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tempo e subjetividades

Perspectivas plurais
Tempo e subjetividades
Perspectivas plurais

orgs.
Ariane P. Ewald
Jorge Coelho Soares
Maria de Fátima V. Severiano
Cássio Braz de Aquino
© 2013 Ariane Ewald; Jorge Soares; Maria de Fátima Severiano e Cássio Braz
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind Apresentação7
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter i.
Victoria Rabello experiências do tempo
conferência de abertura
Revisão
Sobrevivendo como vaga-lumes.
Sandra Pássaro
Reflexões sobre o tempo d’O Homem sem Qualidades
de Robert Musil e o homem “2.0”, versão acelerada, hipermoderna 13
Jorge Coelho Soares
Poemas 33
Carlos Lima
cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
ii.
T279 a crítica das temporalidades contemporâneas:
trabalho, lazer, consumo
Tempo e subjetividades : perspectivas plurais / organização Ariane P. Ewald ... [et al.]. - Rio de Janeiro :
7Letras : Pequeno Gesto, 2013. “Tempo Livre” consumado: indústria cultural, consumo e
394 p. : 23 cm
novas tecnologias no contexto do novo espírito do capitalismo 37
ISBN 978-85-421-0064-8 Maria de Fátima Vieira Severiano, Pablo Severiano Benevides
1. Subjetividade. 2. Tempo - Aspectos psicológicos. 3. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. O tempo como elemento de análise das transformações sociais 60
4. Tempo - Filosofia. I. Ewald, Ariane, 1962-. Cássio Adriano Braz de Aquino, Verônica Siqueira de Araújo
13-1412. CDD: 801.92
CDU: 82.0:159.9 iii.
esquecimento, intersubjetividade afetiva
e memória coletiva
Tiempo y Olvido Subjetividad como detención 83
Stefan Gandler
Vida temporal comum:
2013 o carácter temporal da intersubjetividade afetiva 117
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580/sl. 320 | Ipanema André Barata
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902 Subjetividad y Tiempo: Industria Cultural y Memoria Colectiva 154
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br Blanca Muñoz
iv.
em três tempos: da literatura, da ética e da biografia
Apresentação
Três vidas, três tempos: subjetividade,
tempo e literatura em W. Faulkner, V. Woolf e A. Camus 181
Ariane P. Ewald
Tempo, biografia e incerteza:
projetos de vida em narrativas de jovens 205
Idilva Germano
Ainda ter (ser no) tempo:
exigência ética da temporalidade que me vem de outrem 225
José Célio Freire, Taís Bleicher

v.
o tempo imprescindível: trabalhar,
envelhecer e morrer na contemporaneidade
“Cada minuto de vida nunca é mais, é sempre menos”: Este livro foi organizado a partir dos textos apresentados no Simpó-
algumas inquietações sobre o envelhecimento e a sio Tempo e Subjetividades: perspectivas plurais, evento organizado
percepção do tempo na hipermodernidade 241
em conjunto pelos professores do PPGPS/UERJ – Jorge Coelho Soares e
Regina de Oliveira Santana
Ariane P. Ewald – e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
O sofrimento perdido no tempo: UFC – Maria de Fátima Severiano e Cássio Braz de Aquino (Coorde-
modelos de luto na contemporaneidade 266
nador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia) –, realizado na
Lana Veras, Jorge Coelho Soares
UFC em 2011, com enorme sucesso, e que vem consolidar esta parceria
Tempo, trabalho e subjetividade – crises da atualidade 283 interinstitucional entre nossos Programas de Pós-Graduação. O livro
Evie de França Giannini
pretende promover, quer para a comunidade acadêmica, quer para o
vi. público interessado, uma discussão interdisciplinar e crítica sobre a fun-
o tempo e suas articulações com ção e o papel do tempo na construção das subjetividades na contempo-
fenômenos psicossociais contemporâneos
raneidade, acolhendo as diversas perspectivas e saberes que se voltam
Fetichismo e Imediatismo: reflexões sobre a crise na temporalidade para o tema.
transcendente entre os jovens 321
A problemática que reúne e baliza os trabalhos é a discussão sobre a
Robson J. F. de Oliveira
articulação das diversas temporalidades contemporâneas com o mundo
A “autoajuda” no espaço de consumo virtual: estratégia capitalista social na modernidade tardia, que caracteriza o tempo social em curso.
para captura da subjetividade via compressão do tempo  336
Partimos aqui do pressuposto essencial de que ao homem da moderni-
Jean Marlos Pinheiro Borba
dade cabe construir seu mundo e delinear os contornos de sua felicidade
3 tempos: o tempo na Filosofia como parte do entendimento psicológico 375 de modo absolutamente inédito, já que a humanidade hoje se habilita
Iratan Bezerra de Sabóia
a definir sozinha, no reino do desencantamento por ela instituído, os
Sobre os autores 387 valores que lhe permitirão viver da “melhor forma possível”, segundo
acredita. Cabe, portanto, a este novo homem moderno, assumir inteira-

7
mente sua humana condição. E esta invenção de si mesmo se dará, atra- acabou por ser instrumentalizado para estes fins. Neste mundo assim
vessada por dois tipos de tempo: o do vivido por ele de forma singular construído, freneticamente transitivo, no qual tudo passa rapidamente
no qual, ao realizar as ações que constituem sua vida, desenha para si e nada parece permanecer consistentemente, este novo homem, como
e para os outros um percurso que lhe pertence por direito; e um outro indica Emmanuel Carneiro Leão, se vê diante de duas lógicas contra-
tipo de tempo, que revela aos poucos um projeto fundamental de si ditórias de pensamento que acabam provocando nele um novo tipo de
mesmo, intuído em seu arcabouço, mas que só se constitui efetivamente angústia: o pensamento que calcula, irrequieto com o tempo, visto como
nas relações sociais tornadas possíveis em suas circunstâncias históricas a ser domado ou adquirido, algo exterior a si mesmo, sempre impedi-
particulares e que termina por se construir como um projeto coletivo. A tivo de seu melhor desempenho e produtividade – tomada aqui no seu
condição humana instala-se, assim, no tempo de viver quer no que tem sentido de produção industrial, mensurável, quantificável; e um pensa-
de absolutamente singular, quer naquilo que diz respeito a uma comuni- mento que se preocupa em pensar o sentido, pensamento que precisa
dade de destino, construída por todos os seus membros. de serenidade, de um tempo que se mova na medida das necessidades
A experiência do tempo, porém, se modificou radicalmente e entre do homem, um pensamento que ao não reificar o tempo, aceita como
as diversas novas experiências temporais vivenciamos, por exemplo, princípio de sua reflexão as palavras de Nietzsche: “É preciso a angústia
pela primeira vez na história da humanidade a sensação de impossibili- de ser um caos para se gerar uma estrela.”
dade de perda total e absoluta de seus objetos, que nos criam a forte ilu- Assim como o Simpósio, que neste ano de 2012 terá nomes interna-
são de terem se tornado seres de passagem que podem retornar e se fixar cionais e será realizado na UERJ, este livro se organiza com esta visada,
no tempo presente, como se nunca daqui tivessem se afastado. Através sob a égide do que Henri-Pena Ruiz denominou “humanismo de paciên-
das novas e cada vez mais sofisticadas tecnologias, nada parece desapa- cia”, em que a paciência é tomada em seu sentido original e radical: o que
recer totalmente, mas talvez ter se transformado em fantasmagorias que reúne sofrimento e fortaleza. Os temas que o compõem enfatizam o que
ressoam no tempo presente, como se nunca daqui tivessem se afastado. acreditamos provocar grandes sofrimentos ao homem contemporâneo:
Esta nova experiência impõe, a todos nós, seu ritmo próprio e suas con- o lidar com seu projeto de vida e criar com ele um sentido para sua
dições de existência, e coloca novas questões à subjetividade do homem, existência, o engajar-se em um trabalho, que mais do que prover seu
que nos cabe compreender. sustento, faça parte deste seu projeto; o de estabelecer os limites entre o
Na modernidade em curso também o tempo deixa de ser visto que decidir consumir e incorporar a sua vida como indispensável a ele;
como uma riqueza, imaterial em sua essência, mas como um bem que o ritmo que decidirão imprimir ao seu tempo e a sua vida; o que decidi-
nos faz falta. Desta forma nossa relação com o tempo se torna cada vez rão manter e cultivar como memória relevante e essencial para o tempo
mais negativa: ao correr atrás do tempo, que nos escapa sempre, nos futuro, o das novas gerações; como, por fim, confrontar-se com a ideia
queixamos de nossa falta de tempo e vemos nesta falta o sintoma de uma da morte neste seu tempo individual, experiência sempre atravessada
sociedade que, no seu ritmo constante de aceleração, acaba por nos lesar por um tempo histórico e social mas que guarda em si mesma, impera-
em algo essencial aos nossos projetos de vida. tivamente, uma experiência a ser vivenciada de forma solitária.
Este novo regime temporal, percebido pelo homem moderno como Diante deste sofrimento não nos cabe, porém, uma resignação fata-
uma forma de intensificação de sua vida, e positivado por ele, pensa lista, nem um pessimismo ingênuo, mas uma atitude esperançosa. Um
a si mesmo como um tempo “humano”, desvinculado do tempo linear olhar de discretas esperanças, certamente. Elas ganham força, todavia,
que rege o funcionamento das máquinas. Acaba, porém, propondo ao quando firmadas na crença de que, efetivamente, João Cabral de Melo
homem que a sua condição existencial se resuma à de simples especta- Neto iluminou nosso horizonte de possibilidades utópicas ao iniciar
dor e consumidor, de tudo e de si mesmo e o tempo da modernidade seu poema “Tecendo a Manhã”, alertando logo de saída: “Um galo sozi-

8 9
nho não tece uma manhã.” É disto que advém a possibilidade de nossa
“fortaleza”. É com esta inspiração utópica com fortes ressonâncias em
Ernst Bloch que nos propõe um sonhar acordado e contar a todos o que
sonhamos, que propomos este livro.

i.
Experiências do tempo
Conferência de abertura

10
Sobrevivendo como vaga-lumes.
Reflexões sobre o tempo d’O Homem sem
Qualidades de Robert Musil e o homem “2.0”,
versão acelerada, hipermoderna
Jorge Coelho Soares

Este Simpósio nasceu de uma grande inquietação compartilhada. Todos


nós percebemos duas coisas:
1º – que o tempo é a noção crucial que rege toda a nossa vida e
determina suas principais inquietudes da razão e da emoção;
2º – que para falarmos dele precisamos efetivamente de perspecti-
vas plurais, não em busca de um consenso apaziguador, mas
na tentativa de construir uma trilha, sem a pretensão de com-
pletude, num caminho que não se esgota.
Manoel de Barros, se referindo à função dos poetas, escreveu:
Assim
Ao poeta faz bem
desexplicar
Tanto quanto escrever
acende os vagalumes1

1 Manoel de Barros. Gramática Explosiva do Chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 1990, p. 298.

13
Troquemos aqui poeta por intelectual e saberemos o que nos espera O homem é assim a soma de suas inquietações, que Sartre chamava
fazer neste simpósio: uma tentativa sistematizada de “desexplicar” o de “infortúnios”, e o maior infortúnio do homem é, sem dúvida, ser tem-
Tempo. Ao mesmo tempo, diante da impossibilidade de produzir uma poral.7 Somente impregnando o tempo de cronologias e temporalidade
iluminação feérica sobre seus significados, nos contentaremos em acen- pessoais e sociais damos a ele a possibilidade de um sentido possível, o
der o maior número de “vaga-lumes”2 possível, pequenas luzes intermi- que nos apazigua e consola. O mistério, porém, permanecerá, mas talvez
tentes que, talvez, reunidas e por vezes sincronizadas, possam vir a nos nos facilite entender as estranhezas que o tempo é capaz de produzir
apontar novos caminhos de compreensão. Walter Benjamin afirmou como quando Faulkner disse: “O passado nunca está morto, ele nem
certa vez que é preciso organizar o pessimismo, e os nossos vaga-lumes mesmo é passado.”8
podem bem vir a ajudar nesta tarefa. O tempo é justamente a noção que nos conduz a um labirinto, sem
E como somos, incontornavelmente, a espécie fabuladora, como um fio de Ariadne que nos guie. Na célebre reflexão de Santo Agostinho
nos advertiu Nancy Huston, aquela espécie que vive construindo narra- ele nos alerta:
tivas3 para criar sentido para sua existência, sabemos que estamos con-
Os vossos anos não vão nem vem. Porém os nossos vão e vem, para que
denados a criar narrativas sobre tudo que compõe o mundo da vida, em todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, por-
particular sobre aquilo que nos inquieta profundamente. que estão fixos, nem os anos que chegaram expulsam os que vão, por-
Isak Dinesen, escritora dinamarquesa também conhecida por Karen que estes não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos,
Blixen,4 grande amiga de Hannah Arendt, costumava dizer: “Todas as quando já todos não existirem.
[...]
dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar
Que é pois o tempo? [continua ele a se perguntar]. Quem poderá expli-
uma história sobre elas.”5 cá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreendê-lo mesmo só com o
Para ela, os humanos são condenados a viver uma insegurança pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que
ontológica, na qual o equilíbrio nunca é definitivamente alcançado, já assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo?
que ele oscila o tempo todo entre a esperança e o risco, ao mesmo tempo Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos
também o que nos dizem quando dele nos falam.
que se alarma com a ideia de tempo e “[...] desequilibra-se pelo instante
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se
vagar entre o passado e o futuro.”6 quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei.9

Portanto, esta minha conferência se assenta na firme convicção e


plena esperança de que ninguém vai me fazer tal pergunta e vou me
2 Retirei esta bela imagem dos “vaga-lumes”, adaptada aos meus propósitos, de Georges
Didi-Huberman, exposta em seu livro Survivance dês Lucioles. Paris: Les Éditions de comportar como se todos nós estivéssemos de acordo de que esta per-
Minuit, 2009. gunta é francamente inconveniente.
3 Nancy Huston. A espécie fabuladora. Um breve estudo sobre a humanidade. São Paulo:
Diante deste dilema, abro mão aqui também de qualquer intenção
LP&M, 2010, p. 19.
4 Karen Blixen/Isak Dinesen (1895-1963), escritora de romances e contos, é conhecida no de produzir explicações científicas desveladoras sobre o tempo. Decidi
Brasil por dois filmes: o primeiro inspirado em parte de sua vida que ela expõe em Out of então seguir o caminho já esboçado por alguns “vaga-lumes” mais expe-
África, transformado no filme Entre dois Amores, estrelado por Robert Redford e Meryl
Streep; o outro filme, A festa de Babete, foi inspirado em um dos seus contos, que pode
rientes na tarefa de iluminar e tentar sincronizá-los sempre que possível.
ser encontrado na coletânea de seus contos publicado pela Cosac Naify em 2006.
5 Hannah Arendt. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7 Jean-Paul Sartre. Situações, I. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 94 (grifo meu).
95. Neste livro, Hannah Arendt lhe dedica um dos capítulos. 8 Faulkner, citado por Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
6 Karen Blixen. O Mergulhador. In: Anedotas do destino. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 2005, p. 37.
22-23. 9 Santo Agostinho. Confissões. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 277-278 (grifos meus).

14 15
Hannah Arendt será um deles e em seu texto, Compreensão de Política A mesma Hannah Arendt, em seu livro Entre o passado e o futuro,
– as dificuldade da compreensão, retira de uma prece feita por Salomão coloca em cena a minha questão central, objeto essencial desta confe-
ao seu Deus uma noção que lhe será crucial nas suas análises, da qual rência e que a levou a escrever este seu livro:
também nos apropriamos: Salomão roga que Deus lhe dê um “coração
Seria pois de certa importância observar que o apelo ao pensamento sur-
compreensivo”, porque ele, como rei, sabia que giu no estranho período intermediário que por vezes se insere no tempo
histórico, quando não somente os historiadores futuros mas também os
[...] apenas um coração compreensivo, e não a mera reflexão ou o mero
atores e testemunhas, os vivos mesmo, tornam-se conscientes de um inter-
sentimento, torna suportável o convívio com outras pessoas, sempre estra-
valo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por
nhas, no mesmo mundo, e possibilita a elas que suportem a nós.10 coisas que não são ainda. Na História estes intervalos mais de uma vez
mostraram poder conter o momento da verdade.
Para ela, tanto quanto para mim, tentar compreender é o modo [...]
especificamente humano de estar no mundo, que nos acompanha desde O problema, contudo, é que, ao que parece, não parecemos estar nem
o nascimento à morte; atividade sem-fim que nos incita a conhecer a equipados nem preparados para esta atividade de pensar, de instalar-se na
realidade, em contínua mudança e transformação. Não tendo fim, não lacuna entre o passado e o futuro.13
se propõe, nem o poderia, a produzir resultados definitivos. Momentos históricos como estes, a que Hannah se refere, não ocor-
O resultado do compreender é o sentido que vamos engendrando rem como uma sequência natural do acontecer histórico. Eles demar-
ao longo da vida, na medida em que tentamos nos reconciliar com o que cam momentos especiais.14
fazemos e sofremos.11 O tempo é então percebido como mais denso e espesso, há uma
À esta luz que emana do pensar de Hannah Arendt, acrescento a de ansiosa expectativa de mudança e o homem, ciente do seu tempo, tem a
outro grande “vaga-lume”: Wislawa Szymbroska, que em uma de suas sensação opressiva de estar na beira de um abismo onipresente, abismo
poesias existencialistas, Possibilidades, diz das suas preferências. Enfa- que “não nos divide mas nos cerca” como apontado por Wislawa Szym-
tizo aqui cinco delas: broska em seu poema Autotomia.15
Prefiro não afirmar Diante dele temos então que decidir se ficamos inertes, recuamos
que a razão é culpada de tudo. ou damos o último passo em sua direção. Se tomarmos a última opção
Prefiro-me gostando de pessoas, do que amando a humanidade. e saltarmos, precisaremos por fim, e sempre, determinar o passado que
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
[...]
(1923-2012), é polonesa, poeta, socióloga, grande pensadora; foi denominada o “Mozart
Prefiro os cães sem a cauda cortada. da poesia”, sempre reflete em suas poesias sobre a condição humana. Prêmio Nobel de
[...] Literatura em 1996, é uma quase desconhecida no Brasil, excetuando alguns poemas
Prefiro não perguntar se ainda demora e quando. esparsos publicados aqui. Em Portugal três coletâneas já foram publicadas: Paisagem com
Prefiro (muito) ponderar a possibilidade grão de areia (1988) e Instante (2006), ambos pela Relógio D’Água; Alguns gostam de poe-
sia, pela Cavalo de Ferro em 2004.
da existência ter sua razão de ser.12
13 Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 35 e 40 respec-
tivamente.
10 Hannah Arendt. In: Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Ensaios. São Paulo: 14 Creio que alguns destes momentos especiais foram a virada do século XIX para o XX, a
Companhia das Letras, 2008, p. 345. década dos anos 20 que foi antecedida de alguns anos e se projetou na década de 30 até a
11 Hannah Arendt. Lo que quiero es compreender. Sobre mi vida y mi obra. Madrid: Trotta, ascensão do Nazismo. A década dos anos 40 e o balanço posterior da Segunda Guerra Mun-
2010, p. 15 (grifo meu). dial, a década dos anos 60 com tudo que comportou de mudança sobre o comportamento
12 Wislawa Szymbroska. Possibilidades. In: Revista Coyote, Londrina, nº 18, Primavera, das pessoas e esta virada do século XX para o XXI que ainda faz parte do século anterior.
2008, p. 13. Neste número, cinco belíssimos poemas foram traduzidos e transcritos por 15 Wislawa Szymbroska. Autotomia. In: Revista Inimigo Rumor. Maio, nº 10, Rio de Janeiro:
Regina Przybycien, professora da Universidade Federal do Paraná. Wislawa Szymbroska 7Letras, 2001, p. 10.

16 17
levaremos na viagem, pois sabemos que “o passado não mais ilumi- Diante destes tempos em que tudo parece ser possível não é demais
nando o futuro, faz com que o espírito marche nas trevas”.16 lembrar que Hannah Arendt, que viveu igualmente o tempo de René
Ao mesmo tempo, temos que decidir o quanto estamos dispostos a Char, em seu livro mais conhecido, As origens do totalitarismo, conce-
morrer, a deixar para trás. Wislawa Szymbroska novamente nos auxilia bido na década de 40, abre seu seminal capítulo “Totalitarismo”, fazendo
com uma breve iluminação e nos aconselha: suas as palavras de David Rousset, que sobreviveu a um campo de con-
centração. “Os homens normais não sabem que tudo é possível.”21
Morrer estritamente o necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.17 Diante de um mundo que se apresenta como um universo infinito
de possibilidade de ser, como o nosso momento histórico atual, nos
René Char, que viveu intensa e dolorosamente um destes momen- negamos sequer pensar que o retorno à barbárie possa ser uma dessas
tos especiais da história, escreveu em plena Segunda Guerra sobre este possibilidades.
tipo de tempo: “[...] tempo em que o céu extenuado penetra na terra em Esta mesma reflexão talvez tenha ocorrido a Kafka quando escre-
que o homem agoniza entre dois desdéns,” e constata naquele momento veu em 1920, após ter presenciado a Primeira Guerra Mundial, onde os
“[...] Nossa herança não foi precedida de nenhum testamento”.18 ideais de progresso permanente e felicidade plena e duradoura começa-
Com isto denunciava o fato de que a desgraça em que se encon- ram a se divorciar inexoravelmente:
trava a França naquele momento se devia em grande parte a uma quase
Leopardos invadem o templo e bebem toda a água da pia de sacrifícios,
ausência de um legado do tempo para as novas gerações. Quando este
deixando-a vazia. Isso se repete sempre. Por fim, o evento pode ser pre-
legado é muito pobre ou não existe, quando a tradição que seleciona, visto e torna-se parte da cerimônia.22
nomeia, transmite e preserva, que indica
Creio que no século XX um destes momentos especiais onde tudo
[...] onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver
parecia perigosamente possível, tempo de uma transição, no início
nenhuma continuidade consciente no tempo e portanto, humanamente
falando, nem passado nem futuro, mas tão somente a sempiterna mudança somente percebida por poucos, foi aquele em que Robert Musil (1880-
do mundo e os ciclo biológico das criaturas que nele vivem.19 1942), austríaco, contemporâneo de Freud, captou a atmosfera da Viena
fin-de-siècle, melhor do que qualquer escritor de sua época. Uma atmos-
Este mesmo poeta se colocará e nos colocará sob a forma de afo- fera completamente nova, prenhe de possibilidades, irresistivelmente
rismo, uma pergunta crucial que aponta para o futuro das novas gera- tão sedutora quanto assustadora, que Jacques Le Rider assim a descreve:
ções: “Qual o homem da manhã e qual o das trevas?”20
A modernidade vienense não é um modernismo triunfante e seguro de si
mesmo. Conserva sempre presente o sentimento extremamente forte de
16 Alexis de Tocqueville. Democracia na América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, uma perda, de uma decadência contra a qual se devia tentar reagir, de um
1969, p. 361. mundo que desmorona e um futuro ainda vago. Os modernos vienenses
17 Wislawa Szymbroska. Autotomia. In: Revista Inimigo Rumor. Maio, nº 10, Rio de Janeiro: se embrenham na via da modernidade com a consciência de uma necessi-
7Letras, 2001, p. 10. dade que sentem quase como fatalidade.23
18 René Char (1907-1988), poeta francês, foi também membro da Resistência Francesa
aos alemães, de onde extraiu seu olhar pouco afeito às concessões que apaziguam o ser
humano. Sua poesia é densa, com arestas cortantes que nos obrigam a refletir sobre o que
talvez não desejássemos ver. Seus impecáveis aforismos revelam um pensador imerso 21 Hannah Arendt. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
em uma contundente reflexão existencial. René Char. Furor e Mistério. Lisboa: Relógio p. 337.
D’Água, 2000, p. 177 e 189 respectivamente. 22 Franz Kafka. 28 Desaforismo. Florianópolis: UFSC, 2010, p. 35.
19 Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 31. 23 Jacques Le Rider. A modernidade Vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro: Civi-
20 René Char. O nu perdido e outros poemas. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 37. lização Brasileira, 1993, p. 41.

18 19
O outro destes momentos, que me servirá aqui de referência, é exa- jetividade são impossíveis de representar.26 Somente situações
tamente o nosso tempo presente, esta nossa modernidade tardia cuja de modernidade podem ser narradas.27
gestação se deu nas três últimas décadas de um século XX que ainda não Exatamente porque vejo a modernidade como uma narrativa das
terminou. situações da modernidade, na trilha do pensar do Jameson, mas tam-
Reconheço que nada é mais difícil de pensar com clareza do que bém de Hannah Arendt e de Walter Benjamin, é que me disponho aqui
sobre o próprio momento histórico, concretamente vivido por todos nós a pensar que o tempo de Musil estabelece paralelos e ressonâncias com
e no ponto onde o tempo faz uma inflexão, sem nos avisar de todas as a nossa época.
consequências. Fica implicitado em minha análise a ideia de que o tempo não trans-
Porém, estes dois momentos especiais – o início do século XX para corre, é percebido, vivenciado existencialmente e narrado da mesma
Musil e as últimas décadas de todos nós – fazem parte do processo de forma sempre. Há tempos percebidos como mais fluidos e leves e outros
construção da modernidade ocidental, que é capaz de gerar seu próprio mais densos e pesados. Há tempos em que o horizonte do futuro não é
fluxo de acontecimentos. minimamente discernível, porque o presente concentra em si todas as
Farei aqui um contorno estratégico à polêmica que envolve a noção possibilidade de existência e envolve os humanos no ato fundamental
de modernidade, para não perder meu foco principal. Ressalto somente de simplesmente sobreviver. Há tempos que ressoam, como o som que
que tendo aqui a usar a noção de hipermodernidade para me referir ao emana de um verdadeiro sino de bronze, e deixam um rastro que desa-
tempo presente.24 parece muito lentamente e outros tempos cujo som emana de um sino
Subscrevo também três outras afirmativas dos princípios funda- forjado somente com a dureza e a incomunicabilidade do ferro, que não
mentais que Frederic Jameson estabeleceu para se referir à moderni- ressoa; como os que existem nos cemitérios e são somente tocados para
dade: a primeira é a de que o “[...] único significado satisfatório para anunciar a partida dos que não mais ressoam, dos que acabaram o seu
modernidade se encontra na sua associação com o capitalismo”.25 As tempo entre nós.
outras duas fazem parte do conjunto que ele denominou “máximas da Convido então todos a fazerem uma breve viagem no tempo e mer-
modernidade”. Elas abrem novos caminhos de investigação para nós, gulharem no mundo onde Musil tirou seus elementos de sua formação
das Humanidades, que valorizamos a Literatura, não pelo seu aspecto pessoal e sua maior inquietação, transformada por ele num dos mais
“ilustrativo”, mas como algo que guarda em si mesmo um enorme valor importantes livros já escritos no século XX, infelizmente pouco conhe-
heurístico em direção a novos saberes. Segundo ele: cido ou lido entre nós, apesar da excelente tradução feita pela Lya Luft e
1 – A modernidade não é um conceito, mas sim uma categoria Carlos Abessenth.
narrativa. Robert Musil nasceu em 1880 na Áustria e faleceu em 1942 na
2 – A narrativa da modernidade não pode ser organizada em Suíça, onde estava exilado. Matemático por formação, estudou engenha-
torno de categorias de subjetividade [já que] consciência e sub- ria, lógica e psicologia experimental na Universidade de Berlim, onde

26 Creio que mesmo quando nos deparamos com livros tais como A consciência de Zeno, de
Ítalo Svevo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira), Memórias do Subsolo, de Fiódor Dostoiévski
24 Sigo, como estratégia provisória de análise, já que não encontrei até aqui uma melhor (São Paulo, Editora 34), ou O Mal Obscuro, de Giuseppe Berto (São Paulo, Editora 34), no
noção, a de hipermodernidade para o nosso tempo presente, o das recentes décadas. qual os autores em suas narrativas oscilam entre um fluxo de consciência e um monólogo
Noção colocada em cena por Nicole Aubert e seu grupo do Laboratoire de Changement interior, eles revelam no conteúdo de sua narrativa elementos de inserção no seu tempo,
Sociale, Paris 7, e adotada também por Gilles Lipovetsky. na sua modernidade, tal como vivida e interpretada por eles.
25 Frederic Jameson. Modernidade Singular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, 27 Frederic Jameson. Modernidade Singular. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.
p. 22. 69, 112 e 113.

20 21
“travou contato com os fundadores da Gestalt, à qual atribuía grande e sem margens para alimentar nossa segurança, ele é um laboratório de
importância e, provavelmente, vinculava sua obra principal”.28 Musil, possibilidades, “um livro-por-vir, uma obra aberta, ‘imensa, inacabada,
diferentemente dos alemães, tem também “o senso tipicamente aus- inacabável’”,32 parecendo querer refletir a gama aleatória de possibilida-
tríaco de autoironia”: des que configura o que denominamos ‘realidade”.
Qualquer tentativa de compreensão de sua produção como escritor
[No O Homem sem Qualidades] Irônico é o assunto – enquanto se pode
falar de assunto da obra: uma ação patriótica que não se realiza e nunca – na qual avulta de forma imponente o seu O Homem sem Qualida-
se realizará. Porque ‘na Áustria nada se realiza’. Nem sequer o romance de des, fazendo uma pesada sombra a tudo mais que escreveu – nos levará
Musil, que ele nunca terminou”.29 necessariamente em direção à afirmativa de Tzvetan Todorov, de que a
“[...] literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de
É dele também a irônica afirmativa: “Há duas coisas contra as quais
discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características”.33
não se pode lutar, porque são compridas demais, gordas demais e não
Musil levou quase 30 anos sendo elaborado gradativamente em suas
tem pés nem cabeça: Karl Kraus e a Psicanálise.”30
reflexões fragmentadas, porém muito bem estruturadas como um todo,
Musil foi também, reconhecidamente, uma figura complexa e nem
cujo sentido terminou por construir a lógica de construção deste seu
sempre fácil de suportar.
magistral romance-ensaio. Nele, Musil cede a palavra a Ulrich através
Para Maurice Blanchot, porém, este “homem difícil, capaz de criti-
do qual seus Diários parecem ter uma continuidade de reflexão, fazendo
car o que ama e de se sentir próximo do que recusa”, é ao mesmo tempo,
deste personagem seu porta-voz. O primeiro volume apareceu em 1930,
em muitos aspectos, um “homem moderno, que acolhe a nova era tal
o segundo em 1933, ano de ascensão de Hitler como Chanceler do Reich,
como ela é e prevê lucidamente o que ela se tornará, homem de saber, de
e o terceiro após sua morte, em 1942, no exílio na Suíça.
ciência, espírito exato e nada predisposto a maldizer as temíveis trans-
No título original, Der Mann ohne Eigenschaft, uma questão cru-
formações da técnica; mas ao mesmo tempo, por sua origem, sua edu-
cial também se coloca: o que Musil queria dizer com Eigenschaft? Res-
cação e a certeza das tradições, um homem de outrora, de uma cultura
pondê-la será a chave principal para compreender o que se desdobrará
refinada, quase um aristocrata”.31
como a lógica de pensar e viver deste que será Ulrich, em torno do qual a
O Homem sem Qualidades, sua Opus Magnun, foi escrita delibe-
história vai se desenrolar. Na cuidadosa e consagrada tradução feita para
radamente e calculadamente sob a forma de ensaio. Optou pelo ensaio
o francês pelo filósofo Philippe Jaccottet, ele decidiu que qualités seria
como forma de acentuar as múltiplas e aparentemente inesgotáveis
mais adequado às intenções de Musil; na edição de 2004 pela Chelsea
“possibilidades” de ser e se desdobrar quer para Ulrich, seu personagem
house Publications, com uma Introdução e notas críticas do conceituado
principal neste livro, quer para o seu próprio texto. O Homem sem Qua-
Harold Bloom, optou-se por qualities. Em português corre-se um sério
lidades não é, portanto, um romance no sentido tradicional. É um não
risco de incompreensão do termo, pois em nosso idioma qualidades nos
romance, um romance-ensaio, deliberada e necessariamente inconcluso
induz a pensar em atributo moral ou intelectual das pessoas de forma
e inconclusivo. Como um colossal rio que não sabemos onde deságua
“positiva” ou seja “as qualidades de uma pessoa” seriam o que tem “de
28 Elias Canetti. O jogo do olhos. História de uma vida, 1931-1937. São Paulo: Companhia das
melhor”. Em alemão, tal equívoco não acontece: Eigenschaft é a tradução
Letras, 1990, p. 162. de proprietas [propriedades] em latim.
29 Otto Maria Carpeaux. História da Literatura Ocidental, vol. IV. Brasília: Senado Federal,
2008, p. 2812.
30 Allan Janik e Stephen Toulmin. A Viena de Wittgenstein. Rio de Janeiro: Campus, 1991,
p. 28. 32 Maurice Blanchot. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
31 Maurice Blanchot. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 199. 33 Tzvetan Todorov. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

22 23
Em função disto, Hanke sugere que o termo propriedades seja Há uma profunda reflexão sobre a crise social e política e suas
usado no lugar de qualidades, já que em Musil há um “distanciamento influências nas contradições vitais e culturais na subjetividade dos indi-
da terminologia ontológica estabelecida e seus modos de pensar”.34 Já víduos em uma sociedade na qual a crueldade e a banalidade se entre-
Blanchot, afirmando ser a sua solução a mais próxima do alemão, pro- cruzam como uma totalidade e se desenha nas descrições terríveis das
põe a tradução para o homem sem particularidades, evitando assim que condições inumanas das trincheiras na Primeira Guerra. Musil, porém,
se perca a ideia de que este homem, em Musil, é o homem que “não tem também descreve a frivolidade das frequentes festas com as quais o
nada que lhe seja próprio, nem qualidades, nem tampouco nenhuma Império Austro-húngaro celebra sua decadência e frustração, confor-
substância”.35 mando deste modo “o espírito do tempo”. E neste paradoxal desdo-
Em Musil, este homem, se tem alguma particularidade essencial é bramento os estados de consciência são os sinais das condições de uma
justamente a de não ter particularidade alguma. É qualquer homem, um sociedade cujas hierarquias a encaminham à sua ruína e humilhação.
homem qualquer, que se vê sem uma essência que o defina, que luta Musil através de Ulrich transita e tenta se construir existencial-
contra a possibilidade de se ver cristalizado num determinado modelo mente exatamente no momento em que vários “códigos” estão entrando
de homem, estável e previsível. Desta forma este homem se determina aceleradamente em colapso.
como tal e se priva se si mesmo submetido que se encontra, nas palavras Hans Ulrich Gumbrecht – um outro Ulrich, nosso contemporâneo
de Ulrich, à marcha inexorável do tempo: –, tendo como foco um único ano da década dos anos 20, escreveu 1926,
Vivendo no Limite do Tempo.37 Nele nos aponta os principais códigos já
A marcha do tempo nos domina. Andamos com ela dia e noite, e faze-
mos dentro dela todo o resto; nos barbeamos, comemos, amamos, lemos em franco colapso naquele ano, que se deteriorariam de vez nos anos
livros, exercemos nossa profissão como se as paredes estivessem imóveis; seguintes. Entre eles:
e o inquietante é que as paredes se movem, sem notarmos nada [...] Além – A ação humana que torna cada vez mais impotente diante da rea-
disso queremos, se possível, fazer parte das forças que determinam o curso lidade social;
do tempo [...] E um dia surge a necessidade urgente: desembarcar! Saltar!
Ânsia de parar, de não avançar mais...36 – A autenticidade da vida se transforma em permanente constru-
ção de uma artificialidade efêmera;
“O homem sem qualidades” é, desta forma, um atestado gigantesco – A mudança do que consideravam, política e culturalmente, como
da quebra dos ideais intelectuais e morais de uma geração que recolhe centro e periferia, em função dos novos recursos de transportes e
as heranças do passado recente. Ulrich, o protagonista do romance, nos comunicação;
leva por um itinerário no qual, como uma grande epopeia, desdobra a – Uma visível e cotidiana absorção da Transcendência pela ima-
realidade em fases que compõem um enorme ciclo da realidade, e assim nência e uma contraditória reemergência simultânea da Trans-
se passará desde o episódio sobre a perda do emprego de Ulrich, o qual, cendência, reveladora de uma forte fascinação pela religião;
consumido pelo fracasso de sua realização pessoal, nos leva a perceber – Uma individualidade que se orgulha de sua condição, mas que
a situação de alienação na qual “o homem sem atributos” se encontra se submete cada vez mais num “pensar coletivo” à espera de um
ameaçado de forma permanente. grande líder que lhes diga o que fazer.

37 Hans Ulrich Gumbrecht. 1926, Vivendo no Limite do Tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
34 Michael Hanke. A qualidade de o homem sem qualidades de Robert Musil. Alceu, V. 4, n.
Hans Ulrich Gumbrecht (1948- ) é atualmente professor de Literatura Comparada em
8, jan./jun. 2004, p. 129.
Stanford. Tendo já alguns livros publicados em português, sendo que o último foi Pro-
35 Maurice Blanchot. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 201. dução de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto,
36 Robert Musil. O Homem sem Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 25. 2010.

24 25
É um momento, segundo Gumbrecht, onde que nos vemos diante da “[...] impossibilidade de vivermos com valores
de longa duração”.42
Passado e o presente tendem o risco de desaparecer, porque o processo no
qual cada passado é substituído por um PRESENTE parece ter-se acelerado Já em 1977, antes de estabelecido o reinado hipermoderno, Russel
tão dramaticamente que formas individuais de Pensamento e estilos cole- Jacoby, que vem influenciando desde muitos anos minhas reflexões pes-
tivos de vida já não conseguem mais se adaptar.38 soais, já nos advertia em seu livro Amnésia Social 43 sobre o perigo do
mergulho no abismo da “obsolescência programada”, onde tudo já nasce
E é exatamente o colapso destes mesmos códigos que pode apontar
com data de validade vencida e o novo é, cada vez mais rapidamente,
o início da nossa análise da hipermodernidade,39 o nosso Tempo Pre-
substituído pelo “mais novo”. E este fenômeno se aplica não somente aos
sente, “tempos inclassificáveis”, como nos alertou muito recentemente
bens materiais, como também a todos os campos do pensamento. “O
Frederic Jameson em sua passagem pelo Brasil mês passado.40
novo não apenas supera o velho, como o afasta e destitui. A capacidade e
Nesta nossa sociedade, tudo se apresenta de forma exacerbada,
o desejo de lembrar se atrofiam.”44 E nos alertava: Há um risco crescente
onde se tem a sensação de um “excesso de tudo”, onde tudo se apresenta
de as Ciências Humanas e Sociais virem a se tornar radicalmente a-his-
como hiper: do hipercapitalismo globalizado ao hiperconsumo de coisas
tóricas, desconectadas da tradição intelectual de onde vieram.
pessoais e mesmo das próprias pessoas, transformadas em “produtos”.
Bauman, em recente entrevista neste ano, desdobrou as consequên-
Ao mesmo tempo, carrega em si um fardo, que o sistema econô-
cias daquela afirmativa de Jacoby: “[...] hoje mais sentimos do que pen-
mico positiva sob a forma da “moda” e que Baudelaire, observador refi-
samos [...] Ser moderno [hoje] significa mudar compulsivamente. Não
nado do seu tempo, já havia percebido no século XIX: “A modernidade é
tanto ‘ser’ mas ‘estar se tornando’, permanecendo incompleto e subdefi-
o transitório, o efêmero e o contingente.”41 Nunca conseguimos ter todos
nido”.45 E tanto quanto o autor deste texto, Bauman na mesma entrevista
os objetos que nos são oferecidos como parte de uma felicidade absoluta
este ano percebe o nosso tempo como um momento especial e de tran-
e nunca conseguimos satisfazer às demandas de ser e ter que o sistema
sição acelerada, sem um horizonte à vista:
impõe de forma tão sedutora quanto mandatória.
A hipermodernidade dá livre curso a esta lógica e a exacerba: vive- Nós nos encontramos num momento de interregno:46 velhas maneiras de
mos no reinado do curto tempo de reação, da rentabilidade imediata: fazer as coisas não funcionam mais, modos de vida aprendido e herdados
já não são adequado à condição humana do presente, mas também novas
Com a ascensão de uma nova relação com o tempo, com a flexibili-
maneiras de lidar com os desafios da contemporaneidade ainda não foram
dade da economia e a revolução apoiada nas tecnologias de comunica-
ção, nos sentimos compelidos a reagir de imediato, ao mesmo tempo em
42 Nicole Aubert. La société hypermoderne, une soiété par excès. In: La Société Hypermo-
derne: ruptures et contradictions. Paris: L’Hartmattan, 2010, p. 24.
43 Russel Jacoby. Amnésia Social. Uma crítica à Psicologia conformista, de Adler a Laing.
Rio de Janeiro: Zahar, 1977. Russel Jacoby (1945-) é professor de História na UCLA. Em
português, além do livro citado no texto, podem ser encontrados Os últimos intelectuais
38 Hans Ulrich Gumbrecht. 1926, Vivendo no Limite do Tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999, (Edusp) bem como os mais recentes Imagem Imperfeita: pensamento utópico para uma
p. 449. época antiutópica (Civilização Brasileira) e O fim da Utopia: política e cultura na era da
39 Hiper – designa em hipermodernidade um excesso e implica a noção de excesso e inten- apatia (Record).
sidade ao máximo, situações-limite em permanente mudança, em contínua tensão. 44 Russel Jacoby. Amnésia Social. Uma crítica à Psicologia conformista, de Adler a Laing. Rio
40 Jameson veio ao Brasil em maio deste ano e no projeto Fronteiras do Pensamento em São de Janeiro: Zahar, 1977, p. 8.
Paulo proferiu palestra sobre “A estética da singularidade”. Em entrevista ao Jornal Folha 45 Zygmunt Bauman. A face humana da Sociologia. In: O Estado de S. Paulo. Sabático, S4,
de S. Paulo de 27 de maio, no Caderno Ilustrada, fez a afirmativa citada no texto. 30 de abril de 2011.
41 Charles Baudelaire (1821-1867). A modernidade de Baudelaire. Textos selecionados por Tei- 46 Que ele usa aqui no sentido de um intervalo de tempo entre dois reinados, durante o qual
xeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 174. não há rei hereditário ou eletivo.

26 27
inventadas [...] Estamos reagindo [conclui ele] ao último problema que se ção [...] estreita os olhos, encara o céu e diz: ‘É... por enquanto, não será
apresenta.47 possível...’, todos exclamavam: – Ah! Que bom!49

Estas palavras de hoje guardam inequívocas ressonâncias com as A filmagem então parava, mas a vida não. Novas amizades eram
que proferiu Karl Kraus referindo-se ao tempo dele e de Musil, mas que feitas, laços de identidade eram estreitados, ideias sobre o filme podiam
depois do recente desastre nuclear de Fukushima nos parece um pensa- ser discutidas com mais vagar e os humanos ali envolvidos se sentiam,
mento sombrio mas vivo e atual: “O estado em que vivemos é o verda- efetivamente, como parte de algo que transcendia de muito o negócio
deiro apocalipse: o apocalipse estável.”48 de fazer um filme.
Para este nosso tempo hipermoderno as três metáforas que mais Andrei Tarkovski, um grande cineasta russo [que fez do Tempo
passamos a usar quando nos referimos ao tempo estão ligadas às ideias a referência fundamental na construção de seus filmes, para quem o
de contração, compressão, mas principalmente de aceleração do tempo. “tempo constitui uma condição de existência do nosso ‘Eu’... necessá-
Entronizamos definitivamente a noção de instantaneidade e uma rio para que o homem, criatura mortal, seja capaz de se realizar como
lógica de vida em franca aceleração, uma forma de ser e estar no mundo personalidade”], nos relata uma deliciosa história, recolhida de Proust e
regida pelo imperativo do “tudo ao mesmo tempo, agora e acelerada- que Tarkovski adorava contar e que incluiu como parte de suas reflexões
mente”. sobre como “esculpimos o tempo”: dizia Proust a respeito de sua avó:
Fica vedada assim a toda geração a possibilidade de uma espera
Mesmo quando pretendia das a alguém um presente eminentemente
mais paciente e serem de um tempo mais adequado, um tempo ideal prático, como por exemplo uma bengala, ela sempre fazia questão de
para fazer as coisas e construir-se ao fazê-las. que fossem “velhos”, como se estes, purificados do seu caráter utilitário
Teruyo Nogami, em seu belo e poético livro A espera do tempo, pelo desuso, pudessem nos contar como haviam vivido as pessoas nos
relata sua experiência pessoal como assistente de Akira Kurosawa velhos tempos, em vez de se prestarem à satisfação das nossas necessidade
modernas.50
durante muitos anos e registra dele a seguinte história. Kurosawa era
muito jovem e assistente de um outro cineasta. Um dia indo para o set Por outro lado, para a lógica hipermoderna, o tempo ideal é somente
de filmagens viu que nada estava acontecendo. A equipe de filmagens, o do aqui e o do agora e como “cama de Procusto”, elimina como irre-
incluindo o cineasta, conversava animadamente em grupos meio dis- levante tudo que não se permite reger por ela. Os objetos deixam de
persos ou estavam sentados, tomando chá. Quando questionado sobre ser “antigos” e se tornam “velhos”, obsoletos e descartáveis. As pessoas
o fato, o cineasta de quem Kurosawa era assistente, simplesmente disse: colocadas igualmente na mesma “cama” são submetidas à lógica da
– Estamos esperando que uma nuvem apareça e fique exatamente onde “urgência permanente”, da hiperatividade imediata, da instantaneidade
eu desejo que ela esteja, para começar as filmagens. E Nogami conclui, à promovida pelas novas tecnologias e nesta virada de século já pode-
luz de suas experiências com Kurosawa:
49 Teruyo Nogami. À espera do Tempo. Filmando com Kurosawa. São Paulo: Cosac Naify,
Durante a filmagem é [realmente] agradável esperar pela chegada do 2010, p. 17.
tempo ideal. É quando a gente faz um intervalo. Se o técnico de ilumina- 50 Andrei Tarkosvki. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 67. Da filmogra-
fia de Tarkovski registre-se que seu filme Solaris de 1972 – não confundir com o filme
americano, refilmagem bem mais recente – é um dos filmes mais angustiantes já feitos
47 Zygmunt Bauman. A face humana da Sociologia. In: O Estado de S. Paulo. Sabático, S4, até hoje. Seu principal personagem, um astronauta, nos coloca diante do grande enigma
30 de abril de 2011. do tempo e seus deslocamentos imaginários. Diante de uma grande perda, pela qual de
48 Karl Kraus. Aforismos. Porto Alegre: Arquipélago, 2010, p. 73. Karl Kraus (1974-1936) foi alguma forma nos sintamos culpados – independentemente da racionalidade desta culpa
talvez o maior autor satírico de língua alemã no século XX. Admirado por Benjamin era –, reencontrar o ser amado, reconciliar-se e apaziguar-se vale todo o esforço do nosso
objeto de desprezo por parte de Musil, que costumava fustigá-lo. Em português há esta imaginário. No filme de Tarkopvski o homem permanece num tempo coagulado, estag-
excelente edição dos seus principais aforismos. nado, num presente que se repete, sem redenção à vista.

28 29
mos agora, certamente, começar a analisar os destroços da nossa “Idade Como para o Ulrich de Musil, o tempo é o seu maior enigma e seu
Mídia” Ocidental. principal algoz. Acreditando ter pleno domínio do tempo, perdeu com-
Daniel Kehlmann, jovem escritor alemão, através de um dos per- pletamente a noção de que o tempo é uma destas coisas que não pode
sonagens no seu “Como menti e morri”, coloca nele esta perplexidade: ser explicada, somente às vezes compreendido, algo que não se consegue
aprisionar. Num dos dasaforismos de Kafka ele afirma: “Uma gaiola saiu
Curioso como a técnica nos transporta a um mundo sem lugares fixos.
Falamos de lugar nenhum, podemos estar em toda parte e, como nada à procura de um pássaro.”55 A gaiola que procura o tempo ficará para
pode ser verificado, tudo o que imaginamos, em princípio, é verdadeiro.51 sempre vazia. Não há gaiolas teóricas onde o tempo caiba.
Resta-nos seus sinais em nós e as narrativas que construímos para
Este é o paradigma, já encontrado em larga escala do homem hiper- tentar dar conta do que acreditamos ser a sua passagem, ao mesmo
moderno, que tende a funcionar de forma reativa e imediata, um homem tempo que construímos um sentido que justifique o nosso existir.
moralmente flexível, apressado sob o domínio do culto da urgência,52 E se Einstein sonhou com o tempo – como supõe Alan Lightman
acelerado,53 completamente preso às exigências do instante, procurando em seu livro sonhos de Einstein –, ele bem pode ter sonhado como cená-
na intensidade do momento uma “eternidade imediata”. rios muito diferentes onde o tempo se manifestaria de múltiplas manei-
Porém é crucial para nossa análise que não percamos de vista que ras. Neste caso, os homens poderiam, cada qual a sua maneira, criar
são os indivíduos – e não o tempo – que se aceleram, que contraem e uma narrativa para suas vidas ao escolher um destes possíveis cenários
comprimem seus desejos e sua liberdade “para responderem às exigên- para o tempo.
cias de uma economia regida pela ditadura dos mercados financeiros e Descrevo aqui dois destes cenários possíveis, como sugestões
de uma sociedade que exige desempenhos cada vez mais dinâmicos e minhas também:
imediatos”.54
Somos, assim, não como vítimas manipuladas mas como cúmpli- 1º cenário: Suponhamos que o tempo não seja uma quantidade mas uma
qualidade. [...] Em um mundo onde o tempo não pode ser medido, não
ces, à nossa maneira e com a nossa feição histórica e em larga escala,
há relógios, calendários, compromissos definidos. Os eventos são desen-
algo bem parecido com o “homem sem qualidades” de Musil. Como cadeados por outros eventos e não pelo tempo [e] [...] os eventos deslizam
ele, o homem hipermoderno é um homem sem atributos, sem a clareza pelo espaço da imaginação, materializados por um olhar, por um desejo.
moral do que pode ser, do que deve ser, que lhe permita sobreviver e se [Neste cenário do tempo] Algumas pessoas tentam quantificar o tempo,
adaptar às exigências da modernidade líquida, que lhe escorre por entre analisar o tempo, dissecar o tempo. Elas são transformadas em pedra.56
os dedos e não lhe deixa rastros a seguir. 2º cenário: Suponhamos que o tempo seja uma revoada de rouxinóis. O
tempo se agita e esvoaça e salta com esses pássaros. Aprisione um desses
rouxinóis sob uma redoma e o tempo para. [...] As crianças que têm agili-
51 Daniel Kehlmann. Fama. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 134.
dade para apanhá-los, não tem vontade de parar o tempo. Para as crianças
52 Nicole Aubert dedica um de seus livros especificamente a este culto da urgência, que é
uma característica central que constitui o modo de ser do homem hipermoderno: Le
o tempo já passa muito devagar. [...] Os mais velhos [por outro lado] dese-
Culte de L’Urgence. La société malade du temps. Paris: Flamarion, 2003. jam desesperadamente parar o tempo, mas estão lentos e fatigados demais
53 Harmut Rosa (1965- ), de uma nova geração de frankfurtianos, cunhou a expressão “ace- para apanhar qualquer pássaro. [...] [Quando um rouxinol é aprisionado]
leração social” para designar esta dinâmica central na nossa vida atual. É um processo os captores se deliciam com o momento assim congelado, mas logo des-
que coloniza todas as esferas desde a econômica, da cultura e da sociedade, ligando-os em cobrem que o rouxinol vai se apagando, seu gorjeio cristalino como uma
uma lógica singular e nova tornada possível pelas modernas tecnologias da informação e
orientadas para os conceitos de “eficiência” e “produtividade”. Ele desenvolve esta sua ideia
em seu livro Accélération – une critique sociale du temps. Paris: la Découverte, 2010.
54 Nicole Aubert. La société hypermoderne, une soiété par excès. In: La Société Hypermo- 55 Franz Kafka. Desaforismos, p. 31.
derne: ruptures et contradictions. Paris: L’Hartmattan, 2010, p. 25. 56 Alan Lightman. Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 119 e sgs.

30 31
flauta se reduz ao silêncio e o momento capturado fica cada vez mais mur-
cho e sem vida.57
Poemas
Por fim fica aqui minha esperança de que o tempo futuro para os Carlos Lima
que estão e ainda ficarão e, principalmente, para os que chegaram agora,
para os que acabaram de desembarcar no nosso mundo, lhes permita
desenvolver um “coração compreensivo”. E descobrirem por si mesmos,
no mundo que ajudarem a criar, o que Hannah deixou anotado no seu
Diário: de que “o amor é um poder e não um sentimento. Apodera-se
do coração, porém não brota do coração. O amor é um poder do uni-
verso, enquanto ele é um universo vivo. É o poder da vida e garante sua
continuação frente à morte.”58 Por isto só ele “supera a morte”, só ele
nos permite superar nossas perdas e construir novas narrativas para o
tempo que nos restar.
E diante dos grandes desafios que, certamente, marcarão seu tempo,
o metrônomo do universo
eles, possam com olhar firme e com este coração que espero, tenha cons- a Dadá
truído para si, continuar acreditando no poema de William Henley, o
mesmo poema que Mandela lia todo dia, para suportar seu cativeiro: É a mulher o metrônomo do universo
Sob seus passos a Terra dança
Não importa se o portão é estreito São eles que regulam a música e o silêncio
Não importa o tamanho do castigo O tempo e o espaço do finito e do infinito
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o senhor de minha alma.59 De volta a solidão essencial somos o que sonhamos
Ela nos faz sonhar o mistério da Rosa
O homem é apenas um eterno fragmento
dessa árvore dos sonhos, árvore do Amor

É a Mulher a verdadeira árvore da vida


Amor, Louco Amor!
O maravilhoso encantamento e o sonho estão aqui

Agora sei o Anjo do Impossível e do Possível estão aqui


O Paraíso terrestre da Aventura está aqui
É a Magia dos seus olhos se abrindo sobre mim.

57 Alan Lightman. Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 169 e sgts.
58 Hannah Arendt. Diário Filosófico 1950-1973. Barcelona: Herder, 2006, p. 362.
59 William Henley (1849-1903), poeta inglês. A tradução aqui apresentada é uma composi-
ção de duas traduções dos sites Recanto das Letras e Casa de Cultura. Creio assim pre-
servar o sentido das palavras de Henley, mas mantendo o impacto emocional em nosso
idioma.

32 33
elegia de portugal pequeno

A Edson França, o Edinho

“Para cá do Marão, mandam os que cá estão!”


miguel torga

Como era verde o vale no meu Jacarepaguá encantado


Ó Mapril! Ó Benigno!
Ó Pureza! Anda já prá dentro!
Gritos de Portugal Pequeno em meus ouvidos
Duas Nações que se mesclam e jogam contra o Sporting ii.
Mas nas peladas de time contra
Eram sempre os de dentro contra os de fora. A crítica das temporalidades contemporâneas:
Lá em cima daquele morro vem descendo um caminhão trabalho, lazer, consumo
Perereca na buzina e Truta na direção
Duca manilha bêbado em seu cavalo mouco
Entregava o leite das suas vacas magras
Prenda Real na sua bêbada loucura roubava o gozo
Mas não conseguia esquecer o seu Portugal – ó raio estupore!
E dizia que toda a sua quimera cabia numa mala de mão.

Rua Professor Henrique Costa cheia de lama e de bosta


Jorge Jacaré, Sérgio Caraca, Bia Cobreiro
Todos da mesma laia e da mesma faia
Mas havia Edinho e sua fabulosa invenção de sortilégios
E as nossas corridas pelas valas de agrião
Para desespero e fúria dos galegos
Depois Dona Nega sua avó
Com suas rezas curava os nossos corpos torturados
E nossos espíritos pelos sonhos amanheciam na paz ressuscitados.

Neném Cabeção, Carlos Cegonha, Nelson Sapo


Embaixo da mangueira abriam a porta do escracho
Heitor com sua bicicleta Peugeot e sua fantástica geografia
E sua máquina onde por 10 centavos víamos Paris em fotografias
E nos barracos das hortas a Mineira ficava nua
Uma vez por mês distribuindo prazer e gonorréia por toda a rua
Noites de lua – luz cigana de tão lusitana!
Enquanto o velho Catarino no balcão do seu armazém
Ensinava a sua filosofia de vida: Ó gajo, anda lá se queres!

Dezembro 2009

34
“Tempo Livre” consumado: indústria cultural,
consumo e novas tecnologias no contexto do
novo espírito do capitalismo
Maria de Fátima Vieira Severiano
Pablo Severiano Benevides

introdução
O presente estudo insere-se na linha de pesquisa Subjetividade e Cultura
do Consumo, cuja proposta é refletir acerca da atual relação do homem
com os signos do consumo e suas repercussões enquanto fonte produ-
tora de novas subjetividades e sociabilidades, com vistas à emancipação
humana. Para além dos objetos pesquisados – objetos paradigmáticos
do consumo: carros, celulares, computadores, cartões de créditos e cor-
pos idealizados (SEVERIANO, 2001; 2006; 2007) – introduzimos neste
estudo, como categoria fundamental de investigação, o “tempo”, consi-
derando-o um dos mais valiosos e raros objetos de consumo da contem-
poraneidade.
Os estudos acerca da Cultura do Consumo buscam contribuir para
um saber psicológico crítico capaz de questionar o atual fascínio exer-
cido pelos objetos de consumo por sobre os indivíduos, assim como as
implicações psicossociais decorrentes de um modo de subjetivação fun-
dado predominantemente sob a égide do mercado, o qual subordina o
desejo aos seus fins. Ressaltamos que o termo “Sociedade de Consumo”

37
não significa o estabelecimento de um mundo de abundância (em que Portanto, à semelhança da categoria de “consumo”, e tendo esta
todos consomem), mas um mundo em que o consumo se estabelece como seu maior propulsor, a categoria de “tempo livre” expande-se,
como fonte de referência identitária, mesmo naqueles que não podem significando e reforçando a ideia de que vivemos em uma sociedade
comprar, uma vez que também consumimos imagens, lugares, tempos, democrática, libertária e plural. Na contemporaneidade é corrente a
pessoas e estilos de vida que, por sua vez, significam e prescrevem deter- concepção – principalmente advinda de teóricos que tematizam o ócio,
minados ideais, modos de ser, estar, amar e sentir. a exemplo de De Masi (2000) – segundo a qual o tempo livre predomina
As formas de consumo na contemporaneidade expressam-se pre- de forma marcante sobre o tempo de trabalho, tornando-se a categoria
ponderantemente segundo a lógica do valor sígnico (BAUDRILLARD, central no atual ordenamento subjetivo e social dos indivíduos.
1976), orientada por um sistema distintivo de imagens de marca ditado O atual argumento da suposta centralidade do tempo livre – eco das
pela moda, que tem por função atribuir significados ao indivíduo, de inúmeras predições acerca do “fim do trabalho” herdadas do século XX
acordo com os atributos subjetivos e de prestígio social agregados ao (ANTUNES, 1998) – aponta, principalmente, para as “facilidades” auferi-
produto. Neste caso, o objeto de consumo deixa de ser a solução para das pelo desenvolvimento exponencial das novas tecnologias informa-
um problema prático (valor de uso) para ser concebido em seus aspec- tizadas, para as benesses propiciadas pelo incremento vertiginoso do
tos subjetivos, passando a ser a “solução de um conflito social ou psi- consumo e para as “múltiplas” ofertas de lazer e entretenimento veicu-
cológico” (BAUDRILLARD, 1993) – o que nos indica ser o consumo uma
ladas pela indústria cultural. Sob os auspícios dessas três instâncias – as
categoria central no atual ordenamento psíquico e social dos indivíduos.
novas tecnologias, o consumo e a indústria cultural –, a sociedade teria
Esta utilização da lógica do desejo para fins mercantis constitui-
se tornado mais libertária, plural e democrática. O tempo livre estaria
se, de modo significativo, objeto de nossa preocupação na medida em
ao alcance de todos!
que isto escamoteia a atual supremacia da esfera econômica – lógica da
Ressaltamos de início que tematizar o tempo no contexto da atual
mercadoria – que, travestida de cultura, liberdade e pluralidade, apre-
Cultura do Consumo significa primeiramente considerá-lo submetido
senta esta sociedade como a realização da utopia: um mundo dadivoso,
às leis do valor de troca à semelhança de qualquer objeto de consumo.
democrático e feliz, graças às ‘benesses’ auferidas pelo consumo. A con-
Isto porque o tempo – já considerado um valioso bem monetário desde
sequência disto é precisamente a elisão da reflexão crítica sobre as novas
formas de controle social provenientes, justamente, da racionalidade o final do séc. XVIII, quando Benjamin Franklin proclama: “Tempo é
instrumental mercantil. dinheiro!” – atinge seu ápice de valorização nas sociedades atuais, tor-
A expansão desta lógica do mercado para todas as esferas do mundo nando-se a mercadoria mais rara e fugidia, na medida em que nem a
da vida produz um fenômeno muito particular na contemporaneidade: automatização das máquinas, nem as telecomunicações, tampouco o
a instrumentalização do tempo liberado do trabalho e sua conversão advento das novas tecnologias – as infovias, a robótica e as redes sociais
em valioso bem de consumo. Isto será realizado a partir de duas estra- informatizadas – parecem ter sido capazes de torná-lo abundante! Para-
tégias: primeiramente, a transformação do tempo livre em lazer pro- doxo fundamental da vida hipermoderna, em que o homem, agora
gramado, facilitado principalmente pela indústria cultural e do turismo; praticamente um “Deus de prótese”, como vaticinou Freud (1980) em
em segundo lugar, a conversão da própria atividade do consumo em “O Mal-Estar na Civilização”, é ainda incapaz de domá-lo ao seu favor,
divertimento, cujo locus privilegiado é o shopping party – “uma ocupa- principalmente no que concerne ao gozo de um verdadeiro tempo livre,
ção lúdica, de divertimento para todos” (Lipovetsky, 2007, p. 66). Tem- emancipado das amarras da lógica produtivista.
se, portanto, uma dupla modalidade de consumo: consumo do lazer Tais reflexões têm por referencial teórico de base os teóricos da
e consumo enquanto lazer, elaborado a partir de múltiplas estratégias Escola de Frankfurt, em especial Adorno, Horkheimer e Marcuse, cuja
comerciais, sob a aparência de recreação e liberdade. proposta se ancora fundamentalmente na exigência de uma individuali-

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dade antônoma, capaz de refletir sobre as próprias vicissitudes da razão Interessa-nos principalmente refletir sobre o significado da atual
no mundo moderno, com atenção especial a certas formas de condução proeminência do chamado “tempo livre” nas sociedades ditas pós-
de satisfação espontânea do desejo (aparentemente progressistas e libe- modernas como categoria central no atual ordenamento social, em pos-
rais) experimentadas no decorrer do “tempo livre”, mas que, ao elidirem sível “substituição” à importância da categoria de “tempo do trabalho”,
o componente reflexivo da razão em prol de soluções imediatas e regres- vigente na Modernidade.
sivas propostas pela publicidade e indústria cultural, nada mais fazem Ordinariamente, a categoria de “tempo livre” aponta para aquele
que remeter o indivíduo a situações de menoridade. Para os frankfurtia- tempo disponível ao homem após as suas atividades laborais. Ou seja,
nos, tal como em Kant (1985), a emancipação do indivíduo passa, neces- trata-se de um tempo de não trabalho no qual o homem estaria liberto
sariamente, pelo seu “esclarecimento” (Aufklärung), que significa: dos constrangimentos do tempo de trabalho, seja para dedicar-se a
outras atividades não laborais, seja para o descanso. De acordo com o
[...] a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado.
dicionário sociológico Wörterbuch der Soziologie, há várias definições
A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a
direção de outro indivíduo. [...] Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de de “tempo livre”, dentre elas: “mero tempo de não trabalho; tempo para
teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (p. 100). restauração da força de trabalho; espaço para formas de descontração
e de divertimento e espaço relacional destinado a fins não ‘objetivos’”.
Ora, vivemos, justamente, na era da tutela dos “personals”: perso- (ADORNO, 1995, p. 244). O importante, no momento, a ressaltar é que
nal training, personal friend, personal trip, personal stylist, personal love e segundo as conceituações acima, neste tempo o homem não estaria sob
muitos outros “especialistas pessoais” na programação do tempo livre; a o domínio da lógica produtivista e do lucro.
exemplo dos gurus da “administração do tempo” David Cottrell e Mark No interior deste “tempo livre”, dentre outras categorias, merece des-
Layton (2000, citado por HONORÉ, 2004) que publicaram um livro inti- taque o chamado “tempo de ócio” e o “tempo do lazer”. A etimologia da
tulado: 175 Maneiras de fazer mais coisas em menos tempo. palavra “ócio” é derivada do latim otium, que remete à ideia de repouso,
Diante do exposto, questionamos: quais as implicações psicosso- contemplação, “nada a fazer”; enquanto que o termo “lazer”, também
ciais da atual proeminência do “tempo livre” como categoria central no derivado do latim licere, significa “ser permitido”, “poder”, ligando-se à
atual ordenamento subjetivo e social dos indivíduos e quais as estraté- ideia de “liberdade de fazer” (PADILHA, 2000, p. 58). Assim, para auto-
gias de interseções com o “tempo do trabalho”, no contexto da Cultura res como Marcelino (1990) e Ribeiro (1986), em um tempo liberado do
do Consumo? trabalho, teríamos a atividade vinculada a um tempo de lazer, enquanto
Nossa hipótese é a de que a atual proeminência do chamado tempo que o repouso e a contemplação estariam relacionados a um tempo de
livre sobre o tempo do trabalho, enquanto um tempo social forte, ócio. Isto pressupõe uma possibilidade de escolha, por parte do indi-
somente ocorre porque ele se tornou um tempo de produção, viabili- víduo, entre entregar-se ao ócio ou exercer atividades de lazer, ambas
zado pelas novas tecnologias, pela indústria cultural e pelo consumo. dissociadas do tempo de produção.
Não visa, portanto, à emancipação humana, mas à expansão do mercado. Entretanto, tal esquematismo formal não nos parece corresponder
à realidade vigente no capitalismo tardio. Adorno (1995), em seu artigo
tempo livre, tempo do ócio e tempo do lazer intitulado “Tempo livre”, é veemente ao afirmar que o termo “tempo
livre” não pode ser formulado como uma “generalidade abstrata”,
O tempo e suas formas de organização e medição marcaram a história estando “determinado desde fora” por um “tempo não livre”, aquele
da humanidade, expressando tanto os modos, hábitos e estilos de vida preenchido pelo trabalho. “O tempo livre é acorrentado ao seu oposto”
dos grupos sociais, como a própria experiência subjetiva do sujeito no (ADORNO, 1995, p. 70), tornando-se tão abstrato e alheio ao homem,
uso, controle e domínio do seu próprio tempo. quanto o tempo de trabalho.

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Portanto, quer denominemos “ócio” ou “lazer”, segundo Adorno instâncias. Vejamos suas atuais funções e a concepção de alguns teóricos
(1995), o tempo liberado do trabalho encontra-se atualmente sob o “fas- críticos acerca delas.
cínio” do poder do capital, em relação ao qual não teríamos escolhas. A tecnologia teria por função economizar tempo aos que dela se uti-
Para o autor, as pessoas, “nem em seu trabalho, nem em sua consciência lizam e se fazem pagar em função disso. Os objetos técnicos fariam ren-
dispõem de si mesmas com real liberdade” (p. 24). Isto porque no decor- der mais tempo livre. Portanto, o exponencial avanço tecnológico con-
rer do século XX ocorreu uma migração da lógica mercantil, próprio da temporâneo teria alargado o tempo livre, propiciando múltiplas opções
esfera do trabalho, também para a esfera da cultural e da vida cotidiana. de ocupação, predominantemente vinculadas ao consumo.
A compreensão desse deslocamento de poder do âmbito do traba- Para Adorno, Horkheimer e Marcuse, a técnica não pode ser pen-
lho para o mundo da vida foi pioneiramente tematizada pelos frank- sada como um conceito absoluto, independente de sua condição histó-
furtianos, em especial Adorno & Horkheimer (1991) e Marcuse (1982), rica e dos fins a que ela serve. Marcuse é veemente em sua assertiva de
em cujas análises acerca do conceito de dominação permitiram, àquela que a tecnologia é, antes de tudo, concebida como um Projekt, ou seja,
época, prognosticar os fenômenos contemporâneos implicados nas nela são projetados os interesses dominantes da sociedade e suas inten-
novas formas de controle social. A análise frankfurtiana, em especial ções com relação aos homens e às coisas. Portanto, no modo de produ-
a de Marcuse (1982), evidenciou, já na década dos anos 60, a ocorrên- ção capitalista, a racionalidade da técnica é identificada com a própria
cia de um duplo deslocamento nas formas de controle: do econômico racionalidade da dominação, na medida em que o enorme poder dela
para o cultural, assim como das formas explícitas e concretas para as derivada sempre representou o poder dos grupos economicamente mais
imperceptíveis e simbólicas. Isto quer dizer que, para além da explo- fortes sobre a sociedade. Vejamos o que nos diz Marcuse (1982) a este
ração visível das classes operárias da época do capitalismo industrial, respeito:
esses teóricos denunciaram que a dominação extrapolou os muros das
A racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política. [...]
fábricas, passando a abranger a esfera privada, desta feita de forma sutil, O aparato técnico de produção e distribuição não funciona como a soma
através da manipulação da própria subjetividade humana e da gratifica- total de meros instrumentos que possam ser isolados de seus efeitos
ção dos desejos, via indústria cultural e do entretenimento. Para Adorno sociais e políticos, mas como um sistema que determina, a priori, tanto
& Horkheimer (1991): o produto do aparato como as operações de sua manutenção e amplia-
ção. Nessa sociedade, o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no
A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é quanto determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes social-
procurada por quem quer escapar do processo de trabalho mecanizado, mente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais
para se pôr novamente em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo [...] A tecnologia serve para instituir formas novas, mais eficazes e mais
tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer agradáveis de controle social e coesão social. (p. 14-19)
e sobre sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das
mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais receber No que concerne ao consumo, como já referido, este se apresenta
outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo do traba- como principal atividade do tempo livre, transformado seja em lazer
lho. (p. 128) programado, seja em “compra hedônica” (LIPOVETSKY, 2007). Trata-se
da ordenação do consumo do tempo “improdutivo”, aquele liberado do
indústria cultural, consumo e novas tecnologias trabalho, para torná-lo um “tempo de produção” exatamente no coração
do tempo livre, a partir do que Baudrillard (2008) denominou: 1. Do
A invasão do tempo livre pela lógica produtivista e instrumental da consumo de mercadorias – da esfera do valor de câmbio, das trocas eco-
indústria cultural, do consumo e das novas tecnologias ocorre mediante nômicas e 2. Do consumo de signos – da esfera do valor de distinção, de
um dado ordenamento do tempo advindo, principalmente, destas três

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status e de reconhecimento social, em que atributos tais como liberdade, constitui mais uma estratégia do capital para expandir os lucros e minar
potência, reconhecimento social e afetivo, sensualidade, singularidade, resistências. Isto porque tal deslocamento não implica em ausência de
felicidade, dentre outros, são imputados aos produtos, como se emanas- controle, mas apenas expressa a expansão da lógica instrumental e pro-
sem naturalmente do próprio objeto – uma expressão contemporânea dutivista para todas as esferas do mundo de vida, viabilizada justamente
do fetichismo da mercadoria. pelas novas tecnologias informatizadas, pelo consumo enquanto produ-
À época de Marx (1984), o fetichismo da mercadoria consistia tor de identidades e pela Indústria Cultural, desdobrada em indústria da
numa espécie de inversão das relações reais entre os homens, as quais beleza, do lazer e do turismo.
ficam ocultas, sob a forma da mercadoria. Esta, em sua aparência, passa Neste sentido, se nos dois últimos séculos era o domínio do tempo
a apresentar apenas uma relação entre coisas, quando na realidade, nela de trabalho dos outros que propiciava aos capitalistas o poder inicial de
estão representadas as relações entre os trabalhadores e o dispêndio da se apropriar dos lucros para si, acresce-se hoje uma nova fonte privile-
força humana de trabalho; ou seja, características sociais são apresenta- giada de poder: o domínio do tempo liberado do trabalho dos outros,
das como características materiais, reduzidas a um único denominador via indústria do consumo e do lazer programado, transformado em
comum que é o dinheiro – o valor de troca da mercadoria. Entretanto, potente força produtiva.
nas sociedades contemporâneas, não é apenas na esfera do trabalho Trata-se da atual versão da “modernidade líquida” descrita por
que incide o fetichismo da mercadoria. Ou melhor, o fetichismo da Bauman (2008), segundo a qual se assistiria a uma espécie de rompi-
mercadoria não oculta mais unicamente as relações de produção, mas mento entre capital e trabalho, na medida em que a reprodução do capi-
expande-se para a esfera da cultura e da vida cotidiana, passando tam- tal não se daria mais unicamente na esfera do trabalho. Este agora viaja-
bém a alienar os próprios ideais e desejos dos indivíduos. A isto, deno- ria “leve”, tornando-se “extraterritorial, desembaraçado e desencaixado,
minamos duplo fetichismo (SEVERIANO, 2001), em que estão alienadas numa extensão sem precedentes [...] O capital cortou sua dependência
na mercadoria não apenas as relações sociais de produção, mas a própria do trabalho por meio de uma nova liberdade de movimentos jamais
subjetividade humana, na medida em que atualmente são os próprios sonhada” (p. 37-38).
objetos e serviços de consumo que fornecem significados ao homem. Tal “liberdade”, entretanto, requer um exame mais aprofundado,
“Diz-me com o que andas e te direi quem és” – proclama um outdoor uma vez que isto, em nosso entendimento, não significa libertação do
numa metrópole brasileira. trabalho das amarras do capital, mas uma extrapolação de suas fronteiras.
Por fim, o termo indústria cultural foi cunhado por Adorno &
Horkheimer (1991) a fim de substituir a expressão “cultura de massa” e (im)possibilidades de um tempo livre
denunciar o caráter compulsório da mesma. Constitui-se em um meca- no capitalismo flexível
nismo dos mais eficazes no controle do tempo livre na medida em que
transforma bens culturais e simbólicos em mercadorias. É organizada A partir da década de 80, no chamado capitalismo flexível, a antiga
de forma racional e instrumental a partir do alto, segundo interesses cadeia de montagem fordista é paulatinamente substituída pela toyoti-
do capital, entretanto se apresenta enquanto emanação dos desejos dos zação. Desenvolvida a partir dos recursos da informática, da microele-
consumidores. Também organiza formas de ser, pensar e sentir no inte- trônica e da robótica, esta nova reestruturação na divisão do trabalho
rior do tempo livre, produzindo subjetividades homogeneizadas nos passa a adequar a oferta de bens de consumo a nichos muito específicos,
múltiplos segmentos e estilos de vida, sob a égide do mercado. produzindo mercadorias personalizadas em curtos espaços de tempo e
Em vista do exposto, consideramos que o deslocamento das tem- sem perder o nível de produtividade fordista (ORTIZ, 1994). Esta adap-
poralidades contemporâneas do tempo de trabalho para o tempo livre tação muito rápida no atendimento das variações da demanda da clien-

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tela tornou o consumo uma força ainda mais imperiosa na cadeia de escritório que para os presentes [...] Os trabalhadores assim, trocam uma
produção, inaugurando uma “nova ética” do trabalho: não mais aquela forma de submissão ao poder – cara a cara – por outra, eletrônica [...] A
“lógica métrica” do tempo de Daniel Bell passou do relógio de ponto para
fundada na ética puritana, racional, prudente e ascética do capitalismo
a tela do computador. O trabalho é fisicamente descentralizado, o poder
industrial, mas uma outra, hedonista e hierárquica, voltada para o dito sobre o trabalhador mais direto. (SENNET, 2010, p. 68-67)
consumo individualizado, diferenciado e segmentado, em que o prazer
de consumir passou a constituir-se em um fim em si mesmo, tornando- Portanto, a atual dominância do tempo livre e a redução da jor-
se uma prática imperativa do tempo do lazer. nada de trabalho somente são possíveis porque se tornaram inócuas
Isto se tornou um dispositivo fundamental na conquista do tempo para o desenvolvimento do capital. A flexibilização libertou os controles
livre pela lógica do capital, dissipando as fronteiras entre “tempo do tra- da medição do tempo de trabalho, produzindo tanto um incremento
balho” e “tempo livre”, entretanto, notoriamente a favor do primeiro. Se do consumo no lazer quanto a elevação do consumo do lazer, trans-
no tempo do trabalho a racionalidade é instrumental, com fins de efi- formando toda a esfera do chamado tempo livre em força produtiva e
cácia e realização do capital, no atual “tempo livre”, o apelo ao desejo desejo por posses.
e aos ideais se faz constante, sendo disseminado em larga escala pela Esta ânsia de possessão do tempo e sua rigorosa marcação é justa-
publicidade. mente o oposto do que Baudrillard (2007) considera o requisito para um
Essa atmosfera de fascínio que permeia o consumo, e mais nitida- verdadeiro tempo livre, que seria o desapossar-se dele, o dar e disponibi-
mente o consumo do lazer, oblitera o fato de que produção e consumo lizar sem medição. Um tempo em que se pode perder tempo. Disto, Khel
fazem parte de uma mesma totalidade indissociável, de um mesmo sis- (2009) nos fala com muita propriedade:
tema – o capitalista. O fato de o capital inserir-se no tempo livre não De todas as experiências subjetivas que a história deixou para trás, talvez a
significa que ele libertou-se; significa, sim, que ele subordinou o tempo mais perdida, para o sujeito contemporâneo, seja a do abandono da mente
livre à lógica do lucro e da produtividade. O capital “viaja leve” para à lenta passagem das horas: o tempo do devaneio, do ócio prazeroso, dedi-
mais sutilmente inserir-se definitivamente no tempo livre, diluindo as cado a contar e a rememorar histórias. (p. 164)
antigas formas de divisão do trabalho e inserindo o capital agora tam- Adorno aponta para uma outra possibilidade de interseção entre
bém na esfera privada – no âmago do desejo, da fantasia e dos ideais. tempo de trabalho e tempo livre, quando admite, inclusive exemplifi-
A noção de flexitempo descrita por Sennet (2010) é bastante escla- cando com a sua própria atividade intelectual de professor, a possibili-
recedora a este respeito, visto que explicita as novas estratégias de domi- dade de existência de um trabalho criativo e reflexivo que não estaria em
nação vigentes. Trata-se de uma nova forma de organização do tempo estrita oposição ao tempo livre, mas que se distinguiria notoriamente do
no chamado capitalismo flexível em que os turnos fixos são substituídos que à época se denominava “hobby”. A este respeito Adorno (1995) afirma:
de várias maneiras por turnos flexíveis: desde a escolha de horários de
trabalho ao longo da semana, a compressão do tempo de trabalho em Aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim,
sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a ideia de que se tra-
mais horas diárias e em menos dias, até o trabalhar em casa. Apesar de tasse de “hobbies”, portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente
tal organização ter uma aparência de liberação do tempo de trabalho, só para matar o tempo [...] Compor música, escutar música, ler concentra-
subvertendo rotinas e propiciando opções de escolhas, o referido autor damente, são momentos integrais da minha existência, a palavra ‘hobby’
denuncia esta forma de organização como um engodo: seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção
filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos
Um trabalhador em flexitempo controla o local do trabalho, mas não até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo
adquire maior controle sobre o processo de trabalho em si [...] A super- livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. (p. 72)
visão do trabalho muitas vezes é na verdade maior para os ausentes do

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Aqui ambas as temporalidades estariam mescladas: a gratificação estratégias de dominação no contexto
de realizações pessoais no próprio interior do trabalho confundir-se-ia do “novo espírito do capitalismo”
com o exercício de atividades fora dele, constituindo-se momentos inte-
grais da vida (ADORNO, 1995, p. 72). As novas estratégias de dominação do capitalismo contemporâneo e
Adorno (1995), ao comparar o tempo livre com o tempo do ócio, seus mecanismos de controle transmutam-se produzindo um agencia-
afirma que este último, tradicionalmente, sempre foi concebido como: mento empresarial de diversos setores da vida social e privada, ou seja,
“um privilégio de uma vida folgada e, portanto, qualitativamente dis- uma nova mescla entre vida pessoal e tempo de trabalho deixando, por
tinto e muito mais grato, mesmo desde o ponto de vista do conteúdo” vezes, em estado de completa desorientação a crítica social e suas tradi-
(p. 70). Neste caso, a contemplação, a fantasia, o descanso e a reflexão cionais formas de resistência.
criativa sobre a própria vida e a realidade teriam proeminência, estando Neste sentido, a obra “O novo espírito do capitalismo”, de Boltanski
este tempo desacorrentado das amarras do capital. e Chiapello (1999), constitui-se em uma análise sistemática dos diver-
É neste sentido que podemos entender a afirmação de Adorno sos deslocamentos operados pelo atual “capitalismo conexionista” em
(1995), segundo a qual: “Toda mescla, aliás, toda falta de distinção função dos principais objetos de denúncia das críticas que lhe foram
nítida, inequívoca, torna-se suspeita ao espírito dominante. Essa rígida feitas no decorrer dos últimos dois séculos. Atendo-se às duas princi-
divisão da vida em duas metades enaltece a coisificação que entrementes pais modalidades de críticas empreendidas ao capitalismo – a crítica
subjugou quase completamente o tempo livre” (p. 73). estética e a crítica social – esses autores nos fornecem preciosas pistas
Guattari (1981) também já apontara para as novas formas de domi- para entendermos a diluição das fronteiras que distinguem tempo livre
nação operantes na cisão da vida, salientando desta feita a separação e tempo de trabalho, como signo de uma captura dos principais objetos
operante nas “sociedades capitalísticas” entre economia desejante e eco- de reivindicação, especialmente, da crítica estética.
nomia laboral: Ao esboçarem uma diferença entre “crítica” e “indignação”, Bol-
tanski e Chiapello (1999) argumentam que a crítica pode funcionar
Cortar o desejo do trabalho: eis o imperativo primeiro do capital. Separar apenas em um nível secundário e teórico, que intenta traduzir as indig-
a economia política da economia desejante: eis a missão dos teóricos que
nações, os “impulsos emotivos” (p. 72), referentes a uma série de valo-
se colocam a seu serviço. O trabalho e o desejo estão em contradição ape-
nas no quadro de relações de produção, de relações sociais e de relações res passíveis de serem universalizados e justificados. Contudo, “mesmo
familiares bem definidas: as do capitalismo e do socialismo burocrático. quando as forças críticas parecem em total decomposição, a capacidade
(p. 78) de indignação pode permanecer intacta” (idem). Desta forma, os auto-
res entendem que as fontes de indignação em relação ao capitalismo
Entretanto, observamos que as estratégias que entram em ação no
permanecem relativamente semelhantes nos últimos dois séculos e pro-
contexto do capitalismo contemporâneo agem justamente no sentido
curam mapear seus principais objetos de denúncia, quais sejam:
de diluir esta divisão da vida em duas metades. Tempo de trabalho e
tempo livre se mesclam e se fluidificam no capitalismo dito flexível. Esta 1- O desencanto e inautenticidade relativos ao tipo de vida associados ao
mescla hoje, porém, longe de realizar o ideal adorniano, reafirma sua capitalismo;
suspeita: “a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à 2- As formas de opressão que impedem o exercício das potencialidades e
de seu próprio conceito, tornando-se paródia deste. Nele se prolonga a possibilidades de emancipação humanas;
não liberdade” (ADORNO, 1995, p. 71).
3- A miséria de boa parte da população articulada à desigualdade social em
uma amplitute cada vez mais assombrosa;

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4- O oportunismo e egoísmo que favorecem a interesses individuais e parti- sua reconfiguração em políticas públicas que, em vez de denunciarem
culares e se sobrepõem ao bem-estar da maioria da população. a exploração pela via do trabalho e a dominação cultural, restringem-
se a reivindicarem – como “palavra de ordem” – a inclusão dos excluí-
Boltanski e Chiapello (1999) sugerem que a denúncia ao desen-
dos a este sistema; incorrendo muitas vezes em formas de pacificação
canto, inautenticidade e opressão – mencionadas nos dois primeiros
e esmaecimento da tensão social necessária às reais transformações do
tópicos – constituam o que denominam “crítica estética” ao capitalismo,
sistema. Quanto à crítica estética, esta foi vampirizada, endogeneizada
ao passo que a denúncia à miséria, à desigualdade, ao oportunismo e ao
e capturada – em parte pelas benesses propiciadas pela expansão do
egoísmo referidos nos últimos tópicos perfaçam elementos estratégicos
consumo nas diversas modalidades já apontadas –, resultando em um
para uma “crítica social”.
suposto atendimento das demandas por autonomia, criatividade, auten-
Estas denúncias, todavia, não engendraram indignações passíveis
ticidade e libertação – os quatro pilares básicos das reivindicações da
de serem articuladas por uma crítica coesa. Neste sentido, mesmo que
crítica estética (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999).
em determinados contextos essas críticas possam apresentar interseções
É neste sentido que Boltanski e Chiapello (1999) afirmam que o
e aparecerem de modo articulado – como no caso do movimento de
capitalismo assume a crítica estética e busca dar-lhe voz, de modo que
maio de 68, conforme mencionam os autores –, sob uma série de aspec-
seus “pilares básicos” passam a funcionar como as novas bandeiras do
tos podem migrar para objetivos distintos e, dessa forma, divergirem capitalismo e as novas ferramentas com as quais serão arquitetadas as
significamente entre si. novas estratégias de adesão e de justificação deste “novo espírito” dos
No caso da crítica estética, na medida em que denuncia as formas de tempos atuais.
padronização, homogeneização e repressão das potencialidades huma- No que diz respeito à reivindicação por “libertação”, os autores
nas por parte do capitalismo – e que possui, na figura do intelectual, do apontam que na esfera do trabalho, o contrato de trabalho constitui fer-
artista e do boêmio sua imagem prototípica e suas principais instâncias ramenta importante na separação entre a força de trabalho e a pessoa
de agenciamento – apresenta como corolário uma tendência a articular- do trabalhador: trata-se de um dispositivo jurídico possibilitador de um
se ao individualismo e ao neoliberalismo. Já a crítica social, na medida “desenraizamento voluntário” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999, p. 425) e
em que denuncia a miséria, as desigualdades sociais e a exploração pela garantidor de parte das demandas de liberação, contexto das socieda-
via do trabalho – tendo como encarnação mais evidente a figura do mili- des industriais (segunda metade do século XIX). Contudo, em tempos
tante partidário e do sindicalista – encontra-se tendente a articular-se às de “capitalismo conexionista”, tal desenraizamento tem por corolário
temáticas de inspiração cristã e/ou às mais diversas micropolíticas opres- a perda de uma série de proteções e garantias que seriam requeridas
soras e até fascistas, devido aos constantes clamores contra o egoísmo precisamente para que a vida fora do trabalho pudesse ser condizente
e os interesses particulares. Assim sendo, Boltanski e Chiapello (1999) com o que se reivindicava mediante a noção de “libertação”. Isto porque,
findam por concluir que a crítica ao capitalismo encontra-se em estado em face dos efeitos da concorrência cada vez mais vorazes e velozes, é
de desorientação e, por vezes, de autodescrédito precisamente porque demandado todo um tempo destinado à conquista de novas relações,
há, pelo menos em boa parte de suas formulações, uma “ambiguidade novos contatos e novas conexões, que, por sua vez, invadem tudo aquilo
intrínseca da crítica que sempre compartilha ‘alguma coisa’ com aquilo que constituía o que poderia caracterizar-se como “libertação” neste
que ela procura criticar” (p. 76). tempo (livre) que distingue a pessoa do trabalhador, do emprego de sua
No que concerne à crítica social, esta parece ter sido confundida força de trabalho.
e convertida em dispositivo inoperante pelo novo espírito do capita- Ademais, num mundo conexionista, onde está claro que o projeto no
lismo (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999); o que percebemos a partir de qual os atores conseguiram se integrar deve necessariamente terminar, o

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tempo dedicado à busca ansiosa de novos contratos e ao estabelecimento logia que funciona nas práticas de recursos humanos – como referiu
de novas conexões se sobrepõe ao tempo de trabalho propriamente dito, Orgogozo (1991), considerando-a a arte de sugar até a última gota –,
invadindo os momentos que poderiam ser dedicados a outras atividades.
tendo em vista o discurso de aparentemente humanizar as relações no
(BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999, p. 430-431)
contexto das empresas, revelando sua verdade exatamente em suas fina-
A “mescla” entre as temporalidades aqui se faz evidente e “natu- lidades últimas de empresariar as relações humanas.
ralmente” necessária. Portanto, de modo aparentemente paradoxal, será Dessa forma, temos realizada por outras vias, a indistinção entre
precisamente o modo de incorporação das reivindicações da crítica trabalho e vida autêntica que caracterizava o trabalho artístico e o traba-
estética por autenticidade, agenciado pelos dispositivos empresariais, lho intelectual, agenciadores da crítica estética. Reinscritas em práticas
que irá realizar a mescla entre a pessoa do trabalhador e sua força de empresariais; apoiadas em toda uma gramática da autenticidade e liber-
trabalho. Temos como um dos principais pontos de referência e um dos tação que aponta o aparente enfraquecimento das distinções hierárqui-
principais signos desta reapropriação exatamente o que Deleuze (1992), cas; veiculadas por coaches propagadores de visões de mundo dinâmicas
em seu texto “Post Scriptum: sobre as sociedades de controle”, enten- e entusiastas; praticando a arte da piscadela com os discursos “humanis-
deu como sendo a substituição da fábrica pela empresa como Instituição tas” e/ou que fazem apologia à reinvenção, à mudança, ao nomadismo
emblemática das sociedades de controle – tão emblemática que pode- e à fluidez identitária e, por fim, muito habilidosas em moverem-se por
mos referir à aparição de determinadas ações educacionais e sociais em entre as ciladas do “politicamente correto”, as novas estratégias de domi-
termos de um “empresariamento” da escola, da universidade e da socie- nação do capitalismo transmutam-se e disseminam-se por vias antes
dade (Gadelha, 2010). insuspeitas, requerendo não apenas mão de obra, mas todo o ser em obra.
Devemos, portanto, considerar esse agenciamento empresarial de A taylorização tradicional do trabalho consistia certamente em tratar os
diversos setores da vida social uma nova e eficaz forma de dominação seres humanos como máquinas, mas não possibilitava pôr diretamente
e invasão da lógica mercantil para as demais esferas da vida, na medida a serviço da busca do lucro as propriedades mais específicas dos seres
humanos: afeto, senso moral, honra. Inversamente, os novos dispositivos
em que entendemos que isto significa uma mercantilização de “bens empresariais, que exigem engajamento mais completo e se apoiam numa
que até então haviam ficado fora do mercado” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, ergonomia mais sofisticada, que integra as contribuições da psicologia
1999, p. 444). pós-behaviorista e das ciências cognitivas, precisamente por serem mais
Sob que roupagens, contudo, aparecerá essa mercantilização em humanos, também penetram mais profundamente na interioridade das
pessoas esperando-se que elas “se doem” ao trabalho, como se diz, e pos-
suas estratégias de adesão e convencimento da lógica empresarial neo-
sibilitem a instrumentalização e a mercadização dos homens naquilo que
capitalista? Isto aparecerá, portanto, como “mercantilização de certas eles têm de propriamente humano (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 1999, p. 471).
qualidades dos seres humanos com o intuito de ‘humanizar’ os serviços,
especialmente os pessoais, bem como as relações de trabalho” (idem). As formas de captura do “tempo livre” a que nos propomos inves-
Desta forma, uma série de “qualidades interacionais”, que não estavam tigar mais detalhadamente nesse estudo consistem, portanto, numa das
na estrita definição que caracterizam o trabalho, entram como elemen- principais estratégias do novo espírito do capitalismo em suas práticas
tos significativos a serem levados em conta nas prestações de serviços e de incorporação, endogeneização e captura, tendo nos novos disposi-
nas transações comerciais. tivos empresariais uma das ferramentas mais poderosas de cooptação,
Deste modo, o outro lado da moeda da mescla entre tempo livre legitimada pelas reivindicações por “autenticidade” e “libertação” –
e tempo de trabalho será precisamente a mistura entre características paródia mercantilizada da crítica estética.
humanas direcionadas ao trabalho e características humanas não dire- As formas de prolongamento da não liberdade e as estratégias de
cionadas ao trabalho (tidas como as mais autênticas). Assim, a Psico- invasão da lógica produtivista em todas as esferas do mundo da vida

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podem ser observadas em vários níveis do nosso cotidiano. Apresen- nasse também a relação entre pessoas, tornando-as também descartá-
taremos abaixo o que consideramos ser as quatro principais formas de veis e efêmeras.
aparição dessas estratégias. Por fim, há também uma quarta estratégia, que diz respeito à inten-
A primeira estratégia de invasão, em sua forma mais direta, ocorre sificação da lógica produtivista no interior do trabalho intelectual – um
quando as atividades laborais se estendem sorrateiramente, via novas campo tradicionalmente privilegiado pela capacidade de impor um
tecnologias, seja através das redes informatizadas, seja através dos celu- pensamento libertário e por uma tensão crítica à colonização da racio-
lares sempre antenados, para o âmbito, não apenas dos lares, mas em nalidade mercantil. É o que observamos de perto com a invasão vertigi-
aeroportos, consultórios e áreas de lazer; “disponibilizando” o trabalha- nosa que hoje presenciamos da ideologia de mercado na academia, no
dor praticamente 24 horas por dia. Trata-se de “servidão voluntária” (LA âmago da atividade intelectual de docentes e discentes, em especial nas
BOÉTIE, 1999) do homem no dispêndio de seu tempo livre com ocupa- pós-graduações, com sempre mais trabalho, apesar de todo o aparato
ções de trabalhos extenuantes, via as novas coleiras eletrônicas: celulares tecnológico hoje disponível (ou, justamente, por causa dele!), impli-
e computadores. cando a redução de prazos em todos os níveis: da entrega de relatórios
A segunda estratégia relaciona-se com as atividades de consumo ao encurtamento do tempo na formação de mestres e doutores. Trata-se
de bens e serviços que ocupam a quase totalidade do “tempo livre” dos da lógica produtivista no âmago das universidades.
contemporâneos, orquestrada pela indústria cultural, pela indústria da
Vejamos um trecho de “Reféns da produtividade” sobre produção do
beleza e da saúde, do turismo, do lazer, dentre outras.
conhecimento, saúde dos pesquisadores e intensificação do trabalho na
Aqui, as estratégias cada vez mais se sofisticam, na medida em que
pós-graduação de Lucídio Bianchetti e Ana Maria Netto Machado (2010):
até mesmo o ato de ‘ir às compras’ não requer mais qualquer desloca-
mento; as compras vêm até você, queira ou não queira através da inva- Na PG, a redução de prazos implicou justamente um prolongamento e
são computadorizada dos mais recentes sites de “compras coletivas” que intensificação da jornada de trabalho dos orientadores/pesquisadores.
Com exigências draconianas e o suporte de uma nova base tecnológica,
insistentemente nos oferece centenas de promoções as mais diversas: consegue-se hoje dedicar menos tempo a uma série de tarefas, sobrando
“Sequei 17 quilos com...; Itaú 30 horas...; superguias de receitas...; escova mais tempo para... mais trabalho ou trabalho excedente. Por outro lado,
inteligente...; para um hálito fresco...; passagens aéreas para a Europa...; pensava-se uma década atrás que os artefatos tecnológicos seriam res-
sushi e vinho por... etc. Infinitas ofertas a preços módicos nos assediam, ponsáveis por um tempo maior de ócio ou lazer e propiciariam a redução
da jornada de trabalho (De Masi, 1999). Porém, tal previsão mostrou-se
gerando compulsões às compras e produzindo sentimentos de “ter
equivocada. O ócio esperado tornou-se desemprego e o trabalho informal,
ficado para trás”, caso não se “aproveite” tamanha dádiva! precarizado gerou uma jornada que não precisa ser controlada por reló-
Observa-se também uma terceira modalidade distinta de consumo, gios-ponto ou chefias, nem precisa de local de trabalho presencial. A vida
que não é de objetos ou serviços, mas de pessoas que se consomem aos privada foi invadida; diluíram-se os limites entre o local de trabalho e o lar.
moldes das mercadorias. Referimo-nos a uma certa mercantilização dos Com o suporte das chamadas novas tecnologias o trabalho acontece em
qualquer tempo e lugar, não raro invadindo o tempo do necessário sono.
afetos vigentes nas relações interpessoais, as quais seguem o “princípio (comunicado em GT: Trabalho e Educação / n.09, 09/10/2010, em: http://
de equivalência” (ADORNO, 1982) entre valores de troca, que rege as mer- www.anped.org.br/reunioes/30a/trabalhos/GT09)
cadorias, na qual coisas e pessoas estão igualadas sob a égide de um
“equivalente geral” (o dinheiro), que transcende qualquer particulari- Em todos os casos é notória a invasão e intensificação da lógica
dade ou afeto e onde amigos e amores são coisificados, descartados e produtivista no interior ou para além da esfera do trabalho, mesclando
liquidificados no turbilhão veloz dos efêmeros encontros presenciais ou as fronteiras entre “tempo de trabalho” e “tempo livre”, agora sob a forma
conexões virtuais. É como se a renovação perpétua dos objetos impreg- de controle.

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Talvez o atendimento irrefletido dessas demandas se deva, em ofertar em solicitudes. Ainda mais do que na época de Adorno, todas
grande medida, à intensiva veiculação midiática de ideais identitários as “atividades” requerem programação: prescrita pela mídia, pelas cele-
próprios à lógica produtivista no interior da esfera privada, incitando bridades, pelos esteticistas, pelos nutricionistas, pelos personal trainings,
ao empreendedorismo, à pró-atividade, ao investimento pessoal, den- pelas agências de turismo, pelos promoters de festas... Não há “desperdí-
tre outros ideais. Aqui a ideologia neoliberal ao mesmo tempo em que cio” de tempo!
enfraquece a esfera pública a partir de um Estado mínimo, dessolida- Se nos séculos XVII e XVIII a ética protestante prescrevia que o tra-
riezante e moralista, engolfa o homem em uma multiplicidade de man- balhador não deveria desperdiçar tempo no mercado, comprando; se a
datos e obrigações cotidianas inatingíveis, fazendo-o sentir-se sempre diversão era vista como um perigo e o repouso e a ociosidade uma “ofi-
atrasado e insuficiente. cina do diabo”; hoje a lógica se inverte: devemos comprar, devemos nos
Evidencia-se, nesse contexto, o que Marcuse (1982) prognosticou divertir e devemos descansar! Desde que seja... comprar no shopping X,
em sua concepção de tecnologia enquanto um Projekt, apontando para divertir-se ao som do hit parade Y, descansar no Resort Z, com passagens
os riscos de uma consciência domesticada: da companhia X, usando marcas da griffe Y. Ou seja, compramos cons-
tantemente o tempo do lazer; nele, mesmo em repouso, não há prejuízos.
Toda libertação depende da consciência da servidão [...] A eleição livre dos
senhores não abole os senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla Continuamos trabalhando para a produtividade do sistema através do
variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se esses servi- consumo do/no tempo livre. Neste caso, a atualidade da afirmação de
ços e mercadorias sustêm os controles sociais sobre uma vida de labuta e Galbraith (citado por BAUDRILLARD, 2008) é evidente:
temor [...] apenas testemunha a eficácia dos controles sociais. (p. 28)
O indivíduo serve o sistema industrial, não pela oferta das suas economias
e pelo fornecimento de capitais, mas pelo consumo dos seus produtos. Por
reflexões finais – o tempo livre consumido outro lado, não existe qualquer outra atividade religiosa, política ou moral
para a qual seja preparado de maneira tão completa, tão científica e tão
A atual escalada vertiginosa das novas tecnologias – outrora uma utopia dispendiosa. (p. 99)
liberadora do “tempo livre”, a partir da automação do trabalho – diluiu
sutilmente as fronteiras entre tempo de trabalho e “tempo livre” não Daí confirmarmos nossa hipótese de que o tempo livre hoje é um
como realização dos ideais emancipatórios, tampouco em prol da liber- tempo consumido em mercadorias e lazer e, porquanto, um tempo con-
dade de usufruto do “tempo livre”. Trabalho e “tempo livre” hoje se fun- sumado no que concerne aos ideais emancipatórios. O que impera é o
dem em prol do capital. tempo da produção, seja no trabalho ou no lazer, travestido da ideologia
Aqui não está em pauta a ampliação de um “tempo do ócio”, aquele libertária. Disto, Adorno e Horkheimer (1982) já nos advertira:
do descanso, da reflexão, da contemplação, enquanto temporalidade Todos estão livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que,
libertária e criativa, própria de homens não tutelados; o que está em desde a neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qual-
vigor é um tempo não livre, em que, como já nos alertara Adorno quer uma das inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia,
que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores
(1995): “por baixo do pano, porém, são introduzidas, de contrabando,
como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa. (p. 156)
formas de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folga às
pessoas” (p. 73).
Hoje, vivemos ainda mais acorrentados à lógica produtivista, com
mecanismos mais controladores, posto que os agentes de dominação se
tornaram não apenas impessoais, mas a totalidade do sistema parece se

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O tempo como elemento de análise das pensar as profundas transformações operadas no mundo do trabalho,
tendo o tempo como um território válido para análise do processo de
transformações sociais1 mudança no cenário laboral e suas implicações na compreensão do con-
texto social.
Cássio Adriano Braz de Aquino Podemos falar que apesar de permear as reflexões na filosofia, física
Verônica Siqueira de Araújo e economia, há um resgate da questão da temporalidade a partir da
década de 1950. As contribuições do pensamento sociológico francês
e anglo-saxônico iniciados ao princípio do século XX foram eclipsadas
pelo advento da Segunda Guerra Mundial. Os trabalhos e estudos rea-
lizados nesse período estavam baseados, sobretudo, em investigações
pontuais sobre budget-time. Pronovost (1996) justifica que pode parecer
um paradoxo que a questão do tempo tenha permanecido à margem
da grande profusão de estudos acerca das mudanças sociais, dinâmica
social e processos sociais que caracterizam a sociologia do pós-guerra,
mas ele entende que isso se deve em parte ao predomínio dos conceitos
de estrutura, equilíbrio e adaptação que sublinham uma preocupação
com o presente antes que com o tempo. O retorno ao estudo mais subs-
O tempo, categoria central da reflexão que empreendemos nesse texto,
tantivo sobre o tempo social vai ocorrer outra vez com Sorokin (1969) e,
tem uma emergência demarcada no âmbito das ciências sociais. A com-
de forma especial, com o pensamento de Gurvitch (1961) sobre a diver-
preensão dessa trajetória até seu estabelecimento como categoria social
sidade e heterogeneidade do tempo social.
implica as contribuições da física, por um lado, e da filosofia e religião,
Se atribui a Gurvitch (1961) a ruptura total com a ideia de que a
pelo outro.
sociedade produz um tempo único e uniforme. Para ele, falar de “tempo
O tempo social, tal como tentamos compreendê-lo na contempora-
social” é uma forma abstrata de fazer referência a um tempo de coorde-
neidade, tem em autores como Durkheim (1992), Halbwachs (1939/1992),
nação e, ao mesmo tempo, destacar a diferença do tempo ante os demais
Gurvitch (1961) – representantes do pensamento social francês e Mead
fenômenos sociais totais. Assim, o autor ressalta que o transcurso da
(1990), Sorokin e Merton (1937/1992) – representantes do pensamento
vida social se dá através do reconhecimento da existência de uma mul-
social anglo-saxônico, as bases para sua constituição.
tiplicidade de tempos, divergentes e contraditórios e que, ademais, são
Tal como afirma Urmeneta (2007) o tempo e o espaço podem ser
submetidos a uma tentativa de unificação relativa, seguindo uma orga-
tomados como categorias privilegiadas para o estudo da identidade
nização hierárquica precária e, às vezes, pouco confiável.
coletiva e da percepção dos processos sociais. É com base nessa afir-
Gurvitch ao pôr acento sobre a heterogeneidade e pluralidade de
mação que decidimos compartilhar algumas reflexões que viabilizem
tempos de uma sociedade, introduz de forma categórica a concepção de
1 Texto produzido originalmente a partir da tese de doutorado “Tiempo y Trabajo: un aná- que não se pode falar de “tempo social”, mas sim em “tempos sociais”.
lisis de la temporalidad laboral en el sector de ocio – hostelería y turismo – y sus efectos
en la composición de los cuadros temporales de los trabajadores” apresentada na Univer-
Segundo Sue (1995), Gurvitch dá prioridade ao método dialético
sidade Complutense de Madrid junto ao Departamento de Psicologia Social sob a direção como forma de compreensão das relações entre os tempos sociais múl-
do Prof. Dr. José Luis Alvaro e posteriormente adaptado para apresentação no Seminário
Tempo e Subjetividades: perspectivas plurais em colaboração com a bolsista Verônica
tiplos e também ao vinculá-los aos fenômenos sociais, que são, por
Siqueira de Araújo. sua vez, produtores e produtos dos tempos sociais. Essa concepção de

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uma relação dialética entre a multiplicidade de tempos sociais, não lhe criação de classificações e metodologias de investigação referentes aos
impede, porém, de crer na existência de um tempo dominante que tenta tempos sociais, decisivas para os estudos de budget-time.2
impor seu modo de organização aos demais tempos sociais. Essa ideia Ainda dentro de uma análise do “ressurgimento” da temporalidade
parece fundamental, por ser a constatação da centralidade da temporali- nos estudos das ciências sociais, cabe destacar os trabalhos de Grossin
dade no estabelecimento, ou, pelo menos, como elemento de identifica- (1969), relatando sobre as características do tempo industrial; os traba-
ção de uma ordem social. Talvez, para ser mais preciso se poderia dizer lhos de Rezsohazy (1970) sobre a organização do tempo nas sociedades
que, partindo do pensamento de Gurvitch, é possível reconhecer que tradicionais e sociedades industriais; e a monografia de Bourdieu (1963)
uma atividade social dominante impõe sua temporalidade e organiza e sobre os trabalhadores argelinos, obra de corte mais antropológico.
estrutura a sociedade. Isso permitiria analisar que as mudanças na tem- Em uma alusão às obras mais recentes, são fundamentais as contri-
poralidade podem servir de paradigmas a uma compreensão do câmbio buições de Luhman (1976), Nowotny (1975) e Elias (1987), ademais dos
na ordem social. Sue (1995) parece utilizar essa ideia como central em estudos realizados por Sue, Pronovost e Ramos. Esses últimos colabo-
seus argumentos que vinculam tempo e ordem social: ram não somente com suas aportações teóricas e empíricas, mas tam-
bém com uma perspectiva genealógica acerca do tempo social.
Ele (Gurvitch) percebeu que o recurso da aproximação dos tempos sociais
poderia ser uma formidável ferramenta para analisar a mudança social, Luhman (1976), em um artigo publicado na Social Research, se
não somente porque ela oferece uma estrutura de observação privilegiada propõe a compreender a articulação social entre passado, presente e
(o tempo é movimento), mas também por que ela permite analisar as for- futuro. Partindo de uma indagação sobre algo que parecia ‘estabilizado’
mas dessa mudança. (Sue, 1995, p. 64-65) na teoria do tempo social, a saber, a existência de uma multiplicidade
Tanto Gurvitch (1961) como Sorokin e Merton (1937/1992; 1969), de tempos, Luhman se indaga sobre a validade de uma ruptura entre a
ao voltarem-se ao estudo do tempo na sociologia, reconheceram que noção de tempo e a cronologia, pondo em questão certo absolutismo
a existência de múltiplos referentes sociais de tempos poderia ser um social presente na concepção de tempo. Sua crítica é destacada aqui por
importante elemento de análise não apenas da mudança social, mas da nós, porque implica que tal ruptura levaria a uma concepção pré-aris-
constituição ou forma de organização de uma dada sociedade. É impor- totélica do tempo, ou seja, uma submissão do tempo ao movimento e
tante ressaltar, entretanto, uma distinção entre os estudos mais clássicos no caso específico da análise social, ao processo. O que o autor ressalta
desenvolvidos por Durkheim (1992), Mauss (1969), Hubert (1909/1992) como compreensão da temporalidade é a ideia de que o tempo deve ser
e Mead (1990), com os estudos mais recentes. A diferença está na pre- tomado como “la interpretación de la realidad con respecto a la diferen-
valência nos trabalhos mais atuais do corte mais empírico, enquanto cia entre el pasado y el futuro” (Luhman in Ramos, 1992, p. 166).
as obras clássicas conjugavam tanto a elaboração teórica da categoria Ramos (1992), comentando o pensamento de Luhman, ressalta que
tempo no espaço dos estudos sociais como a produção empírica. Ade- sua proposta denota que ocorreu uma ‘temporalização da realidade’. A
mais, tanto o trabalho de Durkheim como o de Mauss constituem ver- dimensão temporal depende diretamente da entidade que observa as
dadeiras obras antropológicas e etnográficas. transformações e permanências da realidade. Essa observação, realizada
Como já afirmamos anteriormente, na década de 1960, prevaleciam por distintas entidades – indivíduo, grupo, organização ou sociedade –,
os estudos sobre budget-time, principalmente na Europa e de forma 2 A metodologia e a classificação propostas buscam compreender, através de uma maior
especial a Europa do leste, que vão marcar a sociologia do tempo. Nesse uniformidade, como está distribuído o tempo dentro de uma dada escala temporal. Por
contexto é possível identificar também a colaboração do pensamento de exemplo, como determinado grupo utiliza as 24 horas do dia ao longo dos sete dias da
semana. Ademais são construídas categorias amplas que se subdividem sucessivamente
Gurvitch (1961) e Sorokin (1969). Esses autores foram responsáveis pela na tentativa de detalhar esta relação tempo e atividade social, tais como trabalho, forma-
ção, ócio, necessidades fisiológicas, consumo, entre outras.

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é uma construção a posteriori de uma simultaneidade. Como destaca através dos quais se estrutura o tempo social. A estruturação do tempo,
Lasén (2000), para Luhman o tempo é uma construção do observa- segundo ela, é gerada com base nos processos sociais ocultos, que são
dor, que marca uma diferença entre operação – concebida como o que distintos em função das diferentes sociedades e também se distinguem
sucede num dado instante – e distinção – concebida como a introdução internamente entre os grupos com compõem essas sociedades. Surge
de não simultaneidade e sucessão. É a introdução dessas distinções que dessa compreensão seu interesse em investigá-los através de dois âmbitos
revela a dependência do tempo de um observador. Essa dependência, – a distinção entre perspectiva de tempo a longo e em curto prazo; e a
segundo Luhman (1976/1992), implica que uma teoria do tempo social distinção e o peso relativo concedido ao passado, presente e futuro.
deve considerar – sem menosprezar a interação entre os níveis – as dife- Alguns dos aspectos que constam de seu estudo parecem funda-
renças das perspectivas individuais, coletivas e institucionais. mentais para a compreensão de uma ordem social ancorada na tempo-
Para esse autor, o grande desafio contemporâneo das sociedades é ralidade e vinculada à perspectiva laboral, como é nosso intento nesse
enfrentar uma dupla pressão: garantir a sincronização temporal e lidar texto. Poderíamos destacar três desses aspectos, ainda reconhecendo
com as surpresas e perturbações da temporalidade social. O fato de que que constituem apenas uma pequena parte do seu complexo trabalho:
apareça como realidade natural e objetiva faz do tempo um forte ins- – O reconhecimento da existência de grupos dentro de uma mesma socie-
trumento de controle social. Tal fato foi profundamente observado no dade apresentando distintas orientações e horizontes temporais implica
desenvolvimento das sociedades industriais. que o tempo pode ser percebido de forma particular por diferentes con-
glomerados e/ou classes sociais;
A proposta de Luhman (1976/1992) é tomar o tempo como eixo
mediador das relações entre passado e futuro, no presente. A com- – Uma distinção evidente entre as sociedades tradicionais e não industria-
preensão sobre essa mediação pode ser empreendida através da visão e lizadas e as sociedades modernas e industrializadas está ancorada em uma
atribuição de “valor” ao tempo;
conceitualização que fazemos do futuro. A compreensão de Luhman é
complexa e mereceria, seguramente, uma reflexão mais profunda, mas – A economia adquire um papel decisivo com a atribuição do tempo como
nos interessa mais de perto a noção de futuro como receptáculo das fator de produtividade, ou seja, um dos traços de secularização da noção
de tempo se constrói com a especificidade da tradução do tempo em ter-
perspectivas evolutivas e da mudança social, baseadas na experiência
mos de valor econômico.
do passado e desenvolvidas a partir de uma noção de horizonte tem-
poral, construída no presente. Ademais, a compreensão dos fenômenos A compreensão do tempo como valor, o predomínio da economia
sociais desde uma perspectiva sistêmica empreendida por Luhman per- em validar essa compreensão e a atribuição de sentido para além da
mite identificar que a questão temporal tem uma complexidade difícil associação com os efeitos que são gerados por uma noção de inserção
de prescindir de uma análise conjunta – social e cronológica – para falar social a partir de critérios associados ao valor econômico, são aspectos
sobre o tempo. que definem de forma decisiva uma noção de temporalidade ao longo do
Nowotny (1975/1992) enfoca o tempo social a partir da compreensão século XX. Quando se ressalta “uma noção de inserção social”, se chama
das perspectivas temporais. Ela reconhece que o tempo social adquire a atenção para o fato de que ainda que reconheçamos seu predomínio
relevo através dos processos de interação social, tanto no âmbito da con- na estruturação temporal e social, não excluímos a possibilidade de exis-
duta como no âmbito simbólico, numa clara alusão ao pensamento de tência de outras formas de inserção, ainda que tomadas como marginais
Sorokin e Merton (1937/1992). Nowotny crê, no entanto, que se os proces- ante essa forma de organização social pautada quase que exclusivamente
sos funcionais do tempo social, fruto das necessidades de uma sociedade na economia.
dada podem ser claros, os processos simbólicos que estruturam o tempo A ideia de Nowotny (1975/1992), ao analisar os mecanismos ocul-
não o são. Daí que seu estudo se proponha a explorar os mecanismos tos que apontam para diferentes formas de estruturação tanto entre as

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sociedades como entre os grupos que as compõem, vem ratificar a noção (numa crítica direta a perspectiva kantiana), parece ser para Elias um
de que uma concepção unidimensional do tempo social é insustentável. equívoco mais grave que a cisão físico-social.
A contribuição de Elias (1997) ao estudo do tempo social nasce do Para Elias (1997) a temporalidade comporia o conglomerado de
que ele concebe como uma limitação tanto da física (newtoniana) como símbolos que requerem uma síntese complexa e global e que perten-
da filosofia (kantiana) em conceber o tempo como uma categoria fruto ceriam a um estado tardio da evolução dos símbolos humanos e das
de uma síntese humana complexa, com referência direta aos processos respectivas instituições sociais. O caráter regulador da temporalidade é
sociais. A exemplo de Attali (1985), ao discorrer sobre as “histórias do um dado da evidência de sua evolução e aperfeiçoamento, que tem na
tempo” como evolução de um saber sobre a categoria, Elias (1997) reco- sociedade industrial seu melhor exemplo.
nhece a tradicional cisão natureza x sociedade – representada no campo
[...] la autorregulación según el “tiempo” que se encuentra casi en todas las
do conhecimento com a divisão entre as ciências humanas ou sociais e sociedades de estadios posteriores, no es ni un dato biológico (parte de la
as ciências naturais ou exatas – como um dos problemas que impede a naturaleza humana) ni un dato metafísico (parte de un “a priori” imagi-
conceituação mais adequada do tempo e que conduz a dicotomizá-lo nario) sino un dato social, un aspecto de la estructura de la personalidad
em tempo social e tempo físico. social de los hombres que va desarrollándose y que, como tal, es una parte
integrante de toda persona individual. (Elias, 1997, p. 163)
La dicotomía “naturaleza y sociedad” es sólo una entre muchas que mues-
tran el defecto de esta construcción conceptual, que, por cuanto da la O pensamento de Elias, pois, não tem uma referência específica ao
impresión que ambas áreas no sólo son existencialmente distintas, sino, de tempo social, ele prefere antes falar do tempo, já que seria a forma mais
alguna forma antagónicas e irreconciliables, cierra el paso al estudio de la correta de aludir a complexidade que constitui una categoria que pres-
relación entre “naturaleza” y “sociedad”. (Elias, 1997, p. 99)
supõe bases ‘sociais’ e ‘naturais’ para alcançar o nível de síntese superior
Outro aspecto mencionado por Elias (1997) sobre a compreensão do que caracterizaria a temporalidade.
tempo reside na própria evolução do conceito e as maneiras de medir o As contribuições de Sue (1995), Pronovost (1996) e Ramos (1992),
tempo. Está claro que ao perceber o tempo como um símbolo de orien- como dito ao princípio do texto, são referências históricas e sistêmicas
tação humana de natureza complexa, o estudo da evolução da categoria sobre a questão do tempo nas ciências sociais. Elas constituem também
serve de elemento para compreensão das estruturas sociais. Elias (1997) produções teóricas sobre o tempo social, seja pela reflexão crítica sobre
ressalta que nas sociedades mais arcaicas o tempo estava diretamente as escolas que marcaram o surgimento de uma sociologia do tempo, seja
associado a suas necessidades, marcando ciclos mais amplos. As socieda- pela formulação de ideias fruto de trabalhos empíricos.
des contemporâneas, por outro lado, estão caracterizadas por uma preci- O pensamento desses autores vai constituir o referente mais atual
são temporal que domina a vida social e que acabam por gerar um senti- da compreensão da temporalidade. É bem verdade que não há uma
mento de onipresença do tempo, que conduz a considerá-lo como tendo sintonia ou harmonia absoluta entre o pensamento dos mesmos, mas
existência própria e dissociada dos mecanismos de determinação social. é possível ressaltar e lançar mão de algumas de suas contribuições para
O interessante desse pensamento de Elias é que sua compreensão com isso fundamentar a construção de ideias que guiam nossa reflexão
de tempo como um conceito de síntese complexa implica rediscutir Assim, a preocupação de Ramos (1992) em centrar-se nos proble-
inclusive a noção de social. A cisão entre tempo social e tempo físico mas que marcaram a constituição de uma sociologia do tempo destaca
ou cronológico seria, pois, uma limitação dessa capacidade de síntese. que a problemática vai mais além do próprio campo que a constitui e
Considerar uma concepção a priori, seja como um dado de natureza, implica relações com o que ele chama “múltiplas sociologias especiais”,
seja como consequência da presença subjacente na consciência humana e de forma particular articula uma série de categorias que transitam em
vários territórios tais como o trabalho, as organizações e o ócio.

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Por seu turno, Sue (1995) reconhece no estudo da temporalidade nas podemos perder de vista a ideia de Elias (1997), que considera o tempo
ciências sociais – que ele define como “sociologia dos tempos sociais” – como um conceito de síntese complexa, mas sublinhando os efeitos da
um mecanismo de análise das mudanças sociais. A base do seu pen- temporalidade com um segmento dentro da análise social, para assim
samento é o entendimento que a história foi marcada por diferentes adotarmos a lógica plural de tempos sociais, antes que uma referência
períodos onde a ordem social tinha uma clara estruturação temporal, singular de tempo social. Essa ideia é de alguma forma compartilhada
ou seja, um tempo dominante que dava sentido a uma dada sociedade. ou pelo menos reconhecida por Ramos (1992), Sue (1995) e Pronovost
Com base nesse pensamento, ele afirma que hoje estaríamos vivendo (1996) como básica nos estudos desenvolvidos acerca do tempo social.
um momento significativo de mudança, onde o tempo de trabalho, que Através dessa noção se pode afirmar que o tempo que marca a atividade
foi determinante para a ordem social dos últimos dois séculos, começa social dominante define o modo de produção de uma dada sociedade.
a perder relevo. Com isso é possível justificar uma análise das transformações da tem-
Por fim, Pronovost (1996), partindo da perspectiva histórica que poralidade laboral como um traço de mudança da ordem e da estrutura
fundamenta as concepções contemporâneas sobre a temporalidade, da sociedade atual. As palavras de Sue reforçam essa ideia e atribuem
reflete sobre as tendências atuais de uso dos tempos, tendo como base sentido ao nosso propósito
de análise as instituições geradoras dos quadros temporais. Ele reco-
O sistema temporal de uma sociedade se articula em tempos sociais dis-
nhece no âmbito do trabalho a evidência clara da transformação da tintos que definem sua arquitetura. Esses tempos sociais formam, pois,
temporalidade. uma estrutura que está constituída por um tempo dominante (o tempo
Em linhas gerais, são essas as bases da análise que pretendemos estruturante) que impregna mais ou menos de sua estrutura os outros
empreender, de forma que subsidiem a análise das mudanças na tem- tempos sociais. Tal é o caso do tempo sagrado na sociedade primitiva, mas
também do tempo religioso na Idade Média, do tempo de trabalho nas
poralidade no trabalho e na nova configuração tanto do mundo laboral
sociedades industriais. Como os diferentes tempos sociais se definem com
como na suposta constituição de una nova ordem social. relação a esse tempo dominante, se pode considerar que sua arquitetura
Está claro que a representação do tempo constitui um elemento fundamental é do tipo binário ou dual: tempo sagrado/tempo profano;
fundamental no modelo de organização das estruturas sociais, uma vez tempo de trabalho, tempo livre. (Tradução livre. Sue, 1995, p. 42)
que revela a estrutura profunda de uma sociedade e sua história. Não
se pode dizer que o reconhecimento de uma origem sagrada do tempo, os sistemas temporais e a concepção social de tempo
revelando os valores, as crenças coletivas e a ideologia dos grupos ou
coletividades mais primitivas seja característica exclusivamente daquele A noção de distintos sistemas e referências temporais que caracterizam
tipo de sociedade. Hoje a temporalidade da forma que se apresenta – apenas diferentes sociedades e também grupos dentro de uma mesma
como configuração de uma sociologia do tempo ou como referência sociedade, ademais de diferentes momentos em uma sociedade dada, é
básica a diferentes concepções sociológicas (sociologia do trabalho, um marco de análise da ordem social e de processos sociais. Uma das
sociologia do ócio, sociologia do cotidiano) – deve ser tomada como formas mais evidentes dessa constatação está destacada pelo exame das
um relevante instrumento de análise social. diferenças entre a organização e concepção do tempo entre as socieda-
A evolução não só do conceito de tempo, como o próprio sentido e des tradicionais e as sociedades modernas.
significado da temporalidade ao longo da história, as diferentes formas Pronovost (1996) propõe uma análise da concepção social do
de medi-lo, e o próprio lugar que a categoria tempo ocupa nas discus- tempo através de uma formulação esquemática das características que
sões sociais, são aspectos de reconhecido valor dentro da compreen- compõem os sistemas temporais tradicionais e modernos. Entretanto,
são da ordem social. Tudo isso nos interessa de perto. Entretanto, não esse autor adverte que tal caracterização pode conter alguns riscos. O

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primeiro deles é uma visão caricaturada da situação com relação as 1) Legitimação do valor do tempo – a) o tempo adquire valor e legitimi-
sociedades antigas; o segundo, uma visão “ocidente centrista” e, por fim, dade e se inscreve no sistema de valores globais da sociedade; b) o tempo
passa a ser concebido como um recurso escasso, tendo a economia e a
com relação à adoção de uma noção de evolução histórica, pode haver
organização do trabalho, um papel fundamental nessa percepção; e, c) o
a tendência a uma melhor adaptação do conceito de tempo ao contexto corolário da concepção de valor do tempo é a noção de “perda de tempo”,
moderno. Sobre essa última ideia reside a percepção de Elias (1997) em como também afirma Grimaldi (2002);
considerar o conceito como uma síntese evolutiva complexa.
2) A medida do tempo – o aperfeiçoamento dos instrumentos de medida
As sociedades tradicionais estariam, segundo Pronovost (1996), do tempo ressalta uma característica quantitativa e linear da tempora-
organizadas a partir de quatro aspectos fundamentais: lidade que impõe sobre o caráter qualitativo. Essa noção de medida de
tempo leva a: a) uma sincronização de atividades e o estabelecimento de
1) Tempo cultural – com base na concepção de Sorokin e Merton
regularidades temporais; b) o tempo passa a ser representado como divi-
(1937/1992), que reconhecem o tempo como um elemento sociocultural
dido segundo consequências e ritmos variados; c) se estabelecem pontos
destaca que não só a natureza marca a noção de temporalidade (o que
de referências e marcas temporais com base nas atividades dominantes;
conduziria a uma concepção global de tempo), mas esta a presença de
grandes marcadores dos ritmos sociais, tais como ciclo familiar, trabalho 3) Estratégias temporais – de acordo com a matriz de duração e desenvol-
agrícola e ritos religiosos; vimento da temporalidade, as sociedades modernas estão caracterizadas
por estratégias temporais voltadas para o futuro. As noções de previsão
2) A consciência temporal – partindo da ideia de Bordieu (1963) de que
e planificação adquirem relevo, ademais de ressaltar que se estabelecem
a consciência temporal é solidária ao ethos de cada civilização, ele aponta
distintas estratégias temporais relativas às diferenças entre classes sociais e
os elementos-chave da articulação temporal nas sociedades tradicionais:
situação de inserção laboral (desemprego, por exemplo);
a) um tempo qualitativo composto de partes heterogêneas e descontínuas;
b) um modelo retrospectivo, antes que prospectivo do tempo; c) uma 4) Horizonte temporal – o horizonte temporal está fundado na concepção
visão do presente descontínuo que impede uma compreensão de futuro; e, de valor e de estratégia temporal. Assim, aspectos como os projetos de vida,
d) movimento cíclico do tempo; a representação de futuro e as atitudes baseadas na duração dependem de
forma decisiva dos vínculos mantidos com a atividade social dominante
3) A morfologia social do tempo – com base nos estudos antropológicos
que estrutura a experiência temporal individual e coletiva;
de Mauss (1968/1969) e Evans-Pritchard (1968), ele afirma que a organiza-
ção do tempo está fundada pelas relações imediatas com a natureza, mas A proposição construída por Pronovost tem uma importância
também na democracia e geografia do grupo;
pragmática de identificar a temporalidade vivida nas sociedades tra-
4) Tempo e economia – reconhecendo a característica mais qualitativa dicionais e as referências constituídas na modernidade. É importante
do tempo, o trabalho estava orientado por uma necessidade e não pela ressaltar que uma das características presentes no pensamento de Pro-
dimensão temporal. Assim, o trabalho estava vinculado com uma tarefa
novost, também reconhecida por Elias (1997), é o critério de abstração
a cumprir e não constituía um elemento medido por unidade de tempo.
Sobre esse ponto merece relevo a reflexão de Bourdieu (1963) sobre a crescente na compreensão do tempo, ou seja, as sociedades ocidentais,
sociedade argelina, reconhecendo que a noção de previsão estava anco- principalmente, estão marcadas por uma capacidade cada vez mais abs-
rada sobre um interesse concreto, diferente da concepção moderna, onde trata de transmitir culturalmente, através das gerações, uma interpreta-
os benefícios – a curto e longo prazo – a obter constituem o verdadeiro ção da duração, medida e ordem do tempo.
objetivo de utilização da previsão.
Se no princípio as sociedades mais primitivas estavam centradas
As características que vão marcar o sistema temporal das socieda- numa noção mais concreta e simplificada entre o sagrado e o profano, as
des modernas, por seu lado, são: sociedades modernas começam a introduzir referências mais abstratas e
complexas que podem associar-se a uma noção de orientação temporal

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– memória, recordação, perspectiva de futuro – como também a tipos – Outra característica do tempo moderno é o Escalonamento de ativi-
particulares de tempos/atividades sociais – tempo de trabalho, tempo de dades. Essa ideia se baseia na proposta de Hall (1984) que defende uma
distinção entre o tempo policrônico – diversas atividades sendo realiza-
ócio, tempo escolar.
das ao mesmo tempo – e o tempo monocrônico – tempos distintos para
Focando sua atenção também sobre uma distinção da tempora- atividades distintas. Essa diferença marca a característica das sociedades
lidade entre as sociedades tradicionais e as sociedades modernas, Sue pré-modernas e modernas. O escalonamento das atividades só pode ser
(1995) reconhece que há um conjunto de características que vão marcar pensado a partir de uma concepção de tempo linear e divisível, maté-
o passo do tradicional ao moderno, de forma que se possa falar do esta- ria-prima de uma racionalidade estruturada seguindo referências causais
típica da modernidade.
belecimento de uma noção de “tempos modernos”.
Fica claro que a ideia de Sue (1995) é estruturar a concepção de – A terceira característica do “tempo moderno” é o Sentido de previsão.
tempo como um elemento fundamental de compreensão da ordem Aqui se estabelece uma distinção evidente com a noção de temporali-
social. É possível dizer que se Pronovost tem uma consciência de cons- dade nas sociedades pré-modernas. Nessas, o centro da temporalidade é
o tempo passado, ou seja, seu olhar está direcionado ao mito original e
trução teórica dos tempos sociais mais flexível e Ramos uma concepção fundador. Sua história é a história da contínua reprodução do mito cria-
mais crítica, a proposta de Sue está radicalmente envolvida na constru- dor. Nos tempos modernos se acredita na noção de um tempo linear, um
ção de uma teoria de tempos sociais que ressalte o tempo como ele- tempo em constante devir e, portanto, prevalece a ideia de que a histó-
mento fundamental da análise da estruturação social. ria jamais se repete. Cremos, no entanto, resgatando o pensamento de
Essa concepção de Sue (1995) é denotada quando ele põe o acento Luhman (1976/1992), que é importante ressaltar que o futuro só existe
porque há uma representação de sua existência. Sua realização é sempre
na proposta de Rezsohazy (1970), que, partindo das ideais de Sorokin distinta de sua previsão, mas sem esta ele não pode existir.
e Merton (1937), considera que a ordem temporal é fundamental para
compreensão dos fatos sociais. Rezsohazy (1970) crê que a noção de – A quarta característica do tempo moderno é sua Orientação para o
progresso. A ideia de progresso, fruto do período ilustrado, está ligada à
temporalidade está baseada na atribuição de valores aos fatos sociais.
representação de desenvolvimento do tempo numa perspectiva de pro-
Atribuir à temporalidade uma expressão de valores e normas é funda- cesso e realização da história. Existe um vínculo entre a noção de progresso
mental para ordem social, pois implica que sempre haverá um tempo moderna e a concepção judaico-cristã de “tempo redentor” inserida na
dominante, associado a uma atividade social que vai caracterizar essa mística de um futuro melhor. Há diferentes formas do ‘messianismo’, mas
sociedade. Assim, a mudança de um tempo dominante a outro tempo sem dúvida, é o ‘messianismo’ científico, representado pelo positivismo,
o que vai marcar a salvação do tempo moderno. Assim, é o futuro como
(atividade social) dominante implica uma transformação na própria progresso, através da aplicação e aperfeiçoamento do princípio da racio-
estrutura social. nalidade científica a todas as coisas, sejam de ordem natural, humana ou
Partindo da análise das mudanças que precipitaram a moderni- social – é o que vai caracterizar o tempo na modernidade.
dade, Sue (1995) privilegia o tempo como elemento articulador dessa
Tal como está delineado nos estudos do tempo social, ou para ser
análise. Isso viabiliza o estabelecimento de características que segundo
mais preciso, dos tempos sociais, é possível reconhecer na temporali-
Sue, definem os tempos modernos:
dade um recurso básico de análise da ordem social. A ideia de um tempo
– A ideia moderna de tempo insere algumas características peculiares a dominante, para Sue (1995), ou tempo pivô, para Pronovost (1996), é o
toda temporalidade. Uma delas é a questão de Precisão do tempo, que fundamento da construção de uma teoria dos tempos sociais. Essa é,
generaliza e tenta impor a todos uma concepção de tempo universal,
medido de forma cada vez mais precisa, em uma evidência de que todos
sem dúvida, a base de nossa compreensão para análise da temporalidade.
os tempos estão submetidos à lógica da produtividade e sua compreensão Não podemos seguir sob esse delineamento, entretanto, sem fazer
mecânica do tempo; referência ao pensamento de Ramos (1992), que adverte de forma res-

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ponsável sobre os riscos de uma ‘absolutização’ do tempo social, ideia 5) Tempo dominante e representação social – é um critério simples que
presente também na obra de Elias (1997). implica que para que um tempo social seja considerado dominante neces-
sita ser reconhecido como tal pelos membros que compõem a sociedade.
Ramos (1992) propõe que o conceito de tempo social só pode man-
ter-se como referente de um estudo se estiver delimitado a uma cons- O fato de propor a ideia de que as mudanças produzidas na tem-
trução metafórica, ou seja, reconhecendo a diferença entre tempo e pro- poralidade servem de explicação das etapas históricas nos parece
cesso, que serve para destacar os traços temporais que formam parte da importante, pois pode servir de elemento de análise sobre uma possível
investigação nas ciências sociais. Sua observação é uma percepção crí- transformação na ordem social que se estaria experimentando com a
tica de que, ainda considerando a compreensão da temporalidade social transformação da realidade laboral, ou pelo menos, com o reconheci-
composta de múltiplos tempos, a utilização do ‘tempo social’ é válida mento de uma alteração significativa do sentido do trabalho nas socie-
apenas como um conceito que “generaliza, sintetiza o totaliza aspectos dades contemporâneas. A passagem de um tempo dominante a outro
muy variados de la experiencia” (p. XII). tempo dominante pode, pois, revelar uma mudança social, uma ruptura
A compreensão de tempo dominante apresentada por Sue acaba histórica que leva a uma nova ordem social e à instauração de um novo
introduzindo o questionamento se estaríamos ante um processo de período histórico.
perda do domínio do trabalho e da sua temporalidade, ou se estaríamos Sue (1995) dá indícios de como é possível representar esquematica-
diante de uma exacerbação da representatividade de outras atividades mente a evolução de um tempo dominante desde seu surgimento até a
sociais. perda de sua hegemonia:
Sue (1995) propõe que a avaliação do tempo dominante se dá atra-
1º Momento – Na fase inicial o tempo dominante está no seu apogeu, é
vés da adoção de cinco critérios de reconhecimento:
quase um monopólio;
1) Tempo dominante e duração de tempo – concebido como o critério
2º Momento – Surgem novos tempos sociais, mas adquirem um estatuto
mais simples, já que baseado no critério quantitativo, destaca o tempo da
residual;
atividade dominante e que acaba impondo sua temporalidade aos demais
tempos sociais; 3º Momento – Os tempos não dominantes adquirem amplitude, mas
segundo critérios específicos. No entanto se mantêm dissociados e não
2) Tempo dominante e valores dominantes é um critério qualitativo e
chegam a converter-se em alternativo ao tempo dominante;
implica que um tempo social é dominante se é o lugar de produção dos
valores dominantes do sistema social; 4º Momento – É o momento de conjunção entre os distintos tempos não
dominantes e, mesmo com caráter heterogêneo, chegam a constituir uma
3) Tempo dominante e categorias sociais dominantes – vinculado às prin-
unidade de enfrentamento ao tempo dominante. Ressalta-se que há um
cipais categorias sociais que representam uma sociedade na forma de
reconhecimento de sua existência nos fatos concretos, mas não é ainda
perceber-se como unidade e constituinte de uma ordem social. Assim, o
aceito e representado como dominante;
tempo social dominante pode ser assim considerado se as grandes catego-
rias sociais são produtos da atividade referente a esse tempo social; 5º Momento – O que se evidenciava em fatos é agora reconhecido obje-
tivamente como dominante segundo os critérios de representação social.
4) Tempo de produção e modo de produção dominante – um tempo é
considerado dominante quando o modo de produção concebido como tal Antes de analisar a ideia de Sue de um modelo de mudança da tem-
se efetua no interior desse tempo social em particular. Deve ser ressaltado
que o modo de produção dominante é a esfera da produção, simbólica e poralidade cremos importante apresentar a ideia de Pronovost (1996),
material, de uma sociedade, inserida num sistema de valores; que, embora não apresente um modelo, como faz Sue, conduz a um
modo de reflexão que reconhece que a multiplicidade não e um fenô-

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meno relativo e exclusivo do tempo social tomado como elemento abso- desenrolar – estão marcados por valores e dados da cultura. Ademais de
luto. Para ele é necessário reconhecer, nos diversos sistemas ou subsis- compreender a relação simbólica dos tempos sociais entre si. Pronovost
considera que o esquema de análise cultural apresenta três dimensões: a) é
temas sociais que compõem as sociedades modernas, o próprio sentido
possível compreender as concepções globais do tempo tais como se apre-
da multiplicidade. Citando a Luhman, Pronovost (1996) crê que a pró- sentam no conjunto dos valores observáveis na sociedade contemporânea;
pria complexidade das sociedades atuais produz uma compreensão mais b) se pode abordar o tempo a partir de um recorte setorial e analisar as
abstrata do tempo, resultando uma noção de horizonte temporal mais coações da vida cotidiana e os controles sociais que lhe são impostos; e,
ampla e que levaria a um duplo processo de coordenação da tempora- c) é possível considerar as diversas significações sociais de uso do tempo
(muito dos estudos atuais de budget-time, além de medir o emprego do
lidade: uma temporalidade sequencial e uma temporalidade estrutural.
tempo em distintas atividades, busca investigar as conotações atribuídas
A primeira está baseada na história, ou seja, uma articulação de diver- a cada uma delas);
sas referências históricas relacionadas às mudanças sociais. A segunda
faz referência a uma espécie de neutralização histórica, de forma que 4) Segundo as escalas de tempo: ainda reconhecendo que a representação
da duração e extensão de uma atividade é uma característica fundamental
as sociedades atuais podem estruturar através de suas organizações for- na concepção da estruturação do tempo pessoal, há também um efeito
mais a integração de diferentes temporalidades num mesmo presente. sobre os grupos e instituições. Pronovost reconhece como as escalas mais
Esta observação permite a Pronovost (1996) propor o estabeleci- significativas de referência os tempos macrossociais, os tempos institucio-
mento de uma taxonomia do tempo social dentro de quatro grandes nais, os tempos próprios dos grupos sociais e os tempos microssociais.
categorias: A distinção entre uma temporalidade histórica e uma temporali-
1) Segundo as relações históricas – se pode fazer referências a dois funda- dade estrutural proposta por Pronovost ressalta, uma vez mais, a com-
mentos a partir dos quais as sociedades ocidentais, ou pelo menos os indi- plexidade da compreensão do tempo num recorte social. Sua contribui-
víduos concebam a implicação histórica: a) a temporalidade dos ciclos de ção é sem dúvida mais elaborada, pois reconhece uma dupla dimensão
vida e das gerações, ou seja, segundo a posição de um indivíduo num ciclo
de vida, segundo a memória coletiva histórica do momento, ou ainda, com a introdução do recurso histórico como corolário da dimensão
segundo o horizonte social definido por uma ou mais gerações; e, b) com estrutural.
relação à história, ela mesma, ou seja, através dos elementos significativos Chegados a esse ponto cabe uma observação importante, nosso
da sociedade, dos fatos simbolicamente relevantes; intento, ao ressaltar a temporalidade como elemento de análise da
2) Segundo a estruturação das atividades: resgatando o pensamento de ordem social, é destacar o caráter fundamental do tempo de trabalho
Sorokin e Merton (1937/1992), que destacam que o tempo social está estru- como tempo dominante ou pivô da construção da ordem social. Essa
turado em função das atividades significativas que o compõe, é importante assertiva nos serve de base para questionar se a diminuição das jornadas
reconhecer que as atividades servem de pontos de referência simbólicos ou a transformação da temporalidade laboral implica um recurso viável
ao estabelecimento do tempo. Essa categoria é o que permite a formu-
lação do que o autor chama “tempo pivô” – que vem a ser uma concep- de introdução de um novo olhar acerca da discussão da crise do traba-
ção semelhante ao “tempo dominante” de Sue (1995) – que, além de ser lho em seu sentido e em sua forma de constituição contemporânea.
caracterizada por sua forte carga simbólica, implica também uma ideia Se por um lado fosse mais fácil e até lógico adotar a referência de
de regularidade. Pronovost destaca ainda que essas “atividades pivô” estão Sue (1995) como a mais pertinente a responder essa indagação, por seu
diretamente vinculadas às grandes instituições sociais – trabalho, escola,
enfoque mais centrado na ordem social, não podemos deixar de reco-
religião – de forma que se lhes pode atribuir o caráter de produtores e
reguladores dos tempos sociais; nhecer que é a conjunção do recurso proporcionado pela temporalidade
histórica e a temporalidade estrutural que permite uma apreensão da
3) Segundo os valores, normas e significações dos tempos sociais: essa
complexidade da temporalidade, gerando um entendimento válido e
categoria busca pôr em relevo como os tempos sociais – seu ritmo e

76 77
fiável da análise que coloca o trabalho como categoria central. Ademais, HUBERT, H. (1909) “Estudio sumario sobre la representación del tiempo en la
é importante insistir na observação de Ramos (1992) de que não é reco- religión y la magia” en RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid: Cen-
tro de Investigaciones Sociológicas, 1992, p. 1-33.
mendável tomar a temporalidade como recurso absoluto, mas como um
LASÉN, A. A contratiempo: un estudio de las temporalidades juveniles. Madrid:
recurso a mais de análise da realidade social.
Centro de Investigaciones Sociológicas, 2000.
A nova arquitetura das jornadas dá passo a uma compreensão de
LUHMANN, N. (1976) “El futuro no puede empezar: estructuras temporales en la
que o trabalho se transformou e o elemento propiciador dessa reflexão sociedad moderna” en RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid: Cen-
é o tempo. Daí emergem não só aspectos relativos às novas formas de tro de Investigaciones Sociológicas, 1992, p. 161-182.
inserção laboral, mas também o questionamento sobre a centralidade MAUSS, M. Les fonctions sociales du sacré. Paris: Les Éditions du Minuit, 1968.
do trabalho ou mesmo sobre o fim do trabalho. ______. Représentations collectives et diversité des civilisations. Paris: Les Édi-
Nossa proposta é, pois, ao situar o tempo como elemento articula- tions du Minuit, 1969.
dor da ordem social, viabilizar uma reflexão que situe a temporalidade NOWOTNY, H. (1975) “Estructuración y medición del tiempo: sobre la interre-
laboral e suas diversas formas de delineamento como fundamento de lación entre los instrumentos de medición del tiempo y el tiempo social”
uma nova estrutura social. Seja como tempo/atividade central ou, no en RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid: Centro de Investigaciones
Sociológicas, 1992.
seu extremo oposto, como tempo/atividade residual, a temporalidade
PRONOVOST, G. Sociologie du temps. Bruxelles: De Boeck, 1996.
laboral acaba se revelando como valor e referência ao lugar do trabalho
RAMOS TORRE, R. Tiempo y sociedad. Madrid: Centro de Investigaciones Socio-
como atividade constitutiva do social e produtora de subjetividade.
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1992, p. 35-62.
HALL, E. T. La danse de la vie: temps culturel, temps vecu. Paris: Seuil, 1984.

78 79
iii.
Esquecimento,
intersubjetividade afetiva
e memória coletiva
Tiempo y Olvido
Subjetividad como detención
Stefan Gandler

La actualmente existente moda de leer y citar a Walter Benjamin coexiste


harmónicamente con un creciente olvido de sus aportaciones filosóficas
más centrales. Tenemos ante nosotros algo como un acuerdo secreto
(en los términos de Benjamin) de evitar cualquier discusión de su crí-
tica radical del concepto existente de tiempo como homogéneo, ininte-
rrumpido, y claramente dirigido. Benjamin, que en este punto entiende
mejor El capital de Marx que la mayoría de los otros marxistas, afirma
que solamente una crítica radical de la categoría de organización central
de la vida cotidiana bajo la forma de reproducción capitalista, a saber:
tiempo universal, puede ayudar a derrotar la energía ideológica del pen-
samiento positivista en la forma capitalista de “organización social.”
De esta crítica radical resultan a su vez consecuencias teóricas que
Benjamin formula a partir de esta idea central como por ejemplo su crí-
tica de la ideología del ‘progreso como norma’ que podría ser una sólida
base conceptual para la reconstrucción de la Teoría crítica en términos
no-eurocéntricos. Esta crítica de la creencia predominante del ‘progreso
como norma’ redefine no sólo la relación entre el ‘pasado’ y el ‘presente’
– en términos de tiempo – sino también reorganiza – en términos de
espacio – la relación entre diferentes ‘desarrollos’ culturales, sociales e
incluso técnicos. La implícita idea ingenua del progresismo es que hay

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solamente un avanzar unidireccional en el proceso capitalista y que la histórico, con la ayuda que Benjamin toma prestada de ciertos aspectos
única diferencia entre las diversas regiones en el mundo es el grado de de la teología. El materialismo histórico de Benjamin pone a su servicio
progreso sobre este único camino que ha logrado cada una. Partiendo la teología, no para suavizar filosóficamente su crítica a las relaciones
de esta contribución de Benjaminiana, el “acuerdo entre caballeros sociales existentes y acercarlo políticamente a la ideología burguesa. Al
eurocéntrico” entre la mayoría de los filósofos contemporáneos y de los contrario: el materialismo histórico en la versión predominante durante
teóricos sociales de tendencias políticas muy diversas, puede ser criti- la época de Walter Benjamin – como lo desarrollaron los teóricos de la
cado sin caer en la –también académicamente popular– ideología de las socialdemocracia – se había acercado bastante a doctrinas burguesas,
‘identidades auténticas’ que ‘deben ser defendidas por cualquier medio y con la ayuda de la teología podría superar la limitación de su radi-
contra el imperialismo (cultural)’. calidad. El punto clave en este sentido es el concepto de tiempo,2 que
Incluso algunos miembros de la original Escuela de Frankfurt ten- fue retomado de manera ingenua desde la tradición establecida por la
dieron a reducir la crítica de Benjamin de la ideología del progreso a mayoría de los marxistas.
una crítica de la falsa identificación entre el progreso tecnológico y el Mientras que en la física ya había, por parte de Albert Einstein, una
progreso humano, pero sus conceptos de tiempo e historia son mucho crítica radical a este concepto de tiempo como algo que avanza inmuta-
más radicales que la mayor parte de sus intérpretes contemporáneos blemente, en la filosofía, todavía no había un intento serio de superar este
quieren admitir. Con esta reducción, la puerta filosófica que Benjamin concepto simplista. Marx todavía no pudo desarrollar esta crítica, en su
ha abierto hacia una comprensión no linear de la historia (en términos época, con la misma radicalidad con la cual la desarrolla Benjamin, pero
de tiempo y espacio) corre el peligro de cerrarse nuevamente. en su crítica al concepto de valor, desarrollado por la economía política,
Filosóficamente no queda la menor duda que el texto “Über den está ya implícito el germen para esta crítica. El pensamiento burgués,
Begriff der Geschichte [Sobre el concepto de historia]”1 de Walter Ben- que en la física acepta por fin – con ciertas excepciones – la ruptura
jamin sólo se puede entender si se parte del hecho de que es un escrito epistemológica que representa la teoría de la relatividad de Einstein, no
radicalmente materialista. Es un intento por radicalizar al materialismo lo hace en el terreno filosófico y de ciencias sociales. En la física no le
crítico, no mecanicista de Marx. Esta radicalización filosófica es nece- queda otra opción, debido a las innegables ventajas en las aplicaciones
saria debido al contexto histórico durante el cual Walter Benjamin lo técnicas que surgen a partir de la teoría de la relatividad, sobre todo
escribe: el nacionalsocialismo en Alemania y el fascismo en gran parte en la física nuclear y en la astronomía, como por ejemplo en los viajes
de Europa, que coinciden con el fracaso de la izquierda en estos paises. espaciales. Pero en la filosofía y las ciencias sociales, esta ruptura episte-
Es posible esta radicalización (en el sentido de llegar más cerca de las mológica es impensable para el pensamiento burgués. ¿Por qué? Porque,
raíces de las relaciones y contradicciones existentes) del materialismo como demostró Marx, la economía capitalista se basa necesariamente
sobre el concepto del tiempo como algo lineal e inmutable. Esta con-
1 Redactado en 1940. Incluido en: Horkheimer, Max und Adorno, Theodor W. (eds.), Wal-
ter Benjamin zum Gedächtnis. Los Angeles, Institut für Sozialforschung, 1942, 166 p., p. cepción es ciertamente sagrada para la ideología dominante, porque el
1-6. [mimeógrafo]. Primera publicación impresa, como traducción al francés, realizada
por Pierre Missac y autorizada por Max Horkheimer y Theodor W. Adorno, con el título: 2 Véase: “La idea de un progreso del género humano en la historia es inseparable de la
“Sur le concept d’histoire”. En: Les Temps Modernes, Paris, julio-diciembre 1947, Vol. 3, representación de su movimiento [Fortgang, S.G.] como un avanzar por un tiempo homo-
núms. 22-27, p. 624-634. Primera edición impresa del original en alemán en: Die Neue géneo y vacío. La crítica de esta representación del movimiento histórico debe constituir
Rundschau, 1950, Vol. 61, núm. 4, p. 560-570. el fundamento de la crítica de la idea de progreso en general.”
En lo siguiente citamos según las siguientes ediciones, en español: Walter Benjamin, (Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis XIII, p. 50 y s.; Walter
“Sobre el concepto de historia”. En: W.B., Tesis sobre la historia y otros fragmentos. Trad. e Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte”, loc. cit., tesis XIII, p. 701. Nota: Bolívar
introd. Bolívar Echeverría. México, Itaca/Universidad Autónoma de la Ciudad de México, Echeverría traduce “Fortgang” con “movimiento”, aunque la palabra tiene en alemán una
2008, 118 p., p. 31-59; y en alemán: Walter Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte.” clara connotación de una movimiento dirigido ‘hacia adelante’, sentido que se pierde par-
En: W.B., Gesammelte Schriften, Vol. I, 2. 2ª ed. Frankfurt am Main 1978, p. 693-704. cialmente con la palabra española propuesta por el destacado filósofo traductor.)

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tiempo es la única medida que tiene la forma económica existente hoy texto de Benjamin, es uno bien diferente de las ideas clásicas de salvación
en día prácticamente sobre toda la tierra, para comparar lo que en sí es mesiánica que existen en muchas religiones e implícitamente también en
incomparable: el trabajo distinto de seres humanos distintos. muchas de las interpretaciones limitadas del materialismo histórico del
La clásica división de la razón en la sociedad burguesa, analizada concepto de revolución. Para Walter Benjamin existe una “débil fuerza
por la escuela de Frankfurt, por ejemplo en la Dialéctica de la ilustración mesiánica”4 en cada generación de seres humanos que puede hacerse
de Max Horkheimer y Theodor W. Adorno, en la razón instrumental virulenta justamente a partir del conocimiento de un concepto diferente
que se desarrolla sin límites y la razón en el sentido amplio y clásico del tiempo, es decir a partir del entendimiento de que el pasado está pre-
como lo usa por ejemplo G.W.F. Hegel, o dicho de otro modo, en la razón sente, de una manera muy diferente de lo que pensamos por lo general,
subjetiva y la razón objetiva, se presenta también en el problema del en el presente: “éramos esperados sobre la tierra”,5 por las generaciones
concepto de tiempo. Mientras la razón instrumental se aprovecha en anteriores. Mientras que en diferentes religiones se espera el Mesías y
términos técnicos y prácticos de los grandes descubrimientos de Eins- mientras que en las interpretaciones limitadas del materialismo histó-
tein, la razón objetiva está tan estancada en esta formación social, que rico se espera un acto mesiánico que viene de fuera de la sociedad o del
no se encuentra en condiciones de cuestionar el concepto de tiempo en ‘cumplimiento de las leyes de la historia’ que en última instancia no es
la vida cotidiana a partir de estos descubrimientos.3 otra cosa que la esperanza a un Mesías, Benjamin traslada la esperanza
Con la aceptación de la teoría de la relatividad para la filosofía y de las generaciones anteriores a una que se dirige hacia nosotros.
las ciencias sociales, se derrumbaría sin piedad todo el orden existente. El único instrumento que puede ‘medir’ el tiempo son los relo-
Marx preparó el terreno teórico en el cual Benjamin hace esta gran jes, que en verdad no hacen otra cosa que medir su propio ritmo auto
revelación a la cual llega con la ayuda de ciertos métodos y herencias producido, o dicho en otras palabras: los relojes no son otra cosa que
de la teología. La revelación de Benjamin es estrictamente materialista contadores de oscilaciones anteriormente producidas con la intención
porque se basa en el conocimiento de que, el tiempo como algo lineal, de tener un movimiento que se repite en lo ideal eternamente con las
ininterrumpido y con dirección definida, es una construcción ideoló- mismas características. La idea de la repetición de momentos cualitati-
gica que no se basa en ningún sustento material. Es la puerta de salida vamente iguales es la base de construcción de los relojes que a su vez nos
de este sistema político-económico y social aparentemente sin salida, sugieren la existencia objetiva de este tiempo lineal, meramente cuanti-
sin la necesidad de una salvación mesiánica – en el sentido clásico de la tativo y sin cualidades específicas. Esta idea del tiempo lineal es relati-
palabra, como una salvación que viene de afuera de la sociedad. vamente vieja, pero alcanza su fuerza actual con la aparición de relojes
Paradójicamente es justamente la teología, la que ayudó a Benja- cada vez más exactos y baratos, es decir omnipresentes y con la forma
min a poder superar la necesidad de elementos no humanos para poder económica que se basa exclusivamente sobre el aspecto cuantitativo del
pensar o imaginarse esta salida. El elemento mesiánico que sí existe en el valor o del tiempo lineal.
Aparentemente, justo en el momento de la generalización de esta
3 Para justificar este procedimiento se usa la clásica figura del pensamiento burgués en forma de producción, se llegó a medir el tiempo de manera más exacta
la época del capitalismo tardío, es decir, del capitalismo en su fase de dar patadas de
ahogado: En vez de entender a Hegel y su dialéctica con la idea de la transformación de y por esto se logró tener a los horarios cada vez más unificados, a gran-
cambios cuantitativos en cambios cualitativos, se trata de reducir un cambio cualitativo des escalas geográficas, así como antes se había unificado el calendario,
a un cambio cuantitativo: se argumenta, que los descubrimientos de la teoría de la rela-
tividad sobre la relatividad del tiempo, sólo son aplicables en términos de “muy grandes
después de una lucha por siglos entre distintos sistemas calendarios,
velocidades” o “muy grandes distancias” que supuestamente no existen en la vida coti-
diana de los seres humanos. Se reduce de nuevo algo cualitativo a algo cuantitativo para
poder excluir las consecuencias de muy largo alcance de la crítica al concepto de tiempo 4 Ibid., tesis II, p. 37.
realizada por Einstein para la formación social existente. 5 Ibid.

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hasta que quedó por fin el gregoriano como el dominante casi a escala forma diferente o propia de construir y concebir el tiempo, perteneciente
mundial.6 Pero el movimiento fue más complejo: esta forma social nece- a otro tipo de modernidad. No se le puede juzgar o entender a partir
sitaba de estas formas más exactas y más generalizadas para medir el de la construcción ideológica del tiempo que se tiene en ciertos paises.
tiempo según sus reglas. En una relación dialéctica entre el desarrollo Es decir, criticar el concepto dogmático del tiempo lineal y homogé-
de las técnicas de medir este tiempo y la necesidad social de medirlo de neo como algo supuestamente natural o dado eternamente, podría abrir
tal manera, así como de la capacidad política-organizativa de imponer el camino a una crítica radical del etnocentrismo del noroeste europeo
este nuevo tiempo entre la sociedad, se llegó a una forma de percibir el y estadounidense. En referencia a la afirmación de Benjamin, de que
tiempo y poder medirlo de la manera correspondiente. una crítica al progresismo político y teórico sólo es posible si se basa
En la supuesta homogeneidad del tiempo está también presente en una crítica del concepto dogmático del tiempo, se podría llegar a la
una de las fuerzas del etnocentrismo en su forma dominante hoy en día: conclusión, de que una crítica al eurocentrismo sólo es posible si se basa
el eurocentrismo. Negando el aspecto cualitativo del tiempo, concibién- igualmente en una crítica del concepto realista del tiempo. Ahí estaría
dolo como “vacío”,7 se le pone fuera de la decisión colectiva y social, y por consiguiente un punto de enlace decisivo entre la teoría del cuádru-
absolutiza o naturaliza con esto ciertas tradiciones locales con su respec- ple ethos de la modernidad capitalista (con especial énfasis en el ethos
tiva valoración cualitativa del tiempo (que en términos reales siempre barroco) de Bolívar Echeverría, y la crítica al concepto de tiempo lineal
existe, a pesar de ser sistemáticamente segado). El día domingo es enton- desarrollada por Walter Benjamin.
ces, fuera de toda discusión, día festivo fijo en la mayoría de los paises,
así como ciertos horarios de comida, descanso y trabajo. Lo que desde jetztzeit – tiempo ahora
el punto de vista del ethos realista, que tiene plena presencia en el lla-
mado primer mundo, es una forma inexacta o menos seria de actuar en Para entender la crítica Benjaminiana al concepto dominante hoy en
relación al tiempo que se percibe como algo objetivamente dado, podría día del tiempo como continuo y lineal, que es en última instancia un
ser entendido entonces, de otra manera. Probablemente, se trata de una inconsciente reducto teológico dentro del positivismo, hay que conside-
rar conscientemente la teología y su presencia culturalizada en el actual
6 El último residuo de esta guerra de muy larga duración entre distintos calendarios por el mundo capitalista. En la teología existe también, igual que en Benjamin,
predominio a escala mundial, era el debate – a veces grotesco – sobre si el nuevo milenio
empezó el 1 de enero del año 2000 o del año 2001. Casi en ninguna de las distintas apor-
la idea de la posibilidad y necesidad de interrumpir el continuum tem-
taciones a esta discusión, se hizo referencia a la base histórica de esta confusión que está, poral. Existe en ella también la idea de que hay algo más allá, no sola-
por una parte, justamente en la historia conflictiva de los sistemas calendarios y por otra
mente de lo que hoy en día se impone materialmente, sino además algo
parte, justamente en la historicidad de los sistemas de contar el tiempo: en el momento
que se inventó el calendario gregoriano en Europa todavía no existía el concepto del cero. fuera de las bases conceptuales más profundas y menos cuestionadas de
Por consiguiente no se podía contar en “año cero”, que llevó al hecho hasta hoy existente la formación social actualmente imperante.
de que en la línea de tiempo que establece el calendario que usamos con tanto conven-
cimiento de su objetividad, se rompe con lo establecido en la matemática moderna, de La diferencia entre la teología y lo que retoma Benjamin de ella con-
tal manera que – contando desde los números negativos – después del menos uno (-1) se siste en que Benjamin ve la posibilidad de esta ruptura dentro de este
brinca directamente al uno (1), sin contar el cero (0). En la disputa sobre el verdadero ini-
cio del nuevo milenio casi todos los participantes partieron de la objetividad del calenda- mundo. El “Jetztzeit” [tiempo ahora],8 no es el juicio final y no hay que
rio hoy en día dominante y sólo se disputaron sobre su interpretación correcta, sin darse
cuenta que el mismo calendario es en términos de matemática moderna incorrecto. Esto 8 Ibid., tesis XIV, p. 51. Bolívar Echeverría traduce “Jetztzeit” con “tiempo del ahora”, sin
es una expresión más de la incapacidad de nuestra sociedad por reflexionar críticamente embargo lo vamos a sustituir con “tiempo ahora”, al considerar que esta traducción exis-
sobre su concepto de tiempo, y darse cuenta que este concepto como existe hoy en día tente podría expresar más claramente la idea central de Benjamin sobre el tiempo. Esta
sólo tiene su justificación en la forma social a la que corresponde y no se debe a ninguna se podría resumir en la afirmación que el único concepto que adecuadamente puede
objetividad fuera de esta forma social. expresar algo sobre el tiempo es el concepto del “ahora”. Todos las otras maneras de decir
7 Véase: Ibid., tesis XIII, p. 51. algo sobre el tiempo – sobre todo el término del “futuro” (que sólo existe en la cabeza, en

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esperar la propia muerte para poder acercarse a esta nueva concepción junto con Benjamin que la superación de las destructivas contradiccio-
del tiempo. La experiencia y praxis de muchas generaciones en sus actos nes de la aplastantemente existente socialización al estilo capitalista no
de memoria y tradiciones vivas tienen en sí algo central de esta concep- se puede lograr al radicalizar la lógica de la valorización del valor, es
ción del ‘tiempo del ahora’. Un ejemplo podría ser en la arquitectura reli- decir al aumentar el ritmo de la circulación, que equivale a hacer avan-
giosa el Baptisterio de Florencia del siglo once o doce. Su forma octan- zar el tiempo más a más, sino al interrumpirlo. Sólo así podremos ganar
gular puede ser interpretada como una referencia a un “octavo día”, es a la fuerza ideológica principal en favor de las relaciones sociales exis-
decir el día, el tiempo fuera del tiempo normal, lineal. tentes que es el olvido. El mismo pensamiento está en peligro de perder
El materialismo histórico tenía con Karl Marx un pensador que algo ya encontrado en cada instante. No estamos sobre un punto fijo
superó en muchos aspectos lo heredado por el materialismo mecánico desde el cual miramos hacia atrás, sino continuamente ‘se nos mueve el
y el idealismo. Pero esta base teórica, en muchos sentidos única, no fue tapete abajo de los pies’ del pensamiento. Benjamin comparte esta idea,
retomada por largo tiempo con la radicalidad necesaria con la que la con otros autores de la Escuela de Frankfurt. La historia de la filosofía,
fundó Marx. Benjamin recurre a la teología para poder superar una de es en este sentido para Adorno, una historia de olvidos.
las razones principales de por qué el proyecto de Marx, a lo largo del Los pensamientos están en continuo movimiento, pero esto no es
tiempo, perdió tanta fuerza explicativa y tanto impulso revolucionario: en sí razón de complacencia, porque este movimiento puede ser justa-
las tendencias positivistas que existían de igual manera en la interpre- mente la razón por la cual nuestro pensamiento repite eternamente lo
tación de los teóricos de corte socialdemócrata así como de corte esta- mismo y no llega a entender justamente aquellos aspectos de la realidad
linista.9 La profunda convicción de los religiosos de que lo visible no es que nos haría tanta falta entender. Por esto, Walter Benjamin habla de
el todo, y el poder existente actualmente no el único, es lo que, como la necesidad de detener los pensamientos (“ihre Stillstellung”).11 El autor
tratamos de demostrar, retoma Benjamin de la tradición teológica, sin explica este procedimiento de la siguiente manera:
querer retomar el impulso que hace pequeña y fea a la teología: el de
Cuando el pensar se para de golpe en medio de una constelación satu-
sacrificar justamente estos conocimientos para poder vivir con lo que rada de tensiones, provoca en ella un Schock que la hace cristalizar como
Benjamin rechaza tanto: el conformismo.10 mónada. El materialista histórico aborda un objeto histórico única y sola-
El tiempo, diríamos con Walter Benjamin, no avaza por si solo – con mente allí donde éste se le presenta como mónada. En esta estructura
un supuesto automatismo, siendo en este sueño perversamente dorado reconoce el signo de una detención mesiánica del acaecer o, dicho de otra
manera, de una oportunidad revolucionaria en la lucha por el pasado opri-
del crecimiento ilimitado la única realización del tanto anhelado per- mido. Y la aprovecha para hacer saltar a una determinada época del curso
petuum mobile –, como tampoco el agua de los ríos avanza por si sólo. homogéneo de la historia, de igual modo que hacer saltar de su época a
Como el agua de los ríos sólo avanza por la invisible y a la vez imponente una determinada vida o del conjunto de una obra a una obra determi-
gravedad, así el tiempo sólo avanza en la medida que los miembros de nada. El beneficio de este procedimiento reside en que en la obra se halla
conservado y superado el conjunto de la obra, en ésta toda la época y en
la sociedad lo hacen avanzar. A contracorriente de la dominante idea
la época el curso entero de la historia. El fruto sustancioso de lo compren-
de corrientes políticas que se auto consideran “progresistas”, pensamos dido históricamente tiene en su interior al tiempo como semilla preciosa
pero insípida.12
las ideas, pero no en la realidad material) pero también el menos problemático concepto
del “pasado” (que de alguna manera existe ahora entre nosotros, pero no como algo que
“ya pasó/ya se fue”) sólo nos alejan de un real entendimiento de lo que son el tiempo y la
historia.
9 Véase la tesis XI, donde Benjamin habla de la “concepción positivista” de los teóricos 11 Walter Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte”, loc. cit., p. 702 y s. Véase en español:
socialdemócratas (Ibid., tesis XI, p. 47). Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis XVII, p. 54.
10 Véase: Ibid., tesis XI, p. 46. 12 Ibid., tesis XVII, p. 54 y s.

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Para imaginarse este procedimiento, podemos pensar en la película y también para la Escuela de Frankfurt: el problema del conocimiento.
SHOAH de Claude Lanzmann. Es un intento excelentemente logrado, de Para estas corrientes de pensamiento crítico se presentó, en la época del
detener el pensamiento y detener el tiempo a lo largo de más de nueve fascismo y nacionalsocialismo, la pregunta de por qué muchos de los
horas. En esta obra se cumple cabalmente lo que dice Benjamin en la miembros anteriores de las organizaciones de masa de la vieja izquierda
última cita: “en la obra se (ha) conservado y superado el conjunto de se sumaron con tanta facilidad a las organizaciones nacionalsocialistas y
la obra, en ésta toda la época y en la época el curso entero de la histo- fascistas. Algunos años antes, en los años veinte, György Lukács se pre-
ria”. Lanzmann dijo en una ocasión que su intento era no dejar solos a guntó en Historia y consciencia de clase por qué la revolución, a pesar de
los muertos que murieron solos en las cámaras de gas. Nadie va poder estar objetivamente al orden del día, no era percibida de tal manera por
revivir estos muertos de una muerte solitaria, pero aunque sea difícil las masas explotadas, sobre todo el proletariado, que se había concebido
de entender, esta muerte, de cierta manera no ha terminado: “tampoco en las versiones ortodoxas del marxismo como el sujeto revolucionario
los muertos estarán a salvo del enemigo si éste vence.”13 De lo que se per se. El libro de Lukács, sobre todo el ensayo sobre La cosificación y la
trata entonces es, interrumpir esta prolongación de la soledad de estos consciencia del proletariado, adquirió gran relevancia para el marxismo
muertos, arrancarlos de las manos del olvido y abrirles un espacio en crítico, justamente por ser el primero que trata esta pregunta de una
nuestra memoria individual y colectiva. Con esto podríamos detener la manera crítica, no perdida en el progresismo y la confianza ingenua en
prolongación de su muerte. el proletariado.
La reacción inmediata, casi preprogramada de la mayoría de los ale- En parte, el texto Sobre el concepto de historia de Benjamin, es una
manes y de aquellos que quieren compenetrase con ellos sería: ‘Pero el respuesta sui generis a esta pregunta. Tiene en común con los otros auto-
nazismo terminó, hace más de medio siglo.’ Y sabemos que la frase que res del marxismo no dogmático la idea, de que la forma de actuar del
sigue en la cita de Benjamin también sería válida: “Y este enemigo no ha proletariado y de sus organizaciones de masa no se pueden explicar úni-
cesado de vencer.” No es necesario ver Berlusconi en Italia y a sus alia- camente a partir de las relaciones económicas, así como se pensaba en
dos “pos-” fascistas, o Haider en Austria y la gran aceptación que tiene ocasiones en el marxismo dogmático. En el marxismo crítico, la Teoría
entre aquellos que se auto conciben como ‘conservadores’, para saber crítica, se parte de la idea de que hay que analizar los problemas de cono-
por qué. En la misma Alemania, incluso en el gobierno actual, podemos cimiento para poder entender la ausencia de revoluciones socialistas en
ver un sinnúmero de pruebas de que este enemigo de la humanidad, del los años veinte en Europa, a pesar de que objetivamente sus condiciones
cual habla Benjamin, no ha cesado de vencer. Esta es la razón principal estaban dadas según las teorías clásicas de izquierda. Es decir, el mar-
porque no estamos de acuerdo con la mayoría de las interpretaciones xismo occidental, a partir del cual se desarrolla también la Teoría crí-
contemporáneas de Walter Benjamin que se hacen dentro y fuera de tica de la Escuela de Frankfurt, se concentra en estos años en la crítica
Alemania, porque la mayoría de sus autores, no comparte este saber y a la ideología. El texto de Benjamin se encuentra inscrito en este con-
quiere transferir el nacionalsocialismo a un elemento más en el cúmulo texto. Comparte con los otros autores de esta corriente, la idea de que la
de historias que cuenta el historiador de formación historicista. ideología dominante está también en las cabezas de los oprimidos inclu-
Estas reflexiones constituyen una forma de tratar uno de los proble- yendo el proletariado, y no solamente por la manipulación por parte de
mas centrales para el marxismo no dogmático, el marxismo occidental las instancias ideológicas de las clases dominantes, sino a partir de la
realidad material existente. Las mismas contradicciones muy profundas
13 Ibid., tesis VI, p. 40. El pasaje completo es: “Encender en el pasado la chispa de la espe- de la forma social existente hacen imposible concebirla racionalmente y
ranza es un don que sólo se encuentra en aquel historiador que está compenetrado con
provocan ellas mismas una falsa percepción. De cierta manera, se puede
esto: tampoco los muertos estarán a salvo del enemigo si éste vence. Y este enemigo no
ha cesado de vencer.” decir que la forma de reproducción capitalista tiene la gran ventaja, en

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comparación con otras formaciones que existían en épocas anteriores, samiento dialéctico de Hegel. Sabe de la importancia del movimiento
de tener la virtud de zafarse de la comprensión de si misma por parte de en la realidad y en el pensamiento, pero también sabe que no hay que
sus propios sujetos. Por esto Benjamin coincide con los otros pensado- quedarse ahí, rescata la importancia de la interrupción del movimiento,
res del marxismo occidental en la percepción de que estando adentro de que no es lo mismo que el no-movimiento.
esta sociedad, no es posible entenderla, pero en una sociedad más libre La razón de esto es el progresismo a criticar, que cimentó con su
sí sería probablemente posible: “Aunque, por supuesto, sólo a la humani- fijación en el movimiento (por supuesto como uno predeterminado),
dad redimida le concierne enteramente su pasado. Lo que quiere decir: toda posibilidad de una intervención activa por parte de los sujetos de
sólo a la humanidad redimida se le ha vuelto citable su pasado en cada la historia. Benjamin rescata esta posibilidad con la detención del movi-
uno de sus momentos.”14 miento.
Lukács ve la razón principal para este hecho en la cosificación, es Hay una forma más de concebir este problema de la detención del
decir en la circunstancia de que relaciones entre humanos adquieren la tiempo que solo aparentemente avanza automáticamente, en la medida
forma de relaciones entre cosas, sobre todo las mercancías y se queda que el valor sólo aparentemente es el “sujeto automático” del actual
invisible su aspecto social. Las relaciones sociales se cosifican mate- proceso social (aunque sea una apariencia objetiva – gegenständlicher
rialmente, porque en el capitalismo los sujetos tienen cada vez menos Schein –, como dice Marx en El Capital). No solamente se trata, en la
influencia sobre los productos hechos por ellos y sobre la relación social superación del olvido, de entender lo que está fuera de nosotros, como
construida por ellos históricamente, y en consecuencia se cosifica la ya lo hemos analizado, sino también para entenderse a nosotros mismos.
conciencia. Dicho en otras palabras: lo que está en movimiento, las No lo decimos en el sentido de entenderse a sí mismo a partir de conocer
relaciones sociales siempre cuestionables, se nos presentan como algo la propia historia, el contexto de la propia vida, sino en el sentido real-
incuestionable, sin movimiento, eterno. Lukács intenta hacer brincar mente de verse a sí mismo, mirando hacia atrás, o dicho de otro modo:
precisamente esta aparente calma de, como dirían después los nacional- confrontando el ayer con el hoy de manera directa, interrumpiendo el
socialistas, los mil años. continuum histórico. Esto puede parecer a la primera vista demasiado
El enfoque de Benjamin es distinto, aunque parte de la misma especulativo o casi místico, pero no lo es, y lo es además mucho menos
inquietud, o dicho de un modo más exacto: va más allá de lo planteado que la ideología del “progreso como norma histórica”.15
por Lukács. György Lukács percibe con gran talento, el hecho de que Benjamin nos hace aprehender algo sumamente complejo del fun-
el movimiento histórico se le escapó a sus propios actores, así que ellos cionamiento de la memoria en este aspecto de su texto Sobre el concepto
sólo se concibieron a sí mismos como los que cumplen, sin posibili- de historia. Sabe que se necesita una confrontación de dos momentos
dad de decisión propia o influencia activa, un papel predeterminado. históricos en uno solo, para poder realmente entender, para realmente
La crítica de Lukács se dirige en contra de la misma tendencia teórica poder activar la capacidad de la memoria. A esto se refiere, entre otras
y política que la de Benjamin: la socialdemocracia, es decir la izquierda cosas, cuando dice: “un secreto compromiso de encuentro [Verabredung]
reformista (hoy también llamada centro izquierda), sobre todo la social- está entonces vigente entre las generaciones del pasado y la nuestra”16 y
democracia alemana y su determinismo histórico. Quería interrumpir cuando escribe: “Articular históricamente el pasado no significa cono-
esta idea de no poder actuar por cuenta propia fuera de las tendencias cerlo ‘tal como verdaderamente fue’. Significa apoderarse de un recuerdo
ya dadas, con la idea del movimiento: movimiento contra estancamiento tal como éste relumbra en un instante de peligro. De lo que se trata para
cosificador. Benjamin va más allá de esta concepción heredada del pen-
15 Ibid., tesis VIII, p. 43.
14 Ibid., tesis III, p. 37. 16 Ibid., tesis II, p. 37.

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el materialismo histórico es de atrapar una imagen del pasado tal como pasado, o dicho de otra manera, el momento específico del pasado está
ésta se le enfoca de repente al sujeto histórico en el instante del peligro.”17 presente frente a él mismo en el mismo momento.
En el momento del peligro vemos las imágenes de los recuerdos En un comentario sobre la nueva película de Claude Lanzmann,
no como algo pasado, como algo que está a distancia, separado por Sobibor, 14 de octubre 1943, 16 horas, podemos ver cómo Lanzmann
el tiempo de nosotros hoy, sino, lo vemos como algo presente en este sabe de esto cuando realiza esta película:
momento. Nos confrontamos de manera inmediata con estas imágenes
Hay una secuencia imposible de olvidar en la cual Lanzmann utiliza un
y nos vemos a nosotros mismos en ellas. Este es el único momento en el recurso sencillo para recrear el inimaginable terror del pasado. Por un
cual lo que llamamos memoria es realmente capaz de hacernos entender largo momento, la cámara enfoca repetidamente a una enorme manada
algo nuevo. En otros actos de ‘memoria’, no hacemos otra cosa que usar de gansos blancos que están graznando. Avanzan tambaleándose en cír-
imágenes ya suavizadas y preparadas para fundamentar todo lo que de culo, estirando los cuellos, desconcertados, chocando con pánico unos
con otros, sin saber a donde ir. Después de un rato, el significado se aclara.
por sí estamos pensando e imaginándonos. Pero estos no son actos de Para camuflar, ante los demás en el campo, los gritos de las mujeres aterro-
memoria, sino una citación superficial y sin seriedad de imágenes que rizadas que eran conducidas a la cámara de gas, los nazis mantenían una
ya están domesticadas por el signo que les dimos en el contexto de nues- manada de gansos que soltaban en momentos cruciales. Esta escena es el
tras explicaciones. eco terrible de esos momentos.19
Habría que entrar de pleno en el problema de la conflictiva relación En SHOAH, Lanzmann hace regresar por un momento a un entre-
entre imagen y signo que existe en el pensamiento ilustrado, para poder vistado a su antigua profesión de peluquero, sólo para entrevistarlo en
explicar a fondo esta problemática,18 lo que aquí no es posible. Pero es esta situación, mientras corta el pelo a un señor. Lanzmann le pregunta
central tener presente que en la sociedad represiva, explotadora, es decir sobre los recuerdos de su estancia en un campo de exterminio nacional-
no libre, nuestras formas de percibir tampoco son libres y en última ins- socialista. Le hace recordar y contar, cómo cortó el pelo de las mujeres,
tancia están siempre guiadas por el prehistórico miedo de desaparecer, instantes antes de que entraran a la cámara de gas, a veces incluso dentro
es decir, son guiadas por los impulsos de la autoconservación. Esto pro- de la misma, antes de que cerraran las puertas. Le hace recordar esto,
voca que signo e imagen estén en un continuo conflicto, y la imagen, justo cuando repite el acto de cortar el pelo a un humano, y él cuenta
en el momento de ser absorbida por el signo, pierde por completo su cómo fue, cuando otro estilista a su lado tenía que cortar el pelo a muje-
fuerza y su verdad. De esto sabe Benjamin y también por esto busca la res muy cercanas y quiso morir con ellas. La escena es de las que más
interrupción de estos procesos aparentemente normales de ver la histo- se nos grabaron en la mente, porque Lanzmann logró perfectamente
ria. Sólo cuando la imagen histórica tiene su pleno derecho, puede tener interrumpir el continuum de la historia y confrontar un momento del
un efecto iluminador sobre nuestra consciencia y sólo puede tener este pasado de manera inmediata, fuera del control de la interpretación de
derecho pleno, si se confronta el momento histórico pasado de manera signos, con el sobreviviente hoy. Esta interrupción del continuum de la
inmediata con nosotros. Por esto, el ángel de la historia, como dice Ben-
jamin, se ve a sí mismo cuando ve hacia atrás. Él mismo está ahí, en el
19 Peter Lennon, “Ghosts of Sobibor”. En: The Guardian, Manchester, 27 de julio de 2001.
Original: “There is one unforgettable sequence in which Lanzmann uses a simple device
to recreate the demented terror of the past. For a long moment, the camera pans repeat-
17 Ibid., tesis VI, p. 40. Véase también en la tesis V: “La imagen verdadera del pasado pasa de edly over a huge gaggle of squawking white geese. They stagger about raucously, necks
largo velozmente [huscht]. El pasado sólo es atrapable como la imagen que refulge, para stretching, bewildered, bumping against each other in panic, not knowing which way
nunca más volver, en el instante en que se vuelve reconocible” (Ibid., tesis V, p. 39). to go. After a while, the significance dawns. To camouflage the screams of the terrified
18 Véase sobre esto: Max Horkheimer y Theodor W. Adorno: Dialéctica de la ilustración. women being led to the gas chamber from others in the camp, the Nazis kept a gaggle of
Fragmentos filosóficos. Trad. Juan José Sánchez. Madrid 1994: Ed. Trotta, capítulo: “Con- geese which they set loose at crucial moments. This scene is the dreadful echo of those
cepto de ilustración”, p. 59-95. moments.”

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historia, abarca incluso al espectador, que pierde por un instante, aun- se corta la banda que nos une con ellas y caemos en un abismo. A este
que sea mínimo, la sensación del tiempo como homogéneo e infrenable, abismo obscuro lo llamamos “futuro” en el momento de caernos hacia
y se le abre un espacio para ver algo en el pasado como si fuera hoy, en él, así como pueblos de otros tiempos dieron nombres a los fenómenos
este momento. O dicho de otro modo: ve de repente el sobreviviente en naturales inexplicables, para superar el miedo que lo inexplicable pro-
la cámara de gas, cortando el pelo a las mujeres instantes antes de cerrar voca. El continuo intento de hablar sobre, planear e imaginar el futuro,
las puertas, ve como él se ve ahí y ve de repente algo que nunca había no es entonces otra cosa que el intento de nombrar lo innombrable para
logrado ver o percibir por otros métodos. someterlo a nuestra lógica, que a su vez es nuestra arma tan amada para
La memoria que tan fácilmente se deja corromper, en esta sociedad superar el miedo hacia todo lo desconocido.21
corrompida por su forma económica y social, encuentra una fisura en la Pero el futuro no es solamente innombrable por no ser perceptible
máquina sin piedad que llamamos tiempo. Y en esta pequeñísima fisura, o entendible, así como se explicó en la parte epistemológica, sino por-
que sólo ven los que no cierran súbitamente los ojos ante el horror que que no existe. La infinidad de discusiones dentro del positivismo sobre el
se esconde en lo que llamamos nuestro pasado, se abre por instantes, problema de la falsificación (Popper), vienen justamente de ahí. El positi-
instantes que son una eternidad, un espacio de libertad que permite a la vismo que busca las verdades seguras sobre la realidad existente, cae por
memoria emerger lo que había estado hundido y condenado al olvido.20 lo general en la trampa de pensar que puede hacer afirmaciones sobre el
futuro, a partir de análisis hechos sobre el pasado. Pero a la vez, sus mejo-
el dios cronos res representantes se dan cuenta que el futuro “todavía” (como dirían),
no existe. Entonces, proyectan el momento de la verdad o falsedad de
El futuro no existe, sólo lo podemos imaginar como el potencial resul- una teoría a uno posterior, con la construcción de la falsificación de una
tado del alejamiento del paraíso, de la incapacidad de detenernos. Pero teoría. Esta construcción no es otra cosa que el fallido intento de hacer un
ontológica o materialmente, el futuro es inexistente. Es únicamente el brinco hacia el futuro, pero reinterpretado desde un otro hoy. Se quiere
resultado imaginativo de nuestra fantasía y de nuestra incapacidad de reconstruir el hoy como el “futuro del ayer”, y en esta construcción supe-
ver con calma el presente. La idea del futuro es el resultado de la nega- rar la contradicción más elemental del positivismo: su creencia ingenua
ción al presente que se vive plenamente, es el presente interrumpido. en los hechos, que siempre tienen que ser hechos comprobables, compro-
La fijación en la idea del futuro es a la vez la negación al derecho de bación que sólo puede ser realizada después que pasaron; y a la vez, su
las generaciones pasadas sobre nuestra débil fuerza mesiánica, porque ímpetu incansable de dar conocimientos que hacen planeable el mundo
la fijación en el futuro es inseparable del olvido del pasado. Justo en el existente, lo que deberá ser orientado hacia lo que llamamos el futuro.
momento de no realizarse este derecho de las generaciones anteriores, Benjamin, quien quiere superar la debilidad teórica de la izquierda,
que en gran parte se debe a la presencia relevante que tiene el pensa-
20 No solamente los crímenes de los nacionalsocialistas están condenados al olvido, sino
también los actos de resistencia, sobre todo cuando fueron realizados por judíos. Los miento positivista en ella, detecta con mucha claridad que sólo criti-
nacionalsocialistas hicieron todo lo posible para que no quedara ningún recuerdo de la cando el concepto ingenuo del futuro y con esto, el concepto ingenuo
insurrección exitosa en el campo de exterminio Sobibor el 14 de octubre de 1943 a las 16
horas, en la cual lograron escapar 300 personas. Por esto se supo sólo años después algo del tiempo como vacío, lineal y homogéneo, puede hacer caer el edificio
más de esta insurrección. Los poderosos siempre temen, no solamente el recuerdo de sus teórico del positivismo que tanto impresiona a los que no ven el suelo
actos destructivos, sino también el recuerdo de la posibilidad de que personas mucho
menos armadas y bajo el más estricto control posible puedan lograr rebelarse y matar a
blando de la fe en el dios cronos sobre el cual está construido.
sus vigilantes.
Si el recuerdo de estos dos aspectos clave de toda la historia humana, estuvieran más
presentes en nuestras mentes, la sociedad represiva y explotadora no encontraría siquiera 21 Véase también: Horkheimer y Adorno: Dialéctica de la ilustración, loc. cit., capítulo
tiempo para despedirse. “Concepto de ilustración.”

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Pero: ¿qué es la fe en el dios cronos? Pero el pensamiento positivista, tan presente en las interpretacio-
En el pasaje que probablemente es el más radical de todo este texto, nes socialdemócratas y estalinistas del marxismo en la época de Walter
Benjamin escribe: Benjamin, no puede retomar los nuevos descubrimientos de las ciencias
naturales, no a pesar, sino justamente por su fijación en el método de
La idea de un progreso del género humano en la historia es inseparable
de la representación de su movimiento [Fortgang, S.G.] como un avanzar ellas. Su relación con las ciencias naturales es por definición una rela-
por un tiempo homogéneo y vacío. La crítica de esta representación del ción dogmática y no crítica, así que ni siquiera le interesan los nuevos
movimiento histórico debe constituir el fundamento de la crítica de la descubrimientos, porque más que dar las seguridades que los pensado-
idea de progreso en general.”22 No es casual que muchos de los intérpre- res dogmáticos siempre buscan, provocan dudas, que son el escenario
tes de Benjamin, dejan a un lado en sus comentarios sobre el texto, este
pasaje, sin el cual la radicalidad de las tesis sobre el concepto de historia de horror para ellos.
no se puede percibir ni lejanamente. Esta radicalidad rebasa por mucho la Walter Benjamin se percata con gran claridad de esta contradic-
alcanzada en la teoría social y filosofía contemporánea, tanto, que parece ción básica en las teorías e ideologías dominantes desde su tiempo hasta
una locura intentar retomarla o por lo menos defenderla. Como ya expusi- hoy. Su crítica al concepto dominante de tiempo puede aparecer mís-
mos en las notas preliminares, la teoría social y la filosofía, nunca llegaron
tica, ideológica o sumamente teológica. De cierta manera la teología le
a retomar lo establecido por la teoría de la relatividad de Einstein. Nunca
se entendió en estos ámbitos de la ciencia, que también el tiempo al igual ayuda a superar las concepciones dogmáticas de la ideología positivista
que la energía, la masa y la extensión física (distancia), no son, como se dominante, pero lo que busca es un concepto estrictamente materialista
pensaba antes de la teoría de la relatividad, absoluto, sino dependen cada de tiempo, uno que no cae en el error de declarar una de las necesidades
uno de los otros factores. Para la teoría social y la filosofía, el aprendi- de la forma de reproducción capitalista como un hecho objetivamente
zaje debería ser que el concepción del tiempo como algo absoluto, como
punto seguro de referencia, es la respuesta ideológica de una sociedad que existente, tal como lo hace el positivismo.
es caótica, llena de contradicciones antagónicas y estructuras profunda- Es decir, el ángel de la historia, del cual Benjamin habla en sus
mente irracionales. Mientras la sociedad en sí no pueda dar la seguridad tesis, está orientado hacia atrás, porque es la única orientación posible
necesaria a sus miembros de ser una forma que les ayude a vivir en vez de en términos ontológicos. El adelante como algo existente en dirección
dificultarlo, esta sociedad necesitará establecer estructuras fuera de ella,
hacia el futuro, que con el supuestamente indetenible paso del tiempo se
supuestamente dadas por las leyes naturales, que reemplacen la organiza-
ción racional que la misma sociedad burguesa no es capaz de ofrecer a sus alcanzará pronto, no tiene ninguna manera racional de ser concebido.
miembros.23 Es básicamente el tiempo el que sirve como medidor entre los En este sentido, el adelante no existe, es la nada, que en cada momento
humanos para hacer equiparables sus productos, que desde un principio es declarado existente por las necesidades de la forma de reproducción
son inequiparables. El hecho de que este factor, que se declara objetivo y capitalista, por la dinámica de la autoconservación, que en esta sociedad
absoluto precisamente por ser una categoría absoluta en las ciencias natu-
rales, se quede intacto a pesar de ser superado como tal en la las ciencias
es totalitaria.24 Dicho en otras palabras: el ángel de la historia está orien-
naturales, expresa con toda claridad su carácter de construcción ideológica. tado hacia atrás, porque hacia el “adelante” sólo se pueden orientar los
creyentes en el dios cronos, así como sólo los creyentes en ciertos dioses
22 Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis XIII, p. 50 y s.
pueden orientar su vida hacia su fe en una futura entrada al cielo.
23 Véase al respeto Hegel, el filósofo burgués mas avanzado en su filosofía del derecho,
donde parte de la idea de que la sociedad burguesa en sí, es incapaz de organizarse a Paradójicamente, es justamente la teología la que ayuda a Walter
sí misma racionalmente. Hegel trata de resolver este problema con la construcción del Benjamin a superar la creencia positivista en el dios cronos y con esto
Estado, pero al final se queda con el problema sobre qué fundarlo, ya que si se basa demo-
cráticamente en la sociedad, está afectado de nuevo por la irracionalidad de esta. Al final
fundar una teoría radicalmente materialista. Al final es la teología la que
de cuentas también Hegel, quién siempre quiere poner la razón encima de todo, traiciona
sus principios más profundos y pone por encima del anhelo humano de auto organizarse 24 La dinámica de la auto conservación es totalitaria en nuestra sociedad, porque es soste-
en una sociedad burguesa, la naturaleza: el príncipe tendrá la última palabra en las deci- nida políticamente por las clases reinantes a pesar de las posibilidades técnicas y econó-
siones del Estado y es la naturaleza quien lo elije: por ser el primigenio. micas (en el sentido enfático) de superar su lógica como dominante.

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Walter Benjamin pone a su servicio, para superar los restos teológicos Pero: ¿Por qué el huracán sopla desde el paraíso? “Pero un huracán
en las versiones positivistas del marxismo socialdemócrata y estalinista, sopla desde el paraíso y se arremolina en sus alas, y es tan fuerte que el
es decir, para superar el marxismo dogmático. En última instancia, es la ángel ya no puede plegarlas. Este huracán lo arrastra irresistiblemente
vieja creencia en la salvación dentro de un espacio fuera del tiempo y hacia el futuro, al cual vuelve las espaldas, mientras el cúmulo de ruinas
fuera del mundo, la que está presente en el progresismo y en la creencia crece ante él hasta el cielo. Este huracán es lo que nosotros llamamos
fanática en el dios cronos. El mesianismo de Benjamin no es otra cosa progreso.”27
que el intento de dejar atrás de una vez por todas los restos del mesia- El huracán sopla del paraíso, porque nos aleja de él, como deci-
nismo en el pensamiento que se auto concibe como ilustrado. Así como mos en las interpretaciones anteriores. Pero a la vez esta imagen incluye
Horkheimer y Adorno tratan de salvar el proyecto de la ilustración otro aspecto, igualmente importante. Este otro aspecto abre de nuevo el
precisamente por la vía de su crítica radical, Walter Benjamin intenta campo de tensión que existe en el pensamiento dialéctico de Benjamin,
superar definitivamente los restos mitológicos y teológicos en el pen- educado en Marx. Este huracán, este viento que llamamos progreso,
samiento ilustrado (en su forma del positivismo), por la vía de poner a sopla del paraíso no sólo porque de esta dirección tiene que llegar para
su servicio una última vez, pero esta vez conscientemente, la teología.25 podernos alejar de este paraíso, sino también porque es una fuerza del
Horkheimer y Adorno plantean en los Elementos del antisemitismo26 paraíso mismo, que surge en él, tiene su origen en él. La exclusión del
que el acto de conocimiento contiene siempre un elemento de proyec- paraíso no era el resultado del acto de comer la fruta de la sabiduría, sino
ción, que al ser negado al estilo positivista, refuerza sus efectos por los dos eran uno y el mismo hecho. O dicho de otra manera: la exclusión
hacerse incontrolable. Ellos distinguen entonces entre proyección bajo del paraíso era el resultado del acto de comer la fruta del conocimiento
control, la proyección controlada por la razón consciente de que necesita y al mismo momento y en el mismo sentido, el deseo y la necesidad de
la proyección para poder aprehender el mundo, y proyección falsa, que comer esta fruta era el resultado de ser excluido del paraíso. El progreso
es la proyección negada y por esto, imposible de ser controlada. De una tecnológico es desde el primero momento contradictorio: razón de
manera parecida se puede distinguir entre elementos teológicos contro- nuestra infelicidad así como expresión y método principal de nuestros
lados, porque la teoría es consciente de la ayuda que necesita de ellos, intentos por superarla.
y elementos teológicos falsos, que son aquellos que son negados por la Sería una interpretación sumamente limitada de Walter Benjamin
teoría y por lo mismo sus efectos irracionales se multiplican y se salen de el no ver esta contradicción. Benjamin no es simple y sencillamente un
todo control racional. El primer caso sería el de Benjamin, y el segundo crítico del progreso tecnológico, sino es un crítico del progreso tecnoló-
el del marxismo socialdemócrata y de las otras versiones del positivismo. gico en las condiciones existentes, es decir hoy en día, en las condiciones
de la forma de reproducción capitalista. En este punto, su posición es
también fundada en Marx, pero de nuevo con el intento de radicalizarlo
25 Es obvio que en ningún sentido estamos de acuerdo con las múltiples interpretaciones y de superar los momentos en los cuales Marx cae de repente en sim-
que reducen la relación altamente dialéctica entre el materialismo histórico y la teología
en este texto de Benjamin, a una simple mixtura aguada de los dos extremos de la contra-
plismos históricos.28 En el capítulo sobre maquinaria y gran industria
dicción. Pero, así como en Marx, la confrontación dialéctica del materialismo tradicional del primer tomo de El Capital, Marx no se cansa en hacer la distinción
mecanicista con el idealismo lleva a una nueva forma de materialismo – el materialismo entre la maquinaria en sí y la maquinaria aplicada de manera capita-
histórico, así la confrontación de este último con la teología, lleva a una nueva forma del
materialismo histórico, que todavía no tiene nombre.
26 Adorno, Theodor W. y Horkheimer, Max: “Elementos del Antisemitismo”, capítulo de su
libro: Dialéctica de la ilustración, loc. cit., p. 213-250. El tema de la proyección está tratado 27 Ibid., tesis IX, p. 44 s.
en la tesis VI de este texto (ibid., p. 230-243). Horkheimer y Adorno distinguen entre 28 Así como ciertas frases del Manifiesto del partido comunista que se suelen citar en este
“proyección bajo control y su degeneración en falsa proyección” (ibid. p. 232). contexto, en donde Marx y Engels hablan de la inevitable victoria del proletariado.

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lista.29 En su texto La obra de arte en la época de su reproductibilidad también el estalinismo. Pero tampoco es la mera fuerza destructiva, que
técnica30 Benjamin retoma este motivo y lo aplica a las nuevas técnicas nos aleja del paraíso perdido al que sólo habría que regresar, renegando
artísticas de su época, sobre todo el cine. Este ensayo, está escrito en la a las liberaciones que – a pesar de todo – ha logrado la humanidad, así
misma fase que el texto sobre el concepto de historia, es decir en la fase como lo dirían ciertos conservadores y por supuesto todos los grupos de
marxista de Walter Benjamin. El espíritu del texto está muy claro, Ben- los más diversos fanatismos nacionalistas, racistas y religiosos que tanto
jamin trata de salvar el cine de sus críticos conservadores y también de auge tienen hoy en día.
sus críticos de izquierda, subrayando la capacidad técnica del cine de La fuerza ideológica del nacionalsocialismo era justamente la de
aplicar los últimos inventos, es decir de no cerrarse al progreso de las jugar con esta contradicción y moverse con agilidad en ella. Por esto,
fuerzas productivas, pero a la vez está claramente consciente, que estas la mera fijación al aspecto reaccionario de la extrema derecha, como lo
nuevas posibilidades no se pueden aplicar de manera adecuada bajo las hizo y hace hasta hoy la socialdemocracia, no ayuda nada a entenderlo.
condiciones existentes de la forma económica capitalista. A la vez hay que ver, y en esto insiste mucho Benjamin en los aspectos
Si se olvida esta dialéctica del progreso tecnológico, que a su vez es políticos del texto Sobre el concepto de historia, la cara modernizadora,
parte de lo que Horkheimer y Adorno conciben como la dialéctica de la orientada hacia el progreso tecnológico y organizativo que el nacional-
ilustración, no se puede captar en última instancia nada de la radicalidad socialismo tenía, y movimientos contemporáneos que tienen tendencias
del pensamiento de Benjamin. El huracán del progreso viene del paraíso, parecidas.
tiene su origen ahí, es en sí algo con ciertas fuerzas paradisíacas, y a la
vez es lo que nos aleja del paraíso, lo que nos impide, por lo menos en las subjetividad y detención
relaciones dominantes, actuar libremente y detenernos ahí donde sería
necesario. La auténtica acción revolucionaria es así: no espera el momento en
La inseguridad que provoca esta frase sobre el origen del huracán el cual ‘las condiciones objetivas están dadas’ para tener este o el otro
en el texto de Benjamin, viene de la contradicción inherente a esta ima- efecto, no espera hasta que haya el público (llamado ‘base de masas’)
gen. El huracán impide al ángel de la historia ayudar a los destrozados, que garantice el aplauso frenético, no espera hasta que haya la seguri-
lo arrastra, pero viene del paraíso. Las explicaciones que dimos al inicio dad de entrar en los anales de la historia posterior como héroes y ade-
de la parte ontológica, solamente son correctas si se entienden en el con- más como héroe ganador. La acción revolucionaria es más bien, la que
texto de esta última, que es su contraparte. La fuerza de este viento no siempre tiene su momento, la que no quiere asegurase un lugar en el
es el progreso como lo entendió ingenuamente la socialdemocracia – y mundo futuro, sea por su éxito, sea por las futuras generaciones que
estarán agradecidas hasta en la quinta de ellas. La acción revolucionaria,
tal como ha sido hasta hoy, y como la concibe Benjamin, es una inte-
29 Karl Marx, El capital, Crítica de la economía política. Libro primero. El proceso de produc-
ción de capital, tomo I, vol. 2. Trad. Pedro Scaron. México, Siglo XXI, 1975, capítulo 13: rrupción del tiempo vacío que avanza ciega y homogéneamente. En este
“Maquinaria y gran industria”, sobre todo el subcapítulo 6: “La teoría de la compensación, avanzar ciego y homogéneo, no hay ningún momento preestablecido
respecto a los obreros desplazados por la maquinaria”, p. 533-544.
para la revolución, no hay un lugar en el teatro de la historia con una
30 Walter Benjamin, La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica. Trad. Andrés
E. Weikert. México, Itaca, 2003. 127 p. placa que diga: apartado para la revolución. La revolución no es un paso
Véase también el texto El autor como productor de Benjamin, en el cual expone que el más en este avanzar aparentemente automático del tiempo, sino es algo
autor tiene que estar siempre a la altura de su tiempo, en el sentido de estar a la altura
de las técnicas literarias existentes, y a la vez tiene que ser productor, no sólo de textos, fuera de esta normalidad totalitaria que es el tiempo en su concepción
sino de nuevas fuerzas productivas en la literatura, es decir de nuevas técnicas literarias. hoy en día dominante. Las revoluciones no son la consecuencia lógica de
(Walter Benjamin, El autor como productor. Trad. Bolívar Echeverría, México, Itaca,
2004. 60 p.)
momentos o fases históricas anteriores, que sólo se distinguen por su

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contenido, sino se distinguen también radicalmente por su forma: las La idea ‘grande’ de las revoluciones, tiende a alejarnos del real
revoluciones se salen de la lógica del tiempo lineal, homogéneo y orien- entendimiento de las revoluciones, se idealizan posteriormente sola-
tado hacia el futuro. Son los no momentos de la historia, son aquellos que mente aquellas que lograron imponerse y se reconstruye después este
no caben en la lógica histórica y que la interrumpen. éxito como algo dado desde su principio. Esto tiene un doble efecto: por
Pero las revoluciones no están por esto fuera de la historia, sólo un lado, que esta idea mitificada de las revoluciones nos aleje de la posi-
están fuera de su lógica orientada hacia el futuro, fuera de su avanzar a bilidad de hacer nosotros mismos una, ya que no podemos imaginarnos,
pesar de todo, con la fijación en la imposibilidad de no avanzar, es decir que justamente somos nosotros a quienes nos ‘toca’ hacer uno de estos
de salirse de todo y cuestionar radicalmente todo. Las revoluciones son grandes acontecimientos que cambian supuestamente el mundo para
el momento, en el cual algunos humanos deciden no dejarse impresionar siempre. Intuimos que nuestra fuerza mesianica, como dice Benjamin es
por la supuesta imposibilidad de parar aquella maquinaria gigantesca de débil y, como se nos enseñó, en la idea mitificada de las revoluciones, que
la cual todos formamos parte – queramos o no. Son el momento en el sus actores son héroes con una gran fuerza mesiánica, entonces no nos
cual podríamos recordar instantáneamente la libertad humana, perdida vemos capaces de competir con ellos. Por otro lado, la mistificación de
en el tiempo que avanza como un reloj suizo y nunca nos deja ver, ni las revoluciones niega sus aspectos obscuros, criticables, y los absolutiza
pensar, ni dudar ni un momento, porque the show must go on. a la vez como algo insuperable. ¿Si los grandes revolucionarios de antes
Entonces, la relación que tienen las revoluciones con la historia, es no podían realizar estas revoluciones ejemplares sin actos que hasta hoy
necesariamente una relación con el pasado. Al salirse de la lógica de la nos congelan la sangre en las venas; entonces, ¿de qué manera nosotros,
fijación hacia el futuro, no les queda otra opción que orientarse hacia el que supuestamente somos mucho menos predestinados a ser revolucio-
pasado, y a la vez, restauran la posibilidad de detenerse, de no dejarse lle- narios, podríamos atrevernos a criticarlos o incluso imaginarnos, hacer
var por los “Sachzwänge” (“necesidades objetivas”), de no creer el mito una revolución distinta, no tan repugnante?32
de la imposibilidad de detenerse aunque sea un momento, de no caer en Un acto revolucionario sería entonces aquel que logra interrum-
la trampa eterna de la supuesta necesidad de tantos ‘puntos finales’ que pir, aunque sea por un instante, el continuum de la historia, parar
los poderosos exigen, para hacernos olvidar los muertos, los heridos, los un momento el tiempo, el avanzar de las cosas que se nos presentan
humillados y los responsables de todo esto. como independientes de nosotros. O dicho en el lenguaje de Marx en
Es la revolución que sólo puede relacionarse con el pasado y que a la sus momentos de más fuerza crítica: los actos revolucionarios serían
vez retomó la libertad de detenerse y dar la mano a los oprimidos, a los entonces aquellos que logren diluir instantáneamente el fetichismo de
muertos, a los olvidados de todos los tiempos. nuestros productos que se nos presentan como fuerzas ajenas a noso-
Pero: ¿qué es una revolución? Las revoluciones no sólo son aquellos tros. Desde la perspectiva actual son pequeños y más cerca del suelo
acontecimientos que después se registran en la historia como tales por- que del cielo.
que de una o otra manera lograron imponer algo y construir un nuevo En referencia al Marx en sus momentos de un ingenuo optimismo
sistema social. Las revoluciones, o los actos revolucionarios, son cual- histórico, así como lo conocemos por ejemplo del Manifiesto, Benjamin
quier intento logrado de interrumpir la maquinaria que funciona apa- anota en uno de sus esbozos relacionados con las tesis sobre el concepto
rentemente de manera indetenible con el ritmo sin piedad de los relojes. de historia:
Por esto Benjamin habla también de “una oportunidad revolucionaria
en la lucha por el pasado oprimido”.31
32 Sobre la distinción entre mito y concepto de revolución véase también: Bolívar Echeverría,
“Postmodernismo y cinismo”. En: B.E., Las ilusiones de la modernidad, México, Universi-
31 Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis XVII, p. 54 y s. dad Nacional Autónoma de México/El Equilibrista, 1995, p. 39-54.

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Marx dice que las revoluciones son las locomotoras de la historia mundial. de emergencia en un tren que se dirigía a Auschwitz, Sobibor, Treblinka
Pero tal vez esto es completamente distinto. Tal vez las revoluciones son u otro de los campos de extermino nacionalsocialistas.
el momento en el cual el genero humano, que viaja en este tren, acciona el
Pero estos trenes no tenían freno de emergencia. Avanzaron pun-
freno de emergencia.33
tualmente hacia su destino. La destrucción de los judíos europeos no
Para entender esta frase en su verdadero sentido y peso hay que se salió del horario de la historia, sino fue justamente el resultado de
ver los años en los cuales Benjamin escribió este texto y también los nuestra incapacidad de interrumpirlo:
años que siguieron inmediatamente después, así como todo este texto de
La tradición de los oprimidos nos enseña que el “estado de excepción” en
Walter Benjamin no se puede entender ni remotamente, si no se conoce que ahora vivimos, es en verdad la regla. El concepto de historia al que lle-
las historia del nazismo y del fascismo y menos aún si no se conoce la guemos debe resultar coherente con ello. Promover el verdadero estado de
historia de la destrucción de los judíos europeos.34 excepción se nos presentará entonces como tarea nuestra, lo que mejorará
La imagen del freno de emergencia que debiera detener el tren, es nuestra posición en la lucha contra el fascismo. La oportunidad que éste
tiene está, en parte no insignificante, en que sus adversarios lo enfrentan
más que una imagen que el filósofo usa para hacer entender sus ideas en nombre del progreso como norma histórica. El asombro ante el hecho
al público interesado. Es la realidad misma. Cuando el autor de estas de que las cosas que vivimos sean “aun” posibles en el siglo veinte no tiene
líneas comentó la frase de Benjamin arriba citadas a Claude Lanzmann, nada de filosófico. No está al comienzo de ningún conocimiento, a no ser
quien ha realizado la mejor película de todos los tiempos, la mejor pelí- el de que la idea de la historia de la cual proviene ya no puede sostenerse.36
cula sobre la destrucción de los judíos europeos y quién no solamente Si alguien hubiese logrado detener los trenes a Auschwitz, Tre-
ha estudiado, sino hablado con una parte importante de sus pocos tes- blinka, Sobibor, su acto hubiera sido revolucionario. Tal vez parar un
tigos oculares directos sobrevivientes, Lanzmann contestó espontá- solo tren lleno de gente en el camino al exterminio inmediato, hubiera
neamente en el sentido de que esto se refiere a la Shoah.35 El freno de sido más revolucionario que los actos de Robespierre y Danton juntos.
emergencia que el acto revolucionario podría accionar, sería entonces, Probablemente pocos hablarían hoy de este acto, pero esto no cambia
según la interpretación de este intelectual, quien con su película SHOAH nada del asunto. En su nueva película “Sobibor, 14 de octubre de 1943,
ha creado una obra artística que se acerca de una manera increíble a la 16 horas”, Claude Lanzmann hace recordar justamente un acto de esta
concepción filosófica expresada en el texto a discutir de Benjamin, no índole, del cual muy pocos saben y menos aún hablan: la insurrección
cualquier freno de emergencia en cualquier tren, sino más bien, el freno en el campo de exterminio nacionalsocialista Sobibor el día catorce de
octubre de mil novecientos cuarenta y tres que comenzó a las dieciséis
33 Walter Benjamin, “Anmerkungen zu den Thesen über den Begriff der Geschichte”. En: horas. Poco después de esta insurrección, este campo fue cerrado por los
W.B., Gesammelte Schriften, ed. de Rolf Tiedemann y Hermann Schweppenhäuser, tomo nacionalsocialistas para borrar toda memoria de que los presos judíos
I.3, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1980, p. 1232. Trad. aquí de S.G. Original: “Marx sagt,
die Revolutionen sind die Lokomotiven der Weltgeschichte. Aber vielleicht ist dem gän-
lograron interrumpir esta maquinaria de la muerte. Entonces, la insu-
zlich anders. Vielleicht sind die Revolutionen der Griff des in diesem Zuge reisenden rrección logró, además de salvar la vida a unas sesenta personas destina-
Menschengeschlechts nach der Notbremse.” (Ibid.) das por los nacionalsocialistas a la muerte, detener el funcionamiento de
34 Benjamin insiste también en la necesidad de conocer la historia posterior, para poder
entender un acontecimiento histórico (y cada texto es también una forma muy específica
este campo de exterminio de manera definitiva. Los actos revoluciona-
de un acontecimiento): rios son dirigidos a parar la maquinaria, detener el tiempo, interrumpir
“Fustel de Coulanges le recomienda al historiador que quiera revivir una época que se el progreso que en su ceguera y vaciedad es el aliado ‘natural’ de los
quite de la cabeza todo lo que sabe del curso ulterior de la historia. Mejor no se podría
identificar al procedimiento con el que ha roto el materialismo histórico.” (Walter Benja- opresores y genocidas.
min, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis VII, p. 41.)
35 Conversación del autor con Claude Lanzmann, Frankfurt / Main, 14 de enero 2002. 36 Walter Benjamin, “Sobre el concepto de historia”, loc. cit., tesis VIII (completa), p. 43.

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Pero estos actos revolucionarios no son para festejarlos, no sola- esto es el lema de aquellos políticos que unen en una sola persona, en
mente por lo obvio de su debilidad, ya que sólo lograron detener una un sólo movimiento “la fe ciega... en el progreso, la confianza en su ‘base
pequeña parte de la maquinaria, lejos de pararla en su totalidad, sino de masas’” con “su servil inserción en un aparato incontrolable”. 40 Y por
también, porque son actos revolucionarios negativos. Su único fin es, esto, los políticos de la llamada izquierda reformista tienen que mandar
parar el tren que va directo a la muerte. Pero no arrancan nuevos trenes a reprimir de vez en vez los movimientos de rebelión espontáneos que
a lugares llenos de felicidad. no pueden controlar. Piensan que éstos interrumpen su avanzar hacia
Cuando Walter Benjamin habla de la necesidad de “cepillar la his- el momento glorioso, que no entienden que hay que marchar por las
toria a contrapelo”,37 se refiere también a esto: para entender el concepto instituciones para un día – un día – levantarse, demostrar su fuerza siem-
de revolución que él introduce, hay que cepillar también la historia de pre escondida con “su servil inserción en un aparato incontrolable”, para
las revoluciones a contrapelo. El que sólo ve las revoluciones a partir de salvar el mundo de tal manera que hasta el Me sías de las tradiciones
las grandes batallas ganadas, no entiende en este falso heroísmo nada de religiosas se quedaría pálido de envidia.
la verdadera historia de las rebeliones y actos revolucionarios. Es proba- Pero la fuerza mesiánica que tenemos, cada generación, cada uno y
blemente justo esta falsa concepción heroizante de las revoluciones, la cada una, es esto: débil. Es pequeña, tal vez igual de fea que el enano que
que nos aleja hoy tanto de su posibilidad, necesidad y realidad. tiene que esconderse que Benjamin menciona en la primera tesis, pero:
La mirada hacia atrás, angustiada y llena de tristeza, es entonces a la es el secreto de cada acción, aunque sea la más pequeña, que se realiza en
vez fuente de esperanza: si incluso el ángel de la historia no tiene los ojos la historia contra la opresión, la explotación, la exclusión, la persecución
llenos de seguridad de vencer, de avanzar firmemente, entonces, ¿por- y el olvido de sus víctimas.
que nosotros vamos a pedir tanta seguridad, tantas condiciones obje- El mesianismo de Benjamin está orientado hacia atrás por esto: para
tivas dadas para atrevernos a interrumpir el continuum? El antihéroe distinguirse del mesianismo arrogante y lleno de miedo a la vez, de los
de Brecht que hace posible el entendimiento de que nosotros mismos auto declarados salvadores potenciales del mundo. Benjamin sabe muy
podríamos también hacer algo aquí abajo, está presente en el ángel de la bien que los muertos no van a revivir por una política distinta o por el
historia, que está orientado hacia atrás.38 recuerdo que les brindemos. Pero sabe que su muerte no es definitiva, es
Si Benjamin habla entonces, de “una débil fuerza mesiánica”,39 no decir, no es un proceso ya acabado: “tampoco los muertos estarán a salvo
solamente retoma ciertos momentos de la teología, sino critica a la vez del enemigo si éste vence. Y este enemigo no ha cesado de vencer.”41 Los
las fantasías de omnipotencia que acompañan por lo regular la afirma- nuevos vencedores, que muchas veces se auto declaran los redentores de
ción de que ahora, todavía no es el momento para demostrar al mundo lo los muertos anteriores, hacen morir de nuevo a los muertos al burlarse
que desde un principio podríamos hacer con él. La arrogancia, la incapa- de sus esperanzas no cumplidas, de sus intentos fallidos de interrumpir
cidad de ver los propios límites, está inseparablemente vinculada con la el curso ciego de la historia. En el mismo momento en que estos políti-
subestimación de la propia capacidad de intervención histórica. ‘Sería- cos organizan el olvido de los muertos, que a su vez es el olvido de sus
mos aquellos que liberan el mundo de una vez para todas de todos sus esperanzas que hoy tampoco se están cumpliendo, declaran que pronto
males, si sólo el progreso, el curso automático de la historia nos llevara todo será mejor y que todas nuestras fuerzas deben ser orientadas hacia
al momento correcto, si sólo las condiciones objetivas estuvieran dadas’,

40 Véase: “la fe ciega de esos políticos en el progreso, la confianza en su ‘base de masas’ y, por
37 Ibid., tesis VII, p. 43. último, su servil inserción en un aparato incontrolable no han sido más que tres aspectos
38 Sólo en este sentido la frase “Cuando está más obscuro amanece”, tiene sentido. de la misma cosa” (Ibid., tesis X, p. 45).
39 Ibid., tesis II, p. 37. 41 Ibid., tesis VI, p. 40.

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adelante, para cuando venga el momento (si viene) estar preparados, y llamado tercer mundo, ‘formas feudales’. Implícitamente había la idea de
en un sólo acto, superar todo lo anterior. que el capitalismo y la sociedad burguesa son por sí un avance histórico.
Nuestra fuerza mesianica es débil, porque lo que en el mejor de No vieron lo que la Escuela de Frankfurt llama la dialéctica de la ilus-
los casos podremos lograr: la sociedad sin clases, como dice Benjamin tración. No vieron, que las bestialidades cometidas en esta sociedad no
citando a Marx, no es la solución gloriosa y definitiva de todo el sufri- eran restos de algo feo anterior, que se irían en el momento que la socie-
miento y la garantía para todas las generaciones futuras de una mejor dad burguesa estuviera presente en todo el mundo y en cada rincón, así
vida. No, la sociedad sin clases no es otra cosa que el momento en que como en cada momento, sino algo que es intrínsecamente una parte de
logremos interrumpir el progreso de la historia.42 En comparación con esta sociedad.
las promesas de los políticos de la izquierda reformista de la época de Este error se podía cometer por razones políticas, pero también
Benjamin, es algo realmente pequeño. Pero en comparación con lo que por una interpretación limitada y muy selectiva de Marx. Este autor es
ellos hicieron realmente y considerando lo que significó el nacionalso- contradictorio en este punto, pero la izquierda positivista, es decir la
cialismo y el fascismo para la humanidad, hubiera sido algo infinita- socialdemocracia y los estalinistas, no querían ver esta contradicción en
mente grande. este filósofo, ya que les interesaba más la utilidad política de su teoría.
Muchos de los políticos de la izquierda reformista pensaron, que Pero una teoría demasiado complicada y contradictoria no sirve para
sólo hay que correr hacia adelante, para construir un mundo más libre, movilizar multitudes y menos aún sirve para indoctrinarlos por los jefes
pero se les olvidó lo que cualquier vaquero del oeste sabe: hay que cui- y demagogos de los partidos.
darse la espalda. También la historia tiene una espalda, tiene sus rever- Querían unir las multitudes detrás de ellos con los métodos que
sos, sus lados obscuros. En la ideología progresista no cabía la idea de conocían de la guerra: con gritos que convencían a los guerreros en cada
que estos lados obscuros podrían tener alguna relevancia. Y este error momento, que van a vencer y que la muerte será de los otros, y la glo-
de la izquierda reformista de la época de Walter Benjamin se repite hoy ria, la victoria y la recompensa para ellos mismos. La ideología del pro-
en día. greso necesario e inevitable, del socialismo como consecuencia lógica
Se pensaba, que las ideologías que se conciben como retrógradas: del curso predestinado de la historia, en última instancia no era otra
el racismo, el antisemitismo, el belicismo, el chauvinismo, serían supe- cosa que estos gritos de guerra. Y esto mismo era una de las razones,
radas por el mero progreso histórico. El puro hecho de que los relojes y porque tan fácilmente una parte muy grande de los votantes del par-
los calendarios avanzaran, así como que las tecnologías se renovaran y tido socialdemócrata y del partido comunista de Alemania y de muchos
desarrollaran cada vez más, les parecía garantía suficiente de que estas otros países de Europa, cambiaron de parecer para votar en favor de los
ideologías y sus respectivas prácticas no eran más que un resto de los partidos de extrema derecha en el momento que empezó su auge. Que-
malos viejos tiempos. La izquierda reformista hasta suele llamar las for- rían estar con los vencedores tal como sus líderes políticos de la izquierda
mas más repugnantes de explotación, por ejemplo en ciertas zonas del reformista y estalinista les habían enseñado por años.
Pero: nunca aprendieron a cuidarse la espalda. Pensaron que detrás
42 Véase: “La sociedad sin clases no es la meta final del progreso en la historia, sino su de ellos, todo lo que concibieron como retrógrada, del pasado, se caería
interrupción, tantas veces fallida y por fin llevada a efecto.” (Walter Benjamin, “Tesis por si sólo. Por esto había ante el nacionalsocialismo (y hay hasta hoy),
sobre la historia. Apuntes, notas y variantes”. En: W.B., Tesis sobre la historia, loc. cit.,
p. 61-118, aquí: “tesis XVII A”, p. 68-70. Véase también: Walter Benjamin, “Sobre el con-
tanto “asombro ante el hecho de que las cosas que vivimos sean ‘aún’
cepto de historia”, loc. cit., tesis XVIII, p. 56, nota del editor 5.) Original: “Die klassenlose posibles en el siglo veinte”.43 Pero, este asombro “no tiene nada de filo-
Gesellschaft ist nicht das Endziel des Fortschritts in der Geschichte, sondern dessen oft
mißglückte, endlich bewerkstelligte Unterbrechung.” (Walter Benjamin, “Anmerkungen
zu den Thesen über den Begriff der Geschichte”, loc. cit., p. 1231.) 43 Ibid., tesis VIII, p. 43.

112 113
sófico. No está al comienzo de ningún conocimiento, a no ser el de que de nadar “a favor de la corriente”?46 La tesis XII que probablemente es, en
la idea de la historia de la cual proviene ya no puede sostenerse.”44 No términos políticos, una de las más fuertes, dice al respecto:
pensaron que ‘detrás’ de ellos podría crecer algo que no se diluye por si
El sujeto del conocimiento histórico es la clase oprimida misma, cuando
sólo o por el mero avanzar del tiempo o de la historia. combate. En Marx aparece como la última clase esclavizada, como la clase
Su fijación en los gritos de guerra que eran los eternos discursos vengadora que lleva a su fin la obra de la liberación en nombre de tantas
del futuro a ganar, de las batallas que hay que hacer por un mejor futuro generaciones de vencidos. Esta conciencia, que por corto tiempo volvió a
de los hijos (léase: para ser festejado posteriormente por ellos y todas tener vigencia con el movimiento Spartacus, ha sido siempre desagradable
para la socialdemocracia. En el curso de treinta años ha 1ogrado borrar
las generaciones que siguen, así como se festeja hasta hoy la revolu- casi por completo el nombre de un Blanqui, cuyo timbre metálico hizo
ción francesa, la independencia de Estados Unidos, etcétera.), se fun- temblar al siglo pasado. Se ha contentado con asignar a la clase trabajadora
daron sobre todo en el miedo, o como dirían los autores de la Escuela el papel de redentora de las generaciones futuras, cortando así el nervio
de Frankfurt: en la incapacidad de salirse de la lógica de la lucha por la de su mejor fuerza. En esta escuela, la clase desaprendió lo mismo el odio
que la voluntad de sacrificio. Pues ambos se nutren de la imagen de los
supervivencia, a pesar de que económicamente ya podríamos hacernos
antepasados esclavizados y no del ideal de los descendientes liberados.47
independiente de esta lógica desde los años veinte del siglo veinte. Estos
gritos de guerra eran la ideología del progresismo, y en última instan- La única dinámica que realmente puede llevarnos a luchar, no
cia, también lo es, la ciega creencia en el tiempo como algo idéntico al como guerreros o como mercenarios, quienes en cualquier momento
avanzar de los relojes, como algo homogéneo, lineal, ininterrumpido y pueden cambiar de bando si el otro parece estar más fuerte, es: la “ima-
vacío. Estas ideologías y estas prácticas políticas, se basan en la falta de gen de los antepasados esclavizados”. Es una imagen de algo real, algo
otra dinámica que podría hacernos actuar. que realmente pasó, mientras que lo que propone la socialdemocracia
Por esto Walter Benjamin insiste en el aspecto mesiánico, siempre es algo meramente pensado, ideal: el “ideal de los descendientes libera-
con la idea de que a nosotros “nos ha sido conferida una débil fuerza dos”. En el momento de que este ideal, o la posibilidad de realizarse en
mesiánica”.45 La falta de esta consciencia lleva con cierta necesidad a los un mediano plazo, se pone en duda, la lucha acaba por sí sola, así como
mencionados gritos de guerra del progresismo, historicismo y de la fe en pasó en más de una ocasión en la historia, con el ejemplo inolvidable
el dios cronos. Benjamin sabe del momento no planeable, no previsible del papel que jugó la socialdemocracia alemana al inicio de la época
de cada revolución. Es además una de las mayores fuerzas de los opri- del nacionalsocialismo, cuando sus diputados en el parlamento alemán
midos, tener mucho menos la necesidad de planear que la de los opre- aprobaron el 17 de mayo de 1933 –una semana después de las quemas
sores que sólo logran oprimir el mundo con cierta planeación. Por eso públicas de libros– la declaración oficial del gobierno nacionalsocialista
los oprimidos tienen cierta libertad instantánea al momento de empezar sobre su política exterior. El 19 de junio del mismo año, el comité ejecu-
una rebelión o una revolución. Es esta fuerza que la izquierda de índole tivo del Partido Socialdemócrata Alemán (SPD) destituyó a los miem-
positivista quita a los oprimidos al querer integrar y hacer previsible bros judíos de dicho comité; tres días después el partido fue de todos
todo, es decir también en las rebeliones y revoluciones, dentro de su modos prohibido.
concepto vacío de historia y del tiempo como lineal y homogéneo. Sólo del recuerdo de las represiones y humillaciones del pasado, así
Pero entonces: ¿de donde puede venir la dinámica revolucionaria, si como de las viejas esperanzas y de uno que otro intento revolucionario,
no es desde los gritos de guerra que son la fijación en el futuro y la idea se puede sacar una fuerza política que no se deje someter tan fácilmente
46 “No hay otra cosa que haya corrompido más a la clase trabajadora alemana que la idea de
44 Ibid. que ella nada con la corriente.” (Ibid., tesis XI, p. 46.)
45 Ibid., tesis II, p. 37. 47 Ibid., tesis XII (completa), p. 48 y s.

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como le pasó con increíble regularidad a la izquierda reformista. Dicho Vida temporal comum:
de otro modo: mira hacia atrás porque el pasado no pasó, todas las bes-
tialidades del pasado que creemos haber superado, pueden renacer en 0 carácter temporal da intersubjetividade afetiva
cualquier momento de tal manera y tal magnitud que no lo podemos
imaginar. La fuerza que tenemos en la lucha política, no será lo que nos André Barata
lleve con seguridad hacia nuevas tierras llenas de felicidad, sino una que
intente, a partir del recuerdo, evitar que se ‘repita’ (y cada vez podría
ser peor que la anterior, porque las técnicas no sólo avanzan para una
aplicación productiva y liberadora, sino también para una aplicación
destructiva y opresora) lo que pasó y que solamente parece haber desa-
parecido o haber sido superado.

i. o resgate
Há todo um conjunto de afetos relacionados com os sentimentos de
falta e de culpa, sejam o arrependimento e o remorso, sejam o perdão
e a incapacidade de uma pessoa se perdoar a si mesma, que tem uma
longa tradição de submissão à ordem das considerações religiosas sem
que, porém, tal dependência seja forçosa, podendo, na verdade, ser tema
de uma descrição fenomenológica religiosamente neutra. Tais sentimen-
tos ou afetos, em todo o caso vivências intencionais, tendo sido apro-
priados de forma quase hegemônica pelo discurso religioso, ou, melhor,
pela moral religiosa associada à cristandade, acabaram de algum modo
por constituir parte significativa do vocabulário de uma psicologia moral
cristã, passando assim como se fossem essência vivencial e fenomenoló-
gica desta moralidade e como se, fora desta, nem sequer fizesse sentido
nomeá-los. Contraída esta vinculação hegemônica, tornou-se expectável
que a renúncia ou superação da moralidade cristã, não importando para
o caso por que motivos e em que circunstâncias, determinasse uma coex-
tensiva denegação do que passou por ser a “sua” fenomenologia. Recolho
um exemplo ilustrativo da novela A Viagem, de João Paisana, um dos
precursores dos estudos de fenomenologia em Portugal, e que me per-
mite assim prestar-lhe homenagem. Diz, a dado passo, o narrador de A

116 117
Viagem – “O arrependimento e a ideia de remorso são sentimentos que, pelo menos em esboço, fenomenologicamente tratável. Na verdade, é
por princípio, te não permites, que desde a adolescência aprendeste, com como se, à partida, nos decidíssemos a nos subtrairmos parte das nos-
esforço, a desprezar; fazem-te sorrir, sabes que estão necessariamente sas possibilidades mais próprias de vivência pelo fato, até certo ponto
ligados a uma moral que para sempre puseste em questão”.1 verdadeiro, de que a cultura religiosa cristã é uma cultura de culpa. Por
Este tipo de posicionamento é facilmente reconhecível nos autores outro lado, mas por essa mesma razão, há uma verdade da moralidade
atraídos pelo projeto existencialista, e desde logo em Sartre, de quem religiosa que estará na “sua” fenomenologia ainda que essa fenomenolo-
poderíamos recolher inúmeras citações com o mesmo sentido na sua gia não seja sua senão circunstancialmente, circunstâncias, no entanto,
obra autobiográfica As Palavras. Mas, antes destes, e sem dúvida de tão importantes como a da primeira enunciação, a primeira descrição e
maneira marcante, terá sido Nietzsche quem denegou abertamente organização num sistema psicológico de tais vivências intencionais. Até
a psicologia cristã do remorso e do arrependimento, denunciando-a certo ponto, foi isso que Kierkegaard terá percebido ao apostar numa
como parte de um vasto rol de criações que povoam o imaginário cris- certa psicologia do pecado como matriz para uma teologia do pecado.3
tão, desde esses afetos propriamente psicológicos até aos entes fantásti- Dito de outro modo, parte importante da força vivencial da moralidade
cos da alma, do espírito, do eu, e também aos lugares e acontecimentos cristã assentou em algo que não é, porém, essencialmente da ordem de
não menos fantásticos do reino de Deus ou do juízo final. uma moralidade religiosa. Por exemplo, a experiência do perdão res-
soa em nós para lá dos vínculos morais ou mesmo culturais associa-
No cristianismo, nem a moral nem a religião estão em contacto com a
realidade. Somente encontramos nele causas imaginárias (“Deus”, “alma”, dos à religiosidade cristã. Por antecipação, a teologia e a ética religiosa
“eu”, “espírito”, o “livre” – ou também o “não-livre arbítrio”; só efeitos ima- terão feito fenomenologia que precedeu em muito tempo a fenomeno-
ginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “remissão dos pecados”); logia tal como a reconhecemos hoje – disciplinarmente consciente de si
um comércio entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma enquanto método de investigação. Creio que não fora esta vinculação
ciência natural imaginária (antropocentrismo, ausência do conceito de
causa natural); uma psicologia imaginária (só erros sobre si próprio, inter- e não seria compreensível, por exemplo, o evidente eco do dogma da
pretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis, por exemplo queda original, do pecado original, e da subsequente vergonha e culpa-
dos estados do neruus sympathicus, com o auxílio da linguagem figurada bilidade, na fenomenologia do olhar proposta por Jean-Paul Sartre, um
da idiossincrasia religioso-moral – “arrependimento”, “remorso”, “tentação autor abertamente ateu.
do Demônio”, “presença de Deus”); uma teologia imaginária (“o reino de
Aliás, o paralelismo entre uma fenomenologia e uma dogmática é
Deus”, “o juízo final”, “a vida eterna”).2
com Sartre particularmente acentuado, ressaltando em diversas passa-
O meu ponto, porém, é que uma tal denegação, tão bem exempli- gens de O Ser e o Nada. Por exemplo, a ideia decisiva para o cristianismo
ficada nas palavras de Nietzsche em O Anticristo, tem um preço dema- de uma queda original:
siado elevado. Por um lado, a fenomenologia das vivências do remorso,
Se há um Outro, seja ele qual for, onde quer que esteja, quaisquer que
do arrependimento, do perdão, mesmo do pecado, é abertura a uma sejam as suas relações comigo, sem mesmo que ele atue sobre mim a não
verdade que pode ser desvelada (no sentido heideggeriano de uma ale-
theia), trazida à presença sem, com isso, implicar o compromisso com
uma moralidade religiosa. Portanto, recusá-la seria como alguém fechar 3 “O propósito deste trabalho é tratar psicologicamente o conceito de angústia, mantendo
constantemente no espírito e à frente dos olhos o dogma do pecado original. Assim
os olhos quando posto diante de vivências humanas cuja realidade é, sendo, também se ocupará, ainda que de modo tácito, do conceito de pecado. O pecado,
porém, não cabe na área de competência da Psicologia e querer tratá-lo de acordo com
1 PAISANA, João, 1980. A Viagem. Lisboa: A. Pidwell, p. 30. essa perspectiva seria relegarmo-nos ao serviço de um esteticismo mal-entendido.”
2 Nietzsche, 1888. O Anticristo. Trad: Pedro Delfim Pinto dos Santos. Lisboa: Guimarães (KIERKEGAARD, Soren, 1844. O Conceito de Angústia. Trad. Eduardo Fonseca & Torrieri
Edts, 1988, p. 32. Gomes. Rio de Janeiro: Hemus, 2007, p. 20.)

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ser pelo puro surgimento do seu ser, tenho um fora, tenho uma natureza; A vergonha é apreensão unitária de três dimensões: “Eu tenho vergonha
a minha queda original é a existência do outro.4 de mim perante outrem.” Se acontece desaparecer uma destas dimensões,
a vergonha também desaparece. Se, porém, eu concebo o “alguém”, sujeito
Esta referência à queda original não visa, em exercício espúrio de perante quem tenho vergonha, enquanto ele não pode tornar-se objecto
refiguração, citar a Escritura, e muito menos conformar-se a ela. Antes sem disseminar numa pluralidade de outrem, se eu o estabeleço como a
visa, pelo contrário, resgatar qualquer coisa que nos dizendo existencial- unidade absoluta do sujeito que não pode de modo nenhum tornar-se
objecto, estabeleço assim a eternidade do meu ser-objecto e perpetuo a
mente respeito terá sido recolhida pelo discurso religioso. Além disso, minha vergonha. É a vergonha perante Deus, ou seja, o reconhecimento da
visa trazer sentido a essas vivências apropriadas pela religião, expondo minha objectidade perante um sujeito que nunca pode tornar-se objecto;
nelas uma essência que não é, porém, religiosa. É assim que Sartre, ao do mesmo passo, realizo no absoluto e hipostasio a minha objectidade: a
dar da culpa e do pecado uma compreensão estritamente fenomenoló- posição de Deus faz-se acompanhar de um coisismo da minha objecti-
dade; melhor ainda, assento o meu ser-objeto-para-Deus como mais real
gica, na verdade vem esclarecer a origem não religiosa das vivências que
do que o meu para-si; existo alienado e faço-me inteirar pelo meu fora
compõem a espiritualidade religiosa. daquilo que devo ser. É a origem do temor perante Deus.6
É desta situação singular que parece tirar a sua origem a noção de culpabi-
Ora, está já claro que a minha pretensão será, muito à semelhança
lidade e de pecado. É em face do outro que sou culpado. Culpado, antes de
mais, quando, sob o seu olhar, experimento a minha alienação e a minha do que Sartre fez com a vergonha, a culpabilidade e o pecado, não deixar
nudez como um decaimento que devo assumir; é o sentido do famoso: ao discurso religioso-moral o exclusivo do tratamento fenomenológico
“Eles conheceram que estavam nus” da Escritura. (...) Assim, o pecado de afetos como o arrependimento e o remorso, o perdão e o autoperdão.7
original é o meu surgimento num mundo onde há o outro, e, sejam quais Naturalmente, este resgate não se faz a não ser praticando-se fenome-
forem as minhas relações ulteriores com o outro, elas não serão mais do
que variações sobre o tema originário da minha culpabilidade.5 nologia, ou seja, indo às coisas elas mesmas. O que proponho então é
abordar, numa sequência de secções, primeiramente os fenômenos do
A culpa aqui não é julgada por uma lei a que se terá faltado, uma arrependimento e do remorso, vinculando-os à intersubjetividade; em
justiça que se terá falhado. Esta é uma culpa ontológica, intransponível, segundo lugar, os fenômenos do perdão e do autoperdão, estendendo
sem dado acontecimento justiciável pela qual pudéssemos ser chama- aquela primeira vinculação à temporalidade; em terceiro lugar, a con-
dos à responsabilidade. Esta culpabilidade, no caso de Sartre, não releva traposição entre o remorso e a impenitência na relação que um e a outra
da moralidade mas da ontologia, não exprime falta ao dever, mas falta mantêm com a temporalidade. Se já com Sartre o ser-para-outrem, e
de ser, e então também a fragilidade da exposição ao olhar do outro, a portanto a intersubjetividade, era expressão de uma inescapável culpa-
fragilidade de se descobrir num mundo, aí, vulnerável, não fisicamente bilidade, falta de entalhe ontológico, tentaremos mostrar adiante que
vulnerável, mas ontologicamente vulnerável. É nesse sentido que Sartre essa culpabilidade, assim exposta, expõe ela própria uma ferida da tem-
expõe o fenômeno da vergonha. Tal vulnerabilidade ontológica atinge o poralidade.
seu paroxismo na figura omnisciente de um deus que, apesar da sofisti-
cação do ateísmo de Sartre, tem a sua versão fenomenológica na proje-
ção omniausente de um Outro indeterminado.
6 SARTRE, 1943, p. 299.
7 A propósito do perdão, já Hannah Arendt, em A Condição Humana, fazia uma obser-
vação no mesmo sentido – “O descobridor do papel do perdão na esfera dos negócios
4 SARTRE, Jean-Paul, 1943. O Ser e o Nada. Trad. Cascais Franco. Lisboa: Círculo de Leito- humanos foi Jesus de Nazaré. O fato de ele ter feito esta descoberta num contexto reli-
res, 1993, p. 274. gioso e a ter enunciado em linguagem religiosa não é motivo para a levar menos a sério
5 SARTRE, 1943, p. 410. num sentido estritamente secular.” (ARENDT, 1958, p. 291)

120 121
ii. culpa e vergonha práticos como a confissão e a expiação, designadamente através do arre-
pendimento e do perdão, cujas “lógicas” procuraremos pormenorizar
Contudo, ainda antes de dar curso a este programa de intenções rela- adiante, já as culturas da vergonha não têm com que se remediar. Este
tivo à significação do fenômeno da culpa subjetivamente vivida, bem ponto é reiterado com forte ênfase pela autora: “Onde a vergonha cons-
como dos processos que visam a sua superação, importa dar notícia titui sanção importante, não se experimenta alívio quando se divulga
daqueles quadros culturais em que, pelo menos na aparência, a ênfase uma transgressão, ainda que seja a um confessor.”9
não é posta na culpa e em que, por isso, também tais processos de A importância desta diferença mede-se a montante, no tipo de rela-
superação da culpa não chegariam a ter expressão. A antropóloga nor- ção que ela subentende, bem como a jusante, nas consequências relacio-
te-americana Ruth Benedict, autora de Padrões de Cultura (1934) e O nais que dela se seguem. Relativamente a estas, a inflexibilidade da ver-
Crisântemo e a Espada (1946), propôs, na segunda das duas obras men- gonha, em contraste com a maleabilidade da culpa, determina formas de
cionadas, uma importante distinção entre dois tipos de cultura, cada relacionamento com a falta e a transgressão fortemente marcadas pela
um deles baseado num dado princípio de socialização prevalecente: ou intransigência, e que requerem uma formação autodisciplinadora muito
a culpa, ou a vergonha. mais exigente do que a requerida por culturas da culpa. Para Benedict,
Nos estudos antropológicos de culturas diferentes, é importante a distin- ao contrário das culturas de vergonha, as culturas de culpa são, na ver-
ção entre as que profundamente enfatizam a vergonha ou a culpa. Uma dade, e sem contradição, também culturas de desculpa. As razões que
sociedade que incute padrões absolutos de moralidade e se orienta no explicam estas diferenças, com as consequências que delas se seguem,
sentido do desenvolvimento de uma consciência por parte do homem é
uma cultura de culpa por definição (...). Numa cultura em que a vergonha encontram-se a montante, na maneira como se configuram tanto a rela-
constitua uma sanção importante, as pessoas mortificam-se por atos que ção com a culpa como a relação com a vergonha. Enquanto a primeira
esperamos nelas despertarem culpa. Tal mortificação poderá ser muito se constitui por meio de um desdobramento da sanção social em dois
intensa, não podendo ser aliviada, como a culpa, através de confissão e planos, de tal maneira que, sob o plano da exterioridade exposta ao juízo
expiação.8
de censura dos outros se descobre um segundo plano, de interioridade
O que diz Ruth Benedict em O Crisântemo e a Espada não signi- do sujeito exposto ao juízo sobre si mesmo, já no caso da vergonha
fica que não se possa encontrar os dois princípios em simultâneo, nem semelhante desdobramento não ocorre, intensificando-se a vigilância
sequer que não haja entre eles reenvios que os articulem num todo. É sobre o juízo exterior dos outros, sem que o possamos contrabalançar
sobretudo afirmado que, consoante o tipo de cultura, ou se tem que a com o juízo interior da culpa. De certo modo, nas culturas de culpa,
culpa prevalece sobre a vergonha ou se tem, pelo contrário, que a vergo- exterioridade e interioridade dividem entre si o fardo da falta, podendo
nha prevalece sobre a culpa. Trata-se, pois, acima de tudo, de uma ques- um dos lados compensar o outro e, assim, sob a presunção de que haja
tão de ênfase e não de exclusão. Por outro lado, a ênfase em um ou outro comunicação entre ambos os lados, contribuir para um alívio do todo.
destes princípios determina, de acordo com a antropóloga, diferentes Por exemplo, seria esse o contributo da instituição da confissão dos
padrões de conduta social. Ruth Benedict mostra-se particularmente pecados nas culturas de culpa.10 Confessando abre-se uma nova opor-
sensível às possibilidades de alívio que são proporcionadas nas culturas
9 BENEDICT, 1946, p. 189.
de culpa e que não estão disponíveis para as culturas que enfatizam a
10 “As verdadeiras culturas de vergonha enfatizam as sanções externas para a boa conduta,
vergonha. Se aquelas podem aliviar a culpa através de procedimentos opondo-se às verdadeiras culturas de culpa, que interiorizam a convicção do pecado. A
vergonha é uma reação à crítica dos demais. Alguém pode envergonhar-se ou quando é
8 BENEDICT, Ruth, 1946. The Chrysanthemum and the Sword. O Crisântemo e a Espada – ridicularizado abertamente ou quando cria para si mesmo a fantasia de que o tenha sido.
Padrões da cultura japonesa. Trad.: César Tozzi. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. Em qualquer dos casos trata-se de uma sanção poderosa. Requer, entretanto, uma plateia,
188-189. ou pelo menos que se fantasie uma. A culpa, não. Num país onde a honra significa viver

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tunidade ao pecador, recomeço que não apaga os pecados da memória dedicação materna, é levado tão a sério que se torna um poderoso ins-
do tempo, mas que, absolvendo-os, nem que seja parcialmente, per- trumento de controlo social.13
mite recuperar as “forças”, por assim dizer, para prosseguir com a vida. Na verdade, para De Vos, e aqui em divergência com Ruth Bene-
Ora, é precisamente a possibilidade de retomada do curso da vida e de dict, apesar do carácter performativo da educação japonesa, está nela em
prosseguimento da normalidade o que parece faltar à cultura japonesa, causa um processo de internalização fortemente indutor de sentimentos
pelo menos à cultura japonesa até ao período da II Guerra Mundial, de culpa. A expressão extremada do sofrimento da mãe diante do fra-
aquela que Benedict assume como cultura de vergonha por excelência. casso do filho em seguir o seu próprio exemplo de sacrifício revela-se ao
Sem o refúgio da confissão interior da culpa, inteiramente exposto ao filho como um “poder” indesejado, mas indeclinável, em a ferir através
juízo exterior, a cultura da vergonha desgraça o faltoso sem que alguma dos seus atos e atitudes, impondo-lhe sentimentos de culpa pelos senti-
remissão possível se perfile ao seu alcance a não ser o ato derradeiro mentos de sofrimento que pôde trazer à sua mãe. O efeito socialmente
de pôr termo à vida. Na cultura japonesa, é sabido, o suicídio, longe de inibidor assim alcançado é bem maior do que o do receio da sanção
ser uma fatalidade escusada e socialmente desincentivada, aparece, em punitiva, do castigo ou da retaliação. Ao contrário destas formas exter-
múltiplas circunstâncias, como única saída socialmente aceitável, por nas de inibição e controle, a assunção de uma responsabilidade última
vezes até qualificável como saída honrada, perante a falta ou o fracasso.11 pelo sofrimento causado aos que mais se ama produz, através de uma
Ainda no âmbito do cruzamento da antropologia cultural com constituição ambivalente, uma interioridade culpada.14
noções e estados psicológicos, o antropólogo George De Vos põe a ques- Uma segunda nota de matização prende-se agora com as culturas
tão – “O que faz os japoneses a certa idade ou em certo segmento social de culpa. Têm por estofo a capacidade dos indivíduos em interiorizar a
serem particularmente vulneráveis à lógica do suicídio?”12 E na tentativa culpa sob a forma de sentimentos, com que terão de conviver como se
de lhe responder satisfatoriamente, descreve diversos padrões no suicí- de uma segunda natureza se tratasse, a ponto de se tornar difícil sequer
dio japonês, tais como o autossacrifício e a dedicação, a ruptura do papel perceber onde não são tais sentimentos de culpa parte da herança que
social, entre outros, finalizando com uma secção intitulada “vulnerabi- a existência lhes impôs logo desde o instante do nascimento. Esta inte-
lidade ao suicídio e socialização japonesa”. Nesta secção De Vos destaca riorização sob a forma de sentimentos de culpa não é ilimitada, pois
o peculiar papel desempenhado pelas mães na socialização das crianças, implica, como sua realidade mais própria, uma forma de sofrimento,
mães que, a expensas do seu exemplo junto às crianças, ensinam-lhes a só até certa medida suportável. Para lá dessa medida, a culpabilidade
prática, a significação e o valor da dedicação sacrificada a uma função. rompe as possibilidades de equilíbrio numa consciência que, porém,
O empenho na função, seja esta qual for, mas ancorado na exemplar terá de a suportar. Ruth Benedict dá conta desta tensão a propósito da

13 The first prevailing culture theme is that of intensity of care given to children resulting
from the mother’s sense of strong dedication to nurturance. There is no doubt Japanese
mothers express other societies. The pattern does not stop with the intensity of dedication
de acordo com a imagem que se tem de si próprio, pode-se padecer de culpa, ainda que to the maternal role during early childhood. The mother, in this sense, continues until her
todos ignorem a transgressão, sendo aliviados os seus sentimentos a tal respeito através children, in turn, internalize a necessary dedication to role (DE VOS, 1978, p. 252).
da confissão de seu pecado.” (Ibidem)
14 The modes of socialization practiced not only teach the patterns of self-sacrifice but those
11 Para um estudo aprofundado do suicídio no âmbito da cultura japonesa cf. DE VOS, of suffering as a means of producing guilt in others. That is to say, traditional Japanese
George A., 1978. “The Japanese Adapt to Change” in SPINDLER, George D. (Edt.), 1978. The parents, especially the mother, suffered when they witnessed the bad behavior of their
Making of Psychological Anthropology. Berkeley, LA: The University of California Press, p. children. A child becomes increasingly aware that his or her behavior causes suffering
219-257. in parents, therefore the child begins to sense a terrible capacity to hurt loved ones. This
12 “What makes japanese at a particular age or social segment particularly vulnerable to the induction of guilt results in a more severe internalization than that which results from
logic of suicide?” (DE VOS, 1978, p. 249). threat of punishment, retribution, or abandonment (DE VOS, 1978, p. 253).

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moralidade puritana nos Estados Unidos, moralidade fortemente culpa- Helen Lewis, num importante artigo, “Shame and Guilt in Neuro-
bilizadora e perturbadora das consciências dos “americanos modernos”: sis” (1971), dissolve fortemente este paralelismo e autonomia herdados
de Benedict, e ainda de Freud, ao distinguir e tornar mais precisos quais
Os antigos puritanos que se estabeleceram nos Estados Unidos procura-
ram basear toda a sua moralidade na culpa e bem sabem os psiquiatras os os objetos de experiência no caso da vergonha e no caso da culpa. Para
problemas que os americanos modernos têm com as suas consciências.15 a autora, a experiência da vergonha respeita diretamente ao self. Como
Sartre logo clarificou em O Ser e o Nada, aquilo de que uma consciência
A antropóloga interpreta, na sociedade americana do seu tempo,
tem vergonha é exclusivamente de si mesma, naturalmente a propósito
sinais de uma tendência de crescimento do sentimento de vergonha,
de alguma outra coisa que fez ou não fez, mas sempre de si mesma. Na
mas de forma desarticulada com as bases da moralidade vigente, o que,
experiência da culpa o objecto da experiência direta já não é o self mas
por isso, tornaria aquela tendência meio para um “relaxamento dos cos-
precisamente aquilo que se fez ou se deixou de fazer. A relação inverte-
tumes” numa sociedade excessivamente dependente de uma moralidade
se pois consoante o foco é a consciência ou o objeto: uma consciência
puritana da culpa.
sente-se culpada do que fez ou não fez; uma consciência envergonha-se
A vergonha, no entanto, é uma carga cada vez maior nos Estados Unidos, pelo que fez ou deixou de fazer.18
sendo a culpa não tão extremadamente sentida quanto em gerações ante- Uma terceira perspectiva surge ainda nos anos 50 pela mão de Helen
riores. É isto aqui interpretado como um relaxamento dos costumes. Há
muita verdade nisso, sem dúvida porque não esperamos que a vergonha Merrell Lynd,19 não subscrevendo o paralelismo ou autonomia dos sen-
perfaça o trabalho pesado da moralidade. Não atrelamos a intensa morti- timentos de culpa e vergonha que encontramos em Benedict e Freud,
ficação pessoal que acompanha a vergonha ao nosso sistema fundamental sem porém diminuir a diferença entre ambos a aspectos parciais de uma
de moralidade.16 mesma vivência. A autora começa por apresentar precisamente a repre-
Apesar destes reenvios entre vergonha e culpa, que não autorizam sentação legada por Freud e Benedict,20 para depois apresentar algumas
um entendimento destes sentimentos intersubjetivos como se fossem
modo se avaliaria a si própria, as emoções de culpa, orgulho, embaraço e vergonha. Aí, a
contrários, mesmo contraditórios, há, ainda assim, uma tendência a respeito do posicionamento de Freud, lê-se – “For example, Freud discussed the function
tomá-los em paralelo, podendo, acidentalmente, convergir ou divergir of guilt but said little about shame. For Freud, the superego – the mechanism by which
consoante a ênfase cultural dominante. Parece ser bem esse o caso de the standards of the parents are incorporated into the self, specifically via the child’s fear
that the parents will respond to transgression by withdrawal of love or even by punish-
Ruth Benedict, cujo entendimento da diferença entre vergonha e culpa ment – is the initial source of the feeling of guilt” (LEWIS, M., 1993/2008, p. 744).
assenta num paralelismo entre juízo exterior versus juízo interior, socie- 18 “The experience of shame is directly about the self, which is the focus of evaluation. In
dade versus interioridade, público versus privado. Contudo, um tal para- guilt, the self is not the central object of negative evaluation, but rather the thing done
or undone is the focus. In guilt, the self is negatively evaluated in connection with some-
lelismo confere à consciência de vergonha e à consciência de culpa uma thing but is not itself the focus of the experience” (Lewis, H., 1971, p. 30).
excessiva autonomia vivencial, quando se tratará menos de duas cons- 19 Cf. LYND, H., 1958.
ciências do que de dois aspectos interdependentes de uma mesma cons- 20 “This distinction between guilt and shame – as oriented respectively to oneself through
ciência. O paralelismo é, contudo, reforçado pela forma como a tradição the internalization of identifications with one’s parents and to others through their
expressed ridicule or scorn – has been until recently the basis of the most widely accepted
psicanalítica, desde logo Freud, tendeu a tratar a culpa independente- definitions of the two terms. Involved in this distinction between guilt as response to
mente da vergonha.17 standards that have been internalized and shame as response to criticism or ridicule
by others are several important assumptions, sometimes made explicit but more often
unstated by the persons who use them: that shame is a more extertal experience than
15 BENEDICT, 1946, p. 189.
guilt, one that does not exist apart from the expressed scorn of other persons, if not in
16 BENEDICT, 1946, p. 190. their actual presence; that there is a basic separation between oneself and others; that
17 Um interessante ponto da situação é feito por Michael Lewis num estudo em que apre- others are related to oneself as audience – whether the audience gives approval or disap-
senta como emoções de autoconsciência, emoções pelas quais a consciência de algum proval” (LYND, 1958, p. 21-22).

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perspectivas que se distinguem daquela, designadamente a de Gerhart mos, sem os reduzir, porém, a termos de uma distinção analítica. Não é
Piers e a de Franz Alexander.21 De acordo com o primeiro, o que seria só uma diferença entre pontos de observação a que se registra na relação
crucial na distinção entre culpa e vergonha não seria o juízo interior do entre vergonha e culpa. Trata-se de um processo de carácter eminente-
próprio em contraste com o juízo externo dos outros, mas a diferença mente temporal. A vergonha como consciência de uma degradação de si
entre o que é da ordem da transgressão em face de, precisamente, uma de que a culpa é exigência de superação como dívida temporal – passado
ordem transgredível prévia, por um lado, e o que é da ordem do fra- que cobra o futuro como dívida.
casso em face de objetivos de que se esperaria uma dada realização, por
outro.22 Franz Alexander emparelha com os sentimentos de culpa e de iii. remorso e arrependimento
vergonha todo um conjunto de menções ao incumprimento de alguma
coisa que haveria que cumprir e à inferioridade de ser, respectivamen- Distinguir os fenômenos do remorso e do arrependimento é uma boa
te.23 Em função desta percepção de que a vergonha e a culpa se situam a porta de entrada em vista de um esclarecimento da consciência de culpa
diferentes níveis – a culpa pressupõe uma lei que possa ser transgredida; ou o sentimento de culpabilidade. Numa primeira apreensão, e ainda
a vergonha diz logo respeito ao ser do sujeito subitamente apreendido que de forma algo superficial, o arrependimento pode ser pensado
como inferior –, Helen Lynd situa o sentimento de vergonha num plano em termos que simplesmente não envolvam mais do que a consciência
mais profundo do que a culpa. retrospectiva de que uma vontade resultou mal formada – por exemplo,
se me arrependo agora de algo que fiz, digamos ter decidido passar o
Um sentimento de culpa surge de um sentimento de má conduta, um sen-
último Domingo em casa, é porque me apercebo agora, passado algum
timento de vergonha surge de um sentimento de inferioridade. Os senti-
mentos de inferioridade na vergonha estão fundados num conflito mais tempo sobre a ação, de que realmente não o queria ter feito, de que a
profundo na personalidade do que o sentimento de má conduta na culpa; minha vontade, se mais bem escrutinada na ocasião, não teria sido real-
os sentimentos de inferioridade, nesta perspectiva, são fenômenos pré- mente essa e de que, na verdade, não resultou bem formada. Suponha-se
sociais, ao passo que os sentimentos de culpa resultam dos esforços no que me esquecera por completo de que havia um excelente concerto de
sentido de um ajustamento social.24
música que teria adorado assistir ou, então, que não antecipara o inferno
A vergonha como consciência súbita de uma degradação de ser em que viria a tornar-se, por estas ou aquelas razões, o meu Domingo
é vivida de forma indissociável de uma exigência, para si mesma, de caseiro. Não fora o esquecimento, não fora a desatenção, a falta de uma
retomada da plenitude ontológica de si mesma. E é precisamente nesta certa perspectiva, e teria decidido de maneira diferente. Pensado assim,
exigência de si que se descobre a consciência latejante da falta que falta então não é necessário que o arrependimento envolva qualquer espé-
cumprir, consciência de culpa. Ou seja, o sentimento de dívida para com cie de consideração moral ou relação com sentimentos de culpa. Com
a retomada de si, justificada ontologicamente na consciência envergo- efeito, nada de moral ou culpabilizante subjaz a estes exemplos. Há, sim-
nhada, é a vivência da culpabilidade. plesmente, reconhecimento, proporcionado pela reflexão, de que uma
O mais importante passo dado com esta perspectiva está no fato de vontade tida não resultou bem deliberada.
se revelar a interdependência entre vergonha e culpa num processo que Já com o remorso não é assim. Se sinto remorso por algo que fiz, tal
corre numa dada orientação, entre planos não paralelos e não autôno- não resulta de ter feito o que realmente não queria – o que até me pode
suscitar um apelo de compreensão pela intenção frustrada –, mas de ter
21 Cf. PIERS & MORTON, 1953.
consciência de que não devia ter querido o que quis, de que a intenção
22 LYND, 1958, p. 22.
foi má. Se o remorso, tal como o arrependimento, surge como cons-
23 Ibidem.
24 Ibidem.
ciência reflexiva, o que um e outro apreendem das respectivas consciên-

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cias reflectidas é bem diferente: pela reflexão, uma intenção frustrada é disso, o que ambos mostram publicamente é uma face de desconforto
apreendida como arrependimento; pela mesma reflexão, a consciência que faz apelo à compreensão.
de culpa (e que já não é a da culpabilidade original de que Sartre e as Mas o que é que o fenômeno da culpa, apreendido, na reflexão,
Escrituras falam) é retomada e apreendida como remorso. Ou seja: o como remorso, exprime? Que expressão é essa que de tantas formas se
remorso, ao contrário do arrependimento, implica uma consciência de consegue um ocultamento? Uma coisa é expor a culpa, mostrando-a,
falta e, portanto, de dever a que se faltou, de transgressão, portanto, evi- assumindo-a, tratando-a; outra, bem diferente, é perguntar pelo que ela
denciada pela vivência da culpa. expõe, o que mostra, o que está nela e por ela realmente em causa?
Esta diferença entre remorso e arrependimento pode, contudo, Já constatamos que o arrependimento não é, na sua essência, moral,
não resultar muito perceptível a partir do momento em que um agente mas que o remorso sim. Com efeito, o arrependimento corresponde à
crê ser um agente moral. Com efeito, sob essa crença, tende-se a reba- consciência retrospectiva de que se quis assumidamente o que realmente
ter o remorso no arrependimento como se a razão pela qual não se não se queria, ou seja, de que a vontade assumida não foi bem formada e
agisse moralmente bem apenas consistisse numa má formação da que, portanto, não era uma vontade própria. Já o remorso corresponde à
vontade. Apesar de poder consolar, esta não é, obviamente, uma ten- consciência retrospectiva de que se quis o que não se deveria ter querido.
dência insusceptível de reparo, pois conduz a que nenhuma ou pouca Por outras palavras, se podemos definir o arrependimento sem fazer
responsabilidade moral seja atribuível ao agente. Mais não revela, na qualquer referência ao dever, antes o definindo como uma espécie de
verdade, do que um aproveitamento do erro e da ignorância para cau- “ato falhado” da vontade, ou evidência da sua finitude e falibilidade, já
cionar qualquer imoralidade. De acordo com a crença de que não agiria o remorso não dispensa o reenvio à experiência da culpa, da falta e do
imoralmente em condições que apenas dele dependessem, o agente que dever a que se faltou e por que se sofre a culpa.
se considera moral crerá ter sido mais instrumento de uma vontade Mas são estes dever e transgressão, falta e culpa termos de valor
alheia, sem dono, do que autor da sua ação. Na melhor das hipóteses, moral? Reiterando uma pergunta anterior, que está em causa nesta cul-
a sua responsabilidade moral não motivará mais do que uma censura pabilidade? Só respondendo a esta pergunta, poderemos precisar o sen-
por ter sido negligente quanto à formação da sua vontade, seja por pre- tido e o alcance do dever que a vivência reflexiva do remorso apreende.
cipitação seja por quaisquer outras razões que afetassem a normalidade Voltaremos à questão adiante.
das condições para uma boa formação da sua vontade. Quer isto dizer Entretanto, uma segunda diferença crucial entre remorso e arre-
que o arrependimento de um agente por algo que tenha feito pode não pendimento deixa-se apreender a partir dos seus respectivos objetos –
refletir uma assunção da sua responsabilidade moral pelo sucedido, aquilo que é passível de remorso não coincide com aquilo que é passível
pode mesmo constituir uma forma de a contornar. Por vezes – é disso de arrependimento. Com efeito, podemos arrepender-nos de quaisquer
que estamos a falar – arrependemo-nos para nos ocultarmos a culpa- intenções que possam ter sido conteúdo das nossas vontades e, por
bilidade que, de outra forma, o remorso deixaria exposta.25 Note-se extensão, também das ações que se seguiram dessas intenções, mas só
que não é fácil despistar uma tal possibilidade de auto-ocultação da podemos sentir remorso quando tais intenções respeitam a outras pes-
culpa porque tanto o arrependimento como o remorso dizem respeito soas e, por extensão, a todos os seres que, de algum modo, reconheça-
à intenção, a qual, em si mesma, não é publicamente acessível; e, além mos dignos do estatuto de ser outrem. Por exemplo, faz sentido arre-
pender-me de ter maltratado uma ferramenta de trabalho, mas não faz
sentido que, por essa razão, eu sinta remorso. Obviamente, o caso muda
25 Veremos adiante que há, porém, uma forma específica de arrependimento que, por
de figura se nos perguntarmos não sobre o que foi maltratado, mas sobre
pressupor o remorso, implica moralidade. Chamar-lhe-emos, por isso, arrependimento
moral. quem foi maltratado. E da mesma maneira que uma pessoa pode sentir

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remorso por ter de algum modo feito mal a outra pessoa, também pode resistir à perda, transmute o sofrimento da presença da perda em sofri-
sentir remorso por ter vitimado não uma pessoa, mas um animal de mento da memória da perda. Por isso, o perdão, que é dado ou concedido
estimação, mesmo objetos com os quais mantenha uma relação de afeto, pela vítima (e não aceite como sucede com a desculpa), não é alheio ao
enfim, tudo aquilo a que, de uma forma ou de outra, se confira o estatuto fenômeno habitualmente designado como “fazer o luto”.26 E é da esfera
de ser outrem. vivencial, eminentemente pessoal como notou Arendt.27 A este propó-
Com efeito, tal como Sartre dizia que “é em face do outro que sou sito, Paul Ricoeur pergunta-se pelas propriedades curativas do perdão
culpado”, diremos que somente em face do outro sinto remorsos. – pode ele curar? Para o fenomenólogo francês, no perdão “trata-se”,
no sentido curativo da palavra, uma “doença” da memória.28 Permitir
iv. a lógica do perdão que a perda passe à dor da memória não é esquecê-la, mas superar o
traumatismo do presente. Mas também é de certo modo esquecer, para
As vivências do arrependimento, do remorso e, ainda, do perdão articu- poder recordar e poder não ressentir, ou, nos termos que Paul Ricoeur
lam-se entre si num processo temporal. Em concreto, importa mostrar emprega, para curar tais poderes. Ricoeur explicita esta dupla referência
que o remorso é um “desconforto” de fundo intersubjetivo relacionado do perdão às condições do esquecimento assim:
com a maneira como nos sentimos responsáveis pela continuação da
Por um lado, o perdão é o contrário do esquecimento de fuga; não se pode
vida temporal de todos; sentimento intersubjetivo que, sob um arrepen-
perdoar o que foi esquecido (...). Mas, por outro lado, o perdão acompa-
dimento que entenderei como arquimoral, expressão de uma vontade nha o esquecimento ativo, aquele que ligamos ao trabalho de luto, e é neste
existencialmente transformada, pode dar lugar ao perdão como resolu- sentido que ele cura.29
ção de um padecimento existencial.
Começaremos com uma distinção óbvia – Perdoar não é desculpar. Mas, para tal, é preciso que quem perdoa, a vítima da perda, tenha
Desculpar a alguém uma falta é diminuir ou mesmo anular a sua culpa, capacidade de perder – ser capaz de perdoar é ser capaz de perder o que
minorar a sua responsabilidade, porventura fazer mesmo cessá-la, mas já está perdido, largar o que o afeto insiste em não largar, e que, por isso,
sempre, num caso ou noutro, através de uma economia de razões e ainda se sofre como se fosse presente. Cada qual terá, naturalmente, o
motivos que justifiquem a subtração da culpa. Já perdoar a alguém uma seu limite para lá do qual se encontra o imperdoável. Em contrapartida,
falta, longe de ser uma forma de retirar a culpa a alguém, pressupõe quem pede perdão mais não tem para oferecer que o testemunho do
da parte deste a sua plena assunção como culpado. Neste sentido, só é seu próprio remorso, pelo qual sofre, e o arrependimento ético da sua
perdoável o que permanecer indesculpado. É certo que se pode aceitar vontade. Mas por pouco que seja o que o agressor tenha para compensar
as desculpas de alguém como se pode recusá-las, mas quem se desculpa a vítima da perda, só ele pode pedir perdão à vítima. Por estranho que
não está a pedir perdão e quem pede perdão não está, com isso, a des- pareça, só ele tem esse “direito” – não direito ao perdão, mas a pedi-lo.
culpar-se. Por isso, aquele que pede perdão, se o fizer genuinamente, Isto porque só ele pode sofrer genuinamente o remorso por essa perda
fá-lo independentemente das desculpas que o pudessem, ou não, assis- de que foi autor e porque apenas esse remorso, além do sofrimento da
tir; fá-lo mesmo contra elas e contra a aceitação que tenham na vítima.
26 RICOEUR, Paul, 1995. “O perdão pode curar?”. In: HENRIQUES, Fernanda, 2005. Paul
A desculpa é da ordem das razões e das causas, ou seja, de uma justi- Ricoeur e a Simbólica do Mal. Porto: Afrontamento, p. 39.
ficação racional que pode ser, ou não, aceitável. Até é passível de dis- 27 “O perdão e a relação que ele estabelece constituem sempre um assunto eminentemente
cussão pública. O objecto do perdão é a própria perda de que a vítima pessoal (embora não necessariamente individual e privado), no qual o que foi feito é
perdoado em consideração a quem o fez” (ARENDT, 1958, p. 294).
foi vítima. Pedir-lhe perdão é pedir-lhe que realize a perda, se permita
28 RICOEUR, 1995, p. 35.
abdicar do sofrimento de sustentar o que perdeu e que, deixando de 29 RICOEUR, ibidem.

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vítima, pode manter de algum modo viva a identidade da perda. Uma denunciava em se supor algum tipo de determinismo nas nossas ações
pessoa permitir-se perdoar é a forma de ela permitir que outrem, jus- assinala esta forma de evitar a responsabilidade e a culpa associada. Mas,
tamente o agressor, contribua para o restabelecimento da sua vida tem- por vezes, não é por esta razão que as pessoas se desculpam em vez de se
poral. E, no mesmo movimento, também o perdoado pode restabelecer perdoarem. Por vezes, chega a condoer-nos assistir a quem se desculpa
a promessa de uma vida moral, necessariamente comum. Se o perdão sobre uma falta que realmente não cometeu para, dessa forma, não ter
repõe a ordem da vida moral tanto para o agressor como para a vítima de pôr à prova a sua capacidade de perda. A diferença entre os dois casos
é, assim, por haver entre ambos um vínculo na perda: ambos a vivem, é clara: alguns desculpam-se para que não tenham de pedir perdão,
ainda que de modos diferentes. A concessão do perdão justifica-se, outros desculpam-se para que não possam pedir perdão. Em ambos os
desta forma, pelo seu resultado: o fim da ruptura com o futuro da vida casos, as desculpas são públicas, mesmo quando perante si mesma são
temporal quer para quem pede o perdão quer para quem o concede. sempre públicas as desculpas de uma pessoa. Mas por essa mesma razão,
E o seu fundamento reside no reconhecimento de uma vida ontoló- o alcance da desculpa está limitado ao espaço público – as desculpas
gica comum, do facto de haver uma mesma vida, radiquemos-lhe valor não eliminam realmente a culpa; apenas a eliminam do espaço público.
moral ou não, vida temporal comum ou, ao menos, um mesmo senti- Isso pode interessar a quem não se sente culpado e quer evitar que o
mento disso. Podemos não saber se há um só e mesmo sentimento dessa julguem – ao fim e ao cabo, se a culpa só alimenta o espírito dos outros,
vida comum, menos ainda se há uma mesma vida de que participemos, mesmo do outro que acompanha sempre o próprio, a sua consciência
mas haver perdão é prova de que assim o cremos quando perdoamos ou moral, então o que importa é encontrar a desculpa certa para a eliminar.
desejamos ser perdoados. E não se vê mais razões para descrer nisso do Paradoxalmente, o mesmo esforço de desculpa pode ser perseguido, já
que para descrer que temos a capacidade de perdoar. O perdoável, o que não para descartar a culpa em face do olhar dos outros, mas para guar-
se perde, a vida temporal comum estão, já o vimos, para lá de quaisquer dar a culpa do olhar dos outros. Neste caso, a ênfase não reside tanto
desculpas e, por isso, estão também para lá da ordem do que é punível. no facto de as desculpas serem públicas, mas em só serem públicas. À
Mesmo sobre o que não somos puníveis, podemos pedir e conceder per- culpa íntima, privada, estritamente vivencial, nenhuma desculpa acode.
dão. Perdoar e ser perdoado não significa nem que se desculpe nem que Por isso, nenhum outro tem direito sobre a culpa do próprio, a não ser
se seja desculpado, também não significa que não se puna ou se deixe que este o conceda. Alguém desculpar-se assim é não se permitir uma
punir. De certo modo, poder-se-á afirmar “Desengane-se o perdoado se tal concessão de que ser desculpado lhe seja admissível; é mesmo uma
procura por aí comiseração”. Também não é exigível a ninguém que per- afirmação de liberdade – ser livre de estar com a sua culpa e de a sofrer.
doe – perdoar está, frequentes vezes, para lá das forças de uma pessoa. Sabemos que poderia acudir o perdão ao que não pode a desculpa, mas
Mas há um esforço de perdoar que se afigura às pessoas como dever para aí o limite é outro – só o próprio pode perdoar-se a si mesmo. É claro
consigo mesmas, um esforço no sentido de pôr à prova as suas capacida- que não se pode ter culpa objectiva sem se ser de algum modo moral-
des de perdoar, ou seja, de se despojar daquilo que, em todo o caso, já se mente culpado, mas pode-se, não obstante, perseverar no sentimento de
perdeu de forma irreversível, ultrapassando a ruptura na continuidade culpa, ou seja, sofrer-se o remorso. E a verdade é que, por vezes, sucede
temporal. O fenômeno do autoperdão, ou seja, das pessoas conseguirem preferir-se o sofrimento do remorso, que mantém viva a perda, como
perdoar-se a si mesmas, é, a este título, bastante elucidativo. Mostramos ferida aberta, à passagem desta à memória, aquilo que o perdão permi-
conhecer subjetivamente a diferença entre desculparmo-nos por uma tiria curando a ferida na forma de uma cicatriz do passado. Continua-se
falta e perdoarmo-nos a mesma falta quando procuramos a primeira assim o que se recusa à memória e que ninguém, nenhum outro, nem
via para evitar a dificuldade da segunda – uma pessoa não tem de se mesmo dentro de si, poderá exigir; preserva-se na presença íntima e pri-
perdoar aquilo que se consegue desculpar. A má-fé que Sartre tão bem vada da dor e do remorso, só suas, o que se não tolera vir a ser ausência

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em si. Há, obviamente, neste remorso e nesta autoculpabilização uma apreensão reflexiva de uma vontade transformada é olhar apenas para
desconformidade notória: para resistirem à perda e continuarem o que os aspectos formais de um processo “interno” ao sujeito do remorso.
não dão por perdido, prendem o tempo numa bolha traumática do pre- Na verdade, o remorso, enquanto apreensão reflexiva da culpabilidade
sente. Recusa-se a nossa realidade temporal e, com esta, a realidade de própria, é desde logo apreensão do outro – consciência reflexiva de que,
um futuro nosso, uma espécie de “doença da memória” de acordo com por sua culpa, o sujeito barrou a vida temporal de outrem, ou mais exa-
a feliz expressão de Paul Ricoeur, “doença” que inibe a temporalidade tamente, barrou outrem na vida temporal comum a todos. É justamente
de se temporalizar. Daí a pena com que encaramos certas desculpas, de esta saída de si em direção a um aquém de si comum, vida intersub-
quem não procura desculpar-se senão para se culpar e com o sentimento jetiva anterior às subjetividades, que explica a necessária referência do
de culpa se deixar ficar – é que o imperdoável, o seu padecimento, está remorso, contrariamente ao arrependimento, a um outro e a uma alte-
inteiramente a cargo de quem o carrega; é, por isso, uma forma der- ridade pré-subjetivos, vida partilhada. É neste sentido que o remorso é
radeira de liberdade alguém se autodeterminar ao sofrimento de uma moral, não da forma trivial que pressuporia uma ordem transgredível,
temporalidade que não temporaliza. Somos livres de nos sofrermos as uma lei moral propriamente dita, mas no sentido, mais originário, da
nossas perdas sobretudo para garantir a continuidade de uma forma de pertença recíproca a uma vida temporal comum. Nesse plano pré-sub-
presença da perda, presença dolorosa mas preferível à pura ausência. jetivo e também pré-psicológico, antes que sejam meus ou teus os atos
O imperdoável é compreensível e, ainda assim, lamentável. A que que eu ou tu levamos a cabo, bons ou maus, antes de serem atos para
título? Que se lamenta ao certo ao não acontecer as pessoas se perdoa- uma responsabilidade interiorizada, são atos vividos pela comunidade,
rem umas às outras, e mesmo a si próprias? Que “dever” fica por se cum- atos comunitários cujo impacto e responsabilidade a todos diz respeito.
prir? É sem dúvida da ordem da existência numa temporalidade o pade- Pese, embora o que ficou dito, poder o remorso relacionar-se com
cimento que interrompe a vida comum; mas, acabamos de o ver, pode uma “doença da memória” não é facto generalizável, menos ainda pre-
caber dentro de uma justificação existencial. texto para o substituir por sucedâneos paliativos como um arrependi-
A “patologia” é ontológica, mas não será moral se, com isso, pres- mento sem dimensão moral. Na verdade, nem é o caso que o remorso
supusermos uma transgressão em face de uma ordem transgredível. O e o arrependimento moral sejam duas atitudes alternativas, duas vias
dever de se perdoar a si mesmo é muito anterior ao plano das transgres- em competição quando se trata de enfrentar a consciência da falta.
sões à lei moral, e mesmo ao preceito ético individualmente assumido. Diversamente, só faz sentido falar de arrependimento moral como
Sabemos que move o perdão um cuidado em vista de um restabeleci- superação do estado de remorso, sendo essa, aliás, a razão por que há
mento, mas não simplesmente um restabelecimento de quem perdoa. que distinguir o arrependimento moral do vulgar arrependimento de
Está nele em causa restabelecer uma vida temporal comum, que inclui que já temos falado. Veremos em seguida com fazer a distinção. Antes
quem é perdoado, e também toda a comunidade. E é justamente porque disso, porém, importa deixar já claro que não basta o remorso, ou seja,
se refere a uma ordem comum, propriamente comunitária, que se pode a consciência de ter querido o que não devia ter querido, para que se
entender ainda como um plano moral, apesar de prévio a qualquer ética encontrem satisfeitas as condições para um genuíno pedido de perdão.
individualmente assumida ou qualquer normatividade moral. Se se pre- Além do remorso, necessária é a manifestação de uma transformação
ferir, entenda-se esta sensibilidade comunitária de uma vida temporal do querer por parte daquele que pede perdão – e é nisso que consiste
comum como arquimoral. o arrependimento moral. De outra forma, o pedido de perdão poderia
Um segundo olhar sobre o fenômeno do remorso confirma que é fundamentar-se apenas no esforço de mitigar o sofrimento do remorso,
essa referência ao plano prévio comunitário que o justifica como sen- o que não é aceitável. Seria mesmo o caminho mais fácil para, em nova
timento moral. Com efeito, dizer que o remorso em face de alguém é oportunidade, reincidir na falta cometida. Portanto, longe de se opo-

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rem, remorso e arrependimento trabalham juntos como condições a conseguir prescindir de parte de si, parte que, no plano da realidade
satisfazer para que se justifique o perdão. O arrependimento no sentido temporal, já perdeu, de forma irreversível.
vulgar consiste na consciência reflexiva e retrospectiva de se ter feito Não quer isto dizer que se perdoe porque de outro modo não se
o que não se queria ter feito. Já vimos atrás que, por isso, não corres- consiga ultrapassar o trauma da perda. Basta o sofrimento de quem
ponde a mais do que ao reconhecimento de uma vontade mal formada, pede perdão para que se justifique, para quem perdoa, a possibilidade
de algum modo iludida, sem nisso estar implicada qualquer dimen- de o fazer. Fazê-lo assim, gratuitamente, é, na verdade, o gesto essencial
são propriamente moral, sequer qualquer experiência intersubjetiva do perdão – mesmo quando dele se obtém alguma vantagem não é nesta
de remorso. Já no sentido especificamente ético e moral, o arrependi- que reside a sua razão de ser. Ao contrário das desculpas, o perdão não
mento corresponde à consciência, igualmente reflexiva, de uma trans- faz contas; não é instrumental. A consciência da possibilidade do per-
formação do querer, ou seja, à consciência e assunção de uma trans- dão, para falar assim, a consciência que surge a quem pode perdoar e a
formação da vontade de tal modo que já não pode querer o que quis. quem pode assim ser perdoado é que aquilo que os liga um ao outro, sem
Nele, a implicação do remorso é clara: o querer o que não se devia, base terceiro envolvido, aquilo que os torna responsáveis um pelo outro – um
do remorso, já não é querer que se queira. Note-se que falar assim de responsável pela possibilidade de pedir perdão, outro pela possibilidade
arrependimento faz sentido porque, tal qual como no arrependimento de o conceder – é ambos serem, um tal qual o outro, irredutivelmente.
vulgar, mais não se trata do que de uma desconformidade da vontade
consigo mesma. A diferença específica reside na relação com o tempo: v. tempo, culpa e comunidade
se no sentido vulgar, se reconhece ter querido o que não se queria, no
sentido ético reconhece-se não se querer mais o que se quis. Ao contrá- Temo-nos referido ao perdão e ao arrependimento pelas suas proprie-
rio do arrependimento vulgar, que é retrospectivo, o arrependimento dades “curativas“ em face da consciência culpada e temos dado desta
moral é prospectivo; se aquele procura, em abono da verdade passada, uma caracterização como vivência de uma temporalidade interrompida,
desfazer o que assevera ter sido uma ilusão, este, também em abono de consciência que se vê impedida da sua continuação numa vida temporal
uma verdade, mas por vir, procura dar notícia de uma transformação; comum. Obtidos estes resultados, fica, no entanto, ainda sem resposta
numa palavra, se aquele compromete, este promete. a pergunta sobre as razões por que chega a suceder uma tal perturba-
Agora, o efeito deste arrependimento moral só serve ao próprio e ção da temporalidade e a manifestarem-se sentimentos de culpa, vividos
apenas no que respeita ao seu futuro. Relativamente à vítima e mesmo pré-reflexivamente como consciência culpada e apreendidos reflexiva-
relativamente ao passado do arrependido fica a faltar algo. Ainda mente pela consciência de remorso. Por isso, importa esclarecer melhor
que, com o arrependimento, o remorso transite para o passado, fica o que está em causa no fenômeno da vivência da culpa, desviando a
aí, enquanto memória, como uma dívida devida quer à vítima quer atenção dos fenômenos que, como o perdão, precisamente nos haviam
ao futuro do próprio. Daí a necessidade do perdão, de o pedir junto à prendido a atenção pela sua capacidade de superarem o estado de uma
vítima e de que lhe seja concedido. Obtê-lo resolve o passado, o mesmo consciência entregue à sua culpa. Veremos que, com uma maior atenção
é dizer, concilia-o com o futuro. à sua descrição fenomenológica, os sentimentos de culpa revelam, sur-
Do outro lado da questão – do lado da vítima – pode suceder que preendentemente, um desempenho muito mais central no psiquismo
o perdão não seja concedido. Concedê-lo requer vontade, boa vontade, humano do que possivelmente se esperaria. Tomemos, para análise, um
mas não só. Com efeito, pode-se desejar perdoar sem o conseguir, pelo breve relato de Freud do caso de uma paciente em Cinco Conferências
menos genuinamente. A diferença entre o perdoável e o imperdoável sobre Psicanálise.
depende sobretudo da capacidade da vítima – a vítima da perda – em

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Uma rapariga ainda nova, que pouco tempo antes perdera o pai (...) desen- Mas, por si só, independentemente do que se lhe siga, a irrupção de
volveu uma simpatia especial pelo marido da irmã mais velha, recente- sentimentos de culpa é já uma resposta do psiquismo ao desequilíbrio
mente casada, simpatia esta que facilmente se mascarava como a demons-
introduzido pelo conflito intrapsíquico. Não porque cure ou resolva o
tração de afeto que é comum entre familiares. A irmã adoeceu e acabou
por morrer enquanto a paciente e a mãe se encontravam ausentes. As duas conflito intrapsíquico, mas porque detém a sua evolução e exige ao psi-
foram então chamadas à pressa, sem terem sido completamente informa- quismo a sua superação sob o argumento do sofrimento que lhe causa.
das acerca do doloroso evento. Quando a rapariga se abeirou da cama da Aliás, se comparados à dor física, os sentimentos de culpa não diferem
irmã morta, ocorreu-lhe por um breve momento uma ideia que poderá das formas de dor física em pelo menos um aspecto: são formas de alerta
ser formulada nos seguintes termos: agora ele está livre e pode casar-se
comigo. Podemos tomar por certo que esta ideia, tendo traído à consciên- que exigem uma resposta do organismo, não cessando enquanto essa
cia da paciente o seu amor intenso mas inconsciente pelo cunhado, foi resposta não se efetivar de forma bem-sucedida. Por analogia, podemos
recalcada logo no momento seguinte por entre o turbilhão de emoções.30 dizer que a dor está para o conflito intrapsíquico como um sistema de
alerta de uma locomotiva que desencadeia uma travagem de urgência
Este é um caso que exemplifica na perfeição a dualidade, estru-
em face do risco iminente de descarrilamento. A “detenção” do fluxo
turante do fenômeno da culpa, entre uma instância acusadora e uma
temporal que somente o perdão podia ultrapassar vê-se agora bem mais
instância acusada. O ego da paciente procede ao recalcamento de “um
esclarecida. É ainda um procedimento de defesa à disposição do sistema
desejo impulsivo [Wunschregung] que contrastava fortemente com os
psíquico, desencadeado sempre que emerge um conflito intrapsíquico.
restantes desejos do indivíduo e que não podia ser conciliado com as
Naturalmente, se o perdão chega a exercer algum efeito será apenas
exigências éticas e estéticas da sua personalidade”.31 A prova de que
como desbloqueador do efeito de travagem ocasionado pela modifica-
houve recalcamento encontra-se no facto de a paciente desenvolver
ção da consciência em consciência culpada, não tendo, para lá disso,
para o desejo cuja expressão ficara interditada pelo recalque outras
nenhuma eficácia sobre o conflito propriamente dito. Poderá tê-la, toda-
formas de expressão. É nesse sentido de uma “formação substitutiva
via, o trabalho psicoterapêutico promovido no contexto de uma análise.
[Ersatzbildung] do recalcado”32 que Freud emprega a noção de sintoma.
Sem obstar a esta descrição da funcionalidade psíquica da cons-
No caso atrás exemplificado, a paciente terá manifestado uma sintoma-
ciência culpada, mas ao contrário do que talvez fizesse transparecer o
tologia histérica.
caso exemplificado por Freud, as ocorrências de consciência culpada
A que se referem exatamente os sentimentos de culpa da paciente? À
detêm um estatuto bem mais perene e estrutural do que o de episódios
vivência dolorosa de uma contradição entre valores que a jovem respeita
de conflito intrapsíquico delimitados de forma precisa nas biografias dos
profundamente e o impulso libidinoso que a assaltou, conflito intrapsí-
pacientes. Está aqui em causa ultrapassar uma concepção estritamente
quico entre forças de maneira nenhuma conciliáveis. Os seus sentimen-
ocasional, episódica, da consciência de culpa – concepção que, aliás,
tos de culpa referem-se, pois, a uma perda que é dolorosa como uma dor
encontra respaldo na comparação da culpa com as ocorrências de dor e
de privação, no caso privação da unidade psíquica consigo próprio. A
mesmo de sofrimento, ambas eventos com começo e termo datáveis de
contradição exige cura, restabelecimento, reparação, não havendo alter-
maneira mais ou menos precisa. Não porque não sucedam ocorrências
nativa a isto senão o sentimento doloroso da culpa.
datáveis de sentimentos de culpa, designadamente no plano da cons-
ciência reflexiva de remorso, sob a forma, como temos mostrado, de
uma apreensão sofredora da consciência culpada. Mas porque no plano
30 FREUD, Sigmund, 1909. Cinco conferências sobre Psicanálise. Trad.: Isabel Castro Silva.
Lisboa: Relógio d’Água, 2009, p. 27-28. pré-reflexivo, aquele de que o remorso é apreensão, não podendo pois
31 FREUD, Idem, 27. deixar de ser pressuposto, os sentimentos de culpa são uma vivência
32 FREUD, Idem, 30. com que se lida melhor ou pior, mais ou menos bem contidos, ou não,

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mas sem que sejam um tipo de vivência de que a consciência pudesse ser conflitualidade. Se esta for intensa a ponto de arriscar uma dissociação,
inteiramente expurgada. a travagem faz-se com força suficiente para bloquear o desenvolvimento
Retomemos o próprio exemplo de Freud para ilustrar o ponto. Há do conflito, permitindo ao psiquismo contê-lo através do recalcamento
aspectos que nele relevam da ordem do tabu. Com efeito, o recalcamento e da resistência. Seria esse o caso da paciente de Freud. Se a conflitua-
não resultou tanto do facto de a jovem paciente de Freud se ter permi- lidade não for dessa ordem dissociativa, então poderá encontrar solu-
tido um impulso libidinoso relativamente ao marido de uma irmã, mas ção normalmente, através de uma escolha, mas de tal maneira que nela
de se ter permitido um tal impulso quando a sua irmã se encontrava no estará envolvido, de uma forma ou de outra, o mesmo efeito-travagem,
leito da morte e precisamente por encontrá-la nessa condição. A percep- atestável nos sentimentos de culpa que se agregam às opções preteridas
ção chocante do desrespeito pelo interdito suscitou uma forte reação de como um lastro que irá perseguir as opções escolhidas. Por essa razão
recalque e consequente sintomatologia histérica. Não fora esta particula- é habitual associar-se às descrições de sentimentos de culpa metáforas
ridade obscena e o mesmo conflito intrapsíquico poderia ser enfrentado relacionadas com a ideia de peso, fardo, carrego.
nos termos de uma escolha a ser feita pela paciente entre os dois lados Os sentimentos de culpa podem impor-se, muito para lá de quais-
da contenda. O interessante aqui é notar que, não fora o recalcamento quer circunstâncias particulares culpabilizadoras, como uma man-
suprimir (pelo menos aparentemente) um desses lados, e havendo então cha que marca, definitivamente, o resto da existência. Um exemplo
que proceder à escolha, seja qual fosse o lado que a jovem preterisse – extremo, mas não raro, sucede quando os pais sobrevivem à morte dos
havendo forçosamente de preterir um deles –, provavelmente essa esco- filhos. Quase sempre os pais se culpabilizam por outras escolhas que
lha, na medida em que é uma escolha muito sentida, não se faria sem poderiam ter feito mas não fizeram e que teriam evitado a morte dos
produção de culpa pela perda associada à escolha. Por outras palavras, filhos. Mesmo quando a morte dos filhos em nada dependeu das esco-
se abstrairmos os aspectos obscenos do caso relatado por Freud, vemos lhas dos pais, como no caso de doenças genéticas incuráveis, a culpa
que a consciência culpada permanece, pelo menos como possibilidade pode ainda ser assumida pela escolha que terão feito em serem pais
latente, em qualquer uma das escolhas que a paciente fizesse, podendo ou, ainda, de modo mais radical, pela escolha de eles próprios existi-
assombrá-la a qualquer momento. E se nos abstrairmos do caso em causa rem. Esta culpa é um lastro que agrilhoa todas as escolhas, impedindo,
e focarmos a atenção no processo psíquico inerente às escolhas acompa- com o seu peso, o fluxo da temporalidade. É a esse lastro que a ação do
nhadas de tensão, entendidas estas como escolhas entre dois agregados perdão e do autoperdão se dirige, na tentativa de o largar “em quanti-
de forças antagônicas, entre si incompatíveis, então talvez seja razoável dade suficiente” para proporcionar a uma consciência a continuidade
esperar que, por regra, este tipo de escolhas pressuponha a consciência da sua temporalidade. Mas nunca de o largar por inteiro, o que seria o
de culpa como um dado incontornável da escolha, ou mesmo, como o mesmo que pôr fim à temporalidade agrilhoada, libertando-se do efeito
dado mais relevante a estimar no ato da escolha. Aplicando um modelo da culpa. Como já pudemos esclarecer, o perdão não desculpa e só a
econômico de análise, dir-se-ia que a consciência de culpa funciona desculpa remove a culpa.
como uma quantidade e que, no ato de escolha, está em causa manter Este lastro que agrilhoa a temporalidade de uma consciência pode
essa quantidade tão menos elevada quanto possível atendendo às cir- ser maior ou menor, mas estará sempre em jogo e remete para um fundo
cunstâncias, e ainda que ao longo de uma vida, que é naturalmente uma que acompanha toda a vida psicológica, enquanto esta emana de uma
vida de escolhas, essa quantidade tenda a aumentar. As escolhas fazem- vida temporal comum mais fundamental. Na verdade, muito mais do
se, em todo o caso, sempre dentro de limites de tolerância à consciência que um obstáculo à capacidade de escolha, o lastro da consciência cul-
de culpa. Esta, como indicamos atrás, funciona como um dispositivo pada é condição de apropriação pelo sujeito das suas próprias escolhas.
de travagem, funcionalidade que visa defender o psiquismo em face da Valendo como peso a ser vencido, confere-lhes peso próprio. Por exem-

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plo, as escolhas futuras dos pais sobreviventes fundam o seu sentido afe- O aspecto comunitário da culpa é também tema central na peça
tivo no lastro da perda. Mas, mesmo em situações que não são situações As Moscas (1943), de Sartre, levada à cena no mesmo ano em que se
-limite, o regime de funcionamento psíquico segue o mesmo sentido: as publicava O Ser e o Nada. A peça consiste numa adaptação da Oresteia,
escolhas futuras adquirem o seu sentido afetivo de pertença ao sujeito mas tornando mais enfático sentimento de uma culpa colectiva, parti-
nas escolhas preteridas de que o sujeito se culpabiliza. A fonte doadora lhada por toda a cidade. Com efeito, a Argos retratada por Sartre em
de pertença afetiva à temporalidade de uma consciência é a dor da cons- As Moscas pretendeu aludir criticamente ao regime de Vichy (1940/44,
ciência de culpa e somos sempre essa consciência culpada. De algum cujo lema era “trabalho, família, pátria”!), sendo as moscas, os milhões
modo torna-se assim patente o significado fenomenológico do “pecado de moscas que não abandonam a cidade e dão o título à peça, nada mais
original” ou da “queda original”, como padecimento de cada um do seu do que as deusas Erínias que, na trilogia de Ésquilo, perseguem Orestes.
fluxo temporal, e, mais originariamente, como padecimento comunitá-
rio de uma vida temporal comum. vi. remorso e impenitência
Em face da falta de um, todos os da comunidade são vítimas e todos
os da comunidade são chamados à resolução da falta, precisamente por- Temos sustentado até agora que o remorso é a apreensão reflexiva, atra-
que a vida temporal de cada um não é indiferente à dos outros, todas vés de uma certa forma de sofrimento, da consciência pré-reflexiva de
copertencentes a uma mesma vida temporal comum. culpa. Mas há nisto qualquer coisa que não está bem. O registo de situa-
Em Macbeth, como, talvez, em nenhuma outra obra literária, Sha- ções em que alguém que viva com sentimentos de culpa, tendo bem
kespeare apresenta o tempo como o núcleo problemático da dramati- noção disso, não se assume, porém, como tendo remorsos levanta um
zação do sentimento de culpa. O crime perpetrado pelo casal Macbeth sério problema à nossa caracterização inicial do remorso. Talvez mais
é evidenciado ao longo da peça como o acontecimento que prende o correto do que dizer que o remorso é a apreensão reflexiva da consciên-
tempo, não apenas o tempo tal como é vivido por ambas as personagens cia culpada seria dizer que o remorso é tão só uma forma de apreen-
envolvidas no regicídio, e que acabará por as vitimar, mas o tempo de são reflexiva, mas não a única, havendo outras que dela se distinguem
toda a comunidade, o tempo existencial do próprio reino. No momento precisamente por não envolverem remorso. A pergunta que imedia-
da morte de Macbeth, no desenlace da peça, Macduff, empunhando
but the balance is restored. Macbeth, who is allowed to say many wise things, observes
a cabeça do tirano, exclama a frase síntese de toda a trama: “Time is early that “Time and the hour runs through the roughest day” (Liii, 147). The number
free!” (Acto V, cena VIII).33 A restauração do equilíbrio das relações of allusions to Time is indeed evidence that Shakespeare was at work in his custom-
ary way, hinting at philosophical pattern, by using the word in a considerable variety of
humanas resolve-se exatamente através da libertação do tempo que a contexts which we may relate as we will. Macbeth, confronted by the Weird Sisters, finds
culpa havia enredado. his mind inhabiting a time when the deed is done; his letters transport his wife beyond
Esta saliência da temporalidade é detectada e enfatizada de forma the “ignorant present” so that she feels “the future in the instant” (l.v.57-58). In the great
soliloquy at the beginning of I.vii Macbeth says he would be content to deal in a time and
muito pertinente por Frank Kermode, na sua breve Introdução à peça na to ignore eternity if he could escape punishment on earth. Lady Macbeth taunts him with
importante edição das obras do dramaturgo The Riverside Shakespeare.34 the inability to proceed (in time) from desire to act. And they try to “mock the time with
fairest show” (81). But Time is not mocked; at the news of Macduff ’s flight, Macbeth says
that Time anticipates his “dread exploits”. He hopes to defeat it by abolishing the time
33 Existe, aliás, um livro de comentário sobre Macbeth, intitulado justamente “The time is between desire and act (IV.i.144ff.); but it is Malcolm that Time will befriend (IV.iii.10),
free” – WALKER, Roy, 1943. The Time is Free: a Study of Macbeth. Michigan: Dakers. and when Macduff enters with Macbeth’s head he can say “The time is free” (V.ix.21). As
34 “The suffering of the Macbeths may be thought of as caused by the pressure of the world in Spenser, Time, apparently the destroyer, is the redeemer; yet it is itself redeemed. It
of order slowly resuming its shape and crushing them. This is the work of time; as usual seems very characteristic of the deeply allusive intellect of Shakespeare that there should
in Shakespeare, evil, however great, burns itself out, and time is the servant of providence. be, in the greatest of the plays about human guilt, these semantic complexities concerning
Nowhere is this clear than in Macbeth. The damnation of the principal characters involves time, the element in which human life succeeds or fails, in which virtue is tested and evil
murder and destruction, outrage not only upon the state but upon the whole cosmos; brought to good” (KERMODE, 1997, p. 1358).

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tamente se segue é previsível: que espécie de apreensão da culpa seria culpada. Na consciência culpada, factos ou palavras, cometidos ou ditos
essa que não envolve remorso, e que, por isso, não envolve o esforço de no passado, assombram o seu presente, perseguindo-o e pesando-o
mudança da vontade em vontade arrependida? Temos designação para como cadeias. Naturalmente, o esforço de reação à consciência culpada
essa apreensão? proporcionado pela reflexão passará, de uma forma ou de outra, pela
Há um certo padrão de reação à culpa objectiva em que alguém libertação das cadeias desses restos de passado que insistem em não ir
sendo efetivamente culpado, de um ponto de vista moral ou legal, sofre embora e que, ficando, vão absorvendo, como esponjas, a força do fluxo
de sentimentos de culpa pelo que fez sem, porém, ter remorsos pelo temporal. Ora, se o passado culpado nos retém a nossa vida temporal,
que fez. Este é o caso que creio ser magnificamente exemplificado por então das duas uma: ou nos desligamos desse passado de forma genuína,
Macbeth, o regicida da tragédia homônima de Shakespeare. O remorso para não o ser nunca mais – e esse é o caminho do remorso que deseja
pressupõe a admissão não só da culpa, que é assim apreendida de forma o arrependimento de uma vontade que, prospectivamente, assume que
dolorosa, mas ainda a vontade de conversão da vontade noutra, ou seja, não mais quererá o que dantes quis, mesmo que falhe nesse objectivo;
vontade de arrependimento que pode ou não converter-se em von- ou desligamos esse passado de nós mesmos de forma efetiva, dizimando
tade arrependida em função da capacidade do sujeito em transformar todo o seu rasto e influência sobre nós – e esse é o caminho da von-
genuinamente a sua vontade. Não são incomuns as situações em que tade austinadamente impenitente. Num e noutro destes dois caminhos
o remorso, não conseguindo vencer os impasses da vontade em dire- desenvolve-se um tipo de relação com a memória. No caso do remorso,
ção a um arrependimento, consome em absoluto uma pessoa, a ponto a memória do passado é guardada e visitada sem que caia no esqueci-
de a conduzir a comportamentos autodestrutivos. Bem diferentes, mento a fonte da culpa sentida; no caso da impenitência, em termos
porém, são aquelas situações em que nem chega a haver remorso. Se completamente opostos aos do remorso, a memória do passado é visada
neste, a vontade de arrependimento (bem ou malsucedida) é decerto por intenções de destruição sempre que esteja ao seu alcance atingir o
efeito estabelecido pelo sofrimento da culpa, há que salientar, porém, presente da consciência culpada.
que não é um efeito que se possa dizer determinado necessária ou com- Os remorsos de Lady Macbeth eram tão intensos que o seu passado
pulsivamente. A compulsão malograria o valor genuíno da conversão de profunda culpa revisitava-a revivescido através de sonhos e alucina-
da vontade, que não pode evidentemente não ser livre. Podemos pois ções, repetição incessante dos violentos acontecimentos por que tam-
ter situações de consciência de remorso, culminando ou não em arre- bém era responsável, sem dúvida como mente instigadora, mas ainda
pendimento, e situações em que a apreensão reflexiva da consciência por outros atos, mesmo na cena do crime, onde não evitou ensanguen-
culpada não é dada sob a forma de remorso, mas sob a forma oposta de tar, tanto como Macbeth, as suas mãos. Os fantasmas do passado cul-
uma contumácia ou obstinação extrema da vontade. Chamaremos a esta pado, no caso dos remorsos, irrompem sem controle na consciência,
apreensão reflexiva dos sentimentos de culpa impenitência, pois, contra- como uma autodenúncia desta perante si própria e mesmo, numa situa-
riamente ao remorso, o impenitente é aquele que não se arrepende, que ção extrema como a de Lady Macbeth, sob a forma de uma confissão
se posiciona a si mesmo contrário à penitência e ao remorso. em voz alta, audível por quaisquer pessoas que se dispusessem a ouvir
Cada uma destas duas formas de apreensão, pela reflexão, da cons- o que aparentemente seriam monstruosas fantasias, produto de algum
ciência culpada só chega a investir a consciência refletinte porque é transtorno psíquico.
desencadeada através delas uma forma de reação aos sentimentos de O remorso até nas circunstâncias menos contundentes redobra o
culpa que perseguem e consomem a consciência. Ou seja: remorso e assomo corrosivo do passado culpado sobre o presente, pela sua assunção
impenitência não são simplesmente formas de apreensão da consciência sem resistência. Este é, portanto, um aspecto essencial na sua fenome-
culpada; são, na verdade, as duas formas básicas de reação à consciência nologia. No remorso, o passado que pesa na consciência passivamente,

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oprimindo o avanço do fluxo temporal, ganha a atenção da consciência Estas diferenças entre maneiras distintas de reação aos sentimentos
para si, monopolizando a sua atividade. Então, a culpa subjectiva torna- de culpa em momento algum se confundem com o medo. Por exemplo,
se objecto da consciência, dizendo-se apreendida reflexivamente. Mas o mentiroso que cessa de mentir por medo das consequências não o faria
mais do que uma captação da culpa pela consciência, o que está em causa se tivesse a garantia dos céus de que ninguém, de maneira nenhuma, o
no remorso é bem uma captação da consciência pela culpa. A reflexão apanharia; já o arrependido está arrependido em virtude das suas con-
descobre-se ao serviço da assunção a si mesma da culpa. E é por essa vicções, a tal ponto que foi capaz de transformar a sua vontade. Se por-
razão que, havendo, como sucede com Lady Macbeth, todos os moti- ventura tivesse sido determinado pelo medo das consequências, então
vos para resistir a uma aberta assunção dos sentimentos de culpa, estes tratar-se-ia de um falso arrependimento. Por fim, aquele que tem a cons-
tenham de encontrar formas alternativas de expressão que escapam ao ciência culpada, mas sem se arrepender, não deixaria de assim se sentir
controle e à censura por parte da consciência reflexiva. Os sonhos e as se os céus lhe garantissem que nada nem ninguém o poria a descoberto:
alucinações de Lady Macbeth são, muito claramente, sintomas de senti- os seus sentimentos de culpa são exatamente os mesmos dos do arre-
mentos de remorso censurados, acabando ela consumida a um tal ponto pendido que poderia ter sido. Por isso, tal qual o arrependido, aquele
que só lhe terá restado como saída um suicídio. Poderia ter-se arrepen- que intimamente se sente culpado mas não arrependido está persuadido
dido, transformando a sua vontade. Mas isso de pouco lhe valeria tal era da sua culpa independentemente das circunstâncias em seu torno. O
a medida dos seus crimes. que os distingue, na sua essência, não é uma diferença de grau como se
No caso do marido, o bravo Macbeth, usurpador de um trono àquele que não se arrependesse, sentindo-se culpado, faltasse a força de
feito de sangue, como tão bem representou Kurosawa na sua adapta- vontade que o arrependido teria tido. O arrependido não é um culpado
ção nipônica de Macbeth, sucedem-se os esforços para afastar, hostilizar consequente, ou o culpado sem arrependimento alguém inconsequente
ou mesmo liquidar os detentores de memórias que de alguma maneira na sua culpa. O que os distingue são duas maneiras inteiramente distin-
evoquem os factos que o culpam. É assim que a cumplicidade de Lady
tas de enfrentar a culpa.
Macbeth no regicídio acaba por condenar esta a um afastamento pro-
Esta diferença entre uma mesma consciência culpada e duas for-
gressivo por parte de Macbeth. Da mesma maneira, Bacquo, que havia
mas opostas de reação aos sentimentos de culpa não terá escapado à
escutado junto com Macbeth as profecias das bruxas, acabou assassi-
observação de Freud. Na sua análise da peça de Shakespeare por repeti-
nado. Não será exagerado afirmar que todo o presente, investido por um
das vezes Freud manifesta um incômodo com a interpretação a fazer de
passado fora de controle, ameaça Macbeth, pelo menos aos olhos deste,
Lady Macbeth, personagem que, animada por uma força psíquica ini-
que, por isso, reage com tirania a esse passado-presente acusador.
cial muito máscula e determinada, inatacável pelo remorso, afinal vem
A diferença de atitudes entre Macbeth e Lady Macbeth no que res-
colapsar-se até a sua própria morte mesmo tendo assegurado o sucesso,
peita à memória é particularmente sentida no momento em que o tirano
tendo obtido o estatuto de rainha. Entre várias pistas, Freud chega a sus-
questiona o médico da corte se não está ao seu alcance apagar do cére-
tentar como consistente a pista de que ambos, marido e mulher, fossem
bro da mulher a memória que a está a matar.
o mesmo carácter dividido em dois, esgotando, no seu conjunto, as pos-
Can’st thou not Minister to a minde diseas’d, sibilidades de reação ao crime e ao sentimento de culpa por ele gerado.35
Plucke from the Memory a rooted Sorrow,
Raze out the written troubles of the Braine, 35 “(...) the germs of fear which break out in Macbeth on the night of the murder do not
And with some sweet Obliuious Antidote develop further in him but in her. It is he who has the hallucination of the dagger before
Cleanse the stufft bosome, of that perillous stuffe the crime; but it is she who afterwards falls ill of a mental disorder. It is he who after the
murder hears the cry in the house: ‘Sleep no more! Macbeth does murder sleep...” and
Which weighes upon the heart?
so “Macbeth shall sleep no more”; but we never hear that he slept no more, while the
Act 5, scene 3, v. 40-45 Queen, as we see, rises from her bed and, talking in her sleep, betrays her guilt. It is he

148 149
vii. reação e resolução
Reacção reflexiva Resolução activa
O remorso e a impenitência são duas formas de apreensão pela refle- individual comunitária
xão dos sentimentos de culpa de uma consciência, apreensão que, sendo
Remorso O bode expiatório
dada na forma de uma alternativa, é já, por si mesma, uma escolha entre (Lady Macbeth)
modos de reação. Na verdade, a impenitência pode resultar como uma
escolha, não tanto de reação à culpa quanto ao próprio remorso. A
Sentimento
de culpa
Apreensão
→ A festa

voragem que este traz à consciência – tão bem exemplificada por Lady Impenitência
(Macbeth) O Perdão
Macbeth – investe a conduta impenitente como conduta de fuga para
não ser o remorso. Seria esse o caso de Macbeth, tão vítima quanto sua
esposa dos sentimentos de culpa, mas pela destruição que vai produ-
zindo no mundo na tentativa de eliminar o rasto passado que o ameaça Todas as três formas de resolução do sentimento de culpa indicadas
com a devastação interior do remorso. são de carácter comunitário, o que autoriza a que as assumamos como
Estas duas formas de apreensão e reação individual aos sentimentos memória viva de uma ordem prévia à individualidade dos sujeitos de
de culpa distinguem-se claramente das formas de resolução comunitá- culpa e à interioridade dos sentimentos de culpa, ordem pré-subjetiva e
ria do trauma na temporalidade expresso pelos sentimentos de culpa. pré-psicológica, onde se joga a vida temporal de toda uma comunidade.
Se, no primeiro plano, se identificam o remorso e a impenitência como Um exemplo histórico impressionante desta detenção da vida temporal
condutas escolhidas a partir da apreensão reflexiva do indivíduo, no comum envolve um país inteiro, a Argentina, desde há décadas, enre-
segundo plano, resolutivo, encontram-se formas de alívio intersubjetivo dada num impasse existencial profundamente marcado pela vivência
da culpabilidade, muito especialmente o perdão, mas igualmente outras comunitária de um sentimento de culpa que permanece, ainda hoje,
formas, bem conhecidas, de remoção comunitária do obstáculo à vida por resolver. O movimento das Madres da Plaza de Mayo prossegue exi-
temporal comum como o sacrifício de um bode expiatório, muitas vezes gindo, três décadas e meia depois, a “aparição com vida” de seus filhos
culminado por uma festa comunitária de expiação. assassinados e feitos desaparecer, durante a Guerra Sucia, pela ditadura
militar argentina (1976/83). Para isso, e ao fim de todos estes anos, as
mesmas mulheres continuam a marchar em silêncio todas as quintas-
feiras, pelas 14 horas, em torno da Plaza de Mayo. A recusa em dar por
perdidas as vidas dos seus filhos, recusa em perder o perdido, traduz a
afirmação do imperdoável. E, ao mesmo tempo, por seus filhos terem
sido (ou serem) revolucionários, acresce ao plano da perda, que tem que
who stands helpless with bloody hands, lamenting that “all great Neptune’s ocean’ will not ver com o perdoar e com o imperdoável, o plano de uma continuação
wash them clean, while she comforts him: “A little water clears us of this deed”; but later
revolucionária dos filhos através da sua desaparição.
it is she who washes her hands for a quarter of an hour and cannot get rid of the blood-
stains: “All the perfumes of Arabia will not sweeten this little hand.” Thus what he feared Em A condição humana, Hannah Arendt referiu a ação de perdoar,
in his pangs of conscience is fulfilled in her; she becomes all remorse and he all defiance. junto com a de prometer, à própria “condição humana da pluralidade”
Together they exhaust the possibilities of reaction to the crime, like two disunited parts
of a single psychical individuality, and it may be that they are both copied from a single (Arendt, 1958, p. 290): perdoar para remediar a irreversibilidade do
prototype.” (FREUD, 1915. “Some character-types met with in psycho-analysis work” in passado, prometer para fazer face à imprevisibilidade do futuro; ou duas
Standard Edition of Complete Psychological Works of Sigmund Freud (ed. James Strachey),
1957. London: The Hogarth Press/ Institute of Psycho-Analysis. Vol. XIV, p. 323-4). faculdades que conferem à ação humana, no enredo das relações com os

150 151
outros, a significação de um vínculo irrevogável entre temporalidade e SARTRE, Jean-Paul. (1943) O Ser e o Nada. Trad. Cascais Franco. Lisboa: Círculo
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152 153
Subjetividad y Tiempo: que recogían la trayectoria en la que los individuos se identificaban y
reconocían. Por ello, con el nacimiento de la Modernidad ilustrada la
Industria Cultural y Memoria Colectiva Ciencia de la Historia con la obra de Giambattista Vico será una de sus
principales contribuciones. El descubrimiento del continente de lo his-
Blanca Muñoz tórico va a significar un logro y una conquista tan importante como el
reconocimiento del tiempo y de la existencia de la Historia.
La Ilustración no sólo será una transformación de las sociedades
sino de los individuos.1 Del súbdito se pasa al ciudadano y del ciuda-
dano se llega al habitante urbano de las enormes metrópolis del siglo XX.
Hay una correspondencia entre los cambios políticos y las variaciones
humanas y psicológicas. Por ello, si en la naciente sociedad industrial las
clases sociales se enfrentan con intereses antagónicos, en la evolución
del capitalismo la existencia se va a ver condicionada por las fuerzas
que este mismo sistema político va a poner en la defensa radical de sus
beneficios. Marx será el analista crucial de la estructura que se oculta
bajo las leyes del mercado económico. Para el autor de El Capital:2 “el
introducción
ser social determina la conciencia”. La subjetividad viene condicionada
En los siglos anteriores a la aparición de los Medios de Comunicación de por las relaciones sociales que el sujeto establezca con su medio y con
Masas las representaciones colectivas provenían de las experiencias que sus condiciones sociales. En La contribución a la crítica de la Economía
los sujetos iban acumulando a lo largo de su vida. La existencia personal Política 3 Marx establece una teoría del conocimiento en la que la deter-
se socializaba dentro de unos marcos de referencia en los que la comu- minación de la conciencia es producto de las circunstancias en las que
nidad y el grupo familiar primario articulaban el conjunto de imágenes se desenvuelve la vida de los sujetos. Las clases sociales, por tanto, no
que orientaban a los individuos en las diferentes situaciones de la reali- sólo dependen del poder económico cuanto, sobre todo, de la capacidad
dad. De esta forma, había una relación directa y activa entre lo personal que estas tienen para distribuir el poder y el privilegio social. Así, en una
y lo colectivo. Las vivencias provenían de un universo en el que lo mito- economía capitalista la distribución de los recursos no es simplemente
lógico, lo simbólico y lo real se entremezclaban indiferenciadamente. una cuestión económica, cuanto a la par psicológica y simbólica. Econo-
Se podría considerar que valores, creencias, esperanzas, deseos... y, en mía y Psicología corren juntas en la organización de las sociedades y en
general, las situaciones de la existencia venían definidas por un cono- el desarrollo de los individuos. La “callosidad del dinero”, como afirmó
cimiento que daba seguridad y estabilidad a las coordenadas vitales. En Marx, delimitaba la vida de los individuos y, especialmente, su concep-
esta situación las subjetividades se conformaban en un proceso de inte- ción del mundo. A partir de esta afirmación se modifican las interpre-
riorización en el que lo particular y propio de los individuos requería taciones psicológicas sobre la constitución de las subjetividades y de sus
una introspección reflexiva con un tiempo caracterizado por la lentitud procesos y características interpretativas. Se entra en una comprensión
acorde con las fases históricas anteriores a la sociedad industrial.
En esta organización del espacio y del tiempo la memoria cumplía 1 Cassirer, E. Filosofía de la Ilustración. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
un lugar esencial y básico. Los recuerdos del pasado orientaban al pre- 2 Marx, K. El Capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1975. Tres volúmenes.
sente. Los acontecimientos no eran sucesos sino, especialmente, hechos 3 Marx, K. Contribución a la crítica de la economía política. Madrid: Alberto Corazón, 1978.

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nueva del poder de las condiciones sociales en la formación de la con- muy bien estudiaron los teóricos de la Escuela de Frankfurt, el poder
ciencia y, en concreto, de la conciencia colectiva. que desempeñan los mass media para alterar la construcción social
Coincide la creación teórica marciana con el desarrollo de la Psi- de la realidad no tiene semejanza en tiempos anteriores. Ahora bien,
cología científica de Wilhem Wundt.4 La aplicación de la metodología para analizar este poder de modificación de la psicología colectiva será
positivista al estudio de la subjetividad se hará notar en la descripción necesario acercarnos a algunos de los análisis de la Teoría Crítica y, en
de los individuos a partir de criterios matemáticos y psicofísicos. El concreto, a la obra de Theodor W. Adorno. En el capítulo “La industria
imperio de la razón instrumental se impone en las cuestiones relativas cultural” incluido en La dialéctica de la Ilustración Adorno comenta:
a la conciencia y al conocimiento. La razón instrumental, analizada en
Cuanto menos tiene la industria cultural que prometer, cuanto menos es
profundidad por Max Horkheimer, será aquella en la que los medios se capaz de mostrar la vida como llena de sentido, tanto más vacía se vuelve
superponen a las finalidades; es decir, será la racionalidad prototípica del necesariamente la ideología que ella difunde. Incluso los abstractos ideales
capitalismo económico triunfante ya a lo largo de todo el Siglo XX.5 Con de la armonía y la bondad de la sociedad son, en la época de la publicidad
este triunfo la psicología humana empieza a describirse más como una universal, demasiado concretos. Pues se ha aprendido a identificar como
publicidad justamente los conceptos abstractos. El lenguaje que se remite
máquina que como un organismo compuesto de facultades y posibilida- sólo a la verdad no hace sino suscitar la impaciencia de llegar rápidamente
des. Es la adaptación de los individuos a las máquinas, y no al contrario: al fin comercial que se supone persigue en la práctica. La palabra que no es
de las máquinas a los individuos. Pero en todo este proceso se va a jugar medio o instrumento aparece sin sentido; la otra, como ficción o mentira.
la adaptación de la psicología humana a la economía empresarial. Los juicios de valor son percibidos como anuncios publicitarios o como
mera palabrería. Pero la ideología, llevada así a la vaguedad y a la falta de
Para entender cómo se adaptará la psicología a la economía será
compromiso, no se hace por ello más transparente, ni tampoco más débil.
imprescindible referirnos a otro de los acontecimientos que definen el Precisamente su vaguedad, su aversión casi científica a comprometerse
siglo pasado: la aparición de los Medios de Comunicación de Masas. En con algo que no pueda ser verificado, sirve eficazmente de instrumento
su libro Ciencia y técnica como ideología6 Jürgen Habermas analiza uno de dominio.8
de los fenómenos más característicos de nuestro tiempo: la utilización
La afirmación de Adorno según la cual la Industria de la Cultura es
de la creación científica y técnica para fines ideológicos; esto es, para el
un instrumento esencial de dominación y control, resumirá la reflexión
uso de la creación de plusvalía adaptada a las imposiciones del mercado
crítica sobre la interrelación entre poder, ideología y psicología social. En
de apropiación privada y en esta apropiación la difusión de mensajes y
este sentido, la convicción según la cual a partir del funcionamiento de
de contenidos adaptados a la economía va a ser determinante. La ideo-
los Medios de Comunicación se entra en una nueva fase de construcción
logía, entonces, se va a convertir en la gran industria del Siglo XX. La
del yo, se va a convertir de uno de los temas centrales del análisis de la
Industria Cultural o Industria de la Conciencia 7 comienza a ejercer el
Teoría Crítica. La convergencia entre la definición de Marx de que el ser
predomino absoluto sobre los ciudadanos a partir de la introducción
social determinaba la conciencia con la afirmación frankfurtiana según la
tecnológica que van a suponer el desarrollo y difusión de los Medios de
cual la industria cultural... sirve eficazmente de instrumento de dominio,
Comunicación de Masas.
nos lleva de manera directa a una nueva interpretación de la formación
Los Medios de Comunicación de Masas van a cumplir unas funcio-
de la subjetividad de los ciudadanos. Esta nueva reflexión requerirá una
nes más cercanas a la psicología que a la tecnología. En efecto, y como
exposición detenida sobre cómo se articulan los procesos psicológicos
4 Wundt, W. Beitrage zur Theorie der Sinneswahrnehmung. Freiburg, 1931. que provienen de forma directa de la acción de la economía sobre las
5 Horkheimer, M. Crítica de la Razón Instrumental. Madrid: Trotta, 2002. facultades humana. Mas, para desarrollar esta reflexión sobre la media-
6 Habermas, J. Ciencia y técnica como ideología. Madrid: Taurus, 1986.
7 Adorno, T.W. y Morin, E. La industria cultural. Buenos Aires: Galerna, 1967. 8 Adorno, T.W. Dialéctica de la Ilustración. Buenos Aires: Galerna, 1967, p. 191-192.

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ción de la Economía sobre la Psicología los autores de la Teoría Crítica mejor se describirán, será en la literatura Realista que evolucionará en
tendrán que introducir conjuntamente con la obra de Marx los trabajos su transformación hacia el Naturalismo. Honore Balzac y Emilio Zola
de Freud sobre Psicología de las Masas.9 En este sentido, el estudio de la dibujan mejor que cualquier tratado político o social las desigualdades
Subjetividad y sus organización en el Siglo XX va a requerir nuevos ins- que clasifican a los seres humanos en dos grupos absolutamente separa-
trumentos metodológicos, temáticos y epistemológicos para explicar la dos: quienes disponen del poder y el privilegio social, y quienes carecen
complejidad que se requiere en el análisis contemporáneo sobre como se de todo y sólo tienen la fuerza de su trabajo. Dos tipos, por tanto, de
conforman los diversos niveles del conocimiento colectivo. subjetividades se desarrollan y tienen su medio ambiente en esta orga-
nización social. La subjetividad de la clase dominante y la subjetividad
la tecnologización de la psicología colectiva de la clase dominada. A estos dos grupos se une un tercer grupo que
es interclasista y con desigualdades diferentes y específicas: las mujeres.
Como ya se ha comentado anteriormente se ha entrado en una etapa Si se considera que el Siglo XIX fue el momento en el que nacen
económica nueva y diferente de la economía capitalista. Si hacemos un los movimientos obreros revolucionarios, no se puede olvidar asimismo
repaso del itinerario que el Capitalismo ha experimentado desde el Siglo que también aparecieron los movimientos Sufragistas. En Inglaterra las
XIX hasta nuestros días, hay que establecer las siguientes fases: a) Capi- primeras mártires del Sufragismo se arrojarán a los raíles de los tran-
talismo Industrial, b) Capitalismo de Masas, c) Capitalismo Post-Indus- vías como reivindicación de sus derechos como personas racionales y
trial y d) Capitalismo de la Globalización. Estas etapas conllevan a su vez que demandan una justicia social y política igual para todos. Madame
unos ciclos internos en los que se resumen las distintas fases reseñadas. A Bovary en Francia, la Regenta de Clarín en España o Ana Karenina de
continuación vamos a analizar las características que explican cada fase, Tolstoy en Rusia, de nuevo, en la Literatura Realista encontramos la
subrayando al mismo tiempo como éstas afectan a la Psicología Social. lucha de las mujeres por vindicar su protagonismo en la Historia. Pero
a) El Capitalismo Industrial puede fecharse aproximadamente de la misma forma que frente al movimiento obrero el control y la vigi-
entre 1815 y 1920. En este período de tiempo se puede afirmar que la vida lancia estatal se agudizan, con el Sufragismo aparecerá una de las estra-
colectiva gira sobre la fábrica, la economía de oferta requerirá una gran tegias que se va a extender hasta nuestros días: la violencia patológica y
población trabajadora que va a formar parte del ejército de proletarios la agresión como formas de dominación. La figura de Jack el Destripa-
que llegan del campo a la ciudad en uno de los primeros movimientos dor, representando al psicópata asesino de mujeres que se mueven con
migratorios que caracterizarán la economía capitalista en su conjunto. libertad en la noche y en los recintos como tabernas y lugares que han
Como consecuencia de estas emigraciones rurales a las zonas urbanas sido prohibidos a las mujeres durante siglos, se muestra como uno de
se desarrollan las primeras ciudades de la burguesía industrial en las que los mecanismos que más se van a utilizar contra las reivindicaciones
subdividen en tres áreas metropolitanas su estructura. El centro, la semi- de sus derechos por parte de las mujeres. Nos encontramos con una de
periferia y la periferia reflejan una ciudad en la que las clases sociales las subjetividades que se van a hacer comunes durante el Siglo XX en
están separadas y segmentadas según sus niveles económicos. El centro sus iconografías mediáticas: la psicología patológica de los psicópatas
para la burguesía. La semiperiferia para una clase de servicios y funcio- y dementes. Como afirmará Michel Foucault en Vigilar y castigar 10 los
narios y la periferia estará ocupada por una clase obrera que pasa casi la modos de vigilancia y control se irán haciendo cada vez más sofisticado,
totalidad de su tiempo en el trabajo fabril y esclavo de la sociedad indus- siendo la violencia simbólica y psíquica una de las formas más elabora-
trial. Las dos clases enfrentadas, – burguesía y proletariado –, en donde das de dominio social. Esta fase de Capitalismo Industrial se cierra con

9 Freud, S. Psicología de Masa y análisis del yo. Madrid: Alianza, 1997. 10 Foucault, M. Vigilar y castigar. México: Siglo XXI, 1977.

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otra de las constantes capitalistas: la guerra. La Primera Guerra Mundial logía o conducta animal. De este modo, el supermercado recuerda los
o Gran Guerra finalizan lo que quedaba del Siglo XIX, y da inicio a las laberintos de ratas y palomas que Watson utilizó en sus experimentos de
contradicciones radicales del Siglo XX. Será el paso del primer modelo laboratorio, minimizando los deseos humanos a la categoría de simples
industrial al Capitalismo de Masas. conductas y tropismos animales.11
b) El Capitalismo de Masas es un período paradójico. Por un lado, En estas circunstancias la subjetividad se convierte en un asunto
se van a vivir los infortunios y efectos de la postguerra pero, por otro, político ya que con técnicas psicológicas se gestionarán las motivaciones
comienza una época diferente del pasado reciente. La economía de oferta de la colectividad. El “mundo feliz” de Aldous Huxley se hace realidad y
da lugar a una economía de demanda. Los “felices Años Veinte” resu- todo queda supeditado a los intereses de la ideología dominante. La Teo-
men el estado psicológico en el que se encuentra el mundo. La necesidad ría Crítica de la Escuela de Frankfurt frente al Conductismo psicológico
de olvidar la guerra y sus miserias originará un deseo de entrar en un y el Funcionalismo sociológico denunciará la unidimensionalidad a la
tiempo de diversión y hedonismo que pocos años después volverá a ser que los individuos estarán sometidos y controlados, pero más adelante
el preludio de otra Guerra Mundial. Sin embargo, este segundo capita- en nuestro estudio analizaremos con detalle los planteamientos frank-
lismo introduce una estructura novedosa y absolutamente diferente con furtianos a este respecto.
el pasado: las Masas sociales. El Capitalismo de Masas dará paso desde 1973 a la denominada por
El Capitalismo de Masas o, más bien para Masas, aparece como la Alain Touraine y Daniel Bell como Sociedad Postindustrial.12 Desde 1973
lógica evolución del Capitalismo de Mercado. La producción serializada hasta 1989 año en el que se derrumba el Muro de Berlín, entramos en
y en cadena va a ser la característica central de los años que van desde terminología de Daniel Bell “en el advenimiento de la sociedad post-in-
mil novecientos veinte hasta mil novecientos setenta y tres o año de la dustrial”. Es el Capitalismo de las empresas multinacionales y de los tra-
primera crisis del petróleo. Si la fábrica fue el centro de las relaciones bajadores convertidos en trabajadores de “cuello blanco” (White collars)
sociales del capitalismo industrial, en el capitalismo de Masas el alma- frente al “mono azul” del capitalismo industrial. Bancos y multinaciona-
cén de consumo se va a constituir en el símbolo del cambio de capita- les gestionan el planeta. La sociedad de servicios sustituye a la Sociedad
lismo de demanda a capitalismo de oferta. Como consecuencia de esta de Masas, creándose una doble estructura planetaria: sobrealienación
etapa la sociedad de consumo de masas se edifica sobre el conocimiento ideológica a través de los mass-media en el Primer Mundo y sobreexplo-
de las necesidades colectivas. Pero más que necesidades la sociedad de tación económica en el Tercer Mundo. En 1989 los Estados capitalistas
consumo jugará con los deseos, planteándose que las necesidades son aliados a los Estados Unidos vencerán a los países de la órbita soviética.
limitadas mientras que los deseos se harán en sus anhelos ilimitados. Concluye la Guerra Fría y se inicia el, por ahora, cuarto modelo: el Capi-
Las superestructuras de las que hablaba Marx, se gestionarán como talismo de la Globalización.13
infraestructuras. La publicidad, el marketing y la ideología funcionarán Si la Sociedad Industrial giraba sobre el trabajo en la fábrica, la
dando origen a la formación de los Medios de Comunicación de Masas Sociedad de Masas sobre el almacén de consumo y la Sociedad Postin-
y, a su vez, estos crearán una cultura adecuada a este tipo de Capitalismo: dustrail sobre las empresas multinacionales, la Globalización se estruc-
la Cultura de Masas. La Sociedad de Consumo y su cultura elaborada tura como sociedad de redes informáticas deslocalizadas que giran
con métodos tayloristas o fondistas requerirá la aparición de una Psico- como un sistema planetario en relación a la mayor Bolsa internacional:
logía que niegue la conciencia y las facultades superiores de la especie
11 Watson, J.B. Psychology from the standpointof a behaviourist. Lippincott, Filadelfia, 1929.
humana. El Conductismo frente a la conciencia reivindica la conducta.
12 Touraine, A. La Sociedad Postindustrial. Barcelona: Ariel, 1969. Asimismo, Bell, D. El
La obra de John B. Watson basándose en las reflexiones de Pavlov sobre advenimiento de la sociedad postindustrial. Madrid: Alianza Universidad, 1976.
los reflejos condicionados, identifica la conducta humana con la etio- 13 Amin, S. El Capitalismo en la era de la Globalización. Barcelona: Paidós, 1998.

160 161
Wall Street. A partir del predominio del capital financiero se producen de la razón instrumental a la pseudocultura y de la
dos fenómenos fundamentales: el ataque a los Estados nacionales con pseudocultura a la unidimensionalidad
la intención de que su quiebra permitirá el triunfo del Mercado sobre el
Estado y, por otro lado, la Neocolonización del Tercer y Segundo Mun- Uno de las temáticas constantes de la Teoría Crítica de la Escuela de
dos sometidos a guerras locales e incluso tribales con el objetivo de apro- Frankfurt será comprender cómo se modifican las conciencias según los
piación de sus riquezas. Se trataría, por tanto, de un renacer del pasado intereses de quienes detentan el poder y el privilegio social. Si repasamos
Darwinismo Social del Siglo XIX sólo que ahora con elementos nuevos. la creación intelectual de los autores de Frankfurt hay un interés central
Esto es, en la Globalización se fomenta un nuevo modelo cultural que se por aclarar el modelo cultural que se está imponiendo y sus efectos psi-
corresponderá con esta Economía y tal modelo cultural, como afirmó cológicos. El libro esencial para reflexionar sobre este tema es, sin duda,
Fredrich Jameson, no puede dejar de ser sino la Postmodernidad.14 De La dialéctica de la Ilustración.16 En el capítulo central “La Industria de la
nuevo, nos encontramos con otro asalto a la razón. Sin embargo, este Cultura” se establece una indagación rigurosa sobre la mercantilización
asalto será más sofisticado y perverso que en épocas anteriores, ya que de los procesos culturales. Horkheimer y Adorno viven en la fase del
los gestores del Capitalismo ha aprendido a lo largo del siglo XX nuevas Capitalismo de Masas y su perplejidad ante la conversión de la cultura
técnicas y estrategias de dominación social. En este sentido, la ideología en mercancía estará subyaciendo en la gran mayoría de sus obras. Pero
se ha mutado en tecnología y la tecnología, a su vez, en Psicología. Con también no hay que olvidar que esta temática fue permanente en los
ello, las facultades humanas han entrado en una etapa en la que pueden grandes teóricos alemanes del final del Siglo XIX y comienzos del Siglo
XX. En este sentido, Edmund Husserl en La crisis de las ciencias euro-
ser modificadas en función de los intereses económicos o políticos del
momento. Por tanto, la capacidad que se ha adquirido para controlar a peas y la fenomenología trascendental 17 se interroga sobre por qué se está
las ciudadanos se ha agrandado de manera considerable, adquiriéndose produciendo tal crisis y cuáles son sus causas. Pero, asimismo, Georgy
un poder técnico y tecnológico sobre las conciencias de los individuos Lúkacs en Historia y conciencia de clase 18 reflexiona sobre dos conceptos
que permite prever con antelación los comportamientos de la colecti- marxianos que aportan evidentes respuestas al estado de postración en
vidad. Se podría hablar de la digitalización de las psicologías a través de el que se adentra la cultura y la creación intelectual y estética.
los nuevos Medios de Comunicación de Masas. Internet, los recientes Lúkacs retoma los conceptos de cosificación y fetichismo entendi-
dispositivos telefónicos y audiovisuales, la utilización de unos modos dos como los procesos prototípicos que el capitalismo produce en la
de comunicación en los que los aparatos sustituyen a los sujetos, hacen psicología humana.19 La cosificación se define como la conversión del
real el análisis de Giovanni Sartori en su libro Homo Videns. La socie- individuo en cosa, mientras que el fetichismo es el proceso contrario;
dad teledirigida.15 La tecnologización de las conciencias es un fenómeno es decir, cuando las cosas y los objetos se humanizan. Sin embargo,
correspondiente y correspondiente con la economía globalizada. De tanto cosificación como fetichismo están dentro del significado amplio
esta forma, la unidimensionaliad a la que se refería Marcuse ha entrado del concepto de alienación. La alienación abarcaría tanto el fetichismo
en una fase nueva. Pero antes de entrar en el análisis de esta actual fase como la cosificación cuando se define por alienación la pérdida de la
será imprescindible ocuparnos del análisis de la subjetividad en los pri-
meros autores de la Teoría Crítica. 16 Adorno, T.W. y Horkheimer, M. La dialéctica de la Ilustración. Madrid: Trotta, 1994, p.
165-213.
17 Husserl, E. La crisis de las ciencias europeas y la fenomenología trascendental. Madrid:
14 Jameson, F. El posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado. Buenos Crítica, 1991.
Aires: Paidós, 1991. 18 Lúkacs, G. Historia y conciencia de clase. Barcelona: Grijalbo, 1978.
15 Sartori, G. Homo Videns. La sociedad teledirigida. Madrid: Taurus, 2001. 19 Lúkacs, G. Existentislisme ou marxismo? Paris: Nagel, 1961.

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propia psicología humana por la influencia de la acción exterior, siendo y posibilidades colectivas. Por ello, Horkheimer finaliza su obra con una
en este sentido la economía capitalista la causa que altera radicalmente visión pesimista sobre el futuro. Horkheimer comenta:
no sólo la psicología sino la totalidad de los fenómenos que constituyen
El progreso hacia la utopía se ve frenado hoy en primera línea por la rela-
la conciencia humana. ción de todo punto descompensada y desproporcionada que existe entre
En consecuencia, desde muy temprano el pensamiento marxista el paso de la avasalladora maquinaria del poder social y las masas atomi-
tuvo la convicción según la cual la subjetividad dependía de las condi- zadas. Todo lo demás – la tan extendida hipocresía, la creencia en teo-
ciones externas y, en concreto, económicas en las que los individuos se rías falsas, el desanimo del pensamiento especulativo, la debilitación de la
voluntad o su prematura desviación a actividades sin fin bajo la presión de
desenvolvían. El ser social dependía del medio y, de este modo, había la ansiedad – no es sino un síntoma de esta relación. Si la filosofía logra
una relación directa entre condiciones sociales y facultades personales. La ayudar a los hombres a reconocer estos factores, habrá prestado un gran
Teoría Crítica recogerá esta afirmación, pero ampliando al campo de las servicio a la humanidad. El método de la negación, la denuncia de cuanto
invenciones técnicas y comunicativas los principales conceptos sobre la de cuanto mutila a la humanidad e impide su libre desarrollo, descansa
sobre la confianza en el ser humano. En lo que hace a las filosofías edi-
alienación de la teoría marxiana.
ficantes, puede demostrarse que carecen, en verdad, de esta convicción,
Una de las primeras aportaciones frankfurtianas al estudio de la razón por la que resultan incapaces de enfrentarse a la decadencia cultu-
racionalidad y sus modificaciones será el análisis de la racionalidad ins- ral. Desde su prospectiva la acción es presentada como la realización de
trumental. Horkheimer tomando de Weber el análisis que el Capitalismo nuestro destino eterno. Ahora que hemos aprendido, gracias a la ciencia,
ha ejercido sobre la razón llega al problema de lo instrumental y su cone- a superar el miedo ante lo desconocido en la naturaleza, somos los escla-
vos de coacciones sociales que hemos creado nosotros mismos. Cuando se
xión entre medios y fines.20 El desequilibrio existente entre medios en su nos anima a actuar con independencia clamamos por modelos, sistemas y
amplio sentido y fines en correspondencia con los medios conlleva uno autoridades. Si como ilustración y progreso espiritual entendemos la libe-
de los problemas fundamentales de nuestra época. En efecto, la raciona- ración del hombre de creencias supersticiosas en poderes malignos, en
lidad instrumental está muy alejada de aquella razón kantiana en la que demonios y hadas, en el destino ciego –en una palabra, la emancipación
del miedo-, entonces la denuncia de lo que hoy se llama razón es el mayor
los imperativos y, especialmente, el imperativo categórico prohibía que se
servicio que puede rendir la razón.22
utilizasen a los individuos como medios y no como fines: “actúa de tal
manera que la norma de tu conducta pueda ser una máxima universal”.21 Para el teórico crítico hemos llegado a un momento histórico en
Frente a la ética kantiana la racionalidad instrumental todo lo somete al el que están en peligro no sólo las capacidades creativas de la especie
criterio de utilidad, y de aquí que cosificación y fetichismo encuentren cuanto la propia idea de humanidad. El dominio de lo instrumental
su caldo de cultivo en sociedades sometidas al beneficio de los pocos pone en crisis el progreso espiritual de la especie. Progreso que desde
frente a la desgracia de los muchos. la Grecia clásica hasta la Ilustración se consideraba la perfectibilidad de
El pragmatismo con el que la racionalidad instrumental utiliza per- la esencia humana y la salida del miedo, como afirma Horkheimer, ante
sonas y cosas se convierte en uno de las grandes cuestiones de nuestra poderes malignos y supersticiosos. Este ideal de recuperar la dignidad
época. En estas condiciones, la subjetividad social viene mediada por esa y la grandeza del espíritu, sin embargo se va a encontrar cada vez más
utilidad instrumental en la que el interés y el rendimiento económicos atacado y subestimado por un tipo de sociedad y de ideología en los que
sustituyen con sus objetivos prácticos las mejores capacidades humanas lo primitivo se impone como lo natural y lo originario. Lo primario se
implanta como la psicología “normal” y lógica de los individuos. Esta
situación ya fue alertada por los primeros autores de la Teoría Crítica.
20 Weber, M. Economía y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 46-51.
21 Kant, I. Crítica de la Razón Práctica. Salamanca: Sígueme, 1995. 22 Horkheimer, M. Crítica de la Razón Instrumental. Salamanca: Sígueme, 1995, p. 187.

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La crisis de conciencia y de civilización que se presagiaba en los años Ya se ha comentado que la razón instrumental es aquella en donde
treinta del siglo pasado fue una tensión constante en la obra de Adorno, no hay coherencia entre medios y fines. Extraordinarios medios técnicos,
Horkheimer y Marcuse. La personalidad autoritaria 23 se imponía opresi- por ejemplo, para emitir y transmitir contenidos casi subhumanos por
vamente no sólo en las psicologías individuales cuanto en el conjunto de su violencia o irracionalidad. La Pseudocultura, a su vez, seguirá este
instituciones y comportamientos colectivos. La pregunta quer se harán planteamiento subrayando, no obstante, la deformación de los factores
los teóricos de Frankfurt, entonces, no dejará de ser: ¿cómo es posible educativos y culturales como aspectos principal de la ideología contem-
que se consoliden formas de conducta en las que se retroceden hacia poránea. Por Pseudocultura se considerará la alteración del concepto de
pautas de acción, que creíamos superadas por la evolución histórica y educación heredado de la Ilustración y cuyo sentido se compendiaba
por los procesos de civilización? en la ampliación de las facultades estéticas, intelectuales y éticas de los
La respuesta a esta interrogación nos sitúa en el mismo núcleo de sujetos. Era aquel “¡Atrévete a pensar!” que Kant consideraba la con-
la Teoría Crítica en su explicación de los factores que conforman la sub- signa revolucionaria de la Ilustración. Por tanto, la estrategia antiilus-
jetividad colectiva. Se puede afirmar que la explicación dada por los trada frente al progreso de la conciencia de los ciudadanos consistirá en
distintos frankfurtianos nos sitúa en el eje esencial de sus teorías. Para la aparición de un tipo de ideología en la que se rebajan los contenidos
Adorno, la Pseudocultura o falsa cultura creada con métodos industria- culturales e intelectuales de tal manera que desaparece la complejidad
lizados está en la génesis de las subjetividades dañadas de nuestros días;24 racional con la que poder entender el dominio de las sociedades de capi-
para Horkheimer y como hemos señalado con anterioridad, la raciona- talismo tardío. Esta Pseudocultura homogeneizará y seleccionará los
lidad instrumental genera una sociedad en la que la utilidad práctica y la valores colectivos, evitando principalmente todo aquello que tenga un
eficacia económica nos han conducido a un planeta administrado como análisis crítico y aclarador sobre los elementos que subyacen y se ocul-
una actividad empresarial; a su vez, Herbert Marcuse estimará que el tan para entender los procesos de poder y dominación colectivos. Para
daño causado a las subjetividades provendrá de una unidimensionali- Adorno, la Pseudocultura conforma unos tipos de subjetividades amol-
dad 25 impuesta políticamente como la forma de control y dominación dadas a las condiciones laborales y productivas contemporáneas. Pero
sobre los ciudadanos en el neocapitalismo tardío. De este modo, en el en esta adaptación será ocio dirigido y el entretenimiento programado
análisis crítico predominantemente se coincide en el poder de la ideo- parte esencial de la alienación de los ciudadanos. La Industria Cultu-
logía a la hora de modificar y dirigir las actitudes y las aptitudes de los ral, o también Industria de la Conciencia, se constituye en uno de los
individuos hacia las finalidades del sistema financiero. Se va a coincidir, análisis más relevantes y significativos de la obra de Adorno. Desde sus
por consiguiente, en la advertencia marxiana según la cual “el ser social primeros estudios sobre la alienación musical hasta llegar a la dialéctica
determina la conciencia”, destacándose como en este ser social cada vez de la Ilustración o los diversos análisis sobre el cine y la comunicación
los procesos ideológicos tienen un papel más relevante y significativo. de consumo, Adorno será el teórico crítico que mayor hincapié hará en
Pero veamos a continuación los diferentes, pero muy parecidos, análisis la pseudoformación a la que se está sometiendo a las subjetividades en
de los teóricos críticos sobre cómo la ideología altera y “encauza” las la época del capitalismo postindustrial. La frase del autor de La Dialéc-
psicologías humanas hacia objetivos económicos. tica Negativa 26 según la cual: “lo que es, no puede ser posible”, resume la
posición de extrañeza intelectual que Adorno tiene ante una sociedad en
la que el continuado miedo y temor colectivo ante los numerosos riesgos
23 Adorno, T.W. y otros. La personalidad autoritaria. Buenos Aires: Proyección, 1967. que acechan a los ciudadanos: el miedo al paro, el temor a un accidente,
24 Adorno, T.W. Mínima moralia. Reflexiones desde la vida dañada. Madrid: Taurus, 1966.
25 Marcuse, H. El Hombre Unidimensional. Barcelona: Seix Barral, 1968. 26 Adorno, T.W. Dialéctica Negativa. Madrid: Taurus, 1975.

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la amenaza permanente de quiebra económica de las sociedad... y, en países invirtiendo de tal manera que provoca riesgos de quiebra incluso
general, la intimidación con la que se amenaza de manera permanente a de los mismos Estados. Este capital flotante no tiene restricciones ni
los habitantes del planeta, hizo afirmar a Adorno: “la auténtica libertad internacionales ni institucionales. Es un capital compuesta de activi-
es vivir sin miedo”. Por tanto, salir de la ideología de ls Pseudocultura y dades en muchos casos ilegales – prostitución a gran escala, mercado
del temor continuado es el resumen del planteamiento de Adorno para de armas, tráfico de drogas y todo aquello que no está regulado legal-
construir subjetividades libres y auténticas. Y lo mismo planteará Mar- mente –. En consecuencia, este tipo de economía genera situación de
cuse con sus análisis sobre la unidimensionalidad. Ahora bien, si para crisis de todo el sistema ya que no se puede regular ni por los países,
Adorno el ataque ideológico se dirige hacia la educación y la cultura, ni por medios legítimos. De este modo, la crisis económica se desplaza
para Marcuse este asalto se realiza desde los sistemas de vigilancia y con- al subsistema político y mediante elecciones periódicas se tratará de
trol de los ciudadanos. La unidimensionalidad, pues, será la limitación salir de esta situación de crisis, pero de nuevo con medidas electorales
psicológica de los sujetos dejándoles en una sola dimensión; es decir, se no se solventará estos desajustes. Y a partir de aquí todo el problema
limitan los fenómenos de comprensión y creación estéticos, intelectua- se desplaza hacia la psicología de los ciudadanos, será lo que Haber-
les y éticos recortando la bidimensionalidad o multidimensionalidad mas denomine como colonización del mundo de la vida. Los medios de
que caracterizan los procesos causales. Es una forma de “simplificación” comunicación de masas y los sistemas educativos serán alterados en las
de la realidad en la que nada se explica con causas complejas ni relacio- direcciones planteadas por Adorno, Horkheimer y Marcuse. Con ello,
nada entre sí. Todo queda presentado de manera plana y sin dificultadas. la subjetividades reciben todos los procesos de crisis generados por el
El planeta queda así convertido en un erial en donde nada tiene ni expli- capitalismo tardío y, otra vez, se hará cierta la frase marxiana de que el
cación, ni causas y mucho menos responsables de este estado de páramo ser social determina la conciencia.
desértico al que se ha convertido a los sujetos y a las sociedades.
En la Primera Generación de la Teoría Crítica razón instrumental, memoria y subjetividad: la alteración de la memoria
pseudocultura y unidimensionalidad resumen el poder ideológico que colectiva a través de la comunicación de masas
sufren los individuos por acción de los Medios de Comunicación de
Masas o por los modos de control y vigilancia política. Estos análisis La investigación contemporánea sobre los procesos sociológicos ha
van a ser posteriormente recogidos por la frankfurtianos de la Segunda variado radicalmente en la actualidad. La Psicología ya no puede des-
Generación y, en concreto, por Jürgen Habermas. Para Habermas, ligarse del contexto en el que se produce. No se trata de establecer “un
tomando un concepto de Edmund Husserl replanteado por el sociólogo ambientalismo”, cuanto de determinar cómo influyen los contextos en
del Conocimiento Alfred Schütz, estamos sufriendo una colonización el psiquismo humano. Desde esta perspectiva, se hace muy interesante
del mundo de la vida. Esto es, en el capitalismo tardío se está en una replantear la estructura que actúa en la formación de las subjetividades
permanente crisis que afecta a todos los sectores sociales, pero esta crisis individuales y colectivas en esta fase de capitalismo globalizado. Definir,
es una crisis desplazada. no obstante el concepto de subjetividad nos lleva a un análisis sobre este
En el libro Problemas de legitimación en el capitalismo tardío 27 término en su desarrollo. Subjetividad se ha referido al ser del sujeto.
Habermas analiza cómo se produce esta crisis estructural. Según el Desde el pensamiento clásico griego la subjetividad hacia referencia a
autor neofrankfurtiano, la crisis se produce en los niveles económicos lo anímico, al alma que ocupaba un cuerpo y que estaba apresada en
ya que hay más capital que inversión. Este capital vaga flotando por los él. Para Platón los diferentes tipos de almas estructuraban la polis y sus
diferentes grupos. El alma concupiscente será propia de los artesanos,
27 Habermas, J. Problemas de legitimación en el capitalismo tardio. Madrid: Taurus, 1975.
el alma irascible de los centinelas y el alma racional de los filósofos. Sin

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embargo en ningún momento esta estructuración de la polis es restrin- artefactos se impondrán a lo largo del Siglo XX. En un Siglo en el que la
gida o clasista, ya que todo está organizado en función del mérito de los despersonalización y la uniformidad se imponen triunfan unos modelos
ciudadanos en la polis y las limitaciones que se establecen suponen un de subjetividad en los que, como afirmaban los medievales, los sujetos
elemento de justicia colectiva. Así, los artesanos podrán tener familia y representados se implantan mediante poderosas técnicas conductistas y
propiedad, los centinelas familia pero no propiedad y los reyes-filósofos medios comunicativos de inmenso poder ideológico. Es el mundo feliz
no podrán poseer ni familia, ni propiedad. De aquí que las subjetivida- de Huxley sólo que ahora las conciencias se han convertido en audien-
des se deben conformar en la templanza para los artesanos, en la forta- cias al servicio de los intereses transnacionales.
leza para los guardianas y, finalmente, en la sabiduría para los filósofos. Algunos autores de pensamiento crítico dudan de que se pueda
Como se observa, todo está encauzado hacia una sociedad en la que la hablar de subjetividad personal. Se considera que los impactos tecno-
comunidad encuentre su armonía. La subjetividad está intrínsecamente lógicos actuales son tan dominantes que las subjetividades han sido
unida a la sociedad desde el punto de vista que lo anímico es a la vez lo invadidas, como si se tratase de un continente desconocido, por las téc-
personal y lo inmaterial, siendo lo espiritual el elemento que hay que nicas y estrategias de la comunicación masiva. Ya nos hemos referido
cuidar y preservar de los daños del exterior y de las mismas tendencias a la digitalización de las psicologías, y en esta digitalización la pérdida
malsanas de los sujetos. Para los griegos clásicos, proteger las concien- de lo individual y característico de las subjetividades libres y autóno-
cias de los individuos es resguardar, al mismo tiempo, a los ciudadanos mas se han visto dominadas por las imágenes, los símbolos, los valores
y al Estado. y los códigos de conducta de las representaciones elaboradas de manera
A partir del pensamiento clásico la subjetividad cobra un doble sen- industrial. En estas condiciones, la Industria Cultural a la que se refe-
tido: el ser subjetivo o sujeto con conciencia y el ser objetivo o sujeto rían Horkheimer y Adorno se ha adueñado del espíritu de las poblacio-
representado. Esta dicotomía persistirá en la Edad Media hasta llegar nes del planeta. A este respecto es muy curioso el rechazo que hay de
al Renacimiento. Es muy interesante esta distinción porque en ella va a determinados conceptos en la actualidad. Palabras como sublime, bien,
gravitar el significado dado por la Modernidad a lo subjetivo. En efecto, bondad o belleza que resumían los ideales del pensamiento clásico y del
la Modernidad evoluciona hacia una profunda reflexión sobre este con- ilustrado, son consideradas como rarezas del pasado o exotismos en el
cepto. Con Descartes y su “pienso luego existo”, la subjetividad entra en presente. La subjetividad, por tanto, pertenece a la industrialización de
el pensamiento inaugurando una época nueva en la comprensión de los los sentimientos y de lo que habían sido patrimonio del espíritu. Pero en
sujetos. El cogito cartesiano asigna a la racionalidad la capacidad de crear esta colonización de las conciencias, a la que Habermas hacía alusión, la
ideas universales válidas para cualquier individuo indistintamente sea su facultad humana y social que más ataques ha sufrido será la memoria,
origen o pueblo. Se abre la enorme polémica entre racionalistas franceses tanto la individual como la colectiva. Transformar la memoria de los
y empiristas inglese para quienes el individuo es un papel en blanco que individuos y de los pueblos es saquear y arruinar la Historia de las socie-
la experiencia se ocupa de rellenar. Dos conceptos de subjetividad se dades. Esto lo conocía de manera perfecta uno de los sociólogos que
enfrentarán a lo largo del pensamiento hasta llegar a nuestros días. Los más dedicación destinó al conocimiento de las estructuras y procesos
defensores de la conciencia y los defensores de la conducta. De nuevo, de la memoria social. Maurice Halbwachs consideró que, en los tiempos
en los Siglos XIX y XX reaparecerá esta dualidad dicotómica y según se contemporáneos, destruir el mundo de los recuerdos acumulados en el
apoye a una o a otra, también, se defenderá un modelo de sociedad. tiempo se había convertido en uno de los mayores peligros para indi-
El enfrentamiento social y político a la vez reflejará una diferente con- viduos, grupos y sociedades. En un interesante epígrafe titulado “Las
cepción del individuo. El Positivismo y las teorías que presentan a los duraciones colectivas como únicas bases de las memorias denominadas
individuos como meros organismos biológicos o simples máquinas y

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individuales” de su libro “La memoria colectiva” Halbwachs reflexiona objetivas; esto es, la memoria histórica se compondría de acontecimien-
lo siguiente: tos que definen a los diferentes individuos y grupos de una sociedad
específica, mientras que la memoria colectiva tendría un fuerte elemento
Situémonos ahora en el punto de vista de los individuos. Cada uno es
miembro de varios grupos, por lo que participa en varios pensamien- reconstructivo y, por tanto, imaginario. De esta forma, el autor francés
tos sociales, su mirada se sumerge sucesivamente en varios tiempos subraya el rol que la memoria ocupa en la estructuración simbólica de
colectivos. Éste es ya un elemento de diferenciación individual: que en las sociedades, pero esta estructuración simbólica puede incurrir en
un mismo período, en una misma región del espacio, las conciencias de profundas alteraciones que cambiarían la interpretación de los aconte-
distintos hombres no se repartan entre las mismas corrientes colectivas.
Pero, además, sus pensamientos se remontan más o menos lejos, más o cimientos.
menos rápido en el pasado o el tiempo de cada grupo. En este sentido, las Desde que se observó este proceso por las Psicologías y Sociologías
conciencias concentran en un mismo intervalo de duración social vivida, de comienzos del Siglo XX, la adulteración de los mecanismos psíquicos
mantienen un período mayor o menor de tiempo representado. Evidente- del recuerdo se han incrementado de manera especial con la invención
mente, en este sentido hay grandes diferencias entre ellas.28
de los Medios de Comunicación de Masas. Radio, Cine, Televisión y
Halbwachs se plantea el análisis más pormenorizado sobre el fun- Nuevas Tecnologías no han hecho más que aumentar el poder sobre el
cionamiento de la memoria en su estructuración como representaciones consciente y el subconsciente social, hasta el punto que algunos psicoa-
colectivas. En este sentido, la herencia que se recoge de la sociología de nalistas contemporáneos, como es el caso de Jacques Lacan en Psicoa-
Durkheim se expresa en su consideración de la conciencia social como nálisis, radiofonía y televisión, 30 llegaron a afirmar que en las circuns-
la forma de cohesión de las sociedades. Por ello, para el autor de Los tancias actuales hasta nuestro propio subconsciente no nos pertenece.
marcos sociales de la memoria,29 la retención de los recuerdos se rela- La pérdida de los procesos psíquicos a partir de la acción que la comu-
ciona fundamentalmente no tanto con una participación en la totalidad nicación tecnificada va a ser uno de los cambios determinantes del siglo
de la estructura de la sociedad en su conjunto, sino de la pertenencia a pasado. Estos cambios en donde se van a percibir de manera más nítida,
grupos diferentes y a intervalos de tiempo propios. Halbwachs insiste será en el uso que los mass-media ejercen sobre la memoria colectiva.
en la pluralidad que existe en la reconstrucción temporal según sean las En este sentido, la confusión entre realidad y ficción se convierte en una
vivencias singulares de cada individuo. En estas condiciones, la memo- de las estrategias mediáticas con las que la persuasión colectiva ejerce
ria colectiva es una construcción de los retazos de las memorias indivi- su máximo desarrollo. Ya en el año 1938 Orson Welles logró el pánico
duales; y de esta forma, tiempo y memoria se armonizan en una totali- generalizado con su falsa retransmisión de la invasión de la tierra por
dad inseparable. los marcianos. Con ello se demostraba la capacidad que la radio ejercía
La memoria es múltiple, pero también unifica identidades e histo- sobre los receptores. Ahora bien, lo que en Welles fue una retransmisión
rias. La dialéctica en la que se expresan las sociedades no puede dejar de teatral, en nuestros días se han roto los límites entre la realidad y la fic-
ser sino el movimiento del recuerdo histórico y de las huellas que deja ción. Sin embargo, la gravedad de esta ruptura proviene principalmente
sobre la vivencia personal. Para Halbwachs las sociedades tienen una de que se utiliza con la intención de equivocar las interpretaciones que
gran parte de comunidad afectiva en la que la memoria histórica y la los ciudadanos den a los acontecimientos y a las imágenes comunicati-
memoria colectiva suman los focos en los que las tradiciones se hacen vas. Así, desde finales de la Segunda Guerra Mundial nos encontramos
con una constante ideológica de reescribir la Historia. Numerosas pro-
ducciones hollywoodienses se producen con la finalidad de dar unos
28 Halbwachs, M. La memoria colectiva. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza,
2004, p. 126-127.
29 Halbwachs, M. Los marcos sociales de la memoria. Barcelona: Anthropos, 1997. 30 Lacan, J. Psicoanálisis, radiofonía y televisión. Barcelona: Anagrama, 1980.

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tipos de interpretaciones adecuadas a la ideología dominante surgida a tus semejantes. En estas condiciones, la ideología multicultural pro-
tras el conflicto bélico. En estas producciones se da una perspectiva ses- clama el folclorismo de las culturas que quedan convertidas en una gale-
gada de las causas que llevaron a la guerra. No se explican los motivos ría de usos antropológicos frente al significado ilustrado de las culturas
por los que existía el enorme malestar social en la República de Weimar, entendidas como civilización y progreso educativo. La posibilidad de
tampoco se analiza la situación del pueblo alemán para que se echase en perfectibilidad de individuos y sociedades queda relegada como “una
masa en el Nacionalsocialismo, ni la gran especulación económica que creencia pasada”. Y de esta forma, la ideología multiculturalista antro-
se produjo durante los años previos y durante la guerra. Todo queda pológica y la deseducación social impuestas como un ideario del valor
como un estereotipo histórico en el que buenos y malos luchan como de lo primitivo y primario frente al pensamiento crítico y documentado
en una película del Oeste. Pero no solamente los acontecimientos son finalizan conformando unas subjetividades y psicologías en las que lo
manipulados en función con las necesidades geopolíticas del momento patológico y anómico encuentra su irracional caldo de cultivo. La Indus-
en el que se producen tales productos mediáticos, cuanto al mismo tria de la Conciencia, en suma, hará así su trabajo ideológico y minará
tiempo se falsifican personajes y acontecimientos. En otro lugar se estu- férreamente los ideales ilustrados de construir una paz perpetua y crea-
dió, por ejemplo, el uso político que las empresas audiovisuales hicie- tiva para todos los habitantes del planeta.33
ron del atentado del 11-S en Nueva York, los hechos más dramáticos y
sobrecogedores son presentados y aprovechados para hacer propaganda
política, e incluso publicidad comercial como un anuncio de una marca
postmodernidad, vacío y poder
de tabaco que usaba el incendio de las dos Torres Gemelas para vender A partir del comienzo de la Globalización se ha ido imponiendo una
los cigarrillos de la empresa comercial. Todo ha sido adulterado y fal- reciente cosmovisión que algunos teóricos actuales denominan como era
sificado, haciendo cierto el análisis de la Teoría Crítica según el cual la del vacío. El filósofo y sociólogo Gilles Lipovetsky reflexiona sobre el
totalidad del planeta está siendo parte del espectáculo de la ideología.31 tema del individualismo contemporáneo. Para el autor francés:
La modificación de la memoria colectiva se ha convertido en un
A cada generación le gusta reconocerse y encontrar su identidad en una
asunto de primera magnitud. La Industria Cultural se encargará de
gran figura mitológica o legendaria que reinterpreta en función de los pro-
poner “a disposición” del público las imágenes con las que descifrar lo blemas del momento: Edipo como emblema universal, Prometeo, Fausto
que los poderes transnacionales quieren que se transmita adecuada- o Sísifo como espejos de la condición moderna. Hoy Narciso es, a los ojos
mente. En unas sociedades en donde prevalece la cultura-mosaico, a la de un importante número de investigadores, en especial americanos, el
que se refería Abraham Moles, la existencia de un poderosísimo proceso símbolo de nuestro tiempo: “El narcisismo se ha convertido en uno de los
temas centrales de la cultura americana”.34
de desinformación es tan necesaria para la supervivencia del sistema,
como es imprescindible “la institucionalización” de unas subjetividades El narcisismo equivale a egolatría. El yo se impone sobre la totali-
unidimensionales amoldadas a las imposiciones coyunturales de cada dad de individuos o de cosas. La cosificación y el fetichismo adquieren
momento económico.32 Se puede afirmar, en consecuencia, que la rees- una nueva condición. Se podría afirmar que con el triunfo de la ideo-
critura de la Historia se convierte en inevitable cuando se proclama un logía postmoderna está directamente relacionado con la Globalización
multiculturalismo en el que desaparecen los imperativos categóricos y, económica, e incluso como afirma Frederich Jameson en su libro El pos-
sobre todo, el mandato ético de no explotarás a tu prójimo, ni alienarás

31 Muñoz, B. La Cultura Global. Madrid: Pearson, 2005. 33 Kant, I. La Paz perpetua. Madrid: Tecnos, 1996.
32 Moles, A. Teoría de la información y percepción estética. Madrid: Júcar, 1976. 34 Lipovetsky, G. La era del vacío. Barcelona: Anagrama, 2000.

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modernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado 35 son insepara- Pues bien, si algo define a la actitud postmoderna es la banalidad,
bles las características de la Postmodernidad de la aparición de las socie- esa era del vacío a la que Lipovetsky hacia alusión.37 La deconstrucción
dades globalizadas. Para entender por qué se conexionan de esa manera será la metodología antiestructuralista utilizada.38 Nos encontramos,
tan peculiar una corriente estética y filosófica como es la postmoderna pues, con una ideología del anti: antiilustración, antiestructuralismo,
y una economía que se quiere presentar planetaria, hay que hablar del antiplatonismo, antifreudianismo... Se parece a esa actitud de los niños
nexo de unión que media entre una y otra. Nos referimos, por tanto, a malcriados que para afianzar su ego, tienen que negar y rechazar cual-
la cosmovisión que se articula sobre la razón cínica. Comprender este quier cosa que provenga de los adultos. El rechazo de la Modernidad y
aspecto nos va a dar algunas claves para considerar el modelo de subje- de los ideales del Siglo de las Luces es de tal repulsa que casi se trata más
tividad que predomina en las sociedades del Primer, Segundo e incluso de un odio profundo y soterrado que de un modo de entender la socie-
Tercer Mundos. Se puede considerar que, en la actualidad, con el poder dad. Pero la pregunta no deja de ser: ¿por qué esa aversión tan mani-
de los mass-media hay una uniformidad generalizada en las psicologías fiesta? Responder qué causas han llevado a esta actitud estética, ética e
colectivas. La machacona e interesada concepción de las diferencias cul- intelectual, requiere adentrarse en quiénes concentran, defienden y por
turales oculta la perniciosa ideología del folclorismo antropológico, al qué tal antipatía antimoderna.
que nos hemos referido con anterioridad en nuestro estudio. Se vive en En una primera mirada a la Postmodernidad se observa un extre-
el momento presente en una paradoja: la ideología del multiculturalismo mado rechazo a la concepción filosófica clásica griega que diferencia
en una economía que pretende extenderse como una mancha de aceite entre apariencia y realidad; o también, entre lo latente y lo manifiesto. En
planetaria. En consecuencia, adaptar a los ciudadanos de los múltiples ambos casos lo que se evita es profundizar en la naturaleza reflexiva de
países y grupos a los requisitos de las redes financieras y comunicativas las cosas; por ello, la razón cínica sustituye el análisis causal y crítico por
que imponen sus criterios como “lo progresista y lo adelantado”, se ha la paradoja agresiva y el humor sarcástico. De este modo, se modifica el
convertido en el objetivo determinante de la Globalización, y para ello principio de causalidad racional por la provocación descarada y desa-
se tendrá que apelar a unas estrategias en las que la confusión se encubra fiante, que quiere generar unas risas en las que la jocosidad malsana y
con elaboradas técnicas mediáticas. nociva sustituya el argumento documentado y veraz. Una consecuencia
La Postmodernidad tiene que fechar sus inicios en mil novecientos de este triunfo del cinismo lo encontramos en las subjetividades que se
setenta y tres con el derrumbe de las viviendas sociales en la norteame- fomentan en el actual cine para niños y adolescentes. En una de las varia-
ricana ciudad de San Luís. Coincide este años con la primera crisis del das versiones de Alicia en el país de las maravillas el relato transcurre en
petróleo, lo que nos indica hasta qué punto están unidos el pensamiento un psiquiátrico, lo maravilloso se ha transmutado en decepcionante, los
postmoderno y la economía globalizadota, pero asimismo no debemos personajes parecen sacados más de un sanatorio para alienados psicó-
olvidar que muy pocos años después en 1989 con el derrumbe del Muro patas que de la narración de Lewis Carroll. La patología revolotea en
de Berlín y el final de la Guerra Fría, la Geopolítica internacional se las producciones juveniles e infantiles hollywoodienses. El paroxismo
modifica radicalmente. Se necesitará una ideología que dé “coherencia” irracional, lo violento, la parodia exaltada, lo morboso y enfermizo se
a esta situación y de aquí que aparezca la Postmodernidad como el éxito presentan como las subjetividades “normales” y adecuadas a los tiempos
del pensamiento débil, tal y como Gianni Vattimo denominará a la espe- postmodernos. La razón cínica desplaza a la razón crítica y la banalidad
culación antiilustrada que representa.36
35 Jameson, F. El posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo avanzado. Buenos
Aires: Paidós, 1991. 37 Lipovetsky, G. La era del vacío. Barcelona: Anagrama, 2000.
36 Vattimo, G. y Rovatti, P.A. El pensamiento débil. Madrid: Cátedra, 1990. 38 Derrida, J. De la Gramatología. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971.

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sustituye a lo razonado y esencial. El barullo invade la reflexión sose-
gada, y todo queda sometido al intercambio económico e ideológico.
En consecuencia, las subjetividades y las psicologías en el tiempo de
la Globalización se encuentran con unos espíritus deshabitados en los
que lo que se había considerado lo humano desaparece ante el avance de
la actitud postmoderna. El cinismo y la frivolidad conforman la cosmo-
visión generalizada de los ciudadanos, imponiéndose esa era del vacío
a la que se han referido los pensadores críticos. El poder y el principio
de dominación colectiva se han adueñado de cuerpos y mentes como
si hubiesen llegado unos alienígenas de otro planeta. Las élites mino-
iv.
ritarias han despojado a las mayorías de individuos de sus facultades
y sentimientos. Del Arte desaparece la emoción y la sensibilidad, del
Em três tempos:
pensamiento la racionalidad y la coherencia, y de la ciencia la curiosidad da literatura, da ética e da biografia
y la indagación creadoras. Todo ha quedado sometido a los grupos de
poder transnacionales y sus objetivos inmediatos. Marcuse comentará:
Un “final del arte” sólo cabría concebirlo en una situación en que los hom-
bres ya no fueran capaces de distinguir entre lo verdadero y lo falso, entre
el bien y el mal, entre lo bello y lo feo. Se trataría de un estado de barbarie
en el cenit mismo de la civilización.39

La Geopolítica de la Confusión se extiende como un magma


maligno en el momento contemporáneo hasta imponer un caos en
el que una nueva barbarie aturda y desconcierte equivocando, como
afirma Marcuse, lo verdadero y lo falso, el bien y el mal o lo bello y
lo feo. Se trataría de un final de la Historia, pero no de la Historia del
planeta cuanto de lo histórico entendido desde la perspectiva consciente,
crítica y civilizadora que ha llevado a la Humanidad a los mejores hallaz-
gos y creaciones que han transformado y transfigurado convirtiendo en
humana, sensible y bondadosa a nuestra especie.

39 Marcuse, H. Konterrevolution und Revolte. Frankfurt: Surhkamp, 1973, p. 140. [Contrar-


revolución y revuelta. México: Joaquín Mortiz, 1978.]

178
Três vidas, três tempos: subjetividade, tempo e
literatura em W. Faulkner, V. Woolf e A. Camus
Ariane P. Ewald

Tarefa difícil que este Simpósio nos apresenta: falar sobre tempo e sub-
jetividade. Como entender o tempo; como apreendê-lo; como dar-lhe
forma... A via dos sentimentos pareceu-me, inicialmente, uma saída:
felicidade – epifania de um momento –, ressentimento – que nos cor-
rói –, tristeza – que dilacera o coração. Mas percebi que falar das sensibi-
lidades me afastaria das situações concretas nas quais efetivamente nós
as vivemos, daí minha opção por falar do tempo a partir de subjetivida-
des, que tomo aqui como vidas, aquilo que criando sentido termina por
produzir o fluxo da vida. Procurei, portanto, apreender “tempo” em três
formas diferentes e contar, para vocês, como estas três temporalidades se
organizaram e constituíram narrativas de subjetividade.
Antes de explicitar as três narrativas com as quais trabalho neste
texto, gostaria de fazer algumas reflexões sobre as noções que são o mote
para esta discussão. Somos uma “espécie fabuladora”, afirma Nancy Hus-
ton, incapazes de nos afastarmos desta possibilidade, pois é vivencian-
do-a que damos sentido ao nosso mundo. Vivemos então tentando dar
sentido às coisas à nossa volta. Por isto, narrativa e tempo estão indis-
soluvelmente ligadas. Narrar é “[...] tecer ligações entre o passado e o
presente, entre o presente e o futuro. Fazer existir o passado e o futuro

181
no presente”.1 Ao narrar damos existência a algo, tornamos “real”, pois dos através da paciência e do escrutínio de pesquisadores atentos. A
está pleno de significado. Temporalidade e narração são indissociáveis e, mais recente descoberta desta ordem são os sete tratados de Arquime-
neste sentido, procuro encontrar uma forma de entender temporalidade des que foram encontrados sob um Livro de Horas escrito em grego,
e narração como um dueto musical no qual uma voz sem a outra carece tecnicamente chamado de euchologion, terminado em 1229 – século XIII,
de compreensão, de falta. Esta forma está ligada a um recurso, cuja justi- provavelmente em Jerusalém. A cópia dos tratados de Arquimedes são,
ficativa foi puramente econômica, utilizado ao longo de alguns séculos, provavelmente, da segunda metade do século 10, feito em Constanti-
na Idade Média, pelos copistas e iluministas: palimpsesto, que significa nopla. Mas descobriu-se também sob estas páginas um outro livro (10
“raspado de novo”.2 páginas no total), datado do século 4 a.C., o Attic Orator Hyperides, do
A palavra vem do grego palaeo, que significa ‘novamente’; e psao qual só se tinham visto referências em fragmentos de papirus.
= apagar uniformemente. Esta foi a solução encontrada pelos copistas O palimpsesto aparece aqui como metáfora para pensar a tempora-
na Idade Média, em torno do século VII, para resolver o problema da lidade, como se o presente fosse um constante “raspar” do pergaminho
escassez de pergaminhos, peles sobre as quais os livros eram copiados, – o passado – criando a possibilidade de escrever, na pele, outra história.
em substituição ao papiro. Como a pele era mais resistente e havia mui- É uma raspagem cotidiana do seu ser passado e ter ali a possibilidade de
tas obras a serem copiadas, decidiam-se (sabe-se lá quem!) quais obras fazer-se e refazer-se, sem deixar que a cicatriz do passado – o que já foi
eram consideradas de menor importância e relevância que estavam dis- escrito – desapareça; ele continua ali, sutilmente, entre as finas camadas
poníveis na biblioteca. Estes livros, de pouca ou nenhuma importância, da pele; uma cicatriz. É fundamental aqui lembrar que o palimpsesto
segundo os critérios da época, se transformaram em reserva3 estratégica deixa sua tinta na pele, mesmo que apagada, é isto que o distingue; seu
na produção de novos livros. passado está ali registrado, em fragmentos desorganizados e pouco visí-
veis, esperando que um sentido organizador dê conta desta dispersão.
Desfeita a costura dos cadernos, as folhas eram raspadas e/ou lavadas com
leite, sem atenção à ordem precedente (que guardavam no volume então Este sentido pode ser a narrativa.
desmanchado)* Narrar é ordenar de certa maneira o fluxo temporal, é
contar uma sequência de acontecimentos que se desenrolam num deter-
* No século XI usavam leite para a lavadura das peles. Às vezes a tinta penetra de tal minado espaço e num determinado tempo – quer através de linguagem
maneira no pergaminho que o esforço do mais teimoso raspador não consegue
fazer desaparecer todo o seu vestígio.4
verbal, quer através da representação iconográfica ou simbólica ou de
qualquer outra forma de expressão artística – é um impulso original no
e estavam prontas para receberem uma nova escrita. Foi desta forma que homem, fruto, não só do seu desejo e conhecimento e de comunicação,
discursos de Cícero, fragmentos das obras de Plauto, Tito Lívio, Sêneca, mas também da sua intrínseca necessidade de ordem e significado e da
constatação [...] da contingência da experiência terrena da vida humana.5
Eurípedes, entre tantos outros, foram apagados e, felizmente, localiza-
Continuamente somos tomados pelas certezas das nossas lem-
1 Nancy Huston. A espécie Fabuladora. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 21. branças do nosso passado, dispostas nas dobras do tempo; mas tam-
2 Wilson Martins. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: bém somos continuamente surpreendidos pelos nossos próprios enga-
Ática, 1998.
nos, pelas fábulas que construímos a respeito de nós mesmos, da nossa
3 José Teixeira de Oliveira. A fascinante história do livro. Idade média, vol. 3. Rio de Janeiro:
Kosmos, 1987, p. 194. Ver também Úrsula E. Katzenstein. A origem do Livro: da Idade da família e dos outros. Fabulamos a vida, nós a tornamos um “conto
Pedra ao advento da impressão tipográfica no Ocidente. São Paulo: HUCITEC: Instituto maravilhoso”. Selecionamos, intencionalmente ou não, uma série de
Nacional do Livro, 1986, p. 424.
4 José Teixeira de Oliveira. A fascinante história do livro. Idade média, vol. 3. Rio de Janeiro: 5 Maria do Rosário Leitão Lupi Bello. Narrativa Literária e Narrativa Fílmica. O caso de
Kosmos, 1987, p. 194. Amor e Perdição. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 38.

182 183
acontecimentos que consideramos mais notáveis, ou pertinentes, ou tomar decisões. O que comungo com Goody é que toda narrativa pos-
importantes, diz Nancy Huston, e os arranjamos numa narrativa. Com sui uma natureza intrínseca, seu caráter temporal, mas não tão precisas
ela, damos coerência aos fragmentos do nosso passado e nos permiti- assim. Nesta temporalidade, na qual a narrativa é expressa, fiquei mais
mos raspar “palimpsesticamente” nosso presente para construirmos atenta ao processo de transformações que vivenciamos à medida que
novas possibilidades de futuro. Vivemos o presente, o instante fugaz acompanhamos a história e cada personagem. Neste sentido, a noção
que é este momento e que nada representa temporalmente. Mas é exata- de acontecimento é um ponto-chave, pois esta noção que é o motor da
mente nele que nos configuramos para o passado e para o futuro. É neste narrativa.8
exercício de escrever, apagar e reescrever que nos constituímos, esta é a
[...] Mesmo que o acontecimento tenha lugar unicamente no pensamento
história da nossa vida, esta constante tentativa de dar sentido a tudo o de uma personagem, ele nunca deixa de ser indispensável para que se
que fazemos seja como profissional, seja como pessoa. Iris Murdoch, possa considerar estarmos em presença de uma narrativa. (idem, p. 45)
escritora e filósofa inglesa, diz que “[...] Quando consideramos nossa
vida, momento a momento, constatamos [...] que o que fazemos carece Eis aqui o mote para as três vidas e os três tempos que quero expor.
de sentido até que o damos. Constatamos o caráter artificial e incerto de O Som e a Fúria, de William Faulkner (1897-1962), escrito em 1929;9 Mrs.
nossas recordações.”6 Dalloway de Virginia Woolf (1882-1941), escrito em 1925;10 e A Queda de
A narrativa, colada que está ao tempo, é um dos modos fundamen- Albert Camus (1913-1960), escrito 1956.11
tais usados pelos seres humanos para pensar o mundo. Creio que muitos
de nós, psicólogos, sabemos disso, mas nem todos pensamos o quanto o som e a fúria:
as narrativas encadeadas em contínuas sessões terapêuticas, ou àquelas quando a ira do tempo avança em pequenos passos
provenientes de grupos os mais diversos, possam nos parecer uma his-
O Som e a Fúria é um daqueles livros que você não esquece. O processo
tória de romance ou novela ou mesmo um conto. Ao colocarmos em
de leitura é um quebra-cabeça que você vai lentamente montando. A
cena a noção de literatura, imediatamente vem aquele olhar enviesado
narrativa é extremamente bem construída e o livro, juntamente com
previamente pronto para dizer que literatura não é coisa séria. Infeliz-
Enquanto agonizo, de 1930, é considerado, com razão, obra-prima de
mente, este tipo de coisa continua acontecendo, mas, por outro lado, há
Faulkner. Depois de terminar sua leitura, percebemos que tudo já estava
um grupo de pessoas, e alguns são psicólogos, que procuram mostrar
lá, desde o início mas, como na vida, nada muito claro, tudo em peda-
que literatura é pertinente a suas reflexões teóricas e indissoluvelmente
ços, em fragmentos e estes, totalmente dependentes da perspectiva de
ligada a elas.
cada narrador. Faulkner12 conta, numa das poucas entrevistas que deu,
Na modernidade, a narrativa está ligada à própria história do
romance, na acepção de Jack Goody7 que, diferentemente de outros
autores, acha que se abusa da generalização do termo narrativa. Para ele,
narrativa é “[...] uma forma padrão dotada de uma trama definida que 8 Maria do Rosário Leitão Lupi Bello. Narrativa Literária e Narrativa Fílmica. O caso de
Amor e Perdição. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 45.
se desenvolve segundo fases bem precisas” (p. 37). Creio que me inclino 9 William Faulkner. O Som e a Fúria. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
mais para a posição contrária à deste antropólogo, pois tenho gosto pelo 10 Virginia Woolf. Mrs. Dollaway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
horizonte aberto diante de mim que, em certos momentos, me obriga a 11 Albert Camus. A Queda. Rio de Janeiro: Record, 2006.
12 William Harrison Faulkner (1897-1962), o “u” em seu sobrenome foi incorporado pos-
6 Iris Murdoch. Sartre. Romantic Rationalist. London: Penguin Books, 1989, p. 44. teriormente em função de um erro do impressor no seu nome na capa do seu primeiro
7 Jack Goody. Da oralidade à escrita. Reflexões antropológicas sobre o ato de narrar. In: livro, The Marble Faun. Ele decidiu manter o nome com o erro. Frederic J. Hoffman.
Franco Moretti (org.). A cultura do Romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 36. William Faulkner. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 19, nota 7.

184 185
que não há fórmula para escrever, nem ambiente. O melhor emprego certante de acontecimentos”.17 Tudo começou, para Faulkner,18 com
que teve enquanto escritor, afirmou ele, foi o de zelador de um bordel: uma imagem: a imagem dos fundilhos enlameados da calcinha de uma
menina pequena trepada numa árvore de onde ela assistia, através de
[...] Na minha opinião, é o ambiente perfeito para um artista trabalhar.
Proporciona ampla liberdade econômica; ele se vê livre do medo e da uma janela, o velório de sua avó e de cima desta árvore ela descrevia o
fome; tem um teto seguro e nada para fazer, senão cuidar de umas pou- que estava acontecendo para seus irmãos que estavam no chão: Quen-
cas contas e ir uma vez por mês pagar a polícia local. O lugar é quieto de tin, o mais velho, Jason o terceiro e Benjy, o mais novo. Esta é Caddy, um
manhã, que é a melhor hora do dia para se trabalhar. Há bastante vida dos centros da história de uma família que se desagrega lentamente. A
social à noite [...] não tem nada a fazer, já que a madame toma conta dos
livros [...].13 história, como relata Emily Izsak,19 se passa em torno dela, mas Faulkner
não nos dá dela nenhuma imagem. Este livro é frequentemente compa-
Não há maneira de se tornar escritor a não ser escrevendo, mas antes rado ao Ullysses de Joyce, como um romance experimental, mas se difere
disso, Faulkner leu muito, especialmente durante o serviço, quando tra- em composição e forma, pois foi escrito com um plano global em mente
balhava para os correios. É claro que algum tempo depois foi demitido, desde o início.20 Talvez por isto Faulkner pôde reescrevê-lo várias vezes
mas este é um bom “pecado” para um escritor. até se aproximar daquilo que queria.
Conta Otto Maria Carpeaux,14 que Faulkner provavelmente tomou Frederic Hoffman, estudioso dos livros deste autor, diz que o estilo
o título de seu livro O Som e a Fúria da peça Macbeth, de Shakespeare. A de Faulkner é “rico, denso e pesado”; é também povoado de retórica e de
fala de Macbeth, após saber da morte da esposa, creio que indica bem o sintaxe exuberante.21 O uso que ele faz do monólogo interior para narrar
sentido dado por Faulkner no seu livro: a história de Caddy nos leva para o interior de cada um dos membros
O amanhã, o amanhã, o amanhã, avança em pequenos passos [..] Apaga- da família através de episódios marcantes que cada um deles tem na sua
te, apaga-te, luz efêmera! A vida nada mais é que uma sombra que passa, memória e que cada um vai contar a partir de si. Assim penetramos no
um pobre ator que se pavoneia e se agita uma hora em cena e, depois, nada pensar de cada um e passamos a conhecê-los e a compreender a história
mais se ouve dele. É uma história contada por um idiota, cheia de som e de da família. Os acontecimentos são, portanto, o que baliza para o leitor
fúria, significando nada.15
a temporalidade. A cada novo acontecimento, que ainda não sabemos
Ele deliberadamente embrulha a cronologia, diz ainda Carpeaux, localizá-lo temporalmente, abre-se outro e outro, como instantâneos
para indicar “[...] a desordem invencível dentro e em torno dos seus sucessivos se sucedendo diante de nós num continuo ininterrupto e pre-
personagens”.16 Esta é a marca desta história, esta “alternância descon- sente. Este sucedâneo de momentos nos obriga a parar e refletir sobre
quem está contando a história, o que ele está vendo e vivendo e assim o

17 Otto Maria Carpeaux. História da Literatura Ocidental. Vol. IV. Brasília: Senado Federal,
2008, p. 2702.
13 Entrevista concedida a Jean Stein Vanden Heuvel em 1956. In: Os Escritores. As históricas 18 Entrevista concedida a Jean Stein Vanden Heuvel em 1956. In: Os Escritores. As históricas
entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 39. entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 44.
14 Otto Maria Carpeaux, A política, segundo Shakespeare. In: Ensaios Reunidos (1942-1978), 19 Emily K. Izsak. The Manuscript of The Sound and the Fury: The Revisions in the First
v.1. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 780. Section. Disponível em http://drc.usask.ca/projects/faulkner/main/criticism/izsak.html.
15 Shakespeare, Macbeth, Ato V, Cena V. In: Obra Completa, vol. 1. Rio de Janeiro: Aguilar, Acesso em maio de 2011, p. 9 de 12.
1969, p. 523. A tradução foi comparada a outras traduções e preferi utilizar esta (dis- 20 Emily K. Izsak. The Manuscript of The Sound and the Fury: The Revisions in the First
ponível em http://palavradofingidor.blogspot.com/2009/12/apaga-te-apaga-te-luz-efe- Section. Disponível em http://drc.usask.ca/projects/faulkner/main/criticism/izsak.html.
mera-vida-nada.html). Acesso em maio de 2011, p. 10 de 12.
16 Otto Maria Carpeaux, Almas do Purgatório. In: Ensaios Reunidos (1942-1978), v. 1. Rio de 21 Frederic J. Hoffman. William Faulkner. In: Warren G. French e Walter E. Kidd (orgs.). A
Janeiro: Topbooks, 1999, p. 810. Literatura Americana e o Prêmio Nobel. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 123-138.

186 187
conhecemos. Sartre, em sua resenha sobre o livro publicada em 1939, diz vendo; tudo nos aparece em fragmentos, vividos num presente cons-
que descobrimos a história “sob cada palavra, como uma presença incô- tantemente reescrito, um paplimpsesto temporal, como defini anterior-
moda e obscena, mais ou menos condensada conforme o caso [...]”.22 O mente. Esta noção, paplimpsesto temporal, é como uma reescritura cons-
passado nunca está morto, nem mesmo é passado, diz Faulkner,23 por tante que cada um dos membros da família faz, através do monólogo
isto “[...] Não há alguma coisa como foi – apenas é.24 Descobrimos, por- interior, ao narrar “como” as coisas se passam(ram); no monólogo, cada
tanto, que estamos lançados irremediavelmente no presente. um fornece o seu ponto de vista. É exatamente no primeiro capítulo,
O tempo para ele é uma condição fluida que existe momentanea- as primeiras 72 páginas na edição brasileira,27 que vamos lentamente
mente em “manifestações de pessoas individuais”;25 daí ele dar maior penetrando no mundo da família Compton através, primeiramente, dos
importância ao tempo psicológico e não ao tempo linear. Nossa relação, olhos de Benjy (Benjamin), o filho retardado, o caçula, o idiota. A des-
então, com a temporalidade se dá nesta micropassagem, nesse ‘entre’ concatenação do tempo linear é, como o autor propositadamente nos
que não é ainda e que já não é mais. Do ponto de vista literário, Hoffman faz visualizar, a forma como Benjy vive sua própria história: ela é um
oferece um meticuloso trabalho sobre as várias perspectivas temporais presente contínuo, infinito, um constante inacabamento.
na obra de Faulkner: o “Passado Edênico” – tempo não histórico; o “Pas- Aos olhos do autor, “Benjy é dor e piedade por toda a espécie
sado Real”; o “Evento Principal”; o “(‘Foi’) Recente”; e o “Presente (‘É’)”. humana. [...] a única coisa que posso sentir por ele pessoalmente”, afirma
Ele também indica cinco outras maneiras pelas quais Faulkner descreve Faulkner, “é preocupação quanto a ele ser verossímil ou não como o
a conexão do indivíduo com o passado: de forma obsessiva; abstrata; criei. Ele era um prólogo, como o coveiro nos dramas elisabetanos.
como imobilização; como negação e como equilíbrio, no qual há esta- Cumpre a sua finalidade e se vai.”28 Ele vê o que acontece, mas simples-
bilidade e duração. 26 Mas o fundamental ser ressaltado aqui, é entender mente não compreende o que se passa à sua volta, não tem noção de que
como as pessoas que ele criou em O Som e a Fúria vivem sua “movi- certos acontecimentos estão no passado, ele os vive continuamente no
mentação no tempo”, como o fazem a partir de dentro de si mesmas. presente, sente, mas não entende o que sente e por que sente. Pode-se
Faulkner faz uma exploração contínua da percepção de cada um sobre dizer que ele está continuamente no “é”. Isto representa um mundo fixo,
os acontecimentos que narram; este movimento, que é temporal e idios- analisa Hoffman, “um mundo de sensações, um mundo sem tempo” e
sincrático, reflete bem o que ele chama de “manifestações momentâneas sem mudanças.
de pessoas individuais”.
Ele não pode subtrair ou generalizar, não pode distinguir entre um tempo
O Som e a Fúria está, portanto, repleto de acontecimentos dos quais, e outro, pode simplesmente reagir a um certo número de condições sen-
inicialmente, não temos qualquer referência cronológica; não há uma soriais fixas que se repetem frequentemente. Aqui memória e senso são
linha temporal precisa que nos indique o momento daquilo que estamos inseparáveis: uma diferença de trinta anos no tempo não fazem diferença
alguma, todas as sensações que são realmente distanciadas por vinte ou
trinta anos não são diferenciadas.29
22 Sartre, “Sobre O Som e a Fúria: a temporalidade em Faulkner”. In: Situações, I. São Paulo:
CosacNaify, 2004, p. 93.
Como leitores, que tentam acompanhar e entender o que se passa,
23 Faulkner citado por Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva,
2005, p. 37. o que acontece ou aconteceu, vamos nos dando conta da limitação do
24 Entrevista concedida a Jean Stein Vanden Heuvel em 1956. In: Os Escritores. As históricas
entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 52. 27 William Faulkner. O som e a Fúria. São Paulo: CosacNaify, 2004.
25 Entrevista concedida a Jean Stein Vanden Heuvel em 1956. In: Os Escritores. As históricas 28 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:
entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 52. Também em Companhia das Letras, 1988, p. 44-5.
Frederic J. Hoffman. William Faulkner. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 20. 29 Frederic J. Hoffman. William Faulkner. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 46 (para as duas
26 Frederic J. Hoffman. William Faulkner. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 21 a 29. citações).

188 189
nosso narrador, mas vivenciamos com ele essa limitação. Somos então francês que disse: ‘Isso é terrível, mas podemos chorar e suportá-lo’; e o
lançados, continuamente, num ir e vir entre um dia no possível presente, mensageiro de batalhão inglês, que disse: ‘Isso é terrível, vou fazer algo a
respeito’.32
7 de abril de 1928 – dia do seu aniversário cuja significação não existe
para ele; um possível passado que nos é contado também no presente, O Som e a Fúria é o livro favorito de Faulkner, por isto ele o escre-
2 de junho de 1910, o dia do casamento da sua querida irmã Caddy; veu cinco vezes em épocas diferentes.33 Seu critério para esta escolha foi
intercalados com acontecimentos em outras datas sem demarcação decidir qual dos livros lhe causou mais dor e angústia. Ele diz:
específica através dos quais ficamos sabendo da morte da avó quando
Eu já tinha começado a contar a história [...]. Tentei contá-la de novo [...].
eram crianças, da castração do próprio Benjy aos 18 anos, do suicídio de
ainda não era o que eu queria. Contei-a pela terceira vez [...] [e] Ainda
seu irmão Quentin, da sua relação com o mundo através do olfato, daí não era o que eu queria. Tentei juntar as peças e preencher as lacunas
seu apego aos chinelos que Caddy havia jogado fora – embora não lem- [...]. Ainda assim não ficou completa, até quinze anos depois de o livro
brasse a quem pertencera –, da filha de Caddy que escapa da fúria do tio, ser publicado, quando escrevi, como apêndice a um outro livro, o último
Jason, o terceiro dos irmãos. Tudo culmina novamente em duas datas, esforço de contar a história e tirá-la da minha cabeça, para poder ter um
pouco de paz. É o livro pelo qual sinto mais carinho. Não pude aban-
6 e 8 de abril de 1928, narradas por Jason e por Dilsey, respectivamente. doná-lo, e nunca consegui contar a história direito, embora tentasse ao
Cada etapa que avançamos, vamos compreendendo este caleidoscópio30 máximo [...].34
de som e de fúria que liga as pessoas desta família do Sul dos Estados
Unidos em plena época de decadência das grandes fazendas e do crash Diz Carpeaux, que o que os críticos franceses mais admiravam nele
na bolsa. era a “abundância de ‘vida’, revelada através de uma arte complicada,
Há um misto de desconsolo e resistência nestes personagens, espe- de um estilo exuberante, quase ornamental; mas é maior, em Faulkner,
cialmente na velha empregada da casa, Dilsey, personagem que para o insight, aquela capacidade de revelar a essência escondida das almas
Faulkner é uma das favoritas, “porque é valente, corajosa, generosa, e coisas”.35 Poder mover seus personagens para frente e para trás, no
amável e honesta”.31 Isto aponta para aquilo que ele acredita ser uma tempo e no espaço, diz ele, indica sua “própria teoria de que o tempo é
ferramenta contínua na mão do escritor para seus personagens, um uma condição fluida”.36 Para Faulkner, neste livro, o presente e o passado
código de conduta íntima. Os escritores sempre se utilizaram, e sempre são o que demarca, de forma absoluta, a vida de Benjy. O passado é
se utilizarão, afirma ele, “[...] das alegorias da consciência moral” como, sólido, fixa-se, como bem analisa Sartre, e se constitui de “histórias”. O
por exemplo, Herman Melville utilizou em Moby Dick: três homens que acontecimento que demarca isto no livro é o gesto de Quentin, irmão
representam três modos de consciência moral. mais velho, ao quebrar seu relógio: “[...] os relógios matam o tempo.
Ele disse que o tempo morre sempre que é medido em estalidos por
[...] não saber nada, saber mas não se importar, saber e se importar.

Isto pode ser visto, afirma ainda ele, em três de seus personagens no 32 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:
seu livro Uma Fábula: Companhia das Letras, 1988, p. 46 as três citações anteriores.
33 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:
[...] pelo jovem piloto judeu que disse: ‘Isso é terrível. Recuso-me a acei- Companhia das Letras, 1988, p. 44.
tá-lo, mesmo que para isso tenha que recusar a vida’; o velho contramestre 34 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 44.
30 José Guilherme Mendes. “O Som e a Fúria, de William Faulkner”. In: Heloisa Seixas 35 Otto Maria Carpeaux, Leviatã e outros monstros, In: Ensaios Reunidos (1946-1971), v.2,
(org.), As obras-primas que poucos leram. Vol. 1. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 320. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p.382.
31 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: 36 Faulkner, Entrevista. In: Os Escritores. As históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 44. Companhia das Letras, 1988, p. 52.

190 191
pequenas engrenagens; é só quando o relógio para que o tempo vive”.37 E sons –Virgínia Woolf usa também esta demarcação em Mrs. Dalloway
o tempo sem relógio é o tempo de Benjy, que não sabe ver as horas, que – que ele tenta constantemente evitar. Os relógios marcam o tempo que
não entende nem o passado nem o presente, e futuro não existe, é nada. ele tenta, desesperadamente, provar que estão errados ou não merecem
Em seus comentários sobre o livro de Faulkner, Sartre faz questão confiança.41 Todo o capítulo é marcado pelo som do tempo, não importa
de evidenciar a diferença entre a visão que Faulkner fornece da tem- o lugar onde esteja, é preciso saber se a hora é chegada, mesmo que-
poralidade neste livro, e a sua, que está em plena formação, já que este rendo que ela não chegue nunca.
seu texto é de 1939, quatro anos antes da publicação de O Ser e o Nada,
Se eram mesmo os três quartos de hora, só dez minutos agora. [...] O
cujo capítulo 2 trata da temporalidade.38 Dispensável a sua discordância meio-dia a gente percebe. [...] O pai disse que o homem é o somatório de
desta noção de temporalidade centrada no presente, mas a evidencia suas desgraças. A gente fica achando que um dia as desgraças se cansam,
como um achado notável do autor. Entende que os acontecimentos que mas aí o tempo é que é a sua desgraça disse o pai.42
movem a narrativa não são, em absoluto, os cronológicos, mas sim os
afetivos: são “constelações afetivas”, diz Sartre.39 Daí, por exemplo, os mrs. dalloway: quando o tempo silencia as falas
fatos narrados serem contados não pela sua sucessão temporal, mas
sim pela sua importância afetiva, no que tiveram de mais relevante para Como segunda vida, temos Mrs. Dalloway,43 romance de Virgínia Woolf
o narrador em questão. Mesmo sendo narrado no presente, o que lhe publicado em 1925. Desde 1923, Virgínia Woolf vinha registrando no
dá vida é o passado, afirma ainda Sartre, pois a “ordem do passado é a seu Diário uma série de observações a respeito deste seu livro que, ini-
ordem do coração”. cialmente, foi intitulado As Horas. Ao iniciá-lo, sente-se relutante com
a ideia, pois acredita que se deve escrever da forma como Dostoievski
Não se deve crer [afirma Sartre] que o presente, quando passa, torna-se escrevia: “a partir de uma sentimento profundo”.44 Em seu romance
mais próximo de nossas lembranças. Sua metamorfose pode fazê-lo mer-
gulhar no fundo de nossa memória, como também deixá-lo na superfí-
anterior, O quarto de Jacob,45 de 1922, ela já havia testado uma maneira
cie; apenas sua densidade própria e a significação dramática de nossa vida nova de narrativa na qual o “fluxo de consciência” já estava esboçado.
decidem o seu nível.40 Mas é em Mrs. Dalloway que ela realmente encontra o equilíbrio desta
forma narrativa e é também considerado um de seus melhores livros.
Não é possível negar as afinidades, apesar da alardeada diferença
Particularmente, tenho preferência por Passeio ao Farol,46 publicado em
explicitada por Sartre, a respeito da temporalidade num e noutro, espe-
1927. Há neste livro, uma relação de brutalidade civilizada mascarada de
cialmente em se tratando de “fluxo”. O tempo presente acaba sendo,
delicadeza entre o Sr. e a Sra. Ramsay, um constante “silêncio de falas”
para ambos, a retenção de microvivências, protensão – prolongamento
entre os dois, que ainda obscurece muitas relações na nossa atualidade,
temporal. Isto pode ser visto no monólogo interior de Quentin que está
formada por acordos invisíveis e silenciosos. A distância entre os dois é
plenamente consciente do tempo. Neste capítulo, Faulkner acentua a
demarcação do tempo, pois Quentin quer literalmente pará-lo. Para isto,
Faulkner elabora uma contínua atenção de Quentin aos relógios e seus
41 Frederic J. Hoffman. William Faulkner. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 46 (para as duas
citações).
37 William Faulkner. O Som e a Fúria. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 82-83.
42 William Faulkner. O Som e a Fúria. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 100.
38 Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada. Petrópolis: Vozes, 2007 (15ª ed.).
43 Virginia Woolf. Mrs. Dollaway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
39 Jean-Paul Sartre, “Sobre O Som e a Fúria: a temporalidade em Faulkner”, In: Situações, I,
2004, p. 96. 44 Virginia Woolf. Diário. Vol. 1 (1915-1926). Lisboa: Bertrand, 1987, p. 316.
40 Jean-Paul Sartre, “Sobre O Som e a Fúria: a temporalidade em Faulkner”, In: Situações, I, 45 Virginia Woolf. O quarto de Jacob. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
2004, p. 96. 46 Virginia Woolf. Passeio ao Farol. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

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constituída por desconhecimento de mundos que são paradoxalmente [...] se o escritor for um homem livre e não um escravo [diz ela], se puder
próximos. Enfim, é outro belíssimo trabalho de Virginia Woolf. escrever o que escolheu, não o que deve, se puder basear sua obra em sua
própria intuição e não sobre a convenção, não haverá trama, nem comé-
Os autores do início do século XX, aqueles que unificamos sob o
dia, nem tragédia, nem interesse amoroso ou catástrofe no estilo aceito,
termo moderno, buscam uma nova forma de expressar, nas páginas de nem, talvez, sequer um único botão costurado como são os ternos de
seus livros, a vivência de cada um, a vida. O que é vida? “A vida é assim?”, Bond Street. A vida não é uma sucessão de lanternas de carruagens dis-
pergunta Virginia Woolf numa de suas belas conferências,47 esta especi- postas em simetria; a vida é um halo luminoso, um invólucro semitrans-
ficamente sobre o romance moderno. “Os romances devem ser assim?”, parente nos envolvendo dos primórdios da consciência até o fim. Não é
tarefa do romancista comunicar esta variedade [...] com tão pequena mis-
continua ela ao fazer um esboço da forma de escrita e lidar com as crí- tura de estranheza e formalidade quanto possível?51
ticas feitas pelos naturalistas aos novos romancistas. “Olhe por perto e a
vida, parece, está muito longe de ser ‘assim’.” (p. 75) Mrs. Dalloway é a concretização desta forma de pensar, é a inclu-
Como narrar a vida? Como realizar esta façanha de maneira bela e são da ficção dentro do fluxo da consciência humana, pois esta é, em
sem ficar prisioneiro da contínua comparação com a “realidade”? Para si mesma, estética.52 Esta defesa estética tem uma ligação com todo o
Frederick Karl, narrativa movimento modernista do início do século XX, como indica Frederick
Karl e está relacionada a vários “manifestos” feitos por artistas durante
[...] é aquilo com que partimos, um componente X, um processo ou movi-
mento para frente ou para trás, para o futuro ou para o passado, ou a virada do século XIX para o XX. Entre os indicados por Fréderick Karl
congelado no presente. A partir daí, podemos localizar pontos de vista, estão o prefácio que Joseph Conrad escreveu ao seu livro The Nigger of
sequências de enredo, meios de desenvolvimento de personagens (os que the ‘Narcissus’ (1897) e o ensaio A arte da ficção de Henry James (1884).
existem), dimensionalidade temporal e espacial, colocação de elementos, O que liga este dois textos, separados por pouco mais de uma década de
tipos e adaptabilidade de linguagem.48
publicação, afirma Karl, é o fato de coincidirem em diversos pontos dos
O que se vê entrar no cenário da literatura é o que John Fletcher e quais destaco a valorização da estética do “fazer ver” e a necessidade de
Malcolm Bradbury chamam de “romance de introversão”,49 que mudará consciência artística, “[...] observando que demonstrar inteligência em
por completo a forma de narrar nos romances. Uma das questões prin- cada momento e buscar o fundamental, o essencial e aquilo que per-
cipais destes novos autores é exatamente a de se libertar das limitações manece constitui o trabalho do artista.” “É que a luz da sugestividade
das formas narrativas usadas até então. O que eles querem, asseveram mágica”, afirma Joseph Conrad, pode iluminar um instante evanescente
estes dois autores, é explorar “com maior liberdade e intensidade o fato na superfície banal das palavras”.53 O “fazer ver”, de Conrad, é formulado
da vida e das ordens da consciência moderna”.50 Pois é exatamente isto na sua famosa declaração, que se tornou um manifesto do que é novo
que Virginia Woolf defende nesta sua conferência. e anuncia os esforços de Virginia Woolf nesta direção, de acordo com
F. Karl. “[...] Minha tarefa que estou tentando cumprir é, pelo poder da

47 Virginia Woolf. Ficção Moderna. In: O Leitor Comum. Rio de Janeiro: Graphia, 2007, p. 75.
48 Frederick R. Karl. O moderno e o modernismo. A soberania do artista 1885-1925. Rio de
Janeiro: Imago, 1988, p. 431-2. 51 Virginia Woolf. Ficção Moderna. In: O Leitor Comum. Rio de Janeiro: Graphia, 2007,
49 John Fletcher e Malcolm Bradbury. O romance de Introversão. In: Malcolm Bradbury p. 75.
e James McFarlane. Modernismo. Guia Geral (1890-1930). São Paulo: Companhia das 52 John Fletcher e Malcolm Bradbury. O romance de Introversão. In: Malcolm Bradbury
Letras, 1989, p. 322-339. e James McFarlane. Modernismo. Guia Geral (1890-1930). São Paulo: Companhia das
50 John Fletcher e Malcolm Bradbury. O romance de Introversão. In: Malcolm Bradbury Letras, 1989, p. 334.
e James McFarlane. Modernismo. Guia Geral (1890-1930). São Paulo: Companhia das 53 Frederick R. Karl. O moderno e o modernismo. A soberania do artista 1885-1925. Rio de
Letras, 1989, p. 333. Janeiro: Imago, 1988, p. 183 para as duas citações.

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palavra escrita, fazê-los ouvir e também sentir – consiste, antes de mais bastante diferentes de sentir as horas passarem. Sua própria vida, emo-
nada, em fazê-los ver”.54 ções, dúvidas, ironia fina, são argamassa para a construção dessas duas
Esta nova configuração remodela a forma como o autor se relacio- concepções que, como ela mesma diz no seu Diário (p. 293), “[...] prefi-
nará com seus personagens: mergulha dentro deles, caminha com o seu guro aqui um estudo sobre a demência e o suicídio”.
pensar, flui continuamente, permite saltar entre as consciências de seus É impossível não correlacionar, neste momento, esta “fala” de Vir-
personagens, transforma a “passagem” de um cenário a outro, de um ginia Woolf sobre seu romance com o segundo capítulo de O Som e a
personagem a outro. Não há necessidade de linearidade no tempo; pas- Fúria de Faulkner, o capítulo de Quentin. Atormentado pelo tempo que
sado, presente e futuro estarão disponíveis ao autor, como já vimos em escorre sem controle e que é constantemente demarcado pela presença
Faulkner, que investe na relação entre o presente e o passado. Em Mrs. de sons, tique-taques de relógios, sinos, o constante ressoar das horas
Dalloway, Virginia Woolf faz pequenas demarcações temporais ao longo nas suas várias formas, Quentin quer parar o tempo, quer desligar-se
daquele único dia na vida de Clarissa Dalloway e de Septimus. Sabemos, dele, tenta escapar dele caminhando a esmo para qualquer lugar. Ao lei-
através dela mesma, que haverá uma festa na sua casa, mas não sabemos tor, mantêm-se viva e constante a sensação de angústia que ele vive e sua
como este dia espreitará sua vida, um dia marcado por diversos tipos de tentativa frustrada de controle das horas. Infelizmente, esta também é
horas. A marcação do tempo cronológico nos é fornecida pelo soar de uma história de “demência” e suicídio cheia de som e de fúria.
sinos na cidade, que muitas vezes se centraliza no Big Ben. A este tempo O contraponto entre Clarissa Dalloway e Septimus é bastante claro
cronológico, Paul Ricoeur também o chama de “tempo monumental”55 e propositalmente foi, para mim, a passagem mais marcante do livro. A
e afirma que é na forma como os personagens lidam com este tempo “loucura” de Septimus confrontada com o monólogo interior vazio de
que nós devemos nos deter. Mas cada personagem vive e experiencia Clarissa, de um dar-se conta de que é ‘ninguém’.
as horas de uma maneira diferente e é inevitável a comparação entre o
O que Virginia Woolf conseguiu foi criar uma voz interior para comuni-
fluxo de temporalidade de Clarissa – efêmero, volátil, coquete – e o de car a narrativa e, ainda assim, fazer com que essa voz emanasse de uma
Septimus –, angustiado, perturbado, cheio de barulhos que tornam as criatura que foi ela própria vagarosamente excluída da narrativa. Captu-
horas mais difíceis de avançar. Em seu Diário, em 30 de agosto de 1923, rando-a no interior de uma sequência temporal diferente do relógio e do
Virginia Woolf registra sua descoberta: calendário (como no Big Ben), Virginia Woolf criou uma narrativa um
pouco exterior aos limites da consciência.56
Não tenho tempo para descrever meus planos. Eu deveria falar muito
sobre As Horas e o que descobri; como escavo lindas cavernas por trás das Assim, Clarissa, ao perceber-se vazia, intensifica-se no seu fazer
personagens; acho que isso meda exatamente o que quero; humanidade, de mulher, nos seus deveres a cumprir, na sua coqueterie obrigatória. Já
humor, profundidade. A ideia é que as cavernas se comuniquem e venham Septimus não consegue se “localizar”, parece não estar em lugar algum,
à tona. (p. 326)
não consegue deixar de se fixar na sua própria mente. E aqui Virginia
É disto que trata realmente, para mim, o romance, de como cada Woolf coloca em cena uma questão da época: as consequências psíqui-
um de nós faz avançar as horas. Por isto, possivelmente, Virginia Woolf cas da guerra e a forma como os médicos lidavam com isto: exatamente
se pergunta se, para este livro, ela realmente está partindo de uma “emo- com o mesmo distanciamento de Clarissa em relação a si própria e ao
ção profunda”, pois ela falará de duas temporalidades, de duas formas seu mundo. É antológica a cena em que Septimus é levado ao médico
por sua mulher, Rezia, que muito constrangida tenta entender o que o
54 Joseph Conrad apud Frederick R. Karl. O moderno e o modernismo. A soberania do artista
1885-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p. 183 para as duas citações. 56 Frederick R. Karl. O moderno e o modernismo. A soberania do artista 1885-1925. Rio de
55 Paul Ricoeur. Tempo e Narrativa. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 186. Janeiro: Imago, 1988, p. 450.

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médico lhe diz a respeito do isolamento do “doente” de seus familiares samente paciente comigo e tremendamente bom. Eu quero dizer isto – e
bem como as indicações para Septimus de como deve pensar e agir para todo mundo sabe. Se alguém pudesse ter me salvado, esse alguém teria
sido você. Tudo o que eu tinha se foi, exceto a certeza de sua bondade. Eu
sair daquela situação. Estas eram falas com as quais Virginia tinha expe-
não posso continuar estragando a sua vida. Não creio que duas pessoas
riência. poderiam ter sido mais felizes do que nós fomos.
– Tente pensar o menos possível em si mesmo – disse Sir William bondo- V. 58
samente. Com efeito, nada se podia tirar dali.
O mistério da vida não reside nas coisas extraordinárias, indi-
Havia mais alguma coisa que desejassem perguntar-lhe? Ele, Sir William,
ia tomar as providências [...] cam estes novos romancistas, segundo Otto Maria Carpeaux num de
Sir William concedia três quartos de hora a cada um dos seus pacientes; e seus ensaios, mas sim nas coisas mais comuns, nas mais cotidianas.
nesta ciência exigente que lida com aquilo de que nada se sabe, em suma Entre estas coisas comuns estão duas que são consideradas pelo escri-
– o sistema nervoso, o cérebro humano –, se um médico perde o senso da tor Edward M. Foster como as datas principais de toda história de um
medida, então está fracassado como médico. Saúde é o que se deve ter; e
romance e cuja analogia está muito clara em relação à vida:
saúde é medida; de modo que, quando um homem nos entra no consul-
tório e diz que é Cristo (uma ilusão comum) e que tem uma mensagem, Estas duas são as mais estranhas porque são experiências e não são expe-
como a maioria deles, e ameaça como geralmente fazem, com o suicídio, riências, ao mesmo tempo. Conhecemo-las apenas de segunda mão. Nas-
tem-se de invocar a medida; prescrever repouso na cama; repouso na soli- cemos todos, mas não nos lembramos como foi. E a morte virá, como
dão; silêncio e repouso; repouso sem amigos. Sem livros, sem mensagens; veio o nascimento, e também nunca saberemos como será. Experimenta-
seis meses de repouso; até que um homem que nos chega com cinquenta mos nascimento e morte, sem meios adequados de comunicá-los. A nossa
quilos saia pesando oitenta. [...] última experiência, como a primeira, é conjetural. Estamos viajando entre
[...] Com a sua adoração pela medida, Sir William não só prosperava duas escuridões.
pessoalmente como fazia prosperar a Inglaterra, isolando-lhe os lunáti-
cos, proibindo-lhes procriarem, incriminando o desespero, impedindo os Pois “não conhecemos com certeza as coisas mais importantes, e
incapazes de propagarem as sua ideias até que estes compartilhassem do muito pouco pode ser claramente comunicado”.59 Aqui reside a proeza
seu senso da medida [...] Sir William, com os seus trinta anos de experiên-
do escritor, narrar a vida com o máximo de possibilidades, pois é da
cia desses casos, o seu infalível instinto: isto é loucura, isto é senso; o seu
senso de medida.57 humanidade que tratamos.

Em 1941, não sabendo mais como suportar as horas, Virginia Woolf a queda: quando o tempo não perdoa os penitentes
se suicidou, enchendo os bolsos do seu casaco de pedras e mergulhando
no rio. Deixou, para seu marido Leonard, um bilhete: Por fim, A queda,60 de Albert Camus (1913-1960), publicado em 1956, que
é um de seus livros menos comentados, infelizmente. A queda é o relato
Querido
Tenho certeza de que estou ficando louca outra vez: sinto que não pode-
de um trabalho de Sísifo, feito através da confissão contínua e lamu-
mos passar por mais uma dessas temporadas terríveis. E desta vez eu não riosa de um homem que se julgava uma alma generosa. Se autoenun-
vou me recuperar. Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. cia “juiz-penitente” e, em exílio voluntário, passa seus dias procurando
Por isso estou fazendo o que parece ser o melhor a fazer. Você me deu alguém que lhe ouça a confissão. Penitencia-se todos os dias, continua-
toda a felicidade que eu poderia ter. Você tem sido, sob todos os aspectos,
tudo o que alguém podia ser. Não creio que pudesse haver no mundo duas
pessoas mais felizes, até que veio esta doença terrível. [...] O que eu quero 58 Michael Cunningham. As horas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 11-12.
dizer é que devo toda a felicidade que tive na vida a você. Você foi imen- 59 Otto Maria Carpeaux, O velho Forster. In: Ensaios Reunidos (1942-1978), v. 1. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999, p. 570.
57 Virginia Woolf. Mrs. Dollaway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 96-97. 60 Albert Camus. A queda. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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mente e cotidianamente mas, apesar de todas as confissões já feitas até cussão sobre esta resenha de Jeanson e da polêmica gerada, Sartre reco-
então, não consegue (ou não quer) compreender a razão da sua penitên- nhecia o valor da sua escritura e desta amizade rompida. Em sua longa
cia. Sente que errou, mas não sabe exatamente em quê; sabe que tem que entrevista de 1975, Autoportrait a soixante-diz ans, Sartre diz de Camus:
expiar este seu erro, mas a cada nova tentativa de contrição, ele retorna “[...] provavelmente ele foi meu último bom amigo”.64 Anteriormente,
ao ponto de partida e tudo novamente recomeça. em 1960, quando do trágico acidente que matou Camus, ele já havia dito
Neste livro, o tempo é demarcado pela contínua retomada do pas- que mesmo sem se reencontrarem, ele nunca deixou de pensar nele, pois
sado: todos os dias ele sente que deve contar a sua história, por que sempre ficava curioso a respeito dos novos livros que Camus publicaria.
se “exilou”, por que está naquela situação. É um autoflagelamento, diz Neste pequeno texto,65 ele também diz que A queda talvez tenha sido o
Horácio González, uma “drástica e comovente meditação sobre o julga- mais belo e o menos compreendido dos seus livros.66 Para Olivier Todd,
mento, o castigo, a liberdade, a inocência, a salvação...”.61 Este juiz-peni- “A queda parece um diamante negro, com facetas visíveis, muitas vezes
tente, Jean-Baptiste Clamence, que outrora fora um típico altruísta na límpidas quanto à sua vida, porém com o coração inacessível”.67
sua profissão de advogado, especializara-se em causas nobres, como ele Apesar de toda relação feita sobre o livro com a própria biografia de
mesmo conta, e vagueia pelas mesas de um bar a procura de “ouvidos” Camus, como relata Olivier Todd, o homem conta sua história e parece
para sua confissão. calcular suas frases; é, portanto, plenamente autoconsciente do que faz,
mas ao mesmo tempo, aparece movido por uma má-fé no sentido sar-
Bastava-me [...] farejar num réu o mais leve cheiro de vítima para que
minhas mangas entrassem em ação. [...] Eu tinha o coração nas mangas. triano. Ele sentia que tinha uma vida bem-sucedida até que numa noite,
Podia-se pensar que a justiça dormia comigo todas as noites. Tenho cer- ao retornar para casa depois de mais um dia de altruísmos, ele é sur-
teza de que o senhor admiraria a exatidão do meu tom, a justeza da minha preendido, em plena rua, por uma gargalhada atrás de si. Completa-
emoção, a persuasão e o calor, a indignação controlada das minhas defesas. mente desconcertado, ele percebe que não há ninguém. Aquele lugar
[...] Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha bene-
volência e minha serenidade... quando me ocupava dos outros, era por torna-se, para ele, uma certa provação e, ao mesmo tempo, ele enuncia
pura condescendência, em plena liberdade, e todo mérito revertia em meu um “estranhamento emocional”68 ao passar por ali.
favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo.62

A narrativa é construída em tom exclusivamente pessoal e con-


64 Jean-Paul Sartre. Autoportrait a soixante-diz ans. In: Situtations, X. Paris: Gallimard,
fessional. A sua confissão é o tempo no presente que o obriga a retor- 1976, p. 133-226. A citação é da página 196.
nar, através da confissão das suas ações, ao passado, que o atormenta 65 Jean-Paul Sartre. Albert Camus. In: Situation, IV. Paris: Gallimard, 1964, p. 126-129. O
e angustia. Vamos lentamente conhecendo este altruísta que, ironica- biógrafo de Camus, Olivier Todd, caracteriza este seu texto como uma “perversidade
dialética”. Olivier Todd. Camus, uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 769.
mente, Camus colocou nesta figura de um advogado/juiz, especialmente
66 Em 1957, em entrevista realizada por Dominique Aury e publicada no New York Times
num momento político na França bastante delicado. Ele próprio havia Book, Camus explica o livro: “[...] meu personagem é uma mescla. Há traços de diferen-
sido julgado – o rompimento com Sartre a partir da resenha crítica feita tes fontes. Dos existencialistas veio a mania da autoacusação que lhes permite acusar os
outros mais facilmente. Isso sempre me pareceu de uma certa desonestidade; é o que
por Francis Jeanson de O Homem Revoltado, publicada em Les Temps mais me choca nas ações destes senhores. Esta paixão pela acusação sempre acaba numa
Modernes, acabou com uma amizade de muitos anos.63 À parte da dis- defesa da servidão, que é a questão central do existencialismo.” Citado por Ronald Aron-
son. Camus e Sartre. O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Rio de Janeiro: Nova
61 Horacio González. Albert Camus. A libertinagem do sol. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 93. Fronteira, 2007, p. 325.
62 Albert Camus. A queda. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 15-6 e 38, respectivamente. 67 Olivier Todd. Camus, uma vida. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 651.
63 Ver Ronald Aronson. Camus e Sartre. O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Rio 68 Ver Ariane Ewald. “Estranhamentos emocionais”, Modernidade e Literatura: “campo de
de Janeiro: Nova Fronteira, 2007; e Jean-Paul Sartre. Autoportrait a soixante-diz ans. In: Agramante”. In: Ariane Ewald (org.). Subjetividade e literatura: harmonias e contrastes na
Situtations, X. Paris: Gallimard, 1976. interpretação da vida. Rio de Janeiro: Nau, 2011.

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[...] O dia fora bom: um cego, a redução de pena que eu esperava, o calo- do gênero. Escutava ainda imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pres-
roso aperto de mão do meu cliente, algumas generosidades e, à tarde, um sas. Não avisei ninguém.70
brilhante improviso, diante de alguns amigos, sobre a dureza de coração
da nossa classe dirigente e a hipocrisia das nossas elites. A cada novo encontro, Clamance procura convencer seu interlocu-
Subira na Pont des Arts, àquela hora deserta, para olhar o rio que mal tor, e a si mesmo, do seu “bom” caráter, das suas boas intenções no seu
se adivinhava na noite que agora chegara. Em frente ao Vert-Galant, eu passado. O que o atrapalhou, realmente, foi aquela “noite em questão”.
dominava a ilha. Sentia crescer em mim um vasto sentimento de força e
O texto prossegue sempre em tom confessional, em cínico desespero e
de realização, que me dilatava o coração. Eu me endireitei e ia acender um
cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, explodiu sarcasmo, pois ele nos diz o quanto o ato de amor é uma confissão. E
uma gargalhada atrás de mim. Surpreendido, fiz uma brusca meia-volta: mesmo se penitenciando, o que ele continua fazendo é, na realidade, um
não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma barcaça, nenhum barco. ato de amor por si mesmo. Suas ações remetem novamente a um dos
Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas costas, um pouco três modos de consciência moral indicados por Herman Melville, que
mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava, imóvel. O riso
citei anteriormente: não saber nada; saber mas não se importar; saber e
diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo de
lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimen- se importar.
tos precipitados do meu coração. [...] comprei cigarros, sem necessidade Clamance é também um protagonista do que chamei de “palimp-
alguma. Estava atordoado, respirava com dificuldade. Nessa noite, telefo- sesto temporal”; seu viver é um contínuo contar e recontar este cenário
nei para um amigo, que não estava em casa. Hesitava em sair [...] Dirigi- no qual ele se considera, surpreendentemente, um certo tipo de espec-
me ao banheiro para beber um copo de água. A minha imagem sorria no
tador, acreditando que nesta falação ele se penitencia. Tenta, com cada
espelho, mas pareceu-me que me via como um duplo sorriso.69
novo interlocutor, reescrever “a noite em questão”, recontando-a, milha-
Aquele local torna-se um “espectro” para Clamance, e a cada vez res de vezes, mas a gargalhada ainda se encontra lá e aqui e ele ainda
que passava por ali, uma espécie de silêncio se apossava dele. É neste continua não se importando com os gritos daquela mulher naquela
cenário, que o protagonista chama de “a noite em questão”, que a história noite gelada e que se extinguiu bruscamente. Naquela noite, em que não
irá se desenrolar. Seu tempo é demarcado por esta noite – pela garga- havia testemunhas para uma ação altruísta, ele se desinteressou mesmo
lhada que o absorve, que toma sua vida, que o inquieta –, e pela outra de gritar para salvar uma vida.
noite, aquela muito fria, à qual ele se refere de uma maneira mais velada Para encerrar, gostaria de, provisoriamente, fechar estas minhas
– a noite em que ele viu uma mulher se jogar da ponte e ele ouviu seus reflexões lembrando que O Som e a Fúria apresenta uma narrativa de
gritos de socorro repetidas vezes – na água gelada e no silêncio – até que acontecimentos demarcados ao longo de quatro dias; Mrs. Dalloway,
se extinguissem; não fez nada. Tudo então se modifica e as coisas pas- um dia; e A queda, todos os dias num presente que arrasta o passado
sam a resvalar por ele, nada mais é fixo; ele só tinha, verdadeiramente, como chumbo preso nas pernas. Em todos estes livros, a noção de
amor por si mesmo. “palimpsesto temporal” está presente e demarca a temporalidade de
cada narrativa.
Quase imediatamente, ouvi um grito várias vezes repetido, que descia
também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu Fecho com um trecho do documentário premiado de Marcelo
na noite paralisada pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Masagão, Nós que aqui estamos por vós esperamos,71 um belíssimo retrato
Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso do que o ser humano construiu e destruiu no século XX. É o trecho de
agir rapidamente e sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo.
Esqueci-me do que pensei então: “Tarde demais, longe demais...” ou algo
70 Albert Camus. A queda. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 53.
69 Albert Camus. A queda. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 30-31. 71 Marcelo Masagão, documentário, Brasil, PB e cor, NTSC, aprox. 72 min., 1999.

202 203
uma carta de um piloto japonês para seus pais, escrita antes de ir para Tempo, biografia e incerteza:
uma missão como piloto camicaze.
projetos de vida em narrativas de jovens
...me desculpem por ser um filho ingrato. Não há pior desgraça que um
filho morrer antes dos pais, isso foge a ordem natural das coisas. No meu
Idilva Germano
silêncio já refleti muito sobre o sentido e a finalidade desta guerra. Mas
estar junto a vocês seria uma grande humilhação... Conforta-me aquele
velho ditado japonês: “A morte é mais leve do que uma pluma. A respon-
sabilidade de viver é tão pesada quanto uma montanha”. Kato Matsuda
(1927-1945).

O hoje não é o futuro do mundo? O futuro do Brasil e do mundo?


Então vamos ver se a galera de hoje vai modificar o futuro de ama-
nhã, vai modificar o amanhã, pra melhor né claro, não pra pior.
clara, 16 anos

i) trabalho biográfico em tempos de risco e incerteza:


pistas e questões
Principalmente a partir da década de 1970, as sociedades ocidentais vêm
experimentando profundas transformações em suas estruturas cujos
efeitos se revelam no campo da experiência do tempo e do trabalho bio-
gráfico. O modo de dar coerência e sentido ao curso de uma vida, de
articular o vivido ao que se vive e ao porvir, tem mudado significativa-
mente, acompanhando a crescente complexificação das formas de socia-
bilidade promovidas pelas tecnologias da informação e da comunicação,
o declínio do modelo temporal do trabalho industrial e das balizas pro-
fissionais rígidas que marcaram a vida laboral em estádios anteriores
do capitalismo. Observa-se que a experiência temporal contemporâ-
nea é marcada por atributos que, se não inteiramente desconhecidos à
vida moderna, parecem radicalizar-se: a aceleração do ritmo da vida,

204 205
o enfraquecimento da experiência de causalidade linear e sequencial tação da biografia contemporaneamente. Há indícios de que as histórias
(simultaneidade) e a valorização do presente associada à fragilização da autobiográficas hoje tendem a perder a qualidade de narrativa unificada,
memória histórica. linear e orientada que tinham no passado.
A reflexão sobre o curso da vida, o modelo de narração autobiográ- Com efeito, estudos atuais têm acentuado as diferenças existentes
fica e o planejamento do futuro, antes dessas transformações radicais, entre, por um lado, os modos propriamente modernos e, por outro, os
estavam associados à “habilidade do trabalho em coordenar os ritmos “pós” ou “hiper” modernos de sentir e lidar com o tempo. Seria carac-
sociais e de impor a ideia de um tempo abstrato controlado por dis- terística da sociedade moderna a orientação para o futuro, este pensado
ciplina internalizada” (LECCARDI, 2005a, p. 124). A biografia “normal” e planejado racionalmente, no presente, sobre as bases da experiência
se construía em torno do tempo industrial: juventude como tempo de passada. Aqui, o futuro figura-se na articulação do tempo tridimensio-
preparação para o trabalho, vida adulta como tempo de atividade útil e nal e como um projeto individual ou coletivo vislumbrado e construído
velhice como tempo de aposentadoria. a partir do presente, pela ação e transformação do homem:
O próprio modelo narrativo dominante na modernidade a partir
Na emergência da modernidade, a habilidade em utilizar a experiência do
do século XVIII, suporte da biografia normal, é oriundo de uma forma passado para conhecer o presente e, dessa forma, poder antecipar racio-
de representação da vida humana – a narrativa ou romance de formação nalmente uma sociedade alternativa futura, pela mediação de um pro-
(Bildungsroman) – cuja herança iluminista focaliza a ideia da formação jeto transformador, distinguia o indivíduo, era o cerne da manifestação
progressiva do ser em direção à realização de suas disposições singula- da individualidade. Esta se caracterizava pela capacidade de pensar e de
agir autonomamente, de dar início ao novo, pela capacidade de previsão e
res. Esse modelo sublinha a imagem da vida como devir, uma travessia provisão do próprio futuro e daqueles que eram próximos, tendo um hori-
em que o protagonista continuamente aprende com suas experiências, zonte que ultrapassava, de longe, a expectativa de vida de alguém, tomado
tira lições dos seus fracassos e acertos e evolui de um estado de inexpe- isoladamente. (OLIVA-AUGUSTO, 2002, p. 32)
riência até culminar num estado de maturidade. Como lembra Delory-
Em contraste, a sociedade atual parece sinalizar a dominância de
Momberger (2009):
outro tempo social, centrado no presente, um presente concebido como
O Bildungsroman caracteriza-se por uma estrutura que se adapta às eta- “estendido” ou “prolongado”. O tempo estendido decorre, em parte, da
pas do desenvolvimento do herói, de sua juventude até a maturidade: ele aceleração do tempo possibilitada pelo avanço tecnológico, que leva à
se abre com a entrada do personagem no mundo, depois segue as etapas
marcantes de sua aprendizagem na vida – os erros, as desilusões, as reve- execução de mais atividades (trabalho, consumo, lazer) em menores
lações com as quais são pontuadas – e se encerra no momento em que ele intervalos de tempo. Recorrendo a Harvey (1989), ocorre na esteira da
atinge um conhecimento suficiente de si próprio e de seu lugar no mundo, “compressão do tempo-espaço” e da disseminação generalizada dos
para viver em harmonia consigo mesmo e com a sociedade, que é a sua. valores de efemeridade, volatilidade, instantaneidade e descartabilidade
(p. 101)
vigentes no nível da produção, circulação e consumo de mercadorias.
Subjacente à representação que o romance de formação inaugura Embora a impressão seja de que o tempo hoje se torna cada vez mais
está uma concepção particular do indivíduo e de suas relações com a escasso, Nowotny argumenta que o problema repousa mais no excesso
sociedade burguesa que se estabelecia: um “ser responsável e autônomo, de expectativas, isto é, na “abundância do que permanece a ser feito e (n)
que se faz por si mesmo; que tem que fazer seu caminho na vida e que as possibilidades que não podem ser realizadas” que excedem significa-
deve encontrar seu lugar na sociedade” (DELORY-MOMBERGER, 2009, tivamente o que pode ser efetivamente encaixado no tempo disponível,
p. 102-103). Tendo se tornado representação biográfica dominante, o mesmo quando este é bem organizado (apud BRANNEN; NILSEN, 2002, p.
modelo da formação apresenta alguns desafios como modo de represen- 517). Ou, nas palavras mais contundentes de Melucci (1997): “um tempo

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de possibilidades excessivas torna-se possibilidade sem tempo, isto é, dessas virtualidades ameaçadoras. Em contraste, a leitura de Richard
simplesmente um mero fantasma da duração, uma chance fantasma. Sennet sobre o risco leva a pensar na perda do controle ocasionada pelo
O tempo pode se tornar um invólucro vazio, uma espera sem fim por enfraquecimento da experiência do passado; essa é vista como não mais
Godot” (p. 10). capaz de “guiar o presente” (apud BRANNEN et al., p. 518).
O presente estendido e sua multiplicação de “possibilidades sem Na discussão sobre o controle do futuro, destaca-se a relação entre
tempo” têm importantes consequências sobre o planejamento do futuro. juventude e tempo, especialmente em função de sua representação usual
Quando as mudanças acontecem muito rapidamente, a noção de pro- como época de transição e preparação para o futuro. De fato, os seg-
gressão linear é rompida; o futuro é trazido para o aqui e agora, mes- mentos mais jovens são considerados hoje particularmente sujeitos à
clando-se ao presente e tornando-se indistinto. Na prática, questões e fascinação pelo eterno presente, às exigências do prazer imediato, às
experiências que antes eram postergadas por muitos anos ou décadas, demandas do lazer, da aventura e da experimentação do “novo” impos-
agora se impõem como inadiáveis, exigindo consecução imediata ou tas pela modernidade tardia. Um futuro indeterminado e um presente
breve (OLIVA-AUGUSTO, 2002, p. 31). O imediatismo dessa nova con- sem compromissos complementam esse cenário onde se veem enfra-
figuração tenderia a impedir ou dificultar os planos de longo prazo, quecidos os mecanismos sociais que antes funcionavam para articular
ao manter as pessoas circunscritas ao momento em curso. O presente as experiências das gerações anteriores às novas gerações, orientando
estendido, portanto, tem o efeito de obscurecer o futuro como pano- visões de mundo e condutas. Na relação intergeracional, o quadro res-
rama de projeção de indivíduos e coletividades. Trata-se, em síntese, de salta a desvalorização da tradição e da experiência dos mais velhos pelos
um declínio da noção de futuro no sentido “moderno”, isto é, o futuro jovens. O tempo dos pais e avós, incluindo o daqueles que já se foram,
como um tempo em que se projetam crenças e esperanças e que orienta não parece mais balizar a formação pessoal, nem orientar o jovem deci-
os planos de hoje necessários para o amanhã. Essa falência da perspec- sivamente para que “encontre o seu lugar no mundo”.
tiva moderna do futuro, ao destituir as pessoas das raízes do passado e Essa descontinuidade temporal quanto à partilha de um destino
negar-lhes o pano de fundo da posteridade, ameaça de forma especial os comum é importante fonte de incerteza. Com efeito, a noção socio-
projetos biográficos. lógica de incerteza biográfica é identificada como o enfraquecimento
Tais transformações temporais envolvem a questão de como se da vinculação entre experiência (tempo passado), expectativa (tempo
administram, no curso da vida, a incerteza e o risco na sociedade con- futuro) e projeção biográfica (tempo presente) (REITER, 2010). A erosão
temporânea. A conceituação de risco social, na tradição de Ulrich Beck, de certezas intersubjetivamente partilhadas é especialmente proble-
leva a focalizar o modo como os múltiplos e variados tipos de incerteza mática em certas situações sociais ou momentos críticos vividos pelos
desenvolvidos pelas sociedades da segunda modernidade são tornados jovens, quando decisões importantes devem ser tomadas em relação
objetos de cálculo e controle. A teorização nessa linha de pensamento, a que fazer e quem ser no futuro. O manejo da incerteza poderá ser
desenvolvida também por Anthony Giddens, Scott Lash e outros, pro- mais ou menos bem-sucedido segundo as possibilidades de o jovem
põe que a modernização reflexiva antecipa o futuro, trazendo-o para ser produzir e manter a perspectiva temporal triádica. Como mostra Reiter
manipulado no presente. Se, na configuração da primeira modernidade, (2010) em estudo qualitativo com jovens em sociedade pós-comunista,
o passado determinava o presente, na “sociedade de risco”, o futuro é que a articulação da própria história à tradição familiar e às experiências
impele os indivíduos a agirem no presente, de modo a se prevenirem intergeracionais pode ter o efeito de reduzir níveis de incerteza, forne-
contra os perigos e ameaças. O presente ainda é o tempo social forte, cendo suporte biográfico.
sendo preenchido quase completamente por uma infinidade de organi- Mais ainda, como assinala Leccardi (2005b), perde espaço a traje-
zações, rotinas, práticas e saberes destinados à precaução e antecipação tória biográfica marcada por fases bem definidas, capazes de dirigir a

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“transição” para a vida adulta. Na sociedade do risco e da incerteza, o geral ligadas à conclusão positiva de atividades já iniciadas – capazes de
que se vê é a desinstitucionalização do curso da vida, o embaralhar das responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em
um ambiente veloz e incerto como à pressão social por resultados a curto
etapas que costumavam normalizar a passagem do jovem para a adul-
prazo (p. 52).
tez autônoma e independente. A noção de juventude como “travessia
guiada por passagens de status” torna-se imprecisa no atual quadro de De fato as novas configurações do tempo social trazem questões
inversões, supressões e alterações na ordem das etapas. Se a transição importantes sobre o modo como os jovens hoje vivem, usam e planejam
envolvia uma ordem linear entre conclusão dos estudos, entrada no o tempo que lhes cabe na sua existência. Diante da fragmentação do
mundo do trabalho, abandono da família de origem, casamento e filhos, tempo e da “crise” do futuro, a questão central na discussão da sociedade
tal percurso se mostra hoje alterado e reversível. Essas sequências de de risco é a falência do planejamento de vida, especialmente significa-
transição “normal” perdem seu valor simbólico de representar a juven- tiva entre os segmentos juvenis. As narrativas de adolescentes e jovens
tude como fase provisória até que o equilíbrio entre autonomia pessoal de fato exibem as dificuldades atuais de enfrentamento da incerteza e a
e independência social seja alcançado: adoção de variadas estratégias para contornar a perda das balizas que
costumavam fornecer maior estabilidade e previsibilidade ao curso da
A juventude concebida como fase de transição, em uma palavra, permitia
pensar a relação entre identidade individual e identidade social como uma vida no passado (VORNANEN; TÖRRÖNEN; NIEMELÄ, 2009; GUERREIRO;
relação entre duas dimensões não apenas complementares, mas superpos- ABRANTES, 2005; BRANNEN; NILSEN, 2002; THOMSON et al, 2002; DU
tas de modo praticamente perfeito. A certeza de ter alcançado a autonomia BOIS-REYMOND, 1998).
interior era garantida pela progressiva passagem a degraus cada vez mais Este trabalho deriva de algumas incursões às narrativas de jovens
elevados de independência, possibilitados pela relação com instituições
sociais com suficiente credibilidade e não fragmentadas. Hoje o cenário, de escolas públicas em Fortaleza, entrevistados com o intuito inicial de
em termos gerais, alterou-se. (LECCARDI, 2005b, p. 48-49) analisar sua percepção de risco e vulnerabilidade social. Aqui apresenta-
mos algumas observações sobre a experiência do tempo biográfico, sua
Como assinala Leccardi (2005b), as trajetórias biográficas dos organização em enredos e a projeção do futuro entre jovens, levantadas
jovens tornam-se, portanto, mais incertas, à medida que perdem sua a partir da leitura de um conjunto de histórias autobiográficas de estu-
ancoragem normativa no mundo das instituições sociais e políticas. dantes em torno de 15 a 19 anos.
Embora essas ainda contribuam para condicionar a vida cotidiana, não Em que medida as narrativas autobiográficas desses jovens reve-
parecem mais exercer um papel definitivo para a construção da indi- lam a transformação da experiência temporal acima discutida? De que
vidualidade e para a “continuidade biográfica”. Nesse quadro geral, os modo a experiência de risco e incerteza que hoje partilhamos afeta o
projetos biográficos tendem a exibir matizes peculiares que exprimem a modo como os jovens organizam narrativamente suas histórias de vida e
urgência e o encurtamento de prazos: suas projeções futuras? Considerando que vivemos num tempo em que
A maior parte dos jovens, moços e moças, em resposta às condições sociais se multiplicam as escolhas, as exigências de flexibilidade e de planeja-
de grande insegurança e de risco, encontra refúgio sobretudo em projetos mento reflexivo do “eu”, como os jovens se posicionam para definir que
de curto ou curtíssimo prazo, que assumem o “presente estendido” como querem fazer e ser no futuro? Como lidam com a incerteza quanto aos
área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” da sociedade da
desdobramentos de seu percurso biográfico? É possível observar, nas
aceleração com projetos sui generis, que se expressam sobre arcos tempo-
rais mínimos e que, por isso mesmo, parecem extremamente maleáveis. narrativas desses jovens, uma tendência de “individualização” biográ-
Em alguns casos, parecem configurar-se essencialmente como uma reação fica, isto é, em que dominam imperativos de autodeterminação, auto-
à inquietação que a própria ideia de futuro evoca; em outros, assumem nomia e escolha em relação aos projetos e decisões quanto ao futuro?
as características de formas projetivas marcadas pela concretude – em Esses jovens estariam evitando compromissos e projetos de longo prazo,

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substituindo-os por planos breves, que desarticulam o presente tanto do biográficas cada vez mais restritas que, embora não impeçam de todo os
passado quanto do futuro? Que outros fatores estruturam a experiência esquemas de ação para contornar a trajetória adversa, conduzem-na a
do tempo e o planejamento de vida juvenis, para além da dimensão de um “equilíbrio precário” entre autonomia e determinação alheia.
agência e escolha? Ainda que não possamos efetivamente responder a
Só que minha mãe trabalhava de professora. (...) Aí minha mãe traba-
essas questões, pretendemos apresentar, no momento, algumas pistas lhava de professora e ela ganhava muito pouco, porque o prefeito lá não
para a sua discussão, à luz das histórias de três adolescentes de 16 anos. pagava, tinha vez que eu não podia ir pra escola, aí tinha vez que eu não
tinha caderno. Minha mãe não tinha condição de me dar, porque o pre-
feito atrasava. Aí ela ficava chorando, ela passava assim de 6 horas até 12
ii. explorando os horizontes temporais em narrativas horas lavando prato, aí eu ficava com pena dela, pra ganhar 10 reais, eu
autobiográficas de adolescentes ficava com pena dela e ia ajudar ela. Vi o sofrimento dela como as pessoas
humilhava ela, eu ficava com tristeza aqui no meu coração. Aí eu sempre
Selecionamos para reflexão algumas histórias colhidas por meio de eu pedia pra Deus e ia falar pra ela: “Mãe, vamos sair desse lugar, eu vou
entrevistas narrativas (SCHÜTZE, 1983/2010) realizadas com 21 jovens lhe dar uma vida melhor”, porque eu ficava com pena.”
estudantes entre 2009 e 2010. A partir de uma pergunta geradora aberta,
Aí eu vi o sofrimento, aí eu deixei o namoradinho que eu tinha, que ele era
solicitamos que o jovem contasse sua história de vida livremente, do jeito muito bom pra mim, ele era legal, (...), eu penso em dar uma vida melhor
que quisesse, de modo a obtermos uma narração central razoavelmente pra minha família. Eu penso assim chegar lá, dar uma vida melhor pra
espontânea, não guiada pelo esquema tradicional de pergunta-resposta. minha mãe, pra minha família, e também eu penso muito alto, eu penso
Ao final dessa narração, a entrevistadora1 fez algumas perguntas sobre em dar uma vida melhor pra minha mãe, pro meu pai, pro meu irmão,
medos, sentimentos de desamparo, fontes de auxílio em momentos difí- penso em voltar pra casa, com a família toda. Aí eu pensei em vim, aí
minha mãe disse que não era pra mim vim, mas eu vou, se não der certo
ceis, planos de futuro e outras de interesse da pesquisa. eu volto, mas eu vou ajudar a minha mãe, me formar, fazer curso, ser
independente, ter minha própria casa e ajudar minha mãe. Enfim, deixei
2.1. Trajetória de sofrimento, redução da escolha e planos sacrificiais amigo, escola, professor, a diretora, família, tudo eu deixei, enfim.
Nosso 1º caso é Selma, 16 anos. Sua história, de início já avaliada como Podemos observar que sua experiência pessoal e familiar com a
“triste”, é a de uma filha que tomou para si a missão de “ajudar a mãe” pobreza e com as necessidades básicas de sobrevivência revela um tipo
e “dar à família uma vida melhor”. A análise da narrativa (ao modo de de manejo da incerteza que é marcado pela condição de heteronomia
Schütze) evidencia a instauração de um processo biográfico de sofri- e de relativa incapacidade de fazer escolhas. Com efeito, numa socie-
mento (“trajetória de sofrimento”) vinculado a um conjunto de condi- dade em que dominam os valores de individualismo e escolha, apenas os
cionamentos externos que estão para além de seu controle: pobreza de mais privilegiados têm a oportunidade de realmente dispor de variadas
sua família, desemprego do pai (em razão de doença), trabalho precário opções e eleger cursos de vida. Revelando a temporalidade daqueles de
da mãe, trabalho precoce e insalubre da narradora, condição migrante, menores recursos materiais e educacionais, a jovem antecipa os com-
enfraquecimento dos laços de proteção social. O esquema de ação de promissos “próprios” da vida adulta, assumindo obrigações imediatas
migrar e auxiliar financeiramente a família vem no bojo de alternativas (o auxílio financeiro à família) e um planejamento de mais longo prazo
baseado num peculiar modelo de planejamento.
1 Na realização e transcrição das entrevistas discutidas neste trabalho, colaboraram as bol- Valendo-nos dos modelos de orientação para a vida adulta suge-
sistas de Iniciação Científica do curso de Psicologia da UFC, Natalia Silveira de Andrade
ridos por Brannen et al. (2002), a partir de grupos focais com jovens
Aquino (CNPq) e Izabelle Maria Silva Câmara Pessoa (UFC), e das alunas da disciplina de
Pesquisa em Psicologia, Diana Carla Laureano de Oliveira, Dirce Helena Santos Sequeira, na Grã-Bretanha e Noruega, podemos dizer que Selma não adota um
Gizelly Medeiros Mosca de Carvalho e Juliana Carneiro Torres.

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padrão de “adiamento” do futuro. Esse usualmente está associado à Nos projetos de Selma, a falta de detalhamento dos passos e estraté-
experiência do presente estendido, em que o jovem mantém o futuro à gias a serem tomados ou em curso para a consecução dos seus interesses
distância, postergando responsabilidades e focalizando o presente como enfraquece a identificação de seu planejamento como de “preditibili-
período para lazer e preparação para a vida adulta. A jovem também não dade”, esse caracterizado pela busca de maior controle e “certeza bio-
parece exibir o modelo da “adaptabilidade”, em que o jovem se vê capaz gráfica”. De fato, suas aspirações são mais gerais e abstratas, são desejos
de forjar, de forma negociada e flexível, suas oportunidades vocacionais, orientados por expectativas normalizadas sobre o valor dos estudos para
de emprego e estilos de vida. O padrão que a narradora revela está mais a ascensão social e para os benefícios dela decorrentes.
próximo ao da “preditibilidade”, com algumas diferenças decorrentes Fugindo à inclinação individualizante, seu projeto biográfico exibe
das limitações estruturais de seu modo de vida. traços de “coletivização”, uma articulação da dimensão pessoal com a do
No padrão de preditibilidade observado pelos autores no contexto grupo familiar (embora não com a comunidade mais ampla). A questão
de jovens europeus, pode-se falar mais estritamente de planejamento: os que surge é como, em condições de extrema vulnerabilidade material,
jovens se esforçam por segurança, miram o futuro a longo prazo, veem o planejamento de vida de jovens focaliza a reversão do quadro de vul-
suas vidas como pautadas em percursos claramente definidos, seguindo, nerabilidade do grupo familiar, com o jovem compreendendo-se como
muitas vezes, as aspirações e visões dos pais e de suas comunidades. A responsável pela ascensão social de pais e irmãos.
formação escolar e a profissionalização são compreendidas como meios A biografia exibe, nesse sentido, um matiz sacrificial, em que os
de garantir um futuro mais seguro e, em termos da vida laboral e fami- planos de futuro são colocados à disposição de reparar um passado e
liar, os jovens projetam que suas vidas seguirão destinos semelhantes presente injustos. O que Selma faz hoje (trabalho estafante e precário,
aos de seus pais (por exemplo, seguindo suas profissões). Uma dife- sob condições de perseguição) é vivido como mal necessário, a favor da
rença, contudo, se destaca na entrevista de Selma (também observada família:
noutras entrevistas com jovens de Fortaleza): seu padrão sui generis de
Ela [amiga da família] me colocou foi pra trabalhar, pra trabalhar assim
predição do futuro, embora se baseie no reconhecimento do valor dos numa galeria, numa galeria assim pobre. Eu passo o dia em pé, o dia em pé,
estudos e da qualificação como passaporte para a segurança, ocorre em pra ganhar 150 por mês, pego sol. Ontem mesmo eu cheguei minha boca
função do que não foi conquistado pelos pais e avós. Os jovens aspiram era tremendo só de dor de cabeça, quando eu cheguei, peguei dormi, aí
estudar e trabalhar em melhores empregos para evitar que suas vidas quando foi mais tarde eu peguei alguma coisa pra comer, tava com minha
boca tremendo só de dor de cabeça, só de pegar sol. Aí foi, ganhava 150
acabem sendo limitadas como as deles. A necessidade de finalizar o nível
por mês. Aí eu passo o dia no sol, não paro pra almoçar. Aí hoje mesmo
médio e de fazer faculdade está a serviço de aspirações ocupacionais eu nem parei pra comer porque tava era chegando cliente, aí não dava
mais qualificadas e rentáveis e de padrões de bem-estar e consumo que pra mim comer, almoçar. Aí cheguei em casa, aí cansada, querendo tomar
estiveram fora do alcance de sua família de origem e no de outras pes- banho, eu fico pensando “Jesus!, eu tô aqui pra ajudar minha mãe”.
soas com quem convivem no bairro e na escola: Eu não aguento mais, tem hora que eu penso em desistir, mas eu penso
E: – Que situações você acha que mais trazem benefício para você, mais “Meu Deus, eu não posso desistir!”. As vezes eu penso assim, “Meu Deus,
ajudam no seu desenvolvimento? não sei porque eu nasci”, mas depois eu peço perdão, eu sempre peço
S: – Minha escola, estudar. E também, é só isso. (...) perdão, eu sei lá, eu sonho assim entrar em uma universidade, cuidar da
E: – Quais são seus planos para o futuro? minha família, dar um bom emprego pra minha mãe, pra eu sair daquela
S: – Ah é me formar, fazer faculdade, ajudar minha mãe. É viver a vida, me casa que eu não aguento mais. Ter uma vida melhor, mas tem hora que eu
dar uma vida melhor e voltar pro meu Maranhão. quero desistir. Ter um emprego pra mim e não aquele com o sol na minha
cabeça, entendeu?

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Planos de vida orientados ao cumprimento de obrigações para com Brannen e colaboradora), mas das recompensas.2 Amparado somente
a família não são incomuns quando se tratam de mulheres jovens em pela esperança de dias melhores, o sofrimento ameaça a permanência
transição para a vida adulta. A decisão de se tornar uma cuidadora da desses planos de longo prazo, em circunstâncias que exigem atravessar
família em parte é circunscrita culturalmente, sendo mais significativa muitas adversidades e situações de risco sem fortes mecanismos de pro-
em certas populações marcadas por maior interdependência familiar e teção familiar e institucional. O presente dominado pela trajetória de
laços mais íntimos entre seus membros. Em estudo recente, Sy e Brittain sofrimento parece sempre à beira de lhe escapar ao controle.
(2008) observaram que filhas adolescentes oriundas de grupos latinos e
asiáticos, na sociedade norte-americana, vivem uma pressão adicional 2.2. Em direção ao futuro: planos ou orientações gerais?
que se origina de certas expectativas disseminadas de que assumam o Everardo, 16 anos, estudante do 2º ano médio, narra sua história de vida,
papel de cuidadora da família e de que priorizem os interesses familia- focalizando o modo como sua vida está hoje após a “turbulência” da
res sobre os pessoais. Esse papel abrange, entre outras obrigações, con- separação dos pais anos atrás. Frisando seu bem-estar atual, tende a nar-
tribuições financeiras e trabalhos domésticos, e afeta decisões quanto rar menos e descrever mais a normalidade de seu cotidiano, dividido
a onde morar e quanto trabalhar, de forma a fornecer suporte à famí- entre a escola profissionalizante em tempo integral, o trabalho com o
lia. Uma das matrizes ideológicas em operação seria o marianismo que pai nos fins de semana e o lazer com o irmão e amigos. De modo geral,
“enfatiza o papel autossacrificial das mulheres”, sugerindo uma atitude posiciona-se como alguém que está em aprendizagem, reunindo ele-
mais submissa e orientada para a adoção de papéis femininos tradicio- mentos para sua formação acadêmica, moral reunindo informaç iona-
nais (p. 730). se como alguem arios dian, dividido entre escola em tempo integral,
Selma tem apenas 16 anos e seu planejamento foge dos padrões de trabalho com o pai nos fins de semn e profissional que podem ser úteis
expectativas da biografia “típica” da juventude como tempo de transi- no futuro. Os planos são descritos de forma vaga, a partir de diretrizes
ção, que envolve etapas e atividades, por exemplo, estudar, preparar-se gerais e não de planos bem acabados. No presente imediato, a meta é sair
para o mercado de trabalho, ser protegida, namorar. Tendo sua famí- da escola; a médio e longo prazo, cursar faculdade e trabalhar, diretrizes
lia vitimizada pelo desemprego e trabalho precário (condição dissemi- que estão mais em consonância com um estoque de conhecimentos e
nada na sociedade de risco, em especial nas sociedades não plenamente juízos comuns sobre o valor dos estudos no mundo “hoje em dia”, do que
desenvolvidas), suas preocupações voltam-se para o sonho de reparar com projetos bem sedimentados e pessoalmente desejados. Destaca-se
os prejuízos de sua família. Com isso, invertem-se papéis e expectativas o imperativo de “procurar melhoras”, evitando assim permanecer inerte,
usuais quanto ao curso da vida e suas aspirações. Minimizam-se tam- sem possibilidade de “ir pra frente”, progredir socialmente.
bém os projetos propriamente pessoais, tais como namoro, casamento e
(...) Muito bem, porque hoje em dia o mundo tá, é... muito avançado né?
filhos, comuns nas biografias de mulheres.
E hoje em dia, o cara, se não tiver um estudo, se não tiver nada ela não é,
Em termos de vivência do tempo social, numa época de aceleração, é nada, não é ninguém, emprego pelo menos em canto nenhum. Aí... eu
a narrativa de Selma não exprime uma percepção de falta de tempo, pelo menos, eu tenho a consciência que tenho que estudar. Aí tem minha
de que o ritmo da vida está rápido ou os prazos, curtos. Ao contrário, mãe também que me ajuda, que sempre tá lá, e o meu pai também. Aí...
seu presente é vivido como fardo demorado, difícil de ser suportado em eu penso assim, se fosse, se fosse pra mim parar de estudar eu já tinha
parado se eu não tivesse consciência de que eu tenho que continuar, eu já
razão das muitas fontes de sofrimento nos contextos do trabalho, da
família de origem e do novo lar. Está em curso um processo de “diferi-
2 O termo designa “a repressão dos impulsos hedonísticos, a determinação de adiar para
mento” ou adiamento (não das responsabilidades, como assinalado por
um tempo vindouro a satisfação possível que o tempo presente pode garantir em vista
dos benefícios que esse adiamento torna possíveis” (Leccardi, 2005b, p. 35).

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tinha parado e tava só trabalhando, mas só que eu tenho a consciência... titui uma forma possível de manejar o futuro, que mantém as oportuni-
as vezes eu, eu já cheguei até uma vez em pensar em parar de estudar, dades abertas, porém sem que o jovem “perca o rumo”.
só que minha consciência pesou aí decidi continuar, aí eu vou ficar até o
fim, sair daqui eu vou cursar uma faculdade, meu pai quer que eu curse 2.3. Presente precário e futuros coletivos possíveis
uma faculdade pra engenharia, pra trabalhar junto lá com ele, aí... tem
que procurar melhoras, porque senão não vai pra frente não, e aqui é uma Clara, 16 anos, aluna de curso profissionalizante, conta de um fôlego só
melhora porque eu saindo daqui eu vou sair pro terceiro ano também tem uma longa história pessoal e familiar de empobrecimento, violência (pai
esse curso técnico que eu tô fazendo, de finanças, aí saindo daqui eu vou
foi assassinado) e dificuldades emocionais. A narração é entremeada
pra faculdade.
– E quais são os teus planos pro futuro? com vívidas e trágicas descrições do ambiente violento no bairro, que
– Meus planos pro futuro? Eu não tenho planos não, só... sair daqui, cursar salientam seu repúdio ao presente precário e ameaçador que vivencia
uma faculdade e sair da faculdade, trabalhar e... família eu não quero tão todos os dias. Entre os muitos aspectos que podem ser analisados nessa
cedo e viver a vida bem né? Só isso. Aí o resto a gente vai descobrindo com entrevista, destaca-se o modo como a narradora articula suas experiên-
o passar do tempo. Não gosto muito de planejar não.
cias cotidianas (especialmente a de vulnerabilidade e risco social) com o
Opera nessa narração um modelo de adiamento dos compromissos mundo das instituições sociais e políticas.
e responsabilidades para um futuro mais distante, onde se focalizam as Entre outros fatores explicativos, é sabido que a incerteza de nosso
opções do presente, na escola, no lazer, no trabalho e noutros ambientes. tempo acompanha o ocaso das grandes utopias e dos movimentos polí-
O discurso que Everardo emprega ilustra a construção social da juven- tico-ideológicos de maior alcance, nas últimas décadas do século XX.
tude como o tempo para os amigos, para a diversão, para as oportuni- A desaparição de movimentos e projetos coletivos mais amplos de fato
dades que surgem (BRANNEN et al., 2002). Durante a semana, dedica-se reduz a possibilidade de que a pessoa possa conferir sentido ao seu pre-
integralmente à escola e, nos fins de semana, às festas ocasionais com os sente por meio de esforços em planos futuros que unam as dimensões
amigos e a ajudar seu pai no seu trabalho como construtor, em troca de pessoais com as dimensões coletivas do curso de sua vida (LECCARDI,
uma remuneração. 2005a).
A retórica da sorte e da oportunidade (de “não planejar” muito e de O que chama a atenção em Clara é justamente o modo como assi-
ir “descobrindo com o passar do tempo”), de seguir o fluxo dos aconte- mila à sua autobiografia um discurso transformador e crítico, política
cimentos ao sabor do acaso, de fato, tem sido referida em estudos sobre e esteticamente inspirados, levando-a em direção a um futuro-sonho
a experiência temporal dos jovens no contexto contemporâneo do risco acalentado na primeira modernidade:
e da incerteza. Muitas vezes, o recurso ao acaso na narração biográfica (...) eu sou daquelas pessoas agora eu vou fazer que nem o... o. aquela frase
representa uma estratégia cognitiva para lidar ativamente com a dimen- do Che Guevara e do Bob Marley , o Bob Marley dizia que era, que é pos-
são de incerteza e com o medo de um horizonte futuro mais distante sível, Che Guevara também dizia a mesma coisa, que é possível, a maio-
(LECCARDI, 2005a, p. 132). Implica uma abertura, mais ou menos implí- ria dos grandes revolucionários, tipo, os socialistas, Vladimir Lênin, Che
Guevara, Karl Marx, Frederick Engels, Mahatma Gandhi, Martin Luther
cita, para “agarrar as oportunidades” imprevistas, que podem envolver King, todos eles falavam a mesma frase: que é possível, que é possível a
aspectos tais como estudo, trabalho e relações amorosas. O controle do melhoria de.. , então eu de certa forma, sempre há aquele fio de esperança
tempo futuro não corresponde exatamente à capacidade de concreti- dentro de mim (...)
zar planos específicos, mas de orientar-se em direção a objetivos gerais
Reflexivamente, Clara arremata os fios da história familiar com os
desejados (muitas vezes compartilhados na família, na escola e noutros
da história dos segmentos mais empobrecidos aos quais pertence e cujos
ambientes), a partir de um exercício de consciência. Tal exercício cons-
óbices compartilha e sonha mudar. A articulação que a jovem faz entre

218 219
o passado histórico-cultural e seu futuro parece destoar do discurso da tenho um objetivo né, que é estabilidade financeira pra eu poder auxiliar
atual falência da memória histórica que ocorre na esteira da crescente a minha família e pra eu poder fazer aquilo né, que é ajudar as outras
pessoas e tal, aquilo que eu pretendo fazer, que eu quero fazer, eu quero
acentuação do presente. Em vez do “desencantamento e desesperança”
causar uma revolução nem que eu morra que nem o Che Guevara (...) tô
que marcam a falência da perspectiva de futuro, o que se vê é um esforço nem vendo, eu quero saber se alguma coisa que eu vou falar vai servir de
de vinculação temporal que ajuda a dar sentido à vida pessoal e coletiva. alguma coisa.
Ao argumentar sobre suas diretrizes para ajudar a mãe futuramente
e reparar as “más escolhas” maternas no passado, a narradora mescla A experiência como líder de sala e as lições de protagonismo juve-
os tempos de outras gerações, seu próprio tempo e o tempo longo da nil ajudam a delinear pequenos planos e esquemas de ação imediatos
política perversa que vitimiza a gente desvalida. Nesse sentido, o dis- para solucionar o presente precário na escola e na comunidade e que
curso autobiográfico da jovem não se mostra fragmentado e episódico, sinalizam as contribuições que estão ao seu alcance. Trata-se aqui de
nem sua projeção de futuro se revela isolada; antes, veicula um sentido um esforço pessoal em direção a uma biografia de “escolha”, com tenta-
de unidade entre tempos vividos e sonhados por si mesma, sua gera- tivas de “individualizar” seu percurso (por exemplo, distinguindo-se do
ção e outras gerações, que é fortemente orientado pela problemática do percurso de moradores do seu bairro, de outros colegas de sua escola
gênero e pela adoção de compromissos coletivos no seu horizonte de que não estudam e de parentes que permaneceram em condições de
consciência: desvantagem social), refletir sobre os passos que deve tomar a seguir e
contornar obstáculos que podem subjugar e ameaçar seu futuro. Como
ela [a mãe] não trabalha, ela só fez até o primeiro ano porque foi o tempo na história de Selma, as escolhas em direção a uma vida mais tranquila
que ela engravidou. Foi o tempo que ela começou a engravidar e tal, ela
e segura não foram possíveis na trajetória materna, cujo percurso ainda
aí assim... É terrível depender de homem assim [do padrasto], quando eu
vejo, eu, eu sinto que a minha mãe não queria aquela vida pra ela, mas o tem o efeito de delimitar, de antemão, uma redução de horizontes bio-
que ela há de fazer, ela preferiu no caso dar uma vida melhor, mais susten- gráficos para a narradora. Afinal, como argumenta Thomson (2002),
tável pra filha dela [a narradora], do que até mesmo pra ela, ou seja, ela contra um olhar excessivamente otimístico sobre a autonomia indivi-
abdicou da vida dela pra poder passar a cuidar da minha, aí o que é que dual da escolha, os jovens devem ser entendidos como particularmente
acontece ,se hoje eu estudo hoje em dia é porque se eu ... o que me pode,
vulneráveis às consequências de decisões ou falta de decisões de outros
o que pode me trazer lucros no futuro é justamente o estudo agora, no
presente, (...) sobre sua segurança física e emocional.
(...) o meu maior objetivo com os estudos é justamente esse porque muitas Ainda assim, indagada sobre seus medos, Clara desabafa seu temor
vezes eu me sinto triste por ver que determinada pessoa da minha famí- por um futuro incerto, um futuro em que possam vir a fracassar seus
lia necessita de coisas importantes, que minha mãe tem um determinado planos e sonhos:
sonho, tem um determinado objetivo e ela não possa ter alcançado pelo
um erro que ela cometeu na adolescência (choro) aí eu tenho, meu maior (...) porque eu tenho muito medo do futuro, o futuro me assombra, eu
objetivo é dar tudo aquilo que a minha mãe um dia quis, era, tipo, quero tenho medo de que eu, que eu quero pro futuro, aquilo que eu planejo
dar maior conforto do mundo pra ela (...). hoje, que eu pretendo que seja no meu futuro, os sonhos que eu tenho
(...) eu nasci, sei lá, eu sempre me preocupei muito com o mundo, isso hoje que eu pretendo que se realize no futuro, eu tenho medo de que tudo
acaba me estressando as vezes, cê ta me entendendo? Tudo é estressante isso dê errado, tenho medo d’eu desmoronar total no futuro, me acabar no
por causa dessa situação, eu não consigo assim, ver coisas erradas, tipo futuro, o meu maior medo é justamente esse, é o futuro, eu tenho medo
a África, eu nem olho cara, quando alguém vem me falar em relação a do futuro (...)
Africa eu nem olho porque eu não aguento mais não, eu não aguento,
eu fico revoltada, me dá uma rebeldia dentro de mim, (...). E é assim, em Ameaçada pela pobreza familiar, pela precariedade do bairro, pela
relação aos estudos é muito cansativo, mas é como eu tô te dizendo, eu baixa qualidade da escola e outros impedimentos, Clara exibe apreen-

220 221
são e ansiedade pelo que pode vir a acontecer (ou, melhor, não aconte- Coexistem planos de curto prazo (especialmente a conclusão de ativida-
cer). Como afirma Sennet (apud BRANNEN et al., 2002), essa apreensão des em curso, como a finalização do ensino médio) e planos (ou esboços
(contrariamente às expectativas na biografia de escolha) ocorre princi- de plano) que se estendem a cinco, dez anos ou mais.
palmente no cenário de constante risco, representado por desemprego, As questões que endereçamos vão no sentido de investigar o
baixos salários e insegurança laboral, todos elementos que rondam o alcance e os limites da teorização sobre “sociedade de risco” e as novas
seu destino e o de sua família. Com efeito, como assinala Zinn (2002), experiências temporais (fragmentação, aceleração do tempo e domínio
um exame mais minucioso dos modos de ação biográfica em entrevis- do “presente estendido”) no entendimento das autobiografias juvenis,
tas qualitativas pode apontar para uma relação ainda significativa entre especialmente no que tange aos tipos de projetos de futuro almejados
esses modos de ação e os indicadores tradicionais de desigualdade da e perseguidos. Até que ponto a permanência duradoura de obstáculos
primeira modernidade, tais como classe social, tipo de educação, gênero macroestruturais e de vazios institucionais que atingem o cotidiano des-
etc. (p. 28). ses jovens (como atingiram a de seus pais e avós) relativiza afirmações
sustentadas acerca do imediatismo, experimentação e “nomadismo”
iii. algumas considerações por ora juvenil contemporaneamente?

A desinstitucionalização do curso da vida hoje traz hoje um conjunto


referências bibliográficas
de tensões e também de aberturas em termos de construção biográfica.
O futuro parece mais nebuloso diante do declínio dos recursos e parâ- BRANNEN, J.; NILSEN, A. Young people’s time perspectives: from youth to adul-
metros que conferiam estabilidade para os projetos de vida de gerações thood. Sociology. v. 36, n.3, p. 513-537, 2002.
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anteriores. Particularmente nos perguntamos aqui sobre o impacto do
fico na pós-modernidade. In: GALLE, H. et al. (orgs). Em primeira pessoa:
ambiente de incerteza e risco da segunda modernidade sobre os modos abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo: FAPESP/Annablume,
juvenis de viver o tempo e projetar-se no futuro. 2009, p. 95-110.
Embora possamos observar as dificuldades envolvidas no controle DU BOIS-REYMOND, M. I don’t want to commit myself: young people’s life con-
do futuro nas narrativas autobiográficas aqui apresentadas – levando cepts. Journal of youth studies, v. 1, p. 63-79, 1998.
seja ao sacrifício pessoal, seja à substituição de planos precisos por dire- GUERREIRO, Maria das D.; ABRANTES, Pedro. Como tornar-se adulto: proces-
trizes gerais ou simplesmente ao medo do fracasso dos sonhos –, parece- sos de transição na modernidade avançada. Revista Brasileira de Ciências
nos que há um conjunto heterogêneo de estratégias que capacitam o Sociais, v. 20, n. 58, p. 157-212, junho 2005.
jovem a enfrentar a indeterminação e a incerteza com equilíbrio e dis- HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.

posição positiva. Ressaltamos que entre nossos entrevistados, padrões LECCARDI, Carmem. Facing uncertainty: temporality and biographies in the
new century. Young, v. 13, n.2, p.123-146, 2005 a.
biográficos “institucionalizados” ainda parecem prevalecer em termos
LECCARDI, Carmem. Por um novo significado do futuro: mudança social,
de planos, levando o jovem a manter um elo com valores e expectativas
jovens e tempo. Tempo Social (Revista de Sociologia da USP), v. 17, n.2, p.
tradicionais: 17 dos 21 entrevistados planejam cursar ensino superior e 35-57, 2005b.
obter um emprego mais qualificado; quase todos veem como imperativo MELUCCI, Alberto. Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista Brasileira
finalizar o ensino médio; em geral, os planos percorrem uma sucessão de Educação, n. 5/6, p. 4-14, 1997. (Tradução de Angelina Teixeira Peralva.
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Ainda ter (ser no) tempo: exigência ética da
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index.php/fqs/article/view/887/1937. Acesso em 25 de julho de 2011.
Em primeiro lugar, é bom que frisemos, não nos interessa aqui a cro-
nosofia, a cronografia ou a cronometria. O tempo dos calendários, dos
relógios e dos cronômetros é da ordem do arbitrário, enquanto vamos
nos debruçar sobre um tempo fenomenológico. Numa nota de rodapé
de Ser e Tempo, Heidegger nos esclarecerá a esse respeito:
Não caberia aqui aprofundar o problema da medição do tempo, caracterís-
tica da teoria da relatividade. A explicação dos fundamentos ontológicos
dessa medição já pressupõe um esclarecimento do tempo do mundo e da
intratemporalidade a partir da temporalidade da pré-sença [Dasein], bem
como a elucidação da constituição existencial e temporal da descoberta da
natureza e do sentido temporal da medição em geral. (HEIDEGGER, 1996,
p. 229)

O tempo da Física é uma sequência de agoras, que pode ser medida,


através de sua relação com o espaço, mas o que interessa à ontologia fun-
damental é o tempo fenomenológico, no sentido de sermos atingidos

224 225
pelo tempo (HEIDEGGER, 2001). Embora não nos confundamos com o dor, já que o repouso caracterizaria o ser pleno. O instante é ligador e
tempo, ele nos concerne. divisor do tempo, embora não faça parte do tempo.
Mesmo os marcos temporais, no que diz respeito à identidade das Agostinho [354-430] falará do tempo como um nada entre dois
pessoas, não são universais, inexistindo em algumas culturas como nos nadas. O tempo é a própria distensão da alma, já que esta presta atenção
faz entender Ariès (2006). Para nós, é naturalizado o entendimento ao presente, recorda o passado e antecipa o futuro. Presente, passado e
de que o momento em que nascemos, casamos e morremos, deve ser futuro são diferentes, o que significa descontinuidade e transformação.
marcado no tempo e registrado. Estes números passam a fazer parte da Esse é o movimento do mundo, em oposição a Deus, que é imutável: um
nossa identidade civil e irão mediar a nossa relação com a sociedade: processo de transformação entre o ser e o não ser. Todavia há a insis-
o momento de entrar na escola, o ano certo de sair, a idade de ter um tência no presente, seja ele presente das coisas passadas, seja presente do
emprego, o tempo esperado de vida e de morte. presente ou presente do futuro (AGOSTINHO, 1980). Eis uma concepção
Mas nem sempre foi assim. Um europeu do século XVI ou XVII de tempo que leva em conta o “devir intuído”, como também aparece em
raramente sabia a sua própria idade ou ano em que nascera seu filho. Hegel [1770-1831], que se apresenta como intuição do movimento, ou
A preocupação com as “idades da vida” se tornou forte na Idade Média. seja, é o tempo da autoconsciência, um aspecto abstrato da consciência.
Posteriormente, cada época parece ter privilegiado uma concepção e Em todo caso, o tempo pode ser o agora-presente, os presentes-passados
uma periodicidade de idade humana, por exemplo: a “juventude” no e os presentes-futuros.
séc. XVII, a “infância” no séc. XIX e a “adolescência” no séc. XX. Tais ida- Bergson [1859-1941], por sua vez, falará do tempo vivido como
des não são demarcadas pelos mesmos anos de vida em épocas dife- durée (duração), o que o aproxima do tempo fenomenológico de Husserl
rentes, assim uma criança pode ter 24 anos no século XVI, o que seria [1859-1938], e suas protoimpressões, retenções e protensões, como cor-
inadmissível hoje em dia. rente infinita de vivências. Bergson (2006) diferencia o tempo da ciên-
Entretanto, a discussão sobre o tempo e a temporalidade que nos cia, que se relaciona com o espaço e que é objeto da mecânica, do tempo
instiga é aquela que remete a muitos e ilustres autores na tradição filo- da consciência. O tempo a que se devem dedicar os metafísicos é o da
sófica e mesmo do pensamento mais atual, como aparecem em Freire consciência, pois é ela que é capaz de extrair, reter e prever o que nele se
(2001), e que não deixam de gerar reflexões sobre relatividade e inserção dá. Este não se pode contar e também é movimento, uma continuidade
na cultura. Lembremos, por exemplo, as figuras de Aristóteles, Agosti- que não é nem unidade e nem multiplicidade. Enquanto os cientistas se
nho de Hipona, Georg Hegel, Henri Bergson, Edmund Husserl, Martin detêm na duração do tempo, a inteligência trabalha sobre o fantasma da
Heidegger, Sigmund Freud, Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida. duração. A essência desta duração, interior, está no fluir criador, apesar
O tempo, como ordem mensurável do movimento, é um conceito de que este fluxo criativo não possa ser interrompido e não haja lugar
grego e muito precisamente aristotélico. Aristóteles [384-322 a.n.e] fun- para o nada. Para Husserl, o tempo fenomenológico é subjetivo, e é pos-
damentará a mecânica de Newton, a ordem das sucessões em Kant, e, sível pensar a não presença, o que retira todo o caráter fundacionista que
sem muita alteração, chegará a Einstein junto com sua teoria da relativi- sua redução fenomenológica pressupunha.
dade. Em Aristóteles (1995) se apresentará o tempo como instante, como Heidegger [1889-1976] também irá fazer uma distinção semelhante,
o agora (agora-anterior e agora-posterior). Mas também o que foi e não entre o conceito vulgar de tempo e temporalidade. Esta última seria
é mais, e o que será e ainda não é. O tempo, em Aristóteles, é divisível uma experimentação fenomenicamente originada. Sua noção se atrela
e derivado do movimento, apesar de composto de inexistentes. O ser é ao futuro, ao porvir, como antecipação (projeto) que condiciona tanto o
formado por partes que não são. Não se confunde com o movimento, agora (o estar-lançado ou o presente) como o próprio ter sido (decadên-
mas também não existe sem o movimento. Este, por sua vez, é destrui- cia ou passado). Ele sintetiza: “futuro-que-vai-ao-passado-vindo-ao-pre-

226 227
sente”. O tempo se integra a uma estrutura de possibilidades, de abertura, De qualquer forma, esta ideia de estar sem tempo remete sempre para
portanto de projeto, sendo a temporalidade uma experiência interna do uma situação relacional, pois tanto pode significar estar sem tempo para
tempo que constitui a própria existência. Ele diz, em Ser e Tempo (Parte si, para cuidar de si mesmo, como estar sem tempo para o outro. Seja pela
II, 1996), “Enquanto a pré-sença (Dasein) é, pertence-lhe um ainda-não, via da interioridade, seja pela da exterioridade, encontrar-nos-íamos na
que ela será – o continuamente pendente” (p. 23). O ser é também pre- dimensão do ter tempo para.
sença, pois se constitui no tempo presente. Esta formulação se apro- O que dizer de voltar no tempo? Não há como estar novamente no
xima do que queremos tratar aqui por ‘ainda ter tempo’. Haddock-Lobo passado a não ser na ficção de uma máquina do tempo, já que o pre-
(2006) nos esclarece um pouco mais a respeito: “o ente humano, pelo sente são múltiplos instantes a se perderem. A volta no tempo só é pos-
simples fato de ser, já é ainda-não (...) é esse ainda-não que ele (Dasein) sível como memória, na dimensão da temporalidade de Heidegger. Em
deve, por ser abertura e possibilidade, ser a cada momento” (p. 81). O Proust, por exemplo, o tempo é redescoberto ou reencontrado (le Temps
tempo heideggeriano é o da extemporaneidade, ao invés da intratempo- retrouvé), o que não significa voltar no tempo, mas o efeito de posterga-
ralidade. O extemporâneo é do domínio do ontológico, e não do ôntico, ção do passado em relação ao presente – o nachträglichkeit (l’après-coup
do extático e não do enclausuramento da subjetividade em si mesma. ou só-depois) freudiano.
O tempo, de Aristóteles a Heidegger, no entanto, é definido pela Freud leva a discussão sobre o tempo para a clínica. Algo se dá no
aporia do que é sem ser. Isso nos leva à proposição do tempo em Jacques tempo e é apreendido pela nossa percepção, formando traços mnési-
Derrida [1930-2004]. Em Donner Le temps (1991), Derrida nos convoca cos no nosso psiquismo. A consciência não se dá necessariamente sobre
a pensar a relação entre a doação/a dádiva/o dom e o tempo. Parte de estes traços. Freud fala, portanto, de uma “consciência só-depois”. A
uma paráfrase à formulação lacaniana de que o amor dá o que não tem, compreensão sobre algo que se deu no tempo se dá por uma subjeti-
para refletir sobre a impossibilidade do dar tempo. O tempo não é algo vação do acontecimento, que, por sua vez, não é estanque. Ao longo da
que se possa dar a alguém. Só podemos dar o que temos, que possuímos vida, os fatos são ressubjetivados, reescritos e reorganizados de acordo
como próprio, e dá-lo ao outro que por sua vez assim pode tê-lo, tomar com novas relações estabelecidas com outros seres humanos. A tem-
posse. Portanto, não podemos dar tempo. Mesmo assim, no cotidiano poralidade, para Freud, é caracterizada pela intersubjetividade (MAIA;
das relações amorosas, por exemplo, usa-se dizer da necessidade de “dar ANDRADE, 2010).
um tempo” ou de “pedir um tempo”, quando se quer pôr em suspensão Mas, retomemos a questão na forma de impossibilidade de defini-
a relação para decidir se realmente é o que se quer. ção do tempo. Coloquemos desta maneira: o tempo não é; há tempo.
Isso nos leva a outras impossibilidades da nossa relação com o Eis aí um símile com a proposição heideggeriana de que o ser não é. Há
tempo. O que queremos dizer com a ideia de estar sem tempo? Não pode- ser. Até no anonimato do ser, quando se dá o esvanecimento dos sen-
mos estar sem tempo, pois o tempo nos define, como bem o demons- dos (entes), “Il y a”, diria Lévinas (1998). A experiência da insônia nos
trou Heidegger. De outra feita não podemos perder tempo ou encontrar mostra isso de forma peremptória – não se escolhe a vigília, se é vítima
tempo. O tempo não é algo que se perca ou que se ache. Nele fazemos dela. Em síntese, o ser se dá. O tempo se dá. Isso diz respeito à forma
coisas ou deixamos de fazê-las para fazer outras. Também não podemos como Derrida (1991) nos convida a pensar o tempo e o ser na dimensão
ganhar tempo. Podemos fazer algo no lugar de outra coisa. Podemos do dar; e, ao revés, pensar o dar nas dimensões do tempo e do ser. Ele
“queimar etapas”, mas mesmo assim não ganhamos tempo. chega a nos provocar com a ideia de que o tempo não é temporal, pois
Da mesma forma, não há como tomar o tempo de alguém. Ele está ele não é nada, não é uma coisa. O dom, repitamos, não pode dar tempo.
no tempo tanto quanto eu, logo não posso tirar dele o que ele não tem. Se A própria expressão ‘dar tempo’ visa não ao tempo, mas ao temporal.
isto fosse possível, então o tempo seria para si mesmo e não para o outro.

228 229
o tempo que vem do outro como algo idêntico através do devir mutável, diz em Da existência ao
existente (LÉVINAS, 1998). Mas, para Lévinas, a alteridade absoluta do
Para além da esteira do pensamento fenomenológico, em Husserl e outro instante só pode vir de outrem, ou seja, “A dialética do tempo é a
Heidegger, Emmanuel Lévinas [1906-1995] nos traz uma compreen- própria dialética da relação com outrem” (LÉVINAS, 1998, p. 111).
são do tempo marcada pela ideia de alteridade radicalizada. Agora nos Em primeiro lugar, é o Outro que nos coloca no tempo. No tempo
demoraremos um pouco mais nesta perspectiva, eleita para abordar as futuro, para além da própria morte. Trata-se de responsabilizar-se por
questões deste trabalho. A leitura de Lévinas (1988, 1998) nos convoca a Outrem, a partir de um passado imemorial – que para nós nunca foi
pensar a estrutura da subjetividade como responsabilidade irrevogável presente – e da diacronia do futuro, para além do por-vir, diz Lévinas
por outrem. Tal responsabilidade se desdobraria em responsabilidade no ensaio “Do uno ao outro, transcendência e tempo”, de 1983 (LÉVINAS,
por tudo e por todos, mais do que em todos os outros, e na qual não 1997). Estamos falando de uma responsabilidade ética que é anterior a
podemos ser substituídos por ninguém. O outro nos convoca a assisti qualquer passado que tenha sido presente algum dia. Surge a “signifi-
-lo. O outro nos exige reconhecimento. O outro nos intima à bondade. cância ética (...) de um passado que me concerne (...) fora de toda remi-
O outro nos obriga a responder-lhe. O outro nos toma por refém, em niscência, de toda re-tenção”, para o Lévinas de “Diacronia e representa-
última análise. Ser, já é ser pelo e para o outro, antes mesmo de qualquer ção”, de 1985 (LÉVINAS, 1997, p. 219-20), ou seja, diacronia de um passado
liberdade e de qualquer escolha. Essa diaconia implica já a assimetria de que não se deixa representar nem rememorar.
mim ao outro, onde este fala de uma altura ética intransponível. Além O tempo é, portanto, fruto da relação face a face e não se dá a partir
do quê, o outro chega de outro tempo – do imemorial, do nunca pre- de um eu ensimesmado (HUTCHENS, 2009). O sincrônico (simultâneo)
sente – que nunca viveremos de forma sincrônica, e nos lança no futuro da experiência presente do eu dá lugar ao diacrônico (que ocorre e se
das possibilidades. Nunes nos esclarece: desenvolve no tempo) de um passado que nunca experimentamos, mas
... Lévinas propõe-nos uma concepção do tempo como essencialmente que baseia nossa consciência histórica, e este, por sua vez, cede ao ana-
passado e futuro, e onde o presente não é mais do que um ponto de pas- crônico (fora do tempo) da relação com o ele do outro – com os ainda
sagem, em contraposição a certas teorias que consideram a temporaliza- não nascidos e com os já mortos.
ção como um “eterno presente” ou como um eterno separado do tempo.
(NUNES, 1993, p. 101) Em “Totalidade e Infinito”, publicado em 1961, Lévinas (1988) prin-
cipia a discussão do tempo a partir das ideias de separação (mim-Outro)
Retornamos agora à questão do tempo. Cheguemos a um acordo: e de substituição (de mim ao Outro): “Um ser ao mesmo tempo inde-
há tempo. A partir disso queremos caminhar na direção de Lévinas e de pendente do outro e, no entanto, à sua disposição é um ser temporal:
sua ética radical, no intuito de esclarecer aí a questão do tempo. Ainda à violência inevitável da morte ele opõe o seu tempo que é o próprio
há tempo. Isso nos relembra a analítica do Dasein de Heidegger – no adiamento” (p. 202). Indo mais fundo ele nos diz que é o tempo que dá
ser-para-a-morte –, o ainda-não pode significar que ainda temos (somos sentido à noção de liberdade finita, e não o contrário, e que o que nos
no) tempo. Em Lévinas temos o ser-para-além-da-minha-morte e o caracteriza como existência mortal é o ser contra a morte no ainda não
ser-com-o-outro-em-sua-morte. No primeiro caso, estou para além da de uma liberdade do adiamento.
morte na obra, na criação, na paternidade e na fecundidade. No segundo O ainda não morrer ou, em outras palavras, o ainda ter (ser no)
caso, estou com o outro em sua morte, assistindo-o, não o deixando só tempo, eis o que caracteriza nossa liberdade. Diz Lévinas: “O adiamento
na hora da morte. Voltaremos a tais ideias um pouco mais adiante. da morte numa vontade mortal – o tempo – é o modo de existência e
Na temporalidade levinasiana o presente concerne ao ‘eu’, à identi- a realidade de um ser separado, que entrou em relação com Outrem”
dade do eu na qualidade de retorno a si mesmo. O eu tenta manter-se (1988, p. 210). Mas como em Lévinas a minha própria morte não é

230 231
importante, e sim a morte do outro, tenho tempo para assisti-lo em sua de seus autores, que em vida muitas vezes foram desacreditados, como
morte. Eis que a iminência da morte pressiona e dá tempo: “ser tempo- Vincent van Gogh. Ironicamente, uma dessas grandes obras na litera-
ral é ser ao mesmo tempo para a morte e ter ainda tempo, ser contra a tura é À La Recherche Du Temps Perdu (Em busca do tempo perdido),
morte” (LÉVINAS, 1988, p. 213). de Marcel Proust, a que já nos referimos anteriormente. Em Proust, as
Lévinas nos leva assim à ideia de futurição. Aquilo que, numa pers- temporalidades se cruzam na trama do romance e na urdidura de sua
pectiva leibniziana, é determinação dos acontecimentos futuros ou, construção (FREIRE, 2001).
melhor dizendo, orientação para o futuro, aqui se trata de liberdade Tendo feito esta caminhada com Lévinas e alguns outros, dentre
embora finita. Reside no futuro a liberdade humana, para Lévinas, pois muitos pensadores do tempo, podemos agora voltar nossa escuta para
ser consciente é ter tempo para antecipar-se à própria queda e respon- questões mais psicológicas. Para isso, partimos da visada ética de uma
sabilizar-se por outrem. “Eis, em outrem, diz Lévinas em Diacronia e temporalização que se dá pelo outro e que nos coloca na condição de
representação, de 1985 (LÉVINAS, 1997, p. 223), um sentido e uma obri- ainda termos (sermos no) tempo.
gação que me obrigam para além da minha morte! Sentido original do
futuro! Futurição de um futuro que não me chega como por-vir (...) a ainda ter (ser no) tempo para o outro
mas como ‘queda de Deus sob o sentido’”. Podemos aproximar a ideia
de Deus, aqui, à de Infinito, que me chega pelo Rosto (manifestação/ O outro me lança no tempo da existência, esta desde já consistindo em
epifania) de outrem. Votando-se à alteridade, na responsabilidade pelo ser-para-fora (existere) e, por ilação, ser para outrem. Nesse tempo que
outro homem, dá-se o tempo. chega do futuro, enquanto possibilidade, abertura e projeto, o outro me
Mas o tempo também pode ser prolongado no Outro. No filho, por demanda e eu lhe respondo. Apesar da minha finitude, na iminência da
exemplo. A paternidade/maternidade faz do filho a obra que se prolonga morte, o outro nada obstante me dispõe ao ainda não, ao adiamento,
para além da morte de seu autor – o pai/a mãe, numa espécie de perdão ao ainda ter (ser no) tempo para responder-lhe. A solicitação do outro
do tempo (LÉVINAS, 1988). Aparece aí um tempo sempre recomeçado, me coloca no tempo, aliás, no ainda ter (ser no) tempo. O pai ainda
um ser infinito que se produz como tempo, mas tempo descontínuo. ter tempo para ver o filho crescer e ter seus filhos. O amante ainda ter
Lévinas (1988) nos aponta: “Morte e ressurreição constituem o tempo. tempo para amar. O professor ainda ter tempo para professar aos seus
Mas tal estrutura formal supõe a relação de Mim a Outrem e, na sua alunos. O médico ainda ter tempo para assistir o doente. O caminhante
base, a fecundidade através do descontínuo que constitui o tempo” (p. ainda ter tempo para seguir o caminho.
264). Ou seja, pela fecundidade nos postergamos nos filhos numa infi- Sem o outro não há sentido no tempo. Tempo para que(m)? Se não
nidade que supera a morte em novos renascimentos. Daí ser absurda- há possibilidade de encontro, para que o tempo? Na verdade, para Lévi-
mente inaceitável a um pai a morte de um filho – não é apenas antinatu- nas, sem o outro, sequer há tempo. Estar vivo é ainda ter (ser no) tempo.
ral, é antitemporal no sentido em que o futuro esboroa-se no presente da Tempo para o outro. Tempo para ser afetado por ele, mas também tempo
morte precoce ou intempestiva. Isso representa ainda o fim do pai – já para responder-lhe. Se o que estrutura a subjetividade é a responsabili-
não se é mais o pai deste filho. dade de ser pelo e para o outro, segundo Lévinas, então ainda ter tempo
Podemos pensar, também, na obra que conduz o autor para outro é ter (ser no) tempo para outrem. Tempo para escutá-lo, tempo para
tempo, na postergação, na procrastinação. Para o tempo do outro, dispor-lhe, tempo para assistir-lhe, tempo para me substituir a ele.
daquele que a fruirá após o desaparecimento do seu autor. Pensemos O psicólogo, especialmente em sua prática clínica, é convocado a
aqui nos mais belos exemplos das diversas manifestações artísticas. assistir o outro em seu sofrimento. Uma visada levinasiana nos intimaria
Várias das grandes obras de arte tornaram-se admiradas após a morte a pensar na hipótese de sofrer pelo sofrimento do outro (FREIRE, 2003),

232 233
o que nos aproxima da ideia de escuta, mas também da atitude presente Dussel já operou nesta vinculação. Sua Filosofia da Libertação tem, com
na compreensão empática. Trata-se de dispor o tempo para o outro de efeito, inspiração levinasiana. Todavia, em Dussel o relacionamento
qualquer maneira. Ouvi-lo, não lhe ser indiferente; ser afetado e desa- face a face implica uma reciprocidade que se origina da proximidade,
lojado por ele. Embora haja o limite temporal da sessão psicoterápica não havendo ainda distância e o tempo se resume ao instante (DUSSEL,
ou analítica (e aí ainda se coloca a especificidade do tempo lógico laca- 1985). Há sincronia na coincidência do instante de proximidade entre
niano) ou o limite do tempo de vida do terapeuta/analista e do paciente, as pessoas, mas há também atemporalidade porque este tempo não é
afora isso o tempo para o outro é sem tempo. ainda datável, embora dele se iniciem as marcações temporais – idades e
Todavia, há que se pensar no movimento deste outro em direção épocas. Para Dussel (1985), a proximidade é a raiz da práxis e o ponto de
aos seus outros. O trabalho do psicólogo clínico, independentemente partida para toda a responsabilidade com o outro.
de abordagem ou área de atuação, coloca-nos a possibilidade de facilitar Mas como poderíamos aproximar essa discussão da que vimos tra-
a abertura em relação a outrem daqueles que nos demandam (FREIRE, vando até aqui? Em outras palavras, como a temporalidade se coloca na
2002; 2008). Isso implica, todavia, que aquele que nos procura se per- perspectiva da libertação humana do ponto de vista da transformação
mita dispor de seu tempo para outrem, responsabilizando-se por ele, social como obra?
ou seja, retomando sua estrutura subjetiva mesma. Para a Psicanálise Se tomamos a perspectiva levinasiana como uma filosofia social ou
freudiana, a presença do outro, seja ele quem for, permite a ressigni- da socialidade, podemos antever um possível tratamento dessa questão.
ficação dos fatos, uma reorganização mnêmica sobre o que aconteceu O outro levinasiano nos instiga a percebê-lo ora como o interlocutor
no passado, que não cessa. Ao mesmo tempo, o passado é presente no num face a face, ora como o próximo, ora como a humanidade inteira. A
Inconsciente, que segue outra lógica temporal, e sobre ele opera. Pode- ética sugerida por Lévinas, não obstante, nos fala de uma metafísica que
mos fazer uma aproximação com o cuidado levinasiano e o trabalho do irrompe no solo concreto das relações cotidianas, o que aparentemente
psicólogo na medida em que só é possível esta ressignificação pela via seria um contrassenso. Para Critchley (2006), em Lévinas, “a tarefa filo-
da intersubjetividade, com a presença do outro – no caso da clínica, o sófica (é) compreender o que nós podemos chamar de gramática moral
outro analista, que escuta. A escuta é o compromisso com o paciente, a da vida cotidiana, e experimentar e ensinar essa gramática” (p. 20).
despeito de qualquer julgamento e a despeito, inclusive, daquilo em que Entendemos, assim, que as relações sociais devem ser sustentadas
crê o analista. por uma base ética que, em Lévinas, implica a não indiferença para
Em suma, ter (ser) ainda (no) tempo é dispor do tempo para o com a diferença do outro. Desta forma, a ética da alteridade radical é
outro. Ser afetado por outrem nos coloca no tempo, no tempo que nos uma filosofia social, ou da socialidade, no sentido de campo de relações
resta, onde ainda podemos ser. O outro, assim, nos instiga a obrar, a intersubjetivas (das relações humanas de comunicação) (ABBAGNANO,
criar, a transcender. Dito de outra maneira, o ainda ter (ser no) tempo 2007). É nesse campo onde se colocam interesses de toda a ordem, mas,
nos coloca a exigência ética que vem do outro – de um passado imemo- para Lévinas, o outro não me interessa. A relação ética possível é a do
rial e, ao mesmo tempo, na futurição de um futuro – e que me obriga desinteresse: onde não há a mera troca entre os seres, mas dação que vai
um tempo para. Eis que ressurge a différance derridiana no adiamento, de mim ao outro e ensino que me vem do outro. Por conta desse tra-
na postergação, no diferimento do ainda ter (ser no) tempo. tamento ético rigoroso é que sobressaem as figuras de desamparo, que
Concentremo-nos um pouco na dimensão da obra. O obrar, como em Lévinas são a viúva, o órfão e o estrangeiro, mas que para nós bem
resposta ao outro, pode ser entendido aqui como busca de transforma- poderiam ser os excluídos de toda ordem. Nunes (1993) nos lembra que
ção social. Como poderíamos aproximar o pensamento levinasiano estes outros “São, na prática, os que sofrem hoje o ódio da violência, os
dessa dimensão eminentemente ético-política? Obviamente Henrique que não têm quem os defenda, os que não têm voz” (p. 130). Em Lévinas:

234 235
A proximidade de Outrem, a proximidade do próximo, é no ser um pado, como queria Lévinas. O outro nos precede no tempo. A ele sem-
momento inelutável da revelação, de uma presença absoluta (quer dizer pre chegamos em atraso.
livre de toda relação) que se exprime. A sua própria epifania consiste em
A hospitalidade aparece como exigência ética: oferecer ao mais
solicitar-nos pela sua miséria no rosto do Estrangeiro, da viúva ou do
órfão. (LÉVINAS, 1988, p. 64) estrangeiro, o melhor cômodo e a melhor comida. Diz Derrida, “o hos-
pedeiro torna-se hóspede do hóspede. O hóspede (guest) torna-se hos-
A Psicologia tem se aproximado cada vez mais dessa demanda pedeiro (host) do hospedeiro (host)” (DERRIDA, 2003, p. 109). Podemos
social, superando seu individualismo de base, iconizado na prática clí- dizer que acolher o outro em sua diferença é a base de uma ética do
nica privada. Esse movimento, exigido primeiramente pelo mercado – cuidado, isto de que muito se fala hodiernamente (FREIRE, 2008). Rece-
com a proletarização da classe média, a oferta ampliada de psicólogos, a ber bem em sua casa, acolher o usuário que procura o serviço ou cuidar
diminuição do prestígio social da psicoterapia, as novas tecnologias de de um paciente, são oportunidades de efetivar esta ética da socialidade
si e a variabilidade de formas de experiência subjetiva (FERREIRA NETO, que pressupõe a responsabilidade por outrem como estrutura mesma da
2004) –, fez guinar a prática profissional do psicólogo para o âmbito subjetividade, como vimos mais atrás.
de uma Psicologia da Saúde em sentido lato. Por via de consequência, Há tempo. Dizendo melhor: ainda há tempo. Tempo para quê? Para
a escuta do psicólogo é exigida cada vez mais por aqueles que, há bem o outro. Para escutá-lo em sua exigência ética: ter de responder-lhe. Res-
pouco tempo, não teriam muita chance de contar com o trabalho deste ponsabilizar-se por ele e substituí-lo na responsabilidade. Essas são exi-
profissional especializado. A Psicologia Social, por seu turno, deixa a gências bastante rigorosas que a ética de que nos fala Lévinas nos impõe.
assepsia da academia, onde se mantinha basicamente como área de Cuidar do outro não como se fôssemos ele, nem porque ele é como nós,
investigação, para vir a propor modelos de intervenção social cada vez mas porque ele é absolutamente diferente. Não podemos nos identificar
mais vinculados à realidade social e às demandas comunitárias. com ele. Nem podemos fazê-lo parecer conosco. A diferença continuará
Para nós, a Psicologia lida com a escuta. A escuta do outro em seu gerando diferenças (différance). Não sermos indiferentes com a dife-
sofrimento psíquico. Para isto há que se dispor o tempo para outrem. rença do outro, eis o imperativo ético que se coloca para todos nós, em
Mas mesmo que este outro não seja um único indivíduo que esteja num especial para aqueles que trabalham com a escuta do sofrimento alheio
face a face com o profissional psicólogo, mesmo que seja um grupo ou – sofrendo pelo sofrimento do outro (FREIRE, 2003) –, numa sociedade
a comunidade como coletivo de pessoas, ele não é uma abstração. Por que prima em dispor as diferenças como patologias, sejam elas corrigí-
isso, embora sendo uma filosofia, a ética levinasiana nos instiga a uma veis ou toleráveis.
relação concreta. O compromisso ético-político, então, dá-se “nos atos
cotidianos e quase banais de civilidade, hospitalidade, gentileza e corte- referências bibliográficas
sia” (CRITCHLEY, 2006, p. 19-20).
Je vous en prie, diz-se em francês. Ou après vous, Monsieur. “Por ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
obséquio”; “Primeiro, o senhor”. Estas formas de tratamento indicam
AGOSTINHO, S. Confissões de magistro (do mestre). Col. Os Pensadores. 2a. ed.
a primazia do outro. Abrir a porta para o acompanhante, levantar-se
São Paulo: Abril Cultural, 1980.
quando alguém se aproxima de sua mesa, ceder a vez para aquele que
ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
tem mais pressa, estacionar o carro mais longe se chegou cedo em rela-
ARISTÓTELES. Física. Madrid: Editorial Gredos, 1995.
ção a outros, são gestos de polidez, quando autênticos, que recolocam
BERGSON, H. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Mar-
o outro em seu lugar: a primogenitura. O lugar que lhe teria sido usur-
tins Fontes, 2006.

236 237
CRITCHLEY, Simon. Introdução a Emmanuel Lévinas. In: Rafael Haddock-Lobo.
Da existência ao infinito: ensaios sobre Emmanuel Lévinas. São Paulo:
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DERRIDA, J. Donner les temps. 1. La fausse monnaie. Paris: Éditions Galilée, 1991.
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DUSSEL, Henrique. Philosophy of liberation. New York: Orbis Books, 1985.
FERREIRA NETO, João Leite. A formação do psicólogo: clínica, social e mercado.
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FREIRE, J. C. Criar para o tempo, Tempo para o criar, Para criar o tempo. Uma
revisitação da (ex) temporalidade na Recherche proustiana. Estudos de Psi-
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______. O lugar do outro na clínica psicológica. I Congresso Nacional Psicolo-
gia: Ciência e Profissão. São Paulo, setembro de 2002. envelhecer e morrer na contemporaneidade
______. Sofrer por outrem e não sofrer de si: uma escuta do sofrimento psíquico
por via da ética da alteridade radical. In: VI Conferência Internacional
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238
“Cada minuto de vida nunca é mais, é sempre
menos”: algumas inquietações sobre o
envelhecimento e a percepção do tempo
na hipermodernidade
Regina de Oliveira Santana

Tú mismo haces el tiempo. Tu reloj son tus sentidos.


angelus silesius

El tiempo nace en los ojos.


julio cortázar1

O título escolhido para este trabalho inspira-se num poema de Cassiano


Ricardo (2001). Seus versos, ouvidos ainda em minha adolescência, con-
duzem-me, até hoje, a inquietantes reflexões. Diz o poeta:
Diante de coisa tão doída
Conservemo-nos serenos.
Cada minuto de vida
Nunca é mais, é sempre menos.
Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser.
Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer.

1 Citações extraídas de BLANCK-CEREJIDO, Fanny; CEREJIDO, Marcelino. La vida, el tiempo


y la muerte. Distrito Federal: Secretaría de Educación Pública, 1991.

241
O incômodo justifica-se porque, atribuindo ao texto o nome Reló- controlar; a segunda diz respeito à constatação de que a “sentença de
gio, Cassiano Ricardo fala de duas temáticas de indiscutível importância morte” estava relacionada a um evento (a doença constatada como incu-
existencial: o tempo e a morte, conferindo à vida uma contagem regres- rável) e não ao quanto sua mãe havia vivido.
siva numa relação que pode ser resumida por quanto mais tempo, menos Outro elemento para reflexão ainda pode ser extraído da narrativa
vida, noção que, a meu ver, está presente no imaginário social contem- de Beauvoir: sua mãe, que não sabia estar com câncer em estágio avan-
porâneo do Ocidente. çado, desejava retomar sua vida. Experiência semelhante foi vivida pela
Em seu belíssimo livro Uma morte muito suave, Simone de Beau- escritora Susan Sontag e relatada por seu filho David Rieff em Swimming
voir (1990) narra a experiência da morte de sua mãe em decorrência de in a sea of death: a son’s memoir (2008). Apesar de conhecer a gravidade
um câncer. A filósofa aborda muitos aspectos relacionados à morte e ao da leucemia, Susan, aos 75 anos, agarrava-se à esperança de sobreviver
morrer, mas é uma parte de seu relato que recorto: sua mãe já estava bas- a este câncer como sobreviveu aos anteriores e mantinha planos para o
tante idosa e foi hospitalizada em decorrência de um acidente domés- que faria após sua recuperação. Para Susan e para a mãe de Beauvoir,
tico (o diagnóstico de câncer vem durante esta internação); ela, “no fim assim como para todo homem (numa visão generalizada), o tempo de
de contas, tinha a idade de morrer”, pensa Beauvoir (Ibid., p. 12). No vida parece sempre insuficiente.
entanto, no decorrer da hospitalização, todo o sofrimento vivenciado Aos relatos de Simone de Beauvoir e de David Rieff, acrescento
muda a percepção de sua mãe e dela própria. As divergências que exis- outro igualmente belo: Paul Auster, em A invenção do silêncio (2004),
tiam entre as duas são repensadas. A iminência da morte assume outro escreve sobre a morte então recente de seu pai, com quem sempre man-
significado a ponto de Beauvoir sofrer a cada toque de telefone que teve um difícil relacionamento. Tarefa árdua escrever conservando
pudesse trazer o anúncio que já não queria ouvir. Contrariando a leitura abertas feridas, considera o autor, mas ao mesmo tempo necessária para
da morte relatada no início de sua narrativa, traz, nas últimas linhas de resgatar e preservar a memória daquele pai que “não deixara vestígios”
seu livro, a seguinte reflexão: “Por que a morte de minha mãe me abalou (Ibid., p. 12). Resgatar sua história conduz Auster à seguinte constatação:
tão profundamente?” (BEAUVOIR, 1992, p. 102). E prossegue:
Se, enquanto estava vivo, eu andava sempre em busca dele, sempre ten-
“Ela estava na idade de morrer.” Tristeza dos velhos, seu exílio: a maioria tando encontrar o pai que não estava presente, agora que ele está morto
não pensa que, para eles, essa idade tenha soado. Também eu, e até a pro- ainda tenho a sensação de que devo continuar a sua procura. A morte não
pósito de minha mãe, utilizei esse chavão. [...] Se encontrava uma mulher mudou nada. A única diferença é que meu tempo se esgotou. (AUSTER, 2004,
de cinquenta anos abalada porque acabara de perder sua mãe, tomava-a p. 105, grifo meu)
por uma neurótica: somos todos mortais; aos oitenta anos já estamos sufi-
cientemente velhos para morrer... Da inquietante narrativa que faz, detenho-me, entretanto, em sua
Não, não se morre por ter nascido, nem por ter vivido, nem de velhice. fala, trazida nas primeiras linhas do livro, onde demonstra sua perplexi-
Morre-se de alguma coisa. Saber que minha mãe estava condenada por sua dade em face da inexorabilidade da morte.
idade a um fim próximo não atenuou, em absoluto, a surpresa horrível: ela
estava com um sarcoma. (Ibid., p. 105, grifo da autora) Num dia, há vida. Um homem, por exemplo, em perfeita saúde, nem
sequer é velho, sem nenhum histórico de doenças. Tudo é como era, e
A experiência de Beauvoir evidencia duas significativas leituras sempre será. [...] E então, de repente, acontece que há morte. Um homem
solta um pequeno suspiro, tomba da cadeira, e é a morte. O inesperado
sobre o morrer: a primeira decorre do pensamento vigente, presente no
da coisa não deixa espaço para nenhum pensamento, não dá nenhuma
imaginário social contemporâneo, de que envelhecimento é sinônimo chance para a mente procurar uma palavra capaz de consolar. Somos
de proximidade da morte, quando, por essência, o fim da vida se impõe deixados sem nada a não ser a morte, o fato irredutível de nossa própria
e revela a impotência do homem diante do que não pode prever nem imortalidade. (Ibid., p. 11, grifo meu)

242 243
O estranhamento do escritor diante da “morte sem aviso” refere-se, anterior”, e que, em vez de superados, se encontram hoje potencializa-
pois, à contingência deste evento. Seria mais compreensível, acrescenta, dos. Em sua concepção estamos longe de decretar o fim da modernidade,
quando se está velho ou gravemente doente, mas “[...] um homem mor- logo, não há que se falar em “pós”. Trata-se de período caracterizado pela
rer sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é noção de hiper (hiperconsumo, hiperpopulação, individualismo exa-
um homem, nos leva para tão perto da fronteira invisível entre a vida e a cerbado, etc.), onde os avanços tecnológicos se dão em uma agilidade
morte que não sabemos mais de que lado estamos” (Ibid., p. 11). impensada, tendo por consequência a aceleração do tempo e a profunda
Ainda que conceba o viver e o morrer como aspectos de seu desen- alteração da percepção de espaço.
volvimento, a morte representa para o homem uma ruptura, um evento Olgária Matos (2006, p. 85) analisa o desencantamento decorrente
que chega em hora não anunciada, interrompendo seu projeto de vida. deste cenário, recorrendo ao pensamento de Theodor Adorno e lem-
O poeta Mário Quintana traduz muito bem este sentimento ao dizer bra que se trata de um tempo em que “[...] é preciso agir sempre com
que a morte “[...] sempre chega pontualmente na hora incerta [...]”.2 Há presteza e se apressar [...]”, sintoma, a meu ver, do culto à velocidade,
coisas a fazer, projetos que precisam ser concluídos, percepção possivel- onde a pressa se instaura e é concebida cada vez mais como virtude. A
mente relacionada ao desejo de imortalidade, o mais ambicioso inscrito filósofa prossegue: “E quanto mais tecnologia o homem produz, menos
no imaginário social contemporâneo. tempo tem.” Todas as facilidades proporcionadas pelos recursos da téc-
Pensar, ainda que remotamente, a possibilidade de tornar-se imor- nica transformaram o homem contemporâneo no ser sem tempo, como
tal enquanto alcançável, confere à morte um caráter antinatural. Este é, observou Sergio Pripas em Cronos ensandecido (2009).4 É, pois, o tempo
entretanto, um anúncio declarado de algo que já vem acontecendo nas que falta, que se tornou valioso, moeda (time is money) e, por conse-
últimas décadas: as aceleradas, surpreendentes e, muitas vezes, impensá- quência, produto; é o tempo tratado com o vocabulário da economia –
veis descobertas das ciências, que vêm permitindo ao homem viver cada ganhar, perder, poupar, economizar 5 – e objeto do marketing de supostos
vez mais, hoje já levam a ser considerada a possibilidade de conferir-lhe especialistas que prometem nos ensinar a administrá-lo e controlá-lo.
a imortalidade.3 Trata-se de um cenário tipicamente hipermoderno em Outra constatação de Lipovetsky (2005), que é importante refe-
que a supremacia da técnica coloca o indivíduo diante de novas e urgen- rência para a análise da temática que proponho, diz respeito à consa-
tes questões, fazendo imprescindível avaliar cautelosamente e refletir de gração do presente, com o predomínio do que se refere ao aqui-agora,
forma crítica sobre tudo o que vem sendo proporcionado. em detrimento do passado e do futuro, e que tem por consequência
Hipermodernidade é o termo usado por Gilles Lipovetsky (2005) uma urgência dos prazeres e do bem-estar. Levado a viver ao extremo
para referir-se ao momento histórico atual. A opção por empregá-lo o presente e diante de um cenário de crescente individualização acom-
justifica-se por considerar sua análise mais adequada para definir a panhada do enfraquecimento das instâncias sociais, o homem hiper-
contemporaneidade. Para Lipovetsky, a atualidade está alicerçada em
três axiomas essencialmente modernos: o mercado, a eficiência técnica 4 Para ilustrar este tempo devorador, Sergio Pripas traz em seu artigo a obra Saturno devo-
rando a un hijo do espanhol F. Goya e Lucientes (Data: 1820-1823), exposta no Museu
e o indivíduo, elementos constitutivos do que denomina “modernidade do Prado, Madrid, Espanha. Disponível em: < http://www.museodelprado.es/coleccion/
galeria-on-line/galeria-on-line/obra/saturno-devorando-a-un-hijo/>. Acesso em: 27
2 QUINTANA, M. Poema da gare de Astapovo. In.: CARVALHAL, Tânia Franco (org.). Mario mai. 2011.
Quintana: Poesia completa em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 438-439. 5 Ver: NÃO PERCA seu tempo. Época, São Paulo: Editora Globo, ed. 660, jan. 2011 e TEMPO
3 A edição da revista Superintessante de fevereiro/10 traz na capa a imagem de um menino – Como controlar o seu. Superinteressante, São Paulo: Editora Abril, ed. 285, dez. 2010.
e o título da matéria principal: Ele pode ser imortal, fazendo uma alusão às recentes des- É, em minha concepção, fundamental estarmos atentos a publicações não acadêmicas ao
cobertas da ciência e a pesquisas promissoras que podem fazer com que, em alguns anos, analisarmos temáticas contemporâneas, tendo em vista a abrangência de seu público de
alcancemos a imortalidade. Ver: ELE pode ser imortal. Superinteressante, São Paulo: Edi- consumo e o fato de que, por serem essencialmente comerciais, a abordagem de temas
tora Abril, fev. 2010. como a morte, por exemplo, se dá em consonância com a expectativa de seus leitores.

244 245
moderno é, paralelamente, “deixado a si mesmo” e “[...] se vê privado hoje já se fala em 73 anos.6 Logo, um século atrás, para um homem de
dos esquemas sociais estruturantes que o dotavam de forças interio- 30 anos a morte era uma possibilidade muito mais próxima que nos dias
res que lhe possibilitavam fazer frente às desventuras da existência” atuais. É fácil constatar que têm sido cada vez mais recorrentes aborda-
(LIPOVETSKY, 2005, p. 84). gens sobre as buscas incessantes das ciências (destacando-se a biologia,
Com isso, o indivíduo é regido paradoxalmente pela busca da a medicina, a química, a nanotecnologia e as neurociências) que, hoje
felicidade e por um mal-estar existencial decorrente de todo conheci- unindo seus recursos, visam atender a esse desejo de longevidade. Uma
mento e informação que a tecnologia lhe proporciona e transita entre a das consequências que demanda atenção é que, cada vez mais, todas as
“liberdade” e a responsabilidade por suas escolhas. A morte não escapa promessas (algumas delas cumpridas) parecem intensificar a percepção
a esta lógica: no que diz respeito à própria existência, como viver inten- do fim da vida como absurdo, como transgressão.
samente nos padrões sugeridos por uma sociedade consumista e regu- A compreensão deste cenário torna necessária a análise da configu-
lar-se, como é recomendado a todo tempo, para alcançar a longevidade? ração histórica da atual representação7 de morte, resultante, por sua vez,
No campo relacional, como lidar com o paradoxo de dedicar-se à dor do de significativa mudança decorrente do projeto de modernidade: a ins-
outro num mundo em que é crescente a busca do prazer, da produção e tauração do interdito que tornou a morte o grande tabu da atualidade.
da informação instantânea? O homem é, na contemporaneidade, impe- Para seu entendimento, recorro à pesquisa feita por Phillipe Ariès (1988;
lido a todo o tempo ao dilema de transitar entre o indivíduo responsá- 2003), que identifica mudanças na atitude do homem perante o morrer.
vel e o irresponsável, a que se referem Sébastien Charles e Lipovetsky Segundo Ariès havia, na Idade Média, uma familiaridade com a
(2005), e a render-se ao apelo de viver o presente. morte, “proximidade” esta que se traduz por um conjunto de práticas
Para pensar a relação do homem hipermoderno com o que tem sido sociais que permitiam, por exemplo, a quem estivesse morrendo organi-
proporcionado pelos avanços tecnológicos, recorro a Hanna Arendt zar sua cerimônia de despedida. 8 A primeira mudança nesta atitude de
(2009) que, ao analisar a “conquista” do espaço, propôs uma compreen- familiaridade ocorreu na segunda metade da Idade Média (séculos XI/
são que transcendia o fato histórico-científico em si, demonstrando que XII), quando a concepção de destinação presente no imaginário social
se instaurava um marco para o pensamento filosófico sintetizado por deixa de ser uma “lei” aceita como os demais fatos naturais e passa a ter
ela como a necessidade de “refletir sobre o que estamos fazendo”, onde significado para o indivíduo com o surgimento da noção de biografia,
coloca em foco a importância do pensamento ético. Sua avaliação per- a partir da representação do juízo final. Avaliada no momento de sua
manece atual (considere-se que A condição humana foi publicada nos morte, a vida de cada homem assume grande relevância. A sepultura
anos 1950) e surpreende pelo caráter antecipatório das consequências de individualizada com inscrição que possibilitava identificar aquele que
alguns dos resultados alcançados pelas ciências na atualidade. morreu é um dos indicadores de mudança na importância da vida de
É para a construção deste contexto que chamo a atenção. Embora
não seja uma atitude recente, uma vez que os cidadãos gregos já demons- 6 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/pdf/29092003esta-
tisticasecxx.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2011.
travam intenção de se tornarem imortais por suas produções (Ibid., p. 7 Emprego o termo representação em referência ao que contém a semelhança daquilo que é
27), o ideário de imortalidade vem sendo reforçado pelas descobertas representado. Ver: ABAGGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fon-
científicas coroadas com o significativo aumento na expectativa de vida, tes, 5ª ed., 2007, p. 1007.
8 Em A solidão dos moribundos seguido de “Envelhecer e morrer” (2001), Norbert Elias
evento que relaciono ao distanciamento da morte no imaginário social defende que Ariès se baseia na opinião preconcebida e romântica de que antigamente as
contemporâneo. Para tanto, basta lembrar que, conforme dados do Ins- pessoas morriam serenas e calmas, e, só no presente, esta imagem se inverte. Elias con-
corda com os aspectos familiares da morte, mas discorda que tenha sido sempre pacífica.
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um brasileiro vivia em Reconhece, entretanto, que a atitude do homem perante a morte mudou ao longo do
média 33 anos nos anos 1910, passando a 52 anos na década de 1960 e tempo.

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cada homem para si mesmo e para o outro. Outro fenômeno relevante dramentos absurdos que possa suscitar, desprezando o caráter funcional
para a construção da representação contemporânea de morte é a exten- do organismo10 e buscando o corpo-máquina perfeito.
são do sentimento de família (até então comum à burguesia) às demais O advento da medicalização, para Peter Conrad (2007, p. 4), como
classes sociais, ocorrida a partir do século XVIII (ARIÈS, 1981). A dor pela “[...] descreve um processo em que problemas não médicos tornam-se
morte do outro assume diferente sentido e, ao mesmo tempo, os rituais definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de
e práticas vigentes possibilitavam que se cumprisse o luto. 9 doenças e distúrbios.” (tradução livre) As ações não se restringem, entre-
A partir do século XIX, a exacerbação do individualismo e as trans- tanto, à suposta doença instaurada e estendem-se ao risco (CONRAD,
formações nas relações da família, responsáveis inicialmente pela inten- 2007, p. 151) – de tornar-se hipertenso ou diabético, por exemplo, com
sificação da dor diante da perda do ente querido e também pela dificul- indicadores que permitam seu monitoramento. A atenção ao potencial
dade de abordar o morrer, culminaram na instauração da morte como adoecimento tem como consequência observável a recente redução de
tabu, para Phillipe Ariès (2003), ou na intensificação de seu recalca- algumas taxas limítrofes, antes consideradas aceitáveis e fora de risco,
mento, para Norbert Elias (2001). A este distanciamento da morte alia-se como o nível de glicose no sangue ou a pressão arterial.
outro elemento característico da modernidade: a supremacia da técnica. Conrad aprofunda ainda mais seu olhar e, assim como Charles
Os recursos tecnológicos tornam o hospital o lugar de morrer, onde se Rosenberg (2006), defende que a medicalização cumpre papel social
instaura o controle sobre a vida (e morte), cujo poder passa a estar nas atendendo a demandas de diferentes instâncias da sociedade, incluindo
mãos da Medicina. Analisada por Michel Foucault (1982), a medicaliza- às do próprio indivíduo – análise com a qual concordo e entendo que
ção traz como importante consequência esta transferência da morte de deva ser cada vez mais discutida, em função da amplitude que a medica-
casa para o hospital; nele, o fim da vida de um homem é apenas mais um lização tem assumido. Medicalizar(-se) passa a ser um recurso utilizado,
dentre tantos outros que ocorrem. dentre outras possibilidades, para ganho mercadológico, para controle
O hospital não é, entretanto, a única instituição legitimada pela téc- social ou para se tornar parte de um grupo, a partir de uma identidade
nica: os asilos assumem igualmente o papel de lugar de cuidado, man- social conferida ao indivíduo, mesmo que por meio de uma doença por
tendo velada a condição de exílio dos que envelhecem. Neste cenário, vezes questionável. Em última instância, trata-se da individualização de
retomando Elias (2001), o distanciamento (físico ou simbólico), antes problemas sociais (CONRAD, 1975, p. 19; 2007, p. 152).
imposto aos “moribundos”, transfere-se a todos os que se acercam da O envelhecimento também não escapa à medicalização, esten-
morte como pessoas com doença sem possibilidade de cura e, por exten- dendo-se, na hipermodernidade, por diversificados recursos que carre-
são, os enlutados e os idosos, tornando suas experiências muitas vezes gam o propósito sedutor de prolongar a vida do homem. Peter Conrad
solitárias. (2007, p. 120) cita pesquisas que demonstram o crescimento da jurisdi-
A medicalização da morte é, antes de tudo, consequência da medica- ção médica sobre o processo de envelhecer que vai desde os menores
lização da vida, e esta, por sua vez, em parte, fruto da concepção de que déficits de memória até, como já citado, a morte. Um exemplo recente
cabe à técnica suprir a “insuficiência biológica” do homem, empreendi- desta constatação é uma publicação da revista Galileu, cuja capa traz
mento que requer reflexão pela amplitude que passa a ter e pelos enqua- o título A cura do envelhecimento (2011). A referida matéria, embora
mencione brevemente as consequências sociais do prolongamento da
vida, em sua maior parte dá ênfase a diversos estudos em andamento
9 O significado que a vida de cada homem passa a ter (para si e para o outro), mesmo
após seu término, foi capturado pela lógica de mercado hipermoderna, transformando
a morte em mercadoria, hoje com oferta de variados produtos e serviços. Ver: <http:// 10 Para o aprofundamento desta temática, ver: CANGUILHEM, G. O normal e o patológico.
funexpo.com.br/blog/>. Acesso em: 2 jun. 2011. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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que buscam meios de fazer o homem viver mais e, o que é mais tenta- reno fértil. Ao mesmo tempo, as promessas hipermodernas contribuem
dor, com aparência jovem, ou mesmo tornar-se imortal. O termo cura para fortalecer esta noção presente no imaginário. O conhecimento cada
empregado no título, embora tenha sua origem relacionada a cuidado, é vez mais aprofundado dos processos naturais permite que o homem crie
mais frequentemente utilizado, nos dias atuais, em referência à doença, a ilusão de que são controláveis. Torna-se frenética a procura pela ali-
à eliminação de uma patologia. Sua escolha é, no mínimo, curiosa e, a mentação correta, o tratamento perfeito, o controle dos indicadores de
meu ver, sintomática. risco, os exercícios adequados que possam contribuir para o prolonga-
Não se trata, em absoluto, de não reconhecer ou desvalorizar os mento da vida. A proposta de longevidade, por sua vez, vem associada,
resultados obtidos a partir das pesquisas das ciências. No entanto, não como já dito, a outro desejo: a juventude. Assim, não basta viver muito,
se pode deixar de ter a clareza de que encontrar alternativas que pos- é necessário manter-se jovem, com toda a potência e vitalidade que esta
sibilitem melhorar a condição de vida não é absolutamente o mesmo fase representa.12
que profetizar a imortalidade. Em tempos hipermodernos, um exercício As encantadoras promessas de imortalidade e de juventude eterna,
de reflexão como este talvez esteja mais próximo que se imagina de ser além de alimentarem a percepção da morte como evento distante, con-
necessário, uma vez que é cada vez mais presente a intenção do homem tribuem potencialmente, em minha concepção, para uma recente cons-
de controlar e dominar a natureza, tornando-se senhor da vida.11 trução da noção de envelhecimento como transgressão, assim como já
A argumentação de Nilda Teves (1992) auxilia a compreender a ocorre com a morte. Arrisco-me a dizer que, com tantos recursos técni-
relação entre estes fatos sociais e o desejo do homem de tornar-se imor- cos, envelhecer hoje também já começa a soar como antinatural. Paira
tal. Para a autora, realidade e imaginário sociais somente podem ser a sensação de que, se a passagem do tempo imprime fortes marcas em
compreendidos pela ligação que estabelecem entre si. Assim, entender seu corpo e “mente”, certamente o indivíduo não aproveitou da melhor
a realidade social pressupõe o conhecimento do imaginário, enquanto forma todos os aparatos que se encontram disponíveis.
representações, sentidos e significados presentes nos grupos sociais. Uma consequência imediata é a negação das perdas que fazem parte
Paralelamente, cabe atentar para a noção de que uma atitude ou forma da existência. A definição de perda enquanto qualquer dano aos recur-
de pensar, por exemplo, só se concretiza quando sua proposta vai de sos pessoais, materiais ou simbólicos com que estabelecemos vínculo
encontro ao imaginário social. emocional, a torna um evento inerente à vida (VIORST, 2003). Ocorre
De fato, as utopias do homem como demiurgo e da imortalidade, que, na hipermodernidade, o homem foge da frustração de perder e
parte do imaginário humano desde a antiguidade, são motivadoras das de toda forma de sofrimento (VERGELY, 2000). Talvez um dos sinais
descobertas científicas ao mesmo tempo em que vêm sendo intensifica- em maior evidência seja o aumento crescente do número de cirurgias
das por elas. A busca de recursos que possibilitem a imortalidade é, por- estéticas, com recursos cada vez mais sedutores proporcionados pelas
tanto, a tentativa de realização de um desejo utópico que encontra ter- novas técnicas, onde se busca a forma ideal e, principalmente, assegu-
rar o adiamento dos sinais da passagem do tempo. Aliada ao ideário de
11 Em conferência realizada no Rio de Janeiro (2008), Jean-Pierre Dupuy alerta para os imortalidade, a dificuldade de conviver com as perdas (e, neste ponto,
desdobramentos de projetos com o propósito de buscar a imortalidade, como a ousada
proposta da nanotecnologia, com a perspectiva de, associada a outras ciências, construir não me refiro apenas àquelas relacionadas ao corpo) possibilita que a
uma reprodução da mente humana e, sob certo aspecto, imortalizar o homem (ainda que velhice, cada vez mais, seja medicalizada.
não esteja muito clara esta concepção de imortalidade). Fonte: DUPUY, Jean-Pierre. A
fabricação do homem e da natureza. In: CICLO DE CONFERÊNCIAS MUTAÇÕES: A CONDI-
ÇÃO HUMANA. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura – Programa Cultura e Pensamento. 12 O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (publicado em 1891), nos proporciona aquela
Conferência realizada em 3 set. 2008. Ver também: DUPUY, Jean-Pierre; NOVAES, Adauto que é, na literatura, em minha opinião, a mais intensa demonstração desta reverência à
(org.). O transumanismo e a obsolescência do homem. A condição humana: as aventuras juventude. A história tem como protagonista o belo Dorian Gray que tem atendido seu
do homem em tempos de mutações. São Paulo: Agir Editora. 2009, p. 89-121. desejo de permanecer sempre jovem.

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Cabe ainda mencionar as alterações promovidas pelos recursos da mentos, por exemplo. Talvez o mais perverso no culto da performance
técnica no campo das relações sociais. Para tanto, basta observar que, nas seja a exigência de um desempenho que não considera as desigualdades
famílias, vem-se tornando comum o distanciamento entre seus mem- e idiossincrasias inerentes aos seres humanos.14
bros, potencializado, muitas vezes, pelo aumento do número de equi- Mas ainda não é tudo: o homem contemporâneo aprendeu tam-
pamentos tecnológicos que possibilita que cada um tenha sua televisão, bém com a modernidade a acatar (às vezes cegamente) o novo como
seu computador, etc. Com isso, eventos antes compartilhados, como representante do progresso e desqualificar o antigo. A rapidez com que
assistir a programas junto aos que habitam a mesma casa, por exemplo, as mudanças tecnológicas acontecem, associada à questionável percep-
são hoje solitários. Mesmo a alimentação, tradicionalmente relacionada ção de dependência em relação aos recursos que a técnica proporciona,
à reunião (comer origina-se do latim comedere – com + edere – que sig- transfere aos mais jovens (que dominam menus de celulares, de equipa-
nifica comer em companhia de alguém13), sofreu radical mudança e hoje mentos eletrônicos e demonstram afinidade declaradamente maior com
é cada vez mais frequente em uma família que seus membros façam suas controles remotos) o papel daquele que sabe. Em síntese, partindo da lei-
refeições separadamente. Este isolamento, no entanto, tem um apelo tura feita por Bauman (2001) sobre o contexto histórico atual (a “moder-
muito atraente: cada um pode fazer o que deseja, na hora que quiser, sem nidade líquida”), a solidez das experiências adquiridas pelos mais velhos
precisar negociar com os pares e sem o risco de frustrar-se por não ter talvez esteja perdendo lugar para a fluidez do conhecimento dos mais
seu desejo atendido instantaneamente. Tais mudanças interferem inevi- jovens. A inserção numa sociedade em que prevalece a noção tempo-es-
tavelmente na capacidade de compartilhamento e não devem deixar de paço comprimido força o indivíduo a reconhecer valor nesses atributos:
ser tema de reflexão, como sustentam Jurandir Freire da Costa (2000) diante da escassez do tempo e da necessidade de encurtar o espaço, dedi-
e Zigmunt Bauman (2004), ao denunciarem a fragilidade das relações car-se a questões práticas, em detrimento das demais, parece assegurar a
contemporâneas. Prevalece o individualismo; perde o ser social. Os ido- sobrevivência. Não cabe aqui, e nem é esta minha proposta, hierarquizar
sos parecem ser vítimas imediatas deste cenário de culto à juventude e à formas de conhecer e lidar com o mundo; chamo a atenção, contudo,
velocidade, de individualização e de isolamento. para o fato de que não são excludentes e que sua versão fluida, mutante
E, ao pensar as possibilidades de realização na então denominada pode e deve conviver com o que comumente denominamos sabedoria,
terceira idade, não se pode esquecer que o projeto de modernidade ensi- resultante das experiências proporcionadas ao longo da vida.
nou a atribuir ao homem valor correspondente ao que ele produz. Esta Entretanto, é a concepção da morte como condição próxima de
condição exila muitos de nós e, em especial, a maior parte daqueles que quem envelhece que mais transforma o olhar sobre esta fase. No lugar
alcançam a velhice, pois não basta produzir, é necessário corresponder de ser percebida como acréscimo de possibilidades, quiçá um “presente
ao culto da performance, denunciado por Alain Ehrenberg (2010), que se da vida”, a velhice confere ao homem a ilusão de fim iminente. Enten-
traduz pela obrigação solitária de atender ao ideário contemporâneo de der este cenário pressupõe a análise de duas noções de relevância filo-
heroísmo e empreendedorismo, de “[...] encontrar para si próprio, e por sófica inquestionável: a morte, a partir de algumas perspectivas antes
si mesmo, um lugar e uma identidade sociais” (Ibid., p. 13), com conse-
quências inevitáveis como a depressão ou o aumento do uso de medica- 14 Cito a matéria ABC da atividade física exibida no programa Globo Repórter em 22.10.2010,
em que é mencionada uma pesquisa feita pela UNIFESP com 271 mulheres cujo resultado
demonstra que as mais ativas consomem menos medicamentos que as sedentárias. Cha-
13 Ver: LEITE, J. F. M.; JORDÃO, A. J. N. Dicionário latino vernáculo: etimologia, literatura, mou-me a atenção, entretanto, uma imagem que é repetida várias vezes no mesmo bloco
história, mitologia, geografia. Rio de Janeiro: Editora Lux, 1958, p. 95, 152. Sobre a etimo- do programa, onde uma das entrevistadas sobe e desce uma escada rapidamente numa
logia, consultar o artigo de Mario Eduardo Viaro, A importância do latim na atualidade. demonstração evidente de performance. Disponível em: <http://g1.globo.com/videos/
Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/MViaro018.pdf.>. Acesso em: 28 globo-reporter/v/globo-reporter-abc-da-atividade-fisica/1361462/> e <http://www.you-
jun. 2011. tube.com/watch?v=Xzx61IbA7-U>. Acesso em: 6 abr. 2011.

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abordadas neste texto, e o tempo, cuja percepção foi significativamente a morte de um filho antes da sua, como se o morrer se rendesse a esta
modificada desde o advento da modernidade, tornando-se acelerado, construção da temporalidade.
encurtado e insuficiente. É interessante refletir ainda sobre a leitura da velhice como uma
Em La vida, el tiempo y la muerte, Fanny Blanck-Cerejido e Mar- sentença de morte16 quando a apreensão da temporalidade e do fim da
celino Cerejido (1991, p. 114) dissertam sobre a relação entre a morte vida se converge em crise ainda no início da idade adulta e, o que é
e o tempo e defendem que a primeira é, para o homem (animal cons- mais inquietante, mesmo diante da finitude, enquanto evento impre-
ciente de sua finitude), delimitadora do tempo: “Nossa cultura inter- visível e inexorável. Pensar, portanto, a proximidade do morrer como
preta o mundo em termos de tempo e espaço. Uma vez inseridos nela, condição de quem envelhece constitui-se, a meu ver, como importante
com um tempo que flui do passado ao futuro, a experiência nos dirá dilema relacionado à percepção de passagem de tempo do homem
que este futuro contém nossa morte” (tradução livre). Os conceitos de hipermoderno.
irreversibilidade, duração e periodicidade estão implicados nesta lei-
tura de tempo linear. Assim, entre os 35 e 40 anos o homem ocidental perspectivas de um novo cenário
depara-se com a noção de morte pessoal e inevitável, junto à de tempo-
Venho do século passado
ralidade própria, que o levam a apreender a dimensão de sua finitude. 15
e trago comigo todas as idades.
Os autores acrescentam ainda que a concepção dos conceitos de morte e [...]
de tempo não é estática, tendo em vista que ambos sofrem alterações de Foi assim que cheguei a este livro
acordo com a fase da vida do homem, bem como ao longo da história. Sem referências a mencionar.
A apreensão das dimensões de morte pessoal e de temporalidade Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
própria, por sua vez, pressupõe “[...] um largo e complexo processo,
[...]
no qual a noção de morte se transforma de uma ideia abstrata em um Apenas a autenticidade da minha
problema pessoal” (JACQUES, 1965 apud BLANCK-CEREJIDO; CEREJIDO, poesia arrancada aos pedaços
1991, p. 119, tradução livre). Trata-se da constatação de que a vida terá do fundo da minha sensibilidade,
fim, evento de importância ímpar na experiência humana. Por conse- e este anseio:
procuro superar todos os dias
quência, o medo da morte surge sob a forma de medo do adoecimento
Minha própria personalidade
e da velhice. renovada,
A abordagem do tempo linear, que flui, remete à contagem regres- despedaçando dentro de mim
siva tematizada no poema de Cassiano Ricardo (do minuto de vida que tudo que é velho e morto.
“é sempre menos”) e que se justifica pelo fato do homem organizar sua cora coralina17
existência em termos de tempo a viver e não a partir do tempo transcor- Achille Weinberg reconhece a atualidade como a idade de ouro dos
rido desde seu nascimento (tempo vivido), logo, viver mais é abeirar- cabelos grisalhos. Em artigo publicado na Revista Sciences Humaines
se do morrer. Ao fazer parte do mundo, o homem ocidental é inserido com o título L’âge d’or des tempes grises (2008), cita estudos recentes que
nesta concepção de linearidade, tão presente que percebe como absurdo desconstroem a imagem mítica que se preserva do envelhecimento em

15 Este entendimento vai de encontro à análise feita por Gail Sheehy, em Passagens – crises 16 Ver NOVAES, Maria Helena. Psicologia da terceira idade. Rio de Janeiro: Editora Nau, 1997.
previsíveis da vida adulta (1989), onde a autora defende que entre os 35 e 45 anos vivemos 17 Cora Coralina, quem é você? Fonte: Associação Casa de Cora Coralina. Disponível em:
o que denomina Década fatal, período de crise, avaliação e possibilidade de mudança. <http://www.casadecoracoralina.com.br/poemas2.html>. Acesso em: 29 jun. 2011.

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tempos passados. Segundo o autor, no Ocidente, com exceção de alguns substituição de termos como velho, por senhor ou de idade; uma outra
grupos sociais (como entre gregos, romanos, chineses e algumas tribos perspectiva é compreender este cenário como um “processo de rejuve-
indígenas), o idoso era concebido como um fardo. Para demonstrar sua nescimento” da velhice. Sua leitura convoca à reflexão, uma vez que, em
tese, Weinberg recorre ainda ao primeiro dicionário da língua francesa tempos desorientados e incertos como os atuais,20 possivelmente não
de César Pierre Richelet (1680), onde são atribuídos à velhice significa- esteja muito clara a forma como venha a se concretizar tal rejuvenesci-
dos pejorativos e até mesmo a incapacidade de amizade.18 mento da terceira idade, mencionado por Weinberg. Faz-se necessário
Weinberg defende que, por todas as inegáveis conquistas (no considerar que, sem uma análise crítica, podemos estar a um passo de
tocante à qualidade de vida proporcionada e não somente por seu pro- recorrer a medidas “heroicas” e sucumbir às inúmeras e encantadoras
longamento), o homem vive hoje uma época sem precedentes para os ofertas do crescente mercado da busca pela juventude.
que envelhecem. Numa alusão ao já mencionado livro de Norbert Elias Certamente as ciências continuarão sua empreitada à procura de
A solidão dos moribundos, seguido de “Envelhecer e morrer” (2001), lem- recursos para o prolongamento da vida e para alcançar a imortalidade,
bra que, se a condição dos mais velhos hoje causa incômodo e tem-se em suas diferentes concepções. Não falta a esperança de que sejam estes
tornado tema de discussões, não é porque tenha se agravado, mas pos- esforços direcionados à melhoria da qualidade de vida, da mesma forma
sivelmente por uma maior sensibilidade à sua sorte. De fato, os últimos que permanece a convicção de que, num contexto guiado pelo capita-
dez anos destacaram-se pela criação de programas, projetos e dispo- lismo, nem sempre é este o norteador. Em nenhum outro momento de
sitivos legais (como o Plano de Ação Internacional de Madri sobre o sua história, o homem deparou-se com tão inusitadas, variadas e mutá-
Envelhecimento e o Programa de Envelhecimento da ONU, em âmbito veis questões éticas.
mundial, o Estatuto do Idoso – Lei 10.741, de 1/10/03 e o Observatório Diante deste cenário, quais então são hoje os desafios do homem
Nacional do Idoso da FIOCRUZ, no Brasil),19 com o objetivo de conhecer hipermoderno? Na tentativa de esboçar uma resposta, retomo o pen-
melhor, prover recursos e assegurar direitos a esta parcela crescente da samento de Hans Jonas (1994) que lembra sobre a impossibilidade
população. de separar o homem da técnica; os avanços tecnológicos permanece-
Em sua tese há, entretanto, um ponto que merece atenção: trata-se rão surpreendendo, encantando e, por vezes, amedrontando, cabendo
da concepção de que o uso de recursos como cirurgias estéticas ou o repensar a relação com tudo o que venha a ser proporcionado por eles.
Viagra, por exemplo, pode ser visto como uma “corrida patética” con- Consequentemente, o homem passa a ter a responsabilidade de, con-
tra o tempo, da mesma forma que é possível entender como negação a forme analisa Medard Boss (1975), tentar buscar uma relação mais livre
com a tecnologia, em que não se coloque em posição de subordinação.
18 A interessante citação de Weinberg inspirou a pesquisa dos vocábulos velho e velhice no É, então, imprescindível assumir um desafio de inspiração frank-
primeiro dicionário de língua portuguesa intitulado Vocabulario Portuguez e Latino de
Rafael Bluteau (digitalizado pela USP como parte do Projeto Brasiliana). Para o termo furtiana: refletir sobre o mundo que está sendo construído, sobre tudo
velho, os significados são depreciativos e relacionados às mudanças físicas: “A pele enru- que é apresentado, para que se possa extrair aquilo que venha proporcio-
gada, os nervos encolhidos, as pernas fracas, as mãos trêmulas [...] o ânimo caído, o
temperamento já frio e seco, com propensão ao sono, imagem da morte.” (Grifo meu e
nar ao homem reconhecidas e seguras melhorias em sua vida. Segundo
atualização da grafia livre.) Curiosamente, para o vocábulo velhice, como se fosse uma
condição à parte – e numa distinção clara entre as perdas físicas e os ganhos da experiên-
cia –, Bluteau atribui características relacionadas à sabedoria: “[...] a velhice traz consigo
opinião de longa e antiga virtude, especialmente de prudência [...] No homem moço, 20 Exemplifico com duas publicações destinadas ao grande público: a primeira, já citada, é
dificilmente pode o engenho ou o estudo suprir a experiência [...].” (Atualização da grafia A cura do envelhecimento (em fev./11) e outra lançada pela revista IstoÉ em jun/11 com o
livre.) Disponível em: <http://www.ieb.usp.br/online/>. Acesso em: 27 mai. 2011. título Envelhecer bem. Divulgadas entre um curto espaço de tempo e com leituras dife-
19 Disponível em: <http://social.un.org/index/Ageing.aspx> e <http://www.observatorio- rentes sobre o envelhecimento, elas demonstram incerteza e o paradoxo hipermodernos.
nacionaldoidoso.fiocruz.br/>. Acesso em: 2 mai. 2011. Afinal, queremos banir a velhice ou aprender a envelhecer com qualidade de vida?

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Marr (1996, p. 73), trata-se de pensar a realidade social expondo suas Ao mencionar as mais incríveis práticas e teorias desenvolvidas
contradições e apresentar na “luta” contra a velhice e a morte, Blanck-Cerejido e Cerejido (1991,
p.107) trazem uma história que lembra o papel que cumpre o bom senso.
[...] o objeto como sendo histórico, formado, produto prático, objetivo,
particular, de uma determinação social específica, acessível a ser determi- Trata-se de uma observação feita pelo fisiólogo H. M. Gerschenfeld a
nado historicamente. Assim, o objeto em sua conformação não aparece um colega que ostentava o fato de alcançar avançada idade graças a
mais como inevitável, como resultado fatal de um desenvolvimento a par- nunca ter fumado, bebido, comido alimentos exóticos, exagerado no
tir do passado, conforme uma lei natural fixa, mas como presente histó- sexo ou mesmo deixado de deitar-se cedo: “Mas professor – disse Gers-
rico, que pode ser alterado em sua relação ao passado, e transformado em
sua conformação vigente. chenfeld – você não vive, você dura” (tradução livre). Talvez seja este o
cuidado que cabe a cada um de nós: diante de tantas ofertas para pro-
Esse caminho vai de encontro à lúcida leitura que Gilles Lipovetsky longar a vida, é preciso estar atento para não torná-la um mero acúmulo
e Jean Serroy fazem da hipermodernidade em A cultura-mundo: resposta de tempo cronológico.
a uma sociedade desorientada (2011, p. 149): “Não se trata, portanto, de Outra constatação muito recente é que, capturada pela lógica de
refazer o mundo, mas, no próprio interior do sistema tal como ele se mercado hipermoderna, a possibilidade de viver mais está sendo vista
impõe, de alavancar as forças positivas que ele encerra, a fim de reduzir como oportunidade de consumir mais, extrapolando mesmo o territó-
ou mesmo anular os males de que é portador.” rio ocupado pela medicalização. Artigos surgem baseando-se em estu-
Começo pelo aumento da expectativa de vida: ganho inquestio- dos populacionais21 para indicar a denominada terceira idade como um
nável, quando comparados os números atuais com os registros de um mercado em expansão. Um deles intitulado “O poder da terceira idade”
século atrás, mas, ao mesmo tempo, fonte das mais diversas especu- refere-se ao poder de consumo (os segmentos da saúde, do turismo e da
lações, assim como de inusitadas pesquisas. A programação de TV e cultura são exemplos em evidência) desta parcela da população. O desa-
algumas publicações de caráter não acadêmico estão repletas de dicas fio é o mesmo do consumidor em geral: saber lidar com todas as encan-
e receitas com o objetivo de assegurar ao homem alguns anos de vida a tadoras possibilidades que se apresentam, pondo de lado as armadilhas.
mais. O ponto que merece atenção está no limite entre estas iniciativas Em contrapartida, a boa notícia, em minha concepção, é que a velhice
(muitas delas reconhecidamente válidas) e os excessos da já citada medi- passe a ocupar, cada vez mais, os olhares de outras instâncias e institui-
calização do envelhecimento, que conduz a refletir sobre a complexidade ções sociais (não mais somente da indústria farmacêutica, de estética ou
deste advento, onde (retomando Peter Conrad) o indivíduo é concebido das vorazes empresas que financiam empréstimos), ganhando serviços
não como sujeito passivo, mas como agente do processo, portanto, tam- e produtos que atendam às suas especificidades. No campo social e de
bém responsável por sua propagação, manutenção ou extinção. Como políticas públicas, é crescente o número de projetos dedicados à melho-
antes analisado, as propostas de tratamento e cuidados com a saúde, ria da qualidade de vida dos idosos; no setor privado, por sua vez, aca-
ao encontrarem eco no desejo de longevidade presente no imaginário
social contemporâneo, tornam-se terreno propício às inúmeras suges- 21 Refiro-me aos dados divulgados pelo IBGE (Ver: <http://www.ibge.gov.br/home/presiden-
cia/noticias/ noticia_visualiza.php?id_noticia=266>) e à pesquisa Panorama da Maturi-
tões de alimentação, exercícios físicos e intervenções medicamentosas dade I, realizada pela GFK do Brasil. (Ver: <http://www.gfkcustomresearchbrasil.com/
ou cirúrgicas. Assim, cresce consideravelmente o número de tratamen- estudos_especiais/estudos_especiais/panorama_da_maturidade/index.pt.html>). Sobre
os artigos, ver: GRINOVER, Paula. O poder da terceira idade – idosos brasileiros formam
tos estéticos e esgotam-se nas prateleiras, numa velocidade vertiginosa, um grupo de 15 milhões de consumidores mal atendidos. Disponível em : <http://www.por-
o chá verde, o feijão-branco, os cristais de própolis ou quaisquer outros taldafamilia.org/artigos/artigo132.shtml>. Acesso em: 1 fev. 2011; e FARIA, Renata Melo.
produtos anunciados como benéficos à saúde e com propriedades de Terceira idade no Brasil, um mercado em expansão: oportunidades de novos negócios atra-
vés de uma análise mercadológica. Disponível em : <http://www.administradores.com.
retardar os sinais do envelhecimento. br/informe-se/producao-academica/terceira-idade-no-brasil>. Acesso em: 1 fev. 2011.

258 259
demias, supermercados, começam a se adequar às suas necessidades. E estender-se ou encurtar-se na percepção do homem, que não “respeita”
quem sabe, em breve, os rótulos tornem-se mais legíveis, os transportes a cadência de seus ponteiros.
públicos melhor adaptados, as calçadas menos irregulares, etc. Em artigo publicado na Revista Cult com o interessante título A filo-
Manter a capacidade de produzir (que aqui traduzo por possibili- sofia e o consolo do tempo, Débora Pinto (2010, p. 58-60) resgata Henri
dade de realização) sem se render à lógica da performance constitui-se Bergson, para quem é um erro definir o tempo como fenômeno linear e
como outro desafio. É inegável que suas realizações se tornem o vínculo quantificável. E prossegue referindo-se ao pensamento do filósofo:
de relação do indivíduo com o meio social, definindo seu lugar no mundo
[...] sua intuição primeira foi a de que o tempo do relógio e da crono-
e conferindo sentido à vida. O incômodo da produção é, no entanto, a logia, tão caro a nossa vida em sua dimensão prática, não corresponde
meu ver, causado pela importação, proporcionada pela modernidade, do à verdadeira manifestação da temporalidade [...]. Trata-se da ilusão que
modelo fabril – o das máquinas – para o homem. E, segundo Ehrenberg impulsiona a vida e a técnica, a imagem de um tempo que avança por
(2010, p. 173), não basta produzir; cada um de nós deve cumprir a exi- saltos, intervalos, que se desdobra em linha e se divide em um antes, um
agora e um depois.
gência de ser autônomo, condição que fragiliza os idosos, os que depen-
dem definitiva ou circunstancialmente de alguém e, enfatizo, qualquer A tese de Bergson complementa-se com a noção de que a tempora-
homem. A realização a que me refiro não caminha junto à conquista lidade é uma experiência interior, consolo, segundo Débora Pinto, para
performática, uma vez que pressupõe envolvimento e paixão pelo que se os dias atuais, em que o tempo causa angústia. A libertação da ditadura
faz (como na arte, na música e em outros ofícios, quando não condicio- deste tempo devorador está na atividade filosófica, assim como na arte:
nados ao apelo comercial), bem como respeito às diferenças e ao tempo “Criar uma obra sem finalidade imediata, imprimir às coisas uma emo-
de cada ser. Tal projeto, na hipermodernidade, só se torna possível se o ção, um sentimento, usar enfim a matéria do mundo para expressar
indivíduo se propuser a repensar sua relação com o tempo. nossa pessoa [...] significa trazer ao tempo da práxis outro ritmo, outra
Faço, então, a sugestão de um esforço para perceber um tempo tensão [...]”. Assim, neste contexto, a atividade filosófica e da arte, por
que transcorre de maneira diferente. Para Blanck-Cerejido e Marcelino extensão, é capaz, para a autora, de libertar o indivíduo também “[...] de
Cerejido (1991) a apreensão do tempo que flui vem da observação e de uma das mais difíceis imposições do tempo – a da busca de uma juven-
seu encadeamento, como numa película de cinema. Segundo Adilson tude eterna, do tempo perdido.”
J. A. Oliveira (2009, p. 18-25),22 a noção presente no senso comum de Ao abordar a realização, as experiências dentro de outra tempo-
um tempo que passa de maneira contínua, em sentido único e sem fim ralidade que permitam escapar da percepção de tempo linear e de sua
(como um rio que sempre segue seu curso, independentemente de quem ditadura, ouso fazer uma ampliação à leitura de Bergson trazida por
está na margem o observando) relaciona-se a alguns processos físicos Débora Pinto e acrescentar a transmissão de ofícios, de receitas de
que possuem a característica de irreversibilidade. Entretanto, acres- família, a narração e perpetuação de histórias familiares, assim como
centa o autor, a física lembra que, a partir da Teoria da Relatividade de outros tantos eventos que convergem e transitam entre o ontem, o hoje
Albert Einstein, tempo e espaço tornaram-se relativos a quem observa. e o amanhã, fazendo com que cada homem se perceba parte do mundo
Assim, por exemplo, o passar do tempo cronológico contado pelo reló- e conferindo, em qualquer fase, sentido à sua existência. Trata-se de,
gio, dependendo do que se esteja fazendo, pensando ou sentindo, pode nas palavras de Lipovetsky e Serroy feitas nas últimas considerações
de A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada (2011, p.
198), “Não mais apenas exaltar a profundidade, mas talvez realizar algo
22 Ver: OLIVEIRA, A. J. A. Uma questão de tempo. In: PRIPAS, Sergio. Cronos ensandecido: mais importante para a maioria: impor limites à desorientação e fazer
sobre a agitação no mundo contemporâneo. São Carlos: EdUFSCar, 2009.

260 261
com que os homens tenham autoestima quando envolvidos com ati- referências bibliográficas
vidades que mobilizem sua paixão por superar-se e assumir o papel
de protagonistas de suas vidas”. A proposta que fazem, destaco, é por A cura do envelhecimento. Galileu, São Paulo: Editora Globo, ed. 235, fev.
2011.
excelência democrática: não estabelece fronteiras de idade, formação
ABAGGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
ou condição social.
2007, p. 1007.
A meu ver, é o encadeamento das experiências do homem, por
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
natureza atemporais, e de suas intensidades, decorrentes de seu contato sitária, 2009.
com o mundo, que constrói a percepção de tempo. E, sendo uma con- ARIES, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
junção destas experiências, ter mais tempo de vida é, em última instân- ______. História social da criança e da família. 2a. ed. Rio de Janeiro: LCT, 1981.
cia, ter mais oportunidades de vivenciá-las. Não há que se falar, por-
______. O homem perante a morte – II. Lisboa: Europa-América, 1988.
tanto, numa contagem regressiva que imponha aos que envelhecem o
AUSTER, Paul. A invenção da solidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
fim da vida. Tal leitura serviu, até os dias atuais, apenas para intensificar
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
o exílio dos mais velhos, afastando-os de suas possibilidades de criação
______. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
e de pertencimento do mundo. Jorge Zahar Ed., 2004.
A morte – evento capaz de romper a “lógica” do tempo em cada BEAUVOIR, Simone. Uma morte muito suave. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
homem – é uma contingência, parte da condição humana que não se 1990.
submete à cadência do tempo cronológico, nem a qualquer ordem. E, BLANCK-CEREJIDO, Fanny; CEREJIDO, Marcelino. La vida, el tiempo y la muerte.
neste aspecto, para a vida, talvez o relógio e o calendário sejam pouco Distrito Federal: Secretaría de Educación Pública, 1991.
úteis como lembra Mário Quintana em Ah! Os Relógios.23 BOSS, Medard. Angústia, culpa e libertação – Ensaios de psicanálise existencial.
São Paulo: Duas Cidades, 1975.
Amigos, não consultem os relógios
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas 2006.
que até parecem mais uns necrológios... CARVALHAL, Tânia Franco (org.). Mário Quintana: Poesia completa em um
volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
Porque o tempo é uma invenção da morte: CONRAD, Peter. The Discovery of Hyperkinesis: Notes on the Medicalization of
não o conhece a vida – a verdadeira – Deviant Behavior. Social Problems, v. 23, n. 1, p. 12-21, 1975.
em que basta um momento de poesia ______. The medicalization of society: on the transformation of human condi-
para nos dar a eternidade inteira. tions into treatable disorders. Maryland: The Johns Hopkins University
Press, 2007.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
CORALINA, CORA. Cora Coralina, quem é você? Disponível em: <http://www.
somente por si só é dividida:
casadecoracoralina.com.br/poemas2.html>. Acesso em: 29 jun. 2011.
não cabe, a cada qual, uma porção.
COSTA, Jurandir Freire da et al. O desafio ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.
E os anjos entreolham-se espantados DUPUY, Jean-Pierre. A fabricação do homem e da natureza. In: CICLO DE CON-
quando alguém – ao voltar a si da vida – FERÊNCIAS MUTAÇÕES: A CONDIÇÃO HUMANA. Rio de Janeiro: Ministério
acaso lhes indaga que horas são... da Cultura – Programa Cultura e Pensamento, Conferência realizada em
3 set. 2008.
23 QUINTANA, M. Poema da gare de Astapovo. In.: CARVALHAL, Tânia Franco (org.). Mario
Quintana: Poesia completa em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 876.

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264 265
O sofrimento perdido no tempo: tadas pela sociedade para sua obtenção são as mais diversas, contudo em
sua maioria ligadas ao consumo e à imagem. Somos bombardeados com
modelos de luto na contemporaneidade a necessidade de sermos felizes, e para alcançar esse estado é difundido
que devemos ter saúde, jovialidade, beleza, uma vida sexual intensa,
Lana Veras uma educação de qualidade, um emprego gratificante, uma família har-
Jorge Coelho Soares moniosa, uma alimentação balanceada, atividades físicas regulares, via-
gens divertidas, uma casa espaçosa, um carro possante e mais e mais e
mais. Para cada um desses “pré-requisitos” de felicidade há um rol
de indicações de como podemos fazê-los melhor, como otimizá-los
para, assim, sermos, cada vez mais, felizes. Invariavelmente os itens
do check-list da felicidade são ligados ao consumo ou acessados por
meio deste e transformados em produtos.
No entanto, não é suficiente ser feliz, em uma sociedade do “Culto
da Performance” (EHRENBERG, 2010) temos que ser o mais feliz dentre
os outros. Se estamos bem, por que não podemos ficar melhor? Esse é o
pressuposto do conceito de “melhor que bem”, muito utilizado na cha-
mada “Psiquiatria cosmética”, que concebe o uso dos medicamentos psi-
Uma notícia publicada no Jornal Los Angeles Times, em abril de 2011,
cotrópicos não só como auxilio às pessoas com quadros patológicos, mas
se transformou no ponto de partida para as reflexões feitas neste
como potencializador de características desejáveis em uma sociedade
artigo. A matéria relata que uma empresa funerária, em uma cidade
performática. Segundo o psiquiatra Benilton Bezerra, as fronteiras entre
norte-americana, do estado da Califórnia, criou um sistema de drive-
tratamento e aperfeiçoamento estariam indefinidas para a psiquiatria,
thru para enterros, “ao estilo fast-food”, ressalta a jornalista Simmons
que se voltaria: “Não apenas ao tratamento, mas ao alívio do sofrimento
(2011). O diretor da empresa define a novidade como “um serviço de
inerente à vida cotidiana e aos limites naturais da vida, bem como pela
conveniência, de maneira que as pessoas podem vir depois do trabalho,
produção biotecnológica de estados de felicidade” (BEZERRA, 2010, p.
sem se preocupar com estacionamento e podem assinar o livro do lado
121). Portanto, se você se julga feliz, por que não tomar um antidepressivo
de fora” (Los Angeles Times, 17/04/2011).
para ser mais feliz? Se você tem boa disposição para o trabalho durante o
Ao pensar na relação do Homem com o tempo e com a finitude, são
dia, por que não usar a medicação Modafinil e ficar desperto por 48 horas
pertinentes os questionamentos: Qual o tempo destinado ao sofrer na
sem sinal de cansaço? Se você tem uma experiência sexual satisfatória,
sociedade ocidental contemporânea? De que maneira o período do luto
por que não tomar Viagra e intensificar seu “desempenho” sexual?
é abreviado em uma época que valoriza, e mesmo impõe, o “ser feliz”?
O uso elevado e frequente de medicações ou intervenções para a
Vivenciar a alternância entre vivências de felicidade e de tristeza
melhoria de um estado ou característica das pessoas foi comparado pelo
faz parte da experiência pessoal da maioria dos seres humanos, porém,
sociólogo Ehrenberg (2010) com o doping dos atletas, cujo objetivo não
na contemporaneidade, a proporção esperada de cada um desses polos
seria um tratamento, e sim, uma melhoria de suas performances. No caso
tem sido bastante modificada. Estamos diante do que podemos cha-
dos não-atletas, performances profissionais, sexuais, estéticas, enfim,
mar “Imperativo da Felicidade” (FREIRE FILHO, 2010), pois a felicidade é
a busca da tão propagada (e propagandeada) felicidade. A competi-
colocada como condição indispensável de bem-estar e as formas apon-
ção permeia todo esse contexto, posto que o conceito do “melhor que

266 267
bem” nos lembra que não é suficiente ser bom ou feliz, é necessário ser o para a remissão dos “sintomas”, como consta na definição de Transtorno
melhor e o mais feliz. O sociólogo questiona se não estaríamos lidando Depressivo Maior apresentada no DSM-IV:
com “drogas de integração social e relacional”, considerando o consumo
Após a perda de um ente querido, mesmo que os sintomas depressivos
disseminado de medicamentos psicotrópicos destinados aos mais dife- tenham duração e número suficientes para satisfazerem os critérios para
rentes objetivos de melhorias de performances (EHRENBERG, 2010). um Episódio Depressivo Maior, eles devem ser atribuídos ao Luto, ao invés
Vivências e estados subjetivos, antes considerados como indissociá- de Episódio Depressivo Maior, a menos que persistam por mais de dois
veis do viver de qualquer pessoa, têm sido tratados como patológicos meses ou incluam prejuízo funcional acentuado, preocupação pré-mór-
bida com desvalia, ideação suicida, sintomas psicóticos ou retardo psico-
ou indesejáveis, de modo que devem ser tratados ou evitados. Bezerra motor. (APA, 2002)
(2010) observa que a compreensão do sofrimento psíquico como ins-
trumento de transformação pessoal, presente nas correntes psicodinâ- Contudo, a tristeza intensa pode ser vivenciada pelo indivíduo
micas e fenomenológico-existenciais, vem dando lugar a concepções em reação a uma multiplicidade de perdas ou situações como separa-
diferentes, que classificam o sofrimento como desnecessário e mesmo ção, desemprego, frustrações e, também, podem alcançar o número de
patológico. Um exemplo dessa realidade é a medicalização da tristeza e cinco sintomas que o DSM preconiza para o enquadre patológico, além
do luto. Os professores Horwitz & Wakefield (2010), das áreas de socio- do extravasamento do tempo-limite de duas semanas de manifestação
logia e de serviço social, respectivamente, discutiram a questão da trans- desses sintomas.
formação da tristeza em patologia, na publicação A tristeza perdida. Eles Os critérios para a caracterização de um episódio de depressão
argumentam que o aumento dos diagnósticos de casos de Transtorno maior, segundo o DSM-IV, seriam:
Depressivo Maior não derivaria de incremento da incidência da doença, A característica essencial de um Episódio Depressivo Maior é um período
mas da sobreposição de categorias conceitualmente diferentes – tristeza mínimo de 2 semanas, durante as quais há um humor deprimido ou perda
e depressão – o que permitiria a patologização massiva da tristeza. Desde de interesse ou prazer por quase todas as atividades. O indivíduo tam-
a antiguidade, passando pelo século XIX e até meados do século XX, a bém deve experimentar pelo menos quatro sintomas adicionais, extraídos
de uma lista que inclui: alterações no apetite ou peso, sono e atividade
sociedade e a psiquiatria adotaram uma abordagem contextual à depres-
psicomotora; diminuição da energia; sentimentos de desvalia ou culpa;
são. Porém essa postura se modificou quando o DSM (Diagnostic and Sta- dificuldades para pensar, concentrar-se ou tomar decisões, ou pensamen-
tistical Manual of Mental Disorder), na sua versão DSM-III, substituiu essa tos recorrentes sobre morte ou ideação suicida, planos ou tentativas de
abordagem pela sintomática (HORWITZ & WAKEFIELD, 2010, p. 71). suicídio. (APA, 2002)
No entanto, os “sintomas” que as pessoas apresentam, quando estão
O Manual chega a acrescentar que “períodos de tristeza são aspec-
passando por uma tristeza intensa relacionada a alguma situação de
tos inerentes à experiência humana” e que não devem ser diagnostica-
sua vida ou ao luto, podem ser idênticos aos da Depressão Maior, no
dos como depressão. Porém a ressalva se desfaz, quando acrescenta: “A
entanto o contexto é diferente. Em uma compreensão que considere o
menos que sejam satisfeitos os critérios de gravidade e duração.” Pois
contexto, teremos um posicionamento; em outra, que focalize apenas os
uma pessoa com tristeza intensa, em decorrência de algum aspecto do
sintomas – como preconiza o DSM atual –, teremos atitude diversa. O
seu contexto, pode manifestar, pelo período de duas semanas, alterações
único caso em que o Manual ainda admite que pessoas possam preen-
no sono, no apetite, na atenção e concentração, na disponibilidade de
cher os critérios diagnósticos e não apresentarem depressão, mas tris-
energia ou sentimentos de culpa e desvalia. Todas as pessoas estão sujei-
teza intensa relacionada às suas vivências pessoais, é quando estão pas-
tas a experienciar esse “quadro” diante de situações como separação,
sando por processo de luto. Há, porém, restrições relacionadas ao tipo
traição, diagnóstico de doença grave, desemprego e tantas outras. Esta-
de perda, “perda de um ente querido”, e ao tempo-limite de dois meses

268 269
riam todas essas pessoas doentes e necessitando de diagnóstico e medi- Vivemos em uma sociedade do controle esquadrinhado, uma
cação? Seria possível o estabelecimento de um parâmetro externo de sociedade totalmente administrada, já observava Adorno (2001, p. 50),
diferenciação entre a vivência da tristeza como parte do viver humano e um dos representantes da Escola de Frankfurt, em sua obra: Mínima
a depressão? E quem estaria apto a estabelecer esse parâmetro? Morália: reflexões sobre a vida lesada. Sua afirmação: “A doença dos sãos
A sociedade contemporânea tem elegido a medicalização do viver só se pode diagnosticar objetivamente na desproporção entre o seu modo
como alternativa para lidar com essas questões. Assim, a medicalização de vida racionalizado e a possível determinação racional da sua vida”,
não só da tristeza, mas de outras vivências humanas, do nascimento à nos leva a refletir sobre as repercussões sociais desse incremento no
morte, coloca no domínio técnico âmbitos antes não pertencentes à clí- número de diagnósticos médicos. A que e a quem serve a transforma-
nica médica. Podemos perceber uma profusão de novos rótulos como ção de situações antes aceitas como variações do modo de ser das pes-
TDAH, Alienação Parental, Bullying – que transferem para a expertise soas em doenças medicalizáveis? Adorno compreendia uma sociedade
profissional circunstâncias antes geridas pelas famílias, de modo que emancipada não pela sua uniformidade, mas pela conciliação de suas
também o poder é transferido. Horwitz & Wakefield afirmam sobre essa diferenças. Porém, o que temos hoje é a determinação cada vez mais
questão que: rígida de uma única direção a seguir, as várias novas possibilidades que
a contemporaneidade nos apresenta não são, senão, facetas do mesmo
A medicina, de modo geral, e a psiquiatria, em particular, têm sido
importantes promotores e beneficiários de uma definição que lhes per- Homem Unidimensional, já descrito por Marcuse (1973) em: A Ideologia
mite rotular e tratar como transtornos problemas que até então não da Sociedade Industrial.
eram clínicos. Todas as profissões se esforçam para ampliar o domínio Podemos notar que a dimensão que se configura como preponde-
dos fenômenos sujeitos ao seu controle, e sempre que o rótulo de doença rante continua sendo a do capital e a do mercado. As empresas farma-
é atribuído a um estado a medicina tem direito primário de jurisdição
sobre ela. (2010, p. 246) cêuticas estão imbricadas neste processo, apresentando como solução
a intervenção medicamentosa e estabelecendo um ciclo pernicioso: os
Observando as mais recentes edições do DSM-IV TR e da CID (Clas- grandes lucros da indústria farmacêutica são mantidos por meio de
sificação Internacional das Doenças), podemos notar um número cada financiamento de pesquisas, congressos e demais atividades médicas, e,
vez maior de condições antes toleradas como componentes de uma exis- em troca, os profissionais assumem a medicação como a alternativa pri-
tência comum sendo definidas como doenças e requisitando tratamen- meira em suas intervenções. Esse processo não é velado, ocorre às claras,
tos. O sociólogo Peter Conrad (2007) questiona se esse aumento de diag- nas situações do dia a dia, como o registro, pela farmácia, do nome do
nósticos significa uma epidemia de problemas médicos, se a medicina médico prescritor, para posteriormente os representantes dos laborató-
está com melhor capacidade de identificar e tratar problemas já exis- rios realizarem estatísticas de quais profissionais estão receitando com
tentes ou se os problemas inerentes à vida estão sendo rotulados como mais frequência, para serem premiados, e quais estão receitando com
patológicos, apesar de sua duvidosa natureza médica. Acrescenta que menos frequência, para serem cobrados. E ocorre, também, em situa-
comportamentos, antes definidos como imorais, pecaminosos ou crimi- ções de maior amplitude como publicidade, patrocínio de pesquisas, de
nosos, têm, agora significado biológico. Até mesmo processos anterior- publicações e de grupos de pacientes. Outra situação que exemplifica
mente encarados como presentes na vida comum têm sido medicaliza- essas relações é muito frequente em congressos da área de saúde, os pro-
dos, como, por exemplo, ansiedade, oscilações de humor, menstruação, fissionais denominados “não médicos” recebem seu crachá com um cha-
nascimento, infertilidade, menopausa, calvície, envelhecimento e morte. mativo carimbo com o alerta: “NÃO PRESCRITOR”. A justificativa apre-
Ao que parece, em uma sociedade que cultua a performance, a tolerância sentada para o uso da expressão distintiva é que seria uma orientação
com as diferenças tem diminuído. da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Assim, durante

270 271
os congressos, os participantes que são identificados com essa “adver- à maioria das pessoas em processos de luto). A justificativa para essas
tência” não são abordados pelos representantes de laboratórios para modificações estaria dentro da abordagem de “intervenção precoce”,
receber “brindes” (passeios, jantares, hospedagem no hotel do evento, possibilitando o diagnóstico de transtorno mental, ou a possibilidade
notebooks, viagens internacionais e automóveis). As companhias far- de seu surgimento e, deste modo, a medicalização com a finalidade de
macêuticas estão exercendo um impacto crescente sobre os limites entre suprimir esse “quadro patológico” (BEZERRA, 2010, p. 127).
o normal e o patológico, alerta Conrad (2007), que, também, chama a Diante dessas observações, podemos perceber que a proposta que a
atenção para o fato das empresas serem potencialmente mais focalizadas contemporaneidade nos faz em relação ao sofrimento está ligada a uma
nos interesses de seus acionistas do que nos de seus pacientes, interesses promessa de extinção do sofrer. Esse objetivo seria alcançado por meio
esses frequentemente conflitantes. da coação a que somos submetidos em direção à abreviação de uma
As relações entre a medicina e o mercado financeiro são de funda- vivência dolorosa ou a seu rápido esquecimento. Uma forma de esque-
mental importância nesse processo, porém a medicalização da sociedade cer, que não se dá no sentido nietzschiano, como afirma Ferraz (2010),
não é, atualmente, resultado exclusivo de uma espécie de imperialismo pois, desse ponto de vista, o esquecimento poderia ser comparado ao
médico. Conrad (2007) a compreende como uma ação coletiva, uma processo de digestão, havendo descarte de alguns elementos não neces-
interação complexa entre diferentes atores sociais, incluindo os movi- sários ao ser, porém, existindo uma assimilação do que seria necessá-
mentos sociais e as organizações de pacientes, que se tornaram mais rio para o seu crescimento e desenvolvimento. Partindo dessa concep-
participativas nos tratamentos dos seus integrantes, e estes, na condição ção, não haveria uma oposição entre o esquecimento e a memória. De
de consumidores, desempenham papel mais ativo na medicalização. maneira que, sobre o tempo permitido a esse esquecer, Ferraz (2010, p.
Esse processo não dá mostras de desaceleração, pois segundo 118-119) enfatiza: “Como em toda digestão, o processo se dá no tempo e
Bezerra (2010): “A regulação tecnológica da vida biológica, psíquica e precisa da paciência requerida pelo tempo (...) Portanto esquecer é todo
social é uma ideia cada vez mais familiar” (p. 128). Afirma, também, que o contrário da pressa e da lógica da descartabilidade que impregna o
já estão em testes substâncias capazes de “apagar” o sofrimento ligado regime de vida contemporâneo.” Em contraponto ao processo de rumi-
a eventos subjetivos traumáticos, dissociando a emoção do conteúdo nação e elaboração, que o esquecimento nessa perspectiva demanda,
da lembrança, algo como o que faziam os personagens do filme Uma lidamos atualmente com a visão de que somos “homus deletabilis”, termo
mente sem lembranças. Essa perspectiva da técnica médica de “apagar” que dá título ao livro de Ferraz. A substituição da metáfora digestiva
as vivências de dor ou mal-estar encontra-se em consonância com as pela tecnológica evidencia que o esquecimento, que nos é cobrado hoje,
propostas de modificação nos critérios diagnósticos para Transtorno não admite assimilações ou processo de ruminação, ele deve acontecer
Depressivo Maior, que estão sendo discutidas para o DSM-V, previsto na velocidade em que apertamos a tecla “delete” e não deve deixar mar-
para 2013. Pois até mesmo o critério de exclusão do luto deve ser retirado cas ou vestígios, como quando clicamos em “excluir”.
nessa nova versão do Manual. Qual seria então o tempo para lidarmos com o sofrimento resul-
Essas discussões realizadas para a implantação da nova versão do tante da morte de alguém que amamos? O tempo, por vezes lento, do
DSM acenam para a intensificação desse quadro, pois, com a retirada do esquecimento como digestão? Com todos seus processos de ruminação,
luto como critério de exclusão, enquadrariam na categoria de Depressão elaboração, assimilação, transformação e descarte, ou o tempo de um
Maior pessoas que, mesmo passando por situações de perda, apresentas- clique na nossa “tecla delete”, obtido muitas vezes por via biotecnológica?
sem pelo período de apenas duas semanas sintomas como humor depri- Na sociedade atual, o encurtamento do tempo/espaço destinado ao
mido, perda do interesse em atividades cotidianas, insônia, diminui- luto tem modificado rituais tradicionais, como o da “sentinela”, no ser-
ção do apetite e dificuldades em concentração (estados muito comuns tão nordestino, em que as pessoas ficavam acompanhando o doente em

272 273
sua casa, aguardando o momento da sua morte e procedendo aos rituais Que o vento vai levando pelo ar
tradicionais. Em pesquisa de mestrado, com o tema “A morte na visão Voa tão leve
Mas tem a vida breve
do sertanejo em tratamento oncológico” (VERAS, 2009), Severino, um
Precisa que haja vento sem parar.
dos entrevistados, narra as mudanças na maneira de lidar com a morte
e o morrer na sua comunidade: O olhar dos poetas sobre a efemeridade da felicidade nos permite
Aqui (no hospital da capital), a família recebe só o corpo, lá era em casa,
a compreensão de que o não ser feliz faz parte do viver, ao passo que
com aqueles vizinhos, moradores, aquelas pessoas conhecidas, faziam a busca incessante de um modelo ideal de felicidade, obtida por meio
questão de estarem ali até a hora. Depois ficavam visitando aquela família, do consumo, não resultaria em infelicidade? Uma infelicidade inter-
ajudando, aconselhando. Hoje a pessoa morre e poucos dias (faz gestos dita, na contemporaneidade, o que nos permitiria questionar: Qual o
com as mãos), tá esquecido, tá esquecido. (Severino, 79 anos)
lugar possível para a expressão da tristeza em um mundo que aponta
O depoimento demonstra que os novos modelos de luto promovem a felicidade em todos os lugares e de fácil acesso, mas tem seu alcance
alterações na rede social de apoio à família enlutada. Deste modo, per- sempre vedado, como forma de incentivar sua busca por intermédio do
cebemos que os processos contemporâneos de temor e de negação da consumo? Assim, como nossa sociedade parece não mais partilhar os
morte trazem, também, a negação do morto, o seu esquecimento. conceitos de felicidade de Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Tom
A sociedade contemporânea vive sob o imperativo do ser feliz, cul- Jobim, as tentativas de manutenção constante do estado de felicidade
tua o que podemos chamar de “esquecimento em alta performance” e são efetuadas nos mais diferentes âmbitos. Com um olhar apenas breve-
sugere que o tempo máximo aceitável para o sofrimento é de duas sema- mente atento podemos colher exemplos da forma como a promessa da
nas. De modo que somente nos seria permitido alguns fragmentos de felicidade tem sido associada a produtos, a medicamentos, ao esporte,
tristeza dentro de uma longa vivência feliz. No entanto, essa perspectiva ao trabalho, ao sexo, ao envelhecimento. Temos que trabalhar com ale-
está distante do que nos mostra muitos poetas quando expressam os gria, fazer atividades físicas com prazer, nos alimentar felizes, envelhecer
lugares que a tristeza, o sofrimento e a felicidade ocupam em nossas bem, ter uma vida sexual feliz e até ter pensamento positivo ao adoecer.
histórias. Os poemas: Epigrama n.2, de Cecília Meireles, e Felicidade, de Para isso, podemos contar com a ajuda de medicamentos, tratamentos,
Vinícius de Moraes e Tom Jobim, transcritos abaixo, permitem um olhar livros de autoajuda, produtos de beleza e todo um arsenal de produtos
diferente sobre as possibilidades do estar feliz ou triste: “necessários” à felicidade.
As reflexões aqui realizadas mostram que, atualmente, o tempo
Epigrama n. 2 destinado ao sofrer tem diminuído, por outro lado tem aumentado o
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras. sofrimento diante da percepção da passagem do tempo, que remete ao
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, envelhecimento e à morte. Apesar dos dados demográficos de aumento
e, para te medir, se inventaram as horas. da expectativa de vida e o consequente envelhecimento da população
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa: humana, em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a socie-
Fizeste para sempre a vida ficar triste: dade contemporânea ocidental tem demonstrado menos tolerância
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste. com os sinais desse envelhecimento. Para camuflar os sinais da passa-
Felicidade gem do tempo, as pessoas utilizam os mais diversos artifícios como, por
Tristeza não tem fim exemplo, aplicação de toxina botulínica para paralisação dos músculos
Felicidade sim e redução das rugas, cirurgias plásticas (o Brasil é o segundo país em
A felicidade é como a pluma número de cirurgias plásticas no mundo), cosméticos, exercícios, medi-

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camentos, dietas controladas, modificações no estilo de vida, injeção de vações aumenta em uma espécie de progressão geométrica, em outras
células-tronco e meios virtuais de rejuvenescimento como os recursos palavras, aumenta de um modo que não nos sentimos capazes de prever.
do Photoshop, utilizados para intervenções nas imagens das pessoas em Nossas expectativas e certezas têm que ser revistas a todo momento, essa
fotos e vídeos. necessidade extrapola o mundo da tecnologia e chega à constituição da
No site de uma marca francesa de cosméticos, o nome de uma linha própria subjetividade humana. De forma que o que se modifica veloz-
de produtos chama a atenção: “Immortelle”. O produto promete ser efi- mente não são apenas os modelos de celulares, computadores, carros e
caz contra os sinais do tempo, o texto publicitário da marca afirma: demais artefatos tecnológicos. Pois, junto com eles, somos incitados a
modificar, por exemplo, nossa forma de se relacionar com as pessoas,
Immortelle é conhecida como a flor eterna, pois sua forma e cor não
mudam mesmo depois de colhidas. A L’Occitane extraiu o seu óleo nossas emoções, nossos conceitos de saúde, bem-estar ou sofrimento.
essencial, que tem propriedades antirradicais livres e antirrugas. A linha A rapidez dessas mudanças, que sempre apontam para mais mudanças,
Immortelle oferece uma solução completa em produtos anti-idade para o dificulta a capacidade das pessoas e da sociedade de refletirem sobre o
rosto. caminho para onde estão indo, como em um loop. Assim, uma situação
A tentativa de “apagar” os indícios da passagem do tempo e, dessa paradoxal se estabelece, pois a aceleração do ritmo de vida dá a sensa-
maneira, distanciar-se do envelhecimento e da morte, acontece no corpo ção de aumento da velocidade da passagem do tempo, ao passo que se
físico por meio das intervenções cirúrgicas e cosméticas, dentre outras. investe na tentativa de pará-lo, utilizando as técnicas já citadas de manu-
Porém, a importância da imagem em vídeo e foto aumentou em um tenção da juventude.
momento que os relacionamentos têm se virtualizado e que a utilização Essas técnicas, utilizadas para o rejuvenescimento dos corpos e
das redes sociais na internet se tornou popular. A fotografia digital pos- das imagens, buscam apagar os sinais que nos remetem à passagem do
sibilita uma avaliação imediata do resultado de sua imagem fotografada tempo, que se configuram como acenos da nossa finitude. No entanto,
e a alternativa de repetir o procedimento, tantas vezes quiser, apagando em outros momentos históricos, as pessoas lidavam de maneira dife-
as imagens julgadas como não satisfatórias. Depois de inúmeras tentati- rente com essa constatação da mortalidade e da perecibilidade humana.
vas, se a sua imagem ainda não estiver de acordo com suas expectativas, A representação da relação do homem e do mundo com o tempo
programas de informática podem fazer quaisquer modificações, desde já estava presente na Mitologia Grega. O deus Cronos (Saturno), assim
apagar rugas, sinais e outras marcas até mudar a cor dos olhos ou cabe- como o tempo, também devorava os seus, como representou Goya, em
los, aumentar ou diminuir o tamanho da boca, das pernas ou do nariz, sua obra “Saturno Devorando a um Hijo”, exposta no Museu do Prado,
enfim, todo tipo de alteração desejada. em Madri. O deus Cronos, na mitologia grega, é filho de Gaia (Terra) e
Em sua relação com o tempo, o homem contemporâneo viven- Uranos (Céu). A pedido de Gaia, ele toma o poder do pai e inaugura o
cia uma nova rodada do que Harvey (2008), em seu livro Condição tempo, de maneira que o Céu passa a ser habitado pelos deuses, imor-
Pós-moderna, denominou “compressão do tempo-espaço”. Sevcenko tais, e a Terra fica reservada à humanidade, mortal. Após a separação
(2001) é o autor de uma metáfora que tem sido utilizada para descrever de Gaia e Urano (céu e terra) as divindades Nyx (a Noite) e Hemera (o
nosso momento histórico, a montanha-russa, mais especificamente no Dia) passam a se alternar, no espaço entre eles, simbolizando a passa-
momento de seu loop, onde temos uma total perda dos referenciais de gem do tempo. Um dos filhos de Cronos, por ele devorado, mas depois
espaço e tempo, alterados pela velocidade e movimento. Esse momento libertado, é Hades que reinava sobre o mundo dos mortos (GONÇALVES
de “loop da montanha-russa” foi alcançado com a participação da revo- & VIEIRA, 2010).

lução técnica proporcionada pela microeletrônica, a velocidade das ino- A relação do homem com o tempo também estava presente nas
expressões artísticas do fim do século XVI ao século XVIII, essas obras

276 277
possuíam uma temática chamada “Vanitas” e representavam o Homem se apresentar os problemas sociais, econômicos, políticos e morais ori-
e a Natureza em relação com a morte. Consistia em uma forma de ginados do fato de as pessoas não mais morrerem.
advertência, de aviso, de que o homem e sua vida têm um fim. Segundo O setor que primeiramente comunicou seu descontentamento
Calheiros (1999, p. 2) “As mais remotas vanitas, ou melhor o seu com a situação foi, previsivelmente, o das empresas funerárias. Sem sua
‘antepassado directo’, os memento mori (recorda a morte), a representação matéria-prima, sem sua carteira de clientes, elas estavam perigosamente
solitária da caveira, são ainda do século XV.” O pesquisador acrescenta em risco de falência, de maneira que, logo, acionaram o governo, soli-
que o termo “Vanitas” tem origem na máxima bíblica Vanitas vanitatum citando providências e subsídios financeiros. A este setor se seguiram
et omnia vanitas – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Assim, era outros a demandar soluções para os prejuízos econômicos e dificuldades
comum nas obras artísticas desse período a presença de elementos logísticas que a tão clamada imortalidade ora provocava na sociedade
iconográficos que representassem a vida terrestre (ciências, letras, daquele país em que não mais se morria. Também os hospitais, os asilos
sentidos, prazeres, glória e fortuna), a passagem do tempo (ampulhetas, de idosos e as seguradoras precisavam da morte para seguir, a contento,
relógios) e a morte (caveiras, flores ou frutos murchos). suas atividades, e buscavam soluções com advogados, com o Estado e
Também cumpriam essa função de alerta sobre a finitude humana, mais tarde com a máphia que se formou em torno da questão.
as “capelas de ossos”, dos Mosteiros Franciscanos. Com sua inscrição Com a narrativa de todos os percalços que a imortalidade trouxe às
que diz: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”, a capela pessoas, no país em que a morte “entrou de greve”, Saramago nos coloca
do Convento de São Francisco foi feita de ossos de pessoas enterradas diante das relações da morte com o mercado financeiro, da crescente
nas igrejas de Évora. mercantilização da saúde e mesmo do morrer. De questão existencial, a
Porém, o que vemos hoje é muito diverso do representado nas artes morte, ou melhor, a falta dela, passa a ser percebida com pragmatismo
e mitos de outros períodos históricos. Vivemos em um mundo que nega e as preocupações não são mais metafísicas ou transcendentais, mas
o envelhecimento e o adoecimento, ou seja, nega a finitude, a morte. Nos econômicas e logísticas. A alegria fugaz vivida diante da perspectiva
últimos meses, a mídia tem anunciado previsões de que, com a tecno- da imortalidade cede lugar ao colapso das esferas políticas, sociais e até
logia biomédica já existente, poderíamos assistir a um grande aumento religiosas. Mesmo a Igreja ficou desnorteada com a ausência da morte,
na expectativa de vida humana. Alguns chegam a ariscar e falar da pos- pois é só a partir das incertezas e dos temores que a finitude provoca nos
sibilidade futura da imortalidade humana. Mas, e se, realmente, a morte homens que as religiões são possíveis e se sustentam.
não mais existisse? Quais seriam as Intermitências do Viver? A utopia da imortalidade acompanha o ser humano há um longo
“No dia seguinte ninguém morreu”. Com esta frase o escritor José tempo, antes de Saramago outros romances, outras lendas e muitos
Saramago iniciou seu livro, denominado As Intermitências da Morte, um mitos trouxeram personagens que buscavam ou possuíam a vida eterna,
dos últimos romances que publicou antes de sua morte em 18 de junho ou melhor, a juventude eterna. Na contemporaneidade, essa questão tem
de 2010, aos 88 anos. Saramago (2005) parte de uma suposição: e se não se intensificado, o desenvolvimento técnico-científico tem promovido
houvesse mais morte? Assim, com inteligência e elegância, mas também um aumento da expectativa de vida e a midiatização de pesquisas sobre
com ironia e humor o escritor descreve o que se passa em seu imaginá- as tentativas de paralisação do envelhecimento e da morte celular, assim
rio país em que a morte não mais existe. A princípio as pessoas vivencia- como da cura de doenças, coloca no horizonte a possibilidade da ciên-
ram a estranheza do acontecimento, logo depois expressaram a euforia cia levar o ser humano à transposição de sua condição de ser mortal.
e a alegria de se saber imortal, sonho acalentado pelos humanos desde Segundo Lucian Boia (2006), em seu livro Quand les centenaires seront
que estes se perceberam finitos. Porém, com o passar do tempo, a alegria jeunes, todo esse panorama faz do momento atual terreno fértil para
e a euforia deram lugar à preocupação e ao alvoroço, pois começaram a a expressão de utopias já existentes no imaginário humano, todo um

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“arsenal científico e tecnológico” é colocado a serviço de um projeto que nas, o sofrimento, o adoecimento e a morte continuam a fazer parte do
acompanha a humanidade desde seus primeiros momentos e que já pos- viver das pessoas que, segundo Soares & Dantas (2006), passam a perce-
suiu as mais diversas expressões. ber a morte como uma traição das promessas de imortalidade fornecidas
Ainda sobre a utopia, Souza (2007, p. 27), afirma que: “A utopia diz pela técnica. As ponderações aqui colocadas não se configuram como
de uma insatisfação do presente e fundamentalmente de um desejo de uma censura à busca da felicidade e do bem-estar, mas permitem um
transposição.” Podemos, então, questionar: Se vivemos uma utopia da pensar crítico a respeito do trajeto que a sociedade contemporânea tem
imortalidade a nossa insatisfação seria com o quê? Com a vida? Com a apontado como único meio para obtenção desse estado, sempre atraves-
mortalidade? O que incomoda? A falta de controle? Na história de Sara- sado pelo consumo, quer de medicamentos, quer de quaisquer outros
mago, as intermitências da morte e sua decisão, autoritária e unilateral, produtos ditados como indispensáveis para seu alcance. De modo que,
de não mais acontecer não tornou satisfeitos os habitantes do lugar onde compreender a relação que o Homem desenvolve com o tempo, com o
isso se passava. Eles continuavam a não controlar a situação, mesmo se seu tempo de vida, é crucial nessa reflexão.
tudo fizessem, naquele país, estavam condenados à vida. Souza (2007,
p. 12) também relata em seu livro, Uma invenção da utopia, um diálogo referências bibliográficas
que manteve com seu sapateiro, momento em que afirmou para ele: “Os
ADORNO, Theodor W. Mínima Morália: reflexões sobre a vida lesada. Lisboa:
objetos vivem estragando” e o sapateiro respondeu: “Ainda bem, se não
Edições 70, 2001.
estragassem eu não viveria”. A partir desse diálogo Souza compreende
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual for
que ele vive da imperfeição do mundo, tal qual muitos outros setores Mental Disorders (DSM-IV TR). Washington: APA, 2002.
da sociedade, que necessitam do fim de algo ou de alguém para conti- BEZERRA, Benilton Jr. A psiquiatria e a gestão tecnológica do bem-estar. In:
nuarem existindo, assim como a vida precisa da morte. É o que também Freire, João org. Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio
observa José Saramago quando, em seu romance, preocupado com a de Janeiro: FGV, 2010.
questão das pensões, o primeiro ministro diz ao rei: “Se não voltarmos a BOIA, Lucian. Quand les centenaires seront jeunes. Paris: Les Belles Lettres, 2006.
morrer não temos futuro” (p. 86). CALHEIROS, Luís. Entradas para um Dicionário de Estética: Vanitas Vanitas et
Finalizando essas considerações sobre a relação atual do homem Vanitatem – Vanitas Vanitatum – Vanitas Vanitatis et Omnia Vanitas. Mill-
com o sofrimento diante de sua perecibilidade, percebemos quão dife- lenium, v. 4 n. 13, p. 1-27, 1999.
rente tem sido nosso posicionamento diante da passagem do tempo, em CONRAD, Peter. The medicalization of society : on the transformation of human
conditions into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins Univer-
relação a outros momentos históricos. As tentativas de apagamento dos
sity Press, 2007.
indícios de seu transcorrimento revelam a dificuldade em lidar com a
EHRENBERG, Alain. O Culto da Performance: da aventura empreendedora à
finitude. Segundo Lucian Boia (2006), apesar do desejo de imortalidade depressão nervosa. Aparecida: Idéias & Letras, 2010.
não ser novidade na história humana, as possibilidades que as técnicas FERRAZ, Maria Cristina Franco. Homo deletabilis: corpo, percepção, esqueci-
científicas apresentam atualmente reavivam essa aspiração de juventude mento do século XIX ao XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.
eterna. Muitos pesquisadores têm trabalhado em pesquisas que visam FREIRE, João org. Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de
ao aumento da expectativa de vida e até mesmo à paralisação do enve- Janeiro: FGV, 2010.
lhecimento. Algumas pessoas já se submeteram a processos de criogenia GONÇALVES, Ana Teresa & Vieira, Ivan. Tempo e Eternidade na Idade Média.
na expectativa de que a ciência possa curar seus males em um momento Mirabilia. n. 11, p. 1-17, 2010.
posterior. Porém, na contramão dos horizontes sorridentes oferecidos HARVEY, D. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
pelo mercado de consumo, que incluem juventude, saúde e beleza eter- cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

280 281
HORWITZ, Allan V. & WAKEFIELD, Jerome C. A tristeza perdida: como a psiquia-
tria transformou a depressão em moda. São Paulo: Summus, 2010.
Tempo, trabalho e subjetividade –
MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. 4a. ed. Rio de Janeiro: crises da atualidade
Zahar, 1973.
SARAMAGO, J. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, Evie de França Giannini
2005.
SECCHIN, Antonio Carlos (org.). Poesia completa de Cecília Meireles. Rio de
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SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa.
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e o morrer na hipermodernidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 6
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O tempo da vida não precisa mais ser gerido em função do
tempo do trabalho; é o trabalho que deve encontrar seu lugar,
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VERAS, Lana. O Severino com câncer diante da morte: a morte na visão do serta-
andré gorz (2007, p. 95)
nejo nordestino em tratamento oncológico. Dissertação de mestrado, Uni-
versidade de Fortaleza, Fortaleza, Brasil, 2009.
Estamos vivendo uma fase histórica em que as globalizações1 espraiam-
se cada vez mais pelas sociedades modernas, tornando-se veiculadoras
em larga escala de modelos de comportamento, de atitudes e escolhas,
inclusive nos meios laborais. Entretanto, um sinal vermelho parece aler-
tar: em tempos hipermodernos2, atualíssimos, a pretexto de acatar uma
1 Colocou-se o termo “globalizações” no plural, pois é adotado sob esta forma por vários
autores como Boaventura de Sousa Santos, José Maria Carvalho Ferreira, Ilona Kovácks,
Peter Berger, Samuel Huntington, entre outros, ao considerar que se trata de processos
relacionais de dominação em escala mundial, porém com especificidades muito próprias
segundo cada país, e ainda suas regiões, envolvendo modos diferenciados de efetivação
e resistências a tais processos. Portanto, as globalizações seriam melhores referidas como
um conjunto de estratégias, plural, livrando-se de considerar a suposta “globalização”
como um processo homogêneo, coeso e sem matizes variantes. Como exemplos, basta
citar os títulos das obras de Boaventura Souza Santos: A Reforma do Estado-Providên-
cia entre Globalizações Conflituantes (Edições Afrontamento, 2002); de José Maria
Carvalho Ferreira, Ilona Kovácks e outros: Globalizações – novos rumos no mundo do
trabalho (Editora da UFSC, 2001); e de Peter Berger e Samuel Huntington: Muitas globali-
zações – diversidade cultural no mundo contemporâneo (Editora Record, 2004).
2 Aqui abraçamos o mesmo critério usado por Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles
quando conotam como Hipermodernidade a “terceira fase” da Modernidade. Sob o esteio

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suposta “tendência mundial”, os trabalhadores estão sendo expostos a damente um total de 1.920 km4 apenas para cumprir o ritual diário do
exigências sempre crescentes, subjetivando-os a atuar sob performances trajeto casa-trabalho-casa ao longo de um mês. Na prática, isso significa
perfeccionistas em que as reais capacidades e as limitações humanas não afirmar que é uma viagem ao Estado do Mato Grosso que de um traba-
vêm sendo consideradas. Tais performances exigidas tendem a deformar lhador carioca é exigido percorrer mensalmente para ir ao seu local de
e remodelar o tempo vivido em nome do trabalho dito “produtivo”, rele- trabalho e voltar, já que 1.920 km é quase o equivalente à distância entre
gando a segundo plano outros sentidos da vida existencial, que também a cidade do Rio de Janeiro e Cuiabá (1.986 km). Isso tudo quase sem-
demandam tempo. Assim, graças à vida praticamente voltada ao traba- pre em condições de substancial desconforto, dado à baixa qualidade de
lho, em geral intenso e acelerado, não raro temos percebido também em grande parte dos serviços de transporte público, com itinerários exten-
larga escala o aparecimento e instalação de impactos psicofisiológicos sos e veículos ou composições lotadas.
e sociais sobre trabalhadores das mais diversas áreas, sejam formais ou Mas os longos tempos gastos para cumprir o percurso de ida e
informais. Diante deste quadro, agudo sob diversos aspectos, considera- volta do trabalho, apesar de excessivos, ainda não é o pior fator ligado
mos estar em um momento oportuno para reflexões e debates a respeito ao tempo consumido para atender às exigências da vida laboral. Outros
deste terreno delicado e urgente – o contexto laboral – para que bus- problemas agudos estão diretamente ligados ao tempo comprometido
quemos não apenas analisar os efeitos dos seus impactos sentidos, mas com a “dimensão trabalho”. E tornam-se mais perceptíveis quando
também auscultar onde e como os vetores destes impactos surgem, são analisamos, principalmente, dois aspectos da dinâmica laboral em si:
reproduzidos e mantidos – como tentativa de compreender o trabalho a “jornada de trabalho” e a “intensidade do trabalho”; termos por vezes
para, quiçá, empreender meios que possam transformá-lo. confundidos, mas absolutamente distintos. Sadi Dal Rosso (1949-), pro-
fessor de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador
o deus chronos engole seus filhos das condições de trabalho no Brasil, tem se preocupado em elucidar
as diferenças conceituais e práticas destes termos. Segundo Dal Rosso
A começar, importa colocar em evidência a questão relativa ao tempo (2006, p. 31), a jornada de trabalho “se expressa primeiramente pelo
posto a serviço do trabalho no decorrer da vida. Para se lançar um olhar componente de duração, que compreende a quantidade de tempo que
minimamente atento a este aspecto, é preciso, antes, considerar os tem- o trabalho consome das vidas das pessoas”. Já a intensidade do trabalho
pos gastos pelo trabalhador para perpassar o trajeto de casa para o tra- (DAL ROSSO, 2006, p. 33) “se refere ao consumo de energias pessoais e
balho e seu retorno a casa. Em grandes centros urbanos, como a cidade grupais no trabalho, expressa de outra maneira como sendo o esforço
do Rio de Janeiro, por exemplo, um trabalhador pode chegar a passar despendido pelos/as trabalhadores/as em seu labor cotidiano”. Portanto,
96 horas por mês3 em transportes públicos, para percorrer aproxima-
obter o total de tempo gasto mensal computa 2 horas gastas para ir ao trabalho, mais 2
conceitual de Lipovetsky e Charles, no decorrer da Modernidade podem ser identificadas horas gastas para voltar do trabalho, ou seja, 4 horas diárias. Levando-se em conta 5 dias
três fases – não exatamente apartáveis, mas contíguas – a saber: (1) Modernidade Clás- de trabalho por semana, seriam 20 horas por semana. Em 4 semanas, ou seja, um mês,
sica, (2) Pós-modernidade e (3) Hipermodernidade. Discussões acerca da “Hipermoder- totalizam-se 80 horas. Todavia, a jornada de trabalho semanal no Brasil pode incluir um
nidade enquanto terceira fase da Modernidade” podem ser lidas tanto no livro de Gilles dia a mais, o sábado. Assim, este valor pode saltar de 80 horas para 96 horas por mês de
Lipovetsky e Sébastien Charles, Os tempos hipermodernos (2004, p. 25), como também tempo gasto no trajeto casa-trabalho-casa.
em Gilles Lipovetsky, A felicidade paradoxal (2007, p. 269). Ressalva-se que Lipovetsky 4 Para este mesmo trabalhador, levamos em conta a distância média de 40 km entre a
tende a associar uma “terceira era do capitalismo de consumo” como demarcador desta Zona Oeste do Rio de Janeiro e a Zona Sul do Rio de Janeiro. Assim, a base de cálculo
terceira fase da Modernidade; para tanto ler também em A felicidade paradoxal (2007, p. para obter a distância total percorrida mensalmente computa 80 km diários para a ida e
26-37, mormente p. 36-37). volta do trabalho, multiplicado por 5 dias semanais e 4 semanas por mês, o que resulta
3 A título de exemplo, estamos considerando um trabalhador que more na Zona Oeste da em 1.600 km percorridos todo mês. Uma vez mais é preciso ressaltar que se este mesmo
cidade do Rio de Janeiro e que trabalhe na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro; o tempo indivíduo trabalhar 6 dias por semana, incluindo o Sábado, esta distância salta de
gasto para realizar este trajeto é, em média, de 2 horas. Portanto, a base de cálculo para 1.600 km para 1.920 km.

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podemos concluir que a jornada de trabalho relaciona-se com o tempo sendo que na Modernidade Clássica, também estes filhos pobres passa-
gasto no labor e a intensidade do trabalho relaciona-se ao desgaste gerado ram a ser úteis, pois que desde os 4 anos de idade já eram usados como
pelo labor. força laboral. Se, em 1844, Karl Marx (1818-1883) (2006, p. 110) consta-
O autor (ibidem, p. 31) também destaca que a jornada de trabalho tara que, “se pudessem, os trabalhadores fugiriam do trabalho como se
implica diversos efeitos ao trabalhador, entre eles: (1) afeta a qualidade foge de uma peste”, no início do século XX o trabalho se tornou a própria
de vida, pois interfere na possibilidade de ter mais tempo livre ou não; peste para os trabalhadores.
(2) define a quantidade de tempo dedicado a atividades econômicas; e Todavia, não se pense que a intensificação do trabalho é típica às
(3) estabelece relações diretas entre as condições de saúde, o tipo e o atividades industriais. No decorrer do século XX, principalmente em
tempo de trabalho executado. Esta relação entre as condições de saúde, suas últimas décadas, Sadi Dal Rosso conclui que em todas as atividades
o tipo de trabalho e o tempo da jornada de trabalho encontra justa- que concentram grandes volumes de capital e que envolvem competição
mente vinculação estreita com a intensidade do trabalho. Isso nos leva a sem limites nem fronteiras, como as atividades financeiras, os ramos
pensar em uma outra questão: a proporção entre a duração da jornada de telecomunicação, saúde, educação, esporte, cultura, e tantos outros
de trabalho e a intensidade do trabalho pode se tornar um indicador, serviços imateriais, o emprego do trabalho intensificado é prática corri-
enquanto dado obtenível, de vetor de adoecimento laboral. Ou seja, uma queira (DAL ROSSO, 2008, p. 31).
jornada de trabalho mesmo que não exceda os limites legais de tempo No entanto, aqui cabe um adendo para fins mais reflexivos. Sadi Dal
trabalhado, como as 8 horas diárias no Brasil5, se torna mais desgastante Rosso adverte que a intensidade do trabalho não é uma característica
e adoecedora se no mesmo tempo de trabalho for exigida uma carga estritamente associada à recente organização da atividade laboral. Lem-
maior de trabalho. Aumentar o volume de trabalho no mesmo período bremos que a intensidade do trabalho aponta para o desgaste gerado
de tempo trabalhado é a concepção direta da chamada “intensificação pelo labor, portanto,
do trabalho”; noutras palavras, entende-se a intensificação do trabalho
qualquer trabalho – autônomo ou heterônomo, assalariado ou coopera-
como o processo de aumentar a intensidade do trabalho numa mesma tivo, escravo ou servil, camponês, operário ou intelectual – é realizado
jornada de trabalho. segundo determinado grau de intensidade. Ela é uma condição intrínseca
Esta foi a fórmula usada na virada do século XIX para o século XX por a todo trabalho concreto e está presente em todo tipo de trabalho execu-
Frederick Winslow Taylor (1856-1915), e modernizada por Henry Ford tado, em maior ou menor grau. (DAL ROSSO, idem, p. 20)
(1863-1947), para que numa mesma jornada de trabalho mais trabalho Logo, em um sentido sócio-histórico, o trabalho – esta ação inequi-
fosse produzido, aumentando significativamente os níveis de lucro gera- vocamente “viva” porque mobiliza por completo o sujeito trabalhador, e
dos pela força laboral dos trabalhadores. Desde então, o tempo tornou- é pelo foco no indivíduo que nos interessa por ora considerar –, enfim,
se artigo de luxo, porque de lucro. Esta lógica ganhou status de “organi- o labor6 por si mesmo demanda e sempre demandou uma energia de
zação científica do trabalho” para os capitalistas, enquanto se tornou a
corrosão impiedosa das condições de vida dos trabalhadores, incluindo 6 Aqui faz-se preciso uma nova diferenciação de conceitos, salvaguardando a cautela
suas mulheres e seus filhos. A palavra “proletário” significa em sua ori- necessária quanto aos sentidos que lhes queremos comunicar ao longo do presente artigo.
Suzana Albornoz, em seu livro O que é trabalho (Editora Brasiliense, 2008), partindo de
gem na Roma antiga: “cidadão pobre, útil apenas pelos filhos que gera”;
discussões referenciadas em Hannah Arendt, lembra que esta filósofa alemã repensou a
distinção grega entre labor, poiesis e práxis – termos relacionados ao trabalho –, tendo
5 Segundo a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT adotada pelo Brasil, em sua Seção em vista as novas realidades do mundo contemporâneo (ALBORNOZ, 2008, p. 47-49).
II, relativa à Jornada de Trabalho, dispõe em seu Art. 58, “A duração normal do trabalho, Richard Sennett também faz referência a esta discussão de Hannah Arendt. Pois bem,
para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diá- para Hannah Arendt, o labor é o trabalho do corpo do homem pela sobrevivência, rea-
rias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.” (BRASIL, 2006, p. 246). lizado em nome da manutenção da vida e a continuidade da espécie humana e a autora

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execução, um esforço psicofisiológico, que pode ocasionar um desgaste Sadi Dal Rosso (2008, p. 21) afirma que “na história do desenvol-
mais ou menos intenso ao(s) sujeito(s) que o executa(m). O que se quer vimento econômico, a elevação da intensidade do trabalho 7 cotidiano
e se deve assinalar, então? Para a presente discussão, é prudente remarcar constitui uma força fundamental de crescimento” e que, portanto, “no
que, primeiro, “intensidade de trabalho” e “intensificação do trabalho” capitalismo contemporâneo, a análise da intensidade do trabalho está
são termos relacionais, mas não sinônimos. Segundo, pretendemos prin- voltada para os resultados”. Os resultados, que fiquem bem claros, são
cipalmente discutir acerca da intensificação do trabalho, pois que esta foi aqueles que estão de acordo com os lucros esperados pelos empregado-
inserida pontualmente à organização do trabalho moderno, com conti- res e investidores, impulsionando o crescimento capitalista, em geral,
nuidade de modo notável à organização do trabalho atual, hipermoderno. tendendo a não considerar o desgaste, mesmo que crescente, da força
A intensificação do trabalho – aquela resultante da relação equacionária laboral dos trabalhadores.
entre intensidade de trabalho e tempo de trabalho – esta sim é uma carac- Deste modo, a partir de Taylor e continuado por Ford, começou-
terística histórica da organização do trabalho típica à Modernidade. se a mensurar trabalho por minuto, por segundo, culminando com a
corrida pelo aumento do volume de produtos gerados por unidade de
tempo – fenômeno tão bem traduzido por Charles Chaplin (1889-1977)
faz referência ao “Animal laborens”, quando aponta ao ser humano equiparado a uma no seu lendário filme Tempos Modernos (1936). Nascia também o con-
besta de carga, envolvido à atividade braçal condenada à rotina (ARENDT apud SENNETT, ceito de produtividade, ou seja, “a obtenção de resultados superiores em
2009, p. 16); ainda para a autora alemã, o “trabalho” propriamente dito, traduzido pela
qualidade e quantidade, decorrentes de investimentos em tecnologias
palavra grega poiesis, é o fazer, a fabricação, e refere-se à realização de um produto pela
arte, ainda que de posse de instrumentos de trabalho (ARENDT apud ALBORNOZ, 2008, p. materiais inovadoras e organizativas que não requeiram maior consumo
47). Sob tais termos, o trabalho eleva-se ao status de criação, e o trabalhador, ao de artista. das energias pessoais”8 (DAL ROSSO, 2006, p. 33); isso significa que à época
Neste caso, Arendt relaciona ao “Homo faber” o sujeito trabalhador criador que veicula
o manejo de uma vida social através de seu trabalho-arte (ARENDT apud SENNETT, 2009,
de Taylor e Ford criou-se uma preocupação com a redução de energias
p. 16-17). Finalmente, a ação – a práxis – se daria apenas através do discurso, da palavra, gastas no labor, já que isso implicaria em um aumento de lucros. Toda-
estando a serviço da esfera política em que os sujeitos discutem os interesses e as questões via, sob a lógica do taylorismo-fordismo, tal preocupação não se deu
que vão determinar as relações harmoniosas entre os concidadãos (ALBORNOZ, 2008, p.
48). Todavia, a partir destas diferenciações, queremos assinalar que as palavras “labor” e de modo “humanizado”, isto é, não em vistas ao trabalhador enquanto
“trabalho” serão repetidamente usadas no presente artigo com significados não restritos sujeito dotado de um aparato psicofisiológico que responde com limita-
aos conceitos de Hannah Arendt, nem mesmo às origens conceituais da Grécia Clássica.
ções e adoecimentos ao aumento indefinido de esforço.
Para nós, o trabalho e o labor se inter-relacionam de modo bastante estreito, amalga-
mado quase. Quando nos referimos ao labor, não negligenciamos sua natureza de ação Sob a organização do trabalho taylorista, por exemplo, o aumento
pela sobrevivência humana, mas não o restringimos ao trabalho dito braçal; denotaremos de produtividade – de modo simplista e direto: a economia de energias
o labor, tanto quanto o trabalho, enquanto ação de realização, em quaisquer contextos
laborais, podendo vir a ser criativa e criadora. Porque por trás do labor e do trabalho, sob
laborais – era obtido, basicamente, interferindo-se nos elementos labo-
nossa proposta de ótica, encontraremos um sujeito laborativo que executa uma atividade, rais não maquínicos – humanos e organizacionais, noutros termos –, e
mas é sempre capaz de pensar sobre sua ação e seus efeitos; é capaz de criar e questionar se limitava a desenvolver o treinamento dos trabalhadores com o obje-
o sentido de seu trabalho e, diante de dadas possibilidades de resistência e transformação,
é plenamente capaz de ressignificar o sentido de seu trabalho – mesmo inserido em um tivo de diminuir o tempo gasto pelos trabalhadores por operação reali-
ambiente laboral repressor à liberdade de pensar e agir, por mais repetitiva e braçal que zada para a confecção de um produto. Para tanto, e em resumo, Taylor,
seja sua rotina de trabalho. A escolha que fazemos em fundir os significados das palavras
“labor” e “trabalho” a favor do entendimento do sujeito laborioso como sendo criador,
pensante e inquieto, está mais de acordo com as considerações de Richard Sennett, em
seu livro O artífice (Editora Record, 2009), quando o autor ressalva que tanto o Animal 7 Já aqui, entendamos a “elevação da intensidade do trabalho” justamente como a “inten-
labores quanto o Homo faber de Hannah Arendt são capazes de pensar e transformar suas sificação do trabalho”. Portanto, as expressões: “aumento ou elevação da intensidade do
ações de trabalhar (SENNETT, 2009, p. 17). Eis por que admitimos a “ação de trabalhar” trabalho” e “intensificação do trabalho” são sinônimas.
como “inequivocamente viva”. 8 Grifo nosso.

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através da observação sistemática,9 expropriou o saber dos trabalhado- também foi treinado para realizar suas tarefas fragmentadas de modo
res e “aprendeu” todas as etapas do processo de produção que, até então, sistemático e cronometrado, criando-se a dita “cronoanálise”: cumpria-
era um saber exclusivo aos trabalhadores, um savoir-faire (know-how ou se cada etapa conforme os melhores tempos de execução segundo Taylor,
saber-fazer) conquistado graças à experiência adquirida e trocada ape- isto é, os menores tempos de execução. Passando o trabalhador a execu-
nas entre os trabalhadores.10 Sendo fruto de experiência e aprendizado, tar etapas, Taylor logrou o total domínio sobre cada etapa do processo
de ensaios, de tentativas e erros, de vivência e aplicação prática, ficou produtivo, assim como o estrito controle sobre cada tempo gasto ao
claro para Taylor que o conhecimento acerca dos conjuntos de técnicas longo de todo o processo produtivo. A partir desta nova organização do
produtivas criadas pelos trabalhadores não era homogêneo nem quanto trabalho – fragmentada, cronometrada, homogeneizada e controlada –
à realização de cada etapa de operação, nem quanto ao tempo gasto para Taylor desenvolveu a “administração científica do trabalho”, dando ori-
cumpri-las. Em posse deste conhecimento operário, e as conclusões gem mais tarde ao campo de saber: Administração.
acerca da diferença entre os tempos gastos por operação, Taylor anali- Já para o fordismo, por exemplo, o aumento de produtividade foi
sou cada movimento operatório observado e mediu cada tempo consu- mais substancialmente alavancado por meio da economia de energias
mido por etapa, de modo a conceber o chamado “the best way”; ou seja, maquínicas, alcançada através de incrementos tecnológicos, como a
entre todas as modalidades de técnicas operárias observadas, elegeu os criação e aplicação da “linha de montagem”, criada em 1906 por Henry
processos operatórios que exigiam menos movimentos dos trabalhado- Ford, propiciando um aumento notável da produtividade graças à dimi-
res, bem como aqueles que levavam menos tempo para ser executados. nuição drástica do tempo que o trabalhador gastava na produção por
Além disso, Taylor fragmentou o processo produtivo por trabalhador, já peça – a título de exemplo, um carro modelo “Ford T” que antes do
que antes um operário realizava o processo inteiro de produção de uma advento da linha de montagem mostrava um tempo de produção em
peça. Noutros termos, o trabalhador passou a executar poucas etapas torno de 12 horas por carro, passou a ter 1 hora e 20 minutos de produ-
do processo inteiro, surgindo, assim, o “especialista do detalhe”, o qual ção por carro. É digno de nota que a velocidade da linha de produção
(o conjunto da linha de montagem e os trabalhadores operadores) era
9 A observação sistemática realizada por Taylor consistia em ficar ao lado do trabalhador determinada pelos “gerentes de produção”, um incremento organizacio-
observando seu trabalho e anotando em detalhes e de modo sistemático toda a cadeia de
movimentos necessária para a confecção de um produto.
nal criado por Taylor. O princípio básico da linha de produção seria
10 Há um dado interessante aqui. O saber-fazer operário também era usado como instru- manter o trabalhador “no mesmo lugar”, onde a produção passava diante
mento de resistência pelos trabalhadores. Em posse do saber-fazer mantido apenas entre dele, na esteira ou na linha de montagem. O interessante é que Ford sus-
os trabalhadores e, por isso, reconhecendo eles muito bem que os empregadores nada
sabiam em termos de confecção de um produto (os empregadores limitavam-se a dar
tentava o argumento de que com a linha de montagem o trabalhador
ordens, exigir números de peças produzidas, mas de forma alguma sabiam produzi-las), “economizava energia”, já que não precisava mais atravessar os espaços
os operários encontravam no saber-fazer uma possibilidade incrivelmente eficaz de con- fabris em busca de ferramentas e peças11, além de, tornando-se um mero
trolar o desgaste ocasionado pelo trabalho, lançando mão de mecanismos de controle
do tempo de execução das peças, ou mesmo como elemento de negociação diante das
exigências do aumento de produção por parte dos empregadores. Taylor via estes meca- 11 Existia uma certa vantagem laboral no ato de ir e vir por parte dos trabalhadores no
nismos de resistência operária como sérios entraves à produção capitalista. Até então, ambiente fabril, logicamente aos olhos dos operários, mas de forma alguma para os capi-
os capitalistas conheciam esta relutância bem articulada pelos operários, mas foi Taylor talistas. Para os trabalhadores, era possível nestes instantes descansar, ou melhor, dimi-
quem conseguiu pela primeira vez exercer maior controle sobre ela. Farto desta “depen- nuir a carga laboral – sem mencionar que também funcionavam como mecanismo de
dência” aos trabalhadores que salvaguardavam seu saber-fazer operário, Taylor propôs-se resistência. Por outro lado, à época, para os capitalistas, as idas e voltas eram considera-
a expropriar-lhes o saber-fazer, e o conseguiu graças à observação sistemática e todas as das “tempos-mortos”, “não produtivos”, já que não ocasionavam lucros, pois que, se os
medidas subsequentes de organização do trabalho desenvolvidas e aplicadas ao campo empregados eram pagos por hora ou jornada, sendo uma parte desta jornada “gasta” com
fabril. Pode-se dizer que o taylorismo foi um avanço significativo, e lamentável, gran- movimentação não lucrativa, os tempos mortos se tornaram alvo de controle e coibição
jeado pelo capitalismo para recrudescer as estratégias de exploração laboral – às portas por parte dos empregadores. Karl Marx ilustrou muito bem estes manejos capitalistas ao
de entrada do século XX. desenvolver uma analogia ao termo “porosidade”, para afirmar que “o trabalho é ‘poroso’

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executor, treinado para o trabalho fragmentado e cronometrado aos LER – lesão por esforço repetitivo; e mais recentemente, DORT – dis-
moldes tayloristas, o trabalhador “economizava energias mentais”. Sem túrbio osteomuscular relacionado ao trabalho12. Aliás, Karl Marx (1973,
se locomover e “sem pensar”, energias eram poupadas e o aumento de p. 306) já asseverava que “o homem é um instrumento muito imper-
produtividade obtido. feito de produção quando se trata de conseguir movimentos uniformes
Posto tudo isso, aqui cabem algumas discussões oportunas. e contínuos”. Sob a ótica da Ergonomia, todavia, o ser humano não é
Primeiro, Taylor não contava que certos movimentos adotados propriamente “imperfeito” para a execução continuada de movimentos,
pelos trabalhadores – considerados à lógica taylorista como operações pelo contrário. A fineza da estrutura psicofísica humana é a tal nível
desnecessárias e descartáveis, pois faziam o trabalhador “perder tempo funcional que, mesmo os movimentos repetitivos sendo profundamente
de trabalho produtivo” – também têm uma finalidade fisiológica de desgastantes ao aparato psicofisiológico como um todo, é capaz de acio-
proteção muscular. Ou seja, sem que uma pessoa perceba, ela é capaz nar mecanismos limitadores à rotina muscular, o que vem a garantir o
de realizar movimentos “não conscientes” acionados pelo cérebro para bom funcionamento do corpo e da mente humana. O que a Ergonomia
manter alguma saúde corporal, de forma que, por exemplo, o músculo acrescenta é que os mecanismos de compensação muscular precisam ser
possa revigorar-se após a execução repetitiva e extenuante de certos adotados e até motivados. Se o ser humano fosse capaz de manter movi-
movimentos. Podemos considerar estes movimentos como “mecanis- mento contínuo indefinido, neste caso sim, decerto padeceria muito
mos de compensação” muscular. Alguns exemplos corriqueiros são: mais rapidamente.
o ato de espreguiçar-se depois de horas de trabalho intelectual; uma Segundo, cabe questionar se o conceito de produtividade real-
mudança de posição do modo de sentar; um esfregar de mãos sobre a mente é aplicável aos modelos tayloristas-fordistas de organização do
coxa após longas horas sentado; ou um balanço pendular do corpo para trabalho. Ora, se a produtividade é conceituada pela obtenção de resul-
frente e para trás de quem está horas a fio de pé. Todos estes mecanis- tados superiores que não requeiram maior consumo de energia humana,
mos de compensação muscular objetivam a manutenção, ainda que em disso deriva que um aumento de produtividade, para ser autêntico, não
níveis sutis, da circulação sanguínea salutar dos músculos sob esforço pode implicar em um aumento de intensidade do trabalho ou inten-
estático ou dinâmico, como os faciais, cervicais, lombares, glúteos, etc. sificação laboral. Essa diferenciação faz-se importante, pois tais ter-
Assim, quando Taylor e Ford exigiam dos trabalhadores que estes exe- mos são alvos de muitos equívocos conceituais: tanto a intensificação
cutassem com precisão certos movimentos de modo repetitivo e ininter- do trabalho como a produtividade intentam expressar incrementos,
rupto, ao mesmo tempo em que a eles era coibida e até proibida a adoção aumentos, nos resultados obtidos pelo trabalho (produtos, lucros, etc.),
de movimentos não planejados – incluindo os mecanismos de compen- com a diferença de que a primeira desgasta o trabalhador e a segunda
sação muscular –, a organização do trabalho taylorista-fordista inaugu- procura modos de não aumentar o consumo de energia do trabalhador.
rara o adoecimento laboral por esforço repetitivo, hoje conhecido como Em resumo, um aumento de produtividade à custa de intensificação do
trabalho não é um exemplo autêntico de aumento produtividade. No
no sentido de ser uma atividade intercalada por momentos de não trabalho; ou seja, a caso do taylorismo-fordismo, a corrida bem-sucedida pelo “aumento
jornada compreende em seu interior duas realidades: momentos de trabalho e não tra-
balho” (MARX apud DAL ROSSO, 2008, p. 47). A “porosidade”, para Marx, era justamente
o não trabalho e, pelos motivos expostos, benéfica ao sujeito laborativo, mas contrapro- 12 É possível encontrar em diversas obras, sobretudo não científicas, discriminações dife-
ducente ao capitalismo. Todavia, atualmente reconhece-se que a “porosidade” é benéfica rentes para a sigla DORT, tais como “doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho”
à produtividade porquanto contribui ao revigoramento da energia laboral que, assim, e ainda “distúrbios osteoligomusculares relacionados ao trabalho”, entre outras variações.
poderá ser melhor aproveitada por um maior período de tempo. O notável é que o capi- Ainda que todas estas discriminações não resultem no prejuízo conceitual da implica-
talismo hodierno, contemporâneo, concebe o tempo do trabalhador em descanso como ção de DORT aos impactos fisiológicos provocados pelo trabalho, queremos salientar que
sendo tão lucrativo – e em ambientes de trabalho intelectual até mais lucrativo – do que estamos adotando a referência nominativa para DORT segundo o Manual de Aplicação da
o exercício do trabalho em si. Norma Regulamentadora 17 – NR 17 (Ergonomia), 2004, p. 56.

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de produtividade”, ou mais adequadamente, pelo aumento de produ- um acionar de botão, em seu 1o segundo de duração. Pois bem, aos 14
ção e de lucros, incitou uma inequívoca intensificação do trabalho: os minutos e 59 segundos restantes, era dado ao mesmo operador de vál-
trabalhadores de fato consumiram mais energias e se desgastaram mais vulas a função de acionar dezenas, centenas de outras válvulas automá-
– diga-se, muito mais! – após a criação e aplicação da “administração ticas. Em termos físicos, os músculos superiores dos trabalhadores eram
científica do trabalho” e o advento da linha de montagem, conside- poupados, todavia, o acionar do botão não requer energia física substan-
rando todos os impactos psicofisiológicos gerados. Aliás, essa questão cial, senão energia cognitiva e psíquica intensa, pois calcular o momento
pode deixar aqui uma reflexão inquieta: existiria um aumento de pro- oportuno de acionar ou não o botão de uma válvula demanda o cálculo
dutividade que realmente não redundasse em aumento de dispêndio de minucioso dos efeitos que a produção deseja alcançar; ou evitar, quando
energias humanas, considerando-as produtos de esforços tanto fisioló- a equivocada operação de uma válvula pode pôr em risco tanto a pro-
gicos como psíquicos e mentais? Se sim, certamente são bastante raros, dutividade como a própria vida dos operadores. Resultado: nos mesmos
raríssimos, os exemplos genuínos. 15 minutos de labor, a carga cognitiva de trabalho – pela intensificação
cognitiva – aumentou de forma tão drástica, que não raro encontráva-
quando os filhos engolem o deus chronos... mos operadores saudosos da época em que manipulavam válvulas com
mais de 200 giros braçais. Porque, para eles, a responsabilidade incitada
Finalmente, e o que mais nos interessa para o presente mote de discus- pelas decisões implicadas pelo acionar das dezenas e centenas de botões
sões, há que se considerar o tempo existencial do sujeito que trabalha. automáticos era alta demais, sem mencionar as penalizações a que esses
A começar que um tempo premente, curto, para a execução de operadores eram submetidos por parte da empresa ao tomarem deci-
tarefas não concede em contrapartida um tempo de sobra, ou melhor, sões equivocadas. Os trabalhadores relatavam que as atividades nas salas
algum tempo livre desfrutável, por exemplo, em descanso ou mesmo no de controle dos processos automatizados eram incrivelmente cansativas,
lazer. Um argumento frequentemente usado ao longo da Modernidade e alguns deles chegavam a afirmar que precisavam de mais tempo de
– sobretudo na Modernidade Clássica – sustentava que a aceleração das descanso para refazerem-se após os trabalhos na sala de controle, do que
tarefas poderia trazer uma redução da jornada de trabalho, ganhando- nas áreas industriais em que o trabalho físico é mais proeminente que
se tempo excedente livre à disposição do corpo social laborativo. Esta o cognitivo. Em curtos termos, uma alta carga laboral cognitiva pode
promessa quanto à aceleração tampouco se realizou, como acionou o gerar impactos psicofisiológicos mais significativos e danosos que a alta
aumento de carga cognitiva laboral. Nossa experiência – mormente no carga laboral física. Isso tudo graças ao tempo encurtado pelas tarefas.
campo da Ergonomia – tem mostrado que quando uma tarefa consegue Uma outra questão importante refere-se à atividade que exige tra-
ser remodelada a ponto de ser realizada em menos tempo, a este tempo balho contínuo e repetitivo, e em que não é dado ao trabalhador o exer-
excedente conseguido no interior da jornada de trabalho são aplica- cício do livre raciocínio. O ser humano é um ser eminentemente pen-
das outras tarefas, contribuindo, assim, de maneira indireta ou sutil, à sante. Fazê-lo trabalhar “sem pensar” de fato é impossível, mas coibir a
intensificação do trabalho, que sob o contexto atual, quase sempre se dá criatividade, o uso do pensamento que busca novas propostas, novos
em nível mental, cognitivo. A título de exemplo: nas esferas industriais manejos, ou a criação de outros modos operatórios que não aqueles já
percebemos que a automação de tarefas que antes eram executadas de definidos pela tarefa estritamente planejada pela empresa, acaba por
modo físico, como o acionar de válvulas que antes exigia do trabalhador gerar “pobreza cognitiva”. Ou seja, sabendo o trabalhador que ele tem
o manejo braçal de dezenas de giros, fazendo-o levar, suponhamos, 15 ideias, sugestões, algumas bem mais eficazes do que as tarefas vigentes,
minutos de operação, após o advento das válvulas automatizadas, uma mas que aquelas não são acolhidas ou mesmo permitidas ser expressas
operação de abrir ou fechar de válvula começou a exigir não mais que pela empresa, coloca o trabalhador em situação de desconforto, tanto

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psíquico quanto social. O trabalhador sente-se menosprezado, desva- prazer de seu trabalho. E este prazer, salvo com limites, pode se tornar
lorizado, constatando que não passa de um “animal laboral”, um dente vetor de adoecimento. Trata-se de um passaporte sedutor, e impercep-
a mais na engrenagem do processo produtivo, descartável e infame. tível, a um tipo de intensificação do trabalho bastante diferenciada, já
Levando-se em consideração o sentido de seu trabalho que ali, naquele que incitada pelo trabalhador sobre si mesmo sem, digamos, “agentes
contexto, é irrisório, este sujeito torna-se susceptível ao desenvolvimento físicos controladores externos” a este trabalhador. Tal intensificação do
de apatia, e se crônica, ao instale de quadros patológicos. Um trabalho trabalho, sempre crescente em nome do aumento de ganhos emocio-
a que, durante sua jornada, seu tempo laboral é dado níveis substan- nais do próprio trabalhador, gera a “autoexploração”, e sem precedentes,
ciais de motivação para pensar e questionar, possibilita que este tempo pois não há nenhum tido de mecanismo – nem de resistência nem de
possa ser desenvolvido também em prol da valorização do sentido deste negociação – que o trabalhador possa lançar mão “contra si mesmo”.
mesmo trabalho; e mais, viabiliza a reflexão existencial quanto ao sen- Isso resulta que estes tipos de trabalhadores, cujos sintomas expressos
tido deste trabalho enquanto parte do projeto de uma vida plena. Não por vezes atendem ao quadro “workaholic” – o “viciado em trabalho” –,
estamos aqui examinando o inegável lucro que a empresa obtém ao ter, perdem a noção das enormes energias gastas no trabalho e, não raro, da
por esta via, trabalhadores mais motivados e, portanto, mais produtivos; percepção do excessivo tempo dedicado ao trabalho; com isso, perdem a
senão atentando que o trabalhador, este ser humano laborativo, também noção de valor do tempo que também é preciso ser desfrutado de modo
precisa usar o tempo laboral a favor de questões pessoais, existenciais, social, relacional com amigos, familiares e até a sós consigo mesmos.
que tendem a desenvolver critérios prazerosos que justifiquem sua jor- Neste caso, não é o sentido dado ao trabalho que está em jogo, senão o
nada de trabalho e ampliem seu bem-estar emocional íntimo e social sentido dado à vida como um todo. É a vida lá fora que perde o trabalha-
para além do contexto laboral. A vida não é só o trabalho, mas a vida do dor, quando este trabalhador perde sua vida trabalhando.
trabalho não pode negligenciar a vida como um todo. Do contrário, não Estes trabalhadores desenvolvem um grau tal de miopia com refe-
há vida possível. rência à hipervalorização do tempo destinado a alimentar o prazer de
Esta questão acerca do sentido dado ao trabalho deriva um outro seus trabalhos, e à desvalorização aguda que dão ao tempo passado fora
aspecto que também merece nossa atenção. Há trabalhadores que iden- dele – sejam nos fins de semana, sejam nos ditos “dias úteis” –, que não
tificam seu trabalho como um campo veiculador de enorme satisfação. conseguem mais descansar, ter lazer, contemplar a vida num fim de tarde
Estes trabalhadores, contentes e realizados, não medem esforços para ou início de noite, ou ainda, simplesmente nada fazer. Muitas vezes,
dedicarem-se aos seus labores. E são produtivos, são criativos, são estes indivíduos negam-se a acreditar que atingiram um grau alarmante
implicados e destemidos. Mais uma vez não examinaremos as enormes de impacto psíquico – aliás, a negação é um mecanismo de defesa típico
possibilidades de lucro que estes geram para suas empresas e empreen- dos adictos, segundo os psicanalistas e psiquiatras. Assim, o trabalhador
dimentos muitas vezes pessoais, para o caso de profissionais sociopro- hiperimplicado emocionalmente ao labor pode tornar-se resistente ao
prietários ou mesmo, quando autônomos, ou “liberais”. Miremos no descanso, à pausa, à suspensão de trabalho, às férias de 20 ou 30 dias
indivíduo laborativo apenas: sujeitos felizes, cujo sentido laboral é pleni- – sem falar do pavor à aposentadoria –, a ponto de considerar que o
ficado segundo critérios íntimos. As vantagens psíquicas e sociais con- tempo de pausa está sendo desperdiçado, ou mesmo causando prejuízo
quistadas por este tipo – privilegiado – de trabalho são inegáveis. Mas financeiro graças à não produtividade “compulsória” sob os contextos de
não podemos afirmar que existam apenas vantagens. As desvantagens “parada obrigatória” da jornada de trabalho. Também não analisaremos,
são várias, e sutilmente corrosivas. A forte implicação pessoal ao tra- por ora, as medidas que possam minorar impactos e melhorar a condi-
balho faz com que o trabalhador perca de vista o dispêndio de energias ção psíquica e social destes trabalhadores, mas queremos ressaltar que
consciente e deliberadamente investidas em seu trabalho, ou melhor, no as desvantagens do “amor ao trabalho” sem limites nem critérios podem

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levar sujeitos laborativos à beira de situações patológicas, e quando não, duração da jornada de trabalho. É um começo, mas ainda assim, com
a prejuízos por vezes irreparáveis às suas vidas sociais mais amplas. sérios entraves.
No entanto, há que se considerar, sem sombra de dúvidas, que mui- A OIT – Organização Internacional do Trabalho – orienta que
tas vezes nos debruçamos por horas a fio em certas tarefas, que renderão para manter a saúde do trabalhador, o limite de horas trabalhadas por
frutos inestimáveis a dados projetos de trabalho que desejamos realizar semana não pode exceder de 50 horas (LEE; McCANN; MESSENGER, 2009,
com qualidade. A dedicação, neste caso, é ingrediente imprescindível. p. 8), daí que a adoção da jornada de trabalho legalizada máxima acei-
Não há por que fugir destas horas de franco empenho, nem tampouco tável de 48 horas semanais, proposta aos diversos países do mundo pela
acusá-las de “doentias” e nos culpabilizarmos perante tamanho esforço. OIT desde 191913 – portanto, há quase um século –, tem sido considerada
Vez ou outra, tais tempos mais ou menos longos de trabalho serão neces- uma aspiração de peso pela OIT. Entretanto, a própria OIT pondera que
sários e, inclusive, genuinamente prazerosos. Porém, o que queremos “a semana de trabalho de 48 horas não passa de ‘tigre de papel’, por-
ressaltar, diferenciando as ocasiões, é que permanecer constantemente que apesar de estar estabelecida na legislação, na prática é escassamente
focado no trabalho, a ponto de fazer de longas horas de trabalho diário, cumprida” (LEE; McCANN; MESSENGER, idem, p. 2).
hebdomadário ou mensal uma rotina, deve nos fazer acender um alerta Em termos legais, os países do mundo relatam que este limite de
vermelho. Porque o trabalho constante não pode ocupar boa parte da 50 horas tem sido respeitado14, mas a realidade de fato mostra que não é
vida, nem mesmo metade dela. No máximo uma fração bem definida bem assim... Grande parte dos países tem implicado esforços para reco-
e delimitada, que caiba na vida com conforto de sobra; e com sentido nhecer e regular a jornada de trabalho semanal máxima de 48 horas,
existencial tal que possibilite que o projeto de uma vida abarque o traba- como é o caso do Brasil, onde se determina legalmente desde 1988, atra-
lho, mas também o não trabalho e suas inúmeras possibilidades outras vés da Constituição Federal – CF 1988, que a jornada semanal é de 44
de realização. É com base nesta quase premissa que retomamos a citação horas.15 Porém, segundo dados da Pesquisa Nacional para Amostra de
de André Gorz – apresentada antes das primeiras palavras deste texto: Domicílios (PNAD) do IBGE, em 2008, 19,1% dos ocupados brasileiros
“é o trabalho que deve encontrar seu lugar, um lugar subordinado a um trabalharam uma jornada superior às 48 horas semanais estabeleci-
projeto de vida” (GORZ, 2007, p. 95). Ora, amor é substância etérea des-
tinada a pessoas, a entes queridos, ou a novas pessoas descobertas pelos
caminhos da vida. Trabalho não se ama; se realiza, no máximo se troca.
13 A primeira convenção da OIT, a Convenção sobre as Horas de Trabalho (Indústria), 1919
Alimenta, mas sem engordar ou fazer secar o psiquismo de ninguém. (nº 1), estabeleceu o princípio de “oito horas por dia e 48 horas por semana” para o setor
manufatureiro (LEE; McCANN; MESSENGER, 2009, p. 1).
14 Lee, McCann e Messenger (2009, p. 1) consideram que a adoção legal da jornada semanal
limites à insaciedade de chronos de 48 horas em níveis mundiais tem se tornado sólida realidade. Também afirmam que
as jornadas de trabalho legais têm reduzido gradualmente de 48 horas para 40 horas em
Todavia, estamos muito longe de dispormos de instrumentos regulado- um grande número de países.
res dos níveis máximos de intensificação do trabalho – seja a intensifica- 15 A Constituição Federal – CF vigente no Brasil desde 1988, em seu Art. 7º inciso XII, dis-
ção imposta pelos empregadores ou pelo próprio trabalhador. Em geral, põe “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro
semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo
o que se tem efetivado não ultrapassa o esforço de catalogar e quantificar ou convenção coletiva do trabalho;” (BRASIL, 2006, p. 16). Todavia, segundo a OIT (s/d,
os efeitos da intensificação do trabalho, portanto, apenas se lida com 2ª lauda) existe uma heterogeneidade entre as horas médias trabalhadas por posição na
ocupação. Só os empregados contratados formalmente (com carteira assinada) têm uma
sintomas quando já deletérios, havendo pouquíssima ação preventiva. jornada regulamentada de 44 horas por semana pela CLT. Os funcionários públicos esta-
Assim, o mundo atesta que não tem conseguido combater o sofrimento tutários têm uma jornada máxima de 40 horas por semana, enquanto a jornada dos tra-
balhadores domésticos não tem limite máximo, já que foram excluídos deste direito na
causado pela intensificação do trabalho, e se limita a regular apenas a CF 1988.

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das (IBGE apud OIT, s/d, 1ª lauda).16 E o problema se agudiza em todo seja, 14 horas a menos. A estatística nacional de 2008 mostrou que, ape-
o mundo quando se constata que existe o acúmulo de atividades labo- sar da jornada média semanal das mulheres no mercado de trabalho ser
rais por força dos salários baixos. Como meio de se garantir uma renda inferior à dos homens, ou seja, 44 horas para os homens e 36,4 horas
mensal minimamente satisfatória, o trabalhador divide-se entre empre- para as mulheres, levando em conta o somatório de horas trabalhadas
gos e “bicos”, ou seja, somando trabalho formal com trabalho informal, no mercado, com a de horas trabalhadas no âmbito doméstico, a jor-
resultando em muito mais horas excedentes de trabalho. nada média semanal feminina alcançou 54,7 horas e ultrapassa em mais
No entanto, não circunscrevamos o trabalho informal ao “biscate”, de 6 horas a masculina (48,3 horas). Em suma, a jornada de trabalho
ao “bico”. Ao universo do trabalho informal podemos relacionar o tra- efetiva (somatório da mercadológica com a doméstica) das mulheres
balho que não é amparado por dispositivos legais de proteção ao traba- brasileiras chega a ultrapassar o limite de trabalho salutar apontado
lhador, de forma que os trabalhadores informais não têm direitos traba- pela OIT de 50 horas semanais.
lhistas assegurados.17 Muitos tipos de trabalho ainda se encontram nesta Porém, cabe lembrar que a totalização precisa das horas excessivas
situação, como certas modalidades de labor envolvendo artesanato, de trabalho exigidas por outros inúmeros contextos de labores acumu-
pesca, caça, mineração, extração de produtos silvícolas, e, entre tantos lados dificilmente é computada de modo real pelos países. Há, ainda, as
outros, o próprio trabalho doméstico – ressalvamos que não nos referi- horas extras ilegais impostas por muitos empregos formais,18 geralmente
mos à empregada doméstica, cuja classe tem obtido avanços paulatinos não comunicadas pelas empresas aos órgãos reguladores; tratando-se de
rumo ao reconhecimento trabalhista legal, mas apontamos a “dona de outro dado para o qual a estatística oficial é míope. Em curtos termos:
casa”, o “homem do lar”, enfim, os sujeitos que trabalham em seu próprio trabalha-se muito mais do que os já elevados números oficiais trans-
domicílio em nome da manutenção do lar. mitem. Estes são os reais custos que a organização do trabalho vigente
Assim, analisemos, de modo breve, a situação da jornada de tra- exige do trabalhador.
balho acumulada pelo trabalho formal e informal que envolve especi- Não à toa, a OIT tem reunido esforços para reduzir a jornada de tra-
ficamente o trabalho doméstico e, a título de exemplo, consideremos balho em todo o mundo, promovendo campanhas, e realizando, fomen-
apenas o panorama brasileiro. Também em 2008, no Brasil (OIT, s/d, 1ª tando e publicando estudos internacionais; a OIT reconhece que esta luta
lauda) computou-se que 87,8% das mulheres brasileiras, além de reali- tem sido acirrada, muito embora ainda vencida com folga. Os estudos
zarem o trabalho dito “produtivo”, ou “voltado para o mercado”, tam- da OIT têm demonstrado, por exemplo, que, apesar de historicamente
bém cumpriam afazeres domésticos. Entre os homens brasileiros tal a duração da jornada de trabalho estar diminuindo pelo mundo (vide
proporção era expressivamente inferior: 46,5%. Para o mesmo período, Gráfico 1),19 as horas que o ser humano dedica ao trabalho ainda são
a média de horas dedicadas aos afazeres domésticos foi de 18,3 horas muito elevadas.
para as mulheres ocupadas e 4,3 horas para os homens ocupados, ou

16 Esta informação tem origem eletrônica, ou seja, via WEB. Trata-se de um artigo da
OIT-Brasil não datado nem paginado, daí a referência à lauda do artigo, para facilitar a 18 Segundo a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, adotada pelo Brasil, em sua Seção
localização da informação, segundo o interesse do leitor. Para seu encontro, indicamos II, relativa à Jornada de Trabalho, dispõe em seu Art. 59, “A duração normal do trabalho
que o link de acesso é: <http://www.oitbrasil.org.br/topic/employment/doc/jornada_bra- poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas),
sil_145.pdf>. Último acesso: março de 2011. mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo
17 Os trabalhadores informais (trabalhadores por conta própria, empregados e domésticos de trabalho.” (BRASIL, 2006, p. 247). Portanto quaisquer condições de trabalho formal
sem carteira assinada e os não remunerados), por não ter vínculo empregatício (caso dos mediante carteira assinada, e que exijam o cumprimento de mais que 2 horas extras diá-
trabalhadores por conta própria), ou não ter esse vínculo formalizado nos outros casos, rias, estão em não conformidade com a lei vigente, no caso a CLT.
ficam de fora da regulamentação das leis trabalhistas vigentes (OIT, s/d, 2ª lauda). 19 Fonte: LEE; McCANN; MESSENGER, 2009, p. 24.

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as vestes e armas de chronos
Mas, em tempos hipermodernos, um trabalhador, por vezes, é levado
a almejar avidamente um emprego, de preferência estável, rentável,
reconhecido e amparado legalmente. Bradam uníssonas vozes: “Mais
Empregos!”, ou ainda, “Empregos já!”. As reivindicações têm motivações
autênticas, inegavelmente justificáveis: o gozo de uma vida plena neces-
sita de meios que a provejam. Em sociedades que cunham moedas, o
sustento para ter o pão, e ter a flor,21 depende de dinheiro.
Decerto, seria prudente perguntar que tipo de emprego que se
quer. Sim, um emprego que simplesmente dá o salário pode, não raro,
tirar a saúde. Até aqui, discutimos sobre a intensificação do trabalho e
o manejo do tempo excessivamente ligado à vida laboral de forma que
estes se mostram críticos vetores de adoecimento. Tais argumentos, ape-
nas para citar os dois, já seriam suficientes para se reconhecer que um
Gráfico 1 – Tendência histórica da jornada anual de trabalho em países selecionados (1879-2000). emprego não necessariamente garante a vida. Garante algum sustento
Fonte: huberman (2002). de vida, mas nem sempre garante a vida em seu significado mais amplo,
plena, existencialmente rica. Porém, exigir tal grau de criticidade a sujei-
Mas não vivemos apenas de más notícias; ainda há esperanças. No tos esfaimados, endividados ou desempregados nos colocaria sob o risco
Brasil, por exemplo, há movimentos em prol da redução da jornada de de sermos considerados cruéis. Talvez pedradas não nos faltassem...
trabalho de 44 horas semanais, para 40 horas semanais. Segundo indi- O fato é que vivemos em uma sociedade de incertezas. Mesmo
cações da OIT-Brasil (OIT, 2010, 1ª lauda),20 a categoria ocupacional que nos grandes centros urbanos onde os avanços da tecnologia, em prin-
será diretamente afetada por uma eventual redução da jornada legal de cípio, estão ao alcance em maior ou menor grau de seus societários – ou
trabalho para 40 horas semanais são os empregados do setor privado melhor, dos societários que têm as tais moedas para comprar o pão, a
com carteira de trabalho assinada. Estes equivalem a 33,2% das pessoas flor e, diga-se, muitos outros bens – não lhes é garantida uma segurança
ocupadas no Brasil, ou seja, 31,9 milhões de trabalhadores e trabalhado- irrestrita. Não nos referimos apenas à segurança contra a violência física
ras. Dentro desse grupo, 58,6% trabalhavam mais de 40 horas semanais ou psicológica, senão ao sentimento de segurança dado pela certeza de
em 2008 enquanto 41,4% trabalhavam 40 horas ou menos por semana. que sua saúde vai bem, mas na necessidade de um médico, ele chegará
Portanto, a redução da jornada às 40 horas semanais beneficiaria um até você; pela certeza de que seu trabalho lhe fornecerá uma remunera-
contingente de 18,7 milhões de trabalhadores brasileiros. ção ao fim do mês, ou a fim do período de tempo pelo qual você espera

21 Aqui fizemos uma referência a uma sábia lenda árabe, que, em resumo, diz o seguinte:
20 Esta informação também é de origem eletrônica. Trata-se de um informativo da OIT-Bra- “Certo dia, à porta da cidade, um vendedor árabe encontrou um mendigo cheio de fome.
sil, destacando notícias sobre a situação trabalhista do Brasil, sob o título: Redução da Compadecendo-se dele, deu-lhe duas moedas de cobre. Algum tempo depois, os dois
jornada no Brasil beneficiaria mais de 18 milhões de trabalhadores, publicada em formato homens voltaram a encontrar-se nos arredores do mercado. O vendedor perguntou-lhe:
on-line, em 5/3/2010. Para o encontro detalhado de mais informações, indicamos o link – Que fizeste com as moedas de cobre que te dei? O mendigo respondeu: – Com uma
de acesso direto à notícia mencionada: <http://www.oitbrasil.org.br/topic/employment/ delas comprei pão, para ter com que viver. Com a outra, comprei uma bela flor, para ter
news/news_145.php>. Último acesso: maio de 2011. por que viver.”

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que ele venha; pela certeza de que a pessoa que você escolheu para com- gável, em suma, “subjetiva”, na verdade, não é criação puramente dele.
partilhar a vida sob o mesmo teto, ou ainda residente num outro lar que Sequer nasceu com ele. O mundo, as sociedades, ou melhor ainda, as
não o seu, mas que na folga um encontro amoroso, repleto de saudades, relações entre os sujeitos criam sujeitos; precisamente, essa criação só
irá renovar a escolha de enlace entre os parceiros; a certeza de que você é possível de modo relacional entre o sujeito e seus pares ao redor, de
abrirá os olhos pela manhã; a certeza de que você voltará para casa ao forma que todos criam e reproduzem meios de relação produtoras de
fim do dia... Em verdade, carregamos muito mais desejos de certezas sujeitos. A este tipo de produção de indivíduos de modo social, e com-
que possamos supor. Mas estamos submetidos a muito mais incertezas plexo, tem se dado o nome de “produção de subjetividade”, e aos meca-
do que gostaríamos de constatar. nismos desta produção – como seus discursos, práticas, qualidades e
Zygmunt Bauman (1925-) é um sociólogo que recorrentemente nos modos de relação, seleção e inserção de modelos de comportamento e
inquieta os frágeis sentimentos de segurança quando lembra através de formas de pensar, etc. – se refere como “processos de subjetivação”. Com
uma incômoda citação de Pierre Bourdieu (1930-2002), que “le préca- base nisso, André Gorz (2004, p. 47) faz referência ao que ele remarca
rité est aujourd’hui partout” (BOURDIEU apud BAUMAN, 2001, p. 184), ou como “identidade de empresa” para discutir sobre os processos de sub-
seja, a precariedade, hoje, está por toda parte. Não à toa as vozes reivin- jetivação que a própria empresa cria, sustenta e reproduz para produzir
dicatórias de empregos gritam tão alto. Ainda que de forma lamentável indivíduos aptos ao trabalho que a convém. Para Gorz, a identidade de
em dados casos, certos movimentos panfletários ratificam essa “lógica empresa tem como fonte a “cultura da empresa” que elabora um estilo
da precariedade” que, sob ditos populares, pode ser traduzida pela men- de comportamento e um vocabulário próprios ao universo corporativo.
sagem: “um emprego ruim é melhor do que nenhum”. Nestes termos e Gorz adverte que em uma sociedade onde a busca de identidade e de
segundo esta lógica, um emprego pode até minar a saúde, mas também interação social é continuamente frustrada, o jovem trabalhador pode
pode ser um farolete, ainda que ao longe e malcuidado, disponível para o encontrar na cultura da empresa, atualmente supervalorizada, um subs-
auxílio ao navegar impreciso nestas águas incertas. Afinal, aproveitando tituto à sociedade como um todo; um refúgio contra o sentimento de
os motes populares, admite-se pensar que “mais vale um barco velho insegurança (GORZ, 2004, p. 47). Todavia, esta “segurança” oferecida
boiando do que um navio luxuoso em naufrágio”, e o trabalhador que pela esfera organizacional tem um preço. Gorz ressalva que a empresa
mal consegue nadar se agarrará no que puder. Se agarrando no que pode, acaba por exigir do trabalhador a renúncia
aceita de bom grado qualquer possibilidade de chegar à terra firme. E é
a qualquer outra forma de pertencimento social, renúncia a seus interesses
aqui que o universo laboral organizacional lança suas redes ao mar. íntimos e até mesmo à sua vida pessoal, a sua personalidade – para entre-
O filósofo austro-francês, também jornalista, André Gorz (1923- gar-se de corpo e alma à empresa que, em troca, lhe dará uma identidade,
2007), que dedicou boa parte de suas dezenas de obras à reflexão crítica um pertencimento, uma personalidade, um trabalho do qual pode orgu-
sobre a forma como se desenvolveu e se degradou a ação de trabalhar, lhar-se; [o trabalhador] torna-se membro de uma “grande família”. (GORZ,
idem, p. 47-48)
fez referências à insegurança oportuna ao universo organizacional, e que
acabou servindo como isca aos incautos navegantes, ou melhor, naufra- O resultado é, continua Gorz, que “o laço que se estabelece com a
gantes. Mas por que os sujeitos se tornaram tão susceptíveis às redes das empresa passa a ser o elo social mais significativo” (GORZ, idem, p. 48).
empresas? Recorramos a André Gorz. Desta forma, o espaço empresarial torna-se o locus privilegiado para
A identidade de um indivíduo é formada por inúmeros elementos, a troca de afetos; para o recebimento de recompensas materiais com
boa parte deles advindos da relação de si com o mundo. Isso também valor simbólico emocional por vezes profundo; para o recebimento de
significa afirmar que grande parte do que em seu íntimo o sujeito jura recompensas emocionais com poderio de tornar a implicação irrestrita
ser a “natureza dele”, ímpar, própria, pessoal, idiossincrática e irrevo-

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do trabalhador à empresa uma condição inelutável para permanecer tra- se de corpo e alma à empresa, não permitem-se ser visgados e, assim,
balhando; para o desenvolvimento de sentimentos típicos à vida social não servem para o negócio. Este cuidado com a condição emocional dos
fora da empresa, mas rebocados para o seu interior e manejados em trabalhadores capturados pela lógica da empresa, de forma que não se
nome dos propósitos da empresa... Deste modo, o universo organizacio- sintam capturados, é também uma característica histórica da organiza-
nal absorve do trabalhador toda a sua energia, mobilizando-o por com- ção do trabalho hipermoderno. E o cuidado é extremo, pois lembremos
pleto. Vida. Tempo vivido. E sentido existencial. A empresa acaba por que os anzóis são preparados à base de elementos psíquicos, pertencen-
acompanhar e ditar a vida como um todo. Assim sendo, para o autor, tes ao imaginário, imateriais e, portanto, frágeis e facilmente perecíveis.
Entendamos o porquê: a empresa atual não obriga mais os trabalhadores
A subjetividade que aí se desenvolve é o avesso de uma subjetividade
livre... [porque] não sobra nenhum espaço físico nem psíquico que não ao labor suado, batendo-lhes os corpos ou imputando-lhes condições
seja ocupado pela lógica da empresa. (GORZ, idem, p. 49) coercitivas físicas de trabalho,22 é o psiquismo o novo alvo de controle. E
é a gerência do imaginário, pelo imaginário, que define para onde o car-
Através de uma roupagem viçosa e elegante – atraente porque dume deve rumar e entrar sem esforços pelas armações das redes; diga-
comunica altivez, e sedutora porque comunica segurança –, divulgada se, redes igualmente imaginárias. E o pescado, supondo estar nadando
sob bombardeios incessantes pelos mais diversos instrumentos midiáti- em mar aberto, desconhece-o por completo, porque também são cria-
cos (TV, rádio, jornais, revistas, etc.), o universo organizacional mostra dos em vivedouros bem delimitados, desde o nascimento, para ali cres-
suas armas: é pela lógica da empresa eficazmente difundida que o maior cerem, multiplicarem-se e viverem felizes nas águas salgadas. Sim, nos
número de pessoas é subjetivado, sendo todas elas atraídas e hipnoti- tornamos “peixes urbanos”.
zadas pelos símbolos máximos de reconhecimento e sucesso para toda No entanto, não creiamos que esta “metamorfose em peixes” seja
honra e toda glória de uma vida farta e sem limites. Mesmo que isso sempre um processo tão passivo – em que homens e mulheres simples-
signifique uma existência vazia e sem sentido. mente são obrigados a viverem aos cardumes de modo inelutável. Há
Mas como as empresas conseguiram se tornar exímias pescadoras quem mantenha a boca aberta para fisgar anzóis – e, sim, deliberada-
de homens e mulheres? Como em seus anzóis podem pender sonhos, mente, escolhe se transfigurar em peixe. Há um ótimo conto de Alberto
desejos, anseios, expectativas e promessas de realização? Porque os Moravia que poderíamos usar como analogia para endossar e ampliar
atuais valores entronizados – o individualismo, o hedonismo, o prestí- esta linha de reflexão: “Recordações de Circe”.23 Nele, Moravia, com base
gio pessoal em detrimento aos interesses coletivos, a noção de sucesso, em uma das aventuras do herói mitológico Ulisses, traça as desventu-
a recusa ao fracasso, etc. – acabam por embalar sonhos, mover desejos, ras de um grupo de náufragos, companheiros do herói, numa ilha habi-
nutrir expectativas e selar promessas. Porém, tais valores não são for- tada por Circe – na mitologia grega uma feiticeira ou, em dadas versões
tuitos, senão criados e espraiados socialmente segundo determinadas mitológicas, uma especialista em venenos. Moravia descreve como este
intencionalidades em absoluta consonância a modelos postos e manti- desgraçado grupo se transforma paulatinamente em porcos. E o mais
dos para fins específicos. No caso aqui, para fins de engorda dos ganhos interessante: como estes homens não estiveram nem sob encantamento
corporativos e a ampla expansão dos empreendimentos capitalizados. nem sob envenenamento habilidosos por parte de Circe; eles se torna-
Pescar gente, na Hipermodernidade, é um negócio dos mais lucrativos.
Porém, para o negócio ir de vento em popa, o cardume não pode se 22 O que não significa dizer que métodos de coação extremada ao trabalho, via violência
física e humilhação psicológica, já estejam extintos. Em certas modalidades de subtraba-
sentir cercado, encurralado, sem escapatórias. A liberdade, ou melhor, lho, como é o caso do “trabalho escravo”, esta é uma dolorosa e estarrecedora realidade.
a impressão de tê-la, é a alma do negócio. Cada homem e cada mulher Mas aqui apenas queremos nos referir à empresa hipermoderna.
uma vez na condição consciente de sentirem-se “mera presa”, não doam- 23 Vide o livro de Alberto Moravia: Contos dispersos (1928-1951). Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 101-107.

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ram porcos porque quiseram. Circe, ao fim do conto, apenas “aproveita” e os capturados. A ressonância entre ambos, neste caso, garante-lhes
a condição suína dos homens metamorfoseados para avolumar suas uma mútua influência efetiva. Por fim, pocilgas se agigantam e o nosso
enormes pocilgas – todas à custa de outros náufragos igualmente torna- cardume também. A dominação, portanto, é uma via de mão dupla: há
dos porcos. Moravia, em suma, versa sobre as circunstâncias em que tal anzóis porque há peixes.
transformação se segue: a vagarosa preferência à lama e a repugnância E como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação
à água limpa; o paulatino gosto pelo consumo extasiado de restos de eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade? Esta
comida e a recusa aos alimentos requintados; o crescimento do amor à indagação não é nossa; foi lançada já em 1964 por Herbert Marcuse24
sujidade e a crítica ao asseio; e o entronizar final de um “modo divino” (1898-1979), sociólogo e filósofo alemão, naturalizado norte-americano
de vida, repleto de prazeres, finalmente descoberto e disponível a todos, e expoente representante da Escola de Frankfurt. Marcuse afirma que
segundo os náufragos em mutação – apesar de seus companheiros que
sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada num
permaneceram gente lhes vociferarem em vão que aquilo não era “vida poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao
de homem”. Os metamorfoseados chegavam a acusar os demais homens indivíduo não é fator decisivo para a determinação do grau de liberdade
de “teimosos” e “preconceituosos”, porque o detalhe é que nem todos humana e sim, o que pode ser escolhido e o que é escolhido pelo indiví-
abraçaram o neofitismo a arregimentar adeptos à vida de porco. O duo. (...) [Porém] a reprodução espontânea pelo indivíduo de necessida-
des superimpostas a ele, não estabelece autonomia; apenas testemunha a
narrador do conto de Moravia, Euríloco, assevera que Circe, enquanto eficácia dos controles. (MARCUSE, 1973, p. 28)
isso, não teve trabalho algum e tão somente deixou que as vontades, ou
melhor, “as vocações” destes homens se orientassem livremente. Nada Então, torna-se necessário entender, e perceber, que a liberdade que
além. Para Euríloco, estaria nestes homens transformados o germe de hoje estampa os outdoors das ruas, sob um marketing inteligente e sen-
suas mudanças, uma propensão qualquer que lhes seduzia à pocilga, sibilizador, fazendo as pessoas acreditarem que são plenamente livres,
uma queda pelo deslumbre à vida suína, de modo a entreverem neste não passa de propaganda enganosa. Se existe alguma liberdade, ela não
modo animalesco de viver maravilhas só sentidas por quem se deixava é nem ampla nem irrestrita; no máximo uma “liberdade” de escolhas, e
virar porco; fato que se consumou: por fim, assumiram modos e corpos ainda assim, oferecida tão somente entre um conjunto muito bem sele-
de porcos perfeitos. cionado de “escolhas permitidas”, de “escolhas apropriadas”, e aí sim, o
No conto, Moravia traduz a condição humana que opta de alguma sujeito pode sentir-se “livre” para catar umas aqui, outras ali e deixar
forma por assumir novos estilos de vida que de início causam estra- as demais para mais tarde. Escolhas de ideias, de comportamentos, de
nheza, mas que são aceitos, incorporados e até defendidos com o passar modos de pensar e agir que não pertençam ao universo dito “adequado”
do tempo e da multiplicação de seus simpatizantes e partidários. Insta- às intencionalidades da dominação social vigente são de tal forma con-
lada a “nova ordem”, a ótica comum se inverte: “estranhos” se tornam os sideradas “ilícitas”, que o sujeito que se arrisca “audaciosamente” a
que se negam a abraçar aqueles novos estilos de vida. A origem primeva fazê-las, corre o sério risco de ser discriminado, perseguido, hostilizado
desses acontecimentos de mudança desencadeados está tão somente no e, finalmente, excluído da sociedade, sendo-lhe negado o acesso às suas
surgimento de uma ideia, de uma forma de pensar, de um modo de agir maravilhas e prazeres. Na Hipermodernidade, um homem plenamente
mais ou menos isolado, mas que, sob certas circunstâncias sócio-histó- livre não tem direito a uma vida plenamente livre.
ricas convenientes a dados grupos, são catalisados e difundidos; noutros
termos: lançados e... deliberadamente fisgados. Todavia, para a mordida
24 Este questionamento reflexivo de Herbert Marcuse pode ser encontrado em seu livro
ser mantida sob controle e o apresamento fazer efeito, exorta-se um
A ideologia da sociedade industrial – O homem unidimensional (Zahar Editores, 1973, p.
certo grau de receptividade e cumplicidade necessárias entre a captura 27, 1964 é o ano da primeira edição deste livro).

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O que Marcuse vem contribuir a elucidar é que nossas maneiras casos, temos conseguido desenvolver modos de atenuar seus efeitos, e
de agir, de pensar, de trabalhar, de desfrutar nossas vidas, enfim, nossos já conseguimos identificar e analisar alguns vetores que produzem e/ou
modos de “ser sujeitos” a sós ou em coletivo, vêm sendo ditadas pelas levam à permanência do estresse nos contextos laborais.
sociedades modernas de maneira “unidimensional”. Termo magistral- É digno de nota que o espantoso número de profissionais estressa-
mente usado por Marcuse e que resume tudo: para se ser “o” sujeito que dos pelo mundo foi avultado devido à recente crise financeira mundial
a sociedade hipermoderna espera que se seja, só há uma direção a seguir de 2008. Por força da atmosfera tensa nas organizações diante desta crise
e apenas um jeito de seguir; sim, rumo ao horizonte, mas o horizonte financeira, medidas adotadas pelos Departamentos de Recursos Huma-
termina logo ali. nos, tais como a “reengenharia” (ou downsizing) – o “corte de pessoal”,
noutros termos –, levaram os empregados “sobreviventes”, porque não
chronos finalmente descansará? cortados, a trabalharem mais, graças à herança laboral deixada por seus
colegas demitidos. Depois da recente crise mundial, garantir o emprego
Uma vez nos tornado “peixes urbanos”, aprendemos a nadar cada vez significou trabalhar em nome de si e de tantos outros, agora postos fora
mais rápido e, quase sempre, nadando no ritmo do cardume. Porém, da empresa, dobrando, triplicando o volume de trabalho – e também o
admitir nossa aceleração, diga-se alucinada, não é novidade alguma, tempo dedicado a ele. Em resumo, a crise financeira de 2008 instalou
porque “velocidade” é a onda do momento; está na moda, e não parece um quadro de intensificação do trabalho de origem e efeitos internacio-
passageira. Trocadilho irônico, não? nais. Isso significa dizer, por exemplo, que referências “invejáveis” como
Todos nós já sabemos, de um modo ou de outro, que estamos a jornada de trabalho na França de 35 horas semanais – amparadas por
andando rápido demais, que estamos almoçando rápido demais; pro- uma meta sustentada, e até então bem-sucedida, pelo governo francês
duzindo, consumindo e descartando bens rápido demais; começando de manter a média anual de horas trabalhadas por pessoa empregada
e terminando relacionamentos rápido demais; trabalhando (demais) ao redor de 1.600 horas por ano25 – têm sido fortemente abaladas desde
rápido demais; enfim, estamos vivendo rápido demais. Ou estaríamos 2008, pois o fantasma do desemprego voltou a rondar e atemorizar os
vivendo de menos? Comendo e amando de menos? lares franceses e de outros tantos países fortemente atrelados às políti-
Definir e ponderar o que é “mais” e “menos”, torna-se um desafio cas financeiras mundiais em tempos de “capitais sem nacionalidade”. A
que gera francas confusões e equívocos na Hipermodernidade, porque Hipermodernidade – também historicamente marcada pelo surgimento
trata-se de uma “era de paradoxos”. O que é demais pode implicar em de amplas redes interligando o mundo, de forma a aproximar os países
perdas. Inclusive no mundo laboral. Trabalhar demais estressa e causa não se reconhecendo mais territórios ou fronteiras – tem imputado aos
danos à saúde. Tal afirmativa quase se tornou jargão – ninguém duvida trabalhadores da atualidade um distanciamento pesaroso dos sonhos
mais deste fato; cada um de nós conhece ou viveu alguma história dra- de outrora de aumento dos tempos livres fora do trabalho. Todavia, há
mática graças aos sintomas do estresse laboral. A dúvida e os questiona- quem refute veementemente este veredicto final.
mentos recaem, hoje, não no reconhecimento de que o trabalho exces- Entre os grandes defensores da mudança de paradigma quanto aos
sivo pode ser danoso, senão no como contornar isso, como evitar seus longos tempos dedicados ao trabalho, está Carl Honoré. Jornalista, for-
males e, afinal, o que fazer? Porém, tais respostas ainda são uma incon- mado em História e nascido em Edimburgo em 1967, trabalhou para
veniente e insistente incógnita. Não chegamos ainda a métodos de fato jornais britânicos e canadenses, chegando a morar, entre outras cida-
eficazes de combate absoluto ao estresse laboral, nem gozamos de um
claro consenso quanto a modelos de gestão organizacional que devem 25 A título de conhecimento, comparemos os dados das cidades que mais trabalham no
mundo no ano de 2009: no Cairo (Egito) trabalhou-se 2.372 horas por ano; Pequim
ser adotados para exterminar em definitivo o estresse. No melhor dos (China), 2.052 horas anuais; e São Paulo (Brasil), 1.802 horas anuais.

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des, em Buenos Aires, Londres e Fortaleza. Em seu currículo há cola- vida, e, dentro dela, busca uma distribuição mais adequada do tempo
borações para The Economist, The Observer, Miami Herald, National voltado para o trabalho, e também para o lazer, para a folga, inclusive
Post e Houston Chronicle. Ficou conhecido no Brasil pelo livro Devagar para os momentos de solitude de que a existência para ser rica não pode
– Como um movimento mundial está desafiando o culto da velocidade, prescindir. O que o Slow Movement propõe é, em curtos termos, a busca
lançado em 2005 pela Editora Record. Carl Honoré não nega a voraci- pelo tempo “giusto” na voz dos italianos; ou seja, o “justo tempo” que
dade dos negócios hodiernos e, com ela, a velocidade das transações à todas as coisas merecem, porque precisam ter. Portanto, o Slow Move-
custa da aceleração sem fim dos trabalhos imateriais. Pelo contrário. Em ment advoga a favor da vida de modo mais de acordo com um tempo
seu livro Devagar, o autor tende a citar inúmeros exemplos de como o próprio, “interno”, e que proporcione uma existência saudável, e até pro-
trabalho de hoje absorve a vida das pessoas desde seus mínimos deta- dutiva, sem jamais abrir mão de uma melhor qualidade para o nosso
lhes: da falta de tempo para os filhos, passando pelo sexo “rápido e mal- viver como um todo. Porém, Carl Honoré não para por aí, e não poupa
feito”, e chegando ao aprisionamento “atemporal” ao trabalho, quando esforços para trazer exemplos de como este movimento está atingindo,
as tecnologias, em nome da comunicação on-line e imediata, premem de muito bom grado, as diversas esferas da vida pessoal e social; e,
os trabalhadores fazendo-os perder suas folgas – e seus filhos e amores ainda, multiplicando a cada dia novos seguidores. Mas não pensemos
–, estando longamente ocupados ao celular e blackberry, e plugados à que, fora Carl Honoré, sejam todos italianos. Cidadãos e cidadãs de
internet em laptops e notebooks. O que Carl Honoré acrescenta é que todo o mundo, segundo o autor, além de desejarem a lentitude, muitos
esta compressão intensa e sufocante da vida graças ao trabalho hiper- já a conseguem, inclusive no seio de seus ambientes laborais. O que tais
moderno e hipertecnologizado tem levado as pessoas a dizer: basta! indivíduos argumentam é que “trabalhar menos é trabalhar melhor”; e
Não é invenção de Honoré o chamado “Slow Movement”, no Brasil a máxima: “só posso fazer o que eu posso fazer” tem se tornado o afo-
também conhecido como “movimento da desaceleração”. Isso é coisa rismo emblemático de seus serviços. Será que seus chefes e empregado-
res também concordam com estas pessoas? Segundo Carl Honoré, sim!
dos italianos. Dessa gente mediterrânea que não abre mão de uma mesa
Há quem concorde.
farta, acompanhada pelos melhores vinhos, e com tempo de sobra para
Honoré exemplifica que grandes empresas, como a Pricewaterhouse
apreciar os alimentos e degustar com prazer a “bebida dos deuses”.
Coopers,27 dos EUA, estão dando mais férias a seus empregados, e
Sendo o vinho bebida para deuses, e como Paul Lafargue (1842-1911)
exigindo-lhes que as tirem. Resultado: empregados mais felizes, mais
– genro de Karl Marx – espirituosamente escreveu: “Deus ofereceu aos
saudáveis, mais produtivos. Empregados que têm tempo para refletir.
seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal: depois de seis
O autor ainda elucida que ser slow/devagar não significa fazer tudo
dias de trabalho, repousou pela eternidade”,26 talvez os italianos conhe-
lentamente. Ser slow implica em fazer tudo na velocidade giusta/justa,
çam melhor a arte de ser um deus que aprecia vinhos com uma boa dose
ou seja, às vezes rápido, às vezes lento, e às vezes fazer o meio-termo;
de descanso. E foi seguindo a marcha lenta oferecida pela Itália que Carl
portanto, “a filosofia slow pode ser resumida numa única palavra:
Honoré, ex-viciado em velocidade e rapidez, tornou-se ferrenho defen-
equilíbrio” (HONORÉ, 2007, p. 27).28 Para Honoré, a boa notícia é que
sor, escritor e divulgador do Slow Movement pelo mundo afora. Honoré esta teoria funciona na realidade do século XXI.
ainda faz questão de dizer que é um de seus adeptos mais fiéis.
O Slow Movement que Carl Honoré tanto aprecia não faz mágica 27 Honoré forneceu este dado em específico quando proferiu uma palestra em 2008 durante
a conferência: “La Ciudad de Las Ideas”, em Puebla, na Cidade do México. Esta palestra
alguma, apenas ressignifica o sentido dado ao tempo orientado para a está disponível para visualização livre na WEB, pelo link de acesso: <http://www.youtube.
com/watch?v=TXEmugE9sFI> Último acesso: maio 2011.
28 A mesma ideia é explorada por Carl Honoré quando o autor cita as palavras do pianista
26 Vide livro de Paul Lafargue: O direito à preguiça. Versão bilíngue em francês e português. Uwe Kliemt: “O mundo se torna mais rico quando abrimos espaço para velocidades dife-
São Paulo: Editora Claridade, 2003, p. 21. rentes” (KLIEMT apud HONORÉ, 2007, p. 309-310).

312 313
Por outro lado, aqui vale um novo adendo. Repisamos que Carl nos parecem chatas, enfadonhas, por vezes pesadas e pesarosas, e que as
Honoré não é o idealizador do Slow Movement – ele apenas o defende vamos “empurrando para o futuro” – para usar a expressão de Dortier –
e o divulga, e com seus escritos e ditos quase sempre somos levados mas que, raramente, contudo, conseguimos cumpri-las de fato. Dortier
a concordar. Mas uma aproximação menos idealizada a Honoré tam- vai além. Avisa que procrastinar não é uma ação que nos deva causar
bém sinaliza que o autor – mormente em suas palestras ministradas a culpa, vergonha ou autorrepreensão: podemos muito bem conviver com
plateias que comportam profissionais das áreas corporativas – tende a ela e tirar-lhe o melhor proveito. Sim, Dortier assevera que procrastinar
elencar como vantagem da “economia” do tempo perdido nas trocas de faz bem. O autor chega a remeter-se a um slogan, no mínimo curioso e
e-mails e telefonemas corporativos,29 por exemplo, a produção de um decerto espirituoso: “Ne fais pas le lendemain ce que tu pourrais faire le
“tempo de sobra” para a realização de outras tarefas a mais na empresa. surlendemain” – não deixe para amanhã o que se pode fazer depois de
Então, indiretamente, se pode apontar, neste caso, para um aumento de amanhã. A “ciência desta arte”, todavia, não é a de nos tornar irresponsá-
“produtividade”30 – o que corre o risco de se propiciar, em verdade, um veis, pelo contrário. Ajuda-nos, segundo Dortier, a perceber que tarefas
aumento da intensificação do trabalho, conforme já discutimos alhu- nos colocam em situação desconfortável para sua realização, e entre elas
res. Portanto, algum crivo crítico deve ser mantido tanto em relação a balizar quais são realmente exequíveis, e quais são por demais ambi-
Honoré como, e principalmente, aos discursos organizacionais que se ciosas, a ponto de se tornarem mera ilusão – uma aspiração que mais
inclinam a dar bons créditos ao trabalho slow, desde que este aumente a nos causa incômodo e, por fim, total desânimo. Procrastinar é também
“produtividade” da empresa implicando-a à intensificação laboral. Não aprender a analisar os limites das tarefas e os nossos próprios limites
à toa que certas empresas acolhem bem as palestras de Carl Honoré... e perante elas. E, em posse desta tomada de consciência, possamos rever
ele tenha se tornado uma “figura midiática”. nossas metas, diminuindo-as mesmo, reduzindo-as ao que conseguimos
No entanto, o Slow Movement não é a única luz no fim do túnel a sinceramente fazer, sem que nos sintamos forçados a empurrar nada sob
favor da revisão da qualidade e duração dos tempos gastos no e para o íntimas torrentes de culpas e censuras; e mais, diante do que for inevitá-
trabalho. Outros autores entreveem alternativas diferentes para o manejo vel e inelutável a ser feito, aprender a “quebrar a pedreira em pequenos
destes tempos de forma controlada, menos extenuante e mais prazerosa, pedaços”, noutras palavras, realizar a tarefa devagar, um pouco a cada
e trazem considerações que também merecem destaque. Uma delas é dia – e descobrir o prazer de conquistar pequenas vitórias ao se cami-
a “procrastinação”, descrita e defendida por Jean-François Dortier. Este nhar a pequenos passos. A procrastinação, desta forma, revigora-nos
autor, em um artigo intitulado L’art de Procrastiner Intelligemment   31 – o prazer pelas pequenas realizações bem-sucedidas, e nos ensina que
a arte de procrastinar com inteligência –, elucida-nos o conceito deste deixar para amanhã a continuação das curtas tarefas de hoje pode ser
incomum termo: procrastinação nada mais é que a “arte de adiar as coi- igualmente prazeroso. Afinal, o futuro também deve dar lugar a deleites
sas”. Mas não coisas, tarefas, quaisquer, e sim aquelas obrigações que postergados, para que se tenha a certeza de que amanhã também será
um bom dia, pincelado de novos pequenos êxitos. Em suma, procras-
29 Tal condução feita por Carl Honoré pode ser vista e analisada na mesma palestra referida tinar é a arte de aprender a resolver as coisas de forma “homeopática”.
na nota 28. Sem pressa e nem culpa.
30 Este termo foi posto entre aspas, pois, onde há intensificação do trabalho, não se pode Na era hipermoderna, em que o “momento” passou a ser a fração
considerar haver um aumento de produtividade – segundo as considerações de Sadi Dal
Rosso discutidas no início do presente texto. de tempo mais em voga, parece chegada a hora de colocar o momento
31 Vide artigo de Jean-François Dortier: L’art de Procrastiner Intelligemment. In: Grands em seu devido lugar. Mas não o queremos reduzir a algo que deva ser
Dossiers – Sciences Humaines. N° 23 – Juin – juillet – août 2011. Também disponível pelo
link:<http://www.scienceshumaines.com/l-art-de-procrastiner-intelligemment-jean-fran-
doravante desvalorizado, desprezado ou esquecido. É interessante gostar
cois-dortier_fr_27332.html>. Último acesso: julho de 2011. do momento, o que não é bom é fazer o momento ser tudo. Como se

314 315
tudo tivesse que caber no hoje e num só momento. Não é bem assim, HONORÉ, Carl. Devagar – Como um movimento mundial está desafiando o culto
isso não funciona. Comprimir o tudo de forma drástica é uma implosão da velocidade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007.
em que nada mais resta de nada. E o que tem acontecido é que esta- KOVÁCKS, Ilona; FERREIRA, José Maria Carvalho et alii. Globalizações: novos
rumos no mundo do trabalho. Florianópolis: Editora da UFSC, Lisboa:
mos “sufocando” o momento, não lhe permitindo durar mais do que 1
Socious, 2001.
segundo. O que pretendemos é tentar inverter a duração das coisas. Um
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. Versão bilíngue em francês e português.
momento é para ser gustado, degustado, sorvido com calma, para entre- São Paulo: Editora Claridade, 2003.
ver-lhe as matizes, perceber-lhe os bordos – e também o fundo. Bus- LEE, Sangheon; McCANN, Deirdre; MESSENGER, Jon C. Duração do trabalho em
cando-se, assim, descobrir no momento o “acontecimento”, o notável, todo o mundo. Tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas
o encantamento; e não dá para se fazer tudo isso num segundo apenas, numa perspectiva global comparada. Brasília: Organização Internacional
nem mesmo em um único momento, sem se deixar nada para amanhã. do Trabalho – OIT, 2009.
Até o momento tem um tempo para acontecer. E deixar sua marca. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de con-
Portanto, para o sentido existencial da vida ganhar, finalmente, seu sumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
lugar de honra, é também preciso prezar a lentidão; aceitar e propor- LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo:
Editora Barcarolla, 2004.
se que tudo pode ser feito em etapas, se comprazendo com as peque-
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensio-
nas realizações; experienciar o tempo do momento, ampliando-lhe; e
nal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
conseguir visualizar, aos poucos e a cada dia, as reais possibilidades de
MARX, Karl. Manuscritos Económico-filosóficos de 1844. Buenos Aires: Colihue,
ação para se ter uma vida mais saudável, mais rica e, enfim, desfrutar de 2006.
relações sociais mais fortes e significativas. Sem ter que passar pela vida ______. El Capital. 8ª edição. Cidade do México: Fondo de Cultura Econômica,
voando, não vivendo, portanto. Nos festejos para uma vida risonha, leve 1973.
e bem apreciada, o tempo vagaroso é convidado indispensável. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO – MTE. Manual de Aplicação da Norma
Regulamentadora Nº 17 – NR 17. Brasília: Ministério do Trabalho e Empre-
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topic/employment/doc/jornada_brasil_145.pdf. Último acesso: março de
2011.
vi.
O tempo e suas articulações com fenômenos
psicossociais contemporâneos

318
Fetichismo e Imediatismo: reflexões sobre a crise
na temporalidade transcendente entre os jovens
Robson J. F. de Oliveira

O que eu venho estudando desde o ano passado, juntamente com a pro-


fessora Fátima Severiano é o tema do Fetichismo da mercadoria numa
relação com uma perda do potencial de transcendência à realidade ime-
diata nas novas gerações de jovens. Deste modo, as reflexões prelimina-
res a que chegamos apontam para uma relação estreita entre essa temá-
tica e o tempo. É isso que nós tentaremos desenvolver aqui.
A primeira observação importante é que o fetichismo da merca-
doria – fetichismo moderno – não teria podido se instalar – em detri-
mento inclusive de outros fetiches – se não tivesse feito uma revolução
no sentido do tempo como era compreendido nas sociedades até então.
Ou seja, a análise que faz Marx do caráter fetiche da mercadoria e seu
segredo, em O Capital (1985), mantém estreita relação com a nova confi-
guração temporal que estava se tornando predominante.
Ora, as sociedades pré-capitalistas mantinham em geral uma rela-
ção com um tempo que autores como Postone (2009), sobre cujos
ombros muito me apoiarei para tentar contribuir com o debate aqui,
chamam de tempo concreto. Essa relação majoritária com um tempo
concreto determinava um tipo de subjetividade baseada em ciclos que
voltavam ao mesmo ponto de partida. Já as sociedades capitalistas são
marcadas pelo predomínio do tempo abstrato dinâmico – e esse tempo

321
abstrato determina uma nova forma de subjetivação também dinâmica normal era a da austeridade, da castidade – que explodia apenas nos
e tendendo à desmedida encerrada num gozo do presente perpétuo – momentos de festa, nos momentos profanos.
o que é um paradoxo: desmedida e presente perpétuo. Veremos que Essa forma de contagem do tempo concreto aparece ligada aos
essa aceleração é tamanha que chega a ponto de passar a consumir até modos de vida social estreitamente dominados pelos ritmos de vida
o futuro no presente. Depois dessa breve entrada na matéria, podemos “naturais”, agrários e pelo “trabalho” fundado no ciclo das estações, do dia
colocar a pergunta: mas o que diferencia esses dois tipos de tempo? e da noite (idem, p. 299). O fato de que a unidade de tempo não seja cons-
tante, mas antes variável, indica que esta forma de tempo é uma variável
tempo abstrato e tempo concreto dependente, existindo em função dos acontecimentos ou das ações.
O tempo abstrato, por sua vez, é caracterizado como um tempo
Moishe Postone (2009) faz uma incursão histórica interessante para vazio, homogêneo, contínuo, uniforme, independente dos acontecimen-
fundamentar sua distinção entre tempo concreto e tempo abstrato e ao tos. Ele se constitui num quadro independente em cujo seio o movi-
mesmo tempo localizar o aparecimento deste último como não sendo mento, os acontecimentos ou as ações acontecem. O tempo abstrato não
algo casual ou técnico, mas devido a uma nova forma social que se impu- depende dos acontecimentos, são os acontecimentos que acontecem
nha no final da Idade Média: a forma social dominada pela mercadoria. num tempo que já é estabelecido de uma vez por todas e as ações são
Postone defende que o tempo de progressão linear medido pelo “julgadas” por esse tempo que é divisível em unidades não qualitativas,
relógio e o calendário, que substitui os ciclos naturais, é algo recente na constantes, iguais (idem, p. 300).
história, datando de alguns séculos. O tempo abstrato foi muito bem definido por Isaac Newton como
Para ele o tempo concreto significa em verdade diversos tipos de sendo “o tempo absoluto, verdadeiro e matemático que passa de forma
tempo em função dos acontecimentos. É um tempo que se relaciona e igual, sem nenhuma relação com o que quer que exista de exterior a ele”
deve ser compreendido a partir dos ciclos naturais e os períodos da vida (idem, p. 300). É este tempo que começa a dominar a Europa entre o
humana. Assim, pode-se falar de um tempo de cozinhar um arroz ou século XIV e XVI.
de dizer um Pai-nosso, ou o tempo de colher, de plantar, de coser uma Este tempo abstrato, segundo Postone, que não existira até a Baixa
camisa. É um tempo que pode ser definido qualitativamente, posto que Idade Média, deve ser relacionado a uma forma de prática social estru-
dependente dos acontecimentos, como tempo bom, ruim, de paz, de turada bem determinada que introduziu uma transformação da sig-
guerra, sagrado, laico, profano (POSTONE, 2009, p. 298). nificação social do tempo em certas esferas da sociedade europeia do
Os modos de contagem ligados ao tempo concreto não dependem século XIV e que se tornaria hegemônica no século XVII: o desenvolvi-
de uma sucessão contínua de unidades temporais constantes, mas se mento desse tempo está ligado à generalização das relações mercantis.
fundam nos acontecimentos principalmente naturais repetitivos, tais E por quê?
como dias, ciclos lunares ou estações, ou seja, unidades temporais que Postone explicita que no século XIV o tempo concreto sofreu uma
variam. Para Postone, que fundamenta seu estudo em outros autores, mudança tão grande que a literatura do século XV já tinha substituído
esse tipo de tempo concreto predominou até o século XIV na Europa e as “horas” variáveis e as horae canonicae, bem como o ano segundo as
já dominara no Egito Antigo, no Mundo Antigo, no Extremo Oriente estações e o zodíaco (idem, p. 301).
e nos impérios Islâmicos. Ora, o que caracteriza essas sociedades é a Embora, para o autor, a passagem para o sistema de horas invariá-
falta de dinamismo. Debord chama a isso de tempo cíclico (1997). Ou veis, intercambiáveis e mensuráveis tenha estreita relação com o desen-
seja, volta-se ao começo do ciclo sempre de onde se reparte. A reprodu- volvimento do relógio mecânico no final do século XIII e início do século
ção social volta sempre ao mesmo ponto. Deste modo, a subjetividade XIV, não se pode explicar o surgimento do tempo abstrato pelo surgi-

322 323
mento de uma técnica, visto que a clepsidra é bastante antiga enquanto produtividade do trabalho dependia, portanto, do grau de disciplina e
marcador temporal. Embora fosse tecnicamente mais fácil para a época coordenação regular.
fazer com que a clepsidra marcasse a hora invariável, a hora variável No final do século XIII uma forte crise atinge o setor têxtil – o que
tinha um sentido, enquanto que a invariável não. O indicador desses engendra conflitos entre empregadores e trabalhadores. Na retomada
relógios variava mais ou menos de acordo com as estações. Pode-se pós-crise, são os trabalhadores que exigem prolongar o tempo de traba-
então reforçar a ideia de que o surgimento do tempo abstrato é socio- lho para além do “natural” para recuperarem os salários perdidos com
cultural e não técnico (idem, p. 303). Essa questão corrobora a ideia de a crise.
que a sociedade apenas cria e leva adiante as técnicas que fazem sentido Neste contexto, o relógio municipal foi introduzido marcando o
para si. Se o relógio foi implantado primeiramente em algumas regiões início e o fim da jornada de trabalho. As jornadas antes relacionadas à
é porque ali ele era investido de um sentido social que subsiste antes de natureza se modificam. Essa exigência por parte dos operários marca
ele ser inventado. A sua invenção traz a lume aquilo que já estava latente justamente essa distância em relação aos laços com o tempo “natural”
no corpo social. (idem, p. 312).
Postone cita o historiador Thompson que salienta o fato de que “nas Para Postone, a emergência desse tempo abstrato como medida do
sociedade pré-industriais o tempo é ‘orientado pela tarefa’. Neste caso, o trabalho está ligada ao desenvolvimento da forma-mercadoria nas rela-
tempo é medido pelo trabalho (pela tarefa, pela atividade), no caso do ções sociais.
capitalismo o trabalho é medido pelo tempo” (idem, p. 320).
O “progresso” que representa o tempo abstrato enquanto forma domi-
Assim, não é a natureza urbana ou rural que determina o tempo nante de tempo está estreitamente ligado ao “progresso” que representa o
abstrato como dominante. Postone recorre ao historiador Jacques Le capitalismo enquanto forma de vida. À medida que a forma-mercadoria
Goff, que denomina essa passagem como sendo a passagem do tempo da se impôs como forma estruturante da vida social no decurso dos séculos
Igreja para o tempo dos mercadores ou a passagem do tempo medieval que seguiram, o tempo abstrato se tornou cada vez mais corrente. (idem,
p. 315)
para o tempo moderno. Jacques Le Goff explica que os sinos se difun-
dem a partir do século XIV sobretudo nas cidades que fazem tecido. Foi Para Postone, ainda que socialmente constituído, o tempo no capi-
nessas cidades onde os sinos de trabalho começaram a aparecer, era talismo exerce uma forma de constrangimento (imposição) abstrato.
nelas que a produção de tecido florescia. A indústria medieval existia Citando Aaron Gourevitch:
de alguma forma, mas privilegiava o mercado local, sem ainda a ideia
A cidade se tornou dona de seu próprio tempo [...] no sentido de que esse
de expansão sem limites que caracteriza o capitalismo. Mas a indústria tempo foi arrancado do controle da Igreja. Mas não é menos verdade que
metalúrgica e, agora, a têxtil produziam para uma mercado externo é na cidade que o homem deixou de ser senhor do tempo, porque o tempo,
(idem, p. 310). livre, desde então, para passar independente dos homens e dos aconte-
Na indústria têxtil, os artesãos estavam diante de uma relação de cimentos, estabeleceu sua tirania, à qual os homens devem se submeter.
(GOUREVITCH apud POSTONE, 2009, p. 317)
fato entre mercador e trabalhador, e não podiam mais vender direta-
mente aquilo que produziam. Surgem aí as primeiras relações entre Postone explica que, do mesmo modo que o trabalho se transforma,
capital e trabalho assalariado. E essa indústria contribuiu para a mone- de uma ação individual em um princípio geral alienado da totalidade, ao
tarização crescente de alguns setores da sociedade medieval. qual os indivíduos estão submetidos, do mesmo modo o dispêndio de
A categoria da produtividade passa a ter uma importância funda- tempo se transforma, de consequência da atividade, em medida norma-
mental, visto que os mercadores davam a lã e queriam que a diferença tiva para a atividade.
entre o salário que pagavam e a matéria-prima fosse cada vez maior. A

324 325
Fica claro, assim, que, para o autor, o capitalismo não teria se ins- Alguém poderá até me acusar de economismo, mas creio que não
talado sem uma revolução no sentido do tempo e na relação da huma- há como, e aqui sigo a teoria crítica, apreender a subjetividade e as for-
nidade com o tempo.1 Deste modo, ninguém melhor do que o ameri- mas de subjetivação se não empreendemos uma compreensão da objeti-
cano Benjamin Franklin (1706-1790) resumiu o espírito do capitalismo: vação moderna com seus desenvolvimentos sucessivos.
“tempo é dinheiro”. Se entendemos que a mercadoria contém uma substância inquieta,
que nunca pode parar no mesmo ponto, podemos entender também
o fetichismo moderno: “todo tempo quanto que a matéria-prima dessa substância inquieta no seio da mercadoria
houver pra mim é pouco” para transformar tem estreita relação com o tempo. O tempo que mede o trabalho nas
dinheiro em mais dinheiro sociedades mercantis. E isso tem estreita relação com o nosso estar-no-
mundo enquanto indivíduos.
Podemos até dizer, sem querer valorar positivamente, que o tempo con- Como vimos, na modernidade é o tempo que determina a atividade
creto é o tempo do fetichismo religioso e totêmico. Já o tempo abstrato é – atividade que se chama trabalho –, portanto determinada quantita-
o tempo do fetichismo da mercadoria. Mas por quê? Essa indiferenciação tivamente. O tempo é, portanto, um quadro constrangedor dentro do
quanto ao que é concreto que existe no tempo abstrato é a mesma que qual as atividades se realizam. Ou seja, cada mercadoria possui em seu
existe na Razão Instrumental, portanto, no fetichismo da mercadoria. âmago uma quantidade de trabalho medida pelo tempo e que precisa ser
O fetichismo da mercadoria se distingue das outras formas de transformada em dinheiro, mais precisamente em mais dinheiro do que
fetichismo presentes na história humana por um aspecto fundamental aquele que existia no começo desse processo.
que também distingue o capitalismo de outras formas de socialização e Essa revolução no sentido do tempo e das atividades de que esta-
subjetivação: uma dinâmica que tem estreita relação com o tempo. Isso mos falando veio acompanhada com uma revolução no terreno das
porque a própria substância do fetiche moderno é distinta. Nas outras subjetividades: o sujeito analisado por Weber (2010) se desenvolvia e
formas de fetiche, dos totens ao espelho que iludiam os índios, passando foi ele o primeiro que tentou dar conta dessa nova forma de estar-no-
pelo fetichismo freudiano, o objeto em si não contém uma substância mundo. Um sujeito que não aceita as leis religiosas estáticas que conde-
autônoma e dinâmica. Nas outras formas de fetichismo, a projeção se nam o desenvolvimento humano, leis que defendem as leis sociais como
encerra nela mesma e, mesmo chegando a ponto de tomar o próprio oriundas dos desígnios celestes às quais é preciso adaptar-se. O sujeito
lugar do sujeito (FREUD), essa projeção não cria um objeto que se torna protestante é, ao contrário disso, um sujeito para o qual o acúmulo, a
independente, com uma dinâmica que os sujeitos têm que se desdobrar dinâmica social é índice de eleição divina. Mas esse sujeito condena ao
para acompanhar. No fetichismo da mercadoria, o objeto-fetiche con- mesmo tempo a desmedida, o luxo, o gozo. Tudo devia ser bem medido.
tém uma substância que faz com que ele não seja feito para o uso espe- Isso esse sujeito herdou da memória da pré-modernidade. O sujeito
cialmente, o fato de servir ao uso é contingente, ele é feito em verdade moderno nasce, assim, amalgamado com os resquícios pré-modernos.
principalmente para alimentar uma lógica tautológica (cujo fim está Esse parece ser o mesmo sujeito que Freud analisou como neurótico. Ou
nela mesma): essa lógica é a da transformação de dinheiro em sempre seja, a economia psíquica predominante é a neurose, é a repressão. O
mais dinheiro. sujeito tem ciência das renúncias que precisa fazer para viver em socie-
dade e conseguir seu objetivo de acúmulo. Família e Estado têm enorme
1 Seria interessante fazer uma relação com o desenvolvimento da indústria das armas de força social. O trabalho é a grande fonte de subjetivação, pode-se dizer.
fogo como determinante para a implantação do capitalismo. É o que desenvolve por
Ulisses é a grande figura mítica, aquele que transforma – como explana-
exemplo Robert Kurz em seu Livro negro do capitalismo citado por Anselm Jappe em seu
livro As aventuras da mercadoria, Lisboa: Antígona, 2006. ram Adorno e Horkheimer no Excurso sobre Ulisses (1983) – o sacrifício

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em subjetividade. Obviamente, as aventuras do sujeito moderno são de A propaganda, ou a publicidade, dessa época já começa a entrar
um nível bem mais rebaixado do que aquelas vividas por Ulisses. nesse espírito de acoplar às mercadorias características psicossociais que
Esse sujeito caminhou muito bem ao lado da sociedade mercantil nada têm a ver com ela.
até a crise de 1929. A crise de 29 veio mostrar pela primeira vez ao capi- Sabe-se que a lógica que reinava era a da exploração massiva de
talismo uma força – chamada de mão invisível por Adam Smith – que força de trabalho. O trabalhador era entendido como mercadoria ape-
nem ele próprio conseguia controlar – apesar de continuar a existir a nas, embora uma mercadoria especial, aquela que tem o poder de dar
visão de que existe uma classe que domina realmente as rédeas da lógica valor às outras. Era preciso fazer com que esse trabalhador também con-
mercantil. As duas classes modernas, e Marcuse (1973) explicita isso, são tribuísse para o consumo.
imanentes e submetidas à lógica mercantil, embora em posições diferen- A era da mercadoria como objeto de massas se desenvolveu sobre-
tes. Não existe, assim, a forma subjectiva do pobre-bonzinho-sofredor tudo no pós-guerra, principalmente a Europa e Estados Unidos, pois
que vence a subjetividade má do burguês. A grande crise de 29 mostrou nos países de Terceiro Mundo ainda reinava a penúria largamente.2
que a dinâmica objetiva que reinava no capitalismo tinha conseguido Gostaria de fazer mais uma pequena incursão no seio da merca-
um avanço surpreendente no tocante à produção de mercadorias, mas doria para tentar contribuir para uma compreensão de sua dinâmica e
tinham esquecido de avisar aos sujeitos que eles precisavam fazer sua velocidade sempre maior. Marx a chamou a célula germinal e em pági-
parte: comprar. nas não muito conhecidas falou de um aspecto explosivo e implosivo
Era impensável normalmente para aquele sujeito a desmedida que reside na própria mercadoria. Isso porque a mercadoria tem sua
sobretudo enquanto atos de consumo. Tudo era muito bem plane- substância medida pelo tempo, tempo de trabalho. Quando nos pergun-
jado. Era difícil encontrar alguém que guardasse em casa uma coleção tamos: “por que o capitalismo precisa desse consumismo exagerado que
de sapatos, de calças, ou de vestidos. Ou alguém que fizesse algo por destrói tudo?” normalmente a resposta é que o capitalismo tem uma
impulso. O crédito era signo de fragilidade. Portanto, nada de querer sede insaciável de lucro. Isso é bem verdade. Mas Marx também deu
consumir o futuro no presente. outra resposta além dessa, que é bem conhecida e fácil de ser usada no
Essa forma de subjetivação baseada na medida, na repressão, na jargão político. Ele disse que o capitalismo é uma contradição em pro-
renúncia, no adiamento, tudo aquilo que tinha sido essencial à insta- cesso. No que ele coloca o tempo como medida de todas as riquezas,
lação do espírito do capitalismo lhe parecia agora mais um obstáculo. ele se esforça para diminuir a um mínimo sempre esse mesmo tempo
Gostaria de citar um pouco da Fábula das abelhas de Mandeville (MARX, 2011, p. 588-589). Ou seja, e aqui sigo Postone, o capitalismo é a
em que ele fala no século xviii o que somente mais tarde viria a se con- primeira forma de sociedade em que a riqueza social é oposta à riqueza
cretizar. São os vícios privados que fazem a riqueza pública, essa é a material. Quer dizer, na sociedade mercantil, uma grande quantidade
antropologia liberal como exprime Dufour (2008): de mercadoria significa grande riqueza material, mas ao mesmo tempo
pode significar sempre menor riqueza social, visto que o tempo de tra-
As atitudes, os caracteres e os comportamentos considerados repreensí-
veis em nível individual (tais como a cobiça, o gosto pelo luxo, um ritmo balho para se produzir uma mercadoria tende a sempre ser menor pela
de vida dispendioso, a libertinagem...) estão para a coletividade na origem tecnologia, e a riqueza social é medida no capitalismo pela quantidade
da prosperidade geral e favorecem o desenvolvimento das artes e das ciên- de tempo contida em cada mercadoria (valor).
cias. A antropologia liberal nasceu, sua moral se exprime no segundo sub-
título da Fábula: “seja tão ávido, egoísta, gastador para o seu próprio prazer
quanto você puder ser, pois assim, fará o melhor que puder fazer para a
2 Hoje eu posso lhes dizer que na minha infância não tive acesso a refrigerantes nem a
prosperidade de sua nação e a felicidade de seus concidadãos”. (DUFOUR, xilitos ou biscoitos, ou guloseimas, não porque não desejasse, mas porque não havia pos-
2008, p. 261) sibilidade de ter acesso. Hoje eu agradeço de certo modo àquela penúria.

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Significa que se num dado momento são fabricados pela média de É importante refletir o fato de que o capitalismo, por não poder
trabalho social 30 camisas em uma hora, cada camisa contém 2 minu- conhecer limite objetivamente, precisa romper todos os limites também
tos de valor, de tempo de trabalho. Se uma nova invenção tecnológica subjetivamente para poder ir sempre adiante.
fizer com que se produza 60 camisas em um hora, cada camisa valerá Assim, aquela forma de subjetivação analisada por Weber come-
1 minuto. Num primeiro momento isso vai significar muito lucro para çou a ser um empecilho ao próprio sistema a que pretendia servir. Se
aqueles que tiverem acesso a tal tecnologia, porque a média continua 2 a partir do pós-guerra se desenvolveu a massificação das mercadorias,
minutos. Porém, quando a tecnologia se estender a todos, o padrão de após os movimentos estudantis radicais, principalmente da França de
produtividade vai fazer com que o lucro de todos diminua novamente 1968, começou a desenvolver-se uma nova forma de individualização
num processo sem fim. Dessa forma são criados dois problemas para a (e não individuação). Da radicalidade de alguns movimentos estudan-
lógica mercantil: primeiramente, ela terá o tempo de trabalho diminuído tis, na França principalmente, a mercadoria retirou uma cínica lição: a
em cada mercadoria, ou seja, por mais que tenha aumentado a riqueza liberdade é a melhor forma de dominar. Começa então a desabrochar
material, produzido duas camisas no mesmo tempo de uma, cada mer- um pretenso novo indivíduo, que Severiano (2010) denominou pseu-
cadoria terá metade da riqueza social de antes da invenção dessa tecno- doindivíduo (do mesmo modo que Adorno, em seu artigo Sobre música
logia. O segundo problema diz respeito ao fato de que também a socie- popular, tinha chamado pseudoindivíduo aqueles que se achavam livres
dade mercantil vai precisar fazer comprar não mais apenas 30, mas 60 para escolher as músicas que escutavam).
camisas para poder compensar o que perdeu e manter o mesmo nível de A partir da década de 70, um sujeito que se crê individualizado,
riqueza. Esse processo se dá quotidianamente. seguro de si, vem a lume.
Defendo-me dessa digressão que pode, talvez, ser acusada de eco- É partir de então que o sistema com muita força apela para os espí-
nomismo. Creio que é fundamental entender que o capitalismo não pode ritos, para o que há de mais íntimo, para um pretenso Eu-grandioso,
parar no mesmo ponto não só porque precisa aumentar seus lucros, mas um eu que precisa ter seus desejos sempre saciados, pois ele encara
porque se não o fizer ele cai. Além disso, pelo fato de que sua matéria é seus desejos como imperiosos. Como dizia uma pichação nos muros
diretamente a potencializarão ou rentabilização do tempo, seu campo de Paris: “Tome os seus desejos por realidade.” Não foi exatamente isso
de manobra fica pequeno sempre, pois uma hora é sempre uma hora. que Freud falou do inconsciente: que ele confunde a realidade psíquica
Entender essa lógica, a meu ver, é importante para entender por com a realidade externa? “Quebremos as velhas engrenagens”; Sejamos
que a mercadoria precisou se revestir de tantos atributos humanos para realistas, exijamos o impossível”; “Não sejamos ovelhas”; “Viver sem
poder seduzir. Se para fazer o sistema capitalista ir sempre adiante e tempo morto” e “Goze sem entraves”. É claro que à época havia um certo
sempre mais rápido é preciso fazer comprar sempre maior quantidade conteúdo que distinguia essas palavras de ordem. Mas o certo é que elas
de mercadorias, somos nós que concretamente pensamos formas de pretendiam atacar o capitalismo, mas em verdade – como explica Jappe
livrar a mercadoria desse impasse. (2011) – elas serviram a combater os resquícios de pré-modernidade que
Até aqui nós falamos do fetichismo e do tempo em um primeiro ainda estavam entravando a dinâmica do capitalismo. Essa dinâmica
nível. Quando falamos em níveis de fetichismo e de tempo não estamos tende à desmedida e busca encontrar aquilo que é insaciável e ilimi-
a falar da velha distinção base e superestrutura. São níveis que se entre- tado: o desejo. Esse desejo, o movimentos dos anos 60 criam que iam de
cruzam e se confundem a todo instante. encontro ao sistema capitalista.
Falamos até aqui do fetichismo enquanto objetivação das relações As palavras de ordem hoje parecem ter aprendido com aquelas:
sociais – com uma forma de subjetivação correspondente – e do tempo “Abuse e use” (C&A); “Viver sem fronteiras” (TIM); “Vivo é você em pri-
enquanto abstração também dinâmica. meiro lugar” (VIVO); “Com Sansung, não é tão difícil imaginar, ima-

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gine”; “Você imagina, a Arno faz”; “Pensando em você” (Electrolux); É interessante notar que a renúncia, que a sociedade tenta afastar de
“Porque você merece” (L’ORÉAL); “Você pode ser o que quiser” (O Boti- nós como um cálice da proibição, guarda estreita relação com uma tem-
cário); “Incomodada fica sua avó” (Tampax); “Agarre a vida” (Dodge); poralidade em que o futuro tem importância. E não só. Devido a essas
“Drive you way” (Hyundai); “The power of dreams” (Honda); “Estar na renúncias, o indivíduo mantém uma tensão fundamentalmente neces-
moda é estar bem” (Lojas Radan). sária com o imediato social – tensão que se expressa em mal-estar, uma
A mercadoria passa a tirar de sua cabeça de mercadoria muito insatisfação por ter sido obrigado a abrir mão da realização imediata dos
mais manhas e cismas. Ela passa a ser um outro muito importante que desejos, abrir mão de sua completude primária em proveito das relações
não só comunica via publicidade, mas que tem o poder de, num pro- sociais. Esse adiamento, portanto, substituição do desejo imediato pelo
cesso mimético, transferir suas características mágicas àqueles que dela mediato, caracteriza a socialização.
tenham posse. Poder, beleza, sensibilidade, força, liberdade, amizade, Esse futuro para o qual apontam o adiamento e a renúncia pulsio-
carinho, companhia, diversão, onipotência, unicidade são alguns senti- nal mantém, por sua vez, estreita relação com o que Freud chama de
mentos ou desejos que são projetados de forma arbitrária na mercado- Ideal-de-Eu ou ideais culturais ou coletivos. Esses ideais culturais, cole-
ria. Mas essa projeção passa como se fosse algo de natural. Tudo passa na tivos apenas se erigem com o reconhecimento do outro e da realidade
publicidade como se fosse brincadeira para aqueles que assistem. Quem externa como diferentes da realidade psíquica do sujeito.
nunca ouviu: isso é só uma propaganda!. Mas essa propaganda é muito O Ideal-de-Eu aponta, portanto, para projetos futuros.
levada a sério pelos processos primários, que confundem realidade psí- Ora, a mercadoria em seu duplo fetichismo, contemporaneamente,
quica e realidade social, pensamento e realidade, desejo e realização dos alimenta a ideologia do “aqui e agora porque Eu quero”. Assim, não só
desejos. Já nas crianças, que desde cedo têm acesso a esse mundo de é aguçada a ideologia de que tudo é possível realizar dentro do enqua-
encanto, a subjetividade é moldada. dramento mercantil, mas também é preciso realizar tudo agora, pois o
Essa “capacidade” que tem a mercadoria de ser portadora de aspec- futuro é incerto e não sabemos se estaremos vivos.
tos psicossociais que, em princípio, apenas poderiam se constituir em O presente perpétuo, com um desprezo pelo passado e um desejo
relações de fato humanas aponta para o que Severiano denominou duplo de consumir no presente o futuro – que deste modo se transforma em
Fetichismo, ou mais precisamente, para o segundo nível de feitichismo continuação linear do presente –, vai de par com o que Bruckner chama
refletido pela autora. Esses aspectos psicossociais são da esfera do desejo Euforia perpétua, dever de felicidade. Mas esse dever de felicidade aliado
e, mais especificamente, da esfera da realização imediata dos desejos. à diversão contínua vai de par também com o que expressou Adorno
Dito de outro modo, a sociedade do consumo, da desmedida a que (1986, p. 131): “Divertir-se é estar de acordo”, ou “Rimos do fato de que
chegamos – momento da sociedade mercantil desenvolvida –, precisa não há motivo para se rir”, ou “o riso é o meio fraudulento de ludibriar
dar a entender a todo momento que não há mais nada a renunciar. A a felicidade”. Esse dever de felicidade aliado ao pretenso hedonismo
época do sujeito que transforma o sacrifício em subjetividade para fun- desemboca, como alertou Maria Rita Kehl, citando Octavio Paz, num
dar-se enquanto “sujeito que vale por si mesmo” já passou. É como se a conformismo generalizado.
contemporaneidade desenvolvesse uma revolta nova: contra a moder- O conceito de consciência feliz de Marcuse parece ser bastante ins-
nidade sólida. Tudo deve ser agora. Não é mais Ulisses, mas Narciso trutivo para apreendermos esses tempos que aparentam uma forte con-
hedonista a nova figura mítica. É a apoteose do Eu. Todas essas figuras ciliação entre indivíduo e sociedade. A consciência feliz seria aquela que
míticas, é importante ressaltar, têm seu sentido primeiro cinicamente crê que tudo já está realizado, por isso é feliz, ela não cria tensão com
revertido. Assim como nunca fomos Ulisses, não somos agora narcisos a realidade, pois essa consciência feliz crê nada ter sido preciso adiar,
de fato, muito menos estamos numa sociedade de fato do prazer. renunciar. No Mal-estar, ao contrário, a consciência típica é a infeliz.

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Gostaria de citar Kehl para quem essa tendência ao pretenso hedo- referências bibliográficas
nismo pretende poupar a pessoas do pensamento. Se o pensamento é
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento: fragmentos
um rodeio em busca de algo que falta ao sujeito, e se o pensamento só filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. 2a. ed. Rio de Janeiro:
se estabelece nessa tensão com aquilo que falta e que precisa ser apreen- Jorge Zahar Editor, 1986.
dido, um espaço que não se encaixa, um espaço tenso, a lógica do “tudo ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo, 6a. ed. Rio de
pronto na hora que eu quero”, a da consciência feliz parece apontar para Janeiro: Forense Universitária, 1993.
um regressão no potencial crítico das pessoas. BUCCI, Eugênio, KEHL, Maria Rita. Videologias. 1. Ed. 1. Reimp. São Paulo: Boi-
O nosso estudo centra-se muito mais nos jovens, que são aqueles tempo Editorial, 2005.
com quem convivi durante quase dez anos, e pudemos sentir de fato essa BRUCKNER, Pascal. A euforia perpétua. Ensaios sobre o dever de felicidade. Tra-
distensão entre o indivíduo e a sociedade expressa numa dificuldade de dução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
formular o mínimo pensamento, expressa na dificuldade em lidar com DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. 1.
Ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
a menor tensão que, em vez de se transformar em pensamento, tende a
DUFOUR, Dany-Robert. O Divino mercado. A revolução cultural liberal. Tradu-
transformar-se em sofrimento, estultícia.
ção Procópio Abreu. 1a. ed. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
Se já passamos pela obsolescência planejada das mercadorias, Rus-
JACOBY, Russel. Amnésia social. Tradução de Sônia Sales. Rio de Janeiro: Zahar
sel Jacoby fala agora de uma obsolescência planejada do pensamento Editores, 1977.
(1977, p. 15). Será que o pensamento crítico está se tornando obsoleto? JAPPE, Anselm. Crédit à mort. Paris: Éditions Lignes, 2011.
Para Arendt, esse vazio do pensamento se produz nas sociedades de
MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional.
massas, e acrescenta que se o pensamento fica obsoleto ou supérfluo, Tradução Giasoni Rebuá, 4a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973.
em função de um mundo falsamente a-conflitivo, é o ser humano que MARX, Karl. Grundrisse. Tradução de Mário Duayer e Nélio Schneider. São
também fica (ARENDT, 1993). Paulo: Boitempo, 2011.
Apresentando o sonho como já sonhado e o sonho como realizado ______. O capital. Tradução Régis Barbosa e Flávio R. Kothe, 2a. ed. São Paulo:
ou realizável – o reino do inconsciente –, essa nova forma de repressão Nova Cultural, 1985.
sedutora faz com cinicamente o mal-estar na civilização seja conside- POSTONE, Moishe. Temps, travail et domination sociale. Tradução Luc Mercier e
rado superado em proveito de um eterno e desejável bem-estar na civi- Olivier Galtier. Paris: Fayard, 2009.
lização. É como se o mal-estar decorresse da falta de limites a não ser os SEVERIANO, M. de F. “Lógica do mercado” e “lógica do desejo”: reflexões críti-

abstractos e sutas impostos pela mercadoria que se entranha aprioristi- cas sobre a sociedade de consumo contemporâneo a partir da Escola de
Frankfurt. Em Jorge C. Soares (org.), Escola de Frankfurt: inquietudes da
camente em nossa vida. É o aprisionamento da esfera do possível, das razão e da emoção. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010.
possibilidades utópicas do homem, dentro das esfera do real imediato. ______. Narcisismo e publicidade. Uma análise psicossocial dos ideais de con-
Assim, é a possibilidade de transcendência à realidade imediata (MAR- sumo na contemporaneidade. 2a. ed. São Paulo: Annablume, 2007.
CUSE), de ir para além do universo estabelecido da palavra e da ação, que WEBER, Max. L’Éthique protestant et l’esprit du capitalisme. Reimp. Paris: Edi-
se vê sutilmente atacada. tions Plon (Pocket), 2010.
Assim, existe uma estreita relação entre a dinâmica do fetiche da
mercadoria e a dinâmica do tempo abstrato, bem como a aceleração
sem precedentes que vivemos na contemporaneidade não visa a nada
mais do que a uma mudança contínua, frenética e dinâmica para que no
fundo nada mude.

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A “autoajuda” no espaço de consumo virtual: rios essenciais da existência humana, focando em especial, a apropria-
ção que o capitalismo fez e faz da tecnologia e da razão instrumental,
estratégia capitalista para captura da subjetividade principalmente quando utiliza a virtualização de conteúdos, bem como
via compressão do tempo a compressão do tempo e do espaço para atingir seu objetivo central –
maximizar ganhos – promovendo a ilusão de estar a serviço do social, e
Jean Marlos Pinheiro Borba nesse sentido a racionalidade tecnológica entra em cena.
Tomo emprestado de Ewald (2007) a expressão psicologia social
fenomenológica,2 que ao lado das contribuições dos pensadores da teo-
ria crítica (clássicos e contemporâneos) nos auxiliarão no ver direto e
crítico da proliferação do fenômeno da “autoajuda” no meio virtual,
preferencialmente, os audiolivros e, também em outros meios utiliza-
dos para comunicar intenções falaciosas acerca do modo de gerenciar
o tempo, apontado pseudonovidades, na direção de criar um fetiche do
tempo (MATOS, 2006).
No que pesa a análise sobre a questão do tempo, Quik (1995) e Basso
(1998) são dois autores que, a título de exemplo, demonstram o tipo de
racionalidade predominante em seus textos e que é utilizada para geren-
O artigo apresenta algumas observações sobre o mundo-da-vida1 con- ciar o tempo. O primeiro autor aponta 15 (quinze) frases que são usadas
temporâneo que permitiram identificar as estratégias que o capitalismo no cotidiano empresarial e que expressam “erros” comuns em relação ao
tem se utilizado para sustentar, pela via da racionalidade tecnológica uso do tempo, bem como apresenta logo em seguida na mesma propor-
e do discurso de promoção da cidadania, o consumo da literatura de ção maneiras e dicas de repensá-lo e melhor aproveitá-lo no ambiente
autoajuda, mas especificamente quando propaga o acesso ao audiolivro, de trabalho e na vida pessoal. Em geral os autores focam-se na relação
ao e-book e outras práticas que configuram “ajuda”. E ainda discutir os tempo, produtividade, afirmando que o tempo bem gerenciado é tempo
mecanismos de construção de subjetividade acoplados na lógica con- produtivo. Eis um exemplo dado na dica número 12: Perder tempo não
temporânea, dentre eles a gestão do tempo, estratégia essa carregada de custa muito. Bem Franklin, disse há 200 anos: “Tempo é dinheiro.” Se
outros interesses e vendida como mercadoria. um gerente que ganha um salário anual de US$ 40.000 e desperdiça uma
Para cumprir este objetivo discorro brevemente a cerca do con- hora por dia, ele vai custar US$ 5.000 por ano de tempo improdutivo.
sumo de livros de autoajuda no meio virtual, bem como coloco em A dica anteriormente apresentada pelo autor sintetiza algumas de
cena o caráter intencional da ratificação das tecnologias como acessó- suas intenções, ou talvez a maior delas: deixar evidente a relação entre
tempo, produtividade e retorno do capital investido que são alcançados
1 Do alemão Lebenswelt o termo tem sua maior referência nas obras do pai da fenomeno- caso o leitor siga as orientações apresentadas no texto. A intenção na
logia Edmund Husserl. Husserl fez referência ao termo em Investigações lógicas e depois
na obra A crise da humanidade europeia e a fenomenologia transcendental. O mundo da
vida difere-se do conceito de mundo utilizado pela ciência, o mundo da atitude natural 2 Acredito na possibilidade de uma psicologia social de base fenomenológica, pois a feno-
onde há o predomínio do pensamento lógico-matemático e positivo. O termo é usado menologia proporciona o ver direto dos fenômenos assim como eles aparecem, sem que
geralmente hifenizando para expressar a inseparabilidade entre cada elemento. Na ciên- nos preocupemos com formulações de hipóteses, medições, mas que tenhamos acima
cia natural ou para aquelas que receberam forte influência o mundo refere-se apenas a de tudo atenção, suspensão de julgamentos antecipados para que seja possível se ter um
um lugar (PIZZI, 2006). olhar atento ao fenômeno que emerge.

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verdade não é apenas usar o tempo em favor do empregado, mas manter Da citação acima é possível destacar um dos interesses do capita-
o trabalhador motivado para promover o enriquecimento do capitalista lismo de consumo3: compactar, ampliar e/ou acelerar o tempo quando
que deseja mais produtividade e retorno, sob o argumento de que é o seu for conveniente e, freá-lo da mesma maneira, tudo isso feito para que
tempo pessoal que ele está gerenciando. apenas um dos lados, o capitalista, possa obter ganhos em progressão
Basso (1998) em Administração Eficaz do Tempo apresenta, assim geométrica passando a falsa ideia de que o beneficiado é o comprador e,
como outros autores deste segmento, a relação imediata entre tempo e como lembra Bauman (2010, p. 8-9):
dinheiro e, logo em seguida um programa repleto de dicas para ges-
Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos
tão do tempo. As dicas associam um “olhar psicológico” e racional do os parasitas, pode esperar durante certo período, desde que encontre um
tempo, transferindo a responsabilidade para o trabalhador, induzindo-o organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode
a assumir o ônus de sua má gestão. fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as
Na direção de criar mais produtividade e mais retorno, encontram- condições de sua prosperidade ou mesmo de sobrevivência.
se os fundamentos do cálculo financeiro e os modelos de gestão em Sobre capitalismo de consumo Borba (2010, p. 3) ao tratar da rela-
finanças – quer seja da pessoa jurídica ou da pessoa física – nestes, o ção entre livros de autoajuda e capitalismo comenta que:
tempo ocupa lugar privilegiado no cálculo do retorno do investimento,
na concessão e tomada de empréstimo, no controle do fluxo de caixa e O capitalismo de consumo, fase atual, do sistema capitalista, mudou foco
do consumo para massas para um consumo individualizante, onde agora
no giro do capital, no cálculo de férias, promoção funcional e aposenta- os desejos pessoais precisam ser atendidos em detrimento do coletivo,
dorias, na concessão de prêmios e bonificações. Na empresa capitalista e passando ao consumidor a falsa ideia de que ele é exclusivo, único.
na vida em sociedade controlar o tempo e fazer uso racional do mesmo é
sinônimo de aproveitamento de oportunidades e de crescimento, enfim Na direção de garantir o aumento dos investimentos do capital
de progresso. estão as “Ciências” que usam o modelo positivista e a racionalidade-téc-
O valor do dinheiro no tempo é um dos assuntos mais estudados nica como fundamento, principalmente a Engenharia, a Contabilidade,
na área financeira e que também é um dos principais objetivos persegui- a Administração e, também, parte da Economia que não têm olhar crí-
dos pelos autores de livros de autoajuda financeira, em ambos os casos tico sobre o capitalismo, mas professam uma economia monetária e das
inserem-se dentro da lógica do capitalismo. Estas dicas de como o leitor empresas. A Administração, em especial, foi a maior responsável em seu
pode fazer uso dos recursos que lhe são oferecidos, ou até mesmo de período clássico pela divulgação de um modo automatizado de controle
como os leitores podem auferir mais retorno em cima do patrimônio dos tempos e movimentos, já que considerava que o homem desperdi-
que possuem, quer sejam eles investidores, ou caso pretendam pagar çava tempo e movimento, instituindo assim no meio organizacional a
menos juros em um empréstimo garante a crença de que é possível enri- ditadura do controle do tempo que foi averbada pela Psicologia Indus-
quecer. Padoveze (2005, p. 103) argumenta que: trial durante décadas. E em sua fase atual apresenta além do paradigma
do controle a gestão do tempo e das competências como uma estratégia
(...) o valor do dinheiro no tempo decorre: a) do seu custo (para quem capitalista de expropriar ainda mais o tempo no e para o trabalho, já
paga) e b) da renda (para quem recebe). Assim, o dinheiro (uma unidade
monetária) vale hoje mais do que uma unidade monetária disponível que as competências precisam atender aos anseios empresariais e muitas
no futuro, uma vez que o dinheiro disponível agora pode ser investido e
3 Tomo emprestado esta expressão de Lipovetsky (2007) e Severiano (2001). Lipovetsky
começar a render juros imediatamente. adverte que o objetivo do capitalismo de consumo fez ascender um projeto de demo-
cratização do acesso aos bens de consumo via educação dos consumidores, já que visa
à redução de preços e o aumento de lucro pelo volume produzido, somando-se a isso a
lógica da obsolescência programada.

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vezes desrespeitam aquilo que o indivíduo é e pode oferecer, mas acabo tividade e o dinheiro são elementos necessários para gestão do tempo,
por artificializar suas atitudes em prol do emprego. veja a sinopse do livro de Cerbasi que está disponível no site:6
Anos mais tarde, sob a justificativa de romper com esse modelo,
Uma das máximas do capitalismo – “Tempo é Dinheiro” – é questio-
surgiram as teorias das relações humanas, que na verdade passaram a nada por Gustavo Cerbasi e Christian Barbosa, dois dos mais respeitados
utilizar fundamentos da psicologia de Abrham Maslow e que acabou especialistas em gestão do dinheiro e do tempo respectivamente. Para os
por se tornar um terreno fértil para a difusão da literatura da tranqui- autores, tempo e dinheiro não são exatamente a mesma coisa. “Ambos são
lidade, do racionalismo técnico, do retorno ao psicologismo, do indivi- riquezas distintas que, somadas e bem utilizadas, conferem um novo sen-
tido ao conceito de prosperidade. Há maneiras de ganhar dinheiro sem
dualismo e do mercado de personalidade (RUDIGER, 1996). consumir o nosso tempo, bem como o tempo mal aproveitado pode custar
Nesse mercado de “personalidade”, há espaço para a preparação muito dinheiro. Em resumo, ter mais dinheiro não significa gastar menos,
de administradores do tempo. Sob a máxima de Tempo desperdiçado é e que ter mais tempo não significa adotar uma maçante disciplina militar”,
dinheiro perdido, vários livros, audiolivros e e-books estão disponíveis. O explica Cerbasi.
e-book “Você tem tempo para você?”,4 além de apresentar dicas de uso A associação entre livros de autoajuda, agora audiolivros,7 tempo
do tempo de modo racional, o autor propõe que o leitor experiencie o e dinheiro é perfeita para iniciarmos a discussão acerca do mercado
planejamento do próprio tempo e dá em seguida várias dicas de como de personalidade no meio virtual. Considerado que o capitalismo se
gerenciá-lo, assim como indica o blog Mais Tempo, onde o leitor pode metamorfoseia e paralisa a capacidade de pensar criticamente, de um
adquirir mais informações de como conseguir produtividade com o uso considerável número de pessoas, e propaga a ditadura da beleza e da
racional do tempo, inclusive podendo adquirir seus livros. Essa é uma felicidade como instrumentos de captura da subjetividade. A leitura e a
associação muito usada pelos autores que oferecem autoajuda, associada escuta quando associadas ao binômio tempo-espaço tornaram-se tam-
a venda de serviços e produtos em seus sites. bém alvos fáceis da estratégia capitalista para capturar e manter ingênua
Gustavo Cerbasi,5 consultor financeiro, é outro autor de uma série a subjetividade do homem contemporâneo.
de livros de autoajuda em finanças pessoais que foram editados em for- Coloco em cena a afirmação da filósofa Olgária Matos que auxilia
mato impresso e migrados em pouco tempo para o formado de audio- a clarificar as configurações da conjuntura capitalista atual: “A cultura
livro. Um destes livros tem relação direta com este trabalho, intitula-se da sociedade de massa impede o exercício da faculdade de julgar, pois
“Mais tempo, mais dinheiro”, escrito em coautoria com Chistian Bar- este levaria a pensar o mercado, a ciência, a técnica para o homem e
bosa (autor de Tríade do tempo). Ambos autores afirmam que a produ-

4 Este manual é integrante da coleção editada pela Tríade do Tempo – Consultoria em pro- 6 http://www.maisdinheiro.com.br/livros/gustavo-cerbasi/mais-tempo-mais-dinheiro.
dutividade, cujos autores são Christian Barbosa autor de A tríade do tempo e Você, dona html.
do seu tempo. Disponível em http://www.vocêcommaistempo.com.br. O autor, em seu 7 O mercado de audiolivros, salvo seu uso para os deficientes, se iniciou com exemplos
livro Investimentos inteligentes, faz a seguinte declaração em relação às críticas que seus como o do técnico de informática Marco Giroto, de 28 anos, que criou a Audiolivro em
livros recebem pelos acadêmicos: “Meus livros costumar ser classificados na categoria 2006. A ideia de montar uma editora de livros narrados surgiu durante as “viagens” diá-
Autoajuda das livrarias, a qual é alvo de muito preconceito, principalmente de intelec- rias que fazia entre sua casa, em São Paulo, e a sede da empresa em que trabalhava, em
tuais. De guias de viagem a textos meramente inspiradores, há um vasto conteúdo que Barueri (SP).
pode ser classificado como autoajuda. Porém, há uma má fama associada a essa categoria, “Eu perdia três horas por dia nesse trajeto. Pensei: deve haver um jeito melhor de aprovei-
decorrente de um grande número de textos oportunistas e sem conteúdo que exploram tar esse tempo”, conta. Apaixonado por leitura, pesquisou e descobriu o mercado de audio-
ignorância alheia para iludir e fidelizar leitores. Sim, você está lendo um texto de autoa- livros nos EUA, que movimenta cerca de US$ 1 bilhão por ano, ou 9% do mercado editorial.
juda, mas que foi elaborado a partir de um grande esforço de pesquisa e adequação da O audiolivro comprime o tempo de leitura e acelera o processo de aquisição de um novo
linguagem para que você possa tomar decisões inteligentes sem ter que fazer um intenso livro.” ARAGÃO, Marianna. Empresas descobrem mercado de audiolivro. O Estado de S.
investimento em dinheiro e tempo em educação” (CERBASI, 2008, p. 17). Paulo, 12 de agosto de 2008. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/2008/08/12/
5 Maiores informações podem ser encontradas no site http://www.maisdinheiro.com.br/. empresas-descobrem-mercado-de-audiolivro/>. Acesso em: 31 maio 2011.

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não o homem para a ciência, para a técnica e para o mercado” (MATOS, c) são isentos de “marcas de subjetividade”, já que utilizam a conotação
2006, p. 80). geral de objetividade e neutralidade que estão presentes no discurso das
ciências;
Samuel Smiles (1946, p. 28) – “pai da autoajuda” – argumenta acerca
d) propagam o discurso da certeza e nunca da dúvida ou da angústia, já
do valor do livro numa sociedade de livros, que hoje foi associado à téc- que acreditam ser pela ação positiva que os homens conseguem a felici-
nica e metamorfoseou-se na direção do progresso... ou melhor, da crise. dade e o sucesso;
Smiles diz: “Pode-se, geralmente, julgar um homem pelos livros que lê, e) o autor do livro de autoajuda de forma persuasiva passa a imagem de
como pela sociedade que frequenta; porque há a sociedade dos livros, que tudo na vida dele deu ou dá certo, e está sempre pautado na sua res-
ponsabilidade diante das escolhas que faz e que os outros não têm nenhum
como há a sociedade dos homens, e num ou noutra, sempre devemos
responsabilidade sobre elas;
procurar a melhor.” f) oferecem supostas receitas e segredos para solucionar problemas da vida
O livro é um elemento importante na formação humana, mas se cotidiana ignorando as causas ou o foco dos problemas, aconselhando
tornou um instrumento de pseudoinformação principalmente quando geralmente a se esquecer o passado e pensar no futuro;
ele é utilizado para disseminar opiniões pessoais, crenças e promover g) evitam reflexões profundas sobre o existir e sobre coisas “negativas”;
h) prestam-se mais a aconselhar do que a filosofar sobre os problemas
respostas rápidas para problemas complexos, bem como quando divulga
individuais e sociais e cotidianos;
informações pseudocientíficas, geralmente regadas à lógica do pensa- i) oferecem sabedoria e conhecimento sobre uma infinidade de temas de
mento positivo e místico e, em alguns casos, usando ideias de teorias maneira rápida, incisiva e objetiva, são como um fast-food.
psicológicas de forma simplista e sem nenhum aprofundamento teórico
e crítico. O discurso é favorável à lógica capitalista já que apresentam regras
Refiro-me aqui aos livros de autoajuda8 em sua mais nova versão: rápidas, para leitores que têm pressa em “resolver problemas complexos”,
audiolivro. como se fosse possível retirar para o mais longe de si possível, a angús-
Sobre literatura de autoajuda, Bruneli citado por Borba (2009, p. tia de existir e os problemas da existência de cada um. Esse discurso é
6-7) apresenta uma série de elementos que auxiliam a compreender os encontrado nos livros via frases de efeito, que incentivam e responsabi-
objetivos e características de fenômeno editorial de massa. Dentre eles, lizam apenas o leitor pelo alcance daquilo que ele deseja, retirando do
destaco abaixo aqueles que mais interessam a esta discussão: sistema qualquer responsabilidade pela situação em que ele se encontra.
Os livros de autoajuda assumem o papel de tutores para aqueles
a) o discurso da autoajuda é altamente favorável à ideologia capitalista; que não têm coragem de assumir conscientemente sua vida, caindo na
b) utiliza uma linguagem persuasiva, com frases imperativas, que esti-
menoridade já apresentada por Kant. Sair da menoridade é algo que
mulam o pensamento positivo através de verbos que emitem opinião e
crença, tais como: crer, achar, acreditar e pensar; o homem só poderia fazer pela via do esclarecimento (Aufklãrung).
(BORBA & SOARES, 2011, p. 284). Matos (2006), ao fazer um paralelo entre
a literatura de autoajuda e a indústria cultural, adverte que é uma leitura
8 Este fenômeno saltou aos nossos olhos nos anos de 2006 e 2007, mas passou a ser estudado
sistematicamente a partir do primeiro semestre de 2008 quando ingressei no Doutorado de qualidade duvidosa que é utilizada como entretenimento de massa.
em Psicologia Social no PPGPS da UERJ, sob a orientação do professor Dr. Jorge Coelho As informações acima nos ajudaram a compreender que a litera-
Soares, tendo como suporte epistemológico, teórico e metodológico de compreensão do
fenômeno a fenomenologia husserliana e as contribuições dos pensadores frankfurtia- tura de autoajuda é um indicador sintoma9 da sociedade contemporâ-
nos, preferencialmente dos clássicos Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Mar- nea, que aqui chamaremos em alguns momentos de sociedade hiper-
cuse e Walter Benjamim, bem como com as reflexões de pesquisadores contemporâneos
tais como: Jorge Coelho Soares, Olgária Matos, Maria de Fátima Viera Severiano, Sérgio
de Paula Rouanet e outros. Estes pensadores contemporâneos que têm colocado em cena 9 De acordo com Borba e Soares (2011, p. 273) o termo foi sugerido pelo professor Jorge
diferentes discussões sobre fenômenos sociais que têm emergido, tendo o olhar frankfur- Coelho Soares para designar de modo genérico a emergência de fenômenos e fatos que
tiano como modo complementar de compreendê-los. caracterizam certa sociedade em determinado momento histórico.

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moderna10 (sociedade de excessos). É indicador sintoma por refletir, na acima de tudo fornecer-lhes leituras acerca da realidade que promovam
forma de livro, os principais efeitos observados da sociedade capitalista, a emancipação e a inquietação frente à vida. Livros podem possibilitar o
sejam eles: individualismo, retorno do pensamento positivo e mágico, acesso às novas informações ou até resgatar antigas. Ele deve provocar o
queda das tradições em detrimento de modos instantâneos de felicidade leitor sendo capaz de apresentar novos e diferentes olhares sobre a vida,
e relacionamento, vida descartável, uso excessivo de drogas e medica- ou até mesmo ratificar ou retificar pontos de vista de quem lê.
mentos, hedonismo individualista e avanço das soluções tecnológicas A leitura é uma prática social que acompanha a humanidade e
como garantia de acesso à felicidade, à paz espiritual e ao corpo perfeito. formação cultural, prática que foi instituída pelas famílias, pela Igreja
A época hipermoderna instalou um estilo de vida que dá ao indi- e pela escola, por meio da leitura silenciosa e oral. Inicialmente ela era
víduo a sensação de que o tempo é rarefeito: “Quanto mais depressa se reservada apenas à nobreza, privilégio este exercido por aqueles que
vai, menos tempo se tem” (LIPOVETSKY, 2004, p. 78). Essa lógica permite eram alfabetizados. A leitura como atividade intelectual, a divulgação
então a proliferação de estratégias tecnológicas que passam a falsa ideia do conhecimento humano e também de estilos e modos de ser.
de que, ao adquiri-las, o tempo é comprimido e melhor aproveitado. Considerando esta evolução, seria impossível imaginar, em tempos
Assim, a cultura-mundo do hipercapitalismo contemporâneo associou atrás, que a prática leitora, enquanto uma prática social, seria modifi-
os fundamentos da autoajuda ao uso excessivo de tecnologias, associa- cada ou teria seu caráter reduzido aos desmandos da técnica e do pro-
ção esta que fez convergir a autoajuda com as tecnologias virtuais e de gresso. Infelizmente isso acabou por acontecer, em muitos casos o ato
áudio oferecendo ao leitor-consumidor o audiolivro de autoajuda em de ler foi substituído pelo ato de ouvir ou pelo ato de navegar na rede.
diferentes segmentos. Lembramos Matos (2006, p. 9-10): “A leitura atenta, concentrada, cedeu
Quando a autoajuda11 foi proposta por Smiles, ela teve como carac- lugar à demagogia da facilidade (...) Semileitores, somos também, pseu-
terística o modo de pensar vigente na cultura de sua época, onde a doformados no pensamento e na vida.”
educação moral, os costumes e a etiqueta social se configuravam como Assim como a música passou a ser produzida e reproduzida como
elementos importantes de inclusão do homem moderno. É pela via do mercadoria, assumindo lugar de importância na vida cotidiana, tendo
caráter que a sociedade vivenciada pelo autor se configura e se inicia o inclusive mais valor que a leitura de obras clássicas, poesia, jornais,
hábito de ler livros de autoajuda. crônicas ou mesmo de literatura geral. A música tornou-se mercadoria
Sabemos que o hábito de ler e a satisfação dele oriunda, e principal- sendo comercializada e usada nas tecnologias portáteis como celulares.
mente a atitude reflexiva que pode ocorrer com a leitura devem instigar Assim, entendemos que o livro se tornou também mercadoria, princi-
o leitor a uma revisão não apenas de sua vida e de seus valores, mas palmente uma mercadoria que também passou a transferir pseudoen-
sinamentos, pseudoinformação e pseudocultura12 como é o caso dos
10 Este tipo de sociedade se apresenta cada vez mais num tipo de sociedade onde há uma
preocupação cada vez maior com o tempo vivido, onde se estabelece um pressão tempo- livros de autoajuda.
ral crescente (LIPOVETSKY, 2004).
11 O termo autoajuda origina-se do inglês self-help, título do primeiro livro de Smiles, tra- 12 Os créditos destes termos são devidos aos teóricos da Escola de Frankfurt que é a deno-
duzido para o português com o título Ajuda-te!. No Brasil, existem diversos trabalhos minação tardia do Instituto de Pesquisa Social fundado em 1923 pelo economista Carl
entre livros, teses, dissertações e artigos científicos publicados em periódicos eletrônicos Grunberg e que esteve vinculado à Universidade de Frankfurt (MATOS, 1987). Em linhas
de fácil acesso. Dentre estes autores sugiro consultar Rudiger (1996), cuja obra traz um gerais os frankfurtianos recusaram o pensamento sistemático, procedendo a uma crítica
panorama da relação entre autoajuda, individualismo e capitalismo, e que tem um teor da razão técnica e à racionalidade histórica que juntas corroboravam para a constru-
crítico muito relevante. Sobre o significado do termo no Dicionário Eletrônico Houaiss ção de processos de subjetivação unidimensionais. Dentre os temas tratados, a crise da
encontra-se a seguinte descrição: “prática que consiste em fazer uso dos próprios recur- sociedade capitalista e o consumo advindos com a cultura de massa foram questionados
sos mentais e morais para alcançar objetivos de ordem prática ou resolver dificuldades e tornaram-se elementos fundamentais para a construção de um olhar crítico sobre a
de âmbito psicológico”. Disponível em: http://www.uol.com.br/houaiss>. Acesso em: 19 indústria cultural, a sociedade administrada, o totalitarismo e racionalidade técnica. Em
maio 2011. tese não há na Escola de Frankfurt um pensamento dogmático, nem tampouco fechado,

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A leitura teve seu valor modificado pela indústria cultural, e, com mento da atenção do que conhecimento da realidade, pois as realidades
o crescimento da razão científico-tecnológica, o livro foi inserido na que lê são frutos de ficção geralmente frutos da literatura estrangeira.
indústria da pseudocultura e se tornou um instrumento de desinforma- O mundo-da-vida contemporâneo está em crise, e ela é a evidência
ção ou informação excessiva de costumes e estilos de serem eleitos na imediata e o reflexo de um conjunto de escolhas humanas por soluções
sociedade de consumo. Enquanto promotora da emancipação humana, “práticas”, “democráticas”, “racionais”, viáveis e socialmente aceitas. Estas
via exercício do pensar, da autonomia e da liberdade, a leitura deveria escolhas conduziram a um modelo onde a tecnologia tornou-se o ele-
ser maior, de maior relevância na sociedade contemporânea, mas infe- mento-chave para controle do tempo, do espaço, dos modos de ser e
lizmente perdeu lugar para a pseudoleitura, para os jogos eletrônicos e estar no mundo e preferencialmente de controlar a subjetividade.
para a música eletrônica. O exército de jovens de hoje passa mais horas Bauman (2001, p. 87) comenta sobre a questão das escolhas e sua
escutando músicas do que lendo livros, salvo aqueles que leem livros relação com a construção de comportamentos sociais e a formação de
de caráter místico ou fantasioso que retratam estilos de vida de cená- políticas de vida, vejamos:
rio de filmes ou seriados de TV, como por exemplo, Crepúsculo – cole-
O arquétipo dessa corrida particular que cada membro de uma sociedade
ção composta por volumes intitulados: Eclipse, Amanhecer, Lua Nova, de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma
que mostram a vida de adolescentes numa cidade estrangeira e que tem questão de escolha, exceto a compulsão da escolha – a compulsão que evo-
como protagonista um vampiro. lui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão)
Os livros, como os anteriormente citados, têm em média 400 pági- é a atividade de comprar.
nas e um enredo sedutor, sendo que os mais lidos pelos jovens foram A compra se tornou um vício, assim como outras atividades ofere-
Harry Potter e as relíquias da morte; Crepúsculo; Lua Nova; Amanhecer; cidas na sociedade de consumo, os cidadãos são incentivados a consu-
Gossip Girl; Coração de tinta; Querido diário otário; O diário da princesa; mir sem culpa, e a comprar, muitas vezes com o argumento de poupar
Eragon; O ladrão de raios; O pequeno príncipe; Contos de Beedle o bardo.13 tempo e economizar espaço, de aproveitar as oportunidades que lhes são
Veja que não faz parte nenhuma obra de literatura brasileira, nem tam- oferecidas. Os produtos semiculturais são apresentados aos consumido-
pouco poesia. A busca do jovem14 é por leituras fantasiosas e que acabam res como elementos que acrescentarão sentido às suas vidas. Compro,
por afastá-lo de uma reflexão crítica sobre a realidade e de um exercício logo existo (CAMPBELL, 2006).
de ver o mundo em crise no qual ele vive. Há mais distração e desloca- A proposta dos agentes da indústria cultural é oferecer facilidades
em forma de bens de consumo, incentivá-los a fazerem escolhas, man-
mas há modos de ver que se complementam, respeitando-se as apropriações que os
tendo-os numa busca incansável pelo produto “perfeito” que atenda às
pensadores fizeram com quem estiveram dispostos a dialogar. A falácia propagada bem suas necessidades e deste modo colocando o cidadão-consumidor diante
como a pseudoinformação e pseudocultura passaram a ser temas avidamente discutidos do esquema do perde-ganha. Num jogo da satisfação efêmera e continua,
pelos pensadores contemporâneos.
13 Informação disponível no endereço: <http://www.alienado.net/livros-mais-lidos-pelos-
estímulos que devem ter respostas cada vez mais imediatas. Temporaria-
jovens/>. Acesso em: 3 maio 2011. mente garante-se que o consumo de produtos e de coisas banais tornará a
14 O relatório de produção e vendas do setor editorial brasileiro do ano de 2008 publicado maioria deles consumidores de potência, por acabarem adquirindo pro-
pela Câmara Brasileira do Livro/Sindicato Nacional de Editores de Livros e o Diagnóstico
do Setor Livreiro de 2009 da Associação Nacional de Livrarias apresenta um conjunto de
dutos que garantem a eles ter mais espaço e poder sobre outros homens,
dados quantitativos e análise das vendas, bem como mostra a migração das livrarias para garantindo-lhes uma pseudossegurança de armazenagem.
o meio virtual e apresenta outros dados. Percebi no relatório que não há um explicação de Essa pseudossegurança e flexibilidade são ditadas pelo uso de tec-
que tipos de livros são mais lidos por jovens, crianças e adolescentes, o que há apenas são
números que apontam o crescimento do setor e das categorias de referência, sem contudo nologias, que, a qualquer tempo, indicam necessidades de consumo de
esclarecer o que as compõe.

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novos produtos e serviços, como por exemplo: os celulares com múlti- dependência de toda ordem e fuga da realidade, já que há pessoas que
plas funções e com cartões de memória de grande espaço, assim como os não conseguem ficar muito tempo sem o seu uso. A linguagem da admi-
pen drives e os HD externos com grande capacidade de armazenamento. nistração total é tratada por Marcuse (1967, p. 94) e contribui decisiva-
Essa possibilidade de permanecer com o pseudocontrole do tempo e do mente para corroborar com o exemplo acima:
espaço coloca os consumidores numa cilada ilusória e acelera o fetiche
É a palavra que ordena e organiza, que induz as pessoas a fazerem coi-
tecnológico. Sempre estarão insatisfeitos com aquilo que adquirem e sas, comprar e aceitar. É transmitida num estilo que é criação linguística
inseridos na lógica do mercado como consumidores em potencial. autêntica; uma sintaxe na qual a estrutura da sentença é abreviada e con-
A pseudoinformação e a pseudocultura promovem o aumento do densada de tal modo que não é deixada tensão alguma, “espaço” algum
uso de instrumentos eletrônicos e de seus acessórios como, por exem- entre as partes da sentença
plo, o crescente uso de fones de ouvidos. Os aparelhos e respectivos Esse exemplo e a afirmação anteriores concorrem favoravelmente
acessórios foram criados não apenas para divertir, mas principalmente no sentido de confirmar que a adoção excessiva da técnica e da ciência na
para manter o seu usuário distraído de si mesmo e da sua relação com vida cotidiana promove o adormecimento das consciências como diria
o mundo, mas voltando-o para as ofertas de produtos de consumo. É Adorno. O modelo técnico-científico propagou o advento da moderni-
como se pudéssemos dizer que ele recebe um choque direto nos tím- dade sobre o título de “ordem e progresso”, focando-se no progresso e
panos. Em tempos hipermodernos,15 um recurso como esse age de implementando modos de enclausuramento da verdade e explicitação
modo “suave” e aos olhos do cidadão comum, não parece fazer nenhum daquilo que é banal, supérfluo como condições necessárias e suficientes
mal. Falo, por exemplo, do “choque”16 dado diretamente nos ouvidos, para um estilo de vida ou para se ter uma “performance” ativa.
no canal do labirinto e que promove de modo natural o acatamento Um dos fenômenos observados diretamente e que tenta promover
“consciente” daquilo que é ouvido e promove a regressão tanto auditiva a compressão do tempo e do espaço18 é a proliferação de livros e men-
quanto intelectual do ouvinte. Esse fenômeno ocorre com o uso do fone sagens de autoajuda no meio virtual sob a forma de audiolivros, livros
de ouvido usado para ouvir música em celulares, mp3, iPod e outros ele- virtuais (e-books) e mensagem de autoajuda enviada por sms 19 para os
troeletrônicos, e dentre estes, é possível se escutar, em pouco tempo, o celulares. Ambos fenômenos são divulgados pela mídia e pelo mercado
livro falado – o audiolivro.17 editorial como indicador de crescimento da sociedade, como resultado
A linguagem utilizada neste tipo de mídia é de imediata “absorção” do progresso. Mesmo que este progresso seja a exata declaração de que
pelo sujeito ouvinte, causando inclusive e principalmente, na massa, o homem perde-se de si.
15 De acordo com Charles (2009, p. 29) “implicam no fato de que cada indivíduo, entregue
Entendo que o audiolivro comprime, a seu modo, o tempo de lei-
à sua própria liberdade, é submetido a influências paradoxais que opõem, ao mesmo tura, sintetizando-o e simplificando ideias, e o e-book (livro virtual)
tempo, as exigências do hedonismo e as da responsabilidade, gerando, como consequên- reduz o espaço de armazenamento, o volume de papel e indicando a
cia, um tipo de sociedade esquizofrênica dividida entre uma cultura do excesso e o elogio
da moderação.” necessidade do seu leitor de possuir maior capacidade de armazena-
16 Uso este termo aqui apenas como uma metáfora, para exemplificar o que é feito hoje em mento. Ou seja, aí está uma das armadilhas do capitalismo. Esse jogo de
dia pela indústria cultural, efeito anestésico nas consciências, promovendo a manutenção
da atitude ingênua ou, como diria Husserl, natural. 18 Em Harvey (1996) encontra-se uma discussão bastante interessante acerca dessa relação,
17 De acordo com Menezes e Franklin (2008, p. 61): Audiolivro é um livro em áudio, no qual onde o autor põe em destaque como o tempo e o espaço tornaram-se reféns das práticas
“os ledores”, voluntários ou profissionais contratados para essa finalidade, interpretam capitalistas e construíram modos de ser.
textos literários, científicos, ou didáticos, que, utilizando sonorizações em suas narrati- 19 Como exemplo apresento a mensagem recebida em meu celular às 19:25 em 5/out/2010:
vas, transmitem sentimentalismo em suas apresentações. Pode ser utilizado em suportes “Quer dicas GRÁTIS p/ desenvolver sua carreira? Envie V p/ 20100 e receba SMS da revista
analógicos ou digitais, capturados na Internet através de downloads em sites específicos, VOCÊ S/A, aceitando Tb receber msgs publicitárias da TIM, Abril e parceiros. Remetente:
com acesso pago ou gratuito. Pode ser também denominado audiobook. (sem nome) 20100.”

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perde-ganha, que dá a sensação de ganho e de ter mais, mesmo que seja o tempo de cada sujeito? O que um audiolivro, na verdade, comunica?
pela possibilidade de armazenar conteúdos que só será possível aces- Estas questões foram provocadoras de nossa discussão e auxiliares no
sá-los caso ocorra a aquisição de novas tecnologias. O homem hipermo- processo de redação deste texto, a fim de encaminhar minhas inquieta-
derno torna-se cúmplice do sistema no qual está inserido, endivida-se e ções e reflexões.
acorda com o mercado, o parcelamento de suas compras, confirmando o A apropriação dos meios e recursos já existentes para promover
que Bauman (2010) chamou de vida a crédito. Atualmente esse modo de a alienação e o consumo é, no atual estágio da globalização, marcado
ser, ser-endividado, tornou-se uma opção de ser aceito socialmente. Por pelo avanço desenfreado da tecnologia22 inserindo uma lógica de cul-
isso, endividar-se torna-se um ato natural, mecânico, comum em seu tura-mundo que impõe o reino do virtual e propaga a desorientação do
cotidiano. Desembolsar dinheiro, endividar-se e fazer o capital girar20 homem hipermoderno no tempo e no espaço.
no menor tempo possível passam a ser preocupações do homem hiper- Os descaminhos da razão, a ingenuidade da ciência e o afastamento
moderno que são alimentadas pelo meios de comunicação de massa a da relação subjetividade-objetividade foram preocupações centrais de
todo minuto. Edmund Husserl, em seus escritos, bem como das análises dos frank-
É na aceitação do fenômeno pela sociedade que se ratifica o estado furtianos, que ao colocarem em cena a tensão criada pelo progresso e
de atitude natural21 e ingênua na qual o homem hipermoderno está inse- pela reificação, foram contribuições fundamentais para que fosse possí-
rido. E por permanecer neste estado, e comodamente querer permane- vel pensar nas consequências claras e notórias do avanço do capitalismo
cer, o homem que aceita todas as necessidades criadas pelo capitalismo e da racionalidade técnico-científica. Um caminho sem volta, já que a
torna-se um cúmplice, entrega seu projeto de vida, sua existência apenas ciência apaixonou-se pelo método científico e perdeu sua preocupação
ao sentido do consumo e da aquisição de mercadorias justificando mui- com o humano (MATOS, 1993).
tas vezes que está aproveitando seu tempo, no aqui e agora, é o reino Vale lembrar aqui Guimarães (2003, p. 44), quando aponta a crise
do hedonismo individualista e da proliferação de estilos de consumo de valores da humanidade: “Os valores só se realizam no homem e na
(SEVERIANO, 2001). sociedade, ou seja, os valores são instituídos pela consciência humana e
Diante do que se expôs inicialmente é possível problematizar: O realizados no processo da cultura. Ou seja, se um dos modos de ser do
que então pode se pensar a respeito da proliferação da autoajuda quando homem é ser racional, também um dos modos de ser é ser irracional.” E
associada à racionalidade técnica e à compressão do tempo na contem- no caso específico do mundo da vida contemporânea a irracionalidade
poraneidade? Quais os usos e as possíveis consequências da adoção do naturalizou-se como verdade.
audiolivro em detrimento da leitura silenciosa individual respeitando Edmund Husserl (1965, p. 12) não desprezava ou condenava a ciên-
cia, mas sim alertou para a perda de fundamento e pelo processo de
20 Harvey (1996) alerta para essa estratégia do capitalismo, que só se mantém pelo giro de naturalização da consciência e matematização da vida que em tempos
capital, pois quanto mais rápida for a taxa de recuperação do capital investido e posto em futuros, caso do momento atual, traria consequências graves. A irracio-
circulação, maior será o lucro do capitalista. Esse giro diminui a tomada de decisões e
ratifica o esforço do capitalista para reduzir o tempo do giro do capital, acelerando pro-
nalidade ao invés de promover a vida, racionalmente tirou vidas, como
cessos sociais e colocando o trabalhador e o consumidor dentro de uma lógica reativa, ocorreu no nazismo e no holocausto, e agora na própria tecnificação da
respondem eles ao estímulo oferecido pelo capitalista no menor espaço de tempo possí- vida e da morte. Diz ele:
vel. Descapitalizam-se para capitalizarem os agentes do capital, ou seja, antecipam o fluxo
de caixa dos capitalistas e reduzem seu saldo bancário.
21 Atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere
a um mundo que é comum a muitos homens. O conhecimento do senso comum é o 22 Por tecnologia Silva e Montenegro (citados por Borba, 2000, p. 38) entendem que ela:
conhecimento que eu partilho com os outros nas rotinas normais, evidentes da vida coti- “... é qualquer conhecimento que foi sistematizado e transmitido de uma geração para
diana (BERGER & LUCKMANN, 2004, p. 40). outra.”

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Talvez não haja outra ideia, mais poderosa, mas continuamente progres- livro O Caçador de Pipas de Khaled Hosseini, por exemplo, está sendo
siva, em toda a vida moderna, do que a Ciência. À sua marcha triunfal, vendido a R$ 39,90 enquanto que o audiolivro custa R$ 26,90. Já o livro
nada se oporá. De fato ela é universal nos seus fins legítimos. Pensada na Marley e eu custa R$ 34,90 e o audiolivro está sendo vendido por R$ 29,90.
perfeição ideal ou superior. Portanto, todos os ideais teóricos, axiológicos, “Acreditamos que a venda dos audiolivros vai crescer bastante, pois os
práticos, que o Naturalismo adultera, impondo-lhes a interpretação empí- clientes que estão comprando gostaram muito e estão voltando” (grifo
rica, entram certamente no domínio da ciência de rigor. nosso).

Uma das evidências do avanço desenfreado da racionalidade capi- As afirmações acima justificam a estratégia da empresa que, ao
talista foi tanto a institucionalização do uso tempo quanto a sua trans- oferecer audiolivros, induz pessoas “sem tempo” a se aproximarem da
formação em mercadoria, associado-o diretamente ao ganho imediato, audioleitura. Não há, em tese, uma leitura, mas sim a escuta de um livro
ao dinheiro, enfim, na lógica moderna a máxima “Time is money” con- falado no qual um ledor direciona os conteúdos do livro. Ao aderir a
tinua em evidência e define relações e escolhas, mas em tempos hiper- esse modelo os consumidores autorizam a continuidade da produção, já
modernos essa frase está sublinhada com mais veemência, pois que a que aderem à proposta apresentada. Os grifos que fizemos confirmam
lógica hipermoderna professa o excesso em tudo e a escassez do tempo a concordância dos leitores que acatam e confirmam seu interesse em
é também uma estratégia para oferecer mercadorias que promovam o “ouvir” livros ao invés de ler, seguindo-se disso o argumento do tempo
uso racional do tempo. e do custo menor, corroboram com o aumento das vendas e sua institu-
É proibido perder tempo e dinheiro, então comprimisse o tempo, cionalização na sociedade.
e logo em seguida criam-se ferramentas para gerenciá-lo. Ele passa a É necessário fazer um rápido panorama de como chegamos à pro-
ser oferecido em forma de mercadoria com inúmeras ferramentas e uti- liferação da autoajuda, primeiro mostrando as armadilhas do sistema
litários alternativos de gestão do tempo, como por exemplo, livros de com a noção de progresso da técnica, depois mostrando como a autoa-
autoajuda no formato de audiolivros, no meio virtual ou diretamente juda se associou à tecnologia e, por fim, estabelecendo uma reflexão crí-
em aparelhos eletrônicos. tica sobre essa relação na contemporaneidade, no que tange ao hiper-
Este é o argumento apresentado por livrarias virtuais como é o caso consumo das promessas de felicidade e modos de gestão da vida.
de Fátima Bookstore, a primeira livraria de Criciúma a vender audioli- A aceleração e a compressão do tempo são características da hiper-
vros. A decisão de colocar à venda, segundo a gerente, partiu da procura modernidade, onde o excesso e a urgência pelo consumo do imediato,
de alguns clientes, comenta Pelegrinni numa entrevista.23 pela valorização do prazer individual e do aqui-agora se concretiza cada
Pessoas sem tempo para ler ou que não se identificam com a leitura
vez mais (LIPOVETSKY, 2004). Essa lógica de aproveitar o tempo, recu-
têm a oportunidade de conhecer algumas obras através de audiolivros. perar o tempo perdido, comprimir ou prolongar o tempo, são bases da
Parece estranho, mas ouvir a história de um livro é uma forma diferente de relação produção-consumo presentes na sociedade contemporânea,
conhecer aquela narrativa que provoca tanta curiosidade e, assim, entrar vista neste trabalho como sociedade hipermoderna ou de excessos.
no mundo dos livros. (grifo nosso) No mundo hipermoderno as necessidades são criadas para que
Pessoas com pouco tempo para ler e que viajam muito são as mais inte-
ressadas nessa novidade, “pois em alguns casos você pode ouvir um livro
se aproveite ao máximo as “oportunidades” de compilação de tempo
em até duas horas e meia”, destaca Tabita. O preço também é convidativo, e espaço. Ambos, tempo e espaço, passaram a ser alvo do capitalismo,
já que um audiolivro, se comparado com o livro, é mais barato. O famoso onde as estratégias utilizadas retiram do homem hipermoderno o con-
trole pessoal e direto do tempo e do espaço, ou mesmo lhe dão a falsa
23 PELEGRINNI, Fabrícia. Audiolivro socorre pessoas sem tempo para ler. Letras & Cia. In.: ideia de que o controla, para logo em seguida lhe oferecer o tempo e
Engeplus. 8 jun. 2009. Disponível em:http://www.engeplus.com.br/. Acesso em: 25 maio
2011.
o espaço como mercadorias, a “preços acessíveis”. Exemplo claro está

352 353
no acesso pago a Internet que reúne velocidade, tempo de espera e de 1º Infantojuvenil
conexão e nos livros que facilitam a vida diária dos homens sem tempo.
2º Autoajuda/ Esotéricos
O verbo esperar tornou-se quase esquecido ou desconhecido para
um número considerável de homens contemporâneos. Um exemplo 3º Acadêmicos
disso é a urgência de aproveitar tudo de imediato, transferiu-se o ato de 4º Lit. geral – Ficção
ler para o ato de ouvir livros, e por isso talvez, os livros de autoajuda se 5º Lit. geral – Não Ficção
proliferaram mais rapidamente, e com eles os audiolivros de literatura
em geral e os de autoajuda. Já das cinco áreas que mais cresceram em vendas em 2010 a autoa-
Os livros de autoajuda, preferencialmente aqueles no formato de juda desce para quinta posição, mesmo não havendo comparação tam-
audiolivro ou livro virtual, aceleram e simplificam o tempo de resposta bém com o ano de 2009.
aos problemas e inquietações do homem hipermoderno, pois eles se
apresentam como alternativas que auxiliam na gestão das finanças, das 1º Infantojuvenil

relações, da autoestima, da vida amorosa e da espiritualidade. Em geral, 2º Lit. geral – Ficção


as promessas oferecidas nos livros têm em linhas gerais a intenção de 3º Lit. geral – Não Ficção
tornar o acesso rápido e talvez instantâneo a Deus, à Paz, à Felicidade e
4º Acad. – Ciênc. Humanas
ao Dinheiro.
Assim, facilitar o acesso a soluções imediatas, inseridas na lógica 5º Autoajuda/ Esotéricos

do self-service, ou melhor, self made man, do faça-você-mesmo, os


Na lógica capitalista, prega-se que é possível ouvir um ou mais
livros de autoajuda foram transcritos para o formato áudio e para as
livros com maior velocidade, intenção esta contrária a um dos funda-
mensagens sms.
mentos da leitura: o tempo de leitura e a maturação desta dependem
Um dos exemplos é o livro A ciência de ficar rico, de autoria de
de indivíduo para indivíduo, pois para que a compreensão da leitura
Wallace Watlles, que foi colocado no mercado primeiramente na versão
ocorra, é preciso ler esperando que a maturação, a reflexão e o esclare-
impressa e depois no formato audiolivro. Neste livro o autor assegura
cimento aconteçam. Isso se tornou quase que desnecessário e supérfluo.
que a única maneira de ser feliz é tendo dinheiro, pois só ele possibi-
Assim, ao “simplificar o processo de leitura”, tornando-o mais veloz, a
lita que o homem alcance tudo o que precisa. Audiolivros e livros como
indústria cultural do audiolivro de autoajuda assegurou a proliferação,
estes estão entre os mais vendidos.
tanto da audição regressiva quanto do intelecto regressivo. Matos (2006,
O crescimento desde livros é também medido pelo tempo dado
p. 10) ratifica que: “a leitura concentrada, cedeu lugar à demagogia da
ao número de aquisições por ano. De acordo com a Assessoria de
facilidade (...)”. Facilidade esta perfeitamente visível na autoajuda em
Imprensa24 da Associação Nacional do Livro – ANL das cinco áreas de
forma de audiolivro e mensagem virtual.
maior representatividade25 em vendas em 2010 a autoajuda e os esotéri-
Atualmente, não se produz mais para atender às necessidades,
cos ocupam a segunda posição.
criam-se necessidades para atender à produção. A indústria e o comér-
cio produzem e vendem num ritmo alucinante, aumentando a produção
na certeza de que tudo o que for produzido será vendido, ambas apoia-
24 Mensagem recebida pelo e-mail imprensa@anl.br. das numa racionalidade técnica dominante que propõe o consumismo
25 Este levantamento não apresenta porcentagens deste aumento comparativamente a 2009. como um entretenimento e insinua ao homem contemporâneo modos
A questão apenas solicita as áreas de maior crescimento.

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de evitar pensar sobre suas reais necessidades ou sobre a angústia que é Considerando a atual lógica da sociedade de consumo: “Não são
assumir seu projeto de vida. os homens ativos e conscientes que comandam o mundo das mercado-
É concreta e perceptível a tentativa de afastar o vazio da existência, rias, mas, ao contrário, são as mercadorias que determinam as relações
enchendo-o de barulho, um barulho que trabalha a favor do capitalismo. entre os homens” (MATOS, 1993, p. 30). O discurso evoca geralmente
A tecnologia nesse sentido é o aliado perfeito que o capitalismo adotou, a situação de estar “consciente”, entretanto os mecanismos de sedução
e que é difundida fervorosamente pelos mecanismos publicitários no fazem com que o homem hipermoderno permaneça em atitude natural,
sentido de criar novos modos de consumir, seduzindo e alienando os ingênua e a-crítica diante da falácia do consumismo.
cidadãos-consumidores. O homem contemporâneo se entrega aos prazeres do mundo do
Nesse sentido Borba (2000, p. 50) argumenta que: consumo que lhe é apresentado como porta de acesso para alcançar a
felicidade, deste modo ele se mantém preso à lógica irracional da sedu-
A função básica e a razão de existir do capitalismo é gerar riqueza em cima
de riqueza. O sistema capitalista sempre procura, na equação custo-be- ção da compra. Aceitando assim a racionalidade instrumental que está
nefício, a resposta para as suas necessidades e projetos, enfim, para a sua inclusa em tudo que adquire, ouve, sente, vê e experiencia, que é justifi-
própria existência e manutenção. A geração de riqueza de que se fala dá-se cada em função dos interesses do capital.
pela utilização de recursos e, principalmente, pela exploração da força de Se as relações humanas são comandadas por relações comerciais,
trabalho.
pelo negócio, fica claro que a subjetividade está sendo construída como
As lojas de departamentos, os hipermercados e as livrarias estão um elemento de um grande mercado, ou seja, para que ela seja valori-
abarrotados de produtos e livros que precisam ser avidamente consu- zada é preciso que o homem hipermoderno saiba, aos “olhos do mer-
midos para atender aos interesses do capitalista e eles precisam girar. cado”, estabelecer um preço para si mesmo, e ao fazê-lo demonstra ter
Se não há giro, não haverá capital de giro e o sistema não se desenvolve. perdido a noção do seu real valor e torna-se mercadoria. Isso ratifica o
Por isso, o misto de produção seriada, somado aos interesses dos meios termo indústria da subjetividade ou indústria da alma.26
de comunicação de massa difundiram ainda os livros de pseudoensi- O modo de sedução utilizado pelos agentes do capitalismo para
namentos. Harvey (1996, p. 209) confirma a questão da circulação do atrair os consumidores dá a eles a ideia de serem “cidadãos-livres”, de
capital e o tempo de troca: “Quanto mais rápida a recuperação do capital que podem escolher aquilo que melhor atende aos seus interesses pes-
posto em circulação, tanto maior o lucro obtido.” soais, principalmente quando podem adquirir bens de consumo ou bens
Ao girar, o capital estimula o seu próprio giro, via consumo, e con- culturais, mas na verdade, ao acatar estas ofertas, passam a ser escravos.
sequentemente também pelo consumismo. A compra compulsiva de Assim nos ensina E. Grogran: “Eu sei que é difícil. A liberdade sempre o
produtos e livros, por exemplo, tem se tornado um ciclo vicioso. O con- é. É a escravidão que é fácil.”
sumidor é estimulado a comportar-se constantemente em favor de uma Os agentes do mercado de consumo se utilizam de um discurso
administração do tempo e do modo de vida, eis a razão que faz com que de inclusão, quando na verdade suas práticas são violentas e excluden-
muitas empresas venham buscar no marketing e na psicologia “técnicas tes. Assim Horkheimer e Adorno (1995, p. 119) ratificam: “A violência da
de persuasão”. É preciso manter o cliente “encantado”, é preciso que ele indústria instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da
se veja na mercadoria, se identifique a ela, e não mais com ele mesmo indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos
ou com os outros. É preciso enfeitiçá-lo, deixá-lo não mais identifi- vão consumi-los alertamente.”
cado consigo mesmo, mas transformá-lo, transformá-lo em mercadoria
(BAUMAN, 2008).
26 Termo que é utilizado por Fornari e Souza (2001).

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Enfim, nenhum homem hipermoderno que se presa pode dar-se mesmos, com outros homens e com a natureza. Bruckner (2002) aponta
ao luxo de perder o lançamento de um produto da moda ou aquele que esta tendência que o mundo do capital apresenta ao homem contempo-
foi feito com sua “medida”. O sistema passa a ideia de que um produto é râneo, ou seja, ser este um mundo de fechamento, de autismo e não de
feito sob medida. E, no caso dos audiolivros e e-books, a justificativa de trocas e relações saudáveis, dando ao dinheiro o caráter de uma divin-
aproveitamento e gerenciamento do tempo instala a audição regressiva dade, da qual o culto tem caráter culpabilizador e permanente, como
e o intelecto regressivo. Ler passa a ser atividade menos estimulada, e diria Walter Benjamim: “El culto es celebrado ante una divinidad inma-
adestra-se o homem para ouvir livros falados, onde o narrador com- dura y toda representación, todo pensamiento en esa divinidad daña el
pacta histórias, experiências e conteúdos. secreto de su maduración”.27
Nesse sentido, acredito que os livros de autoajuda, principalmente É o próprio domínio da racionalidade tecnológica discutida por
aqueles ligados às finanças pessoais, sucesso pessoal e profissional, rela- Horkheimer e Adorno (1985, p. 114) que se apresenta na sociedade con-
cionamentos afetivos, educação empresarial, corpo e religião, têm um temporânea, dizem eles: “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade
maior impacto por chamarem a atenção para as questões contemporâ- da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada
neas que mobilizam o homem atual. A categoria autoajuda financeira em si mesma.”
sai na frente, pois ela aponta dicas de modos de conduzir sua vida finan- A tecnologia, a serviço do capitalismo, é uma das inúmeras arma-
ceira e patrimonial que garanta condições de que a vida será possível dilhas sociais que promoveu o aumento da dependência e da distração,
de ser vivida com mais qualidade e sucesso. O crescimento exponencial cristalizando o individualismo e o consumo hedonista como estilos de
destes livros apenas confirma a sua aceitação em vários espaços sociais, vida e instalando na sociedade uma cultura-mundo implantada pelo
pois “falam” daquilo que seus leitores desejam ouvir. Encantam, promo- hipercapitalismo; é cercada de estratégias que visam cada vez mais à
vem a ilusão e propagam promessas de felicidade (CHAGAS, 2001). desestabilização dos mundos privados e à formação de uma cultura
Os livros de autoajuda, quando disseminados pela tecnologia, pas- hipertecnológica e de celebridades. No caso específico do uso de hiper-
sam uma ideia de progresso, progresso tecnológico, mas na verdade são tecnologias é notório observar que elas possibilitam ao seu usuário, cada
a clara e notória manifestação da lógica da racionalidade técnica como vez mais de modo individual, gerir o seu próprio tempo (LIPOVETSKY &
forma única de lidar com as soluções para os problemas contemporâ- SERROY, 2011).
neos (SOARES, 1998). Bruckner (2002, p. 165) nos ensina: “Entupido de objetos inúteis, o
Pensar que a tecnologia é a solução para todos os problemas con- homem moderno teria trocado as graças do espírito pelas quinquilha-
cretos da existência é um equívoco, porque as facilidades que ela ofe- rias da distração.”
rece trazem, na verdade, consequências sérias para a vida do homem Um número considerável de pessoas quer ter o prazer de possuir
contemporâneo, bem como para a sua relação com os outros, com o e ser visto com a mais nova e poderosa tecnologia da “moda”. Ter ou
mundo, acarretando, por exemplo, a dependência das tecnologias e o poder usar a melhor e/ou mais nova tecnologia projeta o indivíduo
individualismo. Essa crença de que a tecnologia salva o homem do des- hipermoderno no seio social, passando aos demais a ideia de que ele é
perdício de tempo e de espaço é falaciosa, pois na verdade, com o acesso um homem do progresso, “antenado”.28 Na verdade, esse tipo de atitude
às diferentes tecnologias, tem, a cada dia, menos tempo, pois ele passa a
27 O texto de BENJAMIN, Walter. El capitalismo como religion está disponível em: <http://
ser controlado pelas tecnologias que lhe são apresentadas. catigaras.blogspot.com/2008/05/el-capitalismo-como-religin-walter.html> e é possível
Os homens contemporâneos consomem diferentes tecnologias e as também ver em Lowy, Michael uma interpretação da leitura beijaminiana que o mesmo
fez ao proferir uma palestra no Brasil na USP em setembro de 2005.
assumem como elemento essencial e não apenas acessório em suas vidas, 28 Antenas nesse sentido não seriam o sentido de inteligência, mas de teleguias. As antenas,
estando na maioria das vezes mais em contato com elas do que com eles no caso, captam as ordens sociais, engendradas pelo capitalismo. O sujeito acredita que

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o insere no mundo da irracionalidade tecnológica, “conscientemente” continuamente aprimorada. O capitalismo promoveu ao mesmo tempo
ele aceita entrar na sociedade de consumo e cria justificativas que o afas- o desencantamento com o mundo e noutra ponta o encantamento com
tam ilusoriamente da possibilidade de fracasso social. a tecnologia e com a mercadoria, e esse encantamento alimenta e reali-
Esse poder sobre um objeto que um sujeito detém é resultante da menta o sistema.
ação do capitalismo sobre a subjetividade, e que dele se alimenta: Nesse sentido, Matos (1993, p. 31) ratifica que: “Não são os homens
ativos e conscientes que comandam o mundo das mercadorias, mas,
Na sociedade capitalista contemporânea, o reconhecimento e a impor-
tância social da autoridade (mediante as relações entre superioridade e ao contrário, são as mercadorias que determinam as relações entre os
inferioridade) estão voltados sobretudo ao poder do capital, à posse de homens. O mercado mundial é a forma moderna do destino.”
dinheiro e de bens materiais, ao que se “pode gastar, comprar, consumir”. Assim, o capitalista investe na mágica do encantamento, para agora,
(CHAGAS, 2001, p. 45) adestrar o olho do comprador, e mais agora no caso do audiolivro,29 trei-
Essa noção de “progresso”, na verdade, contribui para o despedaça- nar os seus ouvidos, domesticando a escuta não mais pela música, mas
mento da subjetividade, nesse sentido Soares (1998, p. 157) afirma: pela propagação de conhecimento no formato self-service, inserindo-o
na lógica do consumo.
(...) o progresso impôs a estes sistemas sua condition sine qua non: a Tudo perfeitamente ratificado pela urgência do aproveitamento do
implantação de um poder disciplinar onipresente, disciplina do corpo e
da alma, numa sociedade totalmente administrada.
tempo dentro da “dinâmica social”, ou seja, não é interessante dar tempo
para o homem sentir, viver, experienciar e refletir sobre sua existência,
(...) Presos à lógica de uma racionalidade técnica, capaz de produzir o ao contrário disso, ele é cada dia mais influenciado a participar da vida
melhor e o pior dos mundos, acreditando ser a razão prática a única forma
como consumidor. Ao fazer isso acreditando estar consciente do pro-
de lidar com a realidade e consigo mesmo, o sujeito, construtor deslum-
brado da técnica, se expõe aceleradamente como objeto de desconstrução cesso, o consumidor concorda com o lugar que ocupa na sociedade,
de si mesmo. pensa estar agindo racionalmente, mas pelo contrário ele está imerso na
atitude ingênua.
A tentativa de encantamento utilizada pela tecnologia que aqui Em oposição à reflexão, ele é direta e rapidamente convidado a dis-
aponto usa um modo mágico para criar uma situação ilusória à cons- trair-se, a não pensar em si e na sua relação com os outros e o mundo,
ciência. E que mágica é essa? Para explicá-la, retomo o conceito de feti- ficando apenas aberto e disponível para aquilo que os meios de comuni-
che da mercadoria inicialmente utilizado por Marx e posteriormente cação de massa apresentam como modelo de acesso à felicidade. Com-
utilizado por vários autores, dentre eles Severiano, para esclarecer a rela- prar bens de uso passou a ser o modo de promessa para o alcance da
ção entre consumo e publicidade, ou seja, a mercadoria torna-se mágica, felicidade que foi instalada pelo capitalismo de consumo, numa relação
enfeitiçada, já que o consumidor desconhece as reais motivações do que promove o hedonismo individual, que individualiza ainda mais o
capitalista, e ainda pelo fato de que é retirado do alcance da visão do homem. Que o faz concordar que os sentidos e os prazeres estão apenas
consumidor suas condições de produção.
No caso da tecnologia, criou-se um fetiche tecnológico. Fetiche
29 Menezes e Franklin (2008, p. 59) argumentam ser o audiolivro: “Um recurso informacio-
esse eleito na sociedade como um modo de ser. A tecnologia ratifica nal gerado pelas novas tecnologias, que pode ser utilizado não apenas pelos deficientes
a noção de progresso vendida desde o advento da modernidade que é visuais, como também por pessoas sem deficiência, cooperando com formação e o res-
gate de leitores.” O uso do audiolivro foi ampliado para atender aos interesses da indústria
do livro e não apenas aos interesses dos portadores de deficiências visuais. Existem atual-
está usando sua razão, de modo consciente, em benefício próprio, mas na verdade está mente instituições que possibilitam o acesso a este recurso de modo gratuito, entretanto
sendo ou já foi domesticado, ou permitiu-se ser domesticado pelo capitalismo, tornando- a maior parte das pessoas portadoras de deficiência não tem condições financeiras para
se inclusive defensor e aliado na criação de uma cultura de inclusão. adquiri-lo ou sequer sabem da existência deste instrumento e que podem fazer uso dele.

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ligados àquilo que o sistema oferece e que sua inserção no social só se e até grupos de discussão, dos quais o leitor pode participar gratuita-
realiza pela via da aquisição de mercadorias e modos de vida artificia- mente, aceitando apenas ao convite de participação: “– Conheça e par-
lizados. ticipe gratuitamente dos nossos grupos de discussão, como exemplo o
Hoje, justifica-se que tudo que é comprado pode atender à céle- Grupo Comportamentos Positivos”.
bre frase “eu mereço” ou à outra “era necessário, estava barato, por isso Entre os livros mais vendidos, geralmente encontro os de autoria
comprei” e assim o hiperconsumo instala-se como vício, como um de Gustavo Cerbasi, que defende não serem os seus, livros de autoajuda,
estilo de vida. mas manuais de orientação e educação financeira, como por exemplo:
Comprar ou ser visto carregando um livro ou até mesmo um audio- Cartas a um jovem investidor ocupa a quarta posição entre os livros
livro é, para alguns, mais importante do que ler, ou até mesmo ter vul- mais vendidos. Mas é na própria sinopse do livro que novamente iden-
toso patrimônio ou roupas e acessórios da moda, é mais importante do tifico a real intenção e caracterização de seus livros como autoajuda
que ser. O homem hipermoderno encontrou no capitalismo o reino de veja: – “Neste audiolivro da Editora: Nossa Cultura que tem a duração:
como satisfazer sonhos de consumo, apropriou-se da técnica e da ciên- 3h42min, no formato mp3, Gustavo Cerbasi, ao nos contar sua história
cia e acabou por se tornar refém dela, tanto quem a produz como quem de vida, incluindo seus erros e acertos para alcançar o sucesso na área de
a consome. Há para os “cidadãos”, governo e segmento privado um con- Finanças, oferece dicas às pessoas que desejam trilhar caminhos menos
sentimento mútuo, ingênuo, de que o dinheiro resolve tudo e a técnica sinuosos para obter um futuro financeiramente mais saudável. Invista
o auxilia nessa resolução. A técnica passou a ter importância categórica seu precioso tempo nesta leitura e consiga grandes resultados em muito
na sociedade contemporânea. pouco tempo!”(grifo nosso)30
“A onipotência e a onipresença do dinheiro transformam os agentes Esse é um objetivo da indústria cultural e do capitalismo: manter o
sociais em seres passivos, determinados pelo poder e pela lógica da cir- sujeito sem pensar, sem refletir: “A produção capitalista os mantém tão
culação das mercadorias e do acúmulo de capital” (MATOS, 1993, p. 18). bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que
É preciso então repensar como o avanço desenfreado de um sistema lhes é oferecido” (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 125).
metabólico, como é o capitalismo, não consegue mais soluções para seus Fato também encontrado na lógica da autoajuda que via apresen-
problemas, apenas cada vez mais cria outros. tação de dicas em seus manuais propagam a dependência e a valori-
A “autoajuda” se utiliza de vários formatos tecnológicos para con- zação do individualismo, da manipulação subjetiva e do consumismo:
cretizar sua participação no mercado, principalmente no mercado edi- “O homem comum da sociedade contemporânea tende a especializar-
torial, pela mídia impressa e eletrônica. O seu uso se iniciou com as fitas se cada vez mais na manipulação do outro para seu próprio benefício”
cassete e discos de vinil, depois com os cd-roms e os dvd-roms, agora (CHAGAS, 2001, p. 51).
ocupam a web e assumem uma forma nova: o audiolivro, no formato de Vale lembrar também como os conteúdos auxiliam a intenção de
dvd ou mp3. Examinando alguns sites na Internet encontramos diver- manipular a si próprio e aos outros de modo que tentam dar a “certeza”
sas editoras que comercializam este tipo de livro, elas inclusive utilizam de que as dicas ali elencadas são frutos da experiência do autor e que
malas diretas onde anexam sumário e capítulos dos livros como forma podem ser seguidas pelo leitor.
de demonstrar o conteúdo. É possível inclusive “degustar” o livro que se Nesse sentido Barcelos (2002, p. 155) discute a questão da idealiza-
pretende adquirir, ouvindo-se parte do trecho do livro que é facilmente ção de um eu prometido pela literatura:
acessado no site da livraria.
Como exemplo, cito os sites Universidade Falada, Audiolivro.net e 30 Disponível em: <http://nossacultura.com.br/index.php?pag=detalhes&p_cod=143&p_
livrosautoajuda.com.br/ que oferecem uma grande quantidade de livros nome=Cartas a um jovem investidor>. Acesso em: 20 jul. 2009.

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As propostas de autoajuda reforçam ainda mais a ideia de uma subjetivi- ção não apenas tecnológica, mas também política e como destacaram os
dade forte, estável e inabalável; reforçam os modelos de figuras idealizadas autores acima como controle da consciência individual.
da modernidade e com isso correm o risco de fazer as pessoas se sentirem
No site da livraria Nossa Cultura é possível encontrar outros títulos
mais impotentes, pois, não há esforço humano capaz de encarar figuras
idealizadas como prometem, sobretudo a de um sujeito que imaginava ter relacionados às finanças pessoais, como por exemplo: Educação Finan-
o controle de si e saber conduzir a vida de forma que planeja e decide. ceira na aposentadoria, Psicologia e Psicanálise, Educação Financeira:
Filhos, Dinheiro e Valores, Inteligência Financeira – Finanças “Absolu-
Ler ou não ler autoajuda é uma escolha pessoal de cada um, assim tamente” Pessoais.
como o destino e o espaço que o leitor dá na sua vida aos pseudoen- Na web, a Editora Thomas Nelson. Esta (especializada em livros de
sinamentos. Os livros de autoajuda, inseridos numa cultura de massa, autoajuda) declara seu objetivo de se tornar destaque no mercado edi-
comunicam inúmeras possibilidades de sair da “crise” que o homem torial da autoajuda. Ela pertence ao grupo editorial Thomas Nelson, que
hipermoderno se encontra, quer seja ela crise pessoal, financeira ou surgiu no final do século XVII no Reino Unido. Ela nasceu em 1798 como
social. Os audiolivros têm efeito similar ao de uma medicação placebo um sebo na cidade escocesa de Edimburgo. No Brasil, os representantes
ou, como diriam alguns críticos, uma literatura de maisena.31 da empresa pretendem que ela também se torne líder no mercado de
Penso que as reflexões até aqui pontuadas apresentam e podem até livros de autoajuda e de literatura inspiracional e motivacional.
confirmar esse momento atual em que a autoajuda se prolifera e utiliza Samuel Smiles (1946, p. 278), em seu livro O caráter, ao tratar
a técnica, mais especificamente a tecnologia, os recursos midiáticos e da Sociedade dos Livros, destaca o papel exercido pelo livro na vida
as estratégias de divulgação em rede, uso de repositórios de conteúdo humana e sua influência na construção da subjetividade como elemento
e mídias massivas, tais como a televisão e a Internet, para disseminar que integra ou permite a compreensão das intenções e características
estilos de vida. Nesse caso, os audiolivros tomam cada dia mais espaço humanas. Ele diz:
no mercado, quer seja pela possibilidade de acesso direto ao conteúdo
via computador, celular, cd-rom e também pelo modo fácil, rápido e Pode-se, geralmente, julgar um homem pelos livros que lê, como pela
sociedade que frequenta; porque há a sociedade dos livros, como há a
cômodo de comprar (“sem sair de casa”), ou seja, uma série de facili-
sociedade dos homens, e numa ou noutra, sempre devemos procurar a
dades que possibilitam a aquisição, distribuição e uso destes produtos. melhor. (...)
Hoje quem quiser ouvir um livro, pode fazê-lo no próprio compu- Os homens descobrem, muitas vezes, as afinidades que existem entre si,
tador, no aparelho de celular ou no carro. Esse viés da acessibilidade, da pela mútua preferência que mostram por um livro, do mesmo modo que
rapidez, da mobilidade e da facilidade, faz a roda do capitalismo girar duas pessoas ligam amizade pela descoberta e admiração que ambas sen-
tem por uma terceira.”
e alimenta ingenuidade do homem contemporâneo que acreditar ser
impossível de conseguir felicidade, segurança, paz e sucesso sem a aqui- Essa reflexão de Smiles remete às possíveis generalizações que os
sição de produtos semiculturais. agentes da indústria cultural se apropriam para alavancar a autoajuda e
Na verdade um momento inaugurado pelo capitalismo em período concretizarem a sua inserção no cotidiano. “Pois, a cultura contempo-
anterior e que busca mecanismos para reproduzir e criar necessidades, rânea confere a tudo um ar de semelhança” (HORKHEIMER & ADORNO,
disseminando bens padronizados e propagando a dominação. Domina- 1085, p. 133). No caso do livro virtual ou do audiolivro eles são coloca-
dos à disposição dos consumidores como sendo igual ao livro impresso,
31 O médico Moacir Scliar apresenta que a literatura de autoajuda tem efeito parecido a
uma medicação placebo, porque ela teoricamente é uma substância que não produz dando ao leitor-comprador a ideia de que ler um livro em apenas três
efeito algum, mas que acaba fazendo efeito terapêutico e temporário àquele que acredita. horas é semelhante a ler um livro a qualquer tempo e momento. Essa
SCLIAR, Moacyr. O texto como placebo. Viver mente e cérebro. Disponível em: <http://
www2.uol.com.br/vivermente/artigos/o_texto_como_placebo.html>. nova ideia de tempo está sendo construída de modo que ele é colocado

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a favor do capital, trabalhar, educar-se, ouvir, “ler” e voltar à condição de cidade pessoal e profissional, bem como de paz interior e uso “pensa-
trabalhador e consumidor-feliz. mento positivo”, assim ganha espaço na família e na sociedade em geral,
Essa ideia de semelhança e também de reprodutibilidade da indús- inclusive quando usa a estratégia de esclarecer como os pais devem
tria cultural tem também nas entrelinhas um modo de preencher todas educar financeiramente as crianças. É importante observar que isso só
as lacunas do pensamento e da vida do homem que o faz inclusive per- é possível de acontecer porque os pais permitem a inserção de terceiros
der a sua própria capacidade de crítica em relação ao que lhe é imposto, em suas decisões familiares, pela via da adesão às dicas dos manuais,
fato este que a teoria crítica preocupou-se com bastante propriedade e jogos, revistas em quadrinhos e outros instrumentos que começam a ser
que está claramente marcada na passagem abaixo: utilizados para promover a educação financeira dos filhos.
O audiolivro, produto da indústria cultural contemporânea, reflete
O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio,
o produto prescreve toda reação: não por uma estrutura temática – que o momento em que o tempo, o espaço, a tecnologia e os modos de cons-
desmorona na medida em que exige pensamento – mas através de sinais. trução de subjetividade tomam dimensões cada vez mais pautadas na
Toda ligação lógica que pressuponha esforço intelectual é escrupulosa- volatilidade e na descartabilidade, onde predominam estratégias indi-
mente evitada. (HORKHEIMER & ADORNO, 1985, p. 128) viduais com habilidades e competências sociais cada mais voltadas para
Diante destas evidências é possível pensar nas intencionalidades atender aos interesses do mercado. A construção dessa cultura assegura,
presentes nos textos de autoajuda, onde os autores utilizam uma lingua- para o sistema, o retorno do investimento e mantém a distração e o
gem que induz o leitor a pensar como ele quer que ele pense, tirando divertimento como modos de vida.
dele sua capacidade, mesmo que momentaneamente, de refletir sobre o Em tempos de crise do capitalismo várias são as estratégias utiliza-
que lhe é apresentado. Pensar é evitado nos livros de autoajuda, a não ser das pela indústria do livro para proporcionar acesso facilitado aos livros
que seja pensar positivamente e não reflexiva e criticamente. de autoajuda, diante disso aliar-se a tecnologias de ponta, e a Internet
Um exemplo deste modo de conduzir reflexões é encontrado no possibilita a circulação veloz de produtos, ideias, conteúdos e estilos de
livro Filho Rico, Filho Vencedor. No capítulo “Toda criança nasce rica vida. A indústria da autoajuda mantém-se lucrativa e líquida, tendo ren-
e inteligente” o autor apresenta argumentos para influenciar os pais a tabilidade com os investimentos que faz na “cultura para massa”.
entrar no jogo da educação financeira e propõe a eles educar os filhos O audiolivro foi criado para os deficientes visuais, tornou-se uma
mais espertos, mais ricos e também financeiramente mais inteligentes. tecnologia para atender aos interesses do capitalismo comunicando ao
Veja o que o autor diz: “A palavra educação se origina do latim educare, seu audioleitor as inúmeras possibilidades que ele pode usufruir em seu
que significa ‘extrair’. Infelizmente, para muitos, educação é sinônimo de cotidiano, ao adquirir um exemplar. O uso do pensamento positivo,
longas e penosas sessões durante as quais temos de captar as informa- da fé no poder interior, da crença da força em si mesmo, configuram o
ções, decorá-las para as provas e, logo depois, esquecer tudo.” aumento do individualismo e da responsabilização de si mesmo, estabe-
Esse modo de induzir a educação dos filhos parece inaugurar uma lecendo um corte com o social. O destino passa a ser colocado na mão
era onde os pais perderam ou entregaram a terceiros a sua própria capa- do indivíduo-leitor e não mais nas situações socioeconômicas que estão
cidade de lidar com os seus filhos, pais estes que em vez de, pela via da presentes no mundo-da-vida, no seio da sociedade contemporânea.
reflexão, do diálogo e do contato buscarem soluções em conjunto, esco- O livro de autoajuda, produzido em série, quer seja usando a mídia
lhem o “caminho mais fácil”: receber dicas de terceiros. impressa, quer seja a mídia eletrônica, é um produto da racionalidade
O consumo de audiolivros de autoajuda chega num momento de tecnológica e instrumental que caminha na direção de maximização dos
crise e, utilizando o discurso da educação, da promessa de acesso à feli- ganhos da indústria do livro. Instaura assim um livro mediado pela tec-
nologia um novo tipo de leitor, um audioleitor.

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A leitura agora, alvo da pseudocultura e dos pseudoensinamentos, Carlos Drummond de Andrade, em “Eu, etiqueta”, nos ajuda a
passa ser associada ao uso da tecnologia eletrônica, formando uma raça exemplificar essa reflexão: “Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser
de audioleitores, ou por que não dizer, pseudoleitores. Souza (2010) não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não
argumenta que passamos da indústria têxtil à indústria textual, e, neste me convém o título de homem, meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa,
momento a sociedade de consumo contemporânea tornou-se a leitura coisamente.”
alvo da pseudocultura, já que o livro entrou no mundo da mercadoria e Uma leitura com um olhar fenomenológico e crítico com contri-
tornou-se produto de consumo reproduzido em alta escala e, como diz buições dos pensadores frankfurtianos, bem como de pesquisadores no
o autor, um “sonho de consumo”. campo da autoajuda, permitiu que as reflexões aqui apresentadas cami-
E assim como argumenta Carcanholo (s.d., p. 5): “O futuro do capi- nhassem na direção de ampliar a investigação sobre a proliferação e a
talismo só agravará a tragédia humana que se vive nos dias atuais no comunicação no meio virtual de textos de autoajuda ou mediados por
planeta. Sustentar o contrário é viver no mundo de ilusões.” tecnologias. Entendemos que elas incitam a curiosidade de investigar
ainda mais este fenômeno, que não está, de modo algum, encerrado,
considerações finais mas quer crescer progressivamente, na medida em que a racionalidade
tecnológica avança e altera os padrões socioculturais e os modos de ser.
O sistema capitalista, ao professar a escolha, a “liberdade”, a felicidade, A tecnologia está a serviço do capital e comunica todo um sistema
a mobilidade e o hiperconsumo de coisas banais, indica a ideia de deve- ideológico que, em linhas gerais, contribui para o distanciamento do
mos ser rasos, sem a necessidade de nos aprofundarmos nos eventos que homem da realidade, de suas reflexões e da possibilidade de lidar com
emergem a consciência, sendo permitido fluidez, dentro disso afirma suas angústias, com seu projeto de vida e com suas inquietações, pois,
que evoluímos e que o progresso é o caminho único para a humanidade. ao aderir aos modelos prontos e dicas, aceitam usar placebos para lidar
Evolução essa que foi acatada pela sociedade e por ela associada com as incertezas contemporâneas.
como materialização da democracia e do acesso à sociedade de con- Marcuse (1967, p. 30) já afirmava o viés totalitário da sociedade
sumo. E isso ratifica a reflexão de Soares (2007, p. 12): “Somos todos industrial contemporânea e ainda que: “As formas prevalecentes de
definidos como consumidores, não como cidadãos, muito menos como controle social são tecnológicas num novo sentido.” E isso não seria
pessoas.” Eis a sociedade de consumo que professa o fetiche e a fluidez diferente para o caso dos livros de autoajuda, já que os interesses que
nos vínculos, onde o consumidor deixou de contemplar e fazer uso da estão imbricados neste fenômeno têm ao longo do tempo se utilizado
mercadoria, para tornar-se a própria mercadoria. As criaturas se reco- das mais variadas estratégias existentes para captar a subjetividade, tais
nhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, como: livros, revistas ou livros acompanhados de fita cassete e cd-rom,
hi-fi, casa em patamares, utensílios de cozinha (MARCUSE, 1967, p. 29). dvds, sms via celular e, mais recentemente, os audiolivros. Estas tecno-
Ser cidadão deixou de ter o sentido de usufruir de direitos e cum- logias sempre foram utilizadas com a justificativa de promover o bem e,
prir deveres, envolver-se no mundo da vida para lutar por dias melhores nesse sentido, resta ratificar Marcuse (1967, p. 30): “(...) Mas, no período
e passou a ser condição de inclusão no mundo do consumo, agora um contemporâneo, os controles tecnológicos parecem ser a própria perso-
cidadão-consumidor, que apenas é reconhecido pelo seu prazer de com- nificação da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais – a
pra, ocupando-se cada vez mais com o prazer próprio e tornando-se tal ponto que toda contradição parece irracional e toda ação contrária
cada vez mais distante de si e dos outros, transformou-se em coisa, na parece impossível.”
própria mercadoria. Livros de autoajuda no formato de e-books e de audiolivros podem
ser adquiridos no meio virtual tanto em livrarias comerciais especializa-

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das em autoajuda ou livrarias convencionais que tem página na Internet, Em linhas gerais temos que concordar com Rüdiger (1996), Chagas
ou ainda, baixados gratuitamente, ou mesmo “degustados”, entretanto a (2001), Bruckner (2002), Matos (2006), Borba (2011) e muitos outros
maior parte do acesso só ocorre pós-pagamento, quando o leitor adquire críticos da indústria cultural e da indústria da alma, a literatura de autoa-
e a empresa confirma o pagamento no sistema, logo após o download,32 juda, que destacam a qualidade duvidosa de seus conteúdos e sua rela-
é liberado. ção incestuosa com o capitalismo. Este fenômeno está se expandindo
O crescimento destes livros no mercado editorial é a evidência massivamente num ritmo parecido ao da mídia televisiva e propagando
imediata de sua aceitação pelo homem contemporâneo, que se encon- a ideia de: “nada de atenção e máximo de distração”. O capitalismo e as
tra cúmplice ao modelo vigente, e em desapego com tradições, imerso tecnologias difundidas pela indústria cultural são os responsáveis dire-
nas armadilhas de uma sociedade que visa valorizar as celebridades, o tos pela ditadura do controle e gestão do tempo, pela emergência da
espetáculo, o efêmero, o hedonismo, as coisas e não as pessoas. O lei- felicidade fluída, pelo hedonismo individualista, pela transformação das
tor, ao adquirir um audiolivro, confirma para o mercado editorial que pessoas em coisas e da personificação de coisas, bem como pelo con-
o modelo de literatura que lhe é apresentado indicando modos fáceis e sumo de fórmulas de gerenciamento da vida.
rápidos de “resolver” ou lidar com problemas existenciais contemporâ- Resta-nos lembrar a bela mensagem de Pe. Antônio Vieira que, em
neos se constitui no tipo de saída da crise em que ele se encontra. É um 1652, ao proferir o Sermão de Nossa Senhora da Penha da França disse:
modo econômico e efêmero de lidar com situações problemas comple- “(...) o livro é um mudo que fala, um surdo de responde, um cego que
xas, tornando-as “simples” temporariamente. guia, um morto que vive, não tendo ação em si mesmo move os ânimos,
Nessa mesma direção o crescimento dos livros de autoajuda no for- e causa grandes efeitos”.
mato de audiolivros e e-books também ratificam o estado de adormeci- Diante disso, pensemos nos inúmeros efeitos agora que um livro
mento da consciência do homem contemporâneo, que prefere o self-ser- “falado” terá na construção de novos modos de subjetivação como estra-
vice do que o prazer de fazer, de sentir o peso e o sabor do caminho da tégia de manutenção da condição ingênua. Kant, Husserl e os frank-
construção de seu projeto de vida. furtianos tiveram e têm sempre a clareza de que o homem precisa ter
É possível pensar uma psicologia social fenomenológica e é perfei- a coragem de assumir seu projeto de vida, de sair da condição de ser
tamente viável o diálogo com a teoria crítica, respeitando-se, claro, as menor, dando à razão e à consciência condições de promover a sua
suas divergências. Suspendendo-se os pontos contrários, torna-se exe- emancipação, autonomia e liberdade.
quível pensar a existência humana a partir da contribuição de ambas.
Entendo que cabe à Psicologia a tarefa de pôr em cena essa tensão que referências bibliográficas
emerge em tempos de crise do capitalismo – aqui representada pela
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construção de novos modos de subjetivação via promessas de felicidade
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instantânea, paz, cura interior e dinheiro fácil vendidas como merca-
de Janeiro: Zahar, 2008.
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______. Capitalismo Parasitário e outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro:
estratégias contribuem para a formação de um exército de semileitores, Zahar, 2010.
pseudoformados: “Semileitores, somos também pseudoformados no BARCELOS, Tânia Maia. Subjetividade: inquietações contemporâneas. Educação
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BASSO, Carlos Roberto. Administração eficaz do tempo. São Paulo: Basso’s &

32 Baixa do arquivo para o computador pessoal do adquirente. Aí reside a lógica da econo-


Associados Consultoria e Treinamento, maio/1998.
mia do espaço da praticidade e da mobilidade que o sistema sustenta.

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Antes de tudo é importante destacar a profunda carência que o saber Psi


encontra ao falar do tempo, grande parte das concepções temporais hoje
utilizadas na Psicologia remetem-se a outros campos do saber, como a
Biologia e a Física, a Sociologia e a Filosofia. A própria literatura encon-
trada sobre o assunto é escassa e os conceitos aplicados a esses outros
campos do conhecimento são, muitas vezes, utilizados sem qualquer
modificação para a realidade do conhecimento Psi.
Podemos destacar três bases importantíssimas para o conheci-
mento psicológico nessa área: a Filosofia, a Sociologia e a Biologia (com
grandes contribuições da Física). Daí o título desse texto.
A primeira delimita não só o início de um estudo sistematizado do
mundo e dos fenômenos que o cercam na história ocidental, ela também
determina em grande parte o pensamento que atravessará, ou delimi-
tará, outros campos de saber. A Psicologia não ficou imune a esse fato.
Para aqueles que desejam aprofundar-se ou contribuir com o campo
da Psicologia do Trabalho o principal pilar a ser estudado é, sem som-
bra de dúvidas, a sociologia e seus estudos sobre o tempo social; inicia-
dos por Durkheim. Mas à revelia desse fato, e escapando da sedução de
enveredar por aquilo que é mais visível, buscaremos abordar outro pilar
pouco explorado no contexto do trabalho: o tempo segundo a Filosofia.

374 375
Assim, para que possamos fazer referência a uma categoria sobre a de Elias (2001), de que o tempo é uma categoria de síntese complexa,
temporalidade dentro da Psicologia, precisaremos transitar por diversos ainda mais acertado.
campos de saber, campos estes que dão base para a teorização do tempo Dentro da construção desse conhecimento, o tempo, após a hege-
que a Psicologia hoje adota em seus estudos. monia da Filosofia, ficou quase que irrestritamente vinculado à física,
Se o campo sociológico, como dito, é o principal estudo para a área, que, por estar calçada em bases positivistas, tentava determinar os fatos
existe hoje uma grande proliferação de estudos sobre o trabalho que universais relacionados a essa categoria; de forma que a estrutura do
adotam perspectivas psicanalíticas, gestálticas, rogerianas, behavioristas tempo se tornasse, além de universal, previsível.
ou junguianas. É com base nisso que a Filosofia deve ganhar espaço na O rompimento desse pensamento, e um dos fatos mais relevan-
compreensão do tempo, o que nos leva a um pensamento em duas vias: tes para a evolução do pensamento sobre o tempo, se deu com Albert
a primeira, a importância que essa disciplina tem para a construção da Einstein e sua Teoria da Relatividade, entretanto antes dele o tempo
própria sociologia; a segunda, a forma como vários campos da psicolo- já caíra em um outro campo: Émille Durkheim, ao tratar dos aspectos
gia se apropriam inteiramente do pensamento filosófico. mais elementares da vida religiosa, abre espaço para a construção de um
Mesmo não tendo a pretensão de apresentar um apanhado defini- pensamento sobre o Tempo Social, construção esta determinante para
tivo sobre o tempo nesse campo de saber, consideramos necessário uma a reflexão sobre o tema e campo fértil de pesquisa para a Sociologia até
trajetória que pontuasse algumas das mais importantes contribuições na a atualidade, da qual a Psicologia se valeu como base para compor uma
conceitualização da temporalidade. das duas vertentes sobre o tema.
Falar sobre o tempo é a um só passo tratar de uma categoria que é E aqui devemos abrir um pequeno parêntese importante para a Psi-
de domínio comum, e no mesmo sentido, que pouco se consegue falar cologia; a Física hoje, como nos aponta Hawking (1988), pensa o tempo
a respeito. A célebre frase de Agostinho sobre a dificuldade em se falar em três instancias diferentes:
sobre o tempo, mesmo se sabendo intuitivamente o que ele é, é uma
Existem pelo menos três setas do tempo. Primeiro há a seta de tempo
expressão dessa verdade. termodinâmica, a direção do tempo em que a desordem ou a entropia
Ao contrário de diversas categorias científicas todos sabem falar, aumenta. Depois há a seta psicológica do tempo; essa é a direção em que
de uma maneira particular, o que é o tempo, sendo ele usual na vida do sentimos o tempo passar, a direção em que nos lembramos do passado,
mais jovem e do mais velho, do atual e do primitivo, do pesquisador e mas não do futuro. Finalmente a seta cosmológica do tempo, que é a
direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai.
daquele com pouco estudo formal. Talvez mesmo por esse fato, de ser (Hawking, 1988, p. 144-145)
uma categoria de um domínio tão público, tenhamos certa dificuldade
em encontrar um consenso sobre o que é o tempo. Durante todo esse período em que os estudos sobre o tempo foram
Dos antigos magos e xamãs das sociedades antigas, transitando pela altamente difundidos pela Física o saber filosófico não parou de produ-
Filosofia e se dividindo nas diversas especialidades do conhecimento zir a seu respeito, como as considerações de Agostinho, Kant, Husserl
hoje dominante – a ciência – através da Física, Sociologia e Psicologia, o e Heidegger, por exemplo; mesmo tendo uma produção que não teve o
tempo vem sendo exaustivamente pesquisado na tentativa de se encon- alcance das pesquisas da Física, a Filosofia nunca ficou alheia ao assunto.
trar um denominador que possa nortear os rumos que a pesquisa do A Psicologia, por sua vez, ingressou no campo através, princi-
tema irá necessitar. palmente, da Filosofia e construiu duas vertentes de pesquisa sobre o
Entretanto, mesmo depois de tantos séculos de estudos sobre o tempo: a primeira relacionada às diferenciações entre o tempo objetivo
assunto, não podemos dizer que quaisquer das ciências que se detenham e o subjetivo, voltado a uma Psicologia de vertente mais biológica, que
nesse estudo estão próximas de um arremate, tornando o pensamento remonta os estudos no nascedouro da Psicologia com as pesquisas de

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Wundt, e a segunda de cunho mais clínico, como é o caso das Psicolo- tempo na forma absoluta do movimento ele propôs uma corrida ima-
gias Humanistas, onde a Filosofia teve a maior influência. ginária entre Aquiles e uma tartaruga. Para considerar a maior veloci-
Além destas, duas outras merecem destaque: aquelas que tentaram dade do corredor o filósofo atribuiu que Aquiles corresse dez vezes mais
criar modelos próprios e independentes de estudo, como a teoria piage- rápido que o animal, entretanto daria uma vantagem de algum tempo
tiana, a Psicanálise e a Psicologia Analítica de Jung; entretanto é muito para a tartaruga.
difícil categorizar essas tentativas para agrupá-las em um mesmo campo Vamos reproduzir o pensamento do filósofo:
dado as particularidades que tem. A tartaruga terá uma vantagem inicial de 80 minutos, e nesse
A segunda são as teorias que têm como objeto o Trabalho e sua tempo ela percorrerá uma distância de 1.000 metros, Aquiles chegará
interface com a temporalidade, seja ela a cronológica, ainda no início neste ponto em 8 minutos (dez vezes mais rápido), mas quando chegar
das pesquisas de tempo e movimento, onde essa relação tinha uma até ele a tartaruga já terá se deslocado mais 8 minutos até um ponto a
importância marginal, subordinada a uma técnica produtivista. Ou as 100 metros de onde Aquiles está; o corredor chegará a esse ponto em 0,8
que fizeram interface com o tempo social, que podem ser consideradas minutos, mas quando chegar lá o animal terá percorrido mais 10 metros;
muito recentes, mas que já demarcaram uma nova perspectiva de estudo distância que Aquiles vencerá em 0,08 minutos; entretanto quando che-
e intervenção no campo da Psicologia; onde temos um estudo em duas gar seu adversário já terá se deslocado mais 1 metro; novamente o cor-
vertentes: um de caráter mais abrangente e até certo ponto mais objetivo redor chegará a esse ponto em 0,008 minutos, mas o animal já terá se
da temporalidade laboral, aquela compartilhada por determinada classe deslocado 0,1 metros. E assim ao infinito...
ou as transformações gerais que o tempo do trabalho vem sofrendo; e Já podemos perceber que Aquiles, apesar de bem mais rápido,
outra mais subjetiva, que seria resultante das vivências e impactos que nunca chegará a alcançar a tartaruga; em um cálculo de divisão infinita.
essas temporalidades e suas transformações têm nas vidas dos sujeitos A lógica do pensamento de Zenão se equivoca ao dividir o número
que a elas estão submetidos. em vez da unidade de tempo. O número, por ser infinito, comporta uma
divisão igualmente infinita e assim o corredor nunca chegaria a alcançar
o tempo filosófico seu adversário mesmo que tivesse uma vantagem irrisória. No mesmo
sentido, se a distância de tal corrida fosse igualmente dividida tomando
O gênese do conhecimento ocidental se dá, sob diversos aspectos, na como base o número, a tartaruga nunca chegaria ao seu destino, pois ao
antiga Grécia, berço de uma Filosofia florescente e de uma profundidade contrário da distância o número é infinito.
tão grande que balizou o conhecimento produzido por esta metade do Como bem nos coloca Piettre (1997) o número é uma grandeza
mundo até os dias de hoje. matemática infinita, assim como a reta é matematicamente composta
Não é de se estranhar que o tempo fosse, também, alvo do pensa- de infinitos pontos; entretanto, enquanto dado real, as distâncias e a reta
mento da época. A primeira aparição do tempo no pensamento helênico têm sim uma finitude, assim como a duração do tempo em dado ins-
(como os gregos se intitulam) foi ainda precocemente na história da tante. Uma hora tem sessenta minutos, e toda divisão comportada por
criação do mundo e dos homens: do nascimento de Kronos ao apareci- uma hora se dará nesse espaço de tempo. Aí está o equívoco de Zenão,
mento de Kairós. Mas, mesmo estando no domínio da religião, o tempo que criou uma teoria que primava pela imobilidade.
não passou desapercebido para a Filosofia, e seus maiores pensadores É importante perceber que sociedade da época firmava-se em clas-
devotaram extensa atenção ao assunto. ses bem definidas e rigidamente postas, a ideia da imobilidade não era,
Uma das primeiras concepções sobre o tempo veio do filósofo grego sob nenhum aspecto, exclusividade da filosofia de Zenão.
da Antiguidade: Zenão de Eneia. Para provar o equívoco de se pensar o

378 379
Ainda na antiga Grécia Aristóteles (1995), em seu trabalho Física, do tempo era contínua, e poderia ser abstratamente representável atra-
faz considerações sobre o tempo, que mais tarde viriam a se dividir vés de unidades descontinuadas, como as horas e os anos, por exemplo.
entre duas outras correntes de pensamento, a saber, a Filosofia e a Física. Para Plotino pensar que o tempo é o número do movimento,
Segundo o filósofo grego o tempo é a medida do próprio movimento, como pregava Aristóteles, é pensar em se medir uma grandeza de
levando-se em consideração um antes e um depois (Aristóteles, 1995). movimento; o que nos levaria a considerar uma porção de espaço per-
A concepção aristotélica do tempo nos dá uma exata noção de seu corrido; o que resultaria de que o tempo é a medição do espaço. O filó-
modelo de pensamento, um modelo naturalista do tempo que o consi- sofo refutava a ideia afirmando que não existia necessidade de medir-
dera um elemento autônomo aos demais e que dele podemos fracionar se as grandezas para que elas existissem (Piettre, 1997), e termina por
ou aglutinar de forma a pensarmos em uma passagem linear segundo o definir o tempo como:
axioma: um antes, um agora e um depois.
Consequência da marcha inacabada do espírito que anima o mundo –
É importante acima de tudo percebermos que embora o filósofo astronômico (os astros são vivos), animal, humano... A nossa experiência
considerasse o tempo uma unidade linear, a própria cultura helênica de seres “incompletos”, como a de todas as coisas do mundo visível, do
vivia segundo um tempo cíclico. Religiosamente esse povo acreditava curso de nossas existências humanas, da vida de todos os vivos, dos astros
no processo de transmigração da alma, que depois de deixar o reino no céu, como por tentar – em vão – suprir esta carência, resume-se na
experiência do tempo. (Plotino apud, Piettre, 1997, p. 27)
dos homens em direção ao Hades – a terra dos mortos – e passar lá um
tempo que era próprio a cada alma retornava à vida após beber do rio Assim, para Plotino, o tempo (ou a noção dele) é a expressão da
do esquecimento – desta forma a alma poderia ocupar novamente um incompletude, da imperfeição, da falta; o que certamente é matéria de
corpo sem lembrar-se de seus amores e desafetos de outra vida. interesse para diversas disciplinas psicológicas. A incompletude é o
Assim, a perspectiva do tempo para o autor não se dava unicamente motor da vida para as mais diversas áreas de conhecimento da Psico-
na esfera da Física, Aristóteles também concebia diversas outras rela- logia, ser algo incompleto desemboca em uma busca constante, em um
ções com o tempo, além do caráter comumente percebido – passado, movimento eterno de busca.
presente e futuro, e a passagem do tempo –, a ética, a política, a arte, o A Termodinâmica e a Física moderna já nos delimitam isso muito
bem, a verdade, são dimensões que para o filósofo se intricavam com o bem. Prigogine (1998) já comprovou que o universo tende ao desequilí-
estudo do tempo. brio, vivemos em um cosmo que aumenta a entropia em detrimento da
Atentar para as estruturações do tempo religioso e profano nas ordem; é bem fato que diversos processos tentam construir nova ordem,
sociedades é um fato importantíssimo, pois até a criação da máquina a mas como a entropia sempre aumenta mais, a tentativa de estabelecer
vapor, e, principalmente, da luz elétrica a produção se mantinha segundo ordem gera o movimento, que por sua vez cria em seu rastro novo dese-
uma temporalidade natural, ou seja; cíclica. A iluminação artificial nas quilíbrio, nova incompletude.
fábricas vai romper esse laço de produção natural e instituir uma tempo- Outra abordagem do tempo que desejamos destacar, e que de certa
ralidade linear de produção, tempo este dominante da Revolução Indus- forma coaduna com o pensamento aristotélico em seu caráter natural,
trial à contemporaneidade. é a do filósofo Immanuel Kant (1999). Positivista e imerso em um con-
Ainda na Antiguidade, um dos filósofos que contribuiu significa- texto histórico da volta do homem a si mesmo enquanto centro do pen-
tivamente com o estudo do tempo foi Plotino, segundo ele “dizer que o samento e do universo, uma vez que segundo seus pressupostos a razão
tempo é um número é confundir o numerado com o numerante; o que podia a tudo conhecer e era o centro primeiro do conhecimento do
é medido com o que se mede” (Piettre, 1997, p. 25). Para ele a grandeza mundo. Na tentativa de depurar ao máximo aquilo que poderia ser con-

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siderado como essência do pensamento e categoria primeira de onde uma forma única e exclusiva para cada um; além de dotar este mesmo
todas as outras partiriam o filósofo chegou ao tempo e ao espaço. espírito da capacidade de se lançar em um tempo ainda não vivido ou
Em seu texto Metafísica, Kant (1999) chega a essa conclusão depois resgatar para o agora um tempo já passado.
de atentar para o fato de que todo o pensamento está espacialmente e Sobre essas bases, e principalmente sobre as especulações de Bren-
temporalmente localizado, sendo assim, o tempo e o espaço seriam cate- tano sobre o tema, que Husserl buscará solucionar um problema grave
gorias a priori das quais o pensamento humano se valeria a fim de balizar para o método fenomenológico: a duração psicológica do tempo.
outras categorias, estas, por sua vez, seriam as bases para novas reflexões A redução fenomenológica nos solicita a suspensão dos a priori,
e categorias, fazendo assim o movimento expansivo do conhecimento. isso porque a memória não é confiável e a representação macula a expe-
riência mesma. Nesse caso como poderemos ter a experiência, uma vez
O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência.
Com efeito, a simultaneidade ou a sucessão nem se quer se apresentaria à que “quando tento alcançar o momento presente fora de mim ele já pas-
percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente a priori. sou” (Piettre, 1997, p. 43)?
(Kant, 1999, p. 77) Qual a duração do presente?
No que se constitui a experiência psicológica do presente?
Ao contrário do que pregaria Newton (1990) e do pensamento do
É exatamente esta uma das principais preocupações de Wundt
próprio Aristóteles, o tempo em Kant (1999) tem uma dimensão indi-
quando funda a Psicologia como ciência independente: a experiência
vidual, na verdade o tempo para o autor poderia ser descrito como
imediata.
bidimensional, já que para ele o tempo era uma categoria inerente ao
Para Husserl (1994) o presente se constitui de um passado recente
homem, assim cada um o perceberia de forma direta, mesmo que não
e de um futuro iminente, como uma nota musical, um tom. O presente
refletisse sobre ele conscientemente.
em si pode ser um segundo ou uma frase, que só pode ter seu início
Desta forma, admitia que o tempo se dava em cada homem, mas
entendido mediante seu final; o fim da frase presentifica seu começo e a
quando o coloca como categoria essencial do pensamento racional,
ele gera todo o sentido que o interlocutor precisa ter, ou, como coloca o
passa a universalizá-lo na condição humana. E ao contrário de Aristó-
próprio autor, a percepção da duração indica uma duração da percepção
teles, Kant postulava uma não permanência do tempo fora do sujeito.
(Husserl, 1994, p. 36). Desta forma o presente se estende de acordo com
Em todo caso a maior importância do fato é apontar para um tema
a necessidade da ação e a noção de passado e futuro se dará na descon-
retomado posteriormente na Filosofia: a sensação da passagem do
tinuidade desta, que indicará momentos de ruptura.
tempo é uma experiência individual.
É sobre essas premissas que Heidegger (1988) vai criticar dura-
Parece ser sobre essa premissa que Santo Agostinho (1970) parte
mente o pensamento aristotélico sobre o tempo. Para o filósofo alemão
para pensar as características do espírito sobre o tempo. Escapando da
o tempo é uma dimensão vivida e como tal é particular a cada sujeito e
célebre frase do pensador sobre nosso conhecimento intuitivo sobre o
se expressa na presentificação dessa temporalidade.
tempo, mas a dificuldade que todos sentimos em expressar esse conhe-
Para o filósofo o tempo está na raiz da condição humana e ele vai
cimento de forma clara, sublinhamos desse pensador a teoria de que o
localizar esse fato ao chamar o homem de ser-aí (Dasein) e vai entrela-
espírito tem a capacidade de distender o tempo, tanto para um antes
çar o tempo comum em três dimensões que classificou como o ser-sido,
como para um depois.
o por-vir e o estar em situação.
Ora, nada mais individual que o espírito!
O ser-sido não é o passado, pois não deixou de ser, ele não extin-
Santo Agostinho (1970) cria o espaço para a subjetivação do tempo
guiu-se e foi abandonado durante o percurso temporal, ele é a forma
quando aponta que cada espírito vai recuperar ou antecipar o tempo de
como o Dasein vislumbra e recupera esse tempo que foi vivido, atuali-

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zando-o dentro da perspectiva que se possui aqui e agora, fazendo assim O pensamento husseliano e heidegeliano vão balizar alguns campos
um movimento de presentificação. da psicologia que teorizarão sobre o tempo, como por exemplo as Psico-
O por-vir, da mesma forma que o ser-sido, refere-se a uma tempo- logias Humanistas. Esses, assim como aqueles que derivam de uma abor-
ralidade comum ao vocabulário cotidiano: o futuro. Mas não o é pro- dagem sociológica, admitiram uma construção da realidade baseada na
priamente e não deve ser confundido com ele. Para Heidegger (1988) o inter-relação com o mundo; é através dessa imersão na malha social que
futuro não existe em si. Porque ele não aconteceu, não existe experiência o tempo vai sendo inscrito muito mais como uma vivência experien-
sobre ele, assim não se pode falar do que não existe. ciada que como um conceito abstrato.
Esse por-vir é potencialidade, é inacabado, ele não é futuro em fun- Entretanto, para alguns projetos psicológicos, a construção da
ção de sua presentificação, é uma projeção do agora, o por-vir já existe noção temporal, e mais precisamente, sua derivação social se dá por
enquanto possibilidade e projeto da vivência atual, é o agora vivido outro viés. Notadamente aqueles projetos que admitem um incons-
enquanto projeto do que pode vir a ser. ciente para esse sujeito social devem delimitar como tempo fundamen-
Finalmente o estar em situação é a dimensão temporal na teoria de tal aquele do Inconsciente, tempo eminentemente pessoal.
Heidegger (1988) que pode ser alinhada com o presente, mas certamente É na confrontação com o espaço exterior, com a realidade circun-
não é efetivamente o presente. As outras duas dimensões se entrelaçam dante que esse sujeito percebe outras organizações que lhe são alheias,
com o estar em situação para formar de uma só vez um agora que atua- e das quais deverá dar conta de alguma forma. É nesse movimento de
liza as vivências e os projetos que poderão vir a ser, assim esse “agora” é aproximação e afastamento com a realidade que o tempo social vai se
na realidade um conjunto de “agoras” que passaram no tempo cronoló- pregnando a ele até que tenha que se submeter de alguma forma a sua
gico e de tantos outros que poderão acontecer. ordem.
Cada “agora” é diferente entre si porque cada um de nós tem expe- É essa submissão que fará surgir e perpetuar o tempo comum, o
riências diferentes, histórias diferentes; essa concepção vai irremedia- compartilhado, aquele que é social; empurrando aquele tempo primeiro,
velmente de encontro com a homogeneidade aristotélica do tempo. Na o do Inconsciente, para um lugar subjacente; um lugar da experiência
teoria heideggeriana o tempo é singular em cada um que o vive. Se para pessoal e fugida.
Aristóteles (1995) o tempo é objetivo, a filosofia heideggeriana o consi- Mas continuar essa linha de raciocínio é enveredar pela passagem
dera essencialmente subjetivo e como tal singular e diferente de outros das temporalidades pessoais e sociais, algo que o objetivo desse trabalho
tempos que viriam de outras subjetividades. Tomemos o pensamento de e as linhas que ele comportam não dão conta. Assim, só nos resta deixar
Araújo (2004) quando diz que “o Dasein só se faz presente a si mesmo, o tema para ser explorado em um texto futuro, nosso ou de quem por
enquanto se antecipa em seu passado” (p. 240). ele se interessar; uma vez que a ideia é como filho, uma vez lançada no
É importante dizer que essas dimensões não são pensadas, mas mundo, já não nos pertence.
vividas de forma de forma direta, o sujeito não pensa em cada uma
delas, e, no entanto, as localiza, e se localiza, de forma automática, sem referências bibliográficas
que precise pensar em cada uma.
AGOSTINHO, S. As confissões (F.O.P. de Barros, Trad.). Rio de Janeiro: Edições de
Nesse contexto, que para o filósofo mesmo os tempos naturais não
Ouro, 1970.
são iguais, pois existe um tempo de amanhecer, um tempo de anoitecer,
ARAÚJO, J. N. G de. Tempo do sujeito, tempo do mundo, tempo da clínica. Revista
um tempo de frio e um tempo quente, da mesma forma que os tempos Mal-estar e Subjetividade, 4 (2), 235-250, set., 2004.
sociais (que veremos adiante) também são qualificáveis: seca do quinze, ARISTÓTELES. Física. Buenos Aires, Argentina: Biblos, 1995.
trinta anos gloriosos.

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ELIAS, N. Do tempo. São Paulo: Rocco, 2001.
Sobre os autores
HAWKING, S. Uma breve história do tempo. São Paulo: Círculo do livro, 1998.
HUSSERL, E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo.
Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1994.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
KANT, I. Metafísica e política. São Paulo: UNESP, 2005.
______. Crítica da Razão pura. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensa-
dores), 1999.
PIETTRE, B. Filosofia e ciência do tempo. Bauru: EDUSC, 1997.

andré barata – Doutor em Filosofia Contemporânea pela Universi-


dade de Lisboa. É professor auxiliar na Universidade da Beira Interior,
onde dirige o mestrado de Ciência Política. É membro da direção do
Instituto de Filosofia Prática e vice-presidente da Associação Portuguesa
de Filosofia Fenomenológica. Publicou em 2000 Metáforas da consciên-
cia (Porto, Campo das Letras), em 2007 Sentidos de liberdade(Covilhã,
Ta pragmata) e, em coautoria com Rita Taborda Duarte, Experiências
descritivas (Lisboa, Caminho), em 2010 Mente e consciência – Ensaios de
filosofia da mente e fenomenologia (Lisboa, Phainomenon). Organizou
em 2011 o volume Representações da portugalidade (Lisboa, Leya/Cami-
nho) e tem no prelo Primeiras vontades (Lisboa, Documenta).

ariane p. ewald – Professora Adjunto da UERJ no Instituto de Psicolo-


gia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Entre suas
publicações destacam-se os livros Subjetividade e literatura: harmonias e
contrastes na interpretação da vida (2011); Crônicas folhetinescas. O nas-
cimento da modernidade no Rio de Janeiro (2005).

blanca muñoz – Licenciada en Filosofía y en Ciencias Políticas y


Sociología. Se doctoró en la Universidad Autónoma de Madrid. Premio
Extraordinario de Licenciatura. Premio “Mejor Becario” y Premio de
Investigación Científica. Actualmente es profesora Titular de “Sociología

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de la Cultura de Masas”, “Sociología del Conocimiento” y “Teoría Socioló- tada para a cadeira de Psicologia do Trabalho do Centro Universitário
gica Contemporánea” en la Universidad Carlos III de Madrid, tras haber Estadual da Zona Oeste (UEZO-RJ) e professora convidada do curso de
sido profesora Titular de “Teoría de la Comunicación de Masas” en la pós-graduação em Enfermagem do Trabalho do Instituto Nordeste de
Universidad del País Vasco. Entre sus publicaciones se pueden citar los Ensino Superior e Pós-graduação (INESPO-MA) em Imperatriz, Mara-
libros siguientes: Cultura y Comunicación. Introducción a las teorías con- nhão. Atua como consultora em Análise do Trabalho e Análise Ergo-
temporáneas (1989); Teoría de la Pseudocultura. Estudios de Sociología nômica em empresas, instituições e espaços de trabalho informal.
de la Cultura y la Comunicación de Masas (1995); Whose Master’s Voice? Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psico-
The Development of Popular Music in Thirteen Cultures (1997); Theodor logia Social da UERJ, cuja tese, com ênfase em Psicologia do Trabalho
W. Adorno: Teoría Crítica y Cultura de Masas (2000); Medios de Comu- sob a ótica frankfurtiana, busca no recorte sócio-histórico da Contem-
nicación, Mujeres y Cambio Cultural (2001); La Cultura Global. Medios poraneidade compreender a díade “Tempo e Trabalho”, como meio de
de Comunicación, Cultura e Ideología en la sociedad globalizada (2005); refletir e questionar a construção e os efeitos impactantes dos cenários
Cultura y Comunicación. Introducción a las teorías contemporáneas (ree- laborais vigentes.
dición aumentada) (2005); Modelos Culturales. Teoría Sociopolítica de la
Cultura (2005) y La Sociedad Disonante. Estudios de Cultura, Ideología Idilva Germano – Psicóloga. Doutora em Sociologia. Professora
y Teoría Crítica (2010). Asimismo, ha publicado numerosos estudios Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
y artículos sobre la ideología, la cultura y el conocimiento en la socie- Ceará e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC,
dad contemporánea Professora Titular de Ciência Política e Sociologia vinculada à linha Cultura e subjetividades contemporâneas. Autora de
da Universidade Carlos III de Madrid e autora de vários livros entre os Alegorias do Brasil: imagens de brasilidade em Triste fim de Policarpo
quais: Teoria de la pseudocultura (1995); Theodor Adorno. Teoria Críti- Quaresma e Viva o Povo Brasileiro (Annablume, 2000). Desenvolve
cayu Cultura de Masas (2000); La cultura global (2005). atualmente o projeto geral “Práticas discursivas, biografias e vulnera-
bilidades”, com pesquisas e publicações em narrativas autobiográficas
carlos lima – Professor do Instituto de Letras UERJ. De suas publica- em contexto de vulnerabilidade social, estudos teóricos e empíricos sob
ções, destacam-se o livro Genealogia dialética da utopia, (Contraponto) e enfoque discursivo e sensibilidades contemporâneas em narrativas lite-
o artigo “O teatro surrealista” publicado em O surrealismo (Perspectiva). rárias. Membro do grupo de trabalho da ANPEPP “Juventude, Resiliência
e Vulnerabilidade.
Cássio Braz de Aquino – Professor do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal do Ceará – graduação e pós-graduação, doutor Iratan Bezerra de Sabóia – Psicólogo, mestre em Psicologia pela
em Psicologia Social pela Universidad Complutense de Madrid, Coor- Universidade Federal do Ceará, professor do Curso de Psicologia da
denador do Núcleo de Psicologia do Trabalho. Autor de textos sobre Universidade Federal do Ceará – Campus de Sobral, coordenador do
tempo e trabalho em periódicos no Brasil e Espanha, com destaque para Erga – Núcleo de Estudos sobre o Trabalho.
o livro Psicologia social: desdobramentos e aplicações (2004).
Jean Marlos Pinheiro Borba – professor adjunto do Departamento
Evie de França Gianinni – Psicóloga, professora de Psicologia do de Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), psicólogo
Trabalho, Ergonomia e Psicologia Social, Mestre em Psicologia Social e bacharel em Ciências Contábeis. Doutor em Psicologia Social (UERJ.
(UERJ/PPGPS), ergonomista (UFRJ/COPPE), doutoranda do programa de Mestre em Administração (Finanças das Empresas, UFPB). Coordena-
Pós-Graduação em Psicologia Social (UERJ/PPGPS). É professora contra- dor do Grupo de Estudos e Pesquisas em Fenomenologia e Psicologia

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Fenomenológica. Principal publicação: Sistema de cartões de crédito no Regina de Oliveira Santana – Psicóloga, doutoranda no Programa
Brasil (2008). Seus estudos atuais convergem para as bases de uma Psi- de Pós-Graduação em Psicologia Social/UERJ.
cologia da Cultura Financeira e da Cultura do Endividamento tendo
como olhar teórico-metodológico a fenomenologia e seu diálogo com Robson J. F. de Oliveira – Graduado em Letras, tradutor e douto-
os fundamentos das filosofias da existência e da teoria crítica. rando em Psicologia Social/UERJ. Suas pesquisas envolvem o desenrolar
da Razão moderna, a Razão mercantil e a subjetividade numa relação
Jorge Coelho Soares – Professor Adjunto da UERJ no Instituto de Psi- com a literatura e o tempo. Possui alguns artigos acerca dessa temática
cologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Entre em processo de análise por revistas dessa área. No campo da tradução,
suas publicações ligadas ao pensamento da Escola de Frankfurt desta- tem vários artigos publicados e recentemente participou de seminários
cam-se os livros Escola de Frankfurt: inquietudes da razão e da emoção avançados de 10 semanas no Colégio Internacional de Tradutores Lite-
(2010); Marcuse, uma trajetória (1999). rários na França, onde traduziu o livro Crédito a Morte de Anselm Jappe,
em vias de publicação no Brasil.
José Célio Freire – Doutor em Psicologia pela Universidade de São
Paulo (USP), é professor associado do Mestrado em Psicologia da Uni- Stefan Gandler – Profesor-investigador da Universidad Autónoma
versidade Federal do Ceará (UFC), pesquisador do Laboratório de Psi- de Querétaro desde 1996. Professor da Universidad Autónoma de Ciu-
cologia em Subjetividade e Sociedade (LAPSUS), tutor do Programa dad Juárez – México. Doutor em Filosofia pela Universidade Goethe
de Educação Tutorial (PET-SESu/MEC) e autor de O lugar do Outro na de Frankfurt. Autor de trabalhos sobre filosofia social, teoria crítica e
modernidade tardia (Annablume, 2002) e de vários artigos na área. filosofia publicados em alemão, espanhol, francês, turco e inglês. É
autor de Peripherer Marxismus. Kritische Theorie in Mexiko (Hamburgo,
Lana Veras – Psicóloga. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Argument (1999). Seus mais recentes trabalhos são: Pourquoi l’ange de
em Psicologia Social/UERJ, bolsista CAPES. Experiência docente e pro- l’histoire regarde-t-il vers l’arrière?. Les Temps Modernes. Paris, 624,
fissional na área de psicologia da saúde com ênfase em psico-oncologia, julio 2003; Alltag in der kapitalistischen Moderne aus peripherer Sicht.
psicologia hospitalar, cuidados paliativos e bioéticaLui. Nicht-eurozentrische Theoriebeiträge aus Mexiko.

Maria de Fátima Severiano – Professora Associada III no Depto. de Pablo Severiano Benevides – Professor Assistente II do Curso de Psi-
Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer- cologia da Universidade Federal do Ceará – Campus de Sobral. Tutor
sidade Federal do Ceará (UFC). Doutora em Ciências Sociais Aplicadas do Programa de Educação Tutorial PET/UFC do Curso de Psicologia
pela UNICAMP e Universidad Complutense de Madrid. Membro funda- (Sobral). Coordenador do Laboratório de Estudos em Epistemologia,
dora e pesquisadora do Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Educação e Subjetividade (LEDUS). Graduado em Psicologia, mestre em
Sociedade (LAPSUS). Autora dos livros: Narcisismo e Publicidade: uma Filosofia e doutorando em Educação Brasileira – eixo de pesquisa: Filo-
análise psicossocial dos ideais do consumo na contemporaneidade (Ed. sofias da Diferença, Antropologia pela Universidade Federal do Ceará.
Annabllume, 2001 e 2007 e Ed. Siglo XXI – Espanha e Argentina, 2005) Pesquisador do Projeto PROCAD-Capes “Biopolítica, Escola e Resistên-
e Consumo, narcisismo e identidades contemporâneas (EdUERJ, 2005), cia: Infâncias para a formação de professores” (UERJ, UFC, UNB e UNESP).
além de vários artigos na área na linha de pesquisa de consumo, mídia e
subjetividades contemporâneas. Atualmente realiza Pós-Doutorado no Taís Bleicher – Doutoranda em Saúde Coletiva (Associação ampla:
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. Universidade Federal do Ceará, Universidade Estadual do Ceará e Uni-

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versidade de Fortaleza). Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela
Universidade de Brasília. Psicóloga clínica da Universidade Federal do
Ceará.

Verônica Siqueira de Araújo – Verônica Siqueira Araújo: mestranda


no programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade
Federal do Ceará.

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