Curso de Psicologia Professora Dra. Vera Lucia Ferreira Mendes
Viviane Ferracini Papis - RA00166042
MB51 - 2017
A seguinte crônica refere-se à síntese de três observações realizadas em um grupo de reunião do
Vigilantes do Peso, na Paróquia São Bento do Morumbi, às sextas-feiras.
O Sagrado e o Profano
O que irei observar hoje? Me perguntei todos os momentos de preparação na minha
viagem de ônibus. O nervosismo nunca esteve muito explícito, no entanto a apreensão era enorme. Por que em uma igreja? Por que esta igreja? Teria o sítio alguma relação com o culto ao corpo? Busquei significados e sentidos que hoje não importam mais. O desconhecido desperta mesmo essa insegurança, ainda mais vindo de alguém tão tímida como eu. E nessa busca de sentidos fabriquei fantasias das subjetividades que estariam presentes nesses encontros, em uma roda de confessionários. Projeção deveras exagerada, tenho que admitir. Ao descer no ponto correto, me deparei com o horário: cheguei demasiado cedo ao local. Clara expressão de ansiedade. Me permiti então vagar pela paróquia sem saber exatamente onde ocorreria a reunião, e perdi um pouco a noção de minha individualidade ao contemplar o vazio (literal e espiritual) daquele altar. Fui interrompida por barulhos de fora e me questionei onde estaria o grupo. Será que errei de lugar? Percorri o andar inteiro e encontrei uma escada e os dizeres “secretaria”. Desci e encontrei uma sala que emanava uma luz difícil de ser ignorada. A ajudante da coordenadora sentada atrás de uma mesa repleta de folhetos me recebeu com voz amável, o que me deixou mais tranquila. Logo após minha entrada na sala, a ajudante anuncia a chegada da coordenadora da reunião, que me recebe com tamanha ternura e descontração. Me senti ainda melhor. Pude perceber depois que o afeto evidente da coordenadora servia de cola para todos aqueles integrantes, colava-os à reunião, ao mundo, a seus objetivos e a si mesmos. Me senti tocada por essa cola de afetos e compreendi como essa figura integra o espaço que o eco da arquitetura típica produz nas falas. Um casal de senhores logo chegou à sala e os identifico como os primeiros integrantes do grupo, personagens destoantes da minha fantasia religiosa. O que estariam fazendo ali, dois indivíduos que já passaram por tantas intempéries do tempo, afetados pelo peso da existência, satisfeitos por fazer parte de um programa assentado em ideologias de extrema valorização do corpo aparente? A cada chegada, me tornei mais confusa. Indivíduos de tamanhos, formas e embalagens diferentes. E a cada sopesar dos participantes em um verdadeiro ritual de abertura, a coordenadora ressaltava a perda do peso e proporcionava um “bate-papo” íntimo e acolhedor, como grandes amigos da velha guarda. Amigos que desejam chegar a um peso que chamam “ideal”. O ritual da “pesagem” tomou parte relevante do encontro, tempo individual e simultaneamente coletivo, de preparação para a discussão. Participantes em seguida ocuparam seus lugares na disposição quase escolar das cadeiras, enquanto situo-me, afastada, distante, no entanto incluída. As conversas até então preencheram a união, constituídas como uma ópera de diversos protagonistas e a fala imponente da coordenadora lançou a cortina final sobre o espetáculo. Momento de introdução da conversa que os interessa como um grupo. Discorremos sobre a importância do espaço dessa escuta e repartição, sobre as condutas que, orientadas ali, levariam a uma melhor alimentação, sobre dizer não, e também poder dizer sim. Discorremos, pois fui fisgada como elemento constituinte da dinâmica. Por não participar, tornei-me cúmplice de suas histórias e de seus comprometimentos. Cada fala foi respeitada, em seu momento de expressão, e, ao ouvi-la, ofereci meu discernimento. Algumas outras integrantes, considerando que o grupo era composto de muitas mulheres, permaneceram caladas, contudo em seus olhares captei o sentido da conjuntura. As opiniões expressas desvelaram a saúde e o bem-estar, o companheirismo, o júbilo de fazer-se ouvida; eram as dúvidas de quem há pouco entrara no programa que, com suas regras e pontuações definidas, se fazia nebuloso; eram as necessidades de saber como rejeitar avanços de comilões desenfreados; eram as demandas de segurança e de saber que outros compartilhavam o sofrimento da limitação. Mostrou-me mais que um desejo de atingir corporificações inalcançáveis; mostrou-me um verdadeiro sentimento de pertencimento e de essência. O ambiente chamou minha atenção. O subterrâneo dessa paróquia, a sala designada, a inundação de uma proposta que se distingue tanto desse solo sagrado. E assim, os ecos perpétuos das irrupções de sopranos, que disputavam o protagonismo dentro do grupo, perturbaram alguns, porém instigaram em mim uma compreensão ainda maior do todo dessa vivência. O corpo foi instituído como ferramenta para permitir trocas e crescimento a partir destas, no entanto tornou- se controlado por parcelas autocráticas da sociedade. Na oportunidade de envolvimento nas reuniões abertas, os participantes buscam o sagrado, que não corresponde aqui à religiosidade devidamente, e sim ao sagrado dentro e correspondente a si, o próprio corpo. Compreendo, assim, que a coordenadora os orientava para obter, acima de tudo, maior controle sobre seus corpos, sobre sua condição física, material, efêmera; tornavam-se seus próprios deuses e condenavam o profano de uma vida norteada ao puro prazer, que já os havia punido antes. O gostinho da batata frita revelou-se o pior inimigo de todos. Para isso, necessário tornar-se maior e onisciente de si. Com a conclusão se aproximando, o grupo como um todo preparava-se para partir. A fala passou a restringir-se a uma ou outra integrante, e a dispersão outrora performada por pequenos subgrupos, limitou-se a uma introspecção ansiosa para o retorno à rotina. Muito bem, espero que todos apliquem o que foi aprendido aqui, afirma a coordenadora para encerrar. O objetivo como grupo cumpriu-se: sensibilizar e estimular individualmente. Não estamos sozinhos, pensariam após o encontro. Meu companheiro Vigilante experiencia a mesma luta pelo sagrado. Sou capaz de retornar novamente, concluiriam. E me descubro testemunha desse movimento de conquista. O sagrado seria somente uma leitura, nada ocasional, mas que surge da transformação da vida caótica a que fazemos parte, e que nomeei de profano.