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1980 - O Verdadeiro Sexo 83

1980 sas foram muito mais complicadas. Temos, de fato, vários tes-
temunhos de co?~enaçó~s â morte, tanto na Antigüidade
como na Idade ~edla. Porem, hâ também uma jurisprudência
abundante de tipo completamente diverso. Na Idade Média as
regra~ de direito - canónico e civil - eram muito claras a esse
o Verdadeiro Sexo respeIto: eram chamados hermafroditas aqueles nos quais se
justa~unham, segundo proporçóes que podiam ser variáveis,
~s dOISsexo~: Neste cas~: cabia ao pai ou padrinho (portanto,
aquele~ que nomeavam a criança) estabelecer, no momento
"O verdadeiro sexo", Arcadie, 27º ano, nº 323, -novembro de 1980, ps. do batismo, o sexo que deveria ser mantido. Eventualmente,
617-625. aconselhava-se que fosse escolhido aquele, dentre os dois se-
xos, ~ue pa:ece.sse. pre"vale~er,.em uma escala que ia daquele
que tivesse mais vigor ou mais calor". Porém, mais tarde na
Este é, com alguns acréscimos, o texto emfrancês do prefá- entrada da vida adulta, quando chegasse o momento de seca-
cio à edição americana de Herculine Barbin, dite Alexina B. l. sar, o hermafrodita ~ra livr~ p~ra decidir se queria ser sempre
Esta edição contém em apêndice a novela de Panizza, Un scan- do .sexo que lhe havíam atribuído, ou se preferia o outro. Úni-
dale au couvent, que é inspirada na história de Alexina; talvez C? Imperativo: jamais trocar de sexo, manter até o fim de seus
Panizza a tenha conhecido através da literatura médica da d.Iasaquele que, então, havia declarado, sob pena de ser con-
época. Na França, as memórias de Herculine Barbinforam pu- sl?erado sod~mita. Foram essas mudanças de opçâo, e nâo a
blicadas pela Editora Gallimard e Un scandale au couventfaz mistura anato~nica dos sexos, que acarretaram a maior parte
parte de uma coletãnea de novelas de Panizza publicada com das condenaçoes dos hermafroditas das quaís se tem noticia
este titulo geral pela Editora La Dilférence. Foi René de Céccaty na França, no período da Idade Média e do Renascimento.
que me assinalou a ligação entre o relato de Panizza e a história [~ partir do século xvnr't, as teorias biológicas da se-
de Alexina B. xualídade, as condições jurídicas do indivíduo, as formas de
Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com controle administrativo nos Estados modernos conduziram
uma constância que beira a teimosia, as sociedades do Oci- pouco a pouco â recusa da idéia de uma mistura dos dois se-
dente moderno responderam afirmativamente a essa pergun- xos em um s~ c~~o e, conseqüentemente, a restringir a livre
ta. Elas obstinadamente fizeram intervir essa questâo do escolha dos mdlVlduos ambíguos. A partir de então, a cada
"verdadeiro sexo" em uma ordem de coisas na qual se podia u~, u~ sexo, e apenas um. A cada um sua identidade sexual
imaginar que apenas contam a realidade dos corpos e a inten- ~lnmelra, profunda, determinada e determinante; quanto aos
sidade dos prazeres. ementos do outro sexo que eventualmente aparecessem,
No entanto, por muito tempo, nâo existiram tais exigên- e~es apenas podiam ser acidentais, superficiais ou mesmo
cias. Prova disso é a história do status que a medicina e a jus- Slmplesmente ilusórios. Do ponto de vista médico, isso signifi-
tiça atribuíram aos hermafroditas. Um longo tempo se passou cava que, diante de um hermafrodita, nâo se tratava mais de
até que se postulasse que um hermafrodita deveria ter um reconhecer a presença dos dois sexos justapostos ou mistura-
único, um verdadeiro sexo. Durante séculos, admitiu-se mui- dos, nem de saber qual dos dois prevalecia sobre o outro mas
s' d
to simplesmente que ele tivesse dois. Monstruosidade que irn e decifrar qual era o verdadeiro sexo que se escondia' sob
suscitava pavor e acarretava suplícios? Na realidade, as coí- aparências confusas; o médico terá que, de alguma maneira,

1.Ver nº 276, voI. IV da edição francesa desta obra. 2. Os trechos entre colchetes não aparecem na edição americana.
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despir as anatomias enganadoras e reencontrar, por trás dos relações complexas, obscuras e essenciais. Somos, na verda-
órgãos que podiam ter encoberto as formas do sexo oposto, o de, mais tolerantes em relação às práticas que transgridem as
único sexo verdadeiro. Para aqueles que sabem olhar e exami- leis. Porém continuamos a pensar que algumas delas insul-
nar, as misturas de sexos não passam de disfarces da na- tam "a verdade": um homem "passivo", uma mulher "viril",
tureza: os hermafroditas sempre são "pseudo-hermafrodítas". pessoas do mesmo sexo que se amam. Talvez haja a disposí-
Essa foi, pelo menos, a tese na qual se tendeu a acreditar no çao de admitir que isso não é um grave atentado à ordem esta-
século XVIII, através de um certo número de casos importan- belecida, porém estamos sempre prontos a acreditar que há
tes e apaixonadamente discutidos. nelas algo como um "erro". Um "erro" entendido no sentido
Do ponto de vista do direito, isso implicava evidentemente mais tradicionalmente filosófico: uma maneira de fazer que
o desaparecimento da livre escolha. Não cabe mais ao indiví- não é adequada à realidade; a irregularidade sexual é percebi-
duo decidir o sexo ao qual ele deseja pertencer jurídica ou da, mais ou menos, como pertencendo ao mundo das quime-
socialmente, mas sim ao perito dizer que sexo a natureza es- ras. Por isso não descartamos tão facilmente a idéia de que
colheu para ele, e ao qual, conseqüentemente, a sociedade não são crimes, porém menos facilmente ainda a suspeita de
deve lhe exigir restringir-se. Quando é preciso recorrer justí-
à
que são "invenções" índulgentes.f mas de qualquer forma
ça (por exemplo, quando se suspeita que alguém não esteja vi- inúteis, e que seria melhor dissipá-Ias. Despertai, jovens, de
vendo conforme seu verdadeiro sexo, e tenha se casado de vossos gozos ilusórios; despojaí-vos de vossos disfarces e lem-
modo abusivo), ela terá que estabelecer ou restabelecer a legi- braí-vos de que tendes apenas um verdadeiro sexo!
timidade de uma natureza que não tenha sido suficiente- E depois se pode também admitir que é no sexo que se de-
mente reconhecida. Mas se a natureza, por suas fantasias ou vem procurar as verdades mais secretas e profundas do indi-
acidentes, pode "enganar" o observador e esconder durante víduo; que é nele que se pode melhor descobrir quem ele é, e
um certo tempo o verdadeiro sexo, pode-se desconfiar que os aquilo que o determina; e se, durante séculos, se acreditou
indivíduos dissimulam a consciência profunda de seu verda- que era preciso esconder as coisas do sexo porque eram vergo-
deiro sexo, e se aproveitam de algumas bizarrias anatõmicas nhosas, sabe-se agora que é o próprio sexo que esconde as
para servir-se de seu próprio corpo como se ele fora de um ou- . partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de suas fanta-
tro sexo. Em suma, as fantasmagorias da natureza podem sias, as raizes do seu eu, as formas de sua relação com a reali-
servir aos abusos da libertinagem. Daí o interesse moral do dade. No fundo do sexo, a verdade.
diagnóstico médico do verdadeiro sexo. No ponto de cruzamento dessas duas idéias - a de que é
Sei bem que a medicina dos séculos XIX e XX corrigiu mui- preciso não nos enganarmos a respeito de nosso sexo, e a de
tas coisas nesse simplismo redutor. Atualmente, ninguém di- que nosso sexo mantém escondido o que há de mais verdadei-
ria mais que todos os hermafroditas são "pseudo", mesmo se ro em nós - a psicanálise consolidou seu vigor cultural. Ela
restringíssemos consideravelmente um domínio no qual, anti- nos promete simultaneamente nosso sexo, o verdadeiro, e
gamente, se fazia entrar, confusamente, inúmeras anomalias toda essa verdade de nós mesmos que vela secretamente nele.
anatõmicas diferentes. Admite-se também, aliás com muita
dificuldade, a possibilidade de um individuo adotar um sexo
que não é biologicamente o seu.
*
Contudo, a idéia de que se deve ter finalmente um verda- As memórias de Alexina Barbin são um documento dessa
deiro sexo está longe de ter sido completamente dissipada. estranha história do "verdadeiro sexo". Não o único, mas ele é
Seja qual for a opinião dos biólogos sobre esse assunto, en- bastante raro. Trata-se de um diário, ou melhor, das me-
contramos, pelo menos em estado difuso, não somente na psi-
quiatria, na psicanálise e na psicologia, mas também na
opinião corrente, a idéia de que entre sexo e verdade existem 3. Na edição americana: "(...) invenções involuntárias ou indulgentes (...l",
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mórias deixadas por um desses indivíduos aos quais a medici- vivera, até a descoberta que cada uma retardava o mais possí-
na e a justiça do século XIX perguntavam obstinadamente vel e que dois homens, um padre e um médico, finalmente
qual era a sua verdadeira identidade sexual. precipitaram. Esse corpo um tanto desengonçado, pouco gra-
Criada como uma moça pobre e digna de mérito, em um cioSO,cada vez mais aberrante junto a essas adolescentes en-
meio quase que exclusivamente feminino e profundamen~e tre as quais ele crescia, parece que ninguém, ao olhá-lo, o
religioso, Herculine Barbin, apelidada pelos que lhe eram pro- percebia; mas ele exercia sobre todos - ou melhor, sobre todas
ximos de Alexina, fora finalmente reconhecida como um _ um certo poder de fascínio que embaçava os olhos, e detinha
"verdadeiro" rapaz; obrigado a trocar de sexo legal, após um sobre os lábios qualquer pergunta ao seu respeito. O calor que
processo jurídico e uma modificação do seu estado cívíl, ele f~i essa presença estranha imprimia aos contatos, ãs carícias,
incapaz de se adaptar ã sua nova identidade e acabou se SUl- aos beijos, que circulavam através dos olhos daquelas adoles-
cidando. Eu ficaria tentado a dizer que a história seria banal, centes, era acolhido por todos com tanta ternura que ne-
caso não existissem duas ou três coisas que lhe conferem uma nhuma curiosidade aí se mesclava. Adolescentes falsamente
particular intensidade. ingênuas, ou velhas professoras que se consideravam experi-
Inicialmente, a data. É justamente por volta de 1860-1870 entes, todas estavam tão cegas quanto é possível sê-lo em
que se praticou mais intensamente a procura da identi~ade uma fábula grega, quando elas viam, sem ver, esse Aquiles
na ordem sexual: não só o sexo verdadeiro dos herrnafrodítas, magrícelo escondido no pensionato. Tem-se a impressão - se
como também a identificação das diferentes perversões, sua pelo menos se acredita no relato de Alexina - que tudo se pas-
classificação, caracterização etc.; em suma, o problema do in- sava em um mundo de ímpetos, prazeres, tristezas, desãní-
divíduo e da espécie na ordem das anomalias sexuais. E com o mos, doçuras, amarguras, no qual a identidade dos parceiros,
título Question d'identité que foi publicada em 1860, em uma e sobretudo aquela da enigmática personagem em tomo da
4
revista médica, a primeira observação sobre A.B. Foi em um qual tudo girava, era sem importância. 6
livro sobre a Question médico-légale de l'identité que Tardieu [Na arte de dirigir consciências utiliza-se freqüentemente o
publicou a única parte das memórias que foi encontrada. Her- termo "discrição". Palavra singular que designa a capacidade
culíne-Adélaíde Barbin, ou também Alexína Barbin, ou ainda de perceber diferenças, de discriminar os sentimentos, até
Abel Barbin, designado em seu próprio texto ora como Alexí- mesmo os menores movimentos da alma, de desalojar o impu-
na, ora como Camille, foi um desses infelizes heróis da caça ã ro sob o que parece puro e de distinguir dentre os ímpetos do
identidade. coração o que vem de Deus e o que é insuflado pelo Sedutor. A
Com um estilo elegante, afetado, alusivo, um tanto pompo- discrição distingue, perpetuamente se necessário for; ela
so e fora de moda, que era para os internatos da época não so- tende a ser "indiscreta", uma vez que deve inspecionar os mis-
mente uma maneira de escrever mas também uma maneira térios da consciência. Porém, os diretores de consciência en-
de viver, a narrativa escapa a qualquer apreensão possível da tendem também essa palavra como a aptidão para manter o
identificação. O duro jogo da verdade que, mais tarde, os mé- comedimento, ou seja, não ir muito longe, calar-se a respeito
dicos impuseram ã anatomia incerta de Alexína, ninguém ha- daquilo que não é preciso dizer, deixar sob o benefício da som-
via consentido jogá-lo no ambiente de mulheres em que ela bra aquilo que se tornaria perigoso à luz do dia. É possível
dizer que Alexina põde viver durante muito tempo no lus-
co-fusco do regime da "discrição", que era odos conventos, in-
4. Chesnet, "Question d'ídentíté: více de conformation des organes génítaux ternatos e o da monossexualidade feminina e cristã. Mais
extemes; hypospadias; erreur sur le sexe ", Annales d'hygiime publique et de
médecine légale, t. XIV, 1ª parte, julho de 1860, ps. 206-209.
5. Tardieu (A.), Question médico-légale de l'identité dans ses rapports avec les
vices de conJonnation des organes sexuels, 2ª ed., Paris, Baíllíêre, 1874. 6. Na edição americana: "I...) parece que ninguém (...)".
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tarde - este foi o seu drama - ela passou para um regime com-
pletamente diverso daquele da "discrição" - o da administra- sem que nada as forçasse a sair de seu mundo inteiramente
feminino.]
ção, da justiça e da medicina. As nuanças, as diferenças sutis
que eram reconhecidas no primeiro, não tinham mais curso Aqueles que narram sua mudança de sexo pertencem,
no segundo. Aquilo que se devia calar, no primeiro, devia ser, quase sempre, a um mundo intensamente bissexual; o mal-
no segundo, expressado e claramente partilhado. Não é mais estar de sua identidade se traduz pelo desejo de passar para o
de discrição que é preciso falar, mas sim de análise.] outro lado - o lado do sexo que desejam ter ou ao qual gos-
Alexina escreveu as memórias dessa vida, uma vez desco- tariam de pertencer. Aqui, a intensa monos sexualidade da
berta e estabelecida sua nova identidade. Sua "verdadeira" e vida religiosa ou escolar serve de revelador dos doces prazeres
"definitiva" identidade. Mas é óbvio que não é do ponto de vis- que a nãO-identidade sexual descobre e provoca, quando ela
se perde entre aqueles corpos semelhantes.
ta deste sexo finalmente encontrado e reencontrado que ela as
escreve. Não é o homem que fmalmente fala, tentando se lem-
brar das sensações e de sua vida no tempo em que não era
ainda "ele mesmo". Ao redigir suas memórias, Alexina não Nem o caso de Alexína nem suas memórias parecem ter
está muito longe de seu suicídio; ela sempre fora para si mes- despertado muito interesse na época." A. Dubarry, um autor
ma sem sexo defmido; mas ela é privada de todas as delícias polígrafo de histórias de aventura e de romances médico-
que experimentava por não tê-lo, ou de não ter totalmente o pornográficos, gêneros tão apreciados na época, manifesta-
mesmo sexo daquelas entre as quais vivia, amava e desejava mente tomou emprestado para o seu Hermaphrodite vários
tão intensamente. O que ela evoca do seu passado são os lim- elementos da história de Herculine Barbín." Mas é na Alema-
bos felizes de uma não-identidade, que paradoxalmente pro- nha que a vida de Alexína encontra um notável eco. Trata-se
tegia a vida nessas sociedades fechadas, estreitas e calorosas, de uma novela de Panizza, intitulada Uti scandale au couvent. 9
nas quais se tem uma estranha felícídade, ao mesmo tempo Nada há de extraordinário no fato de que Panizza possa ter to-
obrigatória e proibida, de conhecer apenas um único sexo; [o mado conhecimento do texto de Alexina através do livro de
que lhe permite acolher as gradações, os moiré, as penum- Tardieu: ele era psiquiatra e havia estado na França em 188l.
bras, os coloridos mutantes como a própria natureza de sua Ele se interessou mais pela literatura do que pela medicina,
natureza. O outro sexo não está ali com suas exigências de porém o livro sobre a Quesüon médico-légale de l'identité deve
partilha e de identidade, dizendo: "Se tu não és como tu mes-
ma, exata e identicamente, então tu és como eu. Hipótese ou
erro, pouco importa; tu serias condenada se permanecesses
7. Na edição americana: "(...) muito interesse. Em seu imenso inventário dos
lá. Entra em tu mesmo, renda-te e aceita ser eu." Creio que casos de hermafroditismo, Neugebauer oferece um resumo deles, e uma lon-
Alexina não queria nem um, nem outro. Ela não era atraves- guíss!ma citação. 1
sada por esse formidável desejo de juntar-se ao "outro sexo", lNeugebauer (F. L. von), Hermaphroditismus beim Menschen, Leípzíg, 1908,
experimentado por aqueles que se sentem traídos por sua p. 748. Observar que o editor situa de maneira errônea o nome de Alexína sob
anatomia ou aprisionados em uma injusta identidade. Creio um retrato que não é absolutamente o seu".
que ela se comprazia nesse mundo de um único sexo, no qual 8. (N.A.)A. Dubarry também escreveu uma longa série de ensaios com o título
estavam todas as suas emoções e todos os seus amores, em Les déséquilibrés de l'wnour. São eles: Les invertis (le oice aUemandJ, Paris,
ser "outra" sem jamais ter que ser "do outro sexo". Nem mu- Chamuel, 1896; L'hermaphrodite, Paris, Chamuel, 1897; Coupeur de naites,
lher que amava as mulheres, nem homem escondido entre as Paris, Chamuel, 1898; LesJemmes eunuques, 2ª ed., Paris, Chamuel, 1899;
Le plaisir sanglant, Paris, Chamuel, 1901.
mulheres. Alexina era o sujeito sem identidade de um grande
9. Pantzza (O.), Un scandale au couueni (trad. J. Bréjoux), coletânea de nove-
desejo pelas mulheres; e, para essas mulheres, ela era um
las extraídas de Visionen der Dãmmenmg, Munique, G. Müller, 1914 (Visions
ponto de atração de sua feminilidade e para sua feminilidade,
du crépuscuie, Paris, Éd. de Ia Dífférence. 1979).
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ter caído em suas mãos, a menos que ele o tenha achado em ingênuo de crenças não completamente inocentes, e que estão
uma biblioteca alemã quando retomou para lá em 1882 e tão distantes da seriedade provinciana de Alexina quanto da
exerceu por algum tempo sua profissão de psiquiatra. O en- violência barroca do Concile d'amour.
contro imaginário entre a jovem provinciana francesa de sexo Porém, ao inventar toda essa paisagem de galanteria per-
incerto e o psiquiatra frenético que devia morrer em um versa, Panizza deixa voluntariamente no centro de sua narra-
hospício de Bayreuth nos provoca surpresa. Por um lado, os tíva uma vasta zona de sombra: nela se encontra, precisamente,
prazeres furtivos e sem nome que crescem na tepidez das ins- Alexina. Irmã, professora, colegial inquietante, querubim per-
tituições católicas e nos internatos de moças; por outro, a dido, amante amado, fauno correndo pela floresta, íncubo que
raiva antíclerícal de um homem no qual se enlaçavam bizarra- se esgueira pelos dormitórios mornos, sátiro de pernas pelu-
mente um positivismo agressivo e um delírio de perseguição, das, demónio que se exorciza - Panizza somente apresenta
no centro do qual reinava Guilherme lI. Por um lado, estra- dela os perfis fugídíos sob os quaís os outros a vêem. Ela, o ra-
nhos e secretos amores que uma decisão dos médicos e juizes paz-moça, o eterno masculino-feminino, é apenas o que sur-
iria tornar impossíveis; por outro, um médico que, após ter ge, à noite, nos sonhos, desejos e medos de cada um. Panizza
sido condenado a um ano de prisão por ter escrito o Concile quis fazer dela apenas uma figura de sombra sem identidade
d'amourlO - um dos textos mais "escandalosamente" antí-relí- nem nome, que se desvanece no final da narrativa sem deixar
gíosos de uma época na qual, entretanto, nada faltou -, foi ex- traço. Não quis sequer marcá-Ia por um suicídio através do
pulso da Suíça, onde havia se refugiado após um "atentado" qual ela se tornaria, como Abel Barbin, um cadáver, ao qual os
contra uma menor. médicos curiosos acabariam por atribuir a realidade de um
O resultado é extraordinário. Panizza conservou alguns sexo mesquinho.
elementos importantes do caso: o próprio nome de Alexina B. Se aproximei esses dois textos e considerei que mereciam
e a cena do exame médico. Ele modificou, por uma razão que ser publicados em conjunto foi porque, primeiramente, eles
não consegui entender, os relatórios médicos (talvez porque, pertencem ao final do século XIX, que foi tão intensamente as-
ao usar apenas suas próprias lembranças de leitura sem ter o sombrado pelo tema do hermafrodita - um pouco como o sé-
livro de Tardieu na mão, ele tenha se servido de um outro rela- culo XVIII havia sido por aquele do travesti. Mas também
to que estava à sua disposição e que dizia respeito a um caso porque eles permitem que se perceba o rastro que essa peque-
semelhante). Mas, sobretudo, ele deturpou todo o relato. Ele o na crónica provinciana, que sequer chegou a provocar escãn-
situou em outra época, modificou inúmeros elementos mate- d~o, conseguiu deixar na infeliz memória daquele que tinha
riais e toda a atmosfera; converteu sobretudo o modo subjeti- SIdo seu principal personagem, no saber dos médicos que fo-
vo de narrar em uma narração objetiva. Deu ao conjunto uma ram chamados a intervir e na imaginação de um psiquiatra
certa aura "século XVIII": Diderot e A religiosa não parecem que camíríhava, ao seu modo, para a sua própria loucura.
estar distantes. Um rico convento para moças da aristocracia;
uma superiora sensual que nutria pela jovem sobrinha uma
afeição equívoca; intrigas e rivalidades entre as religiosas; um
abade erudito e cético; um pároco crédulo, e camponeses que
empunham seus forcados para caçar o diabo: há nisso toda
uma libertinagem à flor da pele e todo um jogo mais ou menos

10. Panízza (O.), Das Liebeskonzil. Eine Himme/stragooie injünf Aufzügen, Zu-
rique, Verlag Magazín, 1895 (Le concile d'amour: tragédie céleste, trad. J. Bré-
joux, Paris, J.-J. Pauvert, 1960).

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