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Saúde Pública ou Saúde Coletiva?

Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza*

* Este texto registra a Conferência proferida pelo Professor Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza durante
o II Congresso Paranaense de Saúde Pública, realizado em Curitiba no período de 10 a 14 de agosto de
2014. O conferencista é professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, autor
de vários artigos científicos em publicações nacionais e internacionais e de livros, dentre os quais:

Souza LPF, Contandriopoulos AP. O uso de pesquisas na formulação de políticas de saúde: obstáculos e
estratégias. Cad de Saúde Pública [ENSP impresso]. Abr 2004; 20(2): 546-554.
Souza LPF. O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão. Uma reflexão a partir de uma
experiência concreta. Ciênc & Saúde Colet [online]. 2009; 14(3): 911-918.
Guimarães RFN, Souza, LEPF, Santos LMP, Serruya, SJ. Não há saúde sem pesquisa: avanços no Brasil de
2003 a 2010. Rev Baiana de Saúde Públ. 2012; 36(1): 55-65.
Barata RB, Aragão E, Sousa LEPF, Santana TM, Barreto ML. The configuration of the Brazilian scientific field.
Anais da Academia Brasileira de Ciências [Impresso]. 2014; 86(1): 505-521.

O seu cv lattes é http://lattes.cnpq.br/2768799008412205. Atualmente é presidente da Associação


Brasileira de Saúde Coletiva - ABRASCO.

Introdução
Saúde Pública e Saúde Coletiva têm uma alternativa, à qual dá o nome de Saúde
significados idênticos ou distintos? Coletiva1.
Na prática, há diversas instituições - de Sete lustros após a criação da Abrasco,
pesquisa, de ensino e de prestação de serviços o debate continua. Os conceitos de Saúde
- que se reconhecem como pertencentes Pública e Saúde Coletiva ainda estão longe de
à mesma área e que adotam uma ou
ser consensuais, com autores apresentando
outra expressão para se identificar. Nesse
posições diferentes em graus mais ou menos
caso, Saúde Pública e Saúde Coletiva têm
acentuados2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
significados equivalentes.
Nesse sentido, a questão que este texto
No entanto, a Associação Brasileira de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva** surge, em pretende examinar é: qual o sentido hoje
1979, afirmando se constituir como um espaço da crítica à Saúde Pública feita pela Saúde
de crítica à Saúde Pública e de proposição de Coletiva?

** Em 2011, após ter acolhido como associados institucionais os Cursos de Graduação em Saúde Coletiva, a Abrasco muda seu nome para
Associação Brasileira de Saúde Coletiva.

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Para tentar respondê-la, faz-se uma Esse movimento continua com a
breve revisão dos movimentos ideológicos institucionalização da Higiene, na França, na
e político-institucionais que, ao longo da primeira metade do século XIX, vista como a
história ocidental, articularam conhecimentos parte da medicina responsável por ajudar a
e intervenções sobre o processo saúde-doença administração pública a manter a população
em uma perspectiva populacional. Em seguida, saudável, com base em um conjunto de regras,
descreve-se, em linhas gerais, o processo normas, prescrições e recomendações a serem
histórico de evolução da Saúde Coletiva observadas pelas famílias e pelos indivíduos.
brasileira do final dos anos 70 aos dias atuais.
Como desdobramento da Higiene, em
Por fim, busca-se caracterizar a Saúde Pública e
a Saúde Coletiva, identificando o que distingue uma conjuntura de radicalização política, em
uma da outra hoje e, prospectivamente, nos que setores populares lutam nas barricadas
próximos anos. contra o absolutismo restaurado, surge o
movimento da Medicina Social, inspirado
no socialismo utópico de Saint-Simon. Esse
Saúde e população: movimento, que ocorre na França, com Jules
aspectos históricos Guérin, e na Alemanha, com Rudolf Virchow e
Embora desde sempre a saúde da Salomon Neumann, afirma o caráter social das
coletividade tenha sido objeto de intervenções, doenças e da prática médica, destacando que
Rosen11 demonstra que é no momento da a promoção da saúde e o enfrentamento das
consolidação dos Estados nacionais modernos, doenças exigem medidas de caráter médico e
com o mercantilismo e o absolutismo, que as social.
populações passam a ser consideradas em Na mesma época, na Inglaterra, a
si mesmas uma riqueza a ser preservada e
industrialização e a urbanização agravam
multiplicada. Cabe ao Poder Público, então,
as condições de saúde dos trabalhadores,
contar o número de súditos, conhecer sua
em particular, e da população, em geral, a
condições de vida - incluindo as taxas de
ponto de motivar uma investigação oficial,
natalidade e de mortalidade - e agir para
cujos resultados são sistematizados por
promover o crescimento e a saúde da
Edwin Chadwick no relatório (1842) que leva
população.
seu nome. Esse movimento, intitulado de
Nesse contexto, surge a Aritmética Sanitarismo ou Saúde Pública, enfatiza as
Política e é criado o Conselho de Saúde de ações de saneamento ambiental, que têm
Londres, proposto por William Petty, em 1687, força de lei, com medidas como o Ato de
assim como é organizada a Polícia Médica, Saúde Pública de 1848.
na Alemanha, sob as lideranças de V. Ludwig
Seckendorf (1655), W. Thomas Rau (1764) Foucault12, analisando a Modernidade,
e J. Peter Frank (1779). A Aritmética, que identifica nesse período o nascimento da
dá origem à Estatística, e a Polícia Médica medicina social, definida como uma estratégia
expressam a responsabilidade do Estado pela do biopoder, ou seja, de domínio da sociedade
definição de leis e regulamentos sobre a saúde sobre os indivíduos por meio do controle dos
das pessoas, incluindo a fiscalização de sua corpos humanos. Essa estratégia assume
aplicação. características particulares nos três países

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então mais avançados na industrialização: a sem articulação direta com a Saúde Pública
medicina da força de trabalho, que recomenda campanhista ou programática, através
mudanças nas condições ambientais, dos Institutos de Aposentadoria e Pensão,
particularmente, fabris, na Inglaterra; a destinados a prover serviços às categorias de
medicina urbana, que orienta o planejamento trabalhadores formalmente empregados. Mais
urbanístico, na França; e a medicina de Estado, tarde, nos anos 60, essa chamada medicina
que impõe o controle estatal do comportamento previdenciária vai ensejar o surgimento da
dos indivíduos, na Alemanha. “saúde suplementar”, constituída pelos planos
Um pouco mais tarde, já no final do e seguros de saúde que irão se tornar o setor
século XIX, os Estados Unidos adotam medidas hegemônico do sistema de saúde brasileiro na
inspiradas na Saúde Pública inglesa e criam, penúltima década do século XX13.
em 1879, o Departamento Nacional de Saúde, Todos esses movimentos de ideologias e
que desenvolve ações de saneamento, voltadas intervenções sobre a saúde das populações,
fundamentalmente para o controle de doenças ainda que longínquos na história, são
infecciosas de acordo com as recomendações importantes para a discussão que, nos anos
oriundas da nascente bacteriologia. 70, no Brasil, leva à ideia de Saúde Coletiva.
No Brasil, as intervenções sobre a saúde da O mais importante de todos, como inspiração
coletividade ganham força durante a República político-ideológica, é, certamente, a Medicina
Velha, como estratégia de saneamento dos Social, concebida durante as revoluções de
espaços de circulação da economia cafeeira. 1848, na Europa, que identifica na estrutura
É a época de Oswaldo Cruz e das campanhas social classista o principal determinante das
sanitárias, em que se destacam as medidas de condições de saúde da coletividade.
saneamento voltadas à erradicação da Febre
Nessa discussão, a referência aos
Amarela urbana e a vacinação obrigatória
movimentos históricos e, em especial, à
contra a varíola.
Medicina Social, é motivada pela difusão, no
A partir do Estado Novo, as campanhas Brasil, de duas outras ideologias sanitárias,
se institucionalizam em programas de saúde articuladas nos Estados Unidos, nos anos 1950
pública, dentro do Ministério da Educação e 1960, que são vitais para a crítica à Saúde
e Saúde Pública e, depois de 1953, no Pública e a concepção da Saúde Coletiva: a
Ministério da Saúde. Nessa época, relacionada Medicina Preventiva e a Medicina ou a Saúde
inicialmente à exploração da borracha natural, Comunitária.
na Amazônia, durante a 2ª Guerra Mundial, o
A Medicina Preventiva surge, nos Estados
modelo norte-americano de organização de
Unidos, nos anos 1950, a partir da percepção
programas de saúde é adotado pelo governo
de uma crise da prática médica, decorrente do
brasileiro com a criação do Serviço Especial de
crescimento da especialização e dos custos
Saúde Pública.
da atenção e das dificuldades de expansão
Para compreender as políticas de da cobertura. Como resposta de viés liberal,
saúde no Brasil e, portanto, a emergência procura manter afastada a possibilidade
da Saúde Coletiva, deve-se mencionar que a de intervenção estatal na organização dos
assistência médica individual se desenvolve serviços de saúde, prometendo melhorias

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na prática médica através de mudanças Antes que esse fracasso fique evidente,
na educação médica. Assim, as reformas porém, ambos os movimentos são ativamente
defendidas se atêm a um projeto pedagógico, disseminados para a América Latina, por meio
e não a uma reforma da organização da de atividades de fundações privadas norte-
assistência. Na prática, a grande inovação americanas (Kellog, Rockfeller, Milbank e Ford)
é a criação, nas faculdades de medicina, e da Organização Pan-Americana da Saúde.
dos departamentos de medicina preventiva, No Brasil e em outros países
responsáveis pelo ensino da epidemiologia e latinoamericanos, na década de 1960 e
da bioestatística, de ciências da conduta como 1970, são criados departamentos de medicina
a psicologia e a sociologia e da administração preventiva nas escolas médicas, assim como
de serviços de saúde. Propõe-se, dessa forma, são desenvolvidos programas de expansão de
a superar o biologismo, o individualismo e o cobertura em áreas rurais e nas periferias das
hospitalocentrismo da formação, buscando grandes cidades9.
desenvolver nos estudantes de medicina uma
Tais iniciativas, ainda que impotentes para
visão completa - biopsicossocial - do indivíduo14.
promover mudanças efetivas na educação
A Medicina ou a Saúde Comunitária, por profissional e na assistência à saúde,
sua vez, é uma tentativa de operacionalização, introduzem, no âmbito da academia e das
fora do ambiente acadêmico, dos princípios instituições diretivas do Estado, a questão
do preventivismo. Trata-se da organização social como pertinente ao campo da medicina
de serviços de saúde extra-hospitalares, e da saúde10. Abrem espaço, portanto, para
destinados ao exercício profissional do novo uma reflexão crítica que vai buscar em
médico, portador de uma atitude integral, outros referenciais teóricos e ideológicos,
preventiva e social vis-à-vis seus pacientes. notadamente no marxismo estruturalista então
As atividades assistenciais em comunidades, em voga, os seus fundamentos4.
além de servirem para a formação desse Assim, a dimensão social ou coletiva da
novo profissional, visam a contribur para a saúde, trazida pelo preventivismo de forma
expansão da cobertura da atenção médica, reducionista, limitada a suas manisfestações
especialmente para segmentos carentes da no indivíduo, é radicalmente redefinida por
população. Vale salientar que essa estratégia intelectuais latino-americanos que refletem
é, em grande parte, uma resposta às tensões sobre o social na saúde. Distintas conotações
sociais decorrentes das mobilizações do social ou do coletivo emergem dessa
populares a favor dos direitos civis e contra a reflexão: como meio ambiente, como coleção
discriminação de raça/etnia15. de indivíduos, como conjunto de efeitos da vida
Na prática, contudo, nem a Medicina social, como interação entre elementos, como
Preventiva nem a Saúde Comunitária cumprem campo específico e estruturado de práticas
o que prometem: não se modifica a atitude sociais10.
do médico por conta da introdução de novas Nesse sentido, o movimento que se
disciplinas na sua formação, nem se viabiliza denomina Saúde Coletiva é o herdeiro imediato,
a ampliação da cobertura assistencial para as porém rebelde, de um movimento ideológico -
populações pobres. o preventivismo - que, como diz Arouca14, alude

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a uma crise real da assistência médica, mas Assim definida, a Saúde Coletiva propõe
ilude e se ilude com a proposição de uma a superação das intervenções sanitárias sob
mudança que, na verdade, é uma tentativa de a forma de programas temáticos, voltados
manutenção. a problemas ou grupos populacionais
Essa breve revisão dos movimentos de específicos e baseados em uma epidemiologia
ideologias e intervenções sobre a saúde na meramente descritiva e em uma abordagem
perspectiva populacional já deixa ver que a normativa de planejamento e administração,
Saúde Coletiva tem características próprias por intervenções articuladas de promoção,
que não permitem confundi-la com a Saúde proteção, recuperação e reabilitação da saúde,
Pública, seja entendida como o Sanitarismo, baseadas em uma abordagem multidisciplinar,
especificamente, seja vista, genericamente, com a contribuição das ciências sociais, da
como qualquer tipo de intervenção sobre a epidemiologia crítica e do planejamento e da
saúde da coletividade. gestão estratégicas e comunicativas.
Todavia, para afirmar a existência dessas O quadro teórico de referência dessa nova
diferenças, apontando-as com precisão, faz-
área de ensino e pesquisa, discutido ainda
se necessário ainda descrever a evolução da
no 1º Encontro Nacional de Pós-Graduação
Saúde Coletiva brasileira do final dos anos 70
em Saúde Coletiva, em 1978, contempla as
aos dias atuais.
seguintes definições10:

a) A saúde, enquanto estado vital, setor
Origem e consolidação da Saúde de produção e campo de saber, está
Coletiva brasileira articulada à estrutura da sociedade,
No final da década de 1970, o primeiro apresentando, portanto, historicidade;
encontro nacional de cursos de pós-graduação
b) As ações de saúde constituem uma
de Medicina Social, Medicina Preventiva, Saúde
prática social;
Comunitária e Saúde Pública adota a expressão
“Saúde Coletiva” no seu título. Em 1979, após c) O objeto da Saúde Coletiva é construído
três encontros nacionais, os coordenadores e nos limites do biológico e do social
docentes desses cursos fundam a Associação e compreende a investigação dos
Brasileira de Pós-Graduação em Saúde determinantes da produção social das
Coletiva. doenças e da organização dos serviços
Define-se, então, a Saúde Coletiva como de saúde e o estudo da historicidade do
uma área do saber que toma como objeto saber e das práticas;
as necessidades sociais de saúde (e não d) A Saúde Coletiva envolve a crítica
apenas as doenças, os agravos ou os riscos)
permanente dos projetos de redefinição
entendendo a situação de saúde como um
das práticas de saúde;
processo social (o processo saúde-doença)
relacionado à estrutura da sociedade e e) O processo de ensino-aprendizagem pode
concebendo as ações de atenção à saúde ser acionado como prática de mudança
como práticas simultaneamente técnicas e ou de manutenção do status quo social e
sociais. sanitário;

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f) O conhecimento não se produz pelo contato É fundamental ter em mente que a
com a realidade, mas pela compreensão crise da saúde daqueles anos se insere em
de suas leis e pelo comprometimento com uma conjuntura de crise econômica, após
a sua transformação; um período de crescimento acelerado do
PIB nacional, e de ascensão do movimento
g) A Saúde Coletiva privilegia uma prática
social de contestação ao regime autoritário,
pedagógica dialógica;
instaurado em 1964.
h) A Saúde Coletiva remete a uma concepção
Nesse contexto, diferentes sujeitos
ampliada de prática: técnica, teórica e
políticos, na academia, nos movimentos
política;
estudantil e de renovação médica e mesmo
i) O conceito de inserção no complexo de na burocracia governamental apresentam suas
saúde admite a participação de docentes distintas visões sobre a crise da saúde e as
e discentes em distintos níveis político- medidas necessárias para superá-la. Nessa
administrativos, técnico-administrativos e disputa, conformam-se três vertentes ou
técnico-operacionais; tendências ao interior do que vem a se designar
j) O conceito de participação em saúde de Movimento da Reforma Sanitária: a liberal-
transcende o âmbito do planejamento sanitarista (preventivista), a racionalizadora e a
e da gestão da saúde e passa pela crítico-socialista16,17.
democratização da vida social. A Saúde Coletiva, sob a hegemonia
É importante notar que a mobilização de da tendência crítico-socialista no espaço
docentes e pesquisadores dos cursos de pós- acadêmico, dá importantes contribuições
graduação em Saúde Coletiva para criação de ao desenvolvimento do projeto da Reforma
uma associação que servisse de mecanismo Sanitária. O documento “A questão democrática
permanente de articulação nacional não na área da saúde”, apresentado pelo Centro
decorreu, exclusivamente, de embates Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), em
ideológicos ao interior do espaço acadêmico 1979, apresenta, de forma pioneira, ideia da
dos Departamentos de Medicina Preventiva. saúde como direito de todos.

De fato, a crise do setor da saúde, no Alguns anos mais tarde, no contexto


fim dos anos 70, expressa na falência da da transição democrática, realiza-se a 8ª
medicina previdenciária e na incapacidade da Conferência Nacional de Saúde, cujo relatório
saúde pública institucionalizada de controlar final vai subsidiar a elaboração do capítulo
endemias e epidemias, gera novas demandas da Saúde da Constituição Federal, de 1988.
relativas à formação de pessoal e à produção A Saúde Coletiva tem papel importante na
de conhecimento. Mais especificamente, Conferência e no Congresso Constituinte, com
demanda-se a formação de técnicos capazes de destaque para a apresentação, pela Abrasco,
planejar e conduzir as propostas de extensão de do documento “Pelo direito universal à saúde”.
cobertura, numa perspectiva racionalizadora. Desse modo, ao longo dos anos 80,
Os programas de pós-graduação da área são, constrói-se um vínculo orgânico entre o
então, mobilizados, inclusive com o aporte de movimento da Saúde Coletiva e o da Reforma
recursos, para a pesquisa e o ensino16. Sanitária.

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A partir dos anos 1990, as relações entre subtraídos, mesmo depois que se institui um
esses dois movimentos se modificam, com o novo tributo, a Contribuição Provisória sobre
deslocamento - do plano político-jurídico para a Movimentação Financeira (CPMF). Ao final
o político-institucional - da arena principal da do período, em 2000, é aprovada a emenda
disputa referente à organização das práticas constitucional nº 29, que estabelece pisos
de saúde. Com o Sistema Único de Saúde de investimentos na saúde, distinguindo
(SUS), legalmente constituído, a luta passa a estados e municípios, que têm percentuais
girar em torno da sua implantação. orçamentários mínimos obrigatórios, e a União,
cujo investimento fica atrelado ao orçamento
De modo sumário, seguindo Paim e
do ano anterior.
Almeida-Filho10, é possível caracterizar os
25 anos que se seguem à promulgação O último período, da conservação-
constitucional do direito à saúde, como mudança, caracteriza-se por uma tentativa
composto de três períodos: os anos de de inserção das propostas da Reforma
instabilidade (1989-1994), a social- Sanitária na agenda governamental, no âmbito
democracia conservadora (1995-2002) e a do Ministério da Saúde. Essa tentativa é
conservação-mudança (2003-2012). comprometida, todavia, pela prioridade da
política macroeconômica de produção de
No primeiro período, são aprovadas as Leis
superávit fiscal para o pagamento de dívidas
Orgânicas da Saúde, em 1990, concluindo-se
bancárias, o que impede a ampliação do
a fase de predomínio das disputas político-
financiamento da saúde. Setorialmente,
jurídicas, e é editada a Norma Operacional
destaca-se a construção do Pacto pela Saúde,
Básica nº 01/1993, que marca o começo
em 2006, que contempla a definição de
da fase de maior importância das ações no
objetivos em termos de melhoria das condições
plano político-institucional. A instabilidade que
de saúde da população e de mobilização social
caracteriza esses anos advém do acirramento
a favor do SUS universal e igualitário, além da
da luta entre o projeto de garantia do direito
pactuação de compromissos e metas entre os
à saúde (de corte socialista), vitorioso no
momento de elaboração da Constituição, e gestores das três esferas - municipal, estadual
o projeto neoliberal de redução do Estado, e federal - de governo.
vitorioso na primeira eleição direta para Um balanço de duas décadas e meia
presidente da República, depois dos 20 anos do SUS mostra, de um lado, a existência de
de ditadura civil-militar. avanços no sentido da universalidade da saúde.
O período da social-democracia Com efeito, do ponto de vista das condições
conservadora, marcado pelo êxito no de saúde, prolonga-se a expectativa de vida
controle da inflação de preços, assiste a uma dos brasileiros, reduz-se a mortalidade infantil,
significativa expansão da oferta de serviços de diminuem as doenças passíveis de prevenção
saúde, patrocinada, sobretudo, pela entrada por vacinação e reduzem-se as mortes por
em cena dos governos municipais, que passam doenças cardiovasculares. Do ponto de vista
a cumprir a atribuição legal de executar as dos serviços, amplia-se o acesso à atenção
ações de saúde. Na esfera federal, no entanto, primária e à atenção às urgências, expande-
a pauta da Reforma Sanitária não entra na se a assistência farmacêutica, consolidam-
agenda oficial e os recursos financeiros são se relevantes programas nas áreas da saúde

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mental e da saúde bucal, fortalecem-se as regiões do país. Tais grupos produzem um
ações de vigilâncias epidemiológica e sanitária, conhecimento de valor científico reconhecido
etc. De outro lado, ressalta a presença de em todo o mundo, que se divulga amplamente
impasses e retrocessos, caracterizados, em prestigiosas revistas internacionais ou
sobretudo, pela tendência à consolidação de nacionais. Além disso, os programas de pós-
um sistema segmentado, com serviços públicos graduação da área formam, anualmente,
centrados na atenção básica, subfinanciados centenas de mestres e doutores que têm
e pouco efetivos, destinados à maioria o reconhecimento do mercado de trabalho.
pobre; e um sistema privado, subsidiado com Por fim, os Cursos de Graduação em Saúde
recursos públicos, que assegura acesso a Coletiva, criados há poucos anos, já estão
serviços de melhor qualidade para a parcela concluindo suas primeiras turmas.
economicamente privilegiada da população.
Infelizmente, essa trajetória de sucesso
Assim, se o vínculo da Saúde Coletiva com acadêmico tem seu brilho em parte ofuscado
o projeto da Reforma Sanitária é evidente e pelos problemas de acesso e qualidade do
relevante, as relações da Saúde Coletiva com o cuidado à saúde no âmbito do SUS, pela
processo da Reforma Sanitária são matizadas: segmentação do sistema de serviços de acordo
as políticas de saúde ora se aproximam, ora se com a capacidade de pagamento do usuário
afastam das proposições reformistas. e pela persistência de um modelo de atenção
hegemonizado pela biomedicina.
A rigor, não é apenas o predomínio
da arena político-institucional que põe os Se é verdade que o alcance dos objetivos
gestores públicos no papel de condutores finalísticos do SUS - a universalidade, a
mais destacados do processo de implantação igualdade e a integralidade - não depende,
do SUS, que determina a modificação de fundamentalmente, do conhecimento cientí-
vínculo entre a Saúde Coletiva e a Reforma fico, não deixa de ser incômodo o fato de a
Sanitária. É também o fim do arco de alianças Saúde Coletiva ser um sucesso na esfera
políticas que conquistou o reconhecimento universitária sem que isso seja acompanhado
constitucional do direito à saúde, o refluxo dos do êxito, na mesma proporção, das ações de
movimentos sociais, no contexto de predomínio cuidado à saúde das pessoas usuárias dos
político do neoliberalismo, e a dedicação dos serviços públicos. Nesse sentido, ainda que
pesquisadores e docentes da Saúde Coletiva consciente de seus limites, a Saúde Coletiva
à expansão e legitimação da sua área como deve ao Brasil uma reflexão sobre os desafios
campo científico. da democratização da saúde por meio do SUS,
incluindo o seu papel nesse processo enquanto
Enquanto a Reforma Sanitária descreve
comunidade epistêmica.
uma trajetória de avanços e retrocessos,
a Saúde Coletiva cresce e se consolida Enfim, assim como a revisão dos
como área do conhecimento, legitimando- movimentos ideológicos que orientaram
se institucionalmente. Com efeito, hoje são intervenções sobre a saúde em uma
muitos os grupos de pesquisa em atividade, perspectiva populacional deixaram entrever as
em instituições acadêmicas das várias diferenças entre a Saúde Pública e a Saúde

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Coletiva, a descrição da evolução histórica da do Estado de inspiração neoliberal em vários
Saúde Coletiva aporta elementos que facilitam países do mundo.
a identificação das diferenças.
Em documento apresentado ao seu 42º
Agora, portanto, é possível passar a Conselho Diretivo, em setembro de 2000,
caracterização da Saúde Pública e da Saúde a Opas avalia que os processos de reforma
Coletiva, identificando o que distingue uma da do setor saúde, tendo se concentrado em
outra. mudanças financeiras e organizacionais e em
ajustes na prestação de serviços às pessoas,
descuidaram da saúde pública. A necessária
Caracterização da Saúde Pública
inclusão da saúde pública nessas reformas
Em 1920, o professor da Universidade passaria pela redefinição de seu papel, com
Yale, C.-E. A. Winslow formula a seguinte base no estabelecimento de suas funções
definição de Saúde Pública: a ciência e a arte de essenciais.
prevenir a doença, prolongar a vida, promover a
O conceito de saúde pública em que se
saúde física e a eficiência através dos esforços
baseia a definição das funções essencials é
da comunidade organizada para o saneamento
o da ação coletiva, tanto do Estado quanto
do meio ambiente, o controle das infecções
da sociedade civil, destinada a proteger e
comunitárias, a educação dos indivíduos nos
melhorar a saúde das pessoas. Não se refere a
princípios de higiene pessoal, a organização
uma disciplina acadêmica, mas a uma prática
dos serviços médicos e de enfermagem para o
social interdisciplinar. Não é sinônimo de
diagnóstico precoce e o tratamento preventivo
atuação estatal na área da saúde, pois engloba
da doença e o desenvolvimento da máquina
ações não estatais e não abarca tudo o que o
social que assegurará a cada indivíduo na
comunidade um padrão de vida adequado para Estado pode fazer em matéria de saúde19.

a manutenção da saúde10. Vale ressaltar que o documento da Opas


Setenta e dois anos mais tarde, convidado menciona a dificuldade de separar, nitidamente,
pela Organização Pan-Americana da Saúde as responsabilidades próprias da saúde
(Opas) para discutir a “crise da Saúde Pública”, pública, relacionadas à prevenção de doenças
o professor Milton Terris, do New York Medical e promoção da saúde de grupos populacionais
College, retoma a definição de Winslow: a definidos, e aquelas relativas à organização da
Saúde Pública é a arte e a ciência de prevenir atenção individual curativa. Afirma, contudo,
a doença e a incapacidade, prolongar a vida que é obrigação da saúde pública dedicar-se
e promover a saúde física e mental mediante às primeiras, ao passo que as segundas são
esforços organizados da comunidade 18
(Terris, objetos de sua preocupação quanto ao acesso
1992:185). equitativo e o controle da qualidade, mas não
são objetos de sua intervenção direta.
Nesse debate, o conceito de saúde
pública é reformulado pela Opas com o Com base em tais concepções, a Opas
propósito de adequá-lo ao contexto da década elenca onze funções essenciais de saúde
de 90, marcado por experiências de reforma pública:

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1) Monitoramento, análise e avaliação da dá nova redação à função 7, que passa a ser:
situação de saúde; promoção e garantia do acesso universal e

2) Vigilância, investigação, controle de riscos equitativo aos serviços de saúde.

e danos à saúde;
3) Promoção da saúde; Caracterização da Saúde Coletiva
4) Participação social em saúde; Nunes4 considera que a Saúde Coletiva
5) Desenvolvimento de políticas e capacidade pode ser dimensionada, em suas origens, como
institucional de planejamento e gestão um fato sociológico e político que nasce, nos
pública da saúde; anos 70, no processo de institucionalização
da formação de recursos humanos e
6) Capacidade de regulação, fiscalização,
dos conhecimentos que se encontravam
controle e auditoria em saúde;
dispersos nas escolas de saúde pública,
7) Avaliação e promoção do acesso
nos Departamentos de Medicina Preventiva
equitativo da população aos serviços de
e nos primeiros cursos de Medicina Social.
saúde necessários;
Caracteriza-se, nessa conjuntura, como um
8) Administração, desenvolvimento e forma- movimento contra-hegemônico que critica o
ção de recursos humanos em saúde; modelo sanitário brasileiro.
9) Promoção e garantia da qualidade dos Na mesma linha, Carvalho7 afirma que
serviços de saúde; a Saúde Coletiva representa “um esforço de
10) Pesquisa e incorporação tecnológica em qualificar problemas de saúde pela temática da
saúde; ‘modernização periférica’ em voga nos anos 60
e 70, com a atenção voltada para a expansão
11) Condução da mudança do modelo de
atenção à saúde. dos aglomerados humanos nos grandes centros
urbanos, a mudança nos padrões demográficos
A esta abordagem da crise da
do mercado de trabalho, a intensificação da
saúde pública, com suas estratégias de
conflitividade social e as práticas de regulação
enfrentamento, dá-se o rótulo de Nova
desfechadas pelo Estado de Bem-estar Social,
Saúde Pública. Uma série de iniciativas é
em sua fraca versão local”. Registra a filiacão
desencadeada para difundi-la entre os países
teórica e metodológica da Saúde Coletiva, no
americanos.
seu nascimento, ao materialismo histórico e
No Brasil, o Conselho Nacional de destaca que o “principal desafio era, então,
Secretários de Saúde20 assume o protagonismo
o de integrar o indivíduo, suporte singular da
na adoção da abordagem, não sem antes
doença, aos processos coletivos”.
adaptar esse rol de funções às características do
SUS, em especial, ao princípio da integralidade, Um pouco mais tarde, Nunes volta ao
que não admite a separação entre as ações tema e acrescenta que a Saúde Coletiva se
dirigidas à coletividade e aquelas destinadas fundamenta na interdisciplinaridade como
aos indivíduos, nem permite que o Estado se condição necessária à produção de um
ocupe apenas das primeiras. Nesse sentido, conhecimento ampliado da saúde, em que

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se fazem presentes os desafios de trabalhar Assim, duas ordens de diferenças se
com as dimensões qualitativas e quantitativas, destacam nessa comparação.
sincrônicas e diacrônicas, objetivas e subjetivas A primeira se refere às menções a “ciência
do processo saúde-doença. Assim, conclui: e arte” nas conceituações de Saúde Pública
“não existe a possibilidade de uma única e a “campo de conhecimentos e práticas de
formulação teórica e metodológica quando saúde” nas definições de Saúde Coletiva. Essas
espaço, tempo e pessoa não são simplesmente menções distintas indicam, essencialmente, a
variáveis, mas constituem parte integrante de adesão dos pensadores da Saúde Pública, de
processos históricos e sociais” . 5
um lado, e dos da Saúde Coletiva, de outro, a
diferentes marcos conceituais.
Mais recentemente, Vieira-da-Silva, Paim
e Schraiber10 definem Saúde Coletiva como Em geral, os estudiosos da Saúde Pública
“campo de produção de conhecimentos não explicitam suas opções teóricas e analisam
voltados para a compreensão da saúde e a as intervenções sobre a saúde das populações,
explicação de seus determinantes sociais, atribuindo-lhes um elevado grau de autonomia
bem como âmbito de práticas direcionadas (ou endogenia) em sua evolução temporal,
prioritariamente para a sua promoção, além como se a história da saúde pública fosse uma
sucessão linear de fatos e acontecimentos
de voltadas para a prevenção e o cuidado a
inerentes à área e de responsabilidade
agravos e doenças, tomando por objeto não
de indíviduos geniais ou de instituições
apenas os indivíduos, mas, sobretudo, os
estatais. Os formuladores da Saúde Coletiva,
grupos sociais, portanto, a coletividade”.
ao contrário, são explícitos na adesão ao
materialismo histórico, na época de emergência
da Saúde Coletiva, e, mais recentemente, nas
Saúde Pública versus
aproximações a abordagens como a sociologia
Saúde Coletiva
de Pierre Bourdieu (o conceito de campo, por
Para comparar e identificar as diferenças exemplo) e a Teoria da Complexidade de Edgar
entre a Saúde Pública e a Saúde Coletiva, Morin (a noção complexa de promoção-saúde-
parte-se do pressuposto teórico de que as enfermidade-cuidado).
necessidades de saúde e as intervenções
A segunda ordem de diferenças
sociais voltadas para atendê-las são deter-
significativas é observada quando se
minadas, em última instância, pela estrutura consideram os momentos constituintes do
da sociedade, em seus planos socioeconômico processo de trabalho - o objeto, os meios ou os
e político-ideológico. En passant, note-se instrumentos e o trabalho propriamente dito -
que a referência à última instância assinala de cada um dos movimentos.
a existência de outras instâncias de (sobre)
A Saúde Pública toma como objeto de
determinação e de condicionamento.
trabalho os problemas de saúde, definidos em
Seguindo esse pressuposto, a Saúde termos de mortes, doenças, agravos e riscos
Pública e a Saúde Coletiva são práticas sociais em suas ocorrências no nível da coletividade.
e podem ser analisadas com base na teoria do Nesse sentido, o conceito de saúde que lhe é
processo de trabalho .
15,21 próprio é o da ausência de doenças.

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A Saúde Coletiva, por sua vez, toma como Sanitária -, aplica os modelos de transmissão
objeto as necessidades de saúde, ou seja, de doenças (controle de riscos), realiza ações
todas as condições requeridas não apenas de educação sanitária e fiscaliza a produção
para evitar a doença e prolongar a vida, mas e a distribuição de bens e serviços definidos
também para melhorar a qualidade de vida como de interesse da saúde na perspectiva
e, no limite, permitir o exercício da liberdade reducionista do risco sanitário, definido pela
humana na busca da felicidade. clínica biomédica. Ademais, é o agente que
Como instrumentos ou meios de trabalho, assume as tarefas do planejamento normativo,
a Saúde Pública mobiliza a epidemiologia que define objetivos e metas sem considerar
tradicional, o planejamento normativo e a outros pontos de vista que o do Estado e
administração de inspiração taylorista, em sem ter em conta a distribuição do poder
abordagens caudatárias da clínica e, portanto, na sociedade, e da administração sanitária,
da concepção biologista da saúde. De fato, são orientada pelas tentativas de controle
as ações isoladas da Vigilância Epidemiológica burocrático dos trabalhadores subalternos.
e da Vigilância Sanitária ou o desenvolvimento
Diferentemente, ao agente da Saúde
de programas especiais, desarticulados das
Coletiva se atribui um papel abrangente e
demais ações, como a Saúde Materno-Infantil
estratégico: a responsabilidade pela direção
ou o Programa Nacional de Imunização que
do processo coletivo de trabalho, tanto na
configuram os meios de trabalho caracterísiticos
dimensão epidemiológica e social de apreensão
da Saúde Pública.
e compreensão das necessidades de saúde,
Já a Saúde Coletiva se propõe a utilizar quanto na dimensão organizacional e gerencial
como instrumentos de trabalho a epidemiologia de seleção e operação de tecnologias para
social ou crítica que, aliada às ciências
o atendimento dessas necessidades. Nas
sociais, prioriza o estudo da determinação
palavras de Paim9, o profissional da Saúde
social e das desigualdades em saúde, o
Coletiva é um técnico de necessidades de
planejamento estratégico e comunicativo e a
saúde e um gerente de processos de trabalho
gestão democrática. Além disso, abre-se às
em saúde, comprometido com os valores de
contribuições de todos os saberes - científicos
solidariedade, igualdade, justiça e democracia.
e populares - que podem orientar a elevação
É, portanto, um militante sociopolítico da
da consciência sanitária e a realização
emancipação humana, como salienta Testa3.
de intervenções intersetoriais sobre os
determinantes estruturais da saúde. Assim, os Granda22 sumariza todas essas diferenças
movimentos como promoção da saúde, cidades em três categorias: pressupostos filosóficos,
saudáveis, políticas públicas saudáveis, saúde métodos e atores políticos.
em todas as políticas compõem as estratégias Assim, enquanto a Saúde Pública adota o
da Saúde Coletiva. pressuposto filosófico-teórico da doença e da
Finalmente, quanto ao trabalho morte como ponto de partida para a explicação
propriamente dito, o agente da Saúde Pública da situação de saúde, a Saúde Coletiva propõe
é o trabalhador que desempenha as atividades o pressuposto filosófico-teórico da saúde e da
das vigilâncias tradicionais - Epidemiológica e vida.

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Ao passo em que a Saúde Pública preconizadas pela Reforma Sanitária Brasileira.
privilegia o método positivista para estudar Em termos concretos, haveria um ambiente
o risco de adoecer e morrer e o método propício para a multiplicação de centros de
estrutural-funcionalista para analisar a produção e reprodução de conhecimento,
realidade social, a Saúde Coletiva busca tecnologias e inovações, tendo em vista
desenvolver métodos complexos que integrem o aprimoramento do SUS e o avanço da
variadas hermenêuticas de modo a favorecer a democratização da saúde. A Saúde Pública, no
compreensão tanto das estruturas quanto das seu atual formato institucionalizado, tenderia a
ações sociais. ser dialeticamente superada, aproveitando-se
seus elementos técnicos de modo a integrá-los
Para a Saúde Pública, o Estado é o ator
nas estratégias da atenção integral à saúde.
político por excelência, capaz por si só de
assegurar a prevenção das doenças, enquanto Em um cenário pessimista plausível, com
para a Saúde Coletiva, além do Estado, há a deterioração do quadro epidemiológico,
outros atores e poderes na sociedade civil que decorrente, sobretudo, do aumento da
devem atuar para promover a democratização prevalência das doenças cardiovasculares e
da saúde. oncológicas, com o crescimento dos gastos em
saúde abaixo das necessidades e com a falta de
Essa comparação revela que são distintas
regulação do setor assistencial privado, a Saúde
as articulações desses dois movimentos
Coletiva sofreria um processo de contenção de
ideológicos com a atual estrutura da sociedade:
suas atividades. Iniciativas em andamento e
a Saúde Pública encontra-se institucionalizada
projetos em consolidação, como os Cursos de
nas atividades quotidianas dos serviços do
Graduação em Saúde Coletiva, se deparariam
SUS, enquanto a Saúde Coletiva, apesar de ter
com a falta de incentivos e perspectivas. Nesse
inspirado o projeto da Reforma Sanitária que
ambiente, a Saúde Coletiva, mesmo como
deu origem ao SUS, persiste como alternativa
projeto contra-hegemônico, estaria ameaçada
contra-hegemônica.
e poderia vir a ser absorvida pela Saúde Pública
institucionalizada.
Perspectivas futuras: Finalmente, dado um cenário inercial
Saúde Pública ou Saúde Coletiva? provável, sem mudanças significativas nas
Almeida-Filho, Paim e Vieira-da-Silva , com
23 condições atuais, com o sistema público
base em cenários construídos pela prospecção de saúde em uma situação de restrições
estratégica do sistema de saúde brasileiro econômicas e fragilidade política, mas com
(Fiocruz24), apontam os “futuros provisórios” da capacidade de resistência e avanços pontuais,
Saúde Coletiva. por meio de iniciativas racionalizadoras das

Em um cenário otimista possível, em que políticas de saúde, a Saúde Coletiva manteria


o SUS constitucional encontraria um ambiente a trajetória dos últimos anos, persistindo
favorável para sua conversão em realidade como área de conhecimento reconhecida,
concreta, a Saúde Coletiva teria um papel mas, ao mesmo tempo, teria limitações
político a cumprir especialmente na definição importantes quanto ao apoio a medidas
de rumos condizentes com as propostas concretas de intervenção e fortalecimento do

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Sistema Único de Saúde de acordo com seus 9. Paim JS. Desafios para a saúde coletiva no século
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a Saúde Pública institucionalizada manteria
10. Vieira-da-Silva LM, Paim JS, Schraiber LB. O
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