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Ledo engano.
Sendo crianças e adolescentes sujeitos dos mesmos direitos que os adultos, a exemplo
destes possuem também deveres, podendo-se dizer que o primeiro deles corresponde
justamente ao dever de respeitar os direitos de seu próximo (seja ele criança,
adolescente ou adulto), que são exatamente iguais aos seus.
Essa regra, por vezes contestada e, acima de tudo, mal interpretada, sequer precisaria ter
sido escrita estivéssemos em um país do chamado "primeiro mundo"[3], haja vista que o
direito ao respeito é um direito natural de todo ser humano, independentemente de
sua idade, sexo, raça e condição social ou nacionalidade, sendo que no caso específico do
Brasil é ainda garantido em diversas passagens da Constituição Federal, que coloca (ou ao
menos objetiva colocar) qualquer um de nós a salvo de abusos cometidos por outras
pessoas e mesmo pelas autoridades públicas constituídas.
O dispositivo em questão, portanto, de modo algum pode ser interpretado como uma
espécie de "autorização" para que crianças e adolescentes de qualquer modo venham a
faltar com o respeito a seus educadores (ou com qualquer outra pessoa), pois o direito ao
respeito e à integridade física, moral e psíquica destes é garantido por norma
Constitucional, de nível portanto superior, que como vimos não poderia jamais ser
violada por uma lei ordinária.
Como impossível saber o conteúdo e forma de elaboração de cada regimento escolar, parto
do princípio que este, além de respeitar as normas acima referidas, foi elaborado e/ou
adequado a partir de uma ampla discussão com toda a comunidade escolar, em
especial junto aos pais dos alunos, que nos termos do art.53, par. único do Estatuto da
Criança e do Adolescente, têm direito não apenas a tomar conhecimento do processo
pedagógico da escola (pública ou particular), mas também de participar diretamente da
própria definição de suas propostas educacionais.
E no contexto do que deve ser entendida como "proposta educacional" da escola, por óbvio,
deve estar incluída a forma de lidar com autores de atos de indisciplina, pois são estes
seguramente indiciários de falhas no processo educacional do aluno que precisam ser
melhor apuradas e supridas através de ações conjuntas da escola, da família e,
eventualmente, mesmo de outros órgãos e autoridades, como é o caso do Conselho Tutelar,
que em situações de maior gravidade, em que se detecta estar o aluno criança ou
adolescente em situação de risco na forma do disposto no art.98, incisos II e/ou III da Lei
nº 8.069/90, pode intervir para fins de aplicação de medidas de proteção previstas nos
arts.101 e 129 do mesmo Diploma Legal, destinadas ao jovem e à sua família.
Um dos pontos cruciais dessa discussão diz respeito à definição das condutas que
caracterizam, em tese, atos de indisciplina e as sanções (ou "penas") disciplinares a elas
cominadas[4].
Importante registrar que, tomando por base a regra de hermenêutica contida no art.6º do
Estatuto da Criança e do Adolescente e seus princípios fundamentais, e ainda por analogia
ao disposto no art.5º, inciso XXXIV da Constituição Federal, que estabeleceu o princípio da
legalidade como garantia de todo cidadão contra abusos potenciais cometidos pelo
Estado (em seu sentido mais amplo), deve o regimento escolar estabelecer, previamente,
quais as condutas que importam na prática de atos de indisciplina, bem como as
sanções disciplinares a elas cominadas, sendo ainda necessária a indicação da instância
escolar (direção da escola ou conselho escolar, por exemplo) que ficará encarregada de
apreciação do caso e aplicação da medida disciplinar respectiva (em respeito à regra contida
no art.5º, inciso LIII também da Constituição Federal).
Evidente que as sanções disciplinares previstas não podem afrontar o princípio fundamental
- e constitucional, que assegura a todo cidadão, e em especial a crianças e adolescentes, o
direito de "acesso e PERMANÊNCIA na escola", conforme previsão expressa do art.53,
inciso I da Lei nº 8.069/90, art.3º, inciso I da Lei nº 9.394/96 e, em especial, do art.206,
inciso I da Constituição Federal[5], nem poderão contemplar qualquer das hipóteses do
art.5º, inciso XLVII da Constituição Federal, onde consta a relação de penas cuja imposição
é vedada mesmo para adultos condenados pela prática de crimes. De igual sorte, não
poderão acarretar vexame ou constrangimento ao aluno, situações que além de
afrontarem direitos constitucionais de qualquer cidadão insculpidos no art.5º, incisos III,
V e X da Constituição Federal (dentre outros), em tendo por vítima criança ou adolescente,
tornará o violador em tese responsável pela prática do crime previsto no art.232 da Lei nº
8.069/90.
De igual sorte, ainda por respeito a princípios estatutários e, acima de tudo, constitucionais
afetos a todo cidadão sujeito a uma sanção de qualquer natureza, a aplicação da sanção
disciplinar a aluno acusado da prática de ato de indisciplina não poderá ocorrer de
forma sumária, sob pena de violação do contido no art.5º, incisos LIV e LV da Constituição
Federal, que garantem a todos o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à
ampla defesa, mais uma vez como forma de colocar a pessoa a salvo da arbitrariedade
de autoridades investidas do poder de punir.
Nesse contexto, é elementar que o aluno acusado da prática da infração disciplinar, seja
qual for sua idade, não apenas tem o direito de ser formalmente cientificado de que sua
conduta (que se impõe seja devidamente descrita), caracteriza, em tese, determinado ato
de indisciplina (com remissão à norma do regimento escolar que assim o estabelece), como
também, a partir daí, deve ser a ele oportunizado exercício ao contraditório e à ampla
defesa, com a obrigatória notificação de seus pais ou responsável, notadamente se
criança ou adolescente (para assistí-lo ou representá-lo perante a autoridade escolar),
confronto direto com o acusador, depoimento pessoal perante a autoridade processante e
arrolamento/oitiva de testemunhas do ocorrido.
Todo o procedimento disciplinar, que deve estar devidamente previsto no regimento escolar
(também por imposição do art.5º, inciso LIV da Constituição Federal), deverá ser conduzido
em sigilo, facultando-se ao acusado a assistência de advogado.
Evidente também que a decisão que impõe a sanção disciplinar precisa ser devidamente
fundamentada, expondo as razões que levaram a autoridade a entender comprovada a
acusação e a rejeitar a tese de defesa apresentada pelo aluno e seu responsável, inclusive
para que possa ser interposto eventual recurso às instâncias escolares superiores e mesmo
reclamação ou similar junto à Secretaria de Educação.
Embora as cautelas acima referidas pareçam excessivas, devemos considerar que seu
objetivo é a salvaguarda do direito do aluno/cidadão (criança, adolescente ou adulto) contra
atos abusivos/ arbitrários da autoridade encarregada da aplicação da sanção disciplinar, que
para o exercício dessa tarefa não pode violar direitos fundamentais expressamente
relacionados na Constituição Federal e conferidos a qualquer um de nós, consoante
acima mencionado.
Também não podemos perder de vista que todo o processo disciplinar, com a cientificação
da acusação ao aluno e garantia de seu direito ao contraditório e ampla defesa, possui uma
fortíssima carga pedagógica, pois vendo o aluno que seus direitos fundamentais foram
observados, e que foi ele tratado com respeito por parte daqueles encarregados de definir
seu destino, a sanção disciplinar eventualmente aplicada ao final por certo será melhor
assimilada, não dando margem para reclamos (em especial junto aos pais) de "perseguição"
ou "injustiça", que não raro de fato ocorrem (ou ao menos assim acredita o aluno), e que
acabam sendo fonte de revolta e reincidência ou transgressões ainda mais graves.
Ao arremate, vale apenas reforçar a afirmação por vezes efetuada que a sistemática acima
referida deve ser adotada em relação a todos os alunos, independentemente de sua idade
ou nível escolar, pois a obrigação do respeito a direitos e garantias constitucionais de parte
a parte não tem idade, sendo direito - e também dever, de todo e qualquer cidadão,
seja ele criança, adolescente ou adulto.
[2] os chamados "atos infracionais" definidos no art.103 da Lei nº 8069/90, que devem ser
apurados pela autoridade policial e, em procedimento próprio instaurado perante o Conselho
Tutelar (no caso de crianças) ou Justiça da Infância e Juventude (no caso de adolescentes),
resultar na aplicação de medidas específicas já relacionadas pelo mesmo Diploma Legal
citado.
[3] daí porque não há que se admitir as críticas ao Estatuto da Criança e do Adolescente por
ser supostamente uma "lei de primeiro mundo", portanto "inadequada à realidade
brasileira", pois regras como a transcrita somente têm lugar em países de "terceiro mundo",
onde se tem por hábito violar direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como se
não fossem eles também cidadãos.
[4] deixamos de relacioná-las expressamente pois isto deve ficar a cargo de cada regimento
escolar, que como vimos deve ser discutido e aprovado junto a toda comunidade escolar.
Relacionamos apenas os princípios a serem observados e aquilo que não deve ocorrer
quando da devida regulamentação.
[5] razão pela qual não se admite a aplicação das sanções de suspensão pura e simples
da freqüência à escola (uma eventual suspensão deve contemplar, obrigatoriamente, a
realização de atividades paralelas, nas próprias dependências da escola ou em outro
local, desde que sob a supervisão de educadores, de modo que o aluno não perca os
conteúdos ministrados - ou mesmo provas aplicadas - no decorrer da duração da medida), e
muito menos a expulsão ou a transferência compulsória do aluno, que em última
análise representa um "atestado de incompetência" da escola enquanto instituição que
se propõe a educar (e não apenas a ensinar) e a formar o cidadão, tal qual dela se
espera.