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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA | UFPB


CENTRO DE COMUNICAÇÃO TURISMO E ARTES | CCTA
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Curso de Comunicação Social - Habilitação Jornalismo

BICHA PÃO COM OVO:


Um ensaio jornalístico sobre a desconstrução da
heteronormatividade

Ulisses Natan da Silva Cavalcante

JOÃO PESSOA, PB
2015
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ULISSES NATAN DA SILVA CAVALCANTE

BICHA PÃO COM OVO:


Um ensaio jornalístico sobre a desconstrução da
heteronormatividade

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de Comunicação Social da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito para obtenção do título de bacharel em
Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo, sob orientação da Profª. Dra.
Margarete Almeida Nepomuceno.

JOÃO PESSOA, PB
2015
3

ULISSES NATAN DA SILVA CAVALCANTE

BICHA PÃO COM OVO:


Um ensaio jornalístico sobre a desconstrução da
heteronormatividade

Trabalho de Conclusão do Curso de


Comunicação Social da Universidade Federal
da Paraíba, apresentado à banca examinadora
como exigência para obtenção do título de
Bacharel em Comunicação Social, Habilitação
Jornalismo, na Universidade Federal da
Paraíba.

Aprovado em ______/_________/____________

Banca examinadora

____________________________________
Profª. Drª. Margarete Almeida Nepomuceno
Orientadora – UFPB

____________________________________
Profª. Drª. Glória Rabay
Examinadora – UFPB

____________________________________
Profª. Ms. Cândida Nobre
Examinadora convidada
4

À minha mãe.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos e todas que me ajudaram nesse processo e a todas e todos


que passaram pela minha graduação e de alguma maneira foram essenciais e
engrandecedores para minha formação.
À minha mãe, pela força, apoio, paciência e por tudo mais.
Aos amigos e amigas que me propiciaram experiências inesquecíveis durante
esse período, provas de amizade e gestos de amor, e me acompanharam ao longo
de todo o percurso, com o ouvido aberto para reclamações e a disposição de me
incentivar para seguir em frente. Agradeço especialmente à Uane, Jéssica, Bianca,
Cyntia, Umberlândia, Luis e Marco.
Aos poucos professores/as que foram motivadores/as durante a graduação.
Eles/as foram essenciais para que eu visse no curso um lugar de discussão e
formação do pensamento.
A Luiz Antonio Mousinho, meu professor e orientador de Iniciação Científica
que acreditou em mim quando nem mesmo eu acreditava, e foi paciente e amigo
quando eu mais precisei de ajuda durante momentos difíceis.
Agradeço também aos amigos e amigas do grupo de pesquisa “Ficção e
Comunicação: leitura e recepção crítica de audiovisuais” que foram instigantes nas
discussões acadêmicas e solidários nos momentos precisos, especialmente à Suéllen
Rodrigues, pela sua inestimável ajuda.
À minha orientadora Margarete Almeida, pela disposição, pelas palavras
carinhosas, pela orientação habilidosa e pela força que me deu.
Aos entrevistados que toparam falar sua vida íntima: Brune, Dayvson,
Diógenes, Érick, Jô e Rodrido, meu muito obrigado. Aos que de alguma forma
ajudaram, com palavras de incentivo ou de outra forma, também agradeço.
À banca, que aceitou prontamente participar do meu trabalho: professora Glória
Rabay e professora Cândida Nobre.
A todos e todas, meu mais sincero obrigado.
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RESUMO

Este trabalho apresenta-se em formato de ensaio e traz em seu enredo uma discussão
ampliada sobre as formas pelas quais a heteronormatividade age, imprimindo padrões
e estigmas através do controle e da vigilância. Mostrando a sexualidade como um
constructo social e o gênero entendido como parte discursiva de uma cultura e de um
tempo, o trabalho reflete acerca dos signos de uma masculinidade presente no meio
em que vivemos e como eles estão impregnados nos seres sociais, empregando uma
força e um modelo a ser seguido. Utilizando referências da Teoria Queer para
embasar a fuga do padrão por meio de uma sexualidade sem eixos convencionais, e
através de subjetividades de uma interpretação pessoal e de outras leituras, o ensaio
traz uma análise e uma abordagem sob a figura da Bicha pão com ovo, propondo uma
ressignificação em cima desse termo de carga tão pejorativa.

Palavras-chave: Heteronormatividade; Masculinidades; Queer


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ABSTRACT

This study is presented as an essay and brings in its structure an amplified discussion
about the ways in which heteronormativity acts, impressing standards and stigmas
through vigilance and control. Presenting sexuality as a social construct and gender
as a discursive part of a certain culture and time, this work speculates about
masculinity signs present in the environment we live and how they are impregnated on
social beings, employing a determined force and style to be followed. Using references
of Queer Theory to base the scape of binary standards through a sexuality without
conventional axis, and through subjectivities of a personal interpretation and other
readings, the essay brings an analysis and an approach to the image of the “Bicha pão
com ovo” (faggot), proposing a resignification on such a pejorative term.

Key words: Heteronormativity, Masculinities, Queer;


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

ENSAIO..................................................................................................................... 15

Sobre viadagem e sua descoberta pelo olhar do outro ............................................. 15

A desnaturalização da sexualidade ........................................................................... 17

A perversa heteronormatividade ............................................................................... 18

Coisa de menino, coisa de menina ........................................................................... 24

A discreta vs. a pintosa ............................................................................................. 28

O passivo vs. o ativo ................................................................................................. 33

A descoberta da homossexualidade ......................................................................... 35

Movimentos assimilacionistas e a Teoria queer ........................................................ 39

A bicha pão com ovo, a bicha queer ......................................................................... 41

Conclusão ................................................................................................................. 45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 50


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INTRODUÇÃO

Ao perceber que existe uma diversidade de possibilidades de gênero e que eu,


enquanto homem gay fora do padrão socialmente constituído, não estava sozinho na
minha expressão sexual estigmatizada, resolvi ampliar melhor o olhar e tentar refletir,
através de uma investigação, que estruturas de poder são essas que designam o que
faz ou não parte da “normalidade”. Questionar-me, a partir da minha vivência, se
existia um tipo de expressão sexual que seria mais aceita e requisitada socialmente,
me fez pensar se haveria também, dentro da comunidade gay, uma posição de
privilégio para alguns, em face do subjugamento de outros.
Por quais critérios define-se quem merece o topo dessa hierarquia e quais
outras características relegam a alguém o status de inferior? O que torna um sujeito
social como corpo que importa dentro desse contexto? Quem e por que reproduz essa
lógica que define alguns enquanto impróprios e incoerentes perante um padrão
estabelecido socialmente?
Questionamentos como estes foram inicialmente a motivação que me levaram
à constituição desta pesquisa. Queria entender e discutir que comportamento era
relevante e exigido pelo corpo social e que outras formas de ser não eram bem vistas
e portanto figuravam como alvo central dos processos de vigilância e regulação da
sexualidade.
Heterossexuais e homossexuais têm hoje a mesma representatividade e
liberdade social? A resposta negativa não precisa de embasamento profundo para ser
colocada, rápida observação empírica pode servir como base. Ao longo da história,
na escola, na igreja, na família, na cultura midiática e no aparato de leis do Estado, o
perfil aceito e reproduzido enquanto modelo é o heterossexual. Estas são algumas
das instituições que permeiam o nosso processo de construção e educação e são
responsáveis também pela reprodução e manutenção de conceitos tão arraigados no
nosso corpo e na nossa forma de expressão.
Reconhecido enquanto perfil normalizado e modelo natural, a
heterossexualidade nos é ensinada desde de muito cedo. Sem nem perceber,
passamos por longos processos de regulação. Quem nunca ouviu a frase “isso é coisa
de menina!” ou “isso é coisa de menino!” quando criança? Geralmente proferida por
alguém à nossa volta preocupado que não brincássemos com algum objeto que não
fosse atribuído ao gênero em que estávamos incluídos. Isto é, elementos da
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sexualidade dita biologicamente natural, mais parecem instruções socialmente


impregnadas em todos os seres sociais. A sobrevivência da forma normalizada da
sexualidade depende disso.
Em “História da Sexualidade I: A vontade de saber”, o filósofo francês Michel
Foucault (1999) expõe alguns meandros dessa normatização, e nos apresenta a
sexualidade enquanto “dispositivo histórico”, sendo sua constituição edificada ao
longo dos anos através de repetidos discursos e normas.
No Ocidente, passado os séculos, esse apelo por uma sexualidade higienizada
e normalizada veio se firmando como medida e propósito a ser seguido. Formas de
comportamento são, desde então, reguladas e apontadas enquanto naturais. Dentro
de uma lógica heterossexual, presente em quase tudo no pensamento ocidental,
percebemos que o ser autorizado, aquele que é definido em padrões binários de
homem e mulher, masculino e feminino, permanece no que é visto como ordem e
instaura-se enquanto genuíno.
Esta estrutura social baseada no gênero, tão arraigada na nossa realidade,
reflete em todos os grupos sociais, sendo inclusive presente e esperada no
comportamento do homossexual, posto que este também é criado no mesmo
ambiente e passa pelos mesmos processos de educação e controle da sexualidade.
Em vista disso, e tentando entender de que forma esta sexualidade
normatizada se faz presente no homem gay, vamos investigar até que ponto essa
valorização do comportamento heterossexual e da masculinidade permanecem
enquanto medida de importância dentro de um contexto e ambiente homossexual.
Este trabalho, organizado em ensaio, propõe refletir de que forma esse
comportamento baseado na heteronormatividade adquire status de local-seguro para
que seja bem visto e aceito socialmente, à medida que seu oposto torna-se um
inconveniente social. Verificando que, mesmo entre os gays, este perfil de
masculinidade parece extremamente valorizado e também instituído como padrão.
Não fugindo à regra social como um todo.
Uma análise comparativa entre o modelo de gay mais masculino, que se supõe
figurar como mais bem quisto socialmente, e o perfil do homossexual que parece ser
o mais discriminado, justamente pela descaracterização da masculinidade, traçam o
fio condutor deste ensaio. O trabalho reflete acerca do modo como socialmente este
padrão de masculinidade foi construído no Ocidente e como ele é mantido sob forte
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pressão social. Portanto, não sendo algo natural, mas forçosamente fabricado e
reforçado o tempo inteiro, atacando agressivamente a qualquer sinal de ameaça.
Para entender a dimensão dessa naturalização da heterossexualidade,
propomos a discussão acerca de uma personagem especialmente conhecida no
âmbito da cultura gay, sendo a sua nomeação advinda do vocabulário utilizado por
membros desse corpo social.
A bicha pão ovo1, personagem título deste trabalho, é um desses exemplos que
serve para mostrar como nossa cultura ainda é refém da valorização e do culto da
masculinidade. E quando o homem, mesmo que seja gay, afasta-se de uma
performance que é entendida como masculina e/ou porta características ou
acessórios que não são lidos como masculinos, ele choca, perturba e provoca.
Por meio de uma tentativa de compreensão da forma de uso da expressão
bicha pão com ovo e em que perfil ela se encaixa, propõe-se problematizar que
sentidos essas posições sexuais pré-definidas assumem num contexto social e
cultural.
Tais questionamentos me levaram, diante da expressão bicha pão com ovo, a
refletir de que modo as relações entre perfis homossexuais se estruturam e se
baseiam; analisar como se encaixam esses perfis e estereótipos de expressões da
sexualidade dentro de uma estrutura hierarquizante.
Este ensaio propõe não só uma discussão em cima dos parâmetros de
heterossexualidade constituídos socialmente como padrão, mas instiga também a
pensar uma ressignificação do vocábulo bicha pão com ovo. Partindo do pressuposto
da sexualidade enquanto uma forma de controle social, o presente trabalho enseja as
maneiras pelas quais o sexo é vigiado e controlado, e incita, assim como feito pelos
teóricos queers em relação ao termo que nomeia esta corrente de estudo, um
reposicionamento político daquela nomenclatura.
Com maior liberdade e desprendimento de uma formalidade textual
esquematizada, em busca de uma leitura ampliada, bem como abarcando referências
bibliográficas e depoimentos de personagens e suas visões pessoais, o trabalho
apresenta-se em formato de “ensaio jornalístico”. Buscando menos uma formulação

1A expressão "pão com ovo" é utilizada também para designar um sujeito definido como homossexual
afeminado/afetado, estereotipado, geralmente pobre. O termo ainda pode ser entendido como algo
ordinário, medíocre, comum.
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exata ou cientificamente provada, e explorando mais através da interpretação e


subjetividades de um olhar pessoal e do olhar do outro.
Como um gênero que surge de maneira despretensiosa no século XVI, com o
filósofo francês M. Montaigne em sua obra que leva o nome desse formato (Ensaios,
publicada originalmente em 1580), o ensaio propõe uma reflexão e uma exposição
acerca de certos fatos, sem contudo se posicionar de maneira definitiva ou absoluta,
permeado por um caráter de proposição provisória. Sendo um gênero híbrido, supõe
a junção de elementos da produção literária, científica e filosófica.
Com padrões de estrutura mais flexíveis, diferentemente da monografia ou do
artigo científico, estilos de trabalhos mais comuns dentro do nosso contexto e com
formatos mais engessados, o ensaio permite uma maior liberdade de linguagem e
uma narrativa mais solta, nem por isso menos rigorosa na sua apuração. Fica difícil
descrever o gênero ensaístico de maneira limitada, justamente porque, desde sua
instituição enquanto formato textual, não se comporta como uma estrutura
permanente e fixa, variando em características na sua definição por cada autor.
Em seu célebre texto “O ensaio como forma”, o pensador alemão Theodor
Adorno2 (2003) diz sobre este gênero que seus conceitos não são construídos a partir
de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último.
O esquema do ensaio varia em sua composição e propõe ao leitor um
experimentalismo na exposição das ideias ou do ponto de vista que desprende a
necessidade da argumentação em um conceito fechado e concluído; e aceita que
pode ser uma ideia em construção, permitindo-se e abrindo-se para a mudança. A
partir da subjetividade e da observação como ponto de partida, o ensaio pode ser
construído como uma visão temporal e impermanente do que se quer dizer.
O pesquisador Vitor Gabriel Rodriguez, em seu livro “O ensaio como tese:
estética e narrativa do texto científico” disserta que:

O grande risco do ensaio [...] é que ele facilite a fuga à pesquisa necessária.
Mas, se não for utilizado como subterfúgio à investigação, traz a vantagem
da forma livre, da sinceridade, do impulso criativo e, ainda que pareça
paradoxal, da possibilidade de exposição objetiva de uma ideia nuclear, que
aparece mascarada quando em um texto de estrutura inflexível. Isso apenas
para enunciar alto a título de pré-introdução. (RODRIGUEZ, 2012, p.12)

2ADORNO, Theodor W. Ensaio como forma. (In) Notas de literatura I. São Paulo: Ed. 34, 2003.
Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/181008/mod_resource/content/1/Adrono.%20El%20ensay
o%20como%20forma.pdf>. Acessado em: 19 de dezembro de 2014.
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Foucault, em seu texto “A escrita de si”, nos fala da memória que esse formato
de expressão em primeira pessoa evoca das “coisas lidas, ouvidas ou pensadas”
(FOUCAULT, 1992, p.135). Diz ele que a escrita de si é matéria que se constitui a
partir das subjetividades do sujeito, e que ela em si define o próprio sujeito. Para ele,
nessa linha narrativa “trata-se não de perseguir o indizível, não de revelar o que está
oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler,
e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si”
(FOUCAULT, 1992, p.137).
De um modo natural, observando o conceito da palavra ensaio em seu sentido
mais difundido, que remete ao ato de treinar antes de alguma apresentação pública,
podemos visualizar este gênero textual como um local de construção e de
experimento. Seu caráter de gênero opinativo, bem como sua exposição de modo
descritivo-explicativa, junto a uma instituição de pesquisa e rigor científico fez do
gênero ensaio a minha escolha na formulação deste Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC).
Dentro da construção deste trabalho, vamos recorrer regularmente à pesquisa
bibliográfica feita previamente para embasamento do mesmo. Usamos elementos
bibliográficos que vão de Foucault, em sua reflexão sobre os propósitos da
sexualidade enquanto aparato de poder e controle, a argumentos formulados e
utilizados largamente pelos teóricos que fizeram parte do que se entende como
estudos queers.
Proposições feitas no esboço da Teoria Queer, surgida no fim dos anos 1980,
nos Estados Unidos, e ainda pouco conhecida aqui no país, foram de grande
importância para instaurar e posicionar elementos sobre a sexualidade que
apareceram ao longo dessa pesquisa. Conceitos empregados por Judith Butler,
teórica mais conhecida dessa corrente aqui no Brasil, aparecerão ao longo do
processo, e a apropriação de seus posicionamentos, ainda que por meio de outros
pesquisadores consultados na pesquisa, também são recorrentes.
Questionar a perfomatização dos gêneros e de seu posicionamento social
numa hierarquia invisível, que elege a heterossexualidade e seu comportamento
enquanto padrão, é uma reflexão reproduzida da Teoria Queer, que propõe
problematizar os seres sociais enquanto elementos regidos pela heteronormatividade,
e foi parte fundamental nesse processo de construção do texto. Jeffrey Weeks,
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historiador e sociólogo, foi outro teórico consultado e utilizado na compreensão das


construções de corpo e sexualidade, nesse contexto social.
Guacira Louro Lopes, precursora no estudo da Teoria Queer no Brasil, Richard
Miskolci e Leandro Colling foram outros três pesquisadores brasileiros que ajudaram
enormemente através de suas investigações da sexualidade humana, e
caracterização de muitos conceitos, também por sua contextualização com exemplos
brasileiros.
Junto a esse referencial teórico, senti necessidade de trazer um conteúdo
empírico e vivencial através de entrevistas e depoimentos dados por personagens,
que foram essenciais para refletir e discutir a sexualidade e a heteronormatividade em
um processo mais amplo. Os depoimentos colhidos de Brune, Dayvson, Diógenes,
Érick, Jô e Rodrigo falam de suas impressões íntimas na descoberta e vivências de
suas homossexualidades. Estes discursos serão introduzidos ao longo de todo o texto,
conforme as discussões e análises pedem a voz dos entrevistados. Eles têm idade
entre 23 e 29 anos, cinco moram em João Pessoa, Paraíba, e um deles em Niterói,
no Rio de Janeiro, e foram contatados via internet ou telefone. As conversas que
seguiram foram realizadas tanto pessoalmente – em um café, em um bar, na
universidade e na casa de um dos entrevistados – quanto por telefone e internet.
Todos esses elementos, juntos com a interpretação do meu olhar sobre o tema,
formam e põem este trabalho em um patamar de ensaio, que se desenvolve sem
pretensão de concluir um estudo social permanente, mas, sobretudo, com o propósito
de discutir e expor ideias a partir de um viés subjetivo.
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ENSAIO

Sobre viadagem e sua descoberta pelo olhar do outro

Era meu primeiro ano naquela nova escola. Eu até então só tinha estudado
numa escolinha de bairro que ficava a poucas quadras da minha casa. Estava ansioso,
sabia que entraria num ambiente totalmente diferente, que conheceria novos
professores, que faria novas amizades. Decidi mostrar o melhor de mim. Lembro que
a preparação para o primeiro dia havia sido mais que tensa, e a ansiedade
transformava-se em insegurança e angústia.
Para mim, parecia mais que só uma volta às aulas habitual, era o começo de
uma nova fase. E foi naquele ano e naquela escola, na 2ª série do ensino fundamental
I, aos 8 anos, que eu me vi pela primeira vez como alvo de agressões das mais
diversas, a princípio verbais e depois também físicas. Não lembro exatamente quem
me atirou as primeiras palavras de injúria, mas elas tiveram o efeito de uma bomba
devastadora ao chegarem aos meus ouvidos.
“Viado!”. Creio que essa tenha sido a primeira palavra de ofensa, seguida de
outras. Mas não duvido também que tenha sido uma de suas variações. Digo que fora
agressiva não porque eu soubesse realmente o significado da palavra àquela época
– que eu só iria descobrir mais tarde – mas o riso dos coleguinhas que estavam ao
redor e o tom usado na palavra, me garantiam que ela não tinha uma conotação
amigável.
Desconfio que nem mesmo eles, os agressores, sabiam o significado que
aquela palavra tinha. Provável que estivessem reproduzindo um discurso opressor
que eles ouviram em algum lugar, em casa ou na rua, e percebendo naquela
expressão o potencial de injúria e ofensa, usaram-na para agredir, diminuir e humilhar.
Essa é a recordação mais antiga que tenho de uma agressão por causa de
minha sexualidade. Me deparara com uma forma de violência diante da qual eu não
me sentia preparado, perante a qual eu ainda não sabia me defender. Não me sentiria
preparado para ela, pelo menos, nos 10 anos seguintes. Eu não sabia que essa forma
de agressão iria me acompanhar pela vida toda. E que aquilo era só um começo.
Deparava-me com as primeiras repressivas. Não sei se houve alguma antes,
muito provavelmente. Mas essa época é uma das que está viva na minha memória
como começo das agressões e retaliações contra mim e minha expressão de gênero.
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Foi nesse período em que comecei a descobrir que existia algo de “diferente” comigo.
Não só no meu comportamento, mas também no meu desejo, apesar de ainda muito
reprimido.
Eu não era o garoto padrão, e por apresentar alguns sinais que não eram bem
lidos como masculinos (o que me destacava e diferenciava dos outros), ainda que eu
fosse apenas uma criança, já causava desconforto em alguns parentes, professores
e coleguinhas de classe, que incomodados com o meu comportamento e
personalidade, procuravam através do constrangimento e da agressão, física ou
verbal, me reprimir e constranger. Talvez por parecer mais frágil e menos masculino
do que um menino deveria ser, talvez como uma punição corretiva por eu ousar ser
assim. E enquanto os professores faziam vista grossa, eu continuei sendo o alvo da
sala por longos anos.
Foi na família, com os olhares e comentários dos parentes, e nas primeiras
lições da escola, não aquelas colocadas no quadro para que tomássemos nota, mas
outras que eram passadas de maneira constante e não estavam na grade curricular,
que aprendi que eu não me encaixava no perfil de menino que a sociedade já tinha
escrito.
A reação a tudo isso e a conclusão a que eu chegara, era que realmente
precisava mudar. E foi assim que durante anos mantive uma dura vigília e controle
sobre mim mesmo, para tentar mostrar mais masculinidade, para ser menos “pintoso”
e “afetado”, para ser mais “macho”.
Acreditava que sendo assim, eu estaria finalmente fazendo o papel certo na
sociedade, o que era esperado de mim, e não teria mais que me preocupar em estar
sendo incoerente, por conseguinte. Eu havia nascido homem, e já pesava sob meus
ombros, desde a tenra idade, a carga da masculinidade; sendo esperado que eu
assumisse esse papel, agindo da forma como se entendia que um homem performava
no meio social em que vivia.
As memórias que introduzem este texto são parte da minha história e ajudaram
a formar a pessoa que sou hoje. Exponho meu relato, porque, apesar de dizer respeito
apenas a mim, ele pode servir de ponto de partida para discussão de um ponto que
nós queremos tratar neste trabalho: retratar a violência (vigilância) das regras de
normatização a que todos e todas nós, principalmente aqueles que escapam do
padrão normativo sexual, somos constantemente submetidos. Mas ele é apenas um
dos que compõem este trabalho.
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A desnaturalização da sexualidade

Para além dos estudos que tentam explicar o porquê da homossexualidade,


seja por meio de uma investigação biológica ou social, seja por qualquer outra
hipótese levantada, este ensaio pretende seguir num caminho distinto. Ele não
objetiva esclarecer ou explicitar de que maneira a homossexualidade se “manifesta”,
tampouco o porquê dessa condição estar presente em alguns e em outros, não. Para
efeitos deste trabalho, esse levantamento seria pouco preciso, lacunoso, tornando-se
demasiado arbitrário e inconclusivo.
Assim como a heterossexualidade não é questionada em sua existência, sendo
encarada com naturalidade (em sua formação), iremos partir do pressuposto da
homossexualidade como condição de equidade semelhante, isto é, desfazendo a
necessidade de explicações de sua existência.
Portanto, em vez de tentar mapear de que maneira a homossexualidade surge
na sociedade, ou por quais motivos ela se apresenta em alguns indivíduos, concentrei-
me em tentar esclarecer de que forma a heterossexualidade, seu par inverso e
socialmente propagado como normal, surge como modelo dominante. A partir de que
momento observa-se a heterossexualidade não só como um caminho possível para
os sujeitos sociais, mas uma condição estipulada como regra a ser seguida.
A preocupação será em colocar em que ponto a heterossexualidade se formula
como norma, criando por pressuposto uma anti-norma, uma forma anormal e
incompatível ao entendido como natural, a homossexualidade. Estabelecendo um
binarismo difícil de ser desarticulado.
Não é de se estranhar, por exemplo, que ainda hoje não vejamos a figura do
homossexual como um modelo de representatividade social ou como figura que não
tenha um espaço midiático tão grande quanto o hétero. O ser não-heterossexual ainda
possui o seu ambiente restringido e limitado, seja na política, nas artes ou à frente de
outras atividades e locais. Fato que se mostra ainda mais incisivo se observamos que
papéis sociais como o de gays afeminados, lésbicas masculinizadas, travestis e
transexuais, por exemplo, não têm representatividade social nenhuma. Não se fala
deles/as e muitas vezes não se pensa em políticas que também sejam para eles/elas.
Estão à margem da margem. O modelo de estruturação social que se perpetua,
mesmo num âmbito gay, é o cisgênero, masculino, branco, de classe média.
18

O que temos, ainda hoje, dada a construção de sociedade que se criou ao longo
das décadas, é uma aceitação natural da heterossexualidade e uma desqualificação
e retaliação automática de seu par binário. O meio social se mune de uma forma de
proteção da sexualidade vigente, que de maneira perversa se impõe continuamente
aos sujeitos sociais. E todo aquele que se coloca contrário ao esquema pré-
desenhado é fortemente combatido. Essa norma que entende o comportamento
heterossexual como natural e taxa qualquer outro comportamento como inaceitável é
chamada de heteronormatividade.

A perversa heteronormatividade

Como em toda a sociedade, nos meios considerados como gays existe uma
variação enorme de perfis e performances. Com toda a sua diversidade, não há como
pressupor ou afirmar que exista um padrão específico que defina o não-heterossexual.
Isto é, dentro da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros), pode-se observar uma ampla gama de identidades de
gênero e orientações sexuais. É limitado pensar que exista apenas dois gêneros
(masculino e feminino), posto que “uma considerável parcela das pessoas prefere ficar
nos trânsitos e/ou nas margens”, como aponta o pesquisador e professor Leandro
Colling (2012, p.114) em artigo publicado no e-book “Olhares Plurais para o cotidiano:
gênero, sexualidade e mídia”.
Braga (2013, p.15) argumenta que “as relações que originam as diferentes
formulações e articulações destas esferas são as mais variadas e o jogo entre as
normas e as experiências não é resolvido por tipologias simplistas.” Pensar num perfil
único que defina o homossexual do sexo masculino, por exemplo, seria, portanto, um
erro gravíssimo, que parte de um reducionismo equivocado e limitador, restringindo a
diversidade.
No entanto, um padrão de comportamento com base num modelo
heteronormativo, mesmo entre os gays, vem sendo tomado como algo natural, pois
está de acordo com as regras do que é tido como próprio do gênero masculino. Isto
é, aquele gay que é mais próximo de um padrão heterossexual, com comportamento
masculinizado e que não aparenta e/ou porta algo ou acessório que o descaracterize
enquanto "homem", tem maior chance de não ser hostilizado como uma bicha ou
viado, por exemplo. Trejeitos afeminados ou comportamentos que fujam da regra
19

heteronormativa são passíveis de críticas e ofensas tanto de grupos heterossexuais


como de grupos gays, configurando este o perfil que se percebe como do
homossexual mais reprimido e perseguido por ser o que é.
O teórico queer brasileiro Richard Miskolci3 em um artigo chamado “A teoria
Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da normalização” instiga a
pensar como a ordem social contemporânea é parecida com a ordem sexual. Para
ele, “sua estrutura está no dualismo hetero/homo, mas de forma a priorizar a
heterossexualidade por meio de um dispositivo que a naturaliza e, ao mesmo tempo,
a torna compulsória”. De acordo com Miskolci, a ordem social do presente
fundamenta-se, portanto, no que Michael Warner denominaria, em 1991, de
heteronormatividade.
Pensar o papel da heterossexualidade na sociedade como algo além de uma
estanque fixa é um desafio. Somos educados e condicionados a encarar a
sexualidade como um dado que não pode ser colocado em xeque. Mas, na contramão
dessa instituição, este ensaio incita, a partir dos estudos queers, refletir sobre a
constante e violenta imposição da condição e dos padrões heterossexuais. Em vez de
tomar como algo presumido, posiciona-se a sexualidade como algo que é construído
socialmente, não como um dado posto naturalmente.
Nas sociedades contemporâneas, a heteronormatividade é um padrão sexista
que se sobrepõe fortemente a outras formas de ser, e está, inclusive, presente nos
grupos LGBTs. Estipulada como norma hegemônica com base no binarismo
masculino/feminino, a heterossexualidade é vista como a norma, não sofrendo
discriminação ou retaliação pela sua existência.
A discussão sobre essa hegemonia é frequentemente abordada a partir da
Teoria Queer, disseminada com maior força nos anos 1990, especialmente nos
Estados Unidos. Contestando a sexualidade vigente e heterossexual como algo
presumido, a teoria propôs, então, o debate sobre o que seria considerado como
sistema heteronormativo.
Na comunidade gay, o que se tem visto com frequência é a introjeção de um
padrão heteronormativo como modelo social legitimado. Isto é, o padrão posto
socialmente como aceitável, passa a ser reproduzido constantemente pela

3MISKOLCI, Richard. A teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da normalização.
Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-
morto/edicoes_anteriores/anais16/prog_pdf/prog03_01.pdf>. Acessado em: 17 de novembro de 2014
20

comunidade gay enquanto perfil exemplar. Uma retaliação, velada ou escancarada, é


direcionada para aqueles que não seguem esse tipo de perfil também dentro desse
grupo. Tal sistema de vigia, educação sexual e corporal é tão forte, que exclui e pune
vigorosamente aqueles que, por audácia, se arrisquem num caminho diferente.
Se por um lado a repressão e a vigilância social constante não tornam o
processo de assumir-se enquanto homossexual livre de complicação, justamente por
não estar dentro da expectativa social engendrada e padronizada previamente; por
outro, colocar-se enquanto homossexual não exime aquele que neste perfil se encaixa
de rotulações tão enraizadas quanto aquelas que permeiam a sexualidade autorizada.
As regras, implicitamente escritas no esteio social, não se desprendem de
imediato do ser, na medida em que ele propõe libertar-se das amarras que o prendem
estritamente ao desejo heterossexual. Infelizmente, essas raízes que compõem os
limites da sexualidade e o desejo aceitável são tão profundas que não basta afrontá-
las uma única vez. Mesmo aqueles que possuem um espírito libertário, é preciso mais
que isso para não mais se subordinar a essas regras. O processo de desconstrução
também necessita ser constante.
O esquema proposto e solidificado culturalmente pode ser traduzido numa linha
relativamente simples: sexo (entendido como característica biológica) indica gênero
(conjunto de características culturais), que por sua vez indica desejo. No livro “Um
corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer” (2004), a autora Guacira
Louro Lopes provoca que essa sequência cobra uma coerência entre sexo-gênero-
sexualidade. Ela diz que se “afirma e repete uma norma, apostando numa lógica
binária pela qual o corpo, identificado como macho ou fêmea, determina o gênero (um
dos dois gêneros possíveis: masculino ou feminino) e leva a uma forma de desejo
(especificamente, o desejo dirigido ao sexo/gênero oposto).” (LOURO, 2004, p.80)
Inscrita na sociedade ocidental, essa constituição limitada da sexualidade tem
ponto partida na época Vitoriana, no século XIX, como disserta Foucault em “História
da Sexualidade I: A vontade de saber”. Baseado nos sistemas sociais e culturais da
época, tendo em vista o crescimento do ideal burguês e da conceituação do sexo de
uma maneira higiênica quando sendo para reprodução.
Enquanto norma que tenta padronizar todas as identidades de gênero e
orientações sexuais, a heteronormatividade também é reflexo desse discurso, e de
outros que vieram antes e depois, como a patologização da homossexualidade pela
medicina ou sua veemente condenação pela igreja; e mesmo seu constante repúdio
21

ou negação pela escola e pela mídia, que às vezes até propõem um discurso de
inclusão, mas permeado pelas formulações que reproduzem modelos antigos e
vigentes de dominação e só acabam por corroborar a posição da sexualidade
heterossexual como natural e legítima.
O processo de regulação é permanente e invisível, por ser entendido como algo
próprio da nossa cultura, e logo não questionado.
Dayvson Lima, estudante de Design de interiores, de 23 anos, é um dos
entrevistados4 que aceitaram dar seus depoimentos e contribuição a este ensaio. Para
ele, este preconceito instituído sobre os homossexuais é ainda mais forte sobre
pessoas mais afeminadas. Ele diz que, quando ganha visibilidade, esse perfil é
retratado pela mídia de modo ridículo, cômico, caricatural e superficial, o que não
ajuda em nada na desconstrução da violência. Ao mesmo tempo, quando mostra um
gay de modo positivo, a mídia geralmente lhe desenha com traços de um
heterossexual. Retrato que, segundo ele, vem acompanhado geralmente de um
relacionamento estável e uma carreira bem sucedida.
O depoimento de Dayvson não é mesmo novidade, mas parece certeiro e
pontual quando expõe o que se espera do gay em nossa sociedade para que ele seja
minimamente reconhecido – não que tenha os mesmos direitos e legitimidade social,
mas para que seja reconhecido – é que ele tenha traços de uma heterossexualidade.
Quanto mais próxima essa expressão de gênero for dos traços sexuais de um
estereótipo heterossexual, mais esta pessoa tem chances de ser reconhecida.
Transformada em ferramenta de controle social, a sexualidade tem sido usada
como mais uma instituição de vigia dentro de uma estrutura de poder. Na sociedade
contemporânea, essas relações de poder são constantes e dão legitimidade aos
normalizados, que se valendo dessa posição de superioridade, afirmam-se enquanto
modelo e agem em função de manter, através da reprodução desse formato, sua
naturalização; impondo violento repúdio aos “desvirtuados”. Aquele gay mais
afeminado ou àquela lésbica mais masculinizada, por exemplo, cabe as
consequências da ousadia exercida em burlar a esquematização pré-definida, sendo
direcionado a estes uma rejeição e violência tamanha.

4 Todas as entrevistas foram consensuais. As perguntas foram direcionadas a vários perfis de


homossexuais masculinos e foram essenciais para construção mais plural deste trabalho. Os
entrevistados autorizaram o uso dos nomes originais em seus depoimentos, portanto suas identidades
foram mantidas, como desejadas.
22

Dentro de uma cultural sexual marginalizada, surge aquele perfil que tomamos
como ponto de partida para discussão deste trabalho: o homossexual masculino
reconhecido como bicha pão com ovo − aqui representado de uma maneira ampla
como aquele gay mais afetado e estereotipado, que se veste e se comporta de
maneira mais extravagante, geralmente pertencente a uma classe social mais baixa.
Estes se tornam alvos mais frequentes da normalização, mesmo dentro da
comunidade gay, sendo comumente o grupo dos homossexuais mais violentados e
reprimidos.
Acerca desse ponto, o estudioso queer brasileiro Richard Miskolci (2007, p.5)
argumenta que a heteronormatividade é endêmica, e marca até mesmo aqueles que
não se relacionam com pessoas do sexo oposto, agindo como um conjunto de
prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle. Ele observa
que:

As formas de definir a si mesmo de várias culturas sexuais não-hegemônicas


seguem a heteronormatividade, o que é patente na díade ativo/passivo dos
gays, a qual toma como referência a visão hegemônica sobre uma relação
sexual reprodutiva para definir papéis/posições sexuais. Assim, a
heteronormatividade não se refere apenas aos sujeitos legítimos e
normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo
histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para
serem ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente,
superior e ‘natural’ da heteronormatividade. (MISKOLCI, 2007, p.5)

Essa lógica que tenta padronizar os corpos, está longe de ser natural ou pré-
discursiva. E apesar de todo o seu empenho contínuo, é falha. Os corpos estão o
tempo todo esquivando-se das padronizações feitas no tecido social, ainda que sobre
constante vigilância. Butler (apud LOURO, 2001) afirma que mesmo que reiterem
sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade, paradoxalmente, elas também
dão espaço para produção dos corpos que a elas não se ajustam, para que constituam
o limite. Presentes como sujeitos “abjetos”, eles são indispensáveis, já que fornecem
a fronteira, isto é, “o exterior” para os corpos que “materializam a norma”, os corpos
que efetivamente importam.
Já os “transgressores”, estes são o foco preferido das pedagogias corretivas e
normalizadoras, educadoras da sexualidade, para os quais a sociedade reserva
penas, sanções e exclusões (LOURO, 2004). Este é o caso da bicha pão com ovo,
que não se encaixa numa conceituação simplista de gênero e expressão sexual. Ela
vai para além da anti-norma refletida pelo modelo aceitável, e arrisca-se por um
23

terreno de uma sexualidade indefinida, à medida que não converge seu


comportamento numa leitura de gênero esquematizada.
Como uma forte afronta dos padrões de sexualidade, ela destoa de qualquer
regra de comportamento e perfil instituído como padrão. Não cabe, a princípio, em
uma definição limitada. Não se adequa com facilidade às definições binárias: de
masculino e feminino, de hétero e homossexual. Carrega em si, mesmo que não tenha
essa consciência política tão bem formada, traços de uma lógica queer.
A bicha pão com ovo não é mesmo uma definição que se dê com simplicidade.
Justamente por, na nossa sociedade brasileira atual, não estar bem posicionada onde
deveria. Mais afetada e estereotipada, a figura que muitas vezes é vulgarmente
conhecida no ambiente gay como bicha pão com ovo nem mesmo se encaixa nos
padrões aceitáveis do homossexual masculino atual. E no meio gay, essa expressão
carrega status de julgamento negativo e ofensa.
Ainda que possa ser usada, às vezes, em um contexto de brincadeira, entre
amigos, a expressão é empregada geralmente em tom de injúria e com carga
pejorativa. A bicha pão com ovo pode ser entendida como aquela que tem traços
efeminados evidentes, destacando-se características que não fazem parte do quadro
da masculinidade, bem como portando indumentárias que não se configuram, mesmo
no contexto gay, como próprias do gênero masculino. Por vezes, também associa-se
esse termo àquela bicha mais pobre, que figura longe da cultura e poder de compra
da classe média.
A expressão aqui estudada, raramente pode ser lida apenas como mais um
substantivo do bajubá5. Para além disso, ela constitui-se como insulto comum para
aqueles que não acompanham a lógica heteronormativa, e que não seguem o padrão
de comportamento social reproduzido pela classe média, branca, que vigora como
modelo no contexto ocidental contemporâneo.
Quem por outro gay é chamado de bicha pão com ovo – mesmo que já
corresponda à anti-norma –, não figura no esquema regulado de homossexualidade.
Pois a este também incide a masculinidade e seus traços como padrão de
comportamento indispensável.

5Vocabulário que é apropriado e constituído dentro de um contexto homossexual. Usado como gírias
e empregado entre iguais, o bajubá configura-se como uma gama de palavras específicas do meio
cultural e social gay.
24

A convenção do que é entendido como bicha pão com ovo, portanto, constitui
um objeto de estudo queer, pois não se designa como uma identidade regulada e
padronizada, antes como um elemento provocador e incômodo. Logo, sua existência
passa a ser vista como “inimigo” da norma (heterossexualidade padrão) e da anti-
norma (homossexualidade padrão).
Ainda que complexo, não se deve fugir desta discussão tão pouco empreendida
pelas massas. A sexualidade, que para muitos permanece na esfera do natural ou do
grotesco, referindo-se, respectivamente, ao heterossexual e ao homossexual, não
obedece a regras tão simples que possam ser sistematizadas em díades tão
impregnadas, como homossexual e heterossexual, mulher e homem, feminino e
masculino.
Os corpos não se delimitam a uma constituição tão metódica. Na verdade, eles
não se encaixam em perfis tão delineados, sendo a multiplicidade de identidades
muitas vezes ignorada ou esquecida dentro dessa categorização sexual. Construções
identitárias bem marcadas são também excludentes e limitadoras, se percebemos que
elas comumente são colocadas como rótulos e fórmulas, e por pressuposto acabam
cerceando a liberdade de expressão dos seres sociais, que ficam presos a ideias de
como o corpo tem de se comportar ou agir de acordo com seu gênero.

Coisa de menino, coisa de menina

Historicamente, os traços sociais atribuídos a homens e mulheres sempre


permearam caminhos distintos. Quando se dá a definição do perfil masculino,
elementos como força, virilidade, poder, entre outros, são geralmente atribuídos a esta
identidade, e, diferentemente das mulheres, não são nunca caracterizados por
fragilidade ou doçura.
Esses signos da sexualidade são bem estigmatizados e recorrentes durante o
processo de construção do ser. Se menino, esse pequeno elemento passa por todos
os procedimentos de indução, de controle e de normatização para que venha a
representar o legítimo homem num tempo futuro. Não é optado por ele desviar desse
padrão. Pois desde o seu nascimento, ou mesmo antes disso, quando dar-se a
constatação da presença do pênis, pesam sobre ele todos os elementos previamente
constituídos como sendo próprios do portador do sexo masculino. Sobre isso, Louro
afirma:
25

Hoje, como antes, a determinação dos lugares sociais ou das posições dos
sujeitos no interior de um grupo é referida a seus corpos. Ao longo dos
tempos, os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, ordenados,
hierarquizados e definidos pela aparência de seus corpos; a partir de padrões
e referências, das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são
o que são na cultura” (LOURO,2004, p.75,)

A presença do pênis é bem clara na definição do sexo, que por conseguinte


assegura qual será a sexualidade em que deve ser encaixado, seu gênero, e por quem
deve sentir prazer. O mesmo acontece com a mulher. No momento da definição do
sexo, muitas vezes ainda enquanto feto, sobre aquele ser que é identificado como
uma portadora da vagina já recai todo o legado que se compreende como apropriado
do mundo feminino, referente aquele tempo e àquela cultura.
A pesquisadora Guacira Lopes Louro usa uma metáfora da concepção do sexo
enquanto uma viagem para um rumo já determinado. Citando Butler (1999), ela afirma
que esse processo de “fazer” do corpo é desencadeado pela presença do sexo, que
instaura-se em forma de um processo cultural baseado em características físicas:

A afirmativa, mais do que uma descrição, pode ser compreendida como uma
definição ou decisão sobre um corpo. Judith Butler (1993) argumenta que
essa asserção desencadeia todo um processo de “fazer” desse um corpo
feminino ou masculino. Um processo que é baseado em características
físicas que são vistas como diferenças e às quais se atribui significados
culturais. [...] O ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que
supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter
imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse “dado” sexo vai
determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo. Supostamente,
não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista. A afirmação “é um
menino” ou “é uma menina” inaugura um processo de masculinização ou
feminilização com o qual o sujeito se compromete. Para se qualificar como
um sujeito legítimo, como “um corpo que importa”, no dizer de Butler, o sujeito
se verá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura (LOURO,
2004, p.15).

Um quarto rosa, se for menina, ou um quarto azul, se menino, já esperam por


ela ou ele. Elementos que remetem masculinidade ou feminilidade são impregnados
no cotidiano e na vivência daquela criança desde sempre.
Não é incomum ouvir um discurso como “segurem suas cabras, que meu bode
está solto!”, de algum pai todo orgulhoso da sua cria masculina. Discurso que adianta
e reforça que o macho vai ter liberdade de se aventurar por aí, enquanto a mulher
deve se conter. Referências culturais que sobrepõem a masculinidade sob a
feminilidade e permanecem fixas no tecido de nossa sociedade.
26

O pênis é exaltado enquanto atributo de destaque do corpo. A “macheza” é


insinuada como qualidade da criança e ressalta como princípio notável, e outras
qualidades do universo masculino são logo destacadas como presente na criança,
que identificada como menino, já merece o respeito de um futuro homem.
A mamãe afirma que aquela menina é doce e carinhosa, que ela é uma
mocinha, que vai ser comportada e não vai ficar solta por aí. Características culturais
femininas também lhe são atribuídas. Ela tem que saber se portar e vai ser criada para
ser uma princesa. Se possível, levando a metáfora dos contos de fadas ao pé da letra,
e dada as devidas proporções, deve-se tomar o cuidado de criar a menina a sete
chaves, numa torre, enquanto espera pelo homem que vai vir para libertá-la e tomá-
la sob seus cuidados, para que seja considerada como honrada e respeitada.
A analogia parece medieval, mas ainda é válida, se percebermos que o valor
do macho na sociedade permanece, mesmo depois de muito tempo, como superior e
privilegiado. O patriarcado, modelo de organização social que coloca o homem como
chefe de família e responsável pelo controle sobre o sexo feminino, sobrevive nos
traços de uma sociedade contemporânea.
A valorização da masculinidade é tão integrada que passa despercebida
enquanto conceito, mas se colocada em exemplos práticos, como alguns expostos
aqui, podemos ver que essa percepção da sexualidade masculina como a mais
valorizada é um traço imbricado nos contornos da nossa sociedade, que podem
passar por invisíveis, se não são analisados e contestados.
A posição do homem remete ao respeito e a valores que são lidos e
considerados como superiores. A mulher, nessa hierarquia, permanece abaixo, ainda
sob influência e controle de uma sociedade masculina. A heteronormatividade, em
sua reprodução de padrões heterossexuais também reflete formulações que são lidas
como naturais, que entende que o pênis está para vagina, assim como o homem está
para mulher, e nessa equação, o homossexual não entra, muito menos o gay
afeminado, que nega sua masculinidade e privilégios de homem para se “tornar” uma
mulher ou algo parecido com uma.
Em artigo publicado no portal “Ibahia”, em 2012, intitulado “Por que a
heterossexualidade não é natural?”, o pesquisador Leandro Colling alerta sobre como
a heterossexualidade tem sido fomentada e instituída culturalmente nas sociedades
atuais e como esta concepção de sexualidade vista como natural é questionável:
27

Assim, começamos a ser criados/educados e violentados para nos comportar


ou como meninos ou como meninas. Caso não sigamos as normas,
começamos a sofrer violências verbais e/ou físicas. Ou seja, a violência
sofrida por aqueles que não seguem as normas comprova que a norma não
é natural e normal. Se assim o fosse, a violência não seria necessária, pois
todos e todas nasceriam heterossexuais! A violência é o modus operandi com
o qual a heterossexualidade sobrevive inabalável. Temos esse modelo
hegemônico de heterossexualidade à custa de muito sangue e dor
(COLLING, 2012)

Voltando ao universo infantil, podemos ressaltar que enquanto carrinhos, bolas,


barquinhos, pistolas de água são dadas para os meninos – entre outros exemplos de
brinquedos que permitem e incentivam os homens a saírem e expressar em sua
energia fora de casa – para as meninas, cozinhas, roupinhas, máquinas de costurar,
bonecas são dadas para cultivar e incentivar seus sentidos de cuidado e zelo, bem
como para perpetuar o desejo materno, que nessa perspectiva surge como inerente e
necessário a toda mulher.
O machismo, ideal que supervaloriza o comportamento masculino à medida
que subjuga os valores compreendidos como femininos, está profundamente fixado
em nossa sociedade. Presente em todo canto, valores arraigados nessa perspectiva
ditam e definem o comportamento socialmente aceito. Figuram, comumente, como
elementos que compõem a honra e a moral, sendo necessários na formação do
homem enquanto ser social.
A mulher continua como figura de menor valor nessa ótica, e mesmo que não
percebamos, essas formulações machistas e misóginas são refletidas em todos nós
que, como produtos de uma cultura e um tempo, somos influenciados e educados a
pensar e reproduzir esses estigmas de comportamento.
Sendo assim, é preciso atentar antes de lermos um corpo e seu respectivo
gênero como algo pura e simplesmente natural. É necessário refletir, dentro do
contexto em que estamos inseridos, que valores se sobressaem e são anexados
aquele corpo, aquele sexo. Que leitura social existe sobre aquilo?
Érick Araújo, farmacêutico de 29 anos, fala que também passou por processos
de regulação semelhantes dos citados aqui durante sua infância. Diz que era mais
meigo e carinhoso quando criança, que gostava de abraçar o pai e mexer no cabelo
das tias nessa época, mas aos poucos foi percebendo que tais gestos começaram a
não ser tão bem vistos pelos familiares e que, a partir de então, ele foi se moldando e
disfarçando que não tinha interesse por alguns comportamentos que eram vinculados
28

ao feminino, como fazer trança no cabelo, habilidade que ele desenvolveu com uma
prima e que diz ter sido fascinado em uma época. Ele estava deixando de ser um
menino e se tornando um homem, como relata. Guarda na memória até hoje um
episódio que o marcou e conta:

Lembro de uma vez que eu estava vendo um ballet e eu achei aquilo muito
bonito. Eu era criança, bem criança, e acho que comecei a tentar imitar
alguém que estava dançando e minha irmã viu. Ela fazia ballet também na
época e me repreendeu. Ela falou: “Olha, você não pode fazer isso! Não pode
dançar assim, porque isso é coisa de menina”. Foi bem chocante para mim.
Eu lembro que eu fiquei mal. E fui começando a entender nesse momento
que eu estava sendo podado.

Quando um homem abandona sua masculinidade, ele não só está negando o


seu pênis, e o poder historicamente atribuído ao portador do falo, como também está
se colocando numa categoria de inferioridade, de feminilidade. A partir da leitura social
que o que está relacionado com o feminino permanece em diversos momentos como
sendo menor ou aquém, quando assume uma performance que não a de homem
masculino, esse homossexual afronta limites e normas de uma sexualidade
convencional e de um corpo normatizado.
A feminilidade quando presente na figura do homem é lida como incoerente,
imprópria. Sua expressão é muitas vezes contestada e frequentemente regulada e
punida, pelas mais diversas tecnologias sociais de repreensão.

A discreta vs. a pintosa

Os perfis sociais são muito bem segmentados e procuram definir e delimitar o


espaço e a performance própria de cada gênero. Contudo, essas performances, como
já foi mencionado, não se conformam numa definição simplista e extrapolam em suas
formulações.
O homem, masculino, hétero, branco, classe média, é o ideal de perfil e
comportamento social que parece ser lido como normal e padrão em nossa sociedade.
A mulher, feminina, hétero, branca e também de classe média é o seu par ideal. Essas
formulações baseadas nos valores que temos em nossa cultura são, sem dúvida,
parte de uma formulação histórica. E refletem diretamente em nosso comportamento
social.
29

A homossexualidade desenhada nessa constituição também tem um padrão.


Ela tem feições de heterossexualidade. O gay aceitável nesse esquema é, como já
mencionado, o masculino, branco, de classe média. Seu único desvio, digamos assim,
é sua sexualidade que foge do padrão. Apesar disso, ele ainda consegue se “misturar”
com o resto dos homens héteros, pois, numa leitura rápida, ele pode não ter sua
identidade homossexual identificada.
Se permanecer e exercer sua sexualidade em segredo, e estritamente nessa
condição, esse homossexual é aceito. Nessa perspectiva, impõe-se o anonimato, o
local privado, entre quatro paredes, na intimidade, como único ambiente que a
sexualidade pode ser exercida, para que não agrida ou ofenda os outros ao seu redor.
Ao mesmo tempo em que heterossexuais podem expressar sua sexualidade
livremente em qualquer lugar. Esses reflexos são de uma política de higienização
própria do homem vitoriano, e cultivados até os dias de hoje.Pensamento que ainda
pode ser ouvido em discursos, não raro presenciados, como: “eu aceito gays, desde
que não se relacionem na minha frente”.
Expressar-se livremente parece também um tabu entre muitos homens não-
heterossexuais. E a mesma história se repete. “Ser gay tudo bem, mas precisa
realmente ser tão extravagante? Precisa se fazer notar o tempo todo?” Mesmo entre
homossexuais, o que se cobra é que tem que “se dar o respeito” e “saber se portar”,
o mesmo que se cobra da mulher, se fizermos uma comparação a grosso modo.
“Quanto mais invisível você conseguir ser, melhor”, diz nosso entrevistado,
Érick Araújo, em resposta ao que entende que é preciso para ter sua sexualidade
aceita socialmente. “Mesmo entre os homossexuais, quanto mais você parecer um
heterossexual, mais você vai ser bem visto, inclusive pelos heterossexuais, que
acham que você apresentar comportamentos mais femininos ou mais delicados,
significa que você está querendo chamar atenção”, conta ele.
Jô Assumpção, de 23 anos, é estudante de pedagogia na Universidade Federal
Fluminense. Bicha, preta e de comunidade, como se descreve, ele é militante de
movimentos sociais pela diversidade sexual e de gênero, e incentiva o
empoderamento do discurso dessa bicha afeminada e discriminada. Ele observa que
o preconceito dentro do meio social é endêmico. “Gay também tem preconceito”, diz.
Jô relata que também passou por esses processos de educação normatizadores, e
que sua luta pela desconstrução desses ideais em sua formação tem de ser constante.
30

O entrevistado revela que a universidade foi para ele um espaço de informação


e discussão, relativo à questão de gênero, e também um caminho para se afirmar
sexualmente. Criador e administrador de um grupo fechado na rede social Facebook
intitulado Sou/Curto afeminadxs6, que contava com mais de 720 membros, até a data
de fechamento deste ensaio, através do grupo ele incentiva o debate do processo
discursivo que posiciona os homossexuais afeminados como maiores focos do
estigma sexual.
Jô acredita que é preciso sempre estar colocando essa discussão de gênero e
expressão sexual em pauta, para que as desconstruções sejam também presentes e
contínuas. A descrição do grupo é provocadora e afirma que lá não serão aceitos
preconceitos e formulações opressoras de qualquer natureza. “Então, esse grupo tem
a intenção não só de empoderamento da nossa feminilidade, mas também de nós,
afeminadas, questionarmos os nossos próprios desejos. Por que eu, enquanto
pintosa, desejo o homem nos padrões heterossexuais? Não estaria nesse momento
reproduzindo uma lógica heteronormativa de relacionamento? Estamos aqui para
pensar sobre tudo isso”, argumenta em parte da descrição.
Jô afirma que sentiu a necessidade de criar esse espaço de discussão e de
empoderamento da expressão afeminada, e diz que lá as afeminadas se sentem livres
para expressar seus discursos, colocar em prática suas paqueras e exibir suas fotos
montadas com signos femininos, que em outros locais ele acredita que essa abertura
não seria tão grande. Posicionando-se politicamente, o espaço mostra-se como local
de interação descontraída entre as afeminadas, mas também de embates constantes.
A todos que entrevistei curioso em saber o que iam dizer, fiz a mesma pergunta:
existe algum perfil de homossexual que é mais aceito que outro? Apesar das
respostas serem diversas, todas elas tinham em comum a mesma linha de discurso.
Sim, existe. Aquele gay que é discreto e reproduz os modos de masculinidade da
heteronormatividade é, com certeza, mais aceito – me disseram eles.
A formulação das respostas confirmou o que já podia se notar na vivência em
ambientes gays, que o grupo privilegiado é composto por aqueles que se identificam
como machinhos, boys, barbies ou discretos. Eles têm um corpo geralmente mais
fortalecido por treino físico, fato que procura evidenciar corporalmente sua virilidade,

6Disponível em <https://www.facebook.com/groups/1417984535129584/?fref=ts>. Acessado em: 16


de dezembro de 2014.
31

são mais contidos em seu comportamento e vestimenta, e procuram eliminar ou


extinguir referências em seu corpo e suas atitudes que não possam ser lidas como
masculinas.
Eles procuram performar sua masculinidade e com isso assumem e reivindicam
os privilégios que um homem tem socialmente. Eles se apresentam enquanto
superiores e legitimados. Suas representações de macho parece ser a chave para
permanecer no topo dessa hierarquia de perfis.
Seus modos lhe garantem domínio sobre aquelas bichas mais pintosas,
femininas, pão com ovo. Essas, que são marcadas essencialmente por uma leitura
mais feminina ou andrógina, não estão no mesmo parâmetro. Elas são as
escandalosas, aquelas “que não se dão o respeito”, “que sujam o nome dos gays” e
são as que sofrem mais preconceito dentro dessa formulação social.
O gay masculino permanece como sendo o topo do desejo e a referência de
comportamento dentro dessa leitura legítima de homossexualidade. Sua formulação
enquanto identidade é tão social quanto qualquer outra. Nada há de natural nesse
jeito masculino que procura-se forjar nas qualidades do corpo.
Esse gay masculinizado é a expressão que define o papel das outras dentro
dessa estrutura. Enquanto ela adquire status de aceitável e padrão, a sua oposição
figura para além da margem. A afeminada é a mulher nessa comparação social, e
permanente mais oprimida e estigmatizada em suas ações.
A formulação coloca o gay masculino como o perfil de desejo. Seu corpo e
virilidade são instituídas como padrão dentro dessa composição. Ao mesmo tempo,
discursos como “não sou nem curto afeminadas” são facilmente encontrados em sites
de pegação ou aplicativos de paquera gay.7
Neles, enquanto locais sociais, vemos a reprodução mais clara desse discurso.
O claro repúdio por gays que escapam da leitura de masculinidade é colocado
frequentemente. Talvez porque nesses locais, a identidade real da pessoa que fala
estaria protegida por um simulacro digital criado por ela. Resguardados de certa forma
pelo anonimato, pode-se ver como essas reproduções da masculinidade enquanto
superior são frequentes e recriminadoras.
A partir desse pressuposto, podemos entender que, se decodificado enquanto
homem gay afeminado, portanto assimilado a uma leitura de passividade, acaba

7Os aplicativos aos quais me refiro estão disponíveis para internet em redes móveis. Os mais
conhecidos são Tinder, Grindr e Scruff.
32

sendo menos aceito exatamente pela sua associação com a submissão que é
característica da mulher, "fraca", "sensível" e "tranquila", opostos daquilo que definem
os homens. Nessa contramão, e sendo geralmente melhor aceito, o homem gay que
está de acordo com os padrões de um “homem de verdade” é quem se privilegia, pois
não parece gay e, portanto, atende à sua "masculinidade".
A masculinidade tem sido construída enquanto condição irrevogável na nossa
sociedade. Ser homem, mesmo que seja gay, e não corresponder aos paradigmas
masculinos, é visto como algo inaceitável. O professor Luiz Henrique Colleto discorre
sobre como em nossa cultura essa hierarquia entre gay afeminado e gay
masculinizado é uma herança social antiga e como isso acaba passando
despercebido:

É por isso, portanto, que nesta nossa cultura: gay viril > gay afeminado; e
mais: gay viril é sinônimo de gay cuja orientação sexual passe despercebida
em função da expressão de gênero muito próxima daquela esperada de
homens héteros viris. Não custa lembrar, igualmente, que: hétero viril > gay
viril > gay afeminado, hierarquia que reitera a heteronormatividade
(COLLETO, 2014).

É comum observamos como existe cada vez mais, entre os próprios gays, uma
homofobia velada ou escancarada instituída pela heteronormatividade, travestida de
“preferência ou gosto”.
Comentários ofensivos que vemos tanto no meio digital quanto fora dele, como
“é esse tipo de bicha que aumenta o preconceito” ou “esse tipo de gay escandaloso
não merece respeito”, revelam uma retaliação preocupante ao gay afeminado,
pintoso, e também deixa claro como outras formas de pensar a diversidade de
performances de gênero e as orientações sexuais ainda são ofuscadas pela fórmula
heterossexual.
Rodrigo Fernandes, 23 anos, estudante de Administração, conta que se
identifica com o perfil de homossexual mais discreto e mais masculino. Acredita que
se comporta dessa maneira não tanto pela aprovação dos outros, mas sobretudo para
sua própria aceitação. “Ainda tenho isso da preocupação de parecer masculino, de
parecer viril. Eu preciso dessa virilidade, desse comportamento padrão para me sentir
melhor comigo mesmo”, acredita. Ele diz que “não curte afeminados”, mas argumenta
que isso é uma questão de gosto, da mesma forma que para ele tem gente que não
tem prazer com pessoas mais masculinas e que por isso procuram perfis mais
33

afeminados. “Acabo me relacionando com pessoas com uma certa masculinidade. Eu


não consigo sentir desejo sexual por pessoas muito extravagantes, com gays muito
femininos. Na parte de convivência, até rola tranquilamente, mas a parte do desejo
sexual, não vem”, diz.
Rodrigo comenta que já tentou quebrar mais esse preconceito, mas que ainda
não conseguiu totalmente, e revela que durante muito tempo não achou certo essa
forma de expressão. Até hoje, diz ele, acha um exagero o comportamento de alguns
deles, mas não chega a verbalizar essa repressão para ninguém. Entre seus amigos,
o que reina é o culto ao corpo e a virilidade, expressões que, na visão dele, dão
segurança para que possam se relacionar socialmente com outros homens. Quando
está em locais públicos com seus amigos diz que por vezes já presenciou e participou
de momentos em que se colocava em discussão, por brincadeira ou malícia, ou por
puro preconceito, como relata, a expressão das afeminadas. “Olha quem chegou, a
bichinha, a gazela”, exemplifica.
Diógenes Mendonça, 24 anos, cenógrafo, me diz que entende a rejeição de
homossexuais mais afeminados com base na questão do gosto também, e que não
vê problema nessa preferência. Para ele, existe a possibilidade de alguém não ter
desejo e/ou não estar interessado em um perfil mais afeminado. Apesar disso,
reconhece que essa expressão de feminilidade não é bem lida no meio social de
grupos gays e frequentemente mais violentada e discriminada.

O passivo vs. o ativo

Para o estudante Dayvson Lima, 23 anos, essa construção de perfis e


segmentação por preferências tem base no fato de que o meio social em que vivemos
é machista e misógino, e que isso reflete diretamente na forma como as pessoas veem
as relações homossexuais. Ele diz que as posições sexuais também são
estabelecidas com base no corpo e comportamento, o que define, reforça e sustenta
um sistema de hierarquia a partir do feminino e do masculino.
Para ele, existe uma concepção formada de que o passivo é aquele da relação
que é visto como menor e mais desvalorizado, justamente por ser visto como “mulher”
da situação. “Então se você é o passivo, você sofre preconceito”, diz. Ele percebe
como isso é cristalizado socialmente, sendo muitas vezes o gay passivo diminuído por
essa posição considerada submissa, ao passo que o gay ativo faz o caminho oposto.
34

Uma questão posta e que pode ser esclarecedora nesse ponto, é a reflexão
sobre as posições sexuais enquanto também posições de poder. Ser ativo ou ser
passivo pode revelar uma leitura de compreensão social além de formas de sentir e
dar prazer.
Muitos homens gays têm preconceito e rejeição em querer ser passivo ou
assumir seu desejo em ter relações sexuais que não com o pênis. Se colocar enquanto
passivo também parece estar ligado a se colocar enquanto submisso e inferior.
Novamente uma assimilação com a posição feminina que muitas vezes se quer evitar.
Enquanto ativo, por outro lado, reforça-se uma sexualidade de poder, de
penetração, de uso do falo para comandar a relação. Quem é penetrado, pode ser
entendido como subjugado e fraco. Deixar-se sentir prazer com o ânus parece
impensável para alguns homens gays.
A associação de poder que se faz nessa leitura da posição sexual supõe quem
fica por cima ou por baixo, quem come e quem é comido, quem dá prazer e como
sente esse prazer, mas a colocação de ativo e de passivo parece acima de tudo querer
dizer quem é “o homem” e quem é “a mulher” da relação. Postulando a relação mais
uma vez sobre binarismos definidores. Essa rotulação a partir do corpo e do
comportamento dos homens gays, no entanto, é falha e baseada em estereótipos.
Nada impede que um homem gay com expressão mais feminina sinta prazer
exclusivamente na posição de ativo, ou que sinta desejo em ser versátil (que assume
as duas posições). No exemplo contrário, um homossexual com performance mais
masculina, pode também sentir prazer apenas como passivo. Logo, essas leituras se
mostram vazias e segmentadoras, objetivam, sobretudo, encaixar o ser em uma
identidade limitada e definida. Em um esquema binário social cristalizado e aceitável.
Alguns homens se relacionam no papel de ativo com outros homens, mas não
se identificam enquanto homossexuais – por preconceito, por medo de quebrar uma
expectativa dos que estão ao seu redor ou por não se verem naquela identidade e
preferirem a comodidade atribuída à identidade padrão. Por vezes, permanecem
assumindo uma posição de heterossexual argumentando que gay mesmo é o passivo,
por isso, para eles, sua posição de heterossexual permanece inabalável.
35

A descoberta da homossexualidade

O momento de descoberta da própria sexualidade aparece como algo estranho


e diferente. Foi o que ouvi em grande parte dos depoimentos colhidos. A compreensão
de que sua sexualidade era estranha das demais chegou cedo para eles, na infância,
mais tardar na transição para a adolescência. Diógenes, Érick, Rodrigo, Jô, Dayvson
e Brune têm histórias de vidas distintas e seus processos de descoberta do desejo e
do corpo também são diversos, findando na identidade homossexual, e apesar de não
seguirem uma fórmula coesa, se esbarram nos processos comuns de regulação
referentes à nossa cultura.
A percepção que Diógenes, 24 anos, não era “igual” aos seus irmãos, como ele
diz, ficou evidente quando ainda era criança. Conta que foi o único dos irmãos que os
pais levaram para o psicólogo, e que naquele momento soou na cabeça dele “tem
algo estranho comigo”. A comparação constante com um irmão que tem apenas um
ano de diferença sempre lhe lembrava que ele era diferente. “E, claro, aquelas
mesmas histórias: eu não jogava bola, não tinha amizade com outros meninos, era
mais sensível, mais observador”, completa.
Diz que seu pai ressaltava nele essa sensibilidade. E que chegou a cobrar dele,
muito depois, que se portasse de um jeito mais másculo. “Quando você andar, mexa
menos os braços. O jeito que você escreve – se debruçando de lado sobre a mesa –
não faça mais isso! Sentar assim de pernas cruzadas não é coisa de homem”, lembra
até hoje a cartilha de coisas que seu pai disse que ele precisava melhorar. Diógenes
acredita que o desejo pelo mesmo sexo também era evidente para ele, mas prefere
colocar esse aspecto como algo construído. Na adolescência, cercado de referências
católicas pela família, que entendia a homossexualidade como pecado, e pressionado
pelos próximos, conta que se tornou mais fechado e introvertido. “A família me olhava
diferente, os coleguinhas me olhavam diferente, e eu acho que você vai alimentando
esse feedback dos outros. E eu comecei a me sentir mal quando percebi que para os
outros isso era uma coisa muito errada.”, diz
Érick, 29 anos, também vem de família católica e fala que fez até promessa
para não se relacionar com homem. “Era um desejo muito forte para mim. Então, eu
falava: Meu Deus, por favor, não permita que eu transe com outro cara, que eu
prometo não fazer isso ou aquilo”, diz ele se referindo ao que prometia a Deus em
troca da liberdade de seu desejo homossexual.
36

Apesar de reprimir desde muito cedo sua sexualidade, por perceber que aquilo
que sentia e queria expressar não era bem visto pela sua família, nem pela religião
que congregava, conta que seus esforços eram vãos, e que mesmo se
comprometendo em não mais sentir aquilo, pegava-se logo depois se masturbando
pensando em outro homem.
Érick lembra que nos anos 1990, quando ainda era criança, sentia uma atração
estranha e interessante por alguns clipes de bandas da época que passavam em um
canal televisivo de música, MTV. Via Anthony Kiedis, do Red Hot Chili Peppers sem
camisa e ficava interessado, via Kurt Cobain, do Nirvana, e aquilo lhe fascinava. “Eu
me apaixonava por todas essas pessoas. Então eu acho que sabia o que estava
rolando nessa época”, conta.
A história com Brune, 26 anos, assistente social, foi diferente. Criado em uma
casa chefiada por mulheres, conta que tomava elas como exemplo e sua expressão
social era refletida por referências femininas. Diz que, apesar de não compreender,
sua expressão sexual foi lida pelos que estavam a sua volta. Lembra: “Eu sempre fui
um menino afeminado. Na verdade, a provocação da minha sexualidade surgiu dos
outros. Eu nem ligava e nem sabia o que era isso. Por estar inserido numa família que
era chefiada por mulheres, seria normal ter um comportamento mais voltado para o
feminino”.
A expressão feminina representada por Brune não foi, em sua infância,
passada despercebida em ambientes sociais como a escola, por exemplo. Ele revela
que era violentado, por palavras com conotação negativa, mas elas não chegavam a
lhe atingir naquele período por falta de compreensão do seu sentido. Apesar disso,
ele diz que sempre transitou bem no ambiente escolar, era popular e conversava com
todos.
O momento da descrição dessa transição do período de descoberta é marcado
por alguns deles como um obstáculo a ser vencido. A leitura que alguns relatam desse
processo é de que aquele sentimento, desejo, e seu comportamento eram duplamente
repreendidos. Pelos que estavam a sua volta, mas principalmente por eles mesmos.
É o caso do Rodrigo Fernandes, de 23 anos. Em sua família, existia uma
abertura maior e uma compreensão da homossexualidade. Conta que sempre foi
presente a existência de outros gays que faziam parte do convívio familiar, e que
naquele contexto isso era entendido de maneira mais natural.
37

Relata que na sua infância, tudo nele delatava que não era um menino de
comportamento mais “padrão”. Rodrigo, assim como Diógenes, 24 anos, fala que não
era afeito a brincadeiras lidas como de menino e que acompanhava-se na escola mais
por meninas. Logo, a percepção de que era uma criança estranha, que estava fora do
considerado normal, lhe chegou.
Nesse processo de descoberta, seu maior repressor e regulador foi ele mesmo.
Ele sabia o que era, mas não queria aceitar, diz. Achava que era errado pensar e ser
assim, e por muitos anos foi constante o controle que imprimia sobre seu
comportamento. “No meu consciente eu sempre soube que eu era homossexual. Mas
por muito tempo eu não tive coragem de praticar, de ficar com outros homens”, explica.
Rodrigo diz que por um tempo recusou-se a mudar o seu jeito, apesar das
chacotas que vez por outra lhe direcionavam, mas na adolescência, aproveitando a
mudança do corpo na puberdade, foi tentando assumir uma postura mais masculina,
empostando a voz e modelando um jeito diferente, para adequar seu comportamento
ao que entendia como masculino. Em todo o processo, do desejo à aceitação pessoal
de sua sexualidade, conta que demorou quase uma década.
Nos depoimentos, o processo da descoberta da homossexualidade aparece
como algo não natural e repetidamente condenável. O desejo de mudar e se apropriar
à norma, digamos assim, acaba também se tornando um processo comum. A leitura
da homossexualidade como perversão ou pecado é instituída discursivamente em
nossa cultura, e consequentemente reproduzida e reiterada socialmente.
Contudo, a proposição dessa identidade homossexual estigmatizada é um
processo social relativamente recente. No final do século XIX, com o advento da
sexologia, a formulação e a naturalização de um modelo de sexualidade a partir de
dados pertinentes ao comportamento sexual e ao corpo do homem e da mulher são
empregadas e reproduzidas, passa-se, então, a definir e marcar aquele sujeito
desviante que não se comporta em consonância com o modelo heterossexual
desenhado à época.
Esses seres são descritos como uma oposição do perfil de homem
heterossexual e medidos e reconhecidos como dissonantes e inferiores. Seu lugar
assume, nesse contexto, uma posição de incômodo e que deve ser destinada ao
segredo. Classificados enquanto sujeitos que não merecem legitimidade, por não
corresponderem ao estabelecido enquanto fórmula padrão social, tornam-se
38

frequentemente, ao longo da história, alvos de uma política higienista e de crítica


constante.
A autora Guacira Lopes Louro faz uma leitura desse período em que o
comportamento das classes média e alta dos grupos brancos das sociedades urbanas
ocidentais se constituem como referência para estabelecer as práticas moralmente
apropriadas e higienicamente sãs:

Nas décadas finais do século XIX, homens vitorianos, médicos e também


filósofos, moralistas e pensadores fazem ‘descobertas’, definições e
classificações sobre os corpos de homens e mulheres. Suas proclamações
têm expressivos e persistentes efeitos de verdade. A partir de seu olhar
‘autorizado’, diferenças entre sujeitos e práticas sexuais são inapelavelmente
estabelecidas (LOURO, 2004, p.79)

Jeffrey Weeks, em “O corpo e a sexualidade”, afirma que “nossas definições,


convenções, crenças, e identidade e comportamentos sexuais não são resultado de
uma simples evolução, como se tivessem sido causados por algum fenômeno natural:
eles têm sido modelados no interior de relações definidas de poder.” (WEEKS, 2000,
p.28)
Um dos maiores críticos do modelo essencialista, comum nessa época –
posicionamento que coloca a sexualidade como natural ou parte da essência – é
Foucault, em seu estudo “História da Sexualidade I: A vontade de Saber (1999)”. Ele
aponta que a sexualidade é reflexo de um aparato social e um processo de
construção, ao mesmo tempo em que desqualifica a ideia de que a sexualidade é
parte de uma essência interior ou uma energia que emana dos corpos e define por
completo um esquema de sexualidade complexo.
Refletindo sobre os meandros da construção da sexualidade e a forma como
essa regulação opera através da história na sociedade ocidental, Foucault argumenta
que esse dispositivo de poder está inserido nas relações e definições sociais de modo
geral e funciona como forma delimitadora de espaços, expondo que pressupõe as
características das identidades dos seres como marcas de seu local social, sendo
hierarquizados e classificados a partir do momento que se institui a
heterossexualidade como modelo.
Foucault explicita que a produção da sexualidade dá-se por meio dos discursos.
Ele argumenta que invenção da homossexualidade e do homossexual surgem como
reflexo desse modelo social, e mostra que as identidades sociais são efeitos da forma
como o conhecimento é organizado e que essa produção de identidades é
39

“naturalizada” e esquematiza a partir dos saberes dominantes. Para ele, sua descrição
é, ao mesmo tempo, meio de normalizar e aplicar limites das formas aceitáveis e
perversas (MISKOLCI, 2009, p.153)
Nas décadas de 1970 e 1980, em busca de se colocar politicamente contra
essa instituição social que relegava os homossexuais à margem, ganha força e
visibilidade, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, os
movimentos de minorias capitaneados por gays e lésbicas, que propunham,
sobretudo, a integração e aceitação dos homossexuais no contexto social.
Embora tivessem o intuito de tirar a identidade homossexual do lugar incômodo,
esses movimentos de sexualidades não-hegemônicas acabam, aparentemente,
naturalizando a heterossexualidade, quando colocavam em pauta padrões e
incentivavam ideais heteronormativo, como relacionamento monogâmico, por
exemplo, para proporcionar uma integração desse grupo estigmatizado.

Movimentos assimilacionistas e a Teoria Queer

Em oposição a esses estudos de minorias, protagonizados principalmente


pelos movimentos gay e lésbico, propondo a integração dos homossexuais no sistema
social heteronormativo, surge a Teoria Queer8.
Os teóricos/as propunham problematizar essas reflexões de sexualidade
dominante e dominada que estavam sendo reproduzidas pelos movimentos
assimilacionistas e integracionistas. Instigavam a pensar que essa divisão e colocação
da sexualidade em identidades muito bem segmentadas era mais uma vez excludente
e problemática, e que por pressuposto apenas reforçava parâmetros de hierarquia já
tão imbricados no tecido social.
Esse discurso político e teórico investido pelos movimentos gays e lésbicos
tentava produzir uma representação “positiva” da homossexualidade, mas também
estimulava, ao mesmo tempo, um efeito regulador e disciplinador (LOURO, 2004). “Ao
afirmar uma posição-de-sujeito, supõe, necessariamente, o estabelecimento de seus
contornos, seus limites, suas possibilidades e restrições.” (LOURO, 2004, p.33)

8 O termo queer é muito usado na língua inglesa como um insulto aos homo-orientados. Sua conotação
pejorativa começa a ser agregada pelos teóricos/as queer numa perspectiva de ressignificação. Eles
propõem a necessidade de assumir essa diferença e a força de sua estranheza como elemento de
transgressão.
40

Nessa esquematização integracionista, em busca de uma igualdade de direitos


na sociedade, empenhava-se em afirmar discursivamente uma identidade
homossexual, contudo, colocava-se à margem outras identidades sexuais que não
estavam nessa formulação, como os bissexuais ou transexuais, por exemplo. Nesse
contexto, Guacira Lopes Louro diz que:

Para muitos (especialmente para os grupos negros, latinos e jovens), as


campanhas políticas estavam marcadas pelos valores brancos e de classe
média e adotavam, sem questionar, ideias convencionais, como o
relacionamento comprometido e monogâmico. (LOURO, 2004)

A Teoria Queer contrapõe essa corrente de movimentos e joga luz na


reprodução de valores binários desse grupo. Aponta para um caminho distinto, os
teóricos queers propõem a desconstrução de formulações heteronormativas e
questionamento de seus privilégios.
Sua formulação enquanto teoria instiga a problematização de noções clássicas
de sujeito, de identidade, de agência e de identificação. Bebendo em fontes como os
estudos sobre a sexualidade empreendidos por Foucault, os Estudos Culturais, que
se desenvolviam nos Estados Unidos, e as reflexões do pós-estruturalismo, surgido
na França, os teóricos dos estudos queers empregam o sujeito como um ser de
identidade fluída e em constante formação. Apesar disso, eles não rejeitam o uso e
conceito de identidades, mas apontam que esse sistema de formulações pré-definidas
é falho e impreciso, por isso precisa estar em constante avaliação e discussão, pois
os seres não se delimitam de maneira tão esquemática.
A expressão queer para denominar esse conjunto de estudos é usada pela
primeira vez nos anos 1990, por Teresa de Lauretis, e reunia uma série de críticas as
construções que eram debatidas pelos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e
de gênero (MISKOLCI, 2009, p.151).
Sobre a escolha do termo queer, Louro disserta:

Esse termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido


por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para
caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo,
queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier.
Seu alvo mais imediato de oposição, certamente, a heteronormatividade
compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica a normalização
e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento
homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não
quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais
transgressiva e perturbadora. (LOURO, 2004, p.38)
41

A expressão adquire força e outra significação dentro dos estudos queer. Seu
posicionamento é político e libertário, mas também contestador e transgressor.
Leandro Colling nos apresenta uma definição mais crua e nos provoca a partir de
questionamentos que ele diz pertinentes aos teóricos desse movimento:

Queer é uma conhecida forma de insultar homossexuais, algo como viado,


sapatão, boiola etc. Os queer desejavam re-significar e positivar esse insulto.
“Sou mesmo viado e daí? Quero ser viado, dou meu cu, e daí? Qual é o
problema? Se você goza através de uma parte do seu corpo, por que eu não
posso gozar com outra? Quem deve dizer como eu devo gozar? Como
chegamos a essas determinações?” Questões e provocações como essas
povoam os estudos queer” (COLLING, 2012, p.115).

Os estudos queers agregam o conceito de Jacques Lacan que problematiza as


definições de agência e de sujeito, ao afirmar que o sujeito nasce e cresce sob o olhar
do outro, e que ele se percebe e se constitui nos termos do outro. (LOURO, 2004)
Sendo assim, é possível entender que nossa identidade é formada em
conjunto, e a expressão de gênero sempre está ligada à construção do outro.
Embora configure como a anti-norma, o perfil do homossexual figura como o limite
necessário na sociedade, e uma definição só existe em contraponto com a outra. Não
há como definir a heterossexualidade, se não houver a homossexualidade. Usando o
processo de desconstrução de Jacques Derrida como metodologia crítica, os teóricos
queer pressupõem a desestabilização e desordenamento dos pares binários.
Butler (2006, p.22 apud MISKOLCI, 2007, p.256) diz que “a teoria queer volta-
se contra a legislação não-voluntária da identidade e, neste sentido, busca desvelar
os mecanismos que estabelecem imposições identitárias”.
Para Guacira Lopes Louro:

O grande desafio dessa não é apenas assumir que as posições de gênero e


sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas apoiadas
em esquemas binários; mas também admitir que as fronteiras vêm sendo
constantemente atravessadas [...] e que o lugar social no qual alguns sujeitos
vivem é exatamente a fronteira (LOURO, 2004, p.28).

A bicha pão com ovo, a bicha queer

Lembro de ouvir a expressão bicha pão com ovo não só como forma de
escárnio com o outro, mas também como forma de exclusão, tanto de quem assim é
chamado quanto de quem chama. Sim, pois quem chama, de alguma forma acredita
42

ser “melhor” ou “superior” do que quem recebe a denominação. Quem usa o termo
como forma de agredir, não se acha em nada parecido com quem, para ele, merece
a designação de pão com ovo. Não há semelhanças entre o agressor e o agredido,
na visão de quem agride, nesse caso. E cria-se uma exclusão dupla, onde os grupos
evitam o contato e entre eles não há interação.
Passando a ser o alvo central das críticas de homossexuais e heterossexuais,
justamente por ser aquele grupo que não tem receio de se expor e se portar da
maneira que quiser, brincando com os signos femininos e masculinos, fazendo do
corpo um espaço de experimento, a bicha pão com ovo tem uma estética e uma
expressão de choque. Sem medo de usar um shortinho curto, uma blusinha apertada,
um adereço no cabelo, um lápis e sombra nos olhos, uma boca marcada, ela é
transgressora e perturba em sua performance. Sua essência é queer, de afronta e de
assumir essa postura da diferença que não quer ser assimilada, como diz Louro sobre
o que é queer. Parece que o medo, para eles, foi deixado no armário.
A ruptura com a estética intocável da masculinidade que ela promove, garante-
lhe um espaço de incômodo e de estigma social no ambiente em que convive e por
onde passa, sendo constantemente vítima de repressões e violências verbais e
físicas. Além de sua expressão de gênero ser estigmatizada, a partir das regras
sociais de sua cultura, ela geralmente também é pobre e favelada. Vive na periferia
em sua expressão sexual, vive na periferia socioeconômica em sua cidade, vive na
periferia e marginalidade na luta por reconhecimento social e respeito.
Jô Assumpção, 23 anos, acredita que a bicha pão com ovo não é simplesmente
uma bicha pintosa e afeminada, ele diz que esse título “está ligado também a um lugar
de poder social e aquisitivo”. Para ele, existe uma diferença nas nomeações dos perfis
não-heterossexuais masculinos, que ele acredita ser sutil mas aplicável:
“homossexual seria aquele gay que é mais machinho; o gay, propriamente dito, seria
aquele que tem traços de feminilidade mas tem dinheiro, certa condição financeira; o
viado e a bicha são aqueles mais pobres e também afeminadas, logo marginalizados.
Aí se encaixa a bicha pão com ovo”, disserta.
Jô se coloca enquanto pão com ovo. Logo no começo da entrevista, me diz que
o fato dele ser bicha, preta e de comunidade lhe tornam alvo dessa nomeação. Sua
performance, como diz, é extremamente feminina e transgressora. Para ele, esse
posicionamento de empoderamento do discurso e da feminilidade surge como forma
política e de contraposição ao padrão social, embora, argumenta ele, geralmente as
43

bichas acabem por reproduzir o discurso opressor, devido às condições sociais e


históricas de repressão, do que se empoderando de um discurso de embate e
afirmação. “Em muitos casos, reproduzem a educação heteronormativa que tiveram”,
conta.
Érick Araújo, 29 anos, acredita que a expressão é geralmente usada em dois
momentos: quando se quer “alfinetar” alguém, e usa-se a expressão para colocá-lo
num lugar de ridículo, e quando refere-se a uma bicha de periferia, em uma conotação
mais agressiva. Para ele, a bicha pão com ovo é marginalizada, mesmo no próprio
meio gay, onde também é constantemente recriminada. Diz que em João Pessoa,
onde vive, não se encontra com esse perfil que entende por pão com ovo por estarem
em classes sociais diferentes e não frequentarem os mesmos ambientes.
Ele descreve esse perfil da seguinte forma:

A bicha pão com ovo geralmente não liga muito pra masculinidade dela não.
Pelo contrário, ela se enfeita, às vezes usa salto, ela gosta de estar colorida;
ela dança sem se importar do que tão pensando dela. Está muito segura com
o shortinho beira cu dela, com o cabelo descolorido, e tá nem aí. É realmente
a bicha de periferia que tem aquela personalidade que brilha por não se
importar com nada e nem com ninguém. Tem aquela segurança que a gente
vai passar o resto da vida tentando ter e não vai conseguir alcançar.

Diógenes Mendonça, 24 anos, diz que hoje a leitura que faz da bicha pão com
ovo é diferente do que ele acredita que diria anos atrás. “Agora, nesse momento, eu
vejo esse posicionamento como algo extremamente político”. No seu modo de se
vestir, no seu cabelo, na sua “extravagância”, ele diz que essa bicha não passa sem
ser notada, e que justamente por isso sua presença incomoda. Diz que o preconceito
em cima dessa expressão é extremamente forte e parte de todo canto, héteros e
homossexuais, e ele não se tira da reta, como diz. Porém, reconhece: “quem dá a
cara a tapa são elas”. Para ele, esse posicionamento é forte, político e essencialmente
importante, mas diz que não tem a certeza que a bicha pão com ovo tenha a noção
de seu poder de transgressão.
Rodrigo Fernandes, 23 anos, acredita que o preconceito sofrido por esse perfil
deve-se ao fato dele não ser coerente e não está encaixado socialmente de uma
maneira muito positiva. Confessa que já usou a expressão em diversas ocasiões, mas
essencialmente descreve a bicha pão com ovo como aquela que está deslocada do
meio social por ser incoerente na forma que se expressa. “Por exemplo, uma bicha
44

feminina que tenta se inserir no meio heteronormativo, ela vai ser chamada de bicha
pão com ovo (sic)”, coloca.
O perfil descrito por Dayvson Lima, 23 anos, para bicha pão ovo é de um gay
mais pintoso, que traz na sua aparência traços de feminilidade, como uma roupa mais
feminina, e às vezes mais curta, uma maquiagem marcada e um cabelo alisado na
chapinha, entre outras características. Ele também acredita que essa forma de ser
não passa despercebida e configura como parte do grupo que sofre mais retaliações
em suas atitudes.
Brune Rapchael, 26 anos, assim como Jô e Érick, acredita que a bicha pão com
ovo além de afeminada é também periférica e negra, como acrescenta. Para ele,
essas definições em categorias são externas e definidas pelo olhar do outro, por isso
acredita que é pouco provável que uma bicha que está nesse perfil se defina nessa
conceituação.
Conta que a expressão através da roupa e comportamento é extremamente
importante. “Eu mesmo me coloco enquanto bicha, viado!”, diz. Ele descreve que sua
atitude “é uma quebra de padrão”. Argumenta que “é necessário uma contraposição
a essa heteronormatividade que termina sendo assimilada pelos homossexuais, que
acaba criando uma nova categoria, que é a categoria da ‘homonormatividade’”. Esse
visual da bicha pão com ovo e seu visual, como diz, são questionadores, educadores.
Fazem parte do que ele entende como pedagogia queer. “Ou como gosto de chamar,
a pedagogia do choque”, acrescenta.
O posicionamento de Brune, assim, como de tantos outros não passa impune
pelos sistemas de controle social e sua regulação é constante. A vigilância que sob a
sexualidade se emprega é permanente; há violência diária contra aqueles que saem
do modelo padrão e também contra os padronizados, para que não venham, um dia,
se afastar desse modelo.
Embora aja sobre todos os seres sociais, a heteronormatividade, é ampliada
quando se direciona aos gêneros não-hegemônicos. Em linguajar bem nordestino,
existe uma expressão idiomática que transcreve exatamente essa regulação: “Seja
homem, rapaz!”. A cobrança para que se siga a masculinidade e seus efeitos na
sociedade é agressiva e institucionalizada. Visto como algo cultural e associado ainda
como o modelo legitimado, a heterossexualidade, o machismo a misoginia, são os
fatores determinantes para a homofobia, lesbofobia, transfobia e assim por diante.
45

O próprio Brune me conta que, em 2012, foi violentado, vítima de homofobia.


Em um dos blocos prévios que antecedem a festa de carnaval em João Pessoa, bem
perto de sua casa, no bairro de Mangabeira, periferia da cidade, ele foi fortemente
agredido. Sua performance feminina, num bloco onde homens héteros se vestem de
mulheres e reproduzem uma caricatura de feminilidade, não agradou a um grupo de
passantes, que se viu no direito de tentar “educá-lo”, ou melhor dizendo, puni-lo da
forma que julgaram mais conveniente naquele momento, mostrando que homens
vestidos de mulheres só são aceitáveis no carnaval.
“Fui apedrejado e agredido com murros e socos. Quebraram uma garrafa nas
minhas costas. Fraturei três costelas, levei seis pontos na cabeça. Fraturei o pé.”,
enumera os traumas e dores físicas que essa investida lhe causou. Mas, as marcas
deixadas pelo murros e socos vão além do corpo físico, ficaram guardadas para
sempre nele.
Ele sabe que é discriminado, que a violência não vai parar, que sua expressão
de gênero não é bem-vinda socialmente, assim como outros tantos gays afeminados,
bicha pão com ovo ou não, mas vai continuar lutando e se impondo para ser o que é.
Sua luta também tem que ser constante. Esse episódio de homofobia pelo qual passou
lhe ensinou isso. Ele não vai se calar.
“Não, agora eu vou deixar de ser o coitadinho. Não vou aceitar esse rótulo.
Serviu para aprender, foi educativo, inclusive para minha família. Houve conquistas:
maior aceitação, maior respeito, mais cuidado. De levar a minha luta pelo
reconhecimento de uma sexualidade que é transgressora”, completa ele.

Conclusão: o brilho da bicha pão com ovo e a violência sobre elas exercida

Deparei-me com uma série de personagens e histórias nesse processo de


construção do ensaio sobre a bicha pão com ovo. Surpreendi-me, emocionei-me, me
choquei com o que ouvi, com o que vi, fiquei triste pelo preconceito e homofobia, fiquei
feliz pela luta e transgressão.
Na margem, no trânsito dos gêneros, no modo como se expressa, a pão com
ovo vai além das definições binárias e generificações a partir do corpo e
comportamento, ela empenha-se em ser livre. Em enfeitar-se como bem tiver vontade,
em sambar quando bem quiser, em rebolar até o chão, e não querer justificar porque
se sente melhor vestindo uma blusinha apertada e um short mais curto.
46

Quando pensei em fazer esse trabalho, estava num local da cidade de João
Pessoa onde sempre percebia uma grande movimentação desse perfil de maneira
aberta e pública. Notava que aquele lugar era um ponto de encontro das bichas e dos
viados, que vinham de todo canto da cidade para se reunir, se divertir, dançar e “dar
pinta” livremente. Eles/elas haviam se apropriado daquele espaço público. Achei
aquilo fascinante.
O local ao qual me refiro é a praça Rio Branco, no centro da cidade de João
Pessoa. Lá acontece o chorinho, como é mais conhecido o evento público Sabadinho
Bom, promovido todos os sábados à tarde pela prefeitura municipal. Se reúnem,
naquele espaço, uma diversidade de pessoas com experiências culturais distintas e
classes sociais diferenciadas.
Assim como diz Érick, um dos entrevistados deste ensaio, eu também não tinha
acesso à bicha pão com ovo, ela não frequentava os mesmos lugares sociais que eu.
Não nos encontrávamos nas festas, nos bares, na universidade; ela era invisível para
mim o resto do tempo, mas, no chorinho, ela brilhava. Lembro de ficar magnetizado
com aquela movimentação delas toda vez que ia lá.
Os gays mais afeminados e afetados não eram as únicas que usavam o
chorinho como espaço de convivência social. Lésbicas, algumas transexuais e
travestis também se arriscavam à luz do dia e faziam daquele o seu local de liberdade.
Naquelas idas ao chorinho, percebi que era sobre eles/elas que eu queria
escrever, sobre a bicha afeminada e estigmatizada, sobre a bicha pão com ovo.
Conversei com alguns lá mesmo, nas investidas dadas durante o processo inicial de
pesquisa, contudo, nem todas as tentativas foram bem aceitas e compreendidas. Na
verdade, quase todas foram negativas, o que vi de maneira compreensiva e aceitável.
Ninguém queria se expor para um desconhecido no meio de um momento de lazer,
poucos também tiveram confiança de aceitar sair dali e conversar comigo, ou mesmo
passar o seu contato para que eu os encontrasse os posteriormente.
Contudo, um grupo de meninos, dentro daquela multidão que se reunia na
praça semanalmente para conversar, dançar e se divertir, me chamou a atenção. Eles
eram muito jovens, todos menores de 18 anos, e na época da nossa primeira conversa
tinham entre 15 e 17. Apesar da idade, suas performances de transgressão e
liberdade eram precoces, e me pareciam deveras corajosas. Fazia uma comparação
comigo mesmo e pensava que na idade deles eu estava tão oprimido pelo meu próprio
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medo, da exposição e do preconceito que me rodeava, que pensar agir da forma que
aqueles meninos agiam era impossível para mim. Admirei-os.
Todos/as toparam conversar ali mesmo, em um canto mais reservado da praça,
próximo aos banheiros químicos que eram alocados naquele espaço. O papo fluía
aberto e entrecortado, e dos seis ou mais presentes no grupo, pelo que pude contar –
já que eles se mexiam o tempo todo pela euforia de estar contando sua vida para
alguém que tinha se apresentado para saber deles – quatro me deram seus contatos
e três deles me encontraram posteriormente, num outro dia, em um shopping próximo
da praça Rio Branco.
A conversa feita no chorinho foi rápida, mas reveladora. Eles não tinham
vergonha de falar de si, achavam aquilo natural, mas imagino que também acharam
curioso alguém desconhecido pará-los para perguntar-lhes sobre suas vidas, afinal,
eles mais pareciam invisíveis no contexto social, já que seu comportamento garantia-
lhes o título de persona non grata onde quer que fosse, e mesmo entre gays, que
como vimos também reproduzem o comportamento heteronormativo, eles não eram
bem aceitos.
Rubens, Kaike e Mateus (nomes fictícios)9 encontraram comigo pessoalmente
depois de algumas tentativas marcadas pela internet e se puseram a falar de si
mesmos. Falamos sobre família, sociedade, escola, sexualidade, namoros, sexo,
preconceito, entre outros assuntos. Levei o papo do modo mais informal possível,
queria extrair deles a opinião mais sincera e sua visão de mundo. Queria saber o que
eles pensavam e enxergavam de sua posição social.
Naquela ocasião perguntei o que eles entendiam por bicha pão com ovo, e
percebi que eles, apesar de todo aquela performance que empregavam, eram também
reprodutores de preconceitos sociais internalizados. A educação normatizadora
também tinha efeitos sobre eles. Eles descreviam a bicha pão com ovo com todos os
requintes de estigma sexual que cabem na definição de um homossexual não-
hegemônico. Eles não se associavam aquele retrato de bicha.
Para eles, essa era uma caricatura do que entendiam por identidade
homossexual, e eles não se dispuseram em nenhum momento como um desses que

9 Apesar dos personagens terem autorizado que eu usasse seu nome real, preferi usar nomes fictícios
aqui, já que na época de nossa conversa elas não tinham atingido a maior idade. Os depoimentos me
serviram como base de reflexão e análise, embora seus discursos diretos não estejam colocados no
texto, por minha própria opção, já que preferi protegê-los da exposição por não apresentarem
maturidade e consciência dos relatos que a mim estavam sendo fornecidos.
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“não se comportam direito”. A reprodução natural da heteronormatividade não lhes


soava estranho, não lhes parecia incoerente. Ouvi, anotei e percebi que ainda faltava-
lhes muito para uma compreensão mais política deles mesmo, de sua atitude e da
apropriação de um discurso também transgressor. Não cabia a mim rotulá-los com
algo que não lhes parecia aceitável. Eles queriam ser livres para ser o que quiser, mas
não se enxergavam e nem queriam se associar a aqueles que para eles não sugeriam
aceitação social. Não queriam se oprimir com mais esse estigma. Eu os entendi, afinal,
quem quer sofrer a violência diária de ser aquilo que ninguém quer por perto?
Dentro desse grupo de meninos que estava lá no chorinho, e que deixou que
eu me aproximasse para uma conversa, estava Wanderson Silva, 17 anos, que no ato
da sua apresentação me perguntou se eu também não queria saber o seu nome de
mulher. Lavigna, como preferiu ser chamada, era ainda mais arriscada em sua
expressão de gênero. Na conversa de poucos minutos que tivemos, ela se expôs sem
pudor e sem vergonha. No seu cabelo em um tom de vermelho, combinando com sua
blusinha pólo mais masculina também da mesma cor, mas ao mesmo tempo ajustada
ao desenho do seu corpo, dando-lhe contornos de feminilidade, ela se expressava
com as mãos e de sua boca saiam as histórias mais variadas. Não se intimidou com
a presença de um desconhecido e quis contar seus momentos de expressão. “O que
você quer saber?”, perguntou-me. Eu disse: “Me fale um pouco sobre você.” Ela
contou e me deixou curioso com sua capacidade de ser atrevida, de ser ela mesma.
Original na construção de sua feminilidade, fantasiosa e divertida ao reportar o
contexto de suas aventuras pessoais. Ela foi a personalidade que mais me fascinou
nesse processo, mas com quem, infelizmente, jamais pude me encontrar novamente,
apesar das diversas tentativas.
Em setembro de 2014, meses depois de tê-la encontrado, soube de sua morte
por um amigo que tinha me acompanhado no dia dessa entrevista, e depois constatei
que fora brutalmente assassinada na divisa da cidade, perto da antiga ponte que liga
a capital ao município Bayeux, que faz parte da grande João Pessoa.
Vítima de homofobia, Lavigna teve seu cabelo raspado, encontrado numa
sacola próximo ao corpo desfalecido, e o enchimento que usava para simular seios
maiores arrancado de seu corpo e destruído. Desferiram um tiro na cabeça para tirar-
lhe por completo sua liberdade, para proibir-lhe de continuar a sua transgressão por
aí, por ela não ser o homem macho hétero masculino que deveria ter sido desde
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sempre. As imagens divulgadas pelos portais de notícias sensacionalistas me


chocaram10.
A violência que destruiu e findou a vida da jovem Lavigna, que deixou o Brune
com sequelas graves, que matou e ainda mata tantos e tantas em todo o Brasil é
constante, é presente. Não incomoda para aqueles que estão na norma e no perfil
sexual instituído como padrão. É invisível em vários dos registros policiais e judiciais,
quando é entendido muitas vezes como crime comum, é deixado de lado pelo
judiciário e ignorado pelo governo. A homo/lesbo/transfobia ainda não é criminalizada,
enquanto isso, vários cidadãos e cidadãs morrem diariamente.
A bicha pão com ovo, como vimos durante esse ensaio, é um dos perfis mais
estigmatizados dentro da diversidade de corpos e desejos não-heterossexuais, e essa
violência é pouco discutida. A proposta desse ensaio foi mostrar os meandros sociais
que delimitam o comportamento heteronormativo como legítimo e como a sociedade
mantêm esse modelo através da repressão e controle, da vigilância e da violência.
A educação corporal e sexual precisa ser concebida numa proposta queer,
como incita Guacira Louro, a transgressão tem que ser assumida como metodologia
social, o choque visual e estético tem que ser entendido como parte da desconstrução
das identidades limitadoras do sujeito e a bicha pão com ovo, e outras que assim como
ela sofrem as consequências do desvio da regulação social na carne, precisam se
colocar discursivamente e exigir da sociedade também o seu espaço.

10Disponível em <http://www.portaldolitoralpb.com.br/assassinato-de-jovem-gay-em-joao-pessoa-e-
destaque-nacional-em-site-contra-homofobia/>. Acessado em: 20 de setembro de 2014.
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