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Supremocracia ou administrocracia no novo direito público

brasileiro?1
Carlos Ari Sundfeld
Professor Fundador da Escola de Direito da FGV-SP. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Advogado em São Paulo.

Liandro Domingos
Especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP. Advogado em São Paulo.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Políticas públicas. agora estão legislando e administrando: esta ideia
Direitos sociais.
vai aos poucos virando lugar-comum.
Sumário: 1 Supremocracia? – 2 Administrocracia – 3 A defe­rên­ No caso brasileiro, é bastante forte a impres-
cia do STF à administrocracia – 4 O ativismo verbal do STF nas
demandas sobre políticas públicas e direitos sociais – 5 O STF são de que o Supremo Tribunal Federal, em seu
equilibrando ativismo verbal com baixa intervenção – 6 Conclusão duplo papel de Corte Constitucional e de órgão de
cúpula da Justiça, se transformou em ator político
central, em autor das grandes decisões do país —
e, portanto, em protagonista da construção do novo
Em homenagem à Profa. Odete Medauar,
direito, especialmente do direito público, em temas
por sua contribuição para que o Direito Admi-
nistrativo brasileiro não perdesse o vigor e
vitais como organização dos Poderes, liberdades,
para que as novas gerações esti­ves­sem pre- políticas públicas ou direitos sociais.
pa­radas para trabalhar na construção do novo. Será correta essa impressão?
Intelectuais importantes do direito brasilei-
ro vêm afirmando que sim. Oscar Vilhena Vieira,
1 Supremocracia?1 por exemplo, vislumbrou “singularidade do arranjo
insti­tucional brasileiro” e, usando o termo Supre-
Nas últimas décadas, as políticas e a ação do
mo­cracia, descreveu um processo de expansão
Estado brasileiro vêm crescendo e mudando inten-
da au­toridade do STF em detrimento dos demais
samente. Para viabilizá-las, um novo direito público
Poderes, que teria deslocado o Tribunal para o
vai aos poucos sendo construído. Mas quem cons-
cen­tro da política brasileira. Disse ele: “A amplia-
trói esse direito?
ção dos instrumentos ofertados para a jurisdição
Para um discurso jurídico que agora parece
consti­tucional tem levado o Supremo não apenas
distante no tempo, essa pergunta soaria trivial,
a exercer uma espécie de poder moderador, mas
pois a ninguém ocorreria outra resposta senão a
também de responsável por emitir a última palavra
de que o direito é fruto das normas gerais e abstra-
sobre inúmeras questões de natureza substantiva,
tas contidas nas leis e, portanto, qualquer direito
ora validando e legitimando uma decisão dos ór-
público novo seria sempre obra da atividade legis-
lativa, isto é, das mãos do Legislativo (que muda gãos representativos, ora substituindo as escolhas
a Constituição e aprova projetos de lei) ou do Exe­ majoritárias”.2
cu­tivo (que participa do processo legislativo, ou O objetivo do presente ensaio é questionar
mesmo o monopoliza, por mecanismos como o das esse ponto de vista. Sem pretender negar a realidade
medidas provisórias). de que as competências constitucionais do Tribunal
Mas essa verdade quase convencional foi sen- se ampliaram e de que o STF está mesmo mais
do crescentemente posta à prova no debate brasi- presente na vida pública — tudo isso é fato —, o
leiro na medida em que os juízes iam abandonando ensaio contesta, porém, a ideia de que, hoje, es­
sua histórica contenção e discrição, e apareciam teja aí a fonte de emanação da palavra decisiva
mais e mais para a opinião pública. Hoje, há uma sobre as grandes questões de natureza substan­
sensação quase generalizada de que o Judiciário tiva. A tese desse ensaio é de que, na construção
está fazendo aquilo que antes se supunha exclusi- do novo di­reito público brasileiro, é exagerado falar
vo das atividades legislativa e executiva. Os juízes em Supre­mocracia.


1
Trabalho originalmente publicado em: ALMEIDA, Fernando Dias 2
VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: o novo poder
Menezes de et al. (Coord.). Direito público em evolução: estudos mo­de­rador. In: MOTA, Carlos Guilherme; SALINAS, Natasha S. C.
em homenagem à Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: (Coord.). Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro (de
Fórum, 2013. p. 31-38. 1930 aos dias atuais). São Paulo: Saraiva, 2010. p. 514 et seq.

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Supremocracia ou administrocracia no novo direito público brasileiro?

2 Administrocracia clássicas de Estado de Direito e Democracia, é pró-


digo no elogio à Casa do Povo, na retórica em favor
Para este ensaio, a verdadeira protagonista da de sua importância, de sua independência, de suas
criação desse novo direito público é a Administração competências. O STF adere enfaticamente a esse
Pública. É a Administração Pública quem — acio- tipo de discurso geral. Seria de supor, então, que
nando ou não o Legislativo, e interagindo com ele sua jurisprudência tendesse sempre para a defesa
mais ou menos, conforme os casos — vem con- do Legislativo, para conter os efeitos da adminis-
cebendo e fazendo valer novas fórmulas jurídicas, trocracia que a realidade política vai impondo. Mas,
moldando políticas públicas e até mesmo definindo de fato, a defesa que o STF está disposto a fazer
o perfil das liberdades. Em relação a tudo isso, o do Legislativo é mais parlamentar que jurisdicional,
papel do STF tem sido apenas marginal. isto é, o Tribunal exalta enfaticamente o Legislativo,
Olhar com atenção para a ação dos juízes é mas não o privilegia nos embates em que ele se
rele­vante aos pesquisadores jurídicos, claro, e este envolve com terceiros. Em outros termos: o STF
ensaio de modo algum se propõe a combater o novo considera relevante fazer discursos em apoio do
conhecimento jurídico que vem se formando a partir Legislativo, mas não quer somar armas a seu lado,
de intensas pesquisas sobre a vida judicial. Mas, não quer usar poder jurisdicional para pender a ba-
segundo este ensaio, é preciso afirmar que não é lança em seu favor, compensando o peso crescente
judicial a lógica que tem conduzido à construção das autoridades executivas.
de um novo direito público no Brasil. A lógica que A constatação comum aos dois pontos é que a
determina — e mantém ou altera — as mudanças atuação do STF nos embates públicos não é propria-
é toda de gestão pública, uma lógica derivada das mente a de interventor, para confrontar a adminis-
necessidades, desafios e dificuldades da adminis- trocracia, responsável pela construção e aplicação
tração quotidiana e continuada das demandas da do direito público no Brasil. O STF escolheu outro
sociedade. É, portanto, o papel dos administrado- papel político para si: o de agente retórico.
res públicos que tem sido realmente central. É pelo debate que o Tribunal influi na arena pú-
Assim, é a administrocracia, e não a Supremo- blica. Em alguns casos, legitima com seu discurso
cracia, que devemos aludir para apontar a verdadei- as opções que os administradores já haviam adota-
ra força determinante do direito público novo. do e que foram contestadas por alguém. Em outros
Em termos práticos, isso envolve dois aspec- casos, o Tribunal gera, sim, argumentos críticos às
tos que este ensaio pretende ressaltar. opções tomadas pelos administradores, mas deixa
O primeiro ponto é que a função institucional a outros agentes políticos (juízes de instâncias infe-
em que o Supremo Tribunal Federal realmente cres- riores, outras autoridades administrativas, legisla-
ceu, e hoje se destaca politicamente, não é a de dores) a tarefa de, por embates localizados, mudar
moderar conflitos, tomar decisões, dar a palavra últi- concretamente as coisas.
ma. Seu principal papel — inegavelmente de grande
relevância — é retórico, é discursivo. Em seus acór- 3 A deferência do STF à administrocracia
dãos, o que o STF realmente faz é fixar ou reforçar
A deferência do STF para com a administrocra-
ideias, para influir de modo mediato nas decisões
cia em matéria de políticas públicas fica bem clara
de outras autoridades públicas. Sua força é a de um
em três casos interessantes.
Conselho de Estado, que influi mais pela opinião
Um é o da limitação dos juros em 12% ao
que pela decisão. Seu papel é falar, é parlamen-
ano, feita imprudentemente pelo texto original do
tar. Nesse sentido, é como um velho Parlamento do
art. 192, §3º, da CF. Assim que editada a Cons­
Império, que valia pelos discursos e pelos debates,
ti­
tuição em 1988, o Executivo Federal elaborou
e não um novo Legislativo ou Executivo de toga, que
inter­pretação habilidosa para se opor à aplicação
valha pelo que mande.
da norma e manter sua política, segundo a qual os
Assim, contrariando a impressão geral, este juros seriam assunto das autoridades monetárias
ensaio pretende dizer que, nas charmosas ações e do mercado. Anos depois, o Executivo viria a con-
sobre liberdades, políticas públicas, direitos sociais vencer o Congresso Nacional a revogar a norma.
e organização administrativa, o STF se dedica muito Mas era previsível que os potenciais beneficiários
à afirmação de ideias para influir mediatamente na fossem pedir ao Judiciário o reconhecimento da au-
ação de outras autoridades (administrativas, legisla- toaplicabilidade do tabelamento constitucional dos
tivas e judiciais), e bem pouco a agir diretamente ou juros, enquanto vigorou. Qual foi a resposta do STF?
a interferir na ação alheia. Seu ativismo é sobretudo Editou súmula vinculante para assegurar o respeito
verbal. à orientação do Executivo.3
O segundo ponto que este ensaio quer afirmar
diz respeito ao Poder Legislativo. O discurso jurídico
3
Súmula Vinculante nº 7: “A norma do §3º do artigo 192 da Cons­
predominante, impactado pelas concepções mais
tituição, revogada pela Emenda Constitucional nº 40/2003, que

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Carlos Ari Sundfeld, Liandro Domingos

O que o caso dos juros nos mostra não é um Fica claro que o STF valoriza a administro­cra­cia
STF ativista, tentando impor a todo custo a vontade e, assim, procura impedir seu esvaziamento pelo
constituinte, mas um Tribunal que reconhece e con- Legislativo, pelo próprio Judiciário, e mesmo pelos
firma o papel privilegiado da Administração Pública movimentos organizados da sociedade civil.
nas questões econômicas hipersensíveis.
O outro caso a citar é quase anônimo, desses 4 O ativismo verbal do STF nas demandas
que o STF julga sem chamar atenção: o da lei cata- sobre políticas públicas e direitos
rinense, de origem parlamentar, que tentou impor
sociais
ao Executivo estadual uma política em favor dos
portadores de doenças celíacas (de intolerância ao As crescentes demandas por políticas públicas
glúten). A lei dava certos direitos aos doentes e or- e por direitos sociais, com a invocação de normas
denava à Administração Pública algumas ações para constitucionais ou legais programáticas, indetermi-
implementá-los. O Governador, que apusera veto à nadas, são um autêntico desafio contemporâneo.
iniciativa, mas não conseguira evitar sua derruba- Frustradas ou questionadas em outras esferas, es-
da pela Assembleia, buscou apoio no STF. Seria de sas demandas chegam ao Judiciário e muitas vezes
imaginar que o Tribunal, sempre disposto a afirmar vão parar no Supremo Tribunal Federal.
a universalidade do direito à saúde, garantido cons- Como se comporta o STF? Em geral, essas
titucionalmente, mostrasse mais simpatia pela lei e opor­tunidades são usadas pelos ministros para
pelo Legislativo do que pela oposição do Executivo. cons­ truir enfáticos votos de elogio a essas nor-
Mas não foi assim nesse caso. O STF, forçando um mas e de afirmação da existência, nos casos, de
pouco as coisas, lançou mão de um princípio de verda­deiros direitos subjetivos. É comum também
simetria (construído para outras situações a partir a crítica veemente da omissão do legislador e da
do art. 61, §1º, II, “e”, da CF) e julgou inconstitucio- dis­plicência da Administração Pública quanto aos
nal a lei, por usurpação de competência privativa do direitos fundamentais ou sociais.
Chefe do Executivo estadual em matéria de organi- A carga emotiva desses julgamentos acaba
zação administrativa.4 por impactar a percepção geral, e muitos analistas
Aqui, o STF preferiu deixar de lado seu im- tendem a visualizar o STF como muito mais ativo
pressionante ativismo retórico em favor do direito do que na verdade ele é na construção efetiva das
à saúde, pois, se o usasse, teria que confirmar e políticas públicas.
mandar aplicar uma lei de efeitos práticos amplos e Só que o protagonismo quanto à construção
imediatos, uma intervenção ousada do Legislativo, de políticas públicas e de direitos sociais tem esta-
a qual estava em completo desacordo com a políti- do claramente nas mãos do Executivo — e isto já
ca que, em matéria de saúde, é desenvolvida pela acontecia antes mesmo da Constituição de 1988.
Administração Pública brasileira — e não só na es- A função do Supremo Tribunal Federal tem sido
fera estadual. mais a de examinar casualmente as críticas feitas
Essa postura de deferência do STF à adminis- por quem se considera prejudicado pelas políticas
trocracia nas políticas públicas ocorre não só quan- inventadas pela Administração a partir de normas
do a ameaça de esvaziamento da Administração constitucionais e legais. Nesses casos, o STF tem
vem de outras autoridades públicas (legislativas ou exercido não um papel constitutivo, mas sim con-
judiciais), mas também quando possa vir da própria firmatório. O protagonismo em matéria de políticas
sociedade organizada. Um terceiro caso o confirma: públicas não é da cúpula do Judiciário.
o da lei do Distrito Federal que permitia a associa- O caso Raposa Serra do Sol, que tratou sobre
ções de moradores de Brasília assumir iniciativas a demarcação de terras indígenas, é um típico exem­
e tarefas de alcance público, mas também do inte- plo. A demarcação da região foi determinada pelo
resse dos próprios associados. Acionado, o STF vis- Executivo federal e os fazendeiros, considerando-
lumbrou inúmeras inconstitucionalidades nessa lei, se prejudicados, foram ao STF e impugnaram a
que tentava, de alguma forma, viabilizar um tipo de medida. O julgamento foi politicamente quente, com
auto-organização, à margem das políticas adotadas muitos discursos judiciais, mas de resultado prático
pela Administração Pública.5 mesmo o que se tem é que o Tribunal não anulou a
demarcação.6

limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação 6


PET nº 3.388/RR. Rel. Ayres Britto. Julgamento: 19.03.2009.
condicionada à edição de lei complementar”. Sessão Plenária de V. também MONTEIRO, Marcela Nogueira. O caso Raposa Serra
11.06.2008. do Sol e a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da Primeira
4
ADI nº 2.730/SC. STF Pleno. Rel. Cármen Lúcia, j. 05.05.2010. Região. 62 f. Monografia–Escola de Formação da Sociedade
Votação unânime. Brasileira de Direito Público – SBDP, São Paulo, 2010. Dispo­ní­
5
ADI nº 1.706/DF. STF Pleno. Rel. Eros Grau, j. 09.04.2008. vel em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/172_Mo
Votação unânime. nografia%20Marcela%20Monteiro.pdf>.

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Supremocracia ou administrocracia no novo direito público brasileiro?

Também chegou ao STF o debate sobre a ne- É o caso da Farra do Boi, em que se questio­
cessidade e adequação das políticas de cotas para nava a constitucionalidade de festa tradicional ca-
certas categorias de estudantes. Um caso foi o das tarinense, com maus-tratos a animais. Pedia-se à
cotas raciais para ingresso no ensino superior públi- Justiça que obrigasse a Administração local a to-
co, criadas por decisão da Universidade de Brasília.7 mar providências contra a festa. Estava em pauta
Outro caso foi o das cotas no programa de paga- um conflito entre disposições constitucionais, que
mento federal de mensalidades no ensino superior ao mesmo tempo protegiam os animais contra a
privado, chamado ProUni, programa que é uma ini- crueldade (art. 225, §1º, VII) e preservavam as ma-
ciativa do Executivo federal, aprovada por lei.8 Com nifestações das culturas populares (art. 215, caput
certeza, houve bem mais acompanhamento público e §1º). A saída do Tribunal foi decretar a inconstitu-
das decisões do STF do que das decisões admi- cionalidade da Farra do Boi e acolher o pedido, mas
nistrativas que instituíram essas políticas. Mas o sem entrar no realmente difícil: a concepção judicial
que de prático fez o Tribunal? Apenas confirmou as e a imposição, ao Executivo, de uma política bem
políticas, fornecendo abundantes argumentos cons- determinada capaz de coibir a prática criticada.11 De
titucionais e morais em seu favor. modo que a decisão não teve propriamente efeitos
Pode-se falar de ativismo judicial nesses ca- práticos diretos, servindo apenas como argumento
sos? Possivelmente faz sentido, sim, aludir a algum retórico forte nas discussões futuras sobre as políti-
ativismo, mas apenas verbal, de suporte retórico cas estaduais adequadas para a situação.
das políticas em causa, contra as opiniões que a Há outro exemplo, ainda de Santa Catarina,
elas se opuseram. Mas a iniciativa e a construção desse modo hábil de o STF conciliar um forte ativis-
dessas políticas, e das correspondentes soluções mo verbal quanto a direitos, com uma postura de
jurídicas, são obra administrativa.9 baixa intervenção judicial na Administração Pública.
Tem-se aqui, portanto, uma comprovação de É o caso que envolveu o Programa Sentinela-Projeto
administrocracia, não de Supremocracia.10 Acorde, voltado ao atendimento de crianças e ado-
lescentes vítimas de violência, abuso e exploração
5 O STF equilibrando ativismo verbal com sexual. O programa havia sido abandonado pelo
baixa intervenção Município de Florianópolis e uma ação do Ministério
Público defendeu seu retorno, alegando omissão in-
Outro caso de Santa Catarina serve para mos- constitucional de deveres impostos pelo art. 227,
trar como o Tribunal, sem renegar seu ativismo caput, da CF. Preocupado em evitar o esvaziamento
verbal em favor de direitos previstos vagamente na da norma constitucional, o Tribunal declarou enfati-
Cons­tituição, habilmente equilibra esse ativismo camente sua obrigatoriedade e negou discricionarie-
com a tendência, que ele, Tribunal, manifesta — dade para a Administração acabar com o programa.
e que se expressou justamente no caso da lei de Para tanto, afirmou a impossibilidade de “invocação
doenças celíacas — de nunca assumir ele próprio da cláusula da reserva do possível sempre que pu-
o protagonismo, jamais se responsabilizando pela der resultar, de sua aplicação, comprometimento do
criação ou imposição, às autoridades administrati- núcleo básico que qualifica o mínimo existencial”.12
vas, de quaisquer políticas de efeitos práticos muito A habilidade — nesse caso em que, à primei-
amplos e imediatos. ra vista, parecia ter sido adotada, sim, uma postu-
ra de forte intervenção na atividade administrativa
7
ADPF nº 186/DF. STF Pleno. Rel. Ricardo Lewandowski, — é que o Tribunal nada define de concreto quan-
j. 26.04.2012. Votação unânime.
8
ADI nº 3.330/DF. STF Pleno. Rel. Ayres Britto, j. 03.05.2012. Por to ao conteúdo desse mínimo existencial. Qual é
maioria.
9
Um caso ainda em curso, semelhante quanto esse aspecto ao
da Raposa Serra do Sol, é o que envolve a discussão da política 11
RE nº 153.531/SC. STF 2ª Turma. Rel. original Francisco Rezek.
de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titu­ Redator para o acordão Marco Aurélio, j. 03.06.1997. Por maioria.
lação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades 12
Outro trecho do voto do relator ilustra a postura de elogios aos
quilombolas (ADI nº 3.239/DF. Relator Cezar Peluso. Distribuído direitos e de críticas à Administração Pública: “Isso signi­ fi­
ca,
em 25.06.2004). A questão constitucional em pauta é a do portanto, que a ineficiência administrativa, o descaso gover­
sentido e alcance do direito garantido pelo art. 68 do ADCT. namental com direitos básicos da pessoa, a incapacidade de gerir
Mas o que o STF deve decidir é se confirma ou não a política os recursos públicos, a falta de visão política na justa percepção,
administrativa sobre o assunto, isto é, se aceita ou não, como pelo administrador, do enorme significado social de que se
válido, um decreto que o próprio Executivo federal editou para dar reveste a proteção à criança e ao adolescente, a inoperância fun­
execução direta à norma constitucional. cional dos gestores públicos na concretização das imposições
10
Uma interpretação diferente quanto ao desempenho do STF constitucionais não podem nem devem representar obstáculos
nesses casos está em Oscar Vilhena Vieira, para quem “os à execução, pelo Poder Público, da norma inscrita no art. 227,
casos do ProUni, relativo à ação afirmativa, Raposa Serra do Sol, ‘caput’, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao
refe­rente à demarcação de terras indígenas, ou aborto de fetos Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa
anencéfalos também se encontram nesta esfera da jurisdição do inac­ei­tável omissão governamental importar em grave vulneração a
Supremo, que se coloca como arena de discussão pública, que um direito fundamental e que é, no contexto ora examinado, a pro­
se substitui ao parlamento/executivo na adoção da última palavra te­ção integral da criança e do adolescente” (RE nº 482.611/SC.
em temas de alta relevância político-moral” (op. cit., p. 521). STF Decisão monocrática. Rel. Celso de Mello, j. 23.03.2010).

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exatamente a política que a norma constitucional instância inferior que obrigara o Município do Rio de
exige da Administração? É inútil procurar a resposta Janeiro a fornecer creche para 100% da demanda.16
no acórdão, que nada diz a respeito. Assim, o STF Tudo isso confirma que o papel forte e abran-
se furtou habilmente de definir judicialmente qual- gente que o STF reserva para si, em matéria de di-
quer política específica, de efeitos amplos e imedia- reitos sociais e de políticas reivindicadas frente à
tos. Apenas falou de seus objetivos gerais. Administração, é o de ativista retórico. Mas suas
Vê-se, nesse julgamento, um Tribunal que até injunções diretas sobre a atividade administrativa
está disposto a alguma intervenção direta na ativi- só ocorrem em casos bem circunscritos, os quais
dade administrativa, pois ele impôs à administração em termos políticos valem mais como argumento
catarinense a retomada de um específico programa. e como exemplo do que pelo exercício de poder de
Mas a intervenção foi muito limitada, já que não mando.
está claro o que e quanto o governo tem de fazer
para o programa reviver. É uma intervenção pontual, 6 Conclusão
de impacto muito baixo.
Outros casos, bastante expressivos, em maté- Em suma, o Supremo Tribunal Federal recusa
ria de direitos sociais, mostram o Tribunal, por um a Supremocracia e, não só reconhece a legitimidade
lado, usando a técnica de intervenções circunscri- da administrocracia, como está disposto a protegê-
tas na Administração, e, de outro, recusando-se a la contra as ameaças a que está sujeita.
admitir intervenções judiciais de efeitos amplos e No geral, é possível afirmar que o Supremo
imediatos.13 Tribunal Federal tem adotado uma postura de coo-
Exemplos de intervenções circunscritas são as peração na construção das políticas públicas. Seja
inúmeras decisões em que o STF, após reconhecer socorrendo o Executivo, quando este Poder constrói
efeitos concretos na norma constitucional abstrata a política e é contestado judicialmente ou, até mes-
de direito à saúde (art. 196), garante que algumas mo, freando as políticas advindas do Legislativo;
poucas pessoas recebam da Administração, uma a seja municiando apenas com argumentos judiciais
uma, medicamentos bem específicos.14 aqueles que reivindicam individualmente direitos
Por outro lado, mesmo reconhecendo, em ca- nas vias políticas ou nas instâncias inferiores. Esse
sos específicos, efeitos concretos na norma cons- é o papel do Supremo Tribunal Federal em matéria
titucional abstrata de direito à creche (art. 208, de construção das políticas públicas e de direitos
IV),15 o STF se recusou a validar decisão judicial de sociais no Brasil.
Enfim, a função retórica do STF nestas ma-
térias (políticas públicas e direitos sociais) tem
13
Ampliar em “Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva sido muito intensa e exercida com entusiasmo. Os
do possível na jurisprudência do STF” (WANG, Daniel Wei Liang.
Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível
discur­sos são veementes e impressionantes. Mas
na jurisprudência do STF. In: COUTINHO, Diogo; VOJVODIC, Adriana nem por isso o Supremo exerce um papel realmente
M. (Coord.). Jurisprudência constitucional: como decide o STF?. dirigente.
São Paulo: Malheiros; SBDP, 2009. p. 275-300, e GEMIGNANI,
Daniel. A coerência na interpretação dos direitos sociais quando A visibilidade do STF ao discutir políticas
analisados pelo STF. In: COUTINHO, Diogo; VOJVODIC, Adriana M. públicas é que conduz a sociedade a acreditar que
(Coord.). Jurisprudência constitucional: como decide o STF?. São
Paulo: Malheiros; SBDP, 2009. p. 83-95. seria ele a estabelecer, por exemplo, a política das
14
Tudo isso com farta divulgação publicitária, como se vê desta células-tronco17 e tantas outras. Isso é um equívoco,
matéria, publicada no próprio site do STF: “Poder Público deve
custear medicamentos e tratamentos de alto custo a portadores pois as grandes políticas como estas vêm sendo
de doenças graves, decide o Plenário do STF. O Plenário do inventadas mesmo é no âmbito administrativo, com
Supremo Tribunal Federal indeferiu nove recursos interpostos
pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao
posterior participação do Legislativo. O papel do STF
Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento de remédios de alto é mais discreto.
custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de Não é que, em tese, o STF não tenha poder ju-
doenças graves que recorreram à Justiça. Com esse resultado,
essas pessoas ganharam o direito de receber os medicamentos ou rídico para uma intervenção mais incisiva. Ele até o
tratamentos pedidos pela via judicial” (Publicada em 17.03.2010. possui, em termos formais, e por isso poderia fazer
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>). Sobre o tema, v. RAMOS,
Luciana de Oliveira. O uso dos precedentes pelo STF em casos de profundas intervenções em matéria administrativa,
fornecimento de medicamentos. In: COUTINHO, Diogo; VOJVODIC, como muitos setores defendem. Mas o que este
Adriana M. (Coord.). Jurisprudência constitucional: como decide o
STF?. São Paulo: Malheiros; SBDP, 2009. p. 351-365. ensaio constatou é que ele até poderia fazer, mas
15
Reconhecimento que o próprio site do STF divulga com ênfase, em não o faz.18
anotação ao art. 208, IV: “A jurisprudência do STF firmou-se no
sentido da existência de direito subjetivo público de crianças até
cinco anos de idade ao atendimento em creches e pré-escolas. 16
PET nº 2.836-8-QO/RJ. STF. 2ª Turma. Rel. Carlos Velloso,
[...] também consolidou o entendimento de que é possível a j. 11.02.2003. Votação unânime.
intervenção do Poder Judiciário visando à efetivação daquele 17
ADI nº 3.510/DF. STF Pleno. Rel. Ayres Britto, j. 29.05.2008. Por
direito constitucional” (A CONSTITUIÇÃO e o Supremo, 26 set. maioria.
2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/ 18
Conrado Hübner Mendes aludiu a esta postura do STF recorrendo
artigoBd.asp?item=31>). às figuras da “retórica do guardião entrincheirado” e da “prática

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Supremocracia ou administrocracia no novo direito público brasileiro?

Por que não faz? Provavelmente não por timidez Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002
ou covardia, mas porque os ministros reconheçam da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
que o ativismo retórico é a verdadeira contribuição
SUNDFELD, Carlos Ari; DOMINGOS, Liandro. Supremocracia ou
que a Corte Constitucional pode dar para o de- administrocracia no novo direito público brasileiro?. Fórum Admi-
senvolvimento em um contexto como o brasileiro. nistrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 159, p. 18-23, maio
2014.
Convém não desprezar o valor desse ativismo.

do guardião acanhado”. Em entrevista concedida para a coluna


Diálogo Institucional, do site da Sociedade Brasileira de Direito
Público (SBDP), o autor explica o significado dessas expressões:
“São duas faces presentes na cultura constitucional brasileira e na
prática do STF. Por um lado, a ‘retórica do guardião entrincheirado’
refere-se ao hábito de afirmar, com a maior eloquência e no mais
alto volume possíveis, que o STF tem o monopólio da última
palavra, que é o guardião da constituição, que é a última trincheira
do cidadão etc. A ‘prática do guardião acanhado’, por outro lado,
refere-se a uma postura passiva e acuada que o tribunal adota em
casos centrais da agenda de proteção de direitos, seja decidindo
de modo estreito, desperdiçando espaços interpretativos que a
constituição lhe abre, ou mesmo valendo-se de artifícios pouco
visíveis que lhe permitem não decidir, ou atrasar indefinidamente
a decisão (como na prática de engavetamento pelo ‘voto-vista’).
A combinação dessas duas faces geraria um tribunal que ‘late,
mas não morde’. Nenhuma dessas atitudes se harmoniza bem
com o ideal do diálogo que esboço na tese (o diálogo em sentido
forte, o seu aspecto normativo). Segundo este ideal, seria melhor
um tribunal que late menos e morde mais. Mas as coisas não
são tão simples assim e essas duas expressões podem também
gerar algumas interpretações equivocadas” (SBDP. Diálogo
institucional. 03 nov. 2008. Disponível em: <http://www.sbdp.
org.br>. A tese referida é a seguinte: MENDES, Conrado Hübner.
Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São
Paulo: Saraiva, 2011.

Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 159, p. 18-23, maio 2014 ARTIGOS 23

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