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“FASCINAÇÃO”,
1909:
UM
RETRATO
DO
RACISMO
MEDIADO
PELA
MODA
NA
OBRA
DE
PEDRO
PERES
RITA
MORAIS
DE
ANDRADE1
Universidade
Federal
de
Goiás,
ritaandrade@ufg.br
e
ritaandrade@hotmail.com
Resumo:
Este
artigo
apresenta
uma
análise
da
obra
“Fascinação”
de
autoria
de
Pedro
José
Pinto
Peres
(Lisboa
1850-‐
Rio
de
Janeiro
1923)
datado
de
1909
com
especial
atenção
à
indumentária
retratada.
Os
modos
de
vestir
são
um
importante
vetor
cultural
que
refletem
tensões
sociais,
algumas
vezes
escamoteadas
pelos
discursos
predominantes
em
uma
sociedade.
No
Brasil
há
um
debate
corrente
acerca
dos
impactos
causados
pela
condição
pós-‐colonial,
entre
eles
o
da
escravidão
é
um
dos
mais
importantes.
Procura-‐se
agora
desnaturalizar
e
superar
a
dada
hegemonia
eurocêntrica
dos
modelos
sociais
e
culturais
na
vida
cotidiana
e
na
cultura
material
a
ela
associada.
Nos
estudos
sobre
indumentária,
campo
de
pesquisa
recente
no
país,
é
importante
identificar
a
historicidade
dos
elementos
culturais
africanos
que
permanecem
invisibilizados
pela
predominância
de
temas
associados
à
moda
europeia
e
norte-‐americana.
A
exclusão
do
rico
patrimônio
cultural
da
presença
africana
exclui
uma
parte
fundamental
da
construção
da
cultura
brasileira,
por
isso
a
urgência
de
inserir
este
tema
na
universidade.
Palavras
chave:
Pedro
Peres
–
Indumentária
–
Racismo
–
Cultura
Visual
-‐
História
Social
Introdução
A
abolição
da
escravatura
no
Brasil
é
um
marco
importante
na
história
nacional
e
mundial
rumo
aos
ideais
humanistas
de
construção
das
sociedades
igualitárias
e
da
superação
de
práticas
de
exploração
humana.
Sabe-‐se
que
apesar
dos
interesses
sociais
empregados
na
luta
pela
abolição
da
escravidão,
outro
interesse
esteve
coadunado,
aquele
destinado
ao
acúmulo
de
riquezas
por
nações
e
pequenos
grupos
mais
ricos.
Historiadores
já
identificaram
a
motivação
dos
interesses
capitalistas
como
sendo
motriz
no
processo
que
resultou
na
libertação
de
escravizados
africanos
e
afro-‐brasileiros,
negros,
e
a
paulatina
substituição
desse
trabalho
não
pago
pelo
do
tipo
assalariado.
Mesmo
assim,
soma-‐se
aos
traumas
da
escravização
e
da
libertação
(que
revelou-‐se
descompromissada
com
a
situação
dos
antigos
escravizados)
a
continuidade
das
mentalidades
racistas
anteriores,
que
demoram
a
ser
superadas
e
substituídas
por
modos
menos
discriminatórios
de
sociabilidade.
1
Professora
do
PPG
em
Arte
e
Cultura
Visual
e
do
Bacharelado
em
Design
de
Moda,
UFG.
Doutora
em
História
Cultural
(PUC/SP,
2008)
com
o
tema
da
biografia
cultural
no
estudo
de
tecidos
e
indumentária
e
Mestre
em
História
dos
Tecidos
e
da
Indumentária
(University
of
Southampton/UK,
2000).
Realizou
estágio
de
pós-‐doutoramento
(PACC/UFRJ,
2013-‐2014)
com
o
trabalho
“Coleções
de
Indumentária
em
Museus
no
Brasil”
resultando
em
levantamento
inédito
das
tipologias
e
formação
dessas
coleções
no
país.
Representante
do
Costume
Commitee/ICOM
desde
2011,
liderou
a
organização
no
Brasil
da
primeira
reunião
do
comitê
com
pesquisadores
brasileiros
(Rio
de
Janeiro,
2013)
que
resultou
no
aumento
expressivo
de
associados
ao
comitê
internacional.
Autora
de
artigos
publicados
em
periódicos
nacionais
e
estrangeiros
sobre
história
da
indumentária
brasileira
e
metodologia
de
investigação
baseada
em
artefatos,
foi
editora
da
versão
brasileira
da
revista
Fashion
Theory
(2002-‐2005)
e
co-‐editou
dois
números
especiais
da
mesma
revista
na
versão
original
em
inglês:
Latin
America
Fashion
Now
(2014)
e
Brazilian
Fashion
(abril
de
2016).
Líder
do
Grupo
de
pesquisa
INDUMENTA
que
investiga
a
indumentária
no
Brasil,
sua
patrimonialização,
história
e
problemas
atuais.
Contudo,
quando
substituída
a
forma
escravocrata
por
outra
mais
liberal
de
economia
e
política
no
Brasil
de
finais
do
século
XIX,
os
discursos
em
defesa
da
liberdade,
da
fraternidade
e
da
igualdade
estavam
presentes
em
diferentes
contextos
sociais.
Da
flor
de
camélia,
símbolo
de
libertação
usada
pela
Princesa
Isabel,
aos
levantes
populares
que
eclodiram
no
país
em
defesa
dos
escravizados,
a
notícia
da
abolição
foi
e
ainda
é
um
aspecto
central
da
história
dos
africanos,
afrodescendentes
no
Brasil
e,
de
fato,
de
todos
os
brasileiros.
É
apenas
muito
recentemente,
especialmente
no
final
do
século
XX,
que
os
impactos
sociais
sofridos
por
pessoas
traficadas
e
escravizadas
e
seus
descendentes
vem
repercutindo
como
um
tema
de
interesse
das
ciências
sociais
e
das
artes2.
Figura
1.
Fascinação,
1909.
Pedro
Peres.
Óleo
sobre
madeira,
35,7
X
31,2
cm.
Acervo
da
Pinacoteca
do
Estado
de
São
Paulo.
Fonte
da
reprodução:
homepage
da
Pinacoteca
do
Estado
de
São
Paulo.
Disponível
em:
http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-‐pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=P&cd=2658.
Acesso
em:
05/05/2015.
Este
artigo
apresenta
um
estudo
de
caso,
uma
análise
feita
a
partir
da
observação
dos
elementos
visuais
da
obra
“Fascinação”
(Figura
1),
datada
de
1909
de
autoria
de
Pedro
Peres
(Lisboa
1850
–
Rio
de
Janeiro
1923)3
para
refletir
sobre
a
relação
social
discriminatória
enunciada
nas
visualidades.
A
produção
artística,
mas
também
outras
imagens
produzidas
no
período
imediatamente
posterior
à
abolição
da
escravatura
no
Brasil,
apresentam
vestígios
das
mentalidades
racistas
e
das
distinções
entre
dominantes
e
dominados
que
2
Recentes
ações
podem
servir
de
exemplo
da
mobilização
pelo
debate
acerca
do
tema.
Uma
delas
é
a
exposição
“Imprensa
Negra
Paulista”
que
aconteceu
entre
24
de
agosto
e
11
de
outubro
de
2015
no
Centro
de
Preservação
Cultural
da
USP
–
Casa
de
Dona
Yayá
-‐
em
São
Paulo.
Disponível
em:
http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf08_informa.php.
Acesso
em:
01/10/2015.
3
Para
uma
biografia
do
artista
consultar
a
Enciclopédia
Itaú
Cultural
o
verbete
“Pedro
José
Pinto
Peres
(Lisboa,
Portugal
1850
-‐
Rio
de
Janeiro
RJ
1923).
Disponível
em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa24503/pedro-‐peres.
Acesso
em:
20/08/2015.
permaneceram
na
sociedade
brasileira
apesar
dos
discursos
liberais
e
abolicionistas
de
fins
do
século
XIX4.
Particular
atenção
neste
artigo
é
dada
à
análise
visual
das
vestimentas
retratadas
na
obra
que,
acredita-‐se,
acentua
e
revela
a
distinção
social
entre
brancos
e
negros.
Discute-‐se
o
vestuário
e
os
modos
de
vestir
(à
moda
ou
fora
dela)
como
marcadores
da
vida
social
que
separam
pobres
de
ricos,
negros
de
brancos.
A
moda
europeia
era
o
modo
de
vestir
dominante
dos
antigos
colonizadores
e
das
elites
que
foram
sendo
construídas
no
país
e
marcava
visualmente
e
materialmente
as
diferenças
sociais.
Acredita-‐se
que
a
indumentária
seja
um
importante
vetor
da
história
cultural
e
social
no
Brasil
que
merece
atenção
de
pesquisadores
das
artes
e
ciências
sociais.
As
imagens
de
mulheres
africanas
que
viveram
no
Brasil
em
decorrência
de
sua
condição
escrava
ou
de
descendente
de
escravos
é
muito
diversa
das
imagens
de
mulheres
europeias
e
suas
descendentes
e
mesmo
de
mulheres
índias
ou
descendentes
de
indígenas
que
foram
retratadas
em
gravuras,
pinturas
e
fotografias
do
Brasil
colônia
ao
Brasil
Império
e
muito
tempo
depois.
Essas
imagens
retratam
mulheres
negras,
africanas
e
afro-‐brasileiras,
vestidas
de
saias
e
blusas,
enquanto
que
as
mulheres
brancas
são
geralmente
retratadas
com
vestidos
inteiriços,
sem
a
divisão
visual
evidente
entre
blusa
e
saia.
Esses
modos
distintivos
de
vestir
parecem
remontar
às
roupas
camponesas
da
Europa
e
relacionaria
mulheres
escravizadas
e/ou
pobres
à
condição
rural,
notadamente
defasada
em
relação
à
moda
que
as
mulheres
mais
urbanizadas
ou
modernizadas
na
aparência,
aquelas
que
vestem
vestidos
inteiros
durante
todo
o
século
XIX.
É
possível
que
esses
modos
distintos
de
vestir
tenham
sido
continuados
no
Brasil
mesmo
depois
da
proclamação
da
República.
A
permanência
da
saia
e
blusa
como
vestimentas
características
de
mulheres
afro-‐brasileiras
é
ainda
notável
no
Brasil
atual,
o
que
parece
indicar
uma
proximidade
ao
modo
de
vestir
do
século
XIX,
apesar
das
mudanças
sociais
ocorridas
na
historia
recente
do
país5.
Pouco
tem
sido
estudado
a
respeito
da
indumentária
no
Brasil,
particularmente
o
que
as
crianças
vestem
e
vestiram.
Um
estudo
feito
a
partir
da
análise
de
imagens,
a
exemplo
do
que
foi
realizado
sobre
a
obra
“Redenção
de
Cã”
do
artista
Modesto
Brocos
y
Gomes
[1852-‐1936]
(Capel
et
al.,
2012),
demonstra
como
as
visualidades
revelam
a
complexa
transformação
social
em
progresso
e
serve
como
modelo
para
análises
sobre
indumentária
a
partir
da
cultura
visual.
Visando
compreender
como
a
indumentária
pode
revelar
traços
das
diferenças
sociais
marcadas
pelo
racismo,
segue
uma
análise
da
obra
“Fascinação”
(1909).
O
método
utilizado
para
analisar
a
imagem
é
baseado
na
proposta
de
Heloísa
Capel
(n.d.)
para
professores
utilizarem
em
suas
aulas
de
história.
De
acordo
com
a
proposta
de
análise
de
imagem,
a
autora
sugere
as
seguintes
etapas
de
trabalho:
Observação
Inicial
e
Escrita
de
Percepção;
Anotação
de
questões–problema
a
partir
das
observações
feitas
inicialmente;
Investigação
das
questões–problema
a
partir
das
questões
elaboradas;
Exame
de
Elementos
de
Produção
da
Imagem;
Análise
de
Dados
de
Circulação
e
Recepção
da
Imagem
e
Diálogo
com
Outras
Obras.
Esta
última
etapa
auxilia
o
pesquisador
a
situar
a
produção
e
circulação
da
imagem.
A
Indumentária
em
Pedro
Peres
Pouco
foi
escrito
a
respeito
da
indumentária
que
africanos
e
afro-‐brasileiros
vestiram
no
longo
período
de
colonização
europeia
no
Brasil
e
no
período
pós-‐colonial
seguido
pela
independência
e
abolição
da
escravidão
no
país.
João
Braga
e
Luís
André
do
Prado
(2011)
narram
a
história
da
moda
brasileira
4
A
presença
da
população
negra
nas
cidades
e
a
diversidade
de
discursos
foi
tema
de
discussão
do
simpósio
“Negros
nas
Cidades
Brasileiras
1890-‐1950”
de
24
a
26
de
agosto
de
2015
no
Centro
Universitário
Maria
Antônia/USP,
em
São
Paulo.
Disponível
em:
www.usp.br/cpc.
Acesso
em:
20/08/2015.
5
Sobre
este
tema
ver
número
especial
da
revista
Fashion
Theory
(no
prelo):
Andrade,
Rita;
Root,
Regina
(eds).
2016.
Brazilian
Fashion,
an
special
issue
of
Fashion
Theory
–
the
jornal
of
Dress,
body
and
culture.
Vol.
20.2.
February.
considerando
que
houve
uma
importante
influência
africana
na
constituição
cultural
da
nação,
mas
não
destacam
as
profundas
diferenças
entre
os
modos
de
vestir
de
escravos
e
libertos
ou
ex-‐escravos
pobres
e
a
população
mais
rica.
Essas
diferenças
são
brevemente
tratadas
por
Marcos
Hill
(2012)
em
seu
estudo
sobre
a
presença
de
“mulatos”
na
cultura
visual
brasileira,
marcadamente
na
história
da
arte.
Este
autor
buscou
nos
marcos
da
cultura
brasileira,
como
as
obras
de
Debret
do
século
XIX
e
os
textos
de
Mario
de
Andrade
no
século
XX,
vestígios
de
uma
configuração
cultural
mestiça
e
as
relacionou
à
produção
artística
do
longo
período
entre
o
século
XVII
e
o
século
XX.
Contudo,
ainda
não
vemos
a
indumentária
destacada
como
elemento
relevante
ao
estudo
das
visualidades.
Um
dos
raros
estudos
sobre
a
indumentária
de
escravos
é
o
de
Julita
Scarano
(2002)
que
pesquisou
o
cotidiano
de
escravos
em
Minas
Gerais
do
século
XVIII
e
observou
que
as
vestimentas
são
um
importante
aspecto
para
a
construção
da
história
social
e
cultural
do
Brasil.
A
autora
acredita
que
a
escassez
de
fontes
relativas
à
indumentária,
inclusive
as
próprias
roupas,
contribui
para
a
ausência
de
estudos
especializados
sobre
o
tema.
Acredito
que
estudos
relativos
à
indumentária
e
os
modos
de
vestir
a
partir
de
análise
de
imagens
e
artefatos
possam
contribuir
para
discutir
racismo
e
desigualdade
social
no
período
tratado,
muitas
vezes
atenuadas
pelos
discursos
nacionalistas
e
abolucionistas.
Como
observaram
Ana
Paula
Benachio
et
al.
(2014,
p.4),
sobre
uma
outra
obra
de
Peres
:
“N’A
Primeira
Libertação
de
Pedro
Peres,
os
homens
negros
não
são
meros
complementos
à
cena:
eles
têm
um
papel
relevante,
mas
ainda
assim
não
são
personagens
completamente
construídos
e
individualizados.
No
nosso
entender,
trata-‐se
mais
de
uma
alegoria,
uma
representação
da
liberdade
e
de
um
mundo
que
ainda
estaria
por
vir.”
Este
mundo
“por
vir”
está
também
representado
de
modo
singelo
em
outras
obras
do
artista.
Em
“Fascinação”,
1909,
Pedro
Peres
retratou
em
óleo
sobre
madeira
(35,7
x
31,2cm)
uma
cena
íntima
que
tem
duas
figuras
centrais:
uma
criança
negra
e
uma
boneca
branca.
Notáveis
são
as
diferenças
entre
as
meninas
retratadas,
o
símbolo
da
boneca
–
imaculada,
perfeita,
arrumada
–
em
contraste
com
a
menina
mal
vestida.
O
período
parece
ser
o
contemporâneo
do
pintor
no
momento
que
executa
a
obra,
dada
as
características
visuais
retratadas,
como
o
estilo
arquitetônico,
o
mobiliário
e
as
roupas.
A
boneca
está
sentada
sobre
uma
cadeira
de
madeira
com
assento
estofado
e
encosto
coberto
por
uma
espécie
de
xale
com
franjas.
De
cabelos
loiros
e
pele
branca,
aparenta
ter
sido
fabricada
em
porcelana
ou
madeira
e
assemelha-‐se
bastante
às
feições
humanas
de
uma
criança.
Traja
vestido
de
cor
azul
e
renda
branca
de
saia
drapejada
e
blusa
com
jabô,
de
mangas
longas
e
decote
careca
com
gola,
todas
características
de
vestidos
de
alta
moda
francesa
do
século
XIX,
como
podemos
notar
nas
imagens
(Figuras
2
e
3).
Visualmente
o
tecido
aparenta
ser
seda,
dado
o
brilho
e
as
nuances
de
tons
de
azuis
retratados.
Ela
calça
sapatos
que
aparentam
ser
couro
marrom
de
tom
caramelo.
Veste
ainda
um
chapéu
azul
com
ornamentos,
possivelmente
plumas
e
babados
de
renda,
o
que
não
é
possível
identificar
com
segurança
pelo
modo
como
está
retratado.
O
traje
e
a
feição
saudável
(rubra)
da
boneca
contrastam
com
a
visão
que
temos
da
criança
negra,
posicionada
na
obra
ao
lado
da
boneca,
distante
cerca
de
um
metro
e
recostada
em
pé
no
batente
de
uma
porta
branca,
ligeiramente
recuada
em
relação
à
cadeira
com
boneca,
do
ponto
de
vista
do
observador
da
pintura
e
da
cena.
Figura
2
Figura
3
Figura
2.
Princesse
de
Broglie,
1851–53.
Jean
Auguste
Dominique
Ingres
(Francês,
1780–1867).
Óleo
sobre
tela
(121.3
x
90.8
cm).
Coleção
Robert
Lehman,
1975
(1975.1.186).
Metropolitan
Museum
of
Art,
Nova
Iorque.
Disponível
em:
http://www.metmuseum.org/toah/works-‐of-‐art/1975.1.186.
Acesso
em
25/10/2015.
Neste
retrato
de
meados
do
século
XIX
vemos
um
vestido
azul
com
saia
volumosa,
característica
da
moda
francesa
da
época.
A
manga
curta
diferencia
esta
voga
de
outra,
mais
característica
do
final
do
século
que
é
mais
parecida
com
a
roupa
da
boneca.
Figura
3.
Vestido
de
seda
e
renda
Liberty
&
Co
London,
Inglaterra,
1893-‐1894.
©
Victoria
&
Albert
Museum,
Londres.
Número
de
localização:
T.17-‐1985.
Disponível
em:
http://www.vam.ac.uk/content/articles/v/victorian-‐dress-‐at-‐v-‐and-‐a/.
Acesso
em
25/10/2015.
Este
vestido,
aqui
reproduzido
em
baixa
resolução
em
um
pequeno
detalhe,
é
muito
semelhante
ao
da
boneca.
Feito
em
seda
de
cor
azul
e
com
detalhes
em
renda
branca,
foi
moda
no
final
do
século
XIX
e
produzido
pelo
maganize
inglês
Liberty,
indicando
uma
voga
que
havia
se
tornado
internacional.
A
criança
tem
feições
de
menina,
está
vestida
com
vestido
de
cor
clara,
um
tom
entre
creme
e
rosado.
O
traje
aparenta
ser
uma
peça
inteira,
vestido
de
mangas
longas,
cintado,
com
jabô
aparentemente
do
mesmo
tecido
ou
cor.
A
simplicidade
do
vestido
da
criança,
que
não
calça
sapatos
ou
veste
outros
adereços
como
chapéu,
contrasta
muito
com
a
riqueza
de
detalhes
dos
trajes
da
boneca.
A
menina,
cujo
braço
esquerdo
se
apoia
para
cima
no
batente
da
porta,
olha
a
boneca
com
expressão
de
fascínio,
o
que
remete
ao
título
da
obra:
fascinação.
A
boca
está
entreaberta
e
o
rosto
não
expressa
felicidade
ou
tristeza,
mas
há
algo
no
modo
de
retratar
a
menina
que
nos
remete
à
contemplação
de
um
objeto
que
não
poderá
ser
tocado.
A
pobreza
fora
retratada
por
outros
artistas
no
século
XIX
e
início
do
XX,
e
a
indumentária
é
um
dos
elementos
que
melhor
destaca
essa
condição
social,
conforme
vemos
nas
figuras
4
e
5.
Figura
4
Figura
5
Figura
4.
Negra
tatuada
vendendo
caju,
1827.
Jean-‐Baptiste
Debret.
Aquarela
sobre
papel.
15.6
x
21
cm
Museus
Castro
Maya
-‐
IPHAN/MinC,
Rio
de
Janeiro.
Disponível
em:
http://museuscastromaya.com.br/colecoes/brasiliana/.
Acesso
em
10/11/2015.
Em
suas
aquarelas,
Debret
retratou
mulheres
negras
como
essas
vendedoras
de
frutas
que
vestiam
saia
e
blusa
no
início
do
século
XIX.
Ainda
hoje
as
vendedoras
de
acarajé
são
vistas
em
Salvador/BA
com
este
tipo
de
traje.
Figura
5.
Nhá
Chica,
1895.
José
Ferraz
de
Almeida
Júnior.
Óleo
sobre
tela,
109
X
72
cm.
Acervo
Pinacoteca
do
estado
de
São
Paulo.
Disponível
em:
http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-‐pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2335.
Acesso
em:
28/10/2015.
Vestir-‐se
de
blusa
e
saia
era
comum
às
mulheres
mais
pobres
do
Brasil
como
na
Europa.
Vestidos
inteiros
feitos
de
um
único
tecido
era
um
privilégio
aparentemente
dos
mais
ricos,
ao
menos
enquanto
a
costura
industrial
não
passou
a
dominar
a
produção
do
vestuário
que
viria
a
acontecer
no
século
XX.
Apesar
de
as
mulheres
pobres
e
negras
terem
sido
retratadas
muitas
vezes
vestindo
saia
e
blusa
no
lugar
de
vestidos
inteiriços
de
mulheres
burguesas
e
brancas,
vemos
a
criança
negra
vestida
de
um
modo
diverso.
Ela
não
está
retratada
com
saia
e
blusa
como
uma
mulher
mais
velha
e
não
veste
um
vestido
inteiriço
como
a
boneca
que
representa
uma
mulher
à
moda.
Seria
esta
uma
roupa
de
adulto
adaptada
para
a
criança?
Isto
é
possível
já
que
a
menina
parece
vestir
uma
camisa
de
adulto
que
nela
estaria
mais
longa?
Mas
há
ainda
outras
possibilidades,
como
a
de
uma
roupa
feita
para
a
criança
a
partir
de
tecidos
grosseiros
disponíveis
para
corte
e
costura
de
roupas
das
populações
mais
pobres,
como
acontece
ainda
hoje
no
interior
dos
estados
brasileiros
em
que
populações
rurais
vestem-‐se
com
trajes
feitos
de
sacos
de
algodão
que
embalam
alimentos
e
outros
produtos.
Este
é
um
tema
fascinante
de
investigação
para
ser
perseguido
num
trabalho
de
maior
fôlego.
Uma
pesquisa
em
arquivos
históricos
e
acervos
de
museus
poderia
informar
a
respeito
dos
modos
de
vestir
que
a
cultura
visual
nos
apresenta.
Todo
o
entorno
da
cena
apresenta
um
ambiente
rico:
o
tapete
aparentemente
Aubusson,
um
estilo
francês,
o
mobiliário
de
madeira
com
desenho
ornamental,
a
cadeira
de
balanço
que
aparece
no
fundo
e
tem
desenho
Thonet
sobre
o
qual
vemos
um
tecido,
possivelmente
um
xale
franjado,
característica
da
moda
feminina
do
período
em
que
a
obra
foi
realizada.
Há
livros
dispostos
em
prateleiras
também
ao
fundo,
o
que
remete
à
casa
de
gente
letrada.
O
estilo
de
retrato
do
cotidiano,
conhecido
por
pintura
de
gênero,
é
característico
da
época.
Não
é
possível
precisar
a
localidade
representada,
mas
pode
ser
uma
casa
brasileira
já
que
vemos
a
relação
racial
protagonizando
a
cena.
A
obra
fora
executada,
considerando
a
data
1909,
vinte
e
um
anos
depois
da
abolição
da
escravidão
no
Brasil
pelo
decreto
assinado
por
Isabel
aprovado
por
senado
e
câmara
dos
deputados
em
1888.
Mas
em
que
medida
esta
imagem
se
assemelha
a
outras
da
mesma
época?
O
trabalho
de
Ana
Laura
Benachio
(et
al.,
2014),
analisa
uma
parte
importante
das
produções
artísticas
no
Brasil
que
representam
o
negro
entre
1850
e
1950
e
nota
essa
diversidade
de
modos
de
visibilizar
as
tensões
sociais.
Os
autores
concluem
que,
apesar
de
prevalecer
a
produção
de
artistas
brancos
sobre
negros,
há
uma
contribuição
relevante
no
período
em
marcar
as
diferenças
sociais
e
apresentá-‐las
em
sua
complexidade.
De
certa
forma,
o
estudo
do
conjunto
artístico
do
período
ajuda-‐nos
a
ter
essa
percepção
mais
alargada
das
múltiplas
impressões
sobre
essas
tensões.
Certamente,
como
aponta
o
estudo,
novas
pesquisas
precisarão
se
debruçar
sobre
a
produção
de
artistas
negros,
como
Estevão
Silva
(1845?-‐1891)
formado
na
Academia
Imperial
de
Belas
Artes
(Benachio
et
al.,
2014,
p.25)
para
que
tenhamos
uma
dimensão
mais
significativa
das
questões
ligadas
ao
racismo
do
período.
A
Academia
de
Belas
Artes
foi
uma
instituição
muito
importante
para
a
produção
e
difusão
da
ideia
de
uma
arte
nacional.
Pedro
Peres
estudou
na
instituição
tendo
sido
aluno
de
Victor
Meireles
(1832-‐1903)
e
colega
de
Almeida
Júnior
(1850-‐1899).
Através
da
análise
do
trabalho
de
outro
pintor,
Modesto
Brocos
y
Gomez
(1852-‐1936)
(Capel,
2014),
sabemos
como
a
arte
no
Brasil
passava
por
uma
transformação
decorrente,
entre
outras
coisas,
da
mudança
de
regime
político
e
da
consequente
instabilidade
das
instituições
antigas.
Em
seu
trabalho,
a
autora
demonstra
como
buscar
o
“nacional”
na
arte
dependia
agora
de
uma
apreensão
das
questões
locais.
Segundo
ela
(Capel,
2014,
p.5),
não
bastava
a
solução
formal
das
obras,
muitas
delas
baseadas
numa
formação
europeia
dos
artistas,
mas
a
nova
estética
processava-‐se
“(...)
por
meio
da
observação
empírica
da
localidade,
pela
observação
dos
tipos
nacionais,
elementos
únicos
que
pudessem
contribuir
na
composição
de
uma
obra”.
Em
Pedro
Peres
observamos
essa
absorção
dos
aspectos
sensíveis
da
realidade
local
para
além
da
forma
acadêmica
de
pintura.
Parece
haver
em
“Fascinação”
uma
escolha
por
manter
o
conflito
em
suspenso,
como
se
participássemos
da
cena
sem
que
percebessem
nossa
presença.
No
trabalho
de
Peres
há
um
convite
para
espreitar
os
acontecimentos
naquilo
que
eles
tem
de
complexo,
é
como
se
o
artista
tivesse
registrado
a
tensão
velada
da
cena
que
presenciou.
Um
modo
semelhante
de
registro
do
cotidiano
encontramos
em
Almeida
Junior
(1850-‐1899).
Contudo,
as
cenas
registradas
por
ele
parecem
refletir
um
distanciamento
quase
científico
entre
o
artista
e
a
cena
registrada,
como
se
o
artista
fosse
um
mediador,
documentando
a
cena
sem
transpor
o
limite
objetivo
dos
elementos
retratados.
Em
Pedro
Peres
vejo
algo
distinto,
uma
sensibilidade
para
captar
o
subjetivo
na
cena
e
destacar
o
que
estaria,
de
outra
forma,
invisível.
Em
relação
à
produção
artística
de
sua
época
Pedro
Peres
apresenta
um
olhar
sensível
às
questões
sociais
brasileiras,
em
especial
às
dos
problemas
visivelmente
presentes
após
a
abolição
da
escravidão.
Havia
outros
artistas,
além
do
prestigiado
Almeida
Junior
já
mencionado,
que
ao
se
preocuparem
em
retratar
o
cotidiano,
demonstraram
de
modos
distintos
as
tensões
raciais
presentes
na
sociedade
que
lidava
com
as
mudanças
recentes.
O
que
prevalece
nas
obras
da
época
é
a
imagem
de
um
distanciamento
entre
negros
e
brancos,
sendo
os
primeiros
aqueles
que
estão
à
sombra
ou
à
serviços
dos
últimos.
Em
seu
artigo
sobre
representações
de
negros
e
índios
brasileiros
na
produção
artística
nacional,
Vera
Lins
(Revista
Z
Cultural,
s/d)
observa
como
o
historicismo
presente
nas
várias
obras
produzidas
no
final
do
século
XIX
e
início
do
XX
perde
em
importância
quando
o
sensível
é
o
aspecto
privilegiado
pelo
pintor.
Sobre
a
obra
“Fascinação”
e
refletindo
sobre
a
ideia
da
partilha
do
sensível
em
Jacques
Rancière,
a
autora
disse:
“Na
pintura,
o
regime
estético
depunha
os
quadros
históricos
e
trazia
o
banal
à
cena.
Não
é
mais
a
representação
da
nacionalidade
o
que
conta,
mas
as
questões
que
afloram
–
possibilitando
a
reconfiguração
polêmica
do
sensível.
Passa-‐se
dos
grandes
acontecimentos
e
personagens
à
vida
dos
anônimos,
identificando
os
sintomas
de
uma
época,
sociedade
ou
civilização
nos
detalhes
ínfimos
da
vida
ordinária.
O
que
acontece
já
no
quadro
Fascinação,
que
gera
pensamento,
o
que
se
espera
da
arte.”
Considerações
finais
Os
tecidos,
as
cores,
os
trajes
são
elementos
que
destacam
as
diferenças
sociais
que
na
obra
são
retratadas
na
menina
negra
e
na
boneca
branca
com
visível
contraste.
Uma
representa
um
modo
de
vida
centrado
no
consumo
de
produtos
de
moda,
de
luxo,
o
que
identificamos
em
muitos
dos
objetos
que
veste
e
reveste:
a
cadeira,
o
chapéu,
os
sapatos
e
vestido
de
seda
com
renda,
o
rubor
da
face.
A
outra
parece
se
apoiar
de
uma
forma
incômoda
à
cena,
olha
a
boneca
com
a
expressão
de
quem
vive
distante
do
mundo
em
que
ela
também
habita.
Além
da
fascinação,
há
um
deslocamento,
uma
inadequação
retratada
que
nenhum
objeto
enseja
tão
bem
quanto
a
indumentária.
A
análise
de
imagem
é
um
instrumento
legítimo
na
busca
por
conhecimento
a
respeito
da
história
cultural
e
social,
especialmente
importante
quando
os
discursos
predominantes
invisibilizam
os
preconceitos
que
vão
se
arraigando
e
naturalizando
na
sociedade
brasileira.
As
roupas
e
a
moda
são
marcadores
dessa
distinção
social
que
revela
o
racismo,
como
vemos
destacadamente
na
obra
de
Pedro
Peres.
Estudos
sobre
indumentária
a
partir
da
análise
de
imagens,
assim
como
a
de
artefatos,
colaboram
para
uma
visão
mais
abrangente
da
situação
complexa,
da
sensação
de
inadequação
de
negros
e
ex
escravos
no
início
da
República.
Agradecimentos
Agradeço
as
Professoras
Dra.
Heloísa
Selma
Fernandes
Capel
e
Ms.
Ana
Amélia
Aquino
Brito
pelas
sugestões
valiosas
na
elaboração
deste
texto,
inicialmente
preparado
para
a
conclusão
do
curso
de
especialização
em
História
e
Cultura
Afro-‐Brasileira
e
Africana
(2014-‐2015).
Agradeço
ainda
a
leitura
cuidadosa
e
as
importantes
contribuições
dos
pareceristas
para
a
elaboração
da
versão
final
deste
artigo,
assim
como
a
organização
do
evento
pela
cuidadosa
gestão
do
processo
de
revisão
cega
pelos
pares,
que
considero
crucial
para
o
amadurecimento
e
consolidação
da
área
de
pesquisa.
Finalmente,
agradeço
a
Indyanelle
Marçal
Garcia
e
Luiz
Guilherme
Menezes
Di
Calaça,
responsáveis
pela
tradução
deste
artigo
com
revisão
final
minha.
Referências
Benachio,
Ana
Laura;
Beck,
Diego
Eridson;
Costa,
Rafael
Machado;
Vargas,
Rosane.
2014.
Considerações
sobre
a
representação
do
negro
na
arte
do
Brasil,
1850-‐1950.
In:
Revista
19&20,
Rio
de
Janeiro,
v.
IX,
n.
1,
jan./jun.
Disponível
em:
http://www.dezenovevinte.net/obras/negro_representacoes.htm
Braga,
João
e
Prado,
Luís
André
do.2011.
História
da
Moda
no
Brasil
-‐
das
influências
às
autorreferências.
São
Paulo:
Pyxis
Editorial,
2a
ed.
Calanca,
Daniela.
2008.
História
Social
da
Moda.
Tradução
Renato
Ambrósio.
São
Paulo:
Senac.
Capel,
Heloísa
Selma
Fernandes.
2014.
Artífice
Da
Tradição:
Modesto
Brocos
Y
Gomez
(1852-‐1936)
no
debate
sobre
a
identidade
nacional.
In:
Fênix
–
Revista
de
História
e
Estudos
Culturais
Julho
-‐
Dezembro
Vol.
11
Ano
XI
nº
2
ISSN:
1807-‐6971.
Disponível
em:
www.revistafenix.pro.br
-‐-‐-‐.
“n.d”.Como
analisar
uma
imagem:
sugestões
para
o
professor.
Texto
do
curso
de
especialização
à
distância
em
História
e
Cultura
Afro-‐Brasileira
e
Africana.
Disponível
em:
http://www.historiaecultura.ciar.ufg.br/modulo3/capitulo13/conteudo/2-‐1.html
-‐-‐-‐,
H.S.F.;
G.Witeze
Junior.
2012.
Performances
híbridas
no
pensamento
utópico
de
Modesto
Brocos
y
Gomez
(1852-‐1936).
In:
Estudos
Ibero-‐Americanos,
PUCRS,
v.
38,
n.
2,
p.
363-‐380,
jul./dez.
Disponível
em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/12071/8727.
Gates
Jr.,
Henry
Louis.
2014.
Os
negros
na
América
Latina.
Tradução
Donaldson
M.
Garschagen.
São
Paulo:
Companhia
das
Letras.
Hill,
Marcos.
2012.
Quem
são
os
mulatos?
Belo
Horizonte:
Editora
C/Arte.
Scarano,
Julita.
2002.
Negro
nas
terras
do
ouro:
cotidiano
e
solidariedade
século
XVIII.
São
Paulo:
Editora
Brasiliense.
Lins,
Vera.
“n.d”.
Representações
do
primitivo:
cenas
de
pensamento.
Z
Cultural:
revista
do
Programa
Avançado
de
Cultura
Contemporânea.
Ano
VIII,
número
03,
ISSN
19809921.
Disponível
em:
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cenas-‐afro-‐brasileiras-‐de-‐vera-‐lins
Schwarcz,
Lilia
Moritz.
1993.
O
Espetáculo
das
raças
-‐
cientistas,
instituições
e
questão
racial
no
Brasil
do
século
XIX.
São
Paulo:
Cia
das
Letras.
Souza,
Gilda
de
Melo
e.
1987.
O
espírito
das
roupas:
a
moda
do
século
XIX.
São
Paulo:
Cia
das
Letras.