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Observação: O texto foi digitado novamente pelo autor a partir da edição citada acima, cujos
erros, no entanto, foram corrigidos. Para facilitar eventuais citações, foram indicados entre
colchetes [...] os números das páginas correspondentes na edição da ASTE.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 03
II – O BATISMO ................................................................................................ 11
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 36
Sob o título genérico – Adoração no Segundo século – tenciona-se analisar o culto cristão
bem como as suas manifestações sacramentais básicas – o batismo e a. Ceia – no período
histórico determinado. Desde já, porém, fica descartada a pretensão de se alcançar descrição e
interpretação exaustivas. Um sem-número de questões, certamente, há de ficar sem respostas.
Mesmo porque o caráter das fontes à disposição do pesquisador é o principal obstáculo a ser
vencido.
Com efeito, as informações, quanto ao tema proposto, contidas nos Pais Apostólicos, nos
Apologistas e demais escritores do Segundo Século, salvo talvez Justino, ou não passam de
referências ocasionais e passageiras, ou se mostram marcadamente fragmentárias. Explicações
não faltam. Dado os problemas urgentes enfrentados pela Igreja, sobretudo as perseguições e os
desvios heréticos, o objeto da reflexão cristã não se voltava primariamente para as suas próprias
instituições, a não ser neste contexto imediato. Tal condicionamento inibiria inevitavelmente o
tratamento amplo e sistemático de qualquer aspecto da vita christiana. Reforçando essa
tendência, enumera-se, ainda, a disciplina do arcano, pela qual toda a existência na comunidade
dos cristãos era envolta numa atmosfera de mistério.
é notável a continuidade com os textos que 1hes antecedem, embora se possa igualmente divisar
os novos rumos que o desenvolvimento litúrgico tomaria.
Outras vezes, no entanto, foi necessário retroagir no tempo a fim de sublinhar a mudança
de ênfase ocorrida na fase estudada, que permaneceu sempre como ponto de referência. Um
aspecto apenas tangencialmente lembrado, mas que merece ser pesquisado mais detidamente, é o
relacionamento culto e cultura. Se, apesar disso, conseguiu-se formular uma visão panorâmica, o
objetivo dessa monografia foi alcançado.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 5
O culto – como atividade litúrgica voltada para o transcendente – é tão antigo quanto a
humanidade. Vestígios arqueológicos demonstram que, desde tempos remotos, o ser humano
devotou profundo temor e respeito para com os aspectos numinosos de sua existência. Às vezes,
esta devoção tomou a forma das religiões animistas; outras vezes, corporificou-se em extensos
conjuntos de doutrinas e ritos, habilmente manipulados pela casta sacerdotal.
À vista disso, algumas questões significativas poderiam ser levantadas: até onde estes
acontecimentos, potencialmente reveladores, romperam com as estruturas do culto judaico?
Quais os elementos constitutivos da nova liturgia? Onde reside, por assim dizer, a sua
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 6
originalidade? A tese de William D. Maxwell, sem dúvida, coloca o problema nos seus devidos
termos: “o culto cristão, como coisa distintiva e indígena, nasceu da fusão da sinagoga e do
cenáculo, no crisol da experiência cristã”1.
Essa afirmação sublinha, por um lado, a herança judaica. Os cristãos primitivos, segundo
o testemunho escriturístico, não só descendiam da raça de Abraão como “freqüentavam
assiduamente o Templo” (At 2.46 et passim). O apóstolo Paulo, igualmente, antes de dirigir-se
aos gentios, procurava se reunir com os seus compatriotas nas sinagogas (At 13.5, 14; 14.1; 17.2,
10, 17, etc). Era, pois, inevitável a influência destes na adoração da Igreja. Cumpre ressaltar, no
entanto, que, comparando ao legado da sinagoga, o serviço do Templo poucas marcas deixou no
culto dos cristãos. Acontece que, destruído pelas tropas romanas em 70, o majestoso Templo de
Jerusalém, a partir da dispersão, cedera em importância para as sinagogas. Aliás, nenhuma
considerável comunidade de judeus prescindia de sua presença. Nas grandes cidades do mundo
antigo, elas poderiam ser, com facilidade, localizadas. As reuniões na sinagoga constituíam-se,
acima de tudo, como liturgia da Palavra, cujo momento central era a leitura e comentário,
principalmente da Lei e, na época de Jesus, também dos profetas, naturalmente na atmosfera de
louvor criada pelas orações, antífonas e cânticos dos salmos. Estes elementos essenciais seriam,
mais tarde, adotados nas celebrações da comunidade primitiva. Mesmo no 2º século, quando o
cristianismo rompeu definitivamente com as suas origens semitas, buscando conquistar espaço
junto â cultura helenista, esta estrutura básica de adoração permanecerá inalterada.
Por outro lado, com igual ênfase, deve-se assinalar que o fato cristão reelaborou [p. 329]
completamente os dados da tradição judaica. Novo conteúdo, mais afeito à revelação de Cristo,
caracterizará as reuniões litúrgicas. Ao invés da Lei, os Profetas – “discípulos pelo Espírito”
(Inácio, Mg 9,2) – e, aos poucos, as Escrituras cristãs tornar-se-ão o objeto da reflexão da Igreja.
Hinos e preces, expressando mais adequadamente a piedade dos seguidores de Jesus, serão
compostos.
1
MAXWELL, W. D. El Culto Cristiano. Buenos Aires: Methopress, 1963, p. 19. Vide também, p. 15-19.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 7
“E no dia chamado do Sol, realiza-se uma reunião num mesmo lugar de todos os que
habitam nas cidades ou nos campos. Lêem-se os comentários dos Apóstolos ou os
escritos dos profetas, enquanto o tempo o permitir. Em seguida, quando o leitor tiver
terminado a leitura, o que preside, tomando a palavra, admoesta e exorta a imitar
estas coisas sublimes.
Depois nos levantamos todos juntos e recitamos orações; e como já dissemos, ao
terminarmos a oração, são trazidos pão; vinho e água e o que preside, na medida do
seu poder, eleva orações e igualmente ações de graças e o povo aclama, dizendo o
Amém. Então vem a distribuição e a recepção, por parte de cada qual, dos alimentos
eucaristizados, e o seu enviou aos ausentes através dos diáconos.
Os que possuem bens e quiserem, cada qual segundo sua livre determinação, dão o
que lhes parecer, sendo colocado à disposição do que preside (...) o qual se torna
provedor de quantos padecem necessidade!”2.
Salta aos olhos as partes integrantes dessa celebração: leitura das Escrituras, pregação,
oração comum, eucaristia e distribuição de bens aos necessitados. O quadro traz à memória as
descrições que Lucas cuidadosamente elabora sobre a vida da comunidade primitiva (cf. At
2.4247; 4.32-35). Além disso, atesta-se a influência do culto na formação do cânon sagrado. O
ponto culminante da reunião evidencia-se prontamente: a Ceia do Senhor, de cuja participação
nem sequer os ausentes são privados. A expressão “na medida do seu poder” refere-se à oração
eucarística espontaneamente formulada segundo a capacidade do dirigente. Ao que parece,
nenhuma forma é fixada. A partilha dos bens realiza concretamente a comunhão sacramental.
Outras passagens enriquecem e confirmam a narrativa do mártir cristão. Uma delas, assaz
sucinta, pertence à Apologia dirigida ao Imperador Adriano. Escrevendo antes de 130, Aristides
de Atenas observa laconicamente a prática habitual dos cristãos: “Todas as manhãs e horas
louvam e glorificam a Deus pelos benefícios recebidos, dando graças por seu alimento e
bebida”3. Comprova-se a importância da sagrada refeição no contexto das celebrações
comunitárias.
2
Apologia I, 67.3-6. In: BECKHAUSER, Frei Alberto, “Textos Catequéticos-litúrgicos de São Justino”. In:
Tradição Apostólica de Hipólito de Roma. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 82-3. As próximas citações serão
feitas a partir desta edição, indicando-se entre parênteses o capítulo a que se referem. O texto pode ser
lido também em BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967, p. 103-5, onde é
solenemente apresentado sob o título “Culto Cristão no Segundo Século”; e em GOMES, Cirilo Folch.
Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, p. 65-7.
3
Apud GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, p. 63.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 8
Omitiu-se até aqui um aspecto vital: o tempo litúrgico. Neste sentido, é bom lembrar que
a observância do primeiro dia da semana – o dies domini – remonta aos tempos apostólicos (At
20.7; 1Co 16.2; Ap 1.10) e encontra o seu fundamento como memorial da ressurreição (Mt 28.1
e paralelos). Por isso, em linguagem direta, sem quaisquer explicações, admoesta o Didaquê:
“Reunindo-vos no dia do Senhor, parti o pão e dai graças, depois de haver confessado vossas
transgressões, para que o vosso sacrifício seja puro”5. Dispensa-se, como se vê, a argumentação
em favor do domingo como dia de culto. A justificação, no entanto, apareceria, no calor da
polêmica com os judaizantes, nas Cartas de Inácio de Antioquia:
4
In: BETTENSON, H., op. cit., p. 29.
5
SALVADOR, José Gonçalves (ed.). O Didaquê – Ou "O Ensino do Senhor Através dos Doze Apóstolos".
São Paulo: Imprensa Metodista, 1980, cap. 14.1, p. 80. Existe outra versão em português: Zilles, Urbano
(ed.). Didaqué – Catecismo dos Primeiros Cristãos. Petrópolis: Vozes, 1978. Salvo indicação, segue-se a
primeira tradução.
6
Magnésios 9. In: ARNS, Dom Paulo Evaristo (ed.). Cartas de Santo Inácio de Antioquia. Petrópolis:
Vozes, 1970, p. 53. As próximas referências a essa obra seguem essa publicação.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 9
À nova ordem, inaugurada pela vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, corresponde a
nova prática da fé. Abandona-se, finalmente, o preceito sabático, firmado na antiga aliança (Dt
5.15), abraçando-se, com firmeza, a novidade do acordo selado através da ressurreição de Jesus.
De modo semelhante, porém num contexto mais sereno, Justino, o Mártir, escrevendo aos
pagãos, expôs, com clareza, o sentido da celebração dominical:
“Fazemos a reunião todos juntos no dia do Sol, porque é o primeiro dia, em que
Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o cosmos, e Jesus Cristo, nosso
Salvador no mesmo dia ressuscitou de entre os mortos...” (Apologia I, 67.7).
Não obstante a importância capital destas celebrações, elas não esgotam O todo da vida
cultual. O Didaquê, por exemplo, prescreve jejuns às quartas e sextas-feiras e recomenda que o
Pai Nosso seja rezado três vezes ao dia (8.1-2). Posteriormente, Clemente de Alexandria
precisaria as horas de oração: à terça, sexta e nona, isto é, às 9, 12 e 15 horas, ressalvando,
entretanto, que o cristão gnóstico ora em todo o tempo7. Hipólito de Roma, por seu turno,
distinguirá sete momentos de oração, relacionando-os à vida de Jesus, a fim de que o fiel supere
as tentações, tendo constantemente Cristo na lembrança8. [p. 331]
7
Cf. BUENO, Daniel Ruiz. (org.). Padres Apostólicos. Madrid: La Editorial Católica, Biblioteca de
Autores Cristianos 65, 1979, p. 42.
8
Cf. NOVAK, Maria da G. (ed.). Tradição Apostólica de Hipólito de Roma. Petrópolis: Vozes, 1981, § 82,
88-96, p. 62-6.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 10
II – O BATISMO
Por sua vez, o batismo cristão seria inaugurado após a efusão do Espírito Santo no
Pentecoste, constituindo-se em rito de admissão à Igreja, de concessão do perdão dos pecados e
de recepção da dádiva do Espírito (cf. At 2.38-41). Assim realizado, sob o imperativo de Jesus
(Mt 28.l 19), cumpriam-se as palavras, profeticamente anunciadas pelo Batista (Mt 3.11 ). Lucas,
narrando a expansão inicial da Igreja sob o impulso do poder divino (At 1.8), salienta inúmeros
relatos de batismo; quiçá inclusive o ritual mais primitivo cf. 8.36-38). Porém, a teologia
batismal encontrou desenvolvimento mais representativo nos escritos paulinos. Segundo o
apóstolo dos gentios, ser batizado significa integrar o novo éon por meio da participação na
morte e ressurreição de Cristo (Rm 6.4; Cl 2.12). As conseqüências éticas são postas
imediatamente em relevo. Aquele que crê revestiu-se de Cristo (Gl 3.27), não está mais sob o
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 12
domínio do pecado, devendo apresentar os seus membros a Deus como instrumentos de justiça
(Rm 6.13-14). A dimensão corporativa também encontra o seu lugar no conjunto dessa teologia:
o ato batismal marca a inserção no Corpo de Cristo (1Co 12.13; Gl 3.27s; Ef 4.4s). Certamente
inspirados [p. 332] por essa reflexão, alguns, em Corinto, buscaram se batizar em lugar dos seus
mortos (1Co 15.19). Por fim, deve-se afirmar ser discutível, com base em 1Co 1.14-17, se Paulo
considerava o batismo dispensável (contra Walker). Tertuliano, aliás, já colocava em cheque essa
interpretação (cf. De Batismo, capítulo XIV).
Não tardou, entretanto, que muitos entendessem o rito batismal era imprescindível.
Destarte, no ambiente em que se formou a literatura joanina, ensinava-se a necessidade de
“nascer da água e do Espírito” para “entrar no reino de Deus” (Jo 3.5). Outros insistiam na
seqüência “crer e ser batizado” (Mc 16.16). Conseqüentemente, os cristãos seriam descritos
como sinalizados pela “unção do Santo” (1Jo 2.20,27) e como portadores da semente divina (1Jo
3.9).
9
Visão III, 1-7. In: GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas, p. 56-7.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 13
alegoricamente a profecia de Ezequiel (47.1, 12), onde águas fluem do Templo espalhando
fecundidade, conclui:
Isto quer dizer que nós baixamos às águas lamentando os nossos pecados e sujeira, e
subimos levando frutos em nosso coração, isto é, com o temor e a esperança de
Jesus em nosso espírito?10
Não se pode deixar passar desapercebida a analogia com o asseio corporal. Assim como,
no banho, se mantém a limpeza do corpo, assim no batismo, se lavam as manchas do pecado; e
se alcançam as bênçãos da redenção. De tal modo o ritual batismal estava gravado na
mentalidade dos cristãos que determinaria, sub-repticiamente, a sua própria conceituação.
Em consonância com a tendência legalista – justificável, até certo ponto, nos pais
apostólicos, em virtude da composição majoritariamente pagã das congregações –, o autor de
uma das mais antigas homilias cristãs, a 2ª Clemente, enfatiza as implicações morais do batismo.
Depois de recordar, evocando as Escrituras (Ez 14.14, 20), a ineficácia da súplica dos justos para
livrar os seus legítimos filhos do castigo divino, indaga positivamente: “... com que confiança
nós entraremos no palácio de Deus, caso não houvermos guardado nosso batismo puro e sem
mancha? Ou quem será nosso advogado, se nos acharmos sem obras santas e justas?”11 Adiante,
o mesmo escritor admoesta quanto â observância dos “mandamentos do Senhor” e [p. 333]
acrescenta: “Guardai a vossa carne e o selo incontaminado, para que recebamos a vida eterna”
(8.6). O scholar da história das doutrinas, Seeberg, observa atentamente que, na passagem
transcrita, o termo “selo” substitui a batismo.12 Por conseguinte, a expressão veemente do
pregador atesta que, a despeito das expectativas e do ensino da Igreja oficial, muitos ignoravam
os votos do pacto batismal. Ontem, como hoje, a falta de vivência do batismo trazia sérios
problemas para a assembléia dos cristãos.
10
11.11; cf. 11.1, 8, in BUENO, Daniel Ruiz, op. cit.
11
6.8-9. In: BUENO, Daniel Ruiz, op. cit., p. 360.
12
Cf. SEEBERG, Reinhold. Manual de Historia de las Doctrinas. Buenos Aires: Casa Bautista de
Publicaciones, 1967, Tomo I, p. 86. Eugene L. Brand, apoiado na tese de Geoffrey Lampe – The Seal of
the Spirit –, porém analisando passagens escriturísticas (cf. 2Co 1.22; Ef 1.13s, 4.30; Ap 9.4), chega à
conclusão semelhante, em Batismo – Uma Perspectiva Pastoral. São Leopoldo: Sinodal, 1982, p. 15.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 14
O Didaquê supõe um estágio mais primitivo da liturgia batismal (7.1-4). Nele, o caráter
de manual se sobrepõe ao de tratado sistemático. Por isso, coerente com o seu espírito
pragmático, silencia-se completamente sobre os aspectos teológicos. Nenhuma alusão é feita ao
perdão dos pecados, à ordem ou ao batismo de Jesus, ou a qualquer outro evento salvífico. O
autor do “Ensino dos Apóstolos” limita-se a recomendar, de acordo com Mt 28.19, a fórmula
batismal trinitária (7.1,3), embora não desconheça a cristológica (9.5; cf. At 2.38; 8.16; 10.48;
19.5; Rm 6.3; Gl 3.27). No que tange ao modo, aconselha sumariamente o uso de “água viva”,
ou seja, corrente. Nisso deixa transparecer, como também se infere dos textos anteriores, que
esse era o costume regular da comunidade primitiva, não obstante deva-se rememorar que “os
quadros artísticos do batismo por imersão que sobreviveram (...) dos tempos primordiais da
Igreja, indicam que, mesmo onde havia possibilidade, os batizandos não eram submergidos”13.
Nem sempre, pois, a imersão era total. Posteriormente, devido a questões de natureza prática e à
universalização do batismo infantil, a submersão quase desapareceria. O próprio Didaquê
reconhece outras formas como válidas:
Mas se não tens água viva, batiza em outra água; se não podes em fria, (batiza) em
quente. E se não tens nenhuma nem outra, derrama água na cabeça, três vezes, “em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (7.2-3).
Deve-se assinalar, entretanto, que o batismo só tem lugar depois que o neoconvertido
ouviu “previamente todas estas coisas” (7.1), isto é, a Doutrina dos Dois Caminhos, expostas nos
capítulos antecedentes (1 a 6). O cuidado com que se descreve os preceitos cristãos mais
elementares mostra que as instruções visam, acima de tudo, pessoas procedentes de ambiente
pagão (cf. Epístola de Barnabé, 18-20). Com os dados que se dispõe, é difícil determinar por
quanto tempo se alongava o catecumenato. Pode-se pensar em alguns dias ou semanas. Ao cabo
desse período, tanto o batizando quanto o oficiante, bem como todos que solidariamente o
desejassem, jejuavam um ou mais dias antes (7.4). Ao que parece, os celebrantes eram membros
comuns da comunidade.
O mesmo não se pode dizer em relação [p. 334] às cartas de Inácio (c. 107-110). Este
eminente personagem situa-se no alvorecer da “Igreja Católica”. Aliás, é o primeiro a utilizar
13
BRAND, E. L., op. cit., p. 17.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 15
esta expressão (Cf. Esm 8.2). Líder de prestígio amplamente reconhecido, tem de se defrontar
com desafios precisos, entre os quais, a organização da igreja e os desvios heterodoxos,
principalmente dos círculos judaizantes e docetas. Assiste a ascendência do bispo monárquico
local – não diocesano – cujo grupo integra. Exalta a dignidade e poder episcopais e a comunhão
com a hierarquia, a ponto de asseverar que a ausência do bispo, como guardião da ortodoxia e
símbolo da unidade eclesial, ou de alguém por ele devidamente autorizado, invalida a realização
de qualquer ato litúrgico (cf. Ef 4-6; Mg 3-4; Tral 2-3,7; Fil 3.2,7; Esm 8-9; Pol 6.1, etc). Por
isso, convém buscar o seu consentimento para a união matrimonial (Pol 5.2), além do que ele é,
por excelência, o ministro não apenas do batismo como da própria eucaristia. Em conseqüência,
adverte o missivista aos esmirnenses: “Ninguém faça sem o bispo coisa alguma que diga respeito
à Igreja (...). Sem o bispo, não é permitido nem batizar nem celebrar o ágape. Tudo porém o que
ele aprovar será também agradável a Deus, para que tudo quanto se fizer seja seguro e legítimo”
(8.1-2). Como se entrevê, está implícito o conceito de ordem eclesiástica. Pode-se indagar se tais
considerações não pecam por excesso de rigidez, todavia, não é fácil imaginar a superação das
crises enfrentadas pela Igreja com maior flexibilidade. Essa tendência haveria de se enrijecer
ainda mais até o final do século. Tratou-se, infelizmente, de urna necessidade histórica.
Passando para Justino, alguns anos mais tarde (c. 150), constata-se a menção dos mesmos
elementos fundamentais. Objetivando convencer os pagãos acerca da insensatez das acusações
dirigidas contra os seguidores de Jesus, o apologista descreve minuciosamente a vivência e a
doutrina dos cristãos. O capítulo 61 da 1ª Apologia, dedicada a Antonino Pio, detém-se no
batismo.14 As suas palavras iniciais escondem solenidade ímpar: “Exporemos, agora, de que
modo, depois de, renovados por Cristo, nos consagramos...” Os candidatos ao batismo são
contados entre aqueles que, ouvindo o querigma abraçaram a mensagem anunciada. Então, são
[p. 335] cuidadosamente instruídos e observam um período (indeterminado) de jejum e oração,
ao longo do qual suplicam a Deus o perdão pelas transgressões anteriormente cometidas. Como
no Didaquê, membros da comunidade os acompanham. Seguidamente, os batizandos são
conduzidos “aonde houver água” e conhecem “o mesmo modo de regeneração” dos seus novos
irmãos. No batismo assim efetuando invoca-se o nome da Trindade. Os detalhes sobre os
oficiantes são inexplicavelmente omitidos. Neste ponto, Justino – tendo por base João 3.3s e
Isaías 1.16-20, citado literalmente – chama a atenção para a necessidade do novo nascimento e a
remissão dos pecados mediante o banho batismal. Após, aduz, como apostólico, o comentário:
“Visto que não tivemos consciência do nosso primeiro nascimento (...) e crescemos em meio de
costumes depravados (...), assim, para que não permaneçamos filhos da necessidade, nem da
ignorância (...), mas da eleição e do conhecimento, a alcancemos a remissão dos pecados (...),
pronuncia-se na água sobre (...) [o batizando], o nome do Pai de todas as coisas e Senhor Deus
todo o poderoso, denominado-a precisamente assim o que conduz ao banho aquele que vai ser
lavado” (61.10). Isto pressupõe, logicamente, um ato da vontade através do qual o neófito se
compromete a pautar-se pelos ensinos cristãos.
14
Este capítulo, além da versão já citada, é acessível, em português, na obra de HAMMAN, A. Os Padres
da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 33-4.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 17
A esta altura, há de se levar em conta a tese de Seeberg a propósito da doutrina dos Pais
Apostólicos, extensiva, contudo, sem exceção, aos apologistas:
De fato, a teologia trinitária esperaria mais de meio século para começar a ser significativamente
articulada. Tertuliano, o expoente dessa reflexão (cf. Adversus Praxean), é também o autor do
primeiro tratado sobre o batismo cristão (c. 200-205).
15
SEEBERG, R. op. cit., tomo I, p. 88.
16
As citações serão feitas a partir da edição brasileira, indicando-se o número do capítulo, em algarismos
romanos, e da página correspondente, em arábicos: ZILLES, Urbano (ed.). O Sacramento do Batismo:
Teologia Pastoral do Batismo segundo Tertuliano. Petrópolis: Vozes, 1981.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 18
habitat caracteriza-se pela aridez, ao passo que os cristãos, “peixinhos” segundo Cristo, “são
salvos permanecendo na água” (1,15).
Este parecer, por si só, comprova a imperiosa necessidade do batismo, defendida com
intransigência nas páginas subseqüentes diante daqueles que sustentam a suficiência da fé.
Pondera o pensador: antes da Páscoa, passava-se assim, mas “depois que (...) o nascimento, a
paixão e ressurreição se tornaram objeto da fé, também se ampliou o sacramento...” (XIII, 53; cf.
também XII, 50-2: Sobre a Salvação dos Apóstolos). A imposição do batismo (10 3.5) em nome
da Trindade (Mt 28.19) corresponde, pois, à situação da comunidade pós-pascal.
Este aspecto já havia recebido maior atenção de Tertuliano, ao refutar a objeção de que
Cristo pessoalmente nunca teria batizado. Argumentando que “sempre se fala daquele que manda
fazer como se ele mesmo o fizesse” (cf. Jo 3.22; 4.2), o pai da teologia latina justifica ainda pela
necessidade do Senhor em conhecer tanto o sofrimento quanto a vitória. “Naquele momento –
escreve – ainda não podia ser dado pelos discípulos, pois o Senhor ainda não havia consumado
sua glória (Jo 7.39), nem fundado a eficacidade do batismo por sua paixão e ressurreição, não
podendo nossa morte ser destruída sem a paixão do Senhor, nem nossa vida restituída sem a sua
ressurreição” (XI, 48-9). Sem o cântico do triunfo pascal, a salvação seria inteiramente ilusória.
sorte que o ser humano acha-se irremediavelmente impedido de realizar o bem e contemplar [p.
337] a face do Criador, desfigurando o propósito divino. Nessa condição, encontra-se
sentenciado à condenação fatal. Ora, o batismo, anulando o domínio do pecado, liberta-o para a
vida eterna. Logo, discorrendo sobre os efeitos do banho batismal, o mestre de Cartago toma o
tanque de Betsaida (Jo 5) como figura da cura espiritual e finaliza de modo concludente:
Tirada, pois, a culpa (reatus), também é tirada a pena. Assim o homem é restituído a
Deus à semelhança daquele que antes fora conforme à imagem de Deus (Gn 1.26).
Agora a imagem deve ser procurada na efígie, a semelhança, na eternidade. Recebe
outra vez aquele Espírito de Deus, que outrora recebera pelo sopro, mas, depois,
perdera pelo pecado (Gn 2.7) (V, 29).
Na mesma base do seu rigorismo, está a rejeição do batismo praticado pelas facções
heréticas (Cf. XV, 58). Mas o problema será revivido, em meados do 3º século, no
enfrentamento entre Estevão, bispo romano, e Cipriano, bispo de Cartago. Enquanto o primeiro,
17
Sobre a distinção entre imagem e semelhança e o seu alcance teológico, sobretudo em Irineu, vide:
FIGUEIREDO, F. A. Curso de Teologia Patrística I. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 143-4.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 20
querendo facilitar o retorno dos novacianos, admitia como válido o batismo feito de acordo com
a forma adequada, o segundo sancionava a postura defendida por Tertuliano. A controvérsia
cessaria com a morte de ambos, e a posição romana seria adotada no Ocidente.18
Idêntico zelo norteia a sua opinião quanto aos que devem receber o sacramento: “... não
se deve batizar temerariamente (cf. Mt 7.6)”; “... é preferível protelar o batismo conforme a
condição, a disposição e também conforme a idade de cada qual, sobretudo quando se trata de
crianças” (XVIII, 66-7). A sua resistência em acatar o batismo infantil se estriba na incerteza
quer do futuro caráter da criança, quer no cumprimento dos votos selados pelos padrinhos
(primeiramente mencionados num texto cristão). Ademais, não vê absolutamente a necessidade
da remissão dos pecados para aqueles que gozam dessa “idade inocente” e nem sequer são
capazes de rogar pela salvação. “Como haveríamos de confiar os bens celestiais a quem não
confiamos os terrenos?” – argúi com veemência (XVIII, 67). Enganam-se por isso aqueles que,
reportando-se [p. 338] às palavras do Mestre: “Deixai vir a mim os pequeninos” (Mt 19.14),
aplicam-nas ao batismo.
18
A propósito do incidente, confira WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967, vol. I,
p. 132; DANIÉLOU, J. & MARROU, H.. Nova História da Igreja: Dos Primórdios a São Gregório Magno.
Petrópolis: Vozes, p. 210-2.
19
CULLMANN, Oscar. “EI Bautismo de los Niños y la Doctrina Bíblica del Bautismo”. In: Del Evangelio
a la Formación de la Teología Cristiana. Salamanca: Sígueme, 1972, p.222-31.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 21
relacionando-os aos efeitos. Em primeiro lugar, conta-se o banho batismal o qual, lavando a
mancha do pecado, capacita o neófito a receber o dom espiritual (cf. VI; p. 32-3). A seguir
procede-se à unção benta, com óleo, que o prepara para o exercício do sacerdócio cristão (cf.
VII, 35). Por fim, a imposição das mãos, vinculada, de imediato, à dádiva do Espírito (cf. VIII,
38-9). É o conjunto destes gestos que compõe o ato batismal. Com o desenvolvimento posterior,
estes passos iriam, inevitavelmente, se dissociar e a imposição das mãos ver-se-ia unida à
confirmação.
Outra informação digna de destaque, na obra citada, tem a ver com os oficiantes do
batismo. O direito de administrá-lo possui-no, acima de tudo, o sumo sacerdote, ou seja, o bispo
e, com sua autorização “para salvaguardar a paz”, os presbíteros e diáconos. Em condições
especiais, os leigos também podem ministrá-lo, cuidando, contudo, de não açambarcar o ofício
dos bispos, pois “a rivalidade com o episcopado é a mãe dos cismas” (XVIII, 63). Atenua-se a
perspectiva clericalista de Inácio, porém, fundamentado na proibição paulina (1Co 14.34),
Tertuliano se opõe terminantemente à celebração do sacramento pelas mulheres (cf. XVII, 64) –
o que não deixa de ser restritivo. Não se pode esquecer, entretanto, que a liderança dos cainitas é
feminina (isso justifica, em parte, a oposição) e que, ao abraçar o montanismo, Tertuliano não
questionará a autoridade das profetizas deste movimento (isso a relativiza). Mesmo hoje, na
Igreja Romana, este é o único sacramento que pode ser oficializado por aqueles que não possuem
a ordem sacra.
Com detalhes, tais informações são confirmadas por Hipólito, que testifica a prática
prevalecente em Roma (c. 225), embora, por sua própria natureza, a Tradição Apostólica
aproxima-se mais do Didaquê do que da obra de Tertuliano.20
20
As próximas citações dessa obra correspondem à versão mencionada no 1º capítulo: NOVAK, Maria da
Glória (ed.). Tradição Apostólica de Hipólito de Roma: Liturgia e Catequese em Roma no Século II.
Petrópolis: Vozes, 1981. Entre parêntesis, indicam-se o número dos parágrafos e das páginas. Sobre o
que segue, cf. § 32-58, p.46-55.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 23
Considerados aptos, tem início a 2ª fase, a catequese propriamente dita, que pode se
prolongar até três anos. Neste período, o neófito é instruído, dedica-se à oração – fora da
assembléia dos fiéis – e submete-se à imposição de mãos por parte do catequista. Se, nesse
ínterim, for aprisionado – risco ao qual estava sujeito todo aquele que professasse o nome de
Cristo – não deve se afligir porque “terá recebido o batismo no seu sangue” (§ 40, p.50).
Conforme o clima espiritual da época, o martírio, como imitação de Cristo, substitui o batismo
não recebido (cf. p. 19. No texto publicado, p. 337).
Somente após o cumprimento desses passos, tem lugar a liturgia batismal. Ao cantar do
galo, prenuncia-se a bênção sobre a água. Como no Didaquê, dá-se preferência à água corrente,
mas não se fecha questão sobre o assunto. Os catecúmenos se despem e são batizados na
seguinte ordem: primeiro as crianças (!), depois os homens e por último, as mulheres, de cabelos
soltos e sem jóias. Os pais e familiares apresentam-se como porta-vozes das crianças que não
sabem falar. Nesse instante, o bispo abençoa o óleo, repartindo-o em dois vasos. O “óleo de
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 24
exorcismo” e o óleo de “ação de graças”, trazidos pelos diáconos, são colocados â esquerda e à
direita do presbítero, respectivamente. Os candidatos formalizam o ato de renúncia nos seguintes
termos: “Renuncio a ti, Satanás, a todo o seu serviço e a todas as tuas obras” (§ 46, p. 52). A
seguir, precede-se à unção para exorcismo. Entregues nus ao oficiante – bispo ou presbítero – e
acompanhados pelos diáconos, já na água, os batizandos são indagados, sob a imposição das
mãos, três vezes sobre o conteúdo da fé. Diante de cada resposta afirmativa – “Creio” – recebem
o banho sagrado. As perguntas representam o núcleo do “Símbolo dos Apóstolos”,
significativamente desenvolvido, e, por meio da fórmula trinitária, atestam a ortodoxia. Ao
deixar a água, os novos cristãos são ungidos com óleo santificado e, depois de enxutos e
vestidos, entram na Igreja onde o bispo os aguarda para impor-lhes as mãos. A oração de
invocação, então formulada, retoma as grandes ênfases teológicas da celebração batismal: perdão
dos pecados, regeneração, dádiva do Espírito, bem como suplica pela capacitação divina para
que o neófito persevere na fé. Encerrando a cerimônia, são novamente ungidos, sinalizados com
a cruz, e, após receberem o ósculo, rezam juntos com a congregação e oferecem o beijo da paz.
Participam, enfim, da liturgia eucarística, após a qual, o bispo transmite secretamente as últimas
instruções. Este costume está, provavelmente, na origem das catequeses mistagógicas,
ministradas somente depois da iniciação sacramental. Desta forma, definitivamente integrado à
comunhão da Igreja, o fiel será sempre contado como [p. 341] participante da eucaristia.
III – A EUCARISTIA
21
WALKER, W. op. cit., vol. 1, p. 133.
22
Sobre isso, vide MAXWELL, W. D., op. cit., p. 19-21.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 26
Entre estes, o Didaquê reflete a situação mais antiga. O ritual é simples, porém
significativo. Curiosamente compreende, em primeiro lugar, a invocação sobre o cálice e, depois,
sobre o fragmento de pão, durante as quais se agradece ao Pai pela vinha de Davi e também pela
vida e conhecimento concedidos por meio de Jesus Cristo (9.2-3). Na base desta “inversão” está,
provavelmente, o rito judaico que previa a bênção sobre três cálices, reservando apenas ao
último a designação de “cálice da bênção”. Talvez o texto citado faça menção unicamente aos
primeiros cálices (cf. Lc 22.17; 1Co 10.16). Segue-se solene oração intercessória em favor da
unidade eclesial (9.4; cf. 10.5) e enérgica advertência, fundamentada na palavra do Senhor (cf.
Mt 7.6: “Não deis aos cães o que é santo”), proibindo aos não-batizados a participação nas
espécies eucarísticas (9.5). Do mesmo modo, excluíam-se os que se tornavam culpados de faltas
graves, especialmente a quebra da fraternidade. Nestes casos, impunham-se previamente a
confissão das transgressões (14.1; cf. 4.14) e a reconciliação com o irmão ofendido (14.2). Em
virtude disso, exortava-se gravemente: “Se alguém é santo, aproxime-se; se não o é, arrependa-
se!” (10.6).
23
Sobre o que segue, veja BUENO, D. R., op. cit., p. 47-9; ZILLES, U. (ed.), op. cit., p. 63; DANIÉLOU,
Jean & MARROU, Henri, op. cit. p. 93.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 27
Ao indagar pelo significado teológico subjacente ao texto, causa estranheza – ainda que
se acate como corretas as explicações dadas acima – a completa omissão que pesa sobre os
acontecimentos salvadores, principalmente o silêncio em torno da Última Ceia. Nem sequer
furtivamente se alude ao caráter memorial da eucaristia. À primeira vista, pois, Walker está
coberto de razões, ao asseverar que, no Didaquê, a celebração eucarística não passa de mera
liturgia de ação de graças. De fato, este sentido repousa na própria etimologia do termo
ευχαριστια ς (= Ação de Graças ), sem contar a fórmula fixa – “Damos-te graças” –
ευχαριστιας
insistentemente reiterada. No entanto, contra essa opinião, cumpre sublinhar que o pressuposto
soteriológico, implícito neste pequeno manual, revela a maneira de pensar típica dos gregos.
Estes, contrariamente à mentalidade romana que concebia a salvação mais freqüentemente em
termos jurídicos, como a observância de relações justas para com Deus e como remissão dos
pecados, entendem-se metafisicamente como vida eterna e bem-aventura e como conhecimento
do verdadeiro. Conseqüentemente, a ênfase da teologia helenística recai sobre a pessoa e a obra,
sobretudo encarnação, de. Cristo. Os estudiosos da tradição cristã, entre os quais, Tillich,
Hägglund e o próprio Walker, estabeleceram, com clareza, essa distinção. Ora, a rara beleza das
preces prescritas no Didaquê assenta-se sobre a conceituação grega. Por exemplo, em 10.2, se
agradece ao Pai Santo, porquanto o seu nome habita nos corações, bem como pelo conhecimento
(γγ ν ωσεω
σε ως ), fé (π στε ως ) e imortalidade (α
π ι στεω ανασ ι α ς ), comunicados pela mediação de Jesus
α θ ανασι
Cristo. Nesse sentido, esse antigo catecismo aproxima-se inequivocamente da literatura joanina
(cf. Jo 6.47-58) e das epístolas de Inácio (vide abaixo).24
Digna de nota, ainda, é a menção da eucaristia como “vosso sacrifício” sob a profecia de
Malaquias (1.11 e 14). A equiparação oferece a ocasião para que o redator previna sobre a
necessidade da confissão das faltas e da conciliação fraterna a fim de guardar a pureza do
sacrifício (14.1-3), sem que, no entanto, reflexione detidamente sobre o sujeito e a vítima do
sacrifício ou sua eficácia salvífica. De resto, há lugar, na celebração eucarística, para a expressão
da esperança escatológica: “Venha a graça, e passe este mundo. [p. 343] Hosana ao Deus de
24
Assim também pensa SEEBERG, Reinhold, op. cit., p. 84. Sobre as orações eucarísticas do Didaquê,
Otto Karrer faz o seguinte comentário: “Jamais o pensamento místico de nossa união com Cristo achou
expressão mais comovedora de agradecimento e anelo (...); poderiam ter sido compostas por um São
João”, apud BUENO, Daniel Ruiz, op. cit., p. 46.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 28
Davi! (...) Maranatha. Amém!” (10.6). Diga-se de passagem que a expectativa pela parusia ocupa
espaço privilegiado na conclusão deste escrito (cf. 16.1-8).
Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão
puro de Cristo (4.1).
Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a matéria (...) Quero
pão de Deus que é a carne de Jesus Cristo (...), e como bebida quero o sangue d’Ele,
que é Amor incorruptível (7.2-3).
Sede solícitos em tomar parte numa só Eucaristia, porquanto uma é a carne de Nosso
Senhor Jesus Cristo, um o cálice para união com Seu sangue; um o altar... (4.1).
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 29
Este alimento se chama entre nós Eucaristia (...) Pois nós não tomamos estas coisas
como se fosse pão comum, ou bebida ordinária, mas assim como Jesus Cristo nosso
Salvador feito carne pela força do verbo de Deus, assumiu carne e sangue para a
nossa salvação, assim também nos foi ensinado que em virtude da prece do verbo
pelo qual foi eucaristizado, o alimento – de que, por uma transformação, se nutrem
nosso sangue e nossa carne – é a carne e sangue daquele mesmo Jesus que se
encarnou (66.1-2).
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 30
As mesmas ênfases seriam revividas pelo bispo de Lião ao refutar os ensinos dos mestres
gnósticos. De fato, lrineu, em sua obra principal, segue harmonicamente, no que tangem à
teologia eucarística, as orientações fundamentais dos seus predecessores. Isto é tanto mais
admirável quando [p. 345] se constata a natureza diversa deste documento em relação aos
demais. Não se trata de um manual piedoso, nem de epístola redigida, um tanto a sabor do acaso,
a caminho do martírio; muito menos de apologia das instituições cristãs dirigida ao público
pagão. Adversus Haereses apresenta-se, antes, como escrito pastoral destinado a combater o erro
e preservar, entre os fiéis, a sã doutrina. Redigido pelo representante máximo da hierarquia,
volta-se, acima de tudo, para a instrução da comunidade. Todavia, a despeito dessas diferenças, o
cerne de seu pensamento sobre a sagrada liturgia demonstra pleno acordo com as perspectivas
descritas até o momento.
25
“Textos Catequéticos litúrgicos de São Justino”. In: Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, p. 75.
26
Cf. “Diálogo com o judeu Trifão”, § 41, 70, 116s. In: Tradição Apostólica de Hipólito de Roma, p. 84-7.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 31
Segundo Irineu, a Igreja cristã é a única que pode ofertar ao Criador o sacrifício puro e
imaculado. As cerimônias judaicas não são legítimas porquanto supõem a rejeição do Verbo
encarnado. Por seu turno, a oblação oferecida pelos hereges torna-se nula diante de sua recusa a
prestar culto ao Criador de todas as coisas. Sendo assim, em conformidade com o seu objetivo
primordial, o dedicado bispo se demora mais longamente em desmascarar a ilusão gnóstica.
Por isso, com habilidade e rara inteligência, Irineu procura apontar a inconsistência das
práticas gnósticas. No parágrafo que segue, o bispo demonstra sutilmente o absurdo das
celebrações eucarísticas a se manter as teses dos heréticos:
Como acreditarão que o pão sobre o qual temos dado graças é o corpo de seu
Senhor, que o Cálice é o cálice de seu sangue, se rejeitam ser Cristo o Filho de Deus
Criador do mundo; isto é, o Verbo de Deus mediante o qual a árvore frutifica, a
fonte corre e a terra faz brotar primeiramente a folha, logo a espiga, finalmente o
pesado grão no coração da espiga?
Como, então, afirmam que a carne, alimentada com o corpo e o sangue do Senhor,
permanece corruptível, sendo incapaz de alcançar a vida? Mudem, pois, de opinião,
ou abstenham-se de oferecer as coisas mencionadas.
Nossa fé, no entanto, concorda com a eucaristia e a eucaristia confirma nossa fé. Na
eucaristia oferecemos a Deus o que é de Deus e proclamamos a harmoniosa unidade
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 32
da carne e do espírito. Pois assim como o pão terrestre, sobre o qual recai a
invocação a Deus, deixa de ser pão comum e se toma eucaristia constando de duas
coisas: terrena uma e celeste a outra, assim também nossos [p. 346] corpos,
participando da eucaristia, deixam de ser corruptíveis e possuem a esperança da
ressurreição eterna.27
Prontamente, o dirigente eleva a Deus a mais primitiva oração de consagração que se tem
notícia, a qual se destaca, sobretudo por sua densidade cristológica.28 Com efeito, esta prece se
constitui num autêntico hino de louvor à obra de Cristo, glorificado como Salvador, Redentor,
Mensageiro da vontade divina e Verbo por meio do qual todas as coisas foram criadas e que,
encarnado, sofreu voluntariamente a Paixão, destruindo a morte dissipando o mal e concedendo a
vida pela sua Ressurreição. As palavras da instituição da Ceia, livremente citadas, acentuam o
27
Adv. Haer. IV, XVIII, 4-6. In: BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, p. 112-3.
28
Além de sua publicação na tradução citada (§ 10-16, p. 40-1), a oração pode ser apreciada na sua
totalidade na antologia de BETTENSON, Henry, p. 113-4, sob o título: “Um cânon eucarístico primitivo”.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 33
aspecto memorial da sagrada liturgia. Sobressai, ainda, a primeira epiclese conhecida neste
contexto cultual.29 Numa atmosfera de adoração, a doxologia final conclui, com naturalidade, a
oração. Se alguém, em sinal de comunhão fraterna, ofertar azeite, queijo e azeitonas, pronuncia-
se a bênção, conforme a fórmula prescrita, sobre estes alimentos, depois da consagração do pão e
do vinho.
A segunda descrição tem lugar após o ato batismal (cf. p. 23-4. No texto publicado, p.
340-1). Pela primeira vez, os neófitos são introduzidos no mistério eucarístico. Além da súplica
sobre o pão e o vinho, o cerimonial inclui a ação de graças sobre o leite e o mel misturados,
“para lembrar a plenitude da promessa feita aos antepassados”, e sobre a água, “como
representação do batismo”, para a purificação do homem interior. Procede-se, então, à
distribuição dos elementos. Primeiro, “o Pão Celestial em Jesus Cristo”, conforme a solene frase
do bispo. A seguir, os presbíteros e, se necessário, também os diáconos, ocupam-se dos cálices
observando estritamente a seguinte ordem: água-leite-vinho. Ao provar cada cálice, os que
recebem dão o seu assentimento com o Amém a cada expressão repetida pelos ministros: “Em
Deus Pai Onipotente”; “E em nosso Senhor Jesus Cristo”; “E no Espírito Santo e na Santa
Igreja”. Estas atitudes são repetidas por todos os participantes.
Hipólito atesta também o costume da comunhão diária nos lares. Neste sentido, elabora
normativas rígidas quanto ao recipiente que deve acondicionar a eucaristia [p. 347] e ao cuidado
que deve ser cultivado para evitar que o descrente ou algum animal venha a prová-la (§ 82-84, p.
62). No mesmo espírito Tertuliano se mostra preocupado com a atitude dos esposos pagãos
diante do estranho hábito de suas mulheres (cristãs) em tomar, secretamente antes das refeições,
o alimento eucarístico.30 Tanto um quanto outro, não ocultam o respeito sacrossanto pelas
reservas do sacramento, às quais parecem conferir um poder próprio.
29
É objeto de apaixonada discussão a autenticidade dessa “invocação ao Espírito”. Chadwick, no entanto,
desfez as dúvidas que pairavam a esse respeito, de modo que se pode estar seguro da originalidade da
epiclese nessa oração. Veja CHADWICK, Henry. A Igreja Primitiva. Lisboa: Ed. Ulisseia, 1969, p. 289-90.
30
Cf. Ad Uxorem, II, 5. In: BETTENSON, Henry. op. cit., p. 114.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 34
Cipriano.31 Do mesmo modo, todos os documentos supõem, muito embora não se ocupem em
dar explicações teológicas, a presença real de Cristo na Ceia.
Como se justifica, então, essa omissão? De que maneira se pode explicar a diferença de
ênfase entre estes escritores e os reformadores do século XVI? Em primeiro lugar, deve-se
indicar o contexto em que nasceram tais reflexões. A mensagem dos Pais volta-se
primordialmente para as pessoas inseguras diante do destino e da morte. A propósito,
considerem-se as invasões e os deslocamentos populacionais, que constantemente alternavam as
fronteiras do Império Romano; as catástrofes naturais e as epidemias, que pairavam
ameaçadoramente sobre a vida dos cidadãos; e a grande popularidade das religiões de mistério,
as quais prometiam a participação na virtude do deus que, ritualmente, morria e retomava à vida.
Não se pode ignorar a situação concreta dos cristãos que, perseguidos, entregavam-se à morte na
esperança da ressurreição futura. A pregação dos reformadores, por sua vez, supõe a atmosfera
religiosa medieval e o sentimento de culpa que atormentava as consciências submetidas ao
casuísmo duma Igreja autoritária e legalista. Logicamente, no que se refere à dádiva alcançada
na sagrada liturgia, o acento recai, no primeiro caso, na vida eterna e bem-aventurada; e no
segundo, no perdão dos pecados e na libertação da culpa.
31
Cf. Epístola LXIII, 14. In: BETTENSON, Henry. op. cit., p. 115. O autor é herdeiro espiritual de
Tertuliano e, em meados do 3º século, tornou-se bispo de Cartago. Infelizmente, situa-se fora do “corte
histórico” analisado.
32
Vide, a título de ilustração, a resposta do reformador à indagação sobre o proveito da participação no
“sacramento do altar”, contida no Catecismo Menor. Lutero revela os dons recebidos e acrescenta: “onde
há remissão dos pecados, há também vida e salvação”.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 35
decisivamente para a manutenção, por parte destes escritores, de uma perspectiva unívoca quanto
à teologia da sagrada eucaristia.
Adoração no Segundo Século – José Carlos de Souza 36
CONCLUSÃO
Nas páginas anteriores, procurou-se retratar, o mais fielmente possível, a vida litúrgica da
comunidade cristã no 2º século. Outrossim, com base nos principais [p. 348] documentos,
buscou-se desenhar a linha evolutiva da teologia sacramental da Igreja primitiva: suas ênfases,
influência e dissonâncias relativas às concepções prevalecentes no curso da História.
A voz profética da era constantiniana já havia logrado apreender o ensino dos antigos
mestres. Por isso, discorrendo sobre os costumes da Igreja, na época estudada, João Crisóstomo
observou que:
veio a estabelecer nas Igrejas de então uma prática maravilhosa, que era a de,
reunindo-se todos os fiéis, depois de ouvir a palavra divina, depois das orações e da
comunhão dos mistérios, acabada a reunião litúrgica, não se retiravam
imediatamente para casa, mas os ricos, que tinham feito comida e alimentos,
convidavam os pobres e punham uma mesa comum, banquete comum, convite
comum na mesma Igreja: de maneira que a comunidade de mesa e a piedade do
lugar e mil e uma outras circunstâncias eram elementos para que a caridade se
estreitasse mais e mais, o prazer fosse grande e o proveito não menor. Essa prática
era fonte de bem sem conta e o principal era a amizade, cada dia mais ardente,
depois de cada reunião litúrgica, já que benfeitores e beneficiados sentiam-se unidos
com tão grande amor33.
Nesse sentido, a reflexão teológica latino-americana, em sua busca por uma nova
espiritualidade, que não seja obstáculo, mas mística e fundamento da luta pela justiça no
continente, certamente encontrará, na literatura patrística, o tesouro inextinguível do qual há de
extrair, cada vez mais, lições novas e velhas (Mt 13.52).
33
Homilia sobre as Heresias, MPG, t. LI, col. 256, apud SANTA ANA, Júlio de. A Igreja e o Desafio dos
Pobres. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 94-5.
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