‘CAPITULO 1X
RELATOS DE ESPACO
oro humax ara’
Na Atenas contempordnea, os transportes coletivos se
cchamam metaphorai, Para it para o trabalho ou voltar para
casa, tomase uma “metifora” ~ um dnibus ou um trem, Os
relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles
atravessam e organizam lugares: eles os selecionam os
‘einem num s6 conjunto;deles fazem frases e itinerrios. Sio|
percursos de espacos,
Vendo as cosas assim, as estruturasnarrativas tm valor
de sintaxes espacais. Com toda uma pandplia de eédigos, de
199comportamentos ordenados e controles, elas regulam as mu:
angas de espago (ou circulagdes)efetuadas pelos relatos sob
4 forma de lugares postos em sérieslineares ou entrelagadas:
aqui (Pars) 2 gente vai para Ié (Montargis) este lugar (um
‘guarto) inci outro (um sonho ou uma lembranga); etc. Além
disso representados em descrigbes ou figurados por atores (um
estrangeiro, um citadino, um fantasma), esses lugares estio
ligados entre si de maneira mais ou menos firme ou facil por
“modalidades" que precisam o tipo de passagem que conduz
de um lugar a outro: podese atribuir ao transito uma modal
dade “epistémica" referente 20 conhecimento (por exemple
'nio & certo que seja agui a Place de la République") ou
“alética’, referente & existencia (por exemplo: “a terra do
Eldorado € um termo improvivel") ou “dedntica, referente
0s deveres (por exemple: “deste ponto, vocé tem que passar
para aquele").. Entre muitas outras,essas observagbes apenas
esbogam com que sul complexidade os relatos, cotidianos ou
Iterrios, so nossos transportescoleivos, nossas metaphorai
‘Todo relato é um relato de viagem uma prética do espaco.
‘Aeste titulo, tema ver com as ttica cotidianas, faz parte dela,
‘desde 0 abecedério da indicagdo espacial (dobre & direita”,
*siga a esquerda’), esbogo de um relato cula seqiéncia 6 escrita
pelos passos, até 20 “noticidio" de cada dia ("Adivinhe quem
eu encontret na padaria?"), ao “Jornal” televisionado ("Teherd:
Khomeiny sempre mais isolado...), aos contos lendatos (as
atas Borralheiras nas choupanas) es histérias contadas
(lembrangas e romances de paises estrangeros ou de passados
mais ou menos remotos). Essas aventuras narradas, que a0
mesmo tempo produzem geografias de agées e deriva para
6s lugares comuns de uma ordem, no constituem somente um
“suplemento” aos enunciados pedestres es retdricas caminha-
tras. Nao se contentam em desloci-los e transpé-las para @
«campo da linguagem. De ato, organizam as caminhadas. Fazem
4 viagem. antes ou enguanto os pés a executam
Esse pulular de metéforas - ditose relatos organizadores.
de lugares pelos desiocamentos que “descrevem" (como se
“descreve” uma curva) = como € que pode ser analisado? Para
200
terse apenas aos estudos relativos is operagées especializan
tes (enzo aos sistemas espacais), inimerostrabalhos fornecem
métodos e categoras. Entre os mais recentes, podemse apontar
fem particular aqueles que se referem a uma semantic do
espago (assim John Lyons sobre 0s “Locative Subjects” e as
"Spatial Expressions")' a uma psicolingUlstica da percepgio
(assim Miller e JohnsonLaird sobre “a hipotese de localiza
do") 2 uma socjolingdistica das descrigdes de lugares (por
x William Labov), a uma fenomenologia des comportamentos,
organizadores de “territrios” (por ex. Albert E. Scheflen
Norman Ascheraf’, a uma “etnometodologia” dos indices de
localizagéo na conversa (por ex. Emanuel A. Schegioff’, ou a
‘uma semidtica que estuda a cultura como uma metalinguagem
espacial (por ex, @ Escola de Tartu, sobretudo Y.M. Lotman,
B.A. Ouspenskil ete. Como outrora as prticas significantes,
aque se referem &s efetuacies da lingua, foram tomadas em
consideragio depois dos sistemas lingisticos, hoje as paticas
espacializantes prendem a atengdo depois que se examinaram
‘os cOdigos e as taxinomias da ordem espacial Nossa pesquisa
pertence a este tempo “segundo” da andlise, que passa das
estruturas as agdes. Mas neste conjunto muito amplo vou
considerar apenas ardes narvatis. Blas permitirio precisar
algumas formas elementares das priticas organizadoras de
fespago: a bipolaridade “mapa” e "percurso”, os processos de
delimitagdo ou de “imitagio" e as “focalizagbes enunciativas”
(ou sea, 0 indice do corpo no diseurso)
Inicialmente, entre espaco €
“Bspagos” e “lugares” lugar, coloco uma distinggo
que delimitara um campo.
Um lugar € a ordem (sea
‘qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relagoes
de coexisténcia. AV se acha portanto excluida a possbilidade,
para duas cosas, de ocuparem o mesmo lugar. Al impera a lei
4 “préprio" os elementos considerados se acham uns a0 lado
dos outros, cada um situado num lugar “pr6prio” e distinto
{que define. Um lugar € portanto uma configuragdo instantanea
de posigdes, Implica uma indicacio de estabildade.
201Existe espago sempre que se tomam em conta vetores de
diregdo, quantidades de velocidade ea variéve tempo. Oespaco
um cruzamento de méveis. E de certo modo animado pelo
conjunto dos movimentos que ai se desdobram. Espago € 0
feito produaido pelas operagdes que oorientam, ocircunstan
iam, 0 temporaizam e 0 levam a funcionar em unidade
polivalente de programas confituais ou de proximidades con-
‘ratuais.O espaco estara para o lugar como a palavra quando
falada, isto é, quando & percebida na ambighidade de uma
fetuagio, mudada em um termo que depende de multplas
convengées, colocada como o ato de um presente (ou de umn
tempo}, e modificado pelas transformagées devidas a proximi-
dades sucessvas. Diversamente do lugar, ndo tem portato
nem a univocidade nem a estabildade de um *préprio".
Em suma, 0 espaco € um lugar praticado. Assim a rus
‘geometricamente definida por um urbanismo é transformada
fem espago pelos pedestres. Do mesmo modo, a letura é 0
fespago produzido pela pratica do lugar eonstitutdo por um
sistema de signos - um escrito.
Merleau-Ponty jé distinguia de um espago “geométrico”
(Cespacialidade homogénea e istropa”, andloga do nosso “Iv
far") uma outra “espacialidade” que denominava “espago
antropol6gico”. Essa dstingéo tinha a ver com uma problems
tica diferente, que viva separar da univocidade “geométrica”
a experiencia de um “fora” dado sob a forma do espago ¢ para
6 qual “o espago € existencal”e “a existenca & espacial”, Essa
experiéncia€ relagio com o mundo; no sonho e na percepgio,
«por assim dizer anterior & sua diferenciagdo, ela exprime "a
‘mesma estrutura essencial do nosso ser como ser situado em
relagio com um meio" - um ser situado por um desejo,
indissocidvel de uma “diregio da existincia" e plantado no
espago de uma pasagem. Deste ponto de vista, “existem tantos|
espagos quantas experiéncias espacias distintas”.”A perspec:
tiva € determinada por uma “fenomenologia” do exist no
mundo,
Num exame das pritcas do diaadia que articulam essa
experiéncia, a oposigio entre "lugar" e “espago” ha de remeter
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sobretudo, nos relatos, a duas espécies de determinagBes uma,
por abjetos que seria no fim das contas reduziveis ao estara
de um morto, le de um “lugar” (da pedra ao cadaver, um corpo
inert parece sempre, no Ocidente,fundar um lugar e dele fazer
a figura de um timulo}; a outra, por operagdes que, atribuidas
a uma pedra, a uma érvore ow 3 um ser humano, especiticam
“espagos” pelas ages de sujeitoshisticos (parece que um
‘movimento sempre condiciona a produgio de um espaco eo
associa a uma historia) Entre essas duas determinagbes, exis:
tem passagens, como 0 assassinato (ou a transformaggo em
paisagem) dos herbs transgressores de fronteras e que, culpa-
dos de terem atentado contra a lei do lugar, restauram-no por
seu tiimulo; ou entio, a0 contriro, o despertar dos objetos
imertes (uma mesa, uma loresta uma personagem doambiente)
‘que, saindo de sua estabildade, mudam o lugar onde jaziam
na estranhera do seu prdprio espago.
0s relatos efetuam portanto um trabalho que, incessante
mente, transforma lugares em espagos ou espagos em lugares.
Organizam também os jogos das relacdes mutdvels que uns
‘mantém com of outros. Sio indmeros esses jogos, num leque
aque se estende desde a implantagdo de uma ordem imével €