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A GUERRA SILENCIADA:
Memória histórica dos moradores do Bico do Papagaio
sobre a Guerrilha do Araguaia
A GUERRA SILENCIADA:
Memória histórica dos moradores do Bico do Papagaio sobre a Guerrilha do Araguaia
JOÃO PESSOA – PB
2008
III
120p.
A GUERRA SILENCIADA:
Memória histórica dos moradores do Bico do Papagaio sobre a Guerrilha do Araguaia
_____________________________________
Profº Dr. Elio Chaves Flores
Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal da Paraíba
(Orientador)
_____________________________________
Profº Dr. Antônio Clarindo Barbosa de Souza
Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal de Campina Grande
(Examinador externo)
_____________________________________
Profª Dra. Regina Célia Gonçalves
Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal da Paraíba
(Examinadora interna)
_____________________________________
Profº Dr. Gervácio Batista Aranha
Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal de Campina Grande
(Suplente externo )
_____________________________________
Profª Dra. Rosa Maria Godoy Silveira
Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal da Paraíba
(Suplente interno)
V
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Este trabalho para ser efetivado contou com o apoio de várias pessoas que, desde o
momento de sua elaboração, passaram a contribuir de forma direta ou indireta. A elas,
agradecemos pela torcida, vibrações positivas e paciência em nos escutar durante a fase de
construção e conclusão do mesmo.
Em primeiro lugar, agradecemos aos nossos pais Wilson Ângelo da Silva e Cléia
Sampaio da Silva, que deram o suporte psicológico e econômico durante a pesquisa. Foram
pessoas que na sua simplicidade acompanharam de perto os momentos de alegria e de
angústia pela qual passamos nestes dois anos. A eles, o nosso muito obrigado.
Ao professor Elio Chaves Flores, pela sua orientação durante nossa pesquisa. Ele, que
sempre esteve disponível e muito nos ajudou com sugestões e críticas ao trabalho. Sua
atividade foi além da relação orientador e orientando. Ao longo destes dois anos, acreditamos
ter construído um amigo. Seus atributos como bom profissional de história supera a
arrogância intelectual. É alguém que sabe, mas demonstra esse saber na simplicidade de ser
humano. A ele, o nosso muito obrigado.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB,
sobretudo àqueles com os quais tivemos a oportunidade de conviver mais de perto, seja nas
disciplinas do curso, seja nas atividades cotidianas. Agradecemos, em especial, aos
professores Raimundo Barroso Cordeiro Júnior, Cláudia Engler Cury, Ariane Norma de
Meneses Sá, Uyguaciara Veloso, Regina Maria Rodrigues Behar, Regina Célia Gonçalves e
Rosa Maria Godoy Silveira, pelas sugestões, críticas e discussões que realizamos ao longo das
disciplinas cursadas nestes dois anos.
À excelente secretária do programa, Virgínia de Barros C. Kyotoku. Sempre atenta às
nossas necessidades, bem humorada e carinhosa, tornou a parte burocrática mais suave.
Aos colegas da turma 2006, Ádamo, Andreza, Larissa, Carlos Adriano, Daniel,
Glaudionor, Guaraciane, Luciana, Rafael, Roberto, Roni, Rosemere e Wagner. Em particular,
a Juliana Alves e Eurico Jorge, que acompanharam mais de perto, com críticas e sugestões, o
trabalho. Foi um momento ímpar em nossa experiência enquanto aprendizes de historiadores.
A todos vocês, o nosso muito obrigado.
Às professoras Cláudia Engler Cury e Regina Célia Gonçalves, coordenadoras do
Programa de Pós-Graduação em História.
VIII
À professora Rosa Maria Godoy Silveira, que, mesmo com sua agenda de
compromissos, encontrou tempo para fornecer sugestões ao nosso trabalho.
Expressamos ainda os nossos agradecimentos aos amigos conquistados nas cidades
onde realizamos nossas entrevistas. Especialmente, agradecemos ao mestre Abelardo José
Gama da Silva e a Maria de Fátima de Medeiros, pela torcida e nossa hospedagem em
Tocantinópolis. Dessa cidade, agradecemos ainda a Ilvandir Rodrigues (Vânia), Nelson
Calvacante e Ione Dias. A vocês, o nosso muito obrigado.
De Porto Franco, agradecemos a Vâner Marinho, pelas informações preliminares ainda
na fase de elaboração da pesquisa, e a Gecília Sabino, pelas informações dos moradores que
conviveram com os guerrilheiros durante o período em que estes moraram naquela cidade.
Para a conclusão da nossa pesquisa, foi imprescindível o apoio da família do professor
Wilame Gomes de Abreu, em Araguaína. Ele nos abriu as portas de sua casa e nos recebeu
com muita atenção. Como filho de Xambioá, indicou-nos as pessoas-chave para nossas
entrevistas. Além disso, não poderia esquecer de agradecer de forma muito especial a sua
mãe, dona Amancia Gomes de Abreu. Ela, também como historiadora, nos guiou e
acompanhou em algumas entrevistas em Xambioá e Araguaína. Graças ao seu apoio e
disposição, conseguimos realizar nosso estudo. A toda a família Gomes de Abreu, os nossos
agradecimentos.
De Xambioá, agradecemos à senhora Marfisa Aquino Cunha, que gentilmente nos
hospedou durante os dias de nossa permanência nessa cidade. Sua acolhida e companhia foi
muito importante para o sucesso de nosso trabalho. Ainda de Xambioá, agradecemos ao
professor Paulo Sena, por nos indicar os moradores que durante a época da guerrilha
conviveram com os militares e com os guerrilheiros. Nessa cidade, contamos com o apoio do
conterrâneo e amigo Elias, que nos aproximou de outros moradores. A todos vocês, o nosso
obrigado.
Em São Geraldo do Araguaia, contamos com o apoio da senhora Neuza Lins. Além de
falar de sua experiência durante o período da guerrilha, ela também nos indicou outras
pessoas que moraram próximos e tiveram contato com os membros do PC do B. A dona
Neuza, o nosso muito obrigado. Também agradecemos ao senhor João de Deus Nazaro, por
nos acompanhar naquele sol escaldante do Pará e nos pôr em contato com outros moradores
da região.
Do Rio de Janeiro, o nosso agradecimento especial às irmãs Ana Campos, Maria
Cecília Rondon Amarante e Joaquina Costa Neta (Religiosas do Sagrado Coração de Jesus),
por sua atenção e disponibilidade em se deslocarem até a cidade de Seropédica (RJ) e ter
IX
RESUMO
Este trabalho discute a Guerrilha do Araguaia a partir da memória dos moradores do Bico do
Papagaio (norte de Goiás – hoje Tocantins, sul do Pará e sul do Maranhão), pessoas comuns
(agricultores, donas de casa, garimpeiros, enfermeiras, comerciantes, barqueiros, dentre
outros) que experimentaram uma guerra que lhes era estranha e que construíram um saber
histórico sobre esse fato. Através dos pressupostos teórico-metodológicos da história oral,
analisamos os testemunhos dos moradores para a guerrilha centrados em três eixos: a
experiência cotidiana da população, as imagens construídas por esta população acerca do
comunismo e o medo e o silêncio presentes na memória dos moradores da região.
Entendemos que a presença tanto dos paulistas quanto dos militares trouxe mudanças na vida
cotidiana dos moradores. Através da tática da aproximação pela amizade e dos trabalhos
sociais realizados pelos militantes do PC do B, a população local encontrou naqueles jovens, a
maioria formada por estudantes, uma alternativa para os problemas que enfrentavam. A partir
do momento em que os militares se estabeleceram na região, percebe-se uma mudança mais
radical no cotidiano dos moradores. Seu cotidiano passou a ser vigiado e fiscalizado. Com
isso, muitas pessoas usaram a tática do silêncio e da negação para sobreviver nesse cenário. A
presença dos militares e, sobretudo, a sua propaganda, na tentativa de difamar e colocar a
população da região contra os paulistas, também influenciaram nas representações dessa
população em relação às imagens do comunismo, geralmente representado pelos moradores
de forma múltipla (gente indesejável, estrangeiros, pessoas contra o governo). Na nossa visão,
as práticas instituídas pelos militares durante a Guerrilha do Araguaia contribuíram para a
presença do medo e do silêncio entre os moradores. Através do uso de ameaças, fiscalizações,
invasões às propriedades, expulsão dos camponeses das mesmas e da exibição dos corpos dos
guerrilheiros mortos, os moradores encontraram no silêncio uma forma sutil de resistência ao
teatro do terror instituído na região do Bico do Papagaio.
ABSTRACT
This work discuss the Araguaia guerrilla warfare from the memory of Bico do Papagaio’s
residents (Goiás North – Tocantins in the present, Pará and Maranhão South), common people
(farmers, housewives, miners, nurses, traders, boaters) who experienced a war strange for
them and that built a piece of historic knowledge about this fact. Through the oral history
technical-methodological presupposes residents’ evidences for the guerrilla warfare were
analyzed and analyzed in at three axes: the population’s daily experience, images
constructed buy this population concerning communism, fear and silence present in the
memory of region’s residents. We understand that both the presence of paulistas and the
soldiers brought changes in the daily life of the residents. Using the tactics of approaching by
friendship and social works performed by the activists from PC do B, the local population
found in those young (students most of them) an alternative for the problems they were
facing. From the moment when the militants arrived in the region, a more radical change in
the daily life of residents was noted. Their daily lives started to be spied and inspected.
Therefore, many people used the silence and denying tactics to survive at this scenario. The
presence of militants and, especially its marketing in an attempt of slandering and putting the
population against the paulistas, also influenced in the representations of this population
concerning communism, generally represented in a multiple form by the residents
(undesirable people, foreigners, people against the government). In our point of view, the
practices instituted by the soldiers during the Araguaia guerrilla warfare contributed for the
presence of fear and silence among the residents. Through the use of threats, inspections,
properties invasions, expulsion of farmers and exhibition of dead bodies of guerillas, the
residents found in the silence a subtle way of resistance to the horror theater instituted in the
Bico do Papagaio region.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA........................................................................................................................ V
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................... VII
RESUMO .................................................................................................................................. X
ABSTRACT .............................................................................................................................XI
INTRODUÇÃO: O PERCURSO DE UMA PESQUISA ... ......................................................1
CAPÍTULO I: COTIDIANO DOS PAULISTAS, MORADORES E MILITARES DURANTE
A GUERRILHA DO ARAGUAIA - “SENHORES, PEÇO LICENÇA, ME OUÇAM COM
ATENÇÃO ................................................................................................................................16
1.1 Brasil, os anos de chumbo da ditadura militar – Que país é este?..................................16
1.2 O interior como o lócus para a Guerrilha do Araguaia e o projeto do PC do B para o
Brasil.............................................................................................................................19
1.3 A chegada dos paulistas ao Bico do Papagaio................................................................27
1.4 O programa dos paulistas ...............................................................................................31
1.5 A experiência da vida cotidiana durante a Guerrilha do Araguaia.................................34
CAPÍTULO II: “É COMUNISTA, É TERRORISTA, É SUBVERSIVO”: A INFLUÊNCIA
DA PROPAGANDA ANTICOMUNISTA NA MEMÓRIA DOS MORADORES DO BICO
DO PAPAGAIO .......................................................................................................................49
2.1 As imagens do comunismo no Brasil: uma longa tradição ............................................49
2.2 A estratégia militar: a propaganda anticomunista ..........................................................52
2.3 As formas de os militares combaterem o comunismo: a caça às “bruxas” ....................60
2.4 As representações dos moradores do Bico do Papagaio sobre o comunismo ................63
CAPÍTULO III: MEDO DE QUÊ? SILÊNCIO POR QUÊ? ...................................................72
3.1 O medo e o silêncio no contexto da Guerrilha do Araguaia...........................................72
3.2 As estratégias utilizadas pelos militares para perseguir e matar os guerrilheiros ..........74
3.3 As estratégias dos militares para impor medo à população............................................82
3.4 O Teatro do terror e o contrateatro .................................................................................89
3.5 Enfrentando o medo, rompendo o silêncio.....................................................................98
CONCLUSÃO........................................................................................................................104
ENTREVISTAS .....................................................................................................................108
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................115
JORNAIS E REVISTAS ....................................................................................................119
REPORTAGEM TELEVISIVA.........................................................................................120
XIII
ANEXOS ................................................................................................................................121
ANEXO A ..........................................................................................................................122
ANEXO B ..........................................................................................................................123
ANEXO C ..........................................................................................................................125
INTRODUÇÃO
1
Ver mapa da região – anexo A. Também é conhecida como Região Hidrográfica Tocantins-Araguaia.
Atualmente, possui cerca de 967.059 km² (11% do território nacional) e abrange os Estados de Goiás
(26,8%), Tocantins (34,2%), Pará (20,8%), Maranhão (3,8%), Mato Grosso (14,3%) e Distrito Federal
(0,1%). No que se refere à população, cerca de 7,9 milhões de pessoas vivem nessa região, correspondendo a
4,7% da população nacional. Aproximadamente 72% da população vivem em áreas urbanas. A região é
formada pelos seguintes biomas: Floresta Amazônica, ao norte e noroeste, e Cerrado, nas demais áreas.
Existem ainda na região 10 áreas de preservação ambiental e 35 áreas indígenas. (Dados presentes no
2
Trabalhar a partir da memória dos moradores, na nossa visão, significa “dar voz” às
pessoas consideradas marginais no campo do conhecimento histórico. Isso porque a maioria
dos trabalhos sobre a chamada Guerrilha do Araguaia enfatiza ou a atuação dos militantes do
PC do B, colocando-os como verdadeiros heróis da história ou, por outro lado, a visão dos
militares que tentavam desenvolver o país, para isso, sendo necessário acabar com o
comunismo que representava, na sua ótica, uma ameaça a esse ideal de progresso. Assim,
temos uma visão ora heróica, ora bandida da guerrilha – um maniqueísmo que talvez tenha
se transferido para a população local. Vamos tentar compreendê-lo.
Diante disso, optamos pelo caminho da memória das pessoas comuns2, gente que, no
seu dia-a-dia, experimentou a convivência seja com os guerrilheiros, seja com os militares e
que, a partir daí, construiu um saber sobre a guerrilha. Assim, buscamos, com base na
metodologia da história oral, recolher e entender a visão que a população da região do Bico
do Papagaio elaborou como fruto de suas experiências. Entendemos por memória histórica
as lembranças dos moradores sobre um evento histórico (nesse caso, a Guerrilha do
Araguaia), mediada pelas suas experiências que, na maioria das vezes, se constituíram
enquanto traumáticas. São, portanto, lembranças de um acontecimento que marcou o nosso
país. Lembranças de pessoas que têm um saber baseado na experiência e não no rigor
científico.
Escolhemos trabalhar com pessoas com uma idade mínima de 45 anos, partindo do
princípio de que, na época da guerrilha, eram adolescentes ou adultos. Portanto, o nosso
objetivo não é analisar a Guerrilha do Araguaia sob o ponto de vista dos guerrilheiros,
tampouco dos militares. Não buscamos, ainda, construir uma versão definitiva do
movimento, mas relatar e discutir o mesmo a partir da ótica de um dos lados envolvidos, os
moradores da região. A opção pela história oral também nos possibilitou refletir sobre o
metier do historiador que, acostumado a trabalhar entre a poeira e as traças, ou como melhor
Relatório sobre viabilidade econômica e capacidade técnica para implantação do Memorial do Araguaia –
IAPA – Instituto de Apoio aos Povos do Araguaia [Xambioá – TO], S/d).
2
Ao nos referir às pessoas comuns, queremos destacar as narrativas dos moradores da região, palco do
movimento do Araguaia. Pessoas que têm uma tradição ágrafa e que, por isso, são colocadas à margem sua
forma de conhecimento. A partir da concepção thompsoniana de “história vista de baixo”, na qual há ênfase
nos sujeitos históricos e projetos silenciados (THOMPSON, 1987: 13), desejamos analisar, através da
memória das pessoas simples da região do Araguaia (agricultores, quebradores de coco babaçu, donas de
casa, comerciantes, barqueiros, garimpeiros e professores), suas experiências vivenciadas durante a Guerrilha
do Araguaia arquitetada pelos militantes do PC do B (Partido Comunista do Brasil). Sobre a concepção de
história vista de baixo, ver ainda SHARPE, Jim. História Vista de Baixo. In: BURKE, Peter (Org). A Escrita
da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62. Ver também HOBSBAWM, Eric.
Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 216-231. No ensaio “A história de baixo para
cima”, esse autor discutiu as dificuldades que os historiadores enfrentam ao fazer a história vista de baixo.
3
destacou Michel de Certeau, ele (historiador) através da escrita põe em cena uma população
de mortos (1982: 106), é instigado hoje a também dialogar com os vivos, e essa forma de
diálogo pode ser buscada através da história oral. Foi isso, portanto, que possibilitou a
realização de nossa pesquisa.
Como técnica, entre as possibilidades da história oral, escolhemos a entrevista
temática, visto que nosso objetivo geral foi aprofundar e compreender a experiência da
Guerrilha do Araguaia a partir da memória dos moradores do Bico do Papagaio, destacando
como esse movimento trouxe mudanças para o seu cotidiano e representou formas de
resistências, medo e expectativas. Nesse sentido, elaboramos um roteiro inicial, contendo
algumas questões, tais como: 1) Conte um pouco sobre a Guerrilha; 2) Há lembrança de
algum guerrilheiro? Qual o nome? 3) O que o senhor (a) acha deles? 4) Houve mudanças na
sua vida, na cidade durante a guerrilha? Quais? 5) Qual a sua opinião sobre a Guerrilha? 6)
Existe alguma cena marcante? Qual? (Ver anexo C – o roteiro completo de uma das
entrevistas realizadas). Durante a pesquisa, realizamos 37 entrevistas com os moradores do
Bico do Papagaio∗, além de utilizar alguns depoimentos concedidos ao pesquisador
Romualdo Pessoa Campos Filho, à pesquisadora Dácia Ibiapina da Silva, aos pesquisadores
Gláucio Ary Dillon Soares e Maria Celina D’ Araújo, aos jornalistas Luiz Maklouf
Carvalho, Elio Gaspari, Hélio Contreiras, Fernando Portela e Palmério Dória e reportagens
voltadas a temática da guerrilha realizadas pelas revistas Veja, Isto é e Época e pelo Jornal
do Tocantins.
Após a realização das entrevistas, iniciamos as transcrições, um dos procedimentos
adotados por quem trabalha com a metodologia da história oral. Sobre esse procedimento,
vários autores têm se manifestado. Para Alessandro Portelli, existe uma relação entre a
tradução de um texto escrito em determinado idioma para outro e a transcrição de fontes
orais. Nesse sentido, afirma: “A mais literal tradução é dificilmente a melhor, e uma
tradução verdadeiramente fiel sempre implica certa quantidade de invenção. O mesmo pode
ser verdade para a transcrição de fontes orais” (1997: 27).
Portanto, segundo os pressupostos de Portelli, a transcrição implica de certa forma
manipulação e interpretação. Ser fiel ao narrador não é fazer transcrições neutras, perfeitas e
∗
As entrevistas foram realizadas em 5 cidades da região do Bico do Bico do Papagaio, distribuídas da seguinte
forma: Tocantinópolis – TO, 8 pessoas; Porto Franco – MA, 2 pessoas; Araguaína – TO, 6 pessoas; Xambioá
– TO, 15 pessoas e São Geraldo do Araguaia – PA, 6 pessoas. É importante destacar que, embora as
entrevistas tenham sido realizadas nessas cidades, os moradores, muitas vezes, na época da guerrilha
habitavam outras localidades (lugarejos e sítios), às vezes próximas dos destacamentos guerrilheiros. Uma
característica bem presente na década de 1960, nessa região, é a constante migração de nordestinos e sulistas.
4
objetivas, mas transmitir ao leitor o que o entrevistado realmente disse. Tentamos seguir, nas
transcrições, o conteúdo e os procedimentos narrativos dos entrevistados. Embora a
linguagem escrita e acadêmica exija obediência às regras gramaticais e ortográficas, nos
depoimentos orais, resolvemos optar pela maneira como cada morador fala. Assim,
procuramos conservar os erros de concordância, ortografia, as expressões regionais, como
forma de valorizar o universo geográfico e sócio-cultural das pessoas e também porque a fala
dos moradores é o nosso objeto de análise nesse trabalho. Algumas vezes, para tornar mais
inteligíveis determinadas palavras, expressões e fatos, utilizamos notas de rodapé.
É importante enfatizar que os relatos contêm muitas pausas, silêncios, frases
interrompidas e esquecimentos. Nesse sentido, utilizamos reticências para indicar os
silêncios, os esquecimentos e as interrupções de pensamento. Para as pausas menores,
usamos a vírgula, o ponto e o ponto-e-vírgula. Evidentemente que, embora tenhamos
procedido metodologicamente dessa maneira, a transcrição é apenas uma forma de traduzir
os depoimentos orais, pois o ato de falar inclui procedimentos de oralidade difíceis de serem
transcritos, como, por exemplo, a entonação, as lacunas e os gestos.
A nossa escolha, por trabalhar com a memória dos moradores, explica-se,
inicialmente, porque os trabalhos relacionados à Guerrilha do Araguaia, geralmente,
priorizaram aspectos políticos e militares. Assim, sem negar a importância dos demais
enfoques, nossa pesquisa deseja contribuir com aqueles poucos enfatizados, como o
cotidiano, o medo, as imagens que a população local “construiu” do comunismo e dos
comunistas e o próprio silêncio que permeia o assunto.
Em relação aos trabalhos que enfatizam a problemática da Guerrilha do Araguaia,
podemos classificá-los em quatro tipos. O primeiro é a própria literatura do PC do B, na qual
temos uma análise da guerrilha segundo o olhar dos militantes do partido. Embora exista
uma literatura bastante expressiva, citamos aqui obras como: Diário da Guerrilha do
Araguaia, sem autor específico, um documento escrito pelos próprios guerrilheiros no qual é
apresentado o projeto que o PC do B propunha para o Brasil; Araguaia: o partido e a
guerrilha, de Wladimir Pomar, em que o autor discute a história da criação do PC do B e
enfatiza a luta armada no campo como forma para se chegar ao socialismo, além de
contribuir para a seleção de vários documentos do partido sobre a guerrilha; Combate nas
Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender,
obra em que o autor faz uma investigação pioneira sobre a luta armada, na qual liga-se o
testemunho de quem dela participou e a pesquisa histórica, e Araguaia: relato de um
5
guerrilheiro, de Glênio Sá, este último faz um relato de memória a partir de sua experiência
como guerrilheiro.3
O segundo tipo é a literatura de memória a partir da versão dos militares. É o caso de
Xambioá: Guerrilha no Araguaia, do coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, nele o
autor relata a sua experiência como piloto de um dos aviões que caçavam e transportavam os
guerrilheiros. O outro lado do poder, de Hugo Abreu, embora não se dedique ao estudo
específico da guerrilha, o autor destaca sua participação no governo Geisel durante os três
anos em que esteve à frente do Gabinete Militar da Presidência da República. A obra é
oportuna porque analisa as ações do governo segundo a versão de um militar. Os anos de
chumbo: a memória militar sobre a repressão, obra organizada pelos pesquisadores Maria
Celina D`Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro, na qual são apresentadas várias
entrevistas com militares que exerceram cargos nos órgãos de informação instituídos durante
o regime militar. Nesse livro, os militares também justificam algumas ações tomadas em
relação à repressão como uma reação às iniciativas da esquerda.4
O terceiro tipo são os artigos jornalísticos publicados em jornais e revistas,
principalmente ao longo do final da década de 1970 até hoje. Nesses artigos foram
destacados depoimentos de moradores, militares e ex-guerrilheiros narrando suas
experiências durante a guerra.5 Publicaram-se inúmeros artigos, dos quais alguns resultaram
em livros, como é o caso de: Guerra de Guerrilhas no Brasil, de Fernando Portela, uma
das primeiras obras sobre a guerrilha a ser publicada. Nela, Portela fez um estudo abordando
3
MOURA, Clóvis. Diário da Guerrilha do Araguaia. (Apresentação). 3 ed.: São Paulo: Alfa-Ômega, 1985.
POMAR, Wladimir. Araguaia: O partido e a guerrilha – Documentos inéditos. São Paulo: Ed. Brasil
Debates, 1980. GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à
luta armada. São Paulo: Ática S.A 1987. SÁ, Glênio. Araguaia: Relato de um guerrilheiro. 2 ed., São Paulo:
Anita Garibaldi, 2004.
4
CABRAL, Pedro Corrêa. Xambioá: Guerrilha no Araguaia. Rio de Janeiro, Record,1993. ABREU, Hugo. O
outro lado do poder. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979. D`ARAÚJO, Maria Celina. SOARES, Gláucio
Ary Dillon. CASTRO, Celso (Orgs). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
5
Ver VEJA. São Paulo: Editora Abril, Edição de 06 set. 1978, pp. 52-58. VEJA. São Paulo: Editora Abril,
Edição de 20 fev. 1980, p. 15. VEJA. São Paulo: Editora Abril, Edição de 13 out. 1993, p. 16-28. ISTO É.
São Paulo: Editora Três, Edição de 28 jul. 1993, p. 48-51. ISTO É Online. São Paulo: Edição nº 1697 de 05
abr. 2002. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/istoe/1697/brasil/1697_em_busca_do_tempo_perdido.htm>. Acesso em: 24 jun.
2005. ISTO É Online. São Paulo: Edição nº 1663 de 15 ago. 2001. Disponível em: <http://www.
terra.com.br/istoe/1663/brasil/1663_arquivo_vivo.htm>. Acesso em: 07 jun. 2007. ISTO É Online. São
Paulo: Edição de 20 jun. 2007. Disponível em:< http://www.terra.com.br/istoe>. Acesso em: 18 jun.2007.
ÉPOCA. São Paulo: Editora Abril, Edição de 03 mar. 2004. Disponível em:
<http://www.defesanet.web.terra.com.br/noticia/epocaaraguaia/index.html>. Acesso em: 07 jun. 2007.
ÉPOCA. São Paulo: Editora Abril, Edição de 21 mai. 2007. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG675559-6009,00.html>. Acesso em: 09 jun. 2007.
Jornal do Tocantins. Palmas, 21 e 22 abr. 2000.
6
6
PORTELA, Fernando. Guerra de Guerrilhas no Brasil. A saga do Araguaia. São Paulo: Global, 2002.
MORAIS, Taís e SILVA, Eumano. Operação Araguaia: Os Arquivos secretos da Guerrilha. São Paulo:
Geração Editorial, 2005. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
7
FELIPE, Gilvane. A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966–1975). Tese de doutorado apresentada ao Institut
des Hautes Études de I`Amérique Latine (IHEAL). Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), 1993.
7
conflito. Sua análise parte do materialismo histórico e destaca desde o contexto mundial –
Guerra Fria, os grupos de esquerda e o golpe de 1964, a opção do PC do B pela guerrilha
rural – até as campanhas das Forças Armadas para destruir o movimento guerrilheiro.8 Sua
análise, entretanto, não enfatizou os aspectos econômicos do mundo e do Brasil na época.
Assim, percebemos em sua abordagem a predominância dos aspectos políticos da Guerrilha
do Araguaia. No mesmo período, isto é, na década de 1990, temos a dissertação de mestrado
de Deusdedith Alves Rocha Júnior, A Guerrilha do Araguaia (1972–1974), defendida em
1995 na UnB (Universidade de Brasília). A dissertação faz um estudo da guerrilha a partir da
análise do discurso em relação aos militantes do PC do B que lutaram no Araguaia. Segundo
o autor, esse discurso classifica-se em três tipos: o do Estado, que passou a tratá-los como
terroristas; o do PC do B que os considerava guerrilheiros e o dos moradores que os
denominavam povo da mata. Além disso, a sua pesquisa também analisou as principais
características da região sul do Pará e as razões que levaram o PC do B a optar pela mesma.9
Assim como Romualdo Pessoa Campos Filho, dedica parte de seu trabalho à narrativa das
campanhas das Forças Armadas contra os militantes do PC do B. Na nossa visão, os três
trabalhos citados apresentam características comuns aos historiadores que se interessaram
pelo estudo da Guerrilha do Araguaia na década de 1990, isto é, a preocupação com o
aspecto político da mesma, na tentativa de buscar respostas para as motivações que levaram
ao início do movimento e à sua destruição pelas Forças Armadas.
Dessa forma, as pesquisas voltadas para o estudo da Guerrilha do Araguaia
apresentaram algumas peculiaridades em relação aos estudos sobre o regime militar.
Segundo Carlos Fico, a produção histórica recente relacionada ao regime militar priorizou as
questões subjetivas como o cotidiano, as emoções e as trajetórias de vida.10 No caso da
8
CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas. Goiânia: Editora da
UFG, 1997.
9
ROCHA JÚNIOR, Deusdedith Alves. A Guerrilha do Araguaia (1972–1974). Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, 158 p.
10
Quando Carlos Fico se refere à produção histórica recente sobre o regime militar, fala das dissertações e teses
produzidas no Brasil a partir do final da década de 1980. Segundo ele, nesse período que coincide com a
chegada ao país da chamada “nova história”, os historiadores abandonaram as explicações fundadas em
conceitos como classe social, modo de produção, estrutura econômica ou estrutura social e passaram a dar
ênfase às questões do indivíduo, seu cotidiano, suas emoções, suas trajetórias de vida etc., ou seja, houve
uma ênfase na valorização da subjetividade. Segundo o levantamento do Grupo de Estudos sobre a Ditadura
Militar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o maior foco de interesse dos trabalhos voltados
para o período militar foram os temas relacionados com a arte e a cultura dessa época. Como exemplo,
temos: ARAÚJO, Arturo Gouveia. Os homens cordiais. A representação da violência oficial na literatura
dramática brasileira após-64. Dissertação de mestrado apresentada à UFPB. João Pessoa, 1991. EUGENIO,
Marcos Francisco Napolitano de. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória
da Música Popular Brasileira (1959/1969). Tese de doutorado apresentada à USP. São Paulo, 1999. VIEIRA,
Francisco Carlos Soares F. Pelas esquinas dos anos 70. Utopia e poesia no Clube de Esquina. Dissertação de
8
Guerrilha do Araguaia, o que houve foi o contrário, a predominância dos aspectos políticos
sobre os subjetivos. Evidentemente que essa escolha dos historiadores pela guerrilha, na
década de 1990, se explica pelo próprio contexto histórico do Brasil naquele momento,
quando experimentávamos os primeiros anos da volta da democracia ao país.
Dentro ainda desse quarto tipo de estudo envolvendo a Guerrilha do Araguaia,
podemos destacar a tese de doutorado de Dácia Ibiapina da Silva, Memórias da Guerrilha
do Araguaia: relatos de moradores de Palestina do Pará, defendida no Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ (Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro), em 2002.11 Embora não seja um trabalho em história, mas em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, trouxe para o debate sobre a Guerrilha do
Araguaia algo não enfatizado pelos trabalhos acadêmicos anteriores – a discussão sobre a
memória dos moradores. Sua discussão percorre desde as representações/narrativas sobre a
guerrilha até os questionamentos sobre os “silêncios” nelas presentes. Enfatizando as
memórias traumáticas da guerrilha com base nos pressupostos teóricos de Michael Pollak e
da metodologia da história oral, a autora procurou ouvir pessoas que durante a Guerrilha do
Araguaia sofreram torturas, mortes de parentes/amigos e ameaças. Sua justificativa para a
escolha de Palestina é o fato de esta cidade ficar próxima ao local onde os guerrilheiros
implantaram um de seus destacamentos (Grupamento B ou Grupamento da Gameleira).
O trabalho mais recente sobre a Guerrilha do Araguaia também se enquadra nesse
quarto tipo e foi produto da dissertação de mestrado de Hugo Studart, intitulada O
Imaginário dos Militares na Guerrilha do Araguaia (1972–1974), defendida no Programa
de Pós-Graduação em História da UnB (Universidade de Brasília) em 2005 e,
posteriormente, transformada em livro, sob o título A Lei da Selva: estratégias, imaginário e
discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia, publicado em 2006.12 O seu trabalho
trouxe para o debate a versão dos militares sobre a guerrilha com enfoque no conceito de
imaginário presente em Cornelius Castoriadis. Segundo o autor, sua obra é um diálogo com a
“Nova história”, contrapondo-se às leituras tradicionais de cunho estruturalista. Hugo
Studart, através de contatos com alguns militares que atuaram no período da guerra no
Araguaia, teve acesso a documentos particulares preservados pelos mesmos, a quem sugeriu
mestrado apresentada à UFRJ. Rio de Janeiro, 1998. Para maior detalhamento dessa questão, ver FICO,
Carlos. Além do Golpe – versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro, São Paulo,
Record, 2004. p. 139-206.
11
SILVA, Dácia Ibiapina da. Memórias da Guerrilha do Araguaia: relatos de moradores de Palestina do
Pará. Tese de doutorado. UFRRJ/CPDA, 2002.
12
STUDART, Hugo. A lei da selva. Estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do
Araguaia. São Paulo, Geração Editorial, 2006.
9
a elaboração de uma espécie de relatório narrando suas experiências, o qual foi denominado
Dossiê Araguaia. Através da análise desse dossiê, o autor discutiu o que pensavam os
militares sobre os guerrilheiros, o que temiam, suas emoções, valores, ideais, imagens e
significados que conferiram às ações. Partindo dessa análise, Studart destacou que os
militares envolvidos nas operações militares no Araguaia haviam pactuado um código de
silêncio, daí as dificuldades em falar no assunto e expor os arquivos.
Inicialmente, com base na leitura dos documentos do PC do B e do arcabouço teórico
postulado por E. P. Thompson, levantamos a hipótese de que a experiência dos guerrilheiros
na região do Bico do Papagaio poderia ser classificada enquanto Movimento do Araguaia, e
não simplesmente como Guerrilha do Araguaia. Por que Movimento? Porque o mesmo
apresentava um projeto de sociedade para o Brasil, e dividia-se em etapas que deveriam ser
observadas e cumpridas pelos militantes do PC do B, como, por exemplo, iniciar a conquista
da população local pela amizade, e não pelo trabalho político partidário. Dentro dessa
perspectiva, a chamada Guerrilha do Araguaia seria uma das etapas do Movimento, ou seja,
a guerra de guerrilhas ou a luta armada constituía um determinado momento do projeto do
PC do B para o Brasil. Entretanto, a pesquisa de campo nos apontou outra direção. Nas
entrevistas com os moradores da região, sempre que perguntávamos sobre o projeto
defendido pelos guerrilheiros para o Brasil, a resposta era o desconhecimento do mesmo, isto
é, os moradores não chegaram a conhecer os objetivos da presença daquelas “pessoas boas”
na região do Bico do Papagaio. Dessa forma, entendemos que a denominação “guerrilha”
ainda é mais apropriada para analisar a experiência das pessoas sobre esse acontecimento
através de suas memórias.
Quanto ao recorte temporal, a maioria dos pesquisadores que estudou a Guerrilha do
Araguaia considera a fase de 1972 até 1975, ou seja, o período da chegada e permanência
das Forças Armadas na região realizando as três operações militares para acabar com ela.13
No nosso estudo, essa datação foi ampliada, pois adotamos o período que se estende de
1966, quando começam a chegar à região os primeiros militantes do PC do B, ou os paulistas
para os moradores, até o momento presente. A razão para esse recorte se explica porque no
13
Durante a guerrilha, foram realizadas três campanhas pelas Forças Armadas. A primeira entre abril e junho de
1972; a segunda, entre setembro e outubro de 1972 e a terceira, entre outubro de 1973 a dezembro de 1974. É
válido ressaltar que essas campanhas militares não constituem o objetivo de nossa dissertação. Para
aprofundar a temática, e também o recorte temporal utilizado pelos pesquisadores, ver CAMPOS FILHO,
Romualdo Pessoa. Op.cit. ROCHA JÚNIOR, Deusdedith Alves. Op.cit. FELIPE, Gilvane. Op.cit. MORAIS,
Taís e SILVA, Eumano. Operação Araguaia: os arquivos secretos da Guerrilha. Geração Editorial, São
Paulo, 2005; STUDART, Hugo. Op.cit.
10
capítulo III de nossa dissertação discutiremos as motivações que vêm contribuindo para a
quebra do silêncio sobre o assunto por parte dos moradores atualmente.
Consideramos que a experiência de guerrilha, arquitetada pelo PC do B, constituiu
um projeto para a região e para o país, desde o momento da chegada de seus militantes e de
sua presença na vida cotidiana da população local. Dessa forma, a presença dos membros da
guerrilha na região do Bico do Papagaio trouxe modificações na vida dos moradores, como
veremos.
Para narrar a experiência dos moradores do Bico do Papagaio acerca da Guerrilha do
Araguaia, escolhemos percorrer os caminhos da memória. Caminhos que buscam valorizar
as experiências de pessoas comuns, simples, que vivenciaram esse acontecimento e
construíram um saber acerca do mesmo. Dentre os múltiplos caminhos teóricos que a
memória nos oferece, escolhemos trilhar os pressupostos de Maurice Halbwachs, em A
Memória Coletiva. Para ele, a memória só pode ser compreendida a partir do plano social,
ou seja, a memória do indivíduo depende de seu relacionamento com a família, com a classe
social, com a escola, com a Igreja. Somos assim influenciados pela maneira como a nossa
sociedade pensa, pelos seus valores, costumes e crenças. As lembranças surgem, então, na
medida em que os outros e a própria situação presente nos fazem lembrar. Nesse sentido,
afirma Halbwachs: “Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas
pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos,
e com objetos que só nós vimos” (1990: 26).
Segundo Halbwachs, a memória é apenas uma reconstrução do passado ela, é,
portanto, uma representação incompleta do mesmo, daí a necessidade dos outros.14 Portanto,
sendo uma representação incompleta, necessitamos de outras pessoas para que as lembranças
possam emergir, daí o seu caráter coletivo.
Outro autor que tem contribuído na reflexão em torno da memória é Jacques Le Goff,
através de seu livro História e Memória, mais especificamente no artigo “Memória”, no
qual, no seu olhar de historiador, define a memória. Para ele, a memória é entendida como a
propriedade de se conservarem certas informações. Ela é um conjunto de funções psíquicas
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que
representa como passadas (1996: 423). Assim, a memória é percebida como uma
14
Em sua análise sobre a memória, Halbwachs se opõe a um outro pensador, o filósofo Henri Bergson. Segundo
Bergson, o passado se conserva inteiramente dentro de nossa memória, tal como foi para nós. A memória
seria, portanto, a conservação do passado. Sobre o pensamento de Henri Bérgson, ver BOSI, Ecléa. Memória
e Sociedade. Lembranças de Velhos. 5 ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1998. p. 44-53.
11
15
Trabalhar com a memória não é algo recente no tocante a outras ciências, como é o caso da psicologia, da
sociologia e da antropologia. Contudo, no campo da história, essa preocupação passa a ocupar um lugar de
destaque a partir dos anos de 1940, na Inglaterra, com os estudos realizados pelos marxistas e, na década de
1960, na França especialmente com a chamada “Terceira Geração da Escola dos Annales”. Assim, a
preocupação com o estudo da memória assumiu um lugar dentro dos estudos históricos, seja a memória
escrita, seja a memória oral. Sobre essa discussão, ver THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. História
Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LE GOFF, Jacques. & NORA, Pierre (Orgs.). História. 1. Novos
problemas; 2. Novos objetos; 3. Novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. 3 v. LE GOFF,
Jacques. História e Memória. 3 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. Em relação ao Brasil, ver
FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (Orgs). Usos e Abusos da História Oral. Rio de
Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2005. MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória: a
cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994.
12
dos primeiros militantes à região do Bico do Papagaio e as razões pelas quais foi escolhida
essa área; o projeto de guerrilha, a atuação junto às “massas” e os fragmentos da vida
cotidiana durante a guerrilha.
Nesse capítulo, realizamos um diálogo com a literatura do próprio PC do B, a
exemplo dos documentos e de autores como Jacob Gorender, Wladimir Pomar e, também, de
obras escritas por jornalistas como Fernando Portela, Taís Morais e Eumano Silva, Luiz
Maklouf Carvalho, assim como da historiografia sobre o período. Todos eles contribuíram,
de forma expressiva, para a tessitura desse primeiro capítulo, que descreve o planejamento, a
preparação e a efetivação do projeto de guerrilha do PC do B. Em relação à contextualização
do período da guerrilha, décadas de 1960 e 1970, dialogamos com autores como Carlos Fico,
Maria Helena Moreira Alves, Denise Rollemberg, Elio Gaspari e Marcelo Ridenti.16
Resolvemos utilizar inicialmente a denominação “paulistas” porque, até o momento
da chegada das Forças Armadas (abril de 1972), a população não tinha conhecimento de que
os novos moradores da região, o Paulo, a Dina, o Juca, o Amaury, o Osvaldão, o Antônio, o
Zé Carlos, a Maria fossem guerrilheiros, membros do PC do B dispostos a enfrentar a
ditadura militar pelas armas e implantar um governo socialista no país. Assim, para os
moradores, eles eram comerciantes e/ou fazendeiros de São Paulo, pois atuavam nas cidades
e povoados da região comercializando diversos produtos trazidos daquela cidade. Passaram,
então, a ser denominados pela população de “paulistas”.17 Entretanto, com a presença dos
militares na região e a propaganda realizada pelos mesmos, os paulistas passaram a ser
denominados de guerrilheiros, subversivos e comunistas. Por essas razões, no capítulo I,
optamos pelo termo paulista; já nos capítulos seguintes, utilizamos a denominação
guerrilheiros.
Para traçar e interpretar a experiência cotidiana dos paulistas, moradores e militares
durante a Guerrilha do Araguaia, optamos por dialogar com autores como Michel de
16
FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira de História.
V. 24, nº 47, São Paulo, 2004. pp. 29-60. ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no
Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro, Mauad, 2001. GASPARI, Elio. Op. cit. RIDENTI,
Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: UNESP, 2005.
17
Embora se denominassem inicialmente de paulistas e fossem caracterizados pela população como tal, os
guerrilheiros eram naturais de diversos Estados do país. Por exemplo, o Paulo Mendes Rodrigues (Paulo) era
natural do Rio Grande do Sul, assim como João Carlos Haas Sobrinho (Juca). Dinalva Oliveira Teixeira
(Dina) era baiana, o Paulo Roberto Pereira Marques (Amaury) era mineiro, o Osvaldo Orlando da Costa
(Osvaldão) também era natural de Minas Gerais, o Antônio Carlos Monteiro Teixeira (Antônio da Dina) era
natural de Ilhéus (BA), o André Grabois (Zé Carlos) era natural do Rio de Janeiro e a Maria Lúcia Petit da
Silva (Maria) era paulista. Assim, percebemos que os chamados paulistas pela população do Bico do
Papagaio eram pessoas oriundas de vários lugares do Brasil, e não especificamente de São Paulo.
13
Certeau, Michel Maffesoli e Agnes Heller. Cada um, dentro de suas especificidades
interpretativas, contribuiu para o esboço desse capítulo.
Partindo da experiência do cotidiano, dialogamos com os posicionamentos teóricos
de E. P. Thompson. Em primeiro lugar, porque através da memória da população local,
constituída por lavradores, camponeses, quebradores de coco babaçu, donas de casa,
professores, enfermeiros e motoristas, ou seja, pessoas comuns que viveram e presenciaram
a Guerrilha do Araguaia e, assim, construíram uma interpretação para a mesma, a qual
pretendemos enfatizar neste trabalho. Dentro desse contexto, afirma Thompson:
Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do
“obsoleto” tear manual, o artesão “utópico” e mesmo o iludido seguidor de Joanna
Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade. (...)
Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram
vítimas acidentais da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas
acidentais (1987: 13).
do comunismo. Quais as imagens que a população da região criou sobre os paulistas? Como
as Forças Armadas contribuíram nessa imagem? Estas são algumas das questões que
pretendemos analisar ao longo desse capítulo. Para entender as representações do que seria o
comunismo para a população do Bico do Papagaio, decidimos, em primeiro lugar, destacar a
longa tradição existente em nosso país da imagem do comunismo. Em segundo lugar,
discutir a propaganda oficial dos militares sobre o comunismo e as formas de combate ao
que denominavam perigo à nação. Por último, a versão dos moradores da região em relação
ao comunismo e aos comunistas.
Nesse sentido, buscamos dialogar com autores como Rodrigo Patto Sá Motta através
de seu livro, Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil; Marcelo
Ridenti – O fantasma da revolução brasileira, e Roger Chartier – A História Cultural:
entre práticas e representações.
A principal dificuldade na elaboração desse capítulo esteve relacionada com a falta
de uma bibliografia específica que discutisse a prática do anticomunismo durante o período
da ditadura militar. A pesquisa do Rodrigo Patto Sá Motta aborda as representações dos
comunistas no Brasil, mas o seu recorte temporal é concluído em 1964, ou seja, no momento
em que os militares passam a governar o país.
Para solucionar essa dificuldade, realizamos um trabalho de “garimpagem” junto aos
depoimentos de alguns militares ao CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil) e, partindo de seus depoimentos, encontramos algumas
imagens a respeito do comunismo e dos comunistas no país nesse período. O objetivo desse
levantamento preliminar não foi aprofundar essas imagens anticomunistas entre os militares,
mas perceber a influência dessas junto aos moradores do Bico do Papagaio.
O Capítulo III, denominado inicialmente “Medo de quê? Silêncio por quê?”,
discute a problemática do medo e silêncio que os moradores enfrentaram e (alguns) ainda
enfrentam quando discorre sobre a Guerrilha do Araguaia. Embora o medo faça parte do
cotidiano, resolvemos, devido a sua importância – forte presença na vida da população –
dedicar um capítulo específico a este tema. Isso porque durante nossas entrevistas essa
questão foi bastante enfatizada pelos depoentes. A principal idéia foi entender e interpretar o
porquê da existência do mesmo na memória dos moradores.
Partindo das argumentações de Jean Delumeau, em A História do Medo no
Ocidente, discutimos as estratégias utilizadas pelos militares para impor à população local o
medo e o silêncio em relação ao movimento. Na nossa visão, o silêncio foi reflexo do medo.
15
Diante das ameaças e torturas impostas à população local, o silêncio e o medo são
entendidos como uma forma de os moradores resistirem às pressões das Forças Armadas, ou
seja, como uma forma de defesa e não como uma simples covardia. A partir das narrativas,
também percebemos o caráter múltiplo desse medo, que se apresenta para cada depoente de
forma diferenciada. Para alguns, o medo é refletido pela guerra, para outros pelas torturas e
vigilâncias por parte das Forças Armadas. O medo presente na população do Bico do
Papagaio é abordado nesse capítulo, a partir do contexto que o Brasil experimentava –
censura, repressão e tortura contra aqueles que se colocassem contra o projeto dos militares.
Nesse capítulo, continuamos o diálogo com E. P. Thompson, principalmente através
do seu conceito de Teatro do Terror e de Contrateatro. Na visão dos militares, apenas a
morte dos guerrilheiros não era o suficiente. Era necessário exibir o corpo daqueles que
haviam se colocado contra o governo, fotografar, cortar a cabeça e comemorar suas mortes.
Tudo isso demonstra, na nossa visão, um verdadeiro teatro de terror ao qual a população
estava submetida durante os anos de guerra. Teatro este bastante presente nas narrativas dos
moradores da região. Por outro lado, da mesma forma que os militares instituíram o teatro do
terror, os guerrilheiros também criaram o seu contrateatro, isto é, estratégias para levar o
pânico e o medo aos recrutas que não conheciam a mata.
Esse capítulo se completa com a discussão sobre as motivações que vêm
contribuindo para que os moradores do Bico do Papagaio, atualmente, enfrentem o medo e
passem a romper o silêncio em falar sobre a Guerrilha do Araguaia.
Dessa forma, trilhando os caminhos da memória dos moradores do Bico do Papagaio,
esperamos contribuir no debate historiográfico em torno da Guerrilha do Araguaia. Através
dos depoimentos dessas pessoas comuns, buscamos valorizar suas experiências vivenciadas
no dia-a-dia com os guerrilheiros e os membros das Forças Armadas, seus medos e imagens
do comunismo e, assim, destacar o seu lugar enquanto sujeitos históricos. Com isso, estamos
apenas colocando um pingo d`água no oceano que é a história, ou seja, ainda há muito o que
ser estudado e discutido sobre a guerrilha. O exercício que aqui realizamos é uma
possibilidade de se contar essa história.
***
16
CAPÍTULO I
a Guerrilha do Araguaia
momento crítico, em que ele tem que tomar uma decisão optativa – ou a revolução continua,
ou a revolução se desagrega”.18
É válido destacar que todos os ministros presentes na reunião colocaram-se
favoráveis às medidas do AI-5. Contudo, transcrevemos trecho do depoimento do ministro
do Planejamento, Hélio Beltrão, no propósito de sintetizar esse posicionamento.
Não pode haver nenhum argumento formal, nenhuma consideração de ordem
abstrata, que justifique a permissão da implantação da desordem neste país. É
necessário realmente assumir a responsabilidade de uma ditadura, mas a ditadura
só será ditadura na medida em que os poderes excepcionais que estão sendo
conferidos ao governo forem usados arbitrariamente.19
Dessa forma, o regime militar justificava sua atuação perante a sociedade. Justificava,
também, todas as arbitrariedades que, a partir daquele ano, se radicalizaram no Brasil, apesar
de já virem acontecendo desde o golpe militar de 1964. Com o AI-5 o governo pôde ampliar
a repressão à sociedade civil, legalizando várias práticas coercitivas como a tortura. Além
disso, esse ato institucional concedia aos militares o direito de legislar em causa própria. O
próprio general Médici,20 justificando a utilização do mesmo, afirmou: “Eu posso. Eu tenho
o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo” (GASPARI, 2002: 129-130).
Segundo a versão dos militares, o AI-5 teria sido uma forma de “manter a ordem” na
sociedade que resistia à ditadura através, por exemplo, das greves nas regiões metropolitanas
de Minas Gerais e São Paulo; dos choques entre estudantes e militares nas ruas ou invasões
às escolas, e da Passeata dos Cem Mil, que reuniu milhares de pessoas em protesto contra o
regime militar nas ruas do Rio de Janeiro.21
Na tentativa de justificar sua posição a favor do AI-5, o ex-ministro do Trabalho,
Jarbas Passarinho, afirmou em 1998: “Se nós tivéssemos impedido de dar ao presidente os
meios que os militares cobravam, único meio possível de manter a ordem, e nós tivéssemos
entregue o país aos comunistas. Qual era o maior arrependimento?”22 Dessa maneira, havia
toda uma construção, por parte do regime militar, na tentativa de formar uma imagem
negativa dos “comunistas”. Algo não muito recente na história oficial de nosso país, pois,
18
Em dezembro de 1998, após trinta anos da institucionalização do Ato Institucional nº 5 (AI-5), a Rede Globo
de Televisão, através do programa Fantástico, exibiu algumas reportagens narrando este acontecimento. O
programa destacou, entre outros itens, a reunião do Conselho de Segurança Nacional, em 13 de dezembro de
1968, presidido pelo, então, presidente Costa e Silva, que aprovou o AI -5.
19
Idem. Ibidem
20
Embora o AI-5 tenha sido aprovado durante o governo Costa e Silva, foi a partir do governo do general
Emílio Garrastazu Médici (1969–1974) que o mesmo passou a ser praticado.
21
Esses protestos contra os excessos das Forças Armadas foram também influenciados pelo movimento dos
estudantes franceses – “Maio de 68”. Além disso, essas ações contaram com o apoio de parte da Igreja
Católica (Ala progressista), dos intelectuais e da simpatia da população.
22
Fantástico. Rede Globo, dez. 1998.
18
Projetos de esquerda voltados para a luta armada no Brasil não foram uma
peculiaridade do PC do B, pois outras organizações como o MNR (Movimento Nacionalista
Revolucionário), a ALN (Ação Libertadora Nacional), a VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária) e o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) são alguns exemplos
de grupos que lutaram a partir dessa perspectiva. Esses grupos tiveram uma atuação
expressiva no cenário político brasileiro no início dos anos de 1960. Porém o predomínio
desse cenário ficou a cargo do PCB (Partido Comunista Brasileiro), que, embora ilegal,
viveu nesse período o seu apogeu.
Durante essa década, mais especificamente em 1962, houve a cisão do PCB (Partido
Comunista Brasileiro). Em âmbito partidário, existiam duas correntes: uma defendida por
Luís Carlos Prestes que, seguindo a diretriz de Moscou, destacava uma transição pacífica do
poder, e a outra, formada por João Amazônas, Maurício Grabois e outros, que defendia a luta
25
Sobre o apoio de Cuba à luta armada no Brasil, ver: ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta
armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
26
Sobre a chamada Guerrilha de Caparão, ver: ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta
armada. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs). O Brasil Republicano e o
tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 45-91.
20
armada (PORTELA, 2007: 67-68). Como as idéias eram antagônicas, e não houve um
consenso entre os dois grupos, criou-se o Partido Comunista do Brasil (PC do B),
inicialmente sob a liderança de João Amazônas e Maurício Grabois. Após o
desmembramento, assim se refere o “novo” partido sobre a necessidade da luta armada: “Só
a luta decidida e enérgica, as ações revolucionárias de envergadura, darão o poder ao povo”
(POMAR, 1980: 11).
Dessa forma, entendemos, desde a criação do PC do B, a sua inclinação para a ação
revolucionária, embora não estivesse bem definido o centro dessa ação, talvez o campo. Ora,
essa necessidade da luta armada constituiu uma preocupação no PC do B, mesmo antes do
golpe militar de 1964. Com a cisão partidária, essa idéia se fortalece, ou melhor, radicaliza-
se. Contudo o PC do B ainda não tinha clara a definição do caminho da luta armada: o
campo ou a cidade (POMAR, 1980: 17). Essas divergências nos ajudam a entender o caráter
heterogêneo do “novo” partido.
Mesmo não havendo consenso sobre o caminho da luta, o PC do B começou a enviar,
entre os anos de 1964 a 1966, militantes do partido para se especializarem na guerrilha rural,
na China. Desse modo, podemos citar alguns deles, por exemplo: Osvaldo Orlando da Costa
(Osvaldão), João Carlos Haas Sobrinho (Juca), André Grabois (Zé Carlos), José Humberto
Bronca (Zeca Fogoió), Paulo Mendes Rodrigues (Paulo), Daniel Ribeiro Calhado (Doca),
Divino Ferreira de Souza (Nunes, Goiano), Gilberto Olímpio Maria (Pedro, Pedro Gil),
Miguel Pereira dos Santos (Cazuza), Nelson Lima Piauhy Dourado (Nelito) e Micheas
Gomes de Almeida (Zezinho) (GORENDER, 1987: 208).
A partir de novembro de 1967, no documento O PC do B na luta contra a Ditadura
Militar, ficou evidente que a luta armada se realizaria no interior do país. Para isso, o
terreno constituía um papel fundamental e determinante na preparação, no desencadeamento
e desenvolvimento da guerrilha. Nesse sentido, afirma o partido: “O interior é o campo
propício à guerra popular. Ai existe uma população que vive no abandono. (...) a massa
camponesa é uma grande força (...) o interior é o elo mais débil da dominação das forças
reacionárias do país” (In: POMAR, 1980: 22).
Fica evidente na visão do partido a concepção “elitista” do mesmo em relação às
populações do interior do país, “a massa camponesa”. Seu pressuposto é, nesse sentido, tão
preconceituoso quanto o dos militares. Noutras palavras, o PC do B não conhecia o interior
do país, seus militantes não estavam tão preparados quanto pensavam para sobreviverem na
mata, muitos não conheciam na prática, até sua ida para a região, as condições adversas de
21
sobrevivência naquele longínquo lugar do Brasil. Suas idéias eram até aquele momento
apenas formulações teóricas. Era necessário aprender a caçar, plantar e colher, práticas que
os jovens estudantes de classe média urbana não estavam habituados a realizar.
As dificuldades iniciais que os “paulistas” encontraram para se identificarem
enquanto camponeses, e com isso se adaptarem aos costumes dos moradores da região,
especificamente no trabalho com a terra, foram destacadas pelo ex-guerrilheiro Glênio
Fernandes de Sá (Glênio):
Nos primeiros dias de trabalho com o facão, cortando o mato, apareceram bolhas
nas palmas das minhas mãos. Como havia muito mato pra ser cortado e o serviço
não podia esperar, elas sangravam. Usei as meias como luvas, para amenizar a dor
e diminuir o atrito do cabo do facão com a pele fina (2004: 7).
Após o partido ter definido o interior como local propício para o movimento e
posteriormente para a implantação da guerrilha, cabia agora escolher em qual área/região do
Brasil a mesma poderia ser efetivada. Segundo o PC do B, a região do Bico do Papagaio (Sul
do Pará, Sul do Maranhão e Norte de Goiás – atual Estado do Tocantins) constituía o local
que oferecia excelentes condições para a instalação da luta armada. A literatura sobre a
guerrilha ressalta, como principal fator da escolha, as condições do terreno, as condições
topográficas e a cobertura vegetal. Segundo Ângelo Arroyo, a região do Araguaia constituía
o lugar ideal, ou melhor, estratégico para a atuação dos guerrilheiros:
A região do Araguaia oferece condições propícias. É zona de mata, e na mata o
inimigo não pode usar tanques, artilharia, bombardeio aéreo de precisão, etc. Tem
de estar a pé como o guerrilheiro. É uma zona de massa pobre e explorada (frente
pioneira de penetração da massa camponesa sem terra), circundada por povoados e
cidades pequenas e médias também de grande pobreza. Dispõe de caça abundante,
castanha-do-pará, babaçu e outros meios de alimentação (POMAR, 1980: 275).
Além da iniciativa por parte do governo de atrair grandes companhias para a área,
havia o projeto de colonização ao longo da rodovia Transamazônica.28 Essa ocupação
aconteceu através das chamadas agrovilas, com o objetivo de assentar aproximadamente 100
mil famílias a partir de 1967. Entretanto o projeto fracassou. Houve uma certa resistência dos
moradores em mudar-se dos povoados para as agrovilas. A pesquisadora Dácia Ibiapina da
Silva destacou os fatores que contribuíram para esse fracasso:
O que almejavam os que migravam para esta região, na época, era um pedaço de
terra onde pudessem “se arranchar”, fixarem-se como pequenos posseiros.
Estavam acostumados a morar em casas de taipa, cobertas com folhas de
palmeiras nativas, criar galinhas e outros animais domésticos em seus terreiros,
“botar roça”, caçar, aventurar a vida nos garimpos da região, coletar castanha,
etc., como iriam se adaptar a este modelo de agrovila? (2002: 53).
Siney Ferraz, em seu estudo sobre o movimento camponês nessa localidade, também
destacou os problemas relacionados à posse da terra e o seu agravamento na segunda metade
da década de 1960. Nessa época se dá a chegada dos “sulistas”, e, com eles, a terra adquire
valor como mercadoria. Diante desse contexto, diz o autor: “Assim, agrava-se de modo
crescente o antagonismo entre posseiros e fazendeiros envolvendo outras categorias sociais.
Entra[m] em cena os grileiros, jagunços, policiais, advogados, técnicos e outras categorias
27
A SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) foi criada em 1966. Fazia parte do projeto
dos militares para o “desenvolvimento” daquela região.
28
A construção da Transamazônica teve seu início em 01 de outubro de 1970. Fez parte do projeto de
“desenvolvimento” e integração do governo militar, ligando o Brasil de leste a oeste. Contudo, foi
considerada uma obra faraônica, nunca concluída.
24
29
A região do Bico do Papagaio durante a década de 1960 é um lugar de fronteira. Fronteira aqui concebida
não apenas enquanto um território físico espacial, como uma região de encontro de três Estados da Federação
(Pará, Goiás e Maranhão), mas também enquanto território social, político e simbólico. É o lugar da
confluência de múltiplos projetos: militar, população local, índios, migrantes e paulistas (guerrilheiros).
Nesse sentido, a fronteira pode ser percebida como um campo de forças, de visões de mundo e projetos de
vida diferentes. Para um aprofundamento da relação entre história, região e espacialidade, ver: BARROS,
José D`Assunção. História, região e espacialidade. In: Revista de História Regional. Vol. 10, Nº 1, Editora
da UEPG, Ponta Grossa, Verão de 2005, p. 95-129. Para um estudo do conceito geográfico de fronteira, ver:
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo, Editora
Ática, 1993. p. 164-185.
30
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
25
Dessa forma, a luta armada poderá surgir de distintos motivos e em vários pontos
do Brasil do interior. Em seu começo, as ações armadas têm em vista infundir mais
confiança às massas em suas forças, aumentar sua capacidade de luta e ajudá-las a
compreender a necessidade de apelar para as armas como o único meio de
conquistar uma vida melhor. Pouco a pouco, com os êxitos e as experiências
obtidas, a luta armada irá se estendendo a diferentes áreas. Chegará a ocasião em
que, devido ao fortalecimento das forças revolucionárias e à dispersão e ao
debilitamento do inimigo, a guerra popular se travará não só nas regiões mais
distantes, mas também em áreas próximas dos grandes centros. (In: POMAR,
1980: 108).
31
Sobre esse conceito ver CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes,
2005. p. 26.
32
É importante ressaltar que essa afirmação não é nossa, mas do próprio PC do B através dos seus documentos.
Sobre essa estratégia do partido, confira: MOURA, Clóvis. Diário da Guerrilha do Araguaia.
(Apresentação). 3ª edição: São Paulo: Alfa-Ômega, 1985, p. 26-32. POMAR, Wladimir. Araguaia: o partido
e a guerrilha - Documentos inéditos. São Paulo: Ed. Brasil Debates, 1980, p. 28-29. GORENDER, Jacob.
Combate nas Trevas – a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática
S.A, 1987, p. 208. Na nossa interpretação, o trabalho social realizado pelos guerrilheiros não deixa de ter um
forte aspecto político, se compreendermos política no seu sentido mais amplo. Assim, a aproximação pela
amizade ou através dos trabalhos diários e sociais pode não caracterizar um trabalho político revolucionário,
mas não deixa de ser um trabalho político em seu sentido mais amplo, visando à conquista da população para
o ideal proposto pelos membros do PC do B. A população local pode não ter percebido essa tática do partido,
já que nos seus testemunhos afirmam a não-existência do trabalho político por parte dos
paulistas/guerrilheiros.
27
número de soldados à procura dos “terroristas”, e mal entendia o que estavam falando e
pretendendo.
Nesse sentido, o senhor Davi Rodrigues de Souza (Davi dos Perdidos), morador do
povoado por nome Perdidos, pertencente ao município de São Geraldo do Araguaia – PA,
contou-nos a forma como o Exército chegou à região e como tratara os moradores, que não
entendiam o que estava acontecendo:
Logo que eu mim casei começou uma guerra que não era com polícia, era uma
guerra com pistoleiro. Um fazendeiro, que eu já tinha arrumado uma terra,
querendo tomar a terra que a gente tinha, e a gente enfrentou uma grande
dificuldade com aqueles fazendeiros e os pistoleiros. Mais antes de terminar isso
chegou o Exército, a Polícia Federal dizendo que tavam pegando terrorista, um
povo que eu não conheci muito, mais lá nos Caianos eu conheci um bucado (…) Só
que isso quando o Exército chegou, que a Polícia Federal chegou isso nasceu de
novo, queria que eu contasse a história deles como do dia do nascimento deles, dos
estudos deles que eu não conhecia … que eles eram terroristas. Isso na minha casa
que chegou o batalhão dizendo e chamando eles de terrorista. Eu digo: – Eu não
conheço eles como terrorista! – “Você conhece eles como terrorista não? Eles são
terrorista e querem mudar o regime de governo”.33
33
Entrevista com o senhor Davi Rodrigues de Souza, conhecido como Davi dos Perdidos, concedida a este
pesquisador em São Geraldo do Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo
Pessoal.
28
guerrilheiro, o Destacamento A. Na época, Elza tinha 54 anos e se fazia passar pela tia do
militante Líbero Giancarlo. Juntos, montaram um pequeno comércio de peles de veado,
cobra, onça, remédios e munições (CAMPOS FILHO, 1997: 82).
Em dezembro de 1967, Maurício Grabois (o Mário) dirigiu-se a uma área próxima ao
rio Araguaia – entre Apinagés e Araguatins, no porto da Faveira, sul do Pará. No ano de
1968, chegou Gilberto Olímpio Maria (o Pedro), engenheiro com curso realizado em Praga,
na Tchecoslováquia, indo instalar-se, inicialmente, em Porto Franco junto com João Carlos
Haas Sobrinho. No mesmo ano, também chegou à região Paulo Mendes Rodrigues (o Paulo),
economista, que organizou uma roça nas proximidades de São Geraldo (sul do Pará)
(MATOS, 2004: 236).
Em 1969, chegaram à região o velho dirigente comunista João Amazônas (Cid, Tio
Cid), com mais de 60 anos, José Genoíno Neto (Geraldo), Glênio Fernandes de Sá (Glênio) e
José Humberto Bronca (o Zeca Fogoió) e se instalaram, inicialmente, nas proximidades do
município de São João do Araguaia (Pará). Como todos os demais, montaram roças e
mantiveram os primeiros contatos com a população local.
A partir de 1970 até 1972, chegaram vários militantes do PC do B com diferentes
profissões. Havia operários, camponeses, bancários, enfermeiras, engenheiros, geólogos e,
principalmente, estudantes universitários que viam na luta armada uma forma de resistência
ao regime militar vigente no Brasil. Podemos ainda destacar o operário metalúrgico Ângelo
Arroyo (Joaquim, Aluízio, Ademir), que se fixou na região conhecida como Caianos; o
goiano de origem camponesa Divino Ferreira de Souza (Nunes), a geóloga baiana Dinalva
Oliveira Teixeira (Dina), que trabalhou como camponesa e professora; a estudante
secundarista paulista Maria Lúcia Petit (Maria), que morou na região dos Caianos e atuou
como professora; a universitária Maria Helenira Rezende de Sousa Nazareth (Fátima) e o
alfaiate nordestino Antônio Ferreira Pinto (Antônio Alfaiate) (MORAIS e SILVA, 2005:
563-602).
Havia algumas regras estabelecidas pelo partido para os combatentes, conforme o
Diário da Guerrilha do Araguaia, documento elaborado pelas Forças Guerrilheiras do
Araguaia, sem um autor definido. De acordo com essas regras, o combatente, em suas
relações com o povo, deveria adotar os seguintes cuidados:
a) conhecer os problemas das massas e ajudá-las na medida do possível;
b) respeitar a família, os hábitos e os costumes das massas;
c) não tomar nada das massas, pagar o que se compra ou devolver o que se toma
emprestado;
d) não tratar as massas com arrogância;
e) realizar a propaganda revolucionária entre as massas (MOURA, 1985: 72-73).
29
34
Cabe destacar que para o PC do B a “massa” representava os camponeses. A sua incorporação ao projeto
revolucionário dar-se-ia, conforme o partido, num segundo momento.
30
35
O município de São Domingos das Latas hoje chama-se São Domingos do Araguaia.
31
Como afirmamos, desde o início dos anos de 1960 o Partido Comunista do Brasil (PC
do B) tinha um projeto para o país. Esse projeto tornou-se mais urgente a partir do golpe
militar de 1964. Com a presença dos militantes na região do Araguaia, a idéia era colocar em
prática tudo aquilo que o partido havia formulado na teoria, a partir de seus documentos. Um
dos mais emblemáticos desses documentos e que está diretamente relacionado com a
Guerrilha do Araguaia é o Programa dos 27 Pontos da União pela Liberdade e pelos
Direitos do Povo – ULDP, que os guerrilheiros tentaram divulgar na época de sua presença
no Araguaia. Sintetizamos aqui alguns dos pontos que consideramos relevantes para nosso
estudo.
A União do Povo do interior deve fazer-se partindo de suas reivindicações mais
sentidas e mais imediatas. Que deseja o homem do interior? Quais são os
problemas que mais o afetam? Ele quer:
1. Terra para trabalhar e título de propriedade de sua posse.
2. Combate à grilagem, com castigo severo a todos que grilarem terras.
3. Preços mínimos compensatórios para os produtos da região (...). Criação de
Distribuidoras do Estado, que adquirem por preço fixado todos os produtos que
lhes sejam oferecidos e, ao mesmo tempo, vendam com uma pequena margem de
lucro (...).
4. Facilidade para o deslocamento da produção através de diferentes meios de
transportes, e financiamento ao lavrador para compra de animais.
5. Proteção à mão-de-obra dos que trabalham nos castanhais, na estação da madeira
ou nas grandes fazendas. (...)
6. Assegurar aos ‘garimpeiros’ o direito de trabalhar livremente e a regulamentação
de sua atividade, impedindo que seja explorado na venda dos bens obtidos em seu
trabalho.
32
7. Liberdade de caça e pesca para sua alimentação, permitindo-se a venda das peles
dos animais por eles mortos para o seu próprio consumo. (...)
8. Liberdade para coletar, quebrar e vender o babaçu.
9. Redução dos impostos que recaem sobre o trabalho da terra e sobre o pequeno
comércio. Os pequenos e médios lavradores não devem pagar nenhum imposto ou
taxa ao INCRA. (...)
10. Direito de todo lavrador ou trabalhador da selva possuir sua arma de caça e de
defesa pessoal.36
36
Além dos itens destacados, havia outros 17, que garantiam: serviço médico gratuito, escolas nos povoados,
fim das arbitrariedades políticas contra o povo, casamento civil e registro de nascimento gratuito, proteção à
mulher, estímulo ao desenvolvimento da prática esportiva, tolerância religiosa, criação de comitês populares,
elaboração de planos de desenvolvimento e urbanização das cidades, distribuição das terras improdutivas
pertencentes ao Estado à população para o cultivo durante um ano, defesa das terras indígenas,
reflorestamento e respeito à propriedade privada. (Grifos nossos). Ver Diário da Guerrilha do Araguaia.
Op. cit., p. 75-79. É importante destacarmos que, mesmo o PC do B defendendo um projeto socialista para o
país, vemos uma adaptação desse projeto à realidade brasileira. Isso fica evidente quando se afirma no
programa o “respeito à propriedade privada”. Partindo do pressuposto de ser uma proposta de cunho
socialista, parece-nos inconcebível tal iniciativa. Porém é destacando essa peculiaridade que os militantes do
PC do B procuravam conquistar a população local para aderir ao seu projeto.
33
Outro aspecto importante que contribuiu para essa “falta de informação” e/ou
silenciamento, seja da população local, seja do Brasil como um todo, sobre a guerrilha está,
em nossa opinião, relacionado à censura à imprensa. De acordo com a jornalista Taís Morais,
a única matéria publicada pela imprensa, durante o período da guerrilha, foi realizada por
Henrique Gonzaga Júnior, no jornal O Estado de São Paulo, em 24 de setembro de 1972
(MORAIS e SILVA, 2005: 285-286).
Referindo-se à censura durante o período militar, Carlos Fico argumenta que não se
pode falar no estabelecimento da mesma durante esse período, pois ela nunca deixou de
existir no Brasil (2003: 187). Para o autor, nessa fase, temos no Brasil dois tipos de censura:
37
Entrevista com o senhor Edézio Gomes da Silva, concedida a este pesquisador em São Geraldo do Araguaia
– PA, em 07/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
38
Entrevista com o senhor Salomão Dias de Sousa, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
34
uma voltada para a imprensa e a outra para as diversões públicas. A primeira era praticada de
maneira acobertada, através de bilhetinhos ou telefonemas entregues às redações de jornais.
A segunda, mais antiga na história do Brasil, existia desde 1945 e era familiar aos produtores
de teatro, de cinema, aos músicos e a outros artistas. Praticada pelos censores (funcionários
especialistas), pautava-se na longa tradição da defesa da moral e dos bons costumes (FICO,
2004: 37). Dessa forma, observamos que, também através da censura, a Guerrilha do
Araguaia fora silenciada. Poucos brasileiros na realidade sabiam o que vinha acontecendo
nas décadas de 1960 e 1970 na região do Bico do Papagaio. A guerra e as formas como as
Forças Armadas barraram o projeto do PC do B foram silenciadas, de modo que os próprios
moradores da região foram intimidados a contribuir com esse silêncio durante vários anos.
memórias, o seu cotidiano, os seus medos e a própria imagem construída por essas pessoas
acerca do projeto dos guerrilheiros.
Nesse sentido, as leituras e os conceitos de Edward Palmer Thompson nos
proporcionam um olhar mais amplo sobre a guerrilha. Assim, conceitos como experiência,
resistência e a própria dimensão cultural do movimento permitem a ênfase em aspectos
poucos trabalhados pela produção historiográfica sobre o tema. Isso se explica porque alguns
trabalhos (dissertações e teses) sobre a guerrilha, como vimos, destacaram os aspectos
políticos e/ou militares, a luta de classes e a necessidade de implementação do projeto
comunista39. Não desejamos negar esses aspectos em nossa pesquisa, mas enfatizar, a partir
do arcabouço teórico hoje disponível, outras questões pouco trabalhadas pelos pesquisadores
no assunto.
Segundo Carlos Fico, a produção histórica recente sobre o período de 1964 apresenta
algumas peculiaridades. Uma considerável parte dela foi produzida no contexto da chegada
da “Nova História” ao Brasil. Isso significa que boa parte de sua produção não foi
influenciada pelo marxismo ou pela segunda geração dos Analles. Nesse sentido, o enfoque
central nos trabalhos desse período foram os temas relacionados à cultura (2004: 52). Ora,
para o caso dos estudos sobre a Guerrilha do Araguaia, essa perspectiva não prevaleceu. Pelo
contrário, sendo um movimento arquitetado pelas esquerdas (leia-se PC do B), visando à
instituição de uma sociedade comunista, o que houve foi o predomínio dos aspectos políticos
em detrimento das questões ditas subjetivas como o cotidiano, o medo e as representações da
própria imagem criada pela população acerca dos comunistas, as quais desejamos destacar
em nossa pesquisa.
Entendemos, pois, que essa experiência dos moradores está permeada, como afirma
Thompson, por sentimentos, reciprocidades, valores e resistência (1981: 189). Portanto, a
luta que os guerrilheiros realizaram no Araguaia, além de ter forte caráter social e político,
foi além; ela também pode ser percebida enquanto uma luta acerca dos valores. São visões
de mundo completamente diferentes que se entrecruzam. De um lado, o militante muitas
vezes convicto de sua missão de transformar o mundo. De outro, os homens e as mulheres do
Bico do Papagaio, muitas vezes esquecidos pelos poderes constituídos, vivendo à margem de
um Brasil que se achava, para alguns (militares), em “desenvolvimento”.
Assim, percebemos que o cenário escolhido pelo PC do B para a implementação de
um foco guerrilheiro formava outro Brasil, pouco conhecido e mostrado para os brasileiros.
39
Dentro dessa perspectiva, ver o trabalho de CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Op.cit. Outro trabalho que
merece destaque é o de ROCHA JÚNIOR, Deusdedith Alves. Op.cit.
36
Uma região inóspita, distante e carente, mas composta por brasileiros que sonhavam e
almejavam dias melhores. Região de homens e mulheres corajosos que souberam enfrentar
as adversidades e aí se instalar sonhando em encontrar, quem sabe, o último eldorado.40
Segundo as narrativas dos moradores da região, a partir de suas memórias,
verificamos que tanto a presença dos paulistas quanto a dos militares influenciaram a vida
cotidiana da população local. A experiência da Guerrilha do Araguaia não foi algo marcante
apenas para os guerrilheiros ou para os soldados do Exército ou da Aeronáutica, mas
também para as pessoas comuns que viviam na região, nessa época: agricultores, donas de
casa, comerciantes, estudantes, professores, motoristas etc. Assim, nos relacionamentos
dessa população, seja com os paulistas, seja com os militares, percebemos algumas
mudanças no seu ritmo de vida. Entendemos, hoje, que a experiência dos moradores do Bico
do Papagaio, a partir desse acontecimento, formou um tipo de saber histórico nascido da
convivência desses sujeitos históricos com os militantes do PC do B e também com as
Forças Armadas. Nesse sentido, concordamos com os pressupostos de Maurice Halbwachs
quando enfatiza que o passado e a história também estão presentes na vida das pessoas.
Dessa maneira afirma:
Fora das gravuras e dos livros, na sociedade de hoje, o passado deixou muitos
traços, visíveis algumas vezes, e que se percebe também na expressão dos rostos,
no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e de sentir,
inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e dentro de tais
ambientes, nem nos apercebemos disto, geralmente (1990: 68).
40
Sobre essa problemática, ver artigo de FLORES, Elio Chaves. A Gestação do Último Eldorado Brasileiro
(1961–1988). In: Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XX, n.2, 1994, p. 131-149. Nele, o autor destaca,
dentre outros aspectos, a incorporação das grandes áreas do país, como a Amazônia Legal e o Cerrado, ao
fluxo do capitalismo do Sul-Sudeste. Nesse sentido, segundo o autor, temos durante esse período a migração
de pessoas para essas áreas.
37
afirma Halbwachs: “é impossível que duas pessoas que viram o mesmo fato, quando o
narram algum tempo depois, o reproduzam com traços idênticos” (1990: 75).
Trabalhar com a memória, para alguns, é percebido como um território arredio,
vulnerável, múltiplo, caminho não-propício para o historiador. Para outros, como é o nosso
caso, trata-se de lugar onde a história pode se constituir como um saber. Saber este que parte
da experiência dos sujeitos históricos que constroem o mesmo a partir de suas vivências.
Contudo um saber que não tem um compromisso com uma verdade universal, mas com a
verossimilhança.
Partimos do pressuposto de que a vida cotidiana não está fora da história, mas no
centro do acontecer histórico. Ela está carregada de alternativas, de escolhas, de
espontaneidade (HELLER, 1972: 20-24). No cotidiano, temos histórias de experiências de
vida, de visões múltiplas dos acontecimentos. Assim, buscaremos discutir o cotidiano dos
moradores durante a Guerrilha do Araguaia, a partir de uma diversidade de pontos de vista
(MAFFESOLI, s/d: 160). Cotidianidade perpassada por alternativas, escolhas e lugares que
marcaram a vida da população local durante a preparação e a guerra vivenciadas por esses
sujeitos.
Trabalhar o cotidiano a partir da memória não significa, na nossa concepção, fazer
uma narrativa que dê conta da totalidade sobre a Guerrilha do Araguaia, pois não
conseguimos lembrar tudo o que aconteceu, visto que a memória tem um caráter seletivo.
Seria impossível lembrar tudo aquilo que aconteceu durante um único dia. Selecionamos,
portanto, o que nos parece significativo, ou seja, acontecimentos que nos interessam, pois a
memória também é interessada. Temos, assim, o poder de escolher aquilo que deve ser
preservado e também de excluir determinados fatos que nos parecem insignificantes. É a
partir dessas observações que iremos entender como em suas lembranças a vida dos
moradores do Bico do Papagaio foi alterada pelo contato com os paulistas e com os soldados
do Exército.
Como já vimos, a presença dos paulistas na região estava voltada para uma tática de
aproximação e amizade com os moradores locais. Eles evitaram, inicialmente, qualquer tipo
de crítica política. Essa aproximação se dava através dos trabalhos que os mesmos prestavam
às comunidades locais, como atendimento médico, ensino e ajuda nos trabalhos do campo.
Além disso, freqüentavam os locais comuns que a população da região freqüentava. Dessa
forma, afirma Fernando Portela: “Ao mesmo tempo em que preparavam a guerra, eles se
misturavam ao povo, cada vez mais cativado, e, por ecletismo ideológico, iam às missas e
38
Fica clara na argumentação dos guerrilheiros a tática usada para se aproximar das
pessoas da região e, aos poucos, conquistar a sua simpatia. Essa convivência aconteceu de
forma natural, pois os paulistas viviam normalmente com a população local, sem despertar
suspeita de serem guerrilheiros.
Essa tática de aproximação dos moradores utilizada pelos paulistas foi destacada no
depoimento do senhor João de Deus Nazaro de Abreu, morador do povoado de nome
Caianos (PA). Falando sobre o cotidiano no período anterior à chegada dos militares, disse:
E a gente também teve uma época lá antes da guerrilha, né, nós … meu padrasto
fez um … uma festa, né, uma festa que fazia aqueles mutirão pra fazer ____
passar pasto, né, passar pasto e no fim ajuntava toda vizinhança, fazia aquele
convite, matava gado, porco e fazia aquele movimento, o pessoal trabalhava o dia
todo e de noite uma festa, né, e nessa festa o Juca foi, foi Daniel, foi tudo
ajudar roçar (…) Tinha uns três ou quatro deles lá na festa, ai foram embora,
mais brincava trabalhava assim na roça como que é costumado mesmo e ajudava
mesmo o pessoal, né, eles trabalhava era assim com honestidade mesmo, a gente
não via eles querer ser uma pessoa assim …41 (Grifos nossos).
41
Entrevista com o senhor João de Deus Nazaro de Abreu, concedida a este pesquisador em São Geraldo do
Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
39
moradora de Porto Franco (MA), na época auxiliar de enfermagem do médico João Carlos
Haas Sobrinho (Juca), lembrou:
Quando … o dia que ele foi embora, ele fez uma coisa … ele me disse que era um
pacto de sangue. Ele colocou um sangue meu no refrigerante e me deu pra mim
tomar, aí furou o meu dedo e tomou o meu sangue. Ele disse que aquilo ali era um
pacto de sangue pra nós ser irmãos de sangue. Eu nunca entendi isso que… Ele
disse que era pra nós ser irmão. Ele falou que era pra nós ficar sendo irmão. Agora
você é minha irmã, e eu sou seu irmão. Tá pra ele ir embora quando ele fez
isso…42
O depoimento acima demonstra que a visão que boa parte da população construiu dos
guerrilheiros é uma visão idílica, havendo maior ênfase às relações de amizade e de ajuda
aos moradores locais. No depoimento do senhor José Pereira da Silva (Zé Ernestino),
garimpeiro e na época da guerrilha morador de Xambioá (norte de Goiás, hoje Tocantins)43,
fica evidente essa relação no dia-a-dia. Comentando sobre a sua convivência com os
paulistas, afirmou:
A convivência foi o seguinte: eles tinha muito dinheiro e comprava as coisas muito
bem comprada e pagava o povo bem pago. E aí eles passaram para o lado de lá, e
aí fizeram roça, compra burro, pra eles andar montado dentro da mata, e aí eles
falava... e ninguém chamava eles de terrorista, eram os paulistas, né?, fazendeiro,
os paulista. Vão comprar fazenda, vão comprar isso, vão comprar aquilo .... e aí
ficou, criou aquela amizade. Eles lá nunca roubaram ninguém, nunca mataram
ninguém, nunca prostituíram ninguém e tinha muita e muita gente rico. Eu mesmo
andava armado no meio deles com uma espingarda calibre 32 e um revover 38 e
levava dinheiro pra comprar os cristal lá, que era um amigo meu o Orlando
Cândido, que era o único que ficou comprando cristal para nós no rio, e ai eu ia
comprar mais os home .... chegava e vendia pra ele. Mas eles nunca mexeram com
noi e fizeram uma amizade grande. Eles tinha muito médico lá, tinha doutor Paulo,
doutor Ozório, tinha a Dina, que era uma enfermeira entanto. Eles fazia um
cesariano lá dentro do mato, viu? Eles tinha tudo quanto era de remédio bom eles
tinha. Eu levei gente de mais pra tratar dileia, ferida brava ... eu levei.44
Segundo o senhor José Pereira da Silva, o que marcou a sua convivência com os
paulistas foi a generosidade presente nas atitudes dos mesmos. Característica bem valorizada
pelas pessoas comuns, pelo homem do campo, a qual os paulistas souberam utilizar para
conquistar a amizade dos moradores daquela região amazônica. Outro aspecto relevante,
ressaltado pelo senhor José Pereira, é a postura de integridade dos paulistas: “nunca
roubaram ninguém, nunca mataram ninguém, nunca prostituíram ninguém, nunca mexeram
42
Entrevista com a senhora Djacy Santos Miranda, concedida a este pesquisador em Porto Franco – MA, em
31/01/2006. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
43
A cidade de Xambioá serviu de base militar para o Exército, que montou na época uma empresa de fachada –
a “Agropecuária do Araguaia”, e para a Aeronáutica, que montou a “DDP Mineradora”. Nesse sentido,
sempre que nos referirmos às Forças Armadas, estamos falando dessas duas forças (Exército e Aeronáutica).
Foram, portanto, militares dessas duas forças que participaram das ações na região. Ver no anexo B.3 a
fotografia da pista de pouso, local onde funcionavam essas duas empresas.
44
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
40
com noi”. Assim, com essa atitude reta, os militantes do PC do B conseguiram, inicialmente,
a confiança dos moradores locais.
Podemos verificar no depoimento de seu José Pereira outra característica marcante,
observada na convivência da população local com os paulistas, sua boa situação financeira,
“eles tinha muito dinheiro, vão comprar fazenda …”, o que de certa forma demonstra o alto
investimento do PC do B no projeto de guerrilha. Para os moradores, os paulistas eram
pessoas caracterizadas pela prática da justiça, como destacou nosso entrevistado: “comprava
as coisas muito bem comprada e pagava ao povo bem pago”.
Na memória da população da região, também é freqüente a referência ao trabalho
social realizado pelos paulistas no seu cotidiano. Numa região carente da presença dos
governos estadual e federal, no seu dia-a-dia, os paulistas acabavam favorecendo a
população. É dessa forma que se refere a senhora Gecília Sabino de Sá ao trabalho do
médico João Carlos Haas Sobrinho (Juca), durante sua passagem pela cidade de Porto
Franco (Sul do Maranhão):
E a relação dele era de paternalismo. Ele era como se fosse um pai para a
população carente. Ele prestou muito serviço, inclusive todo o dinheiro que ele
ganhava ele distribuía cestas básicas pras pessoas… As pessoas fizeram dele
assim… como uma pessoa carismática mesmo. Na verdade foi o que ele foi. Muita
gente chorou… choraram… famílias inteiras. Quando ele Dr. João Carlos sumiu
foi como se fosse até uma romaria lá na porta do local onde ele morava, todo
mundo preocupado, procurando por ele e sentindo falta. Ele distribuía
medicamento, consultava, ele dava roupa e alimentação para as pessoas.45
Algo que nos parece bastante evidente na experiência cotidiana dos moradores
durante a Guerrilha do Araguaia é que a sua relação com os paulistas não constitui uma coisa
unilateral. Na nossa concepção, essa relação se dá através da simbiose, ou seja, existe uma
reciprocidade entre as partes envolvidas. Exemplo dessa relação encontramos nas narrativas
dos guerrilheiros, no Diário da Guerrilha do Araguaia: “As massas fornecem-lhes comida,
roupa, calçado, rede de dormir. Às vezes, a contribuição popular chega a ser comovente. O
lavrador que nada possui faz questão de entregar a botina que usa, a única rede, o alimento
de que necessita. Faz questão” (MOURA, 1985: 53).
A partir do momento em que o Exército e a Aeronáutica se estabeleceram na região
(1972–1975), houve uma mudança mais radical no cotidiano das pessoas. Embora boa parte
delas não soubessem a fundo o que estava acontecendo, muitas preferiam usar a tática do
silêncio. Procuravam não falar com estranhos. Isso porque, segundo os relatos de nossos
45
Entrevista com a senhora Gecília Sabino de Sá, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
24/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
41
depoentes, havia militares inseridos no meio da população local. Era preferível, portanto,
estrategicamente, ficar calado. “Ninguém sabia de nada!” Nesse sentido, afirma dona Gecília
Sabino de Sá, quando se refere às mudanças na cidade de Porto Franco nessa época:
As pessoas eram… tudo eu lembro de meu pai, era um velho muito inteligente,
sem estudo mais inteligente. E ele percebia isso aí, que se passava ao redor, e ele
chamava a gente e dizia: Olha, não converse nada, não diga nada na rua, se alguém
perguntar alguma coisa a você. Você diga que não sabe de nada porque aqui na
nossa cidade tem muita gente da Polícia Federal, e tudo que você disser como você
é criança quem vai responder sou eu. Então tome muito cuidado.46
46
Entrevista com a senhora Gecília Sabino de Sá, em 24/06/2005. Já mencionada anteriormente.
47
Jornal do Tocantins, 21 e 22/04/ 2000. Reportagem de Samuel Lima.
48
Revista Veja. 13 de out. de 1993. O fim da guerra no fim do mundo. p. 25.
42
49
MARINHO, Vâner. O Peladeiro Zé Carlos. Texto memorialista, mimeografado, com três páginas, no qual o
autor destaca a convivência, na sua juventude, com alguns membros do PC do B (André Grabois – o Zé
Carlos, Maurício Grabois – tio Mário, Gilberto Olimpio Maria – Gilberto e João Carlos Haas Sobrinho –
Juca), durante os anos em que esses membros do PC do B moraram em Porto Franco, sul do Maranhão.
50
Idem, ibidem.
51
Entrevista com o senhor Bento Luiz Gomes de Abreu, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
27/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
52
Entrevista com o senhor Aroldo José de Sousa Pinto, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
02/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
43
conhecer os paulistas (1993: 90). Embora o seu livro seja um romance, ele nos proporciona
conhecer um pouco do cotidiano dos moradores da região, mesmo falando do lugar social e
institucional53 diferente dos demais depoentes. Além desse destaque feito por Pedro Cabral,
temos o depoimento de Regilena Carvalho (Lena), companheira de Jaime Petit da Silva
(Jaime), que, na época, atuou no Araguaia, no destacamento C. Regilena (Lena), em
depoimento ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no livro Mulheres que foram à luta
armada, afirma:
Eu e o Jaime tomamos um susto na casa da dona Valdó e do seu Manuel, um casal
de moradores amigo nosso. Estávamos lá, conversando, quando de repente chegou
um pessoal do Exército. Ela nos enfiou embaixo da cama. Eu nunca me esqueço:
o cachorro ficou olhando pra nós e abanando o rabo. Mas não latiu. Eles
disfarçaram bem, e os homens foram embora (1998: 448).
Assim, percebemos que a vida cotidiana dos moradores do Bico do Papagaio pode
ser entendida também como resistência. Para sobreviver numa área de conflito, suspeita,
tortura e perseguição, a população local encontrou brechas que podem ser explicadas através
da negação do relacionamento com os paulistas. A resistência não se dá apenas de forma
radical. Ela pode acontecer também de forma sutil, muitas vezes pelos gestos, atos e modos
de vida, ou seja, no campo dos costumes, como destaca Thompson.54 Foi assim, portanto,
que a prática da resistência aconteceu na região do Bico do Papagaio. Dessa forma
percebemos que a negação ou o silenciamento de conhecer ou relacionar-se com os
guerrilheiros podem ser entendidos como uma forma de resistência da população local ao
controle dos militares. Por outro lado, descobrimos nessa prática, uma maneira sutil de a
população colocar-se ao lado dos paulistas.
A presença das Forças Armadas na área marca, também, o cotidiano da população
pelas constantes fiscalizações e vigilância. Na época, vivia-se um clima no qual todos eram
considerados suspeitos de participar do movimento, direta ou indiretamente. Dessa forma, no
seu depoimento, o senhor Salomão Dias de Sousa, na época, taxista, narra essa atuação do
Exército, interferindo no dia-a-dia da população do Bico do Papagaio:
53
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982.Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
Segundo Certeau, toda pesquisa historiográfica se articula a partir de um lugar de produção socioeconômico,
político e cultural. (p. 66). No nosso trabalho, esse lugar social, econômico, político, cultural e institucional
foi ampliado. Ou seja, não é apenas o historiador que parte desses pressupostos, mas também os depoimentos
sobre uma vivência, uma experiência, como a de Cabral.
54
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005. Nessa obra Thompson destaca, entre outros aspectos, o modo como os costumes resistem à
implantação da sociedade “moderna” capitalista. Essa resistência é discutida pelo autor ao longo de toda a
obra, demonstrando que a institucionalização da sociedade capitalista não foi algo tão natural, como muitas
vezes é apresentada por alguns estudiosos.
44
E eu na época viajava com táxi e tive muito contato com as Forças Armadas. Eu
buscava às vezes alguém de avião que chegava aqui, ia pra cidade, resolvia alguns
problemas, levava, trazia e pegava o avião e voltava, quer dizer, até eu não sabia de
nada. Depois tive que ir a Goiânia, quando vim já foi no foco da coisa, que já se
quase não se viajava. De Guaraí pra cá praticamente não se viajava que era
barreiras e mais barreiras do Exército, e cada barreira daquela que você passava
antes de chegar na cidade quando você recebia uma senha pra apresentar na
próxima barreira e cada barreira daquela você era fiscalizado em tudo, tudo, tudo,
tudo, até os bolsos você era fiscalizado. Eu lembro muito bem que uma vez eu
estava vindo de Goiânia e começou lá em Gurupi, o Exército estava descendo, foi
quando desceu prá fazer o despejo, né? … Começou uns batalhão do Exército, um
pouco aqui, um pouco ali, eu sei que os últimos homens estavam ali na entrada do
Estreito, acampados. Era faixa de quinze mil homens mais ou menos, desde a
artilharia pesada puxada por carro. Eu não entendo bem das armas, eu não entendo
bem daquelas armas, mas eram armas pesadas, e aquele mundo de homens e aquele
mundo de carros, então eu sei bem disso. E também quando se viajava daqui para
Araguatins, pra Marabá, no caso era a mesma fiscalização. Depois da travessia do
rio, tudo quanto era de estradinha vicinal que saía na Transamazônica existia
barreira. Às vezes tinha barreira com três quilômetros de distância uma da outra
pra não entrar nem sair ninguém. Então o que se sabe mais ou menos é isso aí.
Porque a coisa grossa você já deve ter por ai nos autos… a parte escrita.55
55
Entrevista com o senhor Salomão Dias de Sousa, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
45
– Paciência, tenham calma, calma que isso vai acabar. Rezem pra isso acabar. Ah,
meu Deus do Céu! Aí eles diziam: “– o que é que vocês tão falando aí?” – Não. Os
alunos tão aqui perguntando quem são vocês. “– Nós somos o Exército, nós tamo
aqui pra proteger vocês, Xambioá, as Forças Armadas está pra proteger vocês aqui
dos terroristas!” Aí um aluno levantou: “– E o que é terrorista?” “– Se não sabe o
que é terrorista não? É os comunistas que vêm aqui pra tomar tudo de vocês”. Aí
ele dava aquelas aulas pra os meninos. Aí pronto, eu calava a boca. Mandava: “–
Sente, quem vai dá aula agora sou eu”.56
Portanto, para dona Amancia, o fato de suas aulas serem vigiadas e até mesmo
modificadas pelos militares foi algo marcante em sua memória sobre o período da guerrilha.
O conteúdo não era escolhido por ela, mas pelos soldados: “esse plano de aula não está certo,
você vai dá isso aqui”, era a ordem que recebia dos militares que assistiam à aula e nela
interferiam. Mais ainda, assumiam o seu lugar de professora: “sente, quem vai dá aula agora
sou eu”. Há, ainda, segundo o depoimento de dona Amancia, uma luta de saberes. Os
militares interferiam na sua autoridade de professora: “você não tem cultura pra ser
professora”. E modificavam o conteúdo a ser ministrado por ela. Além disso, propagavam a
sua ideologia, direcionando as aulas ao projeto dos militares. Essas e outras iniciativas
praticadas pelos militares na época modificavam o dia-a-dia dos moradores da região,
sobretudo pela prática da intimidação, como é o caso do exemplo enfatizado por dona
Amancia.
Além dessa vigilância do Exército a suas aulas, dona Amancia Gomes também
lembrou as mudanças ocorridas no dia-a-dia de Xambioá com a chegada dos militares.
Segundo o seu depoimento, os costumes dos moradores foram modificados durante essa
época, as festas, as brincadeiras e o clima de harmonia (paz) que havia na cidade não existia
mais:
Aí começou o negócio dessa … dessa guerrilha. Aí daí dessa época acabou aquela
felicidade que a gente tinha lá em Xambioá, que tinha festa, todo mundo se
divertia, brincava aquela alegria tudo … Aí acabou a paz porque quando esse povo
chegaram lá … o Exército chegou aí, todo mundo já ficaram amedrontado, com
medo porque eles falavam que esse povo que tava nas matas eram terroristas.57
58
Entrevista com o senhor Alan de Oliveira, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em 30/06/2007.
Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
59
Segundo o senhor Alan Moraes a PE era o Pelotão Especial do Exército.
60
Entrevista com o senhor Alan de Oliveira Moraes, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
30/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
47
ele não descobre nada não, esbarra aí”. Ai me pegaram, botaram um choque em
mim, botaram no beiço assim … e botaram na oreia e deram aquele choque pra eu
contar o que aconteceu. Eu digo: – comigo não aconteceu nada e nem com eles lá
também, que eu não sei. Porque eles eram morador … tavam lá o morador junto
perto de mim, e eu também tenho eles como qualquer uma pessoa, não me
impataram chegar. “– Se você acha que tá um … uns terroristas morar perto de
você é porque você era terrorista também”.61
O depoimento do senhor Antônio Alves de Souza reflete uma prática constante dos
militares no período da guerrilha, a acusação e perseguição àqueles moradores que
habitavam próximo dos destacamentos dos paulistas. Segundo o nosso entrevistado, quando
os soldados chegaram à sua propriedade, abruptamente, deram ordem para que ele e sua
família saíssem de lá – “mandaram eu me arrancar dali, sair de casa rapidamente, deixando
tudo pra trás”. Não havia, portanto, o que questionar. Como aquela família iria sobreviver?
Onde? O importante para os militares era “limpar a área” e isolar os terroristas.
Outro aspecto relevante no depoimento do senhor Antônio foi a constante vigilância
da área onde possivelmente estariam os terroristas. O exemplo dessa vigilância pode ser
observado, no momento em que, seu Antônio necessita buscar alimentos para sua família.
Nesse instante, ele é acusado de estar contribuindo com os terroristas: “você vai é arrancar
mandioca pra fazer farinha pra os terroristas!” A partir dessa acusação, iniciou-se a tortura
da sua pessoa, acusando-o de também ser terrorista, pois residia próximo à propriedade de
Dinalva Oliveira Teixeira (Dina). Para o senhor Antônio, a lembrança mais forte do período
da guerrilha, no seu cotidiano, foi a tortura pela qual passou. Lembrar esse acontecimento de
sua vida significa denunciar essa prática, para que ela nunca mais ocorra.
O senhor Alexandre de Oliveira, que foi forçado a assumir a função de guia62 dos
soldados na mata, também contou como foi torturado na época. Sua narrativa apresenta
vários pontos em comum com a de seu Antônio Alves. Narrando seu sofrimento, disse:
Me amarraram com as mãos cruzadas com os pés, passaram uma vara no meio e
me penduraram de cabeça para baixo. Volta e meia vinha um e dava botinada nas
costas que a gente chegava a dar a volta por cima. Depois chegava outro e dava
duas bofetadas de mãos juntas no ouvido, que fazia tóim. Queriam que a gente
dissesse que tava sustentando terrorista. Agora, veja o senhor, a gente mal tinha
pra forrar o estômago e ia ter jeito de sustentar os outros (DÓRIA et ali., 1978:
71-72).
61
Entrevista com o senhor Antônio Alves de Souza, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
62
Os guias eram moradores da região que tinham um bom conhecimento da floresta. Eram, geralmente,
contratados pelos soldados para guiá-los durante a caçada aos paulistas, denominados pelos soldados de
terroristas.
48
algo fácil de ser contada. Vários moradores preferem esquecer e/ou narrar as experiências
dos outros. Falar do seu sofrimento é ainda uma barreira para os moradores do Bico do
Papagaio.
O importante em nossa visão é que, através da amizade, do trabalho social, do lazer,
da negação ou das formas de resistência e da vigilância, a população do Bico do Papagaio
encontrou maneiras para sobreviver numa área marcada pelo conflito. Através de sua
experiência a partir da memória, tentamos apresentar esse dia-a-dia que, mesmo sendo
fragmentário e estando fora das ilustrações dos livros, deixou traços visíveis na expressão
dos rostos, nos modos de pensar e sentir da população local.
Portanto, na nossa concepção, a experiência da Guerrilha do Araguaia a partir da
memória da população local perpassa, dentre outros aspectos, pelas ações do cotidiano dos
indivíduos e também dos grupos sociais aí envolvidos (PC do B, por exemplo). Foi uma
experiência marcada pelas relações de confiança e amizade, especialmente no contato dos
paulistas com os moradores da região. Para os paulistas, foi o momento de colocar em
prática os ensinamentos do maoísmo, que muitos foram aprofundar e treinar na China.
Período propício para enfrentar a ditadura militar pelas armas e formar com a população um
outro projeto de país. Para os moradores do Bico do Papagaio, foi o período do encontro com
pessoas dispostas a ajudar e a trabalhar por aquela população isolada e não priorizada pelos
poderes constituídos. Os paulistas, e não os terroristas, representavam, até a chegada e a
permanência dos militares, as “pessoas boas”, “amigas”, “companheiras”, “generosas” e
sempre presentes em vários momentos da vida daquele povo. Momentos de lazer e
momentos difíceis (de doenças, fome, analfabetismo, injustiça), buscando diminuir as suas
dificuldades.
Assim, a própria luta pela construção do socialismo passou, inicialmente, pelo
aspecto da amizade, da confiança, do respeito à vida e ao homem do interior do Brasil, para,
num segundo momento, haver um trabalho de conscientização política da população.
Portanto, a experiência dos guerrilheiros do Araguaia é destacada a partir da memória de
seus moradores, geralmente passando pela dimensão do cotidiano que marcou o contato de
três mundos políticos e culturais diferentes: população local, guerrilheiros e militares.
***
49
Capítulo II
cada vez maior de pessoas, em especial jovens e intelectuais, enxergasse no comunismo uma
saída para os problemas que o país enfrentava (2002: 6-9).
O comunismo representava, nesse período, um caminho alternativo em relação ao
modelo liberal em vigor no país. Entretanto, se temos essa atração pelo comunismo, por
outro lado também, teremos um aumento do temor ao mesmo e o alargamento do campo de
atuação anticomunista. Nesse sentido, várias obras anticomunistas são publicadas no Brasil,
tanto de autores estrangeiros (traduzidas) como de autores nacionais. Em relação aos livros
estrangeiros temos: No País dos Soviets, de Jorge Le Fevre; A Tshéka, de Jorge Popoff;
Como Matei Rasputine, do Príncipe Yussupoff; As Fôrças Secretas da Revolução, de
Leon de Poncins; O que Vi em Moscovo, de Henri Béraude e Moscovo sem Mascara, de
Joseph Douillet. Dentre os livros de escritores brasileiros temos: O Comunismo Russo e a
Civilização Cristã, do Bispo D. João Becker; A Sedução do Comunismo, de Everaldo
Backheuser; A Questão Social e a República dos Soviets, de Alberto de Brito; A Bandeira
do Sangue (combatendo o comunismo), de Alcibiades Delamare; A Rússia dos Sovietes, de
Vicente Matins; Tempestades. O bolchevismo por dentro, de Pedro Sinzig e As Falsas
Bases do Communismo Russo, de Alfredo Pereira. Essas obras foram publicadas no Brasil
a partir do final da década de 1920 e início da década de 1930 (MOTTA, 2002: 10).
Ora, o que percebemos com a publicação dessas obras é que o comunismo deixa de
ser uma ameaça longínqua e torna-se, para os setores conservadores, um problema próximo.
Assim, o crescimento do comunismo e do temor ao mesmo trouxe um desdobramento
importante, contribuindo para a criação e o fortalecimento da Ação Integralista Brasileira
(AIB), uma frente de inspiração fascista, criada em 1932, por Plínio Salgado. Embora essa
frente tenha outras motivações além da luta contra o comunismo, pois sua criação está
relacionada ao contexto mundial de crescimento das idéias autoritárias e reação antiliberal.
Partindo do princípio de que o capitalismo liberal não apresentava caminhos para solução
dos problemas, muitas lideranças passam a aceitar argumentos fascistas e autoritários. Essas
idéias fazem parte do contexto histórico do mundo após a Primeira Guerra Mundial e a crise
de 1929.
No Brasil, as representações anticomunistas tiveram três matrizes básicas: o
catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo. De uma forma geral, em relação ao catolicismo,
suas lideranças viam no comunismo um inimigo irreconciliável da Igreja. Ele (comunismo)
era um desafio à sobrevivência da religião. Sua filosofia, segundo os católicos, negava a
existência de Deus e professava o materialismo ateu; propunha a luta de classes em oposição
51
militar de 1964, essa prática ficou com as Forças Armadas e com os políticos civis que
apoiavam o golpe. Dentro do contexto da Guerrilha do Araguaia, a imagem do comunista
enquanto um “ser do mal” e “golpista” foi utilizada pelas Forças Armadas, com freqüência,
para colocar a população do Bico do Papagaio contra os militantes do PC do B. Essa prática
pode ser observada no relato de vários moradores, isto é, a propaganda contra os comunistas.
É importante destacar que a referência ao comunismo e aos comunistas, aparece nas
entrevistas, a partir do momento da chegada e permanência do Exército na região (abril de
1972 a janeiro de 1975). Até então, as leituras que a população dispõe acerca do comunismo
e dos comunistas estão relacionadas com suas experiências de vida em outros locais e
contextos. Já destacamos, ao longo deste trabalho, que a região do Bico do Papagaio é um
local, nessa época, de constante migração e deslocamento populacional. Um dos fatores que
contribuíram para essa prática, segundo os próprios moradores, foi a existência de terras
devolutas e vários garimpos. Esses fatores, portanto, atraíram pessoas de vários locais do
Brasil (Maranhão, Piauí, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Bahia) em busca de uma
possível melhoria de vida.
Por outro lado, é comum encontrar moradores que também migraram para outras
localidades do Brasil, especialmente o Sudeste, e lá tiveram contato com várias
representações construídas ao longo dos anos sobre o comunismo. Assim falou o senhor José
Pereira da Silva (Zé Ernestino), em referência aos comunistas:
O comunista nós viu que é porque é que esse comunista aí, eu já vinha por
dentro há muito tempo, que lá no Rio de Janeiro nessa empresa que nós
trabalhava tinha dois cara comunista, né? aí o que ele falava de … se o Partido
Comunista ganhasse, botasse um presidente da república que ganhasse, aí nós não
ia ter direito de nada, nós só tinha direito na roupa, na comida e no remédio. Todo
mundo ia trabalhar pra nação, esse negócio de comunista eu sabia.63 (Grifos
nossos).
Dessa maneira, seria ingenuidade nossa não perceber as várias influências recebidas
por essa população das leituras sobre os comunistas. Contudo essas leituras só vêm à tona a
partir do momento do trabalho dos militares. Pois, até 1972, aquelas pessoas caracterizadas
pelos moradores enquanto boas, generosas, respeitadoras, inteligentes e amigas não se
definiam como comunistas, e também os moradores não tinham conhecimento nenhum
acerca de sua participação no PC do B. Essa afirmação pode parecer esdrúxula hoje na nossa
interpretação, mas é um ponto comum em todos os depoimentos.
63
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
54
Ora, o exemplo da senhora Neuza ilustra muito bem que a população da região não
sabia que os “novos moradores” – os paulistas – eram comunistas e que queriam formar a
partir daquele lugar – a imensa mata amazônica – um novo governo revolucionário e
socialista. E esse governo se formaria a partir da guerra popular prolongada.
Os militares, sabendo das reais intenções dos guerrilheiros naquela região e que a
população local dispunha de uma relação de amizade com os membros do PC do B, ao
chegar na área, iniciou um trabalho de difamação dos paulistas, com o objetivo de afastar os
moradores dos mesmos e também encontrá-los. Para isso, utilizou como uma das estratégias
a propaganda anticomunista. A preocupação com o comunismo constituía algo muito
constante para os militares. Segundo os mesmos, era um perigo bastante presente naquele
contexto. Justificando essa preocupação dos militares, o coronel Carlos Alberto da Fontoura,
em entrevista aos pesquisadores Gláucio Ary Dillon Soares e Maria Celina D`Araújo,
afirmou: “Porque a nossa preocupação não era só o governo, era o país. E se as guerrilhas
64
Entrevista com a senhora Neuza Rodrigues Lins, concedida a este pesquisador em São Geraldo do Araguaia
– PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
55
tivessem tomado conta, teríamos tido uma guerra tremenda nos quatro cantos do país.
Porque em toda parte havia comunistas” (1994: 99).
É importante ressaltar que os militares, do Exército, Marinha ou Aeronáutica, não
constituíam uma homogeneidade, havia diferentes grupos dentro dessas instituições. Um
desses grupos ficou conhecido como “linha dura”, devido às suas posições consideradas
mais reacionárias. Dentro dessa linha, a ideologia anticomunista tornou-se uma de suas
preocupações centrais. O Brasil e o resto do mundo estavam divididos pela Guerra Fria, e era
necessário saber enfrentar esse desafio. O coronel da Aeronáutica Deoclecio Lima de
Siqueira, ao se referir ao pessoal da “linha dura” em relação ao comunismo, disse: “Hoje,
tudo isso acabou. Mas naquela época havia a exaltação do problema da guerra fria, aquele
anticomunismo exaltado” (D`ARAÚJO; SOARES, 1994: 124). Referindo-se ainda ao
comunismo segundo a versão dos militares, o coronel João Paulo Moreira Burnier, que
chefiou o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) entre os anos de 1968 e 1970, foi
mais além: “Eram criminosos! Estavam preparando a destruição da sociedade brasileira!”
(D`ARAÚJO; SOARES, 1994: 185). O que queremos demonstrar, citando a visão desses
militares sobre o comunismo, é, especialmente perceber, como a influência dessas idéias está
presente nos depoimentos dos moradores do Bico do Papagaio.
O perigo comunista65 era tão iminente entre os militares que, em 1967, um grupo de
oficiais da Aeronáutica fora fazer um curso no Panamá coordenado pelos Estados Unidos e
alguns países europeus como a Espanha. O chamado Curso de Gullick reuniu militares de
vários países da América Latina e tinha como objetivo combater as idéias marxistas no
continente. Como resultado desse curso, foi criado em 1968 o Núcleo do Serviço de
Informações e Segurança da Aeronáutica (N-SISA), que, mais tarde em 1970, foi
reformulado e passou a se chamar Centro de Informações da Aeronáutica (CISA).
65
No caso da Guerrilha do Araguaia, esse perigo pode ser observado pelo número exagerado de soldados
envolvidos na luta contra os militantes do PC do B. Embora não tenhamos dados oficiais sobre o efetivo de
militares que participaram da guerra, achamos conveniente a estatística apresentada por Elio Gaspari, que
calculou aproximadamente 5.000 homens das três Forças Armadas e também policiais militares dos Estados
palco do conflito, durante as três campanhas militares (2002: 400). Comentando sobre o efetivo durante a
guerrilha, o general Viana Moog, em entrevista à revista Veja, afirmou: “Foi o maior movimento de tropas
do Exército ocorrido na História do país, semelhante à mobilização da Força Expedicionária Brasileira na II
Guerra Mundial” (Veja, 13 out. 1993: 17). Todos esses soldados, para combater apenas 69 membros do PC
do B. Segundo o livro Direito à memória e à verdade, o número de guerrilheiros mortos e desaparecidos
durante a Guerrilha do Araguaia é 59. O mesmo livro ainda destaca o número de moradores da região mortos
desaparecidos – os casos reconhecidos pela CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos) são 5: Lourival Moura Paulino, Antônio Alfredo de Lima, Luiz Vieira, Pedro Matias de Oliveira
(Pedro Carretel) e Antônio Araújo Veloso. Segundo a CEMDP, por falta de provas, outros 16 casos de
moradores mortos durante a guerrilha foram indeferidos por essa comissão. Ver, Direito à memória e à
verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Brasília, 2007. p. 195-271.
56
Os militares tinham uma opinião bastante clara e bem definida sobre o papel das
esquerdas na sociedade brasileira. Havia, segundo os mesmos, uma ameaça desses grupos de
esquerda ao regime militar. Qualquer oposição às idéias dos militares era interpretada
enquanto práticas subversivas e comunistas. Por isso, deveriam ser combatidas. Havia a idéia
de que era necessário defender o país do avanço do comunismo, criando uma imagem
negativa desse sistema. Nesse contexto, afirmou o coronel João Paulo Moreira Burnier:
Tínhamos a convicção de que a ideologia marxista e socialista era impraticável
para a vida, para a pessoa humana. O humano não aceita o socialismo, porque é
uma doutrina econômica que dá iguais direitos a pessoas diferentes. Uma pessoa
trabalha, guarda os seus recursos e consegue melhorar de vida. O outro,
trabalhador também, não guarda o que ganhou, torna-se um bêbado, um sem-
vergonha, e gasta todo o seu dinheiro. Não vencerá nunca. Vão ter os mesmos
direitos? Não. Cada um tem a sua função na sociedade, tem aquilo que merece
(D`ARAÚJO; SOARES, 1994: 201).
Assim, através dos militares, especialmente dos soldados e recrutas, essas idéias
foram disseminadas pela região do Bico do Papagaio. Inicialmente, os moradores resistiram
a essa propaganda, pois o Paulo, o Juca, o Osvaldo, o Ari, a Dina, o Amaury eram seus
amigos, os paulistas que muito faziam por aquela população. Já o Exército, pelo contrário,
chegou abruptamente maltratando os moradores, espancando e queimando suas roças em
busca dos terroristas, subversivos e comunistas que os moradores não conheciam por tais
adjetivos. Os próprios militares reconheceram, em vários depoimentos, o erro estratégico de
suas duas campanhas contra os paulistas. Tanto que tentaram utilizar as mesmas táticas dos
guerrilheiros para conseguir o apoio da população, através da chamada Aciso (Ação Cívico-
Social). Referindo-se à atuação dos militares na Guerrilha do Araguaia e à dificuldade inicial
de conseguir apoio da população local, o general Ivan de Souza Mendes comentou:
Então eles [os guerrilheiros] se infiltravam, ajudavam, faziam socorro médico,
viviam entre aquelas pessoas e tudo mais, e as foram conquistando. Quando
começaram as primeiras ações, a população daquela região estava com eles. E era
essa população que lhes dava as informações: “Está chegando uma tropa,
desembarcaram não sei quantos em tal lugar…” Eles organizaram a população
para isso, organizaram direitinho (D`ARAÚJO; SOARES, 1994: 172). (Grifos
nossos).
66
O capitão-aviador da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, em seu livro de memória sobre a Guerrilha do
Araguaia, narrou essa estratégia utilizada pelas Forças Armadas para conseguir da população local
informações sobre os paulistas. Essa estratégia é definida por Pedro Cabral como “operação inteligência”.
Ver, CABRAL, Pedro Corrêa. Op. cit. p. 14-24.
67
Entrevista com a senhora Amancia Gomes de Abreu, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
58
destacou essa divisão entre os moradores. Para ele, o marco para a mudança de opinião em
torno dos paulistas, considerados até então “gente boa” pela população, foram a chegada e a
propaganda do Exército acerca do comunismo. Nesse contexto, lembrou: “Antes do Exército
chegar todo mundo gostava dos guerrilheiros, todos gostavam dos guerrilheiros. Quando
chegou teve de separar. Separou e aí ficou todo mundo do lado do Exército, ninguém ficou
mais do lado dos terroristas”. Quando questionamos por quê, ele respondeu:
Ficou por causa dessa explicação de comunista aí. Por causa do comunista,
porque ninguém queria ser comunista. Eu tinha a minha casa e eu não queria
perder ela pra mim ficar trabalhando só pra comer, receber o remédio e a
roupa. Então é isso aí. Esse regime comunista é do governo, você vê que lá no
Fidel Castro e lá no Sadan Hussem ninguém tem nada, é tudo da nação.68 (Grifos
nossos).
guerra, os soldados estavam naquela região para manter a ordem e proteger a população; já
os guerrilheiros eram subversivos, terroristas, comunistas e estavam lá para tirar o direito do
povo e implantar um governo autoritário. Assim, enquanto o outro é representado, também
se cria a própria representação do grupo ao qual pertence o nosso entrevistado, como
oposição ao outro (comunistas). Nesse sentido, afirmou:
O Exército também dava palestra nas cidades, ia nas escolas, falava, né? Falava
que o Exército tava ali, era a parte do bem, não é? Que tava protegendo a
população e que eles, os terroristas eram comunistas, queria escravizar o
povo, certo? Tirar o direito do povo, que aqui eles tavam fazendo um momento
de agradar o povo, mais quando eles tomassem o poder, o povo seria escravizado,
certo? E que eles precisam ir denunciar quando visse algum, certo?71 (Grifos
nossos).
71
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em Xambioá –TO, em 06/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
60
Essas imagens construídas pelas Forças Armadas, narradas a partir dos generais, de
ex-soldados e de um ex-guia do Exército, comprovam, de certa forma, o espectro que
rondava os militares na época acerca do comunismo e também como essa representação
marcou a população do Bico do Papagaio, que passou a identificar esse sistema político a
partir da propaganda oficial. Dessa forma, as representações do comunismo enquanto
escravidão, violência, oposição ao governo, subversão e terrorismo são freqüentes nos
depoimentos dos moradores. A estratégia das Forças Armadas ao fazer essa propaganda
anticomunista pretende, na nossa concepção, alcançar dois objetivos: primeiro, instalar o
medo junto aos moradores e, segundo, conquistar o apoio desses moradores a contribuírem
com o Exército. Entretanto, esses objetivos foram alcançados? Essa questão será respondida
a seguir.
72
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
61
73
Entrevista com o senhor Edézio Gomes da Silva, concedida a este pesquisador em São Geraldo do Araguaia
– PA, em 07/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
63
Eu acho que…ao meu ver hoje, ao meu ver foi um grande exagero da nação. A
nação talvez querendo mostrar força para a Rússia, para os americanos ou sei lá
pra quem… demonstrar força. Porque na verdade uma pequena guerrilha dessa
não precisava tanto deslocamento de homens pra fazer o que eles fizeram e faziam
as coisas arbitrariamente. Às vezes matavam, arrastavam, amarrava.74
Portanto, na visão do senhor Salomão Dias, houve um exagero nas ações dos
militares. E esse exagero foi praticado para provar a força do país para outras nações.
Opinião semelhante nos foi relatada pelo senhor José Batista Neto, quando falou da forma de
agir dos militares:
O meu olhar de hoje é que o Exército não precisava chacinar igual eles fizeram
não. Aquilo era um movimento que não ia ter repercussão nenhuma, bastava o
Exército prender uma meia dúzia, mas prender dentro da … da… toda civilidade
ou expulsar da região, mais sem aquele alarme todo que iam … eles não iam ter
sucesso nenhum … fazer essa região seguir a idéia, o ideal deles, né?75
Percebemos, nas palavras do senhor José Batista, fortes críticas à forma como os
soldados do Exército atuaram na região, enfatizando especialmente a chacina que realizaram
contra os chamados guerrilheiros. Dessa forma, geralmente partindo do tempo presente de
suas lembranças, os moradores expressam sua visão sobre a caça às bruxas, ou seja, aos
comunistas, instituída na época da guerrilha pelos militares.
74
Entrevista com o senhor Salomão Dias de Souza, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
75
Entrevista com o senhor José Batista Neto, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
64
Creusa Castro de Aguiar: “Naquele tempo se pensava que era alguém de fora do país, só isso
e nada mais, sabe?”76 Imagem semelhante também foi enfatizada pela senhora Gecília
Sabino de Sá, quando se referiu aos comunistas: “Havia de que eles estavam se reunindo
para vender o país. Que o país seria invadido por Cuba. Cuba ia tomar conta do Brasil”.77
Essa mesma imagem também foi utilizada pelo senhor Antônio Almeida dos Santos,
morador de Tocantinópolis na época da guerrilha. Segundo suas lembranças, afirmou:
Tenho lembrança que em 1970 começou um clima de evasão, ou seja, os
comunistas querendo invadir a região Norte. Aí a seguir foi montado um
destacamento do Exército, ali, em Porto Franco. E veio uma turma para dar
assistência, aqui na cidade de Tocantinópolis, ou seja, em outras palavras, para
combater à evasão daquele povo e exatamente com isso se misturava diversos
políticos e ia descobrindo pessoas que eram envolvidos com o comunismo.78
(Grifos nossos).
76
Entrevista com a senhora Creusa Castro de Aguiar, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO,
em 24/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
77
Entrevista com a senhora Gecília Sabino de Sá, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
24/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
78
Entrevista com o senhor Antônio Almeida dos Santos, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO,
em 16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal. É válido observar que o termo
“evasão”, destacada pelo nosso depoente, significa, conforme o contexto, invasão.
79
Entrevista com o senhor Raimundo Santos da Rocha, conhecido como Dêga, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 01/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
65
Imagem semelhante foi descrita pelo senhor Ivaldo Santos Carvalho (Bacalhau). Para
ele, os comunistas eram pessoas violentas que lutavam contra o governo. Evidentemente, sua
imagem sobre os comunistas foi influenciada pelas representações do próprio Exército, pois
o senhor Ivaldo trabalhou como guia dos soldados, na mata, para localizar os terroristas. Por
esse motivo, além de conceituar o que na sua visão era o comunismo, ele também justifica a
sua atuação junto à tropa – “lutar pela nossa pátria”. Falando sobre os comunistas, disse:
Eu não tinha nem noção, eu pensava que era um grupo de gente que era só pra
matar mesmo, né? Função deles era destruir porque pelo que eles falavam pra
gente … a noção da gente era … era … era que eles tinha pra destruir. Eles
falavam pra gente que eles tavam aí pra formar um … um … um plano pra
tomar o Brasil, né? Então a nossa nois tava … a nossa função, o nosso direito era
lutar pela nossa pátria. Então era isso que a gente … a gente tava dentro e tinha
que se esforçar pra fazer a coisa certa, né?80 (Grifos nossos).
80
Entrevista com o senhor Ivaldo Santos Carvalho, conhecido como Bacalhau, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
81
Entrevista com o senhor Félix Pereira Leite, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
01/11/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal. O termo “assujeitar”, utilizado
pelo nosso depoente, significa, segundo o contexto de sua narrativa, sujeitar, isto é, submeter-se a alguém.
Optamos em nossa transcrição, como já enfatizamos, pela forma como cada depoente fala.
66
não”.82 Há, na afirmação de dona Marfisa, dois argumentos que consideramos importantes.
O primeiro, a idéia de que comunista “era bandido”, produto de uma longa tradição na
história do Brasil (“quando eu era pequena”), na qual a imagem do comunismo foi
geralmente apresentada de forma negativa. Segundo, mesmo com toda a propaganda
anticomunista realizada pelos militares, os moradores não manifestavam medo exacerbado
do comunismo em si nem do que ele representava.
De todas as representações acerca dos comunistas, uma nos chamou bastante a
atenção. Talvez seja a mais emblemática, no sentido de observar as leituras de que os
moradores dispunham no período anterior à guerrilha. Durante a realização da entrevista
com o marido, a senhora Maria da Conceição Oliveira, moradora de Tocantinópolis (TO),
ficou quieta e apenas observava a conversa. No entanto, quando se falou em comunismo, ela
interveio na conversa e lembrou das narrativas que o seu pai e o seu primeiro esposo
contavam sobre esse sistema político. Assim narrou:
Porque eu sou mais nova do que meu marido…. Mais eu ouvia ele dizer que o
comunismo, eu via ele falando, que ele era do Ceará. Olhe, minha filha, vai ter um
tempo que o comunista vai virar o mundo. Aí ele falou que o comunismo …
Pai, como é esse comunismo? Minha filha, o comunista vai ser assim: é fie
contra pai, é pai contra fie, não tem muê séria para os outro, vem e toma, não
tem filha … chega o cidadão … chegar aqui em sua casa, pega suas fia,
carrega. Eu sei que ele disse que era assim o ribuliço, meu marido quem dizia. Eu
tenho lembrança dessas palavras que ele disse, que o comunista era assim.83
(Grifos nossos).
82
Entrevista com a senhora Marfisa Aquino Cunha, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
04/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
83
Depoimento da senhora Maria da Conceição, concedido a este pesquisador em Tocantinópolis – TO, em
01/11/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
67
prevalecendo, então, a versão dos soldados. Daí a imagem de “uma pessoa da pior espécie do
mundo”, “sem confiança” e que desejava, após conquistar o povo, “escravizá-lo”. Assim
falou:
A gente tinha na mente que era aquilo, era uma pessoa da pior espécie do mundo,
uma pessoa que ninguém poderia confiar, entendeu? Que era … pra nós era um
tipo de gente que a gente … que o Exército passava pra gente que a gente tinha
que temer, eles que eram umas pessoas muito má. [...] Hoje eu já penso
diferente, mas na época eu pensava assim. [...] Queria mais na frente escravizar a
população e papapá. Passava por aí, e trabalho forçado e tudo mais.84 (Grifos
nossos).
84
Entrevista com o senhor Alan de Oliveira Moraes, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
30/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
68
em seu depoimento demonstrou uma leitura bastante apurada daquilo que acontecia no
mundo e no Brasil nas décadas de 1960 e 1970.
Segundo ele, o mundo conhecia o poderio russo, e o Brasil era governado por Médici.
Havia na Rússia o predomínio do Partido Comunista, e lá, conforme a visão do senhor
Sebastião, “a maioria das pessoas não tinha direito de possuir uma propriedade, as terras
eram da nação, do governo”. E, no Brasil, os membros do PC do B eram considerados pelo
governo como “indesejáveis”. Queriam “dar um golpe contra o governo e pedir ajuda de
fora”. Para “evitar que isso acontecesse, o governo Médici enviou as forças militares à região
para prender e matar os guerrilheiros”. Foi dessa forma que o senhor Sebastião justificou a
ação do governo na época.
Quando se referiu aos comunistas, disse:
Bom, a gente não tinha assim uma noção certa, mas o que a gente sabia é que não
era boa coisa … não era boa coisa comunismo. A idéia que a gente tinha e o
governo combatendo, né? Então a gente tinha de pensar que era uma coisa terrível
o comunismo. A gente não queria. Se o governo não queria, estava combatendo,
nós também não ia querer, certo?85
85
Entrevista com o senhor Sebastião Gomes da Silva, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
69
86
Entrevista com a senhora Maria Oneide Costa e Lima, concedida a este pesquisador em São Geraldo do
Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
87
Entrevista com o senhor Ludovico Mateus, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em 06/07/2007.
Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
88
A chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade teve o seu ápice em São Paulo no dia 19 de março
de 1964. Esta marcha pode ser caracterizada como um apoio da ala conservadora da Igreja Católica aos
grupos políticos que faziam oposição ao governo João Gulart (Jango) e ao “perigo” que, segundo esses
grupos, o país enfrentava. Para um estudo mais aprofundado da relação entre os setores conservadores do
Catolicismo e o Estado, ver ALVES, Márcio Moreira. A Igreja Católica e a política no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1979.
70
acerca do comunismo. Uma outra hipótese que levantamos é a própria atuação da Igreja
Católica na região.89 Segundo as narrativas dos moradores, percebemos que na década de
1970 os religiosos desempenhavam um papel bastante expressivo na organização das
populações rurais do Bico do Papagaio, como, por exemplo, na organizações de sindicatos e
associações. Além disso, os religiosos denunciavam a prática da grilagem de terras e a
expulsão dos camponeses das mesmas. Alguns religiosos são inclusive caracterizados e
difamados pelos militares enquanto “comunistas de batinas”, como foi o caso do padre
Roberto de Valicourt (missionário francês) e da irmã Maria das Graças (de Goiânia), presos
e torturados por uma patrulha do Exército.90
Alguns moradores demonstraram um certo desconhecimento em relação ao assunto,
ou seja, afirmaram não saber o que seria comunismo. Suas justificativas para isso passavam
pelas condições da região do Bico do Papagaio, na época, lugar isolado de acesso bastante
difícil, com carência de meios de comunicação e de transporte, o que dificultava o acesso às
informações do que acontecia no resto do país. Essas dificuldades foram citadas na entrevista
com a senhora Neuza Rodrigues Lins:
Naquela época ninguém sabia o que era o PC do B, comunismo, essa coisa.
Ninguém tinha acesso a rádio, padre, televisão nem se fala, jornal até hoje não
existe aqui em São Geraldo. Em São Geraldo não existe uma banca de jornais, não
existe, então só pra ter noção do quanto que as coisas eram difíceis…91
89
Sobre a atuação da Igreja Católica no Brasil e na região, há o estudo do pesquisador Scott Mainwaring, A
Igreja Católica e a política no Brasil (1916–1985), no qual o autor destaca o contexto do país na época e o
papel da Igreja Católica diante desse contexto. Além disso, discute os embates dentro do clero e da Igreja
(conservadores x progressistas). Especificamente para o caso da Igreja Católica no Amazonas, o autor
enfatiza o seu caráter progressista e, sobretudo, a atuação dos bispos Dom Estêvão Cardoso (Marabá – PA) e
Dom Pedro Casaldáliga (São Félix do Araguaia – MT). Ver, MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a
política no Brasil (1916–1985). Tradução de Heloisa Braz de Oliveira Prieto. São Paulo: Brasiliense, 1989.
p. 101-115.
90
Sobre as acusações ao padre Roberto de Valicourt e à irmã Maria das Graças, e as torturas por eles sofridas,
ver entrevista concedida pelo religioso em Marabá (PA) a CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha
do Araguaia: a esquerda em armas. Goiânia: Editora da UFG, 1997. p. 113-114.
91
Entrevista com a senhora Neuza Rodrigues Lins, concedida a este pesquisador em São Geraldo do Araguaia -
PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
71
não era muita coisa não, mas aqui eu não recebia revista, não recebia jornal, não
tinha televisão. Como era que a gente sabia disso?92
***
92
Entrevista com o senhor Horácio Maranhão, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
04/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
93
Entrevista com o senhor Davi Rodrigues de Souza, conhecido como “Davi dos Perdidos”, concedida a este
pesquisador em São Geraldo do Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo
Pessoal.
72
Capítulo III
Resolvemos trabalhar com a temática do medo, porque ela é recorrente nas narrativas
dos moradores do Bico do Papagaio quando falam sobre a Guerrilha do Araguaia,
especificamente a partir da presença dos militares na região (abril de 1972 a janeiro de
1975). Além disso, os trabalhos produzidos sobre a Guerrilha do Araguaia tratam essa
problemática de forma superficial. Autores como Gilvane Felipe, Romualdo Pessoa Campos
Filho, Deusdedith Alves Rocha Júnior e Hugo Studart, como já destacamos anteriormente, se
preocuparam mais em enfatizar os aspectos políticos, sociais e militares, deixando para um
segundo plano a questão do medo. Essa problemática aparece nessas obras, geralmente,
como um complemento.94
Uma pesquisa que, de certa forma, trouxe essa problemática para o debate foi a
realizada por Dácia Ibiapina da Silva.95 Embora o seu trabalho não seja de história, em sua
tese de doutorado, a autora destacou o silêncio e o medo nos relatos dos moradores de
Palestina (PA), a partir do conceito de “gestão do indizível”, do sociólogo austríaco Michael
Pollack. Contudo a ênfase maior da autora recai sobre a problemática do silêncio. Nesse
sentido, afirma:
Quem passou por experiências traumáticas e as considera difíceis de comunicar,
“indizíveis” mesmo, não esquece, e necessita encontrar formas e estratégias para
seguir vivendo, com elas e apesar delas. É isso que ele denomina de “gestão do
indizível!” (SILVA, 2002: 88).
94
FELIPE, Gilvane. A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966–1975). Tese de doutorado apresentada ao Institut
des Hautes Études de I`Amérique Latine (IHEAL). Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), 1993.
CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas. Goiânia: Editora da
UFG, 1997. ROCHA JÚNIOR, Deusdedith Alves. A Guerrilha do Araguaia (1972– 1974). Dissertação de
mestrado apresentada ao Programa de Pós – Graduação em História. Brasília: Universidade de Brasília, 1995,
158 p. STUDART, Hugo. A lei da selva. Estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha
do Araguaia. São Paulo: Geração Editorial, 2006.
95
SILVA, Dácia Ibiapina da. Memórias da Guerrilha do Araguaia: relatos de moradores de Palestina do
Pará. Tese de doutorado. UFRRJ/CPDA, 2002.
73
Segundo Romualdo Pessoa Campos Filho, a presença do medo na região fez parte do
cotidiano da população até meados da década de 1980. Partindo do depoimento do ex-
missionário francês da ordem dos Oblatas, Emmanuel Wambergue (Mano) disse:
Olha, até prova em contrário, no período até 80/82, a gente poderia dizer que o
que sobrou foi um grande medo (...) A partir dos anos 80 começou a se saber
melhor da história da guerrilha, por que que eles estavam aqui, o que eles
queriam, e também a influência que teve aqui, a partir dos anos 80, do PC do B. O
PC do B ficou conhecido pelo povo, pelo menos pelas lideranças. Então tem, hoje,
eu digo só hoje, um certo interesse em conhecer, por parte das lideranças, o que é
que aconteceu naquele tempo. Lideranças, por exemplo, do movimento sindical,
um outro político (...) de saber por que é que aconteceu tudo isso. Mas isso aqui é
extremamente recente. Antes o que sobrou foi um grande medo, e até hoje
provavelmente vocês vão encontrar gente que não vão falar, até hoje. Porque
a lembrança que se tem, da guerrilha, da repressão, do que aconteceu da guerrilha
mesmo (CAMPOS FILHO, 1997: 174). (Grifos nossos).
96
Entrevista com a senhora Maria de Fátima Costa e Silva, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis –
TO, em 21/01/2006. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
74
Forças Armadas. O silêncio, na nossa interpretação, foi uma tática utilizada pelos moradores
para resistir à pressão de denunciar os guerrilheiros e contribuir com o Exército.
E o medo? Além ser uma defesa biológica do organismo humano, o medo é também
uma construção cultural, pois somos educados desde criança a temer algo. Dentro do
contexto da Guerrilha do Araguaia, o medo foi um recurso utilizado pelas Forças Armadas
para isolar a população dos guerrilheiros. Para isso, os militares instituíram na região
práticas como ameaças de tortura, fiscalizações, invasão às propriedades e expulsão dos
camponeses das mesmas e exibição dos corpos dos guerrilheiros mortos.
Assim, diante dessa realidade, é necessário diferenciar o medo de covardia. Se
houvesse uma sinonímia, poderíamos interpretar o medo sentido pela população do Araguaia
como um ato de covardia, de não-envolvimento dos moradores com a causa dos militantes
do PC do B, ou seja, como uma simples indiferença. Entretanto, essa prática não aconteceu.
O medo foi resultado da própria insegurança que o contexto do momento exigiu, e a
população foi levada a essa prática. Pois como afirma Delumeau: “A necessidade de
segurança é portanto fundamental; ela está na base da afetividade e da moral humanas. A
insegurança é símbolo de morte e a segurança símbolo de vida” (1996: 19).
Podemos perceber o medo estabelecido na região do Bico do Papagaio, através das
estratégias utilizadas pelas Forças Armadas, no sentido de marcar a vida da população local.
Assim, o medo pode ser percebido e/ou materializado a partir de três estratégias: as formas
de os militares perseguir e matar os guerrilheiros, os métodos utilizados por eles para
perseguir e torturar os moradores locais e o teatro do terror. Além disso, percebemos a ação
dos guerrilheiros no sentido de intimidar os soldados do Exército, levando aos mesmos o
pânico e a insegurança, o que denominamos de contrateatro.
O medo imposto à população local pode ser observado a partir do momento em que o
Exército e a Aeronáutica iniciaram a caçada aos terroristas e subversivos, em abril de 1972.
Entretanto uma pergunta se faz necessária, quando nos referimos à chegada das Forças
Armadas à região: Como o movimento teria sido descoberto? Vimos que, desde 1966, havia
a presença de militantes do PC do B na área convivendo com a população local e
participando de suas atividades cotidianas. Para explicar a descoberta do movimento, temos
várias versões. Os membros do PC do B debateram durante muitos anos, mas a polêmica
esteve presente na memória deles até a atualidade. Dessa forma, segundo a versão do PC do
75
B, o movimento teria sido descoberto pela delação. Ou seja, teria havido um “traidor”. A
partir do Relatório de Ângelo Arroyo, as suspeitas recaem sobre o ex-guerrilheiro Pedro
Albuquerque Neto (Pedro), que abandonou o movimento junto com sua mulher, Tereza
Cristina, em agosto de 1971. Os dois seguiram para Fortaleza, e Pedro Albuquerque foi
preso por se encontrar sem carteira de identidade (POMAR, 1980: 249).
Além dessa versão dada por Arroyo, o próprio PC do B, ou melhor, a ex-guerrilheira
Elza Monnerat, a partir dos anos de 1980 passou a apontar outra guerrilheira como sendo a
“traidora” do movimento, Lúcia Regina de Souza Martins (Regina). Casada com Lúcio Petit,
os comandantes a teriam obrigado a praticar aborto, pois, naquele contexto, as regras da
guerrilha não permitiam gravidez. Doente e correndo risco de morte, Lúcia Regina foi levada
por Elza Monnerat até um hospital em Anápolis (GO) e, de lá, teria fugido para São Paulo,
indo encontrar-se com a família. Por essas razões, durante muitos anos, o PC do B ora
acusava Pedro Albuquerque Neto, ora acusava Lúcia Regina por delação do movimento.
E, para os militares, quem teria sido o responsável pela sua chegada aos
guerrilheiros? Segundo o estudo realizado pelo historiador Hugo Studart, os militares
descobriram o movimento a partir do cruzamento de informações de ambos os guerrilheiros.
Assim, inicialmente, os militares souberam da existência do movimento do Araguaia, através
de Lúcia Regina. No encontro com os pais, ela teria contado sobre a guerrilha. Voltando para
São Paulo, emocionalmente fragilizada, revoltada e sentindo-se culpada pelo aborto, ela
acabou falando tudo o que sabia. Foi o seu pai quem teria procurado os militares para relatar
o que Lúcia lhe havia contado. Para Hugo Studart, os militares não deram muita atenção às
revelações de Lúcia Regina. Só a partir do final de março de 1972, com a chegada ao CIE
(Centro de Informações do Exército) e o depoimento de Pedro Albuquerque é que a guerrilha
teria sido descoberta (2006: 94).
As Forças Armadas, sabendo da existência de um movimento guerrilheiro na região
do Bico do Papagaio, iniciaram, em 25 de março de 1972, as primeiras operações em busca
de informações sobre os guerrilheiros, porém não se tinha a idéia da dimensão do
movimento. Com a presença do Exército na região, os militantes do PC do B passaram a
mudar sua estratégia que, inicialmente, estava centrada na conquista da população local.
Portanto, tiveram que, repentinamente, entrar na mata e adotar novas táticas de segurança.
Enquanto isso, a população não entendia o que estava acontecendo. Por que afinal, aquelas
pessoas boas que faziam parte do seu cotidiano e em muito lhes ajudavam fugiram para a
mata? Por que a presença de inúmeros soldados do Exército à procura de tais pessoas?
76
Nesse sentido, a partir de suas lembranças, afirmou seu Raimundo Santos da Rocha (Dêga),
morador de Xambioá e barqueiro na época:
Então quando houve essa perseguição do Exército matando ele aí o pessoal ficou
revoltado sem saber por que matavam um povo bom daqueles, porque que
matavam? Ninguém sabia porquê. Agora aqui nois não sabia o motivo porque
pegavam esse povo, ninguém sabia. Achava que era um povo muito bom … eu
pra mim era um pessoal bom demais, muito bom. Os que eu conheci era gente
muito fina.97
Durante a realização das três campanhas militares pelas Forças Armadas, nas quais os
guerrilheiros foram caçados, alguns presos, outros torturados e mortos, várias estratégias
foram usadas. Nesse período de guerra, as estratégias utilizadas pelos militares para caçar,
prender, torturar e matar os membros do PC do B também foram praticadas com o intuito de
levar o terror e o medo à população local. Nesse sentido, essas estratégias vão desde a
propaganda visando difamar os guerrilheiros, até a exposição pública dos corpos e cabeças
dos mesmos. São estas táticas usadas pelas Forças Armadas que iremos discutir ao longo
deste capítulo.
Em depoimento ao pesquisador Romualdo Pessoa, o militante do PC do B e lavrador
aposentado Amaro Lins se referiu à propaganda feita pelas Forças Armadas em relação aos
guerrilheiros:
O Exército chegava com aquela história, maltratando todo mundo, mas o pessoal
passaram... alguém, inclusive passou a não acreditar na gente e acreditar no
Exército, na mentira que eles falavam. Chamavam a gente de terroristas,
arrombador de bancos, assaltantes, e tudo isso diziam para o povo (CAMPOS
FILHO, 1997: 117).
97
Entrevista com o senhor Raimundo Santos da Rocha, conhecido como Dêga, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 01/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
77
João Carlos Haas Sobrinho (Juca) nasceu em São Leopoldo (RS), em 24 de maio de
1941. Filho de classe média, formou-se em Medicina pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, onde iniciou sua participação política através do Centro Acadêmico de
Medicina, do qual foi presidente e, em seguida, da União Estadual dos Estudantes. A sua boa
formação acadêmica e forte liderança tornou Juca uma das figuras mais respeitadas no PC do
B. Durante a Guerrilha do Araguaia, João Carlos atuou junto à chamada Comissão Militar,
como responsável pelo setor de saúde. Conhecendo bem os problemas da região,
especializou-se em doenças típicas do lugar, como malária e leishmaniose. Morreu, segundo
informações dos militares, em 30 de setembro de 1972, durante a segunda campanha das
Forças Armadas. Antes de atuar no Araguaia, João Carlos Haas morou em Porto Franco
(MA), onde manteve um relacionamento bastante intenso com a população dessa cidade,
participando ativamente de sua vida social.98 Preocupado com as condições de saúde dessa
população, fundou um pequeno hospital para atendimento aos doentes. (Ver anexo B.2 –
fotografia do posto médico onde trabalhou o Dr. Juca em Porto Franco – MA).
A sua popularidade junto aos moradores reflete-se na forma como João Carlos foi
executado. A sua morte aconteceu no momento em que Juca tentava contato com o
Destacamento C. Assim relatou Ângelo Arroyo:
Em todas as casas de moradores havia soldados. Juca resolveu, porém, aproximar-
se de uma das casas para se orientar melhor. Viu que lá também havia tropa.
Retrocedeu e se juntou ao grupo. No momento em que iam saindo, Gil perguntou,
talvez um pouco alto, se poderia amarrar a botina. Imediatamente ouviu-se uma
rajada. Juca e Flávio caíram mortos (POMAR, 1980: 258).
Após sua morte, o seu corpo foi fotografado e exposto para a população de Xambioá.
Sua execução serviria de exemplo e também de tática para impor aos moradores da região o
medo, bastante recorrente durante a presença do Exército e ainda constante na memória dos
habitantes do Araguaia. Dona Joaquina Ferreira da Silva, moradora de Xambioá, declarou à
Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos ter visto o corpo do Dr. João Carlos Haas
Sobrinho (Juca) na delegacia daquela cidade embrulhado em um plástico preto. 99
Lúcia Maria de Souza (Sônia) nasceu em São Gonçalo (RJ), em 22 de junho de 1944.
Abandonou em 1971 a Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro para se dedicar à
Guerrilha do Araguaia, participando do Destacamento A (região de Brejo Grande), onde
atuou como parteira. Foi morta em combate100 numa operação comandada pelo major Lício
98
Ver Capítulo I de nossa dissertação. Sua chegada a Porto Franco aconteceu em 1967.
99
Relatório dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Disponível em:
<http://www.desparecidospoliticos.org.br/araguaia/j_carlos.html> Acesso em: 26/05/2007.
100
Segundo documentação do Exército, Lúcia Maria de Souza (Sônia) foi morta em 24 de outubro de 1973.
78
Augusto Ribeiro e Sebastião Rodrigues de Moura (major Curió). Conhecida por sua
coragem, Sônia, antes de ser morta, teria ferido o major Lício no rosto e o capitão Sebastião
Moura no braço. Mesmo ferida, com cerca de 20 balas cravadas no corpo, a guerrilheira
ainda conseguiu arrastar-se até ser encontrada pelos militares. Interrogada sobre o seu nome,
teria respondido: “Guerrilheiro não tem nome, tem causa”. Seu corpo foi abandonado na
mata sem sepultura (STUDART, 2006: 369).
Partindo de suas lembranças, dona Margarida Ferreira Félix, moradora de São
Domingos do Araguaia (PA), narrou a morte de Sônia, por quem tinha grande simpatia:
Sônia foi emboscada e metralhada nas pernas e coxas. Quando lhe deram voz de
prisão e pediram para colocar as mãos na cabeça, ela levou a mão esquerda para
cima e a direita puxou o revólver 38, que efetuou dois disparos, um atingindo a
face do major Curió e outro o braço de um chamado dr. Ivan. Em seguida, ao
ouvir gemidos, sorriu e disse: “Uau, tem gente ferido aí...” Dominada, ainda
respondeu duas perguntas. Na primeira, ao perguntarem seu nome, teria afirmado:
“Guerrilheira não tem nome”, e na segunda, a razão de sua luta: “estou atrás da
liberdade e de um mundo melhor” (CAMPOS FILHO, 1997: 152).
101
Segundo os entrevistados, o mateiro era um morador da região que tinha um bom conhecimento da floresta.
79
Segundo a senhora Joana Almeida, esposa de Luís Vieira, camponês que se integrou
à guerrilha juntamente com dois filhos, a morte de Arildo Valadão (Ari), aconteceu da
seguinte maneira: “O Ari (Arildo Valadão) foi morto e quem cortou a cabeça dele foi um
guia... eles criavam uma equipe de guias, que se chamavam zebras, e eles foi quem faturaram
o Ari” (CAMPOS FILHO, 1997: 149). O que é importante observar, seja na versão de
Arroyo, seja na versão da moradora Joana Almeida, é a ênfase dada à estratégia de se cortar
a cabeça do guerrilheiro, pois Ari foi apenas o primeiro de vários outros militantes que
tiveram a cabeça cortada pelo Exército e/ou pelos chamados bate-paus.102
O senhor Antônio Alves de Souza foi alguém que experimentou de perto as formas
de intimidação do Exército para com os moradores da região, narrando como foi tratado
pelos militares quando esteve preso. Afirmou ter visto a cabeça de um dos guerrilheiros, a
qual lhe foi apresentada. No entanto não soube identificar de quem era:
Quando foi no outos dia tornaram chamar … me tornaram chamar … cheguei lá,
mim deram um bucado de choque, mim afogaram de novo outra vez, só uma vez
mim afogaram … mim deram um bucado de choque, choque eles mim deram
muito, mim bateram … quando chegou um cara num saco … dentro daquele saco
vi a cabeça de um companheiro lá, uma pessoa lá … . “– Deita bem aqui!” comigo
né? Aí eu mim deitei, tinha de deitar, ou deitar ou morria … como eles fazia com
muito … aí eu mim deitei, quando mim deitei aí ele …sacudiram … jogaram
aquele saco … caiu aquela cabeça perto de mim … “– Conhece esse daí?” Eu
disse: – Eu não conheço ninguém! Esse daí não. “– É teu companheiro rapaz! Teu
companheiro e tu não conhece?” Eu digo: – Não, companheiro meu não! “– Pois
é! Pois olhe, do jeitinho que esse foi você vai também, viu?”103 (Grifos nossos)
Segundo os militares, agir com tamanha violência era justificado como uma forma de
reação à violência inicial dos guerrilheiros (STUDART, 2006: 190). Essa tese dos militares e
do próprio Estado não justifica as arbitrariedades praticadas pelo mesmo. Houve uma
“guerra suja”, como alguns militares reconhecem, mas essa não pode ser concebida como
uma inevitabilidade histórica. Ela foi uma escolha desse Estado repressor, pois imaginamos
que havia outras formas de se enfrentar as práticas denominadas pelos militares como
“terroristas” e “guerrilheiras”, sem que houvesse esse radicalismo das Forças Armadas.
Assim, na nossa visão, o uso de tal tática demonstra, em primeiro lugar, um meio de levar à
102
Nome dado pelos moradores aos jagunços (capangas) da região. O dicionário Aurélio apresenta uma das
definições para “bate-pau”: o indivíduo armado e posto a serviço da polícia rural. Ver FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição, Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1986. p. 240. No contexto da Guerrilha do Araguaia, era aquele indivíduo que andava armado à
frente da patrulha.
103
Entrevista com o senhor Antônio Alves de Souza, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
80
Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão) foi morto pelo mateiro Arlindo Vieira (Piauí),
na região de São Geraldo (PA). Após uma longa caçada pela mata, num clima úmido e
quente da Floreta Amazônica, Arlindo Piauí e uma equipe de cinco militares finalmente
localizaram o guerrilheiro que havia se tornado o mito entre os moradores do Araguaia. A
partir das pegadas de sua sandália de borracha feita com pneu, os militares tinham certeza de
que estavam no caminho certo. Enquanto abria os braços para afastar o capim, foi
surpreendido pelo tiro da espingarda A-12 de Arlindo e, em seguida, já caído pelo tiro da
pistola 45 de um militar na cabeça. Sua morte foi comemorada pelos militares com tiros de
81
foguete. Além disso, o soldado Raimundo Pereira, em entrevista à revista Época, confessou:
''Naquele dia teve festa: fizeram churrasco no quartel em Marabá, com direito a cerveja para
todo o mundo'' (ÉPOCA, 03 de mar. de 2004).
Após mais de três décadas do final da guerrilha, uma pergunta ainda é constante entre
os pesquisadores no assunto. Quem teria dado ordens para executar os prisioneiros do
Araguaia? Há, assim, um grande silêncio por parte das Forças Armadas para responder a este
questionamento. Num estudo recente sobre a Guerrilha do Araguaia, o historiador e
jornalista Hugo Studart104 buscou respostas na versão dos próprios militares para esta
pergunta. Segundo Studart, os militares afirmam que sempre as ordens eram orais, dadas por
um chefe no pé do ouvido a um subordinado de confiança (2006: 267).
Em entrevista concedida a Studart, um militar (não quis se identificar) que atuou em
uma das equipes de operações especiais no Araguaia disse:
Nós não tínhamos a menor idéia de onde vinham as ordens. Ninguém perguntava.
Mas o que a gente sabia é que a ordem era a de não fazer prisioneiros. Certa vez
me explicaram que a existência da guerrilha no Araguaia não poderia vazar em
hipótese alguma. Havia o risco da Amazônia ser declarada zona independente pela
China e por outros países comunistas. Por isso os guerrilheiros não podiam
retornar para contar a história (2006: 267).
104
Ver STUDART, Hugo. Op.cit.
105
Conforme discutimos no capítulo II de nossa dissertação.
82
106
Segundo o coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, os corpos de vários guerrilheiros teriam sido
jogados e queimados na Serra das Andorinhas – PA (Veja, 13 de out. 1993: 16). Ver, no anexo B.4, a foto do
rio Araguaia e ao fundo a Serra das Andorinhas.
83
sol muito intenso e chuvas constantes, comuns na região. A água para beber era jogada
raramente e, a comida era servida poucas vezes. As necessidades fisiológicas eram feitas ali
mesmo, o que causava um cheiro insuportável. O senhor José Pereira da Silva (Zé Ernestino)
foi guia do Exército no período da guerrilha. Narrando sua vivência com os soldados e
explicando o porquê de sua atuação junto aos mesmos, disse:
Porque os outro pessoal que eles … por exemplo, o Sebastião Reinaldo que
morava lá em Xambioá e mudou pro São Geraldo, ele vendeu muita coisa pra
eles, munição, vendeu comida e tudo, e eles … o Exército foi lá e com ele lá, e ele
negou tudinho, mentiu. E teve um senhor Zé Novato também que era comprador
de pedra sabe, convivia com eles lá, com eles e aí mentiu, negou que não conhecia
ninguém e foi descoberto, esse povo bebeu água de camburão lá. Foi preso e
botaram dentro de um buraco de quatro metro de fundura com chapéu de arame, e
bebeu água de camburão, viu? Porque mentiu.107 (Grifos nossos)
107
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal. A expressão “beber água
de camburão”, segundo seu Zé Ernestino, significa que a água dada aos prisioneiros ficava em tambores de
ferro geralmente expostos ao sol.
84
tiraram e me bateram muito com uns talo de coco … com uns talo de coco era só
pegando e … “– e ele não conta não, peraí que vai contar!” … me arrastaram
assim, tinha uns tambor de água, desses tambor de 200 litro, pegava e tocava a
cabeça pra baixo dentro daquele tambor. Quando tava já na hora de bater as botas,
eles tirava pra fora … tomava aquele foigo … “– Conta, covarde, o que é que tu
fazia pra os terrorista!” Eu não fazia nada. Nem eu fazia pra eles e nem eles fazia
pra mim também. Eles tocava a vida deles pra lá e eu tocava a minha lá pra minha
casa! “Não, ele não conta não!” Aí começaram a me judiar o resto do dia até umas
horas.108
A prática da tortura não aconteceu apenas com os moradores locais, ela também foi
utilizada com os religiosos que na época prestavam serviço naquela região do país. Padres e
freiras, além de vigiados, eram, em muitos casos, acusados de serem guerrilheiros ou estar
contribuindo com os mesmos. Por isso, o Exército utilizava a tortura para obter informações
desses religiosos e também provocar medo na população. Contando sua experiência como
soldado durante a guerrilha, o senhor Divino Martins dos Santos destacou essa estratégia:
Tivemos uma vez em Palestina e lá na época prenderam um padre, uma freira
simplesmente porque eles eram irlandês, né?, recebia cartas dos familiares escrita
em inglês, certo? E o pessoal achava que eles eram terroristas, então torturaram
demais esse padre, a freira, né? O padre porque ele falava português muito ruim e
ele era irlandês e recebia estas cartas em inglês, e a freira era brasileira, mais nas
aulas de catequese ela rodava músicas de Roberto Carlos, e o pessoal lá achava
que isso não era certo, coisas de Igreja e botar músicas de Roberto Carlos. E
quando ela ia banhar no rio, ela vestia maiô. Então o pessoal da comunidade: “ela
não é freira porque veste maiô … e num sei quê” … E como é que essa freira ia
banhar no rio se não fosse de maiô? Então torturaram demais, inclusive o tenente
determinou que eu torturasse a freira, não é? E ele tava torturando o padre e
mandou que eu torturasse a freira, e ela virou pra mim: “– Meu filho, não faz isso
comigo não, eu tô menstruada, o senhor quer vê?” Eu falei: – Não, não precisa a
senhora fica quietinha aí que ninguém vai te torturar. Eu não vou e não vou aceitar
ninguém te torturar não. E ele torturou muito o padre e depois eles embarcaram
eles lá, e eu não sei daí pra frente o que aconteceu não.109
108
Entrevista com o senhor Antônio Alves de Souza, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
109
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 06/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal. O padre citado no
depoimento do Sr. Divino Martins é o Pe. Roberto de Valicourt, e a freira era a Irmã Maria das Graças.
85
hora da noite e as mulheres não podiam andar sozinhas porque temiam ser atacadas pelos
soldados. Foi dessa maneira que o senhor Ivaldo Santos Carvalho, conhecido como
“Bacalhau”, lembrou o panorama de Xambioá na época da presença do Exército:
Ah, moço … aqui ficou … gente não podia sair de casa de noite, dava oito hora,
oito e meia tinha que recolher todo mundo. Pegaram essa bem aqui mesmo, minha
esposa que tava uma vez doente … eu trabalhava com eles, mais eu tava de folga
em casa eu, eu já tinha trabalhado com eles, já tinha saído, eu fui comprar um
remédio pra ela na farmácia bem ali no mercado, eu fui abordado por eles, toda
valencia que tava o capitão Izaias com eles fazendo rodízio, né? … é fazendo
ronda aí, foi que chegou, foi quem mim livrou, capitão Izaias.110
A mesma informação também nos foi transmitida pelo senhor José Pereira da Silva
(Zé Ernestino): “Botaram retrato de todo … dos 69 nas prefeituras, coletorias, portas de
escola. Botaram no São Geraldo, botaram em Araguaína, em toda cidade aqui do Araguaia
toda tinha a fotografia dos 69 terroristas como eles botaram. Portas de mercado…” 112
Percebemos, assim, que o medo foi institucionalizado pelo Estado, pois as estratégias
usadas pelas Forças Armadas durante a guerrilha demonstram o objetivo central de provocar
a intimidação/insegurança na população local, para que não se envolvesse e/ou apoiasse o
projeto guerrilheiro. Assim, o próprio medo contribuiu para a instauração/imposição do
silêncio sobre a guerra.
110
Entrevista com o senhor Ivaldo Santos Carvalho, conhecido como Bacalhau, concedida a este pesquisador
em Xambioá - TO, em 03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
111
Entrevista com o senhor Edson Costa, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em 01/07/2007.
Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
112
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
86
113
Sobre a existência da prática da tortura, o general Ernesto Geisel, em depoimento ao CPDOC, afirmou: “A
tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. (...) Não justifico a tortura, mas reconheço
que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões
e, assim, evitar um mal maior”. In: Maria Celina D`Araújo e Celso Castro. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro:
FGV, 1997, p. 225.
114
O nome dessa operação faz analogia à cobra – sucuri – comum na região que engole suas presas. Ver.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. As ilusões armadas. Companhia das Letras: São Paulo, SP, 2002.
p. 433.
87
foram inseridos após duas tentativas de investidas fracassadas. A partir desse momento, o
Exército entendia que as operações deveriam ser mantidas em silêncio. O próprio general
Médici declarou: “Era preciso esconder as operações para que elas tivessem sucesso”
(GASPARI, 2002: 435).
Ao final da Operação Sucuri, em 7 de outubro de 1973, o Exército realizou o
chamado dia D. A partir dessa data, foram presos cerca de 160 moradores que, segundo a
versão do Exército, estariam envolvidos com os guerrilheiros. Esses moradores foram,
portanto, apontados pelos agentes da Operação Sucuri como amigos dos guerrilheiros:
A primeira ação nessa 3ª Fase foi desencadeada no próprio dia 7 de outubro, com
a prisão de 160 moradores da região que funcionavam ou eram suspeitos de
funcionar como rede de apoio dos guerrilheiros. Essa ação teve como objetivo,
além de retirar o apoio da Guerrilha, deixar claro a essas pessoas de que lado
estavam a Lei e a Ordem. Na reeducação dessas pessoas teve que ser empregado
algum rigor, uma vez que o caboclo daquela região só conhecia uma lei: a lei do
mais forte. Mesmo porque não havia tempo de usar a psicologia. O Exército
queria fazer entender quem, a partir daquele momento, estava mandando. Após,
todos os detidos foram libertados e passaram a temer mais ao Exército do que aos
guerrilheiros (STUDART, 2006: 217-218).
bate-paus. Um exemplo desse tipo de guia foi Arlindo Vieira (Piauí), que matou o
guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão).
Durante a terceira fase da guerra, as Forças Armadas passaram a oferecer
recompensas pela captura e execução dos guerrilheiros. Nesse momento, o papel
desempenhado pelos chamados bate-paus foi imprescindível, pois estes eram responsáveis
por procurá-los e matá-los. Os militares ofereciam a quantia de 5 mil cruzeiros por cada
guerrilheiro vivo e, para cada guerrilheiro morto, o valor de 10 mil cruzeiros. Em seguida foi
criada uma nova tabela de preços para os mortos em função do cargo que ocupavam no
movimento. Assim, guerrilheiros como Osvaldão, Dina e membros da Comissão Militar
(Maurício Grabois e Ângelo Arroyo) valeriam 10 mil cruzeiros cada. Já os comandantes e
subcomandantes de destacamento valeriam 5 mil cruzeiros (STUDART, 2006: 246).
Partindo do princípio de que o medo pode ser percebido de forma múltipla, vimos
que a presença marcante das Forças Armadas, o número excessivo de soldados, armas,
helicópteros e aviões incutiram em muitos moradores o medo de que os combates aos
guerrilheiros fossem estendidos a toda população da região, ou seja, a guerra na visão dos
moradores poderia ter um alcance bem maior – a existência de uma guerra civil. Nesse
contexto, afirma a senhora Creusa Castro de Aguiar, moradora de Nazaré, norte de Goiás,
hoje Tocantins, à época da guerrilha:
A gente ficava assim com medo é de ter guerra. O medo do pessoal, da
comunidade era medo de guerra. Que esse povo115 aparecesse lá, de repente
aparecesse o Exército, e aí todo mundo ia morrer, aí o negócio era esse. A
preocupação era essa. 116
Opinião semelhante nos foi dada pelo senhor Antônio Almeida dos Santos, lavrador e
morador de Tocantinópolis, ao se referir à guerrilha:
As poucas notícias da Guerrilha do Araguaia e aonde aqui perto tinha
acampamento, aqui próximo de Xambioá, nessa mata aqui próximo de Araguatins
– o acampamento do povo da mata,117 deixava todo mundo surperticioso,
apavorado, em outras palavras, com medo de uma represália a qualquer hora, e o
clima foi tenso. (...) O medo que uma brigada, que alguém pagasse custo … Era o
medo que a gente tinha. A gente tinha medo de que tivesse um confronto e quem
não deve ia pagar junto. Era o medo que a gente tinha na época.118 (Grifos
nossos)
115
Aqui a depoente se refere aos guerrilheiros.
116
Entrevista com a senhora Creusa Castro de Aguiar, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO,
em 24/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo pessoal.
117
Povo da mata – termo usado por alguns moradores para se referir aos guerrilheiros.
118
Entrevista com o senhor Antônio Almeida dos Santos, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis –
TO, em 16/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo pessoal.
89
119
Entrevista com o senhor João de Deus Nazaro de Abreu, concedida a este pesquisador em São Geraldo do
Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
120
Entrevista com o senhor Edézio Gomes da Silva, concedida a este pesquisador em São Geraldo do Araguaia
– PA, em 07/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
121
Conceito utilizado por E. P. Thompson para explicar a forma como na Inglaterra do século XVIII punia os
transgressores. Ver THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social. In: Peculiaridade dos
ingleses e outros ensaios. Org. Antônio Luigi Negro e Sergio Silva. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2001. p.
242.
90
helicópteros.122 Além disso, muitos tiveram a cabeça cortada, o corpo perfurado por muitas
balas, e outros foram fotografados após a execução pelos militares. Um caso bastante citado
pelos moradores se refere à execução de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um negro
de aproximadamente dois metros de altura. Entretanto a morte por si não bastava, era preciso
apresentar o corpo do capitão sem vida à população. Para isso, utilizaram um helicóptero e
passaram pelas principais cidades da região com o corpo de Osvaldão pendurado a uma
corda, como um prêmio, símbolo da vitória das Forças Armadas sobre os terroristas e
comunistas. Porém, mais do que a vitória, a exibição do seu corpo reflete o que E. P.
Thompson denominou de teatro do terror. Através dele, a população local sentia-se
amedrontada e sem ter a quem recorrer. Dessa forma, as constantes cenas de guerrilheiros
mortos e expostos à população marcaram a vida de quem presenciou a guerrilha. Marcas
muitas vezes traduzidas pelo medo falar da guerra e pelo silêncio em relação ao assunto.
A lógica, portanto, era mostrar à população local o que acontecia com os terroristas,
para que ninguém ousasse apoiar suas idéias. Nesse sentido, narra a senhora Creusa Castro
de Aguiar:
Passava também muito avião aqui, era avião direto. Até que um certo dia passou
tipo assim uma rede assim pendurado, né?… e o povo disseram que era uma
pessoa que ia pendurado. Disseram que era um Geraldão. Aí disse que a polícia
tinha matado essa pessoa e que estava levando não sei se prá Brasília ou São
Paulo, né?… nesse avião.123
Além desse depoimento, que demonstra o teatro do terror instituído pelas Forças
Armadas durante a guerrilha, há uma entrevista do senhor João Bosco Lopes da Silva,
morador de Xambioá à época da guerra, ao Jornal do Tocantins, na qual afirma:
Eu vi o “Joca” – João Haas – morto num carro, exposto para todo mundo ver. Ele
estava tão perfurado de balas que não dava para reconhecer. Tinha perto de uns
500 tiros no corpo dele. Fizeram questão de mostrar ao povo e para que alguém
reconhecesse o corpo.124
122
Isto é, nº. 1697, 05 de abr. de 2002.
123
Entrevista com a senhora Creusa Castro de Aguiar, concedida a este pesquisador em Tocantinópolis – TO,
em 24/06/2005. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo pessoal. O “Geraldão” a qual a nossa
depoente fala, é na verdade o Osvaldão. Um dos chefes dos destacamentos da guerrilha.
124
Jornal do Tocantins, 21 e 22 de abril de 2000. Xambioá convive com espectro da Guerrilha. Grifos nossos.
91
Ave Maria … de mais. Olhe, ele tinha tanta roupa… ele saiu, só levou três mudas
de roupa e par de sapato e um chinelo. Tudo ele deixou comigo, deixou aqui… “–
Não se um dia eu voltar eu pego, se não tu dá pra alguém que precisa ai”. Aí sabe
o que é que eu fiz? Chegou aquele clima todo, pegando aquele pessoal que era
comunista … Ah!… ele ficou sabendo por isso que a Polícia Federal perguntava
muito aqui na cidade por ele, né? Que ele aí foi eles quem contaram que ele era.
Aí eu com medo de chegarem até a mim, eu tá com as coisas dele, eu peguei e
enterrei tudinho as coisas dele, dei, desfiz das coisas …. Enterrei tudo. As
roupas desfiz de tudo… dei logo … pra não ficar com nada … se eles
chegassem aqui, que se não eles iam achar que ela é também da mesma linha! Não
é? Ela compartilhava da guerrilha. E aí eu fiquei com medo e dei as fotografias
dele tudo. Aí a polícia andou muito investigando aqui a vida dele. Nunca
chegaram até a mim não.125 (Grifos nossos)
125
Entrevista com a senhora Djacy Santos Miranda, concedida a este pesquisador em Porto Franco – MA, em
31/01/2006. Gravação em fita microcassete e transcrita. Arquivo Pessoal.
92
maioria das cidades, cartazes com as fotografias dos membros do PC do B eram expostos,
classificando-os de terroristas, arrombadores de bancos, assaltantes, dentre outros. Portanto,
havia uma preocupação em se criar uma imagem assustadora dos militantes do PC do B que,
na nossa visão, também contribuiu para o medo/silêncio das pessoas em falar sobre o
assunto.
O medo, embora seja um fenômeno geral presente em várias sociedades ao longo do
tempo, também apresenta um caráter particular. Mesmo sendo analisado como uma defesa
essencial e como uma garantia contra os perigos, ele é percebido pelos sujeitos históricos de
forma singular. No caso da Guerrilha do Araguaia, o medo pode ser observado também
como uma maneira de os moradores locais sobreviverem numa área de conflito. Nesse
sentido, o mesmo foi concretizado nas diversas ações que a população praticou diante das
fiscalizações, ameaças, torturas, perseguições e vigilâncias impostas pelas Forças Armadas.
Essas ações, na nossa concepção, foram: a negação de conhecer algum guerrilheiro, o
silêncio sobre o assunto, e, em muitos casos, o não-apoio às Forças Armadas nas operações
de caça aos militantes do PC do B. Entendemos, portanto, que o medo presente na população
do Bico do Papagaio aconteceu dentro de um contexto específico pelo qual o nosso país
passava – época de censura, perseguição, repressão e tortura a todos que fossem contrários
aos militares. Dessa maneira, não é nosso objetivo generalizá-lo, mas discuti-lo dentro da
experiência dos moradores dessa região.
Contudo sabemos que a experiência do medo não é algo fácil de analisar, pois
partimos de um fenômeno individual e, dentro do campo histórico, colocamos um caráter
coletivo. Segundo Delumeau, essa postura não é problemática, pois os comportamentos de
uma multidão exageram, complicam e transformam os excessos individuais (1989: 24).
Dessa forma, concordamos com Maurice Halbwachs quando afirma que a memória possui
um caráter social, ou seja, a memória é coletiva e só pode ser compreendida a partir do plano
social (1990: 26). Assim, embora os depoimentos de nossos sujeitos enfatizem aspectos
diferentes da experiência da guerrilha, encontramos na maioria deles referências ao medo.
Mesmo que o mesmo seja percebido e vivenciado de forma particular.
Partimos do pressuposto de que esse medo tenha contribuído para o silenciamento em
torno do assunto. Ora, além do silêncio do Estado, demonstrado, por exemplo, através da
censura e da não-liberação da documentação oficial sobre o movimento, existe o silêncio de
boa parte da população que vivenciou de perto a experiência da guerrilha. Analisando os
silêncios existentes na história, Marc Ferro classifica-os em três tipos: o primeiro é aquele
93
que pode ser encontrado em qualquer que seja a instância produtora da história. Ele acontece
em torno das origens e da legitimidade de uma igreja, dinastia ou partido. O segundo tipo, no
qual se enquadra a nossa problemática, é o silêncio que, com certa cumplicidade, é
compartilhado com a sociedade, seja de forma espontânea, seja pela força. Já o terceiro tipo
está centrado num silêncio político, ou seja, na recusa que determinados povos, como, por
exemplo, os africanos, apresentam ao lembrar o seu passado de múltiplas humilhações
(1992: 37).
Percebemos, inicialmente, durante a nossa pesquisa de campo, um olhar de
desconfiança por parte dos moradores. O nosso receio era não conseguir que as pessoas
falassem/narrassem suas experiências, pois, decorridos mais de trinta anos do fim da guerra,
talvez o medo ainda esteja bem presente nas suas memórias. Contudo, aos poucos, alguns
moradores superaram esse desafio e expressaram através de suas lembranças seus
testemunhos sobre a experiência com os paulistas/guerrilheiros e os militares. Entretanto
alguns moradores ainda não se sentem à vontade para falar sobre a guerrilha. Em alguns
casos, entramos em contato várias vezes com determinadas pessoas para que narrassem suas
experiências, mas elas resistiram a falar. “Eu não sei nada dessa guerra”, “venha outra hora”,
“faz muito tempo, eu não lembro mais”, foram algumas das desculpas encontradas por
alguns moradores para não falar.
Durante a realização da pesquisa junto aos moradores do Bico do Papagaio, tivemos
a oportunidade de entrevistar pessoas que, a partir de suas memórias e, especialmente, de seu
lugar social, perceberam a experiência da guerrilha de forma diferente. Uma dessas pessoas
nos surpreendeu com a sua vivência desse acontecimento. Entre os moradores da região,
encontramos alguém que vivenciou o outro lado da história, ou seja, um homem que serviu
ao Exército como recruta – soldado – durante a guerra. A partir desse encontro,
especificamente após ouvi-lo, percebemos que a experiência da guerra não foi algo
traumático apenas para os moradores e os guerrilheiros, essa experiência foi muito além, ela
também se constituiu enquanto violência e medo para muitos dos soldados (recrutas), que
serviam às Forças Armadas naquela época. Pois, assim como os moradores e guerrilheiros
vivenciaram o clima de terror e medo, muitos dos recrutas também experimentaram as
mesmas sensações.
Assim como o Exército levou o medo à população do Bico do Papagaio através do
que denominamos de teatro do terror, os guerrilheiros também formaram o seu
94
contrateatro126, ou seja, com suas táticas e estratégias provocaram medo nos soldados.
Portanto, o medo foi algo presente nos três grupos sociais envolvidos na guerrilha:
moradores, guerrilheiros e soldados (recrutas).
Do lugar do recruta (soldado), encontramos o senhor Divino Martins dos Santos
(Martins), morador de Xambioá e funcionário da ADAPEC (Agência de Defesa
Agropecuária do Estado do Tocantins). Martins nos falou que, na década de 1970, serviu ao
Exército e, nesse período, foi enviado para compor as tropas militares no Bico do Papagaio
no combate aos guerrilheiros do PC do B, durante a segunda campanha (setembro a outubro
de 1972). Partindo de suas memórias, assim narrou sua chegada na área do conflito:
Eu cheguei aqui através do … do… do Exército. O Exército tava na época
cumprindo o meu dever cívico de servir ao Exército e fui mandado pra cá. Olha,
realmente foi uma decisão difícil, foi um anúncio que causou uma reflexão muito
grande na gente é … até porque quando a gente vai pro Exército, a gente imagina
que aquilo lá a gente vai aprender coisa boa e não vai ter problema, vai vestir
aquela farda, dá tiro, aprender marchar, correr aquelas coisas toda, e a guerra
mesmo assim a gente não pensa nela não, certo? Não o país não tá em guerra eu
vou lá só cumprir o meu dever, aprender algumas coisas e vou sair. E de repente
você está lá e surge uma coisa desse tipo, não é fácil, certo? Mais eles preparam o
soldado muito bem, né?, eles tem psicólogo, toda uma equipe de profissionais que
eles preparam o indivíduo, né?, um indivíduo bem … muitas vezes sente parte do
meio e não fica assombrado. Mais eu não gostei da experiência, certo? Porque
primeiro, foi as condições de sobrevivência, né?, nós estávamos aí num estado
real de guerrilha e faltava muito … alimentação era muito carente, era muito
fraca, a gente recebia uma tal de ração fria que era uma alimentação pré-fabricada
e vinha com muito sal, era vinha salsicha em lata, vinha é … feijoada em lata e
umas bolacha muito seca.127
Na sua entrevista, Martins enfatizou que a vivência no ambiente de guerra foi uma
experiência traumática. Após três meses atuando nesse ambiente, ele acrescentou as marcas
deixadas por esse trabalho em sua vida depois do fim da guerrilha:
Então foi … foi uma experiência muito terrível que eu tive, certo? E eu peguei
uma psicose aí de dá tiro, eu tive problemas depois que eu dei baixa do Exército,
eu ficava parece com aquela … aquele barulho daquelas explosões na cabeça e
passou muito tempo pra mim esquecer aquilo, chegou ao ponto de eu dá baixa e
fui ser expetor de treinamento num curso de capatazia rural pela Secretaria de
Agricultura do Estado de Goiás. E um dia, eu peguei uma arma uma carabina 22,
né?, eu chamo flober, ela era 15 tiro, e eu discareguei ela todinha dentro do
alojamento à noite, certo? Quando eu vi tinha feito aquilo … e o pessoal vieram
mim procurar porque … eu disse: - Tive na guerrilha ai lá eu dei muito tiro, deu
126
Aqui fazemos uso de outro conceito utilizado por E. P. Thompson. Para ele, dentro do contexto da Inglaterra
do século XVIII, havia um duplo componente: o controle político e o protesto, ou rebelião. Assim, enquanto
os donos do poder representam um teatro de majestade, superstição, poder, riqueza e justiça sublime, os
pobres encenam seu contrateatro, ocupando o cenário das ruas dos mercados e empregando o simbolismo do
protesto e do ridículo. Dessa forma, assim como há a violência do Estado, existe também a violência do
protesto, aqui percebida em nossa pesquisa como oposição às estratégias das Forças Armadas na tentativa de
levar o medo à população e aos guerrilheiros. Sobre o conceito de contrateatro, ver: THOMPSON, E. P. op.
cit. p. 237-238.
127
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 06/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
95
esse problema, me deu … eu fui olhando pra arma me deu aquela vontade de
carregar a arma, ai aconteceu.128
A narrativa do senhor Martins é importante, na nossa visão, porque ele fala do lugar
de quem vivenciou as dificuldades e os medos na imensa Floresta Amazônica, terra ainda
desconhecida para os soldados. Entretanto, para os guerrilheiros, a floresta já constituía uma
terra conhecida, pois sua presença na região desde 1966 tornou esse ambiente familiar para
os mesmos. Diante desse contexto, os guerrilheiros criaram o que denominamos contrateatro,
isto é, uma forma de intimidar e levar medo e pânico aos soldados do Exército. Portanto,
entendemos a tática do contrateatro praticado pelos guerrilheiros como uma estratégia de
resistência e também de oposição ao teatro do terror. Ora, mesmo sendo uma prática menos
intensa que do teatro do terror, ou seja, o contrateatro foi mais setorizado, na medida em que
atingiu especialmente os soldados, isso não significa que ele não tenha provocado efeitos na
tropa. O depoimento do senhor Martins é emblemático nesse sentido. Para ele, a guerra
realizada pelos guerrilheiros era algo “psicológico”. Em nossa interpretação, o contrateatro, a
partir da narrativa do senhor Martins, foi responsável por retardar várias vezes as ações dos
militares, levar os recrutas a cometerem suicídio e a chorar para não entrar na floresta.
Assim, enfatizando essas questões, afirmou seu Martins:
Eles não entregavam com vida, eles não tinham diálogo, né? Então chegar a
encontrar, ali tinha que abrir fogo, certo? Eles não entregavam com vida, eles
atiravam mesmo sabendo que ia morrer, eles abriam fogo, porque mesmo que eles
fossem … fossem presos se estivessem em condições é … de soltar um soldado,
tomar a arma dele e matar o soldado, eles suicidarem imediatamente. Então o
objetivo dele era aniquilar o Exército e provocar pânico, já que eles eram em
número menores, pelo menos provocar pânico na tropa, né?, deixar a tropa em
pânico. Então a gente andava em fila indiana na mata, e eles tinham maior
cobertura na mata que eles conheciam, né?, eram em menor número, e as armas
deles eram de repetições carabinas, espingarda 20, 12, fuzil de repetição, né?,
carabina 38. Então eles, eles atiravam no primeiro ou no último, certo? Então
matavam o primeiro ou o último da fila, certo? Escreviam em folha com espinho
aquelas folhas grandes e pregavam nos troncos das árvores aonde a trilha
passava, então a gente chegava e encontrava uma folha fincada com espinho
no troco da árvore. Ali tava escrito lá: “seus cachorros do governo! Sés
passaram em tal lugar a gente tava lá … fulano aquele que tava atrás, fulano
ainda mirou ele mais ficou com dó …” certo? Então aquilo … aquele cara …
aquele que foi mirado, aquele cara entrava em pânico, ele chorava, ele gritava,
ali ele já tava com pânico, certo? Não queria ser o último mais, né? Ele queria
ficar no meio. E aí você imagina assim, dentro de uma mata em estado de guerra,
e ninguém querer ficar na extremidade da fila, certo? Então era uma guerra mais
psicológica, certo? Pânico, né?, eles criavam pânico na tropa, certo? E com isso,
retardava muitas vezes a ação deles, eles conseguia mais espaço, considerando
128
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em 06/07/2007. Citada anteriormente.
96
que eles eram em menor número, né?, conseguiria mais espaço … provocava
pânico.129 (Grifos nossos)
Dessa forma, a narrativa do senhor Martins, demonstra o medo que boa parte dos
soldados sentia na mata para enfrentar os guerrilheiros. Por outro lado, confirma de certa
forma o despreparo dos soldados nessas primeiras campanhas do Exército, contra os
militantes do PC do B – afirmação bastante recorrente nos depoimentos dos ex-guerrilheiros
e dos moradores da região. Essa falta de preparação dos soldados também foi relatada pelo
senhor Bento Luiz Gomes de Abreu, que na época da guerra trabalhou junto com um tio num
pequeno bar onde vendia refrigerantes para os soldados na base de Xambioá. Logo, foi
alguém que experimentou de perto o contato com os soldados. Em sua entrevista,
percebemos que o contrateatro dos guerrilheiros provocava nos recrutas insegurança e medo.
E, para não enfrentar os militantes do PC do B na mata, alguns chegavam a cometer o
suicídio. Nesse sentido afirmou: “Os soldados suicidava pra não entrar no mato, dava um tiro
na cabeça pra não entrar no mato, aconteceu bem uns três casos desses. Aí a polícia ocultava.
Aí o cara – pelo amor de Deus! Rapaz o que é que cê tá fazendo?”130
A mesma afirmação foi lembrada pelo Brigadeiro Sérgio Luiz Burger, em entrevista
ao jornalista Hélio Contreiras. Segundo Sérgio Luiz, a tropa estava despreparada para a luta
contra os guerrilheiros, o que provocou pânico nos soldados. Diante desse cenário de
despreparo, o brigadeiro lembrou o suicídio de um soldado. Esse cenário, portanto, trouxe
repercussão negativa para o restante da tropa que assistiu à atitude do soldado. Assim,
afirmou:
Com a luta armada, o governo foi obrigado a intensificar a mobilização das Forças
Armadas. No início, estávamos despreparados para a ação policial e para
combater a própria guerrilha. Prova disso foi o suicídio de um soldado do Exército
no seu primeiro dia em Xambioá, o que demonstrou seu despreparo psicológico
para enfrentar aquele tipo de cenário, e a repercussão do suicídio não foi,
obviamente, positiva entre nós (1998: 62).
O reflexo desse contrateatro também pode ser percebido através das estratégias
utilizadas por alguns soldados, para não se depararem com os guerrilheiros na mata. O
senhor José Pereira da Silva (Zé Ernestino), que atuou como guia na época, relatou que dava
dicas para os soldados não encontrarem com os guerrilheiros. É interessante perceber que
129
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em 06/07/2007. Citada anteriormente.
130
Entrevista com o senhor Bento Luiz Gomes de Abreu, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
27/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
97
essa era uma exigência e/ou necessidade dos próprios sargentos: “eu não vim matar ou
morrer”. Nesse sentido, afirmou:
Teve um sargento que se ele saiu com 50 soldados e não deu um tiro em
ninguém e não levou nenhum tiro porque ele pegou a minha dica. Ele falou:
eu não vim matar e nem morrer. Eu disse: então você vai por ali e volte por
aqui que você não topa com ninguém. Ele chegou no Xambioá e me abraçou, me
deu um abraço e agradeceu demais – puta, rapaz, você é um cara mais intiligente
que já teve no mundo, que eu não vim aqui matar ninguém nem morrer. Aí eu dei
a dica pra você não peitar com ninguém porque eu sabia que tava morto, os home
tudo …131 (Grifos nossos).
131
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
98
132
Ver reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia em: Isto É. São Paulo, 27 de set. 1978. Veja. São Paulo, 06
de set. de 1978. Jornal da Tarde. São Paulo, 13 de jan. 1979.
133
Ver Lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de
participação, ou acusação de participação em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15
de agosto de 1979. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L9140.htm> Acesso em:
17/06/2007.
99
gente podia ir e também não podia prender que os homens não se entregava, era
bobagem se entregar e tinha sargento que era muito açoito.134
Perguntamos ainda, a seu Zé Ernestino, se ele em algum momento teve medo de falar
sobre a guerrilha. Ele respondeu: “Não, até 10 anos eu não falei nada. Porque foi uma ordem
do Exército. A ordem é o seguinte, depois que recebi o certificado militar … você vai jurar
como não falar o que você viu na guerrilha.” Assim, percebemos a influência dos militares
para que a experiência da guerrilha não fosse divulgada. Tal experiência devia ser silenciada.
Hoje, apesar da desconfiança que alguns moradores demonstram ao tocarmos no
assunto, não há tanta resistência em se falar sobre ele. Essa atitude nos possibilitou fazer o
seguinte questionamento: Quais motivações estão contribuindo para que os moradores da
região quebrem o silêncio e enfrentem o medo? A partir dos depoimentos dos próprios
moradores, levantamos as seguintes motivações: a primeira delas está relacionada com o
contexto histórico. Assim como o medo e o silêncio foram influenciados pelo contexto
histórico do país nos anos de 1960 e 1970, contribuindo com a insegurança e o terror,
enfrentar o medo e romper o silêncio também foram possibilitados pelo contexto do Brasil a
partir do final da década de 1980. Essa constatação aparece em várias entrevistas, em que
são enfatizados o clima de democracia, a anistia e a liberdade que as pessoas têm hoje, mas
que naquela época (anos 1960/1970) não existia. Há, assim, no depoimento do senhor Davi
Rodrigues, uma relação bastante forte entre o passado, “antes não podia dizer que a ditadura
não prestava”, e o presente, “hoje a gente pode”. Foi desta maneira que se referiu seu Davi
Rodrigues de Souza (Davi dos Perdidos):
Porque eu tava de frente pros militares e eu tinha vontade de falar uma coisa e não
podia falar, porque eu ia sofrer naquele momento, e eu deixava de falar coisa que
eu precisava falar, mais pra ele não, porque era eu falar e pegar porrada, era eu
falar e pegar os choque, e eu deixava de falar … Isso aconteceu comigo não foi só
uma vez … porque era de frente eles, junto com eles preso, humilhado e eu tinha
que deixar de falar, eu sabia, precisava mais não podia, porque ia mim prejudicar.
Depois disso, hoje eu posso falar, hoje eu tenho liberdade de falar . E essa
liberdade de falar já faz tempo que vei, só que tem que saber falar, e como se
defender, porque hoje não, você fala o que você sente, o que você precisa falar
não prejudicando alguém. Mais se alguém precisa de ser prejudicado pode falar,
se alguém não presta pode falar que ele não presta, e antes não podia dizer que a
ditadura não prestava, não podia dizer que aquele militar tava errado, não podia
dizer que alguém do INCRA estava errado, não podia dizer que um delegado
estava errado, não podia denunciar porque ia preso. Hoje a gente pode.135
134
Entrevista com o senhor José Pereira da Silva, conhecido como Zé Ernestino, concedida a este pesquisador
em Araguaína – TO, em 26/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
135
Entrevista com o senhor Davi Rodrigues de Souza, conhecido como Davi dos Perdidos a este pesquisador
em São Geraldo do Araguaia – PA, em 05/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
100
136
Entrevista com o senhor Alan de Oliveira Moraes, concedida a este pesquisador em Araguaína – TO, em
30/06/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
101
lugar que eu tô te precurando vai ficar, porque se vocês disserem abrir a boca e
contar, quando o pente fino vier é arrastando tudo, porque por enquanto foi só a
vassoura arrastou o grosso … a metade e quando o pente fino vier arrasta tudo. E
vocês contarem essa história, ai vocês são os primeiros que vai!” Aí nóis fiquemo
com medo de abrir a boca e contar … a gente falava: - Não, não aconteceu nada
não! O que nois dizia era isso, não aconteceu nada não. Ai quando vei essa
mulher com esse negócio aqui, aí foi que eu tive aquela coragem de sair
contando pra todo mundo … e hoje eu conto pra todo mundo, né.137 (Grifos
nossos)
137
Entrevista com o senhor Antônio Alves de Souza, concedida a este pesquisador em Xambioá – TO, em
03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal. O “outro lado”, referido pelo nosso entrevistado,
é a cidade de São Geraldo do Araguaia (PA).
138
Entrevista com o senhor Ivaldo Santos Carvalho, conhecido como Bacalhau, concedida a este pesquisador
em Xambioá - TO, em 03/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
102
139
Entrevista com o senhor Divino Martins dos Santos, conhecido como Martins, concedida a este pesquisador
em Xambioá – TO, em 06/07/2007. Gravação digital e transcrita. Arquivo Pessoal.
103
nossa presença, à margem desse novo status da região, vivendo nas mesmas condições da
década de 1970.
***
104
CONCLUSÃO
utilizaram em muitos casos a tática do silêncio e da negação. Resolveram não falar sobre
suas experiências e amizade com os paulistas e/ou negar essa convivência. Os paulistas,
desde o momento que chegaram à região, passaram a reinventar novas formas de viver. Eles,
em sua maioria jovens estudantes de classe média urbana, modificaram seus costumes de
acordo com a realidade do homem do interior. Com a chegada das Forças Armadas, tiveram
que abandonar suas propriedades, seus novos amigos (os moradores da região) para se
esconder na mata, tornando-se, a partir de então, guerrilheiros. Buscavam resistir, defender-
se da caçada aos comunistas e terroristas, assim nomeados pelos militares. E os militares,
especialmente os envolvidos diretamente no conflito (recrutas, sargentos), atuaram como
divulgadores do sentimento anticomunista presente naqueles anos de Guerra Fria. Em nome
da ordem e da defesa nacional, propagaram junto aos moradores da região que aqueles
jovens tão queridos entre eles eram perigosos, assaltantes de bancos, terroristas, comunistas
que tencionavam dominar e em seguida escravizar suas famílias e tomar-lhes as propriedades
e bens. Diante dessas imagens e das ameaças utilizadas pelos militares, a população viu-se
dividida. Assim, com base nos depoimentos dos moradores, não se pode afirmar que houve
uma indiferença total aos paulistas/guerrilheiros, nem que houve um apoio total aos
militares. No que se refere às imagens do comunismo entre os moradores do Bico do
Papagaio, percebemos uma certa peculiaridade em relação aos centros urbanos do país, pois,
nesses centros, deu-se uma grande influência do anticomunismo católico, que via no
comunismo uma ameaça à fé e aos “bons costumes”. No caso da região estudada, essa
imagem não foi encontrada nos depoimentos dos moradores. A maior influência para que se
gerasse uma visão negativa dos comunistas resultou da propaganda realizada pelos militares.
Como estratégia para a divisão dos moradores, os militares fizeram uso do medo.
Medo esse que durante o regime militar passou a ser institucionalizado pelo próprio Estado.
A quem reclamar da ameaças e torturas? Ao governo? À justiça? Não havia, assim, uma
saída para aquela situação. As formas utilizadas pelos militares para caçar e matar os
guerrilheiros, exibindo-os sem vida à população, o número exagerado de soldados e o
aparato utilizado nas operações demonstram a intenção de causar pânico na população do
Bico do Papagaio. Será que essa prática seria inevitável?
Como vimos, segundo os depoimentos dos próprios moradores, houve na época
excesso nas ações do Estado. Dessa maneira caracterizaram as ações dos militares o senhor
Salomão Dias de Souza e o senhor José Batista Neto, ao lembrar da guerrilha.
106
***
108
ENTREVISTAS
• ANTÔNIO ALVES DE SOUZA – Natural de São Luis – MA. Lavrador que durante a
guerrilha morava nas Abóboras, povoado localizado no Pará, próximo à cidade de São
Geraldo do Araguaia (PA). Sua propriedade ficava próxima à casa de Divalva Oliveira
Teixeira (Dina). Atualmente reside em Xambioá – TO. Entrevista realizada em Xambioá, em
03 de julho de 2007. Duração de 37 minutos e 44 segundos.
• BENTO LUIZ GOMES DE ABREU – Natural de Xambioá – TO. Atualmente trabalha como
motorista e reside em Araguaína – TO. Na época da guerrilha, era adolescente e tinha uma
boa amizade com Paulo Roberto Marques (Amaury). Entrevista realizada em Araguaína, em
27 de junho de 2007. Duração de 24 minutos e 25 segundos.
• DAVI RODRIGUES DE SOUZA (Davi dos Perdidos) – Natural de Brejos dos Paraibanos –
MA. Na época da guerrilha, morava no povoado de nome Perdidos, próximo a São Geraldo
do Araguaia (PA). É agricultor e atualmente mora em São Geraldo do Araguaia. Entrevista
realizada em São Geraldo do Araguaia, em 05 de julho de 2007. Duração de 43 minutos e 56
segundos.
• DIVINO MARTINS DOS SANTOS – Natural de Corumbaíba – GO. Atuou como recruta do
Exército durante a segunda campanha das Forças Armadas contra os guerrilheiros.
Atualmente é funcionário público do Estado do Tocantins e reside em Xambioá – TO.
Entrevista realizada em Xambioá, em 06 de julho de 2007. Duração de 50 minutos e 19
segundos.
• EDÉZIO GOMES DA SILVA – Natural de São Domingos dos Efei – MA. Na época da
presença dos paulistas, morava em Palestina (PA). Atualmente é comerciante e reside em
São Geraldo do Araguaia (PA). Entrevista realizada em São Geraldo do Araguaia, em 07 de
julho de 2007. Duração de 40 minutos e 54 segundos.
• MARIA ONEIDE COSTA LIMA – Natural de São Geraldo do Araguaia – PA. Professora e
moradora de São Geraldo do Araguaia. Entrevista realizada em São Geraldo do Araguaia em
05 de julho de 2007. Duração de 19 minutos e 15 segundos.
• NEUZA RODRIGUES LINS – Natural de Cocobassulândia – PA. Viúva de Amaro Lins, ex-
guerrilheiro que se casou com Neuza e saiu do movimento. Atualmente reside em São
Geraldo do Araguaia (PA). Entrevista realizada São Geraldo do Araguaia, em 05 de julho de
2007. Duração de 1 hora e 13 minutos.
• RAIMUNDO GOMES SILVA – Natural do Estado do Maranhão, não citou a cidade. Foi
guia do Exército na época da guerrilha. Atualmente mora em São Geraldo do Araguaia (PA).
Entrevista realizada em São Geraldo do Araguaia, em 05 de julho de 2007. Duração de 22
minutos e 25 segundos.
• AMARO LINS – Lavrador em São Geraldo (PA). Participou do movimento, mas por ter se
envolvido por uma moradora da região, foi afastado do PC do B. Entrevista concedida a
CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas.
Goiânia: Editora da UFG, 1997. p. 117.
• IVAN DE SOUZA MENDES – Em 1974 era general de brigada, posto no qual comandou a
8ª Região Militar sediada em Belém, e a Escola de Comando e Estado Maior do Exército
(ECEME), integrando ainda o corpo permanente da Escola Superior de Guerra (ESG).
Depoimento concedido a D`ARAÚJO, Maria Celina. SOARES, Gláucio Ary Dillon.
CASTRO, Celso (Orgs). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.172. p. 174.
• JOÃO PAULO MOREIRA BURNIER – Chefiou o Centro de Informações da Aeronáutica
(CISA). Depoimento concedido a D`ARAÚJO, Maria Celina. SOARES, Gláucio Ary Dillon.
CASTRO, Celso (Orgs). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 185). p. 201.
***
115
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<http://www. terra.com.br/istoe/1663/brasil/1663_arquivo_vivo.htm>. Acesso em: 07 jun.
2007.
Revista Isto É Online. São Paulo: Edição de 20 jun. 2007. Disponível em:<
http://www.terra.com.br/istoe>. Acesso em: 18 jun.2007.
Revista Época. São Paulo: Editora Abril, Edição de 03 mar. 2004. Disponível em:
<http://www.defesanet.web.terra.com.br/noticia/epocaaraguaia/index.html>. Acesso em: 07
jun. 2007.
Revista Época. São Paulo: Editora Abril, Edição de 21 mai. 2007. Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG675559-6009,00.html>. Acesso em:
09 jun. 2007.
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade. Brasília, 2007.
REPORTAGEM TELEVISIVA
ANEXOS
122
ANEXO A
ANEXO B
Anexo B.1 - Casa onde residiu João Carlos Haas Sobrinho (Dr. Juca) em Porto Franco – MA.
Fonte: Arquivo do autor.
Anexo B.2 - Posto médico onde trabalhou João Carlos Haas Sobrinho (Dr. Juca) em Porto Franco – MA.
Atualmente funciona o Fórum da cidade.
Fonte: Arquivo do autor.
124
Anexo B.3 - Pista de pouso em Xambioá – TO. Local onde funcionava a Base da Aeronáutica e do Exército
durante a guerrilha. Fonte: Arquivo do autor.
Anexo B.4 - Rio Araguaia e ao fundo a Serra das Andorinhas - PA. Fonte: Arquivo do autor.
125
ANEXO C
Wellington. Primeiro eu quero que o senhor falasse o seu nome completo e a sua idade.
Antônio. Do Maranhão.
se eu ia tocar fogo na casa no outro dia. Eu não ia dizer que não ia, que tava junto com os
militar … eu digo – não, toco! – Você toca mesmo? Eu disse: - toco! – Pois amanhã a tarde
eu passo por aqui pra saber se você tocou fogo na casa! E é pra você tocar fogo na casa
mesmo! E aquelas criação que eles tem lá, que eles tem muita criação, aquelas criação que
tem lá você pega tudinho e dá cum sumiço naquela criação tudo amanhã mesmo! Porco, tem
um porco lá no chiqueiro você pega e mata e dá pra vizinhança. Eu digo – tá bom! Mais
nisso, não chegou eu fazer aquele serviço. Quando foi logo cedinho chegou um guia que ia
com eles que foi o cara que levou eles até lá em casa, o senhor José Caboco. Zé Caboco
chegou com a vizinhança ali dele toda lá e pegou as galinhas, pegou porco matou tudo,
acabou com aquilo tudo. Mais quando foi as nove horas do dia eu fui e toquei fogo na casa
como eles tinham mandado eu tocar fogo na casa. E fiquei esperando ele passar lá … fez
hora e eles não passaram. Quando foi no outro dia, negócio de umas oito horas do dia que eu
dei fé o terreiro tava qualhado deles. – Tocou fogo na casa? Ai eu fui: - Toquei! Certo, tocou
que eu passei por lá! Tá bom, aí falaram comigo e saíram foi simbora. Quando tava com uns
três méis eles rodando ali por dentro … todo dia eles passava lá em casa, todo dia, todo dia, e
falaram pra mim assim: - olha, você fica aqui na expectativa se aparecer esse pessoal você
corre na base mais perto que tiver aqui, você vai avisar que se você não avisar o negócio é
mais pesado pra você, e você tem que avisar. E se você avisar e nós pegar o cara que você
viu e avisou você tem um dinheiro bom. – Tá bom! Eu fiquei naquela expectativa se
aparecer gente tem de avisar, se não avisar o negócio pega pra mim, né? Mais não. Nunca
mais apareceu, ninguém nunca apareceu lá. Também eu nunca fui avisar pra eles nada,
sempre eles passava e precurava: - cadê os home? Eu digo: - nunca mais eu vi, do dia que
saíram daí nunca mais eu vi. Que quando a Dina passou lá em casa no dia que ela saiu pra ir
lá na casa de ____ ele pediu pra mim ir botá de comer pra os bixos dela lá, tinha um milho lá
numa vazia no armário e era pra mim ir lá e botá ração pras galinhas, pros porcos que tavam
no chiqueiro e as galinhas, né? Mais num chegou eu ir botar ração pra eles, eles tinham
deixado muito lá no terreiro. Eu digo: - do dia que eles passaram aqui, nunca mais eu vi eles
não. Aí quando foi com uns oito dias, eles chegaram lá em casa de novo. Eu tava com um
paiô, uns dez sacos de farinha feito, que eu tava fazendo farinha que era pra levar pras
Abóbora que era ponto de castanha. Eu vendia farinha pras Abóbora e para Fortaleza, e tinha
25 sacos de farinha dentro do paiô e tinha um bucado de farinha dentro de umas coxas, na
oficina e eu tava com 40 calhas de mandioca na água que era pra fazer farinha. Quando eles
chegaram e mandaram eu me arrancar dali, sair da casa rapidamente, deixando tudo pra trás,
ai eu saí e deixei farinha, deixei arroz, deixei as criação e deixei tudo e a mulher gestante,
quase um mês de ganhar nenê. Saí pra fora da … da minha casa, um quilometro e pouco …
Eu morava lá pra cima da mata, naquele tempo as moradas, os morador tudo era longe. Aí
fiquei … ali eu fui passar fome, com arroz muito arroz que eu tinha no paiô, farinha, as
criação mais eu não podia ir lá na casa que os militar tava toda hora rodando ali, eu não
pudia, não tinha mais licença ir lá na casa não e a mulher passando fome … Aí foi tempo que
a mulher ganhou menino. E eu sem puder arrumar nada que o que eu tinha tava tudo preso
pra lá sem eu puder encostar lá pra apanhar. Eu fui lá nas Abóbora na base, cheguei lá falei
com o chefe que ficava sempre lá, eu digo: - não eu vim aqui porque minha mulher ganhou
menino, tá com seis dias hoje que minha mulher ganhou menino, e eu quero a permissão sua
pra mim ir lá na minha roça e pegá uma mandioca pra fazer farinha pra ela. Ele olhou assim
pra mim e disse, assim: - Rapaz, você quer fazer essa farinha não é pra os terroristas não? Eu
digo: - Não, é pra minha mulher que tá de resgardo, tá lá minha mulher passado fome! E ele
disse: - Vai, você pode ir, vai vê sua farinha, mais você tem que fazer pouca! Eu digo: - Não,
vou fazer pouca, não vou fazer muita não, vou fazer pouca. Nesse intervalo que nois tava lá
passando necessidade, eu fui lá duas veiz, lá na casa, lá na minha casa a meia noite pra
roubar o que era meu pra poder comer. Nesse dia eu trouxe um pouco de arroz, truxe uma
127
farinha e truxe dois frangos … A meia noite eu saí pra lá pra pegar … e não fui mais. Aí
quando foi nesse dia que eu peguei essa permissão que eles me autorizaram pra mim pegar lá
… arrancar mandioca e fazer farinha, pra mim não ir só tinha um vizinho assim que tinha os
garotinhos de 8 a 10 anos, eu fui lá pedir a ele, eu digo: - Dodô deixa teu menino ir lá na roça
mais eu pegar … pra mim arrancar uma mandioca pra fazer farinha pra muê, que a muê ta
assim … e eu tô sismado de ir sozinho que os militar tão por ai! Ele disse: - Vai Jorge! Que
era o nome do menino. - Vai Jorge mais o seu Antônio! Ai o menino saiu mais eu. Chegou lá
em casa eu peguei o menino botei em cima do animal e vumbora meu filho na roça arrancar
mandioca e vem já! Aí desci lá pra roça, quando cheguei bem no acero da roça o burro
sismô, olhei assim pra eles, eles estavam tudo deitado debaixo de uns pezinhos de manga
meu, que do lado direito de terra que eu tinha comprado tinha um sitiozinho de manga uns
pezinhos lá, aquela coisa … eles tavam tudo deitado ali. Aí o burro se espantou e eu vi
quando eles levantaram … Pode é que tu vai rapaz? Eu digo: - Não, vou ali arrancar
mandioca pra fazer farinha pra muê! Que fazer farinha pra muê o que, cabra semvergonhi,
você vai é arrancar mandioca pra fazer farinha pra os terroristas! Eu digo: - Não, eu fui
ontem pedir a permissão lá nas Abóbora, lá na base eu pedi permissão e o chefe mandou que
eu viesse arrancar mandioca pra fazer essa farinha. - Que nada, vamo voltar pra trás! E eu
voltei pra trás mais eles. Já saíram de lá comigo amarrado. Quando cheguei bem no terreiro
de minha barraca que era onde eu morava, eles meteram a mão em mim derribaram, me
bateram logo um bucado, né … bateram muito, mandaram o menino embora, aí o menino foi
embora ai me tocaram no rumo de casa, mais antes de chegar lá em casa tinha uma
estradinha que saia lá na casa de um vizinho por nome Adilino. Me tocaram pra lá antes, eu
disse: - rapaz deixa eu passar ao menos lá por casa! Ele disse: - Não, você vai é por aqui!
Meteu logo a mão em mim. Aí eu cheguei lá e o compadre Adilino me viu: - Compadre o
que é que foi? Eu digo: - Não tô sabendo de nada! Disse: – E a comadre? Eu digo: - Não
sabe de nada também. Que ela tinha ficado por lá, por lá por casa não tinha mais passado. Aí
me tocaram lá pras Abóbora … cheguei lá negócio de umas 10 horas do dia … cheguei lá
nas Abóbora, passei o resto do dia preso lá. Quando foi no outro dia, o helicopo chegou, me
pegaram jogaram dentro e truxeram pra cá. Cheguei aqui quando eu bati na pista aqui foi
mesmo que bater na mão de um bucado de gavião. Me pegaram logo, me saíram arrastando
por cima de um bucado de toco com a corda amarrada no pescoço … por cima de um bucado
de toco … de toco, ai levaram e me amarraram num pé de palmeira lá … um toco de
palmeira. Em baixo no toco da palmeira tinha um monte de formiga de fogo, eles
assanharam aquelas formiga de fogo e foram amarraram … ali as formigas invadiu meu
corpo todinho me morderam o tanto que quiseram, eu não podia me mexer … me morderam
… de vez em quando eles chegava e batia, de vez em quando chegava e batia com o facão …
nunca fiquei bom direito, me bateram muito. Quando foi a partir das 5 horas da tarde me
tiraram, levaram pro … pra base … lá pra barraca. Quando cheguei lá tinha um dipindurado
num pau assim … não era nem um pau, era um cano de ferro, passado assim … e ele lá
dipindurado com as faixas amarradas assim nas pernas e um ferro assim … de vez em
quando ele ia lá e tocava um choque nele, de vez em quando ele ia lá e tocava um choque.
Tinha outro deitado pra lá todo machucado, inclusive esse senhor que tava lá todo
machucado era um dotorzinho e esse que tava lá dipendurado era … era … (Tempo pra
lembrar o nome)
Antônio. Ele morava lá na mata … pegaram ele lá na mata … lá nessa mesma região da
Abóbora. Aí me botaram pra sentar lá em cima _____ aí eles foram me investigar, chegava
outro, precurava uma coisa … eu contava só aquilo que tinha acontecido, chegava outro e
128
dizia: - Ah! ele não diz nada não, ele não descobre nada não esbarra ai. Aí me pegaram,
botaram um choque em mim, botaram no beiço assim … e botaram na oreia e deram aquele
choque pra eu contar o que aconteceu. Eu digo: - comigo não aconteceu nada e nem com eles
lá também que eu não sei. Porque eles eram morador … tavam lá o morador junto perto de
mim e eu também tenho eles como qualquer uma pessoa, não me impataram chegar. Se você
acha que tá um … uns terroristas morar perto de você é porque você era terrorista também.
Eu digo: - Eu não sabia o que é que eles eram, pra mim ele era igualmente eu ou outro
qualquer e ou … a mata é pública pra qualquer um chegar e morar né. Aí me botaram aquele
choque, botaram choque, tiraram e me bateram muito com uns talo de coco … com uns talo
de coco era só pegando e … e ele não conta não, peraí que vai contar! … me arrastaram
assim tinha uns tambor de água, desses tambor de 200 litro, pegava e tocava a cabeça pra
baixo dentro daquele tambor. Quando tava já na hora de bater as botas eles tirava pra fora …
tomava aquele foigo … - conta covarde o que é que tu fazia pra os terrorista! Eu não fazia
nada. Nem eu fazia pra eles e nem eles fazia pra mim também. Eles tocava a vida deles pra
lá e eu tocava a minha lá pra minha casa! Não ele não conta não, ai começaram a me judiar o
resto do dia até umas horas. Me tocaram e levaram lá pro chiqueiro, um curral que eles
fizeram … de arame … todos fios de arame asssim … cercado assim … tinha um pezinho de
coco assim … que era a casa a nossa casa lá … que lá não tinha casa, não tinha nada, um
curral … aí cheguei lá tinha aquele magote de gente, tinha muita gente … só conhecido meu
que eu sabia de nome tinha Zé Novato, Zé Maria, tinha Beca, Zé Madalena que é o marido
dessa veia Madalena que tá … que mora lá em cima, Zé Madalena, Zé das Graças, Zé Borge,
que era os que eu conhecia de nome, por nome e mais outras pessoas que eu não sabia como
era o nome e podia precurar, porque a gente chegava lá não podia conversar com ninguém
… me botaram lá. Quando foi no outro dia cedo … chamaram: - Busca o novato lá pra mim!
Me pegaram e mim arrastaram de novo pra me investigar, precurando o que é que eu tinha
feito prus terroristas … - Não, não fiz nada, esse povo era um povo que morava pertinho de
mim, mais eu não sei quem era esse povo, não sei como era o nome deles, sei que eles eram
vizinho lá perto, mais esse povo nunca fizeram nada pra mim e eu nunca fiz nada pra eles. -
Não ele não conta não! Tornava a botar choque, era choque … afogava de novo … eles só
num fizeram foi mim dipindurar, dipindurar lá como os outros tava eles não dipinduraram
não, mais o choque eles dava direto … batiam … até que eles viram que eu não contava
mesmo … mim tiraram e botaram debaixo _____. Quando foi no outos dia tornaram chamar
… me tornaram chamar … cheguei lá mim deram um bucado de choque mim afogaram de
novo outra vez, só uma vez mim afogaram … mim deram um bucado de choque, choque eles
mim deram muito, mim bateram … quando chegou um cara num saco … dentro daquele
saco vi a cabeça de um companheiro lá, uma pessoa lá … . – Deita bem aqui! Comigo, né?
Ai eu mim deitei, tinha de deitar, ou deitar ou morria … como eles fazia com muito … aí eu
mim deitei, quando mim deitei aí ele …sacudiram … jogaram aquele saco … caiu aquela
cabeça perto de mim … - Conhece esse daí? Eu disse: - Eu não conheço ninguém! Esse daí
não. – É teu companheiro rapaz! Teu companheiro e tu não conhece? Eu digo: - Não
companheiro meu não! – Pois é! Pois olhe do jeitinho que esse foi você vai também, viu?
Você vai do mesmo jeitinho que esse foi você vai também! Eu digo: - olha sabe de uma
coisa eu tô entregue a mão … eu tô nas mãos de Deus, primeiramente eu tô nas mãos de
Deus e segunda na mão de vocês. Vocês é quem faz de mim o que quiser … e se é de tá
desse jeito, mim judiando desse jeito assim … é melhor matar logo mesmo rapaz … . – Tira
ele, leva lá pro curral! Aí ficou … de vez enquando um chegava mim investigava, de vez
enquando um chegava e investigava … e eu contando só aquele causo que justamente tinha
acontecido. Aí eu passei lá dessa vez eu passei 22 dia preso. Todo dia eles investigava …
agora só que bater mesmo eles não bateram mais. O derradeiro dia que foi … que eles mim
bateram … eles mim investigaram … viram que eu não contava uma … uma mentira, porque
129
se eu contasse uma coisa e outra coisa era mentira, e eu não ia contar mentira, ia contar a
verdade. Então eles viram que eu não contava uma mentira … eles disseram assim: - Não,
ponha lá aquele negócio! Bota aqui nele, que já já ele conta. Aí o cara vei, um senhor de
Romeu, e esse senhor de Romeu dizem que era o pesado … era o que gostava de bater. Veio
aqui por trás de mim segurou minha cabeça e apertou, apertou, apertou, apertou e aí quando
eu vi que aquilo ia estorar, eu digo: - Vocês pode estourar, vocês pode matar mais eu não
vou contar uma mentira nem condenar ninguém, que eles queria que eu mentisse porque eu
tava contando a verdade, e se eu contasse outra coisa era mentira. Eles queria que eu
mentisse e condenasse algumas pessoas e eu não podia condenar ninguém, porque eu não
tinha visto ninguém fazer outras coisa, nada pra eles né. Vocês pode fazer o que quiser, mais
eu só conto o que aconteceu. Aí foi a hora que chegou … um outro lá que eu não conheço,
naquele tempo lá tudo era doutor … chegou lá … aí disse: - Não, tira isso daí da cabeça dele!
Aí tiraram e mim levaram pra lá … ______. Quando eles tiraram aqui tava pra estorar …
fiquei com uma dor de cabeça muitos anos de sete anos pra foi que vei melhorar mais um
pouquinho depois de muito remédio que eu tenho tomado. Foi que veio melhorar um
pouquinho. Aí fiquei lá … todo dia na investigação, e chegando gente e eles batendo pra lá
… . Zé Novato ficou numa situação que ainda hoje é alejado, nunca mais foi homem pra
nada, Zé Madalena esse eles mataram. Um dia por essa hora assim (aproximadamente 16:00
h) ele escapuliu de lá de um buraco, que esse era preso com nois não, era num buraco bem
pertinho de nois assim. E esse escapuliu … foi aquele ribuliço no mundo lá … na base … e
aí pegaram ele e ninguém viu mais ele, eles mataram. Zé Novato saiu todo esbagaçado de
taca, é mole nunca mais foi home pra nada e assim foi com muitas pessoas … judiaram na
pusição de não ser mais home pra nada. Eu eles mim bateram e muito, ainda hoje eu trabalho
mais mim sentido muito ruim, nunca fui mais home pra dizer assim eu tenho aquela
resistência como eu tinha antes, aquela força … eu sinto dó no meu corpo, de vez enquando
eu sinto aquelas pontadas … aquelas coisas tudo … . E assim eu passei nessa sujeição lá com
eles, nesse sufrimento, eu passei 22 dias. Minha muê pra lá sofrendo não sabia nem pra onde
é que eu tava nem notícia minha daqui ela não sabia, ela pensava que eu andava era na mata
aí junto com eles caçando os terroristas como eles chamavam. Mais eu tava era aqui
sofrendo. Aí com 22 dia foi que eles mim liberaram. Nesse dia que eles me liberaram,
liberaram eu, Zé Novato, Beca e doutor ____. Eles chegaram lá e precuram esse negócio de
umas 8 pra 9 horas do dia. E no outro dia nois ia embora, eles iam liberar nois, mais só no
outro dia porque naquele dia não tinha avião pra levar nois, aí nois … eu fui e falei assim …
Eu mais o Beca falei assim: - É se ele liberasse hoje quisese que nois fosse simbora hoje,
hoje eu ia de imbora a pé, aí eles escutaram, o guarda que ficava assim escutaram, aí foi e
falou pra eles. Você que ir embora hoje? Eu digo: - Não, se é pra nois ir amanhã … se você
quer mandar nois ir imbora amanhã … se quiser mandar nois ir imbora hoje, nois vamos de a
pé, tem nada não! Pois vai até do outro lado! Aí pegaram nois deram as coisas que tomaram
de nois que foi a roupa que nois tinha levado … aí deram de novo, nois tava só de cueca lá
dentro … pegaram a roupa e entregaram pra nois e nois saimo. Botaram dentro da avoadeira
e nois viemo pra o outro lado. Aí de lá nois fomo imbora pra casa. E assim são muitas coisas
que a gente conta e eu como se diz tem muitas coisas que passou e a gente passa por alto pra
contar, entendeu? A gente não lembra tudo na hora pra contar.
Wellington. Seu Antônio quando ele jogou a cabeça lá do guerrilheiro assim o senhor não
sabia quem era mesmo não? Ou o senhor já tinha …
Antônio. Eu tinha visto ele uma vez, só que tava muito desfigurado pra mim conhecer, mais
depois foi que disseram era de fulano de tal. Eu já tinha visto ele … só uma vez não, muitas
vezes que eles passavam lá pra casa da Dina … eles sempre gostava de visitar a Dina né, eles
130
tudo como bem … os que eu conhecia de nome era a Dina, o Antônio que era o marido da
Dina, Zé Francisco, Raul e o … como era o nome … Zé Francisco, Raul, Mundico que eu
conheci de ____, Helena e Aura esses eu conheci de nome, que já tinha visto passar, eu
conhecia de nome … eu conhecia pelo nome e via muitos, mas não sabia como era o nome
deles não. E sim tinha o Ari também … o Ari esse eu conhecia, que o Ari foi um que teve até
uma farmácia aqui no São Geraldo, teve uma farmaciazinha … eu também conheci.
Antônio. Só da Dina, os outros era vizin porque naquele tempo vizin de uma légua duas
léguas era vizin. _____ ele morava mais fora … ele morava uma base de uma légua de
distância de nois, agora pertinho só a Dina mesmo, que era assim uma faixa de uns 250
metros lá pra casa dela, direto assim … indo pela estrada dava mais longe um pouco, mais
indo direto assim dava 250, nois escutava todo mundo no meio deles lá.
Wellington. Seu Antônio, e eles realizavam algum trabalho lá com a população local? O
senhor sabe dizer se eles faziam isso?
Antônio. O … os guerrilheiros? Os terroristas? Não, eles não tinham muito … eles não teve
tempo da fazer serviço. A única mente eles tava se alicerçando, porque eles chegaram
compraram aqueles direito de posse … compraram do velho Raimundo Cantuara. Esses
direito que eu morava era do filho do Raimundo Cantuara e eles compraram do velho
Raimundo Cantuara. Eles compraram esses direito de posse e tavam se alicerçando né, eles
tavam comprando muito era criação … criação eles tavam comprando muito. Eles tavam no
psicoise de trabalhar, de fazer serviço ali como … o Antônio da Dina um dia me chamou: -
Seu Antônio vamos dar uma volta no mato pra mim ter uma prática mais certa aonde é a
minhas divisa, que você conhece a mata, eu não conheço … aonde é minha divisa que eu
esse ano quero botar uma roça! Ele queria botar uma roça naquele ano, ele tava falando que
ia botar roça … Aí eu andei na mata mais ele de manhã pra mei dia eu andei na mata mais
ele mostrando, eu digo: - olhe seu Antônio, mais ou menos dessa base daqui par cá é meu
limite, e pra cá é o seu limite … daqui aonde dê você deve trabalhar! Naquele tempo a mata
era grande não tinha muito morador. Ele disse: - Tá bom, eu quero saber que pra mim não
chegar a atingir o seu lado nem você atingir o meu.
Wellington. Seu Antônio e eles nessa conversa poucas que teve com o senhor. Eles nunca
falaram de onde eles eram? O que é que eles tavam fazendo?
Antônio. Nunca, o que eles me falaram era só unicamente que andavam aventurando pra vê a
… caçando um lugar pra se aquetarem pra trabalhar que pra onde eles moravam não tinha
mais um lugar de trabalhar, então eles queria era um lugar que eles descansassem e ali
naquela região tava sendo um lugar muito bom pra eles se aquetarem e trabalharem, é … o
que eles me contavam era isso.
Wellington. Seu Antônio aí durante essa época que eles conviveram lá com o senhor, o
senhor nunca chegou a perceber que eles eram pessoas diferentes, estudadas … o senhor
nunca teve essa desconfiança, não?
Antônio. Não, saber se eles eram umas pessoas estudadas, pessoas que intindia a gente sabia
que eles eram por causo do trabalho deles mesmo, né. Porque a mulher mesmo foi uma
mulher que chegou lá em casa um dia e a minha menina mais velha, que acabou de sair
131
daqui indagora, tava muito doente, entendeu? Tava muito doente … aí ela gostava muito da
menina, a menina nesse tempo era pequeneninha assim … aí quando ela foi que passou …
Wellington. A Dina?
Antônio. É a Dina … quando ela passou disse assim: - Cadê a Cunhã? Minha Cunhãzinha!
A minha muê disse: - Ela tá deitada, ela tá com uma febre mais monstra do mundo! Então
ela entrou lá dentro, lá de casa … - virgem! eu vô já voltar ali em casa pegar um remédio pra
ela. Voltou lá na casa e trouxe uns comprimidos. Ai mandou a muê dá: - Faça um cházin e
dê esse comprimido aqui pra ela. A muê fez o chá aí deu um comprimido, aí pronto, a febre
desapareceu. Ela deu só dois comprimidos e aí nunca mais ela teve febre enquanto nois
moremos lá. Então eu sabia que eles eram uma pessoa mais ou menos, né? A gente já sabia
que tinha um deles que era farmacêutico aqui, a gente conheceu ele lá, que ele era
farmacêutico aqui, a gente comprava remédio na mão dele também. Sabia que eles não eram
uma pessoa muito … besta a toa não, era uma pessoa estudada.
Wellington. Seu Antônio os participantes desse movimento que o senhor citou aí o nome
deles, muitas vezes eles foram chamados de terroristas como o senhor citou, eram chamados
também de comunistas …
Wellington. E quando o senhor escutava essa palavra terrorista o que é que vinha em sua
cabeça?
Antônio. Eu não intindia … eu não intindia nada … pra mim isso ai era uma coisa … que
você sabe a gente não tando atualizado naquele … coisas … nois mora lá no meio da mata
não sabia nem o que significava essa parte … negócio de terrorismo … essas coisas … não
intindia. E se falava muita veiz em terrorista aquilo era lá pra outros cantos aqui não existia,
não é?
Wellington. É … o senhor foi alguém que experimentou mesmo a tortura que eles fizeram
com o senhor, bateram, deram choque … e com os guerrilheiros que eles chamavam
terroristas, o senhor chegou a presenciar assim a morte de algum? A tortura de algum na
época?
Antônio. Só não porque eu não vi eles lá nas Abóbora pegaram um lá e eu não vi, soube
apenas que tinham pêgo e trazido pra cá … e eu não vi eles torturar nenhum deles porque eu
não conhecia nenhum pêgo aqui junto com eles, né, o que eu vi foi só essa cabeça desse um
que eles chegou com ele lá … na base quando eu tava preso aqui. Que a base era aqui desse
lado, lá em cima … aculá … que eu até fui lá com aquele … um jornalista … Eduardo …
que ele pediu pra mim ir lá … pra mim … pra saber … eu vou levar … e levei ele lá tudo e
mostrei direitinho pra ele onde é que era. Agora eles torturar nenhum deles … eu não vi não.
Porque o que pegava não chegava ao nosso conhecimento pra dizer assim chegar e mostrar
pra gente … pegava e de lá mesmo transportava ele pra outro canto.
Antônio. O Osvaldão não. Esse aí não conheci não. Passou esse movimento todo …
132
Wellington. Na sua opinião, seu Antônio, já que o senhor experimentou todo esse martírio,
né? O senhor acha que a população daqui, os moradores da região se davam melhor com
esses chamados guerrilheiros ou com o Exército?
Antônio. Eu pra mim … eu mim dava melhor com eu, ou com os que chamavam terroristas,
eu mim dava melhor com eles, porque? Foi uma pessoa que chegou lá mesmo pra de junto
de nois, eles não passaram um ano lá junto de nois … lá pertinho vizinho com nois … não
passaram um ano … mais por aonde eles moraram que passaram mais de ano, e lá perto de
nois passaram quase um ano, eu nunca subi de um … de uma confusão de nenhum deles.
Dizem o povo que esse Osvaldão matou gente pra cá, mais esse negócio de matar gente isso
é comum … dependendo da ação de um, mais que eu mesmo vê eles alguma coisa não. Pra
mim … eu acho que com eles era melhor de que com o Exército, porque o Exército …
quando ele chegou lá ele não foi indentificar e saber quem era os morador quem era as
pessoas que morava, porque nois ali, nois morava a 5 a 5 anos que nois morava no lugar, e o
Exército chegou não foi identificar ninguém, saber quem era as pessoas quando chegou já foi
levando os que eram terroristas como eles chamavam e os que não era terrorista foi
chegando e metendo o cacete e matando e fazendo tudo … porque eles mataram não foi só
os terroristas não, como eles chamavam de terroristas, mataram os morador também … os
proprietários também eles mataram muito né, que não tinha nada a ver. Zé Madalena foi um
dos que morreu, Zé da Engraça foi um dos que morreu né, Hermogeni eu acho que esse já
morreu também e outros mais que eles matava por lá por dentro da mata. Então eles não
chegaram pra identificar ninguém, pra dizer assim pronto fulano você mora, quem é que é
você, como é o seu nome, não … chegou foi logo metendo o cacete … do primeiro dia que
chegaram foi logo fazendo isso. E os terroristas como eles chamavam nunca fizeram essa
coisa, unicamente tratava a gente com distinção, com amor.
Wellington. Há alguma cena em toda essa experiência que o senhor acabou de contar que o
senhor nunca esqueceu? Algo assim que marcou a sua vida nessa época?
Wellington. Então me conte uma coisa dessas que o senhor nunca esqueceu?
Antônio. Primeiro que eu nunca esqueci foi do que eu sufri, do que eu passei, isso ai eu
nunca esqueci e nunca me esqueço. Outra também que eu nunca esqueci foi o que eu vi
fazerem com os outros também … pegar uma pessoa sem conhecimento, inucente sem saber
de nada, pegar, pegar bater até na hora quase de morrer, isso eu nunca mim esqueci … nunca
esqueci de uma cena dessa não, e assim são mais que a gente com o tempo …
Wellington. Seu Antônio diante disso o senhor em algum momento teve medo de falar sobre
essa história de relatar o que o senhor me contou aqui?
Antônio. Tive muito medo, tanto medo eu tive, que os meus fie principalmente aquele um
que nasceu quase no dia que fui pêgo que tava só com seis dias vei saber dessa história
depois que … ta com uns 5 anos mais ou menos que ele vei saber dessa história. Ele tá com
trinta e poucos anos de idade, viu? E vei saber isso há uns 5 anos mais ou menos vei saber.
Por que? Eu tava aqui em casa trabalhando bem ali quando chegou um companheiro o dito
Beca que foi um dos preso que tava lá junto comigo … chegou aqui um companheiro falado
comigo, que lá do outro lado tinha uma mulher que tava colhendo com essas pessoas sofrido,
133
sobrevivente … que nois somos sobrevivente … eles dizem lá que sobrevivente são eles lá
… mais nois somos sobrevivente porque nois escapemos daquilo … então tava precurando
esse povo que participava dessa época da guerrilha pra fazer um histórico que ela queria
entrar com aqueles histórico na justiça e ação que era pra pessoa ser indenizado. Eu fui e
falei com Beca, eu digo: - Eu não vou contar esse causo! Ele disse: - Não, para aí eu também
dizia isso,mais contei o meu causo! E são muitas pessoas que já contou aqui essas histórias
que já ta lá com ela, e ela falou que é pra você ir que é pra nois fazer esse histórico lá. Eu
digo: - Rapaz sabe de uma coisa, eu vou! E aí eu fui mais eles, cheguei lá fui contei esse
histórico tudinho pra ela … contei quando começou … só não tudo porque a gente não
lembrava tudo na hora certa, né, mais contei o histórico pra ela tudo, tudo, tudo que
aconteceu, o que eu passei tudo, o que eu vi passar com os outros … aconteceu com os
outros, o que passou-se comigo. Contei tudo pra ela fizemo aquele histórico e então ela
começou a mandar pra lá … e assim de vez em quando eu venho fazendo, de vez em quando
eles precisam de uma história qualquer eu vou e conto. Mais antes eu tinha medo, sabe
porque, porque quando foi no dia que ele liberou nois aqui, ele chamou noís três que iam
liberar … quatro fomo liberado eu, Zé Novato, Beca e Dotorzinho nós fomo liberado nois
quatro, ele chamou e disse: - Olha, vocês viram passar essa cena aqui com vocês? Se passou-
se, se passou-se? Viram com os outros? – Vimo! Pois bem aqui esse lugar que eu tô te
precurando vai ficar, porque se vocês disserem abrir a boca e contar, quando o pente fino
vier é arrastando tudo porque por enquanto foi só a vassoura arrastou o grosso … a metade e
quando o pente fino vier arrasta tudo. E vocês contarem essa história aí vocês são os
primeiros que vai! Aí nóis fiquemo com medo de abrir a boca e contar … a gente falava: -
Não, não aconteceu nada não! O que nois dizia era isso, não aconteceu nada não. Ai quando
vei essa mulher com esse negócio aqui ai foi que eu tive aquela coragem de sair contando
pra todo mundo … e hoje eu conto pra todo mundo, né.
Wellington. Seu Antônio o senhor já prestou depoimento pra muitas pessoas não é?
Antônio. Muitos.
Antônio. Mora em Goiânia. Eduardo e … bom … desses assim só que eu lembro … mais só
que tem mais outros que eu já contei também depoimento.
Antônio. Hoje não, não tenho mais medo de falar. Hoje a qualquer hora que chegar qualquer
uma pessoa aqui pra mim contar um causo do que eu mim lembrar do que tá na minha mente
eu conto o que aconteceu.
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