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DO RECALQUE AO REALCE:

dossiê
O ENEGRECIMENTO DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA
E O JOGO POLÍTICO DAS IDENTIDADES

FROM RECALQUE TO REALCE:


THE BRAZILIAN’S POPULAR CULTURE BLACKENING
AND THE POLITICAL GAME OF IDENTITIES

Maria Celeste Mira*

Introdução da mestiçagem e do sincretismo. Evidente-


mente, trata-se de uma construção da “bra-
Se o Brasil pudesse ser narrado por uma silidade”. Em elaboração desde os tempos
lenda, ela seria, sem dúvida, o “mito das do “descobrimento”, pela visão criativa de
três raças”, cujo corolário, como se sabe, viajantes, cientistas, artistas, intelectuais,
é a mística da “democracia racial”. Não sobretudo estrangeiros, em geral, europeus,
há imagem mais representativa do Brasil essa visão idílica do país resiste ao tempo.
do que a de um país alegre e hospitaleiro, De acordo com Stéphane Hugon (2008), no
onde indivíduos e grupos de diferentes ra- século XXI, continuaria existindo um “Bra-
ças e credos convivem em paz. Não foram sil mítico dos franceses”. Embora as rela-
poucos os pensadores estrangeiros que o ções artísticas e intelectuais entre o Brasil
viram como modelo para a civilização do e a França tenham sido intensas, sabemos
futuro, talvez o único, no qual teria sido que o fato não se restringe a eles.
encontrada a fórmula, não só da tolerân- Por outro lado, para o pensamento so-
cia às diferenças, mas da convivência entre cial brasileiro até o início do século XX,
elas e mesmo de sua superação, por meio a miscigenação ou mistura de raças era o

* Livre-docente em Antropologia e Sociologia da Cultura pela PUC-SP. Professora do Departamento de


Antropologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (São Paulo/SP/
BR). celestemira@gmail.com.

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grande obstáculo para que o Brasil pudes- trilogia fundamental para a renovação do
se se constituir como uma nação moderna. pensamento brasileiro na era Vargas (CAN-
Influenciados pelas teorias racistas, ainda DIDO, 1987).
em voga, precursores dos estudos sobre a A análise de Antonio Candido sobre a
cultura popular, como Silvio Romero, ou da Revolução de 1930 evidencia o quanto a
Antropologia, como Nina Rodrigues, entre produção cultural e artística foi importante
outros, identificavam miscigenação com para a constituição da ideia de “nacionali-
degenerescência da “raça” branca, na me- dade brasileira”. Até então, não havia este
dida em que a “raça” negra era tida como sentimento, nem do ponto de vista político,
inferior, incapaz de construir o que se en- nem no plano cultural. O domínio autori-
tendia então por civilização. Sendo um país tário de Vargas combate os regionalismos
formado por mestiços, a solução pensada políticos, cria inúmeros poderes centrais,
para o Brasil, nesse primeiro momento, si- instituições e institutos nacionais e con-
tuado no quadro do Evolucionismo, foi o grega, em torno do governo federal, toda
“embranquecimento”. O Brasil tenderia a a arte e a cultura, da mais erudita à mais
progredir à medida que os negros fossem se popular, para compor o corpo e o espírito
unindo aos brancos pelo casamento, dando do Estado nacional. As décadas de 1930/40
origem a mulatos, cada vez mais brancos, são tomadas pela ânsia efervescente de in-
até predominarem as características genéti- tegrar as partes do Brasil numa imagem
cas da “raça” superior. única, numa identidade.
De acordo com Renato Ortiz (1985), essa É na era Vargas que se consolida a cons-
visão negativa do Brasil e, por suposto, dos trução da identidade nacional com base no
negros, muda com a obra de Gilberto Freyre. Estado-Nação; é neste momento que se tor-
O autor pernambucano, cujas referências na mais popular, mais abrangente, mais co-
vinham da Antropologia norte-americana, tidiana a ideia de que somos um povo com
renovada pela pesquisa de campo, pelo dis- cultura própria, vivendo no mesmo terri-
tanciamento em relação ao evolucionismo e tório, sobre o qual um único poder estatal
às teorias racistas, analisa de forma positiva é soberano. Este tipo de construção identi-
a formação da nacionalidade. Freyre deslo- tária, característica do Ocidente moderno,
ca a questão do âmbito da raça para o da como analisou Ernest Gellner (1993), é soli-
cultura, revelando as principais contribui- dificado pela cultura científica, pois depen-
ções de cada matriz, a portuguesa/ ibérica, de da transmissão, pelo sistema de ensino
a indígena e a africana, para a formação das universal e gratuito sustentado pelo Estado
identidades regionais e nacional1. Esta vira- nacional, de conhecimentos lógico-abstra-
da começa já nos anos 1930, quando o autor tos, que substituem os padrões de pensa-
publica Casa Grande e Senzala (1934) que, mento e formas de trabalho tradicionais
ao lado de Raízes do Brasil (1935) de Sérgio adaptando os indivíduos às novas exigên-
Buarque de Hollanda e Formação do Bra- cias do mundo urbano-industrial, e permu-
sil contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr., tando a servidão pela disciplina, o apego à
formará, na opinião de Antonio Candido, a aldeia pelo amor à pátria. Não por acaso, é

1. De acordo com Maria Eduarda A. Guimarães, essa concepção cultural, não racista, já está presente no
pouco reconhecido trabalho de Arthur Ramos. GUIMARÃES, 1992.

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nos anos 1930 que se faz o primeiro inves- então capital federal, consagrado, na déca-
timento mais abrangente em escolaridade da de 1930, como “o Samba”, com s maiús-
no país. Getúlio Vargas cria o Ministério da culo e no singular. Antes disto, porém, sua
Educação e Saúde e, em seguida, promove prática era vista como coisa de negros, de
a Reforma Campos, replicando nos estados malandros e vagabundos; e nas salas das
da federação experiências educacionais casas de boa família só se tocava choro;
restritas a alguns estados do Sudeste. samba, só no quintal (GUIMARÃES, 1998).
No entanto, apesar de ser forjada pela Como observaram diversos autores, para
cultura erudita e científica que, em contra- se tornar música brasileira, o samba sofreu
partida, confere direitos ao cidadão, a ideia todo um processo de depuração, de adequa-
de nação necessita, ainda de acordo com ção ao ideário nacional, tal como pensado
Gellner (1993), expressar-se por meio de no momento do Estado Novo.
símbolos populares. Também não é coin- Se, no pensamento social brasileiro, co-
cidência que os nossos mais proclamados meçava a se forjar uma visão positiva da
símbolos, o samba, o Carnaval e o futebol, natureza miscigenada da identidade nacio-
alcancem o patamar de representatividade nal, isto, certamente, não se estendia aos
nacional exatamente no mesmo período brasileiros negros. Nem era desejável, na-
histórico. O samba se consagra como “a quele momento, à imagem de um país que
música brasileira”: no final dos anos 1920 almejava a civilização, ter como símbolo um
é gravado em disco, passa a tocar no rádio, gênero musical que se apresentasse como
ganha arranjos orquestrados, torna-se hino negro ou de origem africana. Para Maria
nacional oficioso com Aquarela do Brasil, Eduarda Guimarães, “o samba, ao se tornar
viaja para os Estados Unidos em missão di- brasileiro, deixa de ser negro” (1998, p. 60).
plomática com Carmen Miranda, em 1938, Nem tinha como ser negro. De um lado, a
sob os auspícios do Itamarati (CASTRO, unicidade, a homogeneidade que presidia
2005). Sua ascensão é indissociável da do o conceito de “nação” exigia a dissolução
Carnaval, cuja transformação em desfile, das diferenças, em particular, as de raça ou
no início da década de 1930, incrementa a etnia, religião e cultura. De outro, sendo ou
demanda por novos sambas, os quais, por não importantes suas origens africanas, o
sua vez, contribuem para dar ritmo e poesia samba não poderia ser negro quando ainda
aos festejos de Momo. não havia o conceito de “identidade negra”
Vários autores já demonstram que o ou “afrodescendente” como referência à
batuque das senzalas é uma das principais qual pudesse se vincular. Como veremos, a
matrizes culturais, notadamente a rítmica, negritude do samba só viria a ser afirmada
do gênero musical sintetizado nos primei- a partir da década de 1970 (GUIMARÃES,
ros anos do século XX, no Rio de Janeiro, 1998; CERBONCINI, 2014).2

2. Outro exemplo de embranquecimento é a religião umbandista, analisada por Renato Ortiz em A morte
branca do feiticeiro negro (1978). Resultante da mistura de elementos do candomblé com os do espiritis-
mo kardecista, a umbanda não é sincrética, no sentido de que os elementos simbólicos de cada matriz não
se mantêm justapostos, mas unem-se de modo a formar nova síntese: uma religião brasileira. Traçando
um paralelo com a análise de Ortiz, Alejandro Frigério acredita ter ocorrido processo semelhante com a
capoeira: ambas, “para serem legitimadas e integradas ao sistema perde[m] várias das características que
lhes são próprias, em virtude de sua origem étnica, para adquirirem outros traços que as tornem mais acei-

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Kabengele Munanga (2008) analisou diferença/identidade negra, com suas ques-
em detalhes como as diferentes concepções tões étnicas, religiosas e de ancestralidade.
teóricas do pensamento brasileiro compro- Para tanto, a articulação entre a militância
meteram a construção da identidade negra, política e a cultural é estratégica. Angela de
em particular, a noção de mestiçagem. Esta Castro Gomes, no prefácio ao livro organi-
ideia, tão difundida entre nós como catego- zado por Alberti e Pereira (2007), reunindo
ria explicativa da identidade nacional, ge- grande conjunto de entrevistas com per-
rou historicamente uma enorme ambigui- sonagens do movimento negro no Brasil,
dade no terreno da definição étnica. Como indica que a via da cultura percorre toda a
se sabe, entre brancos e negros, criou-se, sua história:
no Brasil, um gradiente de cores pratica-
mente infindável que mais confunde do Impressiona a variedade e sistematicidade
que esclarece a questão étnica e dá suporte de vivências no campo cultural, com desta-
à ideologia da “democracia racial”. que para a literatura e o teatro. Naturalmen-
te, nomes mais conhecidos como os de Ab-
1. Do mito da brasilidade à construção da dias Nascimento e Jorge Amado são citados.
negritude pela afirmação da cultura e ar- Mas há muitos outros e muito mais antigos.
te negras Esse é o caso de uma iniciativa como a do
Centro de Cultura Afro-Brasileiro, criado em
Nos primeiros anos da república no Bra- 1936, com a finalidade de divulgar intelec-
sil, logo após a abolição da escravatura, já tuais e artistas negros. Chama a atenção o
surgiram as primeiras associações de ne- número de menções a livros que foram de-
gros com o objetivo de se defender da dis- cisivos na construção da percepção de “ser
criminação e pleitear direitos. Portanto, a um negro” (...) ou seja, de como a arte é ins-
história de luta contra o racismo, manifesto trumento de memória e política; de como a
ou velado, e todas as suas consequências, memória é fundamento de uma identidade e
por parte de ativistas e organizações afro- de uma identidade que luta por direitos (GO-
descendentes é longa, complexa e plural MES, 2007, p. 12, grifos meus).
(DOMINGUES, 2007; ALBERTI e PEREIRA,
2007). Para os objetivos deste debate, pre- Contudo, percebe-se que as referências
tende-se, neste item, apenas argumentar ter datadas da década de 1930 são mais cultas,
sido relevante e crescente a associação en- apontando para o teatro, a literatura, o cen-
tre ações culturais e ações políticas ou, em tro cultural “com a finalidade de divulgar
outras palavras, salientar o quanto a poli- intelectuais e artistas negros”. A questão é
tização de símbolos da cultura afrodescen- mais complexa. Domingues (2007) procura
dente foi importante para que o movimento demonstrar que, ao longo de sua história,
negro pudesse desconstruir o mito da bra- a relação do movimento negro com al-
silidade e construir o da negritude. Isto só guns símbolos associados à cultura negra –
acontece quando se afirma e se reconhece a como a capoeira, o samba e as religiões de

táveis aos olhos das classes dominantes. Podemos então interpretar o aparecimento da Capoeira Regional
como um ‘embranquecimento’ da Capoeira tradicional (Angola), seguindo um esquema semelhante ao
proposto por Ortiz (1978) para a Umbanda” (FRIGÉRIO, 1989, p. 1).

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matriz africana, sobretudo o candomblé –, da, tanto da Portela, quanto da Mangueira
teria passado por três fases: a primeira, de estavam descontentes com os rumos que o
1889 a 1937, teria sido marcada pelo “dis- samba estava tomando com a interferência
tanciamento”; na segunda, de 1945 a 1964, dos carnavalescos nos desfiles das escolas.
teria prevalecido a “ambiguidade valorati- Na década seguinte, o cantor e compositor
va”; e a terceira, de 1978 a 2000, seria o Candeia, da Portela, lidera o movimento
período de sua “valorização” (DOMINGUES, que reunirá as forças de “sambistas e pen-
2007, p. 118). Em todos os casos, fala-se em sadores negros politicamente engajados”,
“cultura negra”. A diferença é que, no pe- dentre os quais “Nei Lopes, Martinho da
ríodo mais recente, assiste-se à valorização Vila, Paulinho da Viola, Elton Medeiros,
de práticas de caráter mais popular, antes Wilson Moreira, Ivone Lara, Muniz Sodré,
associadas à vadiagem, à malandragem, à Isnard Araújo etc.” (CERBONCINI, 2014,
superstição, ao curandeirismo. Somente no p. 177). Desta união nasceu, em 1975, o
final dos anos 1970, essas práticas, desde Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola
o final do século XIX, proibidas pelas au- de Samba Quilombo, uma associação vol-
toridades, perseguidas pela polícia, com as tada para a divulgação da cultura negra,
quais era penoso se identificar, voltam a ser em cuja sede, além do que entendiam ser o
valorizadas como “tradição”, “memória”, verdadeiro samba, havia “apresentações de
“ancestralidade”. Paulo Sérgio Neves refor- jongo, caxambu, maculelê, maracatu” (p.
ça esta posição ao afirmar que: 181). Como veremos, essas expressões es-
tavam até então ofuscadas pelo samba com
[...] outra característica da ação do movimen- ‘s’ maiúsculo. Três anos depois, em 1978,
to negro nas últimas décadas tem sido o uso segundo o mesmo autor, Candeia e Isnard
da cultura com fins de mobilização da popu- Araújo escrevem um livro no qual afirmam
lação em torno da questão racial. A busca de a origem negra do samba3. Vale observar
uma identidade cultural negra capaz de levar que, mesmo prosseguindo dentro da lógica
a população de origem afro-brasileira à mo- competitiva dos desfiles-espetáculo, orga-
bilização política fez com que uma parte do nizados por carnavalescos, é notável nas
movimento negro começasse a desenvolver apresentações carnavalescas do Sambódro-
atividades culturais vistas como puramente mo, dos anos 2000, o crescimento da te-
negras: os blocos afros, as escolas de samba, mática afrodescendente em detrimento do
os grupos de reggae etc. (Neves, 2005, p. 88). antigo enfoque na história dos dominantes,
quando os participantes, em sua maioria,
Assim, na década de 1970 decorrerá o negros, representavam reis ou imperadores
processo que ficou conhecido como “reafri- das cortes brasileiras ou europeias e toda
canização da música negra” no Brasil. Dois sua entourage.
lugares terão grande destaque nos aconte- No caso da reafricanização do samba,
cimentos: o Rio de Janeiro e Salvador. De parece ter havido uma relação não confli-
acordo com Dimitri Cerboncini (2014), des- tuosa entre a face política e a face cultural
de os anos 1960, sambistas da velha guar- do movimento negro. Como mostra Cer-

3. Trata-se de CANDEIA, Antonio; ARAÚJO, Isnard de. Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz. Rio
de Janeiro: Editora Lidador, 1978

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boncini, os “sambistas engajados” ‒ uma a discriminação e em busca da igualdade
das vertentes do Movimento Negro Unifica- de direitos em relação aos brancos. Seus
do (MNU) –, tinham bastante proximidade discursos, palavras de ordem e canções se
com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o mesclavam num só brado.
qual deixava então de reconhecer as expres-
sões da cultura afrodescendente como mera Martin Luther King, Malcom X, Marcus Gar-
“alienação”, como obstáculo à formação da vey, Black Panthers, funk, soul, Bob Marley,
consciência de classe, para identificar o que reggae, movimentos de libertação das co-
era negro com o importante atributo da “au- lônias portuguesas na África, luta contra o
tenticidade” (CARBONCINI, 2014, p.176-7). apartheid na África do Sul e Nelson Mande-
Esta construção político-cultural era crucial la, enfim, a luta dos negros americanos, afri-
devido ao contexto de reabertura política canos, caribenhos e suas mensagens de afir-
vivido no Brasil, ainda sob o mando da dita- mação racial eram ouvidas por todo o mun-
dura militar. O caso de Salvador foi diferen- do através dos meios de comunicação de
te: a ênfase recaiu sobre o aspecto cultural, massa e seus ecos não tardaram a causar re-
sem grandes pretensões políticas, o que teria ações também no Brasil, incorporando-se a
provocado tensões com o Movimento Negro uma série de outros fatores da cultura brasi-
Unificado, vertente mais calcada na ação leira e se integrando dentro de uma proposta
política, fundada em São Paulo, em 1975 de pan-africanismo, onde havia equivalência
(GUIMARÃES, 1998)4. em todas as lutas contra a discriminação a
Em qualquer dos casos, ao contrário da negros e mestiços, ocorressem elas onde quer
identidade nacional, o processo de reafri- que fosse (GUIMARÃES, 1998, p. 89)5.
canização da música negra, desde o seu
princípio, teve caráter mundial. Reunidos Como se sabe, a identidade coletiva é
em torno de grandes líderes, os movimen- uma construção social e histórica que se
tos dos anos 1960 mudaram o mundo asso- faz a partir de determinado referencial: a
ciando a luta política à luta cultural. Dentre nação, a etnia, o gênero, a geração etc. O
eles, o movimento negro foi um dos mais importante é que haja um coletivo – ain-
importantes. Grandes líderes e multidões da que virtual – que compartilhe o mesmo
de negros saíram às ruas em luta contra universo simbólico, atualizando-o cons-

4. Maria Eduarda Guimarães (1998) reporta discussões entre o MNU e “Vovô”, o líder do grupo Ilê Aiyê.
No movimento negro a questão da adoção de ações culturais é controversa. Em resumo, o brasilianista Mi-
chael G. Hanchard (2001) entende que este caminho afasta a população negra da conscientização política.
Outros autores, como Luiza Bairros (1996), pensam o contrário. Naturalmente, tendo a concordar com es-
tes últimos.
5. A recém-implantada tecnologia dos satélites tornava possível a transmissão ao vivo dos acontecimen-
tos ou, no mínimo, sua divulgação diária. No Brasil, é criada a Embratel em 1967 e a rede nacional de te-
levisão é formada em 1969. Na década de 1970, a televisão e todos os outros setores da indústria cultural
crescem de maneira explosiva. Consolida-se no Brasil o mercado de bens simbólicos (ORTIZ, 1988). A rea-
fricanização da música negra ocorre em meio a esse processo, ao mesmo tempo, mundializado e vincula-
do à experiência cultural de grande parte das classes populares, onde se situa a maioria dos afrodescen-
dentes no Brasil e no mundo. As complexas implicações da vinculação entre a construção da identidade
negra e o mercado vão além do escopo deste texto. A este respeito, consultar o artigo decisivo de Stuart
Hall “Que negro é esse da cultura negra?” (HALL, 2003a).

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tantemente. No caso da identidade negra, o expressão profana, como os afoxés. Naque-
referente é a etnia. O que distingue a iden- le momento, o Ilê Aiyê apresenta uma nova
tidade étnica das demais é a crença em uma proposta construída com base na afirmação
origem comum, apontada por Poutignat e do orgulho de ser negro.
Streiff-Fenart (1998), como questão-chave Todas as questões-chave da identidade
para sua construção. O referente que orienta negra já estavam postas. “Negritude, black-
a construção da etnicidade é o sentimento tude são termos que passam a frequentar
compartilhado pelos membros do grupo de o vocabulário dos negros de Salvador...”
terem seu passado vinculado a uma mesma (GUIMARÃES, 1998, p. 90). Mais do que
terra, raiz, árvore genealógica ou ancestral. resistência, tratava-se, então, de criar e
A propagação do imaginário do “pan-afri- manter a autoestima dos negros, o que só
canismo”, baseado na concepção da “diás- poderia ser feito por meio da reconstituição
pora negra”, em poucas palavras, a ideia de da memória “afro-brasileira” – outro ter-
que todos os negros dispersos pelo mundo, mo que surge nessa época –, recuperando
independente de sua nacionalidade, vieram suas glórias no passado, seus ancestrais,
da “Mãe-África” e, para lá, um dia, deverão suas lutas, sua força etc. Entre os objetivos
voltar começa a gerar o sentimento de per- do Ilê Aiyê estava o de criar um padrão de
tencimento a uma nova “comunidade ima- beleza negra, conceito até então inexistente
ginada” (ANDERSON, 1989)6. no Brasil. Este padrão foi sendo moldado,
No Brasil, segundo Maria Eduarda Gui- sobretudo no Carnaval, pela performan-
marães (1998), a primeira repercussão do ce de seus componentes, cujas fantasias e
“pan-africanismo” ocorreu no Rio de Ja- adereços traziam motivos e cores de países
neiro com a aparição do funk inspirado e e etnias da África e cujos cabelos encrespa-
incorporando a simbologia do estilo Black dos ou rastafári indicavam sua adesão aos
Power norte-americano. Mas a reviravolta símbolos mundiais do movimento.
sem volta teria ocorrido na década seguinte Na esteira do Ilê Aiyê, dezenas de blo-
em Salvador com a criação, em 1974, do cos-afro foram criados em Salvador, sendo
Ilê Aiyê, o primeiro “bloco-afro”. Como in- os mais famosos, o Muzenza, o Araketu e
forma a autora, embora surja em um ter- o Olodum. Conforme informações de Ma-
reiro de candomblé, baseado em seus rit- ria Eduarda Guimarães, no início dos anos
mos e instrumentos de percussão, ele difere 1990, havia na capital baiana em torno de
dos afoxés ou candomblés de rua por uma dez grupos políticos; cerca de trinta “blo-
série de características formais. Porém, o cos-afro”, com aproximadamente vinte
mais importante é que, ao se renomear, o mil membros; cerca de duas mil casas de
Ilê Aiyê cria uma nova categoria para de- cultos afro-brasileiros, contra uma centena
signar os blocos do carnaval de rua de Sal- nos anos 1940; além de dezenas de esco-
vador, a qual se espalharia, depois, para o las de capoeira, vários grupos de dança e
Brasil e para o mundo. O bloco-afro pode teatro afro, grupos de escritores, artistas e
vir do candomblé, mas não é apenas sua músicos, associações profissionais, jornais

6. Benedict Anderson (1989) criou o conceito de “comunidade imaginada” para referir-se à Nação, à na-
cionalidade. Mas, ele se aplica ao caso da negritude e a vários outros em que se forja o sentimento de per-
tencimento a uma totalidade social que não é dada pelo contato direto entre os indivíduos.

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e panfletos de conscientização (GUIMA- nosso modelo substituindo o modelo deles,
RÃES, 1998, p. 109). nossas identidades em lugar das suas – a que
Salvador torna-se, nos anos 1980-90, a Antonio Gramsci chamava de cultura como
capital da identidade negra no Brasil, fenô- “guerra de manobra” de uma vez por todas,
meno, ao mesmo tempo, cultural e merca- quando, de fato, o único jogo corrente que
dológico. Se o grupo Ilê Aiyê é cauteloso vale a pena jogar é o das “guerras de posi-
em relação ao mercado, seu seguidor mais ção” culturais (HALL, 2003a, p. 339).
conhecido, o Olodum articula-se à indústria
fonográfica e televisiva, o que aconteceria As lutas culturais entre os movimentos
também, algum tempo depois com a Timba- e o mercado ou o Estado não impedem a
lada de Carlinhos Brown. As relações entre construção da identidade afrodescendente.
construção de identidade, pessoal ou cole- Elas são a sua própria história. Como o “po-
tiva, e a esfera da produção e consumo de pular”, a negritude pode ser pensada, não
bens, no seu aspecto material e simbólico, é como essência de uma raça, etnia ou cul-
bastante complexa7. Localizando a constru- tura, mas como seu espaço de lutas (HALL,
ção da identidade étnica no contexto “pós- 2003b). No final do século XX, o jornal
moderno” de “fascinação pelas diferenças”, Folha de S. Paulo publicou uma reporta-
inevitavelmente dominado pelo mercado, gem com o título “Black is business”, dan-
Stuart Hall (2003a) avaliou a situação do do conta da emergência de um “promissor”
que denominou “cultura popular negra”. segmento de mercado voltado para os con-
sumidores negros, constituído por salões de
Reconheço que os espaços “conquista- cabeleireiro, fábricas de maquiagem, casas
dos” para a diferença são poucos e disper- noturnas, restaurantes e publicações, como
sos, e cuidadosamente policiados e regula- as revistas Black People e Raça Brasil (Fo-
dos. Acredito que sejam limitados. Sei que lha de São Paulo, 30 mar. 1997). Porém,
eles são absurdamente subfinanciados, que para afirmar a diferença, é preciso que ela
existe sempre um preço de cooptação a ser seja motivo de orgulho para aqueles que a
pago quando o lado cortante da diferença e detêm. Em outras palavras, se no Brasil dos
da transgressão perde o fio na espetaculari- anos 1990, na cidade de São Paulo, pode-se
zação. Eu sei que o que substitui a invisibi- constatar que Black is business é porque,
lidade é uma espécie de visibilidade cuida- desde os anos 1960, ouve-se insistente-
dosamente regulada e segregada. Mas sim- mente que Black is beautiful. Antes de o
plesmente menosprezá-la, chamando-a de “o mercado oferecer seus produtos específicos
mesmo” não adianta. Depreciá-la desse mo- para os consumidores negros, foi preciso
do reflete meramente o modelo específico criar o conceito de “beleza negra”. Esta foi
das políticas culturais ao qual continuamos uma das metas do Ilê Aiyê, pelo menos,
atados, precisamente o jogo da inversão – do duas décadas antes8. Portanto, o mercado

7. A este respeito ver MIRA, 2004. Para o caso específico do mercado de cultura negra, ver SANSONE, Li-
vio, 2000.
8. No artigo “Deusas do Ébano: a construção da beleza negra como uma categoria nativa da reafricaniza-
ção em Salvador”, Osmundo de Araújo Pinho (2002) analisa a importância do concurso com este título,
promovido pelo bloco-afro Ilê Aiyê desde 1979, para a reversão do estigma que pesa sobre a identidade
social da mulher negra no Brasil.

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e a política das identidades/alteridades se de valorização das tradições. O discurso de
abrem para a negritude porque, além de ser sustentação continuou praticamente o mes-
um novo segmento consumidor, o negro se mo: a “cultura popular” é importante por-
apresenta como um novo sujeito históri- que constitui a essência da nacionalidade.
co, um agente social emergente, um grupo Enquanto o tambor de crioula, o maracatu,
que se destaca do conjunto da sociedade ao o samba de roda, as congadas, o jongo, o
afirmar positivamente sua diferença9. batuque de umbigada e tantas outras ex-
A reconstituição da identidade negra pressões da cultura afrodescendente per-
empreendida pelos blocos de carnaval, maneciam “folclóricas”, Gilberto Gil, em
bandas, grupos de dança, teatro, música, 1993, definia a world music como “pós-fol-
enfim, todas as novas produções culturais clórica”. No mesmo ano, criando polêmica,
que adotaram o prefixo “afro”, em espe- Carlinhos Brown declarava: “A Bahia não
cial, o afroreggae, conseguiram se estabe- quer ser folclore; a Bahia quer é ser pop”
lecer no mercado de bens simbólicos local, (PAIANO, 1994). O “afro” assumiu o risco e
nacional e mundial. No mercado global, pagou o preço de aderir a outro popular, o
como música negra ou brasileira, o samba pop: jovem, internacional e massivo.
carioca, o samba reggae soteropolitano e a
timbalada se enquadram no nicho da world 2. Ações afirmativas da identidade negra e
music. Em outras palavras, o segmento de recriação de cultura popular tradicional em
produção cultural autodenominado “afro”, São Paulo
mais ou menos atrelado ao mercado de
bens simbólicos, conseguiu se impor, tri- Desde a implementação de ações e po-
lhar seu próprio caminho. Ao contrário, as líticas de afirmação da identidade negra,
expressões culturais que se mantiveram li- consolida-se no léxico de artistas, agentes
gadas ao rótulo de “folclore” ou “cultura de mercado, gestores do Estado e, sobretudo,
popular” pouco se modificaram até a últi- entre os movimentos organizados, a circula-
ma década do século XX, embora muitas ção do termo “afro-brasileiro”. Concilia-se,
vezes fossem tão afrodescendentes quanto assim, a identificação com o Brasil, ao mes-
as que afirmaram sua negritude a partir mo tempo em que se realça a afrodescen-
da década de 1970: permaneceram pobres, dência de determinadas práticas culturais e/
dependentes de minguadas verbas estatais, ou religiosas. Como esclareceram Poutignat
do auxílio dos folcloristas, da força de sua e Streiff-Fenart (1998), o “realce” é outra
própria devoção; conheceram um penoso questão-chave na construção da etnicida-
ciclo de decadência até quase a extinção, de no mundo contemporâneo. Sem dúvida,
tendo sido revitalizadas somente nos últi- ela está presente na formação da identidade
mos anos do século XX pela onda mundial negra contemporânea, ou seja, a tendência

9. Renato Ortiz, em suas palestras e publicações, tem insistido na afirmação de que “as diferenças são di-
ferentes”. De fato, as condições sociais que explicam a diferença reclamada pelos negros, indígenas, mu-
lheres, jovens, homossexuais etc. não são equivalentes. Para dizer o mínimo, algumas são possibilidades
abertas pela própria modernidade, enquanto outras resultam do choque produzido pela expansão de seus
mecanismos de dominação e exploração dos recursos e do trabalho alheio. No entanto, as diferenças en-
tre as diferenças é assunto para outra reflexão.

Do recalque ao realce 27
a reforçar os símbolos de ancestralidade. tras culturas um fato cotidiano.
Como o conjunto de práticas às quais se Na sua fase contemporânea, a mundia-
convencionou denominar “cultura popular”, lização da cultura (ORTIZ, 1994) põe em
em sua maioria, tem matriz afrodescenden- marcha um nível de contato com a hetero-
te, este conceito também se redefine. geneidade cultural sem precedentes, sobre-
Antes de tudo, a nova noção – que maneira por meio de imagens e de modo
não é mais formulada exclusivamente por cada vez mais acelerado, desencadeando
acadêmicos ou estudiosos do folclore – é um infindável processo de apropriação e
plural: agentes ligados ao setor falam em mescla dos mais diferentes elementos sim-
“culturas populares”. Trata-se de um mo- bólicos desterritorializados, bem como uma
mento histórico em que a heterogeneidade miríade de ações em defesa desta varieda-
contida no interior da nação pode ser vista de supostamente ameaçada. Um gigantes-
sem o fantasma do separatismo do início do co processo de reativação das tradições ou
século XX e pode ser narrada, com maior culturas populares locais, desde as práticas
lucro simbólico, em termos de “diversidade culturais mais fortes, que não sofreram
cultural”. Sob essas novas condições, emer- interrupção, até as muito fragilizadas ou
ge uma “cultura popular brasileira” mais inativas, levou pesquisadores, produtores
negra do que no período modernista e de culturais vinculados ao mercado, gestores
construção da nacionalidade. de cultura do Estado, ONGs e seus proje-
Isto acontece no momento em que uma tos socioculturais, enfim, toda uma série
gigantesca onda de revitalização das tra- de mediadores simbólicos da “cultura bra-
dições locais e regionais, grande parte de sileira” a revisitar esse repertório cultural
caráter popular, se espraia um pouco por antes denominado “folclore”. Para esses
toda a parte do mundo. No Brasil, muitas intermediários, como para os praticantes
dessas práticas populares tradicionais fo- das expressões consideradas “tradições po-
ram reconstituídas, no período da coloni- pulares” surgiu um novo nicho de mercado,
zação, com base na exploração do trabalho mais local e global do que nacional, forte-
escravo dos africanos e afro-brasileiros. mente ligado a performances identitárias,
Como se tratava também de práticas reli- no qual a “diversidade cultural” emergiu
giosas, muitas delas permaneceram não só como um novo tipo de capital. No mer-
por costume ou espírito lúdico, mas pela cado global, as próprias agências estatais
força da devoção. Todas elas entraram em promovem a marca Brasil com base no di-
declínio com o fim do Império em 1989 e ferencial de “diversidade cultural”, com o
conheceram o declínio por quase cem anos. objetivo de ampliar os negócios em todos
Na segunda metade dos anos 1980, ingres- os setores, notadamente o de turismo (NI-
saram em período de ascensão, quando a COLAU NETTO, 2014)10.
mundialização da cultura, paradoxalmente, É nesse contexto que expressões da cul-
com a ajuda das tecnologias de informação tura popular tradicional tornam-se objeto de
e comunicação tornou o contato com ou- interesse de grupos não tradicionais, em ge-

10. Analisando a performance da world music brasileira, bem como a dos demais países “portadores de di-
versidade cultural” nas feiras globais, Michel Nicolau Netto percebe, no entanto, o quanto sua posição é
subalterna.

28 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


ral, jovens, brancos, de classe média e com de São Paulo, voltada para sua pesquisa,
nível de escolaridade médio ou universitário documentação e produção. Não por acaso,
(MIRA, 2009). De maneira esquemática, po- este trabalho teve início no ano de 1988.
de-se dividi-los em quatro blocos: o mara- Como veremos em seguida, a comemoração
nhense, iniciado pelo Grupo Cupuaçu (1992) dos 100 anos da abolição da escravidão no
com sua Festa de Bumba-meu-boi, tambor Brasil desencadeou a constituição de uma
de crioula, cacuriá, dança do caroço etc.; o série de grupos e instituições dedicados à
afro-sudestino que tem como carro-chefe a afirmação da cultura e arte negra, ao mes-
Associação Cultural Cachuera! (1988), com mo tempo em que impactou o conceito de
a congada, moçambique, jongo, batuque de “cultura popular”.
umbigada, samba de roda, candombe e ou- A Associação Cultural Cachuera! nasceu
tros batuques; o pernambucano que come- de uma das comemorações do centenário
çou com a Companhia de Artes do Baque da abolição, quando seu fundador e diretor,
Bolado (1996) e se refere aos praticantes de Paulo Dias, pianista clássico e, na época,
maracatu de baque virado; o quarto bloco professor do Coral da USP, produziu o espe-
é formado por alguns grupos que misturam táculo de encerramento do Congresso Inter-
várias expressões. Por uma série de caracte- nacional da Abolição, ao qual deu o nome de
rísticas que os diferenciam dos grupos pa- Xirê dos Orixás. Este primeiro contato com
rafolclóricos, notadamente sua postura com os terreiros de candomblé de São Paulo foi
relação aos artistas populares, chamaremos o bastante para convencer o músico a con-
esses grupos de “recriadores”.11 tinuar pesquisando as expressões brasileiras
A análise das práticas e representações da cultura afrodescendente. Logo descobriu
dos líderes desses grupos vinculados à pes- outras, como as congadas, o jongo, o batu-
quisa e recriação de cultura popular tradi- que de umbigada etc., para as quais criou
cional12 na cidade de São Paulo, na virada a denominação “tradições afro-sudestinas”
para o terceiro milênio (MIRA, 2016), re- (DIAS, 2002). Ao cunhar a expressão “afro-
velou o realce da matriz africana na cons- sudestinas” e não simplesmente sudestinas,
trução do conceito de cultura popular e, o que bastaria para se opor a nordestinas,
portanto, de cultura brasileira. O exemplo Paulo Dias pretendia, sem dúvida, enfatizar
mais notável é o do grupo Cachuera!. Re- seu caráter afrodescendente, além de tornar
conhecida, em 2007, com a Ordem do Mé- visível a existência de um Sudeste caracte-
rito Cultural do Ministério da Cultura por rizado por matrizes africanas fortes, e não
suas atividades em prol das culturas po- predominantemente branco, como tem sido
pulares tradicionais brasileiras, a Associa- a sua imagem.13
ção Cultural Cachuera! é uma organização Vários líderes e participantes de grupos
não governamental, com sede na capital recriadores também entraram em contato

11. A este respeito ver “Dos grupos parafolclóricos aos grupos recriadores” (MIRA, 2016).
12. Utilizo, em geral, o termo “cultura popular tradicional” (THOMPSON, 1998) para substituir o de “fol-
clore”, no qual se baseia o conceito clássico de “cultura popular”, bem como para contemplar nesta cate-
goria a “cultura popular de massa” (ORTIZ, 1988).
13. Esta opção delineia o conteúdo do acervo da Associação Cachuera!, segundo seu diretor, dividido em
três vertentes: as religiões afro-brasileiras, o universo dos Reis Congos e das congadas e os batuques de
terreiro (DIAS, 2002).

Do recalque ao realce 29
com o repertório da cultura popular tradi- -afro?´ Lembrei da dança que eu tinha visto,
cional, por sua proximidade com o univer- aquilo ficou na minha cabeça que eu copiei,
so do que se generalizou sob a denomina- acabei fazendo igual ao que eu tinha visto
ção de “dança-afro”. É este o caso de um (SANTOS, 17 mar. 2009).
dos criadores da Companhia de Artes do
Baque Bolado, Maurici Brasil, que começou Após o sucesso da apresentação, a edu-
a dançar no projeto Afro II, em Itaquera, cadora decidiu se aventurar pelo universo
periferia da capital, bem como o de Ma- da dança, até então desconhecido. Fez cur-
ria Conceição Santos, coordenadora do Ilê sos de dança-afro no SESC Pompéia, in-
Aláfia, outro grupo recriador de maracatu. troduziu a modalidade na ACM, local que
Os dois exemplos reforçam a relação en- abriga o grupo Ilê Aláfia. A partir de então,
tre essa nova visão da cultura popular e a nas palavras da própria Conceição,
cultura e arte negra, além de demonstrar
de que maneira a trajetória do migrante [...] a dança-afro abriu o leque, o interes-
nordestino, sobretudo o negro, pode, por se de ver outras manifestações [...] Aí eu fui
esse caminho, redescobrir referências que vendo outras danças, fiz Brincante, fiz Ca-
tinham se tornado meras reminiscências. chuera!, participei de algumas oficinas do
Conceição dos Santos nasceu em Jequié, no Cachuera! de dança, do jongo, o próprio ma-
estado da Bahia, mas veio para São Paulo, racatu que o Mestre Walter [França] ... [foi]
com os pais, com pouco mais de dez anos a primeira vez que eu me deparei com um
de idade. Em sua cidade natal, “já gostava mestre de nação, fiz oficina, assim fui (SAN-
dessa coisa de ir para a rua e ver a mani- TOS, 17 mar. 2009).
festação, [que] não entendia, mas gostava:
Bumba meu Boi, Folia de Reis, a micareta, a A referência à data da comemoração da
capoeira”. Depois da mudança, tudo isso fi- “consciência negra” no depoimento ante-
cou para trás: a família não era ligada “com rior da coordenadora do grupo de recria-
a cultura popular brasileira”. Religião, não ção de maracatu não é sem importância.
se apegou a nenhuma, embora tivesse “uma Além das inúmeras comemorações, o ano
grande simpatia pelo candomblé”. As lem- de 1988 marcou o surgimento de uma série
branças da infância foram recuperadas por crescente de ações e políticas afirmativas
meio do contato com a dança-afro na me- da identidade negra de natureza cultural. O
trópole paulistana: ano 1988 é marcado pela criação da Fun-
dação Palmares, vinculada ao MinC, pelo
Eu vi uma apresentação de dança-afro e governo federal. E talvez não tenha sido
achei aquilo lindo. Foi no trabalho anterior, por acaso que a data escolhida para este ato
quando eu não trabalhava com cultura, mas foi 22 de agosto, Dia do Folclore Brasileiro,
tinha uma colega que trabalhava. Então, o tradicionalmente ligado às comemorações
grupo dela apresentou dança-afro. Eu vim da “cultura popular”. Na cidade de São
trabalhar na ACM, vim pra creche, depois fui Paulo, onde seu caráter era, até então, mais
para um outro espaço com adolescentes, e a politizado, marcado pela presença do Mo-
gente trabalhava com datas comemorativas. vimento Negro Unificado, as instituições e
Uma dessas datas era a da consciência negra. grupos culturais proliferaram a partir do
Aí eu falei: `Poxa, por que não fazer a dança centenário da Abolição.

30 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


Uma das primeiras instituições a se as pizzarias, os botecos, patrocinavam por-
firmar foi a Oriashé - Sociedade Brasilei- que enchia de gente para ver o Oriashé e to-
ra de Cultura e Arte Negra. Fundada em mava cerveja, comia, movimentava o Bexi-
1988, “por iniciativa de mulheres ativistas ga. E aí a Kika achou que tinha muito bran-
do movimento negro e cultural paulista- co na parada querendo comandar o negócio.
no”, trata-se de “uma organização sem fins Por este motivo, Kika de Bessem decidiu en-
lucrativos”, cujo objetivo é a “defesa dos cerrar as atividades do bloco (BELISÁRIO,
direitos humanos e da cidadania da popu- entrevista concedida em 2 dez. 2007).
lação negra”, com projetos voltados mais
especificamente para mulheres e jovens Com a extinção do grupo em 1996, seus
negros da periferia da cidade (ORIASHE, instrumentos ficaram inativos e passaram
2007). O nome Oriashé vinha do bloco-afro a ser emprestados para os grupos amigos.
criado por uma das ativistas envolvidas na Um deles era o recriador de cultura popu-
fundação da associação, Valkiria Silva, a lar, Maracatu do Baque Bolado, mais tar-
quem todos conhecem no meio como Kika de Companhia de Artes do Baque Bolado,
de Bessem. O Oriashé teve grande reper- surgido naquele ano. Uma grande polêmica
cussão na cidade na primeira metade dos sobre a questão da “tradição” tem lugar,
anos 1990: era um bloco carnavalesco que então, entre os agentes culturais, sobre esta
ensaiava debaixo do Viaduto da Rua San- recriação de maracatu feita em ritmo de
to Antonio, no bairro do Bexiga, reduto samba, com surdos, caixas e agogôs (MIRA,
do samba na capital paulista.14 De acordo 2014). De qualquer modo, o episódio evi-
com Elisabeth Belisário, apelidada de Beth dencia a proximidade de alguns grupos de
Beli, a ideia inicial de Kika de Bessem era cultura popular com os de cultura e arte
a de formar um bloco só de mulheres ne- negra na metrópole paulistana.
gras. Mas, como apareceram muito poucas, O ideal de criar um grupo de percussão
o grupo se abriu para os homens, para os formado só por mulheres foi realizado, em
brancos e todos que quisessem entrar des- 2003, por Beth Beli, Girlei Miranda e Adria-
de que “incorporassem o conhecimento da na Aragão, fundadoras do Ilú Obá de Min
cultura negra”. Com o tempo, o grupo teria que reunia, na primeira década dos anos
crescido demais, era frequentado por artis- 2000, cerca de 40 mulheres tocadoras de
tas globais, tambores. Segundo o grupo, seus “focos de

14. Conforme o testemunho de Elisabeth Belisário, conhecida no meio como Beth Beli, que fez parte do
grupo, Kika convidou-a para reger a bateria, e a Girlei Luisa de Miranda para integrar o grupo. Beth Beli,
percussionista, cantora, regente e mestre de bateria, havia iniciado sua carreira artística, em 1987, tendo
como referência as grandes escolas de samba de São Paulo. Sua mestra fora justamente a amiga Girlei Lui-
sa de Miranda, percussionista, cantora e compositora, filha de Gilberto Bonga, já falecido, considerado
“bacharel” do samba, antigo diretor de bateria das escolas Mocidade Alegre, Rosas de Ouro e Unidos do
Peruche (BELISÁRIO, 2007; RAÇA BRASIL, 2009). Em 2008 circulou na internet (Disponível em: <http://
www.samba-choro.com.br/s-c/tribuna/samba-choro.0401/0881.html>. Acesso em: 10 mar. 2008) um con-
vite para sair no bloco no Carnaval de 2004, no qual se afirmava que ele tinha 16 anos de existência. É
possível que o bloco tenha sido recomposto e, como é prática corrente no “campo das tradições”, nunca
se começa a contar o tempo de novo, a partir da retomada. Conta-se a história do grupo sempre a partir
da data mais antiga, pois, ao contrário da primeira modernidade, na alta modernidade, que valoriza a “tra-
dição”, quanto mais antigo o produto, maior o valor.

Do recalque ao realce 31
trabalho são as culturas de matrizes afri- relação à discriminação da mulher negra
cana e afro-brasileira e a mulher”. A asso- no Brasil. Além de suas próprias ações nas
ciação realiza as oficinas e ensaios de seu áreas de educação, comunicação, pesquisa
bloco de carnaval, o “bloco afro Ilú Obá acadêmica, políticas públicas etc., dá supor-
de Min” e o curso de “Danças Brasileiras”, te a projetos de outras associações voltadas
com os ritmos ijexá, maculelê, jongo, coco, para as questões feministas, antirracistas,
samba de roda, maracatu, cacuriá, dentre contra a homofobia, a violência doméstica
outros. A interpenetração entre as ações e etc. (GELEDÉS, 2017). Exemplo de apoio a
representações referentes à cultura negra e outros grupos foi a parceria com o grupo
à cultura popular são evidentes: os ritmos Oriashé para a aquisição dos instrumentos
ensinados pelo grupo afro Ilú Obá de Min, de samba, posteriormente emprestados para
exceto o ijexá, são associados ao univer- o Maracatu do Baque Bolado. Mas esta é
so do folclore nacional. O mesmo curso de também uma característica da atuação dos
“Danças Brasileiras” é oferecido por entida- coletivos menores, os quais trabalham de
des que se vinculam à “cultura popular” ou forma a apoiar ou, ao menos, divulgar as
à “cultura brasileira”. O Instituto Brincante, ações uns dos outros. Esta proximidade e
instalado na cidade em 1995, por Anto- ajuda mútua pode ter contribuído, entre
nio Nóbrega e Rosane Almeida, nomes de outros fatores, devido ao inevitável inter-
grande destaque nessa cena cultural, é um câmbio de ideias e crenças, para o realce do
exemplo. Outro é o Grupo Cupuaçu: forma- caráter afrodescendente das culturas popu-
do por negros e brancos, brasileiros e es- lares, bem como para a percepção das ma-
trangeiros, maranhenses e paulistanos, ho- trizes populares da cultura afrodescendente
mens e mulheres, define-se como defensor por parte dos novos agentes culturais.
da “cultura brasileira” (MIRA, 2016). Neste,
e em vários outros casos, o que define o 3. O progressivo entrelaçamento entre cul-
grupo é o realce de um de seus elementos tura afrodescendente e cultura popular
simbólicos. No caso das ações afirmativas
da identidade negra é impressionante, por Na primeira década do século XXI, as
sua vez, o acento na questão da “mulher ações de afirmação da cultura negra bem
negra”. Além do Ilú Obá de Min, veremos como as de valorização da cultura popu-
outros mais recentes. A força da figura fe- lar tradicional na cidade de São Paulo se
minina nas religiões afrodescendentes ao intensificam e, em alguns casos, se entrela-
lado da insidiosa discriminação da mulher çam. Alguns fatores parecem ter colabora-
negra e pobre no Brasil explica a insistên- do para esta configuração. Em primeiro lu-
cia das ações neste ponto15. gar, ambas as lutas sociais – a das culturas
O Geledés – Instituto da Mulher Negra, populares com mais retardo em relação às
sediado em São Paulo e também criado em da cultura negra – ampliam seu reconheci-
1988 é uma das maiores referências em mento oficial.

15. Aos poucos, a figura feminina vai ganhando mais destaque também no campo dos pesquisadores de
“cultura popular”, revelando figuras até então pouco conhecidas como as caixeiras da Casa Fanti-Ashan-
ti de São Luís do Maranhão que realizam sua Festa do Divino todos os anos no Espaço Cachuera! em São
Paulo. (MIRA, 2016)

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Em 2003 – logo no início do governo sim como a SEPPIR, ainda em 2003, é criada
do presidente Luís Inácio Lula da Silva – a SID – Secretaria da Identidade e Diversida-
é aprovada a Lei 10.639 que institui o dia de Cultural, a qual, dentre outras, abrigava a
20 de novembro, data da morte de Zumbi, causa das “culturas populares”.
como o Dia Nacional da Consciência Ne- Na cidade de São Paulo, é inaugurado
gra, além de tornar obrigatório o ensino de o Museu Afro Brasil no ano de 2004. Após
História e Cultura Afro-Brasileira nos cur- outras tentativas frustradas, o artista plás-
sos fundamental e médio. No mesmo ano, tico Emanoel Araújo conseguiu, a partir de
é criada a SEPPIR – Secretaria de Políticas sua coleção particular, fundar a “instituição
de Promoção da Igualdade Racial da Pre- voltada ao estudo das contribuições afri-
sidência da República. Informações do site canas à cultura nacional”. A proposta foi
da Secretaria lembram que a data escolhida implementada na gestão da então prefeita
para sua implantação foi do PT, Marta Suplicy e, segundo informa-
ções oficiais, após uma década de atuação,
emblemática, pois em todo o mundo celebra- possuía acervo de obras datadas do século
se o Dia Internacional pela Eliminação da XVIII à atualidade. Desde 2009, o museu
Discriminação Racial, instituído pela Organi- foi terceirizado, sendo administrado pela
zação das Nações Unidas (ONU), em memória organização social de mesmo nome vincu-
do Massacre de Shaperville. Em 21 de março lada à Secretaria de Estado da Cultura (MU-
de 1960, 20.000 negros protestavam contra SEUAFROBRASIL, 2017).
a lei do passe, que os obrigava a portar car- As vicissitudes institucionais do folclo-
tões de identificação, especificando os locais re/cultura popular na metrópole paulistana
por onde eles podiam circular. Isso aconte- foram maiores, embora também tenham
ceu na cidade de Joanesburgo, na África do levado à criação de uma nova proposta
Sul. Mesmo sendo uma manifestação pacífi- museológica para o setor. De acordo com
ca, o exército atirou sobre a multidão e o sal- Vera Cardim de Cerqueira (2016), a muni-
do da violência foram 69 mortos e 186 feri- cipalidade é responsável, desde 1938, pela
dos (SEPPIR, 2017). guarda e conservação do material da con-
sagrada Missão de Pesquisas Folclóricas de
No mesmo período, as culturas popula- Mário de Andrade. Praticamente desde en-
res, antes atreladas ao desprestigiado con- tão, esse acervo, hoje considerado tão pre-
ceito de “folclore” são elevadas, pelo dis- cioso, ficou aos cuidados de sua discípula
curso da diversidade cultural, à celebrada Olneyda Alvarenga no prédio da Biblioteca
categoria de “patrimônio imaterial” (MIRA, Municipal da Lapa, bairro tradicional da ci-
2016). Nesse processo, outro órgão da ONU, dade. E, não fosse sua dedicação, é possível
a Unesco, desempenha um papel crucial que que esse material nem existisse mais. Nos
culmina com a promulgação de dois docu- anos 1980, com a criação do Centro Cul-
mentos com valor de lei internacional para tural São Paulo e o início da valorização
os países signatários, dentre eles o Brasil: em das expressões da cultura popular tradicio-
2003, a Convenção para a Salvaguarda do nal, o acervo da Missão é resgatado por um
Patrimônio Cultural Imaterial; e, em 2005, a conjunto de especialistas que vai restaurá
Convenção para a Promoção e Proteção da -lo, classificá-lo, arquivá-lo e digitalizá-lo,
Diversidade das Expressões Culturais. As- além de produzir, em seguida, uma série de

Do recalque ao realce 33
produtos como livros, CDs, exposições etc. Uma série de cursos e palestras será minis-
Ao mesmo tempo, fora-se formando, desde trada a partir do início da semana que vem -
os anos 1950, ocasião de uma exposição o encontro Batuques do Sudeste, com o pes-
de folclore nos festejos de comemoração quisador e presidente da Associação Cultural
do IV Centenário de São Paulo – a coleção Cachuera!, Paulo Dias, o documentário No
do Museu do Folclore, sob o comando de Repique do Tambu, de Dias e Rubens Xavier,
Rossini Tavares de Lima, discípulo de Má- e o curso A Devoração Contemporânea dos
rio de Andrade e presidente da Comissão Saberes Populares Tradicionais, com o pro-
Paulista de Folclore do Movimento Folcló- fessor da Unesp Alberto Ikeda, são apenas
rico Brasileiro. No ano 2000, o Museu do alguns exemplos que integram a vasta pro-
Folclore foi convidado a se retirar da OCA, gramação que pretende não ‘arredar o pé’ da
um dos locais mais disputados do Parque mais nova biblioteca (O Estado de São Paulo,
do Ibirapuera, para a realização da Expo- 04 ago. 2007).
sição Brasil 500 Anos, após o que não lhe
foi permitido regressar. Foi necessário que Outro ponto interessante da programa-
a associação responsável pelo museu, após ção de inauguração da Biblioteca Belmonte
a morte de Rossini, em 1987, acionasse o foi o curso ministrado por Marina de Mello
Ministério Público cobrando providências e Souza, tanto pelo tema quanto por sua
da Prefeitura de São Paulo, uma vez que estratégia metodológica. O curso “África e
o acervo perecia no local onde se encon- Brasil Africano” abordou:
trava, conhecido como Casa do Sertanejo.
Para solucionar o problema, a prefeitura aspectos das sociedades africanas que vie-
disponibilizou outro prédio no Parque do ram escravizadas para o Brasil, e formas co-
Ibirapuera, ao lado do Museu Afro Brasil, mo aqui se constituíram comunidades e ma-
onde foi inaugurado, no final de 2010, o nifestações culturais a partir da diáspora
Pavilhão das Culturas Brasileiras. Seus dois africana provocada pelo tráfico de escravos.
acervos mais importantes eram o da Missão O programa do curso inclui[u] palestra com
de Pesquisas Folclóricas de Mário de An- o pesquisador Paulo Dias e visita ao Museu
drade e o do Museu do Folclore de Rossini Afro-Brasil. Somente para professores. Para
Tavares de Lima (CERQUEIRA, 2016)16. ter direito a certificado, o aluno deverá par-
Três anos antes, em 2007, havia ticipar de uma das apresentações do projeto
sido inaugurada na cidade, no bairro de Batuque do Sudeste. (O Estado de São Paulo,
Santo Amaro, local de alta concentração 04 ago. 2007, grifo meu).
de migrantes nordestinos, a Biblioteca Bel-
monte, a primeira especializada em cultu- As presenças da historiadora da cultura
ra popular. É significativo que a curadoria afrodescendente e do diretor da ONG Ca-
tenha ficado a cargo de Marina de Mello e chuera!, a inclusão do curso sobre “Áfri-
Souza, historiadora da cultura afro-brasi- ca e Brasil Africano”, com visita ao Museu
leira. A programação de abertura também Afro Brasil e à apresentação do batuque do
é reveladora dos novos tempos: Sudeste, como itens de destaque na inau-

16. No momento, o Pavilhão das Culturas Brasileiras está fechado para reforma do prédio.

34 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


guração da biblioteca de cultura popular, caboclos de matriz africana-nordestina-in-
demonstram o quanto os novos agentes, dígena-periférica, das comunidades brasilei-
vindos da academia ou da produção cultu- ras (CLARIANAS, 2017, grifos meus).
ral, passaram a imprimir, na primeira me- No mesmo ano, organiza-se o Ewé, de-
tade dos anos 2000, novas concepções no finindo-se como
seio das instituições. De modo distinto do
período modernista e folclorista, a matriz um grupo de aprendizado da cultura afro
africana das expressões da cultura popular -brasileira para fins artísticos, que conta
brasileira é claramente enfatizada. com estudos de danças, músicas, literatura
Na segunda metade dos anos 2000, o e costumes brasileiros com influência africa-
fato é perceptível também no sentido inver- na. É dirigido e coordenado por Luiz Anastá-
so: os novos grupos de arte e cultura negra cio, pesquisador de cultura brasileira e pro-
criados na cidade de São Paulo fazem mais fessor titular da cadeira de danças brasileiras
referência ao caráter popular de suas prá- da Etec de Artes de São Paulo. Desde 2011, o
ticas. Basta examinar alguns exemplos de grupo busca, através dos espetáculos, trans-
ativismos negros na metrópole paulistana. mitir os resultados de seus estudos, almejan-
Em 2007, o grupo de teatro Capulanas do o estreitamento do público com cultura
– Cia. de Arte Negra, composto por atrizes afro-brasileira através da inclusão cultural
negras egressas do curso de Comunicação (EWEGRUPO, 2017, grifos meus).
e Artes do Corpo da PUC-SP, iniciou suas
atividades. Com o objetivo de “fortificar a Além dos espetáculos e performances, o
imagem da mulher negra”, em suas pró- Ewé também ministra o Àwárí - Seminário
prias palavras: de Cultura Popular de Matrizes Africanas.
Sua segunda edição foi realizada em no-
[...] nos apropriamos do pensamento da cul- vembro de 2016 e teve como objetivo
tura popular, onde todas as artes se fundem:
a música, a dança, poesia, artes plásticas, te- fomentar o diálogo e a pesquisa referentes às
atro e outros. A herança da cultura da orali- manifestações populares de matrizes africa-
dade para a Diáspora africana, que no Brasil nas, presentes em diferentes aspectos do co-
é presente na cultura popular, em evidência tidiano brasileiro, apontando-os como fonte
no norte e nordeste do país, é de grande im- de conhecimento e pesquisa na arte (EWE-
portância na integração do mundo natural, a GRUPO, 2017, grifos meus).
presença do sagrado e a valorização da me-
mória (CAPULANAS, 2017, grifos meus). Em data que não foi possível precisar,
foi formado o grupo de dança Ubuntu, li-
Originário do coletivo teatral Clariô e gado ao Território de Cultura Afro Mãe
também formado por mulheres negras, o Sylvia de Oxalá, do terreiro Axé Ilê Obá.
grupo musical Clarianas se constitui em Com encontros oficiais no Centro Cultural
2011, tendo como “mote principal”, segun- Jabaquara, o grupo ensina a seus partici-
do sua própria descrição, a investigação da pantes diversos ritmos e modalidades de
voz da mulher “ancestral” na música popu- danças-afro. De acordo com a descrição de
lar do Brasil, a partir do contexto da música sua página na internet, “[...] estuda, oficina
“natural”, de tradição popular, dos cantos e apresenta o que há de melhor da cultu-

Do recalque ao realce 35
ra africana em meio à cultura Brasileira” dos agentes de que boa parte de suas “raí-
(UBUNTUAFRO, 2017, grifos meus). zes” estão emaranhadas. Porém, a ênfase
Se os novos agentes culturais percebem na diferença/diversidade não permite que a
e operam a partir desta confluência entre africanidade seja assimilada pelo nacional
cultura afrodescendente e cultura popular/ e, novamente, nele dissolvida.
cultura brasileira é porque as fronteiras que
as separavam podem ser transpostas com Conclusão
facilidade. Na verdade, trata-se de barreiras
conceituais. E é provável que a disciplina- Na década de 1930, devido ao momento
rização das ciências sociais no Brasil tenha histórico de desvalorização do negro e de
contribuído bastante para constituir este hipervalorização da brasilidade, para ser-
distanciamento que, na realidade, não exis- vir à construção da identidade nacional, as
te. As práticas apreendidas pelas diferentes matrizes africanas de vários de seus símbo-
áreas do pensamento acadêmico, ora como los culturais tiveram que ser embranque-
“folclore”, ora como “cultura popular”, “cul- cidas. Em tempos de celebração da diver-
tura brasileira”, “literatura oral”, relações sidade cultural e graças às conquistas das
raciais”, “religiosidade popular” etc. são as diferentes vertentes do movimento negro, a
mesmas ou se entrecruzam na realidade “cultura brasileira” pode ser construída de
vivida. Elas são, ao mesmo tempo, negras, modo que a sua negritude seja mais explí-
populares, orais, devocionais, regionais, bra- cita. Conforme o caso, esta imagem pode
sileiras e assim por diante17. ser até mais desejável, uma vez que o Bra-
No entanto, é importante constatar que sil torna-se, cada vez mais, a marca de um
tanto as falas dos ativistas da cultura ne- produto a ser vendido no mercado global
gra como a dos recriadores de cultura po- e, como tal, precisa de um diferencial em
pular tradicional têm algo em comum: por relação a seus competidores. Quando todos
mais que queiram enfatizar suas diferentes os esforços se voltavam para a construção
essências, não abrem mão de sua vincula- da identidade nacional, a ênfase recaía não
ção à “comunidade imaginada” da nação. nas partes que a constituíam, mas no seu
Ambas desembocam na identificação com amálgama, na sua fusão, na mistura das
o Brasil, a cultura brasileira, os costumes culturas. No novo milênio, a riqueza do
brasileiros etc. Isto indica que na constru- país passa a residir na preservação de sua
ção de certos tipos de identidade o peso da diversidade, representada pela imagem do
nacionalidade é relevante. No caso da iden- “mosaico cultural” (MIRA, 2014).
tidade negra e da cultura popular, sua posi- Os deslocamentos históricos alteram os
tivação depende da retomada e reconstitui- referenciais que comandam a construção
ção dos elementos do passado histórico da das identidades coletivas, no caso, da iden-
sociedade brasileira. São identidades referi- tidade nacional. No terceiro milênio, além
das ao conceito de tradição. Em ambos os do realce da africanidade, ou, como outro
casos, percebe-se que há o reconhecimento lado da mesma moeda, a construção da na-

17. Nesse aspecto, merece destaque a separação entre os estudos sobre o negro e os estudos sobre o folclo-
re. Com a institucionalização das Ciências Sociais, a Antropologia se encarregará dos primeiros sob a rubri-
ca de Relações Raciais, enquanto o Folclore será cada vez mais marginalizado pela Sociologia, em particu-
lar, a que se estabelece na USP sob o comando de Florestan Fernandes (CAVALCANTI; VILHENA, 1990).

36 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


cionalidade tende a enfatizar a “diversidade tude para o plano da cultura, ou do uni-
cultural” contida no seu interior. A cultu- verso simbólico, nas últimas décadas do
ra brasileira passa a ser narrada no plural. século XX. Pelo fato desta forma de afir-
Fala-se agora em “culturas brasileiras”. O mação identitária ter sido adotada por to-
samba, símbolo da cultura nacional na Era dos os outros movimentos sociais, como
Vargas, se desdobra, no momento de redes- o das mulheres, dos indígenas, dos GLBTs
coberta da cultura popular tradicional, em etc. etc., cria-se um contexto novo, dife-
múltiplos outros, obscurecidos por várias rente do que era identificado como “cida-
décadas pela sua supremacia: o samba de dania lúdica”. Vários desses movimentos
roda, o samba de bumbo, o jongo, o batu- se institucionalizaram exatamente com a
que de umbigada e assim por diante. Não comemoração do centenário da abolição
por acaso, essas são as expressões pelas da escravidão no Brasil. Portanto, a atual
quais se interessam os grupos recriadores “cultura e arte negra”, embora se apresen-
de “culturas populares”, também no plural. te como de natureza imemorial é, de fato,
Tanto no debate sobre a “cultura popu- o resultado de constantes lutas simbólicas,
lar” quanto nas reflexões sobre a constitui- de reiteradas negociações com a sociedade
ção de uma “cultura brasileira”, não se co- civil, com os poderes públicos, com outros
locava a questão da negritude ou da identi- grupos organizados em busca do reconhe-
dade negra. Ela não existia como categoria cimento de sua identidade/diversidade, de
do pensamento social brasileiro a não ser seus direitos e reparações históricas, e pelo
vinculada à pecha da escravidão e à negati- exercício sem restrições de suas práticas ar-
vidade das teorias racistas e evolucionistas. tísticas, culturais e devocionais.
No máximo, com Gilberto Freyre, a cultu- Embora muitas das práticas culturais
ra negra passava a ser considerada como populares tradicionais tivessem estado li-
elemento de contribuição para a constitui- gadas, desde o seu início, aos terreiros de
ção da cultura nacional. Foi preciso que os candomblé, xangô, tambor de mina e ou-
afrodescendentes se organizassem mun- tras denominações, o fato não era assumi-
dialmente e trabalhassem na construção da do, mas encoberto. Muitas vezes, as expres-
própria identidade. A partir dos anos 1960, sões culturais eram também a fachada por
a separação no espaço geográfico deixou trás da qual se prestava a devoção proibida
de ser empecilho para a comunicação entre por lei. No cenário contemporâneo, aconte-
diferentes partes do planeta de modo que o ce o contrário. O elemento afrodescendente
Movimento Negro, no sentido mais amplo é realçado. O orgulho negro reside na etni-
do termo, nasce mundializado. O sentimen- cidade, no mito da origem comum, portan-
to e o orgulho de “ser negro” pode, assim, to, na crença na ancestralidade. Na era da
ser construído, quase ao mesmo tempo, nos diversidade cultural, o culto aos ancestrais
Estados Unidos, na Jamaica, no Brasil e em pode se expressar mais abertamente do que
outros países do mundo. “Say it Loud! I’m antes. Este deslocamento, sendo resultado,
black and I’m proud!”: dizia a letra da can- em grande parte, de sua própria luta, ain-
ção de James Brown de 1968. da que possa parecer quase nada em rela-
Mesmo sem analisar em profundidade ção ao preconceito vivido no cotidiano da
o movimento negro no Brasil, é notável população negra brasileira, é um grande
o deslocamento da afirmação da negri- passo no imaginário da “cultura popular

Do recalque ao realce 37
brasileira”. O fortalecimento e positivação CAPULANAS. Disponível em: <https://www.face-
da identidade negra tem um impacto dire- book.com/capulanasciadeartenegra>. Acesso em:
to na noção de identidade nacional, sendo 2 jan. 2017.
que o principal canal de repercussão desta CASTRO, R. Carmen: uma biografia. São Paulo:
mudança são as concepções e práticas rela- Companhia das Letras, 2005.
tivas à “cultura popular”. CAVALCANTI, M. L. V. C VILHENA, L. R. Traçando
A “cultura afrodescendente” tornou- fronteiras: Florestan Fernandes e a marginalização
se referência fundamental para os grupos do folclore. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.
que trabalham com as culturas populares, 3, n. 5, p. 75-92, 1990.
por eles consideradas como formadoras da
CERBONCINI, D. A cor do samba. In: FARIAS, E.;
brasilidade. Deste ponto de vista, é possí-
MIRA, M. C. (Orgs.) Faces contemporâneas da cultu-
vel afirmar que a “cultura popular brasilei- ra popular. Jundiaí: Paco Editorial, 2014, 163-186.
ra” cultuada e vivenciada por seus novos
agentes é mais negra do que a formulada CERQUEIRA, V. L. C. De Mário de Andrade ao
Pavilhão das Culturas Brasileiras: mudanças nas
nos tempos do Modernismo ou nos efer-
práticas institucionais de guarda da cultura po-
vescentes anos 1960. De certa forma, a
pular. 2016. 232 f. Tese (Doutorado em Ciências
positivação da etnicidade afrodescendente
Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São
contribuiu para emancipar as práticas po- Paulo, São Paulo, 2016.
pulares tradicionais da visão folclórica. Sua
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percepção a partir do referencial étnico co-
book.com/pg/Clarianas>. Acesso em: 4 jan. 2017.
laborou para romper os laços que parecia
atá-las ao passado colonial e escravocrata, DIAS, P. Palestras na abertura do Acervo Cachue-
permitindo situá-las na contemporânea e ra! (22 e 29 ago. 2002). São Paulo: Espaço Cachue-
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Resumo Abstract
Se há uma ideia resistente no pensamento If there is a resistant idea in the Brazilian
social brasileiro, apesar de já ter sido algu- social thought, although it has already
mas vezes desconstruída, é a que identifica been deconstructed several times, it is the
a cultura popular – no sentido de tradicio- idea that identifies popular culture – in the
nal ou folclórica – à essência da nacionali- sense of tradition or folklore – with the
dade. No entanto, o que se considera como essence of nationality. However, what is
“cultura popular” pode mudar de acordo considered “popular culture” can change
com as concepções dos agentes sociais que according to the conceptions of the social
constantemente a reinterpretam. O objetivo agents constantly reinterpret it. This paper
deste artigo é pôr em discussão evidências aims to discuss the evidences collected in a
encontradas na pesquisa de campo, reali- field research, carried out in São Paulo city,
zada na cidade de São Paulo, entre 2003 e between 2003 and 2013, on the mediators
2013, sobre os mediadores da “cultura po- of “popular culture”. This research revea-
pular”, a qual revelou a importância adqui- led the nowadays-called Afro-descendants
rida nesse meio pelas práticas culturais hoje cultural practices have acquired great rele-
denominadas “afrodescendentes”. Partindo vance in the field. Starting from the hypo-
da hipótese de que tal relevância estaria thesis that such relevance is related to the
relacionada às lutas por reconhecimento struggles for recognition undertaken by the
empreendidas pelo movimento negro, so- black movement, especially in its cultural
bretudo em seu aspecto cultural e artístico, and artistic aspects, the text concludes the
o texto conclui que a matriz africana, dis- African matrix, formerly dissolved with the
solvida no momento da construção políti- social-political construction of the national
co-social da identidade nacional, ocupa no identity, it is now a strong appeal for the
contexto em que a diversidade cultural tor- constitution of a Brazilian identity/brand
na-se imperativa, o mais forte apelo para in the context where cultural diversity be-
a constituição da identidade/marca Brasil. comes imperative.

Palavras-chave Keywords
Cultura popular. Cultura brasileira. Cultu- Popular culture. Brazilian culture. Black cul-
ra negra. Identidade nacional. Diversidade ture. National identity. Cultural diversity.
cultural.

Recebido em: 10/03/17


Aprovado em: 08/05/17

40 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017

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