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A alma brasileira na literatura machadiana Complexo cultural de cordialidade Teresinha V: Zimbrao da Silva* 1 Literatura e psicologia B certo ¢ até mesmo evidente que a psicologia, cléncia das processos ant ‘ices, pode relacionar se com 0 cam o da literatura WUNG, 1985, p. 74). Este trabalho ¢ parte de uma pesquisa que tem uma pro- posta interdisciplinar: contribuir para andlises literdrias & luz da poicologia Jungutana, As relacdes entre literatura e psicologia sio discutidas por Jung em um conjunto de ensaios publicados em por- * Possui graduagio em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Ja: ‘ein (1990), graduacao em Matemstica pela Universidade Federal do Rio de Jane'ro (1987), doutorado em Literatura ~ University of Neweastle Upon ‘Tyne (1994), especializagdo em Psicologia Junguiana pelo IBMR-RS (2006) ¢ ésdoutorado em Literatura pela PUCR) (2007). £ professoreassociada da ‘araduagio © posraduacio em Letras (mesa e doutorad em Estudos Literios) da Universidade Federal de Jude Fora. Ter expwsiécia na oa dos Estudos Literavios, com Enfase em literatura rasta, atuando prin ‘alnente nos seuintes temas: Apropriago. dente cultural, Literatura € psicolgin junguiana, Literatura e esprtualidade, Literatura e budisino, Machado de Assis, Guimaries Rosa, Clarice Lispectr. {ugués sob 0 titulo O espirito na arte e na ciéncia (JUNG, 1985). Lemos entao que a forca imagistica da poesia, que Pertence 20 dominio da literatura e da estétca, & um fon’ meno Psiquico, € como tal pertence também ao dominio da Psicologia, Nestes ensaios, Jung defende a interdisciplinar dade entre as duas dreds de conhecimento, espaco onde este trabalho pretende se situar. ‘Tendo conicluido em 2006 no IBMR-R) uma pés:sradua io fato sensu em psicologia junguiana (com a monografa intitulada Literatura e Psicologia Analttica otientada pelo analista junguiano Dr. Walter Boechat), eu me proponho a vida no meio académiev brasileito os estudos sobre litera. tura e psicologia junguiana, 2 Inconsciente cultural ¢ complexo cultural © médica em mim se nega a crer que 4 vida psiquica de um povo exteja «kim das regras psicoldgicas funde. ‘mentais.A psique de um povo tem una contiguragdo apenas wm pouco ‘mais complexa do que a psiaue da {individuo WUNG, 1998, p. 85) 1Se) uma teoria psicogica & eatida ‘ara 0 individu, deve poder também ‘er aplicada a sttuagoes coletioas (GAMBINI, 2006, p, 35), s psicologos tom a tendéncia a nao er sendin ne elites individaats dese ‘arquétipas: importa agora apreciarthes ‘8 conseguéncias socials (MAFFESO. Li, 1998, p, 100), Colegio Retlexéeslunguianas importante notar que os estudos sobre literatura e psi- cologia junguiana contam com a contribuicio dos conceitos dde incom Admitese que muito do que Jung considerava como sen do pessoal, hoje é percebido como culturalmente condiciona- do, e muito do que ele considerava coletivo, percebe-se tam- ‘bém como condicionado pela cultura. © conceit de Inconsciente Cultural foi introduzido no dliscurso junguiano em 1984 por Joseph L. Henderson e rede finido em 1996 por Michael V. Adams. Henderson definiu o In: conseiente Cultural como uma dimensio entre o inconsciente coletivo e o inconsciente pessoal (HENDERSON, 1984). Contudo, aquilo que é cultural é, obviamente, também coletivo. Adams redefiniu entZo 0 Inconsciente Cultural como ‘uma dimensio dentro do Inconsciente Coletivo. Por esta rede- finigdo, o Inconsciente Coletivo passa a comportar duas dimen ses: a primeira arquetipica, natural, transhistorica, transétni- cca a segunda estereotipica, cultural, historica, étnica, ¢ 6 esta dimensio que define o Inconsciente Cultural (ADAMS, 1996). Em 2004, Thomas Singer e Samuel Kimbles, inspirados ‘no conceito de Inconsciente Cultural, introduziram 0 concei- to de Complexo Cultural, redefininclo a teoria dos complexos de Jung para que esta nao s6 se relerisse ao Inconsciente Pes- soal, mas que também incluisse os complexos do Inconsciente Cultural (SINGER & KIMBLES, 2004). jenle cultural e complexo cultural. dew com o fim de resgatar a influéncia da cultura sobre os gio da. pei cologia junguiana na discussdo sobre as questdes culturais; tema dos mais importantes na Pésmodernidade. contetides do inconsciente © efetivar a partici ‘alma brasieira nn Neste trabalho, procuro explicitar que a Psicologia Jun- Suiana pode contribuir, ¢ muito, sobretudo com os concet- tos de Inconsciente Cultural ¢ Complexo Cultural, para os estudos sobre identidade e diferenca culturais na literatura brasileira. 4 3 Cordialidade ¢ complexo cultural © presente trabalho inspirouse na minha pesquisa de és-doutorado desenvolvida em 2006, onde estudei Machado de Assis a partir da hipdtese de que o escritor teria antec pado, na sua producto literdria e critica, as relexdes desen volvidas por Sérgio Buarque de Holanda que resultaram no conceito de homem cordial exposto em Raézes do Brasil. 0 conceito, desde a sua definicdo por Holanda em 1936, tem se revelado muito produtivo como tentativa de caracteri- zr aspectos importantes de identidade e diferenca culturais do brasileiro, Contudo, carrega consigo uma grande polemica que importa comentar a fim de melhor definir @ proposta da pesquisa, © principal contraargumento ao conceito de Holanda é @ afirmagio de que uma sociedade violenta como a brasileira, que primeiro explorou o trahalhador escravo © depois 0 assa- lariado, ndo poderia ser cordial. Esta angumentacio motiva- da pela interpretacio de cordial no seu significado corrente: amigo, bondoso, sincero, franco, Mas, como advertiu o proprio Holanda, cordial deve ser tomado em seu sentido etimol6gico: pertencente ao coragdo, A inimizade e a violencia podem ser #80 cordiaie quanto a amizade ¢ a bondade, pois tanto unas ‘como outras nascem do coracdo. Em Raizes do Brasil ese: CCumpre ainda acreseentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e con. us Coleco Retlexdes lunguianas vencionalismo social, no abrange, por outro, ape nas ¢ obrigatoriamente, sentimentos positivas e de concordia, A inimizade hem pode see tie cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coracdo, procedem, assim, da esfera do intimo, do familiar, do privado (HOLANDA, 1973, p. 107) A pesquisa interpreta o conceito sublinhando os seguin- tes aspectos: a cordialidade esti préxima da afetividade da familia patriarcal e distante da civilidade do Estado modemo, caracterizase pela espontaneidade da emocio intima € nao pelo convencionalismo da polidez cidada, pressupde antes relagdes pessoais e privadas, orientadas por simpatia e favor ~ resquicios do patriarcalismo ~ ¢ nao relagdes impessoais € piiblicas, orientadas por mérito e trabalho ~ introducdes da Modernidade nao consolidadas de todo no Brasil presente trabalho também se inspirow no artigo do psi ‘c6logo junguiano Henrique Pereira intitulado “Consideracdes ‘sobre a teoria dos complexos culturais” (PEREIRA, 2010). Nes te artigo, Pereira se pergunta quais seriam os complexos cultu: do brasitetro, © relaciona alguns estudos a respeito: Ora, autores junguianos brasileires tém se mos trado cada vez mais interessados em diseutir 2 identidade cultural brasileira e seus complexos. Eis alguns exemplos: Roberto Gambini (2000) es tudou a atuagio do mecanismo psicoldgico da pro- egdo na fantasia que 0s primeiros colonizadores ortugueses faziam dos nativos; Fernando Arati- Jo (2004) e Walter Boechat (2010) abordaram as questdes psicoliicas relacionadas ao racismo no Brasil: e Denise Ramos (2004) identiticou o sen: timento de inferioridade como trago principal de ‘um complexo cultural brasileiro. Isto sem falar na ‘Aalima brasileira 9 otével contribuicao de Arthur Ramos (2007) que, Ji nos anos de 1930, buscava estudar psicossocio logicamente a travi¢ao afrobrasiletra, abdicando das teorias raciais tio em voga naqueles tempos. ‘Muitos anos antes de Henderson propor um in- cconsciente cultural; Ramos sugeria o “inconscien- te folcloyico” (PEREIRA, 2010, p, 43) Depois de citar alguns dos estudos junguianos sobre os complexos culturais do brasileiro, Pereira sublinha: “gostaria de chamar a atencdo para um aspecto sensivel, incmodo da alma brasileira. que nao pase diretamente pelo preconceito racial ou étnico e tampouco pelo sentimento de inferioridade, Eu diria que, como nagio, sofremos de um complexo de cor. dialidade” (PEREIRA, 2010, p. 44), Pereira propse, entio, interpretar a cordialidade, tal como definida por Holanda, como um complexo cultural do brasileiro, Este, por ainda sofrer a influéncia de um estilo de vida social prémoderno, baseado em lagos de sangue ¢ essoais, ndo conseguiu substituir de todo a lei particular da Familia pela lei abstrata e impessoal do Estado. Tende, por. tanto, a tratar a coisa ptiblica como patriménio pessoal, ¢ dai a legislar € governar nao em nome do povo, mas em causa Propria, Pereira sumariza: EE sequindo a Logica do complexo, se eu penso que 0 Fstado é meu, se 0 trato como patrimonio pes: soal, a corrupgio deixa de ser rapina. Afinal, como oubar aquilo que ja possuo? Por conseguinte, a corrupclo, que tanto revolta as hasileiros, no & somente sintoma compensatério de nosso comple- x0 de inferioridade, mas deve também ser pensada como vinculada a este complexo de cordialidade (PEREIRA, 2010, p. 45), Py Colegbo ReflexdesJunguianas © homem cordial encontra sérias dificukdades para se adequar as relagées impessoais, desobedecendo, portanto, & lei abstrata do Estado. Sua vida em sociedade se pauta pela ética da emogao, por aquilo que nasce do coracio. Pereira ainda sublinha: Ha aspectos da cordialidade, contudo, que, por iifo nos causarem conflito ou mabestar, i estio integrados na identidade nacional. & 0 caso do “uso de diminutivos” e da “omissao de nomes de familias no trato social”, como forma de criar inti- mmidade. A cordialidade do brasileiro se fz notar brineipalmente no seu “Uesejo de estabelecer int midade" em ver de respeito, A polidez de outros poovos nos parece fra ¢ formal. 0 con a entre nds, esté fundado numa ética da emogio (PEREIRA, 2010, p. 45) Sao esses aspectos de cordialidade da “alma brasileira” que o presente trabalho pretende explicitar no romance ma- chadiano Hsadie Jacé, No seu peniitimo romance, publicado ‘em 1904, Machado de Assis nos introduz- a0 menos cordial de seus personagens: 0 nanrador e diplomata Aires. Procurare- mos mostrar que a partir da definigao deste como cordato (polido), justamente © oposto de cordial, que Machado de Assis constréi, por oposicio, a cordialidade dos demais per soniagens e, portanto, antecipa as reflexdes de Holanda sobre © homem cordial expostas em Raizes do Brasil, reflexdes que permitem a interpretacao junguiana de complexo de cordial dade da “alma brasileira” 4 O homem cordial eo homem cordato Principiemos por lembrar que Esaii e Jacd, ainda que seja um texto narrado na terceira pessoa, é definido no prélo- ‘Aatna brasteira tat 0 como 0 ultimo volume das memérias dle Aires. Machado de Assis constrdi entao a estranha situaco narrativa de um “eu” ue se trata como um “ele”. De fato, & em terceira pessoa que © narrador-diplomata sublinha o detalhe de ser um homem “extremamente cordato”: Aires *[elra cordato, repito, embo- va esta palavra no exprima exatamente 0 que quero dizer ‘Tinha 6 coragdo disposto a aceitar tudo, néo por inclinacao 4 harmonia, senio por tédio & controvérsia” (ASSIS, 1997, p. 965), Cordato, no contexto, significa se par de acordo para ser polido. De fato, lemos que Aires “usava sempre em concordar com 0 interlocutor, nao por desdém da pessoa, mas para nio dissuadie nem brigar® (ASSIS, 1997, p.1.057), Bra, em todos 08 sentidos, um diplomata: “Imagina s6 que trazia o calo do oficio, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, 0 ar da ‘casio, a expressio adequadla, tuilo tao bem distribuido que ‘era um gosto guvito e velo” (ASSIS, 197, p. 964) Lembremos que este diplomata passou uns trinta anos dda sua vida no exterior, s6 visitando o pais em ocasionais Hicencas. & o mats europeizado dos personagens machadi nos, 0 mais civil e polido. Ora, a polidez comparece como tum detalhe importante do retrato com que posa para a Mo- dernidade © homem civilizado. & suposta como uma grande Virtude, apurada em longos anos de civilizacao e reivindicada como condicao essencial para a vida em sociedade. Indispen sve! a0 guardatoupa do homem moderno, a polides s6 sera despida por ocasiao da intimidade do lar, tal como Aires nos 6 deserite a fazer Nio cuides que nao era sincero, era-o. Quando niio acertava de ter a mesma opiniao, e valia a pena cescrever a sta, escreviaa[.J, tendo para isso uma Colegio Retlexoes hunguiangs série de eadernos a que dava o nome de Memorial Naquela noite escreveu estas linhas: Noite em casa da familia Santos (I. Natividade e tum Padre Guedes que li estava, gordo e maduro, ram as tinicas pessoas interessantes da noite. 0 resto insipido, mas insipido por necessidade, nao podendo ser outra coisa mais que insipido, {.. Nio acabo de crer como esta senhora, aliis tio fina, pode organizar noites como a de hoje (ASSIS, 1997, p. 965.967), ‘© mais europeizado dos personagens machadianos pa- reve ter realizado a separacao moderna entre o publico e 0 rivado. No fragmento, nés o vemos despir a atitude cordata de salio para adotar a (que s6 apés a sua morte seria publicado), Neste diario, ualifica as mesmas pessoas, a que em puiblico tivera o traba- tho de polidamente agradar, de “insipidos”. Em diversos momentos do romance, comparece sublinha- da a oposicdo entre a atitude publica e a atitude privada de Aires. Veiamos alguns: em um diloge mantide com Santos, quando fumava com este um charuto, 0 diplomata, enquanto “olhava mansamente” para 0 anfitriéo, pensava consigo mes- ‘mo: “nao podia negar a si mesmo a aversio que este Ihe ins- ava" (ASSIS, 1997, p. 1.012). Ha também o episédio da imprépria consulta noturna a Aites, por parte de Batista: este, como politico conservador, queria saber a opiniéo do diplomata se devia ou nao aceitar © convite dos liberais para assumir a presidéncia de uma pro- vincia, Aires ouvia e “escondia 0 espanto |... Convidado assim Aquela hora [..), Uma profissio de f politica (...". A calma apa rente do di ‘alma brasileira i Vilizadamente procurava controlar. O impréprio da situacio era demais até para a sua cordata polidez. “Quando Aires se achou na rua, s6, live, solto,entregue a si mesmo, sem grilhies, nem consideragoes, espirou largo” (ASSIS, 1997, p. 1.017). Ou ainda 0 caso de Flora: esta pedira a Aires que dis suadisse 0 pai da ideia de deixar a corte e i para a provincia € 0 diplomata cordato prometeu intervir, s6 que, no intimo, “achou tao absurd este pedido, que esteve quase a ri, ias contevese bem" (ASSIS, 1997, p. 1.015). Contudo, diante da oportunidade proporcionada pela consulta de Batista, acon- selhou entio a este exatamente o contrério do que antes pro- metera a filha ~ , portanto, sendo agora cordato para com o Dai a quem interessava aceitar o cargo na provincia, Enfim, 0 europeizado Aires alcanca satisfazer cordata mente a todos, e sobressai nestas cenas como o tnico a domi- nar com maestria as leis modernas do convo social. De fat, notemos que 0s outros personayfens comparecem justamente a infringir estas leis quando exteriorizam, em contraste com aaatitude cordata do Conselheiro, uma disposicio tanto para controvérsias apaixonaulas (os Santos discutiam com paixao sobre a adivinha da Morro do Castelo) quanto para revelagdes intimas (como nos exemplos de Batista e Plora), ambas as atitudes tidas como impréprias 8 conversa polida de salao. Aatitude cordata de Aires demonstra a moderna impes- soalidade com que este condus.as suas relagdes socias, ja atitude dos demais personagens explicita um arcafsmo de um pais patriarcalsta que, insistindo na pessoalidade de todos 05 vinculos, no faz distingdes entre o espaco pilblico e 0 privado. Aires se vé entao as voltas com casos como os de Flora ¢ Batista, a pedirem ambos um conselho pessoal a ele, insipidos" da noite em casa de Colegio ReflexsesJunguianas praticamente um estranho, Lembremos que o diplomata con- siderava esta sociedade como composta por “gente estranha” (ASSIS, 1997, p. 989) e nao por amigos e ele 56 08 ouvia por “imposigdo de sociedad” (ASSIS, 1997, p. 1.015) ainda significative que estes dois personagens nao se- jam 05 Gnicos a reivindicar ao Conselheiro Aires, a intimidade «que acompanha o papel de conselheiro (titulo que deveria ser Por convencéo, apenas simbdlico). De fato, tanto Batista e Flora quanto Natividade, Santos, Pedro, Paulo e até Custédio recorvem aos conselhos do Conselheiro, E se este 0s recebe ‘em piiblco com polidez, quando na intimidade do seu Memo- rial, os deprecia, atribuindothes a condicio de “insipides" além da epigrafe “anima mal nata”. AA esta altura nos interessa sublinhar que o romance ma chadiano sate Jacd, de fato, sugere que, na sociedade bra- sileira, hd constante invasao do espaco piibico pelo privado {existem outros exemplos a serem citados, mas que extrapo- lam 0s limites do presente trabalho). Pois este importante traco identitirio é determinante nas reflexes desenvolvidas Por Sérgio Buarque de Holanda em Raizes do Brasil. No capitulo "O homem contial”, Sérgio Buarque denomina este “trago defnitivo do carater brasileiro”, definido pelos “padraes 4e convivio humano, informados no meio rural e patriareal’, de “cordialidade”. Expressao que deveria ser tomadia em seu "sete {ido exato e estritamente etimoldgico", para designar um sett timento nascido do coracio, “procedendo assim da esfera do {ntimo, do familar, do privado" (HOLANDA, 1975, p. 106-107). 1.0 testo macho dando distin, por parte do baie, ente os «sagas pilico e privado jo estudao por Lai Costa Lina no ensie “Machado ea inversio do veto" em 0 controle do smagndra (LIMA, 198, 242251), ‘alma brasietra Machado entao antecipa - através da oposicdo que cons- tdi entre a moderna impessoalidace do europeizado Aires, atualizada na atitude cordata ou polida deste, ea arcaica pes- soalldade dos outros personagens, atualizada por seu turno na atitude cordial destes iltimos ~ as reflexes de Holanda sobre as possiveis “raizes do Brasil”. Notemos que o préprio Holanda distingue ambas as atitudés, sublinhando: “a atitu- de polida consist{e] precisamente em uma espécie de mimica deliberada de manifestacdes que sio espontineas no “homem cordial”: €a forma natural e viva que se converteu em formu- la” (HOLANDA, 1973, p. 107) Ne fat, 6 seu estudo explicita a distancia que separa os dois conceitos, a polider ¢ a cordialidade, ainda o quanto ue o modelo de convivencia social em vigor no Brasil, ao des- toar do primeiro, distancia o pats da ritualistica impessoalida- de com que o individuo aprendeu a se disfarcar na sociedade ‘moderna, E conclu Nenhum povo esti mais distante dessa nogio 1i- a da vida que o brasileiro. Nossa forma oF dindria de convivio social é no fundo justamente © contratio da polider, |. a polidez 6, de algum modo, organizacao de defesa ante a sociedade. Detémse na parte exterior, epidérmica do indivi duo, podendo mesmo servir, quando necessirio, de peca de resisténcia. Equivale a um disfarce que Dermitiré a cada qual preservar intatas sua sen- sibildade e emogdes (HOLANDA, 1973, p. 107). Pois é este impessoal disfarce, em contraste com a pes- soalidade dos outros personagens. que estamos presencian- do o europeizado Aires a vestir em Esai e Jaco, Machado constr6i entio um personagem que no convivio social pro- Colegio RetlexdesJunguianas cura disfargar as suas emocdes mais intimas, as quais sero transcritas em um didrio, a ser publicado somente depois da sua morte, quando este ndo mais precisar se disfarcar e se defender diante desta sociedade, Ao mesmo tempo que apresenta um personagem “extre- mamente cordato”, Machado apresenta seus outros persona- ‘gens com tracos de cordialidade. A invasao do espaco puiblico € estatal pelo privado e familiar na sociedade brasileira nao escapou ao escritor e ¢ registrada no seu penditimo romance. Estas sdo algumas das reflexoes machadianas que estamos relacionando ao conceito do homem cordial de Holanda, con- ceito que admite a interpretagao junguiana de complexo cul- tural de cordialidade e a respeito do qual importa ainda notar a seguinte observacao de Henrique Pereira: complexo cultural de cordalidade evoca um tema arquetipico, que é a passagei da lei da familia para Iei da Cidade. O conflto entre estes dois prinet- Pios foi retratado por Séfocles como o confito entre Creonte, representante da Poli, ¢ Antigona, a guar- «i dos valores familiares. Psicologicamente, a familia esti sob 0 signo dos vineulos eréticas cua metafora recorrente é a “mae”, enquanto que a Cidade ou 0 Estado impessoal esta simbolicamente impregnado da lei propria do “pai”. © complexo de cordialidade Uo brasileiro seria assim expressdo da tensio decor rente do atrito destas das experiéncias arquetipi cas ~ mae e pai, E a nacdo brasileira, mantendose Perigosamente vinculada aos valores cordiais mater: ‘nos, permanece infantlizada, uma reencenacio ar- uetipica do puer aeternus, a crianga eterna: somos ‘um povo que tealiza pouco seu enorme potencial criativo. Nao disseram, afinal, que o Brasil & 0 pais do futuro? (PEREIRA, 2010, p. 45-46). ‘alia brastelea 5 Consideragoes finais is enti a extude da “alma brasileira” registrado no romance machadiano Esati e Jacé, a partir do conceito de cardialidade, do socidlogo e*historiador Sérgio Buarque de Holanda, e do conceito de complexo cultural da psicologia jimguiana. Esperames ter conseguido estabelecer relacdes pertinentes entre estas diferentes areas de conhecimento. Nao foi nossa pretensio, em absoluto, essfotar o assunto, Muito provavelmente, ngulos importantes deixaram de ser explorados, ou sequer foram vislumbrados. Por ora, este é 0 trabalho possivel Referencias ADAMS, MY. The mullicultural imagination: race, color anid the unconscious. Nova York: Routledge, 1996, ARAUIO, FC. Da cultura ao inconsciente cultural [Dispo- nivel em http://www.rubedo.pse-br/artigosh/cultacul.htm Acesso em 26/10/2004]. ASSIS, JM.M, Esau e Jacé (1904), Rio de Janeiro: Nova Agui- lar, 1997 [Obra Completa, vol. 1) BOECHAT, W, “Eros, poder e 0 racismo cordial: aspectos da formacio da identidade brasileira”. V Congresso Latinoame- ricano de Psicologia Junguiana, Santiago, 2009, p. 125314 [Anales}. GAMBINI, R. Espeiho indio ~ A formacao da alma brasileira, ‘Sao Paulo: Axis Mundi/Terceiro Nome, 2000. HENDERSON, JL. Cultural atitudes in psychological perspec: tive. 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The cultural complex: contemporary Jungian perpectives on psyche and society. Hover/Nova York: Brunner-Routledge, 2004, 6 O tempo e 0 vento Tragos da alma brasileira Elisabeth Bauch Zimmermann® Escollemos trabalhar psicologicamente a trilogia de Fico Verissimo - 0 tempo ¢ 0 wento ~ como narrativa de uma saga familiar que apresenta a colonizacdo de uma tego denomina- da O Continente de Sao Pedro e a construcdo do Povoado de ‘Santa Fé, Descrevendo os acontecimentos histéricos da época ‘compreendida entre 1745 e 1945 e analisando as personaggens imascufinas e femininas da saga, fol possivel resgatar tracos da formacdo da alma brasileira na regio do Rio Grande do Sul, sob o Angulo de visio da psicologia analtica, Descrever e analisar os fatos e as personagens da saga fa- ir U tempo & 0 vento de firico Verissimo tem como inten io revelar tragos da alma brasileira que foram se formando haquele periodo de colonizacéo da regio, em seus aspectos luminosos e sombrios. Relacionar uma obra literdiria de gran de porte, com grande conhecimento de uma regio brasileira, parece me uma forma relevante de penetrar no mistério da alma de um pavo, sob a dtica da psicologia junguiana. Publicado entre 1949 © 1961, a trilogia de Erico Verissi mo - O fompo eo vento narra a saga familiar dos Terra © * Psicdoga pela USP, analista juuiana plo fnsituto C0. Jang de ark «que, Suga, Doutra em Sai Mental pela Unicamp.Lieeeiada em Dana Mavderna pela UPBA. Docent do Instituto de Artes da Unica. ml CColegdo Retexses Jungulanas dos Cambaris, familias que fizeram parte da construcio de toda uma regido no Rio Grande do Sul, regido esta denomi- hada O Continente de Sio Pedro. A acdo da narrativa comeca em 1745 e se desenvolve até 1946, No ano de 1777, Ana Terra, filha de colonos de origem Portuguesa, vive na estincia paterna uma vida restrita e sacti ficada. Junto com a mie se ocupa das drduas tarefas domésti 5 - 0 preparo da comida, a limpeza da casa e das roupas -, ‘enquanto 0 pai e os dois irmios cuidam da lavoura e de alguma cringdo. Estio isoladas, néo tém vizinhos, um dia transcorre como 0 outro: trabalho, refeigdes, descanso e tudo novamente 'nn outro dia. Neahum conforto ou diveraio. Ana sent falta Uo lugar de onde veio, a Capitania de Sao Paulo, onde vive antes da familia obter a terra, O pai, Maneco Terra, é um homem ea Jado, teimoso, que sonha em ampliar a estancia, em criar gado, ‘em plantar trigo. Ana quer ver gente, ir 8 igreja, ouvir mtsica, pai dé as diretrizes em tudo. A mie se cala. Um dia Ana encontra a margem da sanga um indio ferido, ‘que mais tarde relata ter sido criado e educado pelos padres hhas misses, uma vez que sua mae morreu no parto. Filho de india e bandeirante paulista, foi chamado de Pedro Mis sioneito. Verissimo o descreve como um indio visionsirio que prevé 05 acontecimentos, inclusive o final tragico da misao, fem consequéncia de um acordo de terras feito entre Espanha € Portugal. Cem anos de um proceso civilizatétio de alto nivel fo destrocado, sem levar-se em conta o grande valor hur mano da obra que padres e indios haviam desenvolvido. Par dre Alonso, um dos missiondrios em meados do século XVI, descreve um corregedor indio, José Tiaraju, como um belo homem de rigida postura marcial, pareo de palavras ¢ de gestos |... Sabia ler ¢ eserever com ‘ala basi ‘uéncia, tinha habilidade para a meednica e conhe: cia a doutrina crista melhor que muitos brancos letrados |... Ninguém melhor do que ele domava lum potro ou manejava 0 Lago; poucos podiam om- brear com ele no conhecimento e trato de terra: € a guerra mostrdra que ninguém 0 suplantava como chefe militar € guerrilheiro, Em tempos de az ..] stbia exprimirse com precisio e economia de palavras, € nas suas sibias senteneas Alonzo vislumbrava as vezes uma pontinha de ° ‘que o deixava a pensar nas ricas reservas mentais, ddaguela raca eonsiderada pelos homens brancos Inferior e barbara (p, 67). Pedro Missioneiro, ainda menino, comecou a divulgar in- Senuamente a lenda de que José Tiaraju era 0 arcanjo Sio Miguel que estava lutando a favor da missio contra os espa- nnhdls e portugueses. Censurado pelos padres por esta here- sia, continuau, no entanto, a espalhar por todos os cantos ‘que 0 corregedor era uma encarnagio do arcanjo, Pedro tinha uma relacao mistica com os santos ¢ com a Virgem Maria. com quem falava quando ia visitar 0 timulo de sua mae ea ‘quem chamava mae espiritual. Com os padres aprendeu a ler, escrever e fazer contas, ‘Tocava dois instrumentos e compunha mei A familia de Ana Terra cuidou de seu ferimento, o do numa das batathas em defesa do tervitério das missdes, e deixowo ficar para ajudar os homens da casa nas tarefas da estincia. Ele vivia numa cabana solitéria, ¢ as vezes tocava fem sua flauta melodias nustilgicas compostas por ele mes. mo. Ana sentiase perturbada por sua presenca e acabou se envolvendo com ele, numa paixdo muito intensa. Quando sua Sravides foi percebida, os irmaos, a mando do pai, mataram Coleg Refexdes lungulanas Pedro e o enterraram longe da casa, como Pedro tina pre visto e relatado a Ana, nada fazendo para evitar sua morte. Através dessa parte da narrativa entramos em contato com a forca original da natureza indigena, seus critérios ri didos de honra e justica, sua sensibitidade e, também, sua ingenuidade, fatalismo e supersticio. Algumas dessas carac- teristicas da natureza do indio podem ser consideradas aspec- tos da alma brasileira, ¢ estao profundamente arraigadas em habitantes de varias regides em que a presenca indigens foi mais mareante. ‘Ana dew a luz um menino, e the deu 0 nome de Pedro, O pai a ignorava, os irmios a evitavam, a mae tentava servir de apoio e consolo silencioso; depois adoeceu € morreu. Entio, Ana cuidava dos afaweres da casa sozinha; mais tarde foi auxi- Tiada pela cunhada, casada com 0 irmio Antonio, Quando em 1790 0 pai e os irmios sio mortos num assalto a estincia por bandoleiros castelhanos, Ana é violada e machucada, uma vez «que sé ela ficou de mulher na casa, com os irmaos € o pai. Preo- cupandose com o filo pequeno € a cunhada que tinha tam ‘bém uma filha pequena, mandowos se esconderem no mato. Quando voltou a si apds 0 assalto, viu o pai € 0s irmos mor- tos, e os dois escravos também. A estincia estava destruida as mulheres, com seus filhos, foram resgatadas por carreteiros que estavam a caminho das terras que fariam parte da Vila de ‘Santa Fé, a ser fundada por Ricardo Amaral, Este lutara como tenente junto ds forcas portuguesas na guerra contra os caste: lhanos e recebera como recompensa, além de condecoracdes, imuitas terras. Em 1803, Chico Amaral, flho de Ricardo Amaral, ddeu inicio as providencias para fundar o povoado de Santa Fé. La Ana viveu até sua morte. Ganhou um pedaco de terra construitt seu rancho de taipa, coberto de capim, plantou © Alma brasiteira alimento criow o filho, Tornouse a parteira da comunidad, € usava uma velha tesoura,legada da familia desde os tempos de sua bisavs portuguesa, para cortar 0 cardio umbilical dos ecém-nascidos. + Ana gostou de um s6.homem em toda a sua vida, Pedro Missioneiro, e sempre rejeitou as propostas de casamento que the foram feitas depois no povoado, ‘Temos em Ana uma mulher fortemente ligada aos ele- ‘mentos da natureza, os ventos, os cheiros, a tensio antes das lempestades, o desejo e a dor. Representa a mulher elemen tar: corpo robusto, beleza rstica, firme em seu propdsito de sobreviver e criar seu filho a quem ama intensamente e que representa todo 0 contetido de sua vida, Nao demonstra preo-

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