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2017­6­3 Nada novo sob o sol | ANF ­ Agência de Notícias das Favelas |

Nada novo sob o sol


Por: Marcos Barreira - 30 de maio de 2017

Créditos: Reprodução Internet

Os grandes jornais tentam induzir o leitor a crer que o País encontra­se estarrecido
com escândalos de corrupção ligados ao financiamento empresarial de campanhas. A
mais nova crise no governo teria abalado os grandes partidos, o sistema político e a
própria ideia de República, que teria de ser refundada. Mas terão mesmo os últimos
acontecimentos a capacidade de provocar perplexidade e revolta, como se espera de
situações escandalosas? Quem é que foi realmente surpreendido ou ficou
decepcionado com a exibição pública da falência do sistema político? A polarização
nas três últimas eleições presidenciais (2006, 2010, 2014) nos ajuda a responder
ambas as questões.  Como se sabe, essa polarização pode ser explicada, ao menos
em parte, pela divisão entre o voto predominantemente popular (eleitores com
menos renda e menos escolaridade; regiões e sub­regiões mais pobres) que levou às
vitórias sucessivas de Lula e Dilma e os votos oposicionistas, mais enraizados nas
camadas médias das regiões Centro­Sul.

Para analisar mais de perto essa polarização é preciso voltar a 2002, ano da vitória de
Lula. É verdade que, durante a década de 1990, a atuação dos parlamentares do PT
foi marcada pelo “denuncismo” e pela defesa da ética contra a “velha política”, mas a
candidatura de 2002 não foi moralista; foi, pelo contrário, uma autêntica adesão ao
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sistema político. Ao contrário de figuras como Jânio Quadros ou Collor de Mello, Lula
não foi eleito com a bandeira da moralidade. É claro que o PT acumulou ao longo dos
anos um “capital político” como “partido da ética” e, ao menos para o seu eleitorado
tradicional, ele representava a esperança de renovação, mas o determinante na
vitória de Lula foi o compromisso e não o enfrentamento com o sistema político.
Tratava­se de preservar o modelo econômico e estancar a grave crise social gerada
pelas reformas do modelo anterior. Em outras palavras: Lula não foi eleito para
combater a corrupção (e muito menos para liderar um processo de mudanças
profundas) e sim para viabilizar um “pacto social” que desse ao sistema político um
último fôlego, após o desmonte privatista do Estado. O modelo de governo que surgiu
a partir daí reafirmava, por um lado, o compromisso do Estado com os grandes
grupos econômicos; por outro lado, dava continuidade e ampliava de maneira
substancial os programas de combate à miséria (primeiro o “Fome Zero”, depois a
“Bolsa­Família”) formulados durante os anos 1990, em experiências locais, como
contrapartida do ajuste econômico.

Na eleição de 2006, manifestou­se pela primeira vez a polarização eleitoral. A
oposição das camadas médias dos grandes centros ao pacto lulista foi alimentada
pela denúncia do “mensalão”, usada pela mídia para deflagrar sua cruzada contra a
cúpula do PT. Do outro lado, as camadas populares que compõem a base da pirâmide
social apoiaram maciçamente a reeleição de Lula. Nem as denúncias quase diárias,
nem a queda dos aliados mais próximos afetou a imagem do presidente junto aos
mais pobres. É comum que se atribua esse apoio à indiferença, à falta de cultura ou a
um novo tipo de clientelismo que teria rifado o futuro do País ao preço de migalhas
dadas aos pobres. A realidade é bem outra. O motivo para a alta popularidade de Lula
não era apenas a “blindagem” da mídia – com a qual as elites econômicas
reafirmavam o pacto da eleição anterior – mas, sobretudo, a retomada do
crescimento econômico. Decisivas para a estabilidade do governo foram a ampliação
do emprego, da renda do salário e do crédito popular, que, juntamente com os
programas emergenciais, estabeleceram um sistema mínimo de proteção social –
tudo isso, é claro, na dependência de uma frágil conjuntura externa alimentada por
circuitos deficitários globais.

A sobrevivência do governo durante a tempestade política de 2005 tinha menos a ver
com a indiferença em relação ao sistema político do que com a identificação de Lula
com uma efetiva redução da pobreza de massas. Era um voto pragmático, não
ideológico; pelo menos não no sentido da ideologia político­partidária. Também uma
grande parte da “classe média” teve razões materiais para alimentar sua animosidade
ao governo: o pacto lulista foi costurado apenas com as elites e produziu efeitos
positivos principalmente sobre a base da pirâmide social; uma situação decorrente de
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novos padrões de estratificação e de conflitos de interesses que pouco tem a ver com
o marxismo de manual da “luta de classes”.[1] Ao invés da “conciliação”, o pacto
lulista estimulou, embora de modo irrefletido e contra sua própria ideologia de
integração dos pobres na “nova classe média”, uma lógica concorrencial no interior do
sistema de assalariamento. O que aparecia, do lado das camadas populares, como
um processo de ascensão e compensação, significava, por outro lado, o achatamento
das condições de vida das camadas médias e a proliferação de formas rebaixadas e
precarizadas de assalariamento. Além disso, as “políticas afirmativas” direcionadas a
segmentos específicos da população alimentaram uma hostilidade crescente daqueles
que viam a ampliação do consumo popular como ameaça à sua posição social.

A oposição política construiu uma forte base de massa, já nos primeiros anos do
pacto lulista, a partir do discurso moralista e da narrativa do “mensalão”. A pregação
moral oposicionista disfarçava não só interesses de segmentos preteridos pelas
políticas governamentais, mas ao mesmo tempo os privilégios e preconceitos dos
relativamente privilegiados. Por isso, a oposição assumiu um tom cada vez mais
incoerente e agressivo. Com o apoio dos grandes meios de comunicação, ela incutiu
no seu público cativo a tese de que o sistema político e as instituições estavam sob o
controle de uma única organização partidária. Outro feito da oposição foi convencer
esse mesmo público de que os programas sociais e a retórica da integração
econômica representavam uma mobilização política de antagonismos sociais. Tanto a
renda básica quanto a ascensão pelo consumo, ambas definidas por critérios de
mercado, se converteram, na ideologia oposicionista alucinada, em uma agenda
“esquerdista”. Entretanto, estes antagonismos, inevitáveis nas modernas sociedades
concorrenciais, não foram produzidos por uma estratégia política conflitiva; eram,
pelo contrário, meros efeitos colaterais dos processos de inclusão induzidos pelo
Estado. [2]

Toda essa conjuntura ascendente, embora contraditória, sofreu uma modificação
drástica a partir da crise de 2008. O modelo de exportação de commodities no qual
se assentou o crescimento da economia brasileira desde o início da era Lula sofreu
um golpe. Os efeitos desastrosos da redução dos preços das matérias­primas teve de
ser absorvido pelos gastos estatais. As medidas de emergência, entre o fim do
governo Lula e a eleição de sua sucessora, Dilma Rousseff, puderam apenas simular
por algum tempo uma situação de normalidade. Nesse quadro, os atritos do governo
com as elites empresariais se tornaram inevitáveis, o que resultou na formação de
um novo arranjo político capitaneado pelos partidos de oposição e com base no
descontentamento das camadas médias dos grandes centros. Já as grandes
manifestações de 2013 anteciparam em mais de um aspecto esse desfecho: sua
composição heterogênea, retratando tanto as expectativas frustradas daqueles que
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ascenderam socialmente quanto o “medo da queda” que afligia os setores médios
tradicionais, deu aos protestos um caráter contraditório, mas amplamente favorável a
estes últimos, seja em termos numéricos, organizacionais ou ideológicos. Não por
acaso, as principais bandeiras de Junho de 2013 foram a da “moralidade” (crítica
genérica da corrupção política, especialmente os gastos com os megaeventos) e da
“eficiência” (a exigência incoerente de um “padrão FIFA” nos serviços públicos). O
foco das manifestações, portanto, foi totalmente dominado por um imaginário de
“classe média”. O motivo é simples: ao longo de toda a era Lula, as massas populares
foram mobilizadas apenas como “sujeitos econômicos” e estimuladas pelos programas
de governo a progredir individualmente no interior do sistema salarial ou como
empresários da sua própria força de trabalho.

Com a nova rodada da polarização em 2014, o bloco oposicionista ganha força e pela
primeira vez seu discurso começa a chegar às camadas populares – um efeito direto
da volta do desemprego a patamares anteriores aos da era Lula. No entanto, ideia de
mudança continuava assentada na mentalidade de “classe média”, gerando o
amalgama de moralismo, discriminação e crença pró­mercado da candidatura de
Aécio Neves. Em determinados momentos, a polarização assumiu a forme de um
confronto insólito entre a “modernidade” do capitalismo de cassino global para
minorias e o “atraso” socioeconômico de regiões periféricas (em termos nacionais: a
Avenida Paulista contra o Nordeste). Os mesmos setores de oposição declararam o
gasto público, que garantira a manutenção dos níveis de investimento, como a origem
da crise: invertendo­se a relação de causa e efeito, o declínio do investimento privado
podia ser atribuído a uma interferência exagerada do Estado na economia de mercado
supostamente “saudável”. Além disso, a grande imprensa (seguida por vozes
secundárias mais radicalizadas na internet) ocultou até onde era possível a dimensão
sistêmica da corrupção na tentativa de preservar os últimos vestígios de legitimidade
da esfera política e de denunciar uma suposta pretensão “totalitária” do PT. Em outras
palavras: criou­se o fantasma do “lulo­petismo” para ocultar o pacto conservador do
seleto grupo de empresários e dirigentes organizado em torno de Lula com o sistema
político tradicional e transferi­lo integralmente para o PT. Estranhamente, a
“hegemonia petista” coincidiu com a absorção quase total do petismo pelo
establishment político­econômico e com a condenação judicial de suas principais
lideranças. Em última análise, essa operação midiático­oposicionista defendia o
sistema político com a tese do protagonismo do PT e do ineditismo da corrupção
como sistema. Pelo menos desde a crise política de 2005, esse discurso se confunde
com a formação de uma extemporânea ideologia de mercado que apaga da história a
recente crise do neoliberalismo implantado nos anos 1990 e atribui a crise econômica
ao “excesso de Estado”.
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A nova agenda de corte de gastos e desmantelamento da proteção social, iniciada em
2015, em meio ao processo de afastamento da presidente Dilma, foi uma
consequência da crise. Mesmo o governo Dilma já se orientava claramente nesta
mesma direção. O processo de desconstrução da era Lula também foi alimentado pelo
início da Lava­Jato, em março de 2014, a partir de Curitiba, mas em associação direta
com a oposição (agora no governo) e, sobretudo, com a ideologia de mercado. As
massas que foram às ruas exigir a queda de Dilma esperavam que do novo governo
germinasse milagrosamente uma “retomada da confiança” dos investidores. Desse
modo, as camadas médias, sob influência da propaganda ideológica desprovida de
conceitos da “nova direita”, deram um aval às medidas de desmonte. No entanto, a
dificuldade de impor as reformas e a agudização da crise política produzida pelas
ações do MPF, inviabilizaram o governo e aprofundaram a contradição entre os
setores médios e os partidos políticos tradicionais. Se a Lava­Jato atuou de modo
unilateral a fim de derrubar o governo Dilma, agora se volta também contra os
aliados de ocasião. Trata­se de um conflito – cujo desfecho permanece indefinido –
entre a “ideologia pura”, liberal e messiânica, de refundação do Estado e a realidade
do sistema partidário­empresarial atrelado ao Estado.

Alimentando uma ilusão apocalíptica, os integrantes do MPF (não por acaso, todos
oriundos dos setores médios) apenas reforçam a orientação destrutiva das “reformas”
governistas e mais uma vez convergem, só que involuntariamente, com os partidos
tradicionais e seu projeto de desmontagem das garantias sociais. Enquanto a “classe
média” finalmente tem um choque de realidade, quando seus porta­vozes
subitamente “descobrem” os escândalos envolvendo falsos portadores da esperança
como Temer e Aécio, a base popular de Lula parece seguir como uma terceira força
distante do conflito entre os atores principais do impeachment. Os eleitores do
governo deposto foram fartamente denunciados como uma massa de manobra
ignorante do “populismo de esquerda”, quando, na realidade, queriam apenas
ascender socialmente por meio do consumo individual estimulado pelos governos de
Lula e Dilma. Agora, essa força residual (mas de modo algum desprezível) quer
apenas preservar um mínimo de garantias sociais. Se o lulismo foi, desde o início, um
pacto de sobrevivência no interior do sistema político, seu esgotamento, na sequencia
da crise econômica mundial, só poderia antecipar uma grave crise institucional.

Como é que as diferentes camadas sociais se comportam diante desta situação? Nas
camadas médias, que até agora foram levadas pelas alternativas ilusórias do sistema
partidário, se manifestam as tendências que procuram canalizar para opções
autoritárias a frustração e o ressentimento gerados pela crise (não surpreende que
uma candidatura que mobiliza o ódio e a agressividade cresça mais entre os setores
com renda e escolaridade média). Por outro lado, nas favelas, periferias e rincões do
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