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Ementa e Objetivos
EMENTA
Fundamentação etimológica e conceitual da Ética. Caracterização e desenvolvimento histórico da Ética.
Problemas éticos contemporâneos.
OBJETIVOS
Esta disciplina tem por objetivo criar condições para que os alunos possam:
E apesar deste novo cenário, velhas questões se reapresentam para cada indivíduo, tais como: Deve-se
falar a verdade em todas as circunstâncias ou algumas vezes é permitido mentir? Todas as ordens
devem ser cumpridas, ainda que haja povos e nações prejudicados? Dentre muitas outras. Já no Livro
II da República, Platão (2000) relata o episódio do anel de Giges, resgate de uma antiga história em
que o agir ético está no centro da trama. Acompanhe.
O Anel de Giges
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Na narrativa aqui apresentada, Platão coloca na boca de Glauco o seguinte ensinamento: Não há
bondade e desejo de justiça pela vontade individual, mas por obrigação. A moral para ser verdadeira,
concreta, precisa ser internalizada pelo sujeito, é uma condição interior da consciência; do contrário, o
sujeito só age moralmente se estiver sob a vigilância da lei, que lhe é exterior. Por essas narrativas e
argumentações, temos presente que a ética se enraíza na subjetividade e outras tantas questões
eclodem: Qual fazer é o fazer ético? Qual escolha é uma representação da liberdade do sujeito?
Comte-Sponville e Platão
Ao comentar o texto de Platão, COMTE-SPONVILLE afirma que a narrativa induz a pensar que os
homens se diferenciam pela maior ou menor habilidade em se esconder. E propõe a seguinte reflexão:
“Imagina, como experiência de pensamento, que tinhas esse anel. O que farias? O que
não farias? Continuarias, por exemplo, a respeitar a propriedade dos outros, a sua
intimidade, os seus segredos, a sua liberdade, a sua dignidade, a sua vida?” (2001, p.
20).
A reflexão poderia continuar tomando várias perspectivas, como fazemos o que é bom, porque estamos
sendo olhados pelos outros? E se fossemos invisíveis como agiríamos? Sponville alerta que a ação
moral, em última análise, conjuga-se na primeira pessoa, na medida em que situa-se no âmbito da
liberdade. Sua fala é contundente:
“Ser malvado ou bom, cabe a ti escolher, somente a ti: tu vales exatamente o que
quer”. (2001, p. 21).
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A ética é um tema que sempre inquietou o homem. É comum ouvirmos expressões do tipo: “Ele (ou
ela) não tem ética”; ou, ainda: “isto é uma questão ética”. Mas o que significa ética? É possível agirmos
eticamente, abrindo mão de nossa liberdade?
Éthos (ήθος) - com “eta” inicial, vogal longa (é), designa inicialmente “morada do homem, lugar de
estada permanente, abrigo protetor” (ERMOUT; MEILLET, 1994, adaptação). Nessa primeira acepção, o
ethos indica o espaço no qual o homem imprime sua “marca” pela afirmação de sua razão (logos
[λόγος]). Essa noção primitiva do ethos remete, assim, à idéia de um espaço constituído e ordenado
pelo homem segundo sua razão. O ethos indicará, nesta primeira expressão, um espaço construído e
permanentemente reconstruído pelo homem, espaço no qual serão inscritos os costumes, hábitos,
valores, normas e ações. Esta ordem geral à qual se refere o ethos é denominada costume, maneira de
ser habitual, comum a um determinado grupo humano.
Êthos (έθος) - com “épsilon” inicial, vogal breve (ê) - diz respeito ao comportamento que resulta de
um constante repetir-se dos mesmos atos, mas não de forma necessária, maneira habitual de agir
(ERMOUT; MEILLET, 1994, p. 407-408). É o que é feito de modo freqüente ou quase sempre, mas não
sempre, nem em virtude de uma necessidade natural. Portanto, o ethos irá assinalar, desde o princípio,
uma oposição à “physis” (φύσις), isto é, àquilo que significa ao mesmo tempo a natureza e o princípio
ordenador do mundo físico. Nesse sentido, o ethos se contrapõe ao que é natural no homem (impulso
do desejo), pela constância e disposição da vontade de agir de acordo com as exigências de realização
do bem ou do que é o melhor a ser feito. Existe aqui, portanto, uma oposição entre o mundo humano,
no qual não há determinação absoluta, e o domínio físico, no qual os fenômenos seguem leis rígidas.
Esta segunda matriz conceitual do ethos significará, pois, a disposição habitual do indivíduo para agir
de certa maneira em vista do que é o melhor a ser feito: hábito como virtude.
Vaz (1993, p. 12), próximo à tradição aristotélica, bem lembra, que a noção de “éthos” deve ser
articulada a um outro vocábulo grego, aquele de “héxis” (έξις), o qual remete à idéia de possessão, de
estado adquirido, hábito, estado de alma, atitude ao agir de um certo modo (MAGNIEN;
LACROIX,1969, p. 608). Assim, o “êthos” corresponderá à aquisição estável (έξις πραχτιχή), pelo
indivíduo, mediante a educação, de uma sabedoria prática que lhe possibilite agir segundo a escolha da
melhor via para a consecução de um fim considerado bom. O “êthos” torna-se, assim, caráter. Daí, o
papel preponderante do aprendizado na constituição de uma vida virtuosa (BODÉÜS, 1982, p. 218).
Esse caráter, contudo, não é estável. Pelo contrário, é o constante exercício da pergunta sobre o que o
melhor a se fazer em determinadas situações da vida. Dito de outro modo, o “ethos” é a capacidade de
perguntar pelo sentido das ações e pela suas conseqüências. Assim, como veremos mais adiante na
distinção entre “ética” e “moral”, o ethos/ética é o conjunto de critérios que utilizamos para questionar
o que já está estabelecido pela moral.
Diante disso, é possível aproximar-se de uma definição etimológica da noção de ethos, articulando as
duas matrizes conceituais:
Ethos como costume: modo de ser que procede da vivência comum dos princípios, valores,
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normas, leis e hábitos que expressam a idéia de BEM (universal) partilhada pelos membros de
uma coletividade (comunidade, povo, etnia, civilização etc.).
Ethos como hábito: constância no agir de um indivíduo por meio do qual este incorpora à sua
personalidade aquele ideal de BEM (virtude) e o efetiva por meio de ações, sempre
perguntando pelo sentido delas.
O elemento que permite esta articulação será, portanto, a ação baseada em uma reflexão (práxis),
pela qual o ethos se constitui, se reproduz e se altera no tempo (ou seja, ethos como costume) e pela
qual o indivíduo se constitui a si mesmo como sujeito ético (isto é, ethos como virtude). A ação ética
expressará, pois, a capacidade de indivíduos e grupos de efetivarem o BEM e/ou de atualizá-lo.
O ethos de um grupo social se estrutura por meio de um complexo de relações entre os indivíduos,
constituindo-se, no tempo, como costume. É na mediação (na interação) com outros indivíduos que o
sujeito se integra ao ethos e nele exerce sua práxis. Essa interação realiza ao mesmo tempo a
afirmação e transmissão do ethos (tradição/moral) e sua alteração perpétua /ética. É a práxis (ação
baseada em uma reflexão) que integra o indivíduo às várias esferas sociais: trabalho, cultura, política e
convivência social, entre outras.
Pode-se dizer que o ethos se constitui historicamente como o ethos de um povo, ele é seu “rosto”. O
ethos é, antes de tudo, um sentir-se em casa. Nesse sentido, ethos se vincula a outra palavra grega
(oikós) que, tendo com sentido original a palavra “casa” deu origem às palavras “economia”, “ecologia”,
“ecumenismo”, todas expressando, de alguma forma, a noção de que vivemos em um mundo que é
uma “grande casa” onde todos os seus habitantes têm direito à sua dignidade. Pode-se dizer, assim,
que a “ética” (ethos) são os critérios que utilizamos para decidir nossas ações visando o bem desta
grande casa em que habitamos (oikós). Podemos falar efetivamente do ethos como de um universal
simbólico que rege a instituição das normas, das leis, dos hábitos, das regras e dos valores tidos como
significativos por um determinado grupo social-histórico. Vê-se, pois, como o ethos se liga inteiramente
à dimensão do simbólico, determinando, em certo sentido, as ações humanas. Como bem expressou
Lima Vaz (1993, p. 38): “o homem habita o símbolo e é exatamente como métron, como medida ou
norma que o símbolo é ethos, é morada do homem”.
É em face das situações concretas que a exigência ética é chamada a tomar exata
consciência de suas implicações e de seu alcance. (...) A invenção das normas
encontra-se na intersecção da visada ética fundamental, isto é, da exigência
constitutiva da qualidade ética do ser humano, e das situações concretas,
problemáticas, encontradas pela ação. (LADRIÈRE, 2001, p. 37-38)
A questão ética surge, portanto, no momento em que é feito um apelo à iniciativa do ser humano,
pressuposto que sua ação não é condicionada (inteiramente) pelo curso natural das coisas. Importa,
pois, determinarmos o “lugar” da ética na atividade do ser humano. A dimensão ética da ação inscreve-
se na temporalidade própria do existir: capacidade de iniciativa para forjar, por si mesmo, seu ser
futuro: poder de agir, decisão fundada na deliberação.
De acordo com Ladrière (2001), essa exigência de realização de si não é arbitrária: ela é o
prolongamento do que já estava presente no existir. A exigência ética implicada na ação é,
precisamente, a determinação da vontade na realização daquilo que a existência contém em si
enquanto ainda não realizado. Existe tensão no sujeito porque o seu ser futuro já se encontra presente,
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Essa realização de si como sujeito ético não é estranha à própria existência, mas, sim, é tarefa própria
desta. Trata-se “de um processo no qual a existência é chamada a pôr-se em jogo, sob sua própria
responsabilidade, assumindo os riscos e perigos” (LADRIÈRE, 2001, p. 91). Esse comprometimento do
sujeito consigo próprio (a realização de si como ser ético) põe em questão a responsabilidade do
indivíduo sobre si mesmo. O resultado efetivo de nossas ações somos nós mesmos, enquanto ser-para-
outro.
Thiago de Mello, poeta amazonense, conhecido no mundo literário por fazer de sua escrita um
compromisso político com a justiça, mostra bem esta realidade da responsabilidade que temos por
nossos atos por meio de seu poema “O tempo dentro do espelho”:
Sendo a existência um modo de ser plural, “a responsabilidade da existência, em relação a si, constitui
a responsabilidade de cada existente em relação à existência, tal como nele se realiza, mas, também,
tal como se realiza nos outros existentes” (LADRIÈRE, 2001, p. 92). A responsabilidade de cada um
pelos seus atos nas relações humanas e com a natureza é, portanto, o horizonte fundamental da ética.
A realização de cada existência singular (a determinação de si na concretização do BEM) implica no
caráter da existência como pluralidade: o agir ético exige o reconhecimento recíproco dos agentes na
determinação da qualidade ética da própria ação.
Em nossa próxima aula, trataremos da questão da cultura, ética e moral. Continue realizando suas
leituras. Não deixe de acessar os links!
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Como você estudou, o termo grego ethos refere-se a costume, englobando duas esferas de realização
do bem, ou seja:
a. enquanto modo de ser coletivo que procede da experiência comum dos valores, normas,
leis e regras que exprimem a idéia de Bem;
b. como hábito ou caráter do indivíduo que incorporou à sua personalidade este ideal de Bem
e que o traduz, por suas ações, como virtude. Essa noção de ethos será transcrita para o latim
por Cícero (1982), pelo termo mōs (sing.) e mōris ou mōrēs (plur.), para designar o que é
segundo o costume, conforme ao uso (TERNAY, 1868, p. 181-182) (ERMOUT; MEILLET, 1994, p.
415-416), significando, pois, hábito, uso, estilo de comportamento, maneira. Há, então, uma
equivalência semântica entre ethos e mōs.
Quando mais tarde, com BODÉÜS (2004, p. 1094 a 1094b), você observar a passagem do ethos à
ética, isto é, do costume como vivência a uma “ciência da praxis” (épistêmê praktikê [έπιστήμη
πραχτιχή]), a ética será, na língua latina, igualmente traduzida como “ciência moral”. Desse modo, o
termo “ética” terá como equivalente semântico a noção de mōrālis. Vê-se assim que ética e moral
recobrirão o mesmo tipo de fenômeno, isto é, ambas serão entendidas como uma reflexão sobre a ação
humana referida ao costume e tendo em vista a realização do Bem.
Como já afirmamos ao iniciar esta aula, neste curso de Ética, tomaremos como definição básica que a
“Ética” é a condição humano que possibilita questionar a “Moral” instituída na sociedade, visando a sua
transformação.
Uma distinção “acabada” entre ética e moral implica, antes de tudo, seguir o caminho que o
pensamento filosófico fez até o momento em que esses conceitos adquiriram sentido próprio e,
posteriormente, distinto. O primeiro passo é a passagem do ethos, como modo de vida centrado na
idéia de Bem e impresso na cultura como costume, à ética, como inteligibilidade da ação virtuosa,
como reflexão sobre a vida concreta dos homens que constroem a si mesmos como existência para o
Bem. Esse passo foi preparado por Platão e consumado por Aristóteles, com o qual a ética adquiriu
estatuto de disciplina autônoma (ciência da práxis).
No interior da tradição, o ethos é vivido e concebido como um processo dialético a partir do qual se
constitui o que podemos chamar de uma unidade fundamental de sentido desde sempre existente, a
qual se reproduz como inteiridade, isto é, como totalidade. Esta inteiridade corresponde efetivamente
ao que se chamará aqui de ordem social herdada, ou simplesmente, de moral herdada.
Observe que este movimento é perpétuo: nascemos num determinado contexto social-histórico no qual
uma certa configuração do ethos nos é transmitida – e que nós devemos absorver, não somente a fim
de evitarmos sanções, punições em caso de transgressão, mas simplesmente para podermos existir
enquanto parte deste grupo social e a ele identificado. Participamos, portanto, mesmo que involuntária
e inconscientemente, num primeiro momento, da perpetuação do ethos. Mesmo que participemos ativa
e conscientemente de sua transformação, o ethos será transmitido a outros que o receberão de forma
heteronômica. Há, portanto, uma espécie de movimento circular em que o ethos é, de um lado,
absorvido tal qual na forma da tradição e, de outro, alterado pela práxis dos indivíduos no curso do
tempo. O desafio ético permanece o de saber que tipo de relação uma determinada sociedade mantém
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O problema na base deste desafio é o de que os indivíduos acabam por esquecer-se de que a cultura é
sua própria obra, que a sociedade é criação, que toda sociedade, posto que é instituída no tempo, se
altera.
A tradição não é, portanto, outra coisa que o ethos enquanto herança e transmissão. Como tal, a
tradição guarda esta contradição: ela nos faz esquecer que, no horizonte da ação ética, a transmutação
do Bem faz parte da própria ação ética. Enquanto ação referida ao ethos, a práxis ética traduz uma
relação não-determinada e não-determinante entre o ethos e os indivíduos que ali vivem e agem.
A ação criativa e instituinte é feita, a bem da verdade, com base em um dos elementos centrais do
ethos:
A liberdade que têm os indivíduos de escaparem ao determinismo que reina na natureza, de mudar o
curso das coisas – mas também o poder de transmutar o sentido das coisas –, de não ceder à pura e
simples inércia, de não se con-formar simplesmente à sociedade instituída.
A consciência de que o ethos é e pode ser alterado nos é dada pela mesma pertença a esta tradição.
Com efeito, somos fruto do que a tradição tem de melhor e de pior:
É a nossa tradição greco-ocidental quem nos recusa, ela própria, o direito de não se bastar com
o que nos foi dado. A tradição filosófica ocidental discutiu a idéia do belo e do bom; a
experiência democrática da Ágora ateniense permitiu o lugar do debate aberto e, sobretudo, da
confrontação livre das idéias, berço do filosofar.
Herdamos das revoluções francesa e americana, a luta pela igualdade perante a lei e as
restrições ao governo autoritário; dos movimentos operários do século XIX e XX
universalizamos a participação política e instituímos o Estado de bem-estar social.
A tradição forjou nossa herança cultural: os poemas homéricos, a arquitetura gótica, a Divina
Comédia de Dante, o Macbeth de Shakespeare, o Requiem de Mozart, as esculturas de Rodin,
assim como diversas outras obras da literatura, da música e das artes plásticas que formaram
nossa percepção estética.
Mas esta mesma tradição nos legou as manchas da intolerância religiosa – como as inquisições
religiosas dos séculos XVI e XVII, e mais recentemente o extermínio de cristãos e animistas no
Sudão –, da intolerância étnica – como a perseguição e morte de judeus na Alemanha nazista e
o massacre de curdos na Turquia –; a intolerância sexista – como as perseguições a bruxas
entre 1550 e 1650 e o aviltamento das condições da mulher no Afeganistão sob o comando do
Talibã – e a intolerância política – como os processos de Moscou e seus Goulags, o
maccarthysmo americano de perseguição a supostos comunistas e as inúmeras ditaduras ainda
existentes no mundo. (CASTORIADIS, 1987).
Assim, da mesma fonte, nós recebemos a liberdade de escolha, o poder de retomar nossas instituições
e fazê-las de outro modo, mas também recebemos dela a ilusão de que nossas instituições, – uma vez
que estão prontas e postas no seu lugar (e que finalmente podemos dizer: “Tudo isso é bom”) – não
precisam de nada mais a aprimorar ou mudar.
Se a tradição compreendeu sob o nome “ética” a ação que tem por fim a realização do bem por meio
do questionamento da moral é preciso acrescentar que a práxis ética não é apenas a simples expressão
concreta deste bem herdado, do mesmo modo que o bem não pode ser forçosamente, de parte a parte
e desde sempre, o que ele deve ser.
Desse modo, podemos afirmar que o ethos não se reduz à tradição. O ethos é precisamente “em parte”
tradição, enquanto ele se põe como experiência heteronômica, ou seja, enquanto fundamento do
conjunto dos costumes, dos princípios e dos valores tendo força suficiente para sobredeterminar o agir
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de indivíduos e grupos sociais. Contudo, o ethos deve, sobretudo, ser considerado como criação única,
ainda que esta não cesse de ser, a cada vez, a ordem simbólica representativa de uma época e de um
modo de ser coletivo.
O ethos, obra da cultura de um povo, não é o reflexo de uma “ordem ideal” atemporal, ou o horizonte
ontológico (ver ontologia) último, a partir do qual “deduziríamos” o valor de nossas ações e de nossas
instituições, posto que ele não existe senão como criação social-histórica.
Pensamos, nesse sentido, que a reflexão ética possa nos auxiliar num confronto crítico face às nossas
próprias tradições de modo que, sem negá-las, assumamos o desafio de nos defrontar com tudo aquilo
que, sendo parte da herança que nos fez o que somos hoje, como cultura e nação, limita nosso poder
de criação, tolhe nosso imaginário coletivo, nosso poder de sermos Outro. Isto é o que poderíamos
chamar de auto-alteração ética de um povo: o poder que tem uma coletividade de pôr-se diante de
suas próprias significações sociais e de renová-las.
O mundo ético não se reduz a uma ordem dada como “ordem boa”, à qual devem os cidadãos aderir. A
vida ética é historicamente instituída como vida desejável para um grupo humano determinado. O
mundo ético, como universal simbólico (DELA-SÁVIA, 2002), é o mundo que os homens instituem como
seu mundo, um mundo pleno de elementos significativos. Lemos em A instituição imaginária da
sociedade:
A vida de um povo, sua atividade, sua organização, a definição de seus valores e necessidades, no
sentido assinalado por Castoriadis, é, precisamente, o estabelecimento do sentido da vida em comum
desse povo. Evidencia-se, desse modo, o vínculo que se estabelece entre a instituição social-histórica e
a criação e recriação permanente do ethos. A questão da atualização histórica do ethos – e de sua
elucidação possível – não nos permite determinar, de uma vez por todas, sua função (simbólica ou
prática), nem, tampouco, seu sentido “originário” ou seu horizonte ontológico último. Como afirmara
Castoriadis:
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família, dos costumes, das idéias etc. A coletividade somente pode existir como
instituída. (CASTORIADIS, 1992, p. 158-159)
Nossa perspectiva de leitura do ethos, portanto, o toma não como confirmação de uma ordem social
herdada, mas, no sentido de Castoriadis, como autocriação irrepetível de um modo de ser coletivo.
Pode-se dizer que o desafio da reflexão ética será, pois, o de pensar a capacidade dos homens de
instituírem do seu ethos enquanto mesmo estes o absorvem, o que remete, em última instância, à
questão da autonomia do ser social.
Cabe à reflexão ética gerar o reconhecimento da ordem social na qual ela se desenvolve, mostrando
quais são os pontos de partida – valores, processos, práticas, objetivos, ideais, etc. – de onde parte.
Mas cabe também à reflexão ética questionar estes mesmos pontos de partida. O fato de estarmos
inseridos dentro de um conjunto de valores que nos dá o chão da discussão e da reflexão que
elaboramos, não nos impede de empreendermos o desvelamento destas condições para que possamos
criticá-las, reconstruí-las, ou mesmo abandoná-las em função do projeto que coletivamente nos
colocamos. Neste sentido, o ethos, entendido como tradição, é o fundamento de nossa reflexão, mas
isto não deve constituir-se como entrave paralisante para imaginarmos novas estruturas e práticas
sociais.
Toda sociedade, para existir, precisa, como vimos anteriormente, de regras morais que a regulam,
sejam estas regras escritas ou presentes na subjetividade de cada sujeito. Sem regras morais, não há
sociedade. Contudo, só as regras morais não bastam, pois elas representam somente o momento em
que a sociedade vive. É a capacidade humana de questionar estas regras morais que possibilita a
transformação da sociedade. A este questionamento é que chamamos de “Ética”. Veja um exemplo de
nossa história brasileira: Até o século XIX a instituição da escravidão era um valor moral aceito na
sociedade, o que para nós hoje isto pode parecer absurdo. O que fez mudar nossa opinião sobre este
assunto? Foi a capacidade humana de questionar esta moral, de dizer que ela era injusta e desumana.
Este questionamento da moral é o que chamamos de “ética”. Podemos multiplicar os exemplos, como o
direito de a mulher votar e ser votada, a erradicação do trabalho infantil, as opções sexuais
diferenciadas etc.
Nesta primeira unidade, você teve a oportunidade de fazer uma primeira aproximação sobre o campo
de estudos da Ética. Primeiro, nos acercamos do problema levantado pela Ética por meio da
provocação da estória do Anel de Giges, que nos pergunta sobre a nossa responsabilidade no uso de
nossa liberdade para nossas ações baseadas na Moral e na Ética. Depois fomos aos gregos para
entender a origem do vocábulo e compreender melhor o seu conceito, para estabelecer com mais
precisão o campo da Ética.
Neste sentido, perguntamos por que existe uma questão Ética. Na segunda aula, investimos nosso
tempo e energia para analisar as relações que existem e podem existir entre Cultura, Ética e Moral,
momento em que pudemos aprofundar a concepção de que todos nós vivemos em uma determinada
cultura que tem seus valores morais, que somos herdeiros desta cultura e não podemos considerá-la
como externa a nós, como se fosse algo de outro. É a partir desta cultura, com seus valores, que
podemos fazer as perguntas da Ética visando a sua transformação. Ética, neste sentido, é a capacidade
de indignar-se contra os valores morais que não expressam o Bem, a Justiça e a Dignidade do outro.
Na próxima unidade de estudos vamos ter a oportunidade de viajar pela história da construção do
pensamento sobre a Ética. Vamos conhecer alguns dos principais autores que se debruçaram sobre o
tema e que se tornaram clássicos devido a sua original contribuição para os estudos, análises e
reflexões sobre este interessante e intrigante tema. Estes pensadores fazem parte de nossa herança
cultural. Seu pensamento, fruto da época e das condições históricas de cada um, atravessaram o
tempo e estão presente no modo como nossa cultura ocidental se formou e se renova.
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Nesta unidade, você estudará como a ética foi tratada ao longo da história por alguns autores. Mas,
antes de iniciar leia a resenha do livro O que você precisa saber sobre ética
Para iniciarmos o estudo do pensamento de Platão sobre a Ética, vamos olhar um de seus clássicos
escritos conhecido como “Mito da Caverna”
Platão, para explicar sua concepção de Ética, inventou o Mundo Ideal, lugar abstrato onde existe o
Bem, a Verdade, a Justiça, o Belo e todas as noções perfeitas que existem. Em nosso mundo real, só
percebemos a sombra deste mundo ideal, onde existe a luz plena. Para alcançar o mundo ideal,
segundo Platão, precisamos de um método, a que ele chama de dialética.
Platão foi discípulo de Sócrates, considerado por ele como “o homem mais sábio e mais justo de seu
tempo” (PEGORARO, 2006), e dele herdou seus principais princípios que percorreram toda a sua
filosofia. De Sócrates nada temos escrito, mas sabemos de sua vida e de seu pensamento por meio de
seu discípulo mais iminente.
Sócrates, que viveu no século IV a.C., foi o primeiro filósofo grego que se ocupou com o ser humano
como prioridade e objeto de reflexão filosófica. Até então, a questão em que os filósofos se debatiam
tinha como foco principal a natureza. Das palavras de Platão, sabemos que Sócrates não fazia sua
reflexão filosófica a partir de um gabinete separado do mundo, mas sim do mundo vivido e
experimentado pelas pessoas. É nas praças (Ágora), na ruas, nos mercados que Sócrates interpela
seus interlocutores para buscar a verdade. Sob o lema “conhece-te a ti mesmo”, que ficou registrado
na história como emblemático em todos os tempos, Sócrates inaugurou o método da maiêutica. Isto
é, a verdade já está no interior de cada um, basta um bom método para retirá-la. Este método, a
maiêutica, é semelhante ao trabalho da parteira, que faz vir para fora o ser vivo que está dentro do
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útero. Assim, também o é com a verdade, ela já está no interior das pessoas, mas precisa ser retirada
de lá.
Quem é justo e bom, seja homem ou mulher, é feliz e o injusto é infeliz. Não épossível que, ao homem
bom, aconteça algum mal nem na vida e nem na morte: os deuses dele se ocupam. (Sócrates, citado
por PEGORARO, 2006)
Com esta premissa (a verdade já está no interior de cada um) e com este método (fazer a verdade
aparecer por meio da maiêutica), Sócrates pretende recuperar o valor da dignidade moral do ser
humano, em uma sociedade que tinha sérios problemas com a justiça e o bem. Esta verdade, contudo,
tem seu sentido no desenvolvimento de virtudes que regulam a vida na sociedade, na “polis” (cidade)
como diziam os gregos. É de se imaginar que este pensamento socrático, do qual bebeu Platão, não
causou boa impressão entre as autoridades que se utilizavam do poder para tirar dele benefícios
pessoais.
Sócrates foi considerado como uma ameaça a estas autoridades e foi condenado à morte (que na
época significava beber um veneno – cicuta) sob a acusação de “corromper a juventude”. Fiel aos seus
princípios, ele não quis se retratar e morreu lutando por sua verdade. Platão, que testemunhou o fim
trágico de seu mestre, decidiu continuar seu caminho de busca da verdade, mas optou não pelo
caminho do confronto, mas sim o da educação dos cidadãos da polis, e esta educação por meio do
caminho da dialética (PEGORARO, 2006).
A ética platônica não pode ser pensada sem se considerar o método que sua filosofia institui, isto é, a
dialética. Em Platão a dialética é a busca do ser-em-si de todo ente, ou seja, a Idéia (Ιδέα): o ser na
sua imutabilidade. Por exemplo, seja a noção de vertical: a dialética, como investigação filosófica, não
se ocuparia “de tal ou tal imagem de vertical, mas de defini-la segundo seu ser necessário e constante”
(GADAMER, 1994, p. 298. Tradução nossa). É a dialética, “ciência por excelência”, que nos dá acesso a
essa transparência do ser em si mesmo (o ser de todo ente na sua identidade), para além da
transitoriedade e mudança a que está sujeito o mundo sensível, objeto das ciências empíricas. Assim,
aplicada ao problema moral, a dialética platônica será o método que permite fundar a vida prática dos
sujeitos empíricos na Idéia universal do Bem.
Ao refletir sobre o tipo de existência que possa exprimir uma vida ética, isto é, a vida daquele que
busca o justo equilíbrio entre prazer e inteligência (bem entendido, trata-se aqui dos prazeres da alma,
prazeres “verdadeiros”, únicos capazes de se harmonizarem com o cultivo da inteligência, em oposição
aos prazeres do corpo, intensos e desmesurados, que perturbam o espírito), a ética platônica primará
por uma articulação essencial entre ética e estética, entre o Belo e o Bom. Como bem afirma Gadamer:
O Belo, que engloba a aparência física e a retitude interior (areté [άρετή]), a alma
como o corpo, não é outra coisa que o Bem sob sua forma dizível e manifesta. A
medida e a proporção são atributos fundamentais do Belo, sendo o Belo a condição sob
a qual um ente se dá a ver e merece ser visto. (GADAMER, 1994, p. 308. Tradução
nossa)
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informado pela força deste Bem, consegue suplantar, em si mesmo, o excesso que ameaçaria a
existência bela, aquela regida pelo equilíbrio (pela medida e pela proporção). Assim se conformam, na
ética de Platão, o Belo e o Bom, pois, “uma forma é bela se ela constitui em si mesma um todo
perfeitamente harmonioso. O Belo é, pois, a forma manifesta do Bem que, ele, informa os entes desde
o interior” (GADAMER, 1994, p. 309. Tradução nossa).
Portanto, a Idéia de Bem apresenta três propriedades constitutivas: a proporção ou medida, a beleza e
a verdade. A unidade ontológica do Bem definirá, nesta tríplice perspectiva, o horizonte de realização
da existência moral:
A medida - não se refere a uma norma externa ao sujeito à qual ele deva se conformar, mas
“designa uma certa relação do sujeito a si mesmo, um modo de comportamento particular que
carrega um nome: a moderação” (GADAMER, 1994, p. 310. Tradução nossa).
A beleza - longe de ser um modelo estético fixo, ela aparece aqui como “forma aceitável na
qual seu ser poderá se manifestar, pelos seus atos, em toda a sua transparência” (GADAMER,
1994, p. 310. Tradução nossa).
A verdade - caracteriza o modo como o sujeito se engaja no projeto de se forjar a si mesmo
como sujeito moral, de constituir para si uma existência digna do nome “boa”, reconhecida
como moral. Em outros termos, a verdade designa o caráter de autenticidade daquele que
busca para si uma existência moral. É, pois, a verdade aquilo que “associa o prazer e o
intelecto a fim de que sua união não seja abandonada ao acaso” (GADAMER, 1994, p. 310.
Tradução nossa).
A articulação destes três princípios, portanto, irá presidir aquela harmonização das diversas partes da
qual se constitui a vida humana, ou seja, o prazer e o intelecto, num todo coeso, numa “medida
determinada”, guiando o homem em suas ações. Segundo Platão, porém, dentre as duas partes
“misturadas”, tendo em vista a realização de uma vida sob o signo do Bem, é o intelecto aquele que
mais se aproxima do ideal de bem, caracterizado, como vimos, pela moderação, pois que os prazeres
são, por sua própria natureza, i-moderados.
Pode-se, assim, dizer que a filosofia moral de Platão está em total conformidade com sua Teoria das
Idéias, a qual pressupõe um abandono progressivo dos sentidos na apreensão da essência das coisas.
Este processo, na leitura de Reale (1991), se faz, em analogia com a prática da navegação, em dois
movimentos:
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A partir da metáfora da “segunda navegação”, Platão afirmará que as coisas que captamos com os
olhos do corpo são formas físicas; porém, as coisas que captamos com o “olho da alma” são, ao
contrário, formas não-físicas. O “ver” da inteligência capta formas inteligíveis que são essências puras:
o Bem, o Verdadeiro, o Belo, o Justo etc.
Essa hierarquia está assentada na ontologia geral de Platão, na qual o sensível só é em função do
supra-sensível. Portanto, o valor das coisas somente é valor se subordinado ao valor superior da alma.
É importante lembrar que, para Platão, assim como para Sócrates e Aristóteles (nosso próximo
estudo), a ética são virtudes que devem ser seguidas na polis, ou seja, na sociedade, na relação com o
“outro”. E, de modo especial, para Platão, tem como sua finalidade a construção de uma sociedade
onde a justiça seja seu maior valor. Do mundo Ideal é que retiramos o conceito de Justiça e pela razão
devemos apreendê-lo e praticá-lo na vida em sociedade.
Aristóteles (2004) aprofundará a concepção platônica da vida boa, concordando quanto à idéia de que
o prazer não constitui o bem maior para o homem. Entretanto, deslocando a questão para o campo
conceitual, Aristóteles atacará justamente a pretensão de fundamento ontológico do bem humano que
o “Mundo das Idéias” de Platão apresenta.
A crítica de Aristóteles à moral platônica terá como alvo esta estrutura na qual está fundada sua
concepção do ideal de Bem, fundamento a partir do qual uma vida pode ser avaliada e distinguida
como “boa”, isto é, como moral. Como nota Gadamer:
Para Aristóteles, a questão do que é o bem para o homem não se resolve pela busca de um tipo ideal
de vida boa, na qual teriam os homens que inspirar-se. Por mais que se possa considerar que um
“modelo” de vida que se ligue à natureza racional humana seja mais propício ao pleno desenvolvimento
do caráter, o bem para o homem é sempre decidido em situações já dadas, numa determinada cultura,
num determinado tempo histórico, enfim, no horizonte de um determinado ethos, e aí nenhuma teoria
geral do bem pode oferecer respostas adequadas, ou respostas últimas para cada situação.
O homem age sempre em contextos concretos, nos quais, a cada vez, ele é chamado a posicionar-se, a
dar respostas, a decidir o que é o melhor a ser feito. Ora, nenhuma escolha que ele deva fazer pode
ser deduzida de uma Idéia universal do Bem, se é que ela existe. As escolhas humanas variam de
acordo com o contexto e, portanto, o que é o bem, ou o que é a escolha boa, depende dos fatores
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implicados em cada caso. Daí surge também a dificuldade de se pensar a ética como ciência, no
sentido em que a entendemos no nosso tempo, isto é, como saber que forneça os princípios gerais –
universais e imutáveis (leis) – a partir dos quais se possa iluminar e solucionar os casos particulares.
Como bem expressa Gadamer:
Saber, de antemão, antes mesmo que se ponha a situação concreta da ação, o que se
deve fazer para ser justo e estar seguro de si, é uma exigência à qual nenhuma ciência
do homem e de seu agir pode satisfazer. (GADAMER, 1994, p. 323. Tradução nossa)
Proceder assim significa desconsiderar as condições sob as quais a existência humana se dá. Todo o
esforço da ética enquanto disciplina autônoma será, a partir de Aristóteles, o de pensar, ante essa
fragilidade e instabilidade que são inerentes ao ser-aí do homem, possibilidades de existência que
possam pretender a uma certa constância; e, nesse sentido, pensar as práticas que mereçam tornar-se
habituais, sem que se abandone, no entanto, as exigências de concretude que condicionam a vida
prática humana. Desse modo a ética se apresentará como “ciência prática”, capaz de “estudar e
esclarecer esta compreensão factual da existência na sua invariabilidade mediana” (GADAMER, 1994,
p. 324. Tradução nossa). É somente nesse sentido que podemos afirmar, como o faz Gadamer (1991,
p. 321), que Aristóteles é “o fundador da ética filosófica”.
O autor de Ética a Nicômaco não centrará sua reflexão sobre as noções de “virtude” ou de “bem”
tomadas em si, mas partirá de uma compreensão do ethos como horizonte de realização de uma vida
boa, orientada pela vivência da virtude em situação. Isso significa que o sujeito ético não tem diante de
si, ao agir, um modelo ético universalmente válido, ou seja, válido independentemente da situação
concreta na qual se encontra e age. Assim, não basta “aprender” o que é o bem para tornar-se ético. O
sujeito ético deve desenvolver uma capacidade prática ou sagacidade (é isto o que significa a phrónesis
[φρόνησις]) que o possibilite a agir com retidão. Gadamer o precisa:
O conceito de Ethos que ele [Aristóteles] toma por fundamento significa precisamente
que a ‘virtude’ não consiste num saber, que a possibilidade do saber depende, ao
contrário, do que se é; ora, este ser mesmo de cada um recebeu previamente sua
marca de uma educação e de um modo de vida. (GADAMER, 1991, p. 321. Tradução
nossa)
Há, portanto, em Aristóteles, uma consideração atenta das determinações práticas que condicionam o
agir humano.
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estabelecer fins que visem à justiça e, pelo exercício, de atualizar esse bem. Assim como não existe
virtude fora de uma vida virtuosa, não existe justiça senão na realização do que é justo. Agindo com
justiça, o homem desenvolve o senso de justiça, tornando-se apto a agir justamente em outras
circunstâncias.
Para Aristóteles, o contrário da virtude é o excesso, ou demais ou de menos. Portanto, virtude implica a
idéia de uma justa medida (o justo meio entre extremos, dos quais um é por falta e outro por
excesso). Assim, por exemplo, a coragem será o justo meio entre os excessos da temeridade e da
covardia; a temperança, o justo meio entre os excessos da intemperança e da insensibilidade; a
liberalidade, o justo meio entre os excessos da avareza e da prodigalidade; etc.
Os excessos da vida sensível somente podem ser mediados pela superior atividade da alma, a razão,
capaz de impor aos sentimentos e ações a justa medida. De todas as virtudes, a justiça será a mais
elevada, precisamente por ser a característica do justo meio.
a. Razão prática (aquela que conhece as coisas contingentes e variáveis): sagacidade / prudência
(phrónesis), saber deliberar sobre o que é bem ou mal para o homem. Na Ética a Nicômaco,
Aristóteles a define como “um estado verdadeiro, acompanhado de razão veraz, que conduz a
ação quando está em jogo as coisas boas ou más para o homem” (ARISTÓTELES, 2004, 1140b
6). Esta virtude tem o fundamental papel de auxiliar o homem na determinação dos meios
idôneos para se alcançar os verdadeiros fins; é, portanto, uma virtude que capacita o homem
na direção de sua vida prática.
b. Razão teórica: aquela que conhece as coisas necessárias e universais. Esta nos conduz à
sabedoria (sophia [σοφία]). Ela é superior porque, ao contrário da prudência (que está ligada
ao que há de mutável no homem), a sabedoria diz respeito ao que está acima do homem, ao
que é mais elevado do que a condição dos seres vivos.
Não há, contudo, conforme reflexão de Bódeüs (1982), uma oposição entre os gêneros de vida que
acompanham estas duas virtudes, ou seja, entre vida política e vida meditativa. Evidentemente,
Aristóteles situa a vida meditativa em primeiro plano, como sendo o gênero de vida mais propício a
realizar a existência ideal para o homem. Antes de tudo, é preciso considerar que aquele que medita
não o fará jamais de modo exclusivo, como o faria um ser “imaterial”, como são os deuses. Isto quer
dizer que a vida meditativa é uma vida humana e que aquele que se dedica à meditação, como o faz o
filósofo, deve também ter uma vida guiada por uma capacidade prática, a capacidade para saber
deliberar quando a situação exige, como o fazem os homens na política.
Esta sabedoria prática ou sagacidade, que nos permite determinar um fim bom enquanto realizável na
prática, buscando então eleger o melhor meio para tal fim, mostra-nos que não basta decidir quanto ao
que é bom para dizermos que tal ou tal ação seja ética. Como bem nota Gadamer:
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O realizável não é somente o que é bom (recht), mas também o que é útil, ordenado a
um fim e, nessa medida, ‘direito’ (richtig). A compenetração destas duas ‘retidões’ no
comportamento prático do homem constitui manifestamente para Aristóteles o bem
humano. (1991, p. 323. Tradução nossa).
Um sujeito não é ético porque busca realizar ,em suas ações, algo (pro)posto como sendo um bem em
si, mas porque é capaz de entrever o bem que deve ser, algo que, realizável na prática, revele ao
mesmo tempo o próprio agente, seu caráter (êthos).
Nossas ações se entrecruzam com as ações de outros indivíduos, e é esse entrelaçamento o que
constitui o mundo social. Assim, as ações de indivíduos e grupos vão se alargando, alcançando aquilo
que constitui o bem comum, aquilo que concerne ao interesse coletivo.
Nesse sentido, dirá Ricoeur (1995, p. 15), “o desígnio da felicidade não pára a sua trajetória na solidão,
mas no meio da cidade”, em outras palavras, o terreno onde se realiza a ética, se nos inspiramos em
Aristóteles, não é o abandono do indivíduo em face de seus valores e princípios pessoais, mas a
concretização de nós mesmos em harmonia com aquilo que é igualmente desejável para os outros, e
isto é o bem comum.
Desse modo, a ética aristotélica encontra na política seu horizonte último de efetivação. Com efeito,
afirma o filósofo no Livro I de sua Ética à Nicômaco (1094b): “Ainda que a finalidade seja a mesma
para um homem isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo algo
maior e mais completo”.
Por outro lado, a vida política é visada por Aristóteles numa certa perspectiva: ele inclina-se por uma
“vida política reformada, mais do que pôr-se em favor de um novo gênero de vida” (BÓDÉÜS, 1982, p.
30. Tradução nossa). Esta “vida política reformada”, certamente, não equivaleria a uma vida intelectual,
votada à pesquisa da verdade.
Todavia, ela deve ao mesmo tempo em que realiza o bem comum, aperfeiçoar o sujeito político
enquanto tal, pois se “a política é a sagacidade considerada na relação com os outros” (BODÉÜS, 1982,
p. 33) e uma vez que a “sagacidade se conjuga com a virtude moral” (ARISTÓTELES, 2004. Tradução
nossa), vemos porque, para Aristóteles, a atividade política “é uma excelência (a sagacidade) que
permite ao homem alcançar seu bem último no exercício da virtude moral praticada por ela mesma nas
relações como os outros” (BODÉÜS, 1982, p. 33). É somente neste sentido que a vida meditativa é
superior à vida política, pois ela contém já, em si, os mesmos valores que esta.
À distinção da moral platônica, a ética aristotélica não pretende direcionar o olhar dos homens para um
fundamento universal do Bem, único capaz de orientar o sujeito em sua vida prática. Como bem afirma
Gadamer (1991, p. 322. Tradução nossa): “Não é nos conceitos universais de coragem e justiça etc,
que se cumpre o saber moral, mas, ao contrário, na aplicação concreta que determina, à luz deste
saber, o que é realizável aqui e agora”.
A ação humana não depende apenas das faculdades de que dispõe o sujeito, mas ela implica também
as condições dadas pela circunstância na qual ele age (GADAMER, 1991, p. 324). A ação não se dá,
portanto, apenas porque um sujeito determina-se a agir de tal ou tal modo. O que “ambienta” a ação
também conta para o conteúdo da ação mesma: o homem dotado de phrónesis não tem o consolo da
norma moral universal que o manteria ao abrigo das circunstâncias, à distância do concreto da vida
humana ordinária, comum; ele não pode, pois, se contentar em apenas “aplicar”, em cada caso, o que
determina a Lei (moral), como o preconizam os “legalistas” no nosso tempo. Este caráter condicionado
da ação humana não significa tão somente uma limitação desta. Ela indica apenas que o sujeito que
age o faz em meio a determinações sociais e políticas concretas.
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Agostinho viveu a maior parte de sua vida como religioso cristão, numa cidade portuária e pôde
acompanhar além do movimento das idéias, as angústias e as contradições de seu tempo. O império
romano, em sua época, passava por uma profunda crise que atingiu sua própria estrutura de poder:
dividiu-se em dois – oriental e ocidental, a corrupção no estado era notoriamente conhecida e
externamente aumentaram as pressões dos chamados povos bárbaros. O culto ao imperador perdeu
sua função com Teodósio, pois a religiosidade tradicional não oferecia respostas que fossem suficientes
para manter o moral e assegurar a fidelidade dos soldados e cidadãos à ordem vigente. É neste
contexto que o cristianismo aparece como uma alternativa real de poder simbólico e político, capaz de
reorganizar o próprio império.
Agostinho era um homem de seu tempo, e como não poderia deixar de ser, também buscava o sentido
profundo de todas as coisas. É nesta perspectiva que em sua jornada surgiu a busca por Deus, já que
ele acreditava que nele residiriam as respostas para todas as questões humanas. Em sua obra Cidade
de Deus, ele apontou claramente a conexão entre seu pensamento e o Platonismo: “Platão estabeleceu
que o fim do bem é viver de acordo com a virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita
a Deus e que tal é a única fonte de sua felicidade.” (Civ, VIII, 8)
É tributária do pensamento grego a preocupação de Agostinho com a moral centrada na prática das
virtudes. Mas para ele, as virtudes não poderiam resumir-se àquelas que foram formuladas pelos
gregos, pois o que dinamiza a vida humana é o permanente anseio pela verdade e pela felicidade. Em
resposta a estas buscas, Agostinho apontou o caminho das virtudes teologais (fé, esperança e
caridade), uma relação permanente entre o princípio de tudo (Deus) e a alma humana.
É na relação entre a realidade, sempre precária e parcial, e o princípio para o qual tendem todas as
criaturas, isto é para seu Criador, que Agostinho faz sua aplicação da dialética platônica. O que vivemos
em nossa realidade cotidiana é um arremedo do que verdadeiramente existe. A cidade dos homens em
sua permanente incompletude e erros – daí a importância da noção de pecado original -, nos remete
em nossa busca espiritual pelo bem e a felicidade, ao encontro com Deus.
Na realidade terrena em que vivemos, sempre precisamos discernir o que é perene do que é provisório,
aproximarmo-nos do verdadeiro e evitar o engano. Enfim, é preciso estabelecer uma relação ética com
o mundo que nos cerca. Segundo Pegoraro (2006, p. 67/8), essa ética agostiniana pode ser
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“Nestes dois termos latinos, Agostinho resume sua ética e moral cristã: frui, fruir (do
latim, fuor, gozar e alegrar-se) e uti, usar (do latim, uto, servir-se e usar)...Como
moralmente só podemos fruir e gozar dos bens eternos, e só neles nos alegrar, em
relação às realidades terrestres, só nos cabe utilizá-las (sem frui-las), para que nos
ajudem a procurar a alegria e o gozo eterno.”
Para Agostinho, a liberdade é um fundamento da ética, por isso está colocada diante de todos os seres
humanos a possibilidade de fazer escolhas. Assim, escolher o bem é colocar-se em sintonia com a
ordem natural e com o propósito real de tudo o que existe. É no contexto das escolhas que o ser
humano exercita sua liberdade e aparece em sua igualdade radical, para além das diferenciações
sociais e econômicas, como ser de abertura ao mistério do divino e à sua lógica de amor.
É inegável para Agostinho que, no dia-a-dia dos seres humanos, na cidade dos homens, há sempre a
possibilidade de se recusar a ética do amor e, portanto, entregar-se aos vícios e tudo aquilo que ele
constata como sendo fruto do pecado. Diante da conflitividade do presente, em que quase sempre é
mais fácil escolher o errado, Agostinho insiste em sua certeza ética de que Deus provê aos seres
humanos os meios pelos quais eles possam viver retamente. É neste sentido, que se pode afirmar que
as virtudes teologais da Fé, Esperança e Caridade, encampam o universo amplo e multifacetado do
discurso grego sobre o lugar das virtudes na busca pelo bem e sua conseqüência maior: a felicidade.
O ser humano reto – aquele que vive em conformidade com a ética do amor, não será o cidadão da
polis grega em luta pela defesa dos interesses do bem comum. É no âmbito do indivíduo, em sua
liberdade e conhecimento da vontade de Deus, que estará o campo dos embates éticos. Neste sentido,
Agostinho rejeita, a seu modo, o cristianismo de conveniência das elites romanas e reafirma a vida
comunitária, na simplicidade e na observância da vontade de Deus como os caminhos de perfeição
ética e espiritual.
Agostinho inova o discurso ético ao descobrir a igualdade fundamental de todos os seres humanos, seja
diante do pecado, seja diante da redenção por meio de Jesus Cristo. Mas tem dificuldades em buscar
um sentido maior e melhor para o mundo da política e das realidades temporais em sua época. Para
que a cristandade medieval, tal como a conhecemos hoje, se constitua, será preciso ir além da piedade
religiosa agostiniana e de sua ética do amor. O pragmatismo de uma razão fundada na fé, certamente
oferecerá melhores possibilidades de respostas éticas ao momento em que efetivamente houve uma
junção entre o poder temporal e o poder espiritual. É neste novo cenário que as reflexões de Santo
Tomás de Aquino adquirem relevância. Vamos conhecer um pouco de seu pensamento.
Do mesmo modo que Agostinho de Hipona buscou inspiração no pensamento filosófico grego, para
ajudá-lo a responder as questões fundamentais de sua época, Tomás de Aquino também fará este
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percurso intelectual. Os dois pensadores cristãos, cada um a seu tempo e a seu modo, irão
instrumentalizar o pensamento filosófico dos gregos à luz da doutrina e da fé cristã. Como já
mencionado anteriormente, Agostinho se serve do platonismo para propor sua ética do amor e organiza
sua reflexão de tal modo que se estabelece uma compatibilidade entre as virtudes gregas e as virtudes
teologais cristãs.
Tomás de Aquino também buscará nos gregos as bases para construir uma interpretação coerente de
seu momento histórico e dar respostas aos desafios éticos de seu tempo. Diferentemente de Agostinho,
é em Aristóteles que ele irá encontrar os fundamentos de sua ética do político e de legitimação da
cristandade medieval. Porque é necessário retornar a Aristóteles?
É em Aristóteles que Tomás de Aquino irá encontrar a noção de bem comum, de vivência das virtudes
como algo inerente aos interesses da cidade (polis) e o universo da política como um serviço à vontade
de Deus. Na cristandade medieval igreja e estado estão juntos, articulados e interdependentes, mas é
sob a égide do cristianismo (e sua doutrina acerca da fé) que se consolidam os estados nacionais e o
discurso ético em geral. Pegoraro (2006, p. 81/2) dá uma pista de como isso se estabelece:
“...o autêntico homem de fé será também um militante que pratica virtudes humanas.
Numa palavra, nada do que é verdadeiramente humano pode ser alheio ao homem de
fé porque antes de ser crente é um cidadão incorporado na cidade dos homens e deve
participar de todas as lutas pela dignidade humana neste mundo.”
A ética em Tomás de Aquino, juntamente com suas reflexões sobre a felicidade, a lei natural e outros
temas caros a Aristóteles, estarão vinculados à teologia e ao horizonte da transcendência religiosa. O
ser humano e todas as coisas criadas estão ‘logicamente’ direcionados para o Criador, sendo este o
fundamento último da própria racionalidade e liberdade. A busca da felicidade, neste tipo de
pensamento, nada mais é do que trilhar o caminho de retorno a Deus! No prólogo da Suma Teológica,
isso aparece com clareza:
Tomás de Aquino aprofunda a afirmação aristotélica da centralidade da justiça, de modo que nesta
virtude estão focados todos os atributos de uma vida ética. O cristão necessariamente é um servidor do
bem comum e, portanto, uma pessoa que deve orientar sua existência na cidade (realidade política) de
modo a construir relações justas. No contexto da cristandade, o pensamento de Tomás acaba por ser
ambíguo:
a. numa leitura mais centrada no papel da religião frente à sociedade, a implicação lógica desta
idéia é, sem dúvida, a submissão do Estado aos ensinamentos e normas emanadas da igreja;
b. outra leitura possível dessa reflexão é que todo poder, seja ele advindo do Estado ou da igreja,
emana somente de Deus e a ele deve explicações e obediência. Nesta segunda interpretação,
os dois poderes podem ser criticados em seus desvios e não se encontram totalmente
justapostos.
Fica evidente em Tomás de Aquino que a conduta ética do ser humano está totalmente situada no
próprio ser de Deus. O ser humano que exercita sua razão não pode estar distante desta verdade e a
ela deve inteira submissão, sendo que a fé em Cristo torna esta escolha um ato espiritual e salvífico.
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Fazer política é tornar esta racionalidade a maneira pela qual a sociedade terrena se organiza. Quanto
mais próximo da vontade divina, mais a sociedade se aproxima da ordem natural e da real
possibilidade de implantação da justiça.
É claro que a igualdade ontológica de todos os seres humanos, tendo em vista a queda pelo pecado e a
redenção em Jesus Cristo, não desembocaram numa efetiva igualdade entre todas as pessoas. Na
sociedade européia de então, com rígida estratificação social, essa igualdade foi colocada no campo da
outra vida, numa vida eterna e sem dor ou sofrimentos. Esta contradição, ao invés de desestimular ou
levar os cristãos à mera passividade, de fato alimentará uma grande corrente de místicos (Francisco de
Assis, João da Cruz, Tereza de Ávila etc) na busca da santidade.
É no âmbito destes debates éticos que se desenvolverão a idéia e a legitimidade do princípio de guerra
santa aos inimigos da fé. As Cruzadas, as perseguições aos judeus, bem como o processo de
reconquista cristã da península ibérica são tributárias dessa lógica de interdependência entre os
poderes: temporal e espiritual. É também parte deste processo o modo como os cristãos assumiram a
escravidão de africanos e indígenas, como uma prática, em nada contraditória à sua fé.
Somos seres datados, histórica e geograficamente situados, e isto faz com que mesmo a grande
síntese teológica e filosófica de Tomás de Aquino, fosse insuficiente para explicar a nova forma de
racionalidade trazida pela modernidade. Juntamente com esta nova razão, chegam também novos
desafios éticos e com eles a necessária superação do discurso ético centrado na prática das virtudes.
Resumo bibliográfico
Immanuel Kant é considerado um dos grandes filósofos do século XVIII. Nasceu, viveu
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e morreu em Konisberg, na Prússia. Escreveu várias obras, dentre elas destacam-se: Fundamentação
da metafísica dos costumes (1785) , Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1798)
nas quais desenvolveu a sua filosofia moral.
Immanuel Kant (1724-1804) reformula a questão ética de tal forma que a tradição de especulação
moral posterior a ele não pode mais deixar de se reportar ao seu pensamento. Em verdade, sua teoria
ética é o resultado do empreendimento intelectual de Kant para equacionar a questão do
conhecimento.
Na esteira das contraposições postas por racionalistas e empiristas, Kant explicitamente coloca sua
filosofia como a crítica das condições de produção do conhecimento humano e como o estabelecimento
das condições estruturais que permitem sua constituição. Na Crítica da Razão Pura (CRP), Kant
estabelece as condições de possibilidade para a obtenção do conhecimento. Suas indagações iniciais
acerca da validade do conhecimento da matemática, da física e da metafísica – propósito da CRP –
nega status de conhecimento à metafísica, e por conseguinte, às fontes tradicionais de fundamentação
ética até então estabelecidas: Deus e mundo. Mais ainda, sua crítica atinge também a fonte da
responsabilidade moral: a liberdade. Deus, liberdade, natureza, e também a alma, são no máximo
essências sobre as quais não possuímos nenhum acesso.
Como nosso conhecimento é derivado da conformação dada aos fenômenos apreendidos por nossa
intuição sensível pelas formas a priori de espaço e tempo, tudo o que podemos chamar de
conhecimento se resume ao que for apreendido pelos sentidos e organizado pela razão. Nada há em
Deus, na alma e na liberdade que possa ser apreendido sensorialmente; daí estarem além dos limites
da razão pura. A conseqüência imediata é a de que Kant recusa duas fontes possíveis de
fundamentação da ética: a religião e a ciência.
Ao recusarmos o discurso sobre Deus e a alma como destituídos de alcance pela razão, estamos
recusando uma das mais tradicionais fontes de fundamentação ética, ou seja, a religião e a teologia
acerca dela produzida. Uma vez que Deus e alma não podem se constituir como conhecimento, pois
este só é gerado a partir de percepção sensorial, toda teologia e conjunto de preceitos religiosos
deixam de constituir em fonte confiável para impor regras de conduta.
Por outro lado, a ciência – constituída para Kant em matemática e física – não passa de um discurso
acerca de fenômenos – aparências – e a forma como nossa estrutura racional os organiza. Esta é a
“revolução copernicana”, à qual Kant se refere em sua obra para designar a guinada no entendimento
que se tem sobre o conhecimento. Mesmo a ciência estabelecida, nada mais é que o conjunto de
regularidades posto pela mente, não derivados da percepção real do que o mundo é em sua essência.
Isto é a derivação, consciente para Kant, do que foi argumentado por David Hume: a regularidade
causal do mundo é apenas o hábito mental de colocarmos certos fenômenos observados em
consonância de tempo e espaço. Esta análise humeana foi referida por Kant como responsável por
acordá-lo de um sonho dogmático que via o conhecimento como derivado do objeto, e não constituído
em sua percepção pelo sujeito.
Como dito, Kant não concede ao conhecimento provido pela ciência a capacidade de gerar moralidade.
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Em uma crítica a Hume e a toda uma geração de empiristas céticos, Kant afirma que a tendência de
centrar-se na idéia de que o conhecimento das condições e condicionamentos a que o indivíduo está
submetido não constroem uma ética. Pelo contrário, acaba por destruir as bases de qualquer crença
ética na ação autônoma.
Em seu livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), Kant prepara sua longa e complexa
argumentação sobre os fundamentos da ética. Kant começa por examinar as noções de dever e
inclinação e por distingui-las em relação à ação moral. A ação por dever é uma ação destituída de
inclinação, qualquer que seja. Toda ação produzida por inclinação já se mostra como resultado de
intenção egoísta, pois é produzida a partir do desejo do sujeito da ação. Kant chama a atenção para o
fato de que ao divisarmos uma ação, nem sempre é fácil – pelo contrário pode ser extremamente difícil
– sabermos se esta foi realizada por dever ou egoisticamente, conforme as circunstâncias sob as quais
se apresentam. Kant dá o exemplo do merceeiro que age com eqüidade com todos ao vender sempre
pelo mesmo preço, não importa se em época de mercado aquecido, ou se em relação ao comprador
inexperiente. Ele pode o fazer por motivos egoístas. Por outro lado, desconhecemos também alguém
que seja dotado de desgosto e tristezas tais que tornam sua vida insuportável, mas que por dever
mantém a vida (KANT, 1980, p.112-113). Diz Kant:
Neste momento, Kant introduz o conceito de vontade boa em si mesma, que não é um meio para outra
intenção, mas é meio para si mesma. Em outras palavras, a vontade boa não visa intenção que não
seja a realização do dever de se realizar o que é ditado pela lei moral. Para Kant, o que define a
moralidade da ação não é seu propósito – pelo contrário, qualquer propósito que não seja o de apenas
realizar o que se deve fazer já conspurcaria a ação – mas sim o dever. E Kant define assim o dever:
“Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei” (KANT, 1980, p.114).
A ação moral só ocorre derivada da boa vontade em se realizar o que se apresenta como um dever.
Temos aqui a eliminação de todas as inclinações e todos os objetos da vontade. Segundo Kant, fica
assim estabelecida a autonomia da vontade, pois esta pode eliminar aquilo que seria o desejo e a
inclinação do sujeito.
A capacidade de representarmos a lei moral em si mesma – independente de qualquer ação que a siga
ou não – é o que move a ação moral. Esta capacidade de representação somente ocorre em um ser
racional, que em função disto, constitui um espaço ético ao qual se obriga e ao qual está obrigado. Esta
argumentação será retomada por inúmeros defensores atuais dos direitos dos animais, que advogam
que a obrigação moral humana para com outras espécies é derivada do fato inconteste de que o ser
humano é um animal moral que gera a representação da lei moral.
Como lei, a lei moral deve ser de aplicação universal, isto é, obriga em todas as situações orientando
sempre o agir, independente da intenção e das circunstâncias, e afirmando o que deve ser feito.
Somente aquilo que se mostra configurado em universalidade caracteriza uma norma/máxima da ação
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que tomarei como orientação em meu agir. O que não é universal depende da ocasião e dos agentes,
determinados em suas circunstâncias e desejos. Somente aquilo que cabe a todas as possibilidades e a
todos os agentes pode me obrigar moralmente.
Kant explica que, para que se apreenda a representação da lei moral, a vontade deve desejar a
universalização da máxima moral. Como a razão guia a vontade, faz com que ela torne a lei moral
objetiva – no sentido de que é uma representação universal – e também subjetiva – já que é agora do
desejo da vontade – pois:
“Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são
conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias,
isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente
da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom” (KANT,
1980, p. 123).
“Reconhecer como praticamente necessário” é a representação da lei moral, e é isto que a razão faz.
Escolher o que a razão apresenta como necessário é o que Kant chama de vontade. Vontade boa é
escolher o que a lei moral determina, e ela determina o que é bom.
A definição do que é bom não está na dependência subjetiva de uma representação qualquer. A
representação da lei moral se caracteriza pela universalidade e objetividade da norma. Em função
desta universalidade objetiva da lei moral, Kant afirma nos confrontarmos com um mandamento ou um
imperativo. Uma vontade perfeitamente boa seria aquela onde todas as inclinações coincidiriam com o
dever derivado do imperativo moral. A esta vontade Kant chama de vontade santa, divina. Claro é que
este não é o caso do ser humano, em cuja natureza reside um descompasso entre a representação da
lei moral que podemos gerar e a vontade que nem sempre coincide com o que a razão apresenta como
dever. Neste desencontro entre conhecer o dever e realizar o que a lei moral determina, está o
questionamento ético. Não teríamos questões e dilemas morais se ocorresse uma equivalência entre o
desejo humano e a máxima do dever moral. Precisamos da orientação no agir.
Já o imperativo categórico se define por determinar uma ação que visa a si mesma; não é meio para
outro objetivo, mas é fim em si mesma. Por isso, o imperativo categórico é o imperativo da moralidade
que determina as ações que valem por si mesmas e visam a si mesmas. O imperativo categórico
explicita quais ações que são boas porque são um dever. O que se apresenta como um dever o faz pelo
desejo de universalização do princípio – lei ou máxima – que determina categoricamente, isto é, como
um mandamento. A obrigação é gerada pela universalidade da lei que, por sua vez, é garantida pelo
aspecto formal de sua representação. Para Kant, a formalidade da lei moral – o imperativo categórico –
reproduz a necessidade das leis físicas, tomando como exemplo a física newtoniana. Assim como as leis
da natureza se aplicam a todos os objetos em todas as circunstâncias – pelo menos na visão da época
acerca das leis estabelecidas por Newton – também a lei moral deve ter a forma que lhe permita a
aplicação a todas as situações de ação humana. Em sua primeira formulação do imperativo categórico,
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e centrando atenção à conjunção de desejo e lei moral, isto é, aquela união que só se estabelece desde
o início na vontade divina, mas não no homem, Kant (1980, p. 129) diz:
Nesta primeira formulação, o querer deve se dirigir à possibilidade de universalização da norma moral.
Agir sempre de forma que o seu desejo fosse de que a ação a ser realizada se tornasse uma lei
universal, isto é, que a todos submetesse. Em uma segunda formulação Kant (1980, p. 130) afirma:
“Uma vez que a universalidade das leis, segundo a qual certos efeitos se produzem,
constitui aquilo a que se chama propriamente natureza no sentido mais lato da palavra
(quanto à forma), quer dizer, a realidade das coisas, enquanto é determinada por leis
universais, o imperativo universal do dever poderia também exprimir-se assim: age
como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza”.
Nesta segunda formulação, Kant faz o paralelo entre as leis da natureza e as leis morais. Se na
natureza as leis se exprimem por meio de relações de causa e efeito, que por sua vez são a
configuração dada aos fenômenos pelas formas a priori do pensar – espaço e tempo –, a lei moral deve
ser compreendida também como uma lei universal no sentido de uma lei da natureza, que obriga a
todos os objetos, assim como a máxima moral obriga a todos os agentes. A lei moral seria destituída
de conteúdo, pois seria apenas uma fórmula de aplicação universal. Na aplicação do imperativo
categórico às situações de ação, Kant dá o exemplo da pessoa financeiramente necessitada que precisa
pedir dinheiro emprestado, mas sabe que não terá condições de devolver o empréstimo. Kant
pergunta: em virtude da necessidade pessoal e familiar, não seria prudente e correto esconder a
impossibilidade de devolução àquele a quem se pede emprestado? Ao aplicarmos o imperativo
categórico e analisarmos a ação em relação à necessidade de desejarmos que fosse universalizada e
tomada como lei da natureza, perceberíamos claramente que nosso desejo nunca coincidiria com a
possibilidade de universalização daquela ação. Não há como justificarmos o desejo de que todos
mentissem para conseguir o dinheiro de que necessitam.
Para Kant, por mais que as conseqüências sejam danosas, a ação moral não se pauta em função de
objetivos pessoais, apenas em função do que se apresenta como dever derivado de sua universalidade
de aplicação. A conseqüência dos atos e a intenção que os produz não entram no estabelecimento do
que é moralmente devido, isto porque ao colocarmos nossos desejos pessoais, que determinam certos
fins também subjetivamente escolhidos, na validação de nossas ações estaríamos utilizando as pessoas
como meios para a satisfação de nossas subjetividades. O homem existe como fim em si mesmo, não
como meio para atingir algo derivado de inclinações pessoais. Qualquer ação que coloque qualquer
indivíduo como meio para o desejo de outros está desde o início maculada. A partir desta noção de que
o ser humano é sempre fim em si mesmo e nunca meio, Kant (1980, p. 135).afirma:
“Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um imperativo categórico no que
respeita à vontade humana, então tem de ser tal que, da representação daquilo que é
necessariamente um fim para toda a gente, porque é um fim em si mesmo, faça um
princípio objetivo da vontade que possa, por conseguinte, servir de lei prática universal.
O fundamento deste princípio é: A natureza racional existe como um fim em si. É assim
que o homem representa necessariamente a sua própria existência; e, nesse sentido,
este princípio é um princípio subjetivo das ações humanas. Mas é também assim que
qualquer outro ser racional representa a sua existência, em virtude exatamente do
mesmo princípio racional que é válido também para mim; é portanto simultaneamente
um princípio objetivo, do qual como princípio prático supremo se tem de poder derivar
todas as leis da vontade. O imperativo prático será pois o seguinte: age de tal maneira
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que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”
A passagem é bastante explícita quanto ao princípio guia de que toda natureza racional, o ser humano,
é fim em si. Daí a derivação de que a humanidade – compreendida por todos os entes racionais,
inclusive aquele que age – nunca deve ser utilizada como meio e sempre como fim em si mesma.
1. “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal.”
2. “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza.”
3. “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”
A autonomia já foi apresentada como um “fato da razão”. Cabe agora reabilitar como postulados da
razão prática, sem os quais esta não tem como agir, a alma e Deus.
Apesar de a felicidade ser uma busca pessoal e subjetiva, a realização do sumo bem está na
conformidade das disposições da vontade à lei moral. Ora, segundo Kant (2002, p. 201):
Se a felicidade é esta concordância da natureza aos nossos desejos e vontade, então a perfeição desta
conformidade não é possível no mundo sensorial. Como este processo não tem condições de se dar de
maneira completa no mundo da natureza, somente a imortalidade da alma nos garantiria a
possibilidade de realização do sumo bem, a conjunção da virtude de se fazer o que se deve e a
felicidade. Nas palavras de Kant (2002, p. 201):
“... porém o ente racional agindo no mundo não é ao mesmo tempo causa do mundo e
da própria natureza. Logo, não há na lei moral o mínimo fundamento para uma
interconexão necessária entre a moralidade e a felicidade, proporcionada a ela, de um
ente pertencente ao mundo e por isso dependente dele, o qual justamente por isso não
pode ser por sua vontade causa dessa natureza e torná-la, no que concerne à sua
felicidade e a partir das próprias forças, exaustivamente concordante com suas
proposições fundamentais práticas”.
Não depende então da lei moral, nem da representação que dela temos, para chegarmos à realização
do sumo bem. A possibilidade que nos garante esta realização – além da autonomia da vontade e da
imortalidade da alma que permite seu desenvolvimento – é a existência de Deus. Como diz Kant (2002,
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p. 202):
“Logo, o sumo bem só é possível no mundo na medida em que for admitida uma causa
suprema da natureza que contenha uma causalidade adequada à disposição moral”.
A “causalidade adequada” que garante a adequação da vontade à lei moral, e da felicidade à virtude é
Deus. Assim, aquilo que Kant colocou fora dos limites da razão pura, agora se apresenta como
postulado necessário da ação prática. O que não podia ser admitido como conhecimento é agora
condição para que a razão prática funcione. Não devemos pensar que falamos de duas razões de posse
do ser humano. É uma e única razão que se apresenta enquanto aparato de apreensão e organização
de fenômenos (razão pura) e enquanto função organizadora da ação humana.
A ética kantiana é um poderoso e rígido edifício teórico baseado em uma estrutura formal que
prescinde de conteúdo. A influência de Kant se fará forte desde sua formulação e perpassará todo
pensamento sobre a ética que será formulado posteriormente, seja para reafirmação, seja para
negação.
Em nossa próxima aula, trataremos de ética comunicativa e ética da responsabilidade. Bom trabalho!
Resumo Bibliografico
Habermas, nascido em 1929, foi um dos filósofos que seguiu a tradição kantiana e
construiu, a partir dela, uma Ética Comunicativa, também conhecida como Ética do Discurso.
Podemos ter um primeiro vislumbre da dívida que Habermas tem com Kant, notando a posição que
assume com relação à distinção hegeliana entre “moralidade” e “eticidade”. Para Hegel, a ética
kantiana é inadequada porque é parcial; e é parcial na medida em que se ocupa apenas com o que
chama de “moralidade”, que é, para Hegel, a dimensão individual da ética. A moralidade é o domínio da
obrigação e do dever, como descrito na ética kantiana. Mas esse domínio não esgota, de forma
nenhuma, o todo da ética. Em contraste com a “moralidade”, Hegel põe, então, a “eticidade” ou “vida
ética”, consubstanciada nas instituições da família, da sociedade civil e do Estado. A eticidade,
portanto, tem um sentido, por assim dizer, “comunitário”, e toda vida comunitária implica o
compartilhamento de uma determinada concepção do que seja uma vida que vale a pena ser vivida.
Mesmo que não concordemos com Hegel, que via na maneira como Kant definia o problema moral uma
limitação ou uma inadequação, o fato é que ele tinha razão em assinalar que, para Kant, o problema
moral por excelência é o problema do dever ou da obrigação – ou seja, diz respeito àquelas exigências
normativas que erguemos mutuamente e que limitam nossas possibilidades de ação; refere-se àquilo
que devemos uns aos outros. Habermas também restringe a contribuição de sua teoria à perspectiva
da “moralidade”. Seu interesse é investigar a validade associada a normas e não a valores inscritos em
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Outra tese importante afirmada por Habermas e por ele associada à tradição racionalista da ética
kantiana é a tese de que questões práticas são “passíveis de verdade” (essa tese é compartilhada por
todas as éticas que se costumam chamar de “cognitivistas”; voltaremos a isso em outro momento
desta Unidade de Estudo). Juízos normativos, ou seja, juízos que afirmam a validade de determinadas
regras, quando afirmados, erguem uma pretensão de validade que não é meramente subjetiva. Quando
dizemos “Mentir é errado” erguemos, implicitamente, a pretensão de que a regra “Não se deve mentir”
é válida para todos. Naturalmente, essa pretensão de validade é diferente da pretensão de validade
erguida pela proposição “A Terra é redonda”. Essa última proposição é, em sentido pleno, uma
proposição verdadeira. Já o juízo “Não se deve mentir” não é propriamente “verdadeiro”, embora erga
uma pretensão de validade normativa. Para Habermas, tanto as semelhanças quanto as diferenças
entre juízos normativos e juízos assertivos são importantes. É importante que ambos ergam pretensões
de validade objetiva; e é importante entender a diferença entre a pretensão de verdade estritamente
falando (que envolve, em alguma medida, uma relação entre o juízo e um fato no mundo: o juízo “A
Terra é redonda” é verdadeiro, porque a Terra é de fato redonda) e a pretensão de validade normativa
ou deontológica (que não envolve uma relação desse tipo: não há, a rigor, um fato no mundo que
corresponda ao juízo “Mentir é errado” e que o torne verdadeiro).
De todo modo, Habermas, como Kant, acredita que os juízos normativos têm uma validade objetiva.
Para explicar tanto as diferenças quanto as semelhanças entre as duas pretensões de validade – a
verdade de juízos assertóricos e a validade deôntica de juízos normativos – Habermas lança mão de
argumentos retirados da filosofia da linguagem, que não exporemos aqui (HABERMAS, 1989, p. 78-83).
Já deve estar clara, de todo modo, a dívida de Habermas com a perspectiva deontológica kantiana pelo
que foi dito.
Por fim, um último ponto em que essa herança kantiana assumida por Habermas transparece é sua
utilização da idéia que Kant exprime no seu conceito de “imperativo categórico”. Habermas (1989, p.
84) diz:
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levam em conta (e que, por conseguinte, tomam corpo nas normas de ação). Kant quer
eliminar como inválidas todas as normas que “contradizem” essa exigência. Ele tem em
vista aquela contradição interna que aparece na máxima de um agente quando sua
conduta só pode atingir seu objetivo na medida em que ela não é a conduta universal.
Encontram-se aqui várias das idéias kantianas associadas ao imperativo categórico, assumidas e
afirmadas por Habermas. A idéia do imperativo categórico, para Habermas, é a maneira adequada para
exprimir nossas idéias de imparcialidade, igualdade e impessoalidade. A estratégia da universalização,
implicada pelo imperativo categórico, dá forma a essas idéias, assim como expressa claramente
também a pretensão de universalidade (de validade objetiva) erguida implicitamente pela norma.
Também aparece aqui a idéia do imperativo categórico como um “princípio-ponte”, ou seja, uma
espécie de regra (em Kant era mais como um teste) que pode funcionar em um contexto de
argumentação moral.
Note, no entanto, que Habermas já começa a introduzir alguns elementos que não estão na formulação
kantiana do imperativo categórico. Em especial, aqui, aparece a idéia de que o imperativo categórico
exige a possibilidade de universalizar os interesses. Isso, provavelmente, Kant rejeitaria, embora, como
você viu, a noção de “máxima” (e o que entra efetivamente em sua formulação) não é especialmente
desenvolvida por ele, o que deixa diversos pontos na sombra. Dependendo, portanto, do que
consideramos passível de ser formulado em uma máxima, podemos incluir ou excluir elementos – entre
eles, talvez, os interesses.
Esses pontos são condensados por Habermas em sua versão do imperativo categórico, que chama
simplesmente de Princípio de Universalização:
Assim, toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que
(previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser
ela universalmente seguida possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as
conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem). (HABERMAS, 1989, p. 86)
Essa referência às conseqüências e satisfação de interesses faz uma ponte interessante com a
perspectiva conseqüencialista, sem que o quadro geral de referência da ética habermasiana deixe de
ser deontológico.
Outro acréscimo de Habermas à noção kantiana do imperativo categórico é, talvez, mais importante.
Como foi dito, o princípio de universalização, que em Kant era um teste para máximas, em Habermas
assume mais claramente o papel de uma regra de argumentação que possibilita o acordo. Habermas
tenta mostrar que esse princípio, ao contrário do que acontece em Kant (e também em Rawls, com sua
idéia da posição original) não pode ser aplicado “monologicamente”, ou seja, por um único indivíduo
pensando sozinho, mas apenas discursivamente, em uma discussão moral, já que, diz ele, “os
problemas que devem ser resolvidos em argumentações morais não podem ser superados
monologicamente, mas exigem um esforço de cooperação” (HABERMAS, 1989, p. 87). Por essa razão,
a ética de Habermas é conhecida como “ética do discurso”.
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Resumo bibliográfico
Hans Jonas foi um filósofo alemão de origem judaica, que estuda em Freiburg, sendo
aluno de Husserl e Heidegger e colega de Hannah Arendt. Dedicou-se, inicialmente a estudos de gnose,
no cristianismo primitivo. Com o surgimento do nazismo, viajou para Israel e integra uma brigada
sionista. Terminada a guerra foi para o Canadá, onde trabalha nas Universidades de Montreal e Otawa,
indo mais tarde para Nova York.
Hans Jonas discute a Ética, a partir da preocupação com a tecnologia e com as questões que envolvem
a ação do homem sobre a natureza. Seus estudos acerca da filosofia, da biologia, resultam no livro O
Princípio da vida: fundamentos para uma biologia filosófica (1966). Considera a carência da vida um
tema ético, principalmente, quando relacionada com as diversas formas de vida, incluindo a vida
humana. Integra a ética no âmbito da filosofia da natureza, ampliando seu espaço de compreensão, na
medida em que deve envolver-se com todos os organismos vivos.
Sua obra mais importante chama-se O Princípio da Responsabilidade: ensaio de uma ética para a
civilização tecnológica, publicado em 1979. Nesta obra, o autor faz uma profunda e ampla análise sobre
as ameaças virtuais e reais que a técnica à vida em todas as suas dimensões. Logo no Prólogo indica:
A tese inicial deste livro é que a promessa da técnica moderna converteu-se em uma
ameaça, ou que a ameaça permaneceu indissoluvelmente associada à promessa. É uma
tese que transcende a mera constatação da ameaça física. A submissão da natureza,
destinada a trazer a felicidade para a humanidade, teve um êxito tão desmedido – um
êxito que agora afeta também a própria natureza humana - que colocou o homem
diante do maior desafio que por sua própria ação jamais lhe havia sido apresentado.
(JONAS, 1995, p. 15).
E continua sua reflexão propondo que o ser humano redimensione seu agir, tendo presente as
repercussões concretas desta ação, com responsabilidade; isso requer que se repense o poder que o
homem tem diante das inovações da tecnologia, de modo que a natureza não seja aniquilada pelo mau
uso da técnica e que não haja a perda de controle sobre seus efeitos.
Para o autor, é preciso saber o que está em jogo nesta custódia sobre a natureza. Os homens, ao
construírem a cidade, fizeram-na como um artefato, uma criação para lhe servir de morada; ocorreu,
no entanto, uma espécie de uso demasiado da natureza pelos homens, ainda que eles não tenham
conseguido esgotar todos os seus recursos. Torna-se a cidade a maior de todas as obras humanas, que
interferiu na ordem natural.
A cidade, entende o autor, deve produzir um novo equilíbrio na natureza, produzindo deste modo, a
superação de várias teorias éticas, especialmente, aquelas que valorizam apenas a vida humana
(antropocêntricas), tornando secundário o valor das demais formas de vida. A crítica de H. Jonas atinge
a atitude do homem, que descuidando da natureza descuida da vida, esquecendo-se de que a sua
própria estabilidade está ameaçada e corre perigo, pois não podem ser retiradas as condições
fundamentais da existência humana. E reitera com convicção:
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A cidade criada, construída pelo homem, portanto, deve permanecer sob seu controle para que haja
um respeito responsável pela natureza. Anteriormente, a natureza não fazia parte da responsabilidade
humana. A ética não estava relacionada com a natureza, com esta se lidava com a inteligência e a
invenção. O autor insiste que há uma necessidade fundamental de aproximar a moralidade da
inteligência, para que se efetive a responsabilidade. A vulnerabilidade da natureza requer uma
mudança decisiva na compreensão ética acerca da vida; isto é um dado novo, que as teorias éticas
clássicas não conseguem responder. Há necessidade, pois, de um novo olhar ético, uma interpelação
da natureza que exige um novo comportamento do sujeito, uma atitude de responsabilidade, a ser
fundamentada eticamente.
Nenhuma ética anterior levou em conta as condições globais da vida humana, nem o
futuro remoto, mais ainda, a existência mesma da espécie. O fato de que precisamente
hoje estão em jogo essas coisas exige, em uma palavra, uma concepção nova de
direitos e deveres, algo para o que nenhuma ética, nem metafísica anterior
proporciona os princípios e menos ainda uma doutrina já pronta. (JONAS, 1995, p. 34).
Hans Jonas argumenta, pois, que algo mais do que o interesse do homem deve ser olhado pela ética. É
absolutamente imprescindível que o limite do cuidado ético avance além da linha antropocêntrica; a
biosfera requer esse cuidado – é um bem que aguarda a nossa tutela para ser conservado, como
condição da sobrevivência de todos os seres vivos. A responsabilidade torna-se uma atitude ética, na
medida em que há um dever a ser cumprido não apenas dos homens entre si, mas com a natureza,
cuja preservação deve ser entendida como um direito moral. Desse modo, a responsabilidade visa o
futuro. Isto se torna um novo imperativo ético: que o futuro passe a ser preservado no presente, para
que seja possível pensar a continuidade da vida no planeta.
Houve, segundo o autor, uma perda dos referenciais do sagrado pela dessacralização proposta pelo
iluminismo. Há que se fazer um reencontro do corpo e do espírito, do social e o biológico, de modo que
as rupturas feitas possam ser superadas, pela ética que se funda no princípio de responsabilidade. A
dimensão do medo se tornou um referencial. Sabemos, hoje, mais o que evitar do aquilo que podemos
escolher. E isso pode envolver a técnica, com a qual intervimos na natureza, como também o descuido
que temos em relação ao seres em geral.
Hans Jonas assevera que todas essas questões articulam-se na idéia de valor e de poder; quem
escolhe valores e quem detém o poder é responsável pela sobrevivência dos seres, pela sua fragilidade,
pela sua conservação. Aqui, o conhecimento desempenha um papel fundamental; a tecnociência não
pode retirar o sujeito de seu referencial de valor ético. É evidente que esses problemas relacionados ao
saber científico e técnico não repousam somente sobre um indivíduo. Esta é uma tarefa comum, que
envolve as instituições sociais e políticas, públicas e privadas que devem ser sensibilizadas para esse
princípio de responsabilidade.
Trata-se de uma práxis coletiva, que deve enfrentar a utopia do progresso, tendo em vista o efeito
devastador de várias aplicações tecnológicas, em nome do progresso. Para produzir bens para a
humanidade, Hans Jonas entende que não precisam ser produzidos males para a natureza, como o
assoreamento dos rios, redução da biodiversidade, erosão de encostas e tantos outros prejuízos que a
ausência de uma ética da responsabilidade pode provocar. O desenvolvimento sustentável proclamado
por pessoas envolvidas com o respeito à natureza pode encontrar acolhida teórica e prática na ética
proposta por Hans Jonas.
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Resumo bibliográfico
O objetivo de Rawls é propor uma concepção de justiça que fosse passível de ser o foco de um amplo
consenso em uma sociedade que já compartilhasse um conjunto de valores determinados (ligados, em
especial, às tradições democrática e liberal). Chegar a tal consenso é altamente desejável, dado que,
como lembra Rawls, “a justiça é a primeira das virtudes sociais, como a verdade o é dos sistemas de
pensamento” (RAWLS, 1997, p. 3). Uma sociedade que se caracterize por esse tipo de consenso em
torno de uma concepção de justiça é uma sociedade bem-ordenada.
Rawls deixa claro que seu interesse fundamental não é o conceito de justiça em geral, mas o problema
mais específico da justiça social, ou seja, o problema da justificação da desigualdade que
inevitavelmente existe em qualquer organização, inclusive na organização social. Que haja
desigualdade é inescapável: em qualquer organização, haverá, por exemplo, distribuição de papéis e
funções; haverá também uma distribuição do produto do esforço coletivo, segundo algum critério. Põe-
se, assim, o problema da justiça na distribuição de encargos, benefícios, autoridade, direitos e deveres.
Rawls também esclarece que seu interesse está circunscrito ao que chamou de “estrutura básica” da
sociedade. Ele diz:
Assim, o que Rawls quer é encontrar princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade,
princípios capazes de mobilizar um consenso. O problema agora é pensar como seria possível realizar
tal tarefa. Uma das grandes novidades de Rawls é, justamente, a retomada do antigo modelo
contratualista para realizar isso. A pergunta que ele se põe é: que tipo de arranjos sócio-políticos nós
escolheríamos se pudéssemos decidir como organizar nossa sociedade a partir de sua estrutura básica?
Para responder a essa pergunta, Rawls propõe um procedimento, sujeito a determinados limites e
constrangimentos, que modela uma situação ideal de escolha. A essa situação, Rawls chama de
“posição original”. A idéia é que uma concepção de justiça é melhor do que outra se fosse escolhida por
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pessoas colocadas nessa “posição original”, submetidas às restrições impostas por essa situação ideal
de escolha.
Essas restrições que condicionam a posição original têm uma finalidade específica:
A idéia aqui é tornar nítidas para nós mesmos as restrições que parece razoável impor
a argumentos que defendem princípios de justiça e, portanto, aos próprios princípios.
Assim parece razoável e geralmente aceitável que ninguém deva ser favorecido ou
desfavorecido pela sorte natural ou por circunstâncias sociais em decorrência da
escolha de princípios. Também parece haver amplo consenso sobre o fato de que seria
impossível adaptar princípios às condições de um caso pessoal. Mais ainda, deveríamos
garantir que inclinações e aspirações particulares e concepções individuais sobre o bem
não afetarão os princípios adotados. O objetivo é excluir aqueles princípios cuja
aceitação de um ponto de vista racional só se poderia propor, por menor que fosse sua
probabilidade de êxito, se fossem conhecidos certos fatos que do ponto de vista da
justiça são irrelevantes. Por exemplo, se um homem soubesse que era rico, ele poderia
achar racional defender o princípio de que vários impostos em favor do bem-estar
social fossem considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, com grande
probabilidade proporia o princípio contrário. Para representar as restrições desejadas,
imagina-se uma situação na qual todos estejam privados desse tipo de informação. Fica
excluído o conhecimento dessas contingências que criam disparidades entre os homens
e permitem que eles se orientem pelos seus preconceitos. Desse modo, chega-se ao
véu de ignorância de maneira natural. (RAWLS, 1997, p. 20-21)
Em outras palavras, o que Rawls pede é que nos imaginemos em uma situação na qual estivéssemos
totalmente ignorantes a respeito de nós mesmos (estamos sob um “véu de ignorância”), de nossas
habilidades, de nossos gostos, de nossa origem social, de nossa renda, etc. Nessa situação, que tipo de
princípios de justiça iríamos escolher? A idéia é que os princípios que seriam escolhidos nessa situação
seriam suficientemente razoáveis para alcançar aquele consenso em torno de uma concepção de justiça
necessário para bem ordenar a sociedade.
Veja que essa situação ou posição original não deixa de ter alguma semelhança com o procedimento do
teste de universalização proposto por Kant na primeira fórmula do imperativo categórico. Sobretudo, as
mesmas idéias de imparcialidade e igualdade aparecem, constrangendo ou impondo limites ou
restrições à nossa escolha (aqui, em Rawls, escolha de princípios de justiça; em Kant, escolha de
máximas). Também aparece algo semelhante à idéia de uma “vontade legisladora” a que Kant faz
referência na terceira fórmula do imperativo categórico: quando se põe nessa posição original, a
pessoa está como que adotando a perspectiva de um legislador ideal, à maneira do que imaginava Kant
com seu imperativo categórico.
Segundo Rawls, os princípios de justiça que seriam escolhidos nessa posição original seriam dois, o
primeiro dizendo respeito ao valor fundamental da liberdade e o segundo, ao da igualdade.
Esses princípios, diz Rawls, estão hierarquicamente ordenados e devem obedecer a uma ordenação
serial, o primeiro antecedendo o segundo. “Essa ordenação significa que as violações das liberdades
básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas nem compensadas por
maiores vantagens econômicas e sociais.” (RAWLS, 1997, p. 65)
Naturalmente, as liberdades básicas podem entrar em conflito, mas uma liberdade (por exemplo, a
liberdade de expressão) só pode ser limitada em nome de outra liberdade (por exemplo, a garantia
contra as calúnias). Essa prioridade dos direitos também deixa transparecer claramente o caráter
deontológico da teoria da justiça de Rawls. Mais ainda, Rawls afirma que há uma vinculação entre essa
idéia da prioridade da liberdade e a noção kantiana de autonomia:
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Parece-me apropriado observar a esta altura que existe uma interpretação kantiana da
concepção de justiça da qual esse princípio deriva. Essa interpretação se baseia na
noção de autonomia de Kant. (...) Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de
modo autônomo quando os princípios de suas ações são escolhidos por ela como a
expressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional e livre. Os princípios
que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus
dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das
coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é heterônomo.
Ora, o véu de ignorância priva as pessoas que ocupam a posição original do
conhecimento que as capacitaria a escolher princípios heterônomos. As partes chegam
às suas escolhas em conjunto, na condição de pessoas racionais iguais e livres,
sabendo apenas da existência daquelas circunstâncias que originam a necessidade de
princípios de justiça. (RAWLS, 1997, p. 275-276)
A esse reconhecimento explícito de sua dívida para com a ética kantiana, Rawls acrescenta uma crítica
voltada diretamente contra o utilitarismo (ver, em especial, RAWLS, 1997, cap. 5). O problema
principal é que a perspectiva utilitarista privilegia o agregado, dando pouca ênfase à questão básica da
distribuição:
Resumo bibliográfico
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à Rússia. Embora a Revolução Bolchevique atemorizasse sua família de certa condição burguesa, o
jovem Lévinas a acompanhava com alguma curiosidade. Em 1923, mudam-se para Strasbourg, França,
onde Lévinas cursará filosofia. Cinco anos mais tarde, parte para Fribourg-en-Brisgau, onde assiste aos
cursos de Husserl e Heidegger. Em 1930, publica sua tese de doutorado do terceiro ciclo de estudos,
sob o título Teoria da Intuição na Fenomenologia de Husserl. Nos anos de 1931 e 1932, participa dos
Encontros Filosóficos organizados por Gabriel Marcel.
Emmanuel Lévinas não constrói um sistema teórico determinado; o que propõe-se a fazer é refletir
sobre o humano. Foi freqüentador de Husserl e seus estudos fenomenológicos deixam fortes traços em
seus textos. Sua filosofia se assemelha a uma espécie de conversão da fenomenologia à ética. Husserl
pressentia a crise da cultura, que aconteceu quase como os estragos de uma guerra, deixando
seqüelas. Observa Lévinas que, na guerra, ocorre uma suspensão ética, que fica aniquilada diante das
estratégias políticas. Ele recoloca a ética no centro do seu pensamento e do pensamento em geral.
Em função de seu esquema conceitual, o autor critica a filosofia ocidental influenciada pela categoria
hegeliana de totalidade. Seu discurso é ético-religioso, procurando um certo personalismo e a
efetivação da paz no mundo. Desse modo, há o anúncio de uma escatologia. Seu pensamento tem uma
inspiração bíblica; procura fazer uma filosofia que pense a unidade do ser, ainda que não possa ser
negada a multiplicidade ontológica. Há uma espécie de nostalgia do mesmo, da circularidade do ser,
onde tudo se reencontra no Todo. Há traços da visão parmenídica acerca do ser. Ao questionar os
pressupostos da Filosofia Moderna, recusa a fusão de sujeito-objeto, pois isto resulta numa
neutralidade, especialmente no que se refere ao sujeito da razão.
Lévinas procura entender o ir às coisas mesmas, de Husserl, como uma volta para o outro, que produz,
também, um discurso filosófico, o qual terá que ser necessariamente ético. O discurso dos sujeitos não
se estabelece como verdade absoluta, pois o face a face deles excede e precede todo discurso. Há uma
ultrapassagem do finito para o Infinito, este penetra no discurso daquele, dando-se aí a possibilidade
da revelação. Sobre essa questão assim se refere em Totalidade e Infinito:
Lévinas entende que o pensamento não engloba a exterioridade e para isso recorre à idéia cartesiana
de Infinito. Entende que a realidade a ser focada por essa idéia é exterior ao pensamento, pois o
infinito não é objeto do ato mental, ele transcende. No seu livro Ética e Infinito (2000), Lévinas
responde questões, na entrevista concedida a Philippe Nemo, onde assegura que pensa a subjetividade
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em termos éticos e explicita “A ética, aqui, não vem no modo de suplemento de uma base existencial
prévia; é na ética, entendida como responsabilidade, que se ata o nó mesmo do subjetivo”. (LÉVINAS,
2000, p.79) Isto significa alicerçar toda questão ética na esfera da subjetividade, tendo presente a
responsabilidade com o outro, na sua compreensão do outro como rosto, como interpelação, como
intencionalidade.
Entenda-se que o conceito de subjetividade, em Lévinas, não se reserva a uma referência pessoal, mas
à responsabilidade que tenho com o outro, como um elo. Ele radicaliza: “O rosto me pede, me ordena”
(LÉVINAS, 2000, p. 81). E na continuidade de sua argumentação, ele assevera que eu não posso
esperar reciprocidade, esta é uma questão que não é minha; ou seja, eu faço a minha parte ao acolher
o pedido do outro, sem esperar que ele faça o mesmo comigo. Há uma absoluta gratuidade no meu
gesto, na minha atitude de aceitação do outro. Nisso, traduz-se a compreensão efetiva da alteridade. E
afirma:
Segundo ele, a missão é permanente com o outro, não há descanso; nisso reside a forma pela qual
ocorre a realização da subjetividade pela alteridade. Nesse movimento, aparece a expressiva
compreensão do Rosto como o dado da relação com o outro, no desvelamento de significados. Para
Lévinas, este é o momento da inteligibilidade, do qual se descortina a perspectiva da ética, antes da
construção propriamente teórica da filosofia.
É importante saber o que propriamente é identificado como o Rosto. Este é um tema central na ética
levinasiana. Em uma entrevista concedida a Revista Concórdia (2002, p. 170), ele aborda o assunto,
primeiro de modo negativo: “Na minha análise, o Rosto não é, de modo algum, uma forma plástica
como a de um retrato”, para depois afirmar: “É a relação com a carência total e, conseqüentemente,
com o que está só e pode padecer o supremo abandono a que chamamos morte”. Veja-se que há o
entendimento do outro com o semblante da vítima, que precisa ser olhado nas suas necessidades,
pelas quais eu me responsabilizo. É uma espécie de antropologia das vítimas que requer solidariedade
na escassez, na carência, que estão vivendo.
Nesse raciocínio, intercala-se o conceito de justiça, que, segundo o autor, precede a responsabilidade
para com o outro, na medida em que ocorre a assimetria da intersubjetividade, momento em que há
desigualdades resultantes das relações de violência, de dominação, como no problema do mal. Para
reiterar essa situação, Lévinas cita a fala de um dos personagens de Dostoievski, nos Irmãos
Karamazov: “somos todos culpados de tudo e de todos e eu mais que ninguém”. Percebe-se uma
construção antropológica da responsabilidade levada às últimas conseqüências, ainda que a justiça seja
quem ordene os limites da responsabilidade subjetiva.
A justiça tem uma dimensão de exterioridade, vem de fora, como um julgamento longe da história.
Lévinas faz uma crítica contundente ao processo teorético que lida com a realidade, só via conceitos, e
nisso se inserem as teorias da justiça, as quais se apresentam como fruto de uma moralidade ideal. Há
necessidade de que tais construções teóricas possam, também, sensibilizar a consciência dos sujeitos,
que pode julgar as situações objetivas, a partir de uma ótica do sujeito do discurso.
Há estudiosos que debatem o tema da alteridade, proposto por Lévinas, relacionando-o com as
questões que serão discutidas pelos filósofos latino-americanos, especialmente, os que se dedicam à
filosofia da libertação, como Enrique Dussel, que estudaremos mais adiante.
A propósito, Lévinas aproximou-se dos latino-americanos. Refere-se a isso numa entrevista concedida
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Lévinas: Conheci Dussel, que em outras épocas me citava muito, e que agora está
muito próximo do pensamento político, inclusive do geopolítico. Por outra parte,
conheci um grupo de sul-americanos muito simpático que elabora uma “filosofia da
libertação” – Scannone, sobretudo. Celebramos aqui uma reunião com Bernhard
Casper, amigo e professor de teologia em Freiburg, Alemanha, e alguns filósofos
católicos da América do Sul. Dá-se uma interessante tentativa ali de voltar ao espírito
popular sul-americano, uma grande influência de Heidegger; também, na maneira, no
ritmo do desenvolvimento, na radicalidade das interrogações. (BETANCOURT, 2002,
p.189-190)
Esta ética da alteridade foi compreendida pelos filósofos latino-americanos da libertação, pela
proximidade dos conceitos. O sentido da libertação está ancorado na perspectiva da acolhida do outro.
Vejamos a seguir como tal ética é proposta por Dussel.
Resumo bibliográfico
A Filosofia da Libertação, que abriga a ética da libertação, foi um movimento que se iniciou na
Argentina, nos meados da década de 60, do século passado, por um grupo de professores. A intenção
era fortalecer uma compreensão de cidadania, baseada numa perspectiva libertadora. Numa referência,
especialmente, a Karl Otto Apel e Jurgen Habermas, filósofos alemães, entende que a ética do discurso,
torna-se argumentativa, formalista, desconsiderando a materialidade da vida e os elementos históricos
dos povos excluídos. Postula essa análise, por entender que não é possível restringir as compreensões
éticas ao circuito lingüístico, incluindo apenas os afetados pelo discurso, os iniciados numa
compreensão ética de máximos e mínimos. Reflete sobre as causas da dependência e da alienação da
realidade latino-americana, apresentando uma perspectiva avançada para tratar dessas questões.
Não podíamos contar nem com o pensar europeu preponderante (de Kant, Hegel ou
Heidegger), porque nos incluem como “objeto” ou “coisa” em seu mundo; não
podíamos partir daqueles que os imitaram na América Latina, porque é filosofia
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Por essas razões, contesta o paradigma da filosofia ocidental, como sendo o único válido, ao reconhecer
apenas os argumentos do fazer filosófico europeu. A compreensão de Dussel é que a Filosofia se
integre na paisagem histórica, na qual os homens vivem, especialmente, os excluídos de todas as
formas. A Filosofia da Libertação possibilita um compromisso ético com as classes populares, as quais,
no seu entendimento atuarão nas mudanças sociais.
Contra a lógica do discurso formal, propõe a analética, um método que organiza o discurso a partir do
outro, pois tem origem no olhar do outro, na sua liberdade.
O momento analético é por isso crítico e superação do método dialético negativo, não o
nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume, o completa, lhe dá
seu justo e real valor [...]. É superação da totalidade, mas não só como atualidade do
que está em potência no sistema. É a superação da totalidade desde a
transcendentalidade interna ou da exterioridade, o que nunca esteve dentro. Afirmar a
exterioridade é realizar o impossível para o sistema (não havia potência para isso), é
realizar o novo, o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade
incondicionada, revolucionária, inovadora. (DUSSEL, 1976, p.164-165).
O autor quer negar a negação presente no sistema de Hegel, o qual, segundo sua visão, não contempla
a alteridade, mas, apenas, a identidade. Sistematiza sua proposição, demonstrando que as éticas
formais baseiam-se numa perspectiva da identidade, que vê o mesmo, o único, como uma espécie de
fechamento de totalidade. Propõe, pois, uma perspectiva da alteridade, quando ocorre o olhar para o
outro, superando o mesmo, o idêntico, possibilitando uma abertura compreensiva para a diferença,
para o reconhecimento da diferença, permitindo ações que possibilitem a libertação dos que se
encontram na situação de opressão.
Recusa, pois, a tese de Kant que define a lei como o fundamento da moralidade, porque a lei pode ser
injusta. Para que se rompa com situações de dominação, é necessário que se construa o projeto
histórico, expressão da práxis libertadora, quando a América Latina pode ser pensada como uma outra
cultura, não idêntica à cultura européia. Contra a ontologia da totalidade, Dussel (1988, p.53) propõe a
ontologia da proximidade. Este é o fundamento teórico da ética da libertação, o encontro de pessoas,
uma relação face a face, sem mediações. Aqui, aparece claramente no seu pensamento a influência de
Lévinas acerca da categoria da alteridade, a presença do outro como interpelação. Na fala de Lévinas,
“O rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso”.
A ética da libertação de Enrique Dussel procura sublinhar o caráter concreto dos valores, na medida em
que o outro é o pressuposto de um processo revolucionário. A idéia é que não se pode transigir com a
injustiça e com toda forma de exclusão. Aparece, aqui, o Dussel leitor de Marx, ainda que não
subscreva a totalidade das teses marxianas. O que se quer ressaltar é a importância do pensamento de
Marx nos filósofos latino-americanos, que se preocuparam com as estruturas econômicas e sociais
causadoras da exploração do pobre e do excluído. Dussel é um desses filósofos que assume a dimensão
revolucionária da práxis, como dado essencial para sua reflexão teórica.
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Como você percebeu nestes estudos não existe uma única moral que possa regular a complexidade da
existência, mas sim uma tentativa de encontrar caminhos que possam servir de referência, de
parâmetro, para que as ações humanas sejam responsáveis e levem em consideração a construção de
um mundo em que a dignidade da vida seja um valor inalienável. É este caminho, esta referência, este
parâmetro, que chamamos de Ética: os critérios que utilizamos para que a relação com o
“outro” produza o Bem.
Todas as relações que o ser humano estabelece com o outro deveriam passar por este critério. Isto
significa que, nesta unidade de estudos a que denominamos de “A práxis em temas éticos
contemporâneos”, poderemos tratar de vários temas, aliás, de muitos temas, sobre os quais é possível
fazer um exercício de análise e reflexão. Esta é uma tarefa que convidamos você a fazer por toda a
vida, seja no campo das relações pessoais, sociais ou profissionais. Uma tarefa que vai bem mais além
do tempo em que você se debruçou estudando esta disciplina.
Nesta unidade de estudos, vamos tratar de alguns destes temas, sabendo que são quase ilimitadas as
possibilidades e necessidades de fazer passar todas as situações pelo crivo da Ética. Para isto,
contamos com a colaboração de pessoas que têm se dedicado a estudá-las como parte de sua
contribuição para a edificação de uma vida melhor para todos. Embora cada autor/a tenha um ponto de
vista próprio – e em se tratando de Ética não poderia ser diferente - todos/as eles/as têm como eixo
comum o cuidado com a vida na intenção de preservá-la, potencializá-la e continuar seu processo de
criação.
Ao terminar seus estudos, esperamos que você esteja em condições de escrever seu próprio texto
sobre a Ética e registrá-lo em todos os momentos teóricos e práticos em que a vida pedir uma decisão,
uma atitude que promova o Bem da vida e a faça, como escreveu o poeta popular, ser bonita, ser
bonita e ser bonita.
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A busca de um ethos mundial vem sendo justificada por várias razões, entre elas, o aumento da
pobreza, a degradação ambiental, a intensificação de situações que provocam verdadeiras injustiças
sociais, o aumento de conflitos étnicos, formas explícitas e disfarçadas de atentados contra a
democracia real e o agravamento da crise espiritual e da própria ética.
Segundo Boff (2000), todas essas questões podem ser resumidas a três: a crise social, a crise do
sistema de trabalho e a crise ecológica. A crise social se caracteriza pelo crescimento vertiginoso da
desigualdade, sobretudo depois das recentes mudanças tecnológicas, as quais, através da robotização
e da informatização, propiciaram o aumento da riqueza para um número reduzido de pessoas e o
empobrecimento da maioria absoluta da população. A crise do sistema de trabalho está relacionada
com a anterior. A automatização dispensa o trabalho humano e cria ociosidade, falta de perspectiva de
vida e frustração. Já a crise ecológica, hoje também tão visível, está levando à destruição da nossa
única morada, o planeta Terra. A ação do ser humano tem sido irresponsável, produzindo estragos
irreparáveis e desequilíbrios ecológicos que ameaçam seriamente a sustentabilidade do planeta que
levou bilhões de anos para ser construída. Diante dessa situação, constata-se que é urgente uma
verdadeira revolução. Não como aquelas de épocas passadas, cujas realidades históricas eram bem
diferentes, mas um novo tipo de revolução que seja capaz de realizar as mudanças necessárias. Mas
para que esse tipo de revolução aconteça, é indispensável que ela seja fundamentada em algo
consistente e que possa ser aceito por toda a humanidade. Boff defende que esse tipo de revolução só
é possível através de um “pacto ético”, ou seja, de princípios que possam ser acolhidos, entendidos,
não só com a razão, mas também com o pathos, com a emoção, com o coração. Será indispensável
algo que toque profundamente a sensibilidade humana e a inteligência emocional de todas as pessoas,
de modo que elas sejam capazes de se comprometerem e de se envolverem num grande mutirão em
favor da vida não só humana, mas de todo o planeta, uma vez que a Terra é um grande organismo vivo
ao qual nós humanos estamos intimamente ligados. Somente este pacto ético será capaz de despertar
em todos nós o cuidado, a responsabilidade social, a sensibilidade ecológica e a solidariedade. Trata-se,
pois, de uma nova ética, ou, se quisermos, de uma nova ótica que brota de um mergulho profundo na
experiência da vida. Algo assim, que envolva toda a humanidade, que desperte compaixão e cuidado,
paixão pela vida, ternura e sensibilidade, está sendo chamado de ethos mundial.
Esse ethos mundial tem a ver com a totalidade do mundo e até do cosmos. Diz respeito não só à vida
humana, mas a toda vida no planeta. Tem a ver com valores fundamentais que respeitam as diferentes
visões de mundo e podem contribuir para solucionar os atuais problemas graves da humanidade. Gira
em torno de quatro eixos fundamentais:
a. cultura da não-violência;
b. cultura da solidariedade;
c. cultura da tolerância;
d. cultura dos direitos iguais.
Os defensores desses princípios afirmam que eles são comuns a toda a humanidade e fazem parte
daqueles elementos que constituem a “comunidade primitiva”, ou seja, aquele jeito de humanidade
plena que está nas nossas origens e com o qual todos sonhamos.
No primeiro eixo, encontramos a obrigação que a humanidade sempre cultivou: o respeito pela vida,
isto é, o dever de não matar, de não torturar, de não maltratar, de não ferir. É a paixão e o amor pela
vida. No segundo eixo, encontramos a obrigação que, desde sempre, acompanhou a humanidade: não
furtar ou roubar. Tal obrigação se desdobra em não pilhar, não chantagear, não corromper, que, dito de
outra maneira, significa agir com honestidade e lealdade.
O terceiro eixo está relacionado com a busca da autenticidade. Acolher e conviver com o diferente,
respeitando o direito à diversidade, mas, ao mesmo tempo, não mentindo, não enganando, não
falsificando e nem construindo máscaras. É o direito-dever de falar e agir com transparência e
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autenticidade. Por fim, o quarto princípio defende a sacralidade de cada vida humana, de cada pessoa.
Refere-se ao direito à individualidade e à subjetividade que não podem ser violadas de nenhum modo.
Nesse âmbito, entra a questão de gênero, da igual dignidade entre homem e mulher, da correta visão
da sexualidade e também a proibição de não abusar, diminuir, aviltar ou lesar a honra de qualquer
pessoa. Uma proposta de respeito e de amor mútuo.
Boff (2000) acredita que esse respeito deve ser cultivado também com relação aos demais seres vivos,
uma vez que também eles possuem uma certa subjetividade, são sujeitos cósmicos e estão em relação
conosco e entre si. Além disso, eles participam ativamente do processo cosmogênico e biogênico e têm
a sua história. Sem considerar o fato de que, num ecossistema como o da Terra, a extinção de um ser
vivo ameaça seriamente toda a vida na terra, inclusive a do ser humano. Nossa vida e nosso destino
estão intimamente ligados ao destino desse grande organismo vivo que é a Mãe Terra.
Certamente, a construção desse ethos tem os seus desafios. Exige de todos os seres humanos uma
política de compreensão e de cooperação recíproca. Exige também compromisso e integração das
pessoas. Junto com isso – ou talvez antes disso – é indispensável uma mudança de mentalidade, capaz
de ir além do costumeiro e de romper com as barreiras ideológicas e egoístas. Mas não podemos ter
futuro se não pensarmos seriamente na possibilidade real desse ethos mundial. Um ethos que possa
ser capaz de questionar toda pretensão de uma ciência sem ética, toda onipotência da tecnologia sem
emoção, todo ação destruidora do meio ambiente, toda democracia meramente formal. Uma ética que
nos faça ver que as tantas conquistas da humanidade não estão evitando o mau uso da pesquisa
científica, mas, em muitos casos, estão colocando seriamente em risco a vida do planeta. Uma ética,
portanto, que seja a razão da nossa vida e que possibilite a convivência digna entre todos os seres
vivos.
Este novo modo de pensar consiste em percebermos que a diversidade nacional, étnica, e religiosa não
é uma ameaça, mas uma possibilidade real e concreta de construção de uma unidade em torno do
essencial. E o essencial, no momento, é o bem-estar de todos, pois só a cooperação, a convivência e a
reciprocidade salvarão a todos e a cada um de nós. Se não construirmos juntos, de forma duradoura, o
bem-estar de todos, a felicidade de alguns será cada dia mais ameaçada, inclusive pela real
possibilidade do esgotamento dos recursos naturais e pela impossibilidade de uma vida sem violência e
sem agressões.
Este paradigma ou novo modelo de ética, que busca o compromisso de toda a humanidade, pressupõe
uma ação política, entendendo essa última como politiké, ou seja, como a arte de construir juntos o
bem comum ou a felicidade de todos. É claro que esta proposta de ethos mundial tem consciência dos
desafios e das dificuldades. Por essa razão busca ser, como diz Küng (2001), “a arte do possível”, isto
é, a construção de um consenso em torno de valores, de direitos e de deveres básicos. O consenso,
porém, não dispensa o esforço de cada pessoa em ter um novo modo de pensar que seja capaz de
contribuir para a aceitação de determinados pontos em comum. Küng afirmou, na conferência realizada
em 2007 na Universidade Católica de Brasília, que sem uma nova política, sem uma nova diplomacia e
sem aquilo que na linguagem religiosa se chama “conversão”, não é possível construir um ethos
mundial.
Por esse motivo ele e Boff – além de outros teóricos – estão convencidos do papel significativo das
religiões na elaboração e prática de um ethos mundial. De fato, para que se possa chegar a um
consenso mínimo em torno de valores fundamentais é indispensável recorrer a um Absoluto, a algo que
se imponha sobre todos e exija o cumprimento de determinados deveres incondicionais. O dever ético,
segundo a concepção de Küng, para que seja fielmente observado, teria que ter um referencial fora do
ser humano. Algo que ela chama de Incondicionado, de Absoluto. Assim sendo, a origem da Ética não
estaria no ser humano, mas neste Absoluto Incondicionado que a maioria das religiões chama de Deus.
Küng (2001) está convencido de que, de um modo geral, todas as religiões querem o bem da
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humanidade. Para ele, há uma relação direta entre humanidade comum e religiões. Todas elas
observam os cinco mandamentos da humanidade: não matar, não mentir, não roubar, não ser imoral e
respeitar as pessoas, especialmente as mais velhas e fragilizadas. Logo, elas teriam condições de
motivar os seus adeptos a aderirem a um ethos mundial. Partindo de uma reflexão sobre o que elas
têm em comum, poderiam ajudar a elaborar um consenso mínimo que favorecesse uma ação
responsável da humanidade, e colaborasse para o bem de todos os homens e de todas as mulheres.
Além disso, as grandes religiões possuem modelos, figuras exemplares (Buda, Jesus Cristo, Confúcio,
Maomé, Gandhi, etc.), capazes de motivarem suficientemente as pessoas na direção de uma ética
comum.
Porém, acredita Küng (2001), para que tenhamos uma ética mundial motivada pelas religiões é
indispensável que haja paz entre elas. E para que haja paz entre elas, é preciso que haja diálogo e a
superação da pretensão de cada uma de ser a dona da verdade. Por esse motivo, assim conclui o
teórico e pensador suíço: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não
haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as
religiões, se não existirem padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um
ethos global, uma ética para o mundo inteiro”.
1.2 Bioética
Desde o seu surgimento na Grécia antiga, há cerca de vinte e cinco séculos atrás, a Ética procurou
refletir sobre os comportamentos humanos, oferecendo, em cada época, elementos significativos para
a análise das condições humanas. Toda essa reflexão realizada ao longo de muitos séculos, tendo
presentes as mudanças que iam acontecendo nas diversas culturas, nas sociedades e no mundo,
ofereceu à humanidade um rico e diversificado referencial teórico. Mas a própria história da Ética nos
revela que, a cada instante, ela é sempre desafiada por novas situações que exigem novas reflexões e
novos olhares. Isso porque as mudanças de situações e de paradigmas sempre obrigam a um repensar
diferente, mesmo quando se trata de algo tão antigo como o comportamento e a atuação dos seres
humanos.
Assim sendo, a partir da metade do século passado, a Ética foi convidada a incluir em seu roteiro de
reflexão uma nova situação: aquilo que estava acontecendo nos diversos laboratórios de pesquisa. A
ciência tinha feito progressos enormes. Nos laboratórios, desenvolviam-se cada vez mais pesquisas
sofisticadas, envolvendo animais e seres humanos. A experiência da Segunda Guerra Mundial também
colaborou para gerar na humanidade uma espécie de alerta contra possíveis abusos neste campo. De
fato, como é notório a todos, nos campos de concentração nazistas, foram realizados experimentos
extremamente desumanos e pouco éticos.
Nasce dessa forma a Bioética. Como já diz a própria etimologia da palavra (bios + ethos), a Bioética,
termo criado em 1971 pelo cancerologista Van Rensselder Potter, é a ética da vida. Na visão inicial de
Potter, ela significava apenas a utilização das ciências biológicas em vista da melhoria da qualidade de
vida dos pacientes, isto é, da sobrevivência dos doentes. Mas logo o seu significado foi ampliado,
passando a designar a reflexão acerca do cuidado que se deve ter com a vida, de modo particular com
a vida mais fragilizada, mais ameaçada. A Bioética se sustenta e se desenvolve por meio do princípio
de respeito à vida. Inicialmente essa preocupação estava mais voltada para a vida humana. Mas logo
se percebeu – especialmente nos últimos trinta anos – que como a vida humana não estava sozinha no
planeta, era preciso também ter uma preocupação com a vida animal e a vida vegetal. Essas precisam
ser igualmente respeitadas. Mesmo porque a continuação da própria vida humana depende totalmente
do destino e do futuro da vida animal e da vida vegetal.
Podemos então afirmar que a Bioética é a preocupação, o cuidado, com todas as formas de vida em
seu ambiente natural. Desse modo, a Bioética inclui também a reflexão e a preocupação com os
diversos ambientes onde os diversos tipos de vida se desenvolvem. Logo, entra no dinamismo da
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Bioética as preocupações com o ar, a água, o solo e a atmosfera. De fato, todas as espécies de vida
formam com esses elementos um único complexo, de modo que se pode afirmar que a Terra é um
grande ser vivo. Portanto, a Bioética pode ser definida como a reflexão e o cuidado com a vida do
planeta Terra.
Às vezes há quem estranhe e considere exagerada a preocupação com a vida animal e com a vida
vegetal. Todavia, além das razões propriamente humanas – uma vez que nós humanos dependemos
delas para continuarmos existindo – uma vasta literatura produzida nos últimos anos tem mostrado
que todos os seres vivos e o meio ambiente precisam ser tratados com justiça e dignidade. A Carta da
Terra aprovada no dia 14 de maio de 2000 na Unesco em Paris, depois de oito anos de discussão, inclui
um artigo sobre o tratamento respeitoso a ser dado a todos os seres vivos. Tal respeito inclui
impedimento de atos de crueldades, a diminuição dos sofrimentos, ou seja, a proteção contra a caça,
as armadilhas, a pesca, o desmatamento e todo ato predatório e depredatório que se constitua numa
ameaça para as espécies vivas.
Boff (1999) insiste em afirmar que a vida não pode ser mais concebida de forma exclusivamente
antropocêntrica. Fundamentando-se no princípio da interconexão existente entre o ser humano e o
meio ambiente, ou seja, o meio onde ele vive, de que a Terra é um “superorganismo vivo”, sustenta
que todos os seres vivos possuem certa subjetividade, são sujeitos de inter-relações, possuem história
e participam ativamente daquilo que ele chama “processo cosmogênico e biogênico”. Pelo fato de
sermos apenas um pequeno elo, mesmo que único, na grande cadeia do Universo, por possuirmos os
mesmos componentes físico-químicos que estão na base do código genético de todos os seres vivos,
somos parentes de toda forma de vida. Por essa razão – continua Boff – o respeito e a dignidade não
se referem apenas ao ser humano, mas a toda “a comunidade terrenal e biótica com quem
compartimos a vida e o destino”.
Tendo presentes essas considerações, podemos então afirmar que a Bioética é uma nova maneira de
entender a Ética. Ela não é apenas um capítulo a mais da história da Ética, mas uma re-interpretação,
uma nova leitura e uma nova formulação da Ética. Certamente, isso não exclui a necessidade e a
obrigação de analisarmos toda a rica contribuição dos vinte e cinco séculos de história da Ética.
Todavia, esse modo novo de encarar a Ética é fundamental para o nosso futuro. Aliás, como afirma
Moser (2004), citando Potter, nesse momento, sim, a Bioética é “a ciência da sobrevivência”. Se não a
levarmos a sério, o futuro da vida permanece seriamente ameaçado.
Atualmente, a Bioética abrange três temas ou áreas do saber. Em primeiro lugar, a biotecnologia que é
a reflexão sobre os modos ou formas de tratar cientificamente a vida. Tem a ver com toda a questão
das técnicas usadas no tratamento da vida humana, animal e vegetal. Está relacionada com a
revolução biotecnológica. A segunda área é a da biogenética humana, onde as discussões éticas são
mais acaloradas. É o caso da fecundação “in vitro”, da clonagem humana, do uso das células-tronco e
da manipulação do genoma humano. O debate é difícil porque, além das questões propriamente
científicas entram em jogo concepções metafísicas, religiosas, psicológicas e políticas. A grande
questão é saber como, de fato, defender a vida e evitar a sua manipulação, de modo que os
experimentos científicos não se prestem a jogos de interesse políticos e econômicos. Por fim, a terceira
área é a da biodiversidade, de modo particular, a questão da manipulação genética das espécies. A
Bioética questiona determinadas experiências, procurando ajudar a refletir sobre o futuro dessas
espécies modificadas e suas conseqüências para o amanhã da própria vida humana e do planeta.
O que acabou de ser dito coloca toda a questão da relação entre Bioética e Ciência. É claro que
enquanto ciência, reflexão sistemática sobre a vida, a Bioética se fundamenta nos famosos quatro
princípios orientadores de toda ciência que queira ser ética: autonomia, beneficência, justiça e não-
maleficência. Todavia, como sabemos, a relação entre ciência e ética nem sempre foi pacífica. Isso se
deu principalmente por duas razões: pela pretensão da ética de trazer respostas prontas e pela
arrogância da ciência que tendia a excluir toda reflexão metafísica e a considerar o elemento ético
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Hoje, porém, o conflito entre ciência e ética começa a ser superado. Ainda existem resistências, mas,
aos poucos, parece que vamos chegando a um bom entendimento pela via do diálogo. Isso está sendo
possível pelo cultivo de atitudes contrárias àquelas anteriores. Os cientistas começam a admitir que o
espaço da ciência engloba muitos saberes, além daquele que eles dominam. Por sua vez, a ética
começa a reconhecer não só o valor, mas também a autonomia da ciência. Desse modo, é possível
construir um certo consenso sobre determinados pontos.
No que diz respeito a bioética humana, a questão esbarra no conceito de pessoa. Disso decorre uma
outra questão: quando começa a existência humana e quando alguém pode ser declarado pessoa
humana. Tanto o conceito de valores como aquele de dignidade recebem enfoques diferentes. Existem
definições confessionais, não-confessionais, políticas, econômicas, etc. É preciso que se tenha presente
que nenhuma das definições é suficiente para interpretar de modo exaustivo e abrangente todas as
dimensões da questão. Daí a importância dos Comitês de Ética e de Bioética onde cientistas de áreas
diferentes dialogam de forma desarmada, humilde e sincera sobre os temas em pauta, apontando os
pontos essenciais a partir de enfoques diferentes.
Por esse motivo, cabe apontar, no final dessa reflexão, alguns elementos que podem funcionar como
norteadores para a busca de um consenso no campo da Bioética. Em primeiro lugar, como já
mencionado, a importância do diálogo. Sabemos que existem pelo menos quatro teorias bioéticas:
secular, confessional, principialista e existencial. Podemos dizer que nenhuma delas é mais importante
do que a outra. Todas carregam elementos significativos e também limites. Elas se diferem nas idéias,
principalmente, como vimos antes, na questão do conceito de pessoa. Por isso, é indispensável o
diálogo sincero, humilde e honesto, para que se possa chegar a um consenso que realmente seja a
favor da vida.
Um segundo elemento se refere à questão dos códigos. Como bem afirma Moser (2004), eles por si
mesmos não salvam. Em muitos lugares e situações o direito positivo e a ética caminham por veredas
diferentes. Muitos códigos de ética são feitos a partir de lugares, de contextos e de pessoas que têm
pouco ou nada a ver com a realidade concreta. Por essa razão, o profissional não pode condicionar a
sua ação à letra do código. Ele precisa superar a preguiça mental e refletir sobre as questões que vão
surgindo.
O terceiro elemento norteador é uma reflexão sobre os laboratórios. A que e a quem eles estão
servindo? A visível distância entre eles e a crescente miséria da população mundial revela que as
descobertas científicas não estão favorecendo a humanização do planeta, mas beneficiando uns
poucos. Para serem verdadeiramente éticos, eles precisam estar a serviço do bem comum, de toda a
humanidade. A quebra de patente, com todos os problemas jurídicos e diplomáticos, por exemplo,
revela o drama dessa distância.
Por essa razão, o discernimento requer e supõe a consciência crítica que, segundo Moser (2004), é o
fundamento da Bioética, entendida como “ciência da sobrevivência” e do futuro do planeta. Esta
consciência crítica nos levará a perceber que é preciso estabelecer limites, tendo como referencial o
sentido profundo dessa pesquisa para o desenvolvimento sustentável e o futuro da Terra. Isso quer
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dizer que o antiético não é o agir, mas o agir sem sentido, sem buscar primeiro uma razão
verdadeiramente humana. Trata-se, pois, de agir responsavelmente pensando não somente no
presente, mas também no futuro. De fato, como afirma Moser (2004), a responsabilidade “é quase
sinônimo de ética, em todos os tempos e em todos os paradigmas”. E eu diria que é também quase
sinônimo de Bioética.
Para isso, precisamos nos deter mais sobre a natureza do cuidado essencial. Segundo Boff (1999), a
porta de entrada não pode ser a razão calculista, analítica, instrumental e objetivista. Esta nos leva ao
trabalho-intervenção-produção e nos aprisiona enquanto objetos. As máquinas e os computadores são
mais eficazes do que nós na utilização deste tipo de razão-trabalho.
Para Boff (1999), há algo nos seres humanos que se encontra surgido há milhões de anos no processo
evolutivo quando emergiram os mamíferos, dentro de cuja espécie nos inscrevemos: o sentimento, a
capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de afetar e de sentir-se afetado. A isso os gregos
chamavam de pathos.
Dar centralidade ao cuidado não significa deixar de trabalhar e de modificar o mundo. Significa
renunciar à vontade de poder que reduz tudo e todos a objetos, desconectados da subjetividade
humana. Significa recusar-se a toda forma de dominação. Significa abandonar a ditadura da
racionalidade fria e abstrata para dar lugar ao cuidado.
Citando o psicanalista norte-americano Rolio May, Boff (1999) analisa a civilização moderna desta
forma: “Nossa situação é a seguinte: na atual confusão de episódios racionalistas e técnicos perdemos
de vista e nos despreocupamos do ser humano; precisamos agora voltar humildemente ao simples
cuidado... é o mito do cuidado – e creio, muitas vezes, somente ele – que nos permite resistir ao
cinismo e à apatia que são as doenças psicológicas do nosso tempo”.
Boff chama a atenção para outro ponto: cuidado todo especial merece nosso planeta Terra. Temos
unicamente ele para viver e morar. A hipótese Gaia (James Lovelock) apresenta a Terra enquanto um
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O cuidado com a Terra representa o global. O cuidado com o próprio nicho ecológico representa o local.
O ser humano tem os pés no chão (local) e a cabeça aberta para o infinito (global). O coração une chão
e infinito, abismo e estrelas, local e global. A lógica do coração é a capacidade de encontrar a justa
medida e construir o equilíbrio dinâmico.
Atualmente, segundo Boff (1999), quase todas as sociedades estão enfermas. Produzem má qualidade
de vida para todos, seres humanos e demais seres da natureza. E não poderia ser diferente, pois estão
assentadas sob modo de ser do trabalho entendido como dominação e exploração da natureza e da
força do trabalhador. À exceção de sociedades originárias como aquelas dos indígenas e de outras
minorias no sudeste da Ásia, da Oceania e do Ártico, todas são reféns de um tipo de desenvolvimento
que apenas atende as necessidades de uma parte da humanidade (os países industrializados),
deixando os demais na carência, quando não diretamente na fome e na miséria. Somos espécie que se
mostrou capaz de oprimir e massacrar seus próprios irmãos e irmãs da forma mais cruel e sem
piedade. Só neste século morreram em guerras, em massacres e em campos de concentração cerca de
200 milhões de pessoas. E ainda degenera e destrói sua base de recursos naturais não renováveis.
Não há só a rede de relações sociais. Existem as pessoas concretas, homens e mulheres. Como
humanos, as pessoas são seres falantes; pela fala constroem o mundo com suas relações. Por isso, o
ser humano é, na essência, alguém de relações ilimitadas. O “eu” (ego) somente se constitui mediante
a dialogação com o “tu” (alterego – “outroeu”), como o viram psicólogos modernos e, anteriormente,
filósofos personalistas. O “tu” possui uma anterioridade sobre o “eu”. O “tu” é o parteiro do “eu”.
Como tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A resposta a esta pergunta divide, de cima a
baixo, as políticas públicas, as tradições humanísticas, as religiões e as igrejas cristãs. Cresce mais a
convicção de que as estratégias meramente assistencialistas e paternalistas não resolvem, como nunca
resolveram, os problemas dos pobres e dos excluídos. Antes, perpetua-os, pois os mantêm na condição
de dependentes e de esmoleres, humilhando-os pelo reconhecimento de sua força de transformação da
sociedade.
Para Boff (1999), a libertação dos oprimidos deverá provir deles mesmos, na medida em que se
conscientizam da injustiça de sua situação, organizam-se entre si e começam com práticas que visam
transformar estruturalmente as relações sociais iníquas. A opção pelos pobres contra a sua pobreza e
em favor de sua vida e liberdade constituiu, e ainda constitui, a marca registrada dos grupos sociais e
das igrejas que se puseram à escuta do grito dos empobrecidos que podem ser tanto os trabalhadores
explorados, os indígenas e negros discriminados, quanto as mulheres oprimidas e as minorias
marginalizadas, como os portadores do vírus da Aids ou de qualquer outra deficiência. Não são poucos
aqueles que, não sendo oprimidos, fizeram-se aliados dos oprimidos, para junto com eles e na
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Quando falamos em corpo-sofrido, não devemos pensar no sentido usual da palavra, que contrapõe
corpo à alma, matéria ao espírito. Corpo seria uma parte do ser humano e não sua totalidade. Nas
ciências contemporâneas, prefere-se falar de corporeidade para expressar o ser humano como um todo
vivo e orgânico. Fala-se de homem-corpo, homem-alma para designar dimensões totais do humano.
Essa compreensão deixa para trás o dualismo corpo-alma e inaugura uma visão mais globalizante.
Entre matéria e espírito está a vida que é a interação da matéria que se complexifica, se interioriza e
se auto-organiza. Corpo é sempre animado. “Cuidar do corpo de alguém”, dizia um mestre do espírito,
“é prestar atenção ao sopro que o anima”.
O ser humano-corpo-alma tem uma singularidade: pode sentir-se parte do universo e com ele
conectado; pode entender-se como filho e filha da Terra, um ser de interrogações derradeiras, de
responsabilidade por seus atos e pelo futuro comum com a Terra. Ele não pode furtar-se a perguntas
que lhe surgem: Quem sou eu? Qual é meu lugar dentro desta miríade de seres? O que significa ser
jogado nesse minúsculo planeta Terra? Donde provém o inteiro universo? Quem se esconde atrás do
curso das estrelas? O que podemos esperar além da vida e da morte? Por que choramos a morte dos
nossos parentes e amigos e a sentimos como um drama sem retorno?
Para Leonardo Boff (1999), levantar semelhantes interrogações é próprio de um ser portador de
espírito. Espírito é aquele momento do ser humano corpo-alma em que ele escuta estas interrogações
e procura dar-lhes uma resposta e não importa qual seja: se através de estórias mitológicas, de
desenhos nas paredes de cavernas ou se através de sofisticadas filosofias, ritos religiosos e
conhecimentos das ciências empíricas. O ser humano como um ser falante e interrogante, é um ser
espiritual. Enfim, é um ser da ética do cuidado.
Quando o fogo atinge a vegetação, de forma descontrolada, temos o registro das imagens da
indolência humana em perceber as conseqüências dos seus atos. Enquanto a espécie homo sapiens não
era dominante sobre a Terra, a capacidade de impor transformações à superfície do planeta era
restrita. Porém são seis bilhões e quatrocentos milhões de seres que diariamente pilham os recursos do
planeta por meio de desmatamentos, queimadas, poluição, consumismo, opulência e desperdícios.
Cada pessoa, cada instituição, cada empresa, tem a sua justificativa particular para fazer isso e
continuar fazendo ao longo das décadas. Criação de emprego e renda, “progresso”, necessidade de
produzir alimentos e moradias são algumas delas.
As queimadas e incêndios florestais, no Brasil, também são uma tragédia. Entretanto, tais eventos vêm
revestidos pelos tecidos da exclusão social, da cultura, da inadequação de políticas agrícolas,
engomadas por texturas corporativas e políticas, azedadas pela corrupção.
Ainda ocorre de forma tímida a percepção de que vivemos sobre a superfície de uma esfera pequena,
flutuando no espaço, envolta em uma tênue camada de gases, portando recursos limitados e aquecida
por uma estrela. Somos todos moradores de uma casa, cuja habitabilidade é mantida por meio de uma
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sofisticada combinação de fatores montada por acoplamentos de inúmeros sistemas que se interligam
e se completam. Para se viver em um lugar assim, tem-se que se ajustar a Leis, a princípios e a
limites.
É incrível que, passados quase quatro décadas daquela primeira imagem da Terra solta no espaço
(produzida durante a órbita da nave Apollo 10 em volta da Lua, 1969), ainda continuemos a imaginá-la
como plana e infinita, logo, de recursos infinitos, como pensavam alguns navegadores do primeiro
milênio.
Todas aquelas imagens de destruição do planeta que a mídia vomita em nossas salas não são
produzidas por gaivotas, nem por capivaras, tampouco fungos ou papagaios, somos nós. Aí queremos
disfarçar a nossa insensatez, ora culpando os pobres, ora os ricos, ou negando o aquecimento global,
arregimentando provas compradas da nossa “inocência”.
È irrelevante a discussão das causas humanas do aquecimento global a essa altura dos
acontecimentos. È só reunir as imagens de foco de calor em todo o mundo, as imagens de
desmatamentos, de urbanizações, de assoreamentos, de poluição hídrica em todos os rios e oceanos,
de derretimento de geleiras, de secas e inundações, de extinção de espécies e da miserabilização de
grande parte da população humana empurrada para a exclusão social, fome, violência e morte. Tem-se
o mosaico da insustentabilidade.
As causas das queimadas e dos incêndios florestais são as mesmas que produzem as outras ameaças à
sustentabilidade da vida no planeta: uma troca perigosa de valores que alimentou a arrogância, o
imediatismo, o materialismo, a ausência da ética, o analfabetismo ambiental, a ignorância e a cegueira
espiritual na qual imergiram as pessoas levadas por um modelo de “desenvolvimento” que tem como
divindade, o mercado, como totem, o lucro, como égide, o consumo exacerbado e como fonte de
alimentação do processo, a falta de percepção.
Essa falta de percepção e irresponsabilidade coletiva se cristaliza quando uma indústria faz as suas
descargas aos domingos para fugir da fiscalização; quando uma siderúrgica alimenta os seus fornos
com carvão obtidos por meio da destruição de vegetação nativa; quando alguém compra os produtos
dessa siderúrgica; quando os índios são tapeados com bugigangas para a retirada predatória das
madeiras das suas reservas; quando alguém compra essas madeiras; quando se provocam incêndios
florestais para abrir áreas para pastagens; quando se compram bois dessas pastagens; quando se
consome essa carne nas churrascarias sem exigir a origem certificada delas; quando se consome patê
de ganso ou baby beef, ignorando a crueldade que se pratica na sua produção; quando se falsificam
medicamentos; quando põem soda cáustica e água oxigenada no leite; quando roubam dinheiro
público; quando se vendem milhares de motos e carros sem preocupação com os seus transtornos;
quando fiscais do Ibama são assassinados no cumprimento de suas missões; ou quando nos omitimos
em tudo isso.
O que está por trás das ações de destruição sócio-ambiental não é a economia, não são as regras do
mercado, tampouco o aroma dos lucros emanados das bolsas de valores lubrificadas pela engenharia
de especulação. É a ausência dos valores humanos, da ética, dos sentimentos mais nobres que
deveriam orientar a espécie humana. É a carência de perceber o que somos, onde e como estamos. A
ausência desses elementos permitiu surgir e crescer novas óticas que geraram modelos como os
vigentes.
Sem esses elementos, não há possibilidade de sustentação. Não há tecnologia que possa suportar a
nossa ignorância. Não há recursos naturais capazes de satisfazer tal avidez, tal apetite voraz por lucro
e poder.
As imagens das artérias urbanas entupidas pelo excesso de veículos assemelham-se ao pescoço do
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ganso no qual se empurram diariamente 12 quilogramas de ração para inchar o fígado e assim obter a
matéria-prima para o caríssimo patê. Tal situação interessa apenas a quem vende os carros e seus
apetrechos agregados e aos donos do patê. A urbe, por enquanto, segue cega guiada pela bengala do
marketing e do merchandising.
Enquanto isso, vários ingredientes dos sintomas vão surgindo e sendo adicionados à salada dos
atentados à vida. Os ROIs (Registros de Ocorrência de Incêndios, Prevfogo / Ibama) de 2007
revelaram um dado acusador e sintomático: 22% das causas dos incêndios referem-se ao vandalismo.
Tem-se o ápice da insensatez, da dessintonia com o mínimo de lógica e de percepção. Não há
imediatismo e/ou exclusão social que possa justificar a liquidação da vida, a não ser por uma
substituição brutal dos valores que norteiam o povo marcado, admirável gado novo.
E o que fazer?
Os Estados Unidos e a Europa estão organizando missões espaciais milionárias. A Nasa e a ESA
(Agência Espacial Européia) buscam indícios de vida no universo. Os projetos Mars Reconeiaissance
Orbiter (MRO) – US$700 milhões, SIM Planetquest – US$ 98 milhões, Phoenix Mars Lander – US$ 386
milhões e COROT – E$ 35 milhões, com missões que vão até 2021, somam investimentos de 1,2
bilhões de dólares.
Mas esta não é uma saída razoável para os cenários desenhados. A exploração espacial representa a
nossa reserva de potencial evolucionário. Os desafios terrenos atuais ainda podem ser gerenciados pela
inventiva humana, se se dispõe a acoplar ao seu cabedal científico e tecnológico, o seu acervo ético, o
seu equipamento sensorial emotivo, os seus valores de compreensão e cooperação.
A mudança climática global veio criar a maior oportunidade de evolução que a sociedade humana
jamais contemplou. A febre do planeta escancarou os erros que causaram os sintomas de uma doença
que pode se tornar mais grave, mas também apontou os caminhos para a sua cura.
Cada ser humano pode ser tanto um agente de agravamento ou de cura dessa “doença”. Cada pessoa é
um agente de transformação por meio das suas atitudes e decisões. Programas governamentais,
gestão ambiental, educação ambiental, leis e todo o aparato adaptativo disponível serão insuficientes
para mudar a rota de colisão, se não se exercita a percepção da magnificência de estar vivo, de
partilhar uma experiência humana, e dos direitos e deveres inerentes a tal aventura.
Desse estádio evolucionário dependerá, em grande parte, o sucesso ou fracasso da passagem humana
sobre a Terra. A menos que se admita que tudo o que está ocorrendo faz parte das tramas da
evolução, ou seja, deve ser assim mesmo: primeiro erramos, depois sofremos, aí aprendemos. Ou
vamos fazer a nossa inteligência e buscarmos outros caminhos?
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mundo mais ético. Nessa perspectiva, não poderíamos deixar de falar da ética relacionada à educação
e, para nos orientar a respeito dessa temática, temos a contribuição do Professor João Batista Pereira
de Queiroz. Como falar de educação sem refletir sobre os conceitos éticos relacionados à produção do
conhecimento¿ Para tratar deste assunto, o Professor Jorge Hamilton Sampaio nos ajuda a refletir
sobre a universidade e seu papel na formação ética de seus universitários. Boa leitura!
Ao tratar do tema da juventude e das juventudes é oportuno, inicialmente, considerar que não existe
um conceito uniforme para definir esse processo existencial e relacional. Por isso, mais do que
compreender a juventude como um período da vida biológica, um fenômeno cultural ou um
agrupamento social, é necessário ter consciência de que as juventudes são manifestações
extremamente diversificadas, extrapolando qualquer tentativa de enquadramento conceitual. Portanto,
em vez de referendar um conceito é mais interessante compreender a juventude como um movimento,
como uma energia ou como uma potencialidade social.
Por isso, mais do que criar uma nomenclatura que defina a juventude é mais adequado indicar as
principais energias que caracterizam as juventudes do mundo contemporâneo. Tais energias podem
estar mais concentradas em algum lugar e estar ausentes noutros, podem ser mais fortes em alguns
momentos e enfraquecidos noutros, podem influenciar alguns procedimentos sociais e deteriorar
outros. A dimensão energética das juventudes depende do seu espaço cultural e das suas
possibilidades de manifestação pessoal e social.
Sob a inspiração dessa característica energética das juventudes, várias manifestações poderiam ser
elencadas, mas para atender ao objetivo dessa reflexão, os aspectos seguintes poderiam colaborar com
a compreensão do tema.
Uma primeira energia a ser lembrada é a confiança que os jovens têm na vida. Existe, portanto, um
vigor inerente a essa condição humana que é manifestada, no contexto atual, pelo cuidado com o
corpo, seja pela sua performance ou pela sua estética. As juventudes contemporâneas manifestam a
sua vitalidade, principalmente, pelo cuidado com o corpo.
Outra energia que caracteriza as juventudes é a capacidade de criar conexões, cultivar conectividades,
estar sintonizado com os movimentos históricos, culturais e sociais. Tal manifestação que tem um
respaldo significativo nas juventudes se caracteriza, inclusive, como expressão da sua identidade. As
energias juvenis estão direcionadas para esta capacidade de inter-relação com uma diversidade de
sujeitos sociais ou culturais.
Outra energia, ainda, é a capacidade de sonhar, de projetar utopias ou de participar, segundo Freire, de
projetos que antecipem o “inédito viável”. As juventudes caracterizam-se por projetos que estão
inacabados e que buscam, portanto, alguma forma de complementaridade. É característico do
fenômeno juvenil apontar, constantemente, para novos horizontes de realização pessoal ou de
capacitação profissional.
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As energias que, por um lado, dão uma vitalidade às juventudes, por outro, marcam os grandes
desafios éticos da realidade atual, afetando as próprias juventudes e incidindo, também, no conjunto
da sociedade.
Dentre os principais desafios que, por um lado, são expressos pela juventude e, por outro, aqueles que
os influenciam diretamente, poderíamos relembrar a situação de intolerância crescente na realidade
atual, o desemprego estrutural e conjuntural, o acesso e permanência na escola, o desamparo das
políticas públicas e o desencanto pela vida. Tais desafios, em vez de revelar a vitalidade da juventude,
colaboram para desencadear um processo que interrompe ou deteriora a vida das juventudes.
Portanto, a energia pela vida que dá certa identidade às juventudes, está perdendo sua força diante
das ameaças à vida, seja pelo empobrecimento de multidões de jovens, pela interrupção violenta de
vidas ou pela atrofia das relações sociais por causa do individualismo.
A energia que potencializa, ainda, as juventudes para o desejo ou para a utopia perde sua
dinamicidade, também, na medida em que os sonhos são marcados pela sonolência entorpecida das
drogas, pelas viagens suicidas dos vícios ou pelas afinidades afetivas frustradas. Dessa forma, as
energias que deveriam impulsionar a realização humana são interrompidas pela satisfação imediata ou
pela busca desenfreada de experiências ocasionais.
Após ter considerados alguns traços da fisionomia das juventudes e relacionados alguns desafios dos
jovens no mundo contemporâneo, torna-se necessário indicar algumas potencialidades éticas. Partindo
do princípio de que não são as estruturas, mas as causas que podem mobilizar as juventudes, é
oportuno indicar a ética como uma causa a ser vivenciada na realidade atual. Nesse sentido, a ética é
uma causa que está presente no cotidiano das juventudes, manifestada pela sua sensibilidade humana
e ambiental ou pelo desejo de colaborar com um processo de transformação social.
Para desencadear um compromisso ético, a partir do perfil das juventudes e dos desafios dos jovens
elencados, poderiam ser apontadas inúmeras potencialidades inerentes à juventude, dentre as quais
destacamos:
Diante das diversas formas para cultivar a vida, um compromisso ético poderia ser
desenvolvido, por meio do respeito aos semelhantes e da acolhida aos diferentes. Como viver e
conviver com pessoas que pensam e agem de maneira diferente do meu modo de pensar e
agir?
Perante a diversidade de conectividades vivenciadas pela juventude, um compromisso ético
poderia ser o cultivo de alguns contatos que ajudam a exercitar a amizade, a qualificar a
profissão ou a partilhar o aspecto espiritual. Como cultivar e alimentar amizades que colaborem
com o seu crescimento pessoal, profissional ou espiritual?
Para desencadear, ainda, um processo de mudança cultural em relação às utopias, seria
sugestiva a participação em projetos sociais, ações comunitárias ou em programas políticos.
Você gostaria de participar de algum projeto que pudesse promover a transformação social?
As indicações acima sugeridas são apenas algumas possibilidades para que os jovens possam pautar
sua conduta por princípios éticos, desenvolver projetos que favoreçam relações éticas ou colaborar
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Nossos jovens passam boa parte de seu tempo em nossas escolas e universidades. Vamos agora
refletir como a educação e as universidades se relacionam com a ética e a formação destes jovens.
Cristovam Buarque
Diante de uma realidade histórica de injustiça, exploração, opressão e violência, como a atual, temos
clareza e consciência de que essa não é a “vocação dos homens”, mas é uma distorção historicamente
construída.
Essa realidade é construída e mantida através de muitos instrumentos, um dos quais é a educação.
Utiliza-se e pratica-se uma educação que reforça e alimenta a distorção histórica. Assim se coloca o
desafio de educar para um Projeto ético.
Apesar de ser comum e muito atual as discussões sobre a educação, vale a pena lembrar a positiva
concepção que está presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Artigo 1o, quando
entende que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na
convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
A partir desta visão, pode-se dizer que a Educação é um processo formativo permanente e, portanto,
acontece “em toda a vida e durante a vida toda”. Ou seja, o ser humano está em processo permanente
de formação.
Neste sentido, a educação e/ou a formação escolar “nas instituições de ensino e pesquisa”, é uma
dimensão importante, mas não única no processo formativo do ser humano. Portanto, se a educação
acontece em todos os espaços e dimensões da vida, tanto pessoal, quanto coletiva, a grande questão é
Educar para quê? Uma resposta simples, mas desafiadora, é: “educar para um Projeto Ético”.
Para falar de ética, pode-se retomar, rapidamente, três contribuições, resumidas. Em primeiro lugar, as
contribuições de Boff (2003, p. 28), quando afirma que “Ethos com e pequeno significa a morada, o
abrigo permanente, seja dos animais (estábulo), seja dos seres humanos (casa)” E “Ethos se traduz,
então por ética”, ou seja, “é uma realidade da ordem dos fins: viver bem, morar bem. Ética tem a ver
com fins fundamentais (como poder morar bem), com valores imprescindíveis (como defender a vida,
especialmente a do indefeso), com princípios fundadores de ações (dar de comer a quem tem fome),
etc”.
Para Pegoraro (2006), a ética é “referência incondicional à pessoa na sociedade e no universo”, ou seja,
três dimensões integradas. “Quando se trata da ética, fala-se em vida humana, pois aqui ética não é
entendida como moralismo ou simples moralidade, mas como dimensão que parte da profundidade da
pessoa humana, que a partir da reflexão, torna-se um elemento orientativo para que a pessoa seja
mais humana na relação consigo, com os outros e com o mundo”.
Assim pode-se dizer que o grande desafio da Educação é contribuir para a construção de um Projeto
Ético. Rousseau, no final do século XVIII, afirmava que “a educação é tão complexa quanto a vida” e
que “ela é determinada por três mestres através de lições às vezes contraditórias: a natureza humana,
a sociedade, as coisas” (apud PINEAU, 2000, p. 130). A partir daí, Pineau se propõe a pensar a
educação a partir de “três movimentos” e apresenta a teoria tripolar da formação, ou seja, pensar a
formação a partir de três pólos distintos, mas interligados, a saber: a autoformação, a heteroformação
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e a ecoformação.
Para Pineau (2000), o termo autoformação expressa a “autonomização dos atores” que assume a
responsabilidade pela sua formação, provocando um “movimento de personalização, de
individualização, de subjetivação da formação”. Mas a pessoa não está só neste processo de formação,
“ele está com os outros, em sociedades múltiplas, mais ou menos grandes e instituídas”. Por isso o
termo “heteroformação... designa este pólo social em contraponto com o pólo individual” (PINEAU,
2000, p. 131). É a dimensão da alteridade na formação que também pode ser expressa pelo termo co-
formação. Com isso, temos as duas dimensões – pessoal e social – na formação.
Para Pineau (2000, p. 131), “esses dois pólos se ligam à noite (pólo pessoal) e ao dia (pólo social), pois
a noite é um espaço/tempo mais livre socialmente que o dia, quadriculado pelo emprego do tempo
freqüentemente pressionado. Também me parece que a noite, pelas situações de solidão e de
intimidade que ela oferece, é o espaço/tempo privilegiado da autoformação. E que o dia pelas relações
sociais pressionadas que ele impõe é aquele da heteroformação”.
Esses dois tempos e dois movimentos conduzem ao terceiro pólo que é a ecoformação. Este terceiro
pólo da formação é o mais discreto, o mais silencioso. Ele é esquecido, até afastado, pela interlocução
“tagarela” dos dois outros. Ele é o fundo do cenário que permite as colocações em cena, pessoal e
social... Este termo “ecoformação” quer colocar o acento sobre a reciprocidade da formação do meio
ambiente. Isso não é somente saber como o meio ambiente nos forma, nos coloca em forma, como
também sabermos como formar um meio ambiente viável e vital. (PINEAU, 2000, p. 132)
Assim, educar para um projeto ético, é integrar estes três pólos distintos, de maneira que haja uma
interface, entre todos os aspectos da vida da pessoa em formação.
“Creio na Educação, por que humaniza, busca o novo, é geradora de conflito, preparando para a vida”.
Creio na Educação, porque acredito no homem e na mulher como sujeitos de suas histórias, capazes de
construir sempre novas relações.
Creio na educação que, quando libertadora, é caminho de transformação, para a construção de uma
nova sociedade.
Creio na Educação que promove e socializa, que educa criticamente e democraticamente, levando o ser
humano a conhecer a si mesmo e ao outro.
Creio na Educação Básica do Campo, porque recupera e propõe a luta, a cultura, o trabalho, a vida e a
dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo.
Creio na Educação como um processo permanente e dialético que acompanha o ser humano em toda a
sua existência”.
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A Universidade é um território privilegiado onde se trabalha com o conhecimento. Compõem este seu
território: o espaço físico local, regional e global; a sua inserção no tempo presente, com memória do
passado e perspectivas de futuro; seu marco de identidade e de singularidade institucional; e o campo
de forças e de formas em sua interligação com a sociedade.
Tendo como marco de seu território na sociedade o trato com o conhecimento, a Universidade tem sido
chamada a cumprir seu lugar e papel por meio do campo do cuidado com a episteme, com a formação
de habilidades técnicas de profissionais, com a formação ética e política. O lugar privilegiado para dar
conta de sua tarefa está no campo pedagógico. São campos que se implicam mutuamente e
estabelecem alianças com a comunidade interna, com a comunidade científica e com outras
organizações sociais.
Cabe à Universidade - e isto a diferencia de outras organizações sociais – dar conta da episteme, por
meio do “acolher” o conhecimento que já foi produzido pela humanidade, do “sistematizar” este
conhecimento, do “produzir” novos conhecimentos e do “socializar” o conhecimento.
No modelo de Universidade adotado no Brasil, cabe também a ela a formação profissional de seus
estudantes, dando-lhes habilidades teóricas e técnicas para o exercício de uma determinada função na
sociedade.
Também à Universidade foi colocado o desafio de fazer a formação ética e cidadã de seus estudantes,
dando-lhes ferramentas para que possam fazer escolhas a partir de um ethos que tenha historicidade e
relevância social e consiga transformar conhecimento em sabedoria.
Estas tarefas da Universidade são operacionalizadas, por meio da tríade do Ensino, da Pesquisa e da
Extensão, três princípios pedagógicos considerados como indissociáveis, por um lado, e três funções
operativas que o positivam, por outro, contribuindo ambos para a construção da dignidade humana.
Isto porque todo princípio precisa se efetivar em uma função operativa, pois do contrário fica
improdutivo; assim como também toda função operativa precisa de um princípio que a sustente, pois
do contrário a atividade em si perde seu sentido.
Como “Princípio”, cabe ao Ensino dar ênfase à socialização do conhecimento acumulado pela
humanidade; à Pesquisa cabe a ênfase de produzir novos saberes; à Extensão cabe a ênfase de dar
relevância e ética daquilo produzido e socializado.
Como função operativa, cabe ao Ensino estabelecer dispositivos em que o conhecimento possa ser
socializado; à Pesquisa cabem os mecanismos para que este conhecimento seja produzido; à Extensão
relaciona-se a função de criar meios para socializar tal conhecimento com a comunidade interna na
forma de ações comunitárias, e com as comunidades externas em forma de projetos sociais que visem
seu desenvolvimento e autonomia.
Encaradas por essa ótica, a indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão, lugar onde o
conhecimento é sistematizado, socializado e produzido, precisa ser necessariamente considerada de
maneira institucional. O Projeto Pedagógico Institucional e o Projeto Pedagógico de cada curso são o
lócus no qual se articulam os princípios e as funções do Ensino, da Pesquisa e da Extensão. Neles,
concomitante à definição do que fazer, por que fazer, como fazer e como avaliar todo o processo, é
necessário articular o conhecimento tanto em termos de princípio como de função. Desse modo, todas
as atividades (funções) propostas (sala de aula, laboratórios, trabalhos de conclusão de
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A título de exemplo, a sala de aula, o projeto de pesquisa e o projeto de extensão parecem ser
territórios (com o mesmo conceito acima adotado) importantes para a operação do conceito de
indissociabilidade como princípio e como função.
Na sala de aula, o Ensino é a “função” prioritária a ser dada, ou seja, a transmissão do conhecimento
acumulado pela humanidade. Mas só isto não é suficiente; é preciso que o estudante seja incentivado a
conhecer o método de investigação que o permita “aprender a aprender” por meio do “princípio da
pesquisa”, e que possa se perguntar pela relevância ética e política deste conhecimento por meio do
“princípio da Extensão”.
No Projeto de Pesquisa, tem-se a Pesquisa com “função” prioritária, ou seja, a investigação visando a
produção de novos saberes. Nele, há de se considerar a necessidade de transmitir o conhecimento
produzido por meio do “princípio do Ensino”, e de se perguntar pela relevância política e ética do
conhecimento produzido e de seu método de produção por meio do “princípio da Extensão”.
A Ética é fundamental em todo este processo, pois o conhecimento em si pode ser usado para construir
o Bem ou para destruir a vida. Para que serve o conhecimento? Foi a pergunta feita por um
sobrevivente de um campo de concentração nazista em um bilhete deixado em um banco de uma
universidade:
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Cada um de nós é chamado a fazer esta pergunta ética quando estiver lidando com o conhecimento,
seja no momento do exercício de nossa profissão, seja no momento em que estivermos fazendo uma
investigação científica, seja no momento em que estivermos aprendendo algo nas cadeiras e
laboratórios da universidade. Para transformar conhecimento em sabedoria, é preciso, sempre, fazer a
pergunta sobre a relevância ética deste conhecimento, sobre o Bem que ele pode produzir.
Queremos propor aqui uma reflexão sobre a ética em uma perspectiva filosófica, lembrando Emanuel
Lévinas que afirma: “A ética não é um ramo da filosofia, mas a filosofia primeira” (1982, p.284).
Isto porque o cerne da questão ética é a vida humana e, por isso mesmo, não deve ficar no campo do
moralismo, da legalidade (como no caso da devastação da etnia indígena e da escravidão da etnia
negra). A ética exige que se olhe com profundidade para a pessoa humana, para a qualidade da relação
que um homem, uma mulher desenvolve consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Isso nos
conduz ao conceito da ética da alteridade, segundo o qual, o outro deve ser visto enquanto outro e não
através de nós mesmos. Só assim se pode construir a vida humana com a verdadeira liberdade.
A idéia de etnia à qual estamos acostumados, tanto por meio da mídia, como por outras formas de
comunicação, como os veículos formais da escrita, está tão estreitamente relacionada à idéia de raça,
que, por vezes, as duas se confundem. Esta é, sem dúvida, uma herança deixada pelo respaldo
histórico do etnocentrismo no mundo, particularmente, no mundo ocidental. Na América Latina, em
especial no Brasil, as interpretações históricas têm sido construídas através dos anos, no sentido
biológico. No entanto, esta é uma categoria etno-semântica. No campo semântico, desperta para um
moralismo que é determinado por uma estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a
governam, gerando “raças sociais” que se reproduzem e alimentam os racismos populares. Isso explica
a razão pela qual nenhum geneticista contemporâneo ou biólogo molecular concorda com o conceito de
raça como é defendido no imaginário e nas representações coletivas de variadas populações.
Atualmente, existem raças fictícias e outras construídas por diferenças fenotípicas como a cor da pele e
outros critérios morfológicos.
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Portanto, o conceito tem significados diversos em variados países e, no Brasil, um país de dimensões
continentais, essas diversidades são constatadas de acordo com as regiões e os estados. Nesse caso,
as palavras negro, branco e mestiço, por exemplo, podem tomar significados bastante diferentes. Fora
do Brasil, é interessante notar que, quando se fala de negros, brancos e mestiços, seja na Inglaterra,
na Nigéria e nos Estados Unidos, verificam-se as mesmas ambigüidades, as mesmas dificuldades de
conceituação. Aqui serão tratadas questões relacionadas ao conceito de raça e aos conceitos,
envolvendo critérios etno-semânticos, político-ideológicos e biológicos:
“Raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um
conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada em uma atitude negativa
frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo
endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos
repugne a empulhação que o conceito de “raça” permite, ou seja, fazer passar por realidade natural
preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos, tal conceito tem uma realidade social
plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que lhe
reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite. (GUIMARÃES, 2003, p.09).
O racismo é, portanto, uma forma bastante específica de “naturalizar” a vida social, isto é, de explicar
diferenças pessoais, sociais e culturais a partir de diferenças tomadas como naturais. A atitude na qual
se baseia o racismo, assim como todas as outras de naturalização do mundo social, está presente –
para ficar com exemplos corriqueiros, banais e, para muitos, inofensivos quando considera que alguém,
portador de uma certa maneira “predileta” por sua identidade social (sentir mais frio ou menos calor
que um gaúcho, por exemplo), independente da história de vida e da compleição física e orgânica dos
dois indivíduos; ou ainda quando se acha que um certo estado Federal é menos desenvolvido que outro
porque o primeiro é povoado de mestiços; ou quando consideram os naturais de um estado mais
musicais que os de outro estado, em razão do sangue negro que corre em maior quantidade nas suas
veias. Em todos estes exemplos, encontra-se presente, de modo implícito, a idéia de uma natureza
geral que determina aspectos individuais ou socioculturais. (idem)
Tomando por base as definições acima, é importante agora demonstrar que, tanto o conceito de raça
quanto o de racismo não nasceram do nada. Suas origens e justificativas têm bases míticas e históricas
já conhecidas por alguns. Sem muita delonga, mencionaremos o mito de Noé que, ao que parece, foi
usado de uma forma mítica sem exegese e sem hermenêutica bíblica. O capítulo nono de Gêneses é
visto sob perspectiva moralista segundo a qual, as três raças, branca, amarela e negra são oriundas
dos três filhos de Noé, a saber: Jafé, que era branco, Sem, que era amarelo e Cam, negro. Este fato foi
decisivo para o determinismo biológico na história humana. Insistimos que foi pelas características
biológicas que se deu a relação intrínseca das grandes divisões raciais, psicológicas e culturais. Foi daí,
também, que nasceram a hierarquização e as comparações, incluindo superlativos como superior-
inferior, belo-feio, capazes e incapazes, só para mencionar alguns.
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Esta versão só começa a se modificar nos anos 70. Com o progresso das ciências biológicas, houve
uma mudança no foco central do racismo e foram lançados novos olhares com outras formas de
discriminações contra mulheres, contra jovens, contra homossexuais, contra pobres, contra burgueses,
etc. Entretanto, continuam as analogias da biologização com a mesma conotação de categoria social.
Enquanto, na atualidade, temos geneticistas e biólogos anti-racistas, sugerindo que se retire até do
dicionário o conceito de raça, ainda é impossível fazer desaparecer as categorias mentais que as
mantêm no imaginário coletivo. Daí, tem-se o racismo clássico que se alimenta da noção de raça e o
racismo novo que se alimenta da noção de etnia, definida como um grupo cultural.
Segundo Thomas Eriksen (1993, p. 12), “etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou
mitologicamente, tem um ancestral comum; tem uma língua em comum, uma mesma religião ou
cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território. O conceito de etnia
passa por vários questionamentos. Pode ser definido com base em critérios sócio-culturais, históricos e
psicológicos. Só para lembrar, o conceito de etnia pode englobar várias raças.
A propósito disto, pode-se perceber que existem etnias que constituem nações, como é o caso das
sociedades indígenas brasileiras, africanas, asiáticas e outras que foram ou são nações. Existe um fato
histórico interessante relatando que os alemães, na conferência de Berlim (1884-1850), fizeram uma
classificação bastante arbitrária dos povos do continente africano, dividindo-os em territórios coloniais,
ignorando critérios da maior relevância como as línguas faladas por esses povos e ainda outros critérios
de igual importância. Obviamente que esta divisão era bem diferente do mapa africano pré-colonial.
Nesta disciplina, procuramos nos comprometer com uma busca de significações do conceito de etnia,
tentando diferenciá-lo de raça para distanciá-lo das várias ideologias codificadas no decorrer do tempo.
Não resta dúvida de que o conceito de etnicidade seria mais amplo que o conceito de raça. Caso
contrário, vejamos novamente Thomas Eriksen citado acima:
Etnicidade é um aspecto das relações sociais entre agentes que se consideram culturalmente distintos
dos membros de outros grupos com os quais eles mantêm um mínimo de interação cultural regular.
“Etnicidade pode, pois, ser também como uma identidade social caracterizada por parentesco
metafórico ou fictício (ERIKSEN, 1993, p. 12)
Mesmo ampliando este conceito, temos dificuldade de unificá-lo no mundo acadêmico. A obra de P.
Poutignat e J. Streiff-Fenar (1998) discorre sobre as versões e críticas de intelectuais e pesquisadores
de várias áreas, mas que, ao mesmo tempo, não oferecem argumentos mais relevantes e inovadores
do que a definição acima.
Outro escritor pós-moderno, Stuart Hall, apresenta críticas contundentes ao antigo conceito de etnia,
chegando a afirmar que tal conceito é um mito e “...essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um
mito. A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma
única cultura ou etnia. As nações modernas são todas, híbridos culturais. (HALL, 2001, p. 62).
Vê-se, portanto, nas várias controvérsias de diferentes autores, que os conceitos “raça “e “etnia” são
usados como sinônimos e continuam deixando muito a desejar. A verdade é que, apesar das aparentes
discordâncias, o que se verifica é a continuação dos preconceitos. É como se o racismo estivesse sendo
reformulado como diferença cultural ou identidade cultural. Porém, as vítimas da classificação
preconceituosa de raça de ontem são as mesmas vítimas da classificação inadequada de etnia da
atualidade
Infelizmente, ainda prevalecem as etnias dominadoras e as etnias dominadas, gerando mortes e, o que
é pior, defendida por alguns intelectuais e por governos, tanto revolucionários como conservadores.
Tudo isso aponta para o fato de que, o conceito de etnia está sendo trabalhado por ser um conceito
ainda inacabado. E para contribuir para uma melhor visão do que é a etnia, cremos que a busca de
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uma ética que descarta a falsa moralidade existente poderá lançar uma nova visão de mundo, fazendo
ressurgir o valor da vida e o prazer. Talvez a ética da alteridade poderá abrir novos caminhos sobre
essa questão e é sobre isso que passamos a falar a seguir.
Nosso interesse é pensar a alteridade como referência ética, com a expectativa de proporcionar ao
leitor uma outra forma de olhar o “diferente”, neste caso, as etnias. Mesmo que este seja um conceito
em construção, nossa proposta é a de considerar as etnias sob a perspectiva de uma ética pautada
pela alteridade. Sendo assim, podemos ter uma nova visão das diferenças. Nessa perspectiva, vemos
“o outro enquanto outro” e não um outro como eu mesmo – o que seria uma visão etnocêntrica,
segundo a qual a minha etnia é a melhor do mundo.
A idéia aqui é que “o mesmo” que é o “eu” abre um novo olhar para “ o outro” que é a mais simples
relação “Eu e tu”. (BUBER, 2001). Já Emanuel Lévinas (1982) defende a construção de uma ética a
partir da categoria “exterioridade”, enquanto Enrique Dussel (1982) nos provoca a pensar além de
Levinas quando considera “o face a face” a partir do outro que interpela e provoca a justiça.
Na perspectiva da Alteridade, o aporte de Lévinas nos oferece uma ética fundamentada numa relação
face a face (exterioridade). Em consonância com essa visão do outro, é possível pensar num
relacionamento entre etnias em que são reconhecidas as qualidades e imperfeições de cada uma delas,
ao mesmo tempo que isso serve para seu enriquecimento mútuo, possibilitando, também, uma
interação e uma integração humanizadora.
Enrique Dussel (op. cit.) nos mostra que esta proposta de Lévinas é direcionada ao povo judeu-
europeu. No contexto latino-americano, isto acontece de forma diferente. Transpondo para as etnias,
seria necessário, em um primeiro momento, tirar o véu da democracia racial e de igualdade de direito
(desigualdade social, econômica, política e religiosa). Em um segundo momento, deve-se respeitar o
outro como outro com distinção e liberdade.
Neste caso, o ser humano interferiria em dois movimentos, a partir dos quais se daria um
relacionamento intersubjetivo. O primeiro seria uma crítica ao poder dominante que vê as etnias como
estabelecidas e normatizadas. As etnias dominadoras aniquilam as outras, apresentando como verdade
a negação do diferente. Quando esta realidade se apresenta, percebe-se a resistência à mudança. As
etnias dominadoras não querem aceitar um novo fundamento para o status quo. Quando acontece este
novo jeito de ver as etnias dominadas, as etnias dominadoras temem perder o seu poder de
dominação. Elas resistem às mudanças por que preferem a repetição da dominação e negam a
possibilidade de libertação das etnias dominadas. Aí se revela o mal que as etnias dominadoras causam
às demais etnias.
Com este processo, ocorre o segundo movimento. A etnia dominada está sendo ouvida e, neste caso, a
perspectiva de exterioridade dessas etnias passa a exigir justiça, surgindo aí um elemento novo que é
a distinção (a conscientização) e uma exigência de respeito mútuo. Assim, estabelece-se um diálogo
entre as duas exterioridades: as etnias dominadas e as etnias dominadoras. Este confronto ou encontro
de exterioridades é um momento de subjetividade das subjetividades que exige respeito mútuo.
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Neste processo, há um espaço de escuta e provocação do outro, sabendo que o outro, neste caso, na
figura das etnias dominadas, não são mais o mesmo e sim, um outro distinto. O respeito humaniza e,
neste caso, humaniza o outro e o coloca em uma atitude metafísica. Agora, não é apenas o outro visto,
nem só sentido, mas o momento exige justiça como princípio. Esta contribuição de Enrique Dussel
esclarece porque não podemos ver as etnias simplesmente na perspectiva de cumprir uma constituição
e, a partir daí, gerar igualdade. Porém, devemos vê-las na perspectiva de um sistema que estabelece
diálogo, respeito ao outro, enquanto ser livre, autônomo e digno de libertação. A ética da alteridade
nos leva a repensar um jeito novo de ver as etnias.
Inicialmente nos propusemos a repensar a ética e a etnia dentro de uma sociedade capitalista,
utilitarista e competitiva, na qual o “ter” prevalece sobre o “ser”; na qual são valorizadas e priorizadas
as condições econômicas, a escolaridade, a beleza européia, enquanto se nega o sistema social,
permitindo a construção de uma moral de dominação em que uma etnia tem domínio sobre a outra e
não se permite o complemento ou enriquecimento do outro. O ser humano é visto como lobo do
homem. Temos a convicção de que as categorias da alteridade dariam subsídios para uma sociedade
mundial fundamentada na eticidade, na justiça e no amor ágape – não em obras de caridade e em
virtudes de São Tomaz, mas no mais profundo do ser humano, a relação com o outro em que é possível
ver as etnias sob um enfoque humanizador.
Em nosso próximo tópico, falaremos sobre Ética e gênero de forma a suscitar algumas reflexões sobre
as razões que nos levam a discutir tal tema como ponto importante para uma sociedade que pretende
ser democrática.
O termo Gênero parece ter se popularizado nos últimos dez anos, principalmente por ter sido explorado
conceitualmente em algumas áreas ao se falar de questões como educação, geração de emprego e
renda, violência, sempre dando uma ênfase maior para as desigualdades que ainda pairam entre
mulheres em relação a homens. Por outro lado, não é comum no dia a dia ouvir pessoas comentando
sobre relações de gênero. Comenta-se sobre a existência do machismo na nossa sociedade, sobre as
qualidades das mulheres como a delicadeza, o carinho, a compreensão, a maternidade, ou sobre o
avanço das mulheres em relação à conquista de cargos elevados no mercado de trabalho.
Existem visões diferenciadas para explicar o que é gênero, mas uma definição que surgiu dos
movimentos de defesa da mulher e também de outras organizações não governamentais, diz que
gênero é o sexo socialmente construído (SIMIÃO; MARCHI, 1995). Conforme essa conceituação, existe,
naturalmente diferente, o sexo masculino e o sexo feminino. Chama-se gênero à forma como cada
sociedade constrói e atribui valores, significados e sentidos a cada modelo, feminino e masculino. Esses
elementos atribuídos por uma sociedade fazem parte de uma determinada cultura e, por isso, definirá o
que cabe ao sexo masculino e o que cabe ao sexo feminino. Essa forma de classificar um sexo diferente
do outro vem carregada também de relações de poder, de manutenção de papéis nos espaços sociais,
trazendo à tona atitudes de preconceitos e marginalização, porque, na maioria das vezes, a mulher é
vista não por ser mulher sexualmente, mas porque o ser mulher é acompanhado de marcas sociais do
fato de ser idosa, negra, pobre, analfabeta, etc.
Num grupo de pessoas, se pedirmos para que cada um atribua imagens, valores, comportamento e
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papéis para o feminino e o masculino, teremos como resultado estereótipos específicos que mostram o
que são relações de gênero. Essas relações poderão demonstrar algo que é bastante comum em nossa
sociedade brasileira: que a mulher deve limitar-se mais a um papel reduzido em torno das
necessidades familiares, como exercer as exigências da maternidade, cuidar da casa, da organização
do lar, e do marido.
Estudar e trabalhar fora entram como componentes de complementação econômica das necessidades
familiares, inclusive, havendo duplicação de jornada de trabalho (dentro e fora de casa). A mulher
trabalha oito ou mais horas fora de casa e, ao chegar em casa ainda precisa cuidar da organização do
lar, da alimentação, das roupas, acompanhar os filhos.
Portanto, as relações de gênero implicam uma discussão ética. Atualmente já existem estudos e
tentativas de descobrir e inculcar novos valores, novos comportamentos e ações que redefinam os
padrões de masculinidade e feminilidade, mas ainda nos deparamos com problemas graves como a
violência doméstica contra mulheres, exclusão e discriminação no trabalho e outros preconceitos.
Existem pesquisadores preocupados com os conflitos nas relações de gênero e procuram resoluções
para questões como a busca de meios de convivência democrática entre homens e mulheres,
principalmente, procurando desnaturalizar a idéia e a prática de subordinação da mulher aos interesses
masculinos.
Em uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 1999, questionou-se sobre o que é
melhor na juventude: ser homem ou ser mulher. As respostas mostraram que 54% consideraram que é
melhor ser um rapaz, contra 29% que declararam que ser mulher é melhor. Aqueles que acreditam que
tanto faz o sexo somaram 17%. As razões que justificam a percepção de que ser homem é melhor
concentraram-se na vantagem de o homem "ter mais liberdade, poder fazer mais coisas que a mulher"
(33% do total de entrevistados, 48% entre os meninos e 19% entre as meninas). Ao contrário da
liberdade, a valorização do ser mulher está na idéia de "ter mais responsabilidade (4%) e ser mais
madura (3%)". Entre os que acham que tanto faz ser homem ou mulher, baseiam-se na idéia que
"ambos se divertem igual, fazem as mesmas coisas" (8%). O total dos rapazes que concordaram com a
frase que expressa que é principalmente o homem quem deve sustentar a família, é de 65% (36%
discordam), contra 51% das meninas que concordaram e 48% que discordaram.
“Quando o casal tem filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”
é opinião de 88% dos homens entrevistados e de 66% das mulheres.
Ainda hoje é comum ouvirmos comentários que afirmam ser a mulher mais emotiva e sensível e por
isso mais frágil para resolver situações de âmbito mais complexo no trabalho, na escola, na família. Os
homens, pela visão de que têm maior racionalidade nas decisões, são treinados desde pequenos a não
se deixarem levar pelas emoções e a mostrarem sempre firmeza: o sentimento de incapacidade não
deve despontar. Esses são alguns equívocos de uma cultura fundada no poder da masculinidade como
base social, que são passados de geração a geração, inclusive com o aval de parte significativa de
mulheres que, ao exercerem seus papéis de mães, acabam reproduzindo essas práticas e geram uma
cumplicidade entre quem manda e quem se submete ao poder.
Compreender melhor as relações de gênero pode colaborar para a construção de uma sociedade mais
ética, porque a busca de melhoria ou de mudança das relações existentes implica transformações que
lidam com a complexidade social, como a maneira como nos organizamos, como nos inserimos na
política, como ditamos e vivemos as regras de convivência social.
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O que se convencionou como representação da masculinidade já entrou em crise algumas vezes devido
ao avanço e às transformações positivas das representações de feminilidade. O respeito às diferenças e
o reconhecimento das potencialidades nas relações de gênero são fundamentais para a condição
humana da vida, para podermos afirmar a existência da ética de viver bem.
O ethos, portanto, como modo de ser coletivo que procede da compreensão comum acerca das
normas, valores, regras, leis e ações que expressam e tornam efetivo o Bem, partilhada por um
determinado grupo social, num determinado tempo histórico. Todos nós, no momento de agirmos,
trazemos em nós este universal ético que nos formou e que nos fornece não somente a forma como
agimos, mas igualmente o conteúdo destas ações. Agimos, portanto, sempre ao abrigo deste universal
no qual figuram os elementos significativos de nossa cultura e nossa sociedade, elementos esses
(normas, leis, valores, etc.) que partilhamos com outros e aos quais aderimos, consciente ou
inconscientemente. Porém, este universal não nos é dado, mas a-fazer. Com efeito, toda ética – e toda
moral – repousa sobre uma universalidade presumida, como afirmara Maurice Merleau-Ponty em 1946:
“À condição de uma pura heteronomia, diante da qual um e outro se inclinariam, não existe
universalidade dada, há apenas um universal presumido” Há, portanto, duas maneiras de pensarmos o
ethos e, nessa medida, de pensarmos a ação que a ele se refere:
1) o ethos como “totalidade ética”, fechada em si mesma e destinada a ser transmitida, tal qual, às
gerações seguintes, ou seja, o ethos como tradição; e
2) o ethos como criação social-histórica, como um modo de ser coletivo que se altera no tempo e,
portanto, como um universal paradoxalmente determinado e provisório. Trata-se, assim, de algo que
dá sentido à vida em comum de indivíduos e grupos e que possui, todavia, uma duração imprecisa e
uma efetividade provisória.
Se entendemos o ethos neste segundo sentido, como modo de ser coletivo que se constitui fazendo ser
um conjunto de significações sociais por meio das quais é definido o que é bom/mau,
estimável/deplorável, permitido/interdito para a sociedade considerada, devemos então falar da
capacidade humana para que a instituição do ethos no tempo seja possível – e para que este seja um
processo lúcido. Esta capacidade, a que Aristóteles chamava phrônesis (φρόνησις), permite-nos pensar
aquilo que para os gregos – iniciadores da ética como reflexão e como prática – era indissociável: a
relação entre ethos e educação (paidéia) para a vida ética, a vida virtuosa. Ora, nossas ações se
entrecruzam com as ações de outros indivíduos, e é esse entrelaçamento o que constitui o mundo
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social.
Assim, as ações de indivíduos e grupos vão se alargando, alcançando aquilo que constitui o bem
comum, aquilo que concerne ao interesse coletivo. Da mesma forma, nossas ações jamais estão
dissociadas do modo como compreendemos e como instituímos a sociedade que é a nossa. Dessa
forma, se a ética é parte do domínio social-histórico, isto é, se a ética é definida e redefinida
permanentemente a partir e sob o fundo das significações próprias a uma dada sociedade, então o
sujeito ético será, ele próprio, parte da instituição global da sociedade, numa palavra: só há
emergência do sujeito ético numa sociedade que é capaz de “produzir” indivíduos para os quais existe
questão do social: questão do bem público e da realização da justiça. Breve, não há ética em uma
sociedade sem uma paidéia capaz de formar indivíduos pela e para a sociedade. É a partir daqui que
podemos entender a relação consubstancial – e assim o era para os gregos antigos – entre a ética e a
política. Antes de considerarmos este ponto, é preciso indagar nosso próprio entendimento acerca do
que significa a palavra política.
O que nos vem à mente quando pensamos na palavra “política”? Comumente, essa palavra, ao mesmo
tempo tão pronunciada e tão mal-compreendida, remete de imediato à atuação dos políticos
profissionais. Entendida assim, falar em “política” significa falar da dos políticos de profissão e suas
estratégias para conquistar e manter-se no poder, é falar de manobras de bastidor, eleição, articulação
e intrigas entre partidos, corrupção, etc. O fato de a maioria das pessoas pensarem a política nesse
sentido, isto é, como se referindo “exclusivamente” àquilo que realizam os políticos de profissão,
poderia ser esclarecido se considerássemos a distinção proposta por Carl Schmitt em 1928 entre a
política e o político.
Por mais discutíveis que sejam as idéias deste autor, se partirmos desta distinção poderíamos então
dizer que as ações realizadas por governo e partidos políticos, e tudo o mais que elas implicam, de bom
ou de ruim, refere-se à esfera do poder efetivo da sociedade, ou seja, o político. Mas esta dimensão
não resolve todas as questões relativas à vida coletiva. Na verdade, elas não dizem respeito
propriamente à política. Referem-se, antes, à perversão da política. Mas, visto ser esse o entendimento
comum e dominante sobre o que seja a política, importa, antes de considerarmos o que é a política e
qual a sua relação com a ética, começarmos pelo que não é política.
1) Política é uma ciência e ciência de alguns. Esta posição tem sua raiz no pensamento de Platão.
Logo no início do diálogo “O Político”, Platão formula esta petição de princípio: “O Homem político deve
ser situado no número daqueles que possuem um conhecimento” (258 b). Mas que tipo de
conhecimento possui ele? Evidentemente, para Platão, trata-se não de um conhecimento qualquer, mas
de um saber prático fundamental para a vida da polis: o saber do bom governo, o saber da condução
dos assuntos públicos. Assim, se existe uma orthè politeia (uma cidade justa), deve haver uma “boa”
maneira de fazer a política, pois o bem a que ela se refere, a saber, o bem de todos os cidadãos, não
pode ser realizado de qualquer maneira, nem decidido por qualquer um. A “boa” política é da alçada
daquele que ou daqueles poucos que “sabem” o que é o melhor para todos e que são capazes de
realizá-lo.
Desse modo, por meio da afirmação destes dois postulados – 1) a política é uma ciência, e 2) esta
ciência não é acessível a qualquer um, mas talvez somente a um único indivíduo – Platão declara
inviável, de fato e de direito, o princípio democrático. Mas os que fizeram a democracia antes dele
distinguiam bem duas coisas: se a política refere-se ao bem comum e se todo cidadão é educado para
deliberar sobre o bem comum, então, todo cidadão é capaz de governar e ser governado (como dirá
Aristóteles depois). Ora, se todo cidadão é capaz de governar e ser governado, como fazer para ocupar
os cargos públicos? Sorteio. Assim faziam os gregos. Mas, para as tarefas que necessitam técnica,
conhecimento específico (a fabricação de navios, a construção do Parthenon, a organização de tropas
para a guerra), aí são necessários especialistas. Nesse caso, então, vota-se no melhor (aristoi, em
grego). Vejam isto: o voto é um princípio aristocrático e não democrático. A democracia é a
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possibilidade de todos participarem da discussão sobre os assuntos que dizem respeito à vida em
comum (a gente diria: saneamento básico, asfalto, saúde, educação, etc.). Assim, para os gregos, o
terreno da política é a doxa (opinião), pois todo mundo pode participar dela. Já o conhecimento
(epistème) é para as tarefas que exigem competência.
Richard Bodéüs, uma das maiores referências no estudo de Aristóteles na atualidade, em sua
apresentação da obra Ética a Nicômacos, condensa, numa bela formulação, o sentido da política
segundo o filósofo, a qual se faz presente de modo análogo nas reflexões políticas de Castoriadis e com
a qual também me identifico. Afirma ele que: “Aristóteles prezava fortemente a idéia de que o bem
último visado pelo ser humano para si mesmo, porque ele dá sentido à sua própria vida, é
necessariamente o que ele deseja também para os seus semelhantes, a política sendo a capacidade de
dar à vida de outrem o mesmo sentido que à sua própria existência”. Portanto, em Aristóteles, o
“indivíduo” somente pode bem agir, isto é, só é capaz de phrônesis (φρόνησις), de uma sabedoria
prática, se for capaz de, considerando tudo aquilo que é significativo para o mundo humano que o fez e
no qual ele age, numa palavra seu ethos, decidir-se por uma ação que realiza o “belo e o bom”, não de
uma vez por todas e valendo igualmente para todo outro ser humano, mas que realiza o “belo e o bom”
face à situação concreta que o cerca e que exige dele uma tomada de posição.
2) O objeto da política é a felicidade: falso. O objeto da política não é a felicidade, mas a liberdade:
liberdade de participação e de decisão sobre o bem público. A partir daí, cada um irá buscar a própria
felicidade. Mas o que é público diz respeito a todos e deve ser assunto de todos, não de alguns.
3) A política protege a sociedade de si mesma: também não. A política não muda a maneira como
as pessoas pensam, não corrige a perversão humana, não impede injustiças e excessos. A política – e
aqui falo concretamente da política em uma sociedade democrática – jamais construirá o “paraíso” na
terra. A política é a possibilidade de organizarmos a sociedade, de instituirmos o que é justo para
todos, mas isso é uma tarefa permanente. As pessoas esquecem-se de que a sociedade e a cultura são
sua própria obra, são sua criação, noutras palavras que toda sociedade, posto que ela é instituída no
tempo, se altera. Não há forma de sociedade que dure para sempre. Daí, a meu ver, a urgência da
política como modo por excelência de instituição da sociedade: pensar e agir coletivamente em vista da
alteração da sociedade.
Os gregos tinham consciência de que os homens são desiguais por natureza. Ora, se os homens são
desiguais, é preciso “igualá-los”. A consciência da desigualdade natural entre os homens põe o
problema de que o que é o melhor para todos não acontece naturalmente, mas tem que ser decidido
coletivamente. Portanto, o que é justo, não o é por natureza, nem é dado por Deus. A justiça, o bem
comum, deve ser instituído pela sociedade (e cada sociedade deve encontrar os meios para fazê-lo). De
todo modo, esta idéia é importante: fazer justiça é estabelecer a igualdade política entre os membros
da sociedade.
A política implica o governo, como vimos, mas não se reduz a ele. O governo, no caso de uma
República, concerne o poder executivo, encarregado justamente de executar as ações que
presumidamente realizam o bem público. Mas este é apenas um aspecto da coisa, e nem é mesmo o
essencial. O risco, na verdade, é o de reduzirmos a atividade política àquilo que compõe a “política” tal
qual ela é feita em nossos dias, ou de confundi-la com os seus “desvios” (luta pelo poder, fofocas de
bastidor, intrigas, corrupção, eleição, etc.).
Como mudar tudo isso? Não há soluções rápidas e fáceis. Daí a ilusão da revolução (mudança súbita e
radical da estrutura da sociedade). Mas há também a ilusão de que o simples gesto do voto (pró,
contra ou nulo) vai mudar tudo só porque mudamos as pessoas que estão lá. Precisamos, em várias
frentes (associações, organizações, escolas, universidades, etc.) criar mecanismos de intervenção no
debate público. Discutir nos espaços aos quais temos acesso, reivindicar pelos meios que nos são
possíveis. Mas seguramente, é pela educação que poderemos futuramente mudar o modo como
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entendemos e fazemos política: educação dos indivíduos para a sociedade, capazes de compreendê-la,
capazes igualmente de questionar as instituições que fazem sua sociedade (e que a fazem ser essa
sociedade), capazes finalmente de discutirem e decidirem sobre o que é o melhor para todos.
A política concerne à instituição da sociedade como um todo, isto é, ela concerne às necessidades que
devem ser satisfeitas, aos bens que devem ser distribuídos, às capacidades que a sociedade deve criar
para se manter enquanto tal. A partir de quais critérios, mediante o quê e como tudo isto deve ser
definido? Eis o que é a tarefa política, e que envolve (deve envolver) a sociedade no seu conjunto. Isso
não é utopia nem coisa de filósofo. Basta entendermos que sociedade alguma é eterna e que poder
algum dura para sempre. Os gregos mostraram isso.
O que é o bem e como realizá-lo são os fins a que se propõem tanto a ética quanto a política. Nesse
sentido, não há demarcação entre ética e política. Portanto, não há sentido em pensar sua articulação
nos moldes do propalado movimento “Por uma ética na política” – o que equivale, teórica e
praticamente, a uma “moralização” da política e dos políticos profissionais, ou moralização da política
através da moralização dos políticos. Se entendermos corretamente a política como atividade lúcida
visando à instituição da sociedade como um todo (Castoriadis), veremos, como já estabelecera
Aristóteles, que a ética é integrada à política, na medida em que esta implica o engajamento de uma
coletividade na definição do que é o “bem público”, do que é o melhor para todos, e das ações que
poderão instituí-lo.
Toda reflexão ética deve, ao buscar responder aos desafios práticos do seu tempo, manter-se lúcida
quanto ao fato de que “é preciso viver e agir de uma forma ou de outra sem poder cessar de nos
perguntarmos se fazemos o que é preciso – se o que nós fazemos é justo”. E a forma prática para
tornarmos o que é justo um bem acessível a todos é a política.
Todo o sistema parte de uma correta compreensão do ser humano, pessoal e coletivo, base para o
autêntico desenvolvimento. Essa compreensão não é particular. Ela pertence à sabedoria da
humanidade. Em cada pessoa, atuam três dimensões: o físico, o mental e o espiritual. As três têm que
ser desenvolvidas articuladamente, caso contrário, ou não há desenvolvimento ou o desenvolvimento
produz injustiças e muitas vítimas.
O físico se ocupa com todas as dimensões captadas fisicamente, como a corporeidade humana, o
mundo dos fenômenos mensuráveis, a natureza, os recursos naturais, a fertilidade da terra, os
elementos físico-químicos e as energias cósmicas que atuam sobre o nosso mundo. A essa dimensão, a
ética ensina como utilizar, de forma ótima, os recursos físicos, de tal forma que não sejam exauridos e
que bastem para todos os que hoje vivem e os que virão depois de nós. Mas não só os humanos, mas
também os demais seres da criação, pedras, plantas e animais.
O espiritual é aquela disposição do ser humano de ligar o macro com o microcosmo, de captar a
totalidade, de descobrir o outro lado de todas as coisas, a mensagem que vem da grandeza do
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Ademais, é fundamental descentralizar para evitar os monopólios e oligopólios, pois eles introduzem e
sedimentam desigualdades. A descentralização se realiza com a formação de unidades socioeconômicas
no mundo inteiro, que se constroem a partir da consideração dos problemas econômicos comuns, das
potencialidades econômicas uniformes, da similaridade étnica, dos aspectos geográficos comuns, e do
fator cultural de língua, tradições e religiões. Á base destes procedimentos se monta o planejamento
participativo, o comércio e as trocas.
O que resulta desta lógica pragmática é uma economia balanceada que respeita o equilíbrio de todas as
coisas. Ela se estrutura sobre quatro eixos:
“No Brasil, 48% de toda a riqueza nacional está nas mãos de apenas 10% da
população. Esta é seguramente uma das maiores concentrações de renda em todo o
mundo... Ainda há 32 milhões que vivem na indigência neste país, desprovidas de
qualquer direito, inclusive o mais básico de todos, que é o de comer.
A democracia não vive sem solidariedade, sem amor à igualdade sem a participação de
todas as pessoas nas mudanças que vêm através da ação.”
Num país, como o Brasil, corroído por disparidades sociais, a proposta de uma ética na perspectiva
econômica e uma economia na perspectiva ética é mais do que uma alternativa, porque não considera
apenas o homem como ser econômico, mas primordialmente como psíquico e espiritual. O equilíbrio
econômico é o principal desafio na sociedade.
Há quatro razões principais para que, no passado, cidades e estados tenham perdido o equilíbrio
econômico e definhado após terem alcançado a prosperidade plena. Primeiro, se a cidade ou o estado
desenvolveu-se em função de um sistema hídrico e se este subitamente mudou o curso e secou, sua
economia foi afetada de modo adverso. Segundo, se as indústrias abandonaram as vilas rurais o
equilíbrio econômico também foi perdido. A terceira razão foram os sistemas educacionais defeituosos.
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Pertencer ao primeiro mundo, ao mundo rico. Como já dizia Hugo Assmann - no fundo, parece que
temos vergonha de pertencer ao terceiro mundo e sonhamos em não ser o que somos. Desejamos ser
reconhecidos e aceitos pelos “grandes”, e por isso queremos imitá-los.
Consumir o que eles consomem, nos vestir como eles, ver o mundo como eles vêem; em outras
palavras, assumir a cultura deles. Parece que sentimos culpa de ser o que somos.
Ser rico, numa sociedade como a nossa, é mais importante do que ser branco. As pessoas e grupos
sociais lutam por seus sonhos; duas palavras-chaves são apresentadas hoje como caminho para a
realização do sonho: Modernização e Mercado. A Modernização da economia e do país e o livre
mercado parecem assumir “A Boa Nova” de hoje.
Há um outro lado da moeda, a sua face “oculta”, que de ético não tem nada, que é a apartação do
mundo dos que participam da modernização e mercado do mundo dos que estão fora. A apartação
social é o lado não admitido deste sonho e é, exatamente aí, que a Filosofia interfere para conjugar as
causas e conseqüências desta apartação e propor respostas e saídas à luz de uma práxis libertadora.
O progresso da tecnologia (o saber científico aplicado à produção) é apresentado como único caminho
possível para a realização dos sonhos. A revolução tecnológica que estamos vivendo hoje, que
possibilita o consumo de bens antes inimagináveis, é visto como a composição de que não há outro
caminho para a realização dos sonhos humanos a não ser o da modernização capitalista.
Sendo assim, a solução dos problemas sociais e humanos não estaria mais no campo das opções em
torno de objetivos e caminhos possíveis, viáveis eticamente falando, mas somente no campo técnico.
Esse assunto seria da competência exclusiva das técnicas (por exemplo, economistas, empresários,
cientistas...) e, não da população em geral.
As pessoas não técnicas não teriam uma responsabilidade política, nem direito de participar da
determinação do futuro da nação. Mais ainda, o desejo e ação de participar da vida política, em nome
da cidadania, seria uma pretensão que atrapalharia a eficácia da modernização.
O segundo motivo é que, com a liberalização total da economia (a abertura da economia para o
comércio internacional, a privatização das empresas estatais e a saída do estado da economia), os
consumidores terão acesso aos bens produzidos no mundo inteiro, e todos os recursos da economia
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serão dirigidos em função da eficácia. Não haveria mais a intervenção do estado na economia, nem o
“desperdício” do dinheiro público com programas sociais.
Essas duas ações têm, ou deveriam ter, como objetivo, a melhoria da vida dos que estão alijados no
processo de concorrência do mercado, isto é, os pobres, os desempregados e os setores menos
eficientes da economia.
A ansiedade, que vem da concorrência sem fim e o desejo nunca satisfeito de consumir tudo, é
compensada pela realização do sonho. Mesmo que essa realização seja sempre parcial e provisória.
Além disso, existe o importante sentimento de não ser como “eles”, como aqueles que estão fora desse
mundo desejado por tantos, o gosto indescritível de ser superior.
O primeiro ponto de que precisamos sempre nos lembrar é algo bem óbvio: a sociedade brasileira é
maior do que o mercado brasileiro. Calcula-se que em torno de 60 a 70 por cento da população
brasileira está fora do mercado consumidor e do mercado de trabalho formal. A condição sine qua non
para entrar no mercado, para ser consumidor, é ter dinheiro para consumir. Se levarmos em conta que,
no capitalismo, todos os bens necessários para viver e para satisfazer desejos são vendidos no
mercado, estar fora do mercado significa não ter condições para viver, muito menos a satisfação dos
desejos.
Isso significa que o Brasil tem uma multidão de pessoas não-consumidoras que vão formando um
cinturão em volta do mercado, às margens do mercado, olhando para dentro, desejando entrar e sendo
barradas por falta de passaporte necessário: Dinheiro. Como no capitalismo neoliberal, a vida não é
possível fora do mercado, não resta outra alternativa se não buscar formas legais ou ilegais de
encontrar uma brecha para entrar.
As formas ilegais são já conhecidas: corrupção, roubos, assaltos, ..., que possibilitam aos marginais
do mercado ter acesso aos bens materiais necessários para satisfazer as necessidades e desejos.
Uma forma legal é procurar um emprego com um salário digno que os torna participantes do mercado,
mesmo que de modo muito secundário. Assim, os desempregados começam a viajar em busca de
melhores condições de vida. E, com razão, buscam as cidades mais ricas. Só que estas cidades, que
têm melhores condições de vida, não querem a entrada desses considerados indesejados,
incompetentes. Assim, cidades como Campos do Jordão, Campinas, Ribeirão Preto, Curitiba, Gramado
e outras têm ou tentaram criar mecanismos para barrar a entrada dos pobres.
Infelizmente, nem todos os brasileiros são tratados como cidadãos ou, numa linguagem religiosa, nem
todos são tratados como filhos de Deus. A condição sine qua non para a cidadania é ser consumidor, ter
dinheiro, estar no mercado. E a cidadania aqui é entendida como direito de participar das benesses do
mercado contra os que procuram defender os interesses dos pobres, dos “não-competitivos”. O
mercado é considerado anterior à cidadania, como a fonte da cidadania para indivíduos.
Antes se alguns diziam: “fora da igreja não há salvação” ou “só os batizados são filhos de Deus”; hoje
se diz: “fora do mercado não há salvação”, “só os consumidores são cidadãos”
É interessante notar que o Artigo 1 da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, da Revolução
Francesa, dizia algo bem diferente: “os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos”, as
distinções sociais só podem ter fundamento na utilidade comum. Isso significa que nenhuma instituição
humana é anterior ao ser humano, aos seus direitos e à sua dignidade. Todos são cidadãos,
independentemente da sua condição social. Parece que o capitalismo contemporâneo perdeu de vista
as grandes contribuições do liberalismo à história da humanidade e só ficou com seus aspectos
perversos.
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Mas para onde, então, irão estes considerados “não-cidadãos-incompetentes?” Bem, esse não é um
problema para os que assumiram o espírito da modernização do mercado. Na visão deles, preocupar-se
com esse tipo de problema e se deixar ser levado pela tentação de ser solidário com os pobres,
significa ir contra o espírito do mercado, o espírito da concorrência, da defesa do interesse próprio
contra os interesses do outro. Para a lógica do mercado, não se pode ser solidário com os menos
competentes, porque isso diminui a eficácia do sistema. E, como já vimos, a maximização da eficácia é
apresentada como único caminho para o Paraíso, a realização dos sonhos.
Por isso, Roberto Campos, grande defensor do neoliberalismo, disse que, “A modernização pressupõe
uma mística cruel do desempenho e do culto da eficiência. Uma mística que deve substituir a
mística cristã da solidariedade.”
O problema é que só se pode realizar o sonho do consumo infinito e do sentir-se superior, assumindo
este “culto da eficiência e a mística cruel”. Não se pode viver num condomínio fechado sem se apartar
dos que estão à margem do mercado. Esse é o lado obscuro do sonho. A realização desse sonho - por
parte de uma minoria implica ao mesmo tempo apartação e negação da vida dos pobres.
Está comprovado que não é possível a realização desse sonho por todos. Se isso acontece, os
problemas ecológicos e com os recursos naturais não-renováveis tornariam impossível a vida na terra.
Numa economia como a brasileira, a realização desse sonho só é possível para uma minoria à medida
que é mantido o atual modelo econômico de concentração de renda. A realização desse sonho por
parte de uma minoria pressupõe negar os direitos da maioria de ter uma vida digna. No fundo,
pressupõe assumir que nem todos são cidadãos, ou pelo menos que grande parte da população é
constituída de “cidadão de segunda categoria”.
Mas como manter uma consciência tranqüila diante dessa realidade cruel? Acreditando na “mística
cruel”. E só tem sentido falar em “mística cruel” quando se elimina totalmente a subjetividade da
economia e da política, e, portanto, quando se elimina também a ética, pois não há mais distinção
entre solidariedade e egoísmo. Ou melhor, o egoísmo com sua mística cruel, é apresentado como único
caminho para a solidariedade. Nesse sentido, só a ação egoísta produziria o bem comum pela
intervenção supra-humana da mão invisível do mercado.
Dissemos que as pessoas e grupos sociais lutam por seus sonhos. Se esses sonhos são perversos ou
desumanos, as suas práticas cotidianas e lutas também serão desumanizantes. Para mudar as práticas
das pessoas, precisamos mudar os seus sonhos. Precisamos apresentar um sonho mais humano,
alternativo ao sonho do consumo infinito.
A sociedade precisa ser testemunha de um sonho diferente. Não um sonho de um condomínio fechado
no seu luxo, mas o sonho de uma sociedade que não precise de condomínios para sentir-se segura.
Uma sociedade em que a qualidade de vida não seja confundida com quantidade de consumo. Em que
as pessoas não precisem ser violentas para garantir sua sobrevivência, nem sejam julgadas por sua
aparência ou preferência. Uma sociedade mais igualitária, sem tanto luxo contrastando com a miséria,
sem tanta ansiedade ou medo. Um mundo onde a solidariedade volte a ser um valor importante, talvez
o central.
Não é difícil ser esse tipo de testemunha numa sociedade que vive concretamente a exclusão, o medo e
a violência de todos os tipos. Coragem não quer dizer loucura, nem prudência pode ser uma máscara
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Felizmente, a maior parte das comunidades periféricas, agrícolas estão abertas aos pobres. Há quem
esteja comprometido com a vida dos pobres, sendo testemunhas de um outro sonho, mostrando outra
maneira de ser cidadão e cidadã, isto é, que não faz distinção de pessoas, anunciando que todos são
igualmente dignos e portadores de dignidade. Até as pessoas mais pobres e marginalizadas.
Neste ambiente competitivo, a informática, ciência que visa ao tratamento da informação através do
uso de equipamentos e procedimentos da área de processamento de dados, surge como um fator
importante, até mesmo diferencial para as diversas instituições presentes no mercado.
A informática, devido às suas vantagens e áreas de atuação, está sendo cada vez mais utilizada no
Brasil e no mundo. A sua flexibilidade e o perfil do público usuário faz da informática uma modalidade
de resolução de problemas capaz de atender à crescente demanda. O que se percebe é que há uma
espécie de corrida em busca do tempo perdido.
Entretanto, deve-se perceber como este utilizar tecnológico pode influenciar o crescimento de
profissionais e seres humanos. Pois, apesar de tudo, a tecnologia não deixa de ser apenas uma
ferramenta que possui múltiplas funcionalidades, mas que, sem uma estratégia de utilização, pode
gerar resultados insatisfatórios quer na prestação de serviços quer no envolvimento de conduta
humana nas diversas relações que tal participação social exige.
Sá (2001) escreve sobre a mudança vertiginosa que se operou nos costumes após o advento dos
avanços tecnológicos das comunicações e informações, merecendo revisões nos relacionamentos
profissionais e um estudo racional sobre tais mudanças.
Tem sido escassa a literatura voltada para esta problemática de mudanças cada vez mais evolutivas no
comportamento humano, principalmente no que tange à ética em um mundo modificado em
decorrência dos avanços científico e tecnológico.
Como vimos em nossa unidade inicial, em seu sentido de maior amplitude, a ética tem sido entendida
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como a ciência da conduta humana perante o ser e seus semelhantes. (SÁ, 2001).
Envolve o estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do
ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto.
Para Niskier (1999), as mudanças aceleradas que vêm ocorrendo no mundo, aliadas ao rápido
desenvolvimento das tecnologias de comunicação, remetem à imensa possibilidade que a educação a
distância tem de dar resposta aos apelos por mais e melhor educação.
Nesta aula, pretendemos lançar um olhar sobre o uso da EAD como espaço aberto para discussão na
construção de uma ética não subjugada diante dos avanços da informática.
Colocamos aqui algumas definições sobre ética, informática, EAD, suas relações e a questão do
subjugar, reprimir, refrear a ética diante do avanço da informática.
O volume de informações cresce numa velocidade tão grande, que é praticamente impossível um
profissional absorver e utilizá-lo de forma coerente com as necessidades de sua organização. Daí é que
o conhecimento tende a ser o diferencial competitivo das empresas (REIS, 1996).
Torna-se então necessário que os profissionais, sejam quais forem as suas áreas de atuação, estejam
em contínuo processo de desenvolvimento e aprendizado.
A empresa competitiva, percebendo que investir na capacitação de seus funcionários traz resultados
positivos, tem buscado na informática a contribuição rápida e necessária para assegurar o crescimento
da empresa, principalmente no tocante à combinação de tecnologias de educação a distância.
Levy (2000) ressalta que, pela primeira vez na história da humanidade, a maioria das competências
adquiridas por uma pessoa no começo de seu percurso profissional serão obsoletas ao final de sua
carreira. Esta situação resulta em tarefas mais complexas e intensifica a procura por profissionais
capacitados.
Belloni (1999) afirma que a demanda por mão-de-obra qualificada vem aumentando consideravelmente
no país em virtude dos efeitos da globalização, das inovações tecnológicas e das novas formas de
organização do trabalho resultantes de uma nova economia.
Entretanto, as implicações tecnológicas trouxeram para os seres humanos uma espécie de desejo
consumista. Mas não se pode permitir que o útil se sobreponha ao ético; que o egoísmo ético entre em
choque com as morais socialmente orientadas.
Acredita-se, portanto, que o grande desafio neste cenário competitivo do mundo moderno está em
estabelecer padrões éticos nas relações comportamentais entre consumo, pessoas e empresas.
A ética em seu processo de individualidade do sujeito clama por uma postura do ser honesto, do ter
coragem para assumir, do ser íntegro, humilde, flexível, transparente. Mas, encontra pela frente a
Internet que tem modificado sobremaneira o comportamento humano.
Ao se navegar na Internet, torna-se fácil verificar desejos obsessivos; o ter mais que o ser, a posse, o
poder e o prazer desregrados. O comércio eletrônico (e-commerce) que tem levado, até devido à
facilidade dos processos de uso, bem como a quantidade de boas ofertas, ao desejo na obtenção de
bens que de forma abrangente, tornou-se prestígio social. Quem muito tem, mais prestígio adquire.
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atual. Não existe uma legislação que leve o cidadão a esta postura, até porque existe a idéia de
democracia no uso da Internet.
De acordo com Affonso (apud BOOG, 1980), a educação profissional pode contribuir para uma maior
capacitação funcional, de forma a aumentar a moral, a eficiência, a produtividade e a melhoria do
ambiente de trabalho.
Entretanto, o desafio está não somente na melhora do ambiente de trabalho, mas de toda uma
sociedade contemporânea e também na construção de espaços para discussão e amparo de novas
idéias, de uma nova ética não subjugada diante dos avanços da informática.
A EAD oferece este espaço. Coloca à disposição os novos meios de comunicação que se dará em tempo
real (maneira síncrona), por exemplo, através da videoconferência e dos chats. E ainda a comunicação
de maneira assíncrona, ou seja, em tempo não real que se dará através de materiais impressos, TV,
vídeo, e-mail e o fórum, dentre outros.
Segundo Alvin Toffler, “O analfabeto do Século XXI não será aquele que não sabe ler e escrever, mas
aquele que não consegue aprender, desaprender e aprender novamente” (apud ROSEMBERG, 2002,
p.3).
Portanto, aprender, discutir, sugerir uma nova ética com a sociedade civil ampla e articulada, engajada
por meio da EAD, em seus fóruns distribuídos de forma molecular, para a defesa dos cidadãos, pode
deixar de ser uma utopia e se tornar na mais pura realidade para deleite do ser humano.
Sugere-se, portanto, que a educação profissional aplicada através da EAD gera melhores benefícios e
possibilidades em processos de treinamento e desenvolvimento pessoal, no ambiente corporativo, na
formação pessoal e na busca de uma ética não subjugada diante do avanço da informática.
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Glossário
A
Alter - Refere-se a outro, por oposição ao eu. A alteridade diz respeito à compreensão daquele que é
diferente de mim.
C
Confessional - que adota o princípio da transcendência.
E
Episteme - o conhecimento em si.
Éthos (ήθος) - com “eta” inicial, vogal longa (é), designa inicialmente “morada do homem, lugar de
estada permanente, abrigo protetor” (Cf. ERMOUT et MEILLET, p. 327. Tradução nossa). Nessa primeira
acepção, o ethos indica o espaço no qual o homem imprime sua “marca” pela afirmação de sua razão
(logos [λόγος]). Essa noção primitiva do ethos remete, assim, à idéia de um espaço constituído e
ordenado pelo homem segundo sua razão. O ethos indicará, nesta primeira expressão, um espaço
construído e permanentemente reconstruído pelo homem, espaço no qual serão inscritos os costumes,
hábitos, valores, normas e ações. Esta ordem geral à qual se refere o ethos é denominada costume,
maneira de ser habitual, comum a um determinado grupo humano.
Êthos (έθος) - com “épsilon” inicial, vogal breve (ê) - diz respeito ao comportamento que resulta de
um constante repetir-se dos mesmos atos, mas não de forma necessária, maneira habitual de agir (Cf.
ERMOUT et MEILLET, p. 407-408). É o que é feito de modo freqüente ou quase sempre, mas não
sempre, nem em virtude de uma necessidade natural. Portanto, o ethos irá assinalar, desde o princípio,
uma oposição à “physis” (φύσις), isto é, àquilo que significa ao mesmo tempo a natureza e o princípio
ordenador do mundo físico. Nesse sentido, o ethos se contrapõe ao que é natural no homem (impulso
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do desejo), pela constância e disposição da vontade de agir de acordo com as exigências de realização
do bem ou do que é o melhor a ser feito. Existe aqui, portanto, uma oposição entre o mundo humano,
no qual não há determinação absoluta, e o domínio físico, no qual os fenômenos seguem leis rígidas.
Esta segunda matriz conceitual do ethos significará, pois, a disposição habitual do indivíduo para agir
de certa maneira em vista do que é o melhor a ser feito: hábito como virtude.
Ética - é a condição humana que possibilita questionar a “Moral” instituída na sociedade, visando a
sua transformação. É a ciência da Práxis.
Eudaimonia - Vem do termo eudemonismo, designação da doutrina que estuda o conjunto de idéias
acerca da felicidade e da virtude. Na Antiguidade, o entendimento era de que a felicidade significava o
sumo bem. A busca dessa felicidade é o fim da ação moral. Eudaimonia corresponde à felicidade. A
vida ética deve ser uma vida feliz.
F
Formar indivíduos pela e para a sociedade: Acrescentar uma caixa com o texto: É o que
precisamente afirma Aristóteles na Ética a Nicômacos : “as prescrições para uma educação que prepara
as pessoas para a vida comunitária são as regras produtivas da excelência moral como um todo”, V
1130 b 25.
G
Glauco - Também conhecido como irmão de Platão. Na obra A República, Glauco aparece como
personagem nos diálogos do autor.
Gnose - Doutrina que trata do conhecimento, ciência superior que trata de questões religiosas. É o
conhecimento das questões religiosas pela razão.
J
Juízos assertivos - juízos que afirmam ou negam algo sobre o mundo e que erguem uma pretensão
de verdade.
I
Igualdade - As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo a serem ao
mesmo tempo (a) para o maior benefício esperado dos menos favorecidos e (b) vinculadas a cargos e
posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades. (RAWLS, 1997, p.
88)
L
Liberdade - Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas
iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. (RAWLS, 1997,
p. 64)
M
Maiêutica - consiste em buscar a verdade que está no interior de cada pessoa; método socrático que
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consiste em trazer à luz (parir) idéias complexas a partir de perguntas simples e articuladas a um
determinado contexto.
Moral - refere-se a costume, ou conjunto de normas ou regras sociais que servem de regulação a um
determinado tempo e espaço historicamente definidos.
O
Ontologia - Estudo do ser em geral e sua relação com os entes, em particular. Parte da filosofia que
estuda a universalidade da realidade.
P
Parmenídica - Relativo ao filósofo grego Parmênides (540-450 a.C.), que pensa o ser de modo imóvel,
uno, compacto, idêntico a si mesmo, indivisível e imutável. Parmenídica é a compreensão do ser desse
modo, ou seja, negador da idéia de movimento.
S
Secular - sem orientação religiosa.
T
TICs - Entende-se por TICs, todo e qualquer dispositivo que tenha capacidade para tratar dados e ou
informações, tanto de forma sistêmica como isolada, quer esteja aplicada no produto, quer esteja
aplicada no processo. (CRUZ, 1998)
U
Universalidade presumida - À moins d’une pure hétéronomie devant laquelle l’un et l’autre
s’inclineraient, il n’y a pas d’universalité donnée, il n’y a qu’un universel présomptif, Le primat de la
perception et ses conséquences philosophiques, Verdier, 1996, p. 80.
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