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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE

Diretor-Presidente José Inácio Ramos

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER


Diretor Mauro Fernando Meister

Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora


Mackenzie, 1996 –

Semestral.
ISSN 1517-5863

1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação


Andrew Jumper.

CDD 291.2

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th Flr., Chicago, IL 60606, USA,
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Daniel Santos Júnior

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Redator
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Capa
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Davi Charles Gomes
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Heber Carlos de Campos Júnior
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João Alves dos Santos
João Paulo Thomaz de Aquino
Mauro Fernando Meister
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A revista Fides Reformata é uma publicação semestral do


Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
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Editorial
É com grande alegria que apresentamos ao nosso leitor o volume XXII,
no 1, da revista Fides Reformata, dando continuidade a duas décadas de contri-
buição ininterrupta à pesquisa teológica na América Latina. Nos últimos anos,
após a decisão de publicar a cada edição um artigo em inglês, Fides também
iniciou sua contribuição no cenário mundial. Conheça toda essa contribuição
eletronicamente no site oficial do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew
Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials, Fuente Academica, etc.
Nesta edição, o primeiro artigo, “O princípio ético de Provérbios”, de
minha autoria, faz um levantamento do que pode ter sido parte do princípio
ético fundamental por trás das admoestações do livro de Provérbios, tomando
como exemplo as instruções e admoestações referentes aos perigos da sociedade
israelita. Segundo o autor, os perigos são basicamente três: a) as más compa-
nhias, b) a indiferença e c) a promiscuidade. As instruções e admoestações visam
estabelecer uma norma de conduta aceitável, que orienta e regula essa definição
daquilo que é ou não aceitável. O segundo artigo, “O cristão e as idolatrias
políticas”, de Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula, oferece uma proposta
que pode auxiliar os cristãos na tarefa de dialogar com algumas das principais
ideologias políticas da nossa época: liberalismo, marxismo, conservadorismo,
democracia e nacionalismo. Para cumprir tal propósito, o autor correlaciona os
conceitos de ideologia e idolatria, em seguida analisa as principais ideologias
políticas, organizando-as de acordo com os ídolos que ocupam seus altares, e,
finalmente, observa dois aspectos que unem as ideologias políticas, concluindo
que o cristão deve se relacionar criticamente com elas.
O terceiro artigo, “A morte de Jesus Cristo e a oferta do evangelho”,
de Paul Wells, argumenta que a convicção de que a redenção é particular, ou
seja, de que Jesus Cristo morreu para salvar apenas o seu povo e não todos,
não contradiz a oferta universal do evangelho, antes é um poderoso estímulo
para ela. Segundo o autor, a “redenção particular” é o fundamento do anúncio
geral das boas novas. O quarto artigo, “Educação teológica para um minis-
tério urbano multicultural”, de Valdeci S. Santos, demonstra que, enquanto a
urbanização se mostra uma realidade em cada continente, levando as nações
(panta ta ethne) a se mudarem para as cidades, a igreja ainda precisa fazer essa
transição, intelectual, estratégica e teologicamente. Segundo o autor, a igreja
está despreparada para o ministério na cidade. Sua herança e treinamento teo-
lógico não a equiparam para as exigências da urbanização. Visto que o desafio
urbano não irá desaparecer, os cristãos não podem continuar ficando fora da
cidade. A igreja deve se tornar parte da cidade, integrada na cidade, a fim de
conquistar a cidade para o reino de Deus.
O quinto artigo, “Os hartlibianos e a reforma espiritual e cultural da
Inglaterra seiscentista”, de Vitor Albiero, trata de um grupo reformista inglês,
que, atraído pelos princípios da Reforma Protestante, anelava por uma reforma
completa da Inglaterra do século 17. Os hartlibianos se destacaram entre os
que nutriam a expectativa de que a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial
da divulgação do conhecimento, bem como reunir a liderança protestante da
Europa. O sexto e último artigo, “The meaning of μυστήρια in 1 Corinthians
14:2” (o significado de “mistérios” em 1 Coríntios 14.2), de João Paulo Tho-
maz de Aquino, contribui para uma melhor compreensão do significado desse
conceito no referido texto. O autor apresenta quatro interpretações diferentes
sobre o tema antes de definir mistério como uma parte do sábio e soberano
plano de Deus referente ao eschaton, o qual esteve presente de forma parcial
e oculta no Antigo Testamento, mas foi revelado segundo a vontade de Deus
no Novo Testamento. A grande novidade, segundo o autor, é que o conceito
de mistério foi revelado por meio do dom de línguas.
A seção de resenhas traz avaliações de obras relevantes para o contexto
atual da igreja. São elas: O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a
origem da humanidade e a leitura de Gênesis, de John Walton, resenhado por
André Leonardo Venâncio; Teologia puritana: doutrina para a vida, de Joel R.
Beeke e Mark Jones, resenhado por Alan Rennê Alexandrino Lima; A verdade:
como comunicar o evangelho a um mundo pós-moderno, de Donald A. Carson
(org.), resenhado por Emilio Garofalo Neto; Presbiterianos x pentecostais: a
reação da Igreja Presbiteriana do Brasil ao advento do pentecostalismo em
Pernambuco (1920-1930), de José Roberto de Souza, resenhado por Alderi
Souza de Matos, e Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano piedoso
abraça o evangelho, de Nabeel Qureshi, resenhado por Robson Rosa Santana.
Mantendo o compromisso da revista em proporcionar e incentivar uma
reflexão teológica reformada, entrego aos leitores mais uma edição de Fides
Reformata, desejoso de que estes artigos e resenhas despertem mais uma vez
o interesse por pesquisas que visam contribuir para a edificação do povo de
Deus, servindo sua igreja ao redor do mundo.

Boa leitura!

Dr. Daniel Santos


Editor Geral
Sumário

Artigos
O princípio ético de Provérbios
Daniel Santos................................................................................................................................. 9

O cristão e as idolatrias políticas


Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula....................................................................................... 25

A morte de Jesus Cristo e a oferta do evangelho


Paul Wells...................................................................................................................................... 45

Educação teológica para um ministério urbano multicultural


Valdeci S. Santos............................................................................................................................ 63

Os hartlibianos e a reforma espiritual e cultural da Inglaterra seiscentista


Vitor Albiero................................................................................................................................... 71

The meaning of Mυστήρια in 1 Corinthians 14:2


João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 103

Resenhas
O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade
e a leitura de Gênesis (John Walton)
André Leonardo Venâncio.............................................................................................................. 119

Teologia puritana: doutrina para a vida (Joel R. Beeke e Mark Jones)


Alan Rennê Alexandrino Lima....................................................................................................... 129

A verdade: como comunicar o evangelho a um mundo pós-moderno


(D. A. Carson)
Emilio Garofalo Neto..................................................................................................................... 137

Presbiterianos x pentecostais: a reação da Igreja Presbiteriana do Brasil


ao advento do pentecostalismo em Pernambuco (1920-1930)
(José Roberto de Souza)
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 145

Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano piedoso abraça o evangelho


(Nabeel Qureshi)
Robson Rosa Santana.................................................................................................................... 149
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

O Princípio Ético de Provérbios


Daniel Santos*

RESUMO
O livro de Provérbios está repleto de instruções e admoestações que visam
estabelecer uma norma de conduta aceitável. A definição daquilo que é ou não
aceitável no livro acaba sugerindo a presença de um princípio ético fundamental
que orienta e regula essa decisão. O presente artigo faz um levantamento do que
pode ter sido parte desse princípio ético fundamental, tomando como exemplo
as instruções e admoestações referentes aos perigos da sociedade israelita.
Segundo o autor, os perigos são basicamente três: a) as más companhias, b) a
indiferença e c) a promiscuidade.

PALAVRAS-CHAVE
Livro de Provérbios; Ética em Provérbios; Más companhias; Indiferença;
Promiscuidade.

INTRODUÇÃO
A literatura sapiencial encontrada no livro de Provérbios é construída
sob um princípio ético fundamental que orienta e regula suas comparações,
admoestações e instruções. Essa tese vale tanto para os provérbios e instruções
que são atribuídos a Salomão, como aos demais sábios que cooperam no livro;
todos parecem estar indubitavelmente conscientes de um princípio ético que
atua como elemento controlador. Este artigo visa demonstrar como podemos
perceber esse princípio no texto de Provérbios.

* O autor é professor de Antigo Testamento no CPAJ desde 2007. É mestre em Teologia Exegética
(Th.M., 2001) pelo Covenant Theological Seminary e doutor em Estudos Teológicos no Antigo Testa-
mento (Ph.D., 2006) pela Trinity Evangelical Divinity School. Seus estudos pós-doutorais (Wycliffe
Hall, Oxford, Inglaterra) trataram da literatura sapiencial do Antigo Testamento. É autor de diversos
artigos e publicou recentemente seu comentário sobre o livro de Jó.

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DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

Para nossa tristeza, o livro de Provérbios não revela nem comenta deta-
lhadamente esse princípio ético fundamental de forma explícita. A declaração
consagrada de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria não explica
tudo o que comumente é atribuído a esse texto. Para usarmos esse conceito,
precisaríamos definir o que o temor do Senhor significava na literatura sapien-
cial e, mais especificamente, em Provérbios. Essa é uma tarefa dificultada pela
afirmação no próprio livro de que o temor do Senhor consiste em “aborrecer
o mal; a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa” (8.13). A
dificuldade com isso é a seguinte: como esses elementos podem juntos produzir
o conhecimento sapiencial contido no livro? Isso não está claro e nem é fácil
de ser demonstrado. Além disso, será que podemos usar a palavra princípio
(1.7) como equivalente à noção de “elemento arquétipo, causa primeira” ou
“a proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia um raciocínio”? O
livro de Provérbios não foi escrito para responder esse tipo de investigação;
ele não apresenta uma seção especial que trata da metodologia aplicada na
composição dos provérbios, nem do princípio epistemológico que governa e
valida o conhecimento apresentado no livro.
Entretanto, uma leitura do texto de Provérbios como hoje ele se encontra
nas Escrituras produz rapidamente a percepção de que é possível delinear alguns
pontos básicos presentes nesse princípio controlador. Por isso, a abordagem
adotada neste estudo será dedutiva, mas uma dedução informada pela teologia
bíblica de Provérbios e da literatura sapiencial do Antigo Testamento.

1. PROPOSTAS DE PRINCÍPIO ÉTICO FUNDAMENTAL


Uma das características distintivas do livro de Provérbios, quando com-
parado com a literatura sapiencial de outros povos, é a atenção que ele dedica
à sabedoria em si.1 É muito comum encontrar textos do mundo antigo que
oferecem instruções de sabedoria, mas é raro encontrar textos que tratam a
respeito da sabedoria, definindo-a e qualificando-a.2 Tal constatação deve ser
celebrada; isso é um bom sinal e vários estudiosos já fizeram uso dessa janela
oferecida pelo estilo peculiar de Provérbios. Fox, por exemplo, enumera quatro
tópicos que são recorrentes na literatura sapiencial do Antigo Testamento, mas
quase nunca são encontrados nos textos de outras nações ao redor de Israel:
“A identificação da sabedoria com a justiça, a identificação da sabedoria com
a piedade, o louvor dirigido diretamente à sabedoria e a exigência de amar

1 WEEKS, Stuart. Early Israelite Wisdom. Oxford; New York: Clarendon Press; Oxford University
Press, 1994, p. 17.
2 WEEKS, Stuart. An Introduction to the Study of Wisdom Literature. London; New York: T & T
Clark, 2010, p. 46; WEEKS, Stuart. Instruction and Imagery in Proverbs 1-9. Oxford; New York: Oxford
University Press, 2007, p. 13.

10
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

e buscar a sabedoria”.3 Garret, por outro lado, reconhece o modo caracterís-


tico da ética em Provérbios, mas não a considera sem precedente no mundo
antigo.4 Dentre os temas mais utilizados para avaliar a singularidade da ética
fundamental de Provérbios estão: o papel da mulher adúltera,5 as palavras dos
sábios (22.17–24.22)6 e as instruções dirigidas aos filhos (1.7–9.18).7
A proposta apresentada no presente estudo adota a sugestão de Fox
como ponto de partida, crendo que tanto as semelhanças como as diferenças
podem atestar a singularidade do princípio ético fundamental de Provérbios.
Até mesmo Fox, quando analisando as grandes similaridades entre a ética de
Provérbios e a dos escritos de Sócrates, afirma corretamente que ambos têm
como objetivo ensinar ao jovem conhecimento e bom siso, porém os métodos
para alcançar tal objetivo são radicalmente diferentes.8 Desta forma, proponho
que o princípio ético fundamental de Provérbios é melhor observado quando
analisado a partir dos perigos com os quais tal ética pretende interagir.

2. A ÉTICA DE PROVÉRBIOS E OS PERIGOS DA SOCIEDADE


ISRAELITA
A expressão “ética de Provérbios” não deve ser entendida nem como
um produto da opinião dos pais que instruem o filho no livro, nem dos sábios
que participaram da composição do mesmo, mas sim como a ética de Deus
manifestada no livro. As advertências dirigidas aos filhos, especialmente nos
primeiros nove capítulos do livro, mas também aos “simples” e aos “jovens”
de modo geral, são advertências que refletem um princípio ético divino.
Há varias maneiras de fundamentar essa afirmação, mas uma visão geral
da estrutura do livro pode ser a mais adequada no momento. Provérbios é um
livro composto basicamente de duas partes. A primeira parte (caps. 1-9) con-
tém admoestações que se assemelham mais a sermões ou instruções. Nessa
primeira parte, não encontraremos os provérbios de uma sentença apenas, por
exemplo, “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos
lábios vem do Senhor” (Pv 16.1). Este tipo de provérbio está praticamente
restrito à segunda parte do livro (caps. 10-29). A primeira parte, então, aborda

3 FOX, Michael V. “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, Hebrew Studies 48, no. 1
(2007): 75.
4 GARRETT, Duane A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs, vol. 14 (Nashville: Broadman &
Holman Publishers, 1993), p. 21.
5 ALETTI, Jean Noel. “Seduction Et Parole En Proverbes I-Ix”, Vetus testamentum 27, no. 2
(1977).
6 EMERTON, J. A. Emerton, “The Teaching of Amenemope and Proverbs Xxii 17 – Xxiv 22:
Further Reflections on a Long-Standing Problem”, Vetus testamentum 51, no. 4 (2001).
7 WEEKS, Instruction and Imagery in Proverbs 1-9.
8 FOX, “Ethics and Wisdom in the Book of Proverbs”, p. 77.

11
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

os perigos da sociedade de uma forma pedagogicamente diferente daquilo que


encontraremos no restante do livro. Esta é uma observação importante de ser
considerada porque, mesmo não encontrando em Provérbios uma advertência
nos moldes dos Dez Mandamentos, as advertências aqui contidas não são de
valor relativo.
Uma boa maneira de entender a finalidade dessa seção inicial de nove
capítulos é compará-la com um cenário construído para que os demais pro-
vérbios que são menores pudessem ser entendidos em contexto. Embora a
impressão inicial de uma leitura dos provérbios da primeira seção do livro
seja semelhante à de ler ou ouvir um slogan em um comercial de TV, com
uma mensagem curta e atrativa, a impressão daqueles que leram estes pro-
vérbios na época em que foram escritos foi bem diferente. Os provérbios não
são slogans e não devem ser lidos nem interpretados de maneira desconexa
com a coleção na qual estão inseridos. Por exemplo, quando Pv 30.18 afirma
“tal é o caminho da mulher adúltera: come, e limpa a boca, e diz ‘não cometi
maldade’”, o leitor original do livro já sabia de antemão que essa atitude
devia ser entendida em relação ao cenário da mulher adúltera descrito na pri-
meira parte do livro (Pv 2.16-22; 5.1-23; 6.20-35; 7.1-27; 9.13-18). Quando
uma citação abreviada é feita sobre o assunto (como é o caso de Pv 30.18), a
sua compreensão requer uma conexão imediata com o contexto maior criado
pelos cenários anteriores. Assim, proponho que o pano de fundo conceitual
dos provérbios encontrados na segunda parte do livro (10-29) são os cenários
temáticos encontrados na primeira parte (1-9).9
Destarte, prossigo ilustrando o modo como o princípio ético fundamen-
tal de Provérbios lida com três tipos de problemas. A escolha desses temas é
aleatória, já que existe uma quantidade bem maior de temas tratados no livro.

2.1 O princípio ético de Provérbios e o perigo das más


companhias
O livro de Provérbios visa despertar o interesse de uma geração jovem
para o valor da sabedoria que procede de Deus e, para atingir este objetivo,
seu princípio ético entra em ação. É possível perceber nas palavras dos pais
e também da “mulher sabedoria” (os agentes responsáveis em promover o
princípio ético) que a tarefa não é simples. Muitos jovens estão divididos entre
os valores da sociedade em que vivem e os valores eternos embutidos nesta
caminhada em busca da sabedoria proveniente dos céus. As más companhias
desempenham um papel importante na decisão do jovem quanto àquilo que

9 A esse respeito, ver também: WALTKE, Bruce. The Way of Wisdom: Essays in Honor of Bruce
K. Waltke. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2000, p. 23; WALTKE, Bruce. The Book of Proverbs: Chapters
15-31. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005, p. 198.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

irá valorizar como indispensável. Pensemos um pouco no perfil desse jovem


e no papel que as más companhias têm nesse processo.

2.1.1 Quem é o jovem em risco?


Se tivermos que construir um perfil desse jovem a partir das preocupações
que o seu pai e a sua mãe têm a seu respeito, algumas coisas sobressaem.
Primeiro, havia a preocupação com a aparente aventura associada com o estilo
de vida desses amigos (Pv 1.8-19). A julgar pela quantidade de argumentos
dedicados a esse ponto, os jovens daqueles dias poderiam com muita facilidade
estar se envolvendo com situações semelhantes àquelas descritas em Provér-
bios. Os jovens daqueles dias, a semelhança dos de hoje, andavam ávidos
por um estilo de vida recheado de aventuras e desafios. Consequentemente,
os pais estavam conscientes do poder sedutor do estilo de vida comum entre os
jovens daquela sociedade: “Filho meu, se pecadores querem te seduzir, não o
consintas” (Pv 1.10). Segundo, ainda como parte dessa mesma preocupação, os
pais estão cientes de que esse processo de sedução começa com uma simples
caminhada com eles: “Filho meu, não te ponhas a caminho com eles; guarda
das suas veredas os pés” (Pv 1.15). Se esses pais estão preocupados com esse
processo de acomodação cultural do seu filho nos caminhos da sociedade, é
possível que a rotina dos jovens naqueles dias e desse jovem em particular
fosse repleta de oportunidades para compartilhamento mútuo de valores. É
exatamente por causa dessa possibilidade real que seus pais investem na pre-
paração do seu filho para poder resistir à pressão dos companheiros nos dias
da sua vida adulta.

2.1.2 Qual o papel dessas más companhias?


No cenário inicial descrito em Pv 2.8-19, o papel das más companhias
é o de convencer o jovem a deixar o seu caminho e unir-se ao expediente de
bandidagem e homicídio do grupo.10 O desafio desses maus companheiros é
fazer o jovem desviar-se do seu caminho por meio de propostas que consideram
o caminho mau mais atraente. Na segunda seção do livro, podem-se ver alguns
exemplos do modo como a ideia de caminho é fundamental para entendermos
o que esses perversos estão buscando.
Exemplo 1. “Quem anda em integridade anda seguro, mas o que perverte
os seus caminhos será conhecido” (Pv 10.9). Nesse exemplo o provérbio con-
fronta a proposta dos maus amigos mostrando que a segurança está disponível
apenas para os que andam em integridade. Aquilo que os pecadores estavam

10 Ver DELL, Katharine J. “Proverbs 1-9: Issues of Social and Theological Context”. Interpretation
63, no. 3 (2009): 230-31; WHYBRAY, Roger N. “The Structure and Ethos of the Wisdom Admonitions
in Proverbs”. Expository Times 94, no. 5 (1983): 148; FOX, Michael V. Proverbs 1-9: A New Translation
with Introduction and Commentary. Anchor Bible. New York: Doubleday, 2000.

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DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

propondo ao jovem no capítulo 2.8-19 não apresenta o lado da insegurança


inerente ao caminho que eles promovem. Exemplo 2. “O que anda na retidão
teme ao Senhor, mas o que anda em caminhos tortuosos, esse o despreza”
(Pv 14.2). Nesse exemplo o provérbio estabelece uma relação direta entre a
caminhada de um jovem e o seu relacionamento com o Senhor. Desprezo é
a palavra usada para definir essa relação. Não há como andar pelos caminhos
dos pecadores e deixar de ignorar o Senhor. Nossa caminhada diária inevita-
velmente se constitui numa ação de desprezo ou de louvor ao Senhor que nos
criou; não há uma alternativa intermediária. Exemplo 3. “Há caminho que ao
homem parece direito, mas ao cabo dá em caminhos de morte” (Pv 14.12).
Nesse exemplo vemos que a definição daquilo que é chamado “caminho direi-
to” depende de uma observação completa de tudo o que está envolvido nele.
Não basta olhar apenas para as aventuras pontuais que acontecem em alguns
momentos da jornada; é preciso olhar para o final dela. Isso também não foi
mostrado na proposta dos maus amigos no capítulo 2. Exemplo 4. “O infiel de
coração dos seus próprios caminhos se farta, como do seu próprio proceder,
o homem de bem” (Pv 14.14). Neste exemplo vemos um princípio definidor
daquilo que escolheremos: o que satisfaz a minha alma? A escolha em ouvir
ou recusar a proposta dos maus amigos vai depender muito daquilo em que a
alma encontra prazer e deleite. Exemplo 5. “Todos os caminhos do homem são
puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito” (Pv 16.2). Esse exemplo
complementa a ideia do exemplo 3. A avaliação que fazemos do caminho em
que outros andam ou em que nós pretendemos andar precisa ser feita pelo
Senhor, pois só ele pesa os corações. Esse tipo de auditoria só pode ser execu-
tada por aquele que nos criou. Exemplo 6. “Há caminho que parece direito ao
homem, mas afinal são caminhos de morte” (Pv 16.25). Esse exemplo reforça
ainda mais a tese defendida pelos exemplos 3 e 5, enfatizando o preço oculto
que deve ser pago pelos que optam por trilhar a jornada dos ímpios. Esse pro-
vérbio reflete bem o cenário descrito no capítulo 2 de Provérbios, pois o plano
dos pecadores era tirar a vida de pessoas inocentes, mas tal proeza acabava
custando a própria vida deles.
Em resumo, o perigo apresentado pelas más companhias está relacio-
nado com a capacidade que elas têm de interferir na maneira como o jovem
valoriza ou não a busca da sabedoria. O perigo maior de andar com eles não é
por causa dos crimes que eles cometem, mas principalmente porque eles po-
derão tirar do jovem a oportunidade de experimentar a caminhada com Deus.
Diante disso, a proposta de Provérbios é de que um jovem justo, ao invés dos
pecadores, seja quem guie o seu companheiro (cf. Pv 12.26: “O justo serve
de guia para o seu companheiro, mas o caminho dos perversos os faz errar”).
Em outra ocasião, Provérbios demonstra que aquele que anda com sábios será
sábio (cf. Pv 13.20: “Quem anda com os sábios será sábio, mas o companheiro
dos insensatos se tornará mau”). Observe que neste caso o oposto de sábio

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

não é tolo, mas “mau”, ou seja, os que não andam com os sábios se tornarão
mais do que tolos ou insensatos, mas homens “maus”. Por fim, o maior perigo
que Provérbios apresenta nesse assunto é o aliciamento do jovem que deseja
andar nos caminhos do Senhor (cf. Pv 16.29: “O homem violento alicia o seu
companheiro e guia-o por um caminho que não é bom”).
Como Provérbios pretende minimizar ou impedir esse aliciamento? Será
que os pais desse jovem de Provérbios acreditam na possibilidade de criar
um filho ou filha num contexto em que eles não serão aliciados pelo “homem
violento”? A linguagem de provérbios para tratar desse assunto é preventiva,
ou seja, ela parte do pressuposto de que o filho ou a filha ainda estão sob a
tutela dos pais e não foram corrompidos pela proposta do “homem violento”.
Provérbios não adota a postura de proibição em termos semelhantes aos dos
Dez Mandamentos. Em vez de determinar como mandamento inquestionável
que o filho não andará na companhia dos ímpios, a linguagem do autor de
Provérbios apresenta as admoestações dos pais na forma de um convite moti-
vacional, carregado com o profundo desejo de que o jovem ouça o que é dito.

2.2 O princípio ético de provérbios e o perigo da indiferença


O princípio ético fundamental considera a indiferença, que se manifesta
na forma de escárnio ou desprezo, como um perigo mais sério do que a incredu-
lidade. Desde o início do livro, Provérbios contrapôs o temor do Senhor11 com
o “desprezo” e não com a incredulidade: “O temor do Senhor é o princípio do
conhecimento, mas os ímpios desprezam a sabedoria e a disciplina” (Pv 1.7).12
No primeiro discurso da sabedoria (Pv 1.20-33), o desprezo é apresentado e
confrontado como um subproduto do escárnio; eles preferem escarnecer a dar
ouvidos aos conselhos da sabedoria: “Até quando, ó néscios, amareis a nece-
dade? E vós, escarnecedores, desejareis o escárnio? E vós, loucos, aborrecereis
o conhecimento?” (Pv 1.22).13
Em Provérbios, o zombador é aquele contra quem a sabedoria se coloca
no dia da calamidade: “Mas, porque clamei, e vós recusastes; porque estendi
a mão, e não houve quem atendesse; antes, rejeitastes todo o meu conselho e
não quisestes a minha repreensão; também eu me rirei na vossa desventura,
e, em vindo o vosso terror, eu zombarei” (Pv 1.24-26). O zombador é alguém
que não merece sequer ser corrigido: “Quem corrige o zombador traz sobre si

11 SCHWÁB, Zóltan. “Is Fear of the Lord the Source of Wisdom or Vice Versa?”. Vetus Testa-
mentum 63, no. 4 (2013): 652-62.
12 WALTKE, Bruce K. “Righteousness in Proverbs”. The Westminster Theological Journal 70,
no. 2 (2008): 225-37; JOHNSON, John E. “An Analysis of Proverbs 1:1-7”. Bibliotheca Sacra 144, no. 576
(1987): 429-30.
13 Há muito que ainda precisamos descobrir sobre a estratégia de educação no mundo antigo. Ver
a discussão em CRENSHAW, James L. “Education in Ancient Israel”. Journal of Biblical Literature 104,
no. 4 (1985): 610.

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DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

insulto” (Pv 9.7), ou “não repreenda o zombador, caso contrário ele o odiará”
(Pv 9.8). O zombador é alguém que não vê nenhum sentido em reparar o
pecado cometido, pois a sua atitude de zombaria é intencional e não acidental
(Pv 14.9). O zombador é alguém comumente alterado pelos efeitos do vinho
ou da bebida forte (Pv 20.1). O zombador tem um estilo de vida caracte-
rístico: “O vaidoso e arrogante chama-se zombador; ele age com extremo
orgulho” (Pv 21.24). O zombador é visto em Provérbios como a fonte das
brigas e contendas: “Quando se manda embora o zombador, a briga acaba;
cessam as contendas e os insultos” (Pv 22.10). O zombador interfere na vida
de uma cidade: “Os zombadores agitam a cidade, mas os sábios apaziguam”
(Pv 29.8). Os zombadores serão severamente punidos, especialmente quando
a sua zombaria é dirigida aos pais: “Os olhos de quem zomba do pai, e, zom-
bando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos corvos do vale, e serão
devorados pelos filhotes do abutre” (Pv 28.17).
Veja, então, que a atitude de desprezo em Provérbios é alimentada por um
espírito de zombaria e não apenas por um gesto passivo de indiferença. É contra
esse tipo de atitude que o princípio ético fundamental de Provérbios dedica uma
parte considerável de sua atenção, pois a zombaria se propaga e contamina as
pessoas rapidamente. Para os pais deste jovem em Provérbios, a zombaria não
deve ser encarada como uma brincadeira ou uma atitude descontraída com a vida,
mas sim como um estilo de vida que alimenta e promove a indiferença para
com as virtudes da sabedoria proveniente de Deus. É precisamente por causa
dessa indiferença que a zombaria é encarada com seriedade, como sendo um
dentre os fatores mais cotados que desviam os filhos dos caminhos do Senhor.

2.3 O princípio ético de Provérbios e o perigo da promiscuidade


Uma quantidade considerável das instruções contidas na primeira parte do
livro de Provérbios (capítulos 1–9) trata do perigo real e iminente da promis-
cuidade. Dos 248 versículos contidos nessa primeira parte de Provérbios, 72
tratam do tema da promiscuidade, ou seja, 29% das instruções e admoestações
são dedicados a esse tema.
A primeira seção que discute a promiscuidade apresenta aquela que tenta
dissuadir o jovem de seu interesse nos conselhos e convites da sabedoria – a
mulher adúltera (2.16-22).14 Ela aparece como parte da instrução dos pais, os

14 Há vários estudos sobre esse tema: MURPHY, Roland E. “Wisdom and Eros in Proverbs 1-9”.
The Catholic Biblical Quarterly 50, no. 4 (1988): 600-03; ESTES, Daniel J. “What Makes the Strange
Woman of Proverbs 1-9 Strange?”. In: Ethical and Unethical in the Old Testament: God and Humans
in Dialogue. New York: T & T Clark, 2010, p. 151-69; SHUPAK, Nili. “Female Imagery in Proverbs
1-9 in the Light of Egyptian Sources”. Vetus Testamentum 61, no. 2 (2011); WALTKE, Bruce K. “Lady
Wisdom as Mediatrix: An Exposition of Proverbs 1:20-33”. Presbyterion 14, no. 1 (1988): 1-15;
GARRETT, Duane A. “Votive Prostitution Again: A Comparison of Proverbs 7:13-14 and 21:28-29”.
Journal of Biblical Literature 109, no. 4 (1990): 681-82.

16
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

quais incentivam o jovem a buscar a sabedoria. Essa personagem chamada


mulher adúltera é cuidadosamente descrita com os seguintes qualificativos:
a) sua origem: ela é estrangeira (2:16), b) sua maior habilidade: ela é conhe-
cida pela sua capacidade de lisonjear (2.16), c) seu histórico: ela abandona os
amigos de sua mocidade (2.17) e d) seu compromisso religioso: ela se esquece
da aliança feita com seu Deus (2.17). Segundo a instrução dos pais, o envolvi-
mento com esse tipo de mulher é uma caminhada sem volta (“todos os que se
dirigem a essa mulher não voltarão” [v. 19]), além de ser um envolvimento que
compromete o pleno exercício do discernimento (“todos os que se dirigem a
essa mulher não atinarão com as veredas da vida” [v. 19]). Ora, é evidente que
a posição dos pais reflete um princípio ético fundamental, pois a justificativa
apresentada por eles vai além de uma mera observação das consequências ime-
diatas: “porque sua casa [ou seja, da mulher adúltera] se inclina para a morte,
e suas veredas, para o reino das sombras da morte” (2.18). Na cultura israelita
do Antigo Testamento, que era regulada pelas leis mosaicas, o adultério era
considerado um crime hediondo e punido com a morte. Esses pais, todavia,
falam do “reino das sombras da morte”, apontando para um conceito moral
que subjaz às penas previstas na lei mosaica. Ao fazer isso, os contornos do
princípio ético começam a aparecer.
A segunda seção que trata do tema da promiscuidade dedica um capítulo
inteiro para descrever o perigo da mulher adúltera (5.1-23). A diferença entre
essa seção e a anterior é o contexto em que a instrução apresenta o caso. Ante-
riormente o tema apareceu como parte de um assunto distinto; nesse capítulo
ele aparece como o principal assunto, além de descrever a mulher adúltera
em seu contexto mais amplo. Os perigos apresentados nesse novo cenário em
relação à mulher adúltera são dois: a) seus lábios (5.3-4) e b) seus pés (5.5-6).
À semelhança do que ocorreu no caso anterior, a justificativa apresentada
pelos pais pressupõe um princípio ético fundamental que subjaz uma mera
avaliação de consequências imediatas: “Os seus pés descem à morte; os seus
passos conduzem-na ao inferno” (5.5). O envolvimento com essa mulher trará
graves prejuízos: a) à honra: “para que não dês a outrem a tua honra” (5.9),
b) aos bens: “para que dos teus bens não se fartem os estranhos” (5.10), c) ao
corpo: “e gemas no fim de tua vida, quando se consumirem a tua carne e
o teu corpo” (5.11). No âmbito espiritual, os prejuízos são: a) desprezo pela
disciplina (5.12), b) desprezo pelos mestres (5.13) e c) desprezo pela congre-
gação do povo de Deus (5.14).
A terceira seção que trata do tema da promiscuidade avalia o perigo do
ponto de vista daquele que se envolve com a mulher adúltera, que aqui tam-
bém é chamada de “mulher vil” e “mulher alheia” (6.20-35). Se, por um lado,
essa mulher pode ludibriar o jovem por meio de suas palavras suaves, por
outro lado o próprio jovem pode também agir ativamente na construção desse
envolvimento de duas maneiras: a) cobiçando a beleza da mulher adúltera e

17
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

b) flertando com ela (6.25). Nesse caso específico, a admoestação dos pais
revela que o princípio ético fundamental era alimentado pela lei de Deus,
pois os castigos apresentados são fundamentados nela. A linguagem utilizada
em Provérbios de “se chegar à mulher do próximo” (6.29) é um reflexo das
regulamentações encontradas em Levítico 20.10.
A quarta seção que trata do tema da promiscuidade descreve a mulher
adúltera em ação (7:1-27). Ela é uma mulher casada, seu marido viajou e não
retornará em breve. Ela aproveita o período de ausência para iniciar suas aven-
turas de adultério com os que passam pela rua. É crucial entendermos que o
perigo apresentado no livro é o de uma pessoa mais velha que tenta explorar a
inocência de um jovem que ainda não experimentou um relacionamento con-
jugal em toda a sua plenitude. Isso significa que o jovem está em desvantagem
nessa comparação. Ele é aquele que é visto como a presa no experimento amo-
roso da mulher que tem planos adúlteros. A descrição das artimanhas da mulher
adúltera aqui resume muito do que já havia sido mencionado anteriormente,
especialmente o poder persuasivo de suas palavras. Mais do que em qualquer
outra parte do livro, nessa instrução do capítulo 7 temos uma amostra deta-
lhada do tipo de argumento que torna suas palavras persuasivas. A admoestação
dos pais para se distanciar dela está fundamentada, como nos outros casos,
num princípio ético fundamental, o qual pode ser deduzido da justificativa
apresentada: “porque a muitos feriu e derribou; e não são poucos os que por
ela foram mortos. A sua casa é caminho para a sepultura (lit. sheol ) e desce
para as câmaras da morte” (7.26-27). Essa justificativa já foi apresentada em
2.18, mostrando que o princípio ético em Provérbios não é alimentado apenas
pelo senso comum, mas por conceitos teológicos que consideram a existência
humana diante dos olhos de Deus.
A última seção que trata do tema da promiscuidade nos capítulos 1-9
de Provérbios consiste de um breve relato da mulher apaixonada (9.13-18).
Em primeiro lugar, é preciso entender corretamente o significado do termo
hebraico traduzido como “apaixonada”. A versão corrigida opta pela palavra
“alvoroçada”. O mesmo acontece com versões em outras línguas: “loud”
(ESV), “alborotadora” (Reina-Valera 1969), “unruly” (NIV). É provável que
a melhor tradução seja mesmo aquela que explora a questão da inquietação
e do barulho, e não o termo “apaixonada”. Tanto em Provérbios 9.13 como
em 7.11, o conceito está associado a um contexto que não permite optar pela
tradução “apaixonada”. No contexto dessa última seção, a ideia de ser baru-
lhenta e alvoroçada combina melhor com o alvo da narrativa, pois essa mulher
está assentada à porta da cidade para falar aos que passam. Mais uma vez,
o conteúdo da proclamação dessa mulher assentada no alto da cidade revela o
mesmo princípio ético fundamental, pois as justificativas envolvem a morte
e o inferno: “Eles [os que ouvem a mulher], porém, não sabem que ali estão
os mortos, que os seus convidados estão nas profundezas do inferno” (9.18).

18
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

Como os pais planejam implementar o princípio ético nesse cenário


permeado pelos perigos da promiscuidade? A abordagem adotada pelos pais é
dupla: eles prometem ensinar ao jovem o caminho e a oportunidade para enten-
der o temor do Senhor e, além disso, a oportunidade de achar o conhecimento
de Deus (Pv 2.5). O maior desafio dessa oferta é basicamente o interesse que
o jovem manifesta por aquilo que está sendo oferecido, ou seja, a oferta dos pais
parece inicialmente sem qualquer atrativo para o jovem. Por que os pais acham
que o jovem aceitaria ou sequer se interessaria pela oferta? Vejamos mais de
perto os detalhes da oferta.

2.3.1 Se aceitares as minhas palavras


Primeiramente, a proposta dos pais é de que o jovem aceite as palavras
deles. Essa perece ser a parte mais difícil do trabalho de instrução e discipulado
dos nossos filhos – aceitar as palavras dos pais. O modo como o discurso dos
pais apresenta o assunto demonstra que eles entendem a seriedade do desafio
que está diante deles. Eles sabem que esse primeiro passo é fundamental para
o sucesso de tudo o mais que eles intentem fazer. Se o jovem decidir aceitar
as palavras dos pais, acontece uma reação em cadeia. Este, a meu ver, é o cen-
tro da estratégia desses pais em Provérbios: eles não impõem o assunto nem
exigem obediência, mas oferecem e desafiam o jovem a aceitar tais palavras.
Esse simples procedimento nos ensina uma grande lição. Aquilo que um jovem
aceita tem um impacto muito maior em seu interesse em se apegar àquilo que
foi dito e perseverar naquela instrução.15
Com certeza há algumas coisas que podemos fazer para colaborar nesse
processo de aceitação. O elemento atrativo na proposta dos pais, “se aceitares
as minhas palavras”, vem logo em seguida: “para fazeres atento à sabedoria o
teu ouvido e para inclinares o teu coração ao entendimento” (Pv 2.2). Obser-
ve que as palavras dos pais não são um fim em si mesmas, mas consistem de
orientações e palpites sobre como treinar o ouvido e o coração para a sabedoria
e a inteligência. As palavras dos pais são instruções não de como os filhos
devem ouvir os conselhos dos pais ou viver segundo os seus costumes, mas
sim de como os filhos devem treinar seus ouvidos e corações para a sabedoria
e o entendimento provenientes de Deus. Reconheço que isso é mais fácil de
dizer do que de fazer. Todavia, a atitude desses pais em Provérbios nos ensina
que o nosso alvo como pais que amam os filhos não é torná-los como nós,
ouvindo somente aquilo que temos a dizer. Nosso alvo é preparar seus ouvidos
e corações para ouvirem todos aqueles que Deus colocar em seus caminhos
como instrumentos de ensino e correção. Muitos desastres morais acontecem

15 Ver uma discussão a esse respeito em: NEL, Philip J. “Authority in the Wisdom Admonitions”,
Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 93, no. 3 (1981): 418-26; FOX, Michael V. “The
Pedagogy of Proverbs 2”. Journal of Biblical Literature 113, no. 2 (1994): 233-43.

19
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

por causa de filhos jovens que não aprenderam a dar ouvidos à sabedoria ou
inclinar seus corações ao entendimento.
Ora, se as palavras e ensinamentos dos pais nesse capítulo têm a finalidade
de treinar o coração e o ouvido do jovem, não seria o caso de pensarmos que
as palavras da Sabedoria são as que realmente conduzem ao conhecimento
e temor do Senhor? Não seria o caso de pensarmos em nossos ensinamentos
(nós os pais) como apenas instrumentos facilitadores para o verdadeiro co-
nhecimento e aprendizado? Eu creio ser esse o caso. Muitos pais parecem
ter perdido um pouco de vista essa perspectiva no trato com seus filhos. Não
é fácil ver nossos filhos colocarem a perder suas vidas por darem ouvidos e
inclinarem seus corações a opiniões e valores que são subproduto da decadên-
cia humana. Mesmo assim, não podemos perder de vista essa luz no fim do
túnel avisando-nos que o objeto da obediência que estamos proclamando não
são as nossas palavras. Meu objetivo não é fazer meu filho me obedecer, mas
sobretudo obedecer ao Senhor.

2.3.2 Se clamares por inteligência


O que exatamente seria contado como um ato legítimo e verdadeiro de
aceitação dos ensinamentos dos pais? Como saber se o jovem realmente con-
seguir treinar o ouvido e o coração para as palavras da verdadeira Sabedoria?
Há dois elementos concretos que podem servir para medir o grau de aceitação:
“se clamares” e “se buscares como a prata” (Pv 2.3-4). Neste segundo está-
gio entendemos que a tarefa dos pais tinha realmente um escopo limitado e
preparatório apenas. A tarefa mais gloriosa é ver nossos filhos clamando por
inteligência por motivação própria. Estes dois versos nos ensinam que o modo
como os nossos jovens buscam a sabedoria de Deus dignifica o trabalho inicial
dos pais exatamente porque buscam algo maior.
Com respeito ao modo como eles buscarão a sabedoria e o entendimento,
dois exemplos são dados: eles “clamam” e “alçam as vozes”. Ou seja, o modo
é característico da juventude – muito volume e entusiasmo. Na visão do livro
de Provérbios, essa atitude não deve ser vista como negativa, pois melhor é
ver nossos filhos clamando por sabedoria do que alçando suas vozes para a
promiscuidade e perversão. O propósito final e maior dos ensinamentos dos
pais é exatamente este de levar os filhos e alçarem a voz em busca da sabedo-
ria, mas quando algo neste processo não funciona como deveria o resultado
acaba produzindo filhos que alçam suas vozes contra seus pais e todo tipo de
instrução que os conduziria ao Senhor. O método desses pais em Provérbios
certamente não envolvia admoestações com gritos, mas o resultado do trabalho
culminava numa busca eufórica pela sabedoria. Quando virmos nossos filhos
no pico mais alto do telhado da casa gritando a plenos pulmões sobre seu in-
teresse na Sabedoria, deveríamos dar graças a Deus pelo dever cumprido (e orar
para que eles consigam descer de lá sem quebrar as pernas).

20
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

2.3.3 Se buscares a sabedoria como a prata e tesouros escondidos


O terceiro elemento a ser considerado na proposta dos pais é a motiva-
ção com a qual seus filhos buscarão a sabedoria. Quando Provérbios compara
esta motivação com a procura pela prata ou tesouros escondidos, a ideia não
equivale a dizer que estão apenas correndo atrás de dinheiro. A figura aqui é
aplicada ao reconhecimento da recompensa em investir tempo e esforço nessa
direção. Além disso, estes pais estão deixando bem claro que o jovem não deve
encarar essa jornada como tendo um único objetivo – agradar os pais. Essa não
é a recompensa que motiva o jovem em Provérbios. Essa não é a recompensa
que deveria motivar os jovens hoje.
As palavras e instruções desses pais em Provérbios tinham a finalidade
de inspirar uma motivação genuína, que estivesse associada à Sabedoria em
si e não aos pais. A razão parece muito simples. Se treinarmos nossos filhos a
nos obedecerem com a finalidade única de agradar e satisfazer o nosso desejo
como pais, nós podemos até conseguir isso por um tempo, mas o que aconte-
cerá quando este jovem adentrar a vida adulta e se tornar independente? Será
que essa inspiração ainda o motivaria na busca da sabedoria? Alguns filhos
chegam ao ponto de dizer: “Eu só não faço isso porque meus pais ainda estão
vivos, mas assim que eles morrerem...”. Deus livre nossos filhos e filhas de
trilhar nessa direção.
Veja bem, a motivação verdadeira não é aquela que despreza ou desonra
os pais a fim de honrar e valorizar a sabedoria como tesouros escondidos. A
verdadeira motivação é aquela que honra os pais ao entender que seus ensi-
namentos os conduziram a algo com valor inestimável. Não existe nada mais
honroso e gratificante para os pais do que verem seus filhos buscando a sa-
bedoria pelo valor que ela tem, e não apenas para agradá-los enquanto vivos.

2.3.4 As recompensas de buscar a sabedoria


Tudo isto que os pais têm proposto precisa ser feito de modo correto e
com a motivação legítima, a fim de que o princípio ético seja implementado.
Nos versos que se seguem, os pais descrevem detalhadamente algumas re-
compensas dessa jornada. Há quatro coisas que são apresentadas: a) o jovem
entenderá o temor do Senhor (2.5), b) o jovem achará o conhecimento de Deus
(2.5), o jovem entenderá justiça, juízo e equidade (2.9), c) a sabedoria entrará
em seu coração (2.10), d) será liberto do caminho do mal (2.12) e será liberto
da mulher adúltera (2.16).
Entender o temor do Senhor (2.5). Já sabemos desde o início do livro de
Provérbios que o temor do Senhor é princípio de todo esse projeto de busca
de sabedoria. É o temor do Senhor que torna esse empreendimento possível
e justificável. Achar o conhecimento de Deus (2.5). O conhecimento de Deus
não é igualado à sabedoria. Obter a sabedoria não é o mesmo que obter o

21
DANIEL SANTOS, O PRINCÍPIO ÉTICO DE PROVÉRBIOS

conhecimento de Deus. Conforme a instrução dos pais, é o Senhor quem dá


sabedoria e de seus lábios procede todo entendimento. O alvo de todo esse
projeto de treinamento em busca da sabedoria é nada menos que conhecer a
Deus. Nesse nível a sabedoria em si perde sua primazia, tornando-se também
uma ferramenta para alcançar um fim maior que é o conhecimento de Deus.
A sabedoria entrará no teu coração (2.10). Esse conceito parece completar
a preparação inicial que os pais tiveram de treinar o coração do jovem a
inclinar-se para a sabedoria. Quando isso acontece de maneira satisfatória,
a sabedoria se compraz em habitar no coração do jovem.
Ser salvo do caminho do mal (2.12). Conforme vimos no primeiro capítu-
lo, o jovem está sempre rodeado de propostas de amigos que querem envolvê-lo
em toda sorte de crimes e situações que irão comprometê-lo pelo restante de
sua vida. Uma recompensa prática da busca da sabedoria é que ela irá salvar
o jovem dessas ciladas. Nas próximas lições veremos com mais detalhes o
que esse caminho do mal significa. Finalmente, ser salvo da mulher adúltera
(2.16). Dentro do contexto do livro essa é a maior ameaça que se antepõe no
caminho do jovem em busca da sabedoria – a promiscuidade. Nas lições a se-
guir trataremos dos detalhes da proposta da mulher adúltera e do modo como
ela envolve o jovem em sua caminhada.

CONCLUSÃO
Conforme anunciado na introdução, o princípio ético que regula as de-
cisões apresentadas no livro de Provérbios é deduzido a partir de uma leitura
do próprio texto bíblico, especialmente do modo como o autor bíblico apre-
senta os discursos. Entretanto, não há como argumentar que Agur ou a mãe
de Lemuel tinham consciência de tal princípio ético quando compuseram seus
provérbios e instruções. O princípio ético de Provérbios deve ser entendido
como um fator imputado ao livro em seu formato final por obra do Espírito
Santo, por meio daquele (não sabemos quem) que Deus usou para concluir
esse livro. Por causa da informação contida na abertura do capítulo 25, é im-
possível afirmar que Salomão foi o responsável pela forma final do livro, pois
os homens de Ezequias ainda estavam transcrevendo provérbios para montar a
terceira seção do livro séculos após a sua morte. Assim sendo, proponho que
o princípio ético ilustrado nesse estudo seja entendido como um fator oriundo
do cânon bíblico e não da cosmovisão israelita dos dias de Salomão. Quando
lemos Provérbios como uma amostragem de usos e costumes de uma socie-
dade primitiva, compilados em formato proverbial, perdemos o seu principal
elemento de autoridade: a revelação divina construindo das partes um todo
teologicamente coerente. Mesmo trabalhando com diversos autores (Salomão,
Agur, Lemuel, os sábios, os homens de Ezequias, etc.), o produto final forjado
pela ação do Espírito Santo consegue aquilo que Clemente de Alexandria disse
com propriedade: “Com todo seu poder, o instrutor da humanidade, a palavra

22
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 9-23

divina, usando todos os recursos da sabedoria consegue, por muitas rédeas,


refrear os impulsos irracionais da humanidade”.16

ABSTRACT
The book of Proverbs is loaded with instructions and admonitions that
seek to establish an acceptable norm of conduct. The definition of what is
considered acceptable will inevitably suggest the existence of a core ethical
principle guiding and controlling the definition of what is acceptable. This
article presents a sample of the effect of such core ethical principle when it is
applied to three different settings dealing with issues in the Israelite society.
The issues are: a) the danger of bad companions, b) the danger of indifference,
and c) the danger of promiscuity.

KEYWORDS
Book of Proverbs; Ethics in Proverbs; Promiscuity; Indifference.

16 ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James; COXE, A. Cleveland (Orgs.). Fathers of the


Second Century: Hermas, Tatian, Athenagoras, Theophilus, and Clement of Alexandria. The Ante-Nicene
Fathers. Buffalo, NY: Christian Literature Company, 1885, vol. 2, p. 2228.

23
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

O cristão e as Idolatrias Políticas


Francisco Cauê Cruz de Oliveira Paula*

RESUMO
A atuação cristã no âmbito público, especialmente no campo da política,
é objeto constante de discussão. Inúmeras questões surgem nessa seara, prin-
cipalmente direcionadas pelo propósito último do homem de glorificar a Deus
em todos os âmbitos de sua vida. Este artigo visa auxiliar os cristãos na tarefa
de, a partir de uma cosmovisão cristã, dialogar com algumas das principais
ideologias políticas da nossa época: liberalismo, marxismo, conservadorismo,
democracia e nacionalismo. Para cumprir tal propósito, primeiramente corre-
laciona os conceitos de ideologia e idolatria. Em seguida, analisa, a partir do
conceito de idolatria, as principais ideologias políticas, organizadas de acordo
com os ídolos que ocupam seus altares: indivíduo, comunidade, tradição, igual-
dade e Estado. Finalmente, observam-se dois aspectos que unem as ideologias
políticas, o fundamento autônomo e a busca por satisfação como fim, concluin-
do que o cristão deve se relacionar criticamente com as ideologias políticas.

PALAVRAS-CHAVE
Cosmovisão cristã; Idolatria; Política; Ideologias políticas.

INTRODUÇÃO
O cristão deve se envolver significativamente com a política a partir de
uma visão de mundo biblicamente orientada,1 buscando glorificar a Deus em
todo o processo (1Co 10.31 e Rm 11.36). Ao criar o homem, Deus deu a ele

* O autor é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, especialista em Estu-


dos Teológicos pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e aluno no programa de
certificado em Filosofia da North-West University, África do Sul.
1 Em torno desse tema gira grande parte da discussão do livro: GRUDEM, Wayne. Política
segundo a Bíblia: princípios que todo cristão deve conhecer. São Paulo: Vida Nova, 2014.

25
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

um mandato de produzir cultura, cultivando e conservando toda a realidade


criada (Gn 1.26, 28; 2.5, 15, 19). Tal mandato inclui a possibilidade de o cristão
atuar no âmbito político. Apesar do grau de corrupção existente, a política é
preservada pela graça comum de Deus, o qual age na “restrição dos efeitos do
pecado depois da Queda, preservação e manutenção da ordem criada, e dis-
tribuição dos talentos entre os seres humanos”2. Assim, afirmamos3 com João
Calvino: “Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o poder civil é uma
vocação não somente santa e legítima diante de Deus, mas também deveras
sacrossanta e honrosa entre todas as demais”.4
Uma questão, entretanto, se apresenta ao cristão que almeja atuar no
âmbito político: qual caminho ele deve seguir? Pela direita ou pela esquerda?
Ele deve ser, em termos do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, como
o progressista Paulo ou como seu irmão gêmeo “oposto”, Pedro? Liberal ou
conservador? Deve buscar conservar a ordem existente ou revolucionar?
Não há dúvidas de que essas perguntas, por menos complicadas que pare-
çam à primeira vista, são extremamente complexas em suas variadas respostas.
Não é assunto simples discutir ideologias políticas. Portanto destaque-se, desde
já, que este artigo é uma provocação ao refletir político, feita a partir de uma
cosmovisão cristã, sem quaisquer pretensões de esgotar o assunto. Especifica-
mente, a reflexão a seguir toma por base, em grande parte, a análise do livro
Visões e Ilusões Políticas, do professor David T. Koyzis.5

1. IDEOLOGIA E IDOLATRIA
No livro Visões e Ilusões Políticas, Koyzis analisa as principais ideolo-
gias políticas contemporâneas. Sua tese central gira em torno da percepção de
que as ideologias políticas possuem raízes idólatras – na realidade, ele chama
as ideologias de idolatrias. Koyzis afirma: “Como as idolatrias bíblicas, cada
ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da totalidade criada,
elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno
desse elemento e o sirva”.6

2 Tradução livre das expressões: “… restraint of the full effects of sin after the Fall, preservation
and maintenance of the created order, and distribution of talents to human beings”, de Vincent Bacote,
na introdução ao livro: KUYPER, Abraham. Wisdom & Wonder: Common Grace in Science & Art.
Ottawa: Christian Library Press, 2011, p. 25 e 26.
3 Para uma exposição mais abrangente sobre esse tema, ver: PAULA, Francisco. Apontamentos
introdutórios acerca da relação entre o cristão e a política. São Luís, MA: Seminário Cristão Evangélico
do Norte (SCEN), 2016. Artigo aceito para publicação em dezembro de 2016 pela revista eletrônica do
SCEN.
4 CALVINO, João. As Institutas. Vol. IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 150.
5 KOYZIS, David T. Visões e ilusões políticas: uma análise & crítica cristã das ideologias
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.
6 Ibid., p. 18.

26
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

É normal, em nossa cultura evangélica, associarmos a concepção de ido-


latria com aquilo que presenciamos no Antigo Testamento (a adoração explícita
a deuses distintos de Deus, feitos de madeira e de pedra) ou no romanismo,
com seu culto às imagens de santos. Entretanto, a perspectiva bíblica acerca
de idolatria é mais ampla que isso. O primeiro mandamento, em Êxodo 20,
ao nos instar a não ter outros deuses, não está falando somente sobre ídolos
visíveis, mas sobre quaisquer tipos de ídolos que tomem o lugar de Deus como
aquele a quem devemos nosso amor último. Quando o Senhor nos conclama a
amá-lo acima de todas as coisas, todo amor supremo que desperdiçamos com
qualquer outro ser ou objeto que não seja o Criador é uma demonstração de
nossa idolatria. Herman Dooyeweerd apresenta isso com clareza:

A essência de um espírito idólatra é que ele separa o coração do homem do


Deus verdadeiro e, em lugar de Deus, coloca uma criatura. Toda absolutização
do que é relativo aponta para a deificação do que foi criado. Considera-se
autossuficiente o que não é autossuficiente.7

Chamar de absoluto aquilo que é relativo, chamar de criador o que é


criatura, chamar de suficiente o que é insuficiente, confiar em algo perecível
como fonte eterna: isso é idolatria. O homem erige ídolos em seu coração (ver
Ez 14.3), aos quais edifica altares em seu íntimo, nos quais sacrifica diariamen-
te sua vida, em busca de satisfação e salvação, mas sem jamais encontrá-las
verdadeiramente. Por toda a vida, busca saciar a sede, mas em fontes sujas e
limitadas, ignorando aquele de quem fluem rios de água viva, o Senhor Jesus
Cristo (Jo 4.13-14). Afinal, assim como “ídolos imitam aspectos da identidade
e do caráter de Deus”,8 eles também só conseguem imitar os resultados obti-
dos por aquele que, verdadeiramente, é soberano.9 Nesse sentido, a análise de
Koyzis sobre as ideologias representa uma aplicação desse conceito às correntes
políticas de nossa época:

No ato de não estabelecer diferença entre a estrutura da criação e seu sentido


espiritual, os seguidores das diversas ideologias tendem a pressupor que a sal-
vação vem da libertação da humanidade em relação a alguma faceta da criação
de Deus; concomitantemente, eles depositam sua confiança em alguma outra

7 DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 29.
8 POWLISON, David. Ídolos do coração e feira das vaidades. São Paulo: Refúgio, 1996, p. 31.
9 Conforme Beale, em análise dos textos de Isaías 6 e 44.18-19, “a percepção do adorador não
pode ser maior do que a do ídolo a que ele serve”. BEALE, G. K. Você se torna aquilo que adora: uma
teologia bíblica da idolatria. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 41. O texto do Salmo 135.15-18 aponta
nessa mesma direção. A partir disso, como poderíamos esperar que as ideologias, por si, fornecessem
uma percepção adequada da realidade, formando, com isso, um correto plano de ação para corrigir as
falhas observadas?

27
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

faceta da própria criação. [...] Nelas [as ideologias], um elemento extraído da


criação divina é transformado em uma espécie de deus capaz de nos salvar. Em
seu apogeu, a ideologia parece invencível e oferece certa ilusão de veracidade
abrangente baseada em pontos que de fato são verdadeiros, sendo aceita por
milhões de pessoas. Com o tempo, no entanto, a ideologia perde sua vitalidade e
passa a ter menos adeptos, em certa medida por não ter conseguido cumprir suas
promessas, mas também porque suas contradições se manifestaram, tornando-a
inviável.10

A partir dessa perspectiva, David T. Koyzis analisa de forma detalhada


as seguintes ideologias políticas: liberalismo, conservadorismo, nacionalismo,
democracia e socialismo. Para os fins do presente texto, haja vista a impossibi-
lidade de abordarmos tão vasto conteúdo, organizaremos a análise da seguinte
maneira: idolatria do indivíduo, idolatria da comunidade, idolatria da tradição,
idolatria da igualdade e idolatria do Estado.11

2. IDOLATRIAS POLÍTICAS
2.1 Idolatria do indivíduo
A idolatria do indivíduo, em regra, está associada ao liberalismo:

10 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 12, 50 e 51. Nesse quesito, o crítico do cristianismo, ou
mesmo o cristão que acaba adotando uma visão compartimentalizada da vida, talvez nos confronte com
uma objeção comum de que estamos espiritualizando o assunto da política, ao tratá-la em termos de
idolatria. Em complemento aos pontos iniciais do presente texto, precisamos reforçar a realidade de que,
por ser Deus o criador e sustentador do universo, a cosmovisão cristã parte do princípio de que toda a
realidade é teorreferente. Esse conceito foi sintetizado de forma bem clara nos seguintes dizeres: “Teo-
-referência é um conceito empregado por Davi C. Gomes para indicar que Deus é o ponto de referência
último de toda a existência tanto do homem regenerado, pelo poder do Espírito Santo e da Palavra de
Deus, quanto do homem não-regenerado. [...] A teo-referência negativa, como é qualificada a existência
do homem em constante apostasia, se dá sempre em forma de emancipação em relação a Deus e rebelião
contra sua Palavra. A teo-referência positiva indica a existência e a apreensão da realidade no interior de
um contexto de significado redentivo ou biblicamente orientado. A teo-referência (negativa ou positiva)
é a condição originária de todo horizonte de compreensão e interpretação humanas. Isso quer dizer que
a vida-no-mundo será sempre encarada no interior de um campo de significado de amor ou de rebelião
contra Deus”. OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões Críticas sobre Weltanschauung: uma análise
do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teo-referente. Fides
Reformata, vol. XIII, nº 1, 2008, p. 31.
11 Nesse sentido, peço ao leitor que seja caridoso em considerar que a tratativa do presente texto
é limitada pelo espaço e escopo. Além disso, irei também, em várias ocasiões, fazer generalizações que
podem não ser aplicáveis a adeptos das ideologias apresentadas em sua totalidade. Digo isso, inclusive,
por mim, que aceito inúmeras alegações delas como verdadeiras e as adoto em meu dia a dia. Para uma
análise mais abrangente, recomendo a leitura dos materiais citados. Ao apresentar a realidade idolátrica
em cada uma das ideologias mencionadas, não se ignora a realidade de que elas possuem muitos pontos
positivos e momentos de verdade, afinal: “As ideologias são incapazes de distorcer completamente o
mundo real, o qual, apesar da presença inegável do pecado, continua sendo a excelente criação de Deus”
KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 155.

28
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

O primeiro e mais básico princípio do liberalismo é: cada um é proprietário


ou dono de si mesmo e, portanto, deve ser livre para governar a si mesmo de
acordo com suas próprias escolhas, desde que essas escolhas não infrinjam o
igual direito dos outros de fazer o mesmo.12

A idolatria do indivíduo é fundamentada, portanto, na autonomia do ser


humano, na consideração do indivíduo como um ser soberano sobre si mesmo.
Em regra, no liberalismo econômico clássico, essa oposição é contra a atuação
do Estado. É nesse sentido, no Brasil, que é comum o uso político do termo
liberalismo – associando-o, historicamente, ao capitalismo, à liberdade de
mercado e ao famoso livro Riqueza das Nações, de Adam Smith. Os liberais
clássicos consideram que todas as obrigações existentes, limitadoras de sua
liberdade, devem advir de acordos voluntários:

Assim, portanto, se removidos todos os sistemas de favorecimento ou de restri-


ção, o óbvio e simples sistema de liberdade natural se estabelece por si mesmo.
Cada homem, enquanto não infringir as leis da justiça, é deixado perfeitamente
livre para perseguir seu próprio interesse a seu próprio modo, e a trazer tanto
seu trabalho quanto seu capital para concorrer com os de qualquer outra pessoa
ou categoria de pessoas.13

O liberalismo, entretanto, na medida em que se desenvolveu como


ideologia mais ampla, promoveu (em seus posteriores desdobramentos, que,
apesar de aparentes desvirtuações, guardam relação direta entre si) uma ex-
pansão de sua aplicação para todas as demais áreas da vida. Assim, o indi-
víduo autônomo do liberalismo deixou de se autodeterminar exclusivamente
na esfera econômica e política, seguindo em busca de se libertar de todas as
amarras existentes, construídas socialmente, segundo defendem.14 Isso expli-
ca o acirramento do movimento feminista, que percebe na ação dos homens,
quaisquer que sejam, uma tentativa de limitar a atuação da mulher enquanto
mulher; explica o crescimento do movimento pró-aborto, com o seu famoso

12 Ibid., p. 57.
13 SMITH, Adam. A mão invisível. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2013, p. 120.
14 Duas considerações precisam ser feitas sobre tal desenvolvimento liberal: (1) Como o próprio
nome revela, essa ideologia idolatra também o ideal de liberdade, o que explica esse processo de evolução
pelo qual passou. (2) No presente texto, estamos seguindo a interpretação de que existe um vínculo direto
entre esses modelos de liberalismo, norteado pelas idolatrias apontadas. Entretanto, grandes expoentes
do liberalismo clássico discordariam de tal perspectiva. No prefácio da edição norte-americana do livro
Caminho da Servidão, F. A. Hayek afirma: “Há, porém, uma questão de terminologia sobre a qual devo
aqui dar uma explicação, a fim de prevenir mal-entendidos. Uso, a todo momento, a palavra ‘liberal’ em
seu sentido originário, do século XIX, que é ainda comumente empregado na Inglaterra. Na linguagem
corrente nos Estados Unidos, seu significado é, com freqüência, quase o oposto, pois, para camuflar-se,
movimentos esquerdistas deste país, auxiliados pela confusão mental de muitos que realmente acredi-
tam na liberdade, fizeram com que ‘liberal’ passasse a indicar a defesa de quase todo tipo de controle
governamental”. HAYEK, F. A. O caminho da servidão. Campinas: Vide Editorial, 2013, p. 17.

29
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

mote “meu corpo, minhas regras”; explica o processo de privatização da fé,


posto que as religiões, com suas visões absolutizantes, tendem a suprimir a
liberdade do indivíduo, devendo, assim, ser expurgadas da esfera pública;
explica a ideologia de gênero e sua visão de que o indivíduo, enquanto ser
autônomo e plenamente livre, deve escolher por si só o seu próprio gênero,
independentemente de sua constituição biológica.15
Em A Revolta de Atlas, uma das obras de ficção mais relevantes sobre a
visão liberal – especialmente em sua linha mais libertária –, podemos perceber
isso quando seu personagem mais importante, John Galt, discursa, já próximo
do fim (do livro e dos Estados Unidos no contexto ficcional apresentado):

O homem não possui nenhum código de sobrevivência automático. O que o


distingue de todos os outros seres vivos é a necessidade de agir em face de
alternativas por meio da escolha de sua vontade. Ele não possui conhecimento
automático do que é bom ou mau para ele, de quais os valores em que se baseia
sua vida, de que curso de ação tais valores precisam.16

Ayn Rand segue, pela voz do protagonista, com uma feroz ofensiva às
instituições que cerceiam a liberdade do indivíduo, ao atacar, especialmente,
sua inteligência (nesse ínterim, ela critica as religiões, o Estado e as próprias
comunidades). Ao agir assim, idolatrando o indivíduo, o liberalismo desconsidera
algumas verdades centrais: a realidade de que o homem é pecador17; o fato de
que somos dependentes, tanto do próximo quanto, fundamentalmente, de Deus; a
necessidade do Estado enquanto autoridade instituída por Deus para promover
a justiça; a existência de obrigações e restrições não decorrentes de acordos volun-
tários, mas da própria natureza conforme estruturada por Deus18 (demonstrando

15 Para nós, brasileiros, soa estranho associar o movimento liberal com essas perspectivas. Con-
sideramos o liberalismo, via de regra, como uma bandeira de direita, associada ao conservadorismo.
Consideramos essas perspectivas feministas, abortistas e da ideologia de gênero como características
da esquerda e seu “progressismo”. Entretanto, como Koyzis trabalha em seu mencionado livro, existe
uma correlação direta entre o liberalismo econômico e a perspectiva liberal em termos morais – sua raiz
religiosa é a mesma. É interessante, nesse sentido, que nos Estados Unidos, os liberals são aqueles que
possuem afinidade com o partido Democrata, que é o partido de esquerda.
16 RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. Vol. III. São Paulo: Arqueiro, 2010, p. 335. Apesar das inúmeras
críticas possíveis ao livro e, especialmente ao discurso de John Galt cujo trecho cito, considero esse um
livro de leitura fundamental. Parece-me que os romances têm a característica de explicar o mundo de
uma forma que os demais livros não conseguem, razão pela qual faço várias referências a estes ao longo
do texto.
17 No livro, esse é um dos pontos que Ayn Rand critica de forma mais enfática, acusando o pecado
original de ser um dos grandes males da concepção cristã do indivíduo.
18 “Para viver essa vida, nenhum homem é auto-suficiente ou bastante provido pela natureza. Pois o
homem nasce privado de toda assistência, desnudo e inerme, como se tivesse perdido todos os bens num
naufrágio, fosse lançado nas desgraças dessa vida e não se sentisse capaz de, por seus próprios meios,
alcançar o seio da mãe, suportar a inclemência do tempo, nem mover-se do lugar aonde foi arremessado”.
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2013, p. 103.

30
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

que a livre escolha do indivíduo soberano não é absoluta sobre tudo e todos); e
a verdade de que a única fonte de redenção real é o Senhor Jesus Cristo, ao nos
libertar das amarras do pecado e não do Estado19 (e/ou outras coletividades).
Nesse ponto, antes de partirmos para o próximo aspecto idolátrico, penso
ser possível abordarmos a idolatria do indivíduo, não sobre o aspecto do eu,
mas na visão do outro – mais especificamente, de “um outro”. A idolatria do
indivíduo ocorre também, penso, quando se considera que determinado líder
político é o detentor máximo de autoridade, personificando todas as virtudes
fundamentais, na visão do idólatra, para que o caminho rumo à prosperidade, à
paz, à segurança, à realização plena, etc., seja por ele pavimentado. Essa visão
está, via de regra, associada à idolatria do Estado. Entretanto, não há dúvida
de que determinadas figuras são vistas como (quase) deuses por seus segui-
dores, tornando-os inerrantes e justificando, assim, todas as suas ações como
corretas – na realidade, as ações desses indivíduos transcendem as perspectivas
tradicionais de bem e mal, não carecendo de justificativas.
Lembro-me, nesse quesito, da grande disputa interna de Raskólnikov na
obra Crime e Castigo, de Dostoiévski. Ao lidar com seu próprio crime, à luz
da visão que possuía sobre a possibilidade de pessoas diferenciadas, indivíduos
únicos e extraordinários, ignorarem as leis, sem que houvesse quaisquer pre-
juízos para eles, Raskólnikov se viu desolado pela percepção dolorosa de si
mesmo como uma pessoa ordinária (ao contrário da autoimagem que possuía,
destruída quando em choque com a realidade). O jovem estudante explica:

Eu [Raskólnikov] aludi simplesmente a que uma pessoa “extraordinária” tinha


o direito... não o direito oficial, é claro, mas o direito pessoal de permitir que
sua consciência passasse por cima... de certos obstáculos, e unicamente na-
quele caso em que a realização de sua ideia (por vezes, salvadora para toda a
humanidade, quem sabe) viesse a exigi-lo. [...] Apenas acredito na minha ideia
essencial. Ela consiste notadamente em as pessoas serem, por lei da natureza,
classificadas em duas categorias de modo geral: a categoria inferior (ordinária),
ou seja, por assim dizer, o material que serve unicamente para a reprodução de
seres similares, e a das pessoas propriamente ditas, das que possuem o dom ou
talento para dizer, em seu meio, uma palavra nova.20

Além de muito do que foi dito aplicar-se a esse modelo de idolatria, tal-
vez menos comum,21 há que se acrescentar que as ideologias políticas, via de

19 Curioso que no “liberalismo moral”, mais tardio, existe uma dependência e idolatria do Estado
como aquele que deve assegurar ao indivíduo livre a possibilidade e, mais que isso, a garantia de que
poderá agir conforme sua vontade – desde que, é claro, essa vontade seja nos termos progressistas da
ideologia liberal.
20 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 296-298.
21 Essa postura é muito bem exemplificada em certas estampas de camisas com rostos de figuras
“revolucionárias” muito difundidas nos movimentos políticos de esquerda.

31
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

regra (e essa marcadamente), seguem a lógica maquiavélica de que “os fins


justificam os meios”. Koyzis ataca de forma cirúrgica a questão: “O adepto
de uma ideologia é possuído por um fim. [...] A justiça futura pode, portanto,
ser vista como uma desculpa para a injustiça presente”.22 A justiça, portanto, não
é vista considerando as leis absolutas e estruturais determinadas por um Deus
justo, como no cristianismo, mas como algo atrelado aos objetivos que se
buscam – por mais que eles não se alcancem e, de fato, não sejam alcançáveis.

2.2 Idolatria da comunidade


No livro A Utopia, de Thomas More – um clássico tão significativo
que a palavra utopia deixou meramente de ser o nome do livro e passou ao
vocabulário comum, como sinônimo de algo ideal, inatingível (ou atingível a
duras penas) –, o leitor é confrontado com uma nação ideal. Uma comunidade
na qual impera perfeita paz e harmonia social. Uma sociedade que vive em
sintonia plena. As pessoas vivem em um regime de certa igualdade, no qual
suas roupas, seus lares e seus estilos de vida são indistintos entre si, em larga
escala. Nessa sociedade, o indivíduo não existe por si só, mas em função e
dentro da comunidade perfeita:

Nenhuma criatura viva é gananciosa por natureza, a não ser por medo de
carência – ou, no caso de seres humanos, por vaidade, a ideia de que alguém
é melhor que as outras pessoas se puder exibir mais propriedade supérflua do
que elas. Mas não há âmbito para esse tipo de coisa em Utopia.23

Esse livro é usualmente associado a uma espécie de ideal comunista,


mesmo sendo cronologicamente anterior ao surgimento e expansão dessa
ideologia. Apesar de o comunismo e o socialismo terem uma forte caracterís-
tica de idolatria da igualdade e do Estado, como será abordado, eles também
possuem o viés da idolatria à comunidade, em detrimento do indivíduo. “Em
linhas gerais”, assevera Koyzis, “o socialismo implica que as necessidades da
sociedade como um todo tenham precedência sobre os desejos do indivíduo”.24
Nesse ponto, possui uma semelhança com outra perspectiva coletivista: o
nacionalismo.25

22 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 38.


23 MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2013, p. 76.
24 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 183.
25 Em certo sentido, o nacionalismo também idolatra o Estado, enquanto aquele a quem devemos
lealdade por sermos membros em comum da mesma nação. Esse não será tanto o sentido abordado em
torno da idolatria do Estado, mas, creio, seria uma afirmação acertada relacionar nacionalismo e socialismo
nesses termos – apesar da imensa diferença em relação aos objetivos e à atuação estatal. Tal semelhança
não é percebida à toa em uma das ideologias mais odiadas do século 20, o nacional-socialismo – mais
conhecido como nazismo.

32
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

Diferentemente do liberalismo, que coloca o indivíduo como a unidade


fundamental da sociedade, essas perspectivas o colocam em segundo plano,
enfatizando o conjunto de pessoas (a nação ou uma comunidade de proletá-
rios, por exemplo) como o fator fundamental de sua existência, seu objeto
último de lealdade, sua fonte de segurança, a pedra fundamental a partir da
qual sua legislação será formada e a identidade dos que dela participam será
definida.26 Novamente, tratando mais especificamente sobre o nacionalismo,
Koyzis afirma:

O liberalismo tenta libertar o indivíduo das demais vontades que prejudicam


a sua soberania; o nacionalismo, de forma análoga, tenta emancipar a nação
do controle de quem se encontra fora de seus limites autodefinidos [étnicos ou
políticos]. Implícita ou explicitamente, os nacionalistas identificam o mal, em
última análise, com o domínio de quem é diferente deles, seja em matéria de
raça, cultura, língua ou religião.27

Nessa absolutização do coletivo, podemos destacar também a própria de-


mocracia como uma ideologia de feições idolátricas, posto que coloca “o povo”
como o ente soberano que governa o Estado. Grande problema ocorre quando
o Estado, legítimo agente político, transcende sua esfera real de competência
e se torna um tirano que busca aplicar o princípio democrático, da vontade
da maioria, sobre todos os indivíduos, organizações e instituições – como se
todos possuíssem a característica de ser dirigidos a partir desse princípio.28
A democracia, por melhor que seja – e tem-se dito que é a melhor forma
de governo testada até hoje –, possui limitações e se manifesta idólatra sempre
que a vontade da maioria for o instrumento último de validação da conduta
do Estado e de seus cidadãos. O “povo”, de fato, não é soberano. Nem pode
ser, haja vista que a característica de soberania, em si, só existe para algo ou
alguém que seja absoluto em si – ao qual todos devam submissão, de forma
total, inquestionável e completa.
A perspectiva coletivista, ao colocar a comunidade, a nação ou o povo
como o fim máximo e o único meio para a prosperidade, absolutiza o relati-

26 “A ideologia da comunidade claramente conflita com o motivo bíblico da criação. Aqueles que
levam a sério o motivo bíblico da criação nunca serão guiados pela ideia de um espírito nacional autôno-
mo que, em sua individualidade absoluta, é sua própria lei e norma. Eles nunca verão uma comunidade
temporal como a totalidade das relações humanas, das quais as outras esferas da sociedade são apenas
partes dependentes”. DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 202.
27 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 128.
28 Um exemplo é a comunidade mais básica da qual faz parte o indivíduo: a família. Caso a família
fosse dirigida pelo princípio democrático, da maioria como determinante das diretrizes, poderíamos ter
o absurdo caso de os filhos se unirem e decidirem desobedecer a seus pais, por mais novos que fossem.
Certamente, em uma votação com várias crianças, contra seus pais, sobre a possibilidade de comer doces
a qualquer momento ou assistir TV até tarde, os pais perderiam.

33
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

vo e comete idolatria. Ela retira Deus de seu trono e o substitui por um falso
soberano, que não consegue, de fato, entregar o que promete – ver todos os
descalabros já cometidos em nome de vários regimes desse tipo, especialmente
no século 20.29
Além disso, ao enfatizar demasiadamente o coletivo em detrimento do
individual, tais ideologias esquecem o fato de que o ser humano, indivíduo, foi
criado à imagem e semelhança de Deus, tendo um valor próprio, intrínseco,
independente da comunidade em que se insere. Não existe, portanto, naciona-
lidade que, por si, torne alguém mais ou menos digno, posto que a dignidade
é algo inerente à pessoalidade. Ignoram, ainda, a realidade de que Deus é,
enquanto Trindade, um e três ao mesmo tempo – ou seja, é uma coletividade
composta por três individualidades. Essa crítica, válida também para a idolatria
individualista, nos indica o valor tanto do indivíduo quanto do grupo, posto o
próprio Criador ter em si, em sua essência, essa mesma natureza de unidade
e multiplicidade.

2.3 Idolatria da tradição


O indivíduo e a ideologia que tem grande apreço pela tradição, pela his-
tória e pelos costumes, via de regra, são denominados conservadores. Koyzis
sumariza a perspectiva conservadora nos seguintes termos:

Os conservadores atribuem grande valor àquilo que provavelmente os torna mais


conhecidos: a tradição. Tradição é o que herdamos do passado, dos nossos pre-
decessores. É algo que resistiu à prova do tempo e mostrou ser útil à sociedade.
Uma tradição nem sempre pode ser explicada racionalmente, mas ainda assim é
confirmada pela experiência humana. Para o conservador, a tradição representa
a experiência acumulada e a sabedoria das gerações passadas.30

Numa primeira leitura, faz bastante sentido ter tal perspectiva, especial-
mente quando simplesmente nos lembramos da tradição ocidental “recente”,
moldada, em grande medida, a partir de uma cosmovisão judaico-cristã.
Entretanto, o que falar sobre as inúmeras tradições existentes que são abso-
lutamente incoerentes entre si? Como discernir entre uma e outra sem cair no
erro historicista? Sem relativizar toda a moral, ética, política, sociedade, etc.,
a partir do argumento de que cada comunidade possui seu próprio senso de
verdade, manifestado em sua realidade temporal e espacial – sendo que esse
não deve ser criticado a partir de padrões contemporâneos (ou, muito menos,

29 Nesse quesito, as seguintes leituras são recomendáveis: BESANÇON, Alain. A infelicidade do


século: sobre o comunismo, o nazismo e a unicidade da shoah. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000;
COURTOIS, Stéphane; WERTH, Nicolas et al. O livro negro do comunismo: crimes, terror e repressão.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
30 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 95.

34
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

transcendentais) do que é belo, verdadeiro, correto e bom?31 Qual a tradição


certa? Existiria uma? Qual o parâmetro para avaliar as normas tradicionais
que devem permanecer e as que devem ser substituídas?32 Dooyeweerd faz
uma advertência válida:

A tradição, em si, contudo, não é uma norma ou modelo para determinar qual
deveria ser a atitude de alguém diante de um poder que chama a si mesmo de
“progressista”. A tradição contém o bom e o mau, e assim ela própria está sujeita
à norma histórica.33

Em um sentido, a perspectiva conservadora erra por sua imanência, ou


seja, pela desconsideração de que a tradição, por mais válida que seja, é decor-
rente de formulações humanas (boas ou ruins), sujeitas ao agir pecaminoso do
homem e da comunidade que as forma. O conservadorismo, portanto, perde
ao não perceber os parâmetros transcendentais34 e eternos estabelecidos por
Deus como parte de sua criação – padrões do que é certo, do que é justo, do
que deve ser feito e de como devemos viver. Sem esses padrões, o conserva-
dorismo acaba por limitar-se em sua própria possibilidade de crítica. Acaba,

31 Nesse sentido, é possível abordarmos que existe uma idolatria da tradição nas ideologias
políticas que adotam uma perspectiva historicista, ao defenderem que as tradições de determinado povo,
por mais que aparentem ser moralmente reprováveis, não podem ser, de fato, julgadas pelo nosso crivo
cultural – o próprio conceito de crivo cultural é posto em xeque, na realidade. Analisando a evolução
do historicismo, Dooyeweerd esclarece o entendimento historicista nesse quesito, revelando a idolatria
em destaque: “Todas as nações têm sua própria mente individual, seu Volksgeist. A nação revela sua
própria cultura em uma liberdade criativa autônoma, incluindo sua própria organização política, lingua-
gem, cultura, ordem jurídica, belas-artes e assim por diante. Padrões gerais de constituições políticas e
de leis, de padrões estéticos e morais, etc., adaptáveis a todas as pessoas em todos os tempos, segundo
imaginava a filosofia racionalista da Revolução Francesa, não existem”. DOOYEWEERD, Herman. No
crepúsculo do pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo:
Hagnos, 2010, p. 130.
32 Os conservadores estão cientes dessa crítica. João Pereira Coutinho afirma: “Existe uma distin-
ção crucial entre a afirmação de que sociedades distintas se organizam distintamente (o que parece ser
uma evidência empírica que qualquer pessoa racional aceita e subscreve) e a afirmação radicalmente
diferente de que algumas sociedades, para não dizer todas, podem viver e sobreviver dispensando cer-
tos valores básicos e fundacionais”. COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras: explicadas a
revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 50 e 51.
33 DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 91.
34 Como existe um grande número de cristãos conservadores, muitos captam essa crítica e lutam
para superá-la, propondo um conservadorismo cristão. Entretanto, o alerta deve permanecer para todos
nós cristãos: a tradição não é suficiente. Como alerta Gene Veith, ecoando Gênesis 2.15: “Tanto as
funções tradicionalistas quanto as progressistas são extremamente importantes e valiosas. Embora elas
pareçam ser opostas, na verdade são complementares. Elas existem em tensão, mas, ao mesmo tempo,
em harmonia”. VEITH JR., Gene Edward. De todo o teu entendimento: pensando como cristão num
mundo pós-moderno. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 59.

35
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

assim, por ignorar o eterno em virtude do temporal, o que compromete sua


própria temporalidade.
Por outro lado, mas em sentido conectado ao ponto anterior, uma ideologia
que idolatre a tradição falha em propor um sentido para o qual a sociedade deva
caminhar. Ao, acertadamente, estimar as instituições e valores que existem e
que foram deixados pelos formadores de determinado povo, muitas vezes o
conservadorismo fornece pouco apoio concreto para direcionar os indivíduos
frente às novidades que surgem no organismo social.35 Assim, responde muito
mais ao questionamento acerca dos caminhos a serem evitados do que sobre
os caminhos a serem trilhados.36

2.4 Idolatria da igualdade


Acerca da idolatria da igualdade,37 especialmente no que concerne à
igualdade material, a ideologia socialista38 talvez seja a principal represen-
tante – apesar de a ideologia liberal, especialmente em sua versão esquerdis-
ta norte-americana contemporânea, também apresentar fortes traços de tal
idolatria. Tendo em vista o fim supremo da igualdade material, o marxismo
estabelece a propriedade privada como o grande mal da humanidade: “Neste
sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição

35 “O conservadorismo poderá ser assim apresentado como uma ‘ideologia de emergência’ – e no


duplo sentido da expressão: porque emerge em face de uma ameaça específica de caráter radical; e por-
que o faz quando essa ameaça põe em risco os fundamentos institucionais da sociedade”. COUTINHO,
As ideias conservadoras, p. 29. Essa citação, ao mesmo tempo, corrobora e contrapõe a crítica feita:
corrobora por indicar um caminho mais de crítica e reação, do que propriamente de ação formadora a
priori e imediata; e contrapõe por apresentar o fato de que os conservadores respondem às novidades no
seio social a partir dos princípios direcionadores de sua ideologia.
36 “Direi agora o que considero a objeção decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua pró-
pria natureza, o conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos seguindo.
Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos indesejáveis, mas, como não indica outro
caminho, não pode impedir sua evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido inva-
riavelmente deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu”. HAYEK, F. A. Por que não sou um
conservador. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2375. Acesso em: 23 ago. 2016.
37 Será analisada a idolatria da igualdade sob o ponto de vista da igualdade de resultados, ou seja,
da igualdade como consequência de processos (desiguais, se necessários) que deve ser almejada acima
de todas as coisas – ela se distingue, portanto, da igualdade em termos de processos ou de direitos. Nesse
quesito, podemos perceber a razão pela qual a idolatria da igualdade de resultados, via de regra, está
atrelada a um modelo de idolatria de Estado, posto que seria essa a entidade que, através de seu controle
político, possibilitaria uma real igualdade econômica última. Para uma discussão sobre essas diferentes
visões de igualdade, ver o capítulo “Visões de Igualdade”, do livro: SOWELL, Thomas. Conflito de visões:
Origens ideológicas das lutas políticas. São Paulo: É Realizações Editora, 2011, p. 143-164.
38 Tendo em vista o forte acirramento dos ânimos na tratativa do tema do marxismo, socialismo
e comunismo, bem como a existência de vertentes com distinções, reforço o lembrete acerca da limi-
tação do escopo do presente trabalho. A análise reduzida ajuda na compreensão do ponto específico, e
verdadeiro, a ser abordado.

36
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

da propriedade privada”.39 A redenção, portanto, estaria na coletivização da


propriedade, posto esta pertencer, de fato, à humanidade e não a indivíduos.40
No marxismo, o conceito de propriedade estende-se para além de todo o viés
meramente geográfico e expande-se para toda a capacidade produtiva do
indivíduo – nesse quesito, o conceito de mais-valia é trabalhado por Marx
justamente com o propósito de quantificar e qualificar a exploração existente
nas relações humanas, reduzidas ao seu aspecto econômico.
Existe, portanto, uma redução de toda a realidade humana a apenas uma
área da existência, o aspecto econômico, que é absolutizada e colocada no
lugar de Deus, sob um viés de adoração ao deus da igualdade, o único deus.
O marxismo de viés mais contemporâneo, o chamado marxismo cultural,
aplica essa lógica da exploração econômica a todas as áreas da vida, criando
dualismos basicamente entre oprimidos e opressores – os explorados e ex-
ploradores. Assim, percebemos o acirramento do feminismo e sua luta contra
a desigualdade entre homens e mulheres; a luta dos movimentos de direitos
civis contra as desigualdades entre negros e brancos; a luta sobre a questão do
gênero e as desigualdades entre os heterossexuais e homossexuais. Além disso,
permanece a luta entre classes, no confronto entre a elite e os pobres – que,
em algum sentido, está na base de tudo isso, posto ser o “macho heterossexual
branco cristão de elite” o opressor máximo, o inimigo supremo a ser comba-
tido. Koyzis analisa:

O ídolo da igualdade se torna um deus zeloso, exigindo que seus adoradores


sacrifiquem sobre o seu altar seus outros compromissos e lealdades menos
igualitários. Afinal de contas, a própria constituição íntima da vida humana –
ou, talvez, a própria ordem da criação – exige que as esposas específicas amem
mais a seus maridos que aos outros homens; que um casal de pais ame mais a
seus filhos que aos filhos dos outros; que os patrões remunerem os seus próprios
funcionários, mas não aqueles que não são seus empregados. Qualquer ideologia
que ignore ou negligencie essas responsabilidades específicas, na esperança de
encorajar uma valorização igualitária abstrata da humanidade como um todo,
será rapidamente confrontada pelo fato de que essa abstração não tem substância
suficiente para substituir as fortes redes de compromissos e lealdades particu-
lares que já existem e caracterizam o mundo real das pessoas humanas.41 Os

39 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Escala,
2009, p. 72.
40 Ver a crítica coletivista já feita ao socialismo.
41 “A associação simbiótica privada e natural é aquela em que as pessoas casadas, os parentes
consanguíneos e os por afinidade, em resposta ao afeto e à necessidade naturais, concordam com uma
comunicação definida entre eles. [...] essa associação é considerada a sociedade, a amizade, os relaciona-
mentos e a unidade mais intensos, o canteiro para as sementes de todas as outras associações simbióticas;
daí a razão de os aliados simbióticos serem chamados de parentes, afins e amigos”. ALTHUSIUS,
Política, p. 121.

37
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

seguidores de uma tal ideologia, serão tentados, assim, a compensar essa falta
de substância com o uso da força coercitiva.42

Assim, a ideologia progressista43 do marxismo possui disposição sufi-


ciente para sacrificar, no altar do deus da igualdade, a vida de milhões de
pessoas – como fez ao longo de todo o século 20. Afinal de contas, “os fins
justificam os meios”, como deixou claro o famoso historiador marxista Eric
Hobsbawm44 ao responder sim quando questionado se a morte de 15 a 20 mi-
lhões de pessoas por Stálin seria adequada se tivesse promovido a revolução
mundial comunista.
Com a finalidade de alcançar o estado redimido da humanidade, liberta
do grande mal que é a desigualdade (materializada na propriedade privada),
o homem (não no sentido de indivíduo para o comunismo) está autorizado a
agir conforme seja mais adequado à consecução de seus objetivos.
A adoração à igualdade ignora inúmeras verdades caras ao cristianismo.
Deus criou os homens com características, qualidades e dons diferentes (ver
1Co 12, por exemplo). Deus criou homens e mulheres com papéis diferentes,
iguais em dignidade, distintos em atribuições (ver Gn 2). Conforme nos ensina
o oitavo mandamento, a propriedade privada é uma realidade criada por Deus
e por ele considerada como digna. Ao determinar “Não furtarás” (Êx 20.15), o
próprio Criador apresenta a realidade de que os bens materiais possuem donos
legítimos, indivíduos na maioria das vezes.
Igualar a todos é reduzir o próprio significado de ser humano.45 A desi-
gualdade, portanto, faz parte da natureza do homem e de seus relacionamentos.
O marxismo identifica o homem como sendo essencialmente bom (ver o mito
do “bom selvagem”), mas corrompido pelo grande mal da propriedade privada
(ou das desigualdades em sentido mais amplo), sendo que somente alcançará
sua redenção com a destruição de toda espécie de distinção e desigualdade
existente.46 Ao fazer isso, substitui a narrativa da criação por Deus, da queda

42 KOYZIS, Visões e ilusões políticas, p. 207.


43 “Não devemos ser enganados pelo adjetivo ‘progressista’, um rótulo que qualquer movimento
espiritual alegremente reclama para si. Uma árvore será conhecida pelos seus frutos”. DOOYEWEERD,
Raízes da cultura ocidental, p. 99.
44 Ver: http://www.dicta.com.br/hobsbawm-e-o-preco-da-utopia/. Acesso em: 20 abr. 2016.
45 Uma breve ilustração profética desse ponto pode ser lida no breve texto de Kurt Vonnegut Jr.
intitulado Harrison Bergeron, escrito em 1961, que começa com a seguinte frase: “The year was 2081,
and everybody was finally equal”. Disponível em: https://archive.org/stream/HarrisonBergeron/Harri-
son%20 Bergeron_djvu.txt. Acesso em: 24 out. 2016.
46 Essa análise, em grande medida, foi provocada pelo livro Verdade Absoluta, de Nancy Pearcey.
Ela afirma: “O correlativo de Marx ao jardim do Éden era o estado de comunismo primitivo. E como foi
que a humanidade caiu deste estado de inocência para a escravidão e tirania? Pela criação da propriedade
privada, Desta ‘queda’ econômica surgiram todos os males da exploração e luta de classes. A redenção

38
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

no pecado e da redenção somente em Cristo por uma narrativa falsa47 – e to-


talmente imanente, do princípio ao fim. Além disso, a religião socialista erra
por absolutizar um único aspecto da vida humana, o aspecto econômico, e
enxergar toda a grande complexidade da existência através dele. A ideologia
igualitarista, assim, comete o pecado da idolatria ao substituir o verdadeiro
Deus das Escrituras por um ídolo feito pelas mãos humanas.

2.5 Imanência e idolatria do Estado


Existem duas questões finais a serem respondidas neste tópico: há algo em
comum em todas essas ideologias? Qual o papel do Estado nelas? Respondendo
ao primeiro questionamento: sim. O aspecto da autonomia é um fator comum a
todas elas. Todas essas visões buscam implementar seus respectivos programas,
uns mais revolucionários que outros, é verdade, por meio de seus próprios prin-
cípios e considerando-os suficientes para o cumprimento dos seus objetivos
estabelecidos por si mesmos como fundamentais. Desconsidera-se aquele
que verdadeiramente é transcendente, o que faz com que aspectos imanentes
da existência sejam “transcendentalizados” de forma indevida e idólatra pelas
ideologias.48 Franklin Ferreira assevera:

Acreditamos que a ausência do “totalmente outro” (totaliter aliter) leva pessoas


a adotar uma ideologia que ambiciona transcendência, a qual supostamente as
auxilia a superar as contradições de uma sociedade existencialmente opressiva,

ocorre pela inversão do pecado original – neste caso, destruindo a posse da propriedade privada. E o
‘redentor’ é o proletariado, os trabalhadores de fábrica urbanos, que se revoltarão em revolução contra
seus opressores capitalistas”. PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu
cativeiro cultural. Rio de Janeiro: Editora CPAD, 2012, p. 152.
47 O aspecto religioso dessa narrativa fica claro, também, no comentário que Ludwig Von Mises
faz acerca dos comunistas, socialistas e intervencionistas: “O dogma fundamental dessa crença proclama
que a pobreza é resultado de instituições sociais injustas. O pecado original, que privou a humanidade
de uma vida feliz nos jardins do paraíso, foi o estabelecimento da propriedade privada e da empresa. O
capitalismo atende apenas aos interesses egoístas dos ferozes exploradores, e condena as massas de homens
íntegros ao empobrecimento e degradação progressivos. O que é necessário para tornar prósperas todas as
pessoas é a submissão dos exploradores gananciosos ao grande deus chamado estado. O motivo ‘lucro’
deve ser substituído pelo motivo ‘serviço’. Felizmente, dizem eles, nem as intrigas, nem a brutalidade
provenientes dos infernais ‘monarquistas da economia’ conseguem dominar o movimento reformista.
A chegada da era do planejamento central é inevitável. Haverá então fartura e abundância para todos”.
MISES, Ludwig von. A mentalidade anticapitalista. Campinas, SP: Vide Editorial, 2013, p. 93-94.
48 Essa imanência é vista, também, em sua visão acerca dos problemas culturais, sociais, econômicos
e políticos a serem “combatidos”. Desconsidera-se a existência de qualquer problema que transcenda
a ordem daquilo que é visível ou, eminentemente, natural – uma perspectiva do homem como pecador,
decorrendo desse fato as misérias humanas, inconcebível, portanto, para muitas dessas visões. Thomas
Sowell, comentando as visões de mundo que adotam tal noção, afirma: “Tendo em vista as possibilidades
irrestritas do homem e da natureza, a pobreza ou outras fontes de insatisfação somente poderiam ser o
resultado de intenções maldosas ou de cegueira diante de soluções rapidamente alcançáveis por meio
da mudança das instituições existentes”. SOWELL, Conflito de visões, p. 37.

39
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

satisfazendo a “preocupação suprema” de suas vidas, o sonho de “outro mundo


possível”, a “realização da utopia”.49

O liberalismo econômico clássico, por exemplo, diz que se o Estado sair do


meio do caminho (e aqui respondo uma parte da segunda pergunta), as relações
voluntárias entre os indivíduos livres, serão suficientes para a autorregulação
da vida. A democracia defende que se a soberania popular for devidamente
utilizada ela irá conduzir a um consenso majoritário que garantirá a paz entre
seus cidadãos. O conservadorismo ensina que se formos cuidadosos com as
instituições e as tradições que nos têm servido, a sociedade caminhará, mesmo
que de forma lenta, para aperfeiçoar-se – nunca será perfeita, mas irá melhorar.
O socialismo aponta que um dia o capitalismo será substituído (seja por uma
revolta proletária, seja por uma revolta cultural), o egoísmo deixará de existir, e
todos viverão em uma sociedade igualitária, na qual a paz reinará eternamente.
Os indivíduos, a coletividade, as instituições e/ou o Estado, autônomos,
irão conduzir o mundo para um caminho melhor, declaram essas ideologias.
Em última análise, portanto, revelam seu coração apóstata, que desconsidera
a realidade bíblica de que em Cristo “vivemos, nos movemos e existimos”
(At 17.28), que é Cristo que sustenta “todas as coisas pela palavra do seu poder”
(Hb 1.3) e que por Cristo “todas as coisas foram feitas [...], e, sem ele, nada do
que foi feito se fez” (Jo 1.3). Essas ideologias, assim, ignoram o fato de que
toda a realidade é dependente e não autônoma. O homem é dependência. As
ideologias, via de regra, partem da autonomia.
Em resposta ao segundo questionamento, é possível destacarmos, por
fim, uma das maiores tendências idolátricas do ocidente contemporâneo: a
idolatria do Estado. É fácil, penso, percebermos isso nos modelos extremos
de marxismo ou de liberalismo progressista – respectivamente muito bem
captados, em minha percepção, nos clássicos de George Orwell, 1984, e de
Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo. Entretanto, deixamos passar no dia
a dia a tendência da nossa própria idolatria estatal.
Todas as vezes que vemos problemas culturais, sociais ou políticos e,
automaticamente, consideramos que é papel do Estado resolvê-los, revelamos
uma confiança indevida nele. Todas as vezes que diante do sofrimento e das
dores, nossas ou do próximo, nos questionamos meramente: “Onde estava o
Estado?”, demonstramos que talvez não entendemos bem o seu papel.50 Todas

49
FERREIRA, Franklin. Contra a idolatria do Estado: o papel do cristão na política. São Paulo:
Vida Nova, 2016, p. 142.
50 É interessante observar a similitude entre esses questionamentos atuais e uma linguagem própria
da religião, que, desde os Salmos, encara o sofrimento e os problemas questionando-se “Onde estava
Deus?”. Franklin Ferreira alerta exatamente sobre isso ao afirmar: “O Estado tem assumido papel re-
dentor – e a mistura dessas funções [do Estado e da Igreja] vem causando sérios problemas em ambas
as esferas. Portanto, devemos desconfiar do uso de linguagem religiosa misturada às bandeiras políticas,
partidárias ou ideológicas, pois a linguagem das duas esferas não pode se confundir”. Ibid., p. 82.

40
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

as vezes que terceirizamos a educação dos nossos filhos ao Estado, achamos


que é seu papel fornecer saúde universal gratuita,51 consideramos que ele é o
definidor do bem e do mal mediante a lei, seguimos uma tendência de idola-
tria do Estado. Sempre que fazemos isso, assimilamos a concepção pagã de
Estado, que, conforme Dooyeweerd, rastreando o ensinamento de Aristóteles,
considera:

O Estado foi contado como parte do dito “terreno natural”, e a visão pagã,
aristotélica, predominou. Tal visão se resumia a isto: o Estado é a forma mais
elevada de comunidade. Todas as demais relações sociais, tais como casamento,
família, relações de sangue, agremiações vocacionais e industriais, todos esses
são meramente componentes subordinados que servem ao mais elevado.52

Ao fazermos isso, colocamos o Estado como o soberano, que rege todas


as demais esferas da vida humana. Ele é o onipotente, onipresente e onicom-
petente Estado. O Estado-empresa-hospital-escola-definidor-do-bem-e-do-mal.
Nessa perspectiva, o “Estado [...] adquire uma dimensão transcendente, agindo
para estender seu domínio ideológico sobre todas as esferas da sociedade”.53
Entretanto, essa não é a visão cristã do Estado. Essa não é a visão cristã do
soberano. Kuyper ensinou, em suas famosas palestras sobre calvinismo:

O Calvinismo tem, por intermédio de sua profunda concepção de pecado, exposto


a verdadeira raiz da vida do Estado, e nos tem ensinado duas coisas: primeira –
que devemos agradecidamente receber da mão de Deus a instituição do Estado
com seus magistrados como meio de preservação agora, de fato, indispensável.

51 Há que se considerar a existência, muitas vezes, de um desejo legítimo atrelado a um pressuposto


errado. O desejo legítimo seria a busca pelo bem-estar do próximo (ou mesmo de todos os indivíduos).
O pressuposto incorreto seria ignorar a impossibilidade real de indivíduos e instituições imanentes resol-
verem problemas transcendentes. O indivíduo, diante da lacuna gigantesca entre sua capacidade de atuar
de forma responsável e a necessidade imensa decorrente da queda humana, em todas as áreas, procura
preencher esse vácuo com uma instituição que seria, dados a ela os devidos poderes, em sua visão que
desconsidera o transcendental, capaz de atuar como ele não poderia por si. Assim, tal indivíduo terceiriza
ao Estado uma responsabilidade que, sendo sua, percebe como sendo incapaz de cumprir, na esperança
de que o Estado atue de forma redentiva. Para uma discussão sobre as formas distintas de perceber o
conceito de justiça social e suas consequências: SOWELL, Conflito de visões, p. 219 e ss. Para uma
discussão sobre a lacuna moral existente entre a possibilidade de atuação do homem e a sua necessidade
de atuação: HARE, John. Por que ser bom? Uma reflexão sobre a filosofia moral. São Paulo: Editora
Vida, 2004.
52 DOOYEWEERD, Herman. Estado e soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São Paulo:
Vida Nova, 2014, p. 47.
53 FERREIRA, Contra a idolatria do Estado, p. 91. Interessante que, para agir assim, conforme o
próprio autor, “as igrejas tradicionais são pesadamente criticadas, pois o que se quer é debilitar a igreja
em seu papel de contrabalancear o Estado. A família tradicional também é atacada, pois ela é um bastião
de lealdade separado do Estado e, logo, uma inimiga do totalitarismo político”. Ibid., p. 119. Penso que
o leitor atento irá exclamar em seu coração: “Eu já vi esse filme!”.

41
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

E por outro lado também que, em virtude de nosso impulso natural, devemos
sempre vigiar contra o perigo que está escondido no poder do Estado para nossa
liberdade pessoal.54

O Estado, portanto, para o cristão, possui um papel bastante delimitado.55


Existem inúmeros textos das Escrituras Sagradas que nos auxiliam na tarefa
de compreender suas funções, seus limites, sua estrutura – tais como Rm 13,
Pv 8.15-16, Dn 2.21,37-38, Is 41.2-4 – e nenhum deles atribui ao Estado o papel
que atualmente muitos querem que ele tenha.56 Existe somente um Soberano,
que é o próprio Deus. Todas as instituições, seja o Estado, a igreja, as famílias,
a escola, sujeitam-se a ele como o único detentor de soberania. Nesse quesito,
novamente, cabe o alerta de Dooyeweerd:

Nem uma única esfera diferenciada da vida – de acordo com sua verdadeira
natureza – pode abarcar o homem em todos os relacionamentos culturais. A
ciência é tão incapaz disso como o é a arte; o Estado não é mais adequado para
fazer isso do que a igreja institucional, o mundo dos negócios, a escola, ou uma
organização trabalhista. Por quê? Porque cada uma dessas esferas, de acordo
com sua natureza interna, é limitada em sua esfera cultural de poder. A esfera
de poder do Estado, por exemplo, é tipicamente caracterizada como o poder da
espada. Esse poder é, indubitavelmente, atemorizador. Mas ele não pode abarcar
o poder da igreja, ou das artes, ou das ciências.57

À luz de tudo o que fora dito, retomamos a pergunta inicial: Qual a me-
lhor visão política para o cristão adotar? Acredito que não existe uma resposta
exatamente direta a esse questionamento. Todas as ideologias políticas, por
serem criações de homens caídos, possuem aspectos idolátricos – umas de
forma mais acentuada, sem dúvida. Todas as ideologias políticas, por serem
criações de homens criados à imagem e semelhança de Deus, possuem aspectos
de verdade – umas bem menos que outras, isso é inquestionável. Nenhuma
delas deve ser aceita de forma irrefletida pelos cristãos. O cristão precisa ser
crítico a partir de uma cosmovisão biblicamente orientada, retendo aquilo
que há de bom nelas e rejeitando o que há de mau. Mais que isso, precisamos

54 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 88.


55 Wayne Grudem alerta: “Infelizmente, um estado maior implica também um indivíduo menor e
um cidadão menor; um governo suficientemente grande para lhe dar tudo o que você quer é um governo
suficientemente grande para tomar tudo o que você tem; a mão que ajuda quase sempre se torna a mão
que controla”. GRUDEM, Wayne. Economia e política na cosmovisão cristã: contribuições para uma
teologia evangélica. São Paulo: Vida Nova, 2016, p 95.
56 Esses textos são apenas exemplificativos e não exaustivos da visão bíblica sobre o Estado. Não
iremos abordá-los por não serem objeto da presente análise.
57 DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 98.

42
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 25-44

desenvolver uma visão política que seja distintamente cristã,58 para evitarmos
cair no risco de pensar a política a partir de uma colcha de retalhos retirados
das demais ideologias.

CONCLUSÃO
“O homem só será perfeitamente feliz quando for livre. O homem só
será perfeitamente feliz quando todos forem iguais. O homem só será perfei-
tamente feliz quando existir harmonia em sua nação. O homem nunca será
perfeitamente feliz, mas pode ser mais feliz ou permanecer feliz se preservar
as tradições. O homem será mais feliz quando deixar de ser tão individualista.
Somente em uma sociedade verdadeiramente democrática o homem pode ser
verdadeiramente feliz. Para o homem ser mais feliz, precisamos preservar sua
individualidade.”
O que existe em comum em todas essas respostas, dadas pelas diferentes
ideologias? O que isso nos diz sobre o fim principal do homem? A resposta é:
a busca pela felicidade, por satisfação, por sentido, por significado, por des-
canso, por paz como fim último da existência.59 No fim das contas, podemos
traçar esse objetivo comum em todas as ideologias por corresponderem a um
desejo profundo do coração do homem, conforme Agostinho de Hipona bela e
brilhantemente afirmou: “Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti”.60 Somente em Deus alcançamos a felicidade que
as ideologias, e seus ídolos, prometem.

ABSTRACT
The Christian involvement in the public arena, especially in the area of
politics, is the subject of constant discussion. Numerous issues are raised in
this field, such as those related to man’s ultimate purpose of glorifying God
in every aspect of life. This article has in view to help Christians in the task

58 Muitos materiais citados ao longo deste artigo tentam desenvolver tal paradigma, sendo, portanto,
valiosos instrumentos para nós cristãos.
59 Em certo sentido, essa busca é pela eternidade. Por aquilo que é pleno, que é cheio de significado,
que é imperecível. Isso explica a razão de a percepção política, quando “tornada” em ideologia, ter um
caráter religioso, idolátrico. A fé é o que conecta o tempo – nossa vida diária, a existência imanente –
com a eternidade. E é pela fé que as ideologias se pautam, em última análise, ao elevarem ao status de
divindade aspectos criados. Nesse sentido, Dooyeweerd afirma: “Como resultado da queda, a revelação
de Deus na criação, especialmente sua revelação no coração da humanidade, assumiu o caráter de uma
opinião. Onde o coração se fechou e se afastou de Deus, também a função da fé se fechou para a luz
da Palavra de Deus. No entanto, a função de fé ainda permaneceu na posição limite entre o tempo e a
eternidade. De acordo com sua própria natureza, permaneceu orientada para a base sólida da verdade e
da vida, que se revelou na criação. Depois da queda, no entanto, a humanidade buscou essa base sólida
dentro da própria criação, idolatrando e absolutizando o que é, na verdade, relativo e não autossuficiente”.
DOOYEWEERD, Raízes da cultura ocidental, p. 118.
60 AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997, p. 19.

43
FRANCISCO CAUÊ CRUZ DE OLIVEIRA PAULA, O CRISTÃO E AS IDOLATRIAS POLÍTICAS

of, from a Christian worldview, dialoguing with some of the main political
ideologies of our time: liberalism, Marxism, conservatism, democracy, and
nationalism. In order to achieve this purpose, the author initially relates the
concepts of ideology and idolatry. Then, departing from the concept of idolatry,
he analyzes the main political ideologies, which are organized in terms of the
idols that stand in their altars: the individual, community, tradition, equality,
and the State. Finally, two aspects are observed that bring together political
ideologies, namely, the autonomous foundation and the search for satisfaction
as an end, with the conclusion that the Christian must relate critically with the
political ideologies.

KEYWORDS
Christian worldview; Idolatry; Politics; Political ideologies.

44
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

A Morte de Jesus Cristo e a Oferta do Evangelho


Paul Wells*

RESUMO
A fé reformada ou o calvinismo histórico abraça a convicção de que a
redenção é particular, ou seja, de que Jesus Cristo morreu para salvar apenas o
seu povo, as suas ovelhas, e não todos os homens indistintamente. Ao contrário
do que se imagina, essa doutrina não contradiz a oferta universal do evangelho a
todos, antes é um poderoso estímulo a ela. Na verdade, a “redenção particular”
é o fundamento do anúncio geral das boas novas. Somente ela é coerente com
o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os seres humanos são pecadores
e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido “no seu sangue, como propi-
ciação, mediante a fé”, que a reconciliação é obra pessoal de Deus e que todo
homem tem o dever de se arrepender e crer.**

PALAVRAS-CHAVE
Teologia reformada; Calvinismo; Pacto; Redenção particular; Arminia-
nismo; Pregação do evangelho.

INTRODUÇÃO
Há mais ou menos vinte anos, a fé cristã era objeto de um blackout, por-
que Deus, julgado incongruente e ultrapassado, “estava morto”. Hoje, nossos

* O autor nasceu em Liverpool, na Inglaterra, e reside no Sul daquele país. É professor emérito da
Faculdade João Calvino, em Aix-en-Provence, na França, e editor-chefe da revista Unio cum Christo. Sua
tese de doutorado (Th.D.) na Universidade Livre de Amsterdã, James Barr and the Bible: Critique of a
New Liberalism (James Barr e a Bíblia: crítica de um novo liberalismo, 1980) foi novamente publicada
em 2016 pela editora Wipf and Stock. Em 2010, recebeu um grau honorário (D.D. Honoris Causa) do
Seminário Teológico Westminster, em Filadélfia.
** Este artigo foi publicado originalmente em La Revue Reformée 194 (1997-3): 63-85. O texto
reproduz uma conferência dada na “Pastorale” de Dijon em 1993. Tradutor: Paulo Sérgio Athayde Ribeiro.

45
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

contemporâneos procuram novas formas de espiritualidade. Essa evolução,


entretanto, não parece beneficiar a fé cristã tradicional. O retorno ao religioso
não é um retorno nem à igreja, nem ao interesse pela doutrina cristã.
O que desagrada no cristianismo é seu exclusivismo. Uma fé que pretende
ser a única verdadeira só pode ser imperialista e, consequentemente, favorável
à discriminação tanto na terra como no céu – ela é fundamentalmente intole-
rante. Seu Deus não é universal, mas sectário. Ousar afirmar que somente um
caminho leva ao único Deus verdadeiro, passando por um homem historica-
mente distante e por uma cruz, na qual ele foi crucificado, é qualquer coisa
de inaceitável. Para a maioria das pessoas, toda religião tem sua parcela de
verdade e de erro, e o mundo todo sabe que muitos não cristãos fazem mais
pelos pobres e infelizes do que muitos crentes.
Há muitos cristãos que tropeçam nessa dificuldade para em seguida re-
nunciar à ideia de que o cristianismo é uma religião única. Todas as religiões
têm o mesmo Deus, “nós iremos todos para o paraíso”, porque o guarda-chuva
de seu amor cobrirá a todos. Consequentemente, a evangelização torna-se uma
empresa duvidosa. Esta concepção está longe de ser exceção no protestantismo
contemporâneo, que é universalista de maneira explícita – o inferno não existe
mais – ou implícita. Ainda que a Bíblia fale do julgamento, a salvação para
todos é uma esperança.
Nessas condições, é preciso que tenhamos sólidas convicções bíblicas
para crer no que o calvinismo histórico afirma, ou seja, na doutrina da redenção
particular: Jesus Cristo morreu com uma intenção precisa, isto é, para salvar
apenas o seu povo, suas ovelhas, seus eleitos, e não todos os homens. Tal
afirmação parece não somente estar no extremo oposto das atitudes modernas
globalizantes, mas também para muitos evangélicos é motivo para abandonar a
evangelização. Por isso na sequência do nosso estudo procuraremos demonstrar
que, ao contrário do que aparenta, a noção de redenção particular é essencial
e constitui um poderoso estímulo à oferta universal da boa nova a todos.

1. A OFERTA UNIVERSAL E A “REDENÇÃO PARTICULAR”


A questão da “redenção particular”, segundo R. L. Dabney,1 é um dos
pontos mais delicados da teologia calvinista, não em razão dela mesma, mas
por causa das controvérsias que provoca. É sobre esse ponto, que faz parte dos
Cânones de Dort, que se concentram os ataques dos defensores (arminianos)
da “redenção universal”.

1 DABNEY, R. L. Lectures in Systematic Theology. Reimpressão. Grand Rapids, MI: Zonder-


van, 1972 (1878), p. 513ss. DABNEY, R. L. “God’s Indiscriminate Proposals of Mercy, as Related to
his Power, Wisdom and Sincerity”. In: Discussions Evangelical and Theological. Edimburgo: Banner
of Truth, 1967 (1890), p. 282-314. Robert Dabney, teólogo presbiteriano do século 19, foi capelão de
Stonewall Jackson.

46
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

Um primeiro problema está na imprecisão da linguagem. J. I. Packer,


como Dabney, critica a expressão clássica redenção limitada.2 A redenção não
é limitada; Deus realizou, sem limitação, exatamente o que queria na salvação
dos homens. Aliás, mesmo para a “redenção universal”, salvo se queremos
afirmar que todos os homens serão salvos (universalismo puro e simples), a
redenção é limitada não pela determinação de Deus, mas pela vontade humana.
Para o calvinista, Deus salva pecadores. Cada palavra dessa afirmação tem
seu devido peso.
Ao levantarmos a questão sobre o conteúdo da redenção, nós nos co-
locamos no coração do Evangelho, no sentido não apenas teológico, mas
também prático. A graça de Deus pode ser derrotada? Cristo morreu em vão?
Um passo em falso nesse terreno muda todo o sentido do evangelho. A “re-
denção particular” é a mensagem de toda a Escritura; modificá-la, seria mudar
toda a doutrina bíblica, tanto o sentido de “particular” ou “limitado”, como
também o sentido de “redenção”. Se modificarmos o sentido da redenção
adquirida na cruz, então os sentidos de eleição, de pecado, da graça e da
perseverança dos santos serão igualmente modificados! Então teremos uma
religião diferente! (Packer).

1.1 A doutrina da “redenção particular”


Cristo aceitou morrer por uma esposa que não conhecia? Ele se casará
com quem quer que o escolha? Estas duas perguntas feitas por C. H. Spurgeon
situam bem o assunto. A vontade de Cristo é salvar os seus, ou propor a sal-
vação a uma hipotética vontade humana?
A questão da “redenção particular” não se choca com:

• A suficiência do sacrifício de Cristo: esse sacrificio é suficiente para


toda criatura e até para aqueles que poderiam ter sido criados;
• A adaptabilidade a todos: ela corresponde às necessidades de todos.
Em um sentido objetivo, o sacrifício de Cristo atinge todos os homens
da mesma maneira;
• A oferta universal: a salvação é dada a conhecer tanto ao eleito como
ao não eleito, quando ouvem o evangelho.3

Esta doutrina tem como único alvo especificar por quem o Pai entregou
seu Filho à morte e por quem Cristo se deu com o propósito de libertá-lo. Em

2 PACKER, J. I. Le salut biblique et l’annonce de l’Evangile. La Revue Réformée (1992:5), p. 1-20.


Em inglês, Limited Atonement. Sua formulação clássica se encontra no terceiro cânone de Dort (1619).
3 HODGE, A. A. “The Design or Intended Application of the Atonement”. In: The Atonement.
Cherry Hill, NJ: Mack, sd., p. 199-247. A. A. Hodge (1823-1886) foi professor de teologia sistemática
no Seminário de Princeton.

47
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

geral, os reformados usam a frase de Agostinho sobre a redenção: “Suficiente


para todos, eficaz para os eleitos”. Isto indica que a dignidade e o valor da
cruz são suficientes para todos os homens, mas que, segundo a vontade divina,
essa obra é concretamente aplicada somente ao povo de Deus. A suficiência
da obra não implica que Deus queira salvar todos os homens.
Se a redenção é particular, isso é devido à intenção de Deus quando esta-
beleceu a Cristo como o substituto para o pecado deles. Essa intenção implica
as seguintes considerações:

• A redenção é consequência da eleição e não o inverso;


• O amor de Deus é específico e profundo e não geral;
• A morte de Cristo é uma transação pactual e não um ato com objetivo
impreciso;
• O sacrifício de Cristo é eficaz para o seu povo e não para todos de
maneira indefinida;
• Os frutos da morte de Cristo são a fé e o arrependimento daqueles
que creem nele e não uma fé eventual.

A doutrina da “redenção particular” leva em conta a intenção de Deus


e de Cristo, segundo a qual Jesus morreu por seu povo e unicamente por ele;
cada indivíduo que faz parte desse povo será inevitavelmente salvo; fora desse
povo ninguém receberá a bênção da graça especial.

1.2 Essa doutrina depende da natureza da Aliança


É no contexto da aliança divina que podemos compreender a origem, a
natureza e as consequências da morte de Cristo. Desviando-se disso, o armi-
nianismo4 opõe Deus ao homem quando se concentra sobre a questão da capa-
cidade da vontade humana. Do lado reformado, igualmente, quando a doutrina
da aliança não é bem compreendida, a relação entre a “redenção particular” e
a oferta universal da salvação em Cristo é falsificada, resultando, de um lado,
no universalismo hipotético de Amiraldo, e do outro, no hipercalvinismo.5
O pensamento reformado fez distinção, e ela nos parece bíblica, entre o
pacto “da redenção”, que é eterno, feito entre o Pai e o Filho para salvar um povo

4 O arminianismo, muito difundido no mundo “evangélico” a partir do avivamento de Wesley,


é o ensino de Armínio (1560-1609) resumido em cinco pontos, respondidos pelos Cânones de Dort. A
vondade do homem é indeterminada: ele é perfeitamente capaz de responder, por si mesmo, ao Evangelho.
Os arminianos apenas retomaram, porém modificando-os, os argumentos de Erasmo contra Lutero ou
de Pelágio contra Agostinho.
5 M. Amyraut (1596-1664) ensinou que Deus idealiza, em sua vontade, salvar a todos, mas na
prática esse desejo encontra a resistência do pecado do homem. O hipercalvinismo afirma que, uma
vez que a eleição diz respeito unicamente a alguns, o Evangelho não é oferecido a todos através de
um apelo geral.

48
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

pela cruz, e o pacto “da graça”, que é o meio histórico de realização. Francisco
Turretino6 diz que são duas as condições da mediação de Cristo. Cristo foi dado
como redentor dos homens e homens foram dados a Cristo. Estes dois atos
alcançam as mesmas pessoas. Do contrário, Deus teria falhado. Para realizar o
pacto de redenção, Jesus se empenha na realização de dois atos:

• Sua morte, pela qual ele se deu como garantia e satisfação pelos pe-
cados humanos (uma transação legal);
• Sua ressurreição, pela qual ele é o cabeça da nova humanidade, da
igreja, daqueles que lhe foram dados “como recompensa”.

Segundo Turretino, a razão, o conteúdo e a eficácia desses dois atos de


Cristo são os mesmos. No primeiro ato, Cristo se deu pelos homens; no segundo,
ele lhes aplica sua salvação. Mas esta maneira de ver é bíblica? Certamente
não é com os escritos do apóstolo João, em particular o capítulo 17 de seu
evangelho, que se vai provar o contrário! Tudo isso é verdade sobre o pacto
“de redenção”.
Mas esse pacto “de redenção” se realizou historicamente. O pacto “de
graça” é o modo de realização da redenção. Do ponto de vista de Deus, a graça
de Cristo será aplicada aos eleitos. Mas, do ponto de vista do homem, esses
eleitos fazem parte de uma massa de pecadores da qual devem ser retirados.
Eles responderão e serão salvos? Sim, mas deverão ouvir a mesma mensagem
que os outros, a fim de receber a salvação que foi realizada, por eles, em Cristo.
Eles têm de ser chamados, receber a Cristo pela fé e entregar-se a ele. Para
atingir esse objetivo, Deus escolheu o anúncio universal da boa nova de Cristo.

1.3 A “redenção particular” e a oferta do evangelho


O arminiano tem ao menos duas reações diante do exposto. Ele considera
que há aí uma perversão da linguagem bíblica.
(a) A Bíblia, de fato, não diz que Deus ama o mundo, que Cristo se deu por
todos, que ele morreu para salvar a todos, etc.? O calvinista lhe parece culpado
de fazer uma amputação bíblica. Essa opinião pode ser de uma simplicidade
sedutora, mas é errada. A Bíblia diz que Deus ama a igreja, que Cristo se deu
por muitos e que ele morreu por suas ovelhas. O arminiano explica então que
se trata de dois tipos de amor, diferentes em grau. Nada é mais incorreto. An-
tes, é melhor reconhecer que, nos dois casos, trata-se do mesmo amor e dos
mesmos beneficiários.

6 TURRETIN, F. The Atonement of Christ. Grand Rapids, MI: Baker, 1978 (1859), p. 114 ss.
François Turretin ou Francisco Turretino foi um teólogo de Genebra e sucessor de Calvino no século 17.

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PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

Por isso é correto interpretar os termos gerais, os “todos” da Escritura,


como restritivos, e não o inverso. É impossível, como notam W. Cunningham7
e A. A. Hodge, explicar em que consiste o amor específico de Deus pelos seus,
se de início afirmarmos que esse amor é geral. Nesse caso, Deus não teria mais
amor por uma ovelha de Cristo do que por um lobo que destrói o rebanho!
2) Em segundo lugar, a “redenção particular” não desestimula o anúncio
do evangelho? Ao contrário. Sem ela, nenhum anúncio do evangelho é possível.
Dabney observa que esse problema é do mesmo tipo que o da soberania de Deus
e da liberdade humana. Se Deus, em sua soberania, não tivesse feito o homem
livre, este não seria nem livre, nem verdadeiramente responsável. Da mesma
maneira, se Cristo não tivesse salvado os seus, a oferta do evangelho não seria
a que encontramos na Escritura. Isto é certamente verdade, mas bastante teó-
rico. Tentemos ser mais concretos. Por que a “redenção particular” exige uma
oferta geral? “Eu não poderia pregar como um arminiano!”, disse Spurgeon.
Ele dá três razões pelas quais a “redenção universal” dos arminianos, apesar
da aparência, não permite um anúncio autêntico do evangelho:

• Cristo morreu para salvar os perdidos, mas, de fato, ninguém ainda


foi salvo pela cruz. Tudo ainda precisa ser aplicado:

“Eu prefiro crer em uma redenção que seja eficaz para todos aqueles a
quem foi destinada a crer em uma “redenção universal” que seja eficaz somente
quando a vontade humana permitir”.

• Se Cristo não morreu especificamente por alguns, o homem é o ar-


quiteto de sua salvação. É o homem que, por sua resposta, a assegura.
Essa resposta, quem poderá dá-la? Ninguém. Quem poderia?

“Alguém dirá com insistência que Cristo morreu por todos. Mas, então,
por que todos não são salvos? Porque todos não querem crer. Isso quer dizer
que a fé seria necessária para que o sangue de Cristo seja eficaz para a reden-
ção? Nós consideramos isso uma grande mentira.”

• Deus quer que todos os homens sejam salvos, mas seu desejo é im-
potente. Ele espera a resposta do homem:

“Se a intenção de Cristo era salvar todas as criaturas, oh!, como ele deve
ter ficado decepcionado!”

7 CUNNINGHAM, W. Historical Theology. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1862), vol. II,
p. 323-369; CUNNINGHAM, W. The Reformers and the Theology of the Reformation. Edimburgo:
Banner of Truth, 1967 (1862), p. 413-470. William Cunningham (1805-1861), foi deão do New College,
em Edimburgo, na Escócia.

50
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

Diante da “redenção universal”, todo pregador deveria se aposentar ou


procurar os meios mais poderosos para transmitir sua mensagem. Felizmente,
as condições da pregação reformada são completamente outras. Por causa da
“redenção particular”, os homens e as mulheres foram realmente salvos na
cruz. A oferta geral por certo não implica, logicamente, em redenção universal.
A oferta é geral, isto é, apresentada a todos aqueles que a ouvem, porque
Cristo é o mediador entre Deus e os homens em geral (1Tm 2.5). O homem é
“responsabilizado” pela oferta do evangelho, que lhe ensina que ele não pode
pretender ser salvo por sua própria força e que lhe mostra o que ele deve fazer
para ser salvo. Quando da oferta do evangelho, Deus chama de maneira eficaz
e salva aqueles por quem Cristo morreu. Assim, na oferta geral do evangelho,
Deus é colocado na posição de soberano em relação à sua criatura. Esta se
encontra em uma posição normal em relação a Deus e aprende que seu dever
é entregar-se a Deus pela fé.
Por que Spurgeon não podia pregar como um arminiano? Porque o ho-
mem é o que manda, e não Deus. O arminianismo engana-se ao pressupor que
a natureza pecadora é normal e que o homem tem capacidade de responder
livremente; assim o homem chega à fé. O calvinismo, ao contrário, coloca o ser
humano que ouve o evangelho diante da responsabilidade de crer e lhe mostra
que ele depende de Deus para receber a fé como um dom.
Agora vamos considerar os dois aspectos da mediação de Cristo segundo
o evangelho: a apresentação de Cristo e o chamado dos homens e mulheres
para Cristo.

2. CRISTO É APRESENTADO AOS PECADORES NO EVANGELHO


Quatro aspectos dessa questão devem ser considerados: o fundamen-
to da oferta geral da redenção em Cristo, sua natureza, sua intenção e suas
consequências.

2.1 O fundamento da oferta do evangelho


Na oferta do evangelho, Deus não limita sua soberania. Ele exige que
todas as suas criaturas vivam pela fé. Portanto, é normal que o chamado do
evangelho proceda de e encontre sua eficácia em Deus mesmo. Paulo diz
que “vós sois [de Deus] em Cristo Jesus” e que foi o Pai que “nos libertou
do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor”
(1Co 1.30 e Cl 1.13).
Por que essa ação de Deus Pai? Ela tem como objetivo conduzir a Jesus os
homens e mulheres que lhe foram dados como recompensa. Jesus mesmo diz:
“Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim... Ninguém pode vir a mim se
o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.37,44). Esse ato do Pai reflete seus
atributos: sua soberania, sua liberdade, sua graça e seu amor. O evangelho, o
instrumento por meio do qual os filhos de Deus vêm a Cristo, é a expressão da

51
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

vontade de Deus em salvá-los em seu amor. John Murray afirma que o amor
é a fonte de todos os dons que Deus dá aos ímpios.8 Por trás da oferta geral de
salvação está o amor de Deus; não um sentimento vago para com o pecador,
mas uma disposição favorável e real que se concretiza no fato de que Deus lhe
indica o caminho da salvação. “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? ...
não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva?” (Ez 18.23).
A oferta do evangelho não tem como alvo revelar o amor de Deus aos
homens. Ela é o instrumento dessa revelação. Seu objetivo é exibir os atributos
de Deus: a glória do próprio Deus que é amor. A glória de Deus e a realidade de
seu amor por suas criaturas, que se expressam na oferta geral, também devem
determinar em que espírito a pregação do evangelho deve ser feita. Não somos
frequentemente culpados de ter um amor frio para com Deus e por isso nosso
desejo de ver o pecador vir a Cristo fica enfraquecido?

2.2 A natureza da oferta geral


Se Cristo não morreu senão somente pelos seus, como apresentar o Cristo
do evangelho? Packer fala do evangelismo moderno, cuja estrutura é a seguinte:
“Deus ama você e tem um plano maravilhoso para a sua vida; Cristo morreu
por todos os homens; ele quer ser o seu Salvador; aceite-o no seu coração”.
O arminiano pensa que o evangelho pregado pelo calvinista não é para
todos os homens, uma vez que Cristo morreu somente pelos seus, e o calvinista
acha que, no sistema arminiano, a redenção é limitada, ou seja, a morte de Cristo
não é suficiente para ninguém; a vontade do Senhor de salvar é impotente e
depende da suposta boa vontade do pecador.
Qual é o problema colocado pelo arminianismo? Aproveitando uma dis-
tinção de Dabney, o problema repousa sobre uma confusão quanto à palavra
“redenção”. Nesse sistema o sacrifício de Cristo não é objeto de nenhuma
transação; ele é aplicado a todo indivíduo salvo. Se todos são eleitos, a natu-
reza do sacrifício seria a mesma para todos. Dabney argumenta que, no Novo
Testamento, se a expiação do pecado pelo sacrifício de Cristo é impessoal e
jurídica, a reconciliação é pessoal. Assim, pela vocação eficaz, a expiação im-
pessoal é aplicada de maneira pessoal e positiva e seu destinatário é reconciliado
com Deus. Na mediação de Cristo, a expiação é um ato único e impessoal,
enquanto que a reconciliação é múltipla e engloba os indivíduos reconciliados.
Essa distinção, como destaca A. A. Hodge, é uma aplicação prática daquilo
que distingue os pactos “da graça” e “da redenção”.
Quando Cristo diz, em João 6:37, que os seus virão a ele e que não os
deixará fora, Ele põe em evidência sua intenção de fazer o que o seu Pai quer.

8 MURRAY, J. The Forgotten Spurgeon. Edimburgo: Banner of Truth, 1978, p. 69-116. MUR-
RAY, J. “The Free Offer of the Gospel”. In: Collected Writings. Edimburgo: Banner of Truth, 1982,
vol. IV, p. 113-132. John Murray foi professor no Seminário Westminster, em Filadélfia, de 1937-1966.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

Cristo conduz sua ação com a firme intenção de atrair a si todos aqueles que
pertencem ao Pai. Ele é bastante poderoso para salvar; a mediação formal-
mente realizada na cruz se completa na aplicação da salvação e na intercessão
em favor dos seus filhos. Todos os seus virão a ele e, como diz John Bunyan,
“Cristo não encontrará neles nada que lhe desagrade”.9
Na oferta geral, existem duas aplicações dessa verdade. A expiação é
apresentada e ofertada a todos, porque o sacrifício de Cristo é impessoal. Na
pregação da cruz o amor de Deus é anunciado a todos, sem alusão à eleição
ou à não eleição de uns e de outros. É a obra da cruz que é apresentada na
pregação evangélica, porque é aí somente que o amor de Deus é conhecido.
O pregador não tem nenhum mandato para ir além e acrescentar “Deus vos
ama” e ainda menos para afirmar que “a graça de Deus é para todos, sem ne-
nhuma condição”. Deus não exprime seu amor diretamente ao pecador, mas
pela mediação da cruz. A relação entre Deus e o pecador é de julgamento e de
graça, que ganha sentido somente na perspectiva do Calvário.
O que sabemos, de fato, sobre o amor de Deus e de sua graça por X ou
por Y, pecadores como nós diante de Deus? Nada. Um e outro têm, talvez, um
câncer e podem morrer em seis meses e perder-se eternamente. O que lhes
devemos dizer com urgência?
Em segundo lugar, o pregador, como Deus mesmo faz, tem o dever, em
suas declarações, de esconder-se atrás da cruz. Ele não está qualificado para
administrar a graça de Deus. Por outro lado, está qualificado para proclamar
o nome do Deus “rico em misericórdia”. O anúncio do evangelho tem como
objetivo interpelar as pessoas, não oferecer-lhes uma graça pessoal. É Cristo
quem lhes aplica individualmente sua graça; é sua tarefa, e não nossa, levar
sua obra a bom termo. Sejamos, então, modestos, dependentes de Cristo, mais
preocupados ainda que os arminianos em focar a cruz e mais desejosos em ver
Cristo completar sua obra de reconciliação. Aí os pecadores dirão sim à causa
de Cristo... apesar de nós!

2.3 A intenção da oferta do evangelho


Qual é a intenção de Deus quando deseja que o evangelho seja apresen-
tado a todos os seres humanos, mesmo àqueles que jamais crerão? A quase
totalidade dos ataques arminianos contra a posição calvinista se concentra aqui.
Se Deus oferece sua misericórdia a todos, inclusive àqueles que ele sabe que
não crerão, como evitar a conclusão de que lhe faltam sabedoria e poder, ou
que sua sinceridade é duvidosa, perguntam eles?

9 BUNYAN, John. Come and Welcome to Jesus Christ: A Discourse on John 6:37. Bunyan
(1628-1688), um puritano reformado, é autor do célebre O Peregrino.

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PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

K. Schilder10 definiu com precisão o sentido da palavra “oferta”. Não se


trata de uma interrogação que espera uma resposta indiferente, como “você quer
outra xícara de café?”. A oferta do evangelho se efetua segundo os princípios
da aliança e nenhum homem ou mulher tem algum direito de responder “não”.
Vejamos isso em detalhe.
Do lado divino, a oferta do evangelho não é condicionada por nada; ela
é absoluta, séria e bem-intencionada. O que é proposto é preciso: Deus sal-
va, ele salva por graça, realiza o que promete, sua Palavra é certa. Como diz
Spurgeon, jamais uma pessoa que levou Deus a sério ficou sem o Salvador. O
evangelho oferece uma salvação que depende de Deus e não do homem, que
se realiza quando o homem reconhece o Senhor. Deus se engaja na criação
de um novo coração, em dar a fé e regenerar todos aqueles que olham em sua
direção para serem salvos.
Do lado humano, como disse Bunyan, a promessa de Deus é condicional.
Ela chama à obediência, ao arrependimento, a receber a mensagem e a se con-
verter. A conversão humana é a expressão da regeneração operada por Deus. A
resposta humana à aliança leva em conta os “se” e os “e”. “Se tu...” e “vinde e
vede...” convidam a acolher a mensagem. Assim, a oferta geral, fundamentada
sobre a capacidade absoluta de Deus em salvar, compreende uma exortação
lançada ao homem para que ele receba o evangelho nas condições propostas.
O homem, enquanto criatura, é chamado a aceitar essa palavra em obediência
e fé. Assim, o caráter da oferta, nesse sentido, é universal. Cristo jamais rejeita
uma pessoa que vem a ele em resposta ao evangelho.
O arminiano objetará que, nessas condições, Deus zomba do pecador,
porque este, segundo o esquema calvinista, não pode dar uma resposta positiva.
E, é verdade, ele não pode dar. Mas essa incapacidade diminui o seu dever?
Certamente que não. O homem não vem a Cristo, nem responde ao seu cha-
mado, porque ele não quer. Por isso ele é responsável. Sua atitude em recusar
a oferta de Deus não é normal, nem justificada. Ela é testemunha da gravidade
e da anormalidade do pecado, que o impede de reconhecer a grandeza do amor
de Deus apresentado no evangelho. Por isso Packer diz que a compaixão de
Deus pelos pecadores os convida a ter compaixão deles mesmos.
Se a oferta de Deus fosse assim, poderíamos perguntar se seria sin-
cera, dirá o arminiano. Se Deus deseja mesmo a salvação dos pecadores,
porque não a realizou em todos aqueles que ouvem a boa nova? Se ele não
faz isso, é porque sua compaixão é apenas aparente. Ainda, a propósito de
Mateus 23:37: “Jerusalém, Jerusalém... Quantas vezes quis eu reunir os teus
filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não
o quisestes!”, o arminiano acha que a compaixão de Deus é real, mas ela

10 K. Schilder (1880-1952), teólogo e pregador holandês, foi autor de uma trilogia sobre os sofri-
mentos de Cristo.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

é contrariada pela resistência do homem. Alguns calvinistas não souberam


responder bem a este argumento. Foi assim que Calvino e Turretino afirma-
ram que, nesse texto, a compaixão de Cristo, em razão de sua humanidade
e suscitada pelo seu sofrimento, não tinha o propósito de permitir-lhe salvar
os judeus, salvação que não estava nos planos de Deus. Entre outras, esta
explicação nos parece frágil.
Dabney propõe uma explicação mais próxima dos textos que, como 1 Ti-
móteo 2, evocam o desejo de Deus de salvar todos os homens e sua compaixão.
A compaixão de Deus pelos perdidos é real, sincera e profunda. Deus pode, sem
contradizer-se, desejar o que ele não decretou. Existem em Deus razões secretas
que não conhecemos, que estão escondidas em seu conselho não revelado e que
fazem com que sua compaixão não se manifeste concretamente. W. Cunningham
e J. Murray adotam essa posição quando dizem que pode haver em Deus um
desejo de realizar o que não decidiu em sua vontade secreta. Dabney dá uma
ilustração disso: George Washington assinou a condenação à morte do espião
André; ao fazer isso ele chorou de compaixão, mas esta teve que ceder diante
das razões superiores que haviam motivado sua decisão.
Na oferta de salvação pelo evangelho da cruz, Deus manifesta sua compai-
xão pelo pecador, exprime seu desejo de vê-lo arrependido e oferece sua graça
de maneira autêntica e real. Há aí uma espécie de paradoxo. A expiação feita na
cruz e o amor de Deus tornam-se motivos de perdição para o pecador. Como
é grande a perversidade do pecado! O que há de mais dramático que desprezar
o amor divino? “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o
mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17).
“Esse verso afirma que a condenação não era o objeto inicial da missão
de Cristo... que era manifestar, pelo sacrifício de Cristo, a compaixão de Deus
para com todos” (Dabney). Por isso o pregador do evangelho não pode ter
outra intenção além daquela que o próprio Deus tem: a compaixão pelos per-
didos, o amor que Deus manifestou por eles na cruz e seu desejo de que sejam
salvos. O inimigo a enfrentar: a perversidade do pecado, que é a rebelião em
face do amor de Deus. Utilizemos, então, todas as armas à nossa disposição
para desmascarar esse inimigo, o destruidor do homem, e advertir aqueles que
“preferem as trevas à luz”.

2.4 Os efeitos da oferta geral do evangelho


Cunningham afirma que a Escritura não estabelece elo de causalidade
entre o valor infinito do sacrifício de Cristo e a oferta geral do evangelho. A
“redenção particular”, que resulta da vontade divina, aplica e personaliza a
oferta geral de salvação. Deus anuncia a salvação a todos em Cristo e projeta
sua luz no coração de alguns indivíduos. Aqueles que, à luz de João 6, são
dados a Cristo pelo Pai, virão a ele. Ao mesmo tempo, Cristo não negligencia

55
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

a salvação daqueles que recebeu do Pai. Sua missão é comunicar sua graça aos
seus e tornar efetiva sua vinda. A oferta do evangelho, que conduz à “vocação
eficaz” do pecador, implementa, em seu caso, a razão de ser da cruz:

• Ao dom do Filho sobre a cruz, corresponde o dom do Espírito que


testemunha do Filho;
• À compaixão manifestada publicamente dando o Filho pelos pecadores
corresponde o amor indizível de Deus por seus eleitos;
• À morte de Cristo que é bênção para toda a humanidade corres-
ponde a morte de Cristo enquanto garantia da vida eterna para os
filhos de Deus;
• À morte de Cristo que provê um tempo de paciência divina corres-
ponde, para os eleitos, a justificação, a propiciação e a fé.

De um mesmo convite procedem dois resultados: a vocação eficaz


de alguns pecadores e a perdição de outros. Mas o evangelho não é causa de
perdição para ninguém: a perdição é um efeito indireto da mensagem da cruz,
devido à terrível dureza do coração do homem natural. A missão do pregador
é dramática. Está ele realmente consciente da gravidade da luta espiritual na
qual está engajado, contra os poderes das trevas, que reinam não somente nos
lugares celestiais, mas também nos corações de seus ouvintes?

3. OS QUE VÊM A CRISTO


Aquele que encontra Cristo encontra a vida. Como disse Bunyan, “há em
Cristo tamanha glória que, uma vez descoberta, ela volta o coração para ele e o
atrai”. A proclamação do evangelho toma a forma de uma promessa oferecida
a todos. Foi assim que Cristo mesmo pregou. Pensemos nas sete afirmações
que começam por “Eu sou”. Jesus revela que ele está em seu papel messiânico
e acrescenta uma promessa àquele que o reconhece como tal. A proclamação
geral do evangelho assume, então, a forma do pacto, como segue:

• Anúncio feito a todos;


• Promessa de recompensas como frutos da graça;
• Convite a respeitar suas condições;
• Ordem para se arrepender e crer.

A pregação da boa nova deve conter esses aspectos. Por isso Paulo, após
ter declarado que Deus quer que “todos os homens sejam salvos e cheguem
ao pleno conhecimento da verdade”, ou seja, depois de evocar a compaixão
de Deus e como ela se manifesta, afirma que foi estabelecido como pregador
e apóstolo para proclamar o evangelho (1Tm 2.4-6).

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

Quem, então, virá a Cristo? Aquele que foi tomado pelo que Cristo fez
e que leva a sério a sua palavra. É necessário insistir sobre este ponto desde
o início, porque toda posição teológica que o negligencia vai inevitavelmente
admitir a capacidade do homem como sujeito da salvação. O Messias é todo-
-poderoso, enquanto que o homem é incapaz.

3.1 A incapacidade do homem


O erro dos arminianos é fazer do arrependimento e do abrir do coração
condições para o dom da graça. Dito de outra maneira, eles colocam a conver-
são antes da regeneração e confundem os dois. O homem teria tão pouco calor
espiritual? Não. Ele tem a temperatura de um cadáver. Como disse Spurgeon,
o milagre da graça foi Deus ter descido abaixo do grau zero da morte para dar
vida ao pecador.
Nenhum pecador pode, por natureza, entregar-se a Cristo. A tarefa do-
lorosa da pregação é dizer isso. O arminiano objetará dizendo que o homem
certamente é pecador, mas isso não o impede de vir a Cristo. Exprimirmos
isso em nossa prática homilética é uma tentação. Mas o evangelho adverte que
o ser humano não pode vir a Cristo e aceitá-lo. Ele é inteiramente incapaz.
Quanto a isso, sua situação espiritual não tem esperança. Ora, paradoxalmente
é precisamente aí que o pecador consciente encontra sua esperança. Spurgeon
insiste que devemos afogar nossa autossuficiência até que reconheçamos o
desespero de nossa situação e nossa total incapacidade para sairmos disso.
Quando alguém percebe claramente a tragédia que é ser pecador diante do Deus
santo, o milagre da graça será crer que ele é perdoado e aceito pelo Senhor. O
pecador depende somente de Deus para a sua salvação.
Assim, a pregação do evangelho prende o pecador a Cristo, para que
compreenda que não há nenhuma esperança, nenhum recurso, salvo em Cristo
mesmo, e que ele venha a clamar: “Meu Deus, estou desesperado, salva-me por
tua graça!” Ele se reconhece incapaz de salvar-se e sabe, psicologicamente, que
sua salvação depende de Deus. Esse é o motor, a convicção que o impulsiona
a Cristo. O carcereiro de Filipos, ao perguntar “Que devo fazer para que seja
salvo?”, não tinha em mente fazer qualquer coisa em seu benefício. Ele se via
perdido. Por isso Spurgeon afirma que há dez mil vezes mais esperança no
calvinismo que no arminianismo, que afirma que todos podem ser salvos se ao
menos o quiserem muito. No calvinismo é diferente: o pecador é um cadáver...
mas Cristo é a ressurreição e a vida. O pecador que se vê como tal, não pode
vir por si mesmo, mas Deus lhe dará a vontade; ele é cego, mas Deus diz:
“Guiarei os cegos por um caminho que não conhecem” (Is 42.16).
O Espírito Santo, ao suscitar a vida no homem morto pelos seus pecados,
realiza o milagre da graça. De outro modo o pecador viria a Cristo? Não, ele
não pode e nem mesmo quer. No entanto, ele virá. Ele receberá a vida, porque
Deus realizará em seu coração o que ele é incapaz de fazer. Eis porque a dou-

57
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

trina da “redenção particular” está no coração da oferta do evangelho, porque


ela serve de fundamento para a esperança de que os homens virão a Cristo para
receber a salvação. Se Cristo não salvar os pecadores, sua decisão ou nossa
palavra não o fará. Se ele foi verdadeiramente morto por eles, então virão a
Cristo! Quando ouvimos o chamado de Cristo para ir a ele, não queremos nem
podemos; mas se esse chamado é acompanhado da seguinte precisão: esta
palavra é para “aqueles que não têm dinheiro”, para “aqueles que têm sede”,
para “aqueles que estão cansados e sobrecarregados”, então nos damos conta
de que essa palavra é para nós e corresponde à nossa situação. Então não po-
demos fazer outra coisa senão correr para Cristo, cujo Espírito é vida e cujo
convite é caloroso e constitui nosso único recurso.

3.2 O mandamento de ir a Cristo


Porque Deus é o soberano do pacto, ele pede ao pecador que acolha
positivamente o evangelho. Trata-se mesmo de um mandamento, como de-
monstra, por exemplo, Isaías 55, com muitos de imperativos: “vinde... buscai...
invocai... escutai...”.
O arminiano diz que a tese calvinista não se sustenta se o pecador não
puder ir livremente. Deus perderia seu tempo porque somente alguns, os seus
eleitos, responderiam. Isso merece os seguintes comentários:
(a) Formalmente, como diz Dabney, o fato de Deus formular mandamentos
não implica que o homem pecador tenha a capacidade de observá-los. Quem
pode “amar o Senhor de todo o seu coração”? Ninguém. Mas é da natureza de
Deus exigi-lo. John Owen insistiu sobre esse ponto.11 O dever de todo pecador
não regenerado é voltar-se para Cristo, em arrependimento e fé, para ser salvo.
Ele deve crer que:

• O evangelho é verdadeiro;
• A salvação é somente pela fé em Cristo;
• Todo pecador precisa de um Salvador;
• Cristo salvará o pecador se este se entregar a ele, conforme as indi-
cações do Evangelho.

Na oferta arminiana falta a urgência da obrigação. Essa oferta está enqua-


drada numa possibilidade: “Permita-me ajudá-lo com esse tesouro” (Schilder).
(b) Materialmente, a vontade regenerada necessita receber indicações
claras sobre a maneira de se comportar ao escutar o chamado do evangelho.
Como poderia ser de outra forma? Os eleitos estão no meio da humanidade
perdida. Aliás, é por isso que o chamado só pode ser geral. O pacto da graça,

11 OWEN, John. Works. Edimburgo: Banner of Truth, 1960 (1850-1853), vol. X. John Owen,
grande teólogo puritano do século 17, foi autor prodigioso e capelão de Cromwell.

58
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

diz C. Hodge,12 é proposto a toda a humanidade e a condição para entrar nesse


pacto é a fé. A fé não é a causa da salvação, mas sua condição. É dessa forma
que Deus indica aos seus como eles podem responder ao chamado.
(c) O homem é passivo no momento em que Deus o regenera, mas a re-
generação reanima sua liberdade ao criar nele uma nova disposição, livre do
domínio do pecado. Como Abraham Kuyper13 constata, “nascido de novo e
eficazmente chamado, o homem se converte”. Kuyper salienta que, no Novo
Testamento, a conversão é considerada quase 140 vezes como um ato do
homem, e somente 6 vezes como um ato do Espírito Santo! Assim, quando a
Escritura exorta o homem a se converter, ela evoca uma resposta humana ao
evangelho, resultante da regeneração. Essa resposta é possível porque Deus
regenera aqueles por quem Cristo morreu e, ao restaurar sua liberdade, torna-
-os capazes de dizer “sim”. Isto possibilita duas importantes consequências
no que concerne à proclamação do evangelho:
(a) Na oferta geral, não convém encorajar os ouvintes a nascer de
novo, nem exortá-los a crer que Cristo morreu por todos e, portanto, por eles
pessoalmente. Owen afirma que não é possível afirmar: “Creia, porque Cristo
morreu por você pessoalmente”. A aplicação pessoal da morte de Cristo faz
parte do dom divino da regeneração. Se a expiação é impessoal, a reconci-
liação é pessoal. Também a oferta do evangelho deve permanecer impessoal
quando endereçada a cada pessoa. Nós temos que exortar quem quer que seja
a arrepender-se e a crer, sem temer dar a essa exortação o imperativo de uma
ordem sobre algo que tem que ser feito, porque a salvação exige essa condição.
(b) A ortodoxia calvinista às vezes tem esquecido esse aspecto da prega-
ção, que se apresenta frequentemente como uma descrição teológica, teórica e
árida, sobre o que é arrependimento e fé. Por medo do arminianismo, chega-se a
dispensar o homem de seu dever em voltar-se para Cristo, enquanto que é con-
fiando radicalmente em Cristo que somos salvos e não se contentando apenas
em tomar consciência intelectual da natureza da regeneração. Essa tomada de
consciência é insuficiente, embora seja necessária.14 Assim, a ortodoxia pode
gerar a presunção, que resulta no formalismo, e nossas comunidades protestan-
tes estão cheias de “cristãos” de fato irregenerados que se creem salvos porque
podem repetir o Credo dos Apóstolos. No entanto, a salvação é abandonar-se
a Cristo, que salva! O fantasma do arminianismo teria o poder de fazer nosso
apelo à fé menos urgente que o de Cristo?

12 Charles Hodge (1797-1878) foi professor no Seminário de Princeton e autor de uma excelente
teologia sistemática.
13 Abraham Kuyper (1837-1920), teólogo e primeiro ministro dos Países Baixos, escreveu, entre
outras, uma obra notável sobre o Espírito Santo.
14 Para os reformadores, a fé não é somente um conhecimento, mas antes de tudo confiança
(fiducia).

59
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

3.3 A promessa é para aqueles que vêm


Packer observa que, na oferta do evangelho, nós não trazemos os homens
a Cristo, mas trazemos Cristo aos homens. Isto pode surpreender, mas, se re-
fletirmos, nada é mais exato. É a regeneração que faz o homem vir a Cristo;
nosso papel é apresentar a boa nova com sua promessa.
Deus dá o que ordena no evangelho. Ele sabe quem virá, ele o torna capaz
em vir e, ao acrescentar sua promessa, o encoraja a receber a Cristo. Aquele
que vem, será recebido. Mas como virão? Bunyan mostra que o movimento é
espiritual; impulsionado pelo sentimento de incapacidade absoluta, pelo perigo
que o pecado traz, o pecador corre para Cristo para obter socorro. A promessa
de ser aceito, de ser bem-recebido, fortifica a vontade de abandonar tudo por
ele (Lc 14.26,27).
Podemos “nos decidir” por Cristo? Sermos salvos ao assinar um cartão de
decisão? Levantar-nos para obter a salvação? Certamente não. Packer diz que
essas manifestações modernas sugerem que podemos decidir por nós mesmos
e que esse assunto é nosso. O ato de decidir implica uma automotivação. “Vir
a Cristo”, ao contrário, é um ato que corresponde à renúncia de si mesmo e
uma total confiança na promessa de Deus. Nós não vamos a Cristo porque
somos capazes de “tomar uma decisão”, mas porque Cristo promete nos rece-
ber. É o engajamento de Cristo que motiva o pecador perdido e o traz para ser
salvo. O evangelho moderno é umbilical: ele encoraja uma focalização sobre
nós mesmos e não o olhar em direção a Cristo e seus méritos. Com um ponto
de partida como esse, não surpreende que a vida cristã pareça ser uma série de
experiências ou múltiplas conversões.
O evangelho glorifica a imensidade do amor de Cristo, que promete rece-
ber aqueles que não “valem” nada. Não temos perdido aquele sentido tão rico
do amor de Cristo, que recebe os cegos e coxos, aqueles que não são nada? Que
maior privilégio pode haver para um vale-nada que sentar-se à mesa do Rei?
O Rei da Glória, ele mesmo nos convida e promete nos saciar. Sua recepção
real é pessoal, como da ovelha perdida, do filho pródigo, do pecador que se
arrepende, fonte de alegria no céu. O chamado vem de Cristo e é orientado
para ele. “O Espírito e a noiva dizem: Vem!” (Ap 22.17). Esse chamado extrai
toda sua força do fato de que Cristo recebe apenas aqueles por quem morreu.
Cristo é glorificado em seu ofício de mediador, quando os pecadores vêm a
ele. E ele “é rico em perdoar” (Is 55.7).

3.4 Cristo, morto por mim também


Turretino faz uma distinção clássica na teologia reformada, mas hoje
esquecida, entre a fé formal e a fé consoladora. A fé formal conduz somente
a Cristo para a salvação e implica um conhecimento de nossa miséria, uma
resposta ao chamado divino e uma plena confiança na promessa de Cristo.

60
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 45-62

Essa é a fé justificadora. A fé formal é direta, voltada para Cristo e encontra


a salvação nele, isto é, ela não tem nada do homem. A fé consoladora é a
consequência interior da fé formal; ela nos assegura que Cristo morreu por
nós. Foi essa a grande experiência dos irmãos Wesley em 1738, ao lerem os
textos de Martinho Lutero, e que Charles Wesley descreveu assim: “Eu custei,
eu esperei e eu orei para sentir que Cristo me ama e que ele se deu por mim”.
Packer diz que essa segurança está fundamentada no conhecimento do amor
de Deus e não pode preceder a experiência da fé que salva. Normalmente, o
cristão raciocinará assim:

• Cristo morreu por todos aqueles que creem;


• Eu vim a Cristo e creio;
• Então Cristo morreu por mim também.

A fé consoladora não pode ser apresentada como uma razão para crer;
ela é apenas consequência do ato de fé. A inversão dessa ordem é o erro do
arminiano.15 Da mesma maneira que diz ao pecador “Deus o ama”, ele solicita
sua fé pessoal e lhe pede para crer que Cristo morreu por ele pessoalmente.
Ora, o evangelho não nos pede para crer que “Cristo morreu por você”, mas
para crer em Cristo. Spurgeon, como sempre, foi ao ponto. Ao crer que Cristo
morreu por você, diz ele, você pode crer naquilo que não é verdade. E assim
podemos ir para o inferno por não termos vindo a Cristo conforme o evange-
lho, tendo crido simplesmente que Cristo morreu por nós! A essência da fé que
salva não reside nessa segurança. A fé que salva é aquela que confia em Cristo
e descansa nele para sua libertação. Estar seguro de que Cristo me salva é fruto
da fé que salva, isto é, a confiança posta em Cristo para ser salvo.

CONCLUSÃO
A “redenção particular” é o fundamento do anúncio geral do evangelho.
Somente ela é coerente com o conteúdo do evangelho, ou seja, que todos os
seres humanos são pecadores e incapazes de se salvar, que Cristo foi escolhido
“no seu sangue, como propiciação, mediante a fé” (Rm 3.25), que a reconci-
liação é obra pessoal de Deus e que todo homem tem o dever de se arrepender
e crer. Essas verdades existem para satisfazer suas verdadeiras necessidades.
A pregação de hoje, em vez de excitar o orgulho de seus ouvintes, deveria
lembrá-los disso claramente.16

15 Erro infelizmente também cometido por Wesley. Ver: SCHLUCHTER, A. “Wesley e Whitefield,
uma controvérsia sobre a evangelização”. La Revue Réformée 37 (1986:4), p. 177ss.
16 Outras obras relevantes sobre o tema são: BLOCHER, H. “Le champ de la rédemption dans la
théologie moderne”, Hokhma, n° 43, p. 25-48. HELM, P. “The Logic of Limited Atonement”. Scottish
Bulletin of Evangelical Theology (1985:2), p. 47-54. JOHNER, M. “L’universalité et la particularité du

61
PAUL WELLS, A MORTE DE JESUS CRISTO E A OFERTA DO EVANGELHO

ABSTRACT
The Reformed faith or historical Calvinism embraces the conviction that
redemption is particular, namely, that Jesus Christ died in order to save only
his people, his sheep, not every man indiscriminately. Contrary to general per-
ception, this doctrine does not contradict, rather it is a powerful incentive to,
the universal offer of the gospel to all. In fact, “particular redemption” is the
foundation for the general proclamation of the good news. Only this doctrine is
coherent with the content of the gospel: that all human beings are sinners and
unable to save themselves, that Christ was chosen “in his blood, as a sacrifice
of atonement, through faith”, that reconciliation is a personal work of God,
and that every man has the duty to repent and believe.

KEYWORDS
Reformed theology; Calvinism; Covenant; Particular redemption; Armi-
nianism; Preaching of the gospel.

salut chrétien”. La Revue réformée (1988:4), p. 17-40. DE JONG, A. C. The Well-Meant Gospel Offer.
The Views of H. Hoeksema and K. Schilder. Franeker: Wever, 1954. NICOLE, R. “John Calvin’s View
of the Extent of the Atonement”. Westminster Theological Journal (1985:2), p. 197-225. WARFIELD,
B. B. “God’s Immeasurable Love”. In: Biblical and Theological Studies. Filadélfia: P&R, 1952, p. 505-522.
WELLS, Paul. Entre ciel et terre. Lausanne: Ed. Contrastes, 1991, Apêndice II. WITSIUS, H. The Economy
of the Covenants Between God and Man. Escondido, CA: P&R (distr.), 1990 (1822), vol. I, p. 255-270.

62
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70

Educação Teológica para um Ministério


Urbano Multicultural
Valdeci S. Santos*

RESUMO
A urbanização é uma realidade em cada continente. Está ocorrendo em
diferentes proporções e diferentes níveis, mas é inquestionável. Nesse processo,
as nações (panta ta ethne) estão se mudando para as cidades. Todavia, a igreja
ainda precisa fazer essa transição, intelectual, estratégica e teologicamente.
De muitas maneiras, a igreja está despreparada para o ministério na cidade.
Sua herança e treinamento teológico não a equiparam para as exigências da
urbanização. Visto que o desafio urbano não irá desaparecer, os cristãos não
podem continuar ficando fora da cidade. A igreja deve se tornar parte da ci-
dade, integrada na cidade, a fim de conquistar a cidade para o reino de Deus.
O que isso significa para a educação teológica? Existe algum tipo especial de
educação teológica necessária para o ministério urbano? Precisamos reavaliar e
repensar nossas próprias filosofias, estratégias e currículos à luz desse desafio
à igreja? Não é papel da educação teológica equipar os futuros líderes da igreja
para serem líderes em todos os sentidos? Essas são algumas das indagações
que este artigo procura responder.1

PALAVRAS-CHAVE
Urbanização; Ministério urbano; Educação teológica; Estratégia de missão
urbana; Estratégia de missões; Globalização; Currículo teológico.

* O autor tem mestrado em Teologia Sistemática (Th.M.) e doutorado em Estudos Interculturais


(Ph.D.) pelo Reformed Theological Seminary, em Jackson, Mississipi. É vice-diretor, professor de teo-
logia pastoral e coordenador do programa de Doutorado em Ministério (D.Min.) do CPAJ. É ministro
presbiteriano e pastoreia a Igreja Presbiteriana do Campo Belo, em São Paulo.
1 Este artigo foi publicado inicialmente na revista Vox Scripturae, sendo agora publicado com
algumas correções e modificações.

63
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL

INTRODUÇÃO
A diversidade cultural e étnica parece estar sempre apresentando desafios
teológicos e práticos aos cristãos. Entre esses desafios estão o reconhecimen-
to e o convívio necessários provenientes da diversidade cultural, o respeito
pelas diferenças e o estabelecimento de um fórum prático de comunicação e
cooperação.2 Uma sociedade multicultural ainda força a lembrança de que a
imagem do Reino de Deus oferecida nas Escrituras é a de um reino multiétnico
e multicultural, e não de uma realidade monofórmica. A igreja neotestamentária
também ministrou e proclamou o evangelho em um contexto multicultural e,
por sua vez, urbano (cf. At 2.5-12, 13.1-3). Tais fatores podem ser utilizados
como combustível em prol do esforço por encontrar uma metodologia e ela-
borar um currículo de educação teológica que seja contextual e relevante aos
desafios urbanos que cercam a igreja nas megacidades.

1. EDUCAÇÃO DIRIGIDA AO MINISTÉRIO URBANO


Os estudiosos geralmente concordam que a preparação para o minis-
tério urbano deve ser uma forma especializada de educação teológica. Tal
argumento é especialmente baseado em três fatores. Primeiro, o fato de que
“no passado, grande parte do enfoque de cursos missiológicos recaiu sobre
o trabalho missionário entre tribos e pessoas de vilas”.3 O mundo urbano re-
quer o uso de métodos diferentes e teorias complementares em evangelismo
e educação teológica. Segundo, a complexidade da cidade. Como Greenway
sugere, “a educação missiológica [e teológica] nas próximas décadas deve
aguardar grandes exigências, pois será preciso oferecer respostas às questões
complexas desse contexto urbano”.4 E terceiro, os clamores vindos das igrejas
e dos obreiros nos campos urbanos. Conn informa que durante os preparativos
para os trabalhos do Conselho de Credenciamento da Educação Teológica
na África (ACTEA)5 em 1990, 69 das 80 respostas recebidas pelo comitê
organizador defenderam o treinamento teológico para o ministério urbano
como uma condição essencial para a igreja contemporânea.6 Também, a falta
de treinamento especializado para o ministério urbano tem se tornado uma
fonte de tensão e atrito missionário em diferentes campos. Conn afirma que
a reação natural do missionário que recebeu treinamento para a zona rural,
quando chega na cidade, é dizer: “O campo eu conheço, mas a cidade parece

2 SCHREITER, Robert J. The New Catholicity. New York: Maryknoll, 1999, p. 95.
3 GREENWAY, Roger S. “Urbanization and Missions”. In: MCGAVRAN, Donald (Org.). Crucial
Issues in Missions Tomorrow. Chicago: Moody Press, 1972, p. 227.
4 Ibid., p. 230.
5 Accrediting Council for Theological Education in Africa.
6 CONN, Harvie M. “Theological education for the city”. Urban Mission, Dec. 1992, p. 3.

64
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70

demasiadamente grande e proibida. Por onde começo?”.7 Assim, a preparação


missionária para esse mundo urbano precisa considerar os desafios e oportu-
nidades da urbanização e do urbanismo.
Na discussão sobre urbanização e educação teológica, deve-se ter cuidado
para não se perder diante do grande número de sugestões existentes. Resistindo a
algumas tentativas superficiais, Conn defende que a educação para o ministério
urbano necessita ser mais do que meros “apêndices”, ou seja, cursos optativos
no currículo de um seminário.8 Ele insiste que tal educação precisa também
ser mais que noções socioeconômicas ou um acúmulo de teorias acadêmicas.
Sua sugestão é que uma educação teológica efetiva para um ministério urbano
deve ensinar a “olhar demograficamente a vizinhança com os olhos de Cristo”.9
Desenvolvendo a sugestão de Conn, Sydney H. Rooy sustenta a ideia de
que a educação para o ministério urbano deve enfatizar transformação, recon-
ciliação e reavaliação do comportamento cristão nesses contextos, bem como
programas que propaguem o amor e a justiça.10 Sua opinião é que somente
aplicando esses princípios o trabalho missionário contribuirá significante-
mente para a transformação dos contextos urbanos. Além do mais, a educação
efetiva para um ministério urbano deveria consistir em uma mescla dos desen-
volvimentos cognitivo, prático e pessoal, os quais deveriam ser empregados
na formação de um ministério contextual.11
Uma análise da literatura sobre educação teológica no meio evangélico
brasileiro evidencia dois aspectos básicos. Primeiro, uma preocupação com
a proliferação de cursos teológicos, contando inclusive com a aprovação do
Ministério da Educação e Cultura (MEC).12 Segundo, a busca de uma filosofia
de ensino que ofereça “subsídios para responder aos desafios sociais, políticos
e religiosos de nossa realidade”.13 Curiosamente, porém, vários seminários e
institutos bíblicos no Brasil revelam uma falta de currículos adequadamente
voltados para a formação de obreiros e missionários urbanos. O mais próximo
que tais instituições chegam desse ideal é oferecer uma matéria de evangelismo
e missões em seus currículos.

7 Ibid.
8 Ibid., p. 4.
9 Ibid.
10 ROOY, Sydney H. “Theological education for urban mission”. In: GREENWAY, Roger S.
(Org.). Discipling the City. Grand Rapids, MI: Baker, 1992, p. 228-235.
11 COMBLIN, José. Viver na cidade. São Paulo: Paulus, 1996.
12 NUNES, Élton O. Reconhecimento do MEC para cursos de teologia. Jornal Soma, fev. 2001,
p. 9.
13 AMARAL FILHO, Wilson do. Educação teológica nos seminários da IPB. Revista Teológica,
maio-agosto 1997, p. 67-73, e JUNTA DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA, Reforma da educação teológica
da IPB. Brasil Presbiteriano, nov. 2000, p. 16.

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VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL

2. A BUSCA DE UMA METODOLOGIA PRÓPRIA


Devido à diversidade do contexto multicultural urbano, três aspectos
devem ser cuidadosamente analisados na busca por uma metodologia correta
a ser aplicada ao processo educacional para tal contexto. Esses aspectos são:
(1) a natureza da educação teológica, (2) o propósito da educação teológica e
(3) os paralelos metodológicos a serem adotados. Com respeito ao primeiro,
deve-se observar que educação teológica é educação acerca do conhecimento
de Deus, é educação voltada para o povo de Deus, é educação que equipa e
prepara para o serviço a Deus.14 Além do mais, de acordo com Efésios 4.11-16,
esta é uma educação que capacita para o ministério de capacitadores. Neste
sentido, a educação teológica difere da educação secular e mesmo da educação
cristã em geral. Ainda que o Novo Testamento apresente a igreja com uma
comunidade ministerial e ainda que, em certo sentido, a educação teológica
seja uma educação para a igreja,15 o principal objetivo da mesma é preparar
para o ministério eclesiástico.
A busca de uma metodologia própria ainda nos conduz a uma reflexão
sobre o propósito da educação teológica. De acordo com Robert W. Ferris, “o
processo da educação teológica inevitavelmente flui das percepções sobre
o seu propósito e objetivo”.16 Humanamente falando, o objetivo da educação
teológica deve dirigir-se ao tipo de pessoas que esperamos que os estudantes
se tornem. Então, se a conformidade com a imagem de Cristo é um dos prin-
cipais alvos na vida do cristão, a educação teológica deve estar profundamente
comprometida com a formação moral e espiritual dos que a recebem. Confor-
me expressa Nuñez: “A educação teológica não é um fim em si mesma. Ela
é apenas um meio disponível para cumprirmos o mandato missionário dado
pelo Senhor Jesus aos seus discípulos”.17 Assim, a educação teológica deve ser
sempre centralizada em Cristo e nas Sagradas Escrituras, e o currículo deve
ser apenas um instrumento nesse processo educativo.
A busca de uma metodologia própria ao contexto multicultural urbano
deveria obedecer a alguns princípios que resultariam em uma “antropagogia”,
e não apenas em uma “pedagogia”.18 Tal ressalva visa distinguir entre ho-
mem e criança, maturidade e infância. Além do mais, a educação teológica para

14 NOELLISTE, Dieumeme. “Toward a theology of theological education”. Evangelical Review


of Theology (July 1995): 298-306.
15 HUEBNER, Dwayne. “Can theological education be church educational”. Union Seminary
Quarterly Review 47, 1993: 23-38.
16 FERRIS, Robert W. “The future of the theological education”. Evangelical Review of Theology
(July 1995): 251.
17 NUÑEZ, Emilio A. “Accreditation and excellence”. Evangelical Review of Theology (July,
1995): 270.
18 FERRIS, “The future”, p. 252.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70

o contexto urbano deveria seguir alguns princípios de contextualização, ou


seja, “um esforço para deixar que a mensagem fale de uma maneira relevante
às necessidades das pessoas nessa cultura urbana”.19 Tal forma de educação
teológica deve ser sempre ativa no processo de oferecer oportunidades para
essa comunicação contextual.
Como modelo de educação para o contexto multicultural urbano brasileiro,
a metodologia dialética de Paulo Freire apresenta vários aspectos positivos.
Embora essa metodologia deva ser usada com certa cautela, por encontrar-se
carregada de alguns princípios da teologia da libertação, a dialética de Freire
traz importantes princípios de contextualização através de sua proposta de
educação problematizadora, na qual a dialogicidade resulta em uma inserção
crítica do homem na realidade. De acordo com Freire, “a educação problema-
tizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão
percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se
acham”.20 Assim, o educador geralmente apresenta ou aponta um problema
real que requer uma resposta de seus alunos. Nesse processo dialético, a edu-
cação é mais do que um processo que culmina em um acúmulo “bancário”
de informações, o qual “sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo”.21
Essa metodologia de ensino-aprendizado geralmente conduz à ação ao invés
de mera reflexão teórica.22 Tal metodologia considera que os alunos estão,
frequentemente, mais prontos para participar no processo do seu aprendizado
do que seus professores geralmente permitem. A teoria de Freire implica em
que o educador atente para os tipos de experiências que seus alunos têm, quais
os influenciam mais, como eles reagem às mesmas e como essas experiências
poderiam ser usadas no processo educacional dessas mesmas pessoas.
A importância da teoria educacional de Freire na educação teológica
para um contexto urbano multicultural no Brasil baseia-se em dois fatores
básicos. Primeiro, há um elemento de universalidade nessa teoria.23 Segundo,
ela enfatiza o elemento experimental, que é essencialmente necessário nos
encontros interculturais.24 Além do mais, a metodologia de Freire aponta para
a existência de absolutos na existência humana, o que poderia ser propriamente
usado na educação teológica daqueles que são equipados para o ministério

19 NUÑEZ, “Accreditation”, p. 268.


20 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970, p. 72.
21 Ibid., p. 62.
22 KENNEDY, William B. “Conversation with Paulo Freire”. Religious Education (Outono, 1984):
511-22.
23 BREWSTER, Kneen. “A book review of The Pedagogy of the Oppressed by Paulo Freire”.
Lutheran World 1971, 18: 290.
24 PAIGE, R. Michael (Org.). Education for the Intercultural Experience. Yarmouth: Intercultural
Press, 1993, p. 1-18.

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VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL

urbano multicultural. Dentre esses absolutos destacamos a realidade objetiva,


a autenticidade e a verdade nas interações humanas.25 Também, na concepção
de Freire não há educação dialética sem as virtudes fundamentais do amor, da
humildade, da confiança no próximo, da esperança e da verdade aplicada ao
pensar.26 Certamente o educador cristão cuidadoso saberá fazer bom uso dos
princípios envolvidos nessa teoria educacional.

3. A ATENÇÃO A UM CURRÍCULO
Além de ser comprometida com a formação do caráter e com a contextua-
lização, a educação teológica para um ministério urbano multicultural precisa
estar enraizada em princípios relevantes para experiências interculturais. Ela
precisa equipar pessoas para decifrar seu contexto social e comunicar a mensa-
gem do evangelho tão eficientemente quanto possível nesse mesmo ambiente.
Os missionários em contextos multiculturais precisam ser capazes de reconhe-
cer como a cultura afeta a identidade, o comportamento, as crenças, o conheci-
mento e a comunicação das pessoas.27 Paige sugere quatro fatores necessários
para o desenvolvimento dessa sensibilidade: (1) conhecimento da cultura a
ser abordada, (2) acesso a variados encontros multiculturais, (3) competência
na comunicação e (4) elementos de conexão com a outra cultura.28 Cada um
desses fatores deve ser considerado na elaboração de um currículo dirigido à
educação teológica para um ministério em um contexto multicultural urbano.
Algumas características distintas dos contextos urbanos também pedem
maior atenção a aspectos específicos na elaboração de currículos teológicos
para os mesmos. Por exemplo, o caráter fragmentado das cidades requer ele-
mentos que promovam conexão e interações humanas. A dificuldade econômica
presente nas cidades requer uma atenção à injustiça e às desigualdades sociais.
Finalmente, o secularismo urbano convida a uma demonstração prática e sadia
do relacionamento cristão.
Sugerindo um currículo teológico para contextos urbanos, Greenway
apresenta alguns pontos básicos que podem ser adaptados a diferentes reali-
dades sociais. Segundo ele, tal currículo deveria conter:

1. Uma teologia bíblica da cidade e do ministério urbano.


2. Antropologia urbana, sociologia e estudos demográficos.
3. Contextualização do evangelho em contextos urbanos.
4. História dos ministérios e missões urbanas.

25 FREIRE, Pedagogia, p. 68-75.


26 Ibid., p. 80-82.
27 DODD, Carley H. Dynamics of Intercultural Communication. Dubuque: Brown Publishers,
1991, p. 3.
28 PAIGE, Education, p. 171.

68
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 63-70

5. Natureza da miséria urbana e desenvolvimento comunitário.


6. Estrutura política urbana, sistemas sociais e prática da justiça.
7. Técnicas de pesquisas para evangelismo urbano e crescimento de
igrejas.
8. Métodos e modelos para evangelismo urbano.
9. Saúde física e mental em ambientes urbanos.
10. Utilização de mecanismos urbanos na pregação do evangelho.
11. Desenvolvimento de liderança na diversidade dos contextos urbanos.
12. Métodos de comunicação na cidade.
13. Religiões não-cristãs, seitas e cosmovisões alternativas presentes na
cidade.
14. Princípios de educação e metodologias apropriadas a várias culturas
e contextos sociais.
15. Espiritualidade urbana.29

Em um contexto urbano altamente multicultural, deve ser dada uma ênfase


particular ao décimo quinto tópico nesse currículo sugerido.

CONCLUSÃO
Este artigo não explorou todos os desafios e oportunidades encontradas
em um contexto urbano multicultural. Ele apenas procurou analisar alguns
aspectos dos desafios educacionais de tal contexto. Os aspectos aqui analisados
apontam para as seguintes necessidades da educação teológica neste contexto:
(1) conteúdos integrados, (2) formação do conhecimento e (3) metodologias
flexíveis.
Precisam ser feitos estudos aprofundados sobre áreas específicas da
educação teológica em contextos urbanos multiculturais. Tem havido um certo
temor entre missionários urbanos de que, “por mais bem-intencionados que os
currículos tradicionais possam ser, eles são tão mal equipados para entender
o complexo mundo urbano ou para treinar ministros e missionários para esses
contextos que precisam ser urgentemente revistos.30 Nesse sentido, o desen-
volvimento de um currículo para educação teológica urbana é uma tarefa que
exige coragem, imaginação e sabedoria oriunda do estudo da Palavra do Senhor.

ABSTRACT
Urbanization is a reality in every continent. It is happening at different
rates and at different levels, but it is undeniable. Through this process, the na-
tions, panta ta ethne, are moving to the cities. But the church has yet to make
that move, intellectually, strategically, and theologically. In many ways, the

29 GREENWAY, “Urbanization and missions”, p. 227-244.


30 Ibid., p. 147.

69
VALDECI S. SANTOS, EDUCAÇÃO TEOLÓGICA PARA UM MINISTÉRIO URBANO MULTICULTURAL

church is unprepared for ministry in the city. Its heritage and its theological
training have not equipped the church for the demands of urbanization. Since
the urban challenge will not go away, Christians cannot continue to stand
outside the city. The church must become part of the city, integrated into the
city in order to capture the city for the kingdom of God. What does this mean
for theological education? Is there some kind of special theological education
needed for urban ministry? Do we need to re-evaluate and re-think our own
philosophies, and strategies, and curriculums in light of this challenge to the
church? It is not the role of theological education to equip the future leaders
of the church to be leaders in every way? These are some of the questions this
article intends to answer.

KEYWORDS
Urbanization; Urban ministry; Theological education; Urban mission
strategy; Globalization; Theological curriculum.

70
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

Os Hartlibianos e a Reforma Espiritual


e Cultural da Inglaterra Seiscentista
Vitor Albiero*

RESUMO
Dentre outros reformistas, o grupo de Hartlib, atraído pelos princípios
da Reforma Protestante, figurou entre os que anelavam a reforma completa
na Inglaterra do século 17. Seus integrantes estavam convictos de que a reno-
vação espiritual e intelectual protestante ofereceria as bases para se implantar
a nova visão cultural e social. Acreditavam que a reformulação do modelo
educacional e filosófico vigente alavancaria a reforma geral inglesa, ou seja,
a completa reforma da religião, da cultura, da política, da economia e das
outras demandas sociais. Os hartlibianos se destacaram entre os que nutriam a
expectativa de que a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial da divulgação
do conhecimento, bem como reunir a liderança protestante da Europa. Seus
membros e apoiadores tencionaram, durante a efervescência puritana, promo-
ver um ambiente e ocasião favoráveis às inovações intelectuais e técnicas que
pudessem desenvolver os avanços sociais desde a medicina até a mineração
e a agricultura inglesa. Tudo indica que os trabalhos que empreenderam entre
1640 e 1660 outorgaram parte do arranjo inicial de uma sistematização em
ciência que a Inglaterra e o mundo desconheciam antes da década de 1640 e
à qual, pela atividade que exerceram, a Royal Society de Londres pôde dar
seguimento a partir de 1662.

PALAVRAS-CHAVE
Inglaterra; Reforma; Protestantismo; Hartlibianos; Educação; Ciência.

* O autor é engenheiro civil, bacharel em Teologia pelo Seminário José Manoel da Conceição
(JMC), mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em História
da Ciência pela PUC-SP. É ministro presbiteriano e pastoreia a Igreja Presbiteriana de Peruíbe (SP).

71
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

INTRODUÇÃO
Como exemplo legítimo da cultura, da intelectualidade e da influência
social protestante do século 17, os hartlibianos testemunharam as aspirações
comuns a homens fascinados pelo conhecimento, insaciáveis pelo saber e
incansáveis na luta por reformas que atingissem, quiçá, o mundo da época, a
partir de uma Inglaterra renovada espiritualmente e intelectualmente.
De fato, o grupo de Hartlib representou uma parte importante da força so-
ciocultural que tencionava implantar, bem no auge do puritanismo (1640–1660),
a reforma inglesa a partir dos pressupostos protestantes destinados a coparti-
cipar da nova moldura intelectual e dos novos sustentáculos da formulação do
conhecimento que visavam o desenvolvimento do novo conceito de educação,
ciência e sociedade.
Como protestantes, os hartlibianos viam na harmonia entre religião e
educação, e entre fé e ciência, a real possibilidade de promover as desejadas
melhorias sociais e econômicas que renovariam a Inglaterra a partir de uma
visão cristã de mundo. Para isso elaboraram um programa que, não obstante ter
obtido sucesso apenas no interregno inglês, enfrentou, por exemplo, os ditames
aristotélicos e escolásticos presentes na educação e na ciência em meados do
século 17, tendo, deste modo, revolucionado e viabilizado o experimento e a
técnica no ambiente universitário.
Com efeito, uma breve observação dos esforços empreendidos pelos har-
tlibianos, como se julga minimamente oferecer a seguir, parece proporcionar a
rediscussão acerca da contribuição dada pelo protestantismo à prossecução do
desenvolvimento educacional e da aplicabilidade da nova ciência na Inglaterra
a partir de 1662, mais especificamente quando se tem em vista as atividades
da recém fundada Royal Society de Londres.

1. O ANSEIO INGLÊS PELA REFORMA COMPLETA


1.1 O anseio geral
Desde o transcurso do governo Tudor, a Inglaterra assistira ao constante
processo ideológico de centralização – centralização do estado, da Igreja, da
economia, da riqueza, da saúde, da educação, etc. Contudo, religiosos, par-
lamentares, membros da representação rural e da classe burguesa, bem como
muitos pensadores, políticos e demais adeptos da causa reformista, desejavam
a inversão desse processo a partir da descentralização da monarquia e de um
novo encaminhamento das questões sociais vigentes.
A partir da década de 1640, especialmente com as atuações oposicio-
nistas do Longo Parlamento e de Oliver Cromwell perante a monarquia e o
governo de Charles I, intensas reivindicações sociais, eclesiásticas, políticas
e econômicas se fizeram presente na nação inglesa, notadamente entre grupos
radicais e simpatizantes da reforma geral, a fim de combater significativamente

72
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

a estagnação dos condados, das cidades, das igrejas, do comércio, da saúde,


da educação, etc.
Envolvidos com os grupos defensores dos ideais reformistas, muitos
protestantes – desde presbiterianos, erastianos e anglicanos não-prelatícios
até os independentes e a ala esquerda destes últimos (quacres, batistas, par-
tidários da Quinta Monarquia)1 – atraídos por singulares valores da Reforma
Protestante (como a ênfase no sacerdócio dos crentes e a regeneração teológica,
litúrgica, intelectual e ética), além de se oporem à atuação da Igreja nacional
e ao sistema educacional da época, anelavam pela redistribuição dos recursos
entesourados, a designação para as igrejas de ministros úteis e piedosos e a
criação de instituições municipais, de asilos e de escolas locais.2
Mas as vozes que evocavam o espírito reformista na década de 1640
ecoavam também, sob o ponto de vista educacional e filosófico, as ideias
de Francis Bacon, as quais instilavam o desejo pelas reformas múltiplas e a
ruptura com a filosofia de Aristóteles, uma vez que Bacon havia desprezado
a Antiguidade e seus filósofos.3 Como se sabe, a Inglaterra seiscentista foi
marcada pelo anelo de resgatar o sabor da filosofia natural, da natureza e
das coisas, da experiência, dos corpos, enfim, de tudo o que havia se perdido
desde que “a filosofia se voltou ela própria para o mundo interior em vez de
para a natureza, para problemas de caráter moral e linguístico, abandonando
a pesquisa severa das coisas naturais”.4
Como defensor da observação, da experiência e do estado laico, Bacon
desejava reconstruir as universidades longe dos moldes aristotélicos, introduzir
no ensino as ciências naturais, desenvolver a educação elementar, descentrali-
zar a religião, levando-a aos cantos mais esquecidos do reino, descentralizar a
assistência médica por meio da proliferação de hospitais regionais e redistribuir
a riqueza através da indústria e do comércio.5
A Inglaterra do século 17 anelava intensamente por uma reforma geral e
completa – do Estado, da Igreja nacional, da educação, da religião, da filosofia,
etc. –, uma reforma que colocava os olhos no futuro e na possibilidade de o
país trilhar novos caminhos rumo ao avanço do conhecimento e da melhoria
das condições sociais.6

1 HOOYKAAS, Reijer. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, DF: Editora


Universidade de Brasília, 1988, p. 176.
2 TREVOR-ROPER, Hugh R. Religião, reforma e transformação social. Lisboa: Editorial Pre-
sença/Martins Fontes, 1981, p. 180.
3 Paolo Rossi ressalta que Bacon, ao fazer uso do Evangelho de João (5.43), aproximava a figura
de Aristóteles à do anticristo. ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da revolução
científica. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 26.
4 Ibid., p. 26-27.
5 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 182.
6 ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador: a ideia de progresso. São Paulo: Unesp, 2000, p. 62-63.

73
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Não se deve entender, no entanto, que apenas parlamentares e burgue-


ses alinhados com a dinâmica resultante do discurso protestante associado à
filosofia de Bacon se ressentiam da centralização imposta pela mentalidade
governista. Muito menos se deve atribuir a exclusividade do anseio e das in-
vestidas reformistas a determinado grupo, fosse este religioso, ideológico ou
político. Na verdade, deve-se observar que a Inglaterra respirava uma ampla
esfera de instabilidade e insatisfação social, religiosa e política, que resultava
em agudos conflitos entre homens rurais e fidalgos, entre parlamentares e
a monarquia, entre conformistas e não-conformistas, etc. Por meio dessa
instabilidade, deu-se a formação de muitos grupos radicais, cada um com
sua base ideológica e política, como os Diggers, os Ranters, os Levellers, os
Pentamonarquistas, etc., os quais, igualmente ansiosos por uma emergente
reforma na sociedade, propunham diferentes soluções políticas e econômicas
que acabavam incendiando ainda mais as demandas sociais.7
De igual modo, não se deve ter em mente que os reformistas do Parlamento
se mostravam unânimes e somente interessados em dedicar seus esforços às
causas da Igreja, como a implantação da reforma teológica e litúrgica de cunho
calvinista8 e das ideias milenaristas sobre a Nova Jerusalém. Muitos dentre
os parlamentares estavam mais interessados nos projetos reformistas como
um urgente e prioritário auxílio para corrigir, tanto quanto possível, os males
financeiros e sociais do país.

1.2 O anseio protestante


Em que pese a relevância e as motivações de outros fatores sociais e
econômicos, há de se considerar que a efervescência protestante da década
de 1640 igualmente impulsionou e promoveu o espírito reformista, tornando-se
uma importante força sociocultural na tentativa de implantar a reforma inglesa.
Primeiro porque, no que se refere à nova moldura intelectual e aos sustentácu-
los da formulação do conhecimento, o protestantismo participou diretamente
do desenvolvimento do novo conceito de ciência e de educação ao marcar a
transição das ideias aristotélicas e escolásticas sobre filosofia natural e edu-
cação para as ideias pioneiras de Bacon e de Comenius, as quais destacavam
a observação e a ênfase na experiência.9 Segundo, por conta da contundente e
conjugada oposição que a ala puritana interpôs aos desvios doutrinários difun-

7 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 30.
8 Hooykaas comenta que enquanto no período elisabetano existiam muitos calvinistas não-
puritanos, durante a Commonwealth algumas seitas de esquerda não defendiam uma teologia calvinista.
HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 176-177.
9 WEBSTER, Charles. Samuel Hartlib and the Advancement of Learning. Cambridge: Cambridge
University Press, 1970, p. 7.

74
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

didos pelo arcebispo William Laud.10 Terceiro, em razão dos questionamentos e


críticas que suscitava em relação ao sistema de governo eclesiástico episcopal
da Igreja nacional, o qual nutria fortes vínculos político-institucionais com a
monarquia.11

1.2.1 Aspectos sociorreligiosos


O protestantismo ocupou um papel sociorreligioso singular na aspiração
inglesa por uma reforma geral a partir da crise da Igreja da Inglaterra. Com
efeito, a crise prelatícia inglesa deve ser observada a partir da relação que o
anglicanismo12 mantinha com a realeza. As prerrogativas do rei preconizadas
no Ato de Supremacia, que no sistema episcopal13 fazia do soberano o cabeça
da Igreja e dava-lhe autoridade sobre as questões doutrinais e sobre a ordem
e a disciplina eclesiástica, possibilitaram aos monarcas conduzir, desde Hen-
rique VIII, as mudanças constitucionais da Igreja. Tal condição, associada a

10 Sobre a insatisfação gerada pelas doutrinas de William Laud, Morrill destaca a incerteza de se
poder descrever plenamente como e em que medida a doutrina da graça de Laud afastou-se da herança
calvinista cultivada por sucessivas gerações de bispos e teólogos desde 1559. Sabe-se que Laud assumiu
a crença de que o homem, moral e intelectualmente depravado, só poderia ser reconciliado com Deus a
partir da graça de uma fé salvadora, acrescida da graça sacramental mediada pela igreja. Deste modo,
o programa de Charles e Laud se tornou profundamente ofensivo para a maioria dos leigos e muito
clérigos. Tudo indica que Laud se baseou numa aplicação literal das observâncias e práticas do Livro
de Oração Comum. MORRILL, John. “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions
of the Royal Historical Society 34 (1984), p. 163.
11 Por exemplo, a maioria dos puritanos radicais opunha-se à forma de governo episcopal da Igreja
da Inglaterra. Afirmava que os bispos, nos moldes do anglicanismo da época, eram uma invenção à
parte do que a Bíblia ensinava, uma vez que, no sistema episcopal, prevalecia a aliança entre os bispos
e a coroa, que garantia que tanto os clérigos como os reis exercessem suas funções por direito divino.
Dentre os puritanos moderados, dizia-se que a Bíblia indicava diversas formas de governo da igreja e,
portanto, o episcopado poderia ser mantido desde que voltasse à ortodoxia bíblico-reformada, como fora
nos dias de Crammer, Ridley, Hooper, Latimer e Jewell. GONZÁLEZ, Justo L. História do pensamento
cristão. 3 vol. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 277-278.
12 O rei Henrique VIII introduziu uma revolução político-eclesiástica em solo inglês quando
rompeu, em 1534, com a Igreja Católica e organizou a Igreja da Inglaterra, também conhecida como
Igreja Anglicana, da qual tornou-se chefe supremo e passou a governá-la por meio do episcopado, que
contava, ao menos inicialmente, com fortes tendências ao protestantismo reformado. Vale observar
que o rei não era essencialmente afeiçoado ao protestantismo, mas, aproveitando-se igualmente da esfera
em que muitos criam e desejavam reformar a Igreja, Henrique VIII fez de Tomás Cranmer um dos prin-
cipais propulsores da reforma da Igreja, o arcebispo de Cantuária, responsável, portanto, por encabeçar
o prelado. NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,
2000, p. 182-204.
13 Alguns protestantes insistiam que a Igreja deveria ser governada por meio de presbitérios. Outros
afirmavam ainda a independência de cada congregação, passando a ser chamados de independentes.
Todavia, ainda que houvesse a divergência quanto à forma de governo da Igreja, os protestantes oriundos
das mais variadas denominações que compuseram a Assembleia de Westminster inspiravam-se teologi-
camente nas ideias de Calvino, Zuínglio e dos demais reformadores suíços. GONZÁLEZ, História do
pensamento cristão, vol. 3, p. 278.

75
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

uma hierarquia aristocrática, transformou-se, aos poucos, em um instrumento


de repressão e restrição tanto da liberdade religiosa quanto da liberdade civil
do povo.
Assim, por meio de contínuas insatisfações, a gradual luta entre grupos
protestantes e a corte acabou tornando-se mais intensa a partir do período do
reinado de James I e, principalmente, de Charles I.14 A conjugação de fatores
como o abandono, por parte de William Laud, do calvinismo dos fundadores da
Igreja,15 a repressão para com todo dissentimento, a inexistência de liberdade
religiosa, a afluência de medidas arbitrárias, os constantes atos de violência
promovidos pela monarquia e, por fim, o governo autônomo de Charles I, sem
convocar o Parlamento,16 resultou em uma intensa e crescente insatisfação por
parte do povo, da burguesia, da classe rural, dos parlamentares, dos puritanos
e demais radicais.17
Porém, forçado pelas condições financeiras que afetavam o reino, 18
Charles I teve que convocar o Parlamento, em novembro de 1640, após onze
anos sem nenhuma convocação ordinária. Sem prever as consequências futuras
para o seu governo e, consequentemente, para a Igreja do Estado,19 tal medida

14 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 281. HULSE, Erroll. Quem foram os
puritanos? São Paulo: PES, 2004, p. 58.
15 A Igreja da Inglaterra contou, inicialmente, com reformadores como Cranmer, Ridley, Hooper,
Latimer e Jewell. Eram homens apegados à teologia calvinista e em plena harmonia e correspondência
com teólogos e pastores genebrinos e germânicos. Disso são prova os seus escritos registrados nos
Quarenta e Dois Artigos de Eduardo VI (1551), os artigos de doutrina da Igreja da Inglaterra (1562)
e ainda os Artigos de Lambeth, concebidos pelo arcebispo Whitgift (1595). HODGE, A. A. Confissão
de Fé Westminster comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, p. 39; HOOYKAAS,
A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 175.
16 Charles I governou a Inglaterra sem o Parlamento de 1629 a 1640. A administração do país foi
mantida através da corte e dos condados, enquanto o poder político encontrava-se, principalmente, nas
mãos de 60 nobres, fidalgos e aristocratas ricos que eram donos de muitas terras. HULSE, Quem foram
os puritanos?, p. 59.
17 HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 40.
18 Com a intenção de obter recursos financeiros, Charles I fazia concessões aos poderosos. Outros-
sim, as parcas medidas de ordem social, política e econômica impetradas pelo rei causavam também
a crescente insatisfação da classe rural e burguesa. Assim, cada vez mais nas regiões com potencial
comercial e industrial, o rei e os bispos, que respaldavam sua causa dando-lhe aquiescência religiosa,
eram vistos como adversários e inimigos do povo. GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, 3 vol.,
p. 282.
19 Comentando a intervenção direta do Parlamento na atuação de Charles I e do arcebispo Laud,
Morrill ressalta que a anulação dos cânones de convocação (cânones que davam plena força ao programa
de Laud) foi a primeira conquista positiva realizada pelos parlamentários. Nesse processo, Laud foi
acusado de promover heresias que davam arrimo às ações arbitrárias do rei, bem como de abusar da sua
própria jurisdição e de outros tribunais para impor ilegal observância ao silêncio dos professores da
verdadeira religião. MORRILL, “The Religious Context of the English Civil War”. Transactions of the
Royal Historical Society, p. 164.

76
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

do rei resultou, a partir do ano seguinte, no fato histórico-político que se tornou


conhecido como o Longo Parlamento.
Uma das primeiras medidas do Longo Parlamento foi abolir a Corte da
Alta Comissão e a Star Chamber, e, em novembro de 1642, com intenção de
reformar o sistema de administração eclesiástica, ordenou “que, depois de 5
de novembro de 1643, o ofício de arcebispo e de bispo e toda a estrutura do
governo do prelado fossem abolidos”.20
Um dos atos mais significativos do Parlamento, na tentativa de reformar
a Igreja e, consequentemente, promover a pureza bíblica e a simplificação
litúrgica contra as divergências teológicas e eclesiásticas encontradas no sis-
tema episcopal, foi a sanção, em 12 de junho de 1643, do decreto conhecido
como Convocação dos Lordes e Comuns do Parlamento. Tal decreto resultou
na conhecida Assembleia de Teólogos de Westminster,21 que se reuniu de 1º
de julho de 1643 a 22 de fevereiro de 1648, da qual, inclusive, participaram
alguns puritanos22 que integravam o grupo de Hartlib, como John Dury, Tho-
mas Goodwin, Jeremiah Burroughes e Philip Nye.23 Nesse caso, o propósito
do Parlamento em reunir uma assembleia de caráter exclusivamente religioso
visava a estabelecer o novo governo e liturgia da Igreja da Inglaterra, bem
como purificar sua doutrina por meio da composição de uma confissão de fé
que exprimisse a base teológica calvinista.24
Deve-se ter em mente também que, ainda sob o viés religioso, a Inglaterra
seiscentista respirava ares que igualmente renovavam as esperanças de paz e
felicidade mundial proporcionadas pela expectativa milenarista. O sonho da
humanidade de voltar ao domínio sobre a natureza e ao livre relacionamento com
a criação – como fora no molde edênico, antes da queda –, bem como desfrutar

20 HODGE, Confissão de Fé de Westminster, p. 41.


21 Integraram a lista dos participantes da Assembleia de Westminster 10 Lordes, 20 membros da
Câmara dos Comuns e 121 teólogos, dentre os episcopais, independentes, presbiterianos e erastianos.
Todos, não obstante divergirem quanto à forma de governo da Igreja, apresentaram a teologia calvinista
em todos os documentos solicitados pelo Parlamento para que escrevessem, a saber: a Confissão de
Fé, o Catecismo Maior, o Breve Catecismo e o Diretório do Culto Público. HODGE, Confissão de Fé
Westminster, p. 41. HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 66.
22 Apesar de haver puritanos no grupo de Hartlib, parece incorrer em certo exagero a ideia de
que, como afirma Trevor-Roper, Comenius, Hartlib e Dury foram “os filósofos da revolução puritana”.
TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 177. De fato, tudo leva a crer que
Dury, por compor uma das cadeiras da Assembleia de Teólogos de Westminster, fosse fortemente vin-
culado aos calvinistas puritanos. Todavia, afigura-se certa impropriedade atribuir tal rótulo a Comenius
e, provavelmente, a Hartlib. HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 178.
23 WEBSTER, Charles. Samuel Hartlib and the Advancement of Learning, p. 39; HODGE, Con-
fissão de Fé Westminster, p. 42; HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 102-103.
24 A comissão responsável por elaborar e organizar as principais proposições calvinistas da Con-
fissão de Fé de Westminster era encabeçada por nomes como Dr. Hoyle, Dr. Gouge e Srs. Herle, Gataker,
Tuckney, Reynolds e Vines. HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 43.

77
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

da paz da Nova Jerusalém e da prosperidade e justiça social do reino messiânico,


era fortemente encorajado entre os protestantes através dos sermões escatológi-
cos pregados em inúmeros púlpitos e reuniões. Diversos escritos e pregações,
como as de John Stoughton, Jeremiah Burroughes e John Dury,25 proliferaram
no país e passaram a nutrir uma esfera de esperança, conforto e “segurança de
que a catastrófica destruição da Guerra dos Trinta Anos poderia chegar ao fim
com a queda da Babilônia e o estabelecimento do estado milenar”.26
A assimilação e divulgação de textos bíblicos apocalípticos que apontam
para a restauração do reino de Deus e do estado da graça e justiça eterna emol-
duraram e fortaleceram a esperança de que uma nova era estava a caminho.
Um tempo não apenas de paz com o fim das guerras, mas de plena harmonia
entre as coisas da terra e as celestes, em que o conhecimento das coisas
terrenas e físicas estaria em plena sintonia com o conhecimento e a verdade
divina. Esse período de ouro era intensamente desejado por conta dos inúmeros
conflitos religiosos, da beligerância entre os reis e monarquias, das injustiças
sociais e do desejo de libertar-se das amarras e erros filosóficos e teológicos.
Um tempo milenar que deveria ser abreviado pelas conquistas simultâneas do
conhecimento da natureza, do conhecimento universal, da paz entre os protes-
tantes e da conversão dos judeus – conquistas que antecederiam e acelerariam
o milênio por meio da incipiente harmonia entre Deus e o homem, entre as
nações e entre os reinos.27
Desse modo, inúmeros estudos e pregações escatológicas dos evangelhos,
do Apocalipse e do livro de Daniel sedimentaram o cenário inglês da esperança
em acelerar a vinda do reino milenar de Cristo. Baseados nas profecias de
Daniel, muitos protestantes empenhavam-se na renovação intelectual e espiri-
tual, sob a esperança de que as palavras do profeta estavam se cumprindo em
seus dias: “Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo
do fim; muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará” (12.4).
Assim, o livro de Daniel era aplicado às vicissitudes e mazelas promo-
vidas pela Guerra dos Trinta Anos, com vistas a decifrar o tempo do fim, a
vinda da bonança, da paz, da multiplicação do saber e do conhecimento, em
que o acúmulo do saber universal tornaria clara e manifesta evidência de que
o período milenar estaria se aproximando.
Tal anseio pelo saber e pela busca da renovação do conhecimento e da
filosofia natural transcendeu, evidentemente, os limites da Inglaterra, pois, no

25 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 196-200.


26 WEBSTER, Charles. The Great Instauration: Science, Medicine and Reform 1626-1660. Oxford:
Peter Lang, 2002, p. 17.
27 Para saber mais sobre algumas das correntes milenaristas na Inglaterra do século 17, ver artigo:
Milenarismo e ciência no Via Lucis de Jan Amos Comenius. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/
index.php/hcensino/ article/view/26098.

78
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

século 17, a aspiração pelo renascimento intelectual espalhou-se pela Europa


por conta do avanço na comunicação, uma vez que, na sequência das melho-
rias promovidas pelas artes e pela técnica, “se dava a ascensão da filosofia
experimental e, de acordo com a profecia de Daniel, a comunicação tinha sido
melhorada em todos os aspectos, criando assim as condições para o aumento
sensível do conhecimento”.28

1.2.2 Aspectos socioculturais


Ao mesmo tempo em que, sob o ponto de vista religioso e ético, diver-
sas denominações protestantes insurgiram-se com a esperança de promover
o sucesso conclusivo na reforma da Igreja, filosoficamente o protestantismo
associava-se ao baconismo, por entender que este oferecia a base teórica para
vindicar e estabelecer a reforma na educação e, consequentemente, na ciência.
Os escritos de Bacon assumiram uma influência quase canônica para clérigos
protestantes como Stoughton, Hakewill e Twisse,29 este último nomeado pelo
Parlamento para ser o primeiro moderador ou presidente da Assembleia de
Westminster.30 Tal influência fez com que Bacon se tornasse a mais importan-
te autoridade filosófica e científica para os protestantes, a ponto de o avanço
da piedade e da fé reformada estar ligado coexistentemente com o avanço do
aprendizado e do conhecimento.
Os protestantes buscaram a liberdade e, ao mesmo tempo, o dever de
relacionar a fé cristã às questões culturais e sociais. A partir dos pressupostos
bíblicos, eles articulavam de forma monolítica e unificada ideias sobre reli-
gião, sociedade e mundo natural com vistas à glória de Deus. No caso da nova
filosofia, enxergavam a ciência como um meio para a glorificação de Deus,
pois ela deveria estar a serviço do Criador e, ao mesmo tempo, da sociedade,
na medida em que a nova ciência (que viria ser chamada posteriormente de
ciência moderna) era vista como um caminho para o bem social, sobretudo
em relação aos esforços que deveriam engendrar em favor dos fins utilitários.
Com efeito, os protestantes relutavam contra as antigas autoridades
intelectuais, sobretudo no tocante à maneira grega de ver o mundo, a natureza,
o Universo, a existência humana e, especialmente, o Criador. Assim, confron-
tando o contexto intelectual e social de seus dias, eles se tornaram grandes
defensores da ciência e da nova filosofia nela contida, insuflando um clima
fértil, no século 17, para os seus desdobramentos e evoluções no campo do
saber, bem como para a aplicação e transformação do conhecimento.31

28 WEBSTER, The Great Instauration, p. 19.


29 Ibid., p. 25.
30 HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 42.
31 HOOYKAAS, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, p. 179-182.

79
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Com o crivo firme na ortodoxia bíblica, o protestantismo na Inglaterra


tornou-se interessado em explorar e difundir as novas ideias, desde que estas
correspondessem às suas premissas teológicas. Comprometeu-se com o ideal
da reforma geral da sociedade inglesa com uma nova modelagem intelectual,
oriunda do avivamento e da renovação espiritual, a ponto de “não deixar dú-
vidas de que, ao impulsionar o conhecimento na direção de novas fronteiras,
os seus integrantes estavam convencidos de que sua missão fora santificada
pelo Deus de Israel”.32
Em outras palavras, pode-se dizer que o protestantismo foi marcado pelo
singular esforço em buscar reorientar as questões socioculturais de sua época e
dedicar especial atenção aos assuntos voltados à educação, à ciência e às artes
por meio da sua capacidade em articular as questões de fé com as demandas
sociais. Assim, relacionava seus dogmas à busca de um novo método educa-
cional e do conhecimento do mundo natural, objetivando extrair o máximo do
aproveitamento dos recursos e habilidades humanas.
Tal visão de fé aplicada ao mundo físico e à sociedade fez com que os
protestantes, a partir do princípio bíblico de vocação e sacerdócio universal,
se concentrassem no desenvolvimento do serviço e do bem público como
expressão sincera e prática da devoção que prestavam a Deus. Por meio da
consagração de esforços com vistas ao louvor do Criador, seus adeptos mostra-
ram-se insatisfeitos com os padrões sociais e filosóficos anteriores. Colocavam-
-se dispostos a alcançar novas alternativas que tangessem o aprimoramento da
educação e a busca da melhoria social através do desenvolvimento de uma
ciência utilitária, originada do avanço científico associado à valorização das
virtudes do trabalho manual.
Por ser também crítico dos ditames escolásticos e, ao mesmo tempo,
inclinado ao avivamento intelectual e ao desenvolvimento da ordem material,
o protestantismo contribuiu para semear uma atmosfera favorável à troca de
conhecimentos, ideias e destrezas entre classes sociais. Isso ajudou a cultivar a
produção intelectual e a união entre artesãos e homens de ciência, que acabaram
cooperando com a criação de novas técnicas e áreas do conhecimento, como a
agricultura e aquilo que viria ser, posteriormente, a química, e a metalurgia.33
Desse modo, o protestantismo, muito mais do que preocupado em ape-
nas desenvolver uma nova ética, estava interessado em romper com qualquer
perspectiva passiva perante a natureza e as questões sociais e culturais. Pelo
fato de relacionarem e articularem suas ideias em um campo unificado do co-
nhecimento, ou seja, nas Escrituras, e terem como objetivo principal promover
a glória de Deus em todas as esferas do saber, do fazer e do relacionamento

32 WEBSTER, The Great Instauration, p. 15.


33 WEBSTER, “Conclusions to The Great Instauration”, apud COHEN, I. B., Puritanism and the
Rise of Modern Science, p. 280-283.

80
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

humano, os protestantes viam-se responsabilizados em testemunhar o poder, a


sabedoria e a graça de Deus em todas as áreas. Em termos práticos e científicos,
isso se daria através do acúmulo do conhecimento e por meio da busca da
verdade impingida nas obras da criação, as quais, potencializadas por meio
das ciências e das artes, deveriam abençoar a humanidade e favorecer o seu
desenvolvimento social e bem-estar.
Assim, o fervor pelos novos acontecimentos e pela nova dispensação do
saber ocupou um caráter singular na Inglaterra seiscentista. De um modo parti-
cular, a associação do ideário protestante ao ideal baconiano da divulgação do
conhecimento fomentou a expectativa de que o país recebera a capacitação e a
honra divina de hastear o estandarte da verdade e do conhecimento ao mundo.34
Fatores como a atuação do Longo Parlamento, o puritanismo, os apoios
da ala burguesa e da classe rural, a paz com a Escócia, em 1641, e o surgimen-
to da liderança de Cromwell, etc. parecem ter assinalado de modo especial a
esperança da abertura para o tratamento dos males da Inglaterra e o início de
uma nova era de reforma completa, devidamente instilada pelas novas ideias.
Exemplo disso é o impacto de Comenius ao se deparar com a efervescência
puritana, como se observa na carta, coletada por Robert F. Young, que Comenius
escreve de Londres, em outubro de 1641, relatando aos amigos na Polônia a
primeira impressão que tivera do país:

Este canto do mundo em muito difere dos outros países e é digno de admira-
ção. O que mais me interessou foram as questões relativas à glória de Deus e o
florescimento do estado das igrejas e das escolas (...). O anseio com que uma
multidão de pessoas se dirige ao culto aos domingos é inacreditável. Londres
tem 120 igrejas e, em todas que eu visitei, posso afirmar como um fato inso-
fismável, há tanta gente que não há espaço suficiente para todos. Um grande
número de homens e jovens copiam os sermões com suas canetas. Há cerca de
30 anos, no reinado do rei James, eles descobriram uma arte que agora é moda
até entre os camponeses, ou seja, a arte da escrita rápida, a qual eles chamam
de estenografia (...). Quase todos aprendem a arte da escrita rápida assim que
aprendem a ler na escola as Escrituras no vernáculo (...). Eles têm um número
enorme de livros sobre todos os assuntos em seu próprio idioma (...). Realmente
não existem mais livrarias em Francfort na época da feira do que há aqui todos
os dias. A obra de Bacon De Scientiarum Augmentis apareceu recentemente
em inglês. Eles estão ansiosamente debatendo sobre a reforma das escolas em
todo o reino de uma forma semelhante à que, como vocês sabem, meus desejos
tendem, ou seja, que todos os jovens devem ser, sem negligência, instruídos.35

34 COMENIUS, John A. The Way of Light. Liverpool: The University Press London, 1938,
p. 172-173.
35 YOUNG, Robert F. Comenius in England. Oxford: Oxford University Press; London: H. Milford,
1932, p. 65.

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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

No início da década de 1640, os temores do passado pareciam ter-se con-


vertido na esperança de alcançar, em um futuro próximo, a prosperidade cultural
e social. Os recursos materiais e humanos para alavancar as mudanças necessá-
rias ganhavam novas disposições e muitos se colocaram como promotores da
nova educação e da nova ciência a partir da produção, do avanço e da difusão
do conhecimento. Criou-se, assim, uma esfera de otimismo, em que homens
de ciência, teólogos, pensadores, parlamentares e eruditos estavam convictos de
que a Inglaterra se tornaria, em breve, uma espécie de centro de concentração
mundial da informação e da divulgação do conhecimento universal.
Entre esses homens encontravam-se os protestantes Samuel Hartlib
(1600-1662), John Dury (1596-1680) e Jan Amos Comenius (1592-1670) que,
como estrangeiros e refugiados da Guerra dos Trina Anos, haviam se apropriado
dos princípios da Reforma Protestante para tentar alavancar os ditames da
grande reforma inglesa a partir de um círculo fomentador do conhecimento.

2. OS HARTLIBIANOS
2.1 O Grupo de Hartlib
Hartlib, Dury e Comenius estavam convictos de que não poderia haver
a mínima contradição entre fé e ciência, entre religião e educação, entre suas
premissas teológicas e as ideias filosóficas sobre a natureza. Um exemplo disso
é que eles acreditavam que a astronomia e a filosofia natural corroborariam de
forma contundente as verdades básicas do cristianismo, como os dogmas da
Criação e da Queda, os atributos comunicáveis de Deus, a revelação divina na
natureza e as expectativas escatológicas. Além disso, viam na harmonia entre
religião e ciência a real e emergente possibilidade de melhorias socioculturais
e da formação de uma sociedade com fundamentos pautados na verdade e em
uma visão cristã de mundo.36
Em termos da cultura, da intelectualidade e da influência social protestante
do século 17, há de se notar que Samuel Hartlib tornou-se um dos mais distin-
tos estrangeiros a residirem na Inglaterra. Por meio de sua articulação, Hartlib
ocupou um lugar central na vida intelectual inglesa durante a efervescência
reformista, a ponto de o primeiro governador de Connecticut, John Winthrop,
referir-se a ele como “The Great Intelligencer of Europe”.37
Nascido em Elbing, na Prússia, Hartlib era de uma família com fortes
vínculos com a Inglaterra. Sua mãe era inglesa e seu pai e avô ocuparam um
importante papel comercial na Inglaterra (uma espécie de Comunidade de
Comerciantes), com base em Danzing e Elbing. Entre 1625 e 1626, visi-
tou a Inglaterra pela primeira vez, com vistas a completar seus estudos em

36
WESTFALL, Richard S. The Construction of Modern Science: Mechanisms and Mechanics.
London: Cambridge University Press, 1995, p. 32.
37 “O grande intelectual da Europa”. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 2.

82
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

Cambridge. Em solo inglês, ficou convencido de que o movimento de reno-


vação espiritual oferecia a esfera ideal para o patronato, para a luz religiosa,
bem como a simpatia necessária para que a ideia da nova educação fosse de-
senvolvida. Assim, em virtude dos dissabores da Guerra dos Trinta Anos, que
muito dificultaram sua vida em Elbing, Hartlib decidiu retornar à Inglaterra
em 1628, fixando moradia em Londres.
Residindo em Duke’s Place, passou a corresponder-se com estrangeiros, a
apoiar jovens acadêmicos e a hospedar pastores exilados. Assim, rapidamente
familiarizou-se com as questões religiosas da Inglaterra e com reformadores
intelectuais, o que lhe despertou ainda mais os esforços para coordenar suas
aspirações de cunho sociorreligioso. Como fruto do seu envolvimento com
as demandas socioeducacionais, assim que chegou à Inglaterra, Hartlib esta-
beleceu em Chichester uma pequena academia para a educação da pequena
nobreza inglesa com vistas ao avanço da piedade, do aprendizado e do ensino,
da moralidade e de outros exercícios de virtudes.38
Hartlib acreditava no potencial do conhecimento útil e estava convicto
de que o Estado progrediria nas reformas somente se engendrasse esforços na
aplicação do mesmo. Entendia que seria a partir do acúmulo e organização
do conhecimento e de informações de cunho econômico, mecânico, agrícola,
etc. que as autoridades que presidiam os desígnios públicos deveriam almejar
o desenvolvimento e o avanço do bem comum. Com isso em vista, Hartlib
insistia que somente na Inglaterra ele teria a oportunidade de desempenhar a
tarefa de reunir, divulgar, solicitar e coordenar as informações necessárias para
articular o pensamento de Bacon em associação com os ideais protestantes.
Foi a partir dessa visão que Hartlib tornou-se um grande correspondente
da Europa. Mantinha constante contato com pensadores ingleses e estrangeiros
e colocava-se como intermediário das correspondências com os membros da
dispersão protestante. Grande parte dos seus contatos e amizades enfatizava
o zelo pela nova filosofia e o apoio pelo novo método do conhecimento, bem
como cultivava a unidade protestante e a profecia apocalíptica.39
Com vistas a divulgar e implantar a expressiva reforma na Inglaterra,
Hartlib, com sua abissal faculdade articuladora, passou a organizar um cír-
culo de pensadores que se tornaria conhecido como o grupo hartlibiano. Este
grupo, composto por homens de ciência, políticos, teólogos e educadores que
contavam com a admiração de grande parte do Parlamento inglês,40 unia-se
em torno do ideal reformista com seu característico anseio pelo conhecimento
e divulgação universal da verdade.

38 Ibid., p. 7.
39 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 187.
40 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 278.

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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Também conhecidos como o grupo de Hartlib, seus membros, em vez


de comporem uma vertente de natureza política,41 tornaram-se, na verdade,
mais dedicados em arregimentar, publicar e difundir o conhecimento entre
os países da Europa a partir dos seus pressupostos ideológicos, não obstante
contarem com expressivos subsídios de parlamentares simpatizantes da causa
reformista.42
Dentre os promotores e membros do círculo hatlibiano passaram a atuar,
além de Comenius e Dury, nomes como Theodore Haak, Cyprian Kinner,
Joachim Hübner, Thomas Goodwin, Jeremiah Burroughes e Philip Nye.43
Além dos membros que compunham diretamente o círculo hartlibiano, outros
nomes de expressão passaram a figurar como apoiadores e patronos dos esfor-
ços reformistas do grupo. Entre estes estavam membros do clero igualmente
desejosos de ver mudanças e transformações sociais e a reforma da Igreja na
Inglaterra, como John Williams, Ussher de Ermagh, Davenant de Salisbúria,
Hall de Exeter e Morton de Durham, entre outros. Havia também a adesão de
patronos e aliados diplomáticos, como Sir William Boswell e Sir Thomas Roe.
Outros, dentre os parlamentares que forçaram o rei a convocar o Parlamento,
em 1640, com vistas às mudanças e ao avanço da causa reformista. Dentre esses
figuravam alguns protestantes como o conde de Pembroke, John Selden e Sir
Benjamim Rudyerd; o conde Bedford, John Pym e Oliver St. John; o conde
de Warwick, Lord Brooke, Lord Mandeville, Sir Nathaniel Rich, Sir Thomas
Barrington e Sir John Clotworth. O sonho da nova Igreja, da nova educação, da
nova ciência e da causa geral reformista era ainda apoiado por representantes
da força rural, como Sir Justinian Isham de Lamport, Sir Chistopher Hatton
de Holmby, Sir Cheney Culpeper de Leeds Castle e Nicholas Stoughton.44
Certos pressupostos davam a tônica e emolduravam a identidade do grupo
de Hartlib. Nesse aspecto, seus membros acreditavam que a renovação espiri-
tual e intelectual protestante ofereceria as bases para se implantar a nova visão

41 Sobre a peculiaridade espiritual do grupo, Webster ressalta que, através de Hartlib e de seus
amigos, a santificação na missão de propagar um programa social e religioso foi revigorada. Com esse
propósito, o círculo de Hartlib operou mais como uma irmandade espiritual internacional do que como
uma associação ou grupo político. WEBSTER, Advancement of Learning, p. 9.
42 WEBSTER, The Great Instauration, p. 42-43. Em que pese o grupo de Hartlib não se con-
figurar em um grupo político, aparenta certo exagero relacionar o interesse de seus membros apenas às
causas práticas e religiosas. Tal impropriedade parece ficar mais evidente ao se considerar a provável
motivação do ideário político-revolucionário encontrada entre alguns dos integrantes e apoiadores do
grupo ligados ao puritanismo. Baskerville, ao referir-se ao puritanismo, entende que o mesmo não se
constituiu simplesmente em uma afluência religiosa dissidente, cuja ebulição alastrou-se como um
‘subproduto acidental’ em conflito político, mas sim uma verdadeira ideologia política revolucionária.
Ver: BASKERVILLE, S. K. “Puritans, Revisionists and the English Revolution”. Huntington Library
Quarterly 61, nº 2 (1998), p. 154.
43 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 33.
44 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 190-191.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

da religião e da sociedade. Por conta disso, pensavam na reforma do modelo


educacional vigente como premissa para alcançar a reforma geral na Inglaterra,
pois tinham em alta conta que a educação era o aspecto fundamental para se
iniciar a completa reforma da religião, da cultura, da política, da economia e
das demais demandas sociais e governamentais. Igualmente, seus membros
e apoiadores figuravam nas fileiras daqueles que nutriam a expectativa de que
a Inglaterra deveria ocupar o centro mundial da divulgação do conhecimento,
bem como reunir a liderança protestante da Europa.
Os hartlibianos tinham como base filosófica o ideal de Bacon de dominar
o conhecimento do mundo natural em busca da verdade, da transformação
social e da divulgação do conhecimento universal. Nesse sentido, uniam-se na
visão da Queda45 e no aproveitamento amenizador potencializado pela filosofia
natural, que, para eles, era um ofício sagrado no processo de restauração.46
Também se uniam a Bacon acerca da relevância das Escrituras como fonte de
revelação e orientação para o conhecimento e para a ciência, pois viam nos
oráculos sagrados a legitimação bíblica para o desenvolvimento das poten-
cialidades humanas.47 Do mesmo modo, estavam convictos de que a ciência
deveria orientar o aprimoramento das condições da vida humana, atribuindo
uma vocação de forte cunho social à nova filosofia natural.48
Enfim, a partir da associação entre suas premissas religiosas, seus ideais
de fé, da visão filosófica que postulavam e do ideal da conquista do avanço
social e do bem-estar público, Hartlib e seus amigos tencionavam atingir a
revitalização do ensino e da saúde e ainda aumentar o nível de emprego da
classe pobre. Num nível mais profundo de conquistas práticas e reais em favor
da sociedade – e isso muito por conta da concepção protestante de liberdade
cristã –, estavam ainda convictos do direito geral à liberdade. Desse modo,
defendiam e evocavam a liberdade na religião, na comunicação, na imprensa e
na consciência individual e coletiva, bem como incentivavam o livre comércio,

45 O termo Queda refere-se à transgressão de Adão e Eva quando pecaram contra Deus (Gênesis 3).
Por conta da desobediência, Deus sujeitou a terra aos efeitos deletérios do pecado. Logo, a partir da
narrativa bíblica da Queda, tanto Bacon como os protestantes entendiam que as artes liberais, a filosofia
natural e a ciência útil deveriam desempenhar o papel reparador de grande parte dos efeitos destrutivos
do pecado. Desse modo, o avanço do conhecimento universal era visto como mandato de Deus, que
outorgaria melhorias nas condições da vida humana. Ao usar o avanço do conhecimento para auxiliar
a restauração do seu domínio sobre a criação no estágio pós-Queda, o ser humano aliviaria, em certa
medida, o sofrimento originado pelo pecado. Ver: ROSSI, A ciência e a filosofia dos modernos, p. 79;
ver também: PEARCEY, Nancy R. & THAXTON, Charles B. A alma da ciência. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2005, p. 37-38.
46 BACON, Francis. O progresso do conhecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2007, livro primeiro,
p. 89.
47 Ibid., p. 71.
48 Ibid., livro segundo, p. 117.

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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

a reforma do monopólio das práticas profissionais, a reorientação e socialização


da medicina, da educação e da lei.49 Um exemplo desse empenho era a intenção
de levarem a cabo a ideia de Bacon de implantar o Colégio Universal, uma
vez que este deveria favorecer e orientar as conquistas socioeducacionais, a
começar pelos intercâmbios destinados à fomentação do saber e da produção
utilitária das artes.50
Portanto, a partir de pressupostos e esforços como esses, o grupo de Hartlib
e seus apoiadores tencionavam promover um ambiente e ocasião favoráveis
às inovações técnicas que pudessem desenvolver a mineração e a agricultura
na Inglaterra, com vistas ao progresso do comércio e da indústria. Porém, para
que isso ocorresse, era necessária a resolução prévia dos entraves religiosos
e filosóficos, bem como o investimento adequado na nova ciência e nas artes
utilitárias, a fim de que fossem viabilizadas gradativamente e conjuntamente
as questões teóricas e práticas, as quais promoveriam o avanço e a conquista
do desenvolvimento social, econômico e científico.
Hartlib e seus companheiros estavam cônscios dos problemas sociorreli-
giosos que se apresentavam no país, que se interpunham como obstáculos para
que a reforma na educação e a nova ciência fluíssem. Assim, era convicção
do grupo que uma nova educação deveria aflorar com vistas a reorientar as
demandas sociais e as controvérsias religiosas. Seus membros viam de modo
inequívoco a educação como a chave para a reforma da religião e da sociedade.
Ao mesmo tempo em que Hartlib afirmava que, por meio da institucionalização
de um novo método educacional, seria preparado o caminho para a reforma da
Igreja, do Estado e da implantação da tão desejada melhoria das condições de
vida, Dury, de modo semelhante, dizia que sem a reforma do modelo de edu-
cação e ensino nas escolas seria impossível trazer qualquer espécie de reforma
social, econômica, política e religiosa, com vistas à Commonwealth.51 Assim
sendo, a nova educação pretendida pelos hartlibianos deveria, além de ocupar
a gênese da solução dos entraves sociais, ser regida por princípios espirituais
registrados nas Escrituras e pela prática de uma ciência baseada na experiência,
uma vez que esses dois elementos seriam guias para o comportamento moral
e para o bem-estar material.52
Logo, motivados pelos princípios da fé protestante e com a proposta da
nova educação sendo aplicados à cultura, à sociedade e à natureza, e igual-
mente animados pelo apoio recebido no início da década de 1640 de patronos
e de parte da liderança política do país, Hartlib e seus companheiros estavam

49 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 41.


50 COMENIUS, The Way of Light, p. 172.
51 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 5.
52 WEBSTER, The Great Instauration, p. 32-35.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

convencidos de que a Inglaterra outorgava as condições favoráveis para uma


especial dispensação que unisse fé cristã, filosofia natural e desenvolvimento
social e econômico. Desse modo, para que tal dispensação fosse estabelecida e
engendrasse os frutos esperados da reforma geral, o grupo e seus apoiadores não
hesitavam em que a reforma de cunho filosófico-religioso na educação seria o
ponto de partida para que outras reformas viessem a ser realizadas. Sobre isso,
não tinham dúvidas de que ninguém melhor do que Comenius deveria aplicar
seus princípios educacionais, a começar pela reforma das escolas da Inglaterra.
Como já foi mencionado, a Inglaterra seiscentista respirava de forma sin-
gular os ares da expectativa milenarista – ares que acabaram dando um fôlego
especial ao programa reformista. Tal esperança foi particularmente nutrida e
difundida durante mais de vinte anos pelos integrantes do grupo de Hartlib,
uma vez que, no âmago do intenso anseio de seus membros pela reforma geral
e pela “era da luz” residia a associação das fortes motivações messiânicas e
milenaristas.53
Dury, por exemplo, acreditava que era chegada a hora em que os protes-
tantes poderiam trabalhar unidos pela expansão do reino de Deus e auxiliar
os judeus no processo de conversão, sem o qual, como acreditava o próprio
Hartlib, o mundo não poderia esperar a “era de ouro” e de felicidade univer-
sal.54 Registrou parte de sua expectativa com a nova aurora de esperança e
transformação social e religiosa em sua obra Englands Thankfulnesse, or, An
Humble Remembrance presented to the Committee for Religion in the High
Court of Parliament (“A gratidão da Inglaterra ou Uma humildade recordação
apresentada à Comissão de Religião na Alta Corte do Parlamento”). Ali expôs
que o objetivo de Deus era provocar o renascimento dos estados da Europa e
reafirmou sua crença de que o reino de Cristo estava para chegar, a Babilônia
para cair e que a igreja estava às vésperas das dores de parto ao contemplar
o iminente retorno de Cristo. Animado com a convocação parlamentar para
a realização da Assembleia de Westminster,55 Dury passou a acreditar ainda

53 Hartlib difundiu na Inglaterra, durante vinte anos, um programa de reforma social, religiosa e
educacional que chegou a influenciar homens como Boyle e Petty. Esse programa, desenvolvido em meio
à euforia escatológica que marcou o começo da década de 1640 e que contava com a bênção de certos
líderes do Parlamento, contribuiu, segundo Hill, com o entusiasmo milenarista em criar a expectativa
de que a utopia era iminente na Inglaterra. HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.
54 Dury entendia que a chegada a Londres de Johann Stefan Rittangel era a forte evidência de que
a reforma geral lograria seus frutos e que o caminho para a volta do Messias, face à conversão prévia dos
judeus, seria definitivamente inaugurado. Rittangel, erudito professor de línguas orientais em Konigsberg,
vivera entre os judeus da Europa, Ásia e África durante vinte anos, tempo em que angariou sensível
experiência para ser, agora em Londres, um instrumento de conversão dos mesmos ao cristianismo.
TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.
55
WEBSTER, Advancement of Learning, p. 39; HODGE, Confissão de Fé Westminster, p. 42;
HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 102-103.

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VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

mais que o Parlamento inglês seria como que uma parteira dessas mudanças e
que os olhos das igrejas, especialmente algumas da comunidade germânica,56
estavam fixos nos parlamentares ingleses da década de 1640.57
Com isso em vista, o círculo hartlibiano acreditava que o tempo adequado
para colocar em prática o projeto reformista havia chegado. Para seus mem-
bros, um sinal evidente da providência divina era a chegada à Inglaterra dos
agentes essenciais da reforma a partir do início da década de 1640. Dury, por
exemplo, havia mudado da Suécia para Londres a convite de Hartlib, enquanto
que Comenius, que seria o responsável pela reforma educacional, acabaria
chegando a Londres em 1641.
Com efeito, os dias que antecederam a chegada de Comenius foram marca-
dos por um momento especial de esperança e de busca de renovação espiritual,
educacional, filosófica e, consequentemente, de novas conquistas. Escrevendo
a Hartlib em 7 de fevereiro de 1641, ou seja, pouco antes de mudar-se para
Londres, Comenius deixa transparecer a euforia que contagiava seus planos
em face ao iminente descortinar de um novo e promissor tempo de avanços
na educação, no conhecimento e nas ciências, pois dizia:

Agora, com o prazer de cumprimentá-lo, uso a ocasião do relatório que chegou


a nós, referente aos acontecimentos em seu país até dia 9 de janeiro. Peço in-
cessantemente a Deus que o instrua com espírito de sabedoria, através do qual
o teu bom discernimento não esteja indiferente a essas grandes oportunidades.
O que nos impede de compartilhar nossos pensamentos e desejos em comum,
anteriormente concebidos, nos quais meditamos até hoje? Ó amigos, ou é ago-
ra o momento certo, ou teremos que esperar um tempo escasso e apropriado,
um tempo que seja capaz tanto para ouvir os conselhos como para alcançar os
desejos do grande Verulano, os quais visavam um fruto feliz (...). Para este ob-
jetivo, sua Majestade pode, com facilidade, promover o seu início fornecendo
simplesmente os meios. Meios pelos quais os trabalhos realizados por muitos,
que estão com sucesso produzindo os desejados avanços no conhecimento e
nas ciências, possam ser completados em sua totalidade, quer pela plenitude
das recompensas, quer pelo prudente e sensato conselho, ou, finalmente, pelo
compartilhar dos seus trabalhos.58

Assim, contando com o incentivo e com a boa vontade do Parlamento


em apoiar a proposta de reconstrução social e animado pela publicação de seu
Macaria logo após um mês da chegada de Comenius a Londres, Hartlib não

56 A referência às igrejas germânicas se dá por conta das esperanças nutridas pelas igrejas da
região da Boêmia e da Morávia de que as pesarosas consequências advindas da Guerra dos Trinta Anos
pudessem cessar a partir da inauguração de um novo tempo de paz e prosperidade no qual a Inglaterra,
a partir do Parlamento, teria uma participação singular.
57 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 200.
58 HARTLIB PAPERS, document [7/84/2A].

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

disfarçava seu entusiasmo quanto à possibilidade iminente de se iniciar a tão


anelada reforma na Inglaterra, pois dizia:

Eis que agora vivemos, em vez de desolação, os reparos das violações antigas; em
vez de confusão, o lançamento das bases para muitas gerações construírem
em cima; em vez de temor, uma grande porta aberta, onde devemos nos manter
firmes e totalmente dedicados em toda a abundância de paz e de verdade.59

O próprio Parlamento esperava nomear uma comissão para examinar os


esquemas de Hartlib, Dury e Comenius, tencionando promover um espaço
adequado para o uso desse colegiado, que, por fim, deu-se inicialmente no
Chelsea College, em Londres.60

2.2 O “Office of Address”: a agência do avanço da aprendizagem


universal
A associação das convicções teológicas do círculo de Hartlib à filosofia de
Bacon e à pansofia de Comenius contribuiu para o fortalecimento do ideário
de uma ciência útil, ou seja, uma ciência que correspondesse aos anseios de
uma reforma social, cujo objetivo visasse o bem-comum.61
Logo, era da convicção do círculo de Hartlib que a compreensão ordenada
de todas as coisas naturais e artificiais existentes no mundo deveria conduzir
a ciência, dedicada à sociedade, a um fim mais proveitoso, como seriam as
ciências para explorar as riquezas da terra ou voltadas à saúde.
Parece, portanto, que foi por meio desta convicção que se deu início ao
abandono do conhecimento estritamente teórico – ou, como se dizia na época,
mais “especulativo” – de alguns dos pensadores clássicos. Ao mesmo tempo,
como afirmou Dury em suas obras The Reformed School (1650) e Some
Proposalls (1653), novos protagonistas do conhecimento passaram a ser se-
lecionados em virtude de pressupostos mais práticos e menos especulativos.62

59 Ver: Englands Thankfulnesse, or An Humble Remembrance Presented to the Committee for


Religion in High Court of Parliament (London 1642, p. 2 e 92). WEBSTER, Advancement of Learning,
p. 35.
60 Ibid., p. 36.
61 Em defesa do caráter útil da ciência, Bacon dizia: “O uso da história mecânica é de todos o mais
primário e fundamental para a filosofia natural: para uma filosofia natural, isto é, que não se dissipe
em vapores de especulação sutil, sublime ou deleitável, mas que seja operativa para o enriquecimento e
benefício da vida humana; pois não só ministrará e sugerirá para o presente muitas práticas engenhosas
em todas as indústrias, mediante a conexão e transferência das observações de uma arte à prática de
outra (...), mas que, além disso, dará uma iluminação mais verdadeira e real sobre as causas e axiomas
que até agora se alcançou”. BACON, O progresso do conhecimento, livro segundo, p. 117.
62 Webster baseia-se nessas obras de Dury para fazer tal afirmação. Ver: WEBSTER, Advancement
of Learning, p. 54.

89
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Comenius, Hartlib, Dury e demais membros do grupo eram altamente


resistentes e críticos do sistema educacional existente, uma vez que este ainda
seguia uma estrutura bastante escolástica, como presente nas universidades de
Oxford e Cambridge. Assim, na contramão da situação vigente, os hartlibianos
acreditavam que uma ciência cujos pressupostos incluíssem um lado mais
prático e útil pudesse oferecer uma espécie de ponte entre a cultura intelectual
e a artesã.
Com efeito, Comenius combatia, segundo ele mesmo afirmava, o retró-
grado sistema educacional e o diminuto caráter experimental das universida-
des.63 Defensor que era de um conhecimento que não excluísse um lado mais
proveitoso, entendia que as universidades deveriam primar pelo caráter da
inquestionável eficiência no ensino e no aproveitamento social.64 Para ele, as
universidades deveriam difundir o conhecimento universal e os frutos mais
úteis da ciência, a partir do intercâmbio entre universidades dos mais diferentes
lugares.65
Com isso em mente, Comenius buscou, juntamente com Hartlib, dar início
à realização do projeto do Colégio Universal, no qual seus membros deveriam
se empenhar no exercício da filosofia baconiana e nas ideias comenianas com
vistas, dentre outros objetivos, a promover a vocação social e prática da nova
ciência. Nesse sentido, sobre o trabalho dos mestres do Colégio que teriam
seu foco nas ciências, Comenius dizia:

Que o trabalho deles tenda a aprofundar cada vez mais os fundamentos das
ciências para purificar e difundir entre o gênero humano, e com maior sucesso,
a luz do saber, e para que as coisas humanas progridam com novas e utilíssi-
mas invenções. De fato, quem não quiser trilhar sempre velhos caminhos, ou
mesmo retroceder, precisará pensar no progresso das coisas iniciadas. Para
isso, não é suficiente um homem ou uma época, mas é necessário que as obras
empreendidas sejam continuadas por muitos, simultânea e sucessivamente. Tal
Colégio Universal será para as outras escolas aquilo que o estômago é para os
membros do corpo, ou seja, uma oficina vital que fornece sempre aos outros
órgãos linfa, vida, força.66

Vale ressaltar que a possibilidade de organizar o Colégio Universal foi


determinante para que Comenius decidisse mudar-se para a Inglaterra, conforme
convite feito por Hartlib. Na carta enviada a Hartlib, datada de 7 de feverei-
ro de 1641, ou seja, pouco tempo antes de sua ida para Londres, Comenius

63 COMENIUS, The Way of Light, p. 162.


64 COMENIUS, João A. Didática Magna de Comenius. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 238.
65 COMENIUS, The Way of Light, p. 167-177.
66 COMENIUS, Didática Magna, p. 358-359.

90
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

expressava sua esperança em organizar o Colégio Universal naquela cidade,


pois dizia ao amigo:

Reconhecemos a exigência de se ter um Colégio Universal, e estamos conven-


cidos de que o mundo não pode prescindir dele por mais tempo, a não ser em
seu detrimento (...). Se agora temos nas mãos o mais alto nível, o sétimo, da
luz divina, que gradualmente é compartilhado com o mundo, então o destino
encontrará o caminho adequado para fundar esse Colégio em algum lugar
do mundo. Mas, seria o caso que isso fosse tirado da Inglaterra? (...). Então,
finalmente, o Soberano Rei, mais sábio de seus Senhores, poderá coroar suas
ações, caso desejem colocar este diadema, esta joia – o Colégio da Luz – em
suas florescentes escolas, universidades, igrejas e conselhos.67

De fato, a proposta inicial de Bacon sobre a implantação de um colégio


dedicado ao livre e universal estudo das artes e da ciência sempre contagiou
Comenius, especialmente por este acreditar que, por meio do Colégio Universal,
a reforma educacional seria viabilizada, bem como as sementes para as ciências
de eras futuras estariam sendo plantadas. Logo, Comenius estava convicto de
que, na medida em que a associação da ideia do colégio de Bacon com suas
ideias educacionais fosse levada adiante, não apenas a reforma educacional
inglesa lograria êxito, mas a reforma universal da educação daria seus primeiros
e determinantes passos. Foi com essa perspectiva que Comenius planejou pôr
em ação a organização de um colégio pansófico central (Collegium Lucis ou
Colégio da Luz, como também chegou a ser chamado), durante os meses em
que ficou com Hartlib e seus colaboradores, entre 1641 e 1642, por entender que
não havia melhor ocasião e lugar para iniciar seu plano.68
Destarte, Comenius e os demais hatlibianos, que anelavam pela propos-
ta comeniana de Reforma Universal,69 esperavam organizar, em Londres, o

67 HARTLIB PAPERS, ver documentos [7/84/2A], [7/84/2B], [7/84/3A], [7/84/3B]. Ademais, prati-
camente um ano antes de sua morte, em seu Continuatio admonitionis fraternae de temperando charitate
zelo ad S. Maresium (1669), Comenius revelou a esperança que nutria de que o Colégio Universal fosse
organizado no tempo em que esteve entre os hartlibianos, pois também escreveu: “Consequentemente,
teria sido fundado, neste momento, o Colégio como o ilustre Bacon havia desejado, dedicado a todos os
estudos sobre o mundo dos homens cujo zelo seria trazer acréscimos valorosos para a raça humana nas
ciências e nas artes. YOUNG, Comenius in England, p. 36.
68 Sobre a intenção dos hartlibianos em organizar o Colégio Universal, Narodowski ressalta que
Comenius não teve dúvidas em dirigir-se a Londres, em 1641, com a esperança de conseguir instalar o
colégio pansófico, uma vez que muitos homens de letras e de ciências estavam imbuídos do propósito de
fundar um colégio semelhante à “Casa de Salomão” (que Bacon havia planejado em sua Nova Atlântida),
e, ainda, porque esse projeto parecia poder contar com o apoio do Parlamento no provimento dos fundos
necessários. NARODOWSKI, Mariano. Comenius e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 22.
69 Tendo em vista que Comenius considerava a ciência como um organismo vivo de todos os
conhecimentos, Cauly chega a afirmar que Hartlib e os demais membros do Colégio Invisível encontra-
ram, no pensamento comeniano, os princípios éticos e científicos da sua própria atividade reformadora.
CAULY, Olivier. Comenius o pai da pedagogia moderna. Lisboa: Piaget, 1995, p. 211.

91
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Colégio Universal devidamente assistido por um colegiado de acadêmicos e


pensadores envolvidos no empreendimento pansófico.70 Todos os integrantes do
Colégio deveriam se dispor a assimilar e a divulgar o máximo possível de cada
esfera do conhecimento entre os sábios e eruditos de diversas partes da Europa
e além-mar. Na esteira das ideias de Johnann Heinrich Alsted (1588-1638), as
contribuições dos acadêmicos e estudiosos deveriam resultar em um entendi-
mento enciclopédico sobre o material do mundo. Seus esforços deveriam, ao
mesmo tempo, corresponder ao anseio de Dury em promover as soluções para
as controvérsias entre os protestantes, bem como assistir e orientar as bases da
reforma da igreja e da educação inglesa.71
Mas deve-se ter em mente que além dos esforços em organizar o Colégio
Universal, Comenius, no tempo em que esteve em Londres, escreveu e entregou
aos hartlibianos seus estudos que visavam alcançar a Reforma Universal, ou
seja, estudos que transcendiam as demandas e vicissitudes sociais, eclesiásticas
e educacionais inglesas da época.72 Para esse propósito mais amplo, consi-
derava que os primeiros passos desse programa pansófico se dariam a partir
da tentativa de reformar a educação e as escolas da Inglaterra, como de fato
pretendia fazer através da participação no grupo de Hartlib.
Entretanto, por conta das comoções políticas e dos sobressaltos da guer-
ra civil de 1642, ocasião em que houve o choque entre as forças leais ao rei
Charles I e as leais ao Parlamento,73 Comenius não conseguiu publicar seus
estudos enquanto esteve na Inglaterra. Com efeito, somente em 1668 conseguiu
publicá-los e, na ocasião, dedicou-os, cheio de esperança, à Royal Society
sob o título Via Lucis74 – nome que havia dado na década de 1640, conforme

70 COMENIUS, The Way of Light, p. 173-174.


71 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 29. Ver também: WEBSTER, The Great Instauration,
p. 67-69.
72 As ideias de Comenius transcendiam as demandas educacionais na medida em que revelavam
uma nova concepção sistemática e orgânica das ciências. Tudo indica que o saber pansófico, cujo objetivo
mirava a instrução e a utilidade universal (pancresia) do conhecimento, legitimava as aspirações dos
radicais por uma popularização do saber. CAULY, Comenius o pai da pedagogia moderna, p. 212.
73 Em 4 de janeiro de 1642, o rei Charles I intentou, sem sucesso, investir contra a Câmara dos
Comuns, a fim de prender seu líder, John Pym. Esse episódio serviu como prelúdio para a guerra civil,
cuja primeira batalha entre as forças do rei e as do Parlamento teve lugar em Edgehill, em outubro de
1642. Também conhecida como a guerra entre os Royalists e os Roundheads, a mesma fora motivada
por fortes questões político-religiosas. Ver: HULSE, Quem foram os puritanos?, p. 59-61; GONZÁLEZ,
História do pensamento cristão, vol. 3, p. 288.
74 Por meio do Via Lucis, Comenius desenvolveu aquilo que chamou de Pan-Harmonia, conceito
no qual depositava a confiança de que se poderia atingir a Grande Reforma através da reunião e da
organização dos livros universais, das escolas universais, do Colégio Universal (College) e da língua
universal. Sobre o Via Lucis, Cauly defende a ideia de que era intenção do grupo de Hartlib apresentá-lo
ao Parlamento, na década de 1640, como sendo a pedra de toque para a difusão do pensamento pansófico
e o caminho para se alcançar a Reforma Universal a partir da Inglaterra. CAULY, Comenius o pai da
pedagogia moderna, p. 234.

92
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

compartilhou com a própria Royal Society, ao escrever: “[Por causa da crise


política] tive que ir embora deixando para trás parte dos meus estudos que ha-
via escrito sob o título de Via Lucis vestigata et vestiganda (The Way of Light,
traced and to be traced)”.75
Com a intensificação dos conflitos entre a Coroa e o Parlamento, profun-
das divisões oriundas da guerra interromperam, ainda que por breve tempo,
o zeloso projeto de reforma estabelecido em anos anteriores por Hartlib e
seus companheiros. Com as vicissitudes da crise civil, o Parlamento voltou a
atenção para as implicações e consequências da peleja, fazendo com que mo-
mentaneamente o grupo de Hartlib ficasse fragilizado em seus recursos e apoio
e sensivelmente empobrecido pela saída inevitável de Dury e de Comenius76 –
embora Hartlib e Cheney Culpeper (1601-1663) alimentassem a esperança de
que a beligerância fosse solucionada em breve.
Mas ainda que a aura do otimismo reformista tenha sido temporariamente
anuviada pela guerra civil, o grupo de Hartlib conseguiu superar esse difícil
período sem perder as esperanças quanto ao sonho da reforma geral. Com o
Parlamento impondo-se sobre a monarquia em 1645, Hartlib, infelizmente
sem poder contar com a presença de Comenius,77 mas animado com o retorno
de Dury e com a participação de Culpeper, recuperou fôlego tão logo o arre-
fecimento da agitação político-militar interna se iniciara. De fato, Dury, que
retornara a Londres para em seguida assumir uma cadeira na Assembleia de
Westminster,78 e os outros integrantes do grupo voltaram a engendrar esforços
com vistas à implantação da reforma geral inglesa até o final da década de 1660.

75 COMENIUS, The Way of Light, p. 5D.


76 Dury foi temporariamente servir como capelão de Maria, princesa do rei de Orange, enquanto
que Comenius, em 21 de junho de 1642, contando com a aquiescência de seus patronos, Lord Brooke,
John Pym e outros, deixou Londres ao aceitar o convite de Louis de Geer para introduzir a reforma
escolar na Suécia. TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 202. Ver também:
COVELLO, Sérgio C. Comenius: a construção da pedagogia. São Paulo: SEJAC Comenius, 1991,
p. 58-59; WEBSTER, Advancement of Learning, p. 38.
77 Era da intenção de Comenius retornar à Inglaterra tão logo a paz fosse restaurada no reino, o
que, como se sabe, acabou não acontecendo, não obstante Comenius ter compartilhado posteriormente
tal desejo com a Royal Society por meio das seguintes palavras: “Como se viu, as comoções políticas
que se apossaram do país naquele período impediram os esquemas (pansóficos) de serem levados à
realização e eu fui novamente enviado de volta, mas sob a promessa de não declinar da possibilidade de
retornar, caso Deus restaurasse a paz”. COMENIUS, The Way of Light, p. 5D.
78 Acerca do retorno de Dury à Inglaterra e ao grupo de Hartlib, Webster ressalta que Dury havia
retornando gradualmente ao cenário inglês, em 1645. Em Londres, Dury tornou-se proeminente ao to-
mar parte ativa na Assembleia de Teólogos de Westminster. Também pregou perante o Parlamento, em
26 de novembro de 1645, um sermão intitulado: “Chamada a Israel para que Marche da Babilônia para
Jerusalém”. Por meio desta exposição, Dury parece ter evocado o paralelo entre a Inglaterra e Israel –
ou seja, duas sociedades destinadas a testemunhar, cada uma em sua época, a queda da Babilônia, uma
vez que tinha no Parlamento inglês um símbolo escatológico da providência divina. Vide: WEBSTER,
Advancement of Learning, p. 39.

93
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

Nesses dias mais favoráveis, o grupo de Hartlib recebeu significativa ajuda


do protetorado de Oliver Cromwell,79 que, como puritano, igualmente defendia
e patrocinava o espírito e as reivindicações da reforma geral.80 Contando com a
empatia de Cromwell,81 os hartlibianos deram importantes passos durante parte
do interregno inglês, sobretudo quando se tem em mente a produção religiosa
e intelectual. Neste contexto, o grupo revigorou suas pretensões reformistas
reavendo os ambiciosos planos que postulavam, dentre os quais, a retomada do
Colégio Universal de Comenius, ainda que parcial, ocupava um lugar central.82
Vale registrar que, mesmo com a saída de Comenius da Inglaterra, Hartlib
e seus amigos continuaram a divulgar as ideias comenianas sobre a reforma
educacional.83 Exemplo disso é que enquanto se dedicavam ao desenvolvimento
das bases do Colégio, divulgavam, ao mesmo tempo, o conteúdo da obra co-
meniana A Reformation of Schooles. Igualmente, Charles Hoole (1610-1667),
renomado escritor inglês de prática escolar, passou a recomendar os textos lati-
nos de Comenius, que foram utilizados por longo tempo nas escolas inglesas.84
Assim, por conta do melhor momento político do país, Hartlib, ainda que
de forma mais modesta do que o programa inicial para o Colégio Universal,
canalizou juntamente com Dury e Culpeper, em 1646, sensíveis modificações
na proposta do Colégio de Comenius.85 Tais adaptações e ajustes buscaram

79 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 292-293; HULSE, Quem foram os


puritanos?, p. 67-70.
80
Sobre o apoio de Oliver Cromwell à causa reformista, especialmente no que dizia respeito a
Samuel Hartlib, Trevor-Roper afirma que ele recebia uma pensão de Cromwell, assim como a recebera
de Pym e St. John. Ver: TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 208-209.
81 GONZÁLEZ, História do pensamento cristão, vol. 3, p. 286; HULSE, Quem foram os purita-
nos?, p. 59-63.
82 Comenius teria escrito a Hartlib, em 1646, perguntando se haveria alguma chance de o
Collegium Lucis ser, naquele novo momento, estabelecido na Inglaterra. Ver: TURNBULL, G. H.
Hartlib, Dury and Comenius. London: University Press of Liverpool, Hodder & Stoughton, 1947, p. 372.
83 Prova da aceitação e interesse dos ingleses pela pansofia de Comenius, mesmo após ele ter dei-
xado a Inglaterra, foi a publicação que Hartlib organizou, em Londres, das obras comenianas Pansophiae
diatyposis (em 1643) e A Continuation of Mr. J. A. Comenius school endeavours (em 1648). Mesmo
as inúmeras viagens e estadas em países da Europa que Comenius efetuou a partir de 1642 devem ser
consideradas, em grande medida, em função da recepção que suas teorias tiveram na Inglaterra. Ver:
CAULY, Comenius o Pai da Pedagogia Moderna, p. 223-239, 211.
84 COVELLO, Comenius: a construção da pedagogia, p. 56.
85 Vale registrar que, mesmo depois da saída de Comenius da Inglaterra, isso não implicou neces-
sariamente no seu distanciamento dos hartlibianos. Prova disso é a carta que Comenius enviou a Hartlib
em 19 de julho de 1654 da cidade de Leszno, relatando: “Você me pergunta e deseja saber o que estou
fazendo ou o que estou prestes a fazer? Respondo primeiramente que só agora estou começando a me
acostumar com nossa separação; e também que os grandes trabalhos são realizados de forma melhor no
profundo silêncio, pois o ruído perturba e distrai. Não foi sem razão, acredite em mim, que me debrucei
nesses pensamentos, nos quais eu deveria agir como um imitador de Deus e dos homens sábios, como
alguém que está acostumado a lançar os seus trabalhos antes mesmo que os outros sintam que estes
estejam sendo liberados”. HARTLIB PAPERS, document [7/72/1A].

94
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

lançar as bases para um singular projeto pansófico, a saber, o Office of Address


for Communications.
Este projeto, que teve relevante produção durante o protetorado de Oliver
Cromwell, fora criado em grande medida a partir de uma evidente associação
de ideias entre o College, de Bacon, e o Collegium Lucis, de Comenius. Co-
nhecido como Office of Address, tornou-se uma tentativa dos hartlibianos de
dispor, a partir da Inglaterra, de um centro de fomentação intelectual e cultural.
Um centro que pudesse desenvolver e aperfeiçoar de modo objetivo uma nova
disposição para a comunicação internacional com vistas a promover a infor-
mação e atualização do conhecimento útil, a educação e instrução religiosa e
cultural, e o desenvolvimento e progresso social.
Vale ressaltar que, no processo de adaptação que Hartlib implantou na pro-
posta central e em algumas das funções do Colégio pretendido por Comenius,
o Bureau d’Adresse, de Theóphraste Renaudot, prestou sensível contribuição
e inspiração ao grupo. O modelo de atuação e os esforços bem-sucedidos que
o escritório parisiense dedicava em sua proposta de difusão da informação ser-
viram de referência inicial para os incipientes trabalhos do Office of Address.86
Levando-se em consideração alguns aspectos do modelo de operação do
Bureau, o Office of Address87 passou a moldar e a estruturar os detalhes da sua
atuação tornando-se uma espécie de núcleo em que boa parte dos pressupos-
tos protestantes voltados à sociedade e à cultura pudessem ser direcionados à
educação, à ciência e à técnica.
Assim, por estar comprometido em promover a divulgação e difusão
universal do conhecimento e da verdade, o Office apresentou-se como uma
conveniente e oportuna plataforma de recrutamento de novos associados,
aliados políticos e acadêmicos que, por meio do convencimento do apoio de
patronos, conseguiu empenhar-se em diversos empreendimentos humanitários
que visavam à melhoria das condições de vida do homem e da sociedade.88
Semelhantemente ao que deveria ter acontecido com o Colégio Universal
de Comenius, o Office of Address fora concebido, pelo menos inicialmente,
para ser uma instituição regulamentada e patrocinada pelo Estado, a fim de

86 O Bureau d’Adresse destacava-se por operar como uma agência difusora da comunicação
erudita e intelectual, bem como na promoção de intercâmbio de informações sobre o comércio, sobre
produtos manufaturados e até mesmo sobre empregos. Ver: CLUCAS, S. “In Search of the True Logick:
Methodological Eclecticism among the Baconian Reformers”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib
and Universal Reformation: Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University
Press, 1994, p. 52-53. Ver também: WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.
87 Registre-se ainda que o Office of Address teve duas repartições. A primeira, conhecida como
Office of Address for Accommodations, acabou seguindo mais detidamente o padrão do Bureau de Renaudot,
enquanto que a segunda, na qual o grupo de Hartlib se envolveu mais efetivamente, era denominada
Office of Address of Communications. WEBSTER, The Great Instauration, p. 68-69.
88 HILL, O mundo de ponta-cabeça, p. 279.

95
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

se concentrar no interesse público e na produção utilitária da ciência. Desde o


início da sua operação, Hartlib passou a dedicar-se profundamente às reformas
econômicas propostas em Macaria,89 obra de que foi o editor. Assim, junto com
seus companheiros, buscava concretizar as reformas necessárias a partir do
estabelecimento desse novo centro de capitação e difusão do conhecimento e
da cultura – centro que, conforme almejavam os hartlibianos, deveria assegurar
a realização de ambiciosos planos sociais e a comunicação, em todo o reino,
de tudo o que fosse socialmente bom, louvável e desejável.
O Office of Address fora planejado inicialmente para atuar em dois ob-
jetivos predominantes. Primeiro, desejava-se que o Office atuasse como um
centro de informações e correspondências destinadas a promover o avanço do
conhecimento universal, o progresso das ciências nos moldes baconianos e o
avanço na difusão e implantação do conceito educacional comeniano, por todo
o mundo. Segundo, este centro deveria direcionar os esforços dos inventores
e idealizadores conforme as prioridades descritas pelas linhas de Gabriel
Plattes (1600-1644) e, posteriormente, divulgadas através das correspondências
expedidas por Culpeper.90
Com isso em vista, o Office of Address tornou-se, mesmo que de manei-
ra informal e sem endereço oficial, uma espécie de gabinete designado para,
dentre as atividades que visavam a Commonwealth,91 arregimentar e difundir
informações que tangessem a esfera religiosa e a educacional, bem como
para viabilizar melhorias das condições técnicas que proporcionassem novas
espécies e tipos de invenções, criações e descobertas.92 Foi assim que o Office
iniciou sua atuação com três principais divisões internas de informação, a sa-
ber: Religião, Ensino e Engenho (Invenções). Dury assumiu, informalmente,
a primeira divisão, onde ocupou-se das correspondências de teor religioso e
teológico. A segunda divisão dedicou-se a promover a filosofia de Bacon
e a de Comenius, enquanto que a terceira destinou-se a buscar recursos para
tornar viáveis os objetivos do College of Experience, esboçado por Plattes.93

89 Hartlib fora influenciado pelas ideias de fraternidade e irmandade cristã de Johann Valentin
Andreae a ponto de encomendar e publicar, em 1641, a obra Macaria. Essa obra indicava as possibi-
lidades de reformar o estado inglês e as benesses que isto traria para toda a sociedade. Ver: TREVOR-
-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 186. Ver também: WEBSTER, Advancement of
Learning, p. 35.
90 WEBSTER, The Great Instauration, p. 68.
91 GREENGRASS, M.; LEISLIE, M.; TAYLOR, T. (Orgs.). Samuel Hartlib and Universal Refor-
mation: Studies in Intellectual Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 11.
92 DUNN, K., “Milton among the monopolists: Areopagitica, intelectual property and the Hartlib
circle”. In: GREENGRASS, M. Samuel Hartlib and Universal Reformation: Studies in Intellectual
Communication. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 178-182.
93 Para mais informações sobre as divisões internas do Office of Address, ver: WEBSTER, The
Great Instauration, p. 69.

96
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

Comentando em seu Englands Reformations alguns objetivos que as divisões


internas do Office deveriam alcançar, Dury escreveu:

Em matéria de ciências humanas, o objetivo deveria ser: primeiro, colocar em


prática o que fora designado pelo Lord Verulano em seu De Augmentis Scien-
tiarum acerca do ensino. Segundo, auxiliar o empreendimento de Comenius,
principalmente quanto ao método de ensino, linguagem e ciências, e a encomen-
dar escolas para todas as idades e a zelar pela qualidade dos acadêmicos. Em
terceiro lugar, em matéria de invenções e suas finalidades, deveria ser oferecida
a mais rentável criação capaz de beneficiar o Estado, a fim de que o público
fizesse uso conforme o próprio Estado achasse mais conveniente.94

Portanto, baseado parcialmente no ideário do Colégio de Comenius, o


Office of Address foi designado para atuar como uma espécie de lugar que
inicialmente funcionaria como um centro de encontros e debates onde se
discutiriam e promoveriam propostas e tratados de cunho social e religioso e
questões que fomentassem o engenho intelectual. Dessa forma, mesmo com
poucos recursos próprios, no tempo em que atuou graças aos esforços espe-
ciais de Hartlib e Dury, o Office buscou encorajar eruditos ingleses, envolver
pensadores visitantes e manter em vigor as correspondências internacionais.
Em sua operação, o grupo publicou 65 títulos95 sobre as mais variadas áreas do
conhecimento, além de organizar um grande número de livros, cartas, manus-
critos e documentos, visando dar forma a uma expressiva biblioteca que fosse
capaz de difundir o conhecimento por meio dos seus volumes e coleções. Antes
mesmo da guerra civil, Comenius, Dury, Pell, Hübner e Hartlib haviam dado
início à produção de uma série de quinze livros destinados às necessidades
educacionais da infância e da adolescência, os quais se tornaram um “ambicioso
projeto divulgado no Englands Thankfulnesse (1642), no Motion Tending to the
Publick Good de Dury (1642) e nos manuscritos de Hartlib Peace and Long
Enjoyed Serenity of State, todos escritos depois da chegada de Comenius”.96
Mesmo longe do grupo, Comenius entusiasmava-se com os trabalhos do
Office of Address. Na missiva de 1654, revelou seu desejo de publicar seus
estudos a partir desta agência, pois escreveu a Hartlib:

Em suma, porque Deus me tem mantido até este momento (um tempo tão de-
sejado e perto do grande ponto da virada das eras) e porque, em grande parte,
os documentos das minhas coletas de mais de vinte anos de exercício mental
me foram restaurados, estou disposto, durante os meses deste verão, outono e

94 Ibid.
95 Sobre as 65 obras publicadas pelos hartlibianos e seus respectivos títulos, ver: TURNBULL,
G. H. Hartlib, Dury and Comenius, p. 88ss.
96 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 38.

97
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

inverno, a rever e a colocar tudo junto numa tela inteiramente subordinada à


grande obra divina, a qual mostra que tudo deve estar sob a mão da providência
eterna. Então (que o Altíssimo me faça prosperar!), tudo vai direto para você. Se
você, e os que com você aí conhecem e temem a Deus, bem como se o próprio
Deus, der sinais de sua boa vontade, meu trabalho deverá ser publicado por sua
agência. Esta é a minha decisão, nisto coloquei minha mente e, por isso, peço
a Deus que o assunto prossiga desta forma.97

Por essas e outras razões, o Office passou a ser conhecido ainda como a
Agência do Avanço da Aprendizagem Universal, sendo comum ser chamado
também de Colégio, numa referência aos projetos de Bacon e Comenius.98
Essa espécie de agência em que se tornou o Office dividiu-se internamente
em escritórios ou repartições lideradas por professores designados. Por exem-
plo, Dury seria designado para ocupar a Repartição de Divindade; Robert Boyle
(1627-1691) para a Repartição de Mecânica; Benjamin Worsley (1618-1673)
e Culpeper para a Repartição de Agricultura e Transporte; Worsley, Thomas
Coxe (1615-1685) e Boyle para a Repartição de Filosofia Experimental; Gaspar
Godeman para a Câmara das Raridades, e ainda, Gerard Boate (1604-1650),
Worsley e Justin van Ascher para a Repartição de Medicina.99
Uma vez obtidas as condições mínimas de funcionamento, o Office of
Address tornou-se também uma espécie de centro informal para desenvolver e
aperfeiçoar a visão cristã de mundo e sociedade, ou seja, um núcleo em que boa
parte dos pressupostos protestantes voltados à sociedade e à cultura pudessem
ser direcionados à educação, à ciência e à técnica. Também atraiu e incenti-
vou o recrutamento de novos associados, aliados políticos e acadêmicos, os
quais, por meio do apoio de patronos, conseguiram empenhar-se em diversos
empreendimentos humanitários e educacionais, sempre visando uma reforma
em prol da melhoria das condições de vida do homem e da sociedade.100
Nesse sentido, mesmo sem contar com dotação pública, o grupo de Hartlib
apresentou ao Parlamento uma coleção de exposições sobre cada aspecto da
reforma educacional. Trata-se de obras e ensaios de Hartlib, Dury, Cyprian
Kinner (-1649), George Snell (-1701), John Hall (1627-1656), William Petty
(1623-1687), Cressy Dymock (1629-1660) e Benjamin Worsley, quase todas
elaboradas entre 1648 e 1650, que apresentavam o entusiasmo da reforma
educacional.101

97 HARTLIB PAPERS, document [7/72/1A].


98 WEBSTER, The Great Instauration, p. 70.
99 Ibid., p. 72.
100 HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça, p. 279.
101 WEBSTER, Advancement of Learning, p. 51.

98
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

Todavia, com as novas agitações políticas que se seguiram na Inglaterra,


especialmente depois da morte de Oliver Cromwell (1658) e do declínio do
puritanismo e de outros movimentos reformistas radicais, Hartlib não conseguiu
dar sequência ao seu ambicioso programa social e religioso, o que resultou no
drástico enfraquecimento do círculo hartlibiano.
Com a perda de apoio e, principalmente, com o Parlamento agora descom-
prometido com a moção reformista, o grupo de Hartlib viu-se envolto no mais
implacável desapontamento para com o plano de reforma geral. De fato, com o
inevitável restabelecimento da monarquia, em 1660, ocasião em que a dinastia
Stuart voltou ao trono, as aspirações da Commonwealth esvaneceram-se sig-
nificativamente e já não havia mais como evitar a dispersão dos hartlibianos.
Assim, os últimos dias de Hartlib foram marcados pelo isolamento da
vida pública, acarretado, sobretudo, pela perda da pensão que recebia do Par-
lamento e pelas constantes complicações de sua saúde.102 Entretanto, até sua
morte, em 1662, Hartlib não deixou de acreditar no projeto universal instilado
pela fé protestante. Igualmente, acreditou, até o fim, que as ideias presentes em
Macaria poderiam ser desenvolvidas em outro local,103 tendo em vista a nova
configuração política assumida com a ascensão de Charles II ao trono inglês.
Nesse tempo, marcado pelo declive do ideário reformista e pela ascensão
da coroa e do governo episcopal da Igreja da Inglaterra, Comenius encontrava-
-se em Amsterdã, gozando de paz e estabilidade, ainda que frustrado por jamais
ter visto o renascimento de sua pátria, a Morávia, e por não ter conseguido
implantar o seu programa pansófico.
Porém, a partir de 1662, ao tomar conhecimento das conquistas da então
recém-fundada Royal Society, de Londres, Comenius, ainda muito ligado ao
ideário do grupo de Hartlib, voltou a alimentar esperanças na realização da
anelada Reforma Universal. Foi com essa expectativa que retomou os esforços
para publicar seu programa pan-harmônico, escrito entre 1641 e 1642, ou seja,
seu Via Lucis e, sem hesitar, dedicou e enviou quatro exemplares do mesmo,
em 1668, à Royal Society, dois anos antes de sua morte.104

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é difícil perceber que o legado dos hartlibianos não tem, ao longo
do tempo, despertado grande interesse de estudiosos, teólogos, educadores e
historiadores modernos e contemporâneos. Tal desinteresse parte, ao que parece,
de uma difusa tendência dos historiadores em selecionar suas leituras de acordo

102 Ibid., p. 63.


103 TREVOR-ROPER, Religião, reforma e transformação social, p. 215.
104 HALL, Rupert A.; BOAS, Marie. The Correspondence of Henry Oldenburg. Vol. IV (1667-1668).
Madson e Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965, p. 389.

99
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

com a entonação do diapasão e dos sensórios modernos.105 Tal tipótono tem


soado em correntes historiográficas que insistem em ignorar a coexistência de
elementos em períodos de transição, azo em que estudiosos modernos rejeitam
o antigo (ainda que este não tenha se desvanecido totalmente) e elegem o novo
(ainda que este não tenha aflorado plenamente). Em correntes que perseveram
em não perceber que rupturas e continuidades acontecem de forma simultâ-
nea na história, ocasião em que muitos estudiosos passam abruptamente do
inamovível, improgressivo e inalterável para suas antíteses. E ainda, quando
historiografias evitam ao máximo as implicações metafísicas, morais e reli-
giosas, oportunidade em que muitos justificam suas abordagens tendo como
pressuposto a ruptura da anterior confiança em Deus.
Nesse sentido, é provável, infelizmente, que alguns concluam que o curto
sucesso do grupo de Hartlib (apenas durante o auge do puritanismo) prova a
presença de uma espécie de incomensurabilidade entre culturas plenamente
distintas.
É verdade que, se por um lado, deve-se manter distância da incauta pre-
tensão de atribuir ao protestantismo a exclusividade tanto da origem como das
vindimas da nova educação e, sobretudo, da “Ciência Moderna”, por outro,
parece ser de bom alvitre considerar seu envolvimento nos ditames conceituais
que definiam o desígnio cultural e intelectual numa Inglaterra seiscentista.
Assim, apesar de o programa hartlibiano não ter sido adotado na integra
pela Royal Society e de que nem todos os ideais do grupo de Hartlib tiveram
seguimento após a Restauração, uma releitura do protestantismo permitirá
observar algumas franjas conceituais da década de 1640 que sinalizam a
continuidade de certos princípios que alicerçavam a nova cultura. Permitirá,
por exemplo, analisar que o corpus teórico da nova filosofia, utilizado pelos
primeiros membros da Royal Society, ainda abrigava princípios protestantes
que coparticipavam da concepção de ciência.
Não obstante a vigilância dos eruditos modernos em manter distantes
certos aspectos religiosos das discussões filosóficas e históricas, há de se per-
ceber que certos dutos conceituais transmitiam alguns valores, dentre esses os
teológicos, que estavam na base da nova ciência inglesa. Neste caso, permanecia
a convicção de que a natureza é regida por leis inteligíveis, uma vez que fora
criada por um Deus racional e onisciente. Conservava-se o princípio de que a
ciência é um instrumento legitimado pelas Escrituras com vistas a amenizar os
efeitos deletérios do pecado. Mantinha-se ainda a firme motivação do estudo
das ciências naturais no propósito de perscrutar a glória do poder e da sabe-
doria do Criador. Disto são testemunhas alguns protestantes fundadores da

105 ALFONSO-GOLDFARB, Ana M. A magia das máquinas: John Wilkins e a origem da mecânica
moderna. São Paulo: Experimento, 1994, p. 27-28.

100
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 71-102

Royal Society, como John Wilkins, Theodore Haak, Robert Boyle, John Pell,
Jonathan Goddard e Christopher Wren, dentre outros.
De fato, longe de qualquer pretensão de esgotar o assunto, vale lembrar
que a ideia do mandato cultural divino parece ter dado uma motivação redentiva
para que a filosofia natural conhecesse e extraísse a essência das coisas, uma
vez que as ciências deveriam visar os fins proveitosos destinados a mitigar o
sofrimento. De igual modo, com base nesse mesmo mandato, os novos filósofos
tiveram a liberdade de associar a filosofia de Bacon com a visão bíblica da
Queda, o que, tudo indica, contribuiu para que o conhecimento experimental
abrisse as portas para uma ciência frutífera.106
Ademais, não perece ser coerente conceber como irrelevantes os esforços
do grupo de Hartlib sob a consideração pragmática de que seus intentos não
prosperaram a partir do período da Restauração. Nesse caso, talvez seja válido
considerar o quinhão outorgado pelo círculo de Hartlib no enfrentamento do
aristotelismo e do escolasticismo, ainda bastante presentes na educação e na
ciência em meados do século 17. Pois, neste aspecto, parece crível a contribui-
ção que deram para introduzir, na Inglaterra, a aplicabilidade da ciência, tendo
em vista que insistiram em viabilizar o experimento e a técnica no ambiente
acadêmico.
Igualmente, afigura-se pertinente considerar os esforços que a geração
de 1640 canalizou para alavancar a filosofia baconiana, para promover a re-
forma na educação e nas ciências, para impulsionar uma ciência frutífera, para
difundir o conhecimento, etc. Nesse sentido, parece oportuno conceber que
os hartlibianos outorgaram um legado articulado de seus trabalhos universais,
ou seja, delinearam uma amostra de propostas envolvendo a organização do
conhecimento, a distribuição de laborações e ações, a conexão e divulgação
das produções técnicas e da ciência, etc.
E ainda talvez seja justo avaliar que os trabalhos e diligências empreen-
didos ajudaram a proporcionar parte do condicionamento inicial de uma
organização em ciência que a Inglaterra não tinha antes de 1640 e a que, pela
atividade que desempenharam, a geração de 1660 pôde dar prossecução.
Por fim, não é difícil alguém perguntar se a eclosão da nova ciência
poderia ter acontecido sem o engajamento dos hartlibianos ou até mesmo do
protestantismo, tendo em vista a modernidade sustentar o divórcio entre fé
cristã e ciência. É provável que, sob o ponto de vista lógico, alguém se interesse
em responder. Todavia, para a História, não faz muito sentido empenhar-se em
reconstituir uma história diferente da que aconteceu.

106 Nesse sentido, vale lembrar também que a união da ideia baconiana acerca do poder material da
natureza com a visão protestante de regeneração espiritual, intelectual e social colaborou com a afinidade
entre o protestantismo e a ciência.

101
VITOR ALBIERO, OS HARTLIBIANOS E A REFORMA ESPIRITUAL E CULTURAL DA INGLATERRA...

ABSTRACT
Among other reformers, Hartlib’s group, attracted by the principles of the
Protestant Reformation, was among those who wished for a complete reform
in seventeenth-century England. Its members were convinced that Protestant
spiritual and intellectual renewal would provide the basis for a new cultural and
social vision. They believed that the reformulation of the prevailing educational
and philosophical model would leverage English general reform, that is, the
complete reform of religion, culture, politics, economics, and other social de-
mands. The hartlibians stood out among those who hoped that England should
occupy the world center of the dissemination of knowledge, as well as bring
together the Protestant leadership of Europe. During their Puritan effervescence,
its members and supporters intended to foster an environment and occasion
favorable to the intellectual and technical innovations that could advance social
achievements from medicine to mining to agriculture in England. It appears
that the work undertaken between 1640 and 1660 provided part of the initial
arrangement of a systematization in science which England and the world did
not know before the 1640s, and which, by their activity, the Royal Society of
London was able to undertake after 1662.

KEYWORDS
England; Reform; Protestantism; Hartlibians; Education; Science.

102
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

The Meaning of Mυστήρια in 1 Corinthians 14:2


João Paulo Thomaz de Aquino*

ABSTRACT
Mystery (μυστήριον) is a quasi-technical, very important theme in the
New Testament. This article aims to shed some light on the meaning of this
concept in 1Co 14:2. The author defines mystery as “a part of the wise and
sovereign plan of God about the eschaton, which is partially present in the
Old Testament but still hidden, being revealed according to the will of God
only through special revelation.” After presenting four dissonant interpreta-
tions on the subject, the author contends for the concept above in 1 Co 14:2.
The novelty in the article is the concept of mystery as being revealed through
tongues, while at the same time its content remains veiled when the discourse
is not interpreted.

KEYWORDS
1 Corinthians 12-14; Mystery; Gift of tongues.

INTRODUCTION
Benjamin Gladd, in his doctoral dissertation on μυστήριον in 1 Corinthians,
says that “any scholar who has attempted a systematic treatment of the Pauline
μυστήριον stumbles at 1 Cor 13:2 and then really begins to falter around 14:2.”1
Raymond Brown called 1 Cor 14:2 “a very difficult passage”, but also says
that it is “not very important for the Pauline mysterion”.2 G. K. Barker, after

* Ph.D. candidate in Theological Studies, with concentration in New Testament, at Trinity Evan-
gelical Divinity School, Deerfield, Illinois. This article was initially submitted as an academic paper in
October 2015.
1 Benjamin L. Gladd, Revealing the Mysterion: The Use of Mystery in Daniel and Second Temple
Judaism with Its Bearing on First Corinthians (Berlin: Walter de Gruyter, 2009), 191.
2 Raymond E. Brown, The Semitic Background of the Term “Mystery” in the New Testament
(Philadelphia: Fortress Press, 1968), 47. Also quoted in Gladd, Revealing the Mysterion, 191.

103
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

commenting other occurrences 1 Cor, says that “it is even more difficult to de-
termine the force of mystery in 14:2.”3 The meaning of μυστήρια in 1 Cor 14:2
is laconic, indeed. Mystery appears in the plural, it is not defined, and relates
to a phenomenon that is a colossal matter of dispute itself, the gift of tongues.
The fact that the sense of mystery is elusive did not prevent scholars
from proposing variegated meanings for mystery in 1 Cor 14:2. A. E. Harvey,
for example, defends that mysterion in the New Testament is used sometimes
with the Semitic background of raz/sôd and in other instances with influence
of the Greek concept linked to the religions of mystery. The Semitic mystery,
in Harvey’s conception has the idea of a mystery destined to be revealed, while
the Greek conception involves something never to be spoken about or showed,
but to initiates.4 Among the Semitic uses in the NT, Harvey lists Rom 16:25;
1 Cor 2:1-10; 15:51; Eph 1:9; 3:3, 4, 9; 6:19; Col 1:26; Thess 2:7, and the
instances in Revelation (1:20; 17:5, 7). Among the NT uses of mystery with
at least a little influence (“some echo”) of the Greek notion Harvey presents
the use in the gospels (Matt 13:2; Mark 4:11; Luke 8:10); 1 Cor 4:1; 14:2; Eph
5:32, and 1 Tim 3:9, 10.
About 1 Cor 14, after considering that the Corinthian “hearers and readers
may have been particularly well placed to pick up allusions to pagan institu-
tions,” Harvey affirms that there are Greek overtones in this instance because
the mysteries referred in the text are spoken in tongues, making impossible the
public understanding.5 G. W. Barker seems to agree with Harvey since he
affirms that 1 Corinthians 14:2, together with 4:1 and 13:2 presents a polemical
use, “against certain developments within the Christian assembly.”6
Another position is that Paul is using a non-technical aspect of mystery.
Thiselton, for example, says: “Elsewhere Paul often uses this Greek word to
denote what was once hidden but has now been disclosed in the era of escha-
tological fulfillment (cf. 2:1, 7; 4:1; 15:51). However, every writer uses termi-

3 G. W. Barker, “Mystery,” in Bromiley, G. W. The International Standard Bible Encyclopedia


(Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 453.
4 A. E. Harvey, “The Use of Mystery Language in the Bible,” JTS (1980) 31, 330. In another
page Harvey defines the Semitic concept as “a secret design, known only to God, which is due to be
revealed to certain privileged individuals” (329).
5 Harvey proposes the following translation for 1 Cor 14:2: “he speaks only to God, for no one
(else) hears (understands), even though in the spirit he is divulging mysteries!” Harvey, “The use of
mystery,” 332.
6 G. W. Barker, “Mystery,” in G. W. Bromiley, The International Standard Bible Encyclopedia
(Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 453. Barker contends that the New Testamental use of mystery is a
kind of development of the Hellenistic usage. He defines mysterion in the NT as “the secret thoughts,
plans, and dispensations of God, which, though hidden from human reason, are being disclosed by
God’s revealing act to those for whom such knowledge is intended.” He also emphasizes that, although
revealed, mystery keeps being a mystery because of its dependence on God’s act of disclosing it. (452)

104
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

nology in context-dependent ways that may modify a more usual meaning, and
Paul’s usual meaning cannot make sense here without undermining his own
argument.”7 Thus, he agrees with Blomberg that mysteries in 1 Cor 14:2 simply
refer to something that “no one understands.”8 Fee also agrees and presents
the argument that mysteries in the common sense “would scarcely need to be
spoken back to God”.9 Ciampa aligns himself with this understanding making
clear that mysteries in 1 Cor 14 are the result of revelation, but the person who
speaks them does not understand:

In marked contrast, those who speak in tongues are not given any special
understanding of mysteries (at least not as part of that particular gift), but the
ability to speak them to God... In fact, not only are they expressing content,
but it is Spirit-inspired content of the type that a prophet could only dream of
comprehending!10

Finally, a very specific interpretation is defended by Gladd who says that


1 Cor 14:2 “probably refers to an individual participating in angelic worship,
similar to the situation at Qumran in the songs of sabbath sacrifice”.11 Bock-
muehl defends this same interpretation.12
There are, therefore, different ways to understand mysteries 1 Corinthians
14:2: (1) a Greek conception of mysteries as secrets related to pagan religions;
(2) the non-technical use of mystery referring to something not understandable;

7 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text
(Grand Rapids, Eerdmans, 2000), 1085.
8 Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 236. See also C. K. Barrett,
A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row, 1968), 100; Ben
Witherington III, Conflict and Community in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2
Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 281. D. A. Carson, Showing the Spirit: A Theological
Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987), 101-102.
9 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 656.
Calderón also agrees with this interpretation: “Sin embargo, en armonía com el uso mas general del
término por Pablo, quizá deba entenderse como verdades o realidades profundas que la persona solo
comparte com Diós y que otros, incluso cristianos, no entienden.” Carlos Calderón, “Comentário Exe-
gético a 1 Coríntios 14 (Primera de dos partes),” Kairós 43 (2008), 47.
10 Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans,
2010), 671.
11 Gladd, Revealing the Mysterion, 2009, 265.
12 “But if Paul in 1 Cor 14:2 refers to the charismatic worshipper conversant in ‘tongues of angels’
(13:2) as one who ‘speaks mysteries’ to God in his spirit, it seems a reasonable working hypothesis to
locate such notions – at least in Paul’s mind – in the realm of Jewish apocalyptic and early mysti-
cism (cf. on 2 Cor 12:1ff. bellow). The apostle is asking those who gaze upon the heavenly mysteries
to respect the edification of the church and to limit their use of this gift in corporate worship to those
instances when the meaning can be intelligibly communicated (and thus fully revealed) to all congrega-
tion.” Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism and Pauline Christianity
(Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 170.

105
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

(3) mysteries as things hidden but now revealed just to the one who speaks;
and (4) mysteries as the content of the angelic worship.
Thus, in what follows, I aim to clarify the use of mystery in 1 Cor 14:2 in
the following steps: (1) I will investigate the Pauline use of the term mystery
in all its occurrences; (2) and analyze 1 Cor 14:1-5 with special reference to
the relation between mystery and the phenomenon of speaking in tongues. Be-
cause of restraints of space I will proceed with this analysis in an introductory
manner and keep my focus solely on Paul.

1. MYSTERY IN PAUL
The first occurrence of mystery in the Pauline letters in canonical order
is in Romans 11:25: “Lest you be wise in your own sight, I do not want you
to be unaware of this mystery, brothers: a partial hardening has come upon
Israel, until the fullness of the Gentiles has come in”.13 Beale and Gladd affirm
that the mystery here is the reversion of the expectation that Gentiles would
come to the Lord through the Jews.14 This position is exaggeratedly narrow.
There are more hidden things than the order of salvation in Romans 11. I agree
with Schreiner that “the partial hardening and future salvation of Israel are
part of the content of the mystery that has previously been hidden but is now
revealed” (italics mine).15
Rom 11:25 opens a concluding paragraph to the section that started in
chapter 9. Paul deals with the hardening of the Jews, God’s anger, rejection,
and sovereignty, the salvation of the Gentiles through Christ because of the
hardening of the Jews, and finally the salvation of the Jews through Christ
because of the jealousy of the Gentiles. Paul presents all as God’s intended
and hidden-for-long-time plan, i.e., the mystery of Rom 11:25.16
In Rom 16:25-26 Paul again uses the mystery in a concluding statement
and a very compact one. The revelation of the mystery is used as a measure
in which God will strengthen the Romans. Firstly, mystery is equalized in a

13 All biblical quotations are from the English Standard Version (ESV), unless informed otherwise.
14 G. K. Beale and Benjamin L. Gladd, Hidden but Now Revealed: A Biblical Theology of Mystery
(Downers Grove: IVP Academic, 2014), 88.
15 Thomas R. Schreiner, Romans (Grand Rapids: Baker, 1998), 821.
16 Santos sums it up by saying: “In this passage, the mystery is that: a) Israel has experienced a
hardening in part until the full number of Gentiles has come in, and b) all Israel (i.e. the remnant and
the Gentiles) will be saved.” Daniel Santos, “The Meaning of Mystery in Romans 11:25,” Fides
Reformata 17 (2012): 45-59. I think Santos is right in his reading of the text, but in the interpretation of
“all Israel” as referring to the church. With Murray I think it refers to ethnic Israel: “Both elements are
clearly expressed: the hardening of Israel is partial not total, temporary not final, ‘in part’ indicating the
former, ‘untill the fullness of the Gentiles be come in’ the latter. The restoration of Israel was implied
in verse 24 but not categorically stated. Now we have express assurance. The word ‘mystery’ is itself
certification of the assurance which divine revelation imparts”. John Murray, Romans (Grand Rapids:
Eerdmans, 1997), 92-93.

106
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

parallelistic way with “my gospel and the preaching of Jesus Christ.” Secondly,
it is said that it was kept secret for long ages. Thirdly, it has been disclosed,
and fourthly is has been made known to all nations.17
In Romans, then, mystery is a summarized way to speak about God’s
sovereign plan in the history of salvation as it has its fulfillment in Jesus
Christ, its centripetal center. This plan is both revealed and concealed in the
Old Testament and is exposed by God through Paul. It can refer specifically
to God’s plan of hardening the Jews, followed by the salvation of Gentiles,
followed by the salvation of the Jews or more broadly to the gospel that Paul
preaches (the great subject of Romans).
There are five occurrences of mystery in 1 Corinthians (2:7; 4:1; 13:2;
14:2, and 15:51) and one which is text-critically disputed (2:1).18 My literal
translation for 1 Cor 2.1-2 is “And even I, when I went to you, brothers, I went
not according to superiority of word or of wisdom, proclaiming to you the
mystery of God. For I judged not to know anything among you, except Jesus
Christ and this one crucified”.19 Here, Paul qualifies the mystery as being “of
God,” opposes it to “superiority of word or of [human] wisdom” and, then,
explains it in verse two as Jesus crucified.
The next occurrence happens in 1 Cor 2:7. The main concept of 2 Cor
2:6-10 is not mystery, but wisdom.20 Paul opposes the concept of wisdom
of his age with “θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην.” The ESV
translates it as “hidden wisdom of God in a secret” and the NIV as “God’s
wisdom, a mystery”.21 Gladd favors the interpretation “wisdom of God, hidden
in a mystery” (NET).22 Bockmuehl understands this occurrence in the light of
Qumran as referring to “God’s eschatological design for the salvation of His
people.”23 He also says that this mystery is related to salvation through the

17 See Grant R. Osborne, Romans (Downers Grove: InterVarsity Press, 2010), 417.
18 We will consider 1 Cor 2:1 as having a reference to mystery based in the defense present in
Gladd, Revealing the Mysterion, 123-126. See also Raymond F. Collins and Daniel J. Harrington, First
Corinthians (Collegeville: Liturgical Press, 1999), 118.
19 My literal translation of GNT, 4th ed.: Κἀγὼ ἐλθὼν πρὸς ὑμᾶς, ἀδελφοί, ἦλθον οὐ καθʼ ὑπεροχὴν
λόγου ἢ σοφίας καταγγέλλων ὑμῖν τὸ μυστήριον τοῦ θεοῦ. οὐ γὰρ ἔκρινά τι εἰδέναι ἐν ὑμῖν εἰ μὴ Ἰησοῦν
Χριστὸν καὶ τοῦτον ἐσταυρωμένον.
20 15 occurrences in 1:17—2:13.
21 See commentaries on the text and translations in Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the
Corinthians: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), 241ss.
22 Gladd, Revealing the Mysterion, 123-133. “The mystery is the exalted, kingly Messiah affixed
to the cross” (156). Carson also defends that “ἐν μυστηρίῳ” is qualifying “σοφίαν” instead of “τὴν
ἀποκεκρυμμένην”. D. A. Carson, “Mystery and Fulfillment: Toward a More Comprehensive Paradigm
of Paul’s Understanding of the Old and the New”. In D. A. Carson, Peter Thomas O’Brien, and Mark
A. Seifrid. Justification and Variegated Nomism. Vol. 2 (Tübigen: Mohr Siebeck, 2001), 417.
23 Bockmuehl, Revelation and Mystery, 161.

107
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

cross still to be completed.24 Mystery, I think, is the way in which the wisdom
of God is hidden. This wisdom in mystery was foreordained before the ages,
was related to Christ as Savior, and was revealed by the Spirit. What is mys-
tery, then, in Corinthians 2? I agree with Gladd that in this chapter mystery is
a specific reference to the crucifixion of the king Jesus.25
Many commentators see the meaning of mystery in the next occurrence,
1 Cor 4:1, in which Paul presents himself as οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ,
as referring to the gospel revealed in Jesus Christ.26 But these judgements
are based more on the content of mystery in 1 Corinthians 2 than on the text
itself. That is the problem with the occurrences of mystery in 1 Cor 4:1; 13:2
and 14:2. They are the only Pauline occurrences in the plural and they do not
have much in the context to explain their content. In the next section we will
deal with these instances.
First Corinthians 15:51-52 is another instance which has a clear definition
of a specific mystery. “Behold! I tell you a mystery. We shall not all sleep, but we
shall all be changed, in a moment, in the twinkling of an eye, at the last trumpet.
For the trumpet will sound, and the dead will be raised imperishable, and we
shall be changed.” Garland says correctly that in this text “the mystery is not
that the living and the dead will be on a pair with one another at the parousia,
but that both the living and the dead will undergo the prerequisite transforma-
tion so that they can attain incorruptibility and immortality.”27 Gladd presents
as an error the proposal that just the transformation of the living without the
dead is the mystery referred by Paul.28
Mystery appears six times in Ephesians. O’Brien defends the first (1:9)
as being the most important.29 In this text Paul defines the revelation of the
mystery as the way in which God lavished upon the Ephesians the riches of
his grace “in all wisdom and insight”. This mystery made known according
to the purpose set forth in Christ was a plan for the fullness of time. This plan
and will was the unification of all things in heaven and earth in Christ.30

24 Ibid., 165-166.
25 Gladd, Revealing the Mysterion, 123-153.
26 C. K. Barrett, A Commentary on the First Epistle to the Corinthians (New York: Harper & Row,
1968), 100; Richard L. Pratt and Max E. Anders, I & II Corinthians (Nashville: Broadman & Holman,
2000), 60; Roy E. Ciampa and Brian S. Rosner, The First Letter to the Corinthians (Grand Rapids:
Eerdmans, 2010), 170; Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids: Zondervan, 1994), 29.
27 Garland, 1 Corinthians, 743.
28 Gladd, Revealing the Mysterion, 249-254.
29 Peter Thomas O’Brien, The Letter to the Ephesians (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 110.
30 “The mystery which God has graciously made known refers to the summing up and bringing
together of the fragmented and alienated elements of the universe (‘all things’) in Christ as the focal
point.” O’Brien, Ephesians, 112. In this same tone, Hoehner comments: “In summary, believers have
experienced the abundance of God’s grace in the redemption of Chirst and in provision of all insight

108
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

Ephesians 3 presents one of the clearest texts about the mystery in Paul.
The revelation of the mystery is equalized with the stewardship of God’s
grace. The way Paul gained knowledge of the mystery was through revelation
and because of that Paul has insight into the mystery of Christ (Christ as con-
tent). This mystery was kept hidden from the prior generations, “but now” was
revealed to the apostles and prophets through the Holy Spirit. Finally, in verse
6 Paul explicits what is the mystery: “the Gentiles are fellow heirs, members
of the same body, and partakers of the promise in Christ Jesus through the
gospel”. Note that considering what Paul said about the mystery in Eph 1:9,
this definition is only part of the whole mystery.
Hoehner, after presenting an encyclopedia-like explanation of the term,
says that “in Ephesians the mystery is that believing Jews and Gentiles now are
one in the body of Christ”. He contends the use in 5:32 is different from other
instances in the letter.31 Beale and Gladd affirm that the mystery in Eph 5:32
is that the union of the first couple in marriage typologically represents Christ
and the church.32 This is too narrow. Although this idea is part of the mystery,
mystery in Eph 5:32 points to the fact that all marital union is made to reflect
Christ and the church and only in doing that it finds real unity. In sum, in line
with Eph 1.9, Christ is the one who sums up man and woman in marriage.
The last instance of mystery in Ephesians is in 6:19-20: “and [pray]
also for me, that words may be given to me in opening my mouth boldly to
proclaim the mystery of the gospel, for which I am an ambassador in chains,
that I may declare it boldly, as I ought to speak.” After defining mystery in
3:6, Paul says: “Of this gospel I was made a minister”. Although he does not
use the term gospel in chapter one, he uses mystery in the context of defining
redemption (1:7). Therefore, mystery of the gospel here refers to the same
concept of chapter 3.
Mystery is a broad concept in Ephesians which speaks a about the uni-
fication of everything in and with Christ in the fullness of time: heavenly and
earthly things, Jews and Gentiles, husband and wife, and Christ and the church.
The mystery is well explained by Thielmann who affirms that in the due time
“Christ will emerge as the organizing principle of all creation”.33

and wisdom. This wisdom and insight have made known to them the secret plan of God, namely, that at
the fullness of time God will unite in his dear Son Christ all the things in heaven and on earth.” Harold
W. Hoehner, Ephesians: An Exegetical Commentary (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), 225.
31 Hoehner, Ephesians, 432-433.
32 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 181.
33 Frank Thielman, Ephesians (Grand Rapids: Baker Academic, 2010), 67. Beale and Gladd put
it nicely also: “The main focus of the revelation of the mystery is that Christ is the point of reintegration
and restaurantion of the original cosmic unity and harmony that had been lost at the fall of humanity, a
fragmentation that had affected not only earthly but also the heavenly realm.” Beale and Gladd, Hidden
but Now Revealed, 150.

109
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

There is a double occurrence of mystery in Colossians 1. In the context


Paul is again speaking about his ministry (stewardship from God that was given
to me). Mystery in Col 1:26 is an explanation for the “complete understanding
of the word of God” in the prior verse.34 This mystery was “hidden for ages
and generations but now is revealed to his saints”. In Col 1:27 Paul defines
mystery: “Christ in you, the hope of glory.” Dunn incurs in illegitimate totality
transfer when he affirms that in this text “the mystery of how the cosmos was
created and holds together is personalized: ‘Christ in (each of) you’.”35 As the
context makes clear, Paul is highlighting the Gentiles as the ones to whom
Christ became the hope of glory. Thus, mystery here is the salvation of the
Gentiles through union with Christ.36
In Col 2:2-3, Christ is the mystery: “to reach all the riches of full assuran-
ce of understanding and the knowledge of God’s mystery, which is Christ, in
whom are hidden all the treasures of wisdom and knowledge.” Witherington
III is partially right in his assessment: “So, the secret is less a set of ideas than
a person and what God has done, is doing and will do through that person,
Jesus Christ.”37 The secret is both.
Similar to the last occurrence in Ephesians, Paul asks the Colossians
(4.3-4) to pray that God open a door for the word, which would be an oppor-
tunity to declare the mystery of Christ. There is here, again, an intimate rela-
tionship between the mystery, the word of God, and Paul’s ministry.
Hence, in Colossians the mystery is the full comprehension of the Word
of God that was hidden but is now revealed to the saints, being both a concept
that Paul wants to preach and an existential relationship with Christ, the hope,
and the personified mystery.38
There is only one instance of mystery in 2 Thess (2:7): “For the mystery
of lawlessness is already at work. Only he who now restrains it will do so
until he is out of the way.” Paul’s focus is still the end of time, but now he

34 Not just for the word of God. Contra Margaret Y. MacDonald and Daniel J. Harrington,
Colossians and Ephesians (Collegeville: Liturgical Press, 2000), 80, and Douglas J. Moo, The Letters
to the Colossians and to Philemon (Grand Rapids: Eerdmans, 2008), 155.
35 James D. G. Dunn, The Epistles to the Colossians and to Philemon: A Commentary on the Greek
Text (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), 122.
36 Bockmuehl prefers the translation “Christ among you” instead of “Christ in you”. He sees two
levels of identification of mystery in Collosians 1–2: (a) the word of God, meaning the gospel and its
proclamation, and (b) the salvation of the Gentiles. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery
in Ancient Judaism and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 185-186.
37 Ben Witherington III, The Letters to Philemon, the Colossians, and the Ephesians: A Socio-
Rhetorical Commentary on the Captivity Epistles (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), 147.
38 “Full knowledge of ‘the mystery of God’ i.e., the sum of God’s salvific purposes, is equivalent
to full knowledge of Christ who resides in heaven and with whom the believer’s future life of glory is
already stored up.” Bockmuehl, Revelation and Mystery, 193.

110
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

presents a negative aspect of it.39 Again, the explanation of Beale and Gladd
is more narrow than it should be: “the revealed mystery is that the prophecy of
Daniel is beginning unexpectedly because the latter day foe has not yet come
in bodily form, yet he is already inspiring his ‘lawless’ works of deception and
persecution.”40 Green, on another hand, completely misses the point when he
says that mystery is related with “secret and sacred rites of various religions
of that era, and it is likely that Paul had some such cult in mind”.41 Weima
interprets the text as “the mystery which is lawlessness” and adheres to the
interpretation of mystery as something that was secret but it is now revealed. He
stresses that even revealed, it is still hidden in his operation and not completely
possible of understanding, even for those who have access to the revelation.42
There are two instances of mystery in 1 Timothy, both in chapter 3. The
first (1 Tim 3.9) is a laconic one affirming that the deacons are supposed to
“hold the mystery of the faith with a clear conscience.” The second is in 1 Tim
3.16 and is called “μέγα… εὐσεβείας μυστήριον”, which should be confessed.
The creedal statement that follows is the definition of this mystery of godli-
ness: “He was manifested in the flesh, vindicated by the Spirit, seen by angels,
proclaimed among the nations, believed in the world, taken up in glory.” Beale
and Gladd point that exist two parts in the mystery as presented in 1 Timothy.
First, “that Christ functions as God and is now the object of personal faith and
trust.”43 The second part of the mystery is that “Christ’s resurrected existence
would not assume the body of old earthly existence, but would be fashioned
after a new body far more glorious.”44 This conception, although bringing im-
portant insights to aspects of the mystery in 1 Timothy, is not exactly how Paul
uses the term. Tower is nearer of the Pauline use when he defines: “Here the
term mystery describes the apostolic faith in Pauline terms as the revelation of
salvation in Christ as proclaimed in his gospel.”45 Broader still is the definition
of Knight III: “the revealed truth of the Christian faith”.46 About the second
reference to mystery he says that it means “the revelation of Jesus Christ in
which Christian existence has its origin.”47

39 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 215.


40 Ibid.
41 Gene L. Green, The Letters to the Thessalonians (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), 317.
42 Jeffrey A. D. Weima, 1-2 Thessalonians (Grand Rapids: Baker, 2014), Kindle edition, 13041.
Weima quotes Witherington III on this. Ben Witherington III, 1 and 2 Thessalonians: A Socio-Rhetorical
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 222.
43 Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 249. Italics original.
44 Ibid., 255.
45 Philip H. Towner, The Letters to Timothy and Titus (Grand Rapids, Eerdmans, 2006), 264.
46 George W. Knight, The Pastoral Epistles: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids:
Eerdmans, 1992), 169.
47 Towner, The Letters to Timothy and Titus, 277.

111
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

What is the result of this introductory analysis?


Mystery receives a few complements in Paul, being defined as “τὸ
μυστήριον τοῦ θεοῦ” (1Cor 2:1), “μυστηρίων θεοῦ” (1 Cor 4:1), “τὸ μυστήριον
τοῦ θελήματος αὐτοῦ” (Eph 1:9), “τῷ μυστηρίῳ τοῦ Χριστοῦ” (Eph 3:4),
“μέγα” (Eph 5:32), “μυστήριον τοῦ εὐαγγελίου” (Eph 6:19), “τοῦ μυστηρίου
τοῦ θεοῦ” (Col 2:2), “τὸ μυστήριον τοῦ Χριστοῦ” (Col 4:3), “μυστήριον…
τῆς ἀνομίας” (2 Thess 2:7), “τὸ μυστήριον τῆς πίστεως” (1 Tim 3:9) and “μέγα
ἐστὶν τὸ τῆς εὐσεβείας μυστήριον” (1 Tim 3:16).
Besides that, that are times in which Paul clearly presents the content of
the mystery. In Rom 11:25 the mystery is that “a partial hardening has come upon
Israel, until the fullness of the Gentiles has come in”. In 1 Cor 15:51-52, “We
shall not all sleep, but we shall all be changed, in a moment, in the twinkling
of an eye, at the last trumpet. For the trumpet will sound, and the dead will be
raised imperishable, and we shall be changed.” In Eph 1.9-10 the mystery is
defined as “to unite all things in him, things in heaven and things on earth”,
in Eph 3:6 as “the Gentiles are fellow heirs, members of the same body, and
partakers of the promise in Christ Jesus through the gospel” and in 5:32 as
“Χριστὸν καὶ εἰς τὴν ἐκκλησίαν”. In Col the mystery is defined as “Christ in
you, the hope of glory” (Col 1:27) and in 2:2 just as “Christ”. The last direct
definition we have of the mystery in Paul is in 1 Tim 3:16: “He was manifested
in the flesh, vindicated by the Spirit, seen by angels, proclaimed among the
nations, believed on in the world, taken up in glory.” These definitions should
prevent us from defining mystery as only the hidden part of the revealed kno-
wledge, as does Beale and Gladd, although the exercise is valid.
Carson presents the characteristics of mystery in Paul as being related
to revelation, hidden in the Torah, dealing with theodicy, focusing “primarily
on the justification of God in the gospel of a crucified Messiah (1 Cor 2:6-10;
cf. 2 Cor 4:3-18), but also in revelation concerning the divine reasoning behind
the hard-heartedness of Israel (Rom 9–11),” and with an eschatological di-
mension.48
Mystery is a technical term in Paul. The standard definition of mystery as
hidden but now revealed is not precise. Since the context speaks many times
about the revelation of the mystery, this means that for Paul the revelation is
not part of the concept of mystery, but what God can make to make the know-
ledge of the mystery available to his saints. Without revelation the mystery
is wrapped in hiddenness and ignorance.49 Even present in the Old Testament

48 Cason, “Mystery and Fulfillment”, 414-415.


49 The terms used by Paul to speak about revelation of the mystery are: ἀποκάλυψις (Rom 16:25;
Eph 3:3), φανερόω (Rom 16:25; Col 1:26; Col 4:4), and γνωρίζω (Rom 16:25; Eph 1:9; 3:3; Col 1:27),
γινώσκω (1 Cor 2:8), ἀποκαλύπτω (1 Cor 2:10; Eph 3:5; 2 Thess 2:6, 8), λέγω (1 Cor 15:51; Col 4:3-4),
φωτίζω (Eph 3:9). The expression Paul uses in Colossians is worthy noticing as the result of the revela-

112
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

and revealed in the New Testament, the mystery still carries the idea of con-
tinuous hiddenness.50 The mystery is part of the eschatological plan of God.51
The work of Christ is the center of the mystery.52 The Spirit is the main person
responsible for its revelation.53 The mystery is connected with the wisdom of

tion of the mystery: “εἰς πᾶν πλοῦτος τῆς πληροφορίας τῆς συνέσεως, εἰς ἐπίγνωσιν τοῦ μυστηρίου τοῦ
θεοῦ”. In Rom 16:25 the target of this revelation are “πάντα τὰ ἔθνη”. The recipients of this revelation
in Ephesians 3:5 are “τοῖς ἁγίοις ἀποστόλοις αὐτοῦ καὶ προφήταις ἐν πνεύματι” and in Eph 3:10-11 the
church is the medium through which the wisdom of God is publicized “ταῖς ἀρχαῖς καὶ ταῖς ἐξουσίαις
ἐν τοῖς ἐπουρανίοις”. In Col 1:26 the mystery is revealed “τοῖς ἁγίοις αὐτοῦ”. In other ocurrences,
the mystery is revealed to those brothers ans sisters. The expressions used to speak about hiddenness
and ignorance are: ἀγνοέω (Rom 11:25); “χρόνοις αἰωνίοις σεσιγημένου” (Rom 16:25); ἀποκρύπτω
(1 Cor 2:7; Eph 3:9; Col 1:26); “ἣν οὐδεὶς τῶν ἀρχόντων τοῦ αἰῶνος τούτου ἔγνωκεν” (1 Cor 2:8); “Ἃ
ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς
ἀγαπῶσιν αὐτόν Ἃ ὀφθαλμὸς οὐκ εἶδεν καὶ οὖς οὐκ ἤκουσεν καὶ ἐπὶ καρδίαν ἀνθρώπου οὐκ ἀνέβη, ἃ
ἡτοίμασεν ὁ θεὸς τοῖς ἀγαπῶσιν αὐτόν” (1 Cor 2:9); and “ὃ ἑτέραις γενεαῖς οὐκ ἐγνωρίσθη τοῖς υἱοῖς
τῶν ἀνθρώπων” (Eph 3:5).
50 Revealed in the Old Testament: in Rom 11:25-27 Paul connects the mystery to Isa 59:20-21 and
Jer 31:33-34 using the formula “καθὼς γέγραπται”. In Rom 16.25-27 Paul says that now the mystery
has been revealed through the “γραφῶν προφητικῶν”. In the context of 1 Cor 15.51, Paul quotes Isa
25:8 and Hos 13:14 introducing it formally with “τότε γενήσεται ὁ λόγος ὁ γεγραμμένος” (cf. 1 Cor
15:54-55). For a deeper view on this matter and more occurrences, see Beale and Gladd, Hidden but
Now Revealed. On the aspect of the mystery as being still hidden even after revealed, Beale and Gladd
comment: “The term mystery appears to possess two levels of hiddenness: ‘temporary hiddenness’ and
‘permanent hiddenness.’ By ‘temporary hiddenness’ we mean the partially hidden nature of revelation
that is undisclosed over a period of time that eventually gives way to a final, more complete form of
revelation. ‘Permanent hiddenness,’ on the other hand, is more concerned with the ongoing hidden nature
of mystery. Even when the revelation has reached its completed state of disclosure, the fuller meaning
of the revelation remains elusive to some individuals.” Beale and Gladd, Hidden but Now Revealed, 60.
See also Carson, “Mystery and Fulfillment,” 432.
51 The aspects of the mystery related to eschatology and God’s sovereignty are commonly inter-
connected: Rom 11:25-27 shows this characteristic in the context, but also in the use of the expression
“πλήρωμα τῶν ἐθνῶν”. Rom 16:25 uses the expression “φανερωθέντος δὲ νῦν”. 1 Cor 2:7 focuses more
on the sovereignty: “ἣν προώρισεν ὁ θεὸς πρὸ τῶν αἰώνων εἰς δόξαν ἡμῶν”. Eph 1:9-10 presents both
aspects: “κατὰ τὴν εὐδοκίαν αὐτοῦ ἣν προέθετο ἐν αὐτῷ εἰς οἰκονομίαν τοῦ πληρώματος τῶν καιρῶν”,
3:5 uses the eschatological “ὡς νῦν ἀπεκαλύφθη” and 3:9-11 “μυστηρίου τοῦ ἀποκεκρυμμένου ἀπὸ τῶν
αἰώνων ἐν τῷ θεῷ τῷ τὰ πάντα κτίσαντι… κατὰ πρόθεσιν τῶν αἰώνων ἣν ἐποίησεν ἐν τῷ Χριστῷ Ἰησοῦ
τῷ κυρίῳ ἡμῶν”. In Col 3:25-26, “τὸ μυστήριον”is an appositive to “τὸν λόγον τοῦ θεοῦ” and God is
the one who reveals it “νῦν δὲ”. For this reason, the mystery is called mystery of God a few times.
52 It is evident that Christ is the center of the concept of mystery in the definitions and when
the mystery is defined as mystery of Christ. There are other evidences also: In Rom 11:25 Christ is “ὁ
ῥυόμενος”. In 2 Cor 2 the crucifixion has a special focus (1 Cor 2:2; 8). In 1 Cor 15 Christ is the one
in whom believers have victory (1 Cor 15:57). Ephesians affirms that the purpose of the ages was
made in Jesus Christ (Eph 3.11). In Col 2:3, after being defined as the content of the mystery, Christ is
presented as the one “ἐν ᾧ εἰσιν πάντες οἱ θησαυροὶ τῆς σοφίας καὶ γνώσεως ἀπόκρυφοι”. Christ is the
one who “ἀνελεῖ τῷ πνεύματι τοῦ στόματος αὐτοῦ καὶ καταργήσει τῇ ἐπιφανείᾳ τῆς παρουσίας αὐτοῦ”.
53 1 Cor 2.1-10; 13–14; and Eph 3:5 make this point clear.

113
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

God which he wants to share with his servants.54 It is in this sense that Paul
connects himself to the mystery of God.55
Therefore, mystery in Paul is a part of the wise and sovereign plan of
God about the eschaton, which is present in part in the Old Testament but still
hidden, being revealed according to the will of God only through special re-
velation. In the next section we will analyze how this definition can help our
understanding of mysteries in 1 Cor 14:1-2 and how this text can illuminate
our comprehension of mystery.

2. FIRST CORINTHIANS 14:1-556


Paul starts this pericope with an imperative that connects it with the
prior chapter, in which love is presented as a καθʼ ὑπερβολὴν ὁδὸν (far ex-
celling way, 1 Cor 12:31). 1 Corinthians 12–14 forms a section that uses the
ABA structure, which is very common in 1 Corinthians.57 This first verse
of chapter 14, indeed, connects the whole section presenting “pursue the
love” (chapter 13) and “eagerly desire the spiritual [gifts]” (chapter 12) as
parallel ideas.58 The μᾶλλον δὲ (but specially) introduces what Paul mainly

54 In 1 Cor 2 there is a clear opposition between the “σοφίᾳ ἀνθρώπων” (1Cor 2:5) on one side and
“θεοῦ σοφίαν ἐν μυστηρίῳ τὴν ἀποκεκρυμμένην” (1 Cor 2:7) and “σοφίαν δὲ οὐ τοῦ αἰῶνος τούτου,”
on the other (1 Cor 2:6). In Eph 3:10 mystery appears related to “πολυποίκιλος σοφία τοῦ θεοῦ”. On
the other hand, Rom 11:25-27 presents the opposite side of the wisdom of God as “ἑαυτοῖς φρόνιμοι”.
55 In Rom 16:25, Paul equates mystery with “εὐαγγέλιόν μου”. In 1 Cor 4:1 he calls himself an
“οἰκονόμους μυστηρίων θεοῦ”. In Eph 3:2 Paul quotes “τὴν οἰκονομίαν τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ τῆς δοθείσης
μοι εἰς ὑμᾶς, [ὅτι] κατὰ ἀποκάλυψιν ἐγνωρίσθη μοι τὸ μυστήριον”. In Eph 6:19-20 Paul presents himself
as an “πρεσβεύω ἐν ἁλύσει” of “τὸ μυστήριον τοῦ εὐαγγελίου”. In Col 1:25, Paul is the “διάκονος κατὰ
τὴν οἰκονομίαν τοῦ θεοῦ” and in 4:2 he asks the Colossians to pray that he can “λαλῆσαι τὸ μυστήριον
τοῦ Χριστοῦ”.
56 My literal translation of the text is: “1 Pursue the love, eagerly desire the spiritual [gifts], but
specially in order that you might prophesy 2 for the one who speaks in tongue does not speak to men,
but to God, for no one listens, but in spirit he speaks mysteries. 3 But the one who prophesies to men
speaks edification, exhortation and consolation. 4 The one who speaks in tongues edifies himself, but
the one who prophesies edifies the church. 5 But I want that all of you speak in tongues, but even more
that you prophesy. But greater is the one who prophesies than the one who speaks in tongues unless he
interprets in order that the church receives edification.”
57 José Enrique Aguilar Chiu, 1 Cor 12-14: Literary Structure and Theology (Roma: Pontificio
Istituto Biblico, 2007). It is also worth noting that 12.31 and 14.1 form an inclusio to chapter 13. See
Gordon D. Fee. The First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 1987), 654. See also
Camille Focant, “1 Corinthiens 13: Analyse Rhétorique et Analyse de Structures,” in R. Bieringer, The
Corinthian Correspondence (Leuven: University Press, 1996), 199-245.
58 Speaking about the second imperative of the text, Fee comments: “What must be emphasized
is that this imperative is now to be understood singularly in light of the exhortation to love that has
preceded it. If the two imperatives are not kept together, the point of the entire succeeding argument is
missed.” He also defines “τὰ πνευματικά” as different from “τὰ χαρίσματα” in the sense that the last
is more generic and the first applies specifically to “utterances inspired by the Spirit”. Fee, The First
Epistle to the Corinthians, 654-655.

114
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

wants to tackle, that the spiritual gift of prophecy should be preferred to the
gift of speaking in tongues.
This chapter clearly concerns the public worship and values the edification
of all members.59 In this context, the gift of prophecy should be preferred to
tongues. The problem is that both these gifts have a hotly debated meaning.
The Pentecostal view of prophecy is that it comprehends “spontaneous,
Spirit-inspired, intelligible messages, orally delivered in the gathered assembly,
intended for the edification or encouragement of the people.”60 The Reformed
position affirms that prophecy is “healthy preaching, proclamation, or teaching
pastorally applied for the appropriation of gospel truth and gospel promise, in
their own context of situation, to help others.”61 There are more views in the
middle positions.62 In general I agree with Grudem’s proposal, which affirms
that the New Testament prophecy was different from the Old Testament
prophecy in the level of authority, being a message from God interpreted and
announced by human and fallible efforts.63 It is worth noticing that Paul starts
1 Corinthians 13 speaking about tongues and prophecy and it is impossible that
he is using them there in a way completely disconnected with the realities of
these spiritual gifts. He is using them hyperbolically, but even in his hyperbole
it is possible to learn more about these gifts. Thus, we can understand 1 Cor
13 as teaching that the gift of prophecy in its full capacity (hyperbole) gives
to the receiver understanding of all mysteries and all knowledge. It is possible,
then, to imply that a partial gift of prophecy gives to the receiver some unders-

59 Maybe exaggerating a little, Conzelmann says: “Thus, the gifts are evaluated in Corinth
according to the intensity of the ecstatic outburst; in fact, even according to the degree of unintelligibility.
The latter is considered to be an indication of the working of supernatural power. Hans Conzelmann,
1 Corinthians: A commentary on the First Epistle to the Corinthians (Philadelphia: Fortress Press, 1975),
233-234.
60 Fee, The First Epistle to the Corinthians, 505. See also Ben Witherington, Conflict and Community
in Corinth: A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Eerdmans,
1995), 280.
61 Anthony C. Thiselton, The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text
(Grand Rapids, Mich: Eerdmans, 2000), 1084. See also Simon Kistemaker, 1 Corinthians (Grand Rapids:
Baker, 1993), 479-480.
62 “New Testament prophecy therefore included both conventional preaching, when the preacher
had the sense of being gripped and convicted by the Spirit about his or her message, and more sponta-
neous, unpremeditated utterances.” Craig Blomberg, 1 Corinthians (Grand Rapids, Mich: Zondervan,
1994), 212.
63 “But the prophecy we find in 1 Corinthians is more like the phenomena we saw in extra-Biblical
Jewish literature: it is based on some type of supernatural ‘revelation,’ but that revelation only gives it
a kind of divine authority of general content. The prophet could err, could misinterpret, and could be
questioned or challenged at any point. He had a minor kind of ‘divine’ authority, but it certainly was
not absolute.” Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Washington, D.C.: University
Press of America, 1982), 74.

115
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

tanding of mysteries and/or knowledge. Paul also presents in 1 Cor 13:8-9 the
temporary character of both prophesying and speaking in tongues.
It essential to understand the phenomenon of speaking in tongues in order
to make sense of mysteries in 1 Cor 14. Spiritual gifts are a manifestation of
empowerment of the Spirit on the believer (12:4, 7, 11) that happens under the
supervision of the Lord Jesus (12:5). The source of the power is God (12:6).
Spiritual gifts are given for the edification of the whole body of Christ. The-
refore, nobody should feel shame or pride because of his or her gifts (12:14-26).
There is a gradation of gifts and the higher ones are those which edify the
church the most. Those should be eagerly desired (12:31; 14:1). Spiritual gifts
should be evaluated and used in a context of love (1 Cor 13).64
Variety of tongues (ἑτέρῳ γένη γλωσσῶν) is a spiritual gift along with
the interpretation of tongues (ἄλλῳ δὲ ἑρμηνεία γλωσσῶν) (12:10). What Paul
speaks about tongues? Tongues do not communicate to men because no one
can understand and their content are mysteries (14:2). The one who speaks in
tongues builds up himself (14:4) and it would be desirable that all speak in tongues
(14:5).65 The content of what is spoken in tongues, if translated, would build
up the church (14:5). On the other hand, without interpretation, tongues are not
intelligible, being like speaking in the air (14:9). Thus, the one who speaks in
tongues should pray to receive also the gift of interpretation (14:13). Tongues
is prayer in the Spirit without the use of the mind (14:14) and expressing gra-
titude (14:16-17). Paul speaks in tongues more than all Corinthians (14:18),
but in the church he does not use it (14:19). Tongues are related to foreign
languages (14:10, 21), but can also be related to the language of angels (13.1).66
Tongues are a sign for unbelievers (14:22). They can be used in worship with

64 “With love as their aim, it will prevent them from being zealous only for those gifts that will
enable them to steal the show and outshine others”. David E. Garland, 1 Corinthians (Grand Rapids:
Baker Academic, 2003), 631-632.
65 Speaking about the self-building up of the one who speaks in tongues, Grosheide affirms that
this edification is not related to understanding the contents, “but rather that the fact of speaking in tongues
is edifying in itself” and he assumes that the reason is the assurance that the person has the Spirit. F. W.
Grosheide, Commentary on the First Epistle to the Corinthians (Grand Rapids: Eerdmans, 1953), 319.
Kistemaker shows wisdom in his counsel about this subject: “Hence, no one is free to invade another’s
religious privacy; prayer, whether spoken or unspoken, is a two-way street. God receives praise and
thanks from the speaker and at the same time grants him or her comfort and encouragement”. Kiste-
maker, 1 Corinthians, 480-481. That is no solid basis to defend that Paul’s remark about self-edification
is derogatory. Contra Joseph A. Fitzmyer, First Corinthians: A New Translation with Introduction and
Commentary (New Haven: Yale University Press, 2008), 510.
66 “On balance, then, the evidence favors the view that Paul thought the gifts of tongues was a gift
of real languages, that is, languages that were cognitive, whether of men or of angels.” D. A. Carson,
Showing the Spirit: A Theological Exposition of 1 Corinthians 12-14 (Grand Rapids: Baker, 1987),
83. Fitzmyer’s opinion that “the phemomenon cannot mean speaking in foreign tongues” is ill-defended.
Fitzmyer, First Corinthians, 510. Conzelmann interprets tongues in relation to phenomena that happened
in a few Greek religions. See Conzelmann, 1 Corinthians, 234.

116
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 103-118

orderliness (not everyone at the same time), by a few people (two or three)
and only with interpretation (14:27-28). It is speaking with God (14:28) and
should not be forbidden (14:30).
The teaching of our text, then, can be summarized in the following state-
ment: The one who prophesies speaks in a clear way mysteries or knowledge
to edify, exhort, and console the church. The one who speaks in tongues speaks
mysteries, prays, and expresses thanksgiving to the Lord in a manner that edifies
only himself, in spirit but not in mind, and without translation does not have
utility for the edification of the church. Thus, prophecy should be preferred to
speaking in tongues in the public worship.67

CONCLUSION
My definition of mystery in Paul is that it is a part of the wise and so-
vereign plan of God about the eschaton, which is present in part in the Old
Testament but still hidden, being revealed according to the will of God only
through special revelation. Mystery can be used to refer to the whole escha-
tological plan of God or just to parts of it.68 It is to refer to those parts of the
eschatological plan of God (hardening of the Jews, fullness of the Gentiles,
revelation of the lawless, marriage) and other parts of the plan not revealed in
the New Testament that the plural “mysteries” is used in 1Cor 4.1; 13.2 and
14.2. Instead of using a Greek concept, or simply meaning something secret,
Paul is consistently using mystery in 1 Cor 14:2 (and 13:2).
Another important conclusion that we reach is that the spiritual gifts of
prophecy and speaking in tongues at least sometimes can have the same con-
tent, i.e., mysteries, with the difference that in the first one those mysteries are
expressed in a way that the whole community understands.
Our analysis of the text also contributes to our understanding of mystery.
Specially considering the gift of tongues, we learn that God will not neces-
sarily reveal the content of his mysteries, even when these are verbalized.

67 I do not think that there is enough basis in the text to propose a participation of the community in
the worship of the angels, although I consider this an important subject for further studies. See footnotes
11 and 12.
68 This idea agrees with Bockmuehl concept of mystery: “(i)‘Mystery’ or ‘mysteries’ can refer
collectively to the saving purposes of God, specially as these are summed up in the message of the
gospel of Christ. This usage occurs in 1 Cor and more fully in Col; it is further developed in Eph and
later writings. (ii) A mystery can at the same time denote one particular (sometimes detailed) aspect of
God’s plan of salvation, especially as this relates to the eschaton.” Other uses would include particular
doctrines (carefully con Bockmuehl, sidered because of being later writings) and mystical revelation of
mysteries and angelic worship. Markus N. A. Bockmuehl, Revelation and Mystery in Ancient Judaism
and Pauline Christianity (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 226-227. The definition of Beale and Gladd
is good, but still puts too much emphasis on the revelation of the mystery: “The revelation of God’s
partially hidden wisdom, particularly as it concerns events occurring in the “ latter days”. Beale and
Gladd, Hidden but Now Revealed, 20.

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JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, THE MEANING OF MΥΣΤΉΡΙΑ IN 1 CORINTHIANS 14:2

It is possible to infer, therefore, that there are other mysteries in the sovereign
plan of God he did not reveal to his church. Mystery in Paul, therefore, is not
necessarily something hidden that is revealed.

RESUMO
“Mistério” (μυστήριον) é um tema quase técnico e muito importante do
Novo Testamento. Este artigo visa a lançar alguma luz sobre o significado desse
conceito em 1 Coríntios 14.2. O autor define mistério como “uma parte do
plano sábio e soberano de Deus acerca do eschaton, o qual está parcialmente
presente no Antigo Testamento, mas ainda oculto, sendo revelado segundo a
vontade de Deus somente por meio de revelação especial”. Após apresentar
quatro interpretações dissonantes acerca do assunto, o autor defende o conceito
acima em 1 Co 4.2. A novidade do artigo é o conceito de mistério como sendo
revelado através de línguas, enquanto que ao mesmo tempo o seu conteúdo
permanece velado quando o discurso não é interpretado.

PALAVRAS-CHAVE
1 Coríntios 12-14; Mistério; Dom de línguas.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128

Resenha
André Leonardo Venâncio*

WALTON, John. O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre


a origem da humanidade e a leitura de Gênesis. Viçosa: Ultimato, 2016.

1. RESUMO
John Walton, professor de Antigo Testamento no Wheaton College,
oferece neste livro uma leitura bastante acessível para o leigo sem deixar de
apresentar muitas informações interessantes para o teólogo. A edição brasilei-
ra é parte da série “Ciência e Fé Cristã”, elaborada pela Associação Brasileira
Cristãos na Ciência (ABC2), que é uma iniciativa da Associação Kuyper para
Estudos Transdisciplinares (AKET) apoiada pela Templeton World Charity
Foundation (TWCF). Dividido em 21 capítulos (um dos quais em colaboração
com N. T. Wright), o livro se distingue pela atenção dada à literatura extrabíblica
do Antigo Oriente Próximo, especialidade do autor, e por usar os resultados de
sua exegese para lidar com questões motivadas pela ciência moderna quanto
ao significado do texto bíblico. Porém, embora dialogue com a ciência na for-
mulação de perguntas ao texto, Walton não pretende permitir que ela determine
as respostas. Ele se compromete com a inspiração das Escrituras, e o escopo
do livro é teológico e exegético. Seu objetivo é o resgate da intenção do autor
bíblico, situado no Oriente Próximo do segundo milênio a.C.
Nada disso impede, entretanto, que as conclusões de Walton divirjam com
frequência da visão predominante na tradição teológica conservadora. Citan-
do apenas alguns dos exemplos mais importantes, ele sustenta: que o relato
de Gênesis não se refere a uma criação ex nihilo, e sim apenas à ordenação e
atribuição de funções ao que já existia1 (p. 23-42); que Adão não foi formado

* O autor é graduado em engenharia física pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
mestre em física aplicada pela USP e atua como engenheiro de petróleo. É membro da Igreja Presbiteriana
do Pirangi, em Natal, RN.
1 Mas Walton crê que a criação ex nihilo é ensinada em outras partes da Bíblia (p. 31, 154).

119
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA

do pó, nem Eva de sua costela (p. 65-75); que Adão e Eva não foram neces-
sariamente os primeiros seres humanos ou ancestrais de todos os que vieram
depois (p. 106-7, 173-80); que eles nunca foram imortais (p. 137, 142); que,
embora tenham sido figuras históricas, só é importante sua função enquanto
arquétipos da humanidade2 (p. 191-4); que a serpente em Gênesis 3 é uma
criatura amoral, e não positivamente má (p. 121-31); que o pecado original
decorre de uma “condição humana […] subdesenvolvida” (p. 137) antes que
de uma rebelião moral; que o texto bíblico não faz objeção alguma à ideia de
que a espécie humana passou centenas de milhares de anos mergulhada em
miséria, violência e morte antes que Deus colocasse aqueles dois indivíduos
no jardim (p. 150-1, 168-9).
Walton defende, em suma, que a recuperação do “ambiente cognitivo” do
Antigo Oriente Próximo, necessária a um entendimento apropriado do relato da
criação e da queda, leva à revisão de uma série de pressupostos que têm sido
majoritariamente adotados pela tradição hermenêutica ocidental pelo menos
desde Agostinho. No centro do problema estaria uma compreensão equivocada
da queda, que Walton não vê como a perda de alguma perfeição original, e
sim como agravamento, mediante a rebelião consciente contra Deus, de uma
desordem preexistente: onde havia apenas uma desordem amoral (que Walton
chama de “não ordem”), passou a haver também uma desordem imoral. O Éden
foi, na verdade, um projeto divino de eliminação da não ordem a ser iniciado
pela mediação sacerdotal de Adão.

2. PROBLEMAS QUANTO À CIÊNCIA MODERNA


É fácil perceber que uma das consequências do livro é a admissão de uma
perspectiva evolucionária como interpretação biblicamente legítima. Walton
reconhece e aceita isso com naturalidade na conclusão, atribuindo grande
importância a esse resultado:

O tema mais significativo que temos examinado é se a Bíblia e a ciência fazem


afirmações mutuamente excludentes sobre as origens humanas. O consenso
científico corrente é de que os humanos compartilham um ancestral comum com
outras espécies baseado na evidência de continuidade material (filogenética).
Nossa leitura atenta do texto bíblico e os estudos teológicos indicam que eles
permitiriam tal continuidade material e ancestralidade comum (p. 196).

Além disso, três das quatro aplicações pastorais finais (p. 197-200)
enfatizam a importância de não obrigar as pessoas a escolher entre a ciência
(conforme o entendimento acima) e a fé cristã. A despeito do enfoque exegé-
tico, portanto, a questão da relação entre fé e ciência é central na obra, o que
justifica que a discussão se inicie por esse ponto.

2 Walton se refere a isso como a “proposta central deste livro” (p. 69).

120
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128

O texto editorial da contracapa felicita o autor por criar “espaço para uma
leitura fiel das Escrituras aliada a um compromisso com a ciência”. À primeira
vista, a sugestão desse compromisso pode parecer estranha, pois Walton com
frequência enfatiza a importância de formular juízos exegéticos independentes
das descobertas da ciência (e.g., p. 13-14), e quase sempre se abstém de opinar
sobre temas alheios à sua especialidade.
Um exame mais atento, porém, revela um quadro diferente. Em primeiro
lugar, Walton não é sempre consistente nessa abstenção quanto ao mérito de
hipóteses científicas. Ele afirma, por exemplo, que a evidência das similari-
dades genômicas em favor da ancestralidade comum “é convincente, e seria
prontamente aceita, não fora pela crença de alguns de que, se tal história
realmente ocorrera, isso contradiria afirmações bíblicas” (p. 174). Além de
conter uma opinião do autor sobre um tema bem distante de sua especialidade
acadêmica,3 esse trecho levanta dois problemas: primeiro, se o posicionamento
teológico pode influenciar tão profundamente os juízos científicos de alguém,
nada permite descartar a priori o risco de serem os evolucionistas (cristãos ou
não) os maus intérpretes da evidência. E, segundo, nesse caso a ciência deixa
de ser um empreendimento independente e autônomo dentro do qual os fatos
da natureza falam por si.4
Walton não lida com essas questões em parte alguma do livro, nem
chega a perceber sua existência. Ele constantemente volta a se referir a um
“consenso” representativo da ciência moderna, o qual não só exclui qualquer
crítico da evolução biológica, mas também exclui qualquer possibilidade de
a ciência estar equivocada. É justo dizer que, na prática, o autor não se isenta
de tomar partido em tais questões. Embora afirme várias vezes que devemos
nos opor “à ciência” se a Bíblia assim o exigir, essa possibilidade jamais se
concretiza, e ele, de modo explícito e repetido, aponta esse fato como uma
grande vantagem de sua proposta exegética. A razão disso é dada na conclu-
são: “Tínhamos a expectativa de que Gênesis, lido de forma apropriada, fosse
compatível com as verdades sobre nosso mundo que os cientistas descobrem,
porque tanto nosso mundo quanto a Palavra emanam de Deus” (p. 189). Essa
formulação deixa pouco ou nenhum espaço para uma visão da ciência como
construção interpretativa humana e, em especial, para o risco de essa inter-

3 Walton demonstra seu despreparo científico quando atribui aos criacionistas a sugestão de que
“a história que a genômica comparada testifica nunca ocorreu de fato” (p. 174). Essa formulação con-
tém uma petição de princípio, pois pressupõe que há um processo histórico que pode ser objetivamente
inferido dos dados genômicos, restando definir apenas se essa história é real ou fictícia. Mas o que os
criacionistas afirmam é que essa inferência de uma história pregressa já é fruto de um olhar enviesado
por parte dos evolucionistas.
4 Usando um conceito da sociologia do conhecimento, poderíamos dizer que as convicções
teológicas influenciam profundamente a estrutura de plausibilidade com base na qual o cientista julga
a evidência disponível em sua área de especialidade.

121
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA

pretação conter erros graves. Mas é nessa minimização falaciosa da distância


entre o consenso científico (real ou imaginário) e a verdade sobre a natureza
que está a raiz do problema da exegese de Walton.
Não é, pois, despropositado dar razão ao texto da contracapa quanto
à presença de um forte “compromisso com a ciência” a orientar o livro. Tal
fato traz problemas na medida em que o autor demonstra compreender pouco
sobre o que é de fato a atividade científica e o grande espaço para interpre-
tações equivocadas que ela comporta. A ciência moderna é uma pluralidade
de métodos e um conjunto de conhecimentos adquiridos através (ou apesar)
deles, mas é também uma grande quantidade tanto de interpretações arriscadas
(muitas das quais equivocadas em alguma medida), que podem permanecer por
muito tempo, quanto de divergências internas, sempre maiores do que supõe o
leigo. É ainda uma instituição, com cultura, valores, subjetividades e relações
políticas e sociais que estão longe de ser as melhores possíveis. Da mesma
forma, para não poucos de seus praticantes, é parte importante de um projeto
idólatra de redenção da humanidade, submisso em linhas gerais aos ideais do
iluminismo. Walton ignora tudo isso, e o quadro que se pode discernir em suas
constantes referências à ciência revela uma concepção simplista e ingênua
desse grande empreendimento.5 O panorama que se descortina é o de um teó-
logo indevidamente impressionado com a autoridade da ciência e predisposto
a não contrariá-la de forma alguma; suas repetidas alegações de indiferença
coexistem com asseverações também frequentes de que é sempre melhor não
se opor a ela, o que produz um resultado deveras ambíguo. Esse compromisso
lamentável e seus resultados afetam profundamente a estrutura da obra.
É importante não criticar o autor pelos motivos errados: Walton não
pode ser considerado um teólogo liberal, e é sincero (embora equivocado)
na pretensão de que os resultados de sua exegese representam tão somente
a intenção do autor bíblico. Ele também dá mostras de se incomodar de fato
com o cientificismo, como se vê em seu constante esforço de resguardar a au-
tonomia da teologia enquanto disciplina. Mas não considera os efeitos noéticos
do pecado e não leva a sério a possibilidade de a ciência moderna estar errada
em alguma coisa importante. Resulta daí sua falta de ânimo para confrontar
de fato a autoridade da ciência.
Decorre de tudo isso uma tensão que condiciona fortemente as conclusões
do livro, que tendem sempre a evitar o conflito com a autoridade científica,
embora sem admiti-lo. Sua solução, declarada em muitos momentos, consiste
em dizer que o texto bíblico não faz afirmações sobre origem material que
tenham alguma intersecção com temas acessíveis à investigação científica.

5 Mesmo no âmbito secular há diversas tradições já consolidadas de estudos em filosofia, história


e sociologia das ciências que apontam na direção que busquei delinear em pouquíssimas palavras neste
parágrafo. Walton não dá sinais de conhecer tais discussões.

122
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128

Trata-se de uma separação de tendência claramente neo-ortodoxa que seu es-


forço exegético se dedica a manter, elaborar e justificar sempre que necessário.

3. PROBLEMAS FILOSÓFICOS E METODOLÓGICOS


Uma parte central e constantemente proclamada da tese de Walton consis-
te na afirmação de que o relato de Gênesis precisa ser lido segundo o ambiente
cognitivo do Antigo Oriente Próximo e que, lido dessa forma, o texto trata de
questões relativas a “ordem e função”, e não a origens materiais. O autor se
vale dessa percepção não só para introduzir várias percepções diferentes da
visão tradicional quanto ao significado do relato bíblico, mas também para
manter bem separados os domínios da teologia e das ciências naturais – que
revelariam a verdade nas esferas funcional e material, respectivamente, sem
interferência mútua. Essa estrutura também fundamenta a crítica e rejeição de
exegeses cujas conclusões “invadem” a esfera da ciência ao tratar de enun-
ciados de origem material (se Adão veio do pó, se Eva veio de sua costela,
há quanto tempo há seres humanos no mundo etc.); tais leituras são denun-
ciadas como de inspiração modernista, alheias ao ambiente cognitivo antigo
e à intenção autoral.
No entanto, essa ideia possui três problemas básicos. O primeiro é a in-
consistência conceitual e lógica: o ato de ordenar o mundo e atribuir funções às
criaturas não é inteligível à parte de modificações materiais correspondentes.
O autor tenta explicar como isso se dá através da seguinte ilustração (p. 31):

Os antigos donos de nossa casa utilizavam um cômodo como sala de jantar. Po-
rém, minha família decidiu que não o queria como sala de jantar, então demos a
ele o nome de “recanto”, colocamos nele a mobília de um recanto e começamos
a utilizá-lo dessa maneira. Por seu nome e função ele foi diferenciado dos outros
cômodos da casa, e então um recanto foi criado.

Walton afirma que há nisso uma boa analogia com o conceito de criação
em Gênesis: ordenar, atribuir função e dar nome a algo que já existia material-
mente. No entanto, a comparação prova o oposto: embora paredes, chão e teto
já existissem, o cômodo só pôde receber a nova função em virtude da nova
mobília; e isso constitui, sem dúvida, uma modificação material. Toda mudança
na esfera das funções precisa acarretar uma adequação material. A tentativa de
fazer com que o relato bíblico mantenha intocada a esfera acessível à ciência
padece, pois, de um problema filosófico básico, com o qual o autor jamais lida
e que sequer chega a identificar. Sua disjunção soa como mero artifício verbal.
O segundo problema é mais sutil, e diz respeito ao uso equívoco dos ter-
mos “matéria” e “material”. Walton erroneamente pressupõe que a “matéria”
desconsiderada no Antigo Oriente Próximo é a mesma de que trata a ciência
moderna. No entanto, embora a mesma palavra seja usada, os dois conceitos

123
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA

são bastante distintos e, na verdade, incompatívei.6 O filósofo neocalvinista


holandês Herman Dooyeweerd descreveu a cultura grecorromana como uma
tensão entre dois “motivos” básicos, entendidos respectivamente como a
“forma, medida e harmonia” e a “corrente vital cíclica e sem forma” – sim-
plificando, “forma” e “matéria”.7 Embora Walton ignore essa discussão, o
leitor informado sobre ela pode ler seu livro e concluir que essas categorias
descrevem bem a estrutura de pensamento de egípcios, sumérios, babilônios e
outros povos do Antigo Oriente Próximo. Nos termos de Dooyeweerd, pode-se
dizer que Walton descreve o relato bíblico da criação (e, na verdade, toda a
história da salvação revelada na Bíblia) como um triunfo do motivo “forma”
sobre o motivo “matéria”. Essa matéria, porém, não é a da ciência moderna,
e isso torna falacioso o uso que Walton faz do conceito.8 Portanto, provar que
Gênesis não trata da matéria (no sentido antigo) não ajudaria a saber se ele
diz algo sobre a matéria (no sentido moderno). Assim, deixa de fazer sentido
a ideia de estabelecer em tais bases exegéticas a existência de uma esfera de
competência exclusiva da ciência.
O terceiro problema é ainda mais profundo, e também pode ser discer-
nido com o auxílio de categorias dooyeweerdianas. Segundo o holandês, a raiz
dos motivos básicos vai além da dimensão cognitiva: os motivos são religiosos,
i.e., ligados de modo direto à nossa postura diante do Deus verdadeiro e dos
ídolos. Dooyeweerd descreve os motivos pagãos “forma” e “matéria” como
inerentemente idólatras e incompatíveis com os motivos bíblicos, pois resultam
de distorções na interpretação do mundo criado que decorrem da rebeldia do
coração. Ainda usando termos de Dooyeweerd, a formação de uma cosmovisão
radicalmente cristã requer que mantenhamos a consciência dessa “antítese”
entre motivos bíblicos e apóstatas, evitando “sínteses” entre eles.
Se Dooyeweerd estiver correto em sua descrição dos motivos bíblicos
e apóstatas,9 o que Walton propõe é nada menos que uma síntese na qual o
relato bíblico é interpretado segundo categorias pagãs. Não se trata de censurar
Walton por (aparentemente) desconhecer a obra de Dooyeweerd, ou por não
tomar sua teoria dos motivos religiosos básicos como pressuposto de sua
exegese. Trata-se, porém, de reconhecer que o uso de textos pagãos antigos
como auxílios na exegese bíblica traz o risco de uma importação inadvertida
de categorias pagãs. Walton não demonstra consciência desse risco e sequer o
menciona. Ele fala em diferenças entre a mensagem de Gênesis e a de textos

6 Esse fato é bem estabelecido na literatura filosófica. Por exemplo, o filósofo inglês R. G.
Collingwood dedicou todo o livro The Idea of Nature (New York: Oxford University Press, 1960) à
discussão das concepções de matéria e natureza e suas mutações ao longo do tempo.
7 Roots of Western Culture: Pagan, Secular, and Christian Options. Toronto: Wedge, 1979, p. 15-21.
8 Dooyeweerd explica sucintamente a diferença em ibid., p. 150-151.
9 Aqui não é necessário endossar ou mesmo discutir a totalidade de seu vasto sistema filosófico.

124
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128

extrabíblicos do mesmo período, mas isso não chega a produzir uma discussão
metodológica. Com frequência o autor apenas pressupõe que o leitor hebreu
original entenderia o texto exatamente da mesma maneira que o pagão de
sua época, e nenhuma problematização ou defesa dessa hipótese é tentada.
Não há no livro nenhuma consciência da antítese e, em consequência disso,
não há nenhuma cautela contra o risco das sínteses (com ou sem o uso desses
termos). Walton utiliza conceitos pagãos na exegese de Gênesis com a mes-
ma ingenuidade e inconsciência com que cede sem perceber à autoridade da
ciência moderna.

4. PROBLEMAS EXEGÉTICOS
Nesta seção, mediante a breve discussão de quatro casos específicos, serão
apontadas as consequências dos problemas discutidos nas seções anteriores
sobre a exegese bíblica do livro.
A discussão sobre o sentido dos verbos bara e asa10 (p. 27-31) conclui
que eles não “refletem intrinsecamente uma produção material”, com base em
dois argumentos. Primeiro, “os objetos diretos não são materiais”. Porém, ao
inventariar o uso desses verbos no restante da Bíblia, Walton considera ima-
teriais objetos como as estações do ano e o vento. O argumento se baseia em
um critério de classificação que, além de ser criticável de um ponto de vista
filosófico, não foi inferido com base em exegese. A conceituação do que é ou
não “material” é obscura e ambígua, e esse é um problema recorrente no livro.
O argumento talvez prove que o campo semântico desses verbos é amplo e
pode se aplicar a objetos imateriais; mas nada no livro prova que esse é o caso
em Gênesis 1-2. O segundo argumento diz que “os verbos não apresentam
qualquer tipo de entendimento que adotamos como cientificamente viável”,
indicando que, apesar de suas frequentes afirmações em contrário, Walton
usa seu entendimento da viabilidade científica como critério exegético para
determinar o que o texto diz.
Walton defende que o relato da formação do homem a partir do pó da
terra é arquetípico, e não material (p. 66-67), mas sua argumentação baseada
nos usos do verbo ysr11 apresenta problemas semelhantes aos citados acima
quanto aos verbos bara e asa. Ele também sustenta que Adão foi criado mor-
tal, e que o texto alude a isso quando relaciona sua origem com o pó da terra.
O autor defende isso citando, por exemplo, o Salmo 103.1412 e comentando:
“É possível que um ser humano seja nascido de mulher e ainda assim seja
formado do pó; todos nós somos” (p. 70-71). Porém, todos somos pó apenas

10 Com frequência traduzidos em Gênesis 1 como “criar” e “fazer”, respectivamente.


11 Traduzido como “formar” em Gênesis 2.
12 “Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (ARA, aqui e nas citações seguintes).

125
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA

porque herdamos nossa natureza de Adão; se ele não foi formado do pó lite-
ralmente, não há sentido algum em que se possa dizer que todos o fomos. De
fato é possível associar a ideia de mortalidade ao pó sem falar em uma origem
material, já que viramos pó após a morte; mas jamais se seguiria daí o “tornar”
ao pó (Gn 3.19), pois não poderíamos voltar a algo de que não viemos. De fato,
“Adão é um arquétipo, não apenas um protótipo” (p. 70), mas é também um
protótipo; embora possamos distinguir abstratamente as duas coisas, a Bíblia
não legitima a ideia de uma independência entre elas. Buscando sustentar o
contrário, Walton compara o relato de Gênesis 2 ao da vocação de Jeremias13
e diz: “Essas afirmações têm relação com o destino e a identidade de alguém,
não com sua origem material” (p. 71). Segundo esse princípio, seria falacioso
concluir de Jeremias 1.5 que o profeta veio do ventre de sua mãe. Mas o texto
fala tanto da função de Jeremias quanto de sua origem material, assim como
Gênesis 2 fala tanto do que Adão faria no jardim quanto da formação de seu
corpo a partir de um material preexistente. Vem de Walton, mas não do texto
bíblico, a sugestão de que devemos escolher entre as duas coisas.
Igualmente lamentável é a discussão sobre as causas do pecado e da
morte (p. 145-151). Walton sugere que, embora antes de Adão já existissem
homens praticando violência entre si, Romanos 5.13 permite inferir que “onde
não havia lei ou revelação, não existia pecado” (p. 146-147). Tal aplicação não
apenas retira a passagem do contexto,14 mas também nega a primeira parte do
mesmo versículo: “Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo”. Ele
também sugere à igreja que reconsidere “como o pecado original é formula-
do e entendido”, pois “Quanto mais aprendemos sobre biologia e genética,
menor se torna a probabilidade do modelo de Agostinho”15 (p. 148). Aqui o
autor não apenas propõe que a ciência tenha um papel determinante em nossas
formulações teológicas sobre o pecado, mas também admite implicitamente
a visão cientificista de que só a biologia pode nos dizer o que pode ou não
ser transmitido de modo hereditário. Ele também endossa um confinamento
dos efeitos da queda à esfera sociológica que é, em última análise, pelagiano
e romântico (p. 150).
Ao discutir a historicidade de Adão (p. 191-194), embora a admita, Walton
diz que é insuficiente o fato de os autores bíblicos crerem nisso e o declararem

13 “Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te
consagrei, e te constituí profeta às nações” (Jr 1.5).
14 Está em discussão desde Romanos 1 a situação dos gentios que não receberam a revelação
especial, em contraste com os judeus. Se o entendimento de Walton fosse correto, isso implicaria que
os pagãos não são pecadores. Mas o contrário é afirmado repetidamente (Rm 1.20,28-31; 2.9,12,14;
3.9,30).
15 Ele se refere à ideia de que “o pecado é passado de geração em geração na medida em que
nascemos”.

126
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 119-128

no texto; para ele, é necessário demonstrar também que “o ensinamento bíblico


incorporou este entendimento em sua mensagem autoritativa”. Ele prossegue
argumentando que não é o caso, pois “nenhuma teologia é construída” com
base nisso. O argumento é estranho, pois, embora haja muitas afirmações bí-
blicas sobre as quais nunca se construiu uma teologia,16 espera-se claramente
que creiamos nelas, junto com as outras. Ademais, não é congruente defender
a irrelevância de certas proposições bíblicas, criar critérios para estabelecer
um cânon dentro do cânon e declarar, ao mesmo tempo, que a rejeição dessas
afirmações é de importância fundamental para uma correta elaboração teológica
sobre as origens humanas.
O padrão que emerge, desses exemplos e de muitos outros casos, é que
a pretensão de Walton de ser fiel apenas ao texto bíblico é ilusória. Quando
o texto o contradiz, ele estabelece restrições artificiais sobre seu escopo com
base em disjunções impostas de fora, ou na decisão arbitrária de que só im-
porta o que constitui a mensagem central do texto, ou ainda na relevância da
proposição para uma elaboração teológica; ou, em casos extremos, afirma sem
rodeios que determinada ideia não está no texto – ou que, embora esteja, deve
ser rejeitada – porque é contradita pela ciência moderna.

5. VALOR DA OBRA
A argumentação exegética de Walton é extensa e bastante sofisticada, o
que torna impossível, neste espaço, fazer plena justiça às suas posições, tanto
às boas quanto às más. Embora ele pareça não pensar assim, suas melhores
percepções são perfeitamente compatíveis com a interpretação conservadora
tradicional. Dessa forma, o livro pode contribuir para nossa compreensão da real
mensagem de Gênesis, uma vez purificado de seus compromissos sintéticos.
A despeito de várias de suas conclusões e aplicações serem infelizes, o
caminho até elas está repleto de considerações proveitosas. A obra apresenta
grande quantidade de informações úteis ao exegeta, e os fundamentos em que
se pretende basear cada conclusão são expostos com clareza; é graças a essa
qualidade, aliás, que seus erros podem ser identificados com maior facilidade.
Os méritos de Walton se destacam sobretudo em sua profunda familiaridade
com os escritos extrabíblicos do Antigo Oriente Próximo e na sua refutação
implícita a várias abordagens críticas que remontam às velhas tradições
teológicas liberais.17 Também merecem menção suas discussões meticulosas
sobre o campo semântico dos termos hebraicos utilizados no relato bíblico e
sua atenção a detalhes e conexões pertinentes frequentemente ignorados. Em

16 Exemplos citados a esmo: o fariseu que visitou Jesus se chamava Nicodemos; João estava em
Patmos quando teve as visões do Apocalipse; Salomão teve setecentas esposas e trezentas concubinas.
17 O livro apresenta, por exemplo, dados que contradizem a velha teoria liberal de uma origem
tardia para o relato da criação.

127
O MUNDO PERDIDO DE ADÃO E EVA

inúmeros pontos, Walton de fato nos auxilia a recuperar algo da cosmovisão do


hebreu do segundo milênio a.C.; exemplos disso são sua exposição do mundo
criado como um espaço sagrado, da função sacerdotal de Adão e do simbolismo
do jardim.
Por todos esses motivos, O Mundo Perdido de Adão e Eva pode promover
um aumento do interesse pela mensagem de Gênesis e fomentar uma leitura
bíblica que faça mais justiça à intenção autoral e seja mais livre dos condicio-
namentos da cultura moderna. Embora manifestamente imperfeita, a incursão
de Walton pelo mundo antigo é mais rica que a de muitos que possuem uma
cosmovisão mais bíblica nos pontos essenciais. Apesar de seus compromissos
não assumidos, ele de fato fornece alguns bons subsídios para uma abordagem
menos contaminada pelo positivismo científico.
Para muitos de nós, o texto de Gênesis faz pouco além de dar motivos
para a rejeição de abordagens evolucionárias. Walton erra em não ver que o
texto de fato traz essa implicação, mas acerta em mostrar que há muito mais
a extrair dali. Em suma, o livro nos desafia de duas maneiras: nos incenti-
va a elaborar boas respostas aos pontos problemáticos de sua abordagem e a
aprimorar uma leitura dos primeiros capítulos de Gênesis que faça justiça às
suas percepções mais preciosas. Na medida em que isso ocorrer, o livro terá
minimizado seu potencial de dano a uma cosmovisão cristã sadia e se tornará
semente de bênçãos para a igreja.

128
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135

Resenha
Alan Rennê Alexandrino Lima*

BEEKE, Joel R.; JONES, Mark. Teologia puritana: doutrina para a


vida. São Paulo: Vida Nova, 2016. 1524p.

Não é exagero afirmar que se tornou proverbial o dito de J. I. Packer


quando afirma que “os puritanos eram gigantes em comparação a nós, gigantes
de cuja ajuda carecemos, se quisermos crescer”.1 A afirmação é justificada a
partir de diversas contribuições dos puritanos elencadas pelo próprio Packer,
entre as quais merece destaque a seguinte: “Os puritanos me fizeram perceber
que toda teologia também é espiritualidade, no sentido de exercer influência,
boa ou má, positiva ou negativa, no relacionamento ou na falta de relaciona-
mento das pessoas com Deus”.2
A prova da afirmação de Packer pode ser vista naquela que, muito prova-
velmente, foi a maior publicação das editoras evangélicas brasileiras em 2016:
Teologia Puritana: Doutrina para a Vida, de Joel R. Beeke e Mark Jones, dois
dos maiores especialistas contemporâneos sobre os puritanos. Joel Beeke, já
bastante conhecido do público brasileiro, é presidente e professor de Teologia
Sistemática e Homilética do Puritan Reformed Theological Seminary, além
de pastor na Heritage Reformed Congregation, em Grand Rapids, Michigan.
Obteve seu doutorado (Ph.D.), em Teologia da Reforma e da Pós-Reforma, pelo

* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste (STNe), em Teresina – PI,
e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. É mestre (S.T.M.), com concentração em
Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, pelo Centro Presbiteriano
de Pós-Graduação Andrew Jumper (São Paulo). É professor visitante de Teologia Sistemática no Se-
minário Presbiteriano do Norte (Recife) e no Seminário Teológico do Nordeste, além de orientador na
Faculdade Internacional de Teologia Reformada (FITRef). É pastor-efetivo na Igreja Presbiteriana do
Cruzeiro do Anil, em São Luís – MA.
1 PACKER, J. I. Entre os Gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã. 2.ed. São José
dos Campos: Fiel, 2016. p. 22.
2 Ibid., p. 20.

129
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA

Westminster Theological Seminary, em Filadélfia, na Pensilvânia. Nas palavras


do seu coautor: “Ele é um puritano contemporâneo tanto no conhecimento
quanto na piedade” (p. 21). Mark Jones, por sua vez, é ministro presbiteriano,
pastor da Faith Presbyterian Church, uma congregação filiada à Presbyterian
Church in America, em Vancouver, Colúmbia Britânica, no Canadá. É pesqui-
sador associado da Faculdade de Teologia da University of the Free State, em
Bloemfontein, na África do Sul, e obteve o seu doutorado (Ph.D.) pela Leiden
Universiteit, na Holanda. Interessantemente, sua tese de doutoramento tratou
da cristologia do puritano Thomas Goodwin.
Teologia Puritana nada mais é do que uma teologia sistemática elabo-
rada a partir dos escritos dos puritanos: “Este livro trata de teologia puritana.
Seus capítulos examinam várias áreas da teologia sistemática do puritanismo”
(p. 23). Possui um total de oito loci (Prolegômenos, Teontologia, Antropologia e
Teologia do Pacto, Cristologia, Soteriologia, Eclesiologia, Escatologia e Teo-
logia na Prática), que compreendem 60 capítulos. É importante destacar algo
da metodologia dos autores, a saber, o fato de que muitos dos capítulos lidam
com temas teológicos clássicos, como, por exemplo, teologia natural, herme-
nêutica e exegese, a Trindade, a providência, a pecaminosidade do homem,
as alianças das obras, da redenção e da graça, lei e evangelho e a regeneração.
Outros capítulos apresentam a maneira como um puritano em específico lidou
com determinado tema, como: “Stephen Charnock e os atributos de Deus”,
“Thomas Goodwin e Johannes Maccovius e a justificação desde a eternidade”,
“Anthony Burgess e a intercessão de Cristo por nós”, “Thomas Goodwin e o
amoroso coração de Cristo” e “Christopher Love e as glórias do céu e os pavores
do inferno”. Os capítulos que abordam temas teológicos “apresentam um qua-
dro daquilo que se pode chamar de ‘posição puritana’ ou ‘consenso puritano’”
(p. 29). Já os capítulos que se concentram num único puritano possuem o
objetivo de “oferecer uma ideia razoavelmente abrangente acerca do que um
teólogo específico pensava sobre uma doutrina específica” (p. 29).
Logo na Introdução os autores fazem questão de destacar que o movi-
mento não era caracterizado por uniformidade em termos de linha teológica.
Nem todos eram reformados ou calvinistas, como se supõe (p. 24). Richard
Baxter (1615-1691), por exemplo, era neonomiano; John Goodwin (1594-1665),
arminiano; John Milton (1608-1674), provavelmente ariano; e John Eaton
(c. 1575-c. 1631), antinomiano. Não obstante, “a imensa maioria dos purita-
nos fazia parte do movimento teológico mais amplo denominado ortodoxia
reformada” (p. 25).
Em razão da vastidão da obra, torna-se contraproducente uma apresen-
tação exaustiva do seu conteúdo. Ainda assim, alguns destaques devem ser
feitos, como, por exemplo, sua dupla “estrutura arquitetônica”: 1. A teologia
do pacto, e 2. Seu caráter trinitariano. Logo no primeiro capítulo, ao trata-
rem da revelação, os autores destacam o caráter pactual do conhecimento de

130
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135

Deus em Cristo. De acordo com eles, a revelação de Deus a Adão se deu no


contexto de um pacto denominado “pacto das obras”. Se assim foi necessário
com Adão no jardim no Éden, quanto mais o seria no contexto da Aliança da
Graça: “A doutrina da aliança foi importante para os teólogos reformados do
século 17, pois permitia que expressassem a natureza relacional da teologia,
que é o propósito da revelação” (p. 55). A doutrina do Pacto estabelece a pon-
te que transpõe o abismo ontológico entre o Criador infinito e onipotente, de
um lado, e a criação finita e dependente, de outro. Essa revelação, todavia, é
cristológica, ou seja, ela é dada em Cristo e, por meio dele, através das várias
alianças pós-queda, alcançando o seu ápice na Nova Aliança.
A teologia do pacto como estrutura arquitetônica do pensamento puritano
também se faz evidente quando os autores analisam a hermenêutica e a exegese
puritanas. Tanto o pacto das obras quanto o pacto da graça funcionam como
categorias hermenêuticas do pensamento puritano. Toda a Escritura é interpre-
tada em termos dos dois pactos e os puritanos se esforçavam por destacar as
semelhanças e distinções entre ambos. Beeke e Jones destacam como, em seu
método interpretativo, os puritanos ressaltavam a maneira pela qual a revelação
acerca de Jesus Cristo progredia em cada administração pactual:

Thomas Adams (1583-1652) comenta que Cristo é a “soma de toda a Bíblia,


profetizado, tipificado, prefigurado, exibido, demonstrado, a ser encontrado em
cada página, quase em cada linha [...] Cristo é a parte principal, o centro para
onde todas essas linhas conduzem”. De modo semelhante, ao comentar sobre
como Cristo é o alvo e a extensão das Escrituras, Richard Sibbes (1577-1635)
observa: “Cristo é a perola daquele anel, Cristo é o tema, o centro em que con-
vergem todas aquelas linhas: remova Cristo e o que sobra? Portanto, em todas as
Escrituras cuidemos para que Cristo não nos escape; sem Cristo, tudo é nada”.
Isaac Ambrose (1604-1664) afirma que antes da encarnação Cristo vinha sendo
apresentado em “cerimônias, rituais, símbolos, tipos, promessas [e] alianças” [...]
Em cada dispensação da revelação de Deus a seu povo, mais e mais de Cristo
é apresentado por meio dos vários meios relacionados por Ambrose (p. 63-64).

Beeke e Jones demonstram como, além de pactual, a teologia puritana


possui uma forte ênfase trinitária. Em todos os loci teológicos o enfoque tri-
nitário dos puritanos pode ser percebido. Explicitando a eclesiologia de John
Owen e Thomas Goodwin, os autores dizem o seguinte: “À semelhança de
John Owen, Thomas Goodwin insistia numa teologia totalmente trinitária, não
apenas uma doutrina trinitária da salvação” (p. 909). Três conceitos específi-
cos a respeito das opera ad extra trinitatis são mencionados em conexão com
diversas doutrinas – imanentes, transientes e aplicadas:

1. Imanentes em Deus em seu relacionamento conosco, conforme seu amor


eterno estabeleceu e nos concedeu, sendo que Deus, por causa desse amor,
nos escolheu e determinou que recebêssemos essa e todas as demais bênçãos;

131
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA

2. Transientes em Cristo naquilo que fez por nós, em tudo que fez ou sofreu ao
nos representar e ao tomar o nosso lugar;
3. Aplicadas, isto é, operadas em nós e por nós, todas aquelas bênçãos que o
Espírito nos outorga, como chamado, justificação, santificação, glorificação
(p. 210).

Tais conceitos podem ser vistos como estando relacionados com di-
versas doutrinas, como, por exemplo, os atributos de Deus, especialmente
o seu amor (p. 130), a justificação (p. 210-229), a eleição (p. 235), a ordem
dos decretos (p. 240), o Pacto da Redenção (p. 361) e a união mística com
Cristo (p. 690). O gênio da teologia dos puritanos está justamente na ma-
neira coesa como todos os loci teológicos são unidos, possuindo a teologia
do pacto como a sua estrutura arquitetônica e a doutrina da Trindade como
seu elemento norteador.
Dentre os 60 capítulos da obra, alguns podem ser destacados, uma vez
que apresentam conceitos e detalhes bastante interessantes a respeito do
pensamento teológico dos puritanos ou de algum deles, especificamente. Em
primeiro lugar, o capítulo 9, que discute o supralapsarianismo cristológico de
Thomas Goodwin. Essa designação advém do fato de Goodwin fundamentar
o seu supralapsarianismo em sua cristologia, tendo em mente “a glória do
Deus-homem, Jesus Cristo, que une a igreja consigo” (p. 233). O diferencial da
posição de Goodwin está em como ele apresenta a glória de Cristo, e o desejo
do Pai de agradar o seu Filho, como o propósito supremo e principal da elei-
ção. Na discussão acerca do infralapsarianismo versus o supralapsarianismo é
comum entender a reconciliação com Deus como sendo o propósito principal
da eleição. A ideia por trás deste pensamento é que Jesus Cristo foi dado pela
igreja, ou ainda, que ele foi entregue para, acima de todas as coisas, operar a
reconciliação entre Deus e o homem. Ainda que a obra de Cristo tenha tido tal
propósito, Goodwin entendia que não se tratava do fim supremo nem da obra
vicária de Cristo nem da eleição.
Beeke e Jones sublinham que, para Goodwin, “Cristo é o objetivo da
eleição e de todas as outras coisas” (p. 238). Isto quer dizer que o principal
motivo da predestinação de Cristo para ser o Redentor, não foi que os pecadores
pudessem ser salvos pelos benefícios da sua obra. Antes, o motivo primário foi
que a suprema excelência da sua pessoa fosse contemplada pelos pecadores.
Todos os benefícios advindos da obra redentora de Cristo possuem um valor
bem inferior à dádiva da sua pessoa. No Conselho da Redenção, que teve lugar
na eternidade, ao decretar que o Filho assumisse a natureza humana, Deus, o
Pai, não levou em consideração apenas a necessidade do ser humano de um
redentor. Ele levou em consideração, acima de tudo, nas palavras do próprio
Goodwin, citadas pelos autores:

132
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135

[...] aquela glória infinita da segunda pessoa a ser manifesta naquela natureza
mediante essa apropriação. Os dois objetivos o levaram a agir, e, dos dois, a
glória da pessoa de Cristo naquela união e por meio daquela união teve maior
peso na eleição, de modo que até mesmo a própria redenção esteve subordinada
à glória da sua pessoa (p. 239).

Desse modo, o esquema supralapsariano adquire um fundamento mais


forte, uma vez que o foco é mudado de Cristo sendo dado aos pecadores,
para estes sendo levados pelo Pai àquele, a fim de que a sua glória seja mais
plenamente exibida. Decretar a encarnação apenas para que pecadores fossem
salvos, ainda que um objetivo belo, seria diminuir e rebaixar a pessoa do Filho.
A glória de Cristo é mais preciosa que a salvação dos eleitos.
No capítulo 25 os autores abordam outro aspecto do pensamento de
Thomas Goodwin, mais especificamente, o amoroso coração de Cristo para
com o seu povo. Em 1645, ele publicou a obra The Heart of Christ in Heaven
Towards Sinners on Earth (“O coração de Cristo no céu voltado para os pe-
cadores na terra”). Nessa obra Goodwin teve o propósito de refutar a ideia
bastante divulgada de que os cristãos do período pós-apostólico viviam em
desvantagem em relação aos cristãos que conheceram a Cristo aqui na terra.
O argumento que apoiava tal ideia era que, uma vez que, agora, Cristo está
glorificado, ele é menos afetado por sua humanidade. De acordo com Beeke e
Jones, “Goodwin afirmou que, com base nas Sagradas Escrituras, Cristo tem
sentimentos fortes, compaixão profunda e empatia cheia de emoções por seu
povo sofredor, mesmo quando já está assentado à direita de Deus” (p. 563).
O argumento é que a exaltação de Cristo, diferentemente do que era crido por
muitos, não diminuiu as suas emoções, mas, ao contrário, as aumentou. O
problema enfrentado por Goodwin era que, se

Cristo “depois de ter se livrado de sua fragilidade aqui na carne e depois de ter
vestido sua natureza humana com uma glória tão magnífica” se lembra de nós
no céu, “ele é incapaz de se compadecer de nós da mesma maneira que fazia
quando habitou conosco aqui embaixo; tampouco podem seus sentimentos ser
afetados e tocados pelas nossas fraquezas”. Com certeza, ele deixou para trás
todas as lembranças de fraqueza e dor (p. 564).

Uma vez que as Escrituras afirmam, de modo inequívoco, que “não


temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas”
(Hb 4.15), é legítimo e correto inferir que as fraquezas do seu povo inspiram
a compaixão de Cristo. Esclareça-se que, o termo “fraquezas” envolve tanto as
dificuldades de cunho geral quanto pecados específicos: “Até mesmo nossa
tolice e nossas escolhas pecaminosas despertam a compaixão de Cristo” (p. 565).
As palavras de Goodwin citadas pelos autores são belas:

133
TEOLOGIA PURITANA: DOUTRINA PARA A VIDA

Vossos próprios pecados levam [Cristo] mais à compaixão do que à ira [...] da
mesma maneira como acontece com o coração de um pai para com o filho que
tem alguma doença repugnante. Ou, de semelhante maneira, a atitude de alguém
que tem uma parte do corpo com lepra não é odiar aquela parte, pois é sua carne,
mas a doença, e isso o leva a ter ainda mais compaixão da parte afetada (p. 565).

O compassivo coração de Cristo o leva a se inclinar com bondade em


direção ao seu povo, ainda que sentindo repulsa pela imundícia inerente a
tais pecados. Deve ser compreendido, porém, que o fato de Cristo reagir com
compaixão aos pecados do seu povo não implica em que ele ainda experimente
qualquer tipo de sofrimento, visto a sua humilhação ter se completado na cru-
cificação e no sepultamento. Ao questionamento sobre como é possível, então,
que ele se sinta tocado pelos sentimentos gerados pelas debilidades humanas,
Goodwin respondia que esse não é um ato de fraqueza, mas do poder do amor
celestial. Embora Cristo não esteja mais sujeito a nenhum tipo de fragilidade,
ele continua sendo alguém plenamente humano, com emoções, corpo e alma
humanos: “Assim, nossos sofrimentos não ferem a Cristo, mas sua alma hu-
mana reage a nossos sofrimentos com ternura gloriosa e admirável” (p. 567).
Por fim, é importante destacar o capítulo 57, que aborda a casuística
puritana. Primeiramente, o termo casuística, conforme definido pelos purita-
nos, não trata da “técnica desenvolvida pelos jesuítas para encontrar pretextos
para não fazer o que você deve fazer” (p. 1309). Antes, para os puritanos, a
casuística era a arte da teologia moral aplicada com integridade bíblica a di-
versos casos de consciência. Em outras palavras, a casuística puritana tratava
de como casos de consciência eram tratados de acordo com as Sagradas Escri-
turas, algo bem próximo do que hoje é chamado de aconselhamento bíblico e
pastoral. O capítulo é dividido em: 1. O início da casuística puritana, ainda no
século 16, com Richard Greenham (1542-1594). Nesse período, as anotações
dos casos de consciência tratados eram abundantes, indo “desde se as pessoas
podiam deixar de ir ao culto de sua igreja para ouvir um pastor pregar em uma
igreja vizinha até se alguém que havia admitido ter mentido aos amigos sobre
um pecado de ordem pessoal devia agora confessá-lo em público” (p. 1312).
2. Uma apresentação de William Perkins como o pai da casuística puritana,
visto ter ele estabelecido o “padrão para toda a obra posterior de teologia moral
protestante” (p. 1315). 3. O florescimento da casuística puritana, nas obras de
William Gouge (1575-1653), William Whately (1583-1639), Robert Bolton
(1572-1631) e o discípulo mais famoso de Perkins, William Ames (1576-1633),
que escreveu uma das mais importantes obras da casuística puritana: Conscience,
with the Power and Cases Thereof (“A consciência, seu poder e seus casos”),
publicada primeiramente em latim (1630) e posteriormente em inglês (1639).
4. O apogeu da casuística puritana, com destaque para o trabalho de Thomas
Brooks (1608-1680). 5. O desaparecimento da casuística puritana durante as

134
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 129-135

últimas duas décadas do século 17. De acordo com Beeke e Jones, isso aconteceu
em virtude do surgimento do deísmo, do embate com o socinianismo e com o
arminianismo, e dos ataques de Thomas Hobbes e John Locke à validade da
ideia de consciência.
Não há dúvida de que Teologia Puritana foi o grande lançamento editorial
do ano de 2016. Numa época de redescobrimento do pensamento dos teólogos
puritanos, uma teologia sistemática que apresenta o seu pensamento teológico é
bem-vinda. Certamente, todos os amantes dos puritanos devem ler essa obra.
Além disso, o livro é uma ferramenta indispensável para todos aqueles que
desejam compreender, de fato, o que era ensinado pelos puritanos. Pesquisa-
dores e estudantes de teologia sistemática muito se beneficiarão dessa obra.
Algo interessante é que os autores deixaram de fora temas considerados difíceis
em nossos dias, como o princípio regulador do culto e a salmódia exclusiva.
Por fim, destaca-se o caráter devocional com que as doutrinas e os tópicos são
apresentados pelos autores.

135
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143

Resenha
Emilio Garofalo Neto*

CARSON, D. A. (Org). A verdade: como comunicar o evangelho a um


mundo pós-moderno. São Paulo: Vida Nova, 2015.

Todo crente que vive no século 21 já sofreu a perplexidade que acompanha


nossas interações com descrentes pós-modernos. Uma ânsia por desmascarar
todo argumento como sendo uma mera tentativa de controlar; uma enfatuada
negação de verdades que vinculem a tudo e a todos; um desejo de relegar
matérias de fé à esfera da vida privada.
Nosso tempo tem suas peculiaridades, de fato. Mas vale notar que, como
o faz em qualquer outra época, o homem pós-moderno no final das contas cria
falsos discursos para deter a verdade pela injustiça (Rm 1.18-25).1 A menta-
lidade da era vigente é, em última análise, apenas mais uma tentativa de se
rebelar contra o Deus que se revela de maneira abundante nas coisas que foram
criadas, e que julgará vivos e mortos por meio do varão a quem ressuscitou
dentre os mortos (At. 17.31). O pós-modernismo será derrotado pelo Cordeiro
de Deus. Mas, já que vivemos aqui e agora, é bom entendermos nosso tempo
a fim de sermos melhor equipados para a parte que nos cabe na peregrinação.
Aqui temos uma boa ferramenta. O livro A Verdade: Como Comunicar o Evan-
gelho a um Mundo Pós-Moderno busca ser um manual que ajude cristãos, em
particular aqueles em posição de liderança, a navegarem as águas traiçoeiras
da contemporaneidade.

* O autor tem Ph.D. em Estudos Interculturais pelo Reformed Theological Seminary, em Jackson,
Mississipi. Leciona teologia sistemática no Seminário Presbiteriano de Brasília. É professor visitante no
CPAJ, na área de teologia pastoral, devendo em 2018 assumir a posição de professor residente. Pastoreia
a Igreja Presbiteriana Semear, em Brasília.
1 As citações que Mark Dever apresenta de Aldous Huxley são excelentes em mostrar o descrente
e seu jogo de esconder a verdade (ver p. 155-157).

137
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO

A obra reúne uma ampla coletânea de artigos buscando lidar com facetas
diversas da árdua tarefa de comunicar a verdade do evangelho num tempo em
que a própria ideia de verdade parece perdida. O teólogo D. A. Carson é o
organizador do livro e a gama de autores é bem variada, indo de acadêmicos
a pastores em tempo integral e passando por obreiros em sociedades para-
-eclesiásticas labutando no território estudantil. O livro é resultado de uma
conferência sobre o assunto realizada em 1998 na Trinity Evangelical Divinity
School, em Chicago. As palestras foram convertidas para o formato de livro e
publicadas na língua inglesa em 2000. São cerca de 30 colaboradores. Alguns
artigos são longos, com mais de 20 páginas, enquanto que outros não chegam
nem a 10.
A obra já é um tanto antiga, relativamente falando, é claro. Palestras
produzidas quando o mundo eclesiástico estava ainda acordando para o pós-
-modernismo, e, embora isso não a invalide ou inutilize, é curioso ver algumas
referências culturais que foram utilizadas e que hoje não são mais tão conheci-
das, como as diversas menções a filmes como “Titanic”. Boa parte do que era
novidade em termos de relativismo cultural hoje já é lugar comum. Algumas
estatísticas agora já têm quase vinte anos. Além disso, alguns autores falam
sobre estarmos numa encruzilhada urgente e decisiva.2 É claro, se a encruzilhada
era decisiva quase vinte anos atrás, será que já mudou a situação? Além disso,
algumas ideias que eram bem novas na época do evento agora já se tornaram
lugar comuns e bem reconhecidas de quase todo crente ocidental. Nada que
prejudique demasiadamente a leitura, mas a obra fica um pouco datada. O lei-
tor pode comprar o livro com a impressão de se tratar de um livro mais atual,
contendo as últimas ideias e investigações sobre o assunto, quando na verdade
é um retrato do termômetro teológico utilizado há quase vinte anos. Grandes
eventos como a intensificação global do terrorismo islâmico, a massificação
de internet de alta velocidade e outros fatos recentes por certo mudaram alguns
elementos importantes no nosso entendimento de como ministrar no mundo
contemporâneo. De qualquer maneira, há uma grande quantidade de informa-
ção útil e perspicaz.
O âmago do livro é ajudar o leitor a se tornar mais equipado e atento na
hora de comunicar a palavra de Deus num tempo em que até mesmo a existên-
cia da verdade não se dá mais como certa. A obra é organizada em oito partes,
com artigos que cobrem razoavelmente bem cada sub-tópico e apontam onde
encontrar mais recursos.
A Primeira Parte contém as palestras plenárias de Ravi Zacharias, que
lidam com o assunto de uma forma introdutória e bastante útil. Na primeira
palestra ele trata de algumas das grandes mudanças culturais advindas com a

2 Num artigo que discute o ministério entre asiáticos na América do Norte, o autor fala sobre
estarem num limiar cultural (p. 261). O quanto mudou nessas quase duas décadas?

138
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143

pós-modernidade. Na sua segunda palestra/artigo, Zacharias lida com Atos 24


e busca paralelos sobre a situação do apóstolo Paulo diante de Félix e a nossa
diante de um mundo incrédulo. Vale a leitura: Zacharias é um teólogo astuto
e um bom observador da cultural global. O texto é permeado de referências a
pensadores como Os Guinness e C. S. Lewis.
A Segunda Parte lida mais com a filosofia e a história do pós-modernismo
(abordando Rorty e Foucalt, por exemplo), sendo um belo lugar para a orienta-
ção do novato quanto ao tema. O linguajar é acessível e mesmo as discussões
um pouco mais técnicas são tratadas com propriedade. Mesmos os leitores que,
como eu, não tenham educação formal em filosofia perceberão com tranqui-
lidade as mudanças epistemológicas envolvidas na cosmovisão pós-moderna.
Talvez seja esse o maior valor do livro: tomar um tema denso e fazê-lo palatável
e útil para o crente comum. Para quem já é versado em estudos de filosofia ou
cosmovisão, algumas discussões serão relativamente repetitivas, mas ainda
assim as partes de implementação ministerial tornam o livro valioso.
A Terceira Parte envolve o que se chama de “tópicos críticos”. São seis
artigos que tratam de questões como epistemologia (James Sire), a singula-
ridade de Cristo (Ajith Fernando) e a importância e dificuldade de tratar do
pecado no mundo pós-moderno (Mark Dever). Aliás, o texto de Dever é um
dos melhores do livro, e ainda aponta ótimas informações bibliográficas para
quem quiser saber mais.
Os artigos dessa seção são em geral bastante úteis. Por vezes, entretanto,
um artigo começa de forma promissora e depois desaponta. É o caso de Philip
Jensen e Tony Payne, que lidam com a teologia bíblica e a maneira como a
pregação fortemente enraizada nela pode ser particularmente útil no nosso
tempo que tem forte suspeita contra metanarrativas. A ideia do artigo é boa
a princípio, mas os autores tentam ser práticos em exemplificar e acabam se
perdendo um pouco, no final das contas apenas descrevendo o método que têm
utilizado em seu contexto australiano. Já Colin Smith lida bem com o tema da
pregação cristocêntrica, inclusive utilizando João Calvino e a noção do duplo
conhecimento. Smith afirma que a pregação precisa expor ao pecador sua real
situação antes que ele sequer entenda sua necessidade de Cristo.
A Quarta Parte é curta e se compõe de dois artigos que abordam passagens
bíblicas cruciais para o assunto. O primeiro deles trata de Romanos 3.21-26.
O autor, John Nyquist, lida com a doutrina da justificação no contexto pós-
-moderno, mostrando a importância de continuarmos a tratar da salvação em
categorias bíblicas ao invés de ceder às pressões do nosso tempo. De fato,
uma teologia bíblica de transformação pessoal, que coloca no lugar certo a
justificação e a santificação, é algo que boa parte da geração pós-moderna
jamais ouviu. Muitos cresceram em meio ao legalismo e moralismo farisaico
de parte da igreja evangélica, e nunca conheceram a liberdade oferecida pela
justificação pela fé somente.

139
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO

Colin Smith lida então com 2 Coríntios 5.1-11 e a ideia do pregador como
embaixador. O artigo é bem útil e nos lembra que somos representantes de
outro país. Estejamos vivendo num país moderno ou pós-moderno, é normal que
estranhemos e que nos estranhem. Precisamos é representar bem os interesses
de nosso reino. Smith compara o pregador a um embaixador que recebe um
comunicado de seu governo (Escritura) e tem de encontrar a melhor forma de
transmitir a mensagem à cultura em que ele habita (contextualização): “Ele lê
o texto com duas questões em mente: primeira, o que o governo está dizendo?
E, segunda, como expresso isso de maneira que essas pessoas compreendam”
(p. 200).
A Quinta Parte lida com o tema “igreja, universidade, etnia”. Autores
diversos tratam de como o evangelho está conectado à unidade racial e à di-
versidade étnica, e como essas discussões são relevantes em nosso tempo. Essa
seção tem material relevante, mas algumas discussões são mais relevantes para
o contexto imediato norte-americano.
No primeiro artigo da seção, Philip Jensen e Tony Payne tentam apre-
sentar um modelo que conecte o alcance evangelístico da igreja com trabalhos
realizados na universidade. Há algumas boas ideias, e os autores entram na
espinhosa discussão sobre trabalho da igreja versus trabalho paraeclesiástico.
Eles advogam ousadamente que paremos de chamar tais ministérios de para-
eclesiásticos, sugerindo que eles são tão igreja quanto as denominações em
si.3 Sugerem que essa separação é danosa, insistindo que movimentos como
Navegadores4 e Cruzada Estudantil têm natureza tão eclesiástica como as di-
ferentes denominações, com membros fieis e ativos na vida cristã. Os autores
do artigo sugerem que esses grupos deveriam começar a se reunir também aos
domingos e assumir de vez sua identidade eclesiástica.
Penso que eles detectaram aqui uma situação real; mas não entenderam
corretamente qual é o problema. De fato, há pessoas que se envolvem mais com
sua missão ou grupo paraeclesiástico do que com suas igrejas locais. E isso é
ruim. Conheço gente que passou mais de uma década num desses grupos, onde
foi convertido. Mas não ia além dessas reuniões semanais. Não se juntava à
igreja visível, nem mesmo recebera o batismo. Passava o dia do Senhor longe
do povo de Deus. Não estava debaixo de autoridade nem sujeito à disciplina.
Se os grupos paraeclesiásticos querem funcionar na prática como igreja, que

3 “Encontramo-nos na infeliz posição de negar o que somos em essência devido à política ecle-
siástica. É hora de confessar tudo—a organização paraeclesiástica tem em si bem pouco de ‘para-’. Ela
é um movimento eclesiástico. Participa da assembleia celestial de Jesus Cristo e se reúne localmente
como sua expressão para ouvir e responder à Palavra de Deus. Ela é uma igreja” (p. 220).
4 Aliás, parece que os tradutores não estão cientes de que o grupo Navigators já existe no Brasil,
pois consistentemente utilizam a terminologia em inglês, enquanto geralmente traduzem os nomes de
outros grupos.

140
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143

se organizem como tal e obedeçam às ordens bíblicas que Cristo deu à igreja,
por exemplo, no que diz respeito a liderança organizada nos moldes bíblicos
e ministração dos sacramentos. Os autores desse artigo têm má eclesiologia,
bem longe do entendimento reformado. Eles pretendem ainda, por exemplo,
dissociar adoração da assembleia solene. Confundem o fato de que devemos
adorar em todo lugar e situação, com o desfazer-se das formas históricas de
adoração como se fossem mera invencionice humana.
A Sexta Parte lida principalmente com o aspecto relacional da apresenta-
ção do evangelho. Defendendo a ideia de que os pós-modernos serão ganhos
pelo aspecto relacional mais do que pelo apelo proposicional e intelectual,
diversos autores apontam caminhos possíveis para que isso ocorra. São três
artigos e eles acabam sendo um pouco repetitivos, há grande sobreposição da
temática. De qualquer forma, são ideias em geral sadias e bíblicas. Por vezes
a teologia dos autores se mostra um pouco problemática. Por exemplo, Ron
Bennett, em seu artigo “Evangelização autêntica na igreja local em uma era
relacional”, acaba aceitando categorias impostas pelo movimento seeker-
-sensitive e vendo-o como uma alternativa viável (p. 296).5 Novamente, vale
dizer que o autor tem boas ideias também. A comparação que ele faz entre
viver no vale e viver na montanha, por exemplo, é boa e interessante. Há boas
discussões, mas algumas delas não passam de conselhos práticos baseados na
experiência do autor, o que pode ser útil ou não.
A Sétima Parte tem sete artigos que tratam de estratégias e experiências
diversas de implementação de trabalhos que buscam atingir a geração atual.
Há forte ênfase em lidar com o tema de evangelismo e discipulado no contexto
universitário. Embora haja boas ideias, penso que um modelo melhor é um
que não está no livro, aquele desenvolvido nos Estados Unidos pela Reformed
University Fellowship (RUF), um braço da Igreja Presbiteriana da América
(PCA) que não compete ou concorre com a igreja, mas é um braço da igreja
que atua nos campi universitários do país.
Mais uma vez surge o problema do relacionamento entre igreja e minis-
térios diversos. Um exemplo é Mike Tilley em seu artigo que diz que cabe a
eles da Cruzada Estudantil, ainda que não exclusivamente, cumprir o mandato
da Grande Comissão e de Atos 1.8 (p. 367). Ora, mais uma vez aparece o pro-
blema do paraeclesiástico querendo ser igreja. Querem uma suposta leveza de
seguir sem muita estrutura formal e sem uma confissão de fé, mas acabam
de certa forma tomando para si prerrogativas eclesiásticas. Se desejam seguir
o conselho do artigo de Jensen e Payne, então precisam levar a sério ordens
bíblicas como batismo e disciplina eclesiástica. Mais uma vez há confusão

5 Sobre o assunto, ofereço humildemente meu artigo “Antes só do que mal acompanhada: o
risco de casar-se com o espírito de seu tempo—uma análise das propostas de revitalização de igreja dos
movimentos seeker-sensitive e emergente”. Fides Reformata, vol. XX, nº 2, 2015, p. 41-69.

141
A VERDADE: COMO COMUNICAR O EVANGELHO A UM MUNDO PÓS-MODERNO

entre objetivo e método da missão. Acabam, ainda que implicitamente, tra-


tando ordenanças eclesiásticas (liderança formal escolhida pela membresia,
sacramentos, disciplina, interconectividade e interdependência) como se fossem
meros estorvos que prejudicam a agilidade da missão. É um pouco cansativo
ver líderes paraeclesiásticos se colocando como a linha de frente da missão e
reclamando da suposta burocracia e inércia da igreja, enquanto eles mesmos
veem a missão de maneira muito restrita e não sujam as mãos com as longas
horas de pastoreio, discipulado e disciplina.
De qualquer maneira, há ideias boas e proveitosas nessa sétima parte,
inclusive o entendimento de que a comunidade cristã como um todo deve se
envolver no evangelismo e no modelar da vida. Há grande dificuldade em
abandonar não somente as ideias rebeldes a Cristo, mas o próprio estilo de vida
e comunidade associados à rebeldia. No livro Pensamentos Secretos de uma
Convertida Improvável,6 Rosaria Butterfield insiste nesse aspecto. Tendo ela
mesma saído do homossexualismo e do ativismo feminista, mostra como foi
duro deixar a comunidade em que encontrava tanto significado. Embora a
seção seja benéfica, o livro acaba ficando demasiadamente enviesado em di-
reção ao ministério no campus e na academia universitária. É claro, o evento
que originou esse livro teve esse foco, mas faz falta o pensar do assunto em
outros contextos.
A Oitava e última parte tem duas plenárias de encerramento, sendo que
a de Carson é particularmente útil, tratando de Paulo em Atenas (Atos 17) e
sua aplicabilidade para nossos dias. Carson se sai bem, mas ainda prefiro o
tratamento de Cornelius Van Til e de Scott Oliphint sobre o assunto.7
Como livro composto de artigos diversos, a qualidade varia. Há alguns
artigos excelentes como os de Carson. Outros são bem fracos ou rasos. Há
outros que não são ruins, mas apenas não estão no mesmo nível. Há textos de
cunho mais acadêmico e outros intencionalmente planejados para serem mais
parecidos com uma conversa informal. Como fruto de uma conferência, talvez
fosse inevitável haver certa sobreposição de assuntos, mas ainda assim fica
por vezes um tanto cansativo.
Enfim, embora todo cristão possa tirar benefício desse útil livro, ele é
especialmente indicado para os que labutam na arena da comunicação formal
da palavra de Deus, sejam eles pregadores, professores ou mesmo aqueles
envolvidos em discipular e formar a mente de um mundo que se rebela conta o
conhecimento de Deus. A obra se junta a diversos outros títulos em português

6 BUTTERFIELD, Rosaria. Pensamentos secretos de uma convertida improvável. Brasília, DF:


Monergismo, 2013.
7 VAN TIL, Cornelius. Paulo em Atenas. Brasília, DF: Monergismo, 2016; OLIPHINT, Scott.
A batalha pertence ao Senhor: o poder da Escritura na defesa da nossa fé. Brasília, DF: Monergismo,
2013.

142
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 137-143

que ajudam o cristão a lidar com a pós-modernidade. Dentre os ainda não


traduzidos, penso que o livro de James K. A. Smith, How (Not) to Be Secular,
seja particularmente útil.8
A encadernação é boa e resistiu bem a minha leitura e marcações diver-
sas. Capa bonita e livro prazeroso de manusear. Não notei grandes problemas
na tradução e revisão. A editora Vida Nova está de parabéns pela publicação.
A Verdade é um livro útil, ainda que tenha partes bem mais fortes que outras.
Recomendado!

8 Grand Rapids: Eerdmans, 2014.

143
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147

Resenha
Alderi Souza de Matos*

SOUZA, José Roberto de. Presbiterianos x pentecostais: a reação da


Igreja Presbiteriana do Brasil ao advento do pentecostalismo em Pernam-
buco (1920-1930). São Paulo: Fonte Editorial, 2016. 164p.

José Roberto de Souza é professor e coordenador do Departamento de


História da Igreja no Seminário Presbiteriano do Norte (SPN), em Recife.
Bacharelou-se em teologia no SPN e na Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP) e é especialista em História da Religião e da Arte pela Universida-
de Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). É mestre em Teologia e História
(SPN), mestre em Ciências da Religião (UNICAP) e doutorando em Ciências
da Religião (UNICAP). Integra o grupo de pesquisa Religiões, Identidades
e Diálogos, da mesma universidade. O livro Presbiterianos x Pentecostais é
fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 2013.
O autor começa por lembrar a esmagadora superioridade numérica e a
grande influência do pentecostalismo no cenário protestante brasileiro (p. 21).
Observa que os pesquisadores têm se debruçado prioritariamente sobre o pen-
tecostalismo da segunda metade do século 20, e mais especialmente sobre o
neopentecostalismo, mas ainda existem relativamente poucos estudos sobre
as primeiras décadas do movimento no Brasil. Adota como fundamentação
teórica conceitos de autores como Pierre Bourdieu e Antonio Gouvêa Mendonça
(p. 25). As principais fontes primárias consultadas foram atas do Presbitério
de Pernambuco, de algumas de suas igrejas locais e matérias publicadas em
periódicos denominacionais, principalmente o Norte Evangélico.
O objetivo da pesquisa é analisar como uma denominação histórica, no
caso a Igreja Presbiteriana do Brasil, reagiu ao advento do pentecostalismo
numa das regiões em que atuava, o Estado de Pernambuco. O 1º capítulo,

* Professor de Teologia Histórica e coordenador do S.T.M. no Centro Presbiteriano de Pós-


-Graduação Andrew Jumper. Historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.

145
PRESBITERIANOS X PENTECOSTAIS

“Mapeamento histórico do(s) protestantismo(s) em terras Brasilis” (p. 29),


volta-se para o estudo do protestantismo de missão e a contribuição do pio-
neiro Ashbel Green Simonton. Aborda tópicos como o presbiterianismo norte-
-americano, a chegada do protestantismo ao Brasil, o trabalho pioneiro de
Simonton e o seu legado. Conclui com uma breve descrição das fases históricas
do presbiterianismo no país (p. 53): implantação, consolidação, dissensão,
reconstituição, cooperação, organização, polarização e período atual.
O 2º capítulo, intitulado “Um retrospecto do(s) pentecostalismo(s) e o
seu resultado em solo brasileiro”, começa com um levantamento dos precur-
sores do movimento pentecostal, ou seja, fenômenos de natureza carismática
ou entusiástica que surgiram ao longo da história da igreja (p. 67-83). Aborda
grupos como montanistas, cátaros, anabatistas, camisardos, quacres e shakers.
Também considera movimentos que, embora não fossem entusiásticos em si,
continham elementos que iriam ser importantes para essa cosmovisão. É o caso
dos pietistas, com sua ênfase na experiência pessoal, colocada acima da doutrina
ou do ritualismo (p. 75); do primeiro Grande Despertamento norte-americano,
com seu célebre personagem central, Jonathan Edwards, e do Segundo Des-
pertamento, com seu controvertido líder Charles Finney. Essa seção termina
com três outros precursores: o pastor presbiteriano escocês Edward Irving, o
fundador do metodismo João Wesley e o movimento de Santidade (Holiness).
A seção seguinte desse capítulo trata do surgimento do pentecostalismo
moderno nos Estados Unidos, com seus principais personagens iniciais e suas
tensões (p. 83). Destaca as contribuições de três fundadores: Charles F. Parham,
dirigente da escola bíblica em Topeka, no Kansas, onde ocorreram as primeiras
manifestações pentecostais; William J. Seymour, o líder do Avivamento da
Rua Azusa, em Los Angeles, e William Durham, o pastor de Chicago que foi
o principal responsável pela difusão internacional do movimento.
As últimas seções do 2º capítulo analisam a chegada do pentecostalismo
ao Brasil, a partir de 1910, embora tenha existindo anteriormente uma curiosa
manifestação de entusiasmo religioso no país. Na década de 1870, o engenheiro
e presbítero Dr. Miguel Vieira Ferreira causou uma divisão na Igreja Presbi-
teriana do Rio de Janeiro e criou a chamada Igreja Evangélica Brasileira, que
subsiste até os dias atuais (p. 89). O autor utiliza a conhecida análise de Paul
Freston, que propõe três fases distintas na implantação do pentecostalismo
no Brasil. A primeira fase teve início com a fundação da Congregação Cristã no
Brasil no Sul do país (1910), pelo italiano Luigi Francescon, e a fundação das
Assembleias de Deus no Norte/Nordeste (1911), pelos suecos Gunnar Vingren
e Daniel Berg. Tendo surgido inicialmente em Belém do Pará, as Assembleias
de Deus brasileiras logo chegaram ao Nordeste e em particular a Pernambuco.
O terceiro e último capítulo do livro analisa a reação dos presbiterianos
aos pentecostais, começando por uma exposição das diferenças doutrinárias entre
os dois grupos. Os primeiros têm sua confessionalidade apoiada nas Escrituras

146
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 145-147

e nos símbolos de fé de Westminster, ao passo que os pentecostais priorizam


a experiência com o Espírito Santo (p. 105). O autor sustenta essa afirmação
com base no diário do pioneiro Vingren e em documentos oficiais das Assem-
bleias de Deus.
Após narrar a implantação do presbiterianismo em Pernambuco, na dé-
cada de 1870, pelo missionário John Rockwell Smith, o autor observa que o
trabalho da Assembleia de Deus teve início nesse estado em 1916, por meio de
Adriano Nobre, um ex-presbiteriano procedente de Belém (p. 119). Todavia,
a atuação desse obreiro foi breve e quem realmente expandiu e consolidou
o trabalho foi o missionário Joel Carlson, a partir de 1918, considerado por
muitos o verdadeiro fundador dessa igreja em Pernambuco (p. 123).
A partir de 1922, o novo grupo religioso passou a inquietar a liderança
presbiteriana do estado. Numa reunião do Presbitério de Pernambuco, os Revs.
Jerônimo Gueiros e Antônio Vitalino de Melo manifestaram a sua preocupação
com o crescimento de diferentes “heresias”, principalmente o sabatismo e
o “pentecostismo”, solicitando aos colegas que escrevessem matérias sobre o
assunto, a serem publicadas no Norte Evangélico, periódico oficial daquele
concílio (p. 129). Merece destaque uma série de artigos de Jerônimo Gueiros
intitulada “A Seita Pentecostal”, publicada no referido jornal entre 31 de
dezembro de 1923 e 30 de junho de 1924. Os cinco artigos abordaram os
seguintes temas: uma heresia dos últimos tempos, o Pentecostes e a profecia
de Joel, o Pentecostes e o dom de línguas, o batismo com o Espírito Santo na
visão reformada, e os milagres, seu desígnio e sua oportunidade. Em 1924, o
Rev. Gueiros publicou esses artigos em forma de livreto, com o título A Heresia
Pentecostal (p. 137).
O autor conclui o livro mencionando o ressurgimento recente dessa
preocupação na IPB, motivada pelas inquietações de muitos concílios acerca
de questões litúrgicas e da chamada contemporaneidade dos dons do Espírito.
Em 1995, o Supremo Concílio formou uma Comissão Permanente de Doutrina,
que elaborou uma Carta Pastoral tratando da doutrina do Espírito Santo e dos
dons de línguas e profecia, acompanhada de várias recomendações (p. 141).
Na conclusão, José Roberto de Souza declara que a intenção primária da
pesquisa foi resgatar os fatos históricos e apresentá-los de maneira objetiva,
sem maiores juízos de valor, algo que poderá ser feito por outros estudos sobre
o tema. Lembra que uma reação como essa, conforme as análises de Bourdieu
e outros, é parte dos mecanismos de autopreservação de uma organização que
perde adeptos para outros grupos e se vê compelida a defender a sua própria
identidade e convicções. Esse livro é uma contribuição valiosa para a melhor
compreensão de um momento histórico importante na trajetória tanto das
denominações tradicionais como do pentecostalismo nascente em território
brasileiro.

147
FIDES REFORMATA XXII, Nº 1 (2017): 149-150

Resenha
Robson Rosa Santana*

QURESHI, Nabeel. Procurei Alá, encontrei Jesus: um muçulmano


piedoso abraça o evangelho. São Paulo: Cultura Cristã, 2016. 253p.

Esse livro relata a conversão de um muçulmano de nascença e tradição


histórica à fé em Cristo. Nabeel Qureshi é da mesma tribo de Maomé. Cresceu
num ambiente cultural familiar em que os líderes são obedecidos sem ques-
tionamentos e onde abdicar da fé islâmica é passível de morte. A trajetória de
sua conversão é dramática e nos apresenta o arcabouço cultural e religioso da
cosmovisão islâmica.
Qureshi nasceu no Paquistão e teve uma infância muito solitária. Sua
família foi para os Estados Unidos quando ele era jovem. Seu pai foi da Mari-
nha Americana e mudou-se algumas vezes dentro do país. Também morou por
algum tempo na Escócia. Nesses países os muçulmanos eram minoria. Isso o
fazia ser diferente e o impendia de ter amigos fora do contexto muçulmano.
As culturas ocidentais eram vistas com maus olhos, levando a família
Qureshi a evitar contatos com não islâmicos e gastar tempo na doutrinação dos
dois filhos – Nabeel e sua irmã mais velha – nas sendas do islã.
Estudou numa universidade perto de sua casa. Lá conheceu David
Wood, um jovem comprometido com Cristo e a evangelização. Os diálogos a
respeito da fé tiveram início. A primeira questão de Nabeel era a respeito da
fidedignidade do Novo Testamento, uma vez que, segundo ele, foi alterado e
reescrito várias vezes.
Seu amigo Wood tinha conhecimento suficiente para dar razão da confia-
bilidade da Bíblia. Ao fazer isso, desafiou Qureshi sobre a história do Alcorão.
Este disse que o Alcorão não havia sido alterado. Mas seu amigo disse que
quando Maomé morreu não havia uniformidade dos textos do Alcorão, que havia
versões diferentes e que a uniformidade só veio quando se decidiu padronizar

* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano Brasil Central e mestre em teologia
(M.Div.), com habilitação em Missões Urbanas, pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

149
PROCUREI ALÁ, ENCONTREI JESUS: UM MUÇULMANO PIEDOSO ABRAÇA O EVANGELHO

o Alcorão, destruindo versículos e até suratas inteiras, que alguns próximos a


Maomé consideravam verdadeiras.
O que Nabeel aprendeu de seus pais foi que ele deveria aprender a de-
fender sua fé, apenas reconhecendo que o que eles criam era a verdade. No
entanto, na sua educação acadêmica aprendeu a ser crítico. A cultura ocidental
dizia que era necessário questionar para alcançar a verdade. Isso era o contrário
da cosmovisão islâmica. Essa cultura ensinava que sempre haveria respostas
adequadas para afirmar sua fé. Entretanto, as respostas dos mestres muçulma-
nos não foram suficientes.
Wood lhe deu livros do apologista cristão Josh McDowell. Este o conven-
cia da divindade de Cristo, enquanto a doutrina central do Islã é a “unicidade
de Deus”. Estudos científicos concorriam para a defesa da fé em um Deus
Trino. Qureshi também ficou abalado quando começou a estudar a vida de
Maomé nas próprias fontes muçulmanas. Descobriu que ele foi violento, matou
sem provocação. Seus soldados estupravam mulheres cativas e casavam com
crianças de apenas nove anos.
A tensão crescia em seu coração, principalmente o receio de machucar seus
pais, caso se tornasse cristão, e romper o relacionamento com eles. Cada vez
mais ele se convencia acerca da veracidade da fé bíblica. Wood o aconselhou
a pedir essa convicção a Deus. Ele afirma ter tido três sonhos que serviram de
testemunho para a fé cristã. Ele foi convencido por Deus, mas o maior desafio
foi dizer isso aos seus pais. Ao contar, o relacionamento ficou abalado, mas o
amor paterno-filial foi maior. Porém, quando disse que abandonaria a medicina
para servir no ministério cristão, os laços se romperam por cerca de um ano.
Na introdução desse livro autobiográfico e apologético, Qureshi mostra
as três finalidades que teve em mente ao escrevê-lo: (1) derrubar paredes,
dando aos leitores uma perspectiva do coração de um muçulmano; (2) equi-
par os leitores com fatos e conhecimentos que demonstram o contraste entre
as duas crenças, mostrando a veracidade do cristianismo; e (3) mostrar a luta
interior dos muçulmanos ao converter-se à fé cristã, descrevendo suas dúvidas
e sacrifícios. Esses objetivos foram alcançados. Assim, através da descrição
passo a passo da sua conversão, Nabeel Qureshi mune os leitores interessados
na conversão de muçulmanos, tornando-os mais eficazes na evangelização.
Qureshi alcança esses objetivos poderosamente. Ele explica a mentalidade
islâmica, algo que qualquer um que testemunha a muçulmanos deve entender
se deseja ser um apologista eficaz. Ao levar o leitor através de seu próprio
processo de conversão, passo a passo, ele descreve os argumentos que foram
mais convincentes para ele e que outros podem aplicar em seus próprios mi-
nistérios com muçulmanos. Como apêndices, o autor inclui no final de cada
capítulo um ensaio de um renomado apologista.1

1 No final de agosto de 2016, aos 33 anos, Nabeel Qureshi anunciou que estava com um câncer
no estômago. Desde então, ele vem lutando contra essa grave enfermidade.

150
Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO


ANDREW JUMPER

Venha estudar conosco!


Cursos modulares, corpo docente pós-graduado, convênio com instituições inter-
nacionais, biblioteca teológica com mais de 40.000 volumes, acervo bibliográfico
atualizado e informatizado.

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São três cursos totalmente online: Especialização em Estudos Teológicos (EET), Es-
pecialização em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).

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O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução do processo de restauração
do ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usando
ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.

Mestrado em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)


Trata-se do mestrado eclesiástico do CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestrados
profissionalizantes, diferindo, entretanto, do Master of Divinity norte-americano
apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para
o ministério pastoral. O MDiv do CPAJ não é submetido à avaliação e não possui
credenciamento da CAPES.

Mestrado em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)


Esse mestrado acadêmico difere do Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa
e sua harmonização com os mestrados acadêmicos em teologia oferecidos em uni-
versidades e escolas de teologia internacionais. O STM do CPAJ não é submetido à
avaliação e não possui credenciamento da CAPES.

Doutorado em Ministério (DMin)


O Doutorado em Ministério (DMin) é um curso oferecido em parceria com o Reformed
Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconheci-
mento da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Estados Unidos.
O corpo docente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,
com sólida formação em suas respectivas áreas.

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