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MARÍLIA
2007
GIOVANA CARMO TEMPLE
MARÍLIA
2007
2
Giovana Carmo Temple
BANCA EXAMINADORA
3
À minha querida e amada mãe. Sinto muito
a sua força e coragem comigo. Saudades...
(in memoriam)
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Bruni, a melhor coisa a dizer é que sentirei saudades de você. Foi muito bom
ter sido sua “orientanda”, as nossas conversas e as suas aulas foram essenciais para a
conclusão deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior, meu respeito e admiração. Agradeço pelas primeiras
orientações, há alguns anos atrás e, em particular, pelas valiosas contribuições no meu
exame de qualificação. Também não posso esquecer dos livros e textos que o sr., sempre
tão gentil, me emprestou. Agradeço muito!
Ao Prof. Dr. José Geraldo Poker e ao Prof. Dr. Eduardo Figueiredo, que desde o meu
primeiro ano de faculdade me incentivaram à pesquisa. O incentivo de vocês foi essencial
para a minha formação acadêmica.
Ao Prof. Dr. Sinésio Ferraz, pelo apoio em importantes momentos que acompanharam o
desenvolvimento da minha pesquisa.
À Profa. Dra. Cândida, que me incentivou a fazer o mestrado em filosofia nesta instituição.
À Capes, pelo incentivo à pesquisa, que exigiu de mim não apenas esforço acadêmico, mas
paciência e perseverança.
À minha distante amiga Gláucia, por ter estado tão presente com suas cartas no momento
mais difícil da minha vida. Às minha amigas Amanda e Tarsila, que estão ao meu lado há
5
mais de dez anos. Aos meus grandes companheiros da UNESP e com os quais eu dividi
ótimos momentos de amizade: Adriana, Orion, Thaís, Cristina e Irene. Vocês todos estão
no meu coração.
À Santina, por ter ficado em nossa família e por fazer muita companhia.
Agradeço muito ao Malcom, com quem eu dividi com grande intensidade as mais
importantes discussões que fazem parte deste trabalho, bem como os momentos mais
felizes e tristes desde meu ingresso no Programa de Pós-Graduação da UNESP. Amo você.
Por fim, à minha família, minha mãe, meu pai e minha irmã. À minha mãe, por ter sido tão
maravilhosa, por ter acreditado (sempre) em mim e por ter cobrado tanto de mim. À minha
irmã, por encher a casa de alegria com sua risada cativante, pela sua companhia e por seu
amor. Ao meu pai, agradeço por tentar com amor me compreender, por se interessar e
escutar com atenção os meus assuntos (e problemas), e por sempre acordar de bom humor,
o que torna os meus dias mais agradáveis Agradeço muito a paciência, a compreensão pela
ausência, e o amor de vocês. Amo vocês três.
6
Não quero ser misturado e confundido com esses
pregadores da igualdade. Porque, a mim, assim
fala a justiça: “Os homens não são iguais”. E,
tampouco, o devem tornar-se! Que seria meu
amor pelo além do homem, se falasse de outro
modo? Através de mil pontes e alpondras, terão de
abrir caminho para o futuro, e cada vez mais
guerras e desigualdades deverão ser postas entre
eles: assim manda que eu fale o meu grande amor!
7
RESUMO
8
ABSTRACT
The objective of the present work consists of particulary analyzing the criticism of the
political modernity, of the democracy and of the bourgeois civil society that defends the
humanity's progress based on the equality among the men, to some of the great themes of
the political philosophy of Nietzsche, to know, the will to power, the last man, the
overman, the pathos of the distance and the revaluation of all values.
9
SUMÁRIO
NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 10
INTRODUÇÃO 11
REFERÊNCIAS 138
10
NOTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Nas citações dos textos de Nietzsche presentes em nosso trabalho, optamos por
remeter nosso leitor aos textos originais do filósofo, conforme a edição das obras completas
observamos que as traduções não são de nossa autoria, por isso após as citações do texto no
refere aos fragmentos póstumos, sobretudo no que diz respeito à “grande política”, as
traduções utilizadas são de Oswaldo Giacóia Júnior. As demais obras são, em sua maioria,
traduzidas por Paulo César de Souza, salvo cinco textos: Cinco prefácios para cinco livros
não escritos, tradução de Pedro Süssekind; Crepúsculos dos ídolos, tradução de Artur
Morão; O Viandante e sua Sombra, tradução de Heraldo Barbuy; Assim falou Zatustra,
11
INTRODUÇÃO
por excelência, mas como bem define Ansell-Pearson (1997, p. 18), “Nietzsche é um
grego até a tentativa de escrever uma genealogia da moral e o diagnóstico do niilismo para
Não nos parece, assim, que a política seja um tema secundário nos escritos
Humano, a reflexão dos valores morais adquire maior preponderância e a crítica da moral
filósofo, principalmente no que se refere aos textos que estão presentes em nosso estudo, a
12
crítica à moral adquire maior completude em duas principais obras, a saber, Para além de
completa: “Foi então que pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre as origens a que
são dedicadas estas três dissertações, de maneira canhestra, como seria o último a negar,
ainda sem liberdade, sem linguagem própria, e com recaídas e hesitações diversas”2. Se em
sua crítica aos valores morais; em Para a genealogia da Moral Nietzsche formula com total
liberdade e linguagem própria suas análises filosóficas a respeito da origem dos valores
morais.
projeto nietzscheano consiste na desconstrução de toda tese filosófica que pretende ser algo
além de uma perspectiva. Ao que nos parece, o grande desafio a que se propõe este filósofo
1
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], prólogo, 2. In: KSA, vol. 5, p. 248.
Tr. p. 8.
2
Ibid, prólogo, 4. In: KSA, vol. 5, p. 251. Tr. p. 10.
3
No capítulo primeiro analisamos com maior especificidade o perspectivismo na filosofia nietzscheana.
13
Na realização deste objetivo que pretende ser intrinsecamente do âmbito
moral, é que poderemos transitar pelo terreno da política em Nietzsche, uma vez que o
questionamento acerca da origem dos valores morais implica em tomar por acidental tudo o
que é concebido como certo, verdadeiro, como por exemplo, a tese contratualista
(rousseauniana) de que a formação do Estado principiou por um contrato social e tem como
o valor dos valores morais, tal como a genealogia nietzscheana pretende, é possível
que intentou fazer “ciência da moral” e passou apenas a justificar a moral dominante,
como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com uma seriedade tensa, de fazer rir, algo
muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da
moral”4. Para Nietzsche, estes filósofos “eram mal informados e pouco curiosos a respeito
de povos, tempos e eras, não chegavam a ter em vista os verdadeiros problemas da moral –
Percebe-se assim, que uma análise que pretenda ser efetivamente científica
frente à moral implica em uma pesquisa histórica e genealógica, com vistas a um exame, a
qualquer estratégia de justificação. Isto porque, esta metodologia adotada pelos filósofos
4
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal] 186, In: KSA, vol. 5, p. 105. Tr. p. 85.
5
Ibid, 186, In: KSA, vol. 5, p. 106. Tr. p. 86.
14
dogmáticos6, que pretende ser “científica”, parece desconsiderar as questões acerca da
origem dos valores morais, pois se limita à cristalização da moral dominante, tornando
inviável qualquer manifestação contrária a essa moral. Por outro lado, o questionamento
dos fatos morais, tal como realiza Nietzsche, possibilita uma nova perspectiva que consiste
na leitura da história dos fatos passados e o surgimento dos valores morais, com a
Essa história natural da moral inicia o capítulo quinto de Para além de bem e
Moral. Trata-se aqui da conhecida distinção entre moral de senhores e a moral de escravos,
e suas múltiplas tipologias no contexto social. Nesta análise a questão central para
Nietzsche será desmistificar a moral platônico-cristã como a “moral em si”, o que implica
em solapar a verdade intuída por esta moral em seus mais diversos campos de atuação,
arte e da filosofia.
moral. Ao questionar o valor dos valores morais, Nietzsche subverte a pretensão dogmática
6
Como explica Carlos Alberto Ribeiro de Moura (2005, p. 33), no prefácio de Para além de Bem e mal,
Nietzsche censura Platão por ser o responsável pela introdução do ‘dogmatismo’ na filosofia: “O seu pior erro
teria sido um erro tipicamente dogmático: a invenção do espírito puro e do Bem em si. Para Nietzsche o
filósofo dogmático é aquele que estabelece uma determinada relação com a verdade. O ‘dogmatismo’ é a
pretensão à universalidade da verdade, e o seu oposto imediato será o ‘filósofo do futuro’”. E, como explica
Giacóia (2002, p. 10) Para além de bem e mal é um “experimento rigorosamente antiplatônico”.
7
Ibid, 186. In: KSA, vol. 5, p. 105. Tr. p. 85.
15
de que a moral dominante contém um núcleo de racionalidade e, portanto, de veracidade
absoluta, pretensão que faz com que ela afirme de maneira obstinada e inexorável: “eu sou
a moral mesma, e nada além é moral!”8. A luta da moral dominante (moral escrava) é
preservar a sua soberania; a luta de Nietzsche é mostrar que a moral de hoje, a moral de
animal de rebanho, nada mais é “do que uma espécie de moral humana, ao lado da qual,
antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais elevadas, são ou
apenas uma forma de moral humana, ao lado da qual há uma variedade existente. A moral
constante, conforme a vontade de poder11 que por um dado momento na história consegue
16
do processo civilizatório, o que implica na retomada de questões fundamentais presentes no
processo civilizatório, sem esgotar este tema. Este percurso ganha sustentação na medida
em que desempenha dupla função: por um lado, reconstrói a partir da pesquisa genealógica
nietzscheana o surgimento dos valores morais com o início do processo civilizatório e, por
outro lado, apresenta de que maneira estes valores se refletem na política moderna, em
movimento cristão”, como Nietzsche afirma no aforismo 202 de Para além de bem e mal, é
Nietzsche, para compreender com maior clareza as suas proposições acerca da política
moderna.
de natureza o homem tinha uma liberdade irrestrita, com a formação da sociedade há uma
coerção e uma coação sobre o caos pulsional do homem animal. O Estado atua como uma
Assim, se por um lado o homem passa a ser senhor de si, autônomo e responsável, já que a
17
faculdade psíquica da memória outorga-lhe poderes como a possibilidade de fazer
promessas e comprometer-se com o outro; por outro lado, o homem passa a criar valores
morais que determinam suas ações entre o bem e o mal, não podendo mais dar livre vazão
aos seus instintos, estes passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos falando aqui
os conquistadores e senhores, que com sua terrível tirania, imprimiram sua forma até que “a
dotada de uma forma”12. Deste modo, fazem parte deste primeiro capítulo algumas
filosofia nietzscheana13.
perpassa em grande medida suas obras, a saber, o poder, ou melhor, as relações de poder.
moral só foi possível porque há nas relações não apenas sociais, mas vitais, um constante
embate entre vontades de poder. Esta análise reforça os argumentos presentes no primeiro
12
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74.
13
Advertimos nosso leitor, novamente, que a maneira com que apresentamos a filosofia nietzscheana, tanto
no que se refere à gênese do vir a ser da história da moral, quanto o resgate histórico do valor dos valores
morais, foi com o intuído de elucidar as implicações das proposições de Nietzsche para a crítica às políticas
modernas, sobretudo a democracia.
18
capítulo, a saber: que a origem do Estado, para Nietzsche, não sobreveio nos termos de uma
vontade geral (tal como pensou Rousseau), tampouco com a vontade divina: “a inserção de
uma população sem normas e sem freios em uma forma estável”14 só foi possível pela
violência exercida por uma “raça de conquistadores”. Ainda, de acordo com as proposições
desta perspectiva histórico-genealógica, o Estado não surgiu para promover a paz, ele
estado natural, com a selvageria, e um enorme quantum de liberdade não foi suprimido,
condição natural do homem, presente no texto O Estado grego, tem dupla relevância em
afirmar que a condição natural do homem tende para uma guerra de todos contra todos, o
que torna similar nestes dois pensadores algumas reflexões no que se refere ao poder, como
é possível perceber na seção 2.2. Contudo, na seção 2.3 podemos observar uma distinção de
14
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324s.
Tr. p. 74.
15
Ibid, II, 17. In: KSA, vol. 5, p. 324s. Tr. p. 74.
19
Em segundo lugar, podemos perceber da leitura de O Estado grego de que
em relação à sua posição assumida no embate com a modernidade que devem ser
tanto em Para Além de Bem e Mal quanto em Para a Genealogia da Moral. Nestes termos,
ao que nos parece, o diálogo de Nietzsche com a modernidade tem a pretensão de ensaiar
“Grande política” e, por isso, não compete a Nietzsche assumir a posição conservadora
questioná-la.
perspectiva moralista que impõe a Nietzsche uma característica reacionária que não nos
parece apropriada. Isso significa que a nossa análise não se prendeu a possíveis
defesa de uma classe escrava como condição inexorável para uma cultura superior18. A
importância do texto O Estado grego está, acima de tudo, na contraposição apresentada por
para compreender que este filósofo não pretende formular uma (nova) verdade, ele está
16
Esta identificação do filósofo como a má consciência do seu tempo está presente no aforismo 212 de Para
além de bem e mal. Apresentamos aqui o aforismo para esclarecer a nossa afirmação: “Cada vez mais quer me
parecer que o filósofo, sendo por necessidade um homem do amanhã e do depois de amanhã, sempre se achou
e teve de se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora todos
esses extraordinários promovedores do homem, a que se denomina filósofos, e que raramente viram a si
mesmos como amigos da sabedoria, antes como desagradáveis tolos e perigosos pontos de interrogação –
encontraram sua tarefa, sua dura, indesejada, inescapável tarefa, mas afinal também a grandeza de sua tarefa,
em ser a má consciência do seu tempo”. In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
17
Como há pouco mencionamos, p. 8.
18
Como esclarece Giacóia no texto Friedrich Nietzsche: A “Grande Política” Fragmentos, 2002, p. 23.
20
distante de qualquer pretensão dogmática. Pretendemos sugerir que o caráter polêmico das
obras de Nietzsche, presente nas obras citadas acima, bem como nos fragmentos póstumos
qual Nietzsche inicia sem reservas sua guerra contra o dogmatismo filosófico. Ao refletir o
que bastou para construir os alicerces das absolutas construções dogmáticas, Nietzsche
que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de
palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito
estreitos, muito pessoais, demasiado humanos”. Neste trecho citado percebemos a ironia de
Nietzsche. O sentido desta afirmação, em nosso trabalho, traduz-se pela maneira com que
aforismo 257 de Para Além de Bem e Mal19. Foi nossa intenção considerar, acima de tudo,
a crítica à moral realizada por Nietzsche. Nestes termos, ao se perguntar pelo valor da
essa nova perspectiva crítica frente à modernidade faz com que os seus escritos adquiram,
19
Este aforismo é citado e analisado no capítulo 3, seção 3.3. Em poucas palavras, neste aforismo Nietzsche
opõe-se sem reservas ao igualitarismo uniforme da democracia moderna com o seu conceito de pathos da
distância: um grau de hierarquia necessário para o surgimento de estados mais elevados, raros, para a
elevação do tipo “homem".
21
além de um tom severo, contornos de um contra-discurso. Foi assim que buscamos
nietzscheanos, não é por puro capricho, mas sim com vistas a uma transvaloração dos
valores morais. Deste tema ocupa-se o terceiro e último capítulo deste trabalho, no qual
mas sim em uma ética aristocrática que pretende, sob o domínio do pathos da distância, ser
“uma raça com esfera vital própria, com um excedente de força para beleza, coragem,
cultura, maneiras, até no que há de mais espiritual; uma raça afirmadora, a quem é
20
Conferir no capítulo 3, seção 3.2, a análise do aforismo 202 de Para Além de Bem e Mal.
21
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1887, 9[153], In: KSA, vol. 12, p. 424s. Tr. p. 38.
22
dar efetividade à “grande política” será responsabilidade do indivíduo soberano,
democracia, implica em solapar o império dos valores morais (cristãos), o objetivo não é
outro senão o de criar condições para o surgimento de uma nova aristocracia do espírito,
da própria alma, a configuração de estados sempre mais elevados, mais raros, mais
remotos,[...], em resumo, a ‘auto superação do homem’, para tomar uma fórmula moral em
desprezo por si e a busca pelo amor ao próximo, da compaixão, como aparecem nas mais
compreender o vir a ser da história natural da moral, e prefere determinar-se pela tradição
cristã que consiste na conservação da moral platônico-cristã como a única moral, é, acima
homem ocidental - como bem e mal, verdade e mentira, realidade e ilusão, dever e
22
Ibid, outono de 1885 – outono de 1886, 2[13]. In: KSA, vol. 12, p. 71s. Tr. p. 33.
23
obrigação, culpa e pecado (são estes alguns exemplos) – com o objetivo de mostrar que
estes conceitos não possuem um significado permanente. Por isso, não nos parece possível
povo discrimina entre a força e as expressões de força, como se por trás do forte houvesse
um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força”23; a possibilidade do
de que todos os valores morais supremos são perspectivas que se transformam, modificam,
“Como falta de tempo para pensar e tranqüilidade no pensar, as pessoas não mais ponderam
leitor consiga perceber que as nossas reflexões acerca da democracia moderna não têm por
objetivo promover um simples julgamento entre bem e mal desta forma de governo,
tampouco buscamos fazer apologias a uma nova instituição política. Sabemos que
respeito ao preceito da igualdade entre os homens. Contudo, buscamos mostrar que o valor
23
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
24
Informamos o leitor que algumas citações dos textos de Nietzsche se repetem em diferentes seções e/ou
capítulos. Este fato justifica-se pela necessidade de explicitar por mais de uma vez o pensamento
nietzscheano. Assim, apesar de cansativa a repetição (e até mesmo excessiva), esta foi a forma que
encontramos para manter a integridade dos textos nietzscheanos, bem como para tornar coerente as nossas
reflexões.
25
NIETZSCHE. Menschliches Allzumenschliches [Humano, demasiado humano], 282. In: KSA, vol. 2, p.
231. Tr. p. 191.
24
da democracia é apenas mais um artigo de “fé”, que não possui uma verdade em si, e
justamente por isso ela pode e deve ser repensada. No nosso caso, esta reflexão consiste em
democráticos. Uma perspectiva que pretende, antes de tudo, suscitar tensão, conflito, ou
25
CAPÍTULO 1
escrava”. Assim, a investigação acerca do valor dos valores morais faz Nietzsche constatar
que o homem moderno está “doente”, e que esta doença é proveniente dos valores da
26
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 11. In: KSA, vol. 5, p. 312-
313. Tr. p. 65.
26
“rebaixamento” da vida. Exemplo de grande importância são os valores morais intrínsecos
maioria”28 e o bem estar geral. Assim, Para Genealogia da Moral, é um texto de caminhos
nebulosos, provocativo, desafiador e que, ao final, “uma nova verdade se faz visível em
meio a espessas nuvens29”. Para cada uma das três dissertações30 Nietzsche, em Ecce
Homo, apresenta “uma verdade nova”, sendo de maior relevância (neste estudo) a verdade
da segunda dissertação, na qual a crueldade é “pela primeira vez revelada como um dos
procedimento genealógico que diz respeito às formações psíquicas e sociais do homem. Isto
porque, as três dissertações são pesquisas genealógicas em que Nietzsche reflete de que
27
Uma análise pormenorizada da vontade de poder será desenvolvida na seção 1.2.
28
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 228, In: KSA: vol.5, p. 164. Tr. p. 134.
29
NIETZSCHE, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
30
“A verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo do espírito
do ressentimento, não, como se crê, do ‘espírito’ – um anti-movimento em sua essência, a grande revolta
contra a dominação dos valores nobres. A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a mesma
não é, como se crê, ‘a voz de Deus no homem’ – é o instinto de crueldade que se volta para trás, quando já
não pode se descarregar para fora. A crueldade pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e
indeléveis substratos da cultura. A terceira dissertação dá resposta à questão de onde procede o tremendo
poder do ideal ascético, do ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal nocivo par excellence, uma vontade
de fim, um ideal de décadence. Resposta: não porque Deus atue por trás dos sacerdotes, mas sim faute de
mieux [por falta de coisa melhor] – porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrentes. ‘Pois o
homem preferirá ainda querer o nada a nada querer’...Sobretudo faltava um contra-ideal – até Zaratustra. Fui
compreendido. Três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma transvaloração de todos os
valores. – Este livro contém a primeira psicologia do sacerdote”. Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p.
352-353. Tr. p. 138-139.
31
Nietzsche, Ecce Homo, In: KSA, vol. 6, p. 352. Tr. p. 138.
32
Importante esclarecer o significado na filosofia de Nietzsche os termos origem (Ursprung) e criação
(Erfindung). Foucault explica, no texto Verdade e as Formas Jurídicas (1996, p. 14), que “quando fala de
invenção, Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção, a palavra origem. Quando diz
invenção é para não dizer origem; quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung”. Assim, a religião para
Nietzsche não tem origem (Ursprung), ela foi inventada, criada (Erfindung); bem como a poesia, a moral e o
conhecimento. Portanto, a palavra surgimento deve ser compreendida como criação. Este assunto não é de
27
limites deste passado moral para o futuro do homem ocidental. Com relação à segunda
crueldade e passam a se dirigir contra o próprio homem: estamos nos referindo aqui
foi este processo que fez dele um animal interessante. Assim, o procedimento histórico-
genealógico acerca do valor dos valores morais tem como propósito reconstruir o vir a ser
humana, que desconsiderava o tempo e a história, é solapada por uma nova perspectiva, de
caráter histórico e crítico: a pesquisa genealógica nietzscheana não admite a moral como
revisão histórica dos valores morais de maneira integral, reveladora de uma multiplicidade
consciência”.
valores morais como unidade e inerentes à natureza humana, apresenta Nietzsche uma nova
perspectiva, a saber, dualidade e jogos de poder. Com uma escrita fulminante e muitas
vezes irônica, realiza o filósofo alemão uma nova leitura da procedência dos valores
fácil explicação, encontramos em Nietzsche dois empregos para a palavra Usprung, como explica Foucault
em Nietzsche, a genealogia e a história (1996, p. 16).
33
Com relação às forças impulsivas, iremos elaborar este assunto ao longo do texto, na seção 1.2.
28
morais, não por mero capricho em desacreditar outras correntes filosóficas, mas com o
objetivo de apresentar uma nova realidade possível acerca dos valores morais, qual seja, de
que a moral não se manifeste como um recurso decadente e narcótico, mas que seja um
atributo capaz de tornar possível a transvaloração dos valores, em outras palavras, reverter
Nietzsche mostra que ao longo do tempo a moral cristã consolidou uma forma de negação
da própria vida. Cumpre esclarecer, portanto, de que maneira a moral cristã nega a vida, e
para tanto, nos limitaremos a um exemplo condizente com este trabalho: a política
estranheza, já que a democracia é concebida (talvez não em sua totalidade, mas em seus
princípios) como uma política “amadurecida” pois tende ao exercício pleno das políticas
públicas sociais e tem como meta o bem comum36. Ao questionarmos os valores morais
que não pretende instituir uma verdade incondicional, mas sim suscitar tensão, conflito e,
por isso mesmo, uma análise acerca do valor dos valores morais em questão. O objetivo
34
Como explica Giacóia no texto Platão e a transvalorização de todos os valores, In: Sonhos e Pesadelos da
Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 31-32.
35
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para Além de bem e mal], 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p.
102.
36
Maria Rita Kehl desenvolve uma pertinente análise a respeito da democracia moderna, sobretudo no que se
refere à igualdade entre os homens, como uma política pública constituída a partir do ressentimento, uma vez
que: “o ressentimento social teria sua origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante
de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade”.
Kehl, Maria Rita. Políticas do Ressentimento. In: Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. –
(Coleção clínica psicanalítica/ dirigida por Flávio Carvalho Ferraz).
29
dos escritos de Nietzsche não é prescrever princípios, mas proporcionar a seus leitores uma
“liberdade intelectual” (se for possível assim denominar), excluindo qualquer viés
coisa que eu prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade. Eu não construo novos ídolos; os
velhos que aprendam o que significa ter pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para
(nova) verdade, mas romper com a estabilidade dos valores morais, questionando,
primeiramente, a origem do valor dos valores morais. Não nos parece exagero afirmar que
ideais e, por conseguinte, calçar “pés de barro” que nos permitam desenvolver a capacidade
de arriscar e, portanto, refletir de que maneira, por exemplo, a democracia moderna pode
ser compreendida como a conservação de alguns ideais tão antigos quanto a moral
perspectiva são estes ideais formas de anestesiar, amansar e domar, são procedimentos que
não tem por fim dividir o poder, mas que almeja conquistar o controle sobre (e da) a vida,
37
Nietzsche adverte no texto Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação: “O leitor do qual
espero alguma coisa deve ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem pressa. Não deve intrometer-se, nem
trazer para a leitura a sua ‘formação’. Por fim, não pode esperar na conclusão, como um tipo de resultado,
novos tabelamentos”. NIETZSCHE, F. In: Cinco prefácios para Cinco Livros não Escritos. Tradução e
prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996, p. 33.
38
Ecce Homo, Prólogo, 2, In: KSA, vol. 6, pg. 257. Tr. p. 40.
39
Esclarece Giacóia: “O desenvolvimento do movimento democrático em direção a formas de igualitarismo
cada vez mais radicais, como o socialismo e o anarquismo, é interpretado por Nietzsche como sintoma de que
eles são ‘unânimes na fundamental e instintiva hostilidade contra toda e qualquer outra forma de sociedade
que não a do ‘rebanho autônomo’’. É nessa imbricação entre ideologia do igualitarismo uniforme e sua
atestação político-religiosa pela moral cristã que se esclarece o significado da figura nietzschiana do ‘último
homem’”. GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2002, p.49. (Passo-a-passo).
30
possamos compreender de que maneira, mesmo sendo aparentemente tão avessa à
violência, é esta sociedade moderna fruto da violência e permeada por ela, apesar da moral
Se, afirmamos anteriormente que para Nietzsche tanto a cultura quanto a moral
Estado insere-se também neste desenrolar histórico. Contudo, anterior a este processo
com a natureza.
passou o homem. Isto significa que no estado de natureza não havia um contexto moral a
o surgimento do homem moral, apto a prever o futuro, fazer promessas, enfim, obrigar-se
com os demais.
40
Continua Nietzsche nesta citação de Ecce Homo: “A realidade foi despojada de seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O ‘mundo verdadeiro’ e o ‘mundo aparente’ – leia-
se: o mundo forjado e a realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela
a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos – a ponto de adorar os valores
inversos aos únicos que lhe garantiriam o florescimento, o futuro, o elevado direito ao futuro”. Ecce Homo,
In: KSA, vol.6, pg. 257. Tr. p. 40.
41
Trataremos do tema “estado de natureza” na filosofia nietzscheana no segundo capítulo deste trabalho,
seção 2.1.
31
No texto Para A Genealogia da Moral Nietzsche esclarece de que maneira as
civilizatório. Neste cenário é possível perceber, por exemplo, como Nietzsche apresenta a
gênio42. E, se há uma relação constante de tensão entre forças há, inevitavelmente, uma
força, por menor que seja sua duração, mais forte. Há que se observar que nesta perspectiva
democracia voltada para a igualdade de direitos. Isso nos reporta justamente ao pensamento
improcedente (para nossa análise) do homem ocidental que entende que a igualdade deve
democracia, e isso pretendemos desenvolver ao longo do nosso texto, não parece estar no
que Nietzsche entende como jogos de poder, mas sim na possibilidade de fazer eqüidade
por jogos de poder, em contraposição tanto às teorias que professam que o Estado, como
tudo que há na terra, tem uma origem divina, quanto às teorias filosóficas que explicam a
42
Este assunto será melhor analisado ao longo do texto, especificamente na seção 2.1.
43
Acerca desta questão, a pesquisa genealógica de Nietzsche em oposição à investigação tradicional da
origem, Foucault faz a seguinte análise: “Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas
ocasiões, a pesquisa de origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para
recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida
em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal
origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente
32
atentamente observada; o termo origem (Ursprung), implica em uma constatação muitas
buscar a origem para os eventos. Isto porque, a origem compreendida como unidade
transfiguração de forças que dão forma a multiplicidades e não a unidade. Também, a partir
que é justificada a partir não da origem, mas das modificações inerentes ao devir histórico.
adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos
os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. Ora, se o
genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende?
Que atrás das coisas há algo ‘inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que
elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram
estranhas”. FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Tradução
Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1996, p. 16-17.
33
A respeito do surgimento e formação do Estado, reportamo-nos ao parágrafo
[..] que o mais antigo “Estado”, em conseqüência, apareceu como uma terrível
tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prossegui o seu
trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada
e maleável, mas também adotada de uma forma. [...]. Deste modo começa a
existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o
fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens, quem por natureza é
“senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem a ver com contratos! Tais
seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem motivo, razão,
consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira demasiado terrível,
repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer odiados. Sua obra
consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais
involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles aparecem,
uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções foram
delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não tenha
antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é culpa,
responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por
aquele tremendo egoísmo de artista, que tem olhar de bronze, e já se crê
eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho.44
“senhores” também fez surgir “a má consciência”, “neles não nasceu a má consciência, isto
é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido46”, pois foi “dos seus golpes de
mundo. O “instinto de liberdade” foi tornado “latente à força” por esses “artistas”, “esse
44
Nietzsche. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324-325.
Tr. p. 74-75.
45
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 74.
46
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.
34
consciência47.” Por isso afirmamos que a atuação desses “senhores” rompeu com a natureza
entendimento das estruturas sociais tal como conhecemos. Nietzsche explica o Estado como
uma forma de controle sobre os instintos do homem, uma força capaz de dar forma e
exploração dos mais fortes sobre os mais fracos. A despeito da violência, é esta dominação
“ajustamento” dos instintos naturais aos novos padrões sociais, a saber, de controle,
47
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.
48
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324. Tr. p. 74-75.
49
Esclarece Giacóia que: “Por sua vez, a eticidade dos costumes está vinculada à gênese das formas
rudimentares de Estado. Nela estão descritos o violento e bárbaro trabalho de ajustamento do animal
instintivo à rigidez da organização social, sua captura e modelagem sob a pressão irresistível da camisa-de-
35
Se, segundo o mesmo filósofo, nada existe de maneira a priori, como marca da
providência divina, então, tudo é construção, vir a ser; a moral é a predição máxima desta
uma tirania contra a natureza, contra os instintos: é ela a força que dá forma, é o cárcere
contra a natureza e para onde ficam aprisionados os instintos. Contudo, como não há na
filosofia de Nietzsche unidade, estabilidade, essa mesma força que se apresenta como
“tirania contra a natureza”, não apenas aprisiona, mas também desenvolve atividades que
Mas o fato curioso é que tudo o que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo
e segurança magistral sobre a terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou
no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas
graças à “tirania de tais leis arbitrárias”; e, com toda seriedade, não é pequena a
probabilidade de que justamente isso seja “natureza” e “natural”.51
comportamentos que ao mesmo tempo em que denotam uma certa liberdade são
moral ser uma “demorada coerção”, “a coerção métrica, a tirania da rima e do ritmo53”, que
fez com que se obedecesse “por muito tempo e numa direção: daí surge com o tempo, e
sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte,
força sociedade e da paz. No contexto dessa argumentação, a hipótese do contrato-social não pode dar conta
da origem da sociedade: esta emerge não do acordo de vontades entre idealizados sujeitos de iguais direitos,
mas da conquista, das relações de poder”.
Giacóia Júnior, Oswaldo. Para a Genealogia da Moral/ Nietzsche. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior.
São Paulo: Scipione, 2001- (Série Reencontro Filosofia), p. 43.
50
Termo utilizado por Oswaldo Giacóia Júnior, In: Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a
Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 52.
51
Nietzsche. Jenseits von Gut und Böse [Para Além de Bem e Mal], 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 88.
52
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 108. Tr. p. 87.
53
Ibid, 188, In: KSA: vol. 5, p. 108. Tr. p. 87.
36
música, dança, razão, espiritualidade – alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e
divina”54.
Cabe observar, por conseguinte, que a moral é uma disciplina sobre a força
instintiva: “tudo o que há de violento, arbitrário, duro, terrível e anti-racional nisso revelou-
se como meio através do qual o espírito europeu viu disciplinada a sua força, sua inexorável
tem sua criação na atuação de uma força que imprime sua forma sobre forças mais fracas.
A resistência que pode haver (e que faz o “combate” entre vontade de poder) não parece ser
a de uma força que visa à harmonia, mas sim uma nova força que também tem como
objetivo imprimir sua forma. Nesse processo, como em todos os eventos históricos, não há
dado natural, providência divina, tudo é vir-a-ser. Para compreender a luta entre forças
atuante na “matéria prima humana e semi-animal”, que precisou de regras e formas para
tese aqui desenvolvida, em que Nietzsche afirma que a elevação “do tipo homem” foi obra
54
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 109. Tr. p. 88.
55
Ibid, 188. In: KSA, vol. 5, p. 109. Tr. p. 88.
37
talvez, ou sobre culturas antigas e murchas, nas quais a derradeira vitalidade
ainda brilhava em reluzentes artifícios de espírito e corrupção. A casta nobre
sempre foi, no início, a casta de bárbaros: sua preponderância não estava
primariamente na força física, mas na psíquica – eram os homens mais inteiros (o
que em qualquer nível significa também “as bestas mais inteiras”)56.
55), que a referência de Nietzsche aos “bárbaros”, “encontra explicação nos modelos de
continua Giacóia, “esse argumento tem importância decisiva, porque permite desconstruir a
formações sociais que “são refratárias à idéia de contratos, de responsabilidade pessoal ou,
Estado, além de refutar a hipótese de um Estado erigido pela vontade dos contratantes, de
maneira pacífica (tal como pensou Rousseau), tornou possível a criação de um “tipo
homem”, resultado da força modeladora atuante sobre a forma humana semi-animal. Tal
nomeação, bem como às demais determinações dadas por Nietzsche a outras figuras, como
“bárbaro”, “nobre”, “aristocrático”, “ave de rapina”, “besta loura”, não são “invariantes
56
Ibid, 257, In: KSA, vol. 5, p. 205- 206. Tr. p. 169-170.
57
Esta explicação, bem como uma tradução do volume 14 de Kritische Studienausgabe, em que os editores
fazem um comentário referente ao aforismo 257 de Para além de bem e mal, estão na obra de Oswaldo
Giacóia Júnior, Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade, p. 54-55.
38
(GIACÓIA, 2005, p. 56). Esta reflexão é de suma importância, pois se tais figuras
uma característica natural, tal fato não é compatível com uma filosofia do vir a ser, cujo
apenas se opõe aos estudos racionalistas e contratualistas, mas, sobretudo, aponta um novo
sentido histórico de reconstrução dos valores morais. Talvez não seja exagero afirmar como
olhar mais abrangente para as mudanças no significado da própria história, como, por
exemplo, pensar que para a civilização existir foi preciso exercer uma força “tirânica” sobre
a natureza, inclusive sobre o “animal homem”; processo pelo qual passou o homem animal,
sem memória, sem lembrança do passado e perspectiva para o futuro, até a construção do
homem que responde por si, autônomo.Esta apreciação não pretende nem ao menos ser um
revelar a importância na filosofia de Nietzsche da política, uma vez que, sem a figura do
animal político, capaz de obrigar-se com o outro não haveria civilização. Também, é esta
pesquisa genealógica nietzscheana que torna possível uma análise crítica do valor dos
58
Iremos esclarecer o perspectivismo, na filosofia de Nietzsche, ao longo do texto, na seção 1.2.
39
valores morais59, por interpretar a vida como uma multiplicidade de forças, movimento que
presente trabalho.
mas uma leitura que consista na “arte da interpretação”60, como o próprio filósofo adverte
no Prólogo de Genealogia da Moral: “É certo que, a praticar desse modo a leitura como
arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido – e que
exigirá tempo, até que minhas obras sejam ‘legíveis’ -, para o qual é imprescindível ser
quase uma vaca, e não um ‘homem moderno’: o ruminar61. Advertidos do rigor filosófico
59
Afirma Nietzsche, no Prólogo de Genealogia da Moral: “[...] – por fim, uma nova exigência se faz ouvir.
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como
conseqüência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi
desejado”. NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral, Prólogo, 6. In: KSA, vol. 5, p. 252. Tr. p. 12.
60
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a genealogia da moral], Prólogo, 8. In: KSA, vol. 5, p.
255. Tr. p. 14.
61
Ibid, Prólogo, 8. In: KSA, vol. 5, p. 256. Tr. p. 14-15.
40
respeito de um tema pertinente ao desenvolvimento dos nossos estudos acerca do Estado e
herdeira dos ideais cristãos, pois neste texto, escrito após Zaratustra e Para além de bem e
mal, Nietzsche apresenta com rigor e sagacidade filosófica de que maneira o ideal ascético
indispensável para uma reflexão da modernidade política, qual seja, a vontade de poder.
Como se sabe, o conceito de vontade de poder surgiu pela primeira vez em Zaratustra, e
possibilitou ao leitor de Nietzsche compreender de maneira mais coesa a sua filosofia, pois
é este um dos grandes temas de sua obra. No que diz respeito à filosofia política de
democracia moderna como uma política decadente. Isto porque, a investigação acerca do
conceito da vontade de poder aproxima o leitor de Nietzsche das reflexões que esse filósofo
apresenta da vida, ou melhor, das forças presentes ao longo da história, tirânica à natureza e
que, apesar desta dinâmica, não se justifica e nem necessita de artifícios metafísicos. A
62
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr. p. 75.
41
força da vida63 é, na filosofia de Nietzsche, a vontade de poder64, nas palavras do filósofo:
“minha fórmula é esta: a vida é vontade de poder”65. Uma força por si só criadora, que não
gerar a vida. Assim, a filosofia de Nietzsche tende a se explicar, sobretudo, pela vontade de
poder.
poder não aspira por nenhuma finalidade determinada, apenas pela superação de um estado
por outro mais elevado. É uma força que busca a todo o momento uma nova resistência que
poder e nada mais, pode ser, a princípio, uma contradição para o “homem moderno”, o
Nietzsche não caminha ao lado das crenças do homem do conhecimento - que para
63
Como esclarece Müller-Lauter, no texto A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche (1997, p. 55):
“Nietzsche se separa da ‘vontade de vida’ de Schopenhauer, como forma fundamental da vontade”. Para
Nietzsche: ‘a vida é um mero caso particular da vontade de poder, - é totalmente arbitrário afirmar que tudo
anseia por passar para essa forma de vontade de poder’”. Fragmento póstumo, primavera de 1888, 14 [121];
KSA: vol. 13, p. 300.
64
Concordamos com a explicação de Giacóia de que a melhor tradução do termo Der Wille zur Macht é
vontade de poder: “Optei por vontade de poder, não pelo corrente termo vontade de potência, para traduzir o
conceito nietzschiano Der Wille zur Macht. A tradução tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o
conceito demasiadamente no registro da filosofia política, mas apresenta também a vantagem de evitar a
ressonância e a evocação da distinção metafísica entre ato e potência – o que certamente contraria a intenção
de Nietzsche -, assim como de manter presente um dos mais fundamentais aspectos de seu pensamento, qual
seja, uma concepção de força e poder se esgotando, sem resíduos, a cada momento de sua efetivação. Nos
termos de para Além de Bem e Mal, aforismo nº 22, todo poder (jede Macht) extrai, a todo instante, sua última
conseqüência”. Esta explicação está no texto:
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução de Oswaldo
Giacóia. São Paulo: Annablume, 1997, p. 51-52
65
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 2 [190], In: KSA, vol. 12, p. 161. Tr. de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura, p. 198. Contudo, optamos pela tradução do termo Der Wille zur Macht por vontade de poder, e não
vontade de potência, como está na tradução.
66
“para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’”. NIETZSCHE. Genealogia da Moral, Prólogo, 1.
Tr. p. 8.
42
possibilidade do conhecimento do homem moderno são sociais, econômicas, políticas, ou
surge apenas com o processo civilizatório, é uma necessidade social, uma vez que o homem
aforismo dezessete de Genealogia da Moral, e passa a ser o homem que se obriga com o
Assim, quando o homem deixa de viver em uma guerra de todos contra todos69,
isto é, no estado de natureza, são criados novos padrões e valores morais necessários para
adequar e suprir as novas necessidades da vida social. A partir deste processo forma-se a
67
Pertinente a este assunto é o texto Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra Moral, de 1873, em que
Nietzsche afirma: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de
sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente um minuto. Passados
poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. –Assim poderia
alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão
fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidades e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve
eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido”. Tr. Rubens
Rodrigues Torres Filhos, p. 31. Há que se observar que anterior a este texto, no texto Sobre o Pathos da
Verdade, há um prelúdio ao texto desenvolvido em Sobre verdade e Mentira no Sentido Extra Moral, no qual
afirma o filósofo: “Em algum canto perdido do universo que se expande no brilho de incontáveis sistemas
solares surgiu, certa vez, um astro em que animais espertos inventaram o conhecimento. Esse foi o minuto
mais arrogante e mais mentiroso da história do mundo, mas não passou de um minuto. Após uns poucos
suspiros de natureza, o astro congelou e os animais espertos tiveram de morrer. Foi bem a tempo: pois, se eles
vangloriavam-se por terem conhecido muito, concluíram por fim, para sua grande decepção, que todos os seus
conhecimentos eram falsos; morreram e regeneraram, ao morrer, a verdade. Esse foi o modo de ser de tais
animais desesperados que tinham inventado o conhecimento”. Tr. p. 28-29.
68
Trataremos do tema memória, promessa e consciência na seção seguinte deste trabalho.
69
Como afirma Nietzsche no texto O Estado grego (2000, p. 49), aproximando-se muito da leitura hobbesiana
do estado de natureza: “Sem Estado, no natural bellum omnium contra omnes, ...”. Veremos adiante uma
análise mais pormenorizada deste texto, especificamente na seção 2.1.
43
conjuntamente. O ser humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é
totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante duplo caráter70.
racional, fez surgir o Estado. Não nos parece apropriado avançar o estudo sem antes tecer
algumas considerações acerca do termo instinto (Triebe). Para tanto, Assoun (1980, p 95),
no texto Freud e Nietzsche (1980), esclarece que o uso inaugural do termo Triebe71, por
Nietzsche, formula algumas idéias que acompanharão toda a sua filosofia, a saber: (1)“em
[...], existe um instinto por atividade humana, um pouco como – na crença animista – havia
um espírito em cada objeto”; (3) “toda atividade unitária, a começar por aquela filologia
conceito para o instinto. Desta forma, salientamos a importância de um estudo restrito deste
tema (instinto), que tem sua relevância na análise do surgimento Estado e, por conseguinte,
70
NIETZSCHE, F. A disputa de Homero. In: Cinco Prefácios para cinco livros não escritos. Tradução e
prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1996, p. 65.
71
Afirma Assoun (1980, p. 94-95) que “o primeiro uso oficial do termo instinto no discurso nietzschiano” foi
apontado “na aula inaugural em Basiléia sobre Homero e a Filologia Clássica, em 1869”.
72
Sobre este tema consultar: ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e Nietzsche: semelhanças e dessemelhanças.
Tradução Marília Lúcia Pereira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980, p. 131.
44
Estado o processo de civilização representa, na pesquisa genealógica nietzscheana, a
satisfação dos impulsos. O Estado atua em seu benefício: a barbárie do Estado consiste em
que não possuem finalidade e utilidade previstas pelos desígnios estatais. Assim, afirma
Nietzsche:
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto
é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado,
como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis com que a organização do estado se protegia
dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses
bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e
errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo73.
estado de natureza, que pode ser definido como pré-moral, o homem não era apto a uma
reflexão de seus atos a partir das categorias morais de bem e de mal e, por isso, as “bestas
apenas tornaram livre sua força instintiva, guerreira e violenta, capaz de dar forma ao que
era anárquico.
afirmação de Nietzsche de que esses “organizadores natos”, criadores do Estado, não sabem
73
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral] II, 16, vol. 5, p. 321. Tr. p. 73.
45
as hipóteses da filosofia contratualista a respeito da gênese do Estado, cuja origem é
afirma:
Deste modo começa a existir o “Estado” na terra: penso haver-se acabado aquele
sentimentalismo que o fazia começar com um “contrato”. Quem pode dar ordens,
quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem haver
com contratos! Tais seres são imprevisíveis, eles vêm como o destino, sem
motivo, razão, consideração, pretexto, eles surgem como o raio, de maneira
demasiado terrível, repentina, persuasiva, demasiado “outra”, para serem sequer
odiados. Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles
são os mais involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles
aparecem, uma estrutura de domínio que vive, na qual as partes e as funções
foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual não encontra lugar o que não
tenha antes recebido um “sentido” em relação ao todo. Eles não sabem o que é
culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos
por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê
eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho75.
Como afirmamos anteriormente, a atuação de tais “seres imprevisíveis” não foi racional,
portanto, tampouco consciente. Não nos parece plausível exigir um agir consciente de um
também as nossas reflexões no que diz respeito às forças inerentes à vida, forças que criam
vida e não são decorrentes da razão e nem de contratos, é a vontade de poder que em algum
momento da história deu forma ao que era anárquico, imprimindo sua força, sem “razão”,
74
Sabemos que este aforismo já foi citado anteriormente, mas a repetição, apesar de cansativa, tem a
vantagem de ajudar nas análises a serem feitas e situar o leitor no texto de Nietzsche.
75
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral] II, 17, In: KSA: vol. 5, p. 324-
325. Tr. p. 75.
76
Esta análise terá grande importância complementar às análises do capítulo 3, seção 3.1, na qual será
possível compreender de que maneira o homem consciente, e não mais o homem do período pré-moral, será
capaz de instituir, ao invés da “pequena política”, a “Grande política”.
46
“consideração” ou “pretexto”, ou seja, sem relação de causa e efeito. É uma força violenta
que surge “como o raio”, a força de “tais seres” consiste em “instintivamente criar formas”.
preceitos e valores morais. Assim, a hipótese de Nietzsche acerca da gênese do Estado tem
o efeito de: (1) colocar fim à idéia de um Estado erigido pelo contrato, eliminando a
possibilidade do Estado ser uma de uma ato racional, é o Estado uma criação de
“inconscientes artistas”; (2) valorizar o todo em detrimento de uma teoria atomística; (3)
de vida, de uma força demolidora e fabricante, uma manifestação de vida que dissipa, não
surge de um cálculo racional dos possíveis prejuízos ou benefícios sociais, porque não é
uma força racional, é “instintiva” e “inconsciente”. Assim, o Estado surgiu sem finalidade,
garantia da segurança; o Estado não surgiu com estes atributos, são eles construções ao
longo da história. Daí a afirmação de Nietzsche de que não foram esses “inconscientes
artistas” que fizeram surgir a má consciência, “mas sem eles ela não teria nascido”, pois
estes artistas romperam com o estado natural, deram forma à primeira organização social, e
assim um “enorme quantum de liberdade” foi tornado latente, e “esse instinto de liberdade
47
íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus
começos a má consciência77”.
Nietzsche acerca do agir, que para o filósofo a força é uma ação que se extingue a cada
momento da sua efetivação, sem que seja possível estabelecer uma relação de causa e
afirma:
Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação,
operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo
discrimina entre a força e as expressões de força, como se por trás do forte
houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força.
Mas não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do
devir; o “agente” é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo78.
acontecimento como causa e depois como seu efeito79”. Por isso, “não é de espantar que os
afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança, tirem proveito dessa crença, e no
fundo não sustentem com fervor maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser
fraco, a ave de rapina livre para ser ovelha”80. É este pensamento do homem fraco que faz
com que ele adquira “o direito de imputar à ave de rapina o fato de ser o que é”81, na
qualidade de agente livre, “indiferente e livre para escolher”. É esta imputação ao agir
77
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 325. Tr.
p. 75.
78
Ibid, I, 13. In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr. p. 36.
79
Ibid, I, 13. In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr. p. 36.
80
Ibid, I, 13, In: KSA: vol, 5, p. 280. Tr. p. 36-37.
81
Ibid, I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.
48
humano procedente da moral escrava, dos ideais ascéticos, da qual o homem moderno é
revolta da moral escrava82, que, com sua “vingativa astúcia” preferem a posição de que
“’nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não
escolher passa a ser, na realidade, um artigo de fé, na qual os fracos e oprimidos enganam
“a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-
louras” é “sem consciência ou sentimento86”, é uma raça reconhecida por “sua indiferença e
seu desprezo por segurança, corpo, vida, bem-estar, sua terrível jovialidade e intensidade do
prazer no destruir, nas volúpias da vitória e da crueldade87”, mas que, não obstante à sua
fúria, foi esta raça que deu início ao processo civilizatório. Todavia, foi este um momento
82
Estamos nos referindo à célebre distinção nietzscheana da “moral escrava” e da “moral aristocrática”. A
maneira escrava de instituir valores se caracteriza por um procedimento inverso àquele empregado pela moral
dos senhores. “entre os dominados, a negatividade é princípio fundador. Para a moral dos escravos , ‘Bom’
significa o contrário de ‘Bom’ na moral aristocrática, ou seja, o conceito denota todas as todas as qualidades
que, do ponto de vista desta última, identificavam os ‘maus’, no sentido de ruins, de baixa qualidade, privados
de excelência. Por outro lado, o termo ‘Mau’, da perspectiva da moral escrava, recobre o conjunto das
virtudes nobres, particularmente os traços agressivos e dominadores dos guerreiros, sua atividade e sua força.
Por essa razão, do ponto de vista da moral escrava o significado principal do conceito ‘Mau’ é formado por
malvado, em referência ao tipo que fere, ataca, domina, violenta, subjuga”. GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo.
Para a Genealogia da Moral/ Nietzsche. Adaptação de Oswaldo Giacóia Júnior. São Paulo: Scipione, 2001,
p.27-28.
83
NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral [Para a GenealogiaMoral] I, 13, In: KSA: vol. 5, p. 280. Tr. p.
37.
84
Ibid, I, 13, In: KSA: vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.
85
Ibid, I, 13, In: KSA: Vol. 5, p. 281. Tr. p. 37
86
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 276. Tr. p. 33.
87
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 276. Tr. p. 33.
49
mais forte imprimia sua força sobre os mais fracos, sem a pretensão de causar dor ou
instintos, inclusive dos instintos das “bestas louras”, que tiveram seu caos impulsional
contido pelo costume, pelas regras e pela vigilância. Mas, não apenas estes instintos
naturais tiveram que ser amansados, como eles tiveram que se igualar aos valores de uma
“finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres89”. Foi esta uma grande “conquista”
dos homens fracos para o “avanço” do processo civilizatório, qual seja, não há mais temor
ao homem; mas, afirma Nietzsche, ainda “sofremos do homem, [...], Não o temor; mas sim
não tenha por objetivo equalizar vontades de poder diametralmente opostas. E o caminho
para esta superação seria uma educação política aristocrática em detrimento aos valores
morais escravos91. A doença do homem moderno, seu cansaço perante a vida, seu
esgotamento, justifica-se pelo fato de que não há mais o que temer; e não há mais o que
temer porque os valores morais do homem moderno são determinados pelos ideais
democráticos (cristãos) que tem por objetivo garantir o bem estar, a felicidade, a paz e o
bem comum. Mas, para uma filosofia que entende a vida como força, vontade de poder,
88
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 33.
89
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 34.
90
Ibid, I, 11, In: KSA, vol. 5, p. 277. Tr. p. 34.
91
A ética aristocrática é afirmativa, é o resultado de um sim a si mesmo, como veremos no capítulo 3.
50
“exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um
A maneira afirmativa das forças se expressarem, sem que estejam com isso
afirmando os ideais negativos da moral escrava, é através da arte (da criatividade artística),
e não da ciência moderna: “De outro modo nos desviamos da vida. O movimento instintivo
ilusão, cria formas e fatos que não (necessariamente) são vivenciados pelos sentidos. A arte
valores. Já a ciência não é uma forma de expressão artística, uma vez que seu objetivo não
Nietzsche também reconhece no agir humano um acaso que implica, por sua
vez, em priorizar o todo em detrimento das partes. Em outras palavras, para Nietzsche, “a
preciso que o homem pense ser livre, pois este é o único caminho para culpá-lo por seus
51
tendem exclusivamente para a sua autoconservação, e que considera como sinônimo de
dos valores escravos, é a transformação do tipo forte em tipo fraco, é a assimilação dos
fortes aos valores das forças reativas. Nestes termos é possível compreender de que maneira
Nietzsche:
A observação inexata que nos é comum, toma um grupo de fenômenos por uma
unidade e a denomina fato: entre ele e outro fato, apresenta-nos um espaço vazio,
isola cada ato. Mas em realidade o conjunto de nossa atividade e de nosso
conhecimento não é uma série de fatos e de espaços intermediários vazios, e sim
uma corrente contínua. Unicamente, a crença no livre-arbítrio é incompatível com
a concepção de uma corrente contínua, homogênea, indivisa e indivisível: porque
supõe que toda a ação particular é isolada e indivisível; é uma atomística no
domínio do querer e do saber. – (1) – Do mesmo modo que com os caracteres que
compreendemos inexatamente (ungenau), procedemos com os fatos: falamos de
caracteres idênticos, de fatos idênticos: e nem um, nem outro existe. E enfim
elogiamos ou lastimamos unicamente sob a ação da falsa idéia pela qual há fatos
idênticos, e uma ordem gradual de gêneros, de fatos a qual responde a uma
graduada de valor: e assim é que isolamos, não apensa o fato particular, como
também a seu turno os grupos de fatos sedicentes idênticos (atos de bondade, atos
de maldade, de piedade, de inveja, etc.) uns como outros erradamente. A palavra
e a idéia, são a mais visível da causas que nos fazem crer neste isolamento de
grupos de ações; não nos servimos delas apenas para designar as cousas, senão
que também cremos originariamente que por elas lhes apreendemos a essência.
As palavras e as idéias nos induzem, ainda hoje, a representar-nos as cousas
como mais simples do que são, separadas umas das outras, indivisíveis,
possuindo cada qual uma existência em si e por si. Existe, oculta na linguagem,
uma mitologia filosófica que reaparece a cada instante, quaisquer que sejam as
precauções que se tomem. A crença no livre arbítrio, isto é, a crença nos fatos
idênticos e nos fatos isolados, - há na linguagem um apóstolo e um representante
perpétuo.95
precisão em cada caso como se produz a ação humana96”, e em cada ação particular o
homem sente-se apto a afirmar: “eu sei o que quero, o que fiz, sou livre e responsável por
isso, torno o outro responsável, posso dar o nome de todas as possibilidades morais e todos
95
Ibid, 11, In: KSA: vol. 2, p. 546-547. Tr. p. 25-26.
96
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 116, In: KSA, vol. 3, p. 108. Tr. p. 88.
52
os movimentos interior que precedem um ato’”97. Este raciocínio faz o homem acreditar
que compreende a si mesmo e o outro; assim até agora a humanidade pensou: “’Uma ação é
aquilo que nos parece ser’”98. Este processo de humanização está predeterminado pelos
valores morais escravos, pela fé de que tais valores são a verdade, e que o agir está fixado
conforme ao que o homem entende por regularidade da vida. Contudo, é esta regularidade
acreditar que há um fatalismo nas ações99. A moral escrava serviu para fixar padrões, em
uma relação de causa e efeito, assim, de acordo com essa moral “os juízos ‘bom’ e ‘mau’
apropriado ao fim’; segundo ela, o que chamamos de bom é aquilo que conserva a espécie,
o que chamamos de mau, aquilo que a prejudica”100, contudo, “os maus impulsos” também
são tão indispensáveis e conservadores da espécie quanto os bons, “apenas é diferente a sua
Existe, na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos novamente, com toda a
nossa liberdade, e por mais que tenhamos negado ao belo caos da existência toda
razão boa e solícita, o grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa
a nossa mais dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta, com a
mais insistente energia, a idéia de uma providência pessoal, tendo a seu favor o
melhor advogado, a evidência, é então que vemos com nossos olhos que todas,
todas as coisas que nos sucedem resultam constantemente no melhor possível. A
vida de cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar sempre de
novo essa tese; seja o que for, tempo bom ou ruim, a perda de um amigo, uma
doença, uma calúnia, a carta que não chegou, uma torção no pé, a olhada numa
loja, um argumento contrário, o ato de abrir um livro, um sonho, uma trapaça:
imediatamente ou pouco depois tudo se revela como algo que “tinha que
acontecer” – é algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós102.
97
Ibid, 116, In: KSA, vol. 3, p. 108. Tr. p. 88-89.
98
Ibid, 116, In: KSA, vol. 3, p. 109. Tr. P. 89.
99
Ilustrativo a este tema o aforismo 61, de O Andarilho e sua Sombra, intitulado Fatalismo Turco.In: KSA,
vol. 2. p. 580
100
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 4, In: KSA, vol.3, p. 376. Tr. p. 57.
101
Ibid, 4, In: KSA, vol. 3, p. 377. Tr. p. 57.
102
Ibid, 277, In: KSA, vol. 3, p. 521-522. Tr. p. 188.
53
No entanto, para Nietzsche, é o “caos da existência negado por nós” a força
motora da vida: “de fato, aqui e ali alguém toca conosco – o querido acaso”103. Mas, pensar
na “total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o
homem do conhecimento tem que engolir”104; esta perspectiva estabelece uma nova
avaliações, distinções, aversões, são assim desvalorizadas e se tornam falsas”105, não pode o
particularidade, pois “tudo no âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está em
fluxo, é verdade: - mas tudo se acha também numa corrente: em direção a uma meta107”.
Portanto, os valores morais estão em constante mudança, e da mesma forma que hoje a
moral “produz o homem tolo, injusto, consciente da culpa108”, pode vir a existir o
inocente110”.
para a decadência e a “fórmula” para a vida ascendente, nas palavras do filósofo: “ter de
103
Ibid, 277, In: KSA, vol. 3, p. 522. Tr. p. 189.
104
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches [Humano, demasiado humano], 107, In: KSA, vol.2, p.
103. Tr. p. 81.
105
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 103. Tr. p. 81.
106
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 103. Tr. p. 81.
107
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 105. Tr. p. 83.
108
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. p. 105-106. Tr. p. 83.
109
Ibid, 107, In: KSA, vol. 2, p. 106. Tr. p. 83.
110
Ibid, 107,In: KSA, vol. 2 p. 105. Tr. p. 83.
54
igual ao instinto”111. Paradoxalmente, a princípio, o filósofo também afirma em Genealogia
da Moral112 que o homem animal “é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado, que
qualquer outro animal, não há dúvida – ele é o animal doente”. O homem animal é o grande
experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que “luta pelo domínio último com
os animais, a natureza e os deus – ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que não
encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que o seu futuro, mergulha
implacável na carne de todo o presente”. “Rico” e “corajoso”, é ele também o animal mais
exposto ao perigo.
reconstrução histórica tanto da formação social quanto psíquica do homem, e que para o
de poder são ajustadas para formar o projeto cultural de uma determinada época. Não é,
portanto, a moral, para a filosofia nietzscheana, uma verdade ou mentira, um bem ou mal,
eternizados na história, são apenas valores que perecem para surgir novos valores, em um
111
Crepúsculo dos Ídolos. O problema de Sócrates, 11, In: KSA, vol. 6, p. 73. Tr. p. 27.
112
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], III, 13, In: KSA, vol 5 p. 367.
Tr. p. 110.
113
Ibid, II, 12, In: KSA, vol. 5, p. 313-314. Tr. p. 66.
55
eterno processo de vir a ser. A perspicácia de Nietzsche, contudo, foi de observar que ao
sociedade, mas também, que o homem deixasse de se superar: “de um homem que
inclusive os ideais democráticos modernos, pretendem uma moral “em que tudo desce,
descendente, torna-se mais ralo, mais plácido, prudente, manso, indiferente, medíocre,
valores morais: os valores morais são resultado de um embate entre vontades de poder,
particularmente instituída pelos ideais ascéticos, e que deve ser superada por valores que
qual a história da consciência moral inicia-se com o relato da pré-história da memória. Ora,
se o homem animal era desprovido de memória, com o início do processo civilizatório esta
Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a
natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do
homem?...O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve
parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua
de modo contrário, a do esquecimento117.
114
Ibid, I, 12, In: KSA: vol. 5, p. 278. Tr. p. 35.
115
Ibid, I, 12, In: KSA: vol. 5, p. 278. Tr. p. 35.
116
Ibid, I, 12, In: KSA, vol. 5, p.278. Tr. p. 35.
117
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.
56
Com o processo civilizatório formou-se, portanto, a faculdade psíquica da
memória, com a qual o homem passou a comprometer-se com o outro, e lutar contra a força
do esquecimento. Passa-se, então, de uma época sem passado e futuro, sem duração
ao momento presente significa uma vida sem história, cultura e moralidade. Já a noção do
animal atado apenas ao presente, mas um homem soberano, responsável por si, que se
projeta no futuro.
desenvolvimento do homem social que talvez tenha exigido mais tempo e força para
consolidar-se, pois teve que lutar contra a força do esquecimento, que não é uma simples
“força inercial [...], mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças
a qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em
memória torna possível, portanto, que a vontade do homem seja efetivada em sua ação, pois
Por ter que lutar contra a força do esquecimento a memória exigiu um longo
trabalho de assimilação, no qual toda espécie de sofrimento foi criada, não por vingança,
mas para fazer do homem senhor de si, assim, caso sua palavra empenhada não fosse
cumprida, o credor teria seu dano reparado de maneira equivalente ao prejuízo. Mas,
118
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.
119
Ibid, II, 1, In: KSA, vol. 5, p. 291. Tr. p. 47.
120
Ibid, II, 1, In: KSA: vol. 5, p. 292. Tr. p. 48.
57
“‘como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa
inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do
memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória’”122. Quando o homem
criar um animal capaz de lembrar de sua promessa, com a ajuda dos castigos, fez o homem
“reter na memória cinco ou seis ‘não quero’, com relação aos quais se fez uma promessa, a
finalmente à “‘razão’”: “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa
sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto
seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “‘coisas boas’”!...”126.
ou seja, capacitar todo homem social a uma mesma ordem psíquica, sem a qual o processo
civilizatório seria inexeqüível: “a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto
vontade, portanto, torna o homem apto a comprometer-se com o outro, o que coincide,
Como seria de esperar após o que foi dito, imaginar tais relações contratuais
desperta sem dúvida suspeita e aversão pela antiga humanidade, que as criou ou
permitiu. Precisamente nelas fazem-se promessas; justamente nela é preciso
construir uma memória naquele que promete; nelas, podemos desconfiar,
encontraremos um filão de coisas duras, cruéis, penosas. O devedor, para infundir
121
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 50.
122
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 50.
123
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 51.
124
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 295. Tr. p. 51.
125
Ibid, II, 3, In: KSA: vol. 5, p. 297. Tr. p. 52.
126
Ibid, II, 3, In: KSA: , vol. 5, p. 297. Tr. p. 52.
127
Ibid, II, 2, In: KSA: vol. 5, p. 293. Tr. p. 48.
58
confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e a santidade
de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição a restituição como
dever e obrigação, por meio de um contrato empenha ao credor, para o caso de
não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu
corpo, sua mulher, sua liberdade, ou mesmo sua vida128.
filosofia de Nietzsche pelas próprias advertências e restrições dadas pelo filósofo. Não é
esta consciência desenvolvida pelo homem social o conhecimento do corpo, que Nietzsche
128
Ibid, II, 5, In: KSA: vol. 5, p. 298-299. Tr. p. 53-54.
129
Ilustrativo é o aforismo 2 da segunda Dissertação de Para a Genealogia da Moral, no qual Nietzsche
afirma: “O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara
liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se
instinto, instinto dominante – como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma
palavra para ele? Mas não há dúvidas: este homem soberano o chama de sua consciência moral (Gewissen)”.
Para a genealogia da Moral, II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 294. Tr. p. 50.
130
“O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é, também, a tua pequena razão, meu irmão, à qual chamas
‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão”. NIETZSCHE, Also sprach Zarathustra,
Dos desprezadores do corpo. In: KSA, vol. 4, p. 49. Tr, p. 60.
131
Não temos a pretensão de aprofundar estes temas presentes na filosofia de Nietzsche, a saber consciência,
razão, corpo. Pretendemos analisá-los a partir da perspectiva histórica da gênese do Estado e do processo
civilizatório, tendo por objetivo a elaboração de nosso trabalho: crítica dos valores morais presentes na
democracia moderna. Tal recorte tem o inconveniente de tratar desta temática tão importante à filosofia de
Nietzsche de maneira superficial, mas também apresenta a vantagem de limitar e aprofundar nosso tema.
Uma análise mais pormenorizada destes temas está presente no livro: GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O
inconsciente no século XXI. In: Sonho e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a modernidade. Passo
Fundo: UPF, 2005, p. 85-104.
59
Para que então consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem
dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez
extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre
relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a
capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas
não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é o mestre justamente
em comunicar e tornar compreensíveis suas necessidades, também seja aquele
que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros[...]. Supondo que
esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência
desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação – de que
desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que
comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em
proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede
de ligação entre as pessoas[...]. O fato de nossas ações, pensamentos,
sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte
deles -, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo
governou o ser humano: ele precisava, o animal mais ameaçado, de ajuda,
proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se
compreensível – e para isso tudo ele necessitava da “consciência”, isto é, “saber”
o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava.132
memória e a promessa foram atributos essenciais para que o animal homem pudesse iniciar
social, ou seja, “de uma natureza comunitária e gregária134”. São estes processos históricos
que fizeram do homem um indivíduo soberano, é ele apto a prometer, “e nele encontramos,
vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e
132
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 354, vol. 3, p. 590-591. Tr. p. 248-249.
133
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. O inconsciente no século XXI. In: Sonhos e Pesadelos da razão esclarecida:
Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo, UPF, 2005, p. 94.
134
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [ A Gaia Ciência], 354, In: KSA, vol. 3, p. 592. Tr. p. 249.
60
está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de
social, nas palavras do filósofo: “Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde
finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o
fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo”136.
desfazer o que, a princípio, parecia ser um paradoxo. Nietzsche não sugere um retorno à
natureza, tampouco uma explosão de instintos do homem social. Uma análise atenta à
pesquisa genealógica nietzscheana acerca do valor dos valores morais esclarece o dilema,
como Nietzsche explica em Aurora: “Não nego, como é evidente – a menos que eu seja um
tolo -, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mesmo
modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas – mas acho que,
num caso e no outro, por razões outras que as de até agora”137. Desta forma, não é a
negação da moral o caminho para a transvaloração dos valores, “temos que aprender a
pensar de outra forma – para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de
outra forma”. Por isso não é a repetição do homem animal que pretende Nietzsche, mas a
auto-superação do homem autônomo, senhor de si, pois é ele “uma criação artística já
configurações”138.
135
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 293. Tr.
p. 49.
136
Ibid, II, 2, In: KSA, vol. 5, p. 293. Tr. p. 49.
137
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 103, In: KSA: vol. 3, p. 91-92. Tr. p.75.
138
GIACÓIA JÚNIOR, OSWALDO. Consciência moral e autocompreensão. Para revisitar antigos padrões.
In: Sonho e Pesadelos da Razão Esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 174.
61
A moral do homem Ocidental, a que faz parte também das estruturas mais
isto significa querer uma fórmula e nada mais139”. Portanto, questiona-se Nietzsche:
quê? e para onde?, não é omitido na fórmula?140”. A falta de “reflexão” faz com esses
valores morais sejam eternizados e aceitos, mas “Supondo que se queira dar à humanidade
a sua maior racionalidade possível: isto não significaria, certamente, garantir-lhe a sua
maior duração possível!141”. Foi até agora prescrito o caminho para a humanidade buscar
sua felicidade, sem nem ao menos questionarmos quais são os benefícios desta felicidade.
mas desenvolvimento e nada mais142”. Com estas reflexões, parece-nos que a filosofia a
139
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora]. 106, In: KSA, vol. 3, p. 93. Tr. p. 77.
140
Ibid, 106, In: KSA, vol. 3, p. 93. Tr. p. 77.
141
Ibid, 106, In: KSA, vol. 3, p. 94. Tr. p. 77.
142
Ibid, 108, In: KSA, vol. 3, p. 96. Tr. p. 79.
62
CAPÍTULO 2
não está nos contratos racionais, mas na violência dos “inconscientes artistas”, valoriza uma
143
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 267. In: KSA, vol. 5, p. 220-221. Tr.
p. 182
144
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia ciência], 318. In: KSA, vol. 3, p. 550. Tr. p. 212-213.
145
No capítulo 1, seção 1.2.
63
justificação ético-estética para a vida, bem como uma relação que tenha por objetivo a
individuais e utilitários da sociedade civil burguesa, como também veremos na seção 2.3.
preza não pela sobrevida do Estado, mas do indivíduo; diferente da cultura grega, que
concebia o indivíduo como parte do todo orgânico. Assim, a política moderna pretende um
individualismo liberal que exige um título honrado às ações do homem e, por isso,
Nietzsche afirma que “nós modernos temos, com relação aos gregos, a vantagem de dois
conceitos que nos são dados como consolo para um mundo onde tudo conduz à escravidão
e que, por isso, encara com pavor a palavra ‘escravo’: falamos da ‘dignidade do homem’ e
da ‘dignidade do trabalho146’”.
com que o homem moderno olhe admirado para o esforço exaustivo e miserável que é o
trabalho, “mas a fim de que o trabalho tenha direito a título honrado, é preciso, antes de
tudo, que a própria existência para a qual ele é apenas um meio de tormento tenha mais
dignidade e valor do que vem mostrando até agora às filosofias e às religiões147”. É preciso,
146
NIETZSCHE, Der griechische Staat, [O Estado grego]. In: KSA: vol. 1, p. 764. Tr. p. 39.
147
Ibid, In: KSA, vol 1, p. 764. Tr. p. 39.
64
pois, que antes do próprio trabalho a vida tenha dignidade, que a existência tenha um
entre os gregos “se expressa com aterradora sinceridade que o trabalho é um ultraje”. O
homem grego reconhece que não é o trabalho uma forma de engrandecimento humano, e,
sobretudo, os gregos sabiam que uma vida dedicada ao trabalho exaustivo impossibilita que
grande importância para o homem moderno, que através dele busca reconhecimento social
e conquistas individuais.
Desta forma, ao que nos parece, a importância deste ensaio, está na reflexão de
Nietzsche acerca da contradição entre os valores morais de duas épocas, a saber, os gregos
condizem com a “dignidade do homem”, mas uma decadência de valores. Assim, é possível
compreender porque para os gregos a figura do escravo não causa a mesma aversão que
provoca no homem moderno, para o grego “ o trabalho é um ultraje porque a existência não
tem valor nenhum em si mesma149”, e mesmo que “ a existência brilhe com o adorno
sedutor das ilusões artísticas,..., ainda assim vale aquela frase segundo a qual o trabalho é
acredita na “dignidade do trabalho”, o que faz com que o trabalho escravo seja considerado
“humanidade”.
148
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 764. Tr. p. 39-40.
149
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 765. Tr. p. 40.
150
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 765. Tr. p. 40-41.
65
Permitimos-nos uma reflexão que parece esclarecer as análises de Nietzsche
presentes no ensaio O Estado Grego. Como já foi dito, a vontade de poder é primordial
para a compreensão da filosofia nietzscheana. Contudo, este foi um conceito que surgiu
pela primeira vez em Zaratustra151, e que permitiu compreender de maneira mais integral a
Nietzsche afirma: “onde há vida também há vontade: mas não vontade de vida, senão – é o
que te ensino – vontade de poder!153”. Não pretendemos questionar qual termo tem maior
relevância nas obras de Nietzsche, mas afirmar que o conceito da vontade de poder
proporciona uma leitura mais rica das obras posteriores a Zaratustra, bem como possibilita
uma perspectiva esclarecedora para algumas questões presentes nos textos anteriores, já que
a filosofia de Nietzsche mesmo sendo dividida por seus comentadores em três fases, não
são elas distintas uma das outras, mas sim um amadurecimento de suas reflexões
filosóficas.
Assim, quando Nietzsche afirma que para o homem grego o trabalho, bem como
faz efeito, ele precisa criar e sujeitar-se àquele esforço inevitável do trabalho154”, como o
considerado como algo a se ocultar com vergonha, embora o homem sirva nele a uma meta
66
singular do indivíduo156”. Portanto, a concepção do agir e da responsabilidade do homem
indivíduo”. A concepção de política dos gregos não tinha como meta a ascensão do
individualismo liberal, os gregos são para Nietzsche “‘os homens políticos em si’”, cuja
exploração:
Para que haja um solo mais largo, profundo e fértil onde a arte se desenvolva, a
imensa maioria tem que se submeter como escrava ao serviço de uma minoria,
ultrapassando a medida de necessidades individuais e de esforços inevitáveis pela
vida. É sobre suas despesas, por seu trabalho extra, que aquela classe privilegiada
deve ver-se liberada da luta pela existência, para então gerar e satisfizer um novo
mundo de necessidade157.
fruto da árvore do conhecimento! Agora ele tem que se entreter dia após dia com tais
mentiras transparentes, que todo bom observador reconhece na pretensa ‘igualdade para
em trabalhar para sua sobrevivência individual, acalentado pelo ideal de igualdade que
caracteriza a política moderna, e que se recusa a aceitar uma “verdade cruel”, qual seja, “o
fato de que a escravidão pertence à essência de uma cultura159”. Sabemos que deve ser feita
uma advertência com relação a estas comparações entre o mundo grego e a do homem
moderno, mas, como já foi advertido, a filosofia de Nietzsche não deve ser entendida como
um discurso pragmático, não pretende este filósofo que o homem moderno volte à época
grega, não é de retrocesso que trata Nietzsche, mas de superação. Portanto, os escritos de
156
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 42.
157
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 43.
158
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 765-766. Tr. p.41.
159
Ibid, In: KSA: vol. 1, p. 767. Tr. p. 43.
67
Nietzsche vão além: é um contra-discurso, que pretende avaliar o valor dos valores morais,
homem moderno repensar os seus próprios valores, oferecendo ao seu leitor uma alternativa
implacável tudo aquilo que quer crescer com força161”. O amolecimento do homem
moderno frente ao horror da vida - da aceitação da condição trágica em que “cada instante
devora o precedente, cada nascimento é a morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer
mesma crueldade que encontramos na essência de toda cultura também está na essência de
ser verdade que os gregos sucumbiram por causa da escravidão, é muito mais certo que nós
Sem a “camisa-de-força” que representa o Estado, o homem não teria saído do estado de
natureza: “sem Estado, no natural bellun omnium contra omnes, a sociedade não pode de
160
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 43-44.
161
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44.
162
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44-45.
163
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 769. Tr. p. 45.
164
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 768. Tr. p. 44.
165
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 769. Tr. p. 45.
68
modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar166”. Para o
filósofo alemão, em concordância com Hobbes, sem o Estado o homem estaria sujeito a
uma guerra de todos contra todos, por isso, é o Estado a “mola de ferro que impele o
processo social167”. Para o jovem Nietzsche, a violência que formou o Estado também
humanidade: “‘O vencido pertence ao vencedor, com mulher e filhos, com bens e sangues.
É a violência que dá o primeiro direito, e não há nenhum direito que não seja em seu
moderna, por sua vez, é o oposto das virtudes políticas do homem grego, e revela
“perturbações perigosas da esfera política, tão críticas para a arte quanto para a
que participa da vida política unicamente para a satisfação de interesses próprios, nas
palavras do filósofo:
Se deve haver homens que, por nascimento, situam-se fora dos instintos do povo
e do Estado, deixando o Estado prevalecer somente quando o tomam em seu
próprio interesse: tais homens inevitavelmente haverão de imaginar como meta
última do Estado a mais imperturbável vida em conjunto de grandes comunidades
políticas, nas quais seria permitido que eles perseguissem antes de tudo as
próprias intenções, sem limites. Com essas noções na cabeça, irão fomentar a
política que a tais intenções a maior segurança, enquanto é impensável que devam
166
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p.49.
167
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
168
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 46.
169
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 771. Tr. p. 48.
170
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 771. Tr. p. 48.
171
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
69
se sacrificar, como que conduzidos por um instinto inconsciente, à tendência
estatal, impensável justamente porque carecem daquele instinto172.
“instinto inconsciente estatal”, eles sabem o querem do Estado e o que o Estado deve
conceder-lhes, “por isso, não há como impedir que tais homens adquiram uma grande
influência sobre o Estado, porque eles o consideram como meio, enquanto todos os outros,
sob o poder daquelas intenções inconscientes do próprio Estado, é que são apenas meios
para as finalidades do Estado173”. E para alcançar as metas egoístas dos que se libertaram
políticas modernas é libertar o Estado das guerras e, “pela fabricação de grandes corpos
estatais equilibrados e das garantias mútuas de segurança entre eles, tornar altamente
improvável o êxito de uma guerra ofensiva, e com isso da guerra em geral174”. Para tanto,
retiram de qualquer “detentor isolado” o poder que possa ter, ou seja, vão apagando
“lentamente os instintos monárquicos dos povos”175. O Estado como meio para alcançar
vantagens particulares deriva, para Nietzsche, da concepção “de mundo liberal e otimista,
172
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49-50.
173
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
174
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
175
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50.
176
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 773. Tr. p. 50-51.
70
uma defesa da hierarquia de classes e da guerra por mera tirania às classes oprimidas, mas
por “amor à terra natal177”, por uma ética na política, cuja manifestação primordial de
grandeza é a arte, a criação artística, a força criadora que fez (a título exemplificativo) o
Estado surgir e possibilitar o processo social. Uma vez equilibrada esta força criada por
artística, uma estagnação da vida, que deixa de crescer para se preservar. Assim, para
Nietzsche, a dignidade de cada homem, no conjunto de seus atos, só tem valor na medida
ética imediata disso é que o “‘homem em si’, o homem em sentido absoluto não possui nem
dignidade, nem direito, nem deveres: o homem só pode justificar sua existência como a de
política nietzscheana tem um caráter ético-estético que repugna a democracia moderna por
igualdade entre os homens, bem como por impedir o desenvolvimento da cultura em prol
deste trabalho.
177
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 774. Tr. p. 51.
178
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 776. Tr. p. 53.
179
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 776. Tr. p. 53.
71
2.2 – HOBBES E NIETZSCHE: ALGUMAS (DES) SEMELHANÇAS
se faz que as relações sociais sejam democráticas, tanto no âmbito familiar quanto estatal.
ditatorial com o poder, do que com a democracia moderna, que nos sugestiona a relacioná-
podemos nos deparar com um grande paradoxo desta forma de governo que pretende ser
social por pretender, sobretudo, eliminar as diferenças, estabelecer a paz (o controle dos
prazeres iguais para todos, Nietzsche identifica nessa hegemonia das idéias modernas um
72
perigo involuntário: com o fim das diferenças e da autoridade legítima, a democracia
sociedade industrial, cujas prerrogativas de direitos iguais prepara tendências tanto para a
anarquia quanto para a tirania. Isto porque, a “impressão geral causada por esses futuros
uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos – tomando a palavra em todo sentido,
também no mais espiritual”181. Como esclarece Giacóia (1999, p. 156), no texto Crítica da
democracia moderna “há que ser buscada na absolutização dos valores morais consagrados
pelas ‘idéias modernas’, sob o efeito da qual esses se tornam valores em si”.
“bom” de uma moral, a saber, da moral cristã. É esse tipo homem (cristão) que tanto os
180
NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr. p.
150.
181
Ibid, 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr. p. 150.
182
Explica Nietzsche que com a revolta da moral escrava o homem “bom” passa a ser aquele da moral
escrava, o homem pacífico, manso, doméstico, em oposição ao homem mau, guerreio e forte.
Conferir: NIETZSCHE, F. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], Primeira dissertação,
In: KSA, vol. 5, p. 257s. Tr. p. 20s.
73
antropologia tácita dos socialistas e democratas, de que o homem é “bom”, e as instituições
que o corrompem, é a mesma certeza da qual partia Rousseau no Discurso sobre a origem
que, para Nietzsche, promoveu este “asilo alienado das idéias modernas”183. É ele a
idealização cristã do homem natural, que Rousseau forjou do conceito de uma natureza que
seria liberdade, bondade, inocência. Essa natureza da bondade humana é o culto da moral
cristã, que tanto a democracia moderna quanto os ideais socialistas pretendem consolidar
parece relevante e constitui uma etapa capaz de rever a questão do poder é repensar na
atuação do poder, não como mera força coercitiva, mas como uma força velada das práticas
democráticas que são, sobretudo, atuação de uma vontade de poder fraca, que pretende
natureza humana uma luta incessante por mais poder e, por isso, o Estado Leviatã exige
complexidade filosófica, assim preferimos nos limitar à própria definição de Hobbes (2002,
p. 7) a respeito da justiça: “que significa uma firme vontade de dar a cada um o que é seu”.
Contudo, a questão que Hobbes se coloca consiste em definir o que será de cada indivíduo
183
NIETZSCHE, F. Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 350, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.
74
se esta tarefa couber ao próprio homem, uma vez que a natureza do homem é condicionada
por uma luta incessante por (mais) poder, e não por uma bondade natural que possibilite a
homem é definida por “uma guerra de todos contra todos”184, uma luta incessante por poder
que, no caso de Hobbes só cessa com a morte, e por isso deve ser neutralizada; mas que,
para Nietzsche, não deve ser neutralizada, mas possibilitar a transvaloração dos valores, ou
seja, o vir a ser de novos valores que tenham por objetivo, sobretudo, o desenvolvimento
da cultura185.
luta contra todo ideal, é este a arma do escravo, e não é ao escravo que cabe a função de
construir um Estado que pretenda promover a cultura, à moral escrava é possível apenas um
estado no qual “os prejuízos de todos se somam num prejuízo global: o homem se torna
força mediana propulsora de uma “raça” mais forte, que encontraria neste igualitarismo a
75
da cultura, criadora de valores e não conservadora de ideais, pois a conservação é um
predicado da moral fraca, da “moral escrava”188. Contudo, há que se observar que com a
moral escrava não deixa de haver dominação, há um ganho da vontade de poder fraca sobre
a vontade de poder aristocrática. Sem o poder do ideal ascético não seria possível a
construções históricas ao longo da vida, e que por isso mesmo podem ser repensados,
recriados e até mesmo perecerem. E será a partir das reflexões de Hobbes que poderemos
inverter as relações que parecem lógicas para a democracia moderna, a saber, igualdade e
justiça, desigualdade e injustiça. Isto porque, inquietado com questões relativas ao poder e
promover a paz e proteger o homem natural da “guerra de todos contra todos” a que ele está
no estado de natureza. Assim, propõe o autor de Leviatã um Estado erigido pela vontade de
todos, ou seja, um pacto social no qual os súditos obrigatoriamente concedem seu poder ao
188
O instinto de autoconservação na filosofia de Nietzsche será analisado na seção seguinte.
189
Como veremos no capítulo 3, para Nietzsche é imprescindível ao Estado, que tenha por objetivo a
promoção da cultura, uma sociedade hierarquiza, uma distância entre classes, o oposto da sociedade gregária
própria de uma moral escrava.
76
Se da leitura hobbesiana do estado de natureza, em que a liberdade irrestrita
decorrente do poder exercido pela luta da sobrevivência tem como conseqüência a guerra
de todos contra todos, promover na sociedade civil a igualdade entre os homens parece
senão contraditório pelo menos curioso. Por isso a inversão da ordem lógica da democracia:
desigualdade para promover a paz. Mas, aqui convém esclarecer que tanto na democracia
moderna, quanto no Estado Leviatã, o que tem valor preponderante é neutralizar o poder
entre os súditos, ou seja, é a conservação o objetivo principal. A fim de tornar esta hipótese
definir o que pertence a cada indivíduo se esta tarefa couber ao próprio homem da
coletividade:
E foi por isso que, quando dediquei minhas reflexões à investigação da justiça
natural, prontamente me vi prevenido pela própria palavra justiça (que significa
uma firma vontade de dar a cada um o que é seu) de que minha primeira pergunta
tinha de ser esta: a que se devia que um homem pudesse chamar algo de seu, em
vez de dizer que pertence a outro. E quando constatei que isso se devia não à
natureza, mas ao consentimento (pois aquilo que a natureza primeiro impôs em
comum os homens depois distribuíram sob várias apropriações), fui então levado
a outra pergunta, a saber: para que fim, e sob que impulsos, quando tudo era
igualmente de todos em comum, os homens consideraram mais adequado que
cada homem tivesse o seu bem? E descobri que a razão foi que, se os bens forem
comum a todos, necessariamente haverão de brotar controvérsias sobre quem
gozará mais de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá todo
tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a
esquivar. Assim cheguei a duas máximas da natureza humana – uma que provém
de sua parte concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas coisas nas
quais todos os outros têm igual participação, outra, procedendo da parte racional,
que ensina todo homem a fugir de uma dissolução antinatural, como sendo este o
maior dano que pode ocorrer à natureza. Com base nesses princípios assim
postos, penso haver demonstrado neste pequeno livro de minha lavra, pelas
conexões mais evidentes, primeiro a absoluta necessidade de que haja ligas e
contratos, e a partir daí os rudimentos da prudência tanto moral como civil.
(HOBBES, 2002, p. 7).
Há, para Hobbes, “a absolta necessidade de que haja ligas e contratos” para
definir o que será de cada indivíduo, uma vez que a natureza do homem é determinada pela
busca incessante pelo poder, o que confere ao homem natural um estado iminente de
77
guerra, pois “um poder certo e irresistível confere a quem o possui direito de dominar e
mandar naqueles que não possam resistir190”, assim a justiça apenas efetiva-se a partir do
pacto social. Próxima a esta análise hobbesiana acerca do uso excessivo do poder está a
reflexão nietzscheana que, no aforismo 259 de Para além de bem e mal, descreve a vida
no que se refere aos objetivos do uso do poder, isto porque, em Hobbes o poder é entendido
em termos utilitários, como meio para um fim, nas palavras do filósofo: “O poder de um
homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para
obter qualquer visível bem futuro192”. Ainda, para Hobbes, o poder é dividido em “poder
instrumental” que são “adquiridos mediante os anteriores ou pelo acaso, e constituem meios
desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte194”. Destarte, Hobbes põe em
evidência uma natureza humana condicionada a uma luta incessante por poder: “assinalo
inquieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte195”, mas é um poder
que tem por objetivo um bem futuro. Diferente da atuação do poder na filosofia de
190
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 35.
191
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para Além de bem e mal], 259, In: KSA, vol. 5, p. 207. Tr. p.
171.
192
HOBBES, Leviatã, cap. X.
193
Ibid, cap. X.
194
Ibid, cap. X.
195
Ibid, cap. XI.
78
Nietzsche que entende a vida como um esbanjamento de forças, como a atuação das forças
dos “inconscientes artistas196” que ao criarem o Estado e darem forma a uma matéria-
humana semi-animal estavam, acima de tudo, esbanjando a sua força criativa de maneira
inconsciente.
Já para Hobbes, entre os bens futuros desejado pelo homem está, sobretudo, a
outro ser vivo, de conservar-se197, por isso a lógica utilitarista do poder na filosofia de
Hobbes. Em contrapartida, Nietzsche não pretende uma lógica utilitária para o poder, para
forças, e não um estado final que deva ser atingido. Para Nietzsche, “uma criatura viva quer
antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder -: a
autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso198”. Para
Nietzsche, se fosse possível “explicar toda a nossa vida instintiva como elaboração e
ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é minha tese -;
supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e
possível definir “toda força atuante, inequivocadamente, como vontade de poder200”, desta
196
NIETZSCHE, F. Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], 17, In: KSA, vol.5, p. 324s. Tr.
p. 75.
197
Com relação a este tema consultar: ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma
introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 60.
198
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 13, In: KSA, vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
199
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.
200
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.
201
Ibid, 36, In: KSA, vol. 5, p. 55. Tr. p. 43.
79
Para o autor de Leviatã, em decorrência desta tendência natural de uma luta
incessante pelo poder, que se interrompe apenas com a morte, o Estado Leviatã tem uma
finalidade específica: pôr fim à perpétua condição de insegurança das relações de poder
não há convenções e o que a natureza prover ao homem não é dividido entre os homens,
mas disputado, Hobbes reflete uma forma de Estado justa, mas, para tanto, os indivíduos
não devem mais lutar pela preservação, pois esta passa a ser uma prerrogativa estatal e não
individual. Assim, afirma Hobbes: “o estado de igualdade é um estado de guerra, e que por
isso a desigualdade foi introduzida pelo consentimento geral, essa desigualdade pela qual
tem mais aquele a quem, voluntariamente, demos mais não se deve considerar como se não
não é a realização da justiça, assim, a justiça para Hobbes só irá se efetivar quando houver
estado de natureza, em que não há convenções, tudo é de todos, não há divisão legítima dos
Estado Leviatã, tal como Hobbes o concebe, tem a prerrogativa de definir os “rudimentos
da prudência tanto moral como civil” para a efetiva legitimidade do pacto social e,
202
Importante observar que o consentimento no pacto hobbesiano tem fundamental importância para a
formação e constituição do Estado, mas passa a ser uma questão secundária quando o Estado Leviatã já está
solidificado. A respeito deste assunto conferir: Hobbes, Leviatã, cap. XXX; Ribeiro, Renato Janine. A marca
do Leviatã (linguagem e poder em Hobbes). São Paulo: Ática, 1979.
80
Além de pensar uma forma de sociedade justa baseada na desigualdade de
como discurso demagógico, como podemos perceber em Do Cidadão (2002, p. 160): “vede
quantos demagogos, isto é, quantos oradores poderosos há junto ao povo (são eles tantos, e
a cada dia crescem em número), e para cada um deles há tantos filhos, parentes, amigos e
retórica que culmina (este governo popular) na disputa pela soberania. É assim que Hobbes
democrático: “quando os particulares reivindicam a liberdade, sob o seu nome eles não
estão querendo a liberdade, mas a soberania (dominion), embora por ignorância não se
dêem conta disso”. Assim, não parece ser o estado democrático um consenso em busca do
bem comum, mas um uso disfarçado de uma ideologia tendo em vistas algum benefício
[...] talvez alguns afirmem que um Estado popular deva ser preferido, e muito, a
um monárquico: porque, quando todos podem pôr a mão nos negócios públicos,
então têm todos uma oportunidade para mostrar sua sabedoria, seus
conhecimentos e eloqüência, na decisão dos assuntos mais difíceis e relevantes; o
que, para quem se destaca nessas faculdades, e que acredita nelas superar aos
outros, é a mais prazerosa de todas as coisas, devido àquele desejo de ser
elogiado que é congênito à natureza humana. Já numa monarquia, essa via para
obtenção do elogio e da honra está fechada à maior parte dos súditos; e, se isso
não for um inconveniente, o que o será? (HOBBES, 2002, p. 164).
203
Leviatã,cap. XIX, p. 114.
81
encontramos uma nova perspectiva de análise que consiste em um estudo genealógico que
tem como objetivo minar alguns (se não todos) aspectos da democracia moderna. Contudo,
Nietzsche realiza uma leitura das relações de poder totalmente diversa do ideário da
vontade coletiva ou, do bem comum, tal como o fez Rousseau204 e, como vimos, próxima à
refere à propensão natural do homem para a guerra. Partindo de uma análise histórico-
gênese e a sobrevida do Estado, qualquer que seja sua organização política, pelo poder205.
Assim, para Nietzsche, a democracia moderna tem por objetivo conservar uma forma
valores igualitários (moral cristã) que pretendem garantir a estabilidade dos instintos - cujo
caráter geral utilitarista em nada engrandece a cultura, mas, ao contrário, luta contra a força
do vir a ser – o que faz do homem democrático um indivíduo “decadente”, nas palavras do
filósofo:
204
Buscando divergir a filosofia de Hobbes com os escritos de Rousseau, podemos enumerar as seguintes
diferenças: 1º - para Rousseau o único regime que se adapta às pretensões da vontade geral é a democracia,
sendo a aristocracia e a monarquia formas de opressão; em Hobbes a melhor forma de governo é aquela que
visa unidade e continuidade (duração temporal), além de ser um Estado de essência imperialista, pois tende
sempre ao acréscimo de poder em função do Leviatã; 2º- para Rousseau é impensável a cessão de si nos
moldes do contrato social, já o pacto hobbesiano exige a cessão de si; 3º- o contrato social de Rousseau
pretende garantir a igualdade entre súditos e soberanos, o pacto hobbesiano agrava a distância entre súditos e
soberano; 4º - a Vontade Geral é o alicerce rousseauniano para a democracia, Hobbes entende ser necessária a
união (concórdia) de todos para o surgimento do pacto, contudo, para o andamento posterior do Estado é de
seu interesse garantir o poder e a repressão, garantir a vida e, a produção do bem-estar. Sobre este assunto
consultar: Leviatã, cap. XXX; Ribeiro, Renato Janine. A marca do Leviatã (linguagem e poder em Hobbes).
São Paulo: Ed. Ática, 1978.
205
Conforme foi apresentado na seção 1.1.
82
Creio que tudo o que hoje na Europa estamos habituados a venerar como
“humanidade”, “moralidade”, “humanitarismo”, “compaixão”, justiça, com efeito
pode ter um valor de fachada, como enfraquecimento e mitigação de certos
impulsos fundamentais poderosos e perigosos, porém, a despeito disso, a longo
prazo, não é nada além do que o apequenamento do inteiro tipo “homem”, sua
definitiva mediocrização, se me quiserem excusar uma palavra desesperada num
assunto desesperado206.
atuação na política democrática, tem por objetivo avaliar o valor dos valores democráticos,
egoísta e desestatizada207”, como afirma Nietzsche no texto o Estado Grego. Desta forma é
Reconhecendo o poder que o estado natural concede aos homens, Hobbes pensa
em uma política representada por um Soberano a quem os súditos tenham que “transferir” e
“renunciar” seus direitos naturais, a saber, o poder para proteção da vida, conforme a razão
de cada um. Ao considerar como opção política e social um Estado dividido entre o
os escritos de Hobbes parecem defender. Por outro lado, a preferência pela democracia não
parece nos livrar da condição de súditos como podemos refletir a partir da leitura de Para
além de bem e mal em que Nietzsche afirma ser “o movimento democrático não apenas
uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou
estado Leviatã hobbesiano, quanto na democracia moderna, o poder é o tema central. Mas
206
NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo do outono de 1885-outono de 1886, 2[3], In: KSA, vol. 12, p. 71s.
Tr. p. 32.
207
NIETZSCHE, Der griechische Staat, [O Estado grego] In: KSA: vol. 1, p. 774. Tr. p. 51.
208
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 203, In: KSA, vol.5, p. 126. Tr. p.
103.
83
com uma diferença singular das análises de Nietzsche acerca do poder, a saber, Hobbes
estabelece um Estado no qual não seja possível o uso indiscriminado do poder, é um estado
Apenas “um poder comum a recear”, como afirma Hobbes no Leviatã (1979, p.
76), é capaz de por fim a este estado natural de guerra. Mas como compactuar com um
poder comum se, para Hobbes, o homem naturalmente tende para a guerra? Os fatores
determinantes para o homem optar pela vida em sociedade não é o amor ao homem,
resguardar a vida). Assim, é tanto pelas paixões quanto pela razão que se forma o consenso
entre os indivíduos de que o estado civil é a melhor maneira de organização do poder, uma
vez que o Estado impulsiona uma organização cuja continuidade e duração são
anterior: “sem Estado, no natural bellum omnium contra omnes, a sociedade não pode de
modo algum lançar raízes em uma escala maior e além do âmbito familiar209”, por isso, o
Estado é “a mola de ferro que impele o processo social210”. Contudo, para Nietzsche, não é
a partir do pacto social que se forma o Estado. Para o autor de Para a Genealogia da Moral
a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável não foi gradual e
nem voluntária, foi “um salto, uma coerção, uma fatalidade inevitável, contra a qual não
havia luta e nem sequer ressentimento211”. O Estado “apareceu como uma terrível tirania,
209
NIETZSCHE, Der griechische Staat [O Estado grego] , In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
210
Ibid, In: KSA, vol. 1, p. 772. Tr. p. 49.
211
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral[ Para a Genealogia da Moral], II, 17, In: KSA, vol. 5, p. 324.
Tr. p. 74.
84
uma maquinaria esmagadora e implacável212”, a saber, uma raça de conquistadores, “um
bando de bestas louras213”, que imprimiram a sua forma em uma “matéria-prima humana e
semi-animal214”.
luta incessantemente por mais poder, é pela paz, ou melhor, pela possibilidade de viver
“todo o tempo que geralmente a natureza permite215” que o homem escolhe ao renunciar
seu direito de tudo poder. A opção do homem é por este poder limitado ou, se preferir, pela
análise acerca do poder no Estado Leviatã, Ribeiro explica que o poder “é o outro nome da
desigualdade: impossível suprimi-la, e é por isso que a condição humana após o pecado
aos seus desejos imediatos em vista a um bem maior, a saber, a proteção da sociedade
política.
aspectos este tema parece aproximar a filosofia destes dois pensadores, mas há um espaço
A função do estado na filosofia de Hobbes, como afirmamos, é pôr fim à perpétua condição
212
Ibid, II, 17, In: KSA, vol.5 p. 324. Tr. p. 74.
213
Ibid, II, 17, In: KSA, vol. 5 p. 324. Tr. p. 74.
214
Ibid, II, 17, In: KSA, vol.5, p. 324. Tr. p. 74.
215
HOBBES, Leviatã, cap. XIV.
85
principal de garantir a vida dos súditos. Desta forma, o Estado –Leviatã tem duas principais
da violência, o Estado para Nietzsche deve manter a luta, não uma incessante guerra de
todos contra todos (era esta uma condição natural, inconcebível a um estado civil), mas um
combate entre forças que sejam um aumentar, crescer, desabrochar, transcender da cultura,
isto é, uma política que possibilite a auto-superação. Mas, para este filósofo, tal condição
de criação mostra-se incompatível com a democracia moderna que tende aos mesmos
concebido por Nietzsche para uma sociedade de “culturas nobres”: é, a democracia uma
política voltada aos ideais cristãos que produz indivíduos particulares, que se fazem às
uma política que transcenda as bases atomistas da sociedade moderna, rompendo com o
Diante disso, podemos concluir que, enquanto Hobbes tem como objetivo a
apenas pela ética aristocrática. Esta busca pela auto-superação através da cultura parece
buscar redimir a vida dos efeitos de mais de dois mil séculos da moral-cristã que, para
Nietzsche, produziu uma moral de instintos fracos, uma “moral de rebanho”, que pretende
suprimir da vida o que é próprio a ela, a saber, a luta e o combate de forças A democracia
moderna, para Nietzsche, é a sobrevida dos ideais cristãos, cuja tarefa primordial consistiu
86
em adoecer o homem, em fazer com que o homem aristocrata, guerreiro, a “besta loura”, se
tornasse amansada e maleável, que seu poder de criação fosse substituído pela busca da
própria vida, ao eliminar a força de criação, o instinto de guerra, que fazia a vida crescer;
instituindo uma moral de resignação e mansidão, adoecendo o homem forte e guerreiro, que
dizia sim à vida para, em contrapartida, fortalecer uma moral, a saber, a moral escrava
(cristã) que aspira pela igualdade, pela felicidade e tranqüilidade. Assim, para Nietzsche, as
condena, calunia e conspurca o ‘mundo’ fá-lo a partir do mesmo instinto pelo qual o
também, só que mais diferida217”, pois, conclui Nietzsche, “para quê uma além, se não
guerreio foi solapada por uma moral fraca, cristã, que postulou a vida a partir de virtudes
debilitadas:
216
NIETZSCHE, Götzen-Dämmerung [Crepúsculo dos Ídolos], Os reformadores da humanidade, 2, In: KSA,
vol. 6 p. 99. Tr. p. 56-57.
217
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 34, In: KSA, vol.6, p. 133. Tr. p. 91.
218
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 34, In: KSa, vol. 6, p. 133. Tr. p. 91.
87
As épocas fortes, as culturas nobres, vêem na compaixão, no “amor ao próximo”,
na falta de identidade e de amor próprio, algo de desprezível. – As épocas devem
medir-se pelas suas forças positivas – e, por conseguinte, a época do
Renascimento, tão dilapidadora e fatal, surge como a última grande época e nós,
nós modernos, com a angustiante solicitude por nós mesmos e o amor ao
próximo, com as nossas virtudes do trabalho, da falta de pretensões, da equidade,
da cientificidade – acumuladores, econômicos, maquinais – como uma época
fraca. As nossas virtudes são condicionadas, são provocadas pela debilidade... A
“igualdade”, uma certa semelhança factual que se exprime na teoria dos “direitos
iguais”, pertence essencialmente à decadência: o abismo entre o homem e
homem, entre classe e classe, a multiplicidade dos tipos, a vontade de ser quem se
é, de se distinguir, aquilo que eu chamo o pathos da distância, é próprio de toda
época forte. A força de tensão, a amplitude de tensão entre os extremos torna-se,
hoje, cada vez mais pequena – os próprios extremos acabam por se esfumar até à
similaridade... Todas as nossas teorias políticas e constituições estatais, sem
exceptuar o “império alemão”, são conseqüências, necessidades conseqüentes da
decadência; o efeito inconsciente da décadence apoderou-se do próprio ideal das
ciências particulares.[...]. A vida declinante, a diminuição de toda força
organizadora, isto é, separadora, que abre abismos, subordinante e
superordinante, formula-se, hoje, na sociologia, como ideal ... Os nossos
socialistas são décadents219.
política moderna como princípios de uma moral fraca e decadente, balizada pelos ideais
cristãos que pregam a igualdade e a limitação das forças instintivas da vida. A democracia
moderna pretende uma política, como também desejou Hobbes, em que os opostos tornam-
pretensão e a vida vira presa dos instintos fracos que tendem para a mesmice. Por isso, a
impor a desigualdade para preservar a vida; Nietzsche reflete na luta de forças em vistas a
uma transvaloração dos valores, um constante vir a ser, em que não há espaço para a
219
Ibid, Incursões de um Extemporâneo, 37, In: KSA, vol, 6, p. 138. Tr. p. 96.
88
2.3 – AUTOCONSERVAÇÃO e AUTO-SUPERAÇÃO
Hobbes quanto na filosofia de Nietzsche, até mesmo com algumas proximidades relevantes
espaço restrito a partir do qual não é mais possível convergir. Isto porque, como vimos na
seção anterior, Hobbes preocupa-se, sobretudo, em erigir um Estado que tenha como meta
principal a conservação da espécie. Em poucas palavras isso significa que, para o autor de
O Leviatã, o Estado deve garantir a supressão do conflito, da tensão que havia entre os
pretende, sobretudo, a auto-superação dos valores morais, o vir a ser de uma política
consuma-se no texto A Gaia Ciência, de modo que o que era instinto fundamental torna-se
220
De acordo com a explicação de Assoun (1989, p. 151), no texto Freud e Nietzsche: Semelhanças e
Dessemelhanças, “assistimos, no entanto, a uma evolução clara e espetacular do estatuto deste instinto de
autoconservação em Nietzsche. Esta consuma-se em A Gaia Ciência,..., o que era instinto fundamental torna-
se então uma redução do instinto fundamental, doravante localizado na extensão de poder”.
89
poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação221”. Ainda
para alguns filósofos, como Spinoza, que devido a sua saúde precária (tuberculose), tinha
que considerar como decisivo justamente este instinto, a saber, um instinto de homens “em
existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida222”, uma vez
que para o filósofo “a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de
de vida223”.
escola darwinista e situa-se “em desfavor dos fortes, dos privilegiados, das exceções
de bem e Mal, Nietzsche adverte que “os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o
221
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 349, vol. 3, p. 585. Tr. p. 243.
222
Ibid, 349, In: KSA, vol. 3, p. 585. Tr. p. 243-244
223
Ibid, 349, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.
224
NIETZSCHE, Götzsen-Dämmerung [Crepúsculo dos ídolos], Incursões de um extemporâneo, 14, In: KSA,
vol. 6, p. 120. Tr. p. 79.
90
impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico225”. Isto significa
que existe alguma força que age antes do próprio instinto de conservação, pois “uma
objetivo de Nietzsche, mas a compreensão de que não é este instinto a regra da vida, pois a
vida é vontade de poder. Em Para além de bem e mal podemos observar que Nietzsche
pretende, para alcançar um novo sentido (extramoral) para a cultura, uma política que se
gregário da autoconservação - que caminha para o crescente prejuízo de cada um, o que
Supondo, porém, que alguém tome os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de
domínio, como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar
presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em
conseqüência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada – esse alguém
sofrerá com tal orientação do seu julgamento como quem sofre de enjôo do mar.
No entanto, mesmo essa hipótese está longe de ser a mais dolorosa e mais
estranha nesse desmesurado, quase inexplorável reino de conhecimentos
perigosos; e existe, de fato, uma centena de boas razões para que dele mantenha
distância todo aquele que – puder!227.
crítica política nietzscheana dirigida aos afetos de uma unidade gregária que não se sujeita a
serviço de uma “economia global da vida”, mas à conquista de benefícios particulares que
todo” complementa dois relevantes aspectos já analisados, a saber, que para Nietzsche a
225
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Bose [Para além de bem e mal], 13, In: KSA: vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
226
Ibid, 13, In: KSA: vol. 5, p. 27. Tr. p. 20.
227
Ibid, 23, In: KSA, vol.5, p. 38. Tr. p. 29.
91
vida deve ser compreendida como unidade e necessidade228, ou seja, um todo hierarquizado
que tem por objetivo a produção de uma cultura que até agora não foi atingida, em um
qual todo o resto deve se engajar229. Assim, a capacidade de refletir além do indivíduo da
força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer,
vontade de poder”, que é um mais, um crescer, como declara Zaratustra: “eu amo os que
não desejam conservar-se. De todo coração, amo os que estão no acaso: porque vão a
caminho do outro lado231”. Ainda, no texto Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma: “No
tocante à famosa ‘luta pela sobrevivência’, parece-me, por agora, mais afirmada do que
228
Como afirma Ansell-Pearson: “Com a afirmação da ‘grande economia do todo’, Nietzsche convida-nos a
pensar sobre a vida além do ponto de vista do juízo moral fixo e absoluto. Devemos reconhecer que tudo é
uma unidade e necessidade. Pensar ‘acima’ ou ‘além’ de si mesmo é empregar criativa, não moralmente (onde
a moralidade implica uma ‘economia restritiva da vida’, oposta a uma de caráter ‘geral’) a paixão erótica, ou
pathos, que é a vontade de poder. É mediante a afirmação da economia geral da vida que um indivíduo atinge
uma perspectiva de vida que fica ‘além do bem e do mal’”. In: Nietzsche como pensador político: uma
introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997, p. 60-61.
229
Este tema será melhor analisado no capítulo 3.
230
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 279. Tr.
p. 36.
231
NIETZSCHE, Zaratustra, terceira parte, Das velhas e novas tábuas, 6, In: KSA, vol. 4, p. 251. Tr. p. 238.
92
provada. Ocorre, mas como exceção; o aspecto global da vida não é o estado de
afirma: “não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança,
tirem proveito dessa crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de rapina
livre para ser ovelha233”, e dessa inversão de valores decorrente da impotência do rebanho
purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no ‘sujeito’ indiferente e livre para
para o ideal ascético, pois “o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma
vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência”235,
assim “a vida luta nele e através dele com a morte, contra a morte, o ideal ascético é um
outra vida, o desejo de estar em outro lugar, “mas precisamente o poder do seu desejo é o
grilhão que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve
com este poder o sacerdote ascético “mantém apegado à vida todo o rebanho de
232
NIETZSCHE, Götzsen-Dämmerung [Crepúsculo dos ídolos], Incursões de um extemporâneo, 14, In: KSA,
vol. 6, p. 120. Tr. p. 78-79.
233
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], I, 13, In: KSA, vol. 5 p. 280. Tr.
p. 36-37.
234
Ibid, I, 13, In: KSA, vol. 5, p. 280. Tr. p. 37.
235
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 109.
236
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 110.
237
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5 p. 366. Tr. p. 110.
93
instintivamente à sua frente como pastor238”. Portanto, o sacerdote ascético, “este aparente
inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as potências conservadoras e
afirmadoras da vida...”239.
haveria vida para os “sofredores de toda espécie”. Não que este entendimento acerca do
ideal ascético consista em uma apologia nietzscheana à conservação da vida, mas, como
afirmamos anteriormente, não é a recusa a este instinto que pretende Nietzsche. O instinto
a ser. Ilustrativa é a passagem em Ecce Homo, na qual Nietzsche confere clareza filosófica
ao estar doente, que é “em si uma forma de ressentimento. – Contra isso o doente tem
apenas um grande remédio – eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta,
com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se
na neve240”. O ato de deitar-se não é uma entrega sem sentido, “a grande sensatez desse
fatalismo, que nem sempre é apenas coragem da morte, mas conservação da vida nas
no qual é imprescindível conservar a vida por uma lógica racional, a saber: “porque nos
238
Ibid, III, 13, In: KSA, vol, 5, p. 366. Tr. p. 110
239
Ibid, III, 13, In: KSA, vol. 5, p. 366. Tr. p. 110
240
NIETZSCHE, Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol.6, p. 272. Tr. p. 53.
241
Ibid, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol. 6, p. 272. Tr. p. 53.
242
Ibid, Por que sou tão sábio, 6, In: KSA, vol. 6, p. 272. Tr. p. 53.
94
O instinto de autoconservação é “precisamente a essência da linhagem e
rebanho que somos243”, não por amor à espécie, mas simplesmente porque não há nada
“mais antigo, mais inexorável, mais insuperável que esse instinto244”. O que faz Nietzsche
afirmar que “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo
conservação da espécie humana245”. Desta forma, “até a pessoa mais nociva pode ser a mais
útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em
“um animal fantástico, que mais que qualquer outro tem de preencher uma condição
existencial: ele tem de acreditar saber, de quando em quando, por que existe, sua espécie
não pode florescer sem uma periódica confiança na vida!248”. Mas, afirma Nietzsche, “o
mais cauteloso dos amigos do humano acrescentará: ‘Não apenas o riso e a gaia sabedoria,
mas também o trágico e sua sublime desrazão fazem partes dos meios e requisitos para a
preservou nossa espécie, mas a vida não deve se justificar como conservação, pois a vida na
243
NIETZSCHE, Die fröliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 1, In: KSA, vol. 3 p. 369. Tr. p. 51.
244
Ibid, 1,In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51.
245
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51.
246
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3, p. 369. Tr. p. 51
247
Ibid, 1, In: KSA, vol.3, p. 369-370. Tr. p. 51.
248
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3 p. 372. Tr. p. 53-54
249
Ibid, 1, In: KSA, vol. 3 p. 372. Tr. p. 54.
95
filosofia nietzscheana é (essencialmente) vontade de poder. Mesmo assim, paradoxalmente,
é desta conservação que Nietzsche vislumbra um novo começo: “as mesmas condições
sobre as quais surgirão, falando em termos gerias, uma nivelação e uma mediocrização do
são apropriadas, em sumo grau, para dar origem a homens de exceção, de uma qualidade
250
NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse [Para Além de Bem e Mal], 242, In: KSA, vol. 5, p. 182s. Tr.
p. 150.
96
CAPÍTULO 3
Nietzsche afirma, no aforismo 350 de A Gaia Ciência, que foi apenas com a
Revolução Francesa que foi colocado “o cetro, de maneira total e solene, nas mãos do
ruidosos e maduros para o hospício das ‘idéias modernas’)”252 e, assim, a propagação dos
251
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches [Humano, demasiado humano] 2, prólogo, In: KSA, vol.
2, p. 15. Tr. p. 8-9.
252
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 350, In: KSA, vol. 3, p. 586. Tr. p. 244.
97
fraternidade e igualdade”, continuaram atados a uma tradição de mais de dois mil anos: dos
valores cristãos. Este “progresso”, que entre os europeus de hoje é concebido como a boa
“humanidade”, ostentada como a grande virtude, é a grande “Ironia para com aqueles que
cristãos não foram, em absoluto, superados por elas. ‘Cristo na cruz’ é ainda o símbolo
mais sublime253”. O homem moderno acredita no “progresso”, mas esta “época que gosta
de ser chamada a mais humana, a mais suave, a mais justa que o Sol até hoje iluminou”254,
da fadiga, da idade, da força que decai!255”. Para o filósofo alemão, o canto do progresso
por: “‘direitos iguais’, ‘sociedade livre’, ‘nada de senhores e de servos’, isso não nos
atrai!”256, pois desejar que o “reino da concórdia seja estabelecido na Terra257”, seria o
política.
Nietzsche, que a “pequena política” significa, tanto para o jovem quanto para o último
253
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1885 – outono de 1886, 2 [96], In: KSA, vol. 12, p. 108.
Tr. Oswaldo Giacóia, In: Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 150
254
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência], 377, In: KSA, vol. 3, p. 629
255
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
256
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
257
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
258
Ibid, 377, In: KSA, vol. 3, p. 629. Tr. p. 280.
98
moderno”259, o indivíduo do utilitarismo, dos direitos iguais, que pretende um Estado que
possa servi-lo, sobretudo no que diz respeito ao bem estar social e à ausência de conflitos
“último homem” que, de acordo com a explicação de Giacóia (1999, p. 152), é o homem
que se “interpreta como o fim da história, como o telos até então oculto e ora manifestado
do curso do mundo, como se toda história universal não fosse senão o prelúdio e a gestação
do advento de sua felicidade”, enfim assegurada num pacífico “reinado universal da razão”,
é, acima de tudo, incapaz de suportar a dor, é o homem da moral escrava, sua necessidade
consiste em justamente criar subterfúgios para amenizar a tragédia da existência, e por isso
Ai! Chega o tempo do homem mais desprezível, que não pode mais desprezar a si
mesmo. Olhai! Eu vos mostro o último homem. Que é amor? Que é criação? Que
é anelo? Que é estrela – assim pergunta o último homem, e pestaneja. A terra se
tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo
pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais
tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e
pestanejam. Abandonaram as regiões onde é duro viver: pois a gente precisa de
calor. A gente ama inclusive o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de
calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com
cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um
pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E muito
veneno no final, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando,
pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse.
Já não nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas são demasiado
molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas
são demasiado molestas.260
vida a uma economia mínima de forças, a uma economia da espécie que consiste na
259
Tema analisado no capítulo 2, seção 2.3.
260
NIETZSCHE, Also sprach Zaratustra [Assim falou Zaratustra], prólogo 5, In: KSA, vol. 4, p. 19s. Tr. de
Oswaldo Giacóia Júnior, In: Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 152-153.
99
redução de contrastes e diferenças, a um igualitarismo de rebanho. “Quem ainda governar?
Quem ainda obedecer?”, são questões pertinentes a uma política uniforme, igualitária, de
Para Giacóia (1999, p. 153) “a felicidade inventada pelo último homem acoberta a
todos são iguais: quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o hospício [...]
equiparar as diferenças de tal forma que esses valores passam a ser virtudes, é a
261
Ibid, prólogo 5, In: KSA, vol.4, p. 20. Tr. p. 153.
100
causa de toda miséria e falência humana: com o que a verdade vem ficar
alegremente de cabeça para baixo! O que eles gostariam de perseguir com todas
as forças é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança,
ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos; suas duas doutrinas e
cantigas mais bem lembradas são “igualdade de direitos” e “compaixão pelos que
sofrem” – e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve
262
abolir.
para a decadência da humanidade que com o igualitarismo uniformizador perdeu toda a sua
além de bem e mal, que esclarece a atuação de uma vontade de poder específica e
responsável pelo rebaixamento do homem moderno. Isto porque, como afirmamos (seção
2.2), na democracia moderna não deixa de haver poder ao proclamar pela igualdade de
todos, há uma vontade de poder atuante, a saber, a vontade de poder da moral de rebanho
assimilação “fisiológica” de uma moral, além da qual nenhuma moral deve existir. Desta
262
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Bose [Para além de bem e mal], 44, In: KSA, vol.5 p. 60-61. Tr. p. 47-
48.
263
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.
101
maneira, “a mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos
desejos obtêm fama e honra morais”264. A tentativa do liberalismo burguês consiste em,
esperanças, tornar suspeita a felicidade da beleza, dobrar tudo o que era altivo, viril,
conquistador, dominador, todos os instintos próprios dos mais elevado e mais bem logrado
foi uma tarefa que “a Igreja se impôs e teve que se impor, até que, em sua estimativa,
forma, “esses homens, com sua ‘igualdade perante Deus’”267, governaram o destino da
Europa, “até que finalmente se obteve uma espécie diminuída, quase ridícula, um animal de
limitados269” possam pregar pela igualdade, pois “eles lutam pela ‘igualdade de todos
perante Deus’”270, e com a ajuda da religião cristã a moral de rebanho foi capaz de alcançar
264
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 123. Tr. p. 100.
265
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 82. Tr. p. 66.
266
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 82. Tr. p. 66.
267
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 83. Tr. p. 66.
268
Ibid, 62, In: KSA, vol. 5, p. 83. Tr. p. 66.
269
Ibid, 219, In: KSA, vol. 5, p. 154. Tr. p. 125.
270
Ibid, 219, In: KSA, vol. 5, p. 154. Tr. p. 125.
102
o status de a moral, que julga saber que é bem e mal. O desenvolvimento do movimento
possibilidade de uma nova moral, “sobretudo mais elevadas”271, e que afirma, “obstinada e
inexorável: ‘Eu sou a moral mesma, e nada além é moral!’”272. Assim, “nessa imbricação
Como se suas virtudes fossem algo útil e desejável, a saber, a ingenuidade, a simplicidade,
cordialidade: assim quereis o homem? É assim que pensais vosso ‘homem bom’? Mas o
que se alcança com isso é apenas o chinês do futuro, o ‘carneiro de Cristo’, o socialista
consumado”275.
preparado para ser comandado, e não comandar. A obediência é, para Nietzsche, o traço
“homem moderno”. Para Nietzsche, “desde que existem homens, houve também rebanhos
de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que
271
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124.Tr. p. 101.
272
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 124. Tr. p. 101.
273
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Friedrich Nietzsche: A “Grande Política” Fragmentos. Clássicos da
Filosofia: Cadernos de tradução nº 3. Introdução, seleção e tradução Oswaldo Giacóia Júnior. IFCH:
UNICAMP, 2002, p. 11.
274
NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra [Assim falou Zaratustra], Prólogo, 5, In: KSA, vol. vol. 4, p.
19s. Tr. p. 40.
275
NIETZSCHE, Fragmentos póstumos, 16 [13], In: KSA, vol. 13, p. 486. Tr. Carlos Alberto Ribeiro de
Moura, In: Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 214.
103
obedeceram em relação ao pequeno número dos que mandaram”276, portanto, a obediência
foi até hoje longamente cultivada e, por isso, “é justo supor que via de regra é agora inata
em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz:
‘você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo’, em suma, ‘você
deve’”277. Assim, “a singular estreiteza da evolução humana, seu caráter hesitante, lento,
Europa de hoje, esses “bichos-de-rebanho” não fazem outra coisa senão apresentar o
ainda mais contemporânea quando ele afirma que “nos casos em que se acredita não poder
comandantes pela soma acumulada de homens de rebanho sagazes: eis a origem de todas as
comunidade”282, e assim “a felicidade lhe parece, de acordo com uma medicina e maneira
276
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 199, In: KSA, vol. 5, p. 119. Tr. p.
97.
277
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 199. Tr. p. 97.
278
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 199. Tr. p. 97.
279
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 120. Tr. p. 98.
280
Ibid, 199, In: KSA, vol. 5, p. 120. Tr. p. 98.
281
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 99.
282
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 99.
104
repouso, da não-perturbação, da saciedade, da unidade enfim alcançada”283. Desta forma, o
progresso almejado pelo homem “moderno” segue a tradição cristã, e “Tudo somado, o
percebida, para moral de rebanho, como perigo, pois “tudo o que ergue o indivíduo acima
resguardar, prevenir-se da moral aristocrática, e nada mais eficaz do que instituir como a
única moral possível a que pretende igualar na mesma medida de forças todos os homens.
que maneira a nossa civilização é, para Nietzsche, apenas a continuação dos velhos ideais
“moderno”.
283
Ibid, 200, In: KSA, vol. 5, p. 121. Tr. p. 98.
284
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 122. Tr. p. 99.
285
Ibid, 201, In: KSA, vol. 5, p. 123. Tr. p. 100.
105
3.2- O movimento democrático: herança do movimento cristão
gregários, prolonga na civilização moderna a busca por um ideal de homem que seja a
que é, para Nietzsche, apenas a afirmação da moral cristã. Essa sobrevida dos valores
moderna, como o socialismo e a democracia, que devem ser compreendidas como figuras
permanecem no ideário sócio-político moderno e, assim, “com a ajuda de uma religião que
encontrarmos até mesmo nas instituições políticas e sociais uma expressão cada vez mais
radical e instintiva inimizade a toda outra forma de sociedade que não a do rebanho
gregário, os mesmos valores da moral cristã e, por isso, são “unânimes na tenaz resistência
286
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 202, In: KSA, vol. 5, p. 124 - 125. Tr.
p. 102.
287
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.
288
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.
289
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p. 125. Tr. p. 102.
106
a todo particular direito e privilégio”, sendo todos iguais ninguém mais precisa de direitos;
também são unânimes contra a justiça punitiva, compreendida como uma violência aos
mais fracos; “igualmente unânimes na religião da compaixão, na simpatia com tudo o que
de valor”291 .
natural, e por isso consiste em uma interpretação de uma vontade de poder, que remonta ao
cristianismo e tem nele a sua única garantia. A partir da crença de que todos são filhos de
Deus e, portanto, “como filho de Deus, cada um é igual a todos”292, o cristianismo passou a
semear o “veneno da doutrina dos direitos iguais”, e “fez uma guerra de morte a partir do
mais ocultos recantos dos maus instintos contra todo o sentimento de respeito e distância
290
Ibid, 202, In: KSA, vol. 5, p.125. Tr. p. 102.
291
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 126. Tr. p. 103.
292
Ibid, 29, In: KSA, vol. 6, p. 200. Tr. p. 64.
107
entre um homem e outro homem, contra o pressuposto de todo crescimento da cultura”293.
Nesta guerra do cristianismo contra toda moral que não seja a moral de rebanho, “o
sentimento aristocrático foi o mais reconditamente minado pela mentira da igualdade das
almas”, pois o “cristianismo é uma insurreição de tudo o que rasteja contra tudo quanto está
elevado”294.
Assim, a política moderna não é senão a repetição dos mesmos valores da moral
cristã, pois “Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ –
‘no nada’ -, tira-se da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade
pessoal destrói toda a razão, toda a natureza do instinto”295, e tudo o que há no instinto de
grandeza, benéfico, vivificante, “tudo o que promete o futuro, suscita agora desconfiança”,
para si próprio um outro mundo, onde essa afirmação da vida fosse considerada mal, o
reprovável por si”296. Esse tipo homem do cristianismo, bem como da democracia moderna,
aspira o poder da decadência, pois é “interesse vital dessa classe de homens tornar a
293
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 217-218. Tr. p. 79.
294
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 218. Tr. p. 79.
295
Ibid, 43, In: KSA, vol. 6, p. 217. Tr. p. 78.
296
Ibid, 24, In: KSA, vol. 6, p. 192. Tr. p. 58.
297
Ibid, 24, In: KSA, vol. 6, p. 193. Tr. p. 58.
108
cristianismo legitimou-se como progresso humanitário dos valores gregários, a saber,
afirma hoje, a humanidade não representa uma evolução para algo melhor, mais forte ou
mais elevado. O ‘progresso’ não passa de uma idéia moderna, ou seja, de uma idéia
“bom”, altruísta, virtuoso por amar o próximo, igualitarista, seu produto final será um tipo
direitos iguais conquistar se ele continuar atado aos valores utilitaristas e cristãos. Não
podendo ir além de seus próprios valores morais o homem moderno irá conduzir a sua
298
Ibid, 4, In: KSA, vol. 6, p. 171. Tr. p. 40.
299
Ibid, 4, In: KSA, vol. 6, p. 171. Tr. p. 41.
300
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 228, In: vol. 5, p. 164-165. Tr. p. 134.
109
Sobre nós modernos impera a virtude dos ideais cristãos. O que o homem do
no aforismo 203 de Para além de bem e mal, que a “degeneração global do homem,..., essa
degeneração e diminuição do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho (ou, como
direitos e exigências iguais é possível”301. Mas, continua Nietzsche neste mesmo aforismo,
o homem “está ainda inesgotado para as grandes possibilidades”302, e quem refletiu, até o
nojo a mais que os outros homens – e também, talvez, uma nova tarefa!”303. O ataque
suprimiu sua grandeza e singularidade tem, como contrapartida, a “grande política”, projeto
Ocidental.
apresenta uma nova perspectiva, que permite e incentiva o jogo, as tensões, o vir a ser, a
próximo século que deve, acima de tudo, propiciar o surgimento da cultura, em detrimento
301
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 128. Tr. p. 104.
302
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 127. Tr. p. 104.
303
Ibid, 203, In: KSA, vol. 5, p. 128. Tr. p. 104.
110
homem” Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch), figura
oposta aos ideais modernos e impensável para a “pequena política” que, por sua vez, faz
seguinte.
herança dos valores cristãos, sobretudo no que se refere ao igualitarismo uniformizador, por
explicitamente desenvolvida:
Moral privada e moral mundial: Após o fim da crença de que um deus dirige os
destinos do mundo e, não obstante as aparentes sinuosidades no caminho da
humanidade, a conduz magnificamente à sua meta, os próprios homens devem
estabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a Terra inteira. A antiga
moral, notadamente a de Kant, exige do indivíduo ações que se deseja serem de
todos os homens: o que é algo belo e ingênuo; como se cada qual soubesse sem
dificuldades, que procedimento beneficiaria toda a humanidade, e portanto que
ações seriam desejáveis; é uma teoria como a do livre-comércio, pressupondo que
a harmonia universal tem que produzir-se por si mesma, conforme leis inatas de
aperfeiçoamento. Talvez uma futura visão geral das necessidades da humanidade
mostre que não é absolutamente desejável que todos os homens ajam do mesmo
modo, mas sim que, no interesse de objetivos ecumênicos, deveriam ser
propostas, para segmentos inteiros da humanidade, tarefas especiais e talvez más,
ocasionalmente. – Em todo caso, para que a humanidade não se destrua com um
111
tal governo global consciente, deve-se antes obter, como critério científico para
objetivos ecumênicos, um conhecimento das condições da cultura que até agora
não foi atingido. Esta é a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo
século.304
ao homem a tarefa de, conscientemente, almejar objetivos ecumênicos, e que por isso não
cultura que ainda não foram atingidas. Para Nietzsche, “os homens podem conscientemente
decidir se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes se desenvolviam
autônomo, senhor de si. Assim, para Nietzsche, hoje os indivíduos podem gerir melhores
condições e qualidade de vida, “podem criar condições melhores para procriação dos
indivíduos, sua alimentação, sua educação, sua instrução, podem economicamente gerir a
Terra como um todo, ponderar e mobilizar as forças dos indivíduos umas em relação às
que ainda não foi atingido, pode ser pensada como um desenvolvimento ético (estético) da
304
NIETZSCHE. Menschliches, Allzumenschliches. [Humano, Demasiado Humano], 25, In: KSA, vol. 2, p.
46. Tr. p. 33-34.
305
Ibid, 24, In: KSA, vol. 2, p. 45. Tr. p. 33.
306
Ibid, 24, In: KSA, vol. 2, p. 45. Tr. p. 33.
112
Giacóia esclarece (2002, p. 9) que este desenvolvimento nietzscheano acerca de
ser considerado como a versão soft da política nietzscheana. Esta análise está bastante
distante daquela que será desenvolvida no último período da filosofia de Nietzsche, como
sua versão hard, quando o conceito de “Grande política” passa a der compreendido a partir
de uma perspectiva de domínio, pautado por um vocabulário bélico. Mas, ainda esclarece
Giacóia, “nossa hipótese de interpretação supõe que este acirramento do pathos dominador
Nietzsche não é o caso de desistir das possibilidades de instituir um novo governo, mas de
superar tanto o dogmatismo quanto o ceticismo através da “grande política”: “o tempo para
a pequena política passou; já o próximo século traz consigo a luta pelo domínio da terra – a
coerção à grande política”308. Este combate pelo domínio da Terra exigirá grandes
acontecimentos e os maiores pensadores para concretizá-la. Por essa razão, a superação dos
antigos valores da “pequena política” é “a imensa tarefa dos grandes espíritos do próximo
307
NIETZSCHE, Fragmento póstumo do outono de 1885 – outono de 1886, 2[13], In: KSA, vol. 12, p. 71s.
Tr. p. 32.
308
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 208, In: KSA, vol. 5, p. 140. Tr. p.
114.
113
século”309. Próxima a esta meta vislumbrada por Nietzsche em Humano, Demasiado
Para novos filósofos , não resta nenhuma escolha: para espíritos suficientemente
fortes e originários para dar os impulsos e avaliações antagônicas e transvalorar
‘valores eternos’; a precursores, a homens do futuro, que atem no presente a
coação e o nó, que constranjam a vontade de milênios a seguir novas rotas. Para
ensinar ao homem que o futuro do homem é vontade sua, que depende de uma
vontade humana, e para preparar grandes ousadias e tentativas globais de
disciplina e seleção, destinados a acabar com aquele horrível domínio de absurdo
e acaso que até agora se chamou “história”310.
encargo de determinar-se, pois “quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia
por alguém que comande severamente – por um deus, um príncipe, uma classe, um médico,
harmonia com um perfil humano de grandeza, com aquele que estiver preparado para
grandeza inovadora de dar novos rumos à história do homem, definir a figura do futuro
e teve que se achar em contradição com o seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de
309
NIETZSCHE, Menschliches, Allzumenschliches. [Humano, Demasiado Humano], 25, In: KSA, vol. 2, p.
46. Tr. p. 34.
310
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 203, In: KSA, vol. 5, p. 126. Tr.
Oswaldo Giacóia Júnior, In: Nietzsche & Para Além de Bem e Mal, p. 50.
311
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia Ciência], 347, In: KSA, vol. 3, p. 582. Tr. p. 241.
114
hoje”312. Questionador por excelência o filósofo esteve sempre além, em busca de uma
nova grandeza, de um caminho ainda não trilhado para elevar-se e criar novos valores. Por
isso, para Nietzsche, ao filósofo sempre competiu uma dura, indesejada e grande tarefa, a
deixar-se cair, o quanto de mentira se escondia sob o mais venerado tipo de moralidade
moral de rebanho, uma vontade de poder fraca que precisa crer na “verdade” de seus
tensão, o conflito.
vimos (seção 3.1), é o tipo homem da democracia moderna, o herdeiro das “virtudes”
conseqüência, para Nietzsche, “no ideal do filósofo devem ser incluídas na noção de
Um projeto filosófico como a “grande política” exige grandes pensadores que estejam além
de seu tempo, desta forma “os autênticos filósofos são comandantes e legisladores”315, são
eles que determinam “o para onde? e para quê? do ser humano”316. Para Nietzsche,
enquanto hoje na Europa “somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a
312
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 212, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p.
118.
313
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 146. Tr. p. 119.
314
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 146. Tr. p. 119.
315
Ibid, 211, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
316
Ibid, 211, In: KSA, vol. 5, p. 145. Tr. p. 118.
115
dizer em uma guerra comum a tudo o que é raro, estranho, privilegiado”317; ao filósofo-
legislador318 caberá o dever de afirmar o oposto a esta tirania da moral de rebanho, deverá
criar noções de grandeza, assim revelará algo de seu próprio ideal quando afirmar:“‘Será o
maior aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem
século traz consigo a coerção para a “grande política”, podemos nos questionar pelo sentido
59) esclarece, no texto Nietzsche & Para além de bem e mal, que “ao se perguntar pelo
sentido de aristocracia no mundo moderno, Nietzsche indica que a resposta à questão não
pode consistir numa reacionária nostalgia das aristocracias passadas”. Isso porque, a
Revolução Francesa determinou um tipo de sociedade civil dela emergente que corrompeu
significação para uma vida aristocrática – “que se destaca pela excelência, que é
317
Ibid, 212, In: KSA, vol. 5, p. 147. Tr. p. 119-120.
318
Importante esclarecer que na filosofia nietzscheana o contraposto do “último homem” é o filósofo do
futuro, o “iconoclasta transvalorador” e que, não por acaso, o ideal da filosofia política de Platão estava
centrado na figura do filósofo legislador, o governante e legislador. A respeito desta aparente aproximação,
Giacóia (2005, p. 78) esclarece que: “Se Nietzsche, por sua vez, reivindica para o seu ‘contra-ideal’, para os
filósofos do futuro, contrapostos ao ‘último homem’, enfim, para o seu Übermensch, esse mesmo status de
‘legislador para futuros milênios’, ele o faz numa derrisória inversão paródica do ideal platônico, numa
espécie de estilização dramático-filosófica de um parricídio espiritual cuja vítima é o pai fundador da
metafísica ocidental, berço originário da moral cristã”. Ilustrativo é o aforismo 24, da segunda dissertação de
Para a Genealogia da Moral.
319
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 212, In: KSA, vol. 5, p. 147. Tr. p.
120.
116
reconhecida como liderança legítima e, como tal, se põe à frente e se imortaliza por suas
Toda elevação do tipo “homem” foi, até o momento, obra de uma sociedade
aristocrática – e assim será sempre: de uma sociedade que acredita numa longa
escala de hierarquias e diferenças de valor entre um e outro homem, e que
necessita da escravidão em algum sentido. Sem o pathos da distância, tal como
nasce da entranhada diferença entre as classes, do constante olhar altivo da casta
dominante sobre os súditos e instrumentos, e do seu igualmente constante
exercício em obedecer e comandar, manter abaixo e ao longe, não poderia nascer
aquele outro pathos ainda mais misterioso, o desejo de sempre aumentar a
distância no interior da própria alma, a elaboração de estados sempre mais
elevados, mais raros, remotos, amplos, abrangentes, em suma, a elevação do tipo
“homem”, para usar uma fórmula moral num sentido supramoral. 321
vincular o tom forte e agudo das palavras de Nietzsche com seu real propósito, caso
nietzscheana à modernidade alcança seu grau máximo de intensidade, são alvejados aqui os
polêmica esteja no fato de que apenas de maneira estridente é possível despertar a atenção
daqueles que concebem a igualdade como um valor em si. Contra o igualitarismo uniforme
hierarquia e a diferença entre um e outro homem são pressupostos para a elevação do “tipo
320
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche & Para além de bem e mal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2002, p. 59.
321
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 257. In: KSA, vol. 5, p. 205. Tr. p.
169.
322
Giacóia (2002, p. 60) explica que o aforismo 257 de Para além de bem e mal foi interpretado por muitos
comentadores de Nietzsche como característico do seu reacionarismo nostálgico. Assim, a nossa interpretação
pretende tornar claro o tom provocativo de Nietzsche e esclarecer de que maneira Nietzsche não legitima a
escravidão como fenômeno histórico e social, mas em um sentido metafórico, que consiste na hierarquia, no
pathos da distância, entre um e outro homem.
117
Como afirmamos anteriormente (capítulo 2), Nietzsche não pretende um
regresso histórico, e sim a superação. Nestes termos, a evocação nietzscheana a uma classe
aristocrata não deve ser compreendida como uma reacionária nostalgia das aristocracias
consonância com o pathos da distância. É como recurso metafórico que Giacóia (2002, p.
sua interiorização atua como meio para a aquisição de um tipo mais refinado de
ou espiritual”.
distinção entre a “grande política” e a “pequena política” esteja no fato de que o abismo que
afirmação de si, a tensão entre os extremos, é próprio de toda época forte e, sobretudo, é
uma perspectiva que está para além de bem e mal. Isso significa que, diferentemente das
118
maneira que à diversidade moral caberia determinar figuras diversas da natureza “humana”,
Nesta perspectiva, o “além do homem”, bem como a “raça senhorial”, não tem,
hierárquicas de que fala Nietzsche não devem ser compreendidas como diferenças de
como “nobre”, “senhor”, com qualquer espécie de estamento social. Esta interpretação
tornar-se legítima se pensarmos que além de ser o crítico da moral e o filósofo da cultura,
modernidade.
alternativa ética. O trágico, para ele, se torna uma afirmação integral da vida para além das
oposições morais de bem e mal. Desta forma, a oposição entre uma classe escrava e uma
323
Esta nossa interpretação apóia-se na explicação de Giacóia(2002, p. 66): “Em verdade, o resultado a que
Nietzsche pretende nos conduzir poderia se resumir na descoberta de que não existe ‘a’ moral, existem
morais. A diferentes configurações de ‘natureza humana’ correspondem diferentes tipos de moral – do mesmo
modo como, complementarmente, tipos diversos de moral modelam figuras diversas de ‘natureza’ humana,
em correspondência com o caráter proteiforme da vontade de poder”.
324
Muito esclarecedor é o manuscrito de impressão desse aforismo 257, não publicado por Nietzsche, e
recolhido pelos organizadores de edição histórico-crítica de suas obras e publicado no volume de comentários
histórico-filológicos, traduzido por Oswaldo Giacóia Júnior (2002, p. 64-65), que faz uma importante
interpretação acerca deste manuscrito: “ele torna inequívoco que ‘as naturezas mais naturais’, os homens de
rapina e as raças mais fracas e exauridas não são determinações biológicas, ou raciais, nem que tais figuras
indiquem uma ontologia natural da força”. Por ser esclarecedor e complementar às nossas análises, citamos o
manuscrito: “A ‘humanização’ de tais bárbaros é essencialmente um processo de enfraquecimento e
abrandamento e se completa precisamente à custa daqueles impulsos aos quais eles deviam sua vitória e
posse; e desse modo, enquanto se apropriam de virtudes ‘mais humanas’, completa-se também gradualmente,
do lado dos oprimidos e escravizados, um processo inverso. Na medida em que estes são mantidos como mais
brandos, mais humanos e, por conseqüência, prosperam fisicamente de modo mais profuso, desenvolve-se
neles o bárbaro, o homem fortalecido, o semi-animal com a avidez da selva, o bárbaro que um dia se sente
suficientemente forte para se defender de seus humanizados, isto é, enlanguescidos senhores. O jogo começa
de novo: estão dados novamente os inícios de uma cultura superior e aristocrática”.
325
Como afirmamos na introdução deste trabalho, concordamos com a afirmação de Ansell-Pearson (1997, p.
18), de que Nietzsche é primordialmente um filósofo político, e foi exatamente a crítica da modernidade
política nietzscheana que buscamos desenvolver neste trabalho.
119
raça aristocrática são proposições nietzscheanas cuja finalidade consiste em indicar as
terríveis326. Diante disso, há ainda uma outra questão relevante que deve ser analisada a fim
Foi apenas com atos de violência e crueldade (como vimos no capítulo 1, seção 1.1) que a
conquistada, para Nietzsche, nos momentos de tensão que exigem a coragem e a força de
uma vontade de poder que tem domínio de si mesma. Assim, no final do aforismo 257 de
Para além de bem e mal327, Nietzsche retoma as origens de uma sociedade aristocrática,
explicando que o surgimento de toda cultura foi possível apenas com atos de crueldade, e
não por contratos, tampouco pelo consenso entre os homens. Nas palavras do filósofo:
326
Como explica Giacóia no texto Nietzsche & Para além de bem e mal, p. 62.
327
Este aforismo já foi citado e comentado no capítulo 1, seção 1.1. Sua repetição justifica-se pela sua
importância para concluirmos as nossas considerações acerca da aristocracia nietzscheana e da “Grande
política”.
328
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 257. In: KSA, vol. 5, p. 205s. Tr. p.
169-170.
120
O final deste aforismo pretende ser revelador: examina a partir de perspectiva
primórdios, a atuação rigorosa dos mais vigorosos instintos hostis, daquilo que
perspicaz ao afirmar que a preponderância dos bárbaros não estava primariamente na força
física, mas na psíquica. Disso concluímos que não pertence à filosofia nietzscheana
qualquer apologia à força bruta; a elevação de uma raça mais nobre, aristocrática é
bem e mal é explicada pelas proposições de Nietzsche acerca da civilização moderna que
legitimar a escravidão, ao que nos parece. Não se trata de criar uma classe nobre para fins
121
qual o trabalhador transforma-se em rendimento. A condição econômica imposta pelo
igualitarismo moderno não é outra coisa senão a redução coletiva do homem à condição de
260 de Aurora:
erigir uma administração econômica global da terra, essa “modernidade” preserva uma
maneira inconsciente uma classe escrava que faz do trabalho humano instrumento de lucro,
de máximo rendimento e que, por isso, pode levar a formas bárbaras de dominação, a
promotora do trabalho escravo. Contra esta política burguesa liberal que pretende sempre
329
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 206. In: KSA, vol. 3, p. 183s. Tr. p. 151-152.
122
um emprego mais econômico do homem e da humanidade, Nietzsche elabora seu conceito
de “além do homem”:
que”, delineado por novas perspectivas políticas e culturais. Esse novo “para que”
apresenta-se como a esperança para um novo futuro que caberá aos filósofos, aos “espíritos
livres”, definirem. A “pequena política”, a política dos ideais modernos, consiste em uma
exploração econômica de forças e valores mínimos, que tem como meta um otimismo
330
NIETZSCHE, Fragmento póstumo – outono de 1887, 10[17]. In: KSA, vol. 12, p. 462s. Tr. p. 42-43.
123
econômico, no qual um imenso mecanismo de engrenagens sempre mais adaptadas, uma
soma de forças, caminha para o rebaixamento, para a perfeição instrumental do tipo homem
que, segundo Nietzsche, resulta em um prejuízo de todos e, assim, numa perda global.
mesmo que para tanto seja necessário o uso da exploração, mas, note-se, uma exploração
que para Nietzsche tenha “sentido”, a saber, capaz de reintegrar à arte e à ciência um valor
pequena política ou, em outras palavras, de instituir a grande política, projeto nietzscheano
excelência, é a alma nobre que tem reverência por si mesma, representa a singularidade, a
exceção, por isso não sucumbe à tirania do comum, da vida fácil e feliz que é almejada pelo
O que é nobre? O que significa para nós a palavra “nobre”? Onde se revela, em
que se reconhece, sob o pesado e anuviado céu do incipiente domínio da plebe,
através do qual tudo fica opaco e plúmbeo, o homem nobre? – Não são os atos
que o apontam – os atos são sempre ambíguos, sempre insondáveis -; também
não são as “obras”. Entre artistas e eruditos encontram-se muitos que revelam,
com suas obras, o quanto um anseio profundo os impele em direção ao que é
nobre: mas precisamente este necessitar do que é nobre é radicalmente distinto
das necessidades da alma nobre mesma, e inclusive um sintoma eloqüente e
perigoso da sua ausência. Não são as obras, é a fé que aqui decide, que aqui
estabelece a hierarquia, para retomar uma fórmula religiosa num sentido novo e
mais profundo: alguma certeza fundamental que a alma nobre tem a respeito de
si, algo que não se pode buscar, nem achar, e talvez tampouco perder. A alma
nobre tem reverência por si mesma331.
331
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 287. In: KSA, vol. 5, p. 232-233. Tr.
p. 192.
124
A alma nobre não precisa buscar pela aristocracia, ela se distingue de maneira
“natural” da maioria comum e alienada. Assim, a alma nobre tem respeito por si mesma,
isso significa que ela representa a particularidade, a distinção, a exceção no pensar e agir. O
aristocrata é o tipo homem que permanece senhor do que Nietzsche denomina de “nossas
Assim, o filósofo precisa estabelecer uma distância (hierarquia) com o habitual e comum
para realizar grandes proezas, transvalorar os valores para além de bem e mal e permitir o
“conhecimento das condições da cultura que até hoje não foram atingidos”, como afirma
Por fim, parece-nos apropriado concluir com uma pequena síntese do que foi
por nós apresentado, destacando que Nietzsche apresenta a “grande política”, acima de
tudo, como um projeto que pretende ser um contra-movimento, uma oposição à política
e rebaixamento do homem, não deve causar mal entendidos: Nietzsche é o filósofo que está
para além de bem e mal, é o filósofo da transvaloração dos valores. Por isso, preocupa-se
solidez e subverter os valores do império da moral cristã, para que no lugar de uma única
332
Ibid, 284. In: KSA, vol. 5, p. 232. Tr. p. 191.
125
moral seja possível agir e pensar conforme a leveza do vir a ser constante de novos valores
morais.
política de Nietzsche, pois não se trata de legitimar uma classe escrava como condição
inexorável da cultura superior. Nietzsche não poderia limitar a sua reflexão filosófica-
política a uma hierarquia que se justificasse por classes econômicas ou sociais. Pretende,
este filósofo, superar o otimismo econômico presente nos ideais políticos do liberalismo
burguês e, conseqüentemente, evitar que o prejuízo de todos se some em uma perda global.
Assim, para Nietzsche, a humanidade precisa de um novo “para que?”, um novo sentido
que não seja aquele do humanitarismo cristão que almeja a domesticação dos instintos e a
Homem”333.
bem como de um novo tipo-homem que represente uma alternativa (ética e estética) para o
último homem deve ser superado, o homem deve superar a si mesmo e deixar de se
333
NIETZSCHE, Fragmento póstumo, primavera-verão de 1883, 7[21]. In: KSA, vol. 10, p. 244s. Tr. p. 26.
126
política”, dando lugar ao além-do-homem e à “grande política”. A meta de Nietzsche não é,
duas espécies devem subsistir uma ao lado da outra – possivelmente separadas: uma delas,
como os deuses epicuros, não se ocupando da outra”334. Assim, nestes termos, é que a
com suas prerrogativas de direitos iguais, bem como a fragmentação do homem pela
334
Ibid. Tr. p. 26.
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao reconhecermos a sua importância no interior do seu projeto filosófico, não nos parece
que seja o caso de limitarmos este tema apenas por sua relevância, mas sim compreendê-lo
ainda somos criaturas da consciência, afirma Nietzsche no prólogo de Aurora, é pelo fato
de que “não desejamos voltar ao que consideramos superados e caduco, a algo ‘indigno de
fé’, chama-se ele Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao próximo; de que não nos
“necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser
colocado em questão”336. Essa crítica, afirma o filósofo, é uma “nova exigência”. Mas,
Nietzsche apresenta uma crítica radical da modernidade cultural em Para além de Bem e
mal. Foram estas as duas principais obras analisadas nesta dissertação, na tentativa de
política contemporânea.
335
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], prólogo, 4, In: KSA, vol. 3, p. 16. Tr. p. 13.
336
NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral [Para a Genealogia da Moral], 6, prólogo, In: KSA, vol. 5, p.
253. Tr. p. 12.
128
Se até hoje as correntes filosóficas ocuparam-se em fundamentar os valores
morais, sem se preocupar com o valor desses valores, eis que Nietzsche apresenta-se como
velhas questões presentes na tradição filosófica a partir de uma nova perspectiva: Nietzsche
passa a investigar a gênese dos valores morais, procedimento que implica em retomar, por
da má consciência. Enfim, trata-se de uma nova perspectiva que considera a cultura como
escritos nietzscheanos não pretendem erigir um novo ídolo. Não se trata de propor uma
meta, um novo ideal, mas sim de apresentar um contra-discurso aos valores decadentes da
modernidade A busca por ídolos não é um desejo do “espírito livre”, mas de seu
antagonista, o “último homem”, que ainda precisa crer em algo além para dar sentido a sua
do mundo idealizado pela moral escrava, tal como fizeram até hoje os filósofos dogmáticos,
sobre a gênese da moral”, uma vez que o sentimento de moralidade ficou “tão refinado e
129
posto nas alturas”337 que, para Nietzsche, a moral se “volatilizou”. Desta forma, o
questionamento acerca dos valores morais quando realizado pode “soar” grosseiramente, ou
parecer caluniar a moralidade338. Mas esta percepção restringe-se a uma leitura talvez
natural do homem. Ponderemos aqui (de forma simplificada) a divergência entre as teorias
como afirmamos na seção 1.1, e isso ele claramente afirma em Ecce Homo: “a última coisa
mais uma otimista hipótese que pretende erigir um novo ídolo, uma nova meta a ser
atingida.
Nestes termos é possível compreender que o que separa Nietzsche dos filósofos
dogmáticos: a pretensão destes em formular uma verdade universal. Por isso, a necessidade
de filósofos do futuro, para quem será “preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de
337
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 9, In: KSA, vol. 3, p. 21. Tr. p. 17
338
Ibid, 9. In: KSA, vol. 3, p. 21. Tr. p. 17.
339
NIETZSCHE, Ecce Homo, prólogo, 2. In: KSA, vol. 6, pg. 257. Tr. p. 40.
130
acordo com muitos. ‘Bem’ não é mais bem, quando aparece na boca do vizinho. E como
poderia haver um ‘bem comum’?”340. O filósofo do futuro sabe que a unanimidade não
uma coisa em si é preciso reconhecer também que não há fato em si. Portanto, Nietzsche
contesta a teoria positivista que insiste em afirmar que só há fatos. Para o filósofo
imoralista o mundo não tem um sentido unívoco, “não existem fenômenos morais, apenas
pelo exame crítico de Nietzsche são os valores decadentes exaltados pela democracia
pelas instituições, o homem que elege a razão como autoridade, acredita na “virtude” do
indivíduo não é outra senão o cristianismo. Esta religião sempre atuou na domesticação dos
instintos, ocupou-se da tarefa de promover a debilidade do homem fazendo com que a boa
340
NIETZSCHE, Jenseits von Gut und Böse [Para além de bem e mal], 43. In: KSA, vol. 5, p. 60. Tr. p. 47.
341
Ibid, 108, In: KSA: vol. 5, p. 92. Tr. p. 73.
131
consciência estivesse sempre ao lado da boa obediência342. Foi o cristianismo que colocou
como nobreza, forte,“espiritualmente bem nascido”, ao lado dos valores que devem ser
A teoria cristã da igualdade dos homens perante Deus é validada pelo homem da
modernidade, que acredita na crença da igualdade como condição única para alcançar o
do cristianismo é o mesmo homem bom dos ideais democráticos. Contudo, não nos parece
As análises que poderíamos fazer estão presentes nas reflexões que fazem parte
desta dissertação. Que são, sobretudo, reflexões iniciais, despretensiosas por reconhecer a
complexidade dos escritos de Nietzsche. Não seria exagero afirmar que, ao final de nossas
finais não é outra senão a de que muito ainda temos que nos dedicar às leituras de
Nietzsche, e que muitos aspectos e temas importantes foram adiados para um trabalho
apresentar uma questão que tem a vantagem de explicar de modo mais conciso o
Nietsche tem êxito ao comprovar que a modernidade caracteriza-se pelo prolongamento dos
342
Como afirma Moura (2005, p. 216): “Quem promoveu esta valorização da obediência, esta desvalorização
do comando? É este o trabalho fundamental de nossos ideais civilizadores: fazer com que a boa consciência
esteja apenas ao lado da boa obediência. O ‘homem bom’ é o escravo ideal, alguém preparado apenas para
obedecer”.
132
valores cristãos, mas que ainda é possível superá-los, pois é chegada a hora para o fim da
pequena política. Contudo, como grande psicólogo, Nietzsche reconhece que mesmo sendo
rebanho, parece que na Europa de hoje as pessoas ainda necessitam do cristianismo, pois
ele continua a ser alvo de crença. “Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhe ser
refutado mil vezes – desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por
‘verdadeiro’”343.
sentido e, dessa maneira, fazer uma análise apropriada da democracia como um movimento
uma dessas figuras. A tensão é essencial para Nietzsche, sem os opostos a sua filosofia
conforme a vontade de poder, que não pode ser compreendida a partir dos nossos juízos
343
NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft [A gaia ciência], 347. In: KSA, vol. 3, p. 581. Tr. p. 240.
344
Como afirma Giacóia no texto Crítica da Moral como Política em Nietzsche, p. 166.
133
(preconceitos) morais, mas sim sob uma nova perspectiva para além de bem e mal. Mas,
Essas oposições constantes presentes nos tipos nietzscheanos não são eliminadas
por Nietzsche. Tampouco Nietzsche se ocupa das figuras antagônicas para a promoção
“sofredores”. Essa dualidade sempre vai existir, salvo os momentos de equilíbrio, como
algum momento, “dada a natureza transitória das coisas humanas”, a igualdade de forças,
aqui assumida como condição singular para promover o equilíbrio. Contudo, por mais que
345
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 112. In: KSA, vol. 3, p. 101s. Tr. p. 83.
134
parece-nos pertinente esclarecer o que Nietzsche entende, neste aforismo, por equilíbrio e
mensuração do poder na filosofia de Nietzsche. Nossa relação com o outro estará sempre
marcada por uma relação antagônica de poder. O direito dos outros sobre nós é a concessão
feita pelo nosso sentimento de poder ao sentimento de poder do outro. E, assim, quando nos
sentimos muito poderosos cessa o direito do outro sobre nós, tal como havíamos
reconhecido a ele até então. O equilíbrio, ao que nos parece, não está, portanto, na
poder, tal como requer a boa Eris. Os gregos tinham um conceito ético com relação à
disputa que nós modernos moralizamos para predicativos da moral de rebanho, como
Homero:
[...] a antiguidade grega em geral pensa de modo diferente do nosso sobre rancor
e inveja, julgando como Hesíodo, que aponta uma Eris como má, a saber, aquela
que conduz os homens à luta aniquiladora e hostil entre si, e depois enaltece uma
outra como boa, aquela que, como ciúme, rancor, inveja, estimula os homens para
a ação da disputa. O grego é invejoso e percebe essa qualidade, não como uma
falha, mas como a atuação de uma divindade benéfica: - que abismo existe entre
esse julgamento ético e o nosso!346
346
NIETZSCHE, A Disputa de Homero, In: Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern. In: KSA, vol.
1, p. 787. Tr. p. 70.
135
O mesmo instinto torna-se o penoso sentimento de covardia, sob efeito da
recriminação que os costumes lançaram sobre tal instinto; ou o agradável
sentimento de humildade, caso uma moral como a cristã o tenha encarecido e
achado bom. Ou seja: ele é acompanhado de uma boa ou de uma má consciência!
Em si, como todo instinto, ele não possui isto nem um caráter e denominação
moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante de prazer e
desprazer: adquire tudo isso, como sua segunda natureza, apenas quando entra em
relação com instintos já batizados de bons ou maus, ou é notado como atributo de
seres que já foram moralmente avaliados e estabelecidos pelo povo. – Assim, os
mais antigos gregos olharam a inveja de modo diferente de nós; Hesíodo a inclui
entre os efeitos da boa, benéfica Eris, e não era ofensivo reconhecer algo de
invejoso nos deuses: compreensível num estado de coisas que tinha por alma a
competição; mas a competição era avaliada e estabelecida como algo bom.347
aos instintos uma segunda natureza: uma boa ou uma má consciência. Para os gregos essas
distinções não existiam nestes termos, a inveja, por exemplo, era um sentimento que
estimulava o homem grego para a ação, não era um sentimento que voltava contra o próprio
homem, mas que o incitava ao combate, a querer mais e a aspirar pelo poder. Ao que nos
parece, não há nenhuma caracterização deste agir com um individualismo egocêntrico, seria
este um juízo moral deste instinto. A disputa presente na boa Eris não é uma selvageria do
vida para os gregos. Tanto que Nietzsche afirma, no último parágrafo do texto A disputa de
Homero: “sem inveja, ciúme e ambição de disputa, tanto a cidade grega como o homem
grego degeneram”348.
neste aforismo assume a caracterização da justiça, nos mesmos termos da praticada pelo
347
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 38. In: KSA, vol. 3, p. 45. Tr. p. 36-37.
348
NIETZSCHE, A Disputa de Homero, In: Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern. In: KSA, vol.
1, p. 792. Tr. p. 76.
136
ditado pela boa Eris. Era esse movimento constante de “troca” de poder, ou, se preferir, de
direito dos outros sobre nós e vice-versa, que mantinha os gregos em equilíbrio. A
dificuldade de estabelecer o equilíbrio dá-se justamente pelo fato dele não ser rígido, mas
poder, marcado pela oscilação de ascensão e queda, ou seja, o próprio movimento da luta
dos instintos. A desarmonia social não está, seguindo este pensamento nietzscheano, nas
como na transformação dos instintos pelos juízos morais que, como pretendeu o
desenvolvimento, isso não significa que Nietzsche aqui esteja prescrevendo a fórmula para
o melhoramento do tipo “homem” tão almejado pelos utilitaristas que, erroneamente, sob a
poder, de modo que eternamente o outro tenha direitos sobre nós. Este pensamento é da
gregário.
ainda no aforismo 112 de Aurora, que os direitos surgem a partir de graus de poder
137
direitos desaparecem e surgem outros”349. Portanto, nestes termos, se há um equilíbrio na
ínfimo que seja o seu instante, ele é alcançado apenas no interior da dualidade, dos opostos,
estivermos enganados em nossa análise, não significa uma unidade pacificadora na obra de
Nietzsche, mas a possibilidade efetiva de uma justiça (trágica), que preserva e intensifica a
Por fim, se Nietzsche tem uma postura crítica com relação à democracia
que assegurou o exercício de uma atividade de preservação, Nietzsche formula seu projeto
e construtivas, o que faz com que a conservação da espécie não ocupe posição de destaque
na filosofia de Nietzsche, mas sim a autosuperação. Deste modo, além de seu contra-
discurso aos ideais da modernidade, Nietzsche apresenta uma nova ética para a
risco de ter que renunciar a sua autonomia e ser determinado por outrem, pelos deuses ou
superação de si. Esta conclusão, que pode ser revista e repensada, pretende expressar a
forma com que buscamos refletir as (o)posições nietzscheanas frente ao valor da política
moderna.
349
NIETZSCHE, Morgenröthe [Aurora], 112. In: KSA, vol. 3, p. 101s. Tr. p. 83.
350
Ibid, 23. In: KSA, vol. 3, p. 34. Tr. p. 28.
351
Esta afirmação está presente no texto de Giacóia: Nietzsche & Para além de bem e mal, p. 51.
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