e ele nasceu e a gente morando lá. Ficamos
um tempo lá. Até ele fazer um ano a gente estava lá ainda. Depois que passamos
para essa casa maior aqui. Na época eu trabalhava num hipermercado, de promotor
de vendas. Depois fiquei desempregado. Fui trabalhar num sacolão com o meu
primo, ganhava em média de 100 reais por semana, só que não era de carteira
assinada. Fui trabalhar, na época, de catador de feijão, ganhava 90 reais por semana,
porque tinha os descontos. O catador de feijão quebrou, fiquei desempregado de
novo. Fui trabalhar de servente. Depois que eu comecei a trabalhar de servente um
amigo meu levou um currículo na empresa que eu trabalho hoje. Vai fazer oito anos
que eu estou lá. Aí que as coisas ‘começou’ a melhorar e ‘dar’ certo para mim. Foi aí
que teve um salário, convênio médico, cesta básica, almoço. Não tinha que levar
marmita mais, a marmita azedava. Ela trabalhava como estagiária numa empresa lá
no CEASA, e depois ela começou a fazer unha. Ela fazia unha. Depois começou a
trabalhar como operadora de caixa. Minha irmã, as irmãs dela, minha mãe
ajudavam. Depois coloquei no SEMA. Ele fez 2º e 1º período. Depois ele foi para a
1ª série e eu fiquei pagando escola particular para ele. O primeiro período, o 2º
período, a 1ª série e a 2ª série. Da terceira em diante conseguimos vaga para ele no
Sarah Kubitschek. Eu abri mão de muita coisa, de luxo pessoal, o luxo coletivo.
Ah... Por exemplo, roupas. Passava um ano sem comprar roupa, tênis. Às vezes
eram festas, viagens que a família ia e eu não ia por não ter dinheiro. Não por falta
de dinheiro, porque o dinheiro era para ser investido em outras prioridades. Às
vezes, final de semana é sítio, é cachoeira, essas coisas assim a gente foi se
privando.
200

Maicon, a ascensão no trabalho, o caminho para a consolidação do projeto

Quando a gente chega numa empresa grande e é novato, a gente é muito visado,
ainda mais quando você está passando por uma certa necessidade anterior e ainda
recente, e até estabilizar demora um pouco, você quer mostrar o máximo de si para
poder dar uma vida digna à sua família. Você quer manter seu emprego, você busca
aumentar um pouco a sua renda familiar, então a gente tem que dedicar ao máximo o
nosso emprego. Alguns companheiros não entendem esse ponto de vista, você
trabalhar, você cumprir seu horário, você não faltar, cumprir as ordens direitinho que
o chefe passa, a gente é visado de puxa-saco, baba-ovo. Vários nomes a gente leva.
Sempre trabalhando. Às vezes teve um deslize assim, mas não era o foco principal.
O foco principal é mostrar que a gente é capaz. Eu cheguei lá como auxiliar de
armazém, na época, oito anos atrás o salário mínimo estava em torno de R$ 500,00
dias dava uma comissão de R$180,00, R$170,00, dependia do que você tivesse de
produtividade. Então dava uma média de quase R$ 400,00 reais a mais, tirava mais
um salário de produção.

Eu botei na minha cabeça que eu tinha que prosseguir, melhorar e conquistar,


mostrar que eu era capaz. Correr atrás. Não foi fácil. Estou batalhando. Abri mão de
muita coisa para poder obter alguma coisa. Hoje muitas pessoas falam: “Ah, que
você é magnata, você é sócio da empresa”. Nossa! Ninguém sabe o que você passou
para você estar onde você está mais ou menos hoje. “Você está construindo outro
andar na sua casa, você está com carro”, mas nada vem de graça. Ninguém vê que
você comeu o pão que o diabo amassou. Às vezes ia trabalhar, estava a fim de tomar
um refrigerante, não comprava, “não posso comprar porque amanhã tenho que
comprar pão para o meu filho”. O refrigerante é R$2,00. Então eu deixei de viver
para mim. Igual, lhe falei, deixar de viver para mim para por as coisas dentro de
casa. Eu tinha que comprar remédio para o meu filho. Eu tenho amigos assim, que o
filho está precisando de um dentista, está precisando de um remédio para matar
piolho, mas preocupa só com si próprio. Esbanja o que não tem, faz coisas que não
tem lógica e só pensa em si próprio. Esqueceu-se do amor pelo próximo, da
necessidade, que o próximo depende dele. E, filhos é presente de Deus para nós, se
nós não cuidarmos deles, o mundo cuida.

Você tem que trabalhar. Aí que está a chave do negócio, mas por a gente trabalhar
para buscar uma comissão melhor, eles ficam pegando no pé dos que não tem
compromisso ou que não estão passando certa dificuldade ou que estão acomodados
com aquele cargo. Eu, diferentemente, busquei tirar minha carteira, porque para
operar a máquina precisava de carteira, corri atrás, tirei minha carteira B, conversei
com meu superior e pedi uma oportunidade. Fui para operador de transpalete, fiquei
mais ou menos um ano e não estava satisfeito ainda, almejei mais, um cargo maior,
que era operador de empilhadeira. Eu estava trabalhando e ficava olhando os
operadores trabalhando: “será que um dia eu vou estar podendo operar uma máquina
dessa?”. Ela sobe doze metros de altura, a armazenagem dela. E conversei com meu
encarregado de novo, me esforcei, corri atrás e consegui a oportunidade de novo. As
criticas continuavam: “Ah, que você é peixe, você é puxa-saco. Tem fulano que tem
dez anos aí e não conseguiu a vaga. Você, com dois anos, conseguiu a vaga”. Mas
vai do esforço e da dedicação de cada um, se o cara tem dez anos lá, porque que hoje
ele está no cargo? Porque é acomodado. E assim foi, passei para operador de
plataforma também, trabalho aéreo, plataforma de elevação de trabalho aéreo. Você
trabalha em cima dela. Ela sobe até 14 metros de altura. A operação dela é superior,
não é no solo. A empilhadeira sobe para fazer todo tipo de trabalho: trabalho
elétrico; levantar eletricista ou encanador. Às vezes tomba alguma mercadoria, a
gente vai com a plataforma. Agora o encarregado já me procurou. Nem precisei
pedir essa vaga também, ele já falou que eu estou na lista dos que vão operar a
empilhadeira de plataforma articulada. Ela é o dobro de metros, ela é 25 metros de
altura. Então meu nome já está na lista para estar fazendo o curso dela. Então já está
vindo uma graduação, tipo assim, um autorreconhecimento, já viram o meu trabalho
e sabem da minha seriedade com o meu trabalho, da responsabilidade que eu tenho e
201

eles já colocam na lista. Igual à plataforma, eles que me chamaram também, agora a
articulada tem uma dela e uma sanfonada. Então você vê uma empresa dessa
dimensão, três mil e poucos funcionários. No galpão tem muito trabalho. Mas essa
articulada vai ser para o galpão novo que fizeram na parte lateral, onde lá vai ser
robotizado. É empresa alemã, a Schaeffler, e lá vai ser robotizado. Não sei se vai
gerar desemprego, porque a separação hoje é manual de mercadoria, produtos, vai
fazer isso muito rápido, numa velocidade incrível. No Youtube [Youtube.com] tem
alguns vídeos similares. Depois eu vou tá te mostrando como é que funciona. Lá
também tem mexicanos trabalhando, que são terceirizados da Schaeffler. Acho que
eles terceirizaram devido os mexicanos receberem em peso. Então um real hoje vale
seis pesos.

Eu estou trabalhado com eles na parte operacional. Como eu opero máquinas, eles
precisam de uma assistência. E também foi mais uma surpresa que eu tive, aonde eu
fui questionado por companheiros também, quarenta a cinquenta operadores de
empilhadeira porque que eu fui chamado para acompanhar eles? O trabalho do dia a
dia, para descer peças, para subir peças, na montagem de todo o material. Eu fui
chamado para estar trabalhando com eles. Às vezes tinha que ter algum trabalho
manual, mas às vezes mudava o ajudante, não era continuo, mas o trabalho
operacional, tipo assim, que trocou meu horário, que me colocou diretamente com
eles somente fui eu. Foi uma experiência bacana por estar conhecendo um pouco
mais da parte estrangeira, do qual eu não teria condições de estar indo para outro
país conhecer. Tive a oportunidade de conhecer aqui e fazer amizades. Porque entre
eles, eles não têm um relacionamento bom, diálogo entre eles. Eles chegam de
manhã um com o outro e não dá bom dia, não dá boa tardem nada um com o outro, e
com os brasileiros eles já dão bom dia porque nós somos mais aconchegantes,
relacionamos melhor. Eles não têm afinidade, não tem esse aconchego de chegar e
abraçar, não tem essa liberdade.

Maicon, entre os sonhos e os limites da empilhadeira: o baixo orçamento e o custo


de vida metropolitano

Olha, dos sonhos que eu tenho /é terminar a minha casa, pagar o meu carro, eu estou
construindo essa parte, terminar minhas dívidas e poder, tipo assim, minha esposa
hoje trabalha, o meu desejo é que ela ficasse em casa tomando conta da casa e do
meu filho, mas a necessidade não permite isso, aí sacrifica eu, sacrifica meu filho,
sacrifica ela. Creio que depois da minha casa concluída, o meu carro concluído, eu
vou poder desfrutar um pouco mais de mim. Porque hoje eu não vivo para mim. A
realidade é essa, eu não vivo para mim, eu vivo para a minha casa, para o meu filho,
para a minha esposa, para a célula. Tipo assim, “Maicon, hoje você vai fazer o que
você quer”. De falar assim: “Essa semana é sua. Se você quer pescar, você vai, se
você quer viajar, você vai. Vai fazer isso, aquilo”, eu não tenho condições de fazer
isso. Não tenho dinheiro, não tenho tempo, não tenho condições, então não posso me
comprometer a fazer, igual violão, morro de vontade de me aperfeiçoar com o
violão, de fazer rum curso de inglês, teologia, mas não tenho tempo, não tenho
tempo, não tenho verba, porque o orçamento já está todo comprometido. Eu saio
04h40 da manhã, eu chego lá as 05h00 horas, tomo café, 05h30 tem que bater o
ponto. Largo às 14h15, chego em casa as 14h40. Pego cedo, mas largo cedo. Às
vezes eu durmo, às vezes não. Muito difícil eu dormir.

Eu acho que hoje eu estou com praticamente 28 anos e vou fazer dez anos de casado.
Meu filho vai fazer oito. Então acho que para eu conseguir estar com o casamento
até hoje, acho que a gente firme até hoje tem que estar com a cabeça muito boa, se
estruturar no trabalho. Hoje dou conselhos para pessoas às vezes com pouca
diferença de idade minha e eles não entendem o que a vida já me fez passar, já me
fez sofrer. Na época que eu trabalhava na empacotadora de feijão eu ia de bicicleta
para economizar o vale-transporte. Eu trabalhava como servente lá no Camargos, às
202

vezes a comida azedava. Então passei já algumas dificuldades em casa. E o que mais
às vezes me machucava assim é de não ter condições de dar o que meu filho pedia,
ou minha esposa. Na época que eu não tinha carro, o meu filho gostava, aí tinha que
ficar pedindo favor os outros. Às vezes pegava carona com os outros, festa, os meus
parentes ofereciam carona. Já aconteceu de ir para festa e falarem que só tinha lugar
para a minha esposa. Se ela quisesse ir, tinha uma vaga e eu ficaria de fora. Isso aí
você se sente impotente, incapacitado de fazer alguma coisa. Mas eu guardei muitas
coisas para mim. Algumas coisas eu não compartilho com a minha esposa.

A minha esposa pega em média de um salário e meio por mês, eu recebo mais ou
menos, hoje, em torno de três salários e pouquinho, então, tem os descontos, ela faz
unha também, ajuda um pouco na mistura da semana. Às vezes um sacolão, uma
carne. Ela fez unha ali, pé e mão 20 reais, 20 reais ali. Já faz um sacolão. Ela larga
trabalho duas horas, tem o resto da tarde livre, quando pinta unha ela pega e faz.
Quando tem oportunidade pega umas latinhas, porque às vezes também não é em
todo lugar, a gente se sente constrangido também. Mas quem traz mais é minha
esposa, porque no trabalho dela, ela trabalha no caixa, as pessoas jogam no lixo do
caixa [a latinha], jogam lá e ela pega. Tipo assim, nem vê para onde que está
levando. Todo dia ela traz uma sacolinha. Então ajuda bastante na renda. Eu sempre
faço alguns trabalhos. Sempre que pinta alguma coisa eu procuro fazer, vender
alguma coisa. Eu já peguei produtos da Natura para vender junto com a minha
esposa, já peguei camisas com o meu irmão para revender, só que dá um pouco de
trabalho pra você receber, porque ninguém quer pagar à vista. Você tem que ter um
dinheiro para o giro, um dinheiro sobrando. A Natura é 21 dias na boleta e a pessoa
pede 30, 60 dias, dividir de duas vezes, e às vezes nem todo mundo paga. É uma
coisa que dá dinheiro.

Eu tentei trabalhar com a Polishop, mas ainda não tive a coragem. Só que é
complicado eu chegar para você e falar assim: “Olha, tenho um produto que eu
tenho para te vender aqui”, ele está em corpo, presente, você está vendo ele. Só que,
agora, uma está lá no site, você está vendo é uma foto. Eu te vendo, e você fala
comigo que estragou, e aí? Como que eu vou ficar com você? Tipo assim, eu teria
que ter uma disponibilidade muito boa de tempo, só que como é um site virtual, com
o notebook no meu trabalho, ou com o celular, eu vou lá e mostro “isso e isso”.
Onde eu for. Se eu for numa festa eu posso estar vendendo, se eu for à igreja eu
posso estar vendendo, na faculdade, na escola. Onde for eu posso estar vendendo.
Não precisa de você ir lá e bater cartão. Mas igual o lugar que a gente mora, eu visei
foi o local onde a gente mora, o pessoal aqui não conhece muito disso, internet.
Seria bacana, por exemplo, para quem mora em uma região mais nobre, aquelas
coisas de grill que tem na Polishop, aquelas escadas todas chiques, aqueles negócios
de polir. A fritadeira que não usa óleo. Uma das mais requisitadas é a fritadeira que
não usa óleo. E frita ótimo, perfeito sem óleo. O rapaz tem uma só para fazer
demonstração. Ele frita batata, frango, o que for. Então, assim, onde eu moro aqui
como é que eu vou vender um produto deste? Aqui, não tem clientela para isso. O
problema é o seguinte, a Polishop vende só no cartão de crédito. Tem muita gente
que vai pedir “passa o seu cartão que eu te pago”. Então eu não vou ficar passando o
meu cartão. Tem muita gente com o nome sujo [endividada/inadimplente], e falam:
“Eu até compro, mas eu não tenho cartão não”. E aí? “Você aceita cheque?”. Não
aceita cheque, é só cartão. Ele que tem que entrar no site, ele que tem que fazer todo
o trabalho. Tem muitas pessoas aqui sim, mas o que acontece, a realidade é que
muitas pessoas vivem de aparência.

Tem pessoas que tem carro e que vendem o almoço para comprar a janta e pagam a
prestação do carro todo mês. Fora é uma coisa, quando está lá na igreja é uma coisa,
mas você vai conhecer a vida pessoal e é outra. Na casa da pessoa, você chega lá, a
mesa é uma porta em cima de um caixote, a mesa da cozinha é um pedaço de vidro
quebrado. Então, se não tem condições de arrumar a casa primeiro, não tem porque
comprar um carro... Outros vão lá e compram um Honda Civic, mas não têm
dinheiro para fazer seguro para o carro. Como você tem um Honda Civic e não faz
seguro? O meu carro não é um carrão, é um carro médio e eu tenho seguro pelo Itaú.
203

E eu vejo um colega meu falar: “Ah, comprei um tênis de R$500,00/ R$700,00 e


vou pagar de tantas vezes”. Eu penso assim comigo, eu não compro nunca. Porque
eu tenho que comprar para mim, para a minha esposa, para o meu filho, tenho que
comprar roupa. Então com 700 reais eu comprar um tênis? Eu compro para a minha
família inteira e ainda compro alguma roupa. Porque também você ficar gastando o
que não tem é foda, porque depois você passa apertado, e às vezes, mulher é o
seguinte, todo casamento, toda festa quer uma roupa nova. Homem não tem disso.
Aí compra um vestido de R$ 700,00, uma sandália de R$500,00/ R$ 600,00. Semana
que vem tem outro casamento, aí compra outra. Não pode repetir. Então compra
nem que seja uma réplica. Réplica perfeita. Compra uma réplica lá. Esse tênis meu
aqui eu paguei R$50,00 nele. É um Nike. Tipo assim, está no pé hoje, está com a
calça, está bom. Não descolou. Qual que é o segredo desses tênis que não são
originais? Você lavar e deixar secar na sombra. Se você deixar secar no sol, ele
esquenta a cola. E outro segredo, o detalhe que a gente olha também, é se o tênis é
costurado. Por mais que ele for Paraguai, mas se ele for costurado, todos esses tênis
meu aí são do Paraguai, os da minha esposa também. Hoje a réplica é tão perfeita.
Você ficou sabendo da Elmo [Sapataria tradicional e popular de Belo Horizonte]?
Não foi esse ano. Acho que foi ano passado. Eles apreenderam mais de seiscentos,
setecentos pares de sapatos falsos. Ela vendia como original. Esses que custam
R$50,00 aqui, ela vendia a R$500,00 lá. E ela pagou provavelmente 20 reais. Ela
vendia como original. Ela comprou um terço original e o restante falso. Hoje o cara
não consegue saber se o tênis dele é original ou falso. Como que você vai me provar
que não é original? Quem comprou fui eu. Aí já é difícil. O que sai caro é a marca,
não o produto. É para levar aquele nome, aquele slogan lá é que deixa ele caro.
Lacoste. E nesse estilo que o pessoal usa muito na periferia, às vezes, assim
bermuda, chinelo, boné aba reta.

E o engraçado aqui é o seguinte, quem tem a condição financeira menor, para


mostrar para os outros que tem condições, compra essas coisas caras. Às vezes está
numa festa e “nó, paguei tanto num sapato”. E às vezes quem tem condições mesmo
nem toca no assunto. Compra um sapato de R$ 500,00 e nem fica querendo mostrar.
Mas o cara, para querer mostrar “nó, paguei 700 contos nesse tênis aqui”. Eu vendia
essas camisas que são réplicas da Billabong, essa é uma Ecko. Eu a vendia a R$
20,00. Os meninos falavam: “Mas ela é tão barata assim?”. Eu falei: É, uai!”. Isso.
As camisas que eu vendia eram réplicas. Muito bem acabadas e tal, até a etiqueta é
da Billabong. Tipo assim, é tudo réplica, e quem comprar acha que é original. Eu
vendi foi muitas delas. Aqui, olha, essa aqui é da Ferrari, é uma réplica tão idêntica
que se eu pedir R$200,00 numa camisa dessa eu acho. Eu tenho dois relógios aqui,
mas é Paraguai [produto falsificado produzido na China] também. Esse aqui, e esse
aqui. A durabilidade deles é boa. Eles não podem é molhar.

6.2.1 Considerações sobre a Trajetória de Maicon

Em comparação às outras três trajetórias apresentadas anteriormente, pode-se dizer


que Maicon transitou menos por espaços sociais fora da periferia. Mesmo no período em que
morou com seu pai residiu em áreas classificáveis como periféricas, a exemplo do Pedra Azul.
A mesma lógica se percebeu nos trânsitos que desenvolveu em função do trabalho,
praticamente, todos eles em periferias. Maicon não chegou a relacionar-se de modo mais
horizontal com pessoas de outras classes sociais noutros espaços metropolitanos como
fizeram Miro e Faro por meio da arte, cultura e consumo de drogas ou Suzano através das
relações estudantis e profissionais. Na prática, esse menor trânsito social metropolitano,
204

implicou em uma trajetória orientada de forma contundente pelo território socialmente


segregado.
Mais que os outros três jovens biografados, Maicon demonstrou em sua narrativa estar
conformado às regras de convivência e, por extensão, à violência imposta pelo narcotráfico
aos demais moradores do bairro. Quando comparada às trajetórias e percepções dos demais
jovens que entrevistei, suas posições são menos contundentes, em alguns momentos
parecendo ser menos crítica e menos influenciada pela onda da redemocratização que descrevi
nos capítulos anteriores como “era dos direitos”. Ao mesmo tempo, sua força reside na forma
como mobiliza e utiliza os laços sociais que pôde construir através da religião, notabilizando-
se a partir desse lugar de relação em comparação a Miro, Faro e Suzano. Seus percursos de
vida são marcados assim pela congregação de três grandes campos de relação: a família, a
igreja e o trabalho.
Nas relações de trabalho Maicon aderiu com afinco, mais que estes três jovens, a
condição de “sacrifício” como algo a ser aceito e seguido, embora por vezes acredite que não
seja recompensado como julga ser merecedor, mas era justamente a situação de desequilíbrio
entre trabalho e ganhos que caracterizava sua situação de sacrificante e sacrificado. Os
campos de relação organizam seu percurso e constroem assim uma imagem moral de Maicon.
Em sua narrativa a ideia do sacrifício congrega a dignificação pelo trabalho, a
responsabilidade para com a família e de devoção para com a Igreja como campos
interligados. De certo modo, Maicon encarnava a Imagem do “cidadão de bem” colocada por
Miro, ou a do “puxa-saco” ou “baba-ovo” colocada por Faro como maneiras de criticar a
condição de exploração e subserviência que envolvem os postos disponíveis e ocupados, em
geral, pelos jovens da periferia no mercado de trabalho metropolitano. Embora toda a
dedicação e devoção de Maicon ao trabalho, seu salário era insuficiente considerando o
elevado custo de vida metropolitano, tornando o projeto de constituição da família um fardo,
um sacrifício, inclusive para a realização de projetos ou sonhos individuais.
O tempo de Maicon estava todo comprometido. O trabalho consumia muito mais que
40 horas semanais. Além da empilhadeira, nas “horas vagas”, ele dedicava-se à construção da
casa, às vendas de produtos como roupas, relógios, às células e ao convívio religioso mediado
pela igreja. A forma como geria seu tempo demandava um amplo espectro de atividades
coletivas e comunitárias, pouco sobrando contudo para momentos reservados para si mesmo.
Essa mesma característica de gestão do tempo foi identificada por Jessé Souza (2009) como
sendo uma condição social pertencente à “ralé” brasileira, uma população fadada ao trabalho,
sem com isso, escapar de fato da condição de pobre na sociedade. Na condição de ralé, as
205

pessoas trabalham desde a infância até a velhice, pois os rendimentos adquiridos por salário
ou aposentaria eram/são insuficientes, havendo sempre a necessidade de buscar rendimentos
extras, ou seja, mais trabalho: continuava no sacrifício.
Essa economia do trabalho exaure os corpos, tornando-os rapidamente fragilizados,
esgotados. Na contramão, alimenta-se a necessidade das múltiplas jornadas de trabalho tendo
em vista os custos da vida na cidade, ou na metrópole, e a demanda de consumo encarnada no
cotidiano ou no extraordinário. O acesso aos bens como automóvel e outros domésticos
comprometia seu parco orçamento, exercendo uma pressão sobre sua vida, conduzindo-a
ainda mais para dentro da periferia, pois, com isso, crescia sua dependência em relação ao
trabalho e em relação à manutenção dos laços comunitários que representavam também um
meio de aquisição de bem estar social. Para superar esses desafios, bastava manter a vida
como estava. Como mencionou “o tempo cura tudo”, ou seja, nessa perspectiva ele reconhecia
a falência da sua capacidade de agência indivíduo frente à estrutura, seu discurso revela o
sentimento de impotência do jovem da periferia, do pai de família em relação ao seu poder de
transformar a sociedade. Ao mesmo tempo em que Maicon experimentava um maior acesso
ao consumo percebido por ele como um sinal de vida melhor, ele experimentava o problema
do agravamento da violência na sociedade, e assim, o sinal de que a vida também mudara
para pior.
Maicon aderiu com naturalidade à “lei dos três macaquinhos”, a lei do silêncio, seus
percursos de vida foram orientados também pelas relações de medo e de insegurança mútua
decorrente do descontrole da violência por parte do Estado e uso privado da força por grupos
criminosos instalados no bairro. Desde a infância ele buscou em grupos delinquentes
proteger-se contra as brigas na escola e grupos delinquentes do bairro. E quando adulto, disse-
me sentir-se protegido por conhecer muitas pessoas que estavam envolvidas com a
criminalidade, ele via essas relações como positivas “[...] se você tiver alguém que é um
conhecido seu que é o dono da boca, o traficante ali, então você está tranquilo, você sabe que
não vai ter problema”. A fala de Maicon também coloca em evidência a seguinte questão: se é
vantajoso conhecer um dono de boca, é desvantajoso não conhecer, logo, um motivo a mais
para justificar a permanência no bairro, pois, mudar para outras periferias não seria uma boa
opção. Teria a desvantagem de não conhecer o “dono da boca”. O mesmo pode se dizer em
relação à comunidade religiosa, os vínculos, a rede social mantida por Maicon, ele
dificilmente reconstruiria novamente noutro lugar como o fez por toda a vida no Estrela
D’alva.
206

Tendo a periferia como princípio, meio e fim de suas ações, Maicon encontrava no
próprio bairro, algum tipo de projeção social, pela conquista de capitais simbólicos
valorizados no respectivo contexto. Os laços que havia construído durante os anos de
convivência no bairro, ainda que não eliminassem o medo e a insegurança frente ao avanço do
narcotráfico e dos embates deste com policiais, ainda o protegia no sentido de não ser um
estranho. Era um “trabalhador”, um “pai de família”, “homem da igreja”, construções que
além de adjetiva-lo dentro do mundo social, também enunciavam sua trajetória de vida no
presente e a forma como seria lido pelos vizinhos. Os laços confirmavam seu pertencimento
ao mesmo tempo em que lhe conferiam alguma estabilidade frente às tensões e disputas.
Na igreja era líder de célula, um posto que conferiu a ele um status semelhante a de
um conselheiro, quase um sub-pastor que realiza trabalho de escuta e aconselhamentos como
fazem padres e pastores junto à pregação religiosa. Em função da relevância da esfera
religiosa no Estrela D’alva, a detenção de um posto na instituição era uma forma de projeção
da imagem pessoal do indivíduo frente aos seus pares. Embora ainda em fase de construção e
sem acabamento externo, Maicon investia todo o seu relativo parco recurso financeiro na
construção de sua casa e equipamentos domésticos. Nas partes já concluídas havia
investimento em acabamento como piso em porcelanato, banheiro com box de vidro, teto de
gesso, telhado colonial, além de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos como geladeira,
televisão, videogame, computador, além de sofá, cama, armário de cozinha e demais peças do
mobiliário. Seu esforço era voltado não só para o bem estar de sua família, mas também para
a vida pública da periferia. A etnografia mostrou que, em um ambiente de relativa pobreza,
generalizada, como o Estrela D’alva (território do CRAS), há um enorme esforço das pessoas
em projetar uma imagem de prosperidade. Isso era visível no tráfico de drogas onde as
correntes, motos, tênis e equipamentos celulares eram exibidos ou na porta da igreja no culto
de sábado à noite, ou no de domingo, onde a fileira de carros lustrados estacionados e as
pessoas com vestidos longos, ternos ou roupas esportivas transitavam com graça e perfume.
Durante a entrevista Maicon contou-me sobre o efeito das “aparências” na periferia e
disse-me com certo orgulho o lhe dizem outros moradores do bairro, “Ah, que você é
magnata, você é sócio da empresa”, “Você está construindo outro andar na sua casa, você está
com carro”. Por outro lado, Maicon completou sua fala dizendo “Ninguém vê que você
comeu o pão que o diabo amassou.”, e assim ele próprio reconhecia que essas “aparências”
eram enganosas, não condiziam com a realidade vivida pelas pessoas. Em certa perspectiva,
embora todas as conquistas, de ser visto como “magnata”, Maicon continuava a comer o pão
que o diabo amassou, só que, de modo diferente, acompanhado de coca-cola e catchup. E, se
207

por um lado Maicon sentia seu esforço recompensado pelo acesso ao consumo e a mobilidade
adquirida dentro empresa, seu salário não subiria mais, pois, já não havia empilhadeiras acima
da que ele operava. Assim, Maicon via com pessimismo as possibilidades de aumentar sua
renda e de conseguir ter tempo e dinheiro para realizar projetos individuais, de ter tempo para
si.

6.3 Considerações, trajetórias de Maicon e de Suzano

As trajetórias de Maicon e Suzano apresentam outras faces da experiência juvenil na


periferia: a singularidade e a diversidade de possibilidades de vida e ao mesmo tempo
configuradas pelo compartilhamento de percursos comuns: a igreja, o contexto de crime e
violência e a convivência comunitária. De modo distinto suas narrativas expressaram também
a centralidade da família enquanto projeto de vida. Embora este projeto não tenha sido
escolhido de antemão por nenhum deles, ambos possuem a transição para a vida adulta
orientada para a manutenção dos vínculos e laços familiares e para edificá-lo investiram seus
esforços em carreiras estudantis e/ou profissionais e ocupacionais. A possibilidade de trilhar
a vida a partir da formação de um grupo familiar próprio como fez Maicon aos 18 anos,
reorientou os rumos de suas ações nas esferas pública, religiosa e profissional. Enquanto
Suzano, desde criança teve seus percursos orientados para a vida em família, uma escolha de
sua mãe da qual ele aderiu com reciprocidade.
É importante reiterar aqui um pouco da concepção teórica de projeto de vida adotada
nesta tese. Os projetos não são escolhas estritamente dos indivíduos, são o resultado
combinações complexas de experiências individuais e coletivas, decorre da estruturação do
habitus (Bourdieu, 2000). Não se trata da ação racional conscientemente formulada e
escolhida a priori pelos indivíduos. Ao mesmo tempo, o projeto de vida é dependente da
capacidade de agência dos sujeitos perante as circunstâncias sociais (GIDDENS, 1991). A
ideia de projeto tem haver com as formas de expressar possibilidades, alternativas de vida
vislumbradas no horizonte de oportunidades socialmente estabelecidas pelos indivíduos
(GIDDENS, 1991).
Os dois jovens apresentados neste capítulo, de maneira distinta, projetavam suas vidas
também para o bairro e as pessoas do lugar onde moravam. Suzano desenvolvia três projetos
sociais focados em políticas de bem estar social e debate sobre desigualdade social e racial,
todos os três destinados aos moradores do bairro, principalmente aos da Vila Francisco
208

Mariano. Por outro lado, para Maicon, devido ao localismo de suas relações sociais, realizou
poucos trânsitos sociais metropolitanos (fora da periferia), o Estrela D’alva representava a
“opção” natural onde passaria sua vida, sair do bairro custaria muito caro, pois sente-se
dependente dos laços estabelecidos na periferia, mantinha uma vida religiosa ativa e
considerava vantajoso conhecer as pessoas, inclusive as envolvidas no narcotráfico. De modo
distinto, Suzano sentia-se com uma obrigação moral em relação ao futuro da população da
periferia que, como ele, era predominantemente negra, e assim, continuava morando no bairro
onde exercia ações de cunho político-social. Enfim, dois caminhos distintos, que partem de
orientações diferentes e que levavam ao mesmo lugar: o Estrela D’alva.
209

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória de vida pensada como possibilidades de cursos de vida, ou seja,


possibilidades de participações em sociedade, ao mesmo tempo, tais possibilidades
configuram-se segundo as formas de estratificação social estabelecidas, culturalmente, no
caso brasileiro por classe social, termo que esconde os aspectos étnicos, estes que, por detrás
da pobreza suscita a raiz da desigualdade extremada, componente principal da distinção social
em tal sociedade. Tendo em vista tal acepção, o jovem da periferia teve uma participação
peculiar na história social da sociedade metropolitana brasileira, ocupando postos de trabalho
específicos, preenchendo as vagas nas penitenciárias e inflacionando as taxas globais de
homicídios registrados. Apesar disso, seu curso de vida, a forma como ele será traçado é
produto também das subjetividades, das pessoas que atuam como agentes.
A infância e juventude vivida na periferia implica o convívio em espaços como a
escola, a praça, a igreja, o hip-hop que, representam espaços de trocas e de disputas de ideias
a partir dos quais os indivíduos elaboram suas experiências de vida, e assim, partilham
experiências comuns. A partir de tais sociabilidades eles desenvolvem habilidades e
constroem conhecimentos próprios do universo social periférico (marginal/ segregado),
conhecimentos necessários para o desenvolvimento da vida local. Ao mesmo tempo, a
periferia não é um limbo, u espaço isolado, e deste modo, tais saberes são também conectados
a outros espaços a outras lógicas de ação. AS experiências dos jovens na periferia evolvem
saberes universais, a partir dos quais acessaram mercados externos, fora do contexto social da
periferia metropolitana, alicerçados pelo modo de vida local, assim, o modo de apreensão de
outros saberes/conhecimentos ocorre a partir daquele lugar, da periferia.
Quem traça o sentido do curso de vida é o indivíduo, por outro lado, o curso é, de
diferentes formas conformado pelas estruturas sociais que exercem pressão sobre as
possibilidades de vida, sem com isso determina-las. O alcance da ação do indivíduo, depende
de seus capitais, da sua capacidade de agência, bem como do hábitus, dos laços afetivos
instituídos, das redes sociais a partir das quais acessa os bens sociais.
As trajetórias juvenis apresentam inúmeros aspectos que podem servir como mote para
explicar e compreender realidades sociais, sem nunca esgotá-las, obviamente. Assim, no
percurso do trabalho, busquei apresentar uma convergência entre a conformação da região
metropolitana de Belo Horizonte e aspectos recentes que marcam os modos de vida e
sobrevivência na periferia dessa mesma região a partir da trajetória de vida de quatro
interlocutores que, em seu conjunto, apontam para a multiplicidade de percursos,
210

comprometimentos, constrangimentos e projetos de vida.


Para esta tese escolhi dois aspectos estruturantes dos percursos de vida dos jovens
biografados que denomino aqui como trajetória-sacrifício e como trajetória-orientada-para-
dentro. Tratam-se de duas dimensões distintas que se retroalimentam e, se traduzem como
uma condição estrutural por meio da qual Miro, Faro, Maicon e Suzano transitaram para vida
adulta a partir das relações sociais que estabeleceram no ambiente metropolitano de Belo
Horizonte. A trajetória-sacrifício representa o peso da condição de subalternidade que os
jovens da periferia (em especial aqueles marcados como “preto” e “favelado”) experimentam
no contexto da estratificação social na região metropolitana, eles ocupam as posições e/ou
papeis sociais que exigem “sacrifício”, abdicação, recusas e reorganização dos projetos de
vida, voluntárias ou involuntárias.
Em um “mercado restringido” (CARDOSO; FALETTO, 1975, p.124) e estruturado
por um modelo de desenvolvimento econômico excludente (KOWARICK, 1979) os jovens da
periferia65 têm a maior parte das oportunidades relacionadas à inserção em ocupações formais
e informais que exigem menos qualificação profissional ou escolarização mínima, como
atendentes, garçons, auxiliares de cozinha, lavadores de carro, gari, coleta de material
reciclável nas ruas, carga e descarga de caminhões, em serralherias operando máquinas de
solda, como pintores, enfim, uma montante de ocupações que oferecem salários baixos em
relação custo de vida metropolitano e ao volume de trabalho e desgaste físico envolvido, e
assim, assume um tom de sacrifício.
Segundo verbetes presentes no Dicionário da Língua Portuguesa Houaiss (2009, p.
1.692) sacrifício pode significar “renúncia voluntária ou privação voluntária por razões
religiosas, morais ou práticas”. Na antropologia o sacrifício assume uma conotação diferente,
da qual compartilho entendimento, segundo Girard (2000) se trata de um fundamento das
sociedades primitivas, uma prática necessária para manter um equilíbrio social e é
simbolizada pelo ato de violência, o sacrifício reparador. De acordo com este autor, a “[..]
imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger,
canalizando-a para outros, cuja morte pouco ou nada importa.” (GIRARD, 2000, p. 15), ou
seja, tais seres servem como bode expiatório, e não são eles quem escolhem serem
sacrificados. O mesmo ocorre com os jovens da periferia, eles não escolhem isso. Suas
trajetórias evidenciam, ao mesmo tempo, uma forte disposição ao sacrifício voluntário e isso
pode ter relação com a presença maciça da ideologia da religiosidade judaico-cristã na vida

65
Não é uma condição exclusiva das populações jovens, e sim o horizonte de expectativas laborais comuns a
estes sujeitos.
211

social da periferia, na qual o sacrifício é tido como um meio para se atingir a salvação, desde
que seja uma ação voluntária.
Na trajetória de Maicon, ele se sacrificou para dar conforto à sua família, ele se dispôs
a bancar sua vida familiar a partir de um padrão que de consumo fundamentado pela tríade
casa própria, automóvel, uma grande TV e geladeira. Tudo isso supostamente sustentado
pelo emprego “estável”, com carteira assinada. A casa mobiliada e equipada com
eletrodomésticos, as roupas réplicas de grifes mundialmente famosas, tudo isso sustentado por
uma narrativa de sacrifício legitimada pela retórica e pela prática religiosa da qual Maicon
manteve-se adepto. Ele adotou um tipo de comportamento ascético no sentido da ética
identificada no protestantismo por Weber (2009), que representa uma forma de compreensão
do mundo e da vida na qual o empenho e sucesso no mundo do trabalho refletiriam
diretamente o respeito para com Deus e a possibilidade de salvação.
A definição apresentada no dicionário etimológico on-line66 o termo sacrifício tem sua
origem no latim sacrificium, palavra composta por sacer e ficium cujo significado literal seria
"ato de fazer/manifestar o sagrado", ou, "ato de passar da esfera do profano para a esfera do
sagrado" que na língua portuguesa tem o sentido de "privação, voluntária ou forçada, de um
bem ou de um direito". De muitas formas a experiência social juvenil na periferia
metropolitana apresentou-se como um estar no mundo por meio do sacrifício, de
naturalização ou de crítica à privação voluntária ou forçada de um bem (material ou
simbólico) ou de um direito instituído formalmente ou pelos costumes. Esse foi o ponto de
inflexão de Faro, por exemplo, ao notar entre os jovens de outras classes sociais, alunos do
colégio particular católico, o direito de curtir a vida do qual eles dispunham e que, em certo
sentido, era interditado a Faro. Na sua percepção, era como se esse direito a curtir a vida
fosse socialmente proibido ao jovem da periferia que, pela necessidade, inicia cedo sua
inserção no mercado econômico metropolitano, geralmente como mão de obra para abastecer
postos de trabalho infantil ou trabalho “protegido”, como é caso do Cruz Vermelha. Além
disso, no campo da cidadania Faro tinha seus direitos violados pelo próprio Estado de Direito
como ilustrou sua narrativa no trecho que cita a ocasião na qual foi abordado violentamente
pela polícia na porta do CRAS quando saía para o almoço.
É nesse sentido que eu interpreto as tais trajetórias como trajetórias-sacrifício, per
serem percursos de vida de indivíduos que ocupam, corroborando com Feltran (2010), o
mesmo estatuto de um imigrante clandestino na própria sociedade. Os jovens da periferia

66
Consulta ao <http://www.dicionarioetimologico.com.br/sacrificio/> em 21 de Dezembro de 2015.
212

ocupam na sociedade brasileira a mesma posição na estrutura produtiva que os imigrantes


clandestinos nas sociedades europeia ou estadunidense. Essa posição de fronteira que envolve
vínculos clandestinos, informais, também é notável no campo dos direitos formais. Os jovens
da periferia ocupam também o estatuto de suspeito, são eles o alvo da sujeição criminal
(MISSE, 2010), do estigma de potencial bandido na sociedade brasileira contemporânea.
Segundo Misse (2010) a sujeição criminal trata-se de uma construção social, reflexo da
estratificação econômica e moral, um processo de subjetivação no qual o crime enquanto
categoria genérica passa ser socialmente representado por determinados tipos de
personalidade presentes em sujeitos portadores “naturais” do comportamento criminoso,
como parte da sua essência de pessoa. Não se trataria de desvio, nem de comportamento
desviante, mas daquilo que está institucionalmente reconhecido como crime, e assim, Misse
(2010) destaca que na sujeição criminal a expectativa é de que o bandido seja socialmente
reconhecido como um sujeito irrecuperável, cujo mal é inerente e constituído em seu processo
de subjetivação.
Para Miro, a relação entre sacrifício e sujeição criminal se desdobrava na consciência
dos papeis oferecidos pela sociedade aos jovens da periferia: “cidadão de bem” (uma pessoa
conformada a suportar sacrifícios sem reclamar) ou ser bandido, o “caminho do mal”, o
crime. A construção de um caminho alternativo também representava outro sacrifício, em
busca de uma fuga aos lugares onde a sociedade tende a colocar tais indivíduos: no trabalho
pesado, subserviente, morto violentamente ou na prisão. Ou, como foi o que lhe ocorreu, teve
que fugir do bairro, sair de lá para não ser morto, de outra forma Miro trilhava caminhos
pouco alternativos, novamente ele se deparava com limites sociais que não conseguia transpor
efetivamente sozinho ou em família.
Os percursos alternativos, como os traçados por Suzano, não estavam isentos dos
sacrifícios, da trajetória-sacrifício. Suzano “não teve infância”, conforme sua mãe relatou
sobre a percepção dos vizinhos em relação à vida que ele levava: não aprendeu a andar de
bicicleta, não soltou papagaio, não jogou bola na rua, nem teve problemas na igreja por causa
de namoro na adolescência, enfim, Suzano foi bom aluno, bom filho, frequentou a igreja não
desviou em nada do caminho tracejado por sua mãe. Não foi fácil para ele suportar as tensões
entre a casa e a rua, entre a ordem interna e a ordem externa. No “olho do furacão”, na Vila
Francisco Mariano, uma das áreas onde a violência antecedia os episódios ocorridos no bairro
após 2005, Suzano optou em aderir ao projeto de sua mãe, e assim, sacrificou-se por ele.
Possivelmente, não se tratou de uma escolha no sentido de gestão autônoma e individual, mas
de uma relação de segurança e confiança no projeto desenvolvido por sua mãe. Por outro lado,
213

por meio da vida religiosa, ao ter contato com a vida pública do Estrela D’alva, ele teve
contato com os problemas vividos por outras famílias do bairro, inclusive a violência, e assim,
passou a adotar, por meio da religião, o trabalho voluntário como uma forma de doar-se às
pessoas do local que, como ele, negros de origem, estavam com vidas atravessadas pelas
consequências brutais da desigualdade social no Brasil como ele próprio mencionou sobre “a
violação dos direitos” enquanto uma condição permanente do jovem negro.
Enfim, na marginal os jovens elaboraram percursos de vida que envolveram o
trabalho precoce e precário intercalado ao tempo de estudo. Dentre os quatro jovens
biografados somente Suzano, o que começou a trabalhar mais tarde, com 15 anos, manteve
seu vinculo estudantil e conseguiu cursar e concluir o ensino superior. São raras as trajetórias
como as de Suzano que, apesar das dificuldades impostas pelos poucos recursos em um
núcleo familiar reduzido, conseguem alguma projeção profissional para outros campos de
ocupação, especialmente aquelas onde se exige maior e melhor qualificação e níveis
avançados de estudo. Apesar disso, com graus de comprometimento e atribuições variados,
todos os quatro foram durante algum tempo trabalhadores e estudantes simultaneamente,
condição penosa, e que geralmente interferia no desempenho e carreira escolar dos
indivíduos.
O outro aspecto estruturante das trajetórias juvenis na marginal¸ que denominei como
trajetória-orientada-para-dentro, ou simplesmente, orientação para dentro, diz respeito a
relações sociais e territoriais na região metropolitana de Belo Horizonte, visto com maior
profundidade no Estrela D’alva. As quatro trajetórias narradas indicam uma inclinação das
ações dos jovens para dentro do universo social da periferia. Embora as principais esferas de
interação juvenis estivessem mais visivelmente relacionadas à igreja, à família, ao trabalho, a
atividades culturais como hip-hop e, por algum momento de suas vidas ao crime, o espaço
público da periferia em geral, do campo do Zé Gordo até a praça do Estrela D’alva, sempre
haviam pessoas jovens na rua fazendo alguma coisa. O bairro configurava-se em um grande
mercado no qual os jovens podiam “trocar de igual”, a partir de relações horizontais, com
pares com quais se reconheciam como “nós”. Esse “nós”, uma amplificação do “eu”, traduz
um pouco a vida comunitária do lugar historicamente formado a partir de lógicas socialmente
excludentes – a periferia distante criada como efeito da ânsia de lucro e dos interesses das
políticas habitacionais e da especulação imobiliária. A arquitetura das construções
residenciais e das construções comunitárias é símbolo desse deslocamento e amplificação do
“eu” para o “nós”, no qual a casa é o resultado de uma construção de longa duração,
envolvendo amigos, vizinhos e familiares. Ao mesmo tempo, esse “nós”, representa uma
214

forma de distinção de jovens que vivem a partir de condições de existência positivamente


opostas. Como se ali, na periferia, todos estivessem no mesmo barco, partilhassem
experiências de vida que os aproximavam, veja o êxito e a recorrência das ações coletivas,
casas e igrejas, lojas e até as primeiras instalações de esgoto, tudo feito por moradores agindo
coletivamente.
Enfim, esse mercado, que é interno, mostra a centralidade da periferia na vida dos
seus habitantes, de suas populações jovens. Estes, dificilmente lograram algum tipo de
reconhecimento social fora da periferia. As roupas e acessórios, réplicas de grifes famosas que
Maicon tanto se orgulhava em possuir, só faziam sentido se mostrados aos seus pares na
igreja, na célula, no trabalho. Maicon não comprava essas coisas para andar nas ruas do centro
de Belo Horizonte de forma anônima. No bairro ele fugia ao máximo de qualquer tipo de
anonimato, era líder de célula, era fiel participante da igreja e no trabalho destacava-se por sua
dedicação. No bairro, a construção e conclusão da casa, de dois andares, um projeto sem
tempo de conclusão previsto era realizado por ele próprio, com os recursos que lhe acumula.
As relações familiares por vezes constituem laços extensos e consolidados, ainda que
em alguns casos marcados por rupturas e abandonos, em especial dos pais, como no caso de
Maicon. O território familiar acaba por converter-se também em um projeto de expansão das
famílias. Se Suzano não abandonou a casa da mãe, mas ao contrário, com o êxito que
conseguiu através de trabalho e estudo buscou melhorar as condições de vida através do
provimento de bens e recursos, no caso de Maicon efeito semelhante pôde ser observado
através da ampliação da área construída. As casas se transformam em representações dos
núcleos domésticos, e conforme gerações iam nascendo novos andares iam subindo ou
construções nos fundos e quintais apareciam, agregando partições. A família assim é
reafirmada como uma unidade de produção afetiva, mas também econômica.
O movimento de orientação da vida social para dentro do bairro ou vizinhança
apresentou-se como um fenômeno resultante do modo como o território metropolitano
formou-se. Embora sua intensidade e características variem entre os grupos e áreas sociais
que compõe o vasto território de 9.471,83 km² da RMBH, defendi a hipótese de que a
“orientação para dentro” atinge maior expressividade na trajetória de vida de jovens da
periferia, pois, representam uma categoria de indivíduos cujos efeitos da segregação
combinados com a condição de pobreza e estigma social decorrentes das relações de poder na
sociedade provocam constrangimentos mais profundos sobre seus percursos de vida. De modo
que seus espaços de significação social, mesmo após adentrarem a fase adulta, tendem se
voltar para o mundo social da periferia, representando um profundo isolamento social desses
215

grupos no contexto metropolitano. Esse isolamento não corresponde tanto a uma situação de
clausura, mas fundamentalmente a uma restrição dos espaços de visibilidade e de
reconhecimento sociais disponíveis.
A orientação para dentro implica em uma discussão sobre relações sociais e território
na região metropolitana de Belo Horizonte e por isso remete a questões tratadas no capítulo
capitulo Metropolização, território e vida social. O fato da expansão metropolitana ter se
estruturado de modo a manter ou aumentar distâncias sociais entre indivíduos de classes
sociais distintas revela aspectos das dinâmicas macrossociais responsáveis pela organização
social do território metropolitano. Observou-se que essa dinâmica foi estruturada basicamente
por dois padrões de segregação que configuraram o espaço metropolitano tal como
apresentado, um caracterizado pela relação centro-periferia e outro por relações de
autossegregação decorrentes de classes médias e altas em áreas situadas nos vetores Sul e
Norte da RMBH (ANDRADE, 2001; MENDONÇA, 2002). Na RMBH a distinção social
entre os grupos esteve fortemente relacionada à segregação por local de moradia, fazendo
com estes se tornassem locais privilegiados das interações sociais, onde as pessoas
relacionavam-se fora do ambiente de trabalho, no dia a dia. Essas dinâmicas produziram
efeitos marcantes dos estilos de vida das pessoas que moram no Estrela D’alva, tendo em
vista que a ausência de infraestrutura de transporte coletivo e de massa metropolitano e o alto
custo do deslocamento proporcionam um relativo isolamento social de sua população ao
território do bairro.
Em 2010 a RMBH apresentava-se como um território socialmente fragmentado por
contrastes profundos entre a qualidade de vida urbana segundo o local de moradia como
apresentado em Nazário (2015) por meio do Índice de Bem Estar Urbano – IBEU. As
periferias apresentavam pior IBEU, uma maior proporção de famílias com rendimento
domiciliar per capta de até um salário mínimo (TONUCCI FILHO, MAGALHÃES,
OLIVEIRA, SILVA, 2015), de pessoas que realizavam deslocamentos pendulares com mais
frequência e duração média de uma hora por trecho casa trabalho/estudo (SOUZA, 2015). Nas
periferias também o comportamento político eleitoral apresentou especificidades (ROCHA,
2011), tendendo a ser mais refém das dinâmicas de troca de votos por benfeitorias urbanas e
assistência social. Além desses aspectos estruturais, a violência aparecia como um dos
principais vetores de desconforto, tendo em vista que foi justamente na região da periferia que
o volume mais significativo de homicídios se concentrou na transição entre o século XX e
XXI, atingindo com intensidade suas populações jovens (MARINHO, 2012). Os efeitos da
violência estendiam-se ainda sobre a segregação da vida metropolitana, que contribuiu para
216

fortalecer o isolamento social dos mais pobres em relação aos demais grupos residentes.
Essa fragmentação social do território, o distanciamento e a ausência espaços de
interação horizontal entre as classes reforça o isolamento social dos pobres. O isolamento foi
um aspecto marcante no Estrela D’alva desde sua gênese na década de 1980 até 2010, a vida
social foi orientada para a resolução de problemas específicos, de ordem coletiva, situados no
próprio território do bairro. Problemas desde a falta de infraestrutura à ausência de recursos
financeiros para velórios e sepultamentos, ou o fechamentodo “buracão”, a construção de
igrejas e moradias. Todas essas demandas foram depositadas nos esforços dos próprios
moradoresque dedicaram tempo e investiram seus recursos, por meio de esforços coletivos
principalmente, para dar respostas a problemas sociais que afetavam sua qualidade de vida
cotidianamente, segredando-os não apenas no que se refere ao especto estrutural, mas também
à cessão e garantia de direitos e condições básicas de sobrevivência. Esse movimento de
construir a periferia apresentou-se significativo nas trajetóras dos jovens, com outra
configuração e também mediada pela esfera religiosa.
No bairro relações são construídas e alimentadas, vínculos que conferem
inteligibilidade e reconhecimento às trajetórias dos sujeitos. Assim, Maicon edificou vínculos
e laços sociais fortes, duradouros na periferia. Sob esse último aspecto das trajetórias de Faro
e de Suzano não foram tão diferentes, mantiveram laços fortes na periferia e Miro também.
Este espaço representou o princípio, o meio e o fim para o qual suas ações convergiram,
embora não fosse exclusivamente orientada somente pelo território era partir deste que suas
vidas se estruturaram enquanto tais.
Deste modo, foi visível o impacto do local de moradia sobre a experiência urbana, do
peso do “endereço de residência” sobre as trajetórias de vida. Em sociedades, mais ou menos,
desiguais o “onde você mora” constitui uma face importante nas relações sociais. O acesso
aos bens sociais e serviços, num contexto de desigualdade como o brasileiro é mais ou menos
facilitado em função do local de moradia, não pelo espaço em si, mas pela dimensão social
que ele assume. A paisagem, o logradouro, o bairro assumem valores morais que extrapolam a
geografia física, de modo que “cada homem vale pelo lugar onde está; [...] por isso, a
possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do
território onde se está”. (SANTOS, 1987, p. 81).
Buscou-se aqui contribuir por meio da trajetória de vida para o amplo e recente debate
sobre novas configurações da desigualdade na sociedade brasileira produzido nas ciências
sociais, em relação ao paradoxo, notado nos últimos 30 anos, da expansão do Estado Liberal
de Direito e da urbanização concomitantes ao crescimento das taxas de homicídios juvenis e
217

da persistência da desigualdade social. Considerou-se também que as trajetórias dos jovens


representam uma importante referência sobre os rumos que a sociedade tem assumido perante
a vida dos indivíduos no contexto contemporâneo. Assim, as considerações tecidas sobre a
significação da trajetória-sacrifício e orientação para dentro nas vidas dos sujeitos
constituem-se como um esforço de lançar luz sobre os processos sociais que caracterizam a
vida social metropolitana contemporânea na RMBH.
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231

ANEXOS
ANEXO 1 – “Palavra pastoral/ler para todos”

01 – Parabéns discípulos e PIBED, estamos conquistando a última semana dos 21 dias e a


chuva chegou!!
02 – Profetizamos e declaramos chuvas de bênçãos do Senhor sobre sua vida e de toda
célula.
03 – Quantos discípulos desta célula estão participando do Propósito dos 21 dias de jejum
e oração?
04 –Descompromisso Espiritual: Infelizmente é o que observamos em muitos. Não
consigo entender como seu Pastor, “O PORQUÊ” de muitos não abraçarem e
participarem de um propósito de oração e jejum.
05 –Está tudo bem com você? Com sua família? Com sua saúde? Com sua vida
Espiritual? Com suas finanças? Com a Igreja? Com seus relacionamentos? Com seus
sonhos? Com seu País? Com sua cidade? Com a economia do País?
06 –Deus, a PIBED e seus Pastores convidam você para a última semana do Propósito.
07 – Todo discipulador deve ter um discípulo. Cuidar e ser eternamente responsável por
ele.
08 Todo discípulo tem que ter um discipulador ou um Líder e “prestar contas” a ele.
09 – Estamos perdendo muitos novos discípulos por falta de cuidado! Decidiu andar com
Jesus, a visita tem que ser realizada imediatamente.
10 – “Discípulos novos” têm reclamado de não terem sido visitados e nem recebido o
Estudo Bíblico. Alguns inclusive, já estão na Classe de Batismo.
11 –O discipulado tem que iniciar na 1ª semana após a decisão da pessoa.
12 –Cuidado com a negligência e a omissão. Deus irá cobrar de cada um de nós, o que
fizemos com as pessoas que Ele deixou sob nossos cuidados.
13 –Discípulo ausente: Ore, interceda, telefone, exorte, visite e tome um “cafezinho” com
ele quantas vezes forem necessárias.
14 –Faça trabalho de campo: Não fique esperando, contando com a “sorte”. Evangelize,
visite, trabalhe com as pessoas.
15 –Pré-Encontro/ Encontro: Vamos fazer deste Encontro o melhor do Ano? Todos
trabalhando, enviando o discípulo (a) ao Pré- Encontro, acompanhando, auxiliando na
inscrição, etc...
16 - Ore pela família Pastoral em Uberlândia e pela PIBED Uberlândia
17 – Ore pela família Pastoral em Viçosa e pela PIBED Viçosa.

www.pibed.com.br
233

ANEXO 2 – “2015 – Ano de conquista das promessas de Deus”

► Tema: VOCÊ ESTÁ PASSANDO POR PROVAÇÕES E CRISES?

► Semana: 15 A 21 de novembro de 2015

TIAGO 1:2-4

- Como está a sua vida? Você tem passado por provações e crises? Vamos aqui chamar as
“crises” de “Provações”.

- Todos nós passamos por momentos de lutas.

- Muitas vezes, nesses momentos, tendemos a olhar somente para as circunstâncias: Mas é
exatamente em situações como essas, de crises, que devemos olhar para frente e não
esquecermos que em Cristo Jesus somos mais que vencedores!!

-Para vencermos as provações precisamos ter fé e perseverança, pois é a fé que nos leva à
vitória e à conquista dos nossos sonhos e de tudo o que Deus planejou para a nossa vida.

O Senhor sempre tem algo a nos ensinar quando permite que passemos por provações.

I – DEUS NOS PROVA SEU AMOR EM MEIO ÀS PROVAÇÕES

-Deus nos ama e por isso se importa conosco. Foi por amor a nós que Ele nos enviou seu
único Filho para pagar o preço por nós e assim vivermos pela graça (I João 4:9).

-Talvez você esteja em uma situação difícil de resolver, passando por um deserto e não
consiga enxergar esse amor. Mas não permita que as provações ceguem a sua fé.

- Deus permite que passemos pelas provas porque Ele nos ama e quer testar nossa fé, nossa
confiança n’Ele.

- As provações podem ser permitidas pelo Senhor para que possamos enxergar lá na frente as
maravilhas d’Ele em nossas vidas.

- Jó também passou por provações e o Senhor permitiu que satanás tocasse nos seus bens e
em sua família mas não permitiu que tirasse a vida dele (Jó 1:12). Contudo, Jó esperou no
Senhor e tudo que ele tinha perdido foi restituído em dobro! Ao final, ele passou a conhecer
verdadeiramente o amor de Deus! Se você está passando por provas, descanse e confie no
Senhor. Entregue sua vida a Jesus e experimente o amor d’Ele em sua vida!

II – DEUS NOS AJUDA A PASSAR PELAS PROVAÇÕES


234

- Já sabemos que Deus nos ama e se importa muito conosco, então por que temer? Ele nos
prometeu que estaria sempre conosco.

- Confie no amor e no poder que existe nas mãos d’Ele.

- Com o Senhor ao nosso lado podemos suportar as provações e sair delas vitoriosos!

- A Bíblia nos afirma que não seremos provados mais do que podemos suportar (I Cor
10:13). Então, não devemos murmurar, pois o Senhor, quando nos chamou para segui-lo, não
disse que o caminho seria fácil ou largo, mas nos prometeu que estaria conosco para sempre,
nos ajudando a caminhar.

- Se for preciso Ele carregará nosso fardo, abrirá o mar de novo em nossa frente para que
possamos passar por terra firme!

- Ele morreria de novo naquela cruz por mim e por você. Uma prova de amor maior do que
essa ninguém pode nos dar! Se você quer experimentar desse amor tão grande e
incondicional, então não perca essa oportunidade, aceite o amor que Jesus quer te dar hoje
mesmo!

III – DEUS NOS CONCEDE A VITÓRIA NAS PROVAÇÕES

- Se sua luta está muito grande, se seu fardo está muito pesado, saiba que o fardo do Senhor é
leve e essa sua luta vai se transformar na sua vitória amanhã.
- O Senhor é fiel e suas promessas se cumprirão na vida daqueles que crêem, pois Ele nunca
perdeu uma batalha! Na Bíblia temos muitas provas do amor e da fidelidade d’Ele para com o
Seu povo.

- Quando aceitamos Jesus como nosso Salvador devemos andar como Ele e não devemos
desistir jamais! Lutas nós sempre teremos, mas precisamos ter coragem e lembrarmos do que
o Senhor já fez por nós. Ele não quer que desistamos, mas sim que vençamos os desafios!

- A Bíblia também nos diz que se somos de Cristo, somos descendentes de Abraão e herdeiros
das promessas de Deus.

- Se você quer ver o agir de Deus na sua vida, a transformação da sua realidade atual, faça um
ato de fé e convide-O a fazer parte de sua vida e receba a vitória em meio às provações!

CONCLUSÃO:
As provações são inevitáveis em nossas vidas, mas se você crê, espere a vitória sem perder a
fé! Persevere porque o seu milagre vai chegar como afirma a Palavra de Deus em Hebreus 10:
35-37 ‘Não abandoneis, portanto a vossa esperança; ela tem grande galardão. Com efeito,
tendes necessidade de perseverança, para que havendo feito a vontade de Deus alcanceis a
promessa. E porque ainda dentro de pouco tempo, aquele que vem virá e não tardará. ”Deus
235

nos ama e nos permite passar por provações para ao final nos dar a vitória! Se você quer andar
pelo caminho vitorioso, não tenha medo de passar pelas provas, pois o medo paralisa sua vida
e sua fé. Deixe Jesus conduzir a sua vida! Amém?! E não esqueça 21 dias de propósito para
fortalecer você!
PÃO DIÁRIO: SEGUNDA- 1 João 4 / TERÇA –Jó 1 / QUARTA –1 Coríntios 10 / QUINTA
–Romanos 8/ SEXTA –Hebreus 10 / SÁBADO – Apocalipse 2 / DOMINGO –Apocalipse 21.

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