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o espaço

Universidade de São Paulo

o espaço
como obra como obra

o espaço como obra


ações, coletivos artísticos e cidade

Joana Zatz Mussi ações, coletivos artísticos e cidade

O ESPAÇO COMO OBRA:


Ações, Coletivos Artísticos e Cidade
é uma reflexão a respeito dos processos
de criação e impacto social das ações dos
coletivos artísticos Contrafilé, Frente 3
de Fevereiro e Política do Impossível
(de São Paulo) e GAC (de Buenos Aires),
que começaram a atuar em meados dos anos
1990. O intuito é compreender como as
intervenções urbanas, ao mesmo tempo,
resultam e geram uma rede de afetos
e significados e evidenciam a emergência
de uma subjetividade política contemporânea
que passa, necessariamente, por discutir
e concretizar políticas de representação,

Joana Zatz Mussi


relação, subjetivação e modos de vida
alternativos aos impostos pelo neoliberalismo.
Interessa, portanto, pensar como acontece
e toma corpo a potência crítica situada deste
tipo de resistência, configurando formas
atuais do fazer político no contexto
específico e complexo da cidade como escala
e espaço referencial.

Joana Zatz Mussi


Universidade de São Paulo 1 USP São Paulo, 2012
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O ESPAÇO COMO OBRA


ações, coletivos artísticos e cidade

São Paulo
2012
Joana Zatz Mussi
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O ESPAÇO COMO OBRA


ações, coletivos artísticos e cidade

Dissertação apresentada à Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo
Área de Concentração: Projeto, Espaço
e Cultura

Orientadora: Profa. Dra. Vera Pallamin

São Paulo
2012
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Mussi, Joana Zatz


M989 O espaço como obra : ações, coletivos artísticos
e cidade / Joana Zatz Mussi. – São
Paulo, 2012.
326 p. : il.

Dissertação (Mestrado - Área de


Concentração: Projeto, Espaço e Cultura -
FAUUSP.

Orientadora: Vera Pallamin


1. Arte pública 2. Performance 3. Artes
(Aspectos políticos, culturais, urbanísticos, sociais) –
América Latina 4. Artes – Século 21 5. Coletivos
artísticos I.Título

CDU 7.067.3

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU


PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CON-
VENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

E-MAIL: joanazatzmussi@gmail.com
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Agradecimentos

Essa dissertação é resultado de doze anos de trabalho junto


a diversas pessoas e coletivos, brasileiros e estrangeiros, implicados
em refletir e agir eticamente para que a vida adquira sentidos com-
partilhados, mais justos e interessantes. Não tenho nem palavras para
agradecer a tantas pessoas e grupos com os quais fiz tantas coisas,
conversei tanto e que me fizeram entender as formas e forças do
mundo, em muitos aspectos, mais profundamente: Contrafilé, GAC,
PI, Frente 3 de Fevereiro, Bijari, Rodrigo Araújo, Casa de Cultura
Tainã e Rede Mocambos, Brian Holmes, Colectivo Situaciones, Er-
roristas, Marcelo Expósito, WHW, Zanny Beg, Keg de Souza,
Cobaia, What’s to be Done?, Coringa, Gavin Adams (que também
fez o Abstract “na faixa”, valeu Gavin!), André Mesquita, entre
muitos outros.
Vera Pallamin, minha orientadora, é também uma dessas pes-
soas. De dentro da Universidade e sendo sobretudo uma acadêmica,
é dos poucos que, desse universo, efetivamente dialoga com todo o
movimento cultural e artístico aqui analisado, de forma séria, com-
petente e implicada. Ao longo desses quatro anos desde que comecei
a escrever o projeto inicial para concorrer a uma vaga no Programa
de Mestrado da FAU-USP, ela me ensinou diversas coisas, mas talvez
a mais importante tenha sido essa: poder unir o rigor acadêmico com
as minhas urgências para refletir sobre aquilo que fizemos ao longo
desses doze anos, enquanto artistas-interventores no espaço urbano,
ajudando-me a entrar em contato com as “dobras” do pensamento,
necessárias para que ele adquira sinceridade e consistência.
Cibele Lucena, Peetssa (Fábio Invamoto) e Jerusa Messina,
que começaram essa jornada comigo. Lembro das primeiras vezes

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em que nos encontramos, simplesmente para pensar juntos sobre o


que estávamos sentindo, sempre partindo, em nossas conversas, das
sensações que tínhamos em relação à vida na cidade, da falta de
conexão com o corpo, da falta de possibilidade de diálogo, do vazio
de espaços de compartilhamento. Juntos, como corpo coletivo,
pudemos sair do isolamento e começar a agir. Fizemos tantas coisas
juntos, viajamos a tantos lugares, conhecemos tantas pessoas, tantas
histórias e lutas. Esses são meus irmãos de “alma”.
Agradeço ao TC (Antonio Carlos Santos da Silva), Suely Rol-
nik, Osvaldo e D. Mauri (Maurinete Lima), mestres. Desses mestres
ancestrais, que ensinam muito além das palavras, mas com uma
sabedoria fluida e generosa, que ocupa todos os espaços da vida. Ver-
dadeiros professores.
Ao Rafael Leona, meu companheiro e grande parceiro de tra-
balho. Foi ele quem me introduziu em todo um universo de pensa-
mento e ação argentino, em uma forma de sentir e fazer política,
presente nesse país tão próximo ao nosso, mas que, às vezes, por
nossa falta de conhecimento do que se passa ali, se torna tão distante.
Com ele, pude conhecer muitos lugares e pessoas em Buenos Aires.
Também é, atualmente, meu maior interlocutor, a pessoa com quem
mais converso sobre as dúvidas e incertezas do pensamento e da vida.
À minha querida mãe, Lia, única pessoa, além da minha ori-
entadora, que leu e releu o meu trabalho todo, revisando, comen-
tando, exigindo que a linguagem ficasse mais acessível para aqueles
“de fora” desse universo reflexivo. Além disso, se não fosse o seu ca-
rinho e cuidado com o Sebastian, meu filho, certamente não teria
conseguido chegar ao final deste trabalho. Quanto a isso, também
agradeço a outras pessoas que foram fundamentais para que o Seba
se sentisse acolhido, mesmo com as minhas ausências, necessárias,
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ao longo desse processo: Rafael, o pai; Breno, o avô; Diana e Chico,


tios; a sua prima querida, Alice; aos bisavós Lygia e Nelson; à sua tia-
prima Ruby (que também fez a primeira versão do abstract na faixa!),
à tia-avó Cláudia e ao priminho Gabriel.
Ao Daniel Lima, parceiro de trabalho desde sempre e res-
ponsável pelo projeto gráfico desta dissertação. Foi das poucas pes-
soas com quem pude conversar sobre pontos que ainda não estavam
muito claros e que me ajudou a entender imageticamente o trabalho.
À Regina Favre, que me ensinou a me desvincular de uma re-
lação com o trabalho intelectual e acadêmico como “obrigação” e
“busca de prestígio”, para dar um mergulho necessário e verdadeiro
na reflexão, tornando-a muito mais prazerosa e urgente. Sem isso,
certamente o trabalho não teria sido concluído ou teria ficado bem
menos colado às minhas verdadeiras necessidades de elaboração.
À Wilma Araújo Costa (in memorian), que sempre me incen-
tivou a voltar para a Universidade, retomar os estudos, levar a sério
esse caminho do pensamento. Obrigada Wilma, agora vejo o quanto
valeu a pena.

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para Seba e Rafa, meus amores


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Resumo

O ESPAÇO COMO OBRA: Ações, Coletivos Artís-


ticos e Cidade é uma reflexão a respeito dos processos de criação
e impacto social das ações dos coletivos artísticos Contrafilé,
Frente 3 de Fevereiro e Política do Impossível (de São Paulo) e GAC
(de Buenos Aires), que começaram a atuar em meados dos anos
1990. A dissertação foi desenvolvida a partir de diversas vozes, que
se complementam e entrecruzam: uma voz narrativa, que vai apre-
sentando descobertas feitas em minha atuação como artista no es-
paço urbano e que surge de uma dimensão local, inclusive íntima,
chegando a uma voz mais “reflexiva e acadêmica”; vozes da grande
mídia; as vozes dos próprios trabalhos artísticos apresentados;
vozes dos coletivos, quando são utilizados como referências teóri-
cas; e, por último, vozes de pensadores que de alguma forma influ-
enciam o meu pensamento e o do movimento cultural do qual
fazem parte as práticas urbanas aqui analisadas. O intuito é com-
preender como as intervenções urbanas, ao mesmo tempo, resul-
tam e geram uma rede de afetos e significados e evidenciam a
emergência de uma subjetividade política contemporânea que
passa, necessariamente, por discutir e concretizar políticas de repre-
sentação, relação, subjetivação e modos de vida alternativos aos im-
postos pelo neoliberalismo. Interessa, portanto, pensar como
acontece e toma corpo a potência crítica situada deste tipo de re-
sistência, configurando formas atuais do fazer político no contexto
específico e complexo da cidade como escala e espaço referencial.
O estudo se desenvolve como uma investigação ativa e participante
de diversos trabalhos realizados pelos coletivos e através da qual
me interessa observar essas ações/intervenções em seu poder dis-
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ruptivo, ou seja, em sua capacidade de presentificar acontecimen-


tos que de alguma forma desestabilizem representações sociais e
sensações prévias. E que, ao evidenciar a possibilidade de fazê-lo,
trazem à tona um saber circulatório que difunde a imagem pro-
duzida em situação (representação direta) e a experiência do
“público” como obra.
palavras-chave: intervenção urbana, coletivos artísticos, subje-
tividade política, cidade, espaço, representação direta, práticas situ-
adas, potência crítica, performance, imagem, arte contemporânea,
artes (aspectos políticos, culturais, urbanos e sociais), artes século
21, artes América Latina, arte pública, mídia e cultura, público,
ativismo.

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Abstract

The Space as the Work: Actions, Art Collectives and


City is a reflection on creation processes and social impact of ac-
tions carried out by art collectives Contrafilé, Frente 3 de Fevereiro
and Política do Impossível (from São Paulo), as well as GAC (Buenos
Aires). These collectives have began work in the 1990’s. The disser-
tation stems from multiple voices, which cross over and complement
each other: a narrative voice that unravel discoveries made in my
work as an artist in the urban space, emerging from a local and also
intimate dimension, arriving at a “more reflexive and academic”
voice; voices of the mainstream media; voices of the works studied;
voices of the collectives, when they are mobilised as theoretical refe-
rences and, lastly, voices of the thinkers who somehow influenced
my thinking and voices of the cultural movement of which the urban
practices under scrutiny are part of. The aim is to understand how
the urban interventions at once result from and generate a network
of affects and meanings, as they render evident the emergence of a
contemporary political subjectivity. This subjectivity necessarily in-
volves discussing and carrying out a politics of representation, rela-
tion, subjectivation and modes of life alternative to those imposed by
neoliberalism. Under this light, the dissertation seeks to think how
the critical potency situated in this kind of resistance can be em-
bodied and takes place at all, configuring current forms of political
making, in the specific and complex context of the city as scale and
as referential space. This study developed as an active and partici-
pating investigation of several works carried out by the collectives. I
seek to observe the actions/interventions in their disruptive power,
i.e., in their capacity to render present events that somehow desta-

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bilise social representations and previous sensations. And which, as


they evidence the possibility of being carried out, they bring to the
surface a circulatory knowledge that diffuses the image produced in
situation (direct representation) and the experience of the “public”
as work.
keywords: urban intervention, art collectives, political subjectivity,
city, space, direct representation, public, situated practices, critical
potency, performance, image, contemporary art, art (political, cul-
tural, urban and social aspects), 21 century art, Latin American art,
public art, media and culture, public, activism.

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Índice

Introdução 21
Conversa introdutória 36

Capítulo 1 – nada é mais importante


do que essa nuança fugidia 49
Aprendendo a se entregar ao risco 50
Não estamos em rebelião:
notando na hegemonia a diferença 73
Mídia Tática 91
Enunciação e emancipação 102
Metáforas do Confinamento 129

Capítulo 2 – a cidade em disputa 153


A cidade enquanto espaço referencial 154
Espacialização da norma e da invenção 163
Circulação: encontro do GAC com coletivos
de São Paulo e contaminações 192

Capítulo 3 - pensando a crítica 227


Justaposição e instituição 228
Repensando a crítica 234
Performatizar a crítica 242

Capítulo 4 – eles não podem partir sem nós 268


Local e Global: escala 1:1 em movimento 270
Estranhar o próximo, aproximar o distante 273
Um agir que conecta 276

Bibliografia 314
Lista de Imagens 323
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Primavera Árabe, Egito, 2011.

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A urgência não é uma bandeira, é uma necessidade que se impõe.1

1. Contrafilé, Lucas Bambozzi, Ricardo Rosas, Artigo Urgência in: Revista Parachute número
116 (São Paulo). Editora: Suely Rolnik, Montreal, Canadá, 2003.

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INTRODUÇÃO

Se existe algo a esboçar no atual ciclo de protestos (que,


apenas para descrevê-lo rapidamente, tem períodos de
máxima visibilidade com o contexto compreendido entre
Seattle e Gênova ou a manifestação mundial contra a
guerra do Iraque, momentos fundantes como a insur-
reição zapatista de 1994, efeitos em escala macropolítica
como os processos de mudança institucional na América
Latina, etc.), é seguramente a maneira como a inovação
constitui uma característica estrutural das novas formas
de ação e construção política que estão na base deste
ciclo. Parece dar-se nesses anos uma verificação da imagem
da máquina que Guattari e Deleuze utilizaram para de-
nominar a necessidade de formas organizativas abertas e
flexíveis para a criatividade política, para as quais as di-
mensões molar e molecular, micro e macro da política,
puderam deixar de ser, como em outros momentos foram,
mutuamente excludentes (Marcelo Expósito)2.
[…] O Manifesto do Movimento de 15-M afirma muito
claramente: ‘As prioridades de qualquer sociedade
avançada devem ser a igualdade, o progresso, a soli-
dariedade, o livre acesso à cultura, a sustentabilidade
ecológica e o desenvolvimento, o bem-estar social e a fe-
licidade das pessoas’. […] A cidadania hoje se constitui
como tendência à auto-representação. Migrantes, mulhe-
res, pessoas afetadas pelas hipotecas, pela destruição do
meio ambiente ou pela degradação dos serviços públicos,
comunidades agrupadas em torno de modos de vida sin-

2. Por ocasião do Seminário Máquinas, do qual participei junto com Daniel Lima, sob
coordenação da Revista Brumaria, Museu d'Art Contemporani de Barcelona (Macba), 2007.

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gulares, redes sociais e um longo etcetera de composições


emergentes têm encontrado formas de falar por si mes-
mos, sem as formas calcificadas de mediação por parte do
aparato institucional ou representativo. Tudo indica que
a esquerda partidária será obrigada a atravessar, não ape-
nas na Espanha, mas em toda a Europa, uma longa jor-
nada através do deserto. É hora de assumir a obrigação de
ensaiar, para um futuro próximo, novas abordagens que
só podem passar pela aceitação dos limites de sua repre-
sentatividade e pela cooperação com os movimentos e as
formas de associação que crescem nas novas texturas ur-
banas […] (Marcelo Expósito, Tomas Herreros e
Emmanuel Rodriguez)3.

Nos últimos doze anos, ao longo dos quais estive permanen-


temente envolvida com práticas artísticas que encontram no espaço
urbano um dos seus grandes referenciais, uma necessidade que sem-
pre volta a se colocar para mim é a de pensar o lugar da cidade nes-
sas práticas e, inversamente, o lugar dessas práticas na cidade; ao
mesmo tempo, de compreender em que sentidos essa relação diz res-
peito ao mundo contemporâneo. Portanto, de fazer esse exercício de
espelhamento em que a compreensão das problemáticas que se colo-
cam hoje permite um entendimento mais profundo daquilo que gera
esse tipo de experiência de produção e usufruto do espaço, no qual
coletivos e artistas trabalham a partir da cidade, se vendo efetiva-
mente como produtores dela.
Essa produção da cidade pelas práticas artísticas aqui anali-
sadas é discutida como sendo um fenômeno não apenas macropo-
lítico, mas também micropolítico, na medida em que acontece como

3. In: Global Brasil/Revista Nômade edição 14 (on-line), 2011. Link:


http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=690

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um trabalho de elaboração da experiência de embate pela construção


do espaço público. O estudo dos processos de criação e impacto so-
cial das ações de coletivos artísticos que atuam desde meados dos
anos 1990, auge das políticas neoliberais globalizadas, quando surgi-
ram em distintas partes do mundo, evidencia que estes têm como
uma de suas práticas mais contundentes a imersão em problemáticas
situacionais e é daí que partem para apoderar-se da construção de
discursos alternativos, criando com isso uma multiplicidade de for-
mas, representações, soluções criativas e performáticas.
Focarei a prática de quatro coletivos: Contrafilé4, com o qual
trabalho desde que iniciei, em 2001, as minhas pesquisas e práticas
nesse campo de atuação (passarei pelo MICO, grupo a partir do qual
o Contrafilé nasceu, para mostrar o surgimento de problemáticas que
depois seriam aprofundadas de diferentes formas pelos outros grupos);
Política do Impossível5, coletivo formado em 2005 que tem como foco
a prática educativa como prática artística e do qual também faço parte;
Frente 3 de Fevereiro6, coletivo de São Paulo que trabalha com a atu-
alização das formas de compreensão do racismo na sociedade
brasileira; e Grupo de Arte Callejero (GAC)7, de Buenos Aires, Ar-
gentina, que me permite abordar o problema a partir de uma perspec-
tiva, ao mesmo tempo, local e (mesmo que minimamente) deslocada.
O critério usado para a escolha tem em vista a dimensão
crítica do trabalho desses coletivos (ou seja, sua capacidade de pro-

4. “Formado em São Paulo, Brasil, no ano 2000, o Contrafilé é um grupo de investigação


e produção de arte que trabalha a partir de sua experiência cotidiana, implicado na realização
da vida pública, o que é, ao mesmo tempo, ponto de partida e território de proliferação do
seu trabalho”. In: A Rebelião das Crianças, publicação apoiada pelo VAI (Valorização de
Iniciativas Culturais), São Paulo, 2007. O Contrafilé surgiu como decorrência do fim do grupo
MICO, formado por cerca de 20 jovens no ano 2000 na cidade de São Paulo.
5. “O coletivo Política do Impossível – PI realiza projetos de educação e produção coletiva de
arte desde 2004. Cria projetos de investigação e ação no espaço urbano que colocam
os participantes como ativos na dinâmica da cidade, contra sua perpetuação como espaço
dissociado da vida, tornando visíveis possibilidades e desejos de transformação no sentido
da criação de vida pública. O coletivo entende que é no exercício cotidiano de um olhar
íntegro, capaz de relacionar informações e intervir na realidade, que se constitui a
possibilidade de produzir sentidos, e não apenas reproduzi-los”. In: Cidade Luz – Uma
investigação-ação no centro de São Paulo, publicação realizada com o apoio do
Minc/Funarte, São Paulo, 2008.

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duzir novos sentidos no e para o espaço urbano), em contraposição


a outras práticas que são capturadas apenas como “produtos cultu-
rais”. Além disso, conheço a história dos quatro grupos em profun-
didade e tenho acesso a um número extensivo de documentação
sobre todos os trabalhos por eles realizados e às discussões sobre seus
processos internos de produção e de decisões. O que é fundamental,
já que esse tipo de reflexão, que tem como foco a teia micropolítica
que se forma para que uma ação artística seja inscrita no espaço
visível, macropolítico, conta, necessariamente, com esse tipo de ma-
terial, nem sempre disponível ou objetualizado.
A relação de certo afastamento, que não chega a se configu-
rar como uma negação, dos coletivos em relação às questões do cir-
cuito mercantil da arte contemporânea, e o desconforto que possuem
quanto às estratégias (institucionais) de sedução mercantil são outro
ponto chave, pois permite uma leitura sobre o tipo de crítica insti-
tucional que desenvolvem, o que torna mais clara também a com-
preensão que têm em relação à produção dos espaços urbanos.
O que impulsiona a atuação dessa rede de colaboração na
qual estão envolvidos os coletivos mencionados, é a possibilidade de
disputar territórios materiais e simbólicos com os poderes hegemôni-
cos. A prática artística se dá como uma tentativa de fazer emergir,
como ao menos a “imagem da experiência de um devir”, outros pro-

6. “A Frente 3 de Fevereiro é um grupo de pesquisa e intervenção artística acerca do racismo


na sociedade brasileira. Sua abordagem cria novas leituras e coloca em contexto dados que
chegam à população de maneira fragmentada através dos meios de comunicação. As
intervenções artísticas criam novas formas de manifestação sobre as questões raciais. Para
pensar e agir em uma realidade em constante mudança, permeada por transformações
culturais de diversas escalas e sentidos, se fazem necessárias novas estratégias. A Frente 3
de Fevereiro associa o legado artístico de gerações que pensaram maneiras de interagir com
o espaço urbano à histórica luta e resistência da cultura afro-brasileira”. In: Zumbi Somos
Nós – Cartografia do Racismo para o Jovem Urbano, publicação apoiada pelo VAI, São Paulo,
2006.
7. “El GAC / GRUPO DE ARTE CALLEJERO se formó en 1997, a partir de la necesidad de
crear un espacio donde lo artístico y lo político formen parte de un mismo mecanismo de
producción. Es por eso que a la hora de definir nuestro trabajo se desdibujan los límites
establecidos entre los conceptos de militancia y arte, y adquieren un valor mayor los
mecanismos de confrontación real que están dados dentro de un contexto determinado”. In:
http://grupodeartecallejero.blogspot.com.br, acessado em junho de 2012.

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jetos de sociedade, sendo a cidade o domínio no qual as múltiplas es-


calas em jogo na disputa por esse projeto se evidenciam, se encon-
tram, se sobrepõem, se atualizam e se confrontam. Essas imagens,
que surgem a partir de determinadas situações e problemáticas lo-
cais têm, por sua vez, um potencial de iluminar questões em outros
contextos situados, na medida em que tanto nomeiam – criando for-
mas de tornar visíveis e legíveis – acontecimentos estratégicos na pro-
dução do espaço social contemporâneo, quanto ampliam a
visibilidade e legibilidade deles, transformando-os em imagens que
circulam e, assim, inserindo-os efetivamente em um “território cir-
culatório” mais amplo.
Nesse processo, podemos dizer que se cria um tipo específico
de “território circulatório estético e simbólico”, no qual as imagens
surgem da colaboração e mostram um uso alternativo, crítico e sub-
versivo do espaço urbano, uma alternativa de produção do espaço so-
cial. Neste sentido, os símbolos, discursos, intervenções criados pelas
práticas artísticas situadas, podem ser entendidos como formas de
forçar a entrada de dizeres dissonantes como produtores no/do es-
paço urbano.
Nos coletivos analisados, as formas de comunicação que ar-
ticulam a própria cidade como mídia partem do princípio de que so-
mente uma investigação situada é capaz de criar dispositivos
estético-políticos com potencialidade de reinvenção do espaço so-
cial. Em relação à criação de uma perspectiva que dê conta da di-
mensão de acontecimento contida nesses trabalhos:

[...] a teoria crítica estética, atualmente, abre outras perspectivas


de entendimento e atuação por meio da investigação das práticas
e manifestações como esferas de representação, nas quais os sujeitos
sociais envolvidos e os sentidos são produzidos em situação
(Pallamin, 2002, p. 107)

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Por isso, não pretendo realizar a análise do “movimento” ou


uma cartografia para identificar grupos e circunscrever “tipos de
ação”. Mas sim, dar corpo conceitual para questões que permeiam as
discussões e práticas aqui analisadas, tais como: como acontece e se
expressa este tipo de resistência, no contexto específico e complexo
da cidade como referencial; em que sentidos estas experiências, em
sua potência8, podem ser entendidas como políticas; por quê estas
formas do fazer político são vividas, entendidas e elaboradas em
conexão indissociável com a dimensão do corpo; o que permitiu, antes
de virtual ou presencialmente se conhecerem, que essas práticas ur-
banas surgissem e atuassem de forma semelhante em diversas partes
do mundo; como se atualiza a noção de “comunidade” a partir da mul-
tiplicidade presente nessas práticas; que políticas de subjetivação
estão sendo inventadas nesse movimento; como esse movimento cul-
tural atualiza as formas de pensar e experimentar a crítica institu-
cional; o que terá levado ao rompimento com disciplinas específicas9
e caminhos institucionalizados?

O enfrentamento deste campo problemático impõe a convocação


de um olhar transdisciplinar, já que estão aí imbricadas inúmeras
camadas da realidade, no plano tanto macropolítico (fatos e
modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica), quanto
micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas
formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo
e a subjetividade) (Rolnik, 2006).

Vamos aqui compreender a “cidade” como esse “campo pro-


blemático”. Portanto, em nenhum momento o espaço urbano será
aqui colocado de forma “temática” mas, sobretudo, como espaço vivo

8. “[...] A saber: as ações e as paixões de que algo é capaz. Não o que a coisa é, senão
o que é capaz de suportar e fazer. E se não há essência geral é porque neste nível, ao nível
da potência, tudo é singular.” Deleuze, Gilles. En Medio de Spinoza. Buenos Aires, Editora
Cactus, 2004, p. 50.
9. Os coletivos artísticos, em sua maioria, são compostos por profissionais de diversas áreas:
artistas plásticos, sociólogos, geógrafos, arquitetos, músicos, urbanistas, psicanalistas, etc.
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que se transforma na matéria prima de criação de todo um movi-


mento cultural que pretende criar modos de vida alternativos, colo-
cando em xeque diversos tipos de estruturas de poder.
O contato com universos de pensamento como o da socio-
logia e antropologia contemporâneas, foi fundamental já que trazem
reflexões sobre o que leva a cidade a ser a escala privilegiada para a
compreensão das formas de produção social. Muitas questões rever-
beram as estratégias através das quais as práticas artísticas situadas
no espaço urbano discutem e disputam o projeto de cidade em curso,
pois estas desafiam a pensar os limites entre o legal e o ilegal, o líci-
to e o ilícito, na medida em que se propõem a disputar a própria
definição do que é legal e ilegal na produção do espaço. A partir do
momento em que pensamos a cidade como um “campo proble-
mático” no qual operam múltiplas situações de disputa, cabe lançar
um olhar reflexivo para entender como ela aparece efetivamente nos
trabalhos que serão aqui apresentados e por que é muitas vezes com-
preendida como espaço por excelência de experiência, reflexão, ação
e de percepção de si e do outro; espaço no qual a invenção de uma
outra forma de estar no mundo, de conviver e de construir os
próprios valores e critérios de beleza e riqueza se torna viável. Será
que podemos encontrar uma pista na ideia de Don Mitchell segundo
a qual “Ao reclamar o espaço público em público, ao criar espaços
públicos, os próprios grupos sociais tornam-se públicos” (Mitchell,
2003 apud Harvey, 2008, p. 16)10? E, assim, aprender a produzir
modos de deixar-se afetar pelo entorno e pelo outro somente seria
possível em situação?
Uma questão que então se coloca é a de quais seriam as
condições para que a “representação direta” consiga condensar uma
experiência crítica do conflito de forma esteticamente potente.

10. Don Mitchell, The Right to The City. Minneapolis, Minnesota University Press, 2003, p. 12.

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A ideia de “representação direta” foi lançada pelo crítico de arte


Brian Holmes em 2000, em Barcelona, durante o workshop “De la ac-
ción directa como una de las bellas artes”:

Marcelo Expósito: Si te parece bien, comencemos por el tér-


mino “representación directa”. Consistía en una especie de me-
diación en el debate sobre las nuevas prácticas artísticas activistas
que a finales de la década de los noventa, en algunos ambientes, se
encontraba inútilmente polarizado entre dos extremos: ‘repre-
sentación’ vs. ‘acción directa’. […] Martha Rosler habla de “re-
presentación participativa” para defender la necesidad de seguir
produciendo representaciones no alienantes ni explotadoras en las
que el sujeto representado tome parte activa, sin ser cosificado; y
tú propones este concepto, ‘representación directa’, en términos no
muy alejados de los de Rosler.
Brian Holmes: Lancé esta idea de “representación directa” en
el 2000, aquí mismo, en Barcelona, durante el taller “De la ac-
ción directa como una de las bellas artes”. Era una provocación
contra la vieja idea anarcosituacionista de que toda acción sim-
bólica se encuentra alienada respecto al espectáculo unificado de
la representación política y el imaginario comercial, de tal mane-
ra que la única respuesta solo podría consistir en un acto secreto,
denso, invisible y rigurosamente material: bloquear algo, un tren,
una autopista, una cumbre. Por supuesto que este tipo de acción
puede ser extremadamente efectiva, pero desde el punto de vista
artístico se puede hablar también de otras cosas. En el contexto
del movimiento antiglobalización, que ha operado tan decidida-
mente a través de Internet, e incluso a través de los medios de
masas, la idea de una acción directa ‘pura’ está tan alejada de la

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realidad que parece absurda. Yo, por aquel entonces, trabajaba


con Ne Pas Plier en proyectos que intervenían en la calle. Se
trataba de distribuir ‘medios de representación’, de coger pegati-
nas u otros materiales impresos, y repartirlos en medio de la gente
para que millares de personas pudieran llevarlos en su propio
cuerpo y darles voz: usarlos, regalarlos a otras personas con el fin
de cualificar una manifestación para que no fuera una mera masa
de cuerpos, sino una colectividad que pretende decir algo. La gente
podía hablar mediante esas imágenes, a la vez que la prensa y los
fotógrafos que formaban parte del movimiento realizaban nuevas
imágenes a partir de estos usos. De esa manera el evento trans-
mitía un mensaje de multiplicidad: interpretaciones personales
de ideas colectivas que se filtran a través de las diversas capas de
la comunicación mediática, posibilitando diferentes tipos de efec-
tos. […] (Brian Holmes entrevistado por Marcelo Expósito,
2006, p. 345).

O estudo dos processos e trabalhos em pauta passa, portanto,


por entender como, quando e por que as intervenções artísticas têm
um poder disruptivo, ou seja, são capazes de desestabilizar repre-
sentações sociais e sensações prévias; ao evidenciar a possibilidade
de fazê-lo, trazem à tona a produção compartilhada de um novo
imaginário a respeito do espaço e, com isso, a experiência do
“público” como obra.

A intervenção na vida pública, para nós, é uma


prática que permite – seja no âmbito da denúncia ou
do anúncio – trazer à superfície e colocar em dis-
cussão o que estava presente em um determinado

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contexto, mas por algum motivo não estava sendo


dito ou visto. Possibilita gerar um estranhamento de
situações normalizadas dando lugar, nesse movi-
mento, a uma mudança da chave de leitura sobre
essas situações. As formas a partir das quais estas in-
tervenções são criadas, são singulares a cada con-
texto, já que este é necessariamente o ponto de
partida e de chegada. A intervenção nos permite en-
carar de forma criativa os problemas sociais, políti-
cos, culturais que nos atravessam todos os dias.
Acreditamos que apenas a elaboração coletiva dos
conflitos com todas as suas contradições e mistérios,
possa ampliar as possibilidades de sua compreensão
ao criar um espaço de fala, escuta, ação e reflexão.
Para nós, esta tem sido uma forma de construir um
posicionamento mais efetivo e consciente e de resis-
tir à apropriação automática dos fatos - que os torna
formas fixas e esvaziadas de experiência, estratégia
clara de controle que contribui para a estabilização
e reprodução de toda a estrutura histórica de de-
sigualdade e segregação social. Reinventar, a todo o
momento, as formas de denúncia e anúncio dos fatos
é, então, parte fundamental deste percurso (Con-
trafilé, 2007, p. 7).

O fato de que estejam contidas nestes modos de ação no es-


paço público tanto a dimensão coletiva quanto a dimensão estética
não é, portanto, um apêndice deste processo. A dimensão coletiva,
por um lado, é intrínseca ao próprio esforço por reivindicar o direi-

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to à cidade. Neste aspecto, para David Harvey:

O direito à cidade não pode ser concebido simplesmente como um


direito individual. Ele demanda um esforço coletivo e a formação
de direitos políticos coletivos ao redor de solidariedades sociais
(2008, p. 15).

Nos coletivos artísticos, este esforço está contido no ato de


auto-organizar-se, estabelecer regras e condições de convivência e
produção e, por fim, no gesto estético que intervêm no âmbito do
público. A dimensão estética, por sua vez, tem profunda relação com
a força de um corpo que se coloca em risco11 para tornar visível e
legível o instante de invenção de um espaço social com determinadas
qualidades.
Um componente a ser observado nas ações dos grupos em
pauta e que é determinante na maior ou menor potência do gesto es-
tético, é a escolha do contexto onde a intervenção é feita em relação
às qualidades do espaço denunciado e anunciado. Interessa pensar
como se dá o complexo cruzamento entre uma intervenção artística
e o espaço social para que a construção simbólica tenha a potência de
“interferir na narrativa social, de gerar, por mais mínimos que sejam,
deslocamentos na configuração estabelecida do possível” (Política do
Impossível, 2006).
É importante também destacar alguns aspectos que marcam
o trabalho. Apresenta-se a construção de uma narrativa que partiu
daquilo que movia as preocupações de um determinado grupo, como
base para uma interpretação de caráter mais conceitual. Assim, ao
mesmo tempo em que existe um fio cronológico no trabalho, este é

11. Essa ideia de um “corpo que se coloca em risco” é bastante utilizada nessa dissertação e
diz respeito à forma acionada pelo tipo de trabalho que será aqui analisado, na qual o
“sujeito” se coloca no centro de situações sociais conflitivas para denunciar e anunciar
aquilo que está vendo, pensando e sentindo. Esse tipo de fazer político-artístico resulta em
soluções imagéticas nas quais captar o corpo em confronto com o espaço, ou o indício desse
enfrentamento, se torna fundamental.

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a todo momento interrompido por inflexões que representam des-


cobertas do pensamento conforme a memória é ativada. Saltos e so-
bressaltos são dados, criando uma teia de ideias que opera a partir
de diversas temporalidades sobrepostas.
Ao longo da pesquisa há uma tentativa de privilegiar a idéia
de “investigação-ação”, na qual a própria investigação é compreen-
dida como intervenção. Trata-se do exercício de dar corpo conceitual
a experiências que são de fato relevantes para aquele que as pensa,
acarretando novas experiências. Como diz o coletivo argentino Situa-
ciones:

Se nos referimos ao compromisso e ao caráter ‘mili-


tante’ da investigação, o fazemos em um sentido pre-
ciso, ligado a quatro condições: a) o caráter da
motivação que sustenta a investigação; b) o caráter
prático da investigação (elaboração de hipóteses
práticas situadas); c) o valor do investigado: o resul-
tado da investigação só se dimensiona em sua totali-
dade em situações que compartilham tanto a
problemática investigada quanto a constelação de
condições e preocupações; e d) o seu procedimento
efetivo: seu desenvolvimento é já resultado, e o seu re-
sultado redunda em uma imediata intensificação
dos procedimentos efetivos. (Colectivo Situaciones
e MTD Solano, 2002, p. 13-14)

O plano teórico de forma alguma pretende se descolar da ex-


periência para tornar-se uma espécie de voz racional da verdade. Esse
exercício de fortalecimento da reflexão a partir da prática tem, no

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entanto, uma série de conseqüências. Uma delas consiste na opção


em apresentar, em alguns momentos, vozes, imagens e reflexões que
no andamento processual de certos trabalhos evidenciam certa in-
genuidade. A menção a estes momentos tem por objetivo mostrar
como se deu, em diversas ocasiões, essa passagem do desejo, da fra-
gilidade, da incerteza, do confronto, para a produção de trabalhos e
reflexões com forte impacto simbólico - já que é justamente nesse
movimento que encontramos a potência dos gestos artísticos aqui
apresentados.
Por último, uma das tantas dificuldades que se apresentaram
ao longo deste trabalho de elaboração foi diferenciar as diversas
vozes que o compõem. A minha voz como “estudante e
pesquisadora”; a minha voz enquanto artista e as vozes dos outros
artistas (coletivos) aqui apresentados enquanto citações; as vozes
teóricas e da mídia que, em diferentes sentidos, são referências para
a construção do pensamento aqui desenvolvido; as vozes dos cole-
tivos, tanto dos quais eu faço parte, quanto dos que eu não faço,
quando essas são interpretadas por mim enquanto textos-obras12. O
critério utilizado para entender que o texto dessa dissertação deve-
ria evidenciar o aspecto múltiplo dele mesmo, foi a característica
comum tanto dos coletivos aqui acionados, como de tantos outros
que compõem essa rede de colaboração, de refletir sobre a própria
prática, produzindo textos, livros, manifestos que são, de fato, com-
preendidos como obras, assim como o são, obviamente, as imagens,
performances, intervenções.

12. Nesse sentido, a produção de imagens adquire um caráter amplo, pois diz respeito à
invenção e/ou subversão de imaginários, o que pode ser feito através de estratégias distintas
(texto, fotografia, intervenção urbana, leituras críticas de jornais, etc.) e muitas vezes
sobrepostas.

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Vozes:

1.
a minha voz como “estudante e pesquisadora”.

2.
a minha voz enquanto artista e as vozes dos outros artistas
(coletivos) aqui apresentados enquanto citações.

3.
as vozes teóricas e da mídia que, em diferentes sentidos, são referências para
a construção do pensamento aqui desenvolvido.

4.
as vozes dos coletivos enquanto textos-obras.

5.
os textos-obras dos coletivos enquanto documentos.

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Sequência de imagens
concebidas por Suely
Rolnik e realizadas pelo
coletivo Bijari, assim
denominada pela autora:
"Caminhando pela fita de
Moebius com Lygia, os
Tupinambá e alguns
franceses para rastrear o
processo de produção da
subjetividade e da cultura”.
Parte de sua apresentação
“Para além do inconsciente
colonial”, 2012.

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Conversa Introdutória

Abaixo, reproduzo alguns trechos da “conversa” ocorrida no


meu exame de qualificação de mestrado13 que lançam questões para
mim fundamentais e que serão tratadas ao longo do trabalho. Não
opto por colocá-la aqui de forma arbitrária, mas porque, ouvindo a
gravação, percebi que contribuiu para que eu pudesse, mais uma vez,
retomar alguns aspectos daquilo que venho construindo enquanto
prática e pensamento nos últimos doze anos.
Suely Rolnik, não sem razão amplamente citada neste tra-
balho reflexivo, foi também parte da banca e as ideias trocadas com
ela naquele dia específico ganham uma forma legível para presen-
tificar o tipo de interlocução que tem sido construído entre muitos
artistas e coletivos e essa pensadora. A partir de seu olhar interes-
sado e de seu corpo aberto, sempre trouxe de forma vibrante para
nós, como importante base de sustentação de nossas indagações,
dúvidas, reflexões e, claro, ações, uma forma de pensar abrangente,
crítica e sensível às forças do mundo.
Além de tudo isso, a conversa, como forma de elaboração de
espaço social, é de onde nascem os trabalhos que serão aqui apre-
sentados. É no embate pela produção de um pensamento vivo e com-
partilhado, que os coletivos artísticos partem para inscrever novas
configurações de mundo.

Joana Zatz Mussi: Quando iniciei o mestrado, me interessava apro-


fundar teoricamente as práticas dos coletivos artísticos dos quais faço
parte ou sou colaboradora, mas o projeto de pesquisa ainda estava
muito vago. Cursando as disciplinas, lendo novos autores, me dis-
tanciando minimamente do turbilhão do fazer, pude ter uma relação

13. Estavam presentes Joana Zatz Mussi, mestranda, Vera Pallamin (Área de Projeto,
Espaço e Cultura da FAU-USP), orientadora desta dissertação, e, como membros da banca
examinadora, Suely Rolnik (Núcleo de Estudos da Subjetividade – Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP) e Sérgio Regis Moreira Martins
(Departamento de Projeto da FAU-USP). São Paulo, 16 de janeiro de 2012.
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mais reflexiva com os trabalhos, o que me permitiu entender qual é


a questão fundamental para mim, que é a da atuação na cidade e
como essas práticas urbanas evidenciam, na produção imagética e
simbólica que realizam, as formas e mecanismos de produção e re-
produção do espaço social na contemporaneidade.
Em alguns momentos, a atuação ocorre em processos sociais
já em curso, dando visibilidade e legibilidade para eles, em outros, há
a invenção de processos; nos dois casos, é o corpo em risco, o embate
entre o corpo e o espaço urbano evidenciando as formas e mecanis-
mos contemporâneos de produção, o que gera um entendimento da
dimensão estética nesses trabalhos. Nesse sentido, é importante re-
alizar uma interpretação do que é “a cidade” nessas e para essas práti-
cas, como lugar de partida e de chegada, como lugar físico e
simbólico, como presença e também como devir.
A interpretação de como “a cidade” aparece e é acionada em
alguns trabalhos artísticos a partir dos quais proponho uma reflexão,
de como um corpo individual ou coletivo se constitui no embate com
a escala urbana, além de ser um problema estético e político, tam-
bém tem a ver com toda uma discussão feita pelas ciências sociais
contemporâneas na tentativa de entender a cidade como espaço re-
ferencial em um momento histórico no qual não há mais nada que
possa ser pensado estando fora do marco do urbano.
A partir disso, muitas questões emergem e uma delas é o tipo
de crítica institucional feita pela geração de coletivos artísticos que
começou a atuar em meados da década de 1990 e aprofundou a sua
prática nos anos 2000. Alguns autores, como o crítico norte-ameri-
cano Brian Holmes, o artista e pensador espanhol Marcelo Expósito

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e mesmo Suely Rolnik, aqui presente, dizem que essa geração tende
a “entrar e sair da instituição”, entendida não apenas como uma ins-
tituição artística. Isso significa que as formas de relação institucional
se transformaram, e que dependem também da compreensão que as
práticas aqui abordadas têm sobre o que é o marco do urbano. E se
concordamos que hoje não é mais possível pensar em um espaço que
esteja fora desse marco, fica evidente que as instituições também
estão operando a partir dele, portanto, em múltiplas escalas simul-
taneamente, e que é possível disputar a produção e a re-produção do
espaço social mesmo de dentro de uma dimensão institucional mais
formalizada.
E o que é o “espaço social”? Porque se me interessa entender
como, nessa produção imagética, se cria legibilidade e visibilidade para
as formas pelas quais o espaço social é produzido e reproduzido, é
preciso ao menos iniciar uma tentativa de definição de como estou
entendendo o que é esse espaço. Aqui, começo essa tentativa, por e-
xemplo, quando a partir das práticas percebo uma dimensão física e
uma dimensão simbólica operando simultaneamente em justaposição;
quando percebo que ele pode ser entendido prioritariamente a partir
do marco do urbano e que isso não significa rua ou prédio, mas uma
forma que atravessa tudo e que pode ser definida a partir da disputa
pela definição do que é legal e ilegal, lícito e ilícito, formal e informal,
na produção do espaço. Outros pontos importantes a serem olhados
criticamente na definição do que seria o espaço social compreendido
a partir dessas práticas são os atravessamentos, as redes, as conexões,
que geram uma grande mobilidade daquilo que é produzido e o en-
contro de um espaço comum e compartilhado.
As práticas artísticas aqui analisadas aparecem nesse con-
texto, portanto, como parte fundamental da disputa pela produção

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do espaço na contemporaneidade e tendo como papel principal a cri-


ação das imagens de como isso está se dando; porque o know how e a
expertise que foi sendo criada é essa, de um saber circulatório que
nasce a partir da potência dessa representação. E como definir a
potência, como entendê-la?
O saber circulatório pode ser entendido como um indício da
potência de uma imagem. No momento em que essa imagem está
sendo elaborada, a sua potência e a possibilidade de que circule não
são conscientes, mas é possível sentir a sua consistência pelo quanto
carrega de uma experiência real. É isso o que vai fazer com que se
prolifere a produção crítica de imagens que tornam visível e legível
como a produção do espaço social está se dando em diversos con-
textos. Sabemos que essas imagens ensinam alguma coisa justamente
quando guardam a experiência de um possível como memória das
potências sociais dessas imagens.

Suely Rolnik: Você é uma testemunha viva desse movimento cul-


tural14, por isso a importância de registrar, conceituar o que se passou,
fazer proliferar. Existe aí uma inquietação. Quando você diz que a
cidade se produz em mil camadas e dimensões e que as instituições
também, o Felix Guattari tem um conceito interessante para falar
disso, que é o conceito de “transversalidade”. Através desse conceito,
ele fala como a gente é composto do que é imediatamente visível e de
muitas outras camadas invisíveis e que é essa dinâmica que vai nos
formatando, nos constituindo.
Considero essa uma questão central do seu trabalho e vou
falar agora um pouco sobre ela. Quando você diz que os grupos tra-
balham em situações de tensão que já estão lá, nomeadas de alguma

14. A ideia de que os coletivos artísticos aqui apresentados fazem parte de um movimento
cultural mais amplo, aparece em diversos momentos desta dissertação e se refere ao fato
de que eles estão inseridos em um conjunto de práticas políticas e estéticas que surgiram
a partir dos anos 1990 tendo como mote a luta contra o capitalismo contemporâneo,
a precarização da vida de modo geral, a reapropriação do espaço público pelas pessoas,
a invenção de novas formas de sociabilidade e contestação frente à chamada “sociedade
de controle”. Ao longo do texto, algumas das características que marcam este como um
“movimento cultural e artístico”, serão analisadas e ficarão mais clara.
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forma, e em outras que vocês “inventam” - eu diria que vocês


nomeiam a partir de uma dimensão micropolítica -, é isso o que para
mim significa colocar o corpo em risco. Por que, afinal, que corpo é
esse que se entrega ao risco?
Você está falando sobre a introdução desse conhecimento do
corpo na avaliação do estado das coisas e na condução das ações; a in-
trodução e o desenvolvimento do conhecimento de como dar corpo
sensível para essas sensações; o que é um ato de resistência funda-
mental ao pensamento inventado pela Europa Ocidental e que re-
calca o corpo e restringe o pensamento à percepção e à razão.
Não inventamos porque somos inspirados por Deus, mas
porque nesse conhecimento corporal, das forças ambientes, os afetos
do corpo já estão indicando essa necessidade... Uma coisa é denun-
ciar, outra é anunciar... Já está se anunciando nesse conhecimento
corporal uma dinâmica tensional que convoca você a dar corpo para
isso, no caso das práticas das quais estamos falando, através de uma
proposta de intervenção na cidade. Não é que algumas situações e-
xistem e outras ainda não existem, é que algumas ainda não estão no
campo do visível, ainda não estão operando como tensão macropo-
lítica, mas já estão presentes no corpo.
Quando você fala em “colocar o corpo em risco”, eu entendo
muito mais esse anunciar do que o denunciar. Se você levasse so-
mente em conta o fato de ser filha de militante15, esse colocar-se em
risco significaria se matar para denunciar; como você é de uma gera-
ção que está tentando ampliar o campo da política, até para honrar
os seus ancestrais, sabe que hoje, o que faz sentido, é o corpo estar
ali implicado para anunciar.
Nós, como fomos estruturados pela cultura inventada na Eu-
ropa Ocidental, pelo processo de colonização, capitalismo, subje-

15. Os meus pais fizeram parte do movimento político contra a última ditadura militar, sendo
filiados aos grupos VAR - Palmares e Ala Vermelha do PCdoB. Foram perseguidos e, para
não serem presos, se exilaram em países europeus.

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tividade burguesa, etc., funcionamos no registro da percepção, da


consciência, da vontade, da representação, do sentimento, e do sen-
sorial também. E o sensível também faz parte do regime da per-
cepção, porque nele tem um sujeito percebendo um objeto. E o que
está recalcado na nossa cultura e está, por outro lado, muito presente
nas culturas que nos constituem no Brasil, as culturas africanas, in-
dígenas e culturas mediterrâneas, árabes, judaicas e o cristianismo
pré-igreja católica apostólica romana, é essa dimensão da subjetivi-
dade ativa. Porque o próprio da subjetividade burguesa, capitalista, é
o recalque do corpo na cotidianidade, no modo de aprender, na pro-
dução cognitiva, na condução do pensamento e da existência. Nessas
culturas, que também nos constituem, isso não está apenas presente,
como é ritualizado na cotidianidade.
Posso olhar as situações e as tensões próprias da cartografia
do presente, como estão organizados os conflitos de raça, de classe,
de gênero; mas têm situações nas quais existe uma tensão paradoxal
entre o que o seu corpo está captando e a cartografia do presente, o
que te coloca em crise. Então, a intervenção será a invenção de algo
que vai dar corpo para isso que está se anunciando, mas ainda não
está na dimensão do visível. A denúncia e o anúncio são fundamen-
tais, o que não podemos é reduzir o que fazemos a uma coisa ou
outra. Por exemplo, se ficamos só na dimensão do desejo e não faze-
mos o movimento de dar corpo ao que está acontecendo em uma
ação, um conceito, no que for, construindo uma representação que se
inscreva na realidade visível, não acontece nada e essa pulsão vira pura
esterilidade também.
Deleuze e Guattari falam em perceptos, um modo de per-
cepção que não passa pela linguagem e que é essa experiência do
mundo como corpo vivo, como campo de forças. E a sensação, para

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Deleuze e Guattari, não tem a ver com o sensorial, é a sensação da


tensão, do paradoxo, entre isso que o corpo vivo já está captando e o
modo como as coisas estão formatadas. E é essa sensação que dis-
para a criação, então não é a experiência sensível que vai ganhando
corpo, é a experiência do vivo que vai ganhando corpo sensível e se
atualizando.
E por que as imagens produzidas nessas práticas urbanas en-
sinam? Não é só porque eu vou imitar, tem isso também... Mas, prin-
cipalmente, porque essa ação é portadora de uma experiência de algo
que está se anunciando e que eu compartilho. Se eu consigo fazer
algo bom, com rigor e disciplina, e que carregue isso que se anuncia,
essa ação imediatamente reverbera. A sua ação ensina porque é por-
tadora de uma experiência real. Uma coisa é então descrever o que se
passou ali, outra coisa é mergulhar na memória dessa dimensão da
experiência e tentar fazer uma ação conceitual, criar conceitos para
tornar dizível o que está ali.
Mas acho importante tocarmos aqui nessa potência, tendo
como indício o saber circulatório do qual você fala. É preciso deixar
clara uma visão crítica da mobilidade, portanto, nem resistir a ela e
nem celebrá-la. No Brasil, tendemos a idealizar a mobilidade, a
antropofagia, com uma falta de visão crítica em relação a essas ideias,
tão presentes hoje no sistema da arte em sua identificação com o neo-
liberalismo.
Por isso, vejo um problema fundamental aqui para desen-
volver, que é discriminar melhor esses dois campos nos trabalhos
analisados, principalmente o conceito de micropolítica, porque
macropolítica todos nós dominamos. Isso implica de fato, como você
disse, em circunscrever melhor o que entende por “espaço social”,
porque é fundamental tentar elaborar como o espaço se produz nesse

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movimento do micro ao macro e não apenas no espaço macropo-


lítico.
No meu entender, o conhecimento estético é exatamente
esse conhecimento da passagem do micro ao macro, de colocar o
corpo em risco para performatizar o invisível, aquilo que já é vivido
como real mas ainda não encontra representação na realidade. É o
conhecimento desse corpo, vulnerável às forças do mundo, que de-
sencadeia a necessidade de pensar como sinônimo de criar e que não
vale somente para a arte. Mas como falar dessa experiência do corpo?
Uma coisa é falar dessa experiência como um encontro com
o outro, como um sujeito que “interage” com outro sujeito, ainda na
lógica de sujeito e objeto. Outra é falar a partir dessa lógica na qual
já não há sujeito e objeto, mas um corpo mergulhado em um campo
de forças que desencadeia nesse corpo a sua potência de criação, o
que vai resultar em uma reconfiguração tanto do sujeito quanto do
ambiente. Essa história de interagir com o outro é o mínimo que você
espera de um ser humano, reconhecer a existência do outro e os seus
direitos civis, mas temos que agregar a dimensão da vulnerabilidade
de um corpo a esse campo de forças, que tem a ver com a transver-
salidade do Guattari, quando ele entende a subjetividade como a
dinâmica de todos esses atravessamentos.
Nesse caso, já não dá para falar em um “outro”. Existe esse
“outro” do direito civil, mas existe uma alteridade que nos habita,
que é aquilo que escapa do outro como representação, e mesmo da
representação de nós mesmos. Essa alteridade é esse campo de forças
atravessado pelas forças do mundo e que está o tempo inteiro colo-
cando em xeque as formas do presente. Essa alteridade, nesse sen-
tido, não é o outro que está fora, é uma alteridade que me constitui,
que não para de me fazer, desfazer, me desmanchar, e que não para

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de me obrigar a pensar no sentido de criar e agir. E eu penso nisso


como um grande ponto de interrogação, porque coloca um problema
a cada momento na medida em que coloca problemas que obrigam a
pensar.
Quando você fala que a dimensão estética está na constitui-
ção de um “possível”, é importante distinguir bem essa ideia, porque
o “possível” está na dimensão do visível, da representação, mas den-
tro do campo da micropolítica, do invisível, não se fala em possível.
Aí tem um virtual que já está se anunciando e que vai se atualizar em
uma outra coisa, que não tem a ver com o possível, pois esse está con-
tido no modo como está constituído o presente. Importa então que
fique claro isso, não importa tanto o nome que você vai dar, mas que
fique claro o lugar de cada coisa. Mas como você chamaria isso, se
não é possível, de devir16? Eu chamo cada hora de um jeito, mas agora
estou chamando de imanência.17
Na dimensão do visível, podemos falar em oposição, con-
tradição, dialética, porque de fato entre preto e branco, homem e
mulher, ricos e pobres, classe dominante e classe dominada, existem
interesses que são opostos mesmo. Mas não podemos dizer que o
que está se anunciando a partir do campo da imanência, do que ainda
não é visível, é o contrário do que é visível; isso que se anuncia é uma
outra coisa, é um deslocamento, não tem síntese, ele pode mudar a
configuração do presente, mas não é a negação do presente e nem
está contido nele como possibilidade.
Esse movimento, quando estou tomada pela urgência das
forças que me atravessam e elas ficam me azucrinando enquanto eu

16. No livro Cartografias do Desejo, Félix Guattari e Suely Rolnik definem “devir” da seguinte
forma: “Devir: termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem por afetos e
devires, independentemente do fato de que possam ou não ser rebatidos sobre pessoas, sobre
imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo, etiquetado antropologicamente como
masculino, pode ser atravessado por devires múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir-
feminino que coexiste com um devir-criança, um devir-animal, um devir-invisível, etc. [...]”
(2005, p. 382). Em O Vocabulário de Deleuze, François Zourabichvili define da seguinte forma o
significado de “devir” para Deleuze, com o qual Suely Rolnik também opera aqui: “Devir é o
conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos): desejar é passar por
devires” (2004, p. 24).

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não invento alguma coisa, esse movimento, que seria uma ação do
pensamento, é a produção de um devir, uma sublime ação, algo que
dê corpo para o que nos atravessa. É sublime porque é uma ação ética
por excelência: se responsabiliza pela possibilidade de afirmação da
vida e não de um sistema de valores. Então, quando a gente inventa
alguma coisa nesse sentido, estamos produzindo um devir em nós
mesmos e no ambiente.
Por isso, um grande deslocamento é o de uma concepção
tanto de tempo quanto de espaço restrita à dimensão da represen-
tação, para uma outra concepção, que é do tempo como devir, porque
aí ele é a própria constituição de espaço, ele não existe se não se atu-
alizar como outra forma de espaço. Nesse sentido, não dá simples-
mente para passar do tempo histórico para o espaço social como
referencial para entender o contemporâneo, pois a temporalidade é
indissociável do engendramento de espaço, não há como separar uma
coisa da outra.

Joana Zatz Mussi: E você acha que é possível pensar esse engen-
dramento do tempo-espaço social a partir da micropolítica?

Suely Rolnik: Tanto eu acredito que dedico a minha vida inteira


a isso. Eu acredito plenamente, essa é a minha maior convicção.
Hoje em dia eu acho que essa é a atitude de resistência política mais
fundamental, do ponto de vista micropolítico, a toda a história
colonial, do império da Europa Ocidental sobre o planeta, que ini-
biu e recalcou essa capacidade cognitiva que é nossa bússola vital,
diferente de uma bússola moral, ligada à justiça social, por exemplo.
Eu posso defender os valores de justiça, mas estar super reativa ao
que a vida está pedindo, porque estou com a bússola vital danifi-

17. Segundo Deleuze e Guattari, autores com os quais Suely Rolnik dialoga a todo o
momento: “O plano de imanência é como um corte do caos, e age como um crivo. O que
caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações do que a velocidade
infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem […]” (Deleuze e Guattari, 1992 apud
Zourabichvili, 2004, p. 39).
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cada, recalcada, sendo que é ela que nos dá a noção de onde a vida
está totalmente estrangulada e onde tem que colocar energia para
ela deslanchar.
A Lygia Clark, quando chamava os objetos que fazia de “ob-
jetos relacionais”, o que estava tentando com a obra dela, na minha
leitura, era ativar essa dimensão “micro” da subjetividade, tanto que
no último trabalho, em que ela traz essa dimensão terapêutica, não
é que ela virou terapeuta, é que ela incluiu uma dimensão clínica na
proposta artística dela porque ela se deu conta de que você pode es-
trebuchar e virar do avesso para que o espectador viva uma experi-
ência que vá convocar isso – essa dimensão da potência, da
micropolítica, da imanência –, mas a barreira neurótica de recalque
disso é tão poderosa em todos nós que não adianta... Então, ela faz
um trabalho no qual justamente está explorando essa barreira.
Tudo isso nos faz pensar o que estamos aqui chamando de
política. Estamos acostumados com o conflito entre o poético e o
político. O que eu gosto dessas histórias, é poder entender que a ex-
periência do mundo como corpo vivo que nos atravessa é política, é
micropolítica. Você sair do recalque, dar conta do que o corpo vivo
está anunciando e fazer a sublime-ação, é ético e é político...

Vera Pallamin: Merleau-Ponty critica a relação entre sujeito e ob-


jeto, rompendo com essa dicotomia que você comentou. Desde o
começo isto está presente em sua filosofia, e depois, em textos como
“O Olho e o Espírito” e outros, em direção à etapa final do seu tra-
balho, isso se evidencia reiteradamente. Isso implicou em sua revisão
da noção de alteridade – ele diz: “Sou eu mesmo sendo sempre
outro”... Pode-se estabelecer um diálogo entre a filosofia dele e várias
coisas que você falou. No artigo em que falo da Frente 3 de Fevereiro

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como um corpo coletivo segurando aquela imensa bandeira18, Mer-


leau-Ponty me ajudou a pensar aquela ação enquanto vontade e corpo
coletivos. Estou dizendo isso, porque fico pensando se seria possível
entender o que você está dizendo a partir de um outro referencial
teórico, que não necessariamente o da psicanálise...

Suely Rolnik: É sim possível entender tudo isso sem ser “psi-
canalista”. Alguém que tenha uma experiência psicanalítica pode en-
tender muito bem, porque não depende apenas de uma experiência
teórica, eu acho que alguém que freqüente um candomblé bom, que
tenha a experiência do transe, que tenha alguma relação com a cul-
tura africana, é tão capaz de entender quanto alguém que encontrou
um bom analista. No fundo, tudo isso que fazemos e sobre o que
falamos hoje aqui são intervenções políticas na cultura, formas de
reativar essa dimensão da imanência na cultura, essa dimensão do
corpo, das pulsões e do desejo.

18. Aqui, Vera Pallamin se refere ao texto Do lugar-comum ao espaço incisivo: dobras do
gesto estético no espaço urbano. In: Espaço e Performance (org. Maria Beatriz Medeiros e
Marianna Monteiro). Brasília, Editora da pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília,
2007.

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CAPÍTULO I

Nada é mais importante


do que essa nuança fugidia

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Aprendendo a se entregar ao risco

Durante a montagem da exposição “Brasil + 500 - Mostra do


Redescobrimento” em abril de 2000 (na qual a Fundação Bienal de
São Paulo “celebrava” os 500 anos da chegada dos portugueses ao
Brasil e o início do país como a nação que conhecemos), alguns jovens
que se preparavam para trabalhar como monitores perceberam o que
consideraram algumas “inconsistências” no evento. Em documento
escrito na época, o grupo, depois batizado de “Grupo MICO”, diz:

1. É um megaevento que envolve milhões dos cofres


públicos;
2. Os trabalhos quase somem diante de cenários,
colocados para “facilitar” a sua assimilação pelo
público;
3. A exposição será levada a muitos países para
servir de “vitrine” do Brasil diante do mundo –
enquanto milhares de instituições de arte e artistas
brasileiros estão falindo por falta de incentivo;
4. Não há a promoção de uma discussão pública
sobre o significado dos “500 anos”, mas sim uma
visão espetacularizada do genocídio
e da colonização.19

Em reuniões para discutir estes e outros aspectos da ex-


posição, chegou-se à conclusão de que era necessário demonstrar a
insatisfação com a leitura histórica ali contida e com as distorções
que as políticas públicas de incentivo à cultura e à arte sofrem no
Brasil.

19. Trecho de documento interno do grupo, acervo pessoal.

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Os jovens que estavam ligados à Fundação Bienal pediram


demissão e junto a amigos com quem iniciaram essa discussão (for-
mando um grupo de estudantes universitários que estavam con-
cluindo cursos diversos – geografia, ciências sociais, artes visuais,
arquitetura, jornalismo), resolveram problematizá-la indo para a rua
e intervindo no espaço público a partir de estratégias diversas (mani-
festo escrito, performance e intervenção urbana). O grupo via ali a
oportunidade de tornar nítida a falta de aprofundamento e revisão
crítica da memória social brasileira em uma exposição com tanta
visibilidade.
Estavam reconhecendo o direito de interferir no pensamento
cultural dominante que toma para si por completo o espaço sim-
bólico de construção da identidade nacional. Nesse sentido, o grupo
iniciou um movimento de gestação de formas para re-nomear e deslo-
car simbolicamente experiências e imagens produtoras de identi-
dade, portanto, de subjetividade, ao questionar essa suposta
“identidade nacional”. Buscava produzir um espaço de auto-recon-
hecimento por não se reconhecer no que nomeou como uma “cele-
bração estereotipada”. A expectativa do MICO era de uma
atualização da discussão que pudesse trazer à tona a experiência de
confronto e crise presentes em nosso cotidiano, de abertura para uma
reflexão social coletiva que permitisse a construção de significados al-
ternativos e compartilhados.
Segundo Agnes Heller, a passagem da aceitação do es-
tereótipo para um sadio mergulho na crise está ligada ao processo de
singularização e de construção de um espaço de aspiração humana
no qual se deseja conhecer melhor aquilo que nos constitui.

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O aparecimento de estereótipos dificulta extraordinariamente a


tarefa do conhecimento dos homens. Pois, quando o homem de-
sempenha um papel, é perfeitamente possível que não se “mani-
feste” de modo algum naquilo que faz e que suas relações sociais
não aumentem a variedade de sua substância. Na estrutura
própria do papel, degradam-se as relações sociais, que deixam pro-
gressivamente de ser elementos qualitativos para serem apenas
quantitativos. Por muitos que sejam os papéis desempenhados pelo
sujeito, sua essência se empobrecerá. [...] Também aqui estamos
diante da alienação de uma propriedade característica do homem.
[...] A recusa do papel é característica daqueles que não se sentem
à vontade na alienação. Mas o conflito moral é inevitável [...].
Os‘representantes da teoria do papel’ são inimigos irreconciliáveis
de todo conflito. Interpretam o conflito como ‘defeitos de organi-
zação’, ‘perturbações funcionais corrigíveis’, alguns chegam a in-
terpretá-los como ‘complexos’, perturbações psíquicas. Mas o
conflito é a rebelião das sadias aspirações humanas contra o con-
formismo: é uma insurreição moral, consciente ou inconsciente
(Heller, 2004, p. 87-110).

Uma exposição daquele porte, para a qual foram editados 14


catálogos e que percorreu o país em 43 diferentes exibições, que
ocupou a OCA, o Pavilhão da Bienal que é hoje o Museu Afro
Brasileiro evidenciava, para o grupo, a arte como espetacularização
da vida, subjugada e colocada a serviço da expansão do sistema capi-
talista contemporâneo. O esvaziamento do sentido crítico em tal
situação, fica claro na fala de Edemar Cid Ferreira, à época presi-
dente da Fundação Bienal:

Decidimos incluir na mostra um elemento revolucionário que mu-


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Frase “Chega de Bananalização, 500 anos de Mico” na rua, MICO, São Paulo, 2000.

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Cobertores cobrindo o Monumento às Bandeiras, MICO, São Paulo, 2000.

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dasse, definitivamente, a história das exposições no Brasil: em vez de


apresentar obras de arte da forma tradicional, resolvemos transfor-
mar cada um dos módulos da exposição em um autêntico espetáculo
cenográfico, a serviço da maior ênfase à beleza dos trabalhos expos-
tos e da compreensão do seu conteúdo (2000, p.p. 20-21).

Duas frases colocadas na rua, espalhadas em vários lugares


da cidade, tentavam resumir aquilo que o grupo estava pensando e
sentindo: “Chega de Mickey, 500 anos de Mico20” e “Chega de Ba-
nanalização21, 500 anos de Mico”. Como parte de uma ação de
protesto, o grupo foi à vernissage do evento com camisetas que con-
tinham estas frases, distribuiu para os convidados um manifesto e
nessa mesma noite cobriu, com vários cobertores de homens de rua22,
o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, localizado na frente
do Parque do Ibirapuera, onde se encontra o Pavilhão da Bienal. E foi
publicamente criticado pelos organizadores – que encararam o
protesto como sendo um ato de “jovens baderneiros”.
Apesar das ações do MICO indicarem o reconhecimento do
processo de penetração do neoliberalismo no Brasil (e a atualização
da colonização, o que não justificaria uma “celebração”), no mani-
festo23 escrito pelo grupo vemos uma certa confusão conceitual: em
alguns momentos, parece que se fala da arte como potência; em ou-
tros, a arte aparece mais como um objeto que deve ser reconhecido
institucionalmente. Da mesma forma, se questões políticas estavam
claramente sendo acionadas, essas iam da reivindicação pelo “reco-
nhecimento do artista” à representação cultural da história como re-
novação dos processos de sujeição.

20. Mico, em português, tem dupla conotação: é um macaco típico do Brasil e também expressa
o ato de “pagar um mico”, cometer uma gafe, ser objeto de ridicularização e vergonha.
21. “Bananalização” foi um neologismo inventado pelo grupo. No interior deste neologismo,
temos: banana – um dos alimentos prediletos do mico - e banalização – que se referia à
espetacularização de 500 anos de cultura e arte brasileiras, transformadas em fachada.
22. Roni Hirsh, um dos integrantes do grupo, havia feito um trabalho no qual trocou com
homens de rua os seus cobertores usados por novos. Costurou todos os cobertores uns nos
outros, formando um grande cobertor.
23. Este manifesto nunca foi publicado oficialmente, ele circulou na época em formato de
flyer e faz parte do acervo do grupo.
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CHEGA DE MICKEY – 500 ANOS DE MICO

A intenção deste manifesto é tornar público nosso


descontentamento com o projeto “Brasil +500 – Mostra
do Redescobrimento”. Dentro de uma exposição de arte,
falar sobre arte é o mais importante.

Nessa exposição, a arte é rebaixada ao segundo plano


e utilizada como pretexto para validar e vender um es-
petáculo cuja finalidade é o entretenimento. É inse-
rida em um contexto onde tudo pode ser encenado,
tematizado e transformado em objeto de interesse e
observação turística, não artística.

Para que utilizar-se de outros meios para ativar a


percepção que não a própria arte? Para que direcio-
nar o olhar do público, enquadrar e delimitar em uma
leitura única e linear através da ambientação ceno-
gráfica? A obra de arte fala por si mesma, não pre-
cisa da mediação de terceiros; as relações artista
/obra/público devem ser livres, para que haja cria-
tividade e enriquecimento dessas relações. O olhar, a
percepção, são únicos para cada um e não únicos para
todos. Não pode haver verdade oficial! E, menos
ainda, uma verdade que nivele por baixo: a cenogra-
fia apela para um choque, um susto perceptivo que fala
mais alto e rouba espaço. A obra-de-arte em si vira
objeto de cena!

Claro, somos a favor de um público mais numeroso, sem-


pre. Somos a favor da ampliação do público, hoje res-
trito à elite cultural. Que se amplie o interesse pela
arte; mas que a atitude, a vontade, a necessidade,
partam do próprio público, para que, assim, haja uma
relação efetiva. O interesse pela arte não pode ser
induzido, como faz a propaganda de maneira apelativa
- deve ser conquistado!

Não é possível que se concentre tanto dinheiro em um


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único evento-espetáculo. O diálogo público/obra-de-


arte deve se estender até o futuro e, para tanto, a
arte não pode ser entendida como produto descartável,
como mercadoria. Deve sim ser entendida como parte
constituinte da cidadania, como alguma coisa à qual
todos devem ter livre acesso e com a qual possam re-
lacionar-se espontaneamente. Precisamos de melhores
condições, inclusive para podermos produzir e consu-
mir arte. O Brasil não é esse espetáculo!

A mostra do redescobrimento é, acima de tudo, reflexo


da situação em que se encontra o País, funcionando de
acordo com o mesmo sistema. Isso significa que, aqui,
utilizamo-nos desta exposição como alvo, tomando o
particular pelo todo. Não podemos mais admitir que
sejam acobertados a dominação e os problemas políti-
cos, econômicos, sociais e culturais que no Brasil
sempre imperaram e imperam.

Este é um momento para refletirmos e transformarmos,


não para nos acomodar e perpetuar a dominação. Acre-
ditamos, inclusive, que não há sentido em comemorar
os 500 anos sem parar para refletir: Por que 500 anos?
Que 500 anos são esses? Comemorar significa conside-
rar que nossa história, desde a colonização até hoje,
é um sucesso? De quem?

A arte em si pode ser um meio para a reflexão e trans-


formação. Sim, é fundamental que se invista na arte.
Mas na arte enquanto sujeito, nunca enquanto objeto!

Grupo MICO, Abril de 2000

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MICO em ação no Vale do Anhangabaú. A ação consistia em sentar em roda


para conversar e interagir com transeuntes. São Paulo, 2001.

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A partir daí e mesmo com o fim da mostra “Brasil + 500”, o


MICO continuou se encontrando para realizar ações, sempre procu-
rando criar situações de diálogo com intenção política, além de re-
alizar inserções em circuitos ideológicos já legitimados24.
A experiência de cidade como espaço apropriável para a vida,
gerou, no MICO, a descoberta de que era possível se comunicar
através dela, transformando-a em mídia. Aos poucos, o grupo perce-
bia que amigos comentavam aquilo que estava sendo colocado na rua.
Nessa época, a principal forma de atuação do grupo era a produção
de frases escritas em stencil em papel craft rosa, produção que se
tornou a identidade visual do MICO. As pessoas perguntavam:
“Foram vocês?”. Esse mistério que tornava a cidade um corpo vivo e
não um lugar de afirmação de identidades homogeneizantes ou egos,
fez com que o grupo continuasse anônimo em suas ações.
Apesar de hoje ser possível ver que ali já estavam sendo
acionadas sensações que depois seriam melhor compreendidas e de-
senvolvidas no próprio MICO e nas práticas artísticas que nasceriam
como decorrência dele, há uma fragilidade perceptível, talvez pela
própria natureza do momento, no qual a urgência do pensamento
como ação artística ainda estava nascendo, tentando constituir-se en-
quanto voz e lugar no mundo, lutando para ganhar corpo. No en-
tanto, já vemos ali fios condutores que depois seriam aprofundados,
conceituados e vividos de formas cada vez mais complexas. O ato de
romper com a sensação de isolamento crítico - no qual fazemos uma
leitura dos fatos sociais de nossa atualidade, porém nos sentindo
completamente incapazes de agir – foi uma espécie de “conquista”,
já que, como geração filha dos que enfrentaram a última ditadura mili-
tar brasileira, vivíamos ainda a memória do trauma de colocar o corpo
em risco para o enfrentamento daquilo de que discordávamos.

24. A ação em notas foi inspirada no trabalho Notas de dinheiro carimbadas


do artista plástico brasileiro Cildo Meireles. pelo MICO, São Paulo, 2000.
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Portanto, libertar o corpo para a ação no espaço social foi


um primeiro movimento de ruptura e descoberta de uma outra pos-
sibilidade de politização, que ao mesmo tempo em que reconhecia,
traía a tradição; que ao mesmo tempo em que temia tornar-se um
“corpo público”, superava o trauma do silêncio forçado. Essa expe-
riência inaugural emancipadora consistiu, entre outras coisas, da ten-
tativa de elaborarmos, enquanto geração, a experiência de ter vivido
sob um Estado totalitário, ainda presente tanto como representação
ativa, quanto como memória corporal. O coletivo argentino GAC
diz o seguinte sobre a sensação de potência que esse tipo de movi-
mento por uma outra política de representação (que acionou o corpo
e a cidade em primeira instância), despertou em nossa geração:

Esa primera salida fue experimental en todo sentido:


no sólo por los materiales que usamos – poco fre-
cuentes para un mural -, también por el carácter ritual
que envolvia la atmósfera de la acción, oscilando
entre un acto performático y una improvisación car-
gada de elementos simbólicos, a un echo semiclan-
destino de toma del espacio. [...] Nunca antes
habíamos producido desde la acción, es decir, colo-
cando a nuestro propio cuerpo en acción en un lugar
de enunciación. Y al tiempo que descubríamos esta
dimensión performática del hacer, y del hacer colec-
tivo, íbamos modelando una forma de poder, de con-
fianza, de autosuficiencia (id. ibid., p. 125-129).

Acima, estão refletindo sobre as sensações causadas pela


primeira ação feita por eles em 1997: uma série de mais de trinta mu-

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Docentes Ayunando, primeira ação do GAC, Buenos Aires, 1997.

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rais nos quais usavam aventais brancos colados à parede com a


consigna “Docentes Ayunando” (Professores Jejuando). Essa ação
consistiu em criar uma potência coletiva e simbólica que dialogasse
com a greve de professores por melhores condições salariais e de tra-
balho. Segundo o GAC, ali estavam “[...] anunciando una tenden-
cia a la no-representación. La idea no era representar una
situación en el plano de la pared, sino crear una situación real –
la acción de ocupar la pared y el espacio [...]” (GAC, 2009, p. 28).
Vemos acima situações criadas pelo MICO e pelo GAC nas
quais o corpo chama para si a possibilidade de reinvenção do espaço
social quando experimenta-se a cidade como espaço aberto, não
acabado e que responde às provocações. Percebemos nesse processo
o desenvolvimento da compreensão do “urbano”25 como matéria
prima e do corpo como potência que efetivamente singulariza, in-
venta e marca o espaço social. Um trabalho do GAC que parte da
reivindicação por uma certa “ética do espaço comum” como um “es-
paço marcado pelo singular”, foi “Ação Direta. Homenagem aos As-
sassinados pela Repressão Policial na Rebelião Popular de 20 de
dezembro de 2001”. Nesse trabalho, os lugares reais da cidade de
Buenos Aires nos quais pessoas foram assassinadas pela polícia,
quando da rebelião popular (o “panelaço” argentino), foram marcados
com uma lápide simbólica e um ritual de morte foi feito contando
com a presença de familiares e amigos dos mortos.

Trabalho do GAC: Ação Direta.


Homenagem aos Assassinados
pela Repressão Policial na
Rebelião Popular de 20 de
dezembro de 2001.

25. Estou entendendo o urbano como espaço vivo e complexo, constituído por diversas
camadas de vida, meio de produção, forma trans-histórica (por condensar as múltiplas
temporalidades presentes no contemporâneo) e campo de forças no qual se
espacializam as diversas escalas de poder (ver capítulo 2).

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El fin de los homenajes era irrumpir en el espacio


aséptico de la historia. Dejar una huella, una señal,
una marca. Hacer del lugar del espacio urbano di-
señado para el no lugar, el lugar con su memoria, ha-
cerla presente activamente, reactualizarla, señalarla.
Apelar con una voz disidente, construir un espacio
que abra y no solidifique los sentidos, denunciar la
muerte de los manifestantes en el mismo lugar del
hecho y la autoría de la fuerza policial y parapoli-
cial. Se realizaron placas con la estética de los
recordatorios populares y un recorrido en el que se
leía un texto que denunciaba los nombres de los res-
ponsables de los asesinatos y sus prontuários; tam-
bién se recordaba a cada uno de los asesinados con
una breve biografia” (GAC, 2009, p. 138).

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Não estamos em rebelião:


notando na hegemonia a diferença

Quanto mais a construção desse espaço de politização au-


mentava a confiança para a leitura crítica da realidade e para a ação
direta na cidade, mais o grupo MICO se permitia ir a fundo nas
questões que o atravessavam. Foi quando explodiu a primeira grande
rebelião nos presídios do Estado de São Paulo em 2001. Aquilo
chamou a atenção do MICO, já que tinha como uma de suas es-
tratégias partir dos fatos sociais que de alguma forma condensavam
a “experiência crítica do conflito”, ou seja, que representavam, en-
quanto experiência pontual, a potência de um conflito social mais
profundo.
Hoje, é possível entender esse conflito, sempre mencionado
pelo grupo, como o próprio conflito entre a experiência do mundo
que atravessava os nossos corpos e as representações construídas,
essa lacuna entre aquilo que vivíamos como real e o que se apresen-
tava como o discurso dominante sobre “a realidade”.
O que significavam todos aqueles presos em rebelião? Sendo
a primeira vez que vinha a público a existência do PCC (Primeiro
Comando da Capital), do que estavam falando quando mencionavam
uma luta por direitos humanos dentro das prisões? Que imagens
eram aquelas de lençóis brancos nas janelas dos presídios? Quem
colocou os lençóis, o PCC ou os outros presos, não ligados à facção?
Mas foi a frase “Não estamos em rebelião, queremos nossos
direitos, paz”, escrita no chão do pátio do presídio pelas mulheres e
parentes dos presos, que disparou a necessidade radical27 [Agnes Heller,
2004] da ação. No meio da maior rebelião em presídios de que se
tinha notícia no Brasil e no mundo, os presos, como grupo organi-

27. O termo necessidade radical, utilizado por Agnes Heller, procura nomear aquelas
necessidades que, não podendo ser satisfeitas dentro do campo de possibilidades definido
pelo presente, impulsionam a sociedade a construir novas formas e novos acordos.
As necessidades radicais são, assim, necessidades de transformação radical de algum
aspecto da sociedade.
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Jornais que mostram imagens de rebeliões em presídios de São Paulo, 2001

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zado, afirmavam não estar em rebelião. Estrategicamente, criavam ali


uma forma de denunciar para o mundo a sua situação, sabendo que
helicópteros não teriam como não registrar aquela imagem.
Como diziam, na época, os integrantes do MICO, “algo ex-
plodia na imagem”, algo que não estava sendo dito claramente pelo
discurso verbal. Agora, refletindo sobre isso, percebo que houve ali o
reconhecimento da própria linha de fuga28 do “fato anunciado”, de algo
que escapava ao discurso estratificado. Dentro do grupo, essa sen-
sação de deslocamento causada pela imagem, se traduzia em algumas
perguntas: será que não existem diferenças, nuanças e subjetividades
compondo essa rebelião? Ou o que vale é apenas a interpretação que
a reduz a um “corpo único, homogêneo e criminoso”?
A partir disso, uma questão que se colocou para o MICO e
que também foi sendo, depois, aprofundada como um dos eixos de
trabalho mais contundentes de alguns coletivos artísticos, era a pron-
tidão para detectar e agir em relação à falta de consistência decor-
rente de representações binárias hegemônicas (nós somos os bons,
eles são os maus e perigosos), que transformam fatos sociais ex-
tremamente complexos em estereótipos esvaziados de experiência.
Como escreveu o MICO, na época, sobre esse acontecimento:

Víamos ali uma lacuna no discurso oficial. Os tex-


tos da imprensa eram acusatórios e não levavam em
conta a complexidade do fenômeno. Isso tornava-se
evidente nas fotografias que acompanhavam estes
textos, onde apareciam manifestações dos presos.
Com a intenção de apontar a existência desta lacuna
e questionar a função social da imprensa, deslo-
camos a frase do jornal para a rua. No dia seguinte,

28. Utilizo aqui linha de fuga na acepção de Deleuze e Guattari: “Todo rizoma compreende
linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado,
significado, atribuído, etc; mas também compreende linhas de desterritorialização pelas
quais ele foge” (Deleuze e Guattari, 2004: 18). “[...] O rizoma se refere a um mapa que deve
ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com
múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga" (Deleuze e Guattari, 2004, p. 32-33).
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a frase apareceu novamente na Folha de São Paulo:


“PCC espalha faixas pela cidade.29

A reportagem da Folha ligou para um dos líderes da facção e


perguntou se tinham sido realmente eles que haviam colocado as
faixas nas avenidas Sumaré, Rebouças e Consolação. O líder não só
confirmou, como disse que o objetivo era “negociar em paz com o
governo” e que seriam colocadas faixas em diversos bairros da cidade.
Cabe aqui ressaltar que o viaduto no qual foi colocado o
lambe-lambe depois fotografado pela imprensa30, tinha sido utilizado
outras vezes pelo MICO, sendo considerado pelo grupo como um
lugar com “boa visibilidade”, já que amigos do grupo que eram jor-
nalistas e moravam ali perto sempre perguntavam, quando frases
eram colocadas lá: “Foram vocês?” Essa é uma dimensão estratégica
nesse tipo de trabalho, pois tanto o contexto a partir do qual, quanto
o contexto no qual a intervenção é feita são igualmente importantes
para a proliferação da vontade disparadora da ação. Quando se fala
em práticas situadas, é, justamente, no sentido de evidenciar a forte
presença do espaço material como parte fundamental da constitu-
ição e circulação simbólica do acontecimento.
No plano macropolítico, o deslocamento de uma frase do
contexto de esvaziamento crítico do jornal para o espaço do acon-
tecimento urbano, gerou certo pânico social pelo fato do PCC não
estar apenas dentro, mas fora da prisão; e debates sobre o significado
de “direitos humanos dos presos” começaram a aparecer nos meios de
comunicação, com especialistas falando sobre o assunto. Além disso,
ao evidenciar a relatividade da “verdade oficial”, a própria inter-
venção serviu como prova da simplificação do fenômeno social pela
grande mídia.

29. Registro interno do grupo, arquivo pessoal.


30. O viaduto mencionado é o da Rua Oscar Freire, na altura em que esta atravessa a
Avenida Sumaré. O lado com maior visibilidade é o que dá para ser visto de dentro da
Estação Sumaré do metrô, na qual as paredes são feitas de vidro.

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MICO pintando faixa com a frase “Não estamos em rebelião...”, São Paulo, 2001.

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Repercussão do deslocamento da frase “Não estamos em rebelião...” pelo MICO,


Folha de São Paulo, 2001.

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Frase “Não estamos em rebelião...” pintada de preto após ser noticiada como do PCC,
São Paulo, 2001.

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Trabalho do Contrafilé na Chrissie Cotter Gallery, Sydney, Austrália, 2007.

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Instalação do Contrafilé na Skuc Galerija, Ljubljana, Eslovênia, 2008.

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Imagem da sistematização feita pelo Contrafilé do trabalho do MICO utilizando a frase


“Não estamos em Rebelião”. Trabalho apresentado na exposição “If You See Something,
Say Something”, que aconteceu na Austrália em fevereiro de 2007.

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No plano micropolítico, o que houve foi um deslocamento de


outra natureza. Sentíamos aquela situação como a própria “brecha”
e intuitivamente sabíamos que ela somente poderia ter sido aberta
através da representação direta, no engendramento de uma estratégia
que operou marcando a irrupção da multiplicidade: nós nos rebe-
lamos em prol da delicadeza disso que escapa, da escuta perdida para
um lençol branco, para uma frase como “Não Estamos em Rebe-
lião...” escrita por filhos e mulheres dos presos; e contra esse eterno
massacre que impossibilita a conexão com o “fora”31, com aquilo que
desconhecemos totalmente, reduzindo o não-saber a uma “ameaça”.
Alguns anos mais tarde, em 2007, o coletivo Contrafilé, que
nasceu como desdobramento do MICO, sendo composto por quatro
de seus integrantes, fez uma releitura do processo vivido na época da
rebelião e criou um trabalho que foi apresentado dentro do projeto
de exposição e website “If You See Something, Say Something”, que
aconteceu na Austrália em fevereiro de 200732.

31. Utilizarei aqui o “fora” no sentido atribuído ao termo por Deleuze e Guattari,
como linhas de fuga e zonas de desterritorialização que obrigam a pensar: “ [...]
que relação com o estranho, que proximidade do caos suporta o território?
Qual é seu grau de fechamento ou, ao contrário, de permeabilidade (crivo) ao fora
(linhas de fuga, pontas de desterritorialização)? Nem todos os territórios se equivalem,
e sua relação com a desterritorialização, como vemos, não é de simples oposição”
(François Bourabichvili, 2004, p. 24).
32. Com coordenação de Zanny Beg e Keg de Souza. Exposição individual na Chrissie
Cotter Gallery e exposição coletiva na Mory Gallery, Sydney, Austrália, fevereiro de 2007.
Segundo as curadoras: “ʻIf you see something, say somethingʼ is a discussion, exhibition
and publishing project. Principally this will relove around an exhibition that will involve
a small number of international and Australian artists whose work has explored aspects
of dissensus”. In: http://www.ifyouseesomethingsaysomething.net, acessado
em março de 2012.

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Mídia Tática

A primeira ação do Contrafilé, que aconteceu no Festival


Mídia Tática Brasil, realizado na Casa das Rosas em 2003, colocava
em discussão as “novas tecnologias”:

Desdobramento do Festival holandês Next Five Minutes - atual-


mente em sua quarta edição - o Mídia Tática mostra trabalhos,
performances, workshops, palestras, intervenções de rua e even-
tos festivos que procuram, sobretudo, celebrar a diversidade cul-
tural e a organização descentralizada da mídia e da comunicação.
A idéia do festival é também promover novas potencialidades
midiáticas tornadas possíveis graças ao crescente acesso aos
equipamentos de mídia e à conseqüente explosão de produção
“faça-você-mesmo” - cada um, a partir de variadas ferramentas,
pode criar suas próprias formas de comunicação desvinculadas
de interesses de mercado e de agendas ideológicas associadas aos
grandes meios de comunicação.33

Um dos organizadores do evento, Felipe Fonseca, escreveu


um texto sobre a experiência do Mídia Tática ressaltando a carac-
terística de troca entre pessoas que criam formas alternativas de
mídia e comunicação: “Apesar de ser antes de tudo um projeto fo-
cado na educação midiática, ele proporcionou um ritmo de con-
vivência entre as pessoas que levou a um grande nível de
experimentação – técnica, social e administrativa.”34
Esse festival inaugurou uma nova política federal em São
Paulo baseada na discussão sobre tecnologia como forma de inserção
cultural e política, sobre redes de conhecimento e difusão da própria

33. Portal do Sesc (on-line), link: http://www.sescsp.org.br/sesc, acessado em abril de 2012.


34. Felipe Fonseca. In: http://culturadigital.br/redelabs/2010/06/um-resumo-do-brasil-
profundo, acessado em abril de 2012.

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produção, o que seria a base do projeto de democratização digital do


Ministério da Cultura tendo à frente Gilberto Gil e Juca Ferreira
(2003-2010).

Segundo Gilberto Gil, a importância do Mídia Tática Brasil se


dá na medida que pretende discutir a utopia digital brasileira.
‘Antes mundo era pequeno, porque Terra era grande/hoje mundo é
muito grande, porque Terra é pequena’, citou o ministro, Parabóli-
camará, composição sua de 1996. E completou, ‘A antena não é
apenas parabólica, ela tem a ressonância de uma cabaça de berim-
bau, uma cabaça parabólica que poderia simbolizar a utopia di-
gital brasileira. Seria mera utopia?’ Gilberto Gil aproveitou para
colocar o Ministério da Cultura como espaço privilegiado para
esse tipo de debate.35

Podemos ver nesses depoimentos um posicionamento político


que define a “mídia tática” como aquela que opera em uma dupla
conexão – com o espaço presencial e o espaço virtual simultaneamente
e que seria, em si, resultado de uma dupla captura. Nesta, cada espaço
assegura ao outro os movimentos de desterritorialização e reterritori-
alização constantes, “dois devires se encadeando e revezando segundo
uma circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada
vez mais longe” (Deleuze e Guattari, 2004, p. 19).
Nesse contexto, o Contrafilé criou a obra “Corda: inter-
venção em mega escala”, na qual uma corda foi instalada atravessando
a Avenida Paulista do alto de um prédio até o subsolo da Casa das
Rosas. Para realizá-la, o grupo teve que fazer um trabalho de con-
vencimento dos moradores e do zelador do prédio e passar por uma
operação arriscada, pois a corda foi amarrada na laje do edifício e

35. Portal do Sesc (on-line), link: http://www.sescsp.org.br/sesc, acessado em abril de 2012.

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trazida de rapel até a rua, arrastada atravessando a rua e depois er-


guida, formando uma linha material que cruzava a Avenida.
O trabalho tratava basicamente disso: a comunicação que
burla regras e códigos pré-estabelecidos (aqui, vivida na negociação
com moradores e zelador do prédio), tornando possível a criação de
um “corte no espaço”. Estou entendendo esse “corte” como a possi-
bilidade de desdobramento de um espaço falsamente tomado como
“dado”. A ideia da intervenção urbana como “corte” pode ser aproxi-
mada do conceito de corte-fluxo de Deleuze e Guattari, que afirmam
que “O desejo faz escorrer, escoa e corta” (1976: 11). Segundo François
Bourabichvili, para os autores:

Cortar não é o oposto de escorrer (barrar), mas a condição sob a


qual algo escorre; em outras palavras, um fluxo não escorre senão
cortado. O que significa então ‘cortar’? Precisamente o regime de
escoamento de um fluxo, sua vazão, contínua ou segmentária,
mais ou menos livre ou estrangulada (2004, p. 17).

O fato da “Corda” estar inserida no contexto do “Festival


Mídia Tática”, atribuiu à experiência material de realização de um
“corte no espaço” – à escala 1:1 (corpo:cidade) e sua representação (que
simbolicamente apontava um devir no modo de lidar com o espaço)
- o valor de novas tecnologias e de mídias táticas. Segundo o filósofo e
semiólogo italiano Paolo Virno:

A primeira questão na ordem do dia é a das formas de luta. […]


Interdependência, conhecimentos compartilhados, capacidade de
correlacionar-se e interagir: esses ‘dotes profissionais’ da multidão
pós-fordista devem tornar-se temíveis instrumentos de pressão.

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Imagens do trabalho “Corda” do Contrafilé, Festival Mídia Tática Brasil, São Paulo, 2003.

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As plataformas reivindicadoras, em síntese, o ‘que coisas quere-


mos’, dependem por inteiro do ‘como podemos agir’ para modificar
as relações de força no interior desta organização social deste
tempo e espaço. Tudo depende, então, da invenção, sem preconceito,
de novos ‘piquetes’ e novos ‘cortejos internos’, que estejam à altura
da necessária flexibilidade e do modelo de acumulação baseado
no general intellect (Virno, 2005).

O fato de, nesse Festival, caber uma compreensão da mídia


tática como “o corpo em confronto com a cidade” demonstra quão
amplo pode ser o debate travado quando o que está em jogo são,
como diz Virno, as formas de luta em sua potência e sua multiplici-
dade. Nessa plataforma, o Contrafilé optou por uma via “low tech” e
o esquema metodológico utilizado para sistematizar o que descobriu
a partir dessa ação é uma demonstração disso:

>>> situação A >>> observar >>>


identificar elemento com potencial de ruptura >>>
intervir evidenciando o elemento disparador >>>
ruptura da situação >>> situação B >>>

O próprio diagrama é uma ferramenta simples, feita de pen-


samento, lápis e papel. O que leva à pergunta de qual seria, então, a di-
mensão tecnológica da ação. O fato é que esse esquema aponta
algumas linhas importantes de atuação do Contrafilé, que depois se
desdobrariam em outras ações do grupo e podem também colaborar
para pontuar alguns aspectos que perpassam esse movimento cultural.
A sistematização da experiência é uma dessas características. A ação
nunca está deslocada da produção de pensamento e da produção, pelo

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próprio grupo propositor, de algum tipo de leitura sobre ela. Podemos


entender essa como uma forma de “tomar para si a interpretação”, es-
crever ao menos uma versão do que aconteceu ou do que está acon-
tecendo. Essa pode ser considerada a atitude que circunscreve uma
dimensão de luta nos trabalhos aqui apresentados: criar uma imagem
própria e que possua a potência da circulação pública. A questão da
imagem, por sua vez, não está sendo aqui pensada apenas como uma
imagem visual, mas como imagem no sentido amplo, como um ter-
ritório de pensamento sobre determinado acontecimento.
Também é representado por esse diagrama o caráter inter-
vencionista do tipo de trabalho aqui analisado, que não apenas “ob-
serva” uma determinada situação, mas para melhor compreendê-la,
ativa algum elemento “com potencial de ruptura”: um entendimento
mais contundente do social parte assim do pressuposto de que é
necessário colocar-se ativamente no centro de uma determinada pro-
blemática, desafiar a realidade a partir das sensações que ela convoca
no corpo para daí construir uma compreensão compartilhada sobre
ela. A intervenção acontece, por sua vez, como uma evidência de
caráter simbólico, pela ativação de um “elemento” que, por conden-
sar uma sensibilidade coletiva, causa uma ruptura da situação esta-
belecida. A ruptura é aqui entendida como um resultado da precisão
nessa operação de produção. O que se produz é, em última instância,
a evidência de que existe um corpo coletivo compartilhando uma nova
sensibilidade, que se anuncia. A “situação A e B” aparecem não à toa,
mas como lugares referenciais do anúncio: em situação.
Aqui evoco, para delinear melhor o tipo de “subjetividade
política” que surge nesse movimento cultural (o que aos poucos essa
narrativa que parte de alguns trabalhos pretende ir situando na me-
dida de sua construção), as palavras de Judith Butler no ensaio “Que

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es la critica? Un ensayo sobre la virtud de Foucault”, presente na Re-


vista Brumaria 7 (2006). Nesse ensaio, a autora cita a contribuição
de Foucault para a construção de uma crítica como uma prática que
questiona os limites dos modos seguros de conhecimento. O que
levaria, segundo Foucault, a um impasse na teoria crítica e pós-crítica
do nosso tempo que faz com que precisemos ir ao limite, mas não
para ter uma experiência emocionante:

[...] o porque el limite sea peligroso o sexy, o porque eso nos lleve a una
excitante proximidad al mal. Una se interroga sobre los limites de los
modos de saber porque ya se a tropezado con una crisis en el interior
del campo epistemológico que habita. Las categorias mediante las
cuales se ordena la vida social producen una cierta incoherencia o
ambitos enteros en los que no se puede hablar. Es desde esta condi-
ción y através de una rasgadura en el tejido de nuestra red episte-
mológica que la práctica de la crítica surge, con la conciencia de que
ya ningún discurso es adecuado o de que nuestros discursos reinantes
han producido un impasse. [...] Para Foucault, la crítica “es instru-
mento, medio de un porvenir o una verdad que ella misma no sabrá
y no será, es una mirada sobre un dominio que se quiere fiscalizar y
cuya ley no es capaz de establecer (id. ibid., p. 19)36.

Voltando ao diagrama esquemático do grupo Contrafilé,


podemos ver ali a representação de uma espécie de “centralização” da
margem (identificar elemento com potencial de ruptura >>> in-
tervir evidenciando o elemento disparador), ou seja, o ato de colo-
car-se no centro da situação de exceção (ou de “ruptura”) como uma
tática para entender um campo de forças a partir de sua espacialização.
A criação do diagrama demonstra, assim, a tentativa de pro-

36. A autora cita, em nota: Michel Foucault, Qué es la crítica?. In: Sobre la Ilustración,
Madrid, Tecnos, 2006, pp. 3-52. “Este ensayo consistió originalmente en una conferencia
pronunciada en la Société Française de Philosophie el 27 de mayo de 1978, posteriormente
publicada en el Bulletin de la Société française de Philosophie, año 84º, núm. 2,
abril-junio de 1990, pp. 35-63.”
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duzir uma imagem de como se dá essa disputa em determinado con-


texto, como uma anotação de campos de disputa e táticas flutuantes.
A cartografia aparece, então, como uma das formas de registrar
quando o corpo se coloca no centro de uma situação não como iden-
tidade, mas como subjetividade atravessada pelo mundo, com isso
evidenciando tanto a constituição de si, quanto do espaço como uma
realidade cambiante e interligada. Não há um centro único, mas a
situação da “margem” que centraliza-se nos momentos de inter-
venção, como uma forma de tornar clara a dimensão do impasse na
construção do social. Segundo o GAC:

A informação nos parece de grande utilidade quando


integra uma ação sobre corpos que transitam num es-
paço de disputa, ou quando permite conhecer previa-
mente este espaço com maior precisão, mas sabendo
que o espaço se transforma com a ação, de modo que a
ação não será sempre coincidente com os objetivos
prévios. É essa forma de conhecer, em parte consciente
e em parte não, em parte objetiva e em parte subjetiva
(...) que nomeamos ‘escala 1 a 1’, por oposição à
definição 1:1000, 1:1000.000 ou 1 a n dos mapas geo-
gráficos, escolares, demográficos ou militares. É a es-
cala na qual vivemos a ação e nos movemos, nos
detemos, confrontamos, avançamos ou retrocedemos,
é a negação da representação de outra coisa, pois é a
realidade vivida como imediata e de maneira com-
partilhada. O ‘1 a 1’, então, aparece como uma reite-
ração do uno e único, ou como uma possibilidade de
relação entre dois corpos diferentes (GAC, 2004).

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Cartografias feitas pelos coletivos Política do Impossível, Frente 3 de Fevereiro,


Bureau dʼétudes e Bijari.

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Enunciação e Emancipação

Este tipo de representación gratuita, desarrollada sobre


el territorio de la ciudad donde se produce el aconte-
cimiento antagonista, genera un desplazamiento hacia un
tipo de lógica política nueva. Es la lógica del agencia-
mento, una lógica que emplea la representación por su
efectividad material, ayudando a los grupos a articularse
a sí mismos de una forma abierta y horizontal. En otras
palabras, es una lógica constructiva de expresión múlti-
ple (Brian Holmes).

Se a sistematização dos processos é uma das formas impor-


tantes de produção de “imagens” nos trabalhos aqui apresentados, é
porque a “obra” é compreendida, em si, como a capacidade de tornar
visíveis os agenciamentos37 que produzem e inscrevem “um olhar sin-
gular diante do mundo”.
O que se torna visível é um acontecimento no qual as estraté-
gias micropolíticas de disputa física e simbólica do espaço social são
materializadas, traçando um território novo e frágil. Segundo o so-
ciólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato:

El acontecimiento muestra lo que una época tiene de intolerable,


pero también hace emerger nuevas posibilidades de vida. Esa
nueva distribuición de los posibles y de los deseos abre a su vez un
proceso de experimentación y de creación (2006, p. 44).

37. De acordo com Deleuze e Guattari: “Segundo um primeiro eixo, horizontal, um


agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado
ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo
uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de
enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo
vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou
reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem”
(Deleuze e Guattari, 1977 apud Zourabichvili, 2004, p. 8).
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A construção de imagens e narrativas críticas que transfor-


mam um processo propriamente em um acontecimento ocorre quando
nessas se realiza uma síntese disjuntiva, ou melhor, não apenas se evi-
dencia o “antes” e o “depois” do acontecimento, mas o instante de cons-
tituição de uma diferença que faz sentido (François Bourabichvili, 2004,
p. 6).
A dificuldade na sistematização de processos para a criação
desse tipo de imagem está justamente em encontrar formas de enun-
ciação que consigam captar a fragilidade que compõe a produção dessa
diferença. No entanto, captá-la é parte fundamental para a constituição
da resistência política aqui relatada, que procura romper com o
menosprezo pela fragilidade, que necessariamente decorre das ex-
periências de vulnerabilidade ao outro e das turbulências desterritoria-
lizadoras (Rolnik, 2006, p. 5).

[...] esta fragilidade nos é essencial pois indica a crise de um certo


diagrama sensível, de seus modos de expressão e suas cartografias
de sentido. Ao menosprezar a fragilidade, esta deixa de convocar
o desejo de criação; ao contrário, ela passa a provocar um senti-
mento de humilhação e vergonha, cuja conseqüência é o bloqueio
do processo vital. Em outras palavras, a ideia ocidental de paraíso
prometido corresponde a uma recusa da vida em sua natureza
imanente de impulso de criação e diferenciação contínuas
(Rolnik, 2006, p.7).

Para a criação dessas imagens da diferença nas quais a fragi-


lidade aparece, um dos elementos de linguagem que foi se constru-
indo nas práticas urbanas aqui apresentadas, poderia ser designado
como o ato de prontidão para corresponder a uma tradução sensível

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A partir de escraches já realizados à casas de torturadores, o GAC cria na cartografia Aquí Viven
Genocidas39 uma forma de tornar visível o processo de produção de um espaço diferencial na cidade
de Buenos Aires. Nessa ação, interpreta o escrache como enunciado, inscrevendo outro enunciado na
cidade, que será interpretado e acionado em outros níveis, produzindo outros enunciados de acordo
com os diferentes contextos nos quais for colocado, e assim por diante.
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A Argentina viveu sob ditadura de 1976 a 1983, a qual deixou um saldo de 30 mil
desaparecidos e 500 bebês seqüestrados – filhos de presos políticos que nasciam na prisão
e eram apropriados pelos militares, crescendo sem saber a sua verdadeira origem.

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dos enunciados40, desdobrados como intervenções41 - o Colectivo Situa-


ciones fala em uma prática de expressão autônoma (2009, p. 13). Por-
tanto, o acontecimento se dá quando um enunciado adquire
propriamente caráter de enunciação, para isso sendo necessário um
processo de confrontação simbólica. Um exemplo disso é o trabalho
“A Rebelião das Crianças”, do Contrafilé. A partir da imagem cons-
truída pela grande mídia e pelo Estado dos meninos da FEBEM
como “marginais”, “internos”, “bandidos” e de suas mães como
“agentes externos incitadores de rebeliões”, o grupo quis entender
do que, afinal, se tratava aquilo, desencadeando todo um processo
de tradução e contra-tradução.
A “Rebelião das Crianças” é uma das situações metafóricas43
criadas pelo Contrafilé. Com o intuito de gerar “conhecimento situ-
ado”42 que resulte em enunciações coletivas construídas a partir da fra-
gilidade, o grupo propõe conversas com comunidades e grupos,
chegando a novas imagens, sensações e possibilidades de intervenção.

Situação Metafórica sf 1 Situação que cria pontes


entre diferentes mundos e permite associar o que está
sendo dito/vivido a algo já vivido por todos, estabe-
lecendo assim alguma ligação com o conhecimento cul-
tural comum. Cria então um parâmetro para o diálogo,
um ponto de convergência entre as pessoas que compõem
um grupo; cria um ‘chão comum’; 2 Mais que ‘metáfo-
ras’, devem conter, necessariamente, o desenvolvi-
mento real de uma ação; 3 Contexto extraordinário,
inesperado, que provoca ruptura no processo cognitivo
de seus co-criadores. Situação que rompe a rede de re-
lações estabelecida e dá passagem a uma nova trama de
relações. A ruptura aqui é um projeto de reconstrução
coletiva das representações. O novo sentido aparece
para os co-criadores como um estímulo mobilizador de
seu potencial inventivo. Eles necessariamente criam
para assimilar a experiência, são ativos em sua rea-
lização. O momento da ruptura corresponde à inaugura-
ção do acontecimento; 4 Um sonho real.

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“Agentes externos”: denominação do governo estadual


para as mães organizadas dos jovens encarcerados.

40. Enunciados que podem ser de vários tipos: a voz da grande mídia, a voz de pessoas
comuns, a voz de pessoas convidadas para pensar juntas a partir de uma determinada
“situação”, a ação de um movimento social, as próprias obras-interventivas dos coletivos.
41. Que podem também se dar em vários espaços: na cidade, no corpo, no meio editorial, etc.
42. Segundo a antropóloga Florencia Ferrari, “A expressão ʻconhecimento situadoʼ foi cunhada
por Donna Haraway no contexto do debate feminista nos anos 80 para definir um saber
corporificado, isto é, um saber no qual o significado se cria através dos corpos. A autora
reivindica uma ʻobjetividade feministaʼ, uma ʻposição limitadaʼ, parcial (1988: 588, 592).
Entendo que o conceito indica uma relação de transformação mútua entre pesquisador
e pesquisados, que não podem ser apreendidos em posições fixas, como ʻidentidadesʼ”
(Florencia Ferrari, 2010, p. 15).
43. “Programa para Descatralização da Própria Vida”, “A Rebelião das Crianças”,
“Estado de Confinamento”, são algumas das situações metafóricas inventadas pelo grupo.
Todas são apresentadas ao longo desta dissertação.

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Seqüências de jornais sobre as


rebeliões na FEBEM com anotações
feitas pelo Contrafilé.

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Crianças e Contrafilé na praça da Sé, São Paulo, 2005.

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Interpretação de enunciados e atenção à fragilização que causam: que perguntas levantam?


Que desejos disparam? Primeiro desejo disparado: trocar a palavra “internos”, “juventude
encarcerada”, “menores”, pela palavra “crianças”. Segundo desejo disparado: conhecer
essas crianças através de uma intervenção que evidencia a operação enunciativa realizada.
Intervenção: produção de espaços na cidade que anunciem imagens desse devir (“crianças
de rua” viram “crianças na rua, brincando”)
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Criança no balanço instalado pelo Contrafilé, Viaduto Okuhara Koei/Avenida Paulista;


crianças fazendo pose de máscaras, centro da cidade; e Ato de Protesto contra a tortura na
ex-FEBEM promovido pela AMAR e que contou com a participação do Contrafilé, São Paulo
2005-2006.
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Parque para Brincar e Pensar, realizado pelo Contrafilé, Comunidade


Brás de Abreu e Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC, atelier-escola da
artista Mônica Nador localizado no Jardim Miriam), São Paulo, 2011.

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Trechos da publicação “A Rebelião das crianças” (Contrafilé, 2007):

Neste processo de encarnação dos conflitos, nos de-


paramos com a criminalização e o extermínio social de
uma parcela enorme de crianças e jovens.44 O dado de
realidade que nos convocou a olhar com atenção para
isso foi uma grande rebelião que aconteceu no início
de 2005 na Fundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM)
– cárcere juvenil onde vivem cerca de seis mil crian-
ças e adolescentes julgados como criminosos. Passamos
a acompanhar diariamente as notícias sobre a rebe-
lião, fazendo leituras críticas e coletivas de jor-
nais. Até que começamos a substituir palavras para
ver o que acontecia. Ao invés de ‘juventude encarce-
rada’, ‘internos’, ‘menores’, líamos: crianças.
Assim, pudemos entender também que o que nos move,
nossa urgência, é fazer constantemente esta operação
de desnudamento dos fatos, o que nos levou a nomear
este trabalho A Rebelião das Crianças.

[...]

As rebeliões na FEBEM denunciam para nós não a exis-


tência de uma ‘juventude criminosa’, mas a condição
da criança (latu senso) como representante máximo do
estado degenerativo da nossa sociedade. O olhar ma-
niqueísta sobre a situação, a partir do qual ou se
está ‘contra ou a favor’ do crime, ‘contra ou a favor’
da sociedade, reiterado pelos meios de comunicação,
tipifica as crianças e jovens como ‘ameaças’. É ne-
cessário, no entanto, antes de afirmar, perguntar: de
que rebelião se trata?

[...]

Para tornar público o que descobrimos no encontro com


o ‘circuito das crianças criminalizadas’, pusemos em
prática a idéia de ‘assembléia’45, convidando três

44. Por exemplo, entre 2004 e 2006, morreram mais de 28 adolescentes que se encontravam
sob a responsabilidade da FEBEM, segundo dados levantados pela AMAR – Associação de
Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco.
45. Para “Assembléia Pública de Olhares”, ver cap. 2.

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pessoas, referentes de diferentes lutas, para discu-


tir problemáticas que ressoaram no grupo ao viver
este processo: 1. A lógica que mina a potência de
criação; 2. Tortura/terrorismo de Estado: o que sig-
nifica a tortura hoje?; 3. Como re-significar trau-
mas sociais e culturais que impossibilitam a
construção de vida pública?

Conceição Paganele46: Eu pensei: ‘Que coisa é essa?!’


Aí, ele veio e já começou a chorar. Eu vi muitos me-
ninos chorando e muitas mães chorando. Ele falou:
‘Aqui é terrível mãe! Aqui eles batem para valer, tem
drogas, para você saber’. Eu disse: ‘Não, meu filho,
você precisa se tratar, ser curado dessa maldição’.
‘Aqui tem droga, aqui tem tudo, aqui não vai mudar
nada na minha história e eu só vou sofrer mais ainda
aqui dentro. Se lá fora é ruim, aqui dentro é muito
pior, tem de tudo que você possa pensar’. Na hora da
saída, que eu queria abraçar, e ele com a camiseti-
nha grudada. Eu queria olhar, ver se ele estava ma-
chucado, mania de mãe né?! E ele não me deixava, dizia
que eu não podia. Porque tinha lá as normas deles, as
leis. E quando eu ia sair dali, quase que ele não me
larga de chorar, agarrado comigo, quase que eu não
consigo ir embora. E saíam as mães chorando bastante
também. Eu comecei a querer entender. Porque todo
mundo chorava se era bem-estar? Todo mundo sai cho-
rando? [...] Quando os meninos entram na FEBEM, as fa-
mílias ficam muito envergonhadas. A dor já era muito
grande, já deixava paralisada. E ver o outro criti-
car e olhar então... Era uma dor muito nossa.

Maurinete Lima47: O que se busca é destruir a potên-


cia juvenil e no lugar instaurar o ódio e a idéia de
que existe um inimigo, um suspeito. É isso que o sis-
tema não percebe. Fazem tudo isso com esses meninos e
eles saem uma loucura, matando quem encontram na rua,
pelo chinelo, pelo tênis. A vida se banaliza. É essa
a história. Às vezes eu fico pensando que se come-

46. Mãe de um jovem que esteve na FEBEM e referência do movimento das mães contra a
tortura nas prisões (AMAR).
47. Socióloga e integrante da Frente 3 de Fevereiro.

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çássemos retirando desses meninos o olhar de suspeita


em todo o lugar em que ele vai, já estaríamos melho-
rando essa sociedade.

Conceição: [...] O processo de criminalização [da


AMAR] começa quando o governador Geraldo Alckmin se
declara meu inimigo. Ele vai a uma coletiva de im-
prensa e diz que eu não ajudo, que eu só atrapalho.
Eles me acusam de ser a incitadora de rebeliões,
fugas. Iniciam um processo legal contra mim, ainda
não estou respondendo, porque está em fase de inqué-
rito. [...] Eles tentam abafar quando a gente quer
lutar por um direito totalmente negado, pelo direito
de quem não tem direito nenhum. Eles matam a gente,
porque socialmente eles estão me matando.

Suely: Mas é essa a forma como matam, por isso a gente


precisa conversar uns com os outros para não morrer.
Porque eles matam transformando uma coisa que é al-
tamente digna, em uma coisa totalmente humilhante. E
dão o nome de terrorismo. [...] Eu conheço profunda-
mente a fragilidade que a Conceição ficou, e sinto
isso como uma coisa totalmente comum entre a gente.
E aí também tem um trabalho de descobrir onde que essa
fragilidade ecoa, onde essa humilhação ressoa na his-
tória de cada um. Porque a humilhação tem sido, sis-
tematicamente, uma estratégia do poder para cancelar
os movimentos de ampliação. No começo, eu estava ten-
tando entender o que estou sentindo, e a Conceição me
ajudou. É humilhação mesmo. E hoje, a humilhação está
chegando de outro jeito não só no Brasil, mas no mundo
inteiro. Na França, por exemplo. Lá, a televisão tem
muitos programas de falação. Antes, tinha gente de
movimento, gente de direita, de esquerda, todo mundo
discutindo. Hoje, você olha esses programas e está
todo mundo falando a partir da ordem estabelecida. E
sempre tem um ou dois, que são sempre os que estão
verdadeiramente pensando e fazendo política, que não
são atacados, ninguém vai chegar e dizer: ‘A Concei-

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ção é criminosa’, ‘a Suely é criminosa’. Não. ‘A Con-


ceição é gracinha’ e, olha que ridículo, que jeito
mais antigo e ultrapassado de dizer as coisas. É hu-
milhante, mas é uma humilhação que está usando outras
estratégias. Neste caso, absorve e não ataca. É di-
ferente do que a Conceição está contando. Mas o que
eu quero dizer é para pensarmos quando a humilhação
acontece com cada um, e vai bater na memória de sei
lá que outra experiência, o que torna a gente mais im-
potente e frágil e a gente não consegue sair desse
ciclo, até para poder pensar sobre isso, como esta-
mos pensando agora. O que eu vejo de situação comum
aqui é isso, que não depende de qual tipo de batalha
que cada um está levando adiante, da encanação de cada
um ou da história de cada um. Eu sinto essas formas
de humilhação como um elemento totalmente comum que
vai deixando a gente nesse Estado de Confinamento.

[...]

Contrafilé: Eu vou falar um pouquinho o que eu estou


pensando agora. O Contrafilé trabalha pensando de-
terminadas situações que partem da nossa experiência
e tentando sistematizar o pensamento; e sistematiza-
mos o pensamento também quando produzimos símbolos,
intervenções na rua. E a gente vem desenvolvendo um
trabalho a partir dessa angústia do “confinamento”,
que não é a de estar dentro de uma prisão, mas de
sentir o confinamento como um estado geral que chega
até nós e atravessa a nossa experiência.

Suely: Então, não é só o confinamento dos outros, mas


também quando vocês se sentem confinados.

Contrafilé: Sim, é também como a gente se sente con-


finado. E aí, eu acho que o confinamento tem a ver com
várias coisas. Tem a ver, por exemplo, com a difi-
culdade de se relacionar com o outro, o outro que se
configura sempre como um outro distante e como, do

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nosso lugar, isso vai se configurando. E eu acho que


deu vontade de quebrar um pouco também esse confina-
mento, esse lugar de elaboração e de ‘pensar confi-
nado’, sempre entre a gente. Deu vontade de abrir isso
e de misturar pessoas com experiências diferentes de
confinamento. Como, juntos, podemos misturar expe-
riências para pensar, para ampliar o entendimento
disso?

Suely: Eu estou sentindo um tipo de confinamento que


para mim é novo. Eu não sei se vou conseguir falar di-
reito dele ainda. Nos últimos anos, eu estava sen-
tindo um movimento de desconfinamento, eu estava
sentindo que tinha um monte de gente pipocando em um
monte de lugar. Eu trabalho muito fora do Brasil e
dentro, vou e volto. Eu sentia que tinha gente em vá-
rios lugares em um movimento de criação, vendo o que
estava se passando e buscando estratégias para com-
bater, pensar, entender. E agora, recentemente, eu
estou sentindo que muito do que foi pensado, falado,
apresentado, daquilo que está sendo comunicado é ime-
diatamente incorporado por um discurso oficial e to-
talmente esvaziado do movimento vital e das tensões
que levaram a pensar as situações reais; da expe-
riência de coisas intoleráveis que estamos vivendo.
Esvazia e muda a direção da palavra. Aí, vira uma
coisa ‘superbacana’, quando na verdade são palavras
que falam das coisas complicadas, dos problemas que
se está vivendo que você tem que enfrentar. As pala-
vras estão aí, mas não o conteúdo delas, a experiên-
cia não está mais nelas. E essa experiência que se
estava vivendo ao inventar essas palavras, é comple-
tamente anulada, neutralizada. O que predomina não é
o que essas palavras significam, mas a falcatrua ab-
soluta, a violência absoluta e total de exploração e
dominação.

Maurinete: Agora, para mim, o que eu sinto, no meu


caso de confinamento, é que existe um medo, o medo de

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saber que está existindo alguma coisa nova e ainda não


perceber qual a forma de atuar; e daí eu me apego. E
é gozado, me apego exatamente a essas formas que eu
não acredito mais. Mas eu também me apego a novas coi-
sas, é como se estivesse havendo um movimento, uma
coisa nova e que eu ainda não sei o que é, mas está
havendo. Eu concordo com você, ontem vi o Serra falar
sobre ‘autonomia da universidade’, sobre o ‘problema
dos grupos’, ‘das pessoas que estão excluídas’. Eles
pegam as palavras fortes e esvaziam. Mas, ao mesmo
tempo, o sistema não dá conta. Por exemplo, a favela
do Alemão, por mais que diga: ‘É uma luta de trafi-
cante lá’, você não acredita naquilo simplesmente,
entendeu? É muito mais complexo. O que eu sinto medo
é que não dê tempo da coisa emergir e eu ter elemen-
tos para entender, e essa é uma grande comoção, de
saber como agir, e é por isso que eu fico correndo
exatamente atrás do pessoal que não teme as coisas en-
casteladas, cristalizadas, e eu acho que é por aí
[...].

Toda enunciación implica una comprensión, una ‘capacidad de res-


puesta activa, una ‘toma de posiciones’, un ‘punto de vista’, una
‘evaluación de la respuesta’. Podemos utilizar la concepción del
dialogismo para dar cuenta de la evolución del espacio público,
porque lo que hemos visto e oído en esas noches de estallidos y esas
jornadas de confrontación semiótico-linguística48 es la acción es-
tratégica, tal como la describe Bajtin: por un lado, los enunciados
se refieren a otros enunciados, polemizan con ellos, se oponen a
ellos o los consienten; por el otro, los completan, se apoyan en ellos.
[...] Existe entonces una imposibilidad de encerrar la enunciación
en la lengua, de hacer surgir las significaciones, la potencia de
transformación y de subjetivación de las meras estructuras semân-
ticas, fonéticas o gramaticales de la lengua. También existe una

48. Aqui o autor se refere às revoltas de jovens dos subúrbios franceses, geralmente
descendentes de imigrantes, que se espalharam pelas periferias da França durante dezenove
dias entre outubro e novembro de 2005.

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imposibilidad de hacer de la enunciación una simple convención,


una simple instituición, una simple confirmación de las relaciones
sociales ya instituídas (Lazzarato, 2006, 23-24).

É, portanto, a partir do embate entre representação e contra-


representação, que uma atualização da dimensão pública do espaço
se dá como desdobramento imprevisível. Podemos aqui nos reportar ao
conceito de “espectador emancipado” de Jacques Ranciére que, se-
gundo Vera Pallamin:

[...] defende uma recusa dessa distância radical, dessa distribuição


de papéis e das fronteiras entre esses territórios do ver, fazer e falar.
É preciso, ele afirma, reconhecer a atividade própria do especta-
dor, que é a de tradução e contra-tradução daquilo com o qual se
depara: ‘é neste poder de associar e dissociar que reside a emanci-
pação do espectador, quer dizer, a emancipação de cada um de nós
como espectador. Nisto verifica-se uma capacidade que faz cada
um igual ao outro e que se exerce ‘pelo jogo imprevisível de asso-
ciações e dissociações’ (2010, p. 8).

Se entendemos a emancipação do espectador como a ca-


pacidade de se dar ao direito de produzir enunciações, em muitos dos
trabalhos aqui apresentados vemos isso acontecendo na medida em
que o “autor” coloca-se sobretudo como um “espectador emancipado
público”, aceitando o risco de expor as suas próprias intensidades no
sentido de qualificar o debate. Muitas vezes esse movimento é, em si,
compreendido como “a” intervenção. Paolo Virno, pensador italiano,
acredita que:

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Sobre todo al interior del movimiento new global, el rol de la ‘ter-


cera persona’, del público, es, ya de por sí, una forma de interven-
ción activa. Hoy, quien escucha una ocurrencia o un discurso
político, lo rearticula mientras lo escucha, elabora sus desarollos
posibles, modifica su significado: en sínteses, lo transforma en el
momento mismo en que lo recibe. Tiene que ver, en fin, con un
público activo (2006, p. 15).

Assim, estamos aqui problematizando o papel do próprio


“artista” enquanto “público ativo de si mesmo e das relações com o
seu entorno”, que o podem levar a uma elaboração dos modos de vida
contemporâneos e a enunciações críticas. Uma problemática que
constantemente atravessa as enunciações coletivas tem, justamente,
a ver com a dificuldade de sair do lugar de “espectador passivo”,
“alvo” do pensamento contemporâneo defensivo, já que para ativar-
se enquanto espectador-autor no sentido em que estamos enten-
dendo o espectador aqui, é necessário, como vimos, a conexão com
a própria fragilidade. Essa dificuldade é vista pelos coletivos como
uma das responsáveis pela impossibilidade de construção coletiva da
vida pública e da cidade (em suas escalas materiais e imateriais), na
medida em que o medo de entrar em contato com esse devir, esse
fora que nos fragiliza, transformando-se a partir dele, vira “medo do
outro”. Que “outro” é este do qual se fala?
No livro “Ninguna Mujer Nace para Puta”, Maria Galindo e
Sonia Sanchez (2007) usam a imagem da relação proibida como uma
força subversiva interpeladora para falar dessa ruptura subjetiva que
ativa conexões entre mundos e o trabalho de tradução e contra-
tradução, a partir do qual espaços de compreensão se tornam possíveis:
“Es un lugar prohibido y por eso puede ser muy subversivo, porque

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romperia con la forma más profunda de control y de poder de un ser


sobre otro” (p. 165-195). As autoras ainda dizem que a força subver-
siva não vem simplesmente da enunciação das diferenças, mas da pas-
sagem para um lugar mais elaborado, no qual esse tipo de aliança
proibida se concretiza a partir de um “cruze de miradas” (intercâmbio
de olhares).

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Metáforas do Confinamento

Se vem para me ajudar, não se dê ao trabalho, porém se


vem porque a tua libertação está vinculada à minha, en-
tão trabalhemos juntos (Lilla Watson, aborígene aus-
traliana).

Um outro elemento da linguagem construída por esse tipo


de prática crítica aqui analisada, poderia ser descrito mais ou menos
assim: sair desse estado defensivo em relação a um outro suposta-
mente externo e ameaçador convocando um estado ativo do corpo,
que se coloca no centro das situações mais tensas para perguntar:
Tenho medo do que? Onde está a minha fragilidade, o que ela sig-
nifica? O que aquilo que está acontecendo lá longe, diz de mim?
Como diz o GAC:

Sería un verdadero desafío para todos nosotros inda-


gar qué nos hace frágiles y cómo se construye la fragili-
dad colectiva, qué hacer con el miedo que sentimos a
lo desconocido, o cómo dialogar con otras realidades
que no son las propias, que nos resultan enigmáticas,
desde una actitud inclusiva o analítica, intentando
despojarnos de los romanticismos que la militancia
supone. También puede resultar interesante pregun-
tarnos por qué encajamos donde encajamos, ya sea
que estemos en el lugar del delincuente o en el de su
presa (GAC, 2009, p. 137).

Muitos trabalhos tentam encontrar formas para falar disso: a

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experiência visível e sensível de viver em uma “sociedade de contro-


le”; acompanhada da experiência invisível, disforme, de nos sentir-
mos, cada um de nós, auto-confinados nesses lugares pré-destinados,
nas identidades fixas, aceitando passivamente os “discursos do
medo”49 sem, no entanto, conseguirmos agir.
A criação da metáfora do “Estado de Confinamento” e de
uma “Secretaria do Estado de Confinamento”, formalizada pelo
grupo Contrafilé e utilizada pelo coletivo Política do Impossível (PI)
em seu trabalho “Cidade Luz – Uma investigação-ação no Centro de
São Paulo”50, fala justamente de um Estado que ao mesmo tempo em
que se revela como norma social, amplia e aprofunda um estado
anímico de isolamento e solidão nos corpos individuais.
A investigação-ação, a partir da qual é possível identificar
como acontece a “espacialização desse Estado de Confinamento” é,
segundo o PI:

Uma forma de nos relacionarmos com nosso próprio


contexto, onde o investigado não se objetualiza para
ser tratado analiticamente. A investigação parte de
nós mesmos como subjetividades situadas e em ação.
A ação é uma postura que inicia o diálogo, a partir
da qual convido o outro a se somar à conversa. Essa
ação a partir do nosso próprio lugar se dá através da
criação de representações (soluções plásticas) e de ir
vendo como as imagens que vou produzindo dia-
logam com o mundo onde vivo (PI, 2006).

49. Segundo Teresa Pires do Rio Caldeira, nas cidades contemporâneas, diferentes classes
sociais, especialmente as mais altas, têm usado o medo e a violência do crime para justificar
novas tecnologias de exclusão social e a retirada de classes mais baixas dos bairros
tradicionais das cidades. A circulação dos “discursos do medo” é, para a autora, parte de
uma fórmula que elites do mundo todo vêm adotando para reconfigurar a segregação
espacial das cidades (Caldeira, 2000).
50. Que resultou em uma publicação realizada com o apoio do Minc/Funarte, São Paulo, 2008.
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Nesse trabalho, o Centro de São Paulo é entendido como um


espaço simbólico do conflito entre a necessidade de conviver e pro-
duzir espaços coletivos a partir da diferença e a imposição de uma
vida “lisa”51, “limpa”, homogênea e sem conflitos. Os fenômenos que
têm acontecido no Centro52, portanto, condensam uma série de situ-
ações estratégicas para falar sobre quem somos, o que queremos, o
que podemos, o que não podemos, enquanto sociedade. Na época
em que o trabalho foi feito, essa escolha foi marcada por esse tipo de
indagações, que partiam dos laços afetivos e subjetivos que fazem
desse, um espaço social simbolicamente potente para todos nós.
Portanto, a tentativa, a partir do aprofundamento em uma
situação exemplar de “Confinamento Social”, foi a de percorrer e dis-
correr sobre a situação do “Centro da Cidade” como um “centro de
nós mesmos”. Ou seja, de criar uma outra perspectiva de leitura que
trouxesse à tona uma interpretação na qual o grupo pudesse romper
as fronteiras discursivas para anunciar aquilo que via, sentia e pen-
sava, renovando a sua própria circulação pelos espaços físicos e sim-
bólicos e criando outras condições para a imaginação coletiva sobre
aquele mesmo lugar (o Centro de São Paulo).
O PI também problematizava ali as formas atuais de ocu-
pação do território (tais como os condomínios fechados, as prisões e
as ocupações dos movimentos de moradia), os espaços que se espe-
lham e estão diretamente ligados à “experiência do público” como a
vivemos em nossa atualidade.
A partir de tudo isso, uma multiplicidade de práticas, tais
como intervenção direta na cidade, entrevistas, cartografias, inter-
ferências gráficas em discursos da mídia, imagens poéticas, se so-

51. A respeito dessa ideia, Suely Rolnik diz o seguinte: “Estamos diante [aqui, se refere à
sociedade atual, que define nesse texto como ʻpós-fordistaʼ] de um novo élan para a idéia de
paraíso das religiões judaicocristãs: miragem de uma vida lisa e estável, sob perfeito
controle. Esta espécie de alucinação tem sua origem na recusa da vulnerabilidade ao outro e
das turbulências desterritorializadoras que provoca” (Rolnik, 2006, p. 7).
52. Especialmente o “Projeto Nova Luz”, baseado na expulsão da população pobre do centro
e no processo de gentrificação daquele território. Para saber mais, ver “Cidade Luz” (PI,
2008) e Beatriz Kara José (2007).
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maram para tentar dar conta de reverter a forma passiva e estabi-


lizadora das interpretações geralmente construídas a respeito daquele
contexto. Esse foi um trabalho completamente colado com a atuali-
dade de um processo social em curso e que tentou captar a dimensão
“microssociológica” como resultado de uma série de confluências e
invenções. O livro “Cidade Luz”, enquanto cartografia, foi uma ten-
tativa de captar o social como um processo constitutivo que acontece a
partir do concreto e das múltiplas subjetividades nele envolvidas; de
ser uma voz subversiva naquela miríade, que partia do desejo da
emancipação e contaminação e de fazer esse desejo de mobilidade e
circulação pelos territórios de si e da cidade, proliferar53.
Essas leituras alternativas de fatos sociais hegemônicos
acabam, por sua vez, reverberando socialmente por conter, justa-
mente, na escala da experiência, a possibilidade de estabelecer
conexões inusitadas, que ampliam as “sinapses possíveis” e revertem
as leituras estereotipadas da “realidade” ao introduzir uma represen-
tação que contém a consistência processual de “espectadores que se
fazem públicos”, para tornar visível uma experiência singular de um
contexto comum.
Trechos da publicação “Cidade Luz” (PI, 2008):

Introdução

A decisão de centrar o trabalho sobre os conflitos so-


ciais, políticos, econômicos e simbólicos que apre-
senta o Bairro da Luz, abriu a possibilidade de atuar
no bairro ao mesmo tempo em que começamos a dialogar
com uma problemática muito mais extensa que trans-
passa os limites da própria Luz. O Centro – e, em es-
pecial, a região denominada ‘cracolândia’ – revela
para nós, por sua densidade, questões constitutivas
dos processos de subjetivação de todos nós na rela-

53. Retomando a conversa com Suely Rolnik na Introdução desta dissertação, não estamos
aqui “celebrando a mobilidade” incondicionalmente. Sempre que falo em circulação ou
mobilidade, estou entendendo-as como uma construção, uma conquista de ruptura com
padrões internos e externos de comportamento e, portanto, a partir de uma perspectiva
crítica e não como “moda” ou “tendência” – pois vistas assim, essas se adequam
completamente ao capitalismo em sua versão contemporânea.
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ção com esta cidade. Nesse microcosmo da ‘velha nova


luz’ nos encontramos com as tensões da cidade esti-
cadas ao máximo: um estado que de um dia para outro
se propõe como ‘o grande reparador’, ‘o salvador’ de
uma situação de violência que ele mesmo provocou. Mas
que, ao contrário do esperado de uma reabilitação do
centro, inventa uma nova ‘disneylândia’ no lugar da
velha ‘cracolândia’.

Territórios em Disputa: Conversa com Raquel Rolnik54


(trechos da conversa)

PI – Queríamos conversar com você sobre o processo de


revitalização do centro de São Paulo, especificamente
do bairro da Luz, sobre o que isso significa para a
cidade, para as relações humanas, concreta e simbo-
licamente[…]

Raquel – […] Revitalizar pressupõe a idéia de ter al-


guma coisa morta, o não reconhecimento da vida que
existe, e normalmente a vida é de pessoas pobres, de
gente que justamente ocupou aquele lugar porque ele
perdeu o interesse para o mercado imobiliário, per-
deu preço e virou um lugar que pode abrigar quem não
tem dinheiro para participar do mercado, ou que par-
ticipa com relações muito mais informais e irregula-
res. Então, funciona dessa forma: prostitutas,
camelôs, encurtiçados, desempregados, catadores,
enfim, pessoas que existem, são reais, mas é como se
não existissem. Existe uma metáfora usada, do orga-
nismo humano, que eu acho uma loucura, tratam alguns
lugares da cidade como se fossem ‘cânceres’ mesmo,
‘cancros urbanos’, eles têm nojo do lugar.

[…]

54. Arquiteta e urbanista especializada em planejamento e gestão da terra urbana.


É professora da FAU-USP e Relatora Especial para o Direito a Moradia do Conselho de
Direitos Humanos da ONU. Foi diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992),
Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007), e
Coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis (1997-2002). Prestou consultoria a governos,
organizações não-governamentais e agências internacionais, como UNHabitat, em política
urbana e habitacional. É autora dos livros “A Cidade e a Lei”, “O que é Cidade”, além de
vários outros artigos e livros sobre a questão urbana. Colabora regularmente com a
imprensa em temas de urbanismo, tendo mantido programa diário sobre o tema, na rádio
CBN SP, Rádio Nacional e na BandNews FM. Conversou com os integrantes do PI em 2008.
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Imagens da publicação “Cidade Luz” (PI), 2008.

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PI – É interessante ver como São Paulo reproduz cla-


ramente esta lógica de parceria entre o Estado e a
iniciativa privada. Quando a gente vê este cinturão
periférico que vai se formando e se tornando cada vez
maior na cidade, percebemos que permanece no Centro
uma espécie de ponto que ainda não se conseguiu ‘ex-
terminar’. Tem um educador que participa desta nossa
pesquisa que, pensando nestes termos de linguagem, em
como impregnamos uma série de valores quando falamos
“cracolândia”, chama de manifestação de resistência
os meninos usando drogas naquele espaço. Mesmo reco-
nhecidos pelo poder público como um problema urba-
nístico – ao ser demolido o bairro os meninos devem
desaparecer – mesmo assim, estes meninos resistem,
mesmo com toda a força policial, com a mídia refor-
çando o problema, o policial indo lá e batendo de
novo, todas as ONGs tentando fazer este processo de
expulsão, não à força, mas levando pela mão, mesmo
assim eles voltam e voltam. Esse educador chama isto
de manifestação de resistência, no sentido de que tem
ali uma outra leitura a ser feita.

Raquel - Eu acho que dá para fazer uma leitura da ci-


dade como um todo desta forma, todo território da ci-
dade é disputado permanentemente, do Centro às
periferias. Claro que do lado do setor imobiliário, e
que também não é o único, são muitos os que disputam
o mercado, não é uma oposição biunívoca, ou seja, mer-
cado imobiliário versus páreas urbanos ou marginali-
zados ou excluídos, não é, as relações são muito mais
complexas que isso, e os territórios estão em disputa
permanentemente. O que eu acho mais impressionante em
São Paulo é a força desta dinâmica, ela é muito in-
tensa. E já começou assim, é a lógica do Bandeirante;
e o que é o Bandeirante, símbolo de São Paulo? É um
cara truculento, bandido, que veio ganhar riqueza
fácil a qualquer preço; por outro lado é o cara que
entra na mata, enfia o pé na lama, fala Guarani per-

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feitamente – no século XVII só se falava guarani nesta


cidade –, se mistura com as índias, mora na rede de-
baixo da árvore, não é um fidalgo que nunca se mis-
turou. É isto que é São Paulo, essa força de construir
e de destruir também. Tudo que a cidade é hoje você
pode pensar tanto do ponto de vista do Matarazzo: ‘O
Centro virou um câncer’. Ou do ponto de vista desta
outra leitura: ‘O Centro é um foco de resistência po-
lítica’. […] Esta coisa da droga é uma coisa compli-
cada porque o comércio de drogas, assim como os outros
comércios irregulares e ilegais que têm em São Paulo,
como o contrabando e a pirataria, com seus distintos
níveis de criminalização, também faz parte da histó-
ria da ambiguidade constitutiva do Estado brasileiro
e da gestão urbana brasileira, essa ambiguidade entre
o legal e o ilegal. Tanto que a maior parte da cidade
é produzida irregularmente e ilegalmente. A periferia
inteira é autoconstruída, autoproduzida pelas pró-
prias pessoas sem ou fora da norma. Não somente as fa-
velas, mas os loteamentos irregulares, clandestinos e
os puxadinhos, esta é uma cidade de puxadinhos. Em-
bora seja tudo ilegal, por que não está todo mundo
preso? […] A gente precisa do legal e do ilegal, isso
faz parte da cultura política, da relação que a gente
tem com a lei. Esse modelo republicano de democracia
que foi montado na Europa por aquela sociedade, para
aquela sociedade, quando vai ser exportado para o
mundo, como que ele chega na América Latina? Como isso
é implantado aqui? Como ele é implantado na África?
Como é a relação com o que tem lá? Como ele chega na
Ásia, na relação com o que tem lá? Vai sendo absor-
vido e transformado pelos modos de funcionamento lo-
cais. Então, aqui tem mesmo uma tensão permanente
entre o legal e o ilegal. Não se constituiu no Bra-
sil a idéia, a noção de que você tem uma lei, uma
norma que foi fruto de um pacto social e que, por-
tanto, ela tem que ser implementada em nome deste
pacto. Porque nunca teve pacto! Sempre foi meia

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dúzia. Meia dúzia e o resto vai se virando. E todo


mundo usa a lei ou a não-lei dependendo das circuns-
tâncias, o próprio Estado. Por que o Estado tolera a
autoconstrução, a irregularidade, a ilegalidade? Por-
que sabe que pra manter concentrada a renda e o poder,
este é o jeito. Mas de vez em quando vai lá e tira a
favela dizendo que “é ilegal”. Então mobiliza o ser
legal ou o ser ilegal em função das necessidades do
momento e das conjunções de construção de opinião. E
é isso, os circuitos da ilegalidade, de irregulari-
dade, como o tráfico de drogas, também vão entrando e
penetrando dentro dos territórios que de alguma forma
estão menos conectados e regulados pela norma. Então,
não é à toa que a favela seja um centro de tráfico de
drogas. Por que a favela? Porque ali já é um espaço
pouco normatizado, pouco regulado, onde a lei existe,
mas é mais tênue a presença dela; não é que o Estado
não existe lá, ele existe completamente, só que de
outro jeito. Então, o Centro, as áreas que por alguma
razão urbanística acabaram sendo desinvestidas pelo
mercado e acabaram fisicamente se deteriorando e
sendo abandonadas, vão sendo ocupadas por estes cir-
cuitos que se instalam ali, meio na margem, mas que
também fazem parte, também vão migrando. E é gozado
que, nessa política, que o pessoal chama de higie-
nista, que está sendo feita no Centro, se intervém
para tirar na força. Evidentemente que aquilo vai vi-
cejar em outro lugar. A menos que você assassine as
pessoas, e isso acontece também. Eu tenho plena cons-
ciência de que se trata de uma causa complexa, é muito
difícil. Mas ao mesmo tempo eu acho que é muito im-
portante ter a idéia de uma reabilitação includente,
uma reabilitação para os que estão aqui, para nós. E
“nós” significa uma maioria pobre sem recurso. É uma
utopia importantíssima para construir uma visão e um
pensamento de cidade includente, porque isso é o mais
difícil. A situação do Centro não é difícil porque o
Centro é complexo, mas porque nós temos um modelo de

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cidade segregada, de apartheid, que constituiu nosso


modelo de desenvolvimento urbano. Então, eu acho que
a intervenção na área central é uma chance de ruptura
com o modelo do apartheid, de mostrar que esta rup-
tura é possível, de que ninguém vai morrer se convi-
ver com os pobres do outro lado da rua. Pelo
contrário, é uma aposta de que isso pode produzir uma
cidade menos tensionada do ponto de vista da violên-
cia das relações, uma cidade menos rasgada do ponto
de vista do tecido sociopolítico territorial que é
tão fragmentado, que chegou no limite. Eu sinto que
tem uma certa disposição dos cidadãos paulistanos,
pelo menos de uma parte dos cidadãos, inclusive da
elite, que já não aguenta mais viver com medo. E pra
quem a solução de carros blindados e seguranças não
satisfaz do ponto de vista humano. [...] Que é a re-
lação, a idéia do território como espaço vivido e
construído e pactuado por quem vive ali. Um pacto ter-
ritorial! [...] Nós temos 40 anos de urbanização, 50
no Brasil, acho que com cem anos de urbanização tal-
vez possamos construir uma outra relação do cidadão
com o território no sentido de auto-constituição,
porque o que não aconteceu foi o cidadão se auto-cons-
tituir na medida em que o território se constituiu. A
idéia de público, de dimensão pública, é o reconhe-
cimento do lugar que cada um ocupa dentro desse pú-
blico. Mas que público é esse no qual o público não
tem lugar?

[…]

Conclusão

A história do grupo Política do Impossível contra a


Secretaria do Estado de Confinamento é uma história
de resgate metafórico daquilo que está sendo vivido
por nós mesmos no embate com a cidade de São Paulo,
uma forma de questionar as relações sociais nas quais
nos encontramos muitas vezes imersos, sem nos darmos

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conta. A escrita desta história é, em si, uma tenta-


tiva de compreender, coletivamente e através do de-
senvolvimento real de ação e pensamento, sensações e
urgências que em um primeiro momento podem parecer
individuais.

Este tipo de narrativa pretende criar símbolos que


condensem estados comuns e latentes de ânimo, que
atravessam a sociedade independentemente de questões
de classe e nos permitem estabelecer parâmetros cria-
tivos para o diálogo. Se isso acontece, é possível
romper as redes de relações estabelecidas e dar pas-
sagem a novas tramas de relações, sendo a ruptura,
aqui, um projeto de reconstrução coletiva de discur-
sos, portanto, de representações. A construção de
discursos se dá de diversas formas (nos meios de co-
municação, nas publicidades, na educação, na inter-
net, etc.) e nunca deixa de ser ideológica, de formar
as visões do mundo onde vivemos. Estamos acostumados
a receber estas configurações de nossa própria vida
como naturais. Assim, vamos organizando nosso modo de
ser: através de relatos que constroem identidade; em
última instância, constroem a identidade nacional.
Qual é a história que se relata do lugar onde vivo?
Fazer este tipo de pergunta é começar a construir a
nossa cartografia de relações, o que nos permite, a
partir daí, criar nossos próprios símbolos, nossas
representações do mundo no qual vivemos e no qual po-
deríamos viver. Não à toa acreditamos ser a constru-
ção simbólica nosso lugar de resistência: pois ela
tem a potência de interferir na narrativa social, de
gerar – por mais mínimos que sejam – deslocamentos na
configuração estabelecida do possível; é uma inter-
venção na comunicação.

Aqui, invoco o sociólogo Gabriel Tarde, quando fala sobre a


relação entre diferença e semelhança: as minúsculas inovações ordinari-

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amente anônimas são, para ele (que escrevia no século XVIII!), o que
movem a produção do social, sendo que essas passam a contaminar
o tecido social através da repetição que se dá pela vibração (potência
desejante) contida nessa capacidade de diferenciação. A imitação, no
entanto, nunca é exatamente igual àquilo que imitou, sendo consti-
tuída pela singularidade e subjetividade daquele que imitou e “Qual-
quer repetição, social, orgânica ou física, não importa, isto é,
imitativa, hereditária ou vibratória [...], procede de uma inovação [...];
e assim o normal, em toda a ordem de conhecimento, parece derivar
do acidental” (Tarde, 1976 apud Themudo, 2002, p. 27)55.
Dessa forma, do que vimos e pensamos até agora, não será a
ação concreta e anônima na cidade, transformada em imagem que cir-
cula, uma forma de circunscrever, tornando visível, esse momento
diferencial de relação com o espaço – que depois afeta pela força do de-
sejo e da crença, mais ou menos contidos na representação que se faz
desse instante inaugural do acontecimento? A metáfora do confina-
mento, trabalhada de diferentes formas pelos grupos, pode ser com-
preendida, portanto, como a própria imagem de uma semelhança que
se inicia na diferença, ou seja, nessa experiência de rebeldia frente à
tentativa de nos encaixar em lugares sociais pré-definidos e atraves-
sados pela cultura do medo “do outro”. Se “nada é mais importante
do que essa nuança fugidia” (Tarde, 1907 apud Themudo, 2002, p.
26), se trata, assim, de inventar uma concretude imagética e perfor-
mática para essa nuança.
Jacques Ranciére descreve assim a seqüência política que se
desenvolve a partir deste tipo de trabalho artístico: que um ator sem
nome reclame para aparecer no cenário político, para ser admitido
dentro dos cálculos e da distribuição dos bens comuns da sociedade.
Segundo ele, aí está contida uma dimensão estética pois se trata de

55. Gabriel Tarde. Les lois sociales. Paris, Félix Alcan, 1907, p. 155.

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uma situação muito mais complexa do que a do partido clássico que


indica a seus membros o que têm que fazer e como devem se colocar
diante de um conflito político. Situação na qual as imagens utilizadas
(Ranciére aqui se refere genericamente à produção de imagens al-
ternativas àquelas veiculadas pelo pensamento hegemônico) surgem
da colaboração (Holmes entrevistado por Expósito, 2006).
A partir de pensamentos e imagens dos grupos, podemos ver
como acontece efetivamente o ato de restauração permanente desse
conflito, constituindo um conjunto de evidências no campo do visível
e do legível de como as instituições normalizadoras são desafiadas e
atravessadas por essa vontade de romper o ciclo de confinamento
das subjetividades em lugares identitários.
Ainda no âmbito das metáforas do confinamento – que, ao
mesmo tempo em que escancaram esse entendimento de si como al-
guém às vezes capaz e outras não de romper o lugar social que lhe é
atribuído, escancaram também certas situações sociais simbólicas
nas quais essa dicotomia está potencializada -, o GAC criou o tra-
balho “Blancos Móviles” (Alvos Móveis). “Blancos”, no idioma es-
panhol, tem duplo significado: alvo e “em branco”. Segundo o grupo,
esse era um momento no qual as imagens até então utilizadas como
formas de resistência simbólica já não eram capazes de reagir frente
aos novos modos repressivos.

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No trabalho Blancos Móviles, o GAC distribui um alvo para cada pessoa de um grupo,
comunidade, ou mesmo em uma ação organizada na rua, e pede para que interfiram nele. As
soluções plásticas e imagéticas são muito diferentes em cada contexto onde são produzidas.

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Lejos de estar a salvo seguimos siendo ‘blancos’. Blan-


cos Móviles. Muestran la manera en que se instala la
perversa normalidad actual: convirtiéndonos en blancos
de una ciudad que se vuelve fortaleza. Como en las vie-
jas épocas feudales, el ‘afuera’ es tierra de nadie, y
los espacios interiores prometen ‘seguridad’. Los
blancos móviles forman parte, a su vez, de una lucha
por subvertir esa normalidad, recordando una véz mas
que no es deseable, pero también mostrando hasta qué
punto no es posible, porque está toda hecha de excep-
ción, de brutalidad cotidiana y de salvaje precaridad.
De allí que la silueta-blanco se tatúa en la piel de
cualquiera, como carnet de identidad universal en la
‘normalización’. Los blancos móviles expresan un nuevo
temor. El que proviene de la relativa soledad que cada
quien vive en la estabilización perversa, ese agujero
negro en el que hemos caído. De ahí que estas figuras
han sido tomadas con tanta fuerza en las distintas ac-
tividades. (GAC, 2009, p. 131-135)

Silluetas humanas: evocan el cuerpo como campo de ba-


talla donde se juega el pasaje del terror a la capaci-
dad de crear. Cuerpos en su doble dimensión de aquello
que se tortura, humilla, viola, atemoriza, que se com-
pra y vende, que se anula; pero también materia viva
capaz de activar, re-accionar, desear, componer, cre-
cer, imaginar, resistir. Material privilegiado de la
vocación modeladora y território ultimo de toda expe-
rimentación. El corpo es hoy escenario de lo político,
donde la tristeza deviene alegría o bien acontece lo
contrario: blanco de violencia y fuente de agresividad
resistente. Objeto de los poderes y sujeto de las re-
beliones; obsesión de la explotación y fuente de valor
y cooperación; sustancia sensible a la mirada, a la
palabra y término de sujeción o potenciación colec-
tiva. (...) La ‘movilidad’ nos conectó con la circula-
ción, indispensable para volver a activar las potencias
de la imaginación colectiva” (GAC, 2009, p. 131-135).

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CAPÍTULO II

A cidade em disputa

A cidade pode ser julgada e entendida apenas em relação


àquilo que eu, você, nós e (para que não nos esqueçamos)
‘eles’ desejamos. Se a cidade não se encontra alinhada a
esses direitos, então ela precisa ser mudada. O direito à
cidade ‘não pode ser concebido como um simples direito
de visita ou retorno às cidades tradicionais’. Ao contrário,
‘ele pode apenas ser formulado como um renovado e
transformado direito à vida urbana’. A liberdade da cidade
é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo
que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo
com o desejo de nossos corações (David Harvey).

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A cidade enquanto espaço referencial

Para adentrar o problema de como cada coletivo, a partir de


seus trabalhos artísticos, opera em diferentes escalas, ou seja, inte-
ragindo e intervindo em várias dimensões da cidade (compreendida
enquanto espaço material e simbólico), foi fundamental, no meu per-
curso, entrar em contato com a discussão que está se dando no
campo da sociologia e da antropologia, de como pensar a cidade hoje
a partir da construção de novas categorias, novos objetos de pesquisa
e novas perguntas, em relação aos quais os postos de observação são
delineados como campos empíricos que levam em conta problemas
situados.
As perguntas enquanto problemas situados ganham relevância
na medida em que contribuem para o entendimento do contexto
histórico atual, no qual a produção do espaço passa a representar um
salto adiante das forças produtivas e uma modalidade nova de pro-
dução, que se estende ao espaço inteiro, do micro ao macro, em que
a mercadoria se mundializa – “tudo se vende e se compra” –, em que,
portanto, o próprio mundo é produto (Lefebvre, 1981).
O problema que se coloca então, é de como, na cidade, escala
a partir da qual é possível compreender e analisar o surgimento e de-
senvolvimento de diversas soberanias (Appadurai, 1997), ocorre efeti-
vamente essa disputa pela produção do espaço. Segundo Jorge Hajime
Oseki:
Analisar e expor a produção do espaço (um conceito teórico e uma
realidade prática) significa elegê-la como um momento da so-
ciedade atual, isto é, como reveladora dessa mesma sociedade que
permita apreendê-la como totalidade. [...] ‘Não somente carac-
terizar o espaço que vivemos em sua gênese, mas reencontrar

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através do, e pelo espaço produzido, a gênese da sociedade atual’


(1994, p. 111).

A produção do espaço está sendo aqui compreendida como


um lugar de disputa em um momento no qual as grandes categorias
para pensar o social estão em crise (Estado-Nação, identidade na-
cional, sociedade, história nacional), assim como, consequentemente,
o pensamento sobre a cidade como questão normativa e abstrata. A
ação no espaço material torna-se, então, tanto indício concreto,
quanto simbólico, daquilo que se anuncia e representa, efetivamente,
o que ocorre e dá sentido à vida urbana.
Esse embate pela produção da cidade (ou das muitas cidades
existentes em cada cidade) acontece, segundo a socióloga indiana
Ananya Roy (2009), como um “jogo situado de escalas”, por operar a
partir de uma situação que coloca, simultaneamente, em movimento,
redes locais e globais de poder. Neste sentido, a escala da cidade seria
um espaço transversal56 e trans-histórico no qual os jogos de poder se tor-
nam visíveis e legíveis.
Henri Lefebvre (1971 e 1981) apresenta a perspectiva do ur-
bano como forma trans-histórica e como escala que permite com-
preender os modos de produção do espaço e da vida no mundo
contemporâneo em um momento no qual o histórico deixa de ser o
referencial por excelência do pensamento crítico. Passa a ser na pro-
dução do espaço onde se dá, para ele, a reprodução das relações de
produção e a possibilidade de produção de novos sentidos e valores.
É no espaço, portanto, que as diferenças, inclusive as diferentes tem-
poralidades, emergem, convivem e colidem, estabelecendo relações
de simultaneidade.
Segundo o autor, na passagem do tempo histórico para o es-

56. Segundo Felix Guattari, a transversalidade implica em uma oposição à verticalidade


de uma estrutura hierárquica ou piramidal e busca ir além de uma simples horizontalidade,
realizando uma comunicação máxima entre diferentes níveis, disciplinas e, sobretudo,
entre diferentes grupos, movimentos autônomos e atores sociais (Guattari, 1985, p. 96).

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paço social como referencial, um problema se coloca no que diz res-


peito às representações. Quando, no capitalismo, o espaço social ab-
soluto torna-se abstrato, passando a se constituir como uma
“abstração concreta” (com uma existência mental e uma realidade so-
cial concreta), o espaço físico se elabora numa dupla representação:
a representação mental do espaço (espaço concebido) e o espaço das
representações (espaço da arte, dos simbolismos, da cosmologia).
Para Lefebvre, o problema das representações como medi-
ações que se tornam referências fundamentais para a atuação na so-
ciedade contemporânea, não é o de sua existência, já que o autor
considera que elas não só constituem a vida social como acabam se
tornando socialmente concretas (pois tanto interpretam como in-
terferem na prática). Mas sim, de que a distância irredutível entre o
espaço mental e o espaço social seja dissimulada, quando o problema
teórico, para o autor, é poder juntar o vivido, o percebido e o conce-
bido, os espaços de representação e as representações do espaço, re-
velando as mediações.
Por isso, quando pensamos na disputa pela produção do es-
paço, estamos a todo momento nos referindo a dimensões materiais
e imateriais e ao fato de que uma dimensão interfere na produção da
outra. Levando em conta essas várias qualidades do espaço, Ananya
Roy (2009) traz à tona a ideia de que é preciso haver também uma
variação de perspectiva em relação à forma como os espaços sociais
são produzidos, não sendo esta uma questão simplesmente de mudar
a imagem ou a representação, mas de identificar alguns “campos
problemáticos” que tornam-se estratégicos para a construção de um
pensamento que dê conta da multiplicidade espacial. Segundo a au-
tora, a informalidade do urbano é um destes campos estratégicos, pois
circunscreve uma cartografia de fluxos, circulações e mobilidades am-

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pliadas, na qual os espaços são mundializados “por baixo”, eviden-


ciando, na realidade, que a produção da cidade se dá eminentemente
a partir da informalidade, não sendo este meramente um resultado do
neoliberalismo.
Por sua vez, à medida em que novas mobilidades emergem e
produzem outras fronteiras (materiais e imateriais), mercados, dis-
positivos políticos, a produção do social deixa de coincidir com a
produção do Estado. A constituição de “soberanias sem território”
(Appadurai, 1997) evidencia que a cidade não pode mais ser apreen-
dida como totalidade, já que populações flutuantes redefinem e
fazem transbordar do território específico as dinâmicas urbanas, seus
simbolismos, suas cartografias. A mobilidade se torna, assim, um
analisador das reconfigurações atuais dos mapas e territórios globais.
É na cidade contemporânea como escala que se tornam visíveis, por-
tanto, tanto os atravessamentos do local por processos transna-
cionais, gerando práticas e múltiplas disputas pela produção do
espaço, quanto as novas formas de controle e gestão diferencial das
mobilidades, das representações e das populações que surgem a par-
tir disso.
Assim, se por um lado compreendermos o espaço e o tempo
social como “absolutos”, na medida em que não há mais como pensar
de forma binária (dentro ou fora), estando tudo dentro do marco do
“urbano” enquanto forma trans-histórica (Lefebvre, 1981); por outro,
só é possível delimitar um campo problemático a partir do urbano na
medida em que se leva em conta uma reconfiguração permanente da
paisagem na qual novas cartografias surgem, sendo cada território
físico atravessado por múltiplas condições extraterritoriais.
Para Ananya Roy (2009), é necessário sair também da pers-
pectiva binária na qual as cidades globais (cidades do norte) com-

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põem, em contraposição às cidades-favela (cidades do sul), os mapas


de representação das cidades. De acordo com ela, a complexificação
do pensamento e da ação em relação à cidade ocorre pela construção
de um olhar ao mesmo tempo localizado e deslocado. O que significa, prin-
cipalmente, uma ruptura com um discurso construído tendo o “cen-
tro” como referência e uma aposta em um olhar que, a partir das
cidades do sul, se interroga sobre a possibilidade de que os problemas
situados de tais localidades sejam considerados como campos es-
tratégicos para a análise da complexa realidade na qual se encontram
todos os lugares do mundo. A extraterritorialidade e a extraurba-
nidade passam a ser observadas como características de absoluta-
mente todas as cidades contemporâneas.
Trazendo à tona três modos de produção do espaço em-
blemáticos de nossa atualidade (campos de refugiados, ocupações e
enclaves fechados) e com isso a discussão da regulação da terra ur-
bana como um jogo de escalas, Roy propõe a informalidade como o
modo, por excelência, de mundialização das cidades atuais, assim
como de subjetivação dos atores que as disputam. Hoje, portanto, a
constituição da subjetividade e o embate do sujeito com a cidade, na
disputa pelo próprio estatuto, significado e prática da cidadania, es-
tariam acontecendo de forma situacional, local, contextual. O que
não significa que nas situações de informalidade não estejam presentes
os atravessamentos e redes globais; pelo contrário, muitas vezes é
justamente nesses espaços que comunidades inteiras são introduzidas
às redes, fluxos simbólicos e discussões políticas e estéticas contem-
porâneas.
Partindo da realidade americana e das questões migratórias
ali presentes, Nina Glick Schiller e Peggy Levitt (2004) mostram
como as práticas migrantes, a circulação de pessoas e bens cria insti-

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tuições, mercados e microeconomias urbanas, e não apenas


“memórias” e “representações”. É esta trama institucional, segundo
as autoras, que evidencia que os migrantes são participantes ativos do
mundo urbano, portanto, produtores de espaço e operadores de es-
cala; que ativam redes sociais, que levam e trazem múltiplas conexões
e que possuem um caráter multisituado. O que colabora para a su-
peração da lente étnica a partir da qual eles são sempre vistos como
“desenraizados”, como evidência do inacabamento de um suposto
“projeto nacional”.
A noção de território circulatório e de um “saber circu-
latório” traz importantes contribuições para esta discussão, ao tratar
a própria circulação como produtora de lugar, de espaço social, de
territorialidade, de afetos, vínculos, saberes, de uma historicidade,
formas de regulação, agenciamentos políticos e organizações e, por-
tanto, também, de formas de apropriação das riquezas materiais e
imateriais aí produzidas pelo Estado e pelo capital (Tarrius, 2002).
Não à toa, como uma das principais agendas de pesquisa atuais, estão
as questões políticas envolvidas nas migrações transnacionais e a
questão de como pensar teoricamente identidades e soberanias pós-
nacionais e extraterritoriais em movimento, processos de subjeti-
vação que se fazem de forma rizomática.
Neste sentido, hoje se torna fundamental repensar o próprio
conceito de sociedade – já que as relações sociais se fazem em rede,
conexão e movimento –, sem, no entanto, abandonar os jogos de
poder que compõem o campo social e os Estados nacionais operantes
(Levitt e Schiller, 2004). Schiller e Levitt buscam construir uma teo-
ria que parte de uma prática etnográfica para formular evidências de
como os jogos de poder, que são jogos situados de escalas, aconte-
cem, na tentativa também de “espacializar o Estado” (Ferguson e

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Gupta, 2002) para subverter as imagens verticalizadas e de abrangên-


cia do mesmo (que seriam decorrentes da naturalização da ideia
binária de Estado como contraponto à sociedade civil) e vê-lo
operando como prática situada.
É a escala da cidade que, ao tornar inteligíveis as tensões em
jogo, possibilita, por um lado, não ficar cativo da noção de Estado-
Nação como definidor das identidades e, por outro, não cair em uma
noção líquida das mobilidades, como se o poder soberano do Estado,
que detém o poder de suspender a norma, já não fosse uma das
soberanias que disputam a produção do espaço.
O capitalismo contemporâneo se constitui assim em uma in-
tensa relação entre fluxos de riquezas, pessoas, símbolos e redes de
coerção e coesão, através de mecanismos de extração e expropriação
que evidenciam que os espaços não são lisos, mas constituídos por
fronteiras materiais e imateriais, nas quais as dobras entre o legal e o
ilegal, o lícito e o ilícito, o formal e o informal se evidenciam. O es-
paço urbano, por sua vez, pode ser definido como o lugar no qual
esses campos de força e disputa pela reinvenção, aplicação, suspen-
são da norma e da lei se efetivam, na medida em que os fluxos ex-
traterritoriais de símbolos, pessoas e mercadorias acontecem.
Segundo o sociólogo brasileiro Michel Misse (2002), a
questão do tráfico de drogas passa a ser uma questão relevante na
medida em que a economia da droga ativa um circuito de mercados
informais e mobiliza uma rede de atividades ilícitas justamente em
um momento no qual a flexibilidade do capital está instaurada. Ao
colocar a economia da droga como um mercado que se organiza ar-
ticulado com outros mercados, sendo a relação entre os mercados
necessária para o pleno funcionamento do capitalismo na contem-
poraneidade, Misse está questionando, sobretudo, a abordagem dis-

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ciplinar que faz do crime uma questão da criminologia quando, pelo


contrário, assim como as fronteiras entre o legal e o ilegal, o signifi-
cado de crime (que muda em cada contexto sendo, portanto, segundo
o autor, uma categoria nativa e não sociológica) está, a todo mo-
mento, sendo negociado.
Essa abordagem implode com a ideia de mercado informal e
ilegal como um setor à parte e coloca de novo em xeque a figura do
Estado como detentor do poder de decidir o que é legal ou ilegal, lí-
cito ou ilícito. Por sua vez, a porosidade entre legal e ilegal não faz
com que a questão da lei e da norma seja indiferente, mas evidencia
o mecanismo de “gestão diferencial dos ilegalismos” (Foucault, 1997),
que consiste em fazer com que as leis operem não para efetivamente
punir, mas para poder controlar. A configuração deste campo de
forças no qual a fronteira do que é legal e ilegal é constantemente
negociada como mercadoria política, coloca em jogo o próprio sentido
simbólico da lei e da norma (Misse, 2002).
Veena Das e Deborah Poole (2004) sugerem que uma
“antropologia das margens” ou das situações-limite colaboraria na
verificação de como a indeterminação entre legal e ilegal, regra e ex-
ceção é produzida pelo próprio Estado. A margem, para elas, apre-
senta uma importância analítica ao tornar inteligíveis os modos como
o Estado se constitui no mundo contemporâneo. O que está em jogo
aí, é o próprio poder soberano do Estado, que se funda em sua ca-
pacidade de suspender a lei.
As configurações pós-nacionais não significariam, neste sen-
tido, a ausência política do Estado, mas novas formas de agencia-
mento e operação do mesmo. As autoras fazem uma provocação ao
questionar se, ao invés da ausência do Estado ou da presença de um
“Estado fraco”, não seriam as situações extremas de violência, justa-

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mente aquelas nas quais se dá a sua fundação. Somente assim, suge-


rem, seria possível entender o poder do Estado na atualidade, como
ele de fato está operando.
A partir da percepção da margem como espaço de disputa do
significado da norma, fica evidente que o Estado não está acabado,
mas está sempre sendo refundado. As “margens”, portanto, não são
territoriais, não são as periferias, mas sim “lugares situados” e se trata,
assim, de entender os processos que produzem tais situações.

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Espacialização da norma e da invenção

Sendo fundamental, nos trabalhos dos coletivos aqui analisa-


dos, a constituição do social no engendramento mesmo da constitui-
ção da subjetividade em sua diferenciação, é na cidade como escala
– como situação transversal e como campo estratégico no qual as
problemáticas do contemporâneo operam –, onde encontram o es-
paço afetivo e efetivo da enunciação. Nesse sentido, a decodificação
das normas que delimitam os poderes hegemônicos (em sua maior
ou menor visibilidade e legibilidade), assim como o enfrentamento
das mesmas e a invenção de outras normas e códigos (informais e lo-
cais), são feitos a partir de uma perspectiva espacial. É assim que a “le-
galidade” de certas normas instituídas é desafiada: a partir da
invenção de acontecimentos urbanos enquanto fatos empíricos que
partem da informalidade, podendo adquirir legitimidade57.
Aqui se faz presente a questão institucional – em termos am-
pliados, não somente entendida enquanto Estado, mas também “ins-
tituição linguística”, códigos e discursos hegemônicos, códigos
urbanos, etc. – levando-se em conta que, como diz Paolo Virno, a “ins-
tituição”, enquanto termo e conceito, não pertence somente ao “ad-
versário”, mas é decisiva para a política da multidão (2006, p. 12)58.
Virno fala aqui da relativização da noção de soberania dos estados
centrais que, apesar de se reproduzir está, segundo ele, em crise pro-
funda, o que leva à instauração de um “estado de exceção permanente
[que] atenua - até quase desaparecer por completo – a diferença entre
‘questões de direito’ e ‘questões de fato’” (id. ibid., p. 10). A isto as-
socia-se o que ele chama de “instituições da multidão” por sua forma
de funcionamento, na qual as “normas passam a ser encaradas en-
quanto fatos empíricos, assim como os fatos empíricos podem

57. Entende-se esta legitimidade conquistada no nível simbólico, como uma imagem e um
pensamento que passam a circular, contribuindo para a construção social de outras formas de
pensar e agir. Às vezes, essa legitimidade simbólica do acontecimento pode ser tão poderosa,
que interfere diretamente no poder normativo, como aconteceu na Argentina, com ações
simbólicas que clamavam por “justiça social”. Conforme ação do GAC analisada a seguir.
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adquirir poder normativo” (id. ibid., p. 10-11). Assim, se muitas vezes


encontramos nas ações artísticas analisadas o questionamento em re-
lação aos códigos e normas direcionado à maneira como a memória so-
cial é espacializada, isso ocorre na medida em que a própria situação de
exceção cria uma indefinição que torna possível a subversão criativa.
Uma prática muito comum entre os coletivos é a de intervir em pla-
cas de trânsito, monumentos, outdoors, bandeiras, mantendo a forma
original, porém mudando o seu sentido de modo a criar uma situação
crítica.

Quantas vezes designamos, ao longo de nossas vidas,


uma rua que leva o nome de um genocida? Quantas
vezes nomeamos uma marca de uma multinacional
que escraviza e mata? Estão tão internalizados estes
nomes e produtos em nossa cotidianidade, que é uma
utopia pensar simplesmente que poderíamos nos des-

58. A noção de “multidão” e de uma forma de fazer política associada a ela, é muito utilizada
por autores contemporâneos que constroem teorias relacionadas às formas atuais do
capitalismo e de resistência a ele. Segundo Virno, “Estoy verdaderamente convencido de
que la multitud es el modo de ser colectivo caracterizado por el hecho de que todos los
requisitos naturales de nuestra espécie adquieren una inmediata importancia política. [...]
Marx definía la fuerza de trabajo como ʻel conjunto de las capacidades psíquicas y físicas de
un cuerpo humanoʼ. Pues bien, esta definición se vuelve completamente verdadera sólo en
los últimos treinta años. En efecto, sólo recientemente las competencias cognitivas y
linguísticas han sido puestas a trabajar” (Virno, 2006, p. 6-7). Michael Hardt e Antonio Negri
definem assim essa noção em seu livro Multidão: “ [...] alternativa viva que se vem
constituindo dentro do Império. Pode-se dizer, simplificando muito, que a globalização tem
duas faces. Numa delas, o Império dissemina em caráter global sua rede de hierarquias e
divisões que mantém a ordem através de novos mecanismos de controle e permanente
conflito. A globalização, contudo, também é a criação de novos circuitos de cooperação e
colaboração que se alargam pelas nações e continentes, facultando uma quantidade infinita
de encontros. Esta segunda face da globalização não quer dizer que todos no mundo se
tornem iguais; o que ela proporciona é a possibilidade de que, mesmo nos mantendo
diferentes, descubramos os pontos comuns que permitam que nos comuniquemos uns com
os outros para que possamos agir conjuntamente. Também a multidão pode ser encarada
como uma rede: uma rede aberta e em expansão na qual todas as diferenças podem ser
expressas livres e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergência
para que possamos trabalhar e viver em comum. [...] Na multidão, as diferenças sociais
mantém-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo
conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se
comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente.
[...] Na medida em que a multidão não é uma identidade (como o povo) nem é uniforme
(como as massas), suas diferenças internas devem descobrir o comum que lhe permite
comunicar-se e agir em conjunto. O comum que compartilhamos, na realidade, é menos
descoberto do que produzido” (2005, p. 9-14).
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fazer deles, já que em parte eles nos construíram.


Porém, ao reconhecê-los e reconhecer as políticas que
os tramam, podemos desconstruir seus nomes e ima-
gens. Esta é a luta política do simbólico, que não ape-
nas nomeia os esquecidos e vítimas da violência do
poder, como nos restitui, a nós mesmos como aos de-
mais, o poder de construção de uma identidade
autônoma em relação à que nos é imposta, que en-
contra a liberdade no processo vivencial das utopias
(GAC, 2009, p. 304).

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Placa feita pelo PI mudando o nome da Av. Bandeirantes


para Av. dos Quilombolas, São Paulo, 2008.

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Trabalhos que usam códigos oficiais, modificando-os. Respectivamente: Centro de Mídia


Independente, Jerusa Messina e PI.

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Essa tentativa constante de partir da materialidade urbana,


está muito relacionada a uma necessidade radical de ir, aos poucos, en-
tendendo que a dimensão histórica imaterial que nos constitui, está de
fato materializada no espaço e, portanto, podemos agir frente a isso.
O que leva a experienciar o espaço não a partir de percepções abs-
tratas, mas de um esforço cotidiano de decodificação simbólica, o
que é uma marca da inteligência coletiva que vai constituindo a
política da multidão. Faz parte desse esforço um processo de revisão
permanente de si mesmo e da sociedade para a produção de repre-
sentações que efetivamente subvertam a comodidade da memória,
tornando-a viva no sentido de acionar a reflexão sobre o presente.
Podemos ver isso claramente em diversas ações do GAC, que
tem como um dos seus principais focos de trabalho a atualização da
memória da última ditadura militar argentina. Junto a outros grupos
e movimentos sociais, como Madres de la Plaza de Mayo59,
H.I.J.O.S60 e MTD61, desde o final da década de 1990 cria formas de
dar visibilidade e legibilidade ao fato de que as forças repressivas con-
tinuam ativas e encontram-se inseridas no jogo de poder atual, e não,
como estamos acostumados a pensar, em um lugar abstrato, distante
no tempo e no espaço, nos filmes e livros de história.

El peso de lo visual es estratégico en la construcción


de identidad y memoria generacional. Después de
tanta práctica y tanta experimentación es impor-
tante preguntarse qué forma de construcción genera

59. Mães dos desaparecidos políticos da última ditadura militar argentina que desde 1970
lutam por justiça.
60. Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio. Segundo
definição presente em seu site: “H.I.J.O.S é um agrupamento independente e horizontal de
direitos humanos, formado, em princípio, por filhos de desaparecidos, ex-detentos e exilados
da última ditadura militar Argentina. H.I.J.O.S. luta pela justiça e punição aos repressores da
ditadura militar, impulsiona investigações, juízos e ações contra os repressores. Junto à luta
de outras organizações, H.I.J.O.S inscreveu conceitos como os de justiça social, memória
ativa e continuidade histórica. Cria, em meados dos anos 90, a prática do escrache (da
palavra escrachar)”. Fonte: http://www.hijos.org.ar, acessado em março de 2012.
61. Movimento dos Trabalhadores Desocupados da Argentina, também conhecido como
piqueteros por terem tornado freqüente a prática do piquete (barricadas em estradas e ruas),
através da qual reivindicavam por melhores condições de vida.
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otro tipo de comunicación y de visibilidad, en con-


trapunto a aquello construido oficialmente. Tra-
tando de contestar esta pregunta, me parece
necesario revisar las construcciones de la memoria
a lo largo del tiempo y detectar cuáles logran conec-
tar con la potencia (visual, simbólica, política, enun-
ciativa), frente a la impronta estatal, fijadora,
muchas veces improductiva. Para encontrar formas
que tengan la fuerza de renovar las imágenes, de re-
gistrar los cambios y de producir nuevas temporali-
dades, se precisa también una nueva investigación
(GAC, 2009, p. 105).
[...]
Desde su formacion en 1977, las Madres de la Plaza
de Mayo, a traves de sus cuerpos, hicieron visibles a
los desaparecidos. Estar en la Plaza, ocupar ese es-
pacio y circular por el, corporizó el sentido de lucha
contra la impunidade en la peor época de la dic-
tadura. Todos los jueves, trascendiendo el repertorio
cultural e iconográfico conocido, ellas estuvieron
presentes con su empeño en la Plaza de Mayo. Lo
hicieron a través de sus cuerpos en movimiento, como
modo de contrarrestar el estado de sitio y la imposi-
bilidad de reunión. Ya en democracia, prolongaron y
resignificaron su accionar. Los pañuelos blancos
destacan que la acción de las Madres es altamente
simbólica y el uso del espacio público consciente-
mente estratégico. Las Madres actuaron contra el sis-
tema represivo de representación que tan

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Lanzamiento de diez mil paracaidistas en miniatura desde un edificio del microcentro. Durante
la semana previa a la acción se intervino todo el territorio circundante con calcomanías de
íconos militares: el tanque, simbolizando el poder de las multinacionales; el misil, equivalente
a la propaganda mediática; el soldado, que aludía a las fuerzas represivas que necesita el
sistema para mantener el orden neoliberal. La acción coincidió con el comienzo de la rebelión
popular de los días 19 y 20 de diciembre de 2001 (GAC, 2009, p. 323).
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efectivamente ha limitado las posibilidades de visi-


bilidad y expresión (GAC, 2009, p. 99).

Todos esses grupos, em colaboração, desenvolveram e


aplicaram o conceito de “justiça social” no enfrentamento da im-
punidade dos responsáveis pelo terrorismo de Estado ocorrido na úl-
tima ditadura militar argentina, nomeados de “genocidas” pelo
movimento de direitos humanos daquele país62. Para enfrentar os
“genocidas”, abordam o problema da impunidade a partir de sua de-
limitação enquanto um “problema situado”. Neste sentido, tornam
inteligível o fato de que torturadores, torturados, filhos e famílias de
desaparecidos, vivem todos na mesma cidade, circulam pelos mes-
mos espaços, podendo ser até vizinhos.

En ese tiempo [quando iniciaram o trabalho com os


movimentos de direitos humanos, no fim da dé-
cada de 1990] sentíamos la necesidad de marcar y
señalizar los espacios de la ciudad que habían fun-
cionado como CCD (Centro Clandestino de Deten-
ción), pensando en la no visibilidad de esos lugares y
en las formas en que eran o no registrados por las per-
sonas que transitaban por allí o por sus cercanías.
Nos propusimos trabajar sobre los espacios físicos
del terrorismo de estado y sobre su invisibilidad con
el objetivo de develar (escrachar) a los sujetos
partícipes de la dictadura (GAC, 2009, p. 80).

62. O Movimento de Direitos Humanos argentino denominou os torturadores como


“genocidas” na década de 80, partindo do pressuposto de que eles exterminaram toda uma
geração, se apropriando também de filhos de desaparecidos, no intuito de exterminar a
possibilidade de difusão de ideias revolucionárias de uma geração para outra.

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Nesse sentido, uma das ações recorrentes desse movimento,


é pesquisar onde os torturadores vivem hoje, nas diferentes cidades
da Argentina. Assim como no Brasil, militares ativos durante a di-
tadura militar continuam tendo altos cargos, seja no governo, seja
fora dele – muitos são donos de empresas de segurança privada.
A partir desse banco de dados, o movimento criou o que de-
nominaram de escrache. Este se inicia com um processo de conscien-
tização da comunidade do entorno onde vive um “genocida”, de que
é vizinha deste torturador, contando para todos o que ele fez, onde
atuava, quem matou, etc. No início, isso se dava de forma bastante si-
lenciosa, já que era um processo perigoso e que ainda não tinha o
apoio da sociedade e do próprio Estado. Aos poucos, foi se tornando
uma prática legitimada socialmente63.

La palavra escrache significa en lunfardo64 ‘sacar a


la luz lo que está oculto’, ‘develar lo que el poder es-
conde’: que la sociedad convive con asesinos, tortu-
radores y apropiadores de bebés, que hasta aquel
momento permanecían en un cómodo anonimato
(GAC, 2009, p. 57).

[Na] prática do escrache [...] os percursos e espaços


de vida dos repressores da ditadura são demarcados
na cidade e evidenciados através de experiências co-
letivas, políticas, estéticas e de divulgação nos bair-

63. Na era Kirchner, com os integrantes do movimento sendo absorvidos pelo Estado,
passou-se a discutir a questão da cooptação, dos prós e contras dessa entrada em peso de
todo um ideário, antes reprimido, no centro das discussões e ações estatais. Se, por um
lado, a ideia de “justiça social” foi ouvida e o movimento simbólico conseguiu intervir na
própria consolidação dos processos criminais de ex-torturadores; por outro, a força de
inovação do movimento de direitos humanos argentino está vivendo um “impasse”. Diversas
vezes nos últimos anos, quando estive na Argentina (em 2007, 2008, 2009 e 2010), ouvi
pessoas de diferentes grupos falando sobre uma certa despotencialização daquela energia
sentida no início desse processo de experimentação cultural e social.
64. O lunfardo pode ser considerado como o idioma do tango argentino. Fonte: Wikipédia,
acessada em março de 2012.
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Imagens dos escraches. Buenos Aires, Argentina. 2002-2007.

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ros. Essa prática abriu um espaço plural e constante


de atuação, possibilitando, a partir de uma nova
forma de participação política, uma transformação
profunda do imaginário social e fez avançar a
política de direitos humanos na Argentina
(H.I.J.O.S, trecho presente em seu site).

Na data marcada, uma marcha é feita de um ponto combi-


nado até a casa do torturador apontado daquela vez. Os integrantes
destas ações falam que o escrache é uma “festa”. Mas o que, de fato,
centenas de pessoas “celebram” em frente à casa de um torturador?
Como entender esta noção de “festa” diante de fato simbólico tão
claramente baseado no enfrentamento?
Muitas linguagens somam-se para dar forma ao escrache en-
quanto acontecimento urbano: tambores, teatro, discursos históricos
sobre o genocida escrachado daquela vez, rádio aberta de comuni-
cação com o entorno do escrache, jornal, pinturas, cartazes, lambe-
lambe, intervenções urbanas, trabalhos educativos prévios de contato
e diálogo com os vizinhos do torturador, cartografias. Essa multipli-
cidade de linguagens em colaboração gera uma “vitalidade do
comum” (Situaciones, 2009 b, p. 337) e produz uma “comunidade de
sentimentos” (Ferrari, 2010)65. Assim, o escrache coloca à prova, a par-
tir de estratégias que dão vazão ao lugar da corporeidade na política
(o que também potencializa o lugar da festa nessa situação)66, a pos-
sibilidade de rearticulação coletiva depois das fissuras abertas pela
ditadura militar. Podemos ver esse desejo operando na seguinte afir-
mação do GAC:

65. Segundo a antropóloga Florencia Ferrari, tratando sobre os ciganos Calon do Estado de
São Paulo: “As festas mostram que há um repertório comum entre todos, permitindo que a
música seja parte de uma ʻcomunidade de sentimentoʼ. Música e dança permitem fluxos de
emoção que passam e ultrapassam os corpos, criando relações” (Ferrari, 2010, p. 213). O
uso da música, da dança, dos tambores nos escraches, pode ser entendido da mesma forma,
apesar de estarmos falando aqui de uma ação profundamente politizada (o que não é
necessariamente o caso em todas as situações de festas populares).
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[…] en el mejor de todos los casos, si todos los mili-


tares fuesen presos, el proceso de escrache seguiría
porque su principal objetivo es reflexionar sobre las
alteraciones sociales y el quiebre en la red de rela-
ciones intersubjetivas producidas por el genocidio
para también trabajar desde allí los conflictos so-
ciales presentes (GAC, 2009, p. 62).

O que está em jogo na dimensão festiva e múltipla dos es-


craches, que tem a escala da cidade como suporte, é justamente a
potência gerada nessa construção colaborativa de uma forma de justiça:
ao redor da casa do torturador, simbolicamente o prendem, subver-
tendo o lugar histórico de cada um (opressores X oprimidos, tortu-
rador X torturados, trauma X comodidade, etc.). Aqui, cabe comentar
os aspectos dessa outra prática de justiça:

[...] o sea, la justicia no depende de una instituición que la en-


carne, sino de la acción que la produce. [...] El escrache, entonces,
es una situación que propone y implementa una práctica alterna-
tiva. O sea, que contiene indicios de una nueva sociedad [...]. El
escrache es una referencia visible de una nueva practica de trans-
formación (Colectivo Situaciones, 2002).

Quando falo sobre a escala da cidade como suporte, estou


propositalmente diferenciando esta noção, da noção de cidade como

66. Diz o GAC sobre a crise Argentina de 2001: “Hay momentos en que resulta fundamental
sentir el propio cuerpo, pues aun cuando éste parece anulado, replegado, en verdad nunca
se apaga por completo. Es en la corporalidad común donde se aloja la memoria inmediata de
aquella situación de potencia social, experimentada por todos en diciembre de 2001. No es
simplemente una ilusión, sin algo verificable en los hechos, aunque aparezca fugaz y
difusamente, bajo la forma de respuestas espontáneas de la gente, estallidos que arrasan
comisarías, incendian los transportes precarios, una fuerza arrolladora que olvida el miedo y
desarma el discurso de la seguridad” (GAC, 2009, p. 287). Acredito que essa afirmação,
mesmo focada nos acontecimentos de 2001, possa ser ampliada para pensar os escraches,
assim como outras formas políticas criadas pela geração da qual fazem parte os coletivos
aqui apresentados.
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suporte, no sentido que esta última assume tradicionalmente na


história da arte, já que não me refiro a um espaço sobre o qual um
“autor” realiza a sua “obra”, mas sim a um espaço como matéria viva
constituída de múltiplas temporalidades, escalas de vida e de poder,
convertido em plataforma (ou seja, em tempo-espaço do encontro
dessa multiplicidade), para a criação de uma imagem de justiça. É im-
portante pontuar a questão da materialidade do espaço urbano como
elemento significativo desse tipo de manifestação artística, já que os
processos de trabalho aqui analisados não “instalam” objetos de arte
na cidade. Mais do que “utilizar o espaço” ou entender a sua materi-
alidade apenas como meio físico, essas manifestações são operadoras
de escala, na medida em que instituem situações e acontecimentos ines-
perados a partir daquilo que está aparentemente “dado”. Assim, criam
uma atualização do que está sendo dito ao subverter espaços for-
malizados do dizer.
É essa plataforma material-simbólica como um tempo-espaço
de confluências, que permite a emergência de um “instante de perigo”.
O instante de perigo, segundo Walter Benjamin, pode ser compreendido
como um impasse, no qual ocorre uma imobilização temporal que per-
mite enxergar o que nos antecede e, simultaneamente, exercer uma re-
denção67 no que está por vir, fundindo-se, no agora vivenciado,
passado, presente e futuro (Benjamin, 1985, p. 234-235).

El escrache que surge de H.I.J.O.S también trabaja


dentro del orden de lo simbólico. Tanto Madres como
H.I.J.O.S usan el espacio público denunciando y
marcando las casas de los represores y sus cómplices.
Su acción consiste en señalar y narrar los lazos que
conectan la impunidad de hace treinta años con la

67. A noção de redenção em Benjamin se relaciona à capacidade humana de libertar a história


do pensamento linear, único e homogêneo que nos faz acreditar em um futuro histórico
teleológico, ou seja, já dado. Assim, ao olhar para “aquilo que poderia ter sido”, para os
aspectos residuais oprimidos e não inscritos historicamente diante do poder hegemônico,
poderíamos, segundo o autor, mudar o curso da história, anunciar novos possíveis.
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situación actual. Madres e H.I.J.O.S, aunque con


diferencias en cuento a sus estrategias, no aceptan el
espacio público como zona de prohibición. Por el con-
trario, lo usan como lugar sobre el cual desplegar una
cartografía de la acción. Un modo de la acción que
hace uso de la memoria como función del presente, y
no solo del pasado (GAC, 2009, p. 99-100).

Portanto, a “representação direta da justiça”, que subverte a


casa do torturador em símbolo, o corpo de uma geração em símbolo,
a ocupação em símbolo, não constitui uma imagem esvaziada de ex-
periência, pelo contrário, o próprio escrache é mídia portadora de vín-
culo, carne e devir. Considero, portanto, que no escrache, o que
celebram é essa descoberta de que performatizar a dor coletiva-
mente, produzindo um espaço compartilhado a partir dela, leva a sair
da passividade, redimindo-a.

Los comienzos de los escraches están muy ligados a


la irrupción social y mediática de la agrupacion
H.I.J.O.S e impactan fuertemente en la opinión
pública. Desde sus inícios rompen con varias formas
‘tradicionales’ de hacer política. Por su apelación a
la potencia de la creatividad, de la alegria y de lo fes-
tivo como herramientas de lucha. [...] Si bien es muy
importante escrachar al genocida, de alguna manera
también es una excusa para llegar al barrio y abor-
dar las problemáticas del presente. Desde este lugar
hemos trabajado junto a vecinas/os de algún barrio
problemas de vivienda, de violencia policial, de cor-

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rupción en los tribunales, de las dificultades para en-


frentar los miedos a hablar del pasado, generando es-
pacios de encuentro y reflexión que relacionen las
continuidades del genocidio y nuevas problemáticas
(GAC, 2009, p. 61).

O GAC, como grupo artístico, sempre atuou produzindo um


repertório de imagens que tornasse possível a circulação da potência
desse movimento68, desenvolvendo, portanto, um saber circulatório dos
símbolos produzidos em situação, na medida em que formalizava aquilo
que poderia ficar apenas em uma escala local.

Dentro del grupo siempre fue importante la circu-


lación del registro, no sólo para comunicar y com-
partir las experiencias con otros colectivos,
utilizando políticamente el registro para establecer
lazos y contactos, sino también para que otras per-
sonas o grupos se apropien de las imágenes y técnicas.
Nuestro propósito es que estas imágenes sean móviles
y que no se transformen en un documento cerrado, que
se reelaboren y se reconstruyan en el intercambio con
otros (GAC, 2009, p. 200).

La “movilidad” nos conectó con la circulación, in-


dispensable para volver a activar las potencias de la
imaginación colectiva (GAC, 2009, p. 259).

[…] existen formas de circulación que no dependen de


los altos costos o la publicidad, sino más bien de un

68. Aqui, estou entendendo movimento não apenas como “movimento social”, mas como o
movimento de performatizar a própria dor, dando uma forma espacial e pública a ela.

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sondeo de las experiencias vividas en la ciudad, capaz


de detectar los canales posibles de la intervención, los
puntos estratégicos desde los que lanzar el mensaje y
la energía para permanecer e intervenirlos. Cuando
esto sucede, la circulación deja de ser mera difusión
de lo producido y se vuelve una instancia más de la
producción colectiva (GAC, 2009, p. 271-272).

Apesar de terem constituído um repertório muito grande de


imagens, vamos aqui nos limitar a dois tipos de imagens produzidas
pelo coletivo. O primeiro consistia em placas de trânsito, iguais às pla-
cas oficiais, porém com dizeres que continham a localização da casa
dos genocidas: “a 500 metros vive um genocida”, “a 200 metros vive um
genocida”; ou o nome do genocida com o endereço de sua casa. Du-
rante as marchas para o escrache, o grupo colocava as placas na cidade.

La gran transformación que implicó para nosotras


pensar la imagen en el escrache tuvo que ver, por un
lado, con el lenguaje: con la idea de tergiversación
de un código determinado (el vial urbano); y, por
otro, con la idea de acontecimiento temporal que se
reitera (el escrache mismo lo es) como irrupción fes-
tiva, del cual los carteles son la huella, lo que queda
‘despues de’. La periodicidad misma del escrache
posibilitó el surgimiento de un tipo de imagen serial,
que reaparece cada vez. Además de marcar un
trayecto, las señales marcan un tiempo, intervalos
de tiempo, mediados entre escrache y escrache, y
también entre el escrache y otros espacios donde

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aparecieron los mismos carteles copiados por otros


grupos (GAC, 2009, p. 81).

Uma outra imagem criada pelo GAC foi a cartografia “Aquí


viven genocidas”. Tendo o mapa da cidade de Buenos Aires como su-
porte, marcaram as casas de genocidas que já haviam sido “escracha-
dos”. Abaixo, colocaram como legenda os nomes, telefones,
endereços de tais genocidas. Esta cartografia foi impressa e colocada
na cidade, o que torna evidente a necessidade de criar uma legibilidade
para a disputa, através de uma ferramenta – a cartografia – que possi-
bilita dar visibilidade às paisagens psico-sociais, políticas e afetivas
que se fazem a partir do movimento (Rolnik, 1989). A disputa do sim-
bólico ocorre aqui no sentido de que este efetivamente é produzido
pelo concreto, assim como o produz. Portanto, a possibilidade de es-
tabelecer a circulação simbólica das problemáticas situadas deter-
mina a difusão de novas formas de entendimento cognitivo sobre
antigas questões, valores e parâmetros. Neste caso, de uma forma de
negociar o próprio conceito de justiça.
A partir dessas ações, o Estado passou a rever as políticas de
aplicação da justiça no caso dos torturadores e ex-militares, que agora
estão sendo punidos e presos. Este é um caso bastante revelador de
como os movimentos sociais contemporâneos se relacionam com a
produção de imagens levando em conta a escala do corpo no embate
com a cidade, fundamental no sentido de que é nesta escala que os
processos de disputa pelo projeto de sociedade em curso efetiva-
mente se espacializam, se tornando visíveis e legíveis.

Hay una idea fuerte que el escrache propicia, una


idea de justicia que desborda la representación de la

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justicia legal: se trata de la justicia que construye la


gente día a día, a través del repudio al genocida en el
barrio, la reapropiación de la política y la reflexión
de las problemáticas del presente. [...] Por este mo-
tivo la práctica del escrache se centra en la memoria
viva, creadora y en acción, generando prácticas
políticas mediante la alegria, lo festivo y la re-
flexíon. Se aleja así de las prácticas del Poder Judi-
cial, que cosifica e individualiza los problemas
sociales, y genera un espectáculo representado en la
práctica del juicio (GAC, 2009, p. 58).

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Circulação: o local e o deslocado, encontro do GAC


com coletivos de São Paulo e contaminações

O potencial de deslocamento dos símbolos e imagens produzi-


dos a partir de problemáticas locais, vem colado à pergunta do
porquê nos vemos muitas vezes identificados com contextos diferen-
tes dos nossos. Certamente, o corpo em risco a enfrentar a cidade é
um desses aspectos que mobilizam um certo “lugar comum”.
Se em algumas imagens produzidas pelos coletivos, o corpo
não está em evidência, vê-se ali um corpo, mesmo que ausente, pela
própria característica de tais práticas: nelas, o não formal disputa o
espaço com o formal, utilizando para isso as bases e formas da cidade,
que parecem a princípio “imutáveis” e inegociáveis. No lugar do for-
mal aparece, portanto, uma outra simbologia, um outro código, uma
outra frase, uma outra forma de experimentar o espaço, um ato de so-
breidentificação69 que só poderia ter sido realizado por “pessoas de
carne e osso”. Acredito que a potência de contaminação dessas práti-
cas urbanas tenha tudo a ver com esse sinal da presença de um corpo
humano situado, pensante, ativo e, por isso, político.
Quando o corpo se propõe, seja pela presença ou pela ausên-
cia, a fazer uma intervenção no espaço urbano, aparece ali, na pro-
dução tática da imagem, a escala humana tentando inventar uma
outra forma de experienciar o espaço. Essa tentativa de invenção de
espaço, que é em si um espaço de anúncio, talvez seja exatamente o
que dá, à imagem produzida, a sua potência de circulação e rever-
beração em outros corpos e outras ações, portanto, a sua potência
estético-política. Sobre isso, nos diz o GAC:

69. Sobreidentificação é um termo proposto pelo GAC. O grupo se refere a um tipo de


intervenção na qual um código existente é utilizado para desdobrar outros significados.
Por exemplo, a utilização das imagens estatais (logotipos, fontes, placas de trânsito),
para expressar uma crítica ao próprio Estado. “Al sobreidentificarnos con esta institución,
usurpamos los roles y vestimentas supuestas y esperadas de una institución
gubernamental. […] Cada institución, además de su significación concreta, tiene una
función simbólica en la gramática cultural, ya que transmiten valores culturales, sociales y
políticos” (GAC, 2009, p. 158).
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Del mismo desarollo de estas prácticas comunica-


cionales se desprende la idea de articulación con
otros grupos o personas. En este sentido es impor-
tante dejar en claro que no nos referimos a una red
impuesta o preexistente, constituída por un organis-
mo tal al servicio de tales actores comunitarios, sino
de la misma experiência y contacto humano de tra-
bajo, que genera un vínculo entre personas y agrupa-
ciones que comparten visiones y vivencias y que
colaboran generando espacios que quiebran con lo es-
tablecido, en cuanto sistema de cosas, no por con-
traponerse, sino por ponerse a construir desde otro
lugar. Trabajar con otros tanto en redes como inter-
grupalmente es apuntar a que el trabajo que de allí
surja sea parte de una experiência comunicativa que
se despliegue desde ese ‘ser comunidad’ a partir de
entornos y actores diferentes, que se concreta al in-
teractuar con la acción de intervención que es pre-
senteada como conflicto puesto en la escena
cotidiana. Desde alli se abre un nuevo nível de mul-
tiplicación de la comunicación, en el que las distin-
tas reacciones o respuestas no están previstas, sino
más bien conectadas al accionar de los/las suje-
tos/as. Y la interpretación y reinterpretación de estas
acciones dependem de las prácticas comunicativas
que se desarollen dentro de esos contextos o circuitos
(GAC, 2009, p. 174).

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É necessário e fundamental fazer com que as estratégias se


transformem em formas simbólicas que possam ser difundidas e
deslocadas, servindo de inspiração para outros atores, em outros con-
textos sociais. Pois é somente em circulação que esses acontecimen-
tos situados, transformados em imagens de um projeto de
cidade-sociedade, formam uma rede mais ampla de pensamento e
ação, ganhando algum poder de fato nessa disputa.
Em 2004, aconteceu um encontro informal entre alguns in-
tegrantes de coletivos de São Paulo e o teórico, artista e ativista Brian
Holmes70. Nesse encontro, Holmes apresentou diversos trabalhos de
grupos e movimentos de outros lugares do mundo, no intento de
fazer com que os coletivos paulistas entendessem que estavam in-
seridos em um contexto mais amplo, e que existia toda uma rede de
pensamento e ação, com a qual podiam começar a partilhar.
As soluções encontradas pelo GAC nos escraches e nas lápides
espalhadas por Buenos Aires dando visibilidade aos assassinados em
20 de dezembro de 2001, chamaram a atenção de todos. Principal-
mente por subverter códigos oficiais ao introduzir mensagens que
trazem à tona traumas, marcando, assim, a cidade, a partir do ter-
rorismo de Estado e, com isso, deslocando-o de um lugar “ideológico”
e de uma crítica muitas vezes angustiada, na qual a vítima se indivi-
dualiza e sofre em silêncio. Parecia que aquilo também dizia respeito
à nossa realidade, e que depois de muito tempo, a nossa experiência
em relação à ditadura militar no Brasil estava encontrando um eco.
Víamos ali “uma potência que nos potencializava”, nos dava vontade
de agir; uma forma de falar sobre a memória, denunciando-a para
anunciar a emergência do contemporâneo.
Depois disso, alguns coletivos decidiram escrever e captar
recursos para um projeto que potencializasse essa “partilha do sen-

70. Eu estava presente nessa conversa, assim como outros integrantes do Contrafilé.

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sível” (Rancière, 2005). O projeto “Zona de Ação” (ZA) foi resultado


dessa investida: Contrafilé, GAC, Frente 3 de Fevereiro, Cobaia, Bi-
jari, Suely Rolnik e Brian Holmes juntos (Peter Pál Pelbart participou
apenas como palestrante), para entender o que podia ser feito.
Abaixo, o que diziam os releases (significativos do momento em que
estávamos) das conferências que aconteceram durante o ZA71:

Quais são as regras do jogo da imagem no mundo do capitalismo


integrado? Em sua conferência, Brian Holmes e Suely Rolnik des-
creverão a maneira como os indivíduos são tomados nas redes
mundiais de distribuição e de valorização de identidades-fetiche.
Mas também como os produtores de acontecimentos urbanos
podem transformar as regras do jogo social e construir uma au-
tonomia partilhada72.

Palestra de Peter Pál Pelbart: “Poder sobre a vida, potências da


vida”: Trata-se de traçar um panorama do contexto biopolítico
contemporâneo sob uma dupla perspectiva. Por um lado, evo-
cando as novas modalidades de controle e de expropriação da
vida. Por outro, mostrando o conjunto vivo de estratégias que lhe
fazem face. Ao poder sobre a vida, responde a potência da vida.
Assim, a questão da resistência pode ser repensada à luz da
biopotência da multidão e de sua força de invenção73.

71. As conferências foram feitas por Suely Rolnik, Brian Holmes e Peter Pál Pelbart, que
tiveram um papel no projeto muito difícil de definir. Brian Holmes se diz um “teórico ativista”.
São pensadores orgânicos? Teóricos em ação? O fato é que são pessoas que sabem
produzir um pensamento colado com a experiência, com as urgências do real e que, por
isso, têm um poder interventivo. Foi isso o que fizeram no projeto Zona de Ação.
72. In: portal do SESC. Link: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/za/, acessado em abril
de 2012.
73. Idem.
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O projeto consistia na interação de cada grupo participante


com uma zona da cidade (norte, sul, leste, oeste e centro) e, a partir
dessa interação, em uma resposta que, de alguma forma, criasse uma
inscrição político-simbólica significativa, que ajudasse a compreen-
der melhor o lugar no qual vivemos e as formas possíveis de discuti-
lo e reinventá-lo.
Com o apoio atento de Brian Holmes e Suely Rolnik, assim
como dos outros grupos, inclusive do GAC – que ficou quinze dias
em São Paulo com todos os seus integrantes e participou de forma
muito ativa, trazendo muitas contribuições –, os coletivos envolvi-
dos puderam, aos poucos, entender aquilo que estavam sentindo a
partir do processo, dando forma a essas sensações.
O “Programa para Descatracalização da Própria Vida”, do
Contrafilé, é claramente resultado de todas essas interações. Em um
primeiro momento, o grupo se sentiu profundamente incomodado
pelo fato de “ir à zona leste” como “uma encomenda” e, pior, inven-
tada pelos próprios coletivos74. Começou a realmente se questionar
se aquilo fazia sentido, pois, se a possibilidade de se rever a cada ins-
tante a partir de “encontros” é fundante desse tipo de trabalho e ati-
tude, o “encontro” a partir de uma estrutura dada e financiada, passou
a ser algo muito incômodo.
O Contrafilé levou essa questão para as reuniões coletivas do
ZA, e todos ficaram indignados com o fato de que estava con-
siderando a possibilidade de não ir à zona leste e de não fazer o tra-
balho lá, mas fazer uma inscrição simbólica na cidade que de alguma
forma trouxesse esta problemática “do encontro somente através de
uma estrutura dada”, à tona. A indignação dos outros grupos se deu
muito no sentido de que parecia, para eles, que o discurso de “não ir
à zona leste” estava em um lugar de “classe média”, sem uma questão

74. Lembrando que o projeto foi elaborado pelos coletivos envolvidos e patrocinado pelo SESC.

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específica, querendo falar a partir desse lugar.


Depois de diversas reuniões com os “teóricos-ativistas” que
acompanharam o projeto e com os outros grupos, além das próprias
reuniões, o Contrafilé decidiu que faria sentido realizar uma “As-
sembléia Pública de Olhares” com pessoas que representassem dife-
rentes movimentos sociais da Zona Leste, desde que a sua
inquietação daquele momento – “ir à zona leste por encomenda” –,
fosse aberta para elas. “A Assembléia Pública de Olhares” é uma
metodologia construída pelo grupo Contrafilé para colocar em pauta,
junto a um coletivo mais amplo, sensações e reflexões a partir de ex-
periências cotidianas, construindo com isso um projeto comum.
Assim o grupo define esse tipo de Assembléia:

Assembléia Pública de Olhares sf 1 Encontro de pes-


soas com o fim de compartilhar o que as paralisa ou
mobiliza; encontro de intimidades; 2 Criação coletiva
de perguntas e exercício de dar nome às urgências;
lugar de aprendizagem; 3 Prática coletiva de escuta-
ativa que leva à produção de conteúdos e/ou símbolos
resultantes da consciência de uma experiência comum;
4 Invenção de tempo e espaço para o dissenso; afir-
mação de singularidades co-criadoras de realidade; 5
Mobilidade interna; 6 Disponibilidade para relacio-
nar-se com inteireza; 7 Descondicionamento de padrões
repetidos; mudança de hábito; 8 Movimento de desatar
os laços sociais previstos pelo Estado de Confina-
mento, espaço para relações proibidas; 9 Estado ma-
nifesto de criação.

Para a “Assembléia da Zona Leste”, decidiu-se que seria apre-


sentada a “catraca como um símbolo” representando, ao mesmo
tempo, as impossibilidades e possibilidades que o Contrafilé sentia

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no próprio projeto: por um lado, o controle, a dificuldade de atraves-


sar fronteiras visíveis e invisíveis; por outro, essa como uma exper-
iência comum a todos, mesmo se provenientes de diferentes
contextos sociais. Em conversas travadas com o GAC a partir do con-
ceito de sobreidentificação, o coletivo decidiu, ainda, partir da “catraca
como símbolo” para propor um “programa público”. O GAC foi de-
terminante nesse momento, já que tinham desenvolvido essa experi-
ência de atuação a partir do deslocamento de discursos e símbolos
oficiais como representação direta no contexto urbano. Foi gerado, a
partir disso, o slogan “Programa para Descatracalização da Própria
Vida”, imitando o logo oficial da prefeitura daquele momento75.
Quando estava com esse dispositivo “em mãos”, o Contrafilé se sen-
tiu preparado para compartilhar a sua angústia em “Assembléia”, a
partir do lugar da potência e não da queixa.

75. Em 2004, Marta Suplicy era a prefeita de São Paulo e o logo era composto pelo desenho
de vários “homenzinhos” de mãos dadas, imitando a imagem do recorte clássico de papel.

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Slogan
prefeitura Marta
Suplicy 2004.

Slogan “Programa
para Descatracalização
da Própria Vida, 2004.

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Na “Assembléia”, algumas questões foram colocadas para con-


textualizar o Zona de Ação: quem eram os coletivos envolvidos, as
problemáticas, os “teóricos”; assim como a inquietação do Contrafilé
frente ao projeto – representando uma dificuldade mais profunda da
vida na cidade –, e, por fim, a ideia-símbolo do “Programa para Desca-
tracalização da Própria Vida”. Cada um foi convocado a dizer como
essas ideias reverberavam “no corpo”, o que lhes fazia pensar, lembrar.
Aos poucos, histórias e experiências cotidianas com a catraca foram
aparecendo. As narrativas eram diversas e inquietantes: alguém que
não entrava em uma biblioteca por não se sentir “bem-vindo” sendo
jovem, pobre e negro, mesmo sem nenhum muro ou catraca visíveis;
outros que presenciavam o aparecimento das catracas em suas escolas
ou universidades; aqueles que refletiam sobre a proliferação das Igre-
jas Evangélicas, especialmente poderosas nos bairros periféricos, como
“catracas para o céu”; histórias de mulheres grávidas que se sentiram
humilhadas ao ter que submeter o seu corpo à situação de passar por
uma catraca e ao medo de “amassar o bebê”; os olhares de desconfiança
em certos espaços da cidade, a sensação de que, mesmo públicos, na re-
alidade eram lugares privados; a sensação de ser sempre “o suspeito”,
de ser parado diversas vezes e revistado pela polícia; as praças nas quais
alguns brincavam quando crianças, agora rodeadas por grades, etc.
Na mesma pesquisa, mas em outra ocasião, um cobrador de
ônibus também havia alertado os integrantes do Contrafilé para o
fato de que todos os ônibus da cidade estavam naquele momento (em
2004) sendo equipados com câmeras, e que motoristas e cobradores
teriam recebido a ordem expressa de que as pessoas podiam “até pas-
sar por baixo da catraca se não tivessem dinheiro para pagar a vi-
agem”, mas “nunca por cima”. A catraca foi, de certa forma, sendo
“dissecada” por essas histórias.

Assembléia de Olhares sobre o


“Programa para Descatracalização
da Própria Vida” com lideranças
locais da zona leste de São Paulo,
junho de 2004.
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Imagem produzida pelo Contrafilé simbolizando essa espécie de “dissecação da catraca”


feita pelo grupo para compreender a reverbaração da catraca como símbolo no imaginário
das pessoas.

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Com essas conversas, ficou evidente que esse era, de fato, um


símbolo potente já que mobilizava as pessoas a refletirem, ficarem in-
dignadas, rirem, chorarem, contarem as suas histórias de vida. No dia
seguinte, foi então proposto que se pensasse coletivamente em como
transformá-lo em uma intervenção na cidade. Assim, ideias foram
surgindo, formas de inaugurar o “Programa para Descatracalização da
Própria Vida”: queimar uma catraca na frente de uma igreja e escrever
“uma catraca para o céu”; colocar catracas em lugares absurdos e ver
se formava uma fila; queimar uma catraca na frente da Daslu76. Até
que chegou-se na ideia de fazer um “Monumento à Catraca Invisível”.
Nada mais apropriado para inaugurar o “Programa”.
O próximo passo seria pensar o lugar mais preciso para que a
proliferação da ideia-símbolo a transformasse efetivamente em uma
ocorrência: construir um pedestal ou se apropriar de um já existente?
Fazer na Zona Leste ou no Centro? Depois de muita discussão, a con-
clusão foi de que seria mais interessante se a catraca fosse instalada no
centro, lugar que representa a todos, onde confluem diferentes pes-
soas e regiões. Também, de que seria mais forte colocar a catraca em
um pedestal do qual o busto tivesse sido roubado, pois assim esta en-
traria, enquanto símbolo, em relação com a forma como os símbolos
oficiais são construídos e desconstruídos na dinâmica da cidade. De-
pois disso, foram pensados os detalhes da placa, o lugar mais apropri-
ado foi encontrado (Largo do Arouche), etc.
A instalação da catraca (que foi comprada em um ferro velho),
necessitou de toda uma estratégia, já que há uma base da PM no Largo
do Arouche: o grupo se vestiu com roupas de funcionários da
prefeitura (tipo gari) e, de madrugada, colocou a catraca em um
pedestal vazio. Assim constava na placa colocada no pedestal, que
copiava as placas das estátuas da praça:

76. Loja de roupas e artigos de luxo para milionárias, localizada em São Paulo. Muitas vezes
acionada como símbolo pelos brasileiros, quando querem se reportar à desigualdade social
e os absurdos e perversões que produz.

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Monumento à Catraca Invisível.


Largo do Arouche, São Paulo,
junho de 2004.
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“Monumento à catraca invisível”


Programa para a Descatracalização da Própria Vida
Junho/ 2004

Instalada a catraca em junho de 2004, de forma anônima (o


que foi uma discussão com o Sesc, que queria que o grupo assinasse a
intervenção), em setembro foi noticiada pelo jornal Folha de São Paulo
sua “presença” no caderno Cotidiano. A notícia, intitulada “‘Catraca
invisível’ ocupa lugar de estátua no Arouche”, foi acompanhada de
uma foto onde se via a catraca em meio a dois bustos, com a legenda:
“Catraca em pedestal no Arouche; no detalhe, placa destaca programa
de ‘descatracalização’ da vida”.

Sem que ninguém saiba como – e muito menos o porquê – uma


catraca enferrujada foi colocada em cima de um pedestal no largo do
Arouche (centro de São Paulo), local antes ocupado pelo busto do es-
critor Guilherme de Almeida (1890-1969)77.

Vemos nas aspas que acompanham algumas palavras da notí-


cia, como “catraca invisível” e “descatracalização”, uma requalificação
produzida na notícia para o evento, o que evidencia uma disputa pela
construção das representações na cidade e sobre ela. Para uma “expli-
cação” sobre a aparição da catraca, a reportagem da Folha buscou as au-
toridades responsáveis pelos monumentos na prefeitura, a polícia e a
comunidade local. O pedestal ocupado pela catraca situa-se em frente
à Academia Paulista de Letras, “ao lado da escultura ‘Depois do Banho’
de Victor Brecheret, e de mais quatro pedestais, um deles também sem
o busto de bronze”, descreve a reportagem. É, portanto, um espaço de

77. Folha de São Paulo, 4 de setembro de 2004, Caderno Cotidiano.


78. Idem ibidem.

206
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representação da cultura oficial da cidade (Domingues da Silva, 2006).


O texto da reportagem se atém à uma discussão sobre van-
dalismo e patrimônio público e tenta encontrar os responsáveis da au-
toridade da prefeitura em relação ao vazio deixado pelo furto e à
ocupação indevida do pedestal. A autoria desconhecida e o gesto
anônimo sobre a cidade produziram, claramente, uma negociação e in-
quietude em relação aos seus possíveis sentidos. Podemos ver isso na
própria construção do texto da notícia da Folha (id.ibid.):

O aposentado VitalAntonio, 55, passa grande parte do dia na praça


e achou o novo monumento ‘sem sentido’. ‘É uma palhaçada. Pode-
riam ter colocado outro busto no lugar’, diz. [...] Segundo comer-
ciante e frequentadora da região, a catraca apareceu há cerca de dois
meses, mas o busto foi furtado há anos.78

Valéria Valeri, coordenadora da comissão de esculturas do


DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), órgão da prefeitura,
disse que:

A ‘presença da catraca foi constatada em vistoria feita na semana


passada e a sua retirada já está sendo providenciada [...]’. De acordo
com a coordenadora, é a primeira vez que vê um objeto desse tipo
em cima de um pedestal, mas que é comum o furto de estátuas e prin-
cipalmente de placas de bronze. (id.ibid.)

A reportagem questiona, a todo momento, a legalidade da situ-


ação e, por isso, existe na construção dos discursos, tanto da Folha
quando do DPH, uma necessidade de restaurar uma suposta ordem o
mais rápido possível para “estabilizar o sentido do acontecimento”.

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Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 4 de setembro de 2004.

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A catraca estava deslocada do espaço em que se constitui objeto


próprio a um controle, o controle, justamente, do público, particu-
larizando a passagem dos corpos, em uma funcionalidade que rege a
sociabilidade dos espaços: separando dentro/fora, público/privado,
distinguindo sujeitos em comunidades que não integram a todos (mas
somente aqueles que têm credencial, que mostram a carteirinha, ou
os pagantes), enumerando-os e contabilizando-os. E, no pedestal,
viria ocupar indevidamente o lugar de monumento, mas como aber-
tura de sentido e não fechamento (Domingues da Silva, 2006).

No Monumento à Catraca Invisível, a nomeação que a placa re-


aliza evidencia que a catraca não era um acaso, mas índice de que
“outras histórias” estavam não apenas pensando-se a partir do espaço
urbano, mas também desejando agir e efetivamente agindo sobre ele.
A catraca aparecia, portanto, como conceito, uma catraca-símbolo,
lembrando ao cidadão todas as dobras que se encontram dissemi-
nadas pela sociabilidade do/no espaço urbano e que, de forma muitas
vezes imperceptível, contribuem para o estabelecimento das suas
fronteiras (id.ibid).

Houve quem enxergasse a catraca como símbolo de


algo que emperra, dificulta. E isso pode ser literal ou
subjetivo. Existem ‘catracas’ que impedem as pessoas
de chegar fisicamente a um lugar, radiais, avenidas ou
rodoanéis com trânsito difícil. Existem também as
catracas sociais, as raciais e as históricas, que dificul-
tam a vida de outras maneiras.79

79. Trecho de entrevista do grupo Contrafilé, extraído do artigo Palavra da Revista e nº 95,
publicação do Sesc-SP.

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A catraca/descatracalização, migrou no espaço do mesmo jor-


nal, aparecendo em diversas tiras de HQ do cartunista Laerte, que
acionou a sua personagem “Homem-Catraca”, agora como um
“agente da descatracalização”. Depois, em encontro com o car-
tunista, o Contrafilé ficou sabendo que, vendo o “Monumento à
Catraca Invisível”, no próprio dia em que apareceu na Folha como
“ato de vandalismo”, sentiu-se convocado a retomar a sua crítica, a-
tualizando-a a partir do ato de enunciação produzido pelo grupo.
Pouco tempo depois, de forma mais surpreendente ainda, a ação
atingiu o Vestibular da USP, como tema de Redação da Fuvest de
200580, e também textos opinativos e de publicidade. O “Monumento
à Catraca Invisível” foi legitimado pela universidade, o que também
gerou muito debate e dissenso, especialmente centrados na palavra
“descatracalizar” e no fato da Universidade de São Paulo usar um “neo-
logismo” – que absurdo! – como tema de redação.
Após o vestibular da Fuvest, vários eventos sucederam-se. No
dia seguinte, o banco Itaú colocou outdoors na cidade, assim como
anúncios em revistas e na própria Folha, que diziam: “Vestibulando,
Descatracalize a sua Vida, Abra uma Conta no Itaú”. Logo depois, o
movimento estudantil queimou uma catraca na frente do prédio da
Fuvest, em uma manifestação contra a taxa que deve ser paga para
prestar o exame. A partir disso, a catraca pegando fogo tornou-se o
símbolo do Movimento pelo Passe Livre, que luta pela gratuidade do
transporte público para os estudantes.
Articulistas tanto da Folha quanto da Revista Bravo e do Es-
tado debateram o assunto. Fernando Barros e Silva, da Folha de São
Paulo, por exemplo, escreveu um artigo no qual dizia que, embora a
instalação do “Monumento à Catraca Invisível” fosse “simpática” e
“provavelmente melhor do que muita obra da Bienal”, o uso dela

80. 30.000 estudantes escreveram sobre o “Programa para Folha de São Paulo,
Descatracalização da Própria Vida”. setembro de 2004 a
fevereiro de 2005.

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O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 2005.

Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2005.


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como tema da Redação da Fuvest mostrava um espírito “68 requen-


tado” que teria contaminado os examinadores da Fuvest. Criticava
também a complexidade do tema, perguntando se a intenção era a de
que os alunos discorressem sobre o “homem unidimensional de Mar-
cuse” ou a “microfísica do poder” de Foucault e o que “um jovem
morador de Guaianazes pensaria sobre a descatracalização do busão
lotado”.
Ao que Maria Tereza Rocco, vice-diretora da Fuvest, res-
pondeu:

[...] O que pretendia a banca examinadora ao propor o tema? Re-


ceber textos bem escritos, mas sem nenhum preciosismo ou acade-
micismo. Textos que dessem conta de um tema que nos atinge a
todos. [...] Diferentemente do que o jornalista registrou em seu
texto, também os candidatos de Guaianazes pensam, refletem e
vão fundo! Eles não se limitam, não, a se preocupar tão-somente
com a ‘descatracalização do busão lotado’81.

Com essa sucessão de acontecimentos a partir do “Monu-


mento à Catraca Invisível”, o “Programa para a Descatracalização da
Própria Vida” não só foi inaugurado, como de fato pôde disputar,
simbolicamente, diversas questões normativas: a decisão por aquilo
que se monumentaliza, a existência ou não de uma taxa para realizar
o exame de uma universidade pública, o uso ou não de um neolo-
gismo em uma prova “formal”. Assim como colaborou para eviden-
ciar a rapidez do marketing em cooptar o poder de criação, os fluxos
e saberes coletivos que são produzidos e circulam na cidade, privati-
zando-os ao transformá-los em estratégias de acumulação de capital.
Podemos ver operando nessas construções discursivas, as formas de

81. Maria Thereza Fraga Rocco, vice-diretora da Fuvest, Folha de São Paulo, 17 de janeiro de
2005, na seção Painel do Leitor.

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controle contemporâneas. Segundo Paolo Virno, em um mundo no


qual o capital se reproduz a partir da expropriação da criatividade e
da inovação:

[...] la cooperación del trabajo social perderia parte de su poten-


cia (y de su eficacia para la valorización capitalista) si fuese di-
rigida y disciplinada en cada detalle. [...] Para el capitalista es
necesario apropiarse de la innovación a posteriori, sellecionando
en ella los aspectos afines a la acumulación y eliminando todo lo
que puede dar lugar a libres instituciones de la multitud” (Virno,
2006, p. 13).

O Contrafilé formalizou a sistematização como obra ao


perceber o esvaziamento da crítica em muitos dos discursos mobi-
lizados pelo “Monumento à Catraca...”, quando estes eram vistos de
forma fragmentada. Com isso, entendeu que a potência do trabalho
residia, justamente, na possibilidade de desfragmentar os discursos,
compreendendo-os como processo de produção social e, assim, in-
vertendo a forma de funcionamento seletiva dos discursos hegemôni-
cos.
Pois é nesse ato de colocar um discurso ao lado do outro, que
se torna perceptível o desdobramento do fato inicial como a for-
mação de um “agenciamento”, no sentido que deram a esse termo
Deleuze e Guattari82. Na medida em que os seus vários níveis se
tornaram visíveis83, o “Programa” se converteu, efetivamente, em um
“dispositivo para a articulação de uma enunciação coletiva” (Holmes,
2006, p. 146). É a imagem dessa multiplicidade de vozes o que o tra-
balho, como sistematização da experiência ou como “cartografia”,
possibilitou; assim como a efetiva transformação de eventos isolados

82. Ver capítulo 1.


83. A obra como produção de espaço, como complexificação do pensamento social sobre as
fronteiras que subjugam o corpo na cidade e como dimensão trans-local e trans-histórica
dos acontecimentos urbanos situados.

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Folha de São Paulo e outdoors


espalhados pela cidade de São Paulo,
10 de janeiro de 2005.

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Folha de São Paulo,


11 de fevereiro de 2005.

Imagem produzida pelo Movimento


pelo Passe Livre, 2006.

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Folha de São Paulo, 11 de janeiro de 2005.

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Folha de São Paulo, 17 de janeiro de 2005.

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Cartazes do “Programa para Descatracalização da Própria Vida”, realizados


pelo Contrafilé em ocasião de sua participação na exposição “Collective Criativity”,
Fridericianum Museum, Kassel/Alemanha, 2005.

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Diagramas feitos pelo Contrafilé com o intuito de refletir sobre o que sucedeu no
“Programa para Destracalização da Própria Vida”.

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“Programa para Descatracalização da Própria Vida” apresentado como obra-sistematização


de um processo em diferentes exposições ao redor do mundo: Collective Criativity
(Alemanha/Kassel, 2005), La Normalidad (Buenos Aires/Argentina, 2006) e If you See
Something, Say Something (Sidney/Austrália, 2007).
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em um acontecimento efetivo.
Há também diversos movimentos de abertura e síntese que
perpassam o trabalho e nos levam a pensar em como uma inscrição
inicial vai gerando outras inscrições e discursos: uma conversa inicial
com referentes da Zona Leste que produziu uma primeira síntese (o
Monumento), que foi inscrita na cidade e levou a um transborda-
mento e a uma agitação de sensibilidades gerando novos fatos, o que
mobilizou uma nova síntese grupal (a sistematização pelo Contrafilé
dos discursos decorrentes da instalação do “Monumento à Catraca...”
e o diagrama feito pelo grupo).
Este movimento pode ser compreendido como a constitui-
ção da imagem de uma “microssociologia” que, como diz Tiago
Seixas Themudo a respeito da forma de pensá-la, proposta por
Gabriel Tarde, acontece nos “pequenos e praticamente impercep-
tíveis formigamentos do social” e nos quais “está o germe de toda
grande transformação, tal como uma pequena pedra atirada em um
lago, cujas ondas produzidas a partir de um ponto singular podem se
propagar por toda a extensão do lago, ou como uma epidemia mais
ou menos intensa” (Themudo, 2002, p. 9).

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CAPÍTULO III

Pensando a crítica

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Justaposição e instituição

A partir da tentativa de definir a cidade contemporânea


como um lugar de disputa dos sentidos das leis e das normas, é pos-
sível entender as manifestações artísticas e as suas representações
situadas, não fazendo um papel de simuladores no embate, mas sendo
de fato peças fundamentais dele. Isso se dá em um contexto no qual,
ao colocar a força de criação em constante produção de mundos vir-
tuais e paradisíacos, como os veiculados pelo marketing, o capitalismo
avançado gera um modo de subjetivação alienado em relação ao outro
e ao espaço público.

[...] No caso específico do neoliberalismo, a estratégia de subjeti-


vação, de relação com o outro e de criação cultural adquire uma
importância essencial, pois ganha um papel central no próprio
princípio que rege o capitalismo em sua versão contemporânea. É
que é, fundamentalmente, das forças subjetivas, especialmente as
de conhecimento e criação, que este regime se alimenta, a ponto de
ter sido qualificado mais recentemente como “capitalismo cogni-
tivo” ou “cultural” (Rolnik, 2006, p.4).

Face à urgência de enfrentar essa política de subjetivação ins-


talada pelo neoliberalismo, que utiliza e celebra a criatividade como
uma estratégia central para a concentração de poder (id. ibid.) e, por-
tanto, de encolhimento do domínio do público, as manifestações artís-
ticas coletivas aqui tratadas buscam criar novas formas de construir as
representações, que partem da escala da cidade e voltam a ela.
No início, sem ter conhecimento uns dos outros, depois, aos
poucos, criando redes virtuais e presenciais – o que de fato começa

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a acontecer quando os grupos passam a se encontrar em exposições


e seminários nacionais e internacionais84 –, os coletivos artísticos de-
senvolvem, a partir de conflitos concretos e múltiplos e de estratégias
e lutas singulares, uma sensibilidade e uma forma de pensar a cidade
e a realidade. É a partir da singularidade das lutas e do modo de com-
preendê-las que se torna possível vislumbrar a existência de uma luta
comum.
Essa forma de produção do comum se dá pela invenção de
estratégias de resistência que, apesar de baseadas em problemáticas
locais, formam redes, ainda assim correndo o risco de se despoten-
cializarem pela fragmentação. Estas redes, que levam e trazem in-
formações, e hoje já estão instauradas, produzem uma contaminação
mútua de conteúdos, conceitos, estratégias e métodos que desafiam
tanto os discursos socialmente hegemônicos quanto os processos que
levam à sua produção.
Nesse sentido, se estamos aqui entendendo a produção do
comum por meio de lutas produzidas por e produtoras de singulari-
dades, é interessante atentarmos, por outro lado, para a constante
preocupação de Henri Lefebvre, já na década de 1970, com a re-
definição de referenciais, que se explica diante de uma história em
que a fragmentação cada vez mais se aprofunda e expande por todas
as dimensões da vida. Segundo Lefebvre, isso seria parte de uma es-
tratégia do poder através da qual, para homogeneizar e hierarquizar

84. Alguns exemplos de eventos que tiveram participação de coletivos paulistas: “Seminário
Máquinas” (intercâmbio com participantes de grupos de arte política, práticas artísticas
colaborativas e cooperativas, coletivos políticos criativos de diversos lugares em dois
continentes), a convite de Marcelo Expósito, do Museu d'Art Contemporani de Barcelona
(Macba), Barcelona, Espanha, 2007; Exposição “La Normalidad/Ex-Argentina” (última etapa
do projeto Ex-Argentina, iniciado em 2002, que reuniu coletivos artísticos de diferentes
partes do mundo como Europa, América Latina, Leste Europeu para expor seus trabalhos
e refletir coletivamente sobre o conjunto de tensões ocultas que transformam um sistema
econômico em uma máquina de desigualdade), curadoria de Alice Creischer e Andreas
Siekmann e coordenação do coletivo argentino Etcétera no Museu Palais de Glace, Buenos
Aires, Argentina, 2006; exposição “Collective Creativity” no Kunsthalle Fridericianum
Museum, curadoria do coletivo Croata WHW, Kassel, Alemanha, 2005. Em texto presente
no catálogo da exposição, o coletivo-curador WHW dizia: “A exposição abrange diferentes
aspectos emancipatórios do trabalho coletivo, onde a criatividade colaborativa não é apenas
uma forma de resistência ao sistema dominante de arte e à convocação capitalista para
a especialização, mas também uma crítica produtiva e performática”.
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a vida, esta primeiro é fraturada, dividida, através da violência exer-


cida pelo capitalismo de Estado, nos tempos e espaços cada vez mais
instrumentalizados a seu favor.
Lefebvre, na época, identificava a necessidade de construção
de sentidos comuns para a produção social, sem que para isso fosse
necessário pressupor fins fixos e atualmente representados, o que
levaria a cair em uma forma teológica ou teleológica de pensar e agir
frente à história. Assim, o autor refletia sobre os possíveis caminhos
para que o “comum” pudesse ser construído e se tornasse um refe-
rencial, sem se transformar numa camisa-de-força, no “fim” da
história enquanto término, mas num “fim” enquanto construção de
sentido, necessário, de acordo com ele.
Se a estratégia do poder, de fragmentar a vida, produz a falta
de sentido sobre a qual se refere Lefebvre, este autor reconhece tam-
bém que, na busca de novas referências que não são ou apontam para
verdades absolutas, estão implicadas as categorias do devir e do pos-
sível-impossível como análise das diferenças. Segundo ele, em meio à
crise, seria necessário atentar para a noção de desenvolvimento desigual
introduzida por Lênin, que distinguia crescimento econômico de de-
senvolvimento social, evidenciando o fato de que a crise gera dife-
rentes processos e respostas nas diferentes sociedades. Conhecendo
o que difere, é possível, para Lefebvre, compreender o virtual e não
apenas o atual e, então, sair de uma lógica puramente racional e
hegemônica.
No entanto, essas virtualidades contidas no processo de
diferenciação não interessam ao sistema dominante. Por isso, muitas
vezes são reduzidas aos particularismos, que não seriam ainda dife-
renças, segundo o autor, mas fatos naturais transformados em traços
de distinção de uma classe ou grupo, não conseguindo superar a frag-

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mentação decorrente da fratura do real pelo poder. As particulari-


dades só podem se tornar diferenças, na visão de Lefebvre, quando
estão em relação e podem assim travar, a partir da luta de morte85, um
embate para se afirmar enquanto qualidades irredutíveis. Assim, a na-
turalização da história e sua homogeneização podem vir a ser supe-
radas através da luta pela construção de espaços diferenciais, nos quais
o residual ganha força atuando para transformar a história.
A questão que, a partir daí, se coloca para o autor, é a de saber
como essa dimensão residual ganha potência suficiente para se trans-
formar em luta de morte, adquirindo a dimensão de projeto, na di-
alética entre denúncia e anúncio, sempre relembrada por ele. E
também a de saber como as diferenças se reúnem, compondo “cam-
pos diferenciais” capazes, de fato, de intervir e se inscrever como re-
alidade no espaço social.

A produção do espaço não seria ‘dominante’ no modo de produção,


mas religaria os aspectos da prática coordenando-os, reunindo-
os numa prática, precisamente. [...] O conceito de espaço religa o
mental e o cultural, o social e o histórico. [...] Isso evolutivamente,
geneticamente (com uma gênese), mas segundo uma lógica: a
forma geral da simultaneidade; pois todo dispositivo espacial re-
pousa sobre a justaposição, na inteligência e sobre a reunião ma-
terial, de elementos sobre os quais se produz a simultaneidade
(Lefebvre, 1981, p. 2).

A “justaposição” e “simultaneidade” características do dis-


positivo espacial, segundo Lefebvre, assim como o “jogo situado de
escalas”, ideia desenvolvida por Ananya Roy, são conceitos que ten-
tam expressar por que o espaço e, mais precisamente, o urbano, deve

85. A partir do pensamento de Hegel, Lefebvre traz a noção de luta de morte, um dos
conceitos utilizados pelo autor para desenvolver a noção de superação.

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ser compreendido como uma forma transversal capaz de superar a


fragmentação. E, por isso, como campo de forças apropriado para
pensar o social e um lugar cada vez mais contundente para o en-
frentamento político contemporâneo – o que nos leva a uma neces-
sidade de aprofundamento da reflexão.
Se estamos entendendo a produção do espaço como uma dis-
puta travada a partir de “situações de indeterminação” materializadas
no urbano, nas quais diversas soberanias inscrevem uma multiplici-
dade de tempos, espaços, formas, etc., que acabam por compor uma
“luta comum”, e se já refletimos um pouco sobre como essa “comu-
nidade” enfrenta a presença institucional no espaço urbano, seria
também pertinente discutir como isso acontece em relação aos “es-
paços institucionalizados da cultura e da arte” e, por sua vez, que tipo
de “crítica institucional” é gerada por essas práticas urbanas, a partir
da relação entre o espaço diferencial e o vislumbre de instauração de
um espaço compartilhado, mesmo no interior das Instituições. Ou
seja, como as práticas e manifestações urbanas lidam com as divisões,
fragmentações, fraturas, promovidas pelo “sistema da arte”, encon-
trando caminhos no meio disso para a constituição de um corpo
crítico que tenha alguma potência de inscrição sociocultural e de re-
verberação.
Não pretendo lançar aqui um falso problema ou cair na
repetição de reflexões que já têm sido feitas por diversos pen-
sadores em relação à forma como a “crítica institucional” é exer-
cida hoje; gostaria somente de tentar criar relações entre a cidade
como espaço de diversas soberanias em disputa e o espaço institucional artís-
tico e cultural. Acredito que esse exercício possa ajudar a ampliar o
olhar sobre o que seria o “marco do urbano” nas manifestações
artísticas aqui analisadas.

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Apesar dos espaços institucionalizados, dentre eles os liga-


dos às artes e à cultura, tais como museus, galerias e espaços cultu-
rais, serem muitas vezes reconhecidos, no embate, como lugares
privilegiados de “encenação de uma sociabilidade fictícia” (Arantes,
1991, p. 167), de massificação e difusão da experiência como bem de
consumo, a participação de diversos coletivos de diferentes na-
cionalidades em uma série de exposições ao redor do mundo, evi-
dencia um movimento de idas e vindas no campo institucional da
Arte (Rolnik, 2007). Isso demonstra que diversas práticas que se
propõem uma construção crítica e têm a convicção de que a pro-
dução artística não existe fora de seu contexto social, encaram o
campo institucional como um “espaço de disputa” e não como um
“espaço apartado da vida”.
Portanto, nessas práticas, estar em relação com a “instituição
artística e cultural” é também poder entender que o “espaço e a vida
pública” não são sinônimos de “estar fora”, assim como “estar dentro”
não significa a ausência da possibilidade do embate. Disputar todo e
qualquer espaço permite discutir a escala institucional estando nela
e não como negação a ela, problematizando assim as formas de repre-
sentação no mundo contemporâneo, quem pode representar e quem
é representado.
Mesmo com as transformações ocorridas na crítica institu-
cional, ainda se faz necessário observar e refletir sobre os “porquês”
dos momentos de deriva dos artistas e coletivos do circuito oficial
para os interstícios mais tensos da cidade – já que este pode ser um
sintoma da recusa em aceitarem a relação entre capital e cultura pre-
sente hoje no terreno da arte, sendo a vida urbana e a vida pública jus-
tamente o lugar onde deságua a força de criação instrumentalizada
pelo mercado (Rolnik, 2007).

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Repensando a crítica

A partir desses questionamentos tanto em relação à cidade


quanto ao espaço institucional como espaços de disputa por ex-
celência, nos quais a produção de subjetividade e de vida pública se
dá de forma totalmente imbricada, é interessante compreender como
se atualizam algumas problemáticas colocadas desde a modernidade.
Delinear brevemente o desenvolvimento de algumas questões, como
a “autonomia da arte” e sua relação crítica com a institucionalização,
pode nos ajudar a tornar mais claro o que estamos entendendo efe-
tivamente como uma prática crítica e como, quando e onde a arte
como prática crítica acontece hoje – tendo em vista o processo de
modernização capitalista radicalizado pelo neoliberalismo.
Antes de lançarmos o olhar mais profundamente sobre a situ-
ação contemporânea, esboçaremos uma tentativa de observar como
a tensão entre a produção de subjetividade e de vida pública se con-
figurou no modernismo e, depois, na passagem para o chamado “pós-
modernismo”, para refletirmos sobre o que, desta tensão, permanece
como “devir” na contemporaneidade, impulsionando as práticas artís-
ticas atuais.
Segundo Andreas Huyssen, que escreve sobre a passagem da
modernidade para a pós-modernidade, a consciência das limitações
do modernismo, que evidencia a impossibilidade de seguir acredi-
tando na emancipação da vida através da cultura, teria levado algumas
correntes pós-modernas a uma radicalização de proposições, con-
hecidas desde o modernismo, como o esteticismo e a idéia de “morte
do sujeito”, que desembocaria na perda de importância da autoria86.
Há aí o reconhecimento, no contexto a partir do qual escreve
esse autor (Estados Unidos da década de 1980), de que muitas ope-

86. Já Fredric Jameson, para quem a “morte do sujeito” é antes um sintoma da pós-
modernidade do que da modernidade, destaca sobretudo a sensação de que tudo já foi feito
e de que, portanto, não seria possível ou relevante tentar encontrar formas de representação
de uma experiência singular do presente (Jameson, 1985).

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rações antes consideradas como posições radicais, deixam de sê-lo


na medida em que o capitalismo pós-industrial avança. O esteti-
cismo, porque seria difícil sustentar a sua função contestadora numa
era da estética da mercadoria. E a proclamação da morte do su-
jeito, porque ela meramente duplica, no nível da estética e da teo-
ria, o que o capitalismo, como um sistema de relações de troca,
produz tendencialmente na vida cotidiana: a negação da subjetivi-
dade no próprio processo de sua construção (Huyssen, 1991). Por-
tanto, é fundamental entender quando, nesse processo de
constante embate entre constituição do sujeito e da vida pública,
iniciado na modernidade, se afirmam posições emancipadoras e
críticas e quando, ao contrário, se afirmam posições que, embora
aparentemente progressistas, são conservadoras.
Analisando o catálogo da “Documenta 7 de Kassel” (realizada
em 1982), Huyssen nos dá um exemplo de como este esvaziamento
crítico se manifesta no pensamento do curador Rudi Fuchs. Em tre-
chos da introdução escrita por Fuchs, Huyssen diagnostica passagens
nas quais o curador demonstra a preocupação em recuperar uma
certa “pureza” da arte, para isso referindo-se tanto ao artista – “[...]
afinal, o artista é um dos últimos praticantes da distinção individual”
–, quanto ao Museu – “[...] um espaço além daquelas infelizes ‘diver-
sas pressões e perversões sociais’ que a arte tem tido de enfrentar”.
Neste caso, Huyssen atribui o abandono da consciência crítica do
modernismo, ao próprio arranjo do espaço como “encenação de uma
convicção”, a da possibilidade de existência da contemplação pura
(Huyssen, 1991).
Ora, se invocamos o artigo “Museu, Valery, Proust” de
Theodor Adorno (1997), podemos perceber o surgimento deste lugar
de contemplação na modernidade como extremamente problemático.

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Se, por um lado, o Museu foi, então, fundamental para assegurar o


lugar da contemplação na criação de uma heterotopia – diante da ex-
pansão de uma vida eminentemente burguesa, citadina, com os seus
tempos e espaços permeados pelo consumo –, por outro, levou ao que
o autor denomina de uma “neutralização da cultura”. Esta aporia
proclamada por Adorno é, para ele, absolutamente necessária para a
produção de uma postura crítica diante da arte. Ou seja, se o Museu
é, sim, um espaço que distancia a arte da vida, é, também, por instau-
rar a utopia do espaço público moderno por excelência, o que possi-
bilita que a experiência solitária da obra encerre um impulso
emancipatório de evidente consequência social (Arantes, 1991, p.163).
Adorno constrói seu argumento trazendo à tona diferenças e
semelhanças entre as concepções de Valery e Proust em relação à
contemplação vivida nos Museus, com isso buscando mostrar como,
na emergência de uma esfera pública burguesa, a crítica social efeti-
vamente acontece no embate entre o sujeito e a obra de arte. Se-
gundo Adorno, enquanto Proust dá ênfase à memória adormecida do
observador, na qual a obra de arte perde a sua materialidade no con-
tato com o fluir da subjetividade – que para ele é o que dá sobrevida
à vida póstuma das obras, “naquilo que nas grandes obras é mais do
que mera cultura” –; Valery desenvolve um olhar no qual a obra, sua
autonomia, suas relações internas, seriam o ponto de partida e
chegada, sendo o sujeito diante da imanência da arte, uma mera con-
tingência. Se para Proust, a morte das obras desperta-as para a vida
– a partir da relação com o homem –, sendo o Museu o espaço
público que possibilita a difusão desta relação –, para Valery, esse tipo
de circulação, que acumula e sobrepõe obras, é um ato de barbárie
contra o caráter sagrado da cultura.
Otília Arantes, em seu texto “Os Novos Museus” afirma que,

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para Adorno:

A neutralização da cultura transpareceria assim com maior in-


tensidade nos museus. Mas não seria uma razão para fechá-los –
diz Adorno. As ambiguidades do museu são as da própria arte
moderna e da relação que ela mantém com o seu público. A alter-
nativa oposta – repor as obras no seu lugar de origem – culmi-
naria quando muito no kitsch e na mise en scène, sendo ainda mais
prejudicial. Mas não é menos verdade, observa Adorno, que se re-
nunciarmos à possibilidade de reinserir a obra numa tradição,
cometeremos igualmente um ato de barbárie por excesso de fide-
lidade à cultura (1991, p. 162).

Walter Benjamin, segundo a autora, aborda a questão dos bens


culturais e do processo de transmissão com que eles passam de uns a
outros, como claramente originados em atos de barbárie e horror:

Como era de costume, a pilhagem é arrastada junto no cortejo tri-


unfal. Costuma-se chamá-la de: bens culturais. No materialista
histórico, eles terão de contar com um observador distanciado.
Pois tudo o que ele consegue perceber em termos de bens culturais,
tudo, sem exceção, tem uma origem que ele não pode rememorar
sem horror. Eles devem a sua existência não só aos esforços dos
grandes gênios que os produziram, mas também à anônima
servidão dos seus contemporâneos [...] (Benjamin, 1991, p. 157).

Por isso, a “distração esclarecida” seria, para Benjamin, uma


forma de não privar a coletividade de transformar-se em sujeito da
cultura. Diminuir a distância entre obra e espectador e entre espec-

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tadores entre si – possibilidade primeiro dada pelo cinema, com o


seu potencial de “recepção coletiva” –, libertaria a cognição dos
“domínios confinados da cultura afirmativa” (Arantes, 1991, p. 163).
Retomando essa complexidade presente no debate moderno,
sobre a relação entre a arte e sua institucionalização, talvez se torne
mais clara a interpretação feita por Andreas Huyssen do pensamento
curatorial de Fuchs na “Documenta 7” como redutor da teoria crítica
da/na modernidade ao privilegiar um dos termos do paradoxo (a pos-
sibilidade de uma contemplação livre das tensões sociais), como se
isso representasse um retorno à tradição modernista. Trata-se de uma
redução que evidencia que não é a modernidade e o modernismo que
se tornam obsoletos. Ao contrário, este tipo de aplicação das codifi-
cações da crítica modernista de forma totalizante e domesticada, é
uma estratégia destinada a enterrar críticas políticas e estéticas de
certas formas de modernismo (Huyssen, 1991).
Poderíamos arriscar concluir que somente um movimento de
compreensão crítica das dissincronias presentes no interior do mo-
dernismo, atualizaria a tarefa de encontrar possibilidades críticas
mais interessantes na arte contemporânea ao criar um campo de
forças mais amplo para tal discussão, avançando em relação às:

[...] ideias familiares sobre o que constitui uma arte crítica (nega-
tividade, vanguardismo, arte engajada, recusa da representação,
realismo crítico, abstração) que tem perdido muito de sua força
explicativa e normativa (id. ibid., p.21).

Sendo assim, se Huyssen considera legítima a preocupação


de diversos pensadores87 de resguardar o caráter emancipatório do
Projeto Moderno, discorda da visão de que à chamada pós-moder-

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nidade, como “conjunto”, seria intrínseca uma postura neoconser-


vadora já que, segundo ele, diversas linhas do pós-modernismo não
abrem mão do pensamento crítico presente no modernismo, mas sim
da visão heróica da cultura moderna. O que significa admitir uma
mudança de condições históricas que tornou possível a emergência
da problemática da alteridade de forma mais contundente na arte
contemporânea, contrapondo-se ao caráter imperialista da cultura
da modernidade (Huyssen, 1991).
Diante dessas questões, como pensar a relação entre arte,
artista, públicos e sistema da arte no mundo contemporâneo, pro-
duzindo, a partir daí, uma atualização da complexidade do pensa-
mento crítico após mais de vinte anos da queda do muro de Berlim,
vinte e sete anos do fim da ditadura militar no Brasil, trinta anos de
neoliberalismo mundial, agora plenamente instaurado? Pois, se
vemos, por um lado, um processo de esvaziamento da noção do que
vem a ser “público”, de acirramento das diferenças socioeconômicas,
de criminalização dos movimentos sociais; por outro, vemos o sur-
gimento e desenvolvimento de práticas e manifestações que buscam
inscrever uma discussão sobre a possibilidade ou não de produção
compartilhada de outros imaginários.
O fato de repensar e apropriar-se do espaço público, tanto
material, quanto simbolicamente, criando outras possibilidades de
vivenciar a cidade, a partir do momento em que as próprias repre-

87. Juergen Habermas, que prolonga as teses da escola de Frankfurt e um dos mais
importantes defensores do modernismo, foi dos primeiros pensadores a colocar a relação
entre pós-modernismo e neoconservadorismo de uma forma histórica e teoricamente
complexa. Habermas (1992) contesta os argumentos que acusam o modernismo cultural de
ser responsável pelos males da sociedade, afirmando que, na verdade, é a modernização
econômica e social que causa a alienação, que ele entende como uma “colonização do
mundo da vida” pela economia. A preocupação central deste pensador foi a de proteger o
potencial emancipador da razão esclarecida que, para ele, seria o sine qua non da
democracia política, em um momento de mudança de tendência em que havia um
recrudescimento conservador em distintas partes do mundo. Neste sentido, interpreta a
virada cultural à luz da virada de tendência política, compreendendo o pós-modernismo
como evidência, sobretudo, de uma ruptura com o projeto moderno de emancipação. Ao
conferir ao pós-modernismo o atributo de “neoconservador”, a preocupação de Habermas
era, sobretudo, a de que a revolta contra a razão iluminista se tornasse, em última instância,
reacionária, uma visão politicamente perigosa e limitada – e relembra Aushwitz como
resultado não de um excesso de razão iluminista, mas de um impulso anti-modernista e anti-
iluminista, que teria se valido cruelmente da modernidade para os seus propósitos.
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sentações são questionadas – de si, do outro e dos próprios espaços


–, é o que define, para Vera Pallamin, uma prática que, hoje, tem um
caráter crítico. Como diz ela, delimitando o que seria uma “prática
crítica” no campo de análise de práticas artísticas urbanas:

Destacamos a arte urbana como prática crítica exatamente nesse


momento em que o horizonte não possui mais a carga utópica que
já teve um dia. [...] potencializada pela idéia de tornar a cidade
disponível para todos os grupos, essa prática crítica inclui dentre
seus propósitos estéticos o desafio a certos códigos de representação
dominantes, a introdução de novas falas e a redefinição de valores
como abertura de outras possibilidades de apropriação e usufruto
dos espaços urbanos físicos e simbólicos (2002, p.107).

Na medida em que diversas instituições de todo o mundo


estão repensando a sua função social e política e como se relacionar
com questões contemporâneas, é interessante ler o site do Museo
Reina Sofía, no qual fica bem claro este interesse de um gestor (o di-
retor Manuel J. Borja-Villel) em contribuir para que o fato de estar no
museu se torne uma questão significativa e complexa. Borja-Villel faz
isso ao introduzir no próprio espaço institucional o que antes eram
questões pensadas predominantemente por artistas e movimentos
artísticos que afirmavam estar “fora” dele:

O programa do Museo Reina Sofía se baseia em uma redefinição


da função do museu alternativa aos modelos históricos dessa ins-
tituição. Concebido como um lugar gerador de espaços interstici-
ais de sociabilidade e discussão na esfera pública, propõe modelos
de resistência em uma sociedade na qual são primordiais o con-

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sumo e a mercadoria e em que a produção se fragmentou ocasio-


nando um mapa geopolítico inédito assim como novas classes so-
ciais, relações e subjetividades. A criação de narrativas
alternativas, de novas formas de intermediação e a formação de
um espectador ativo são linhas de força do Museu. O Museu con-
testa a dinâmica centro-periferia e a visão unívoca da história
da arte. Essa deixou de ser escrita como se estivesse constituída
por grandes continentes para ser uma espécie de arquipélago no
qual emergem diversas relações em uma cartografia cambiante.
As outras modernidades, antes subalternas, alcançam aqui a sua
dimensão mais complexa e artistas antes considerados derivativos
ou secundários cobram voz, desafiando, graças a novos vínculos
de solidariedade entre o intelectual e os coletivos, as regras esta-
belecidas a partir do mundo europeu ocidental.88

Neste processo constante e interminável de redefinição da


relação entre arte e sociedade, o que diferentes pensadores e artistas
parecem buscar são as transformações qualitativas que se operam no
potencial crítico da cultura. Potencial que hoje não estaria mais atre-
lado à uma noção de resistência como forma de superar sua simples
oposição à afirmação, em termos de negatividade ou não-identidade,
já que a própria resistência deve ser sempre pensada como “específica
e contingente ao campo cultural em que opera” (Huyssen, 1991, p.79).

88. Trecho da Missão do Museo Reina Sofía, escrito por seu diretor, Manuel J. Borja-Villel.
Texto presente no site deste museu, link: http://www.museoreinasofia.es/museo/mision.html.
Acessado em maio de 2011.

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Performatizar a crítica

Pouco tempo depois de ter feito o trabalho “Não estamos


em Rebelião...”, o coletivo MICO foi convidado pelos curadores do
“Panorama da Arte Brasileira 2001”, Ricardo Basbaum, Paulo Reis e
Ricardo Resende, para realizar um trabalho no livro-obra que seria
produzido como parte da exposição. A curadoria da mostra se cen-
trava no “[...] mapeamento de espaços alternativos, cooperativas e
colaborações entre artistas, organizações e trabalhos surgidos nas co-
munidades em paralelo à cena institucional – museus, centros cul-
turais, galerias – existentes e ativos em diferentes regiões do país”
(Mesquita, 2001, p.5).
Texto do MICO para o catálogo do “Panorama da Arte
Brasileira 2001”:

O grupo tem como objetivo criar um espaço para as


pessoas vivenciarem a cidade de uma forma diferente
da qual estão acostumadas, podendo, assim, se dis-
tanciar e refletir sobre ela. Às vezes, um instante faz
com que repensemos todo o universo. Deslocando
coisas na cidade e da cidade, buscamos produzir este
efeito, mínimo, ainda em construção, mas que pode se
transformar em uma reflexão e talvez em uma nova
ação. Vivemos na cidade e temos a certeza de que ela
não precisaria ser encarada como um espaço inexo-
ravelmente condenado à degradação. Isso não é real
quando percebemos que depende de nós, de nossa ação,
que ela se restabeleça enquanto um espaço para a vida.
O trabalho em grupo, diferente da prática artística in-

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dividual, tem como principal característica a possi-


bilidade da troca com outras pessoas, outras idéias,
outros olhares. É incrível que numa cidade tão disper-
siva quanto a nossa consigamos nos encontrar sempre,
não com uma finalidade utilitária, mas artística,
política, reflexiva.
A reflexão sobre o nosso lugar – que se constitui a par-
tir deste lugar – ajuda a construir o espaço público, o
diálogo.Assim, também aparecem muitas questões que
dizem respeito ao genérico, ao mundo, às indignações
e esperanças que nos movem, aos fatos que nos ater-
rorizam. Uma coisa é refletir abstratamente sobre
tudo isso. Outra é agir a partir daquilo que temos
perto, dos fatos do nosso cotidiano, daquilo que está di-
ante dos nossos olhos, para daí chegar às grandes
questões. Mergulhando na localidade é que se chega
aos grandes temas da atualidade – já que a localidade
em suas múltiplas determinações é, em si, o atual. [...]
Quando estranhamos o nosso lugar, ele se evidencia e
se torna novamente vivo, rico em questões. Assim, ele
vai se tornando novamente nosso.
Em relação ao sistema de arte, acreditamos que não é
necessário ser artista para se comunicar artistica-
mente. Depender de um sistema de arte para se comu-
nicar com o mundo significa restringir a sua proposta
a um grupo de pessoas determinado. Entendemos a
arte fora daqueles espaços destinados e fixos; a cidade
participando organicamente da arte, mas não como
mais uma galeria.

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O grupo se apropriou de uma matéria de jornal sobre o Panorama, colocada ao lado do


anúncio de um show de rock, com um slogan que dizia “Qual a distância entre o anonimato
e o estrelato?”. Usou o acaso a seu favor e só a partir disso, que parecia fazer algum
sentido naquele contexto, decidiu aceitar o convite. Participou do livro-arte que
acompanhou a exposição usando o jornal, exatamente como o havia encontrado, e também
levou essa frase para a rua.
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Tentamos encontrar o ‘nosso’ lugar nessa metrópole, a


partir daquilo que vamos construindo e acreditando.
[...]

O próprio trabalho apresentado foi uma metáfora da crise. O


deslocamento da peça de jornal na qual a pergunta publicitária “Qual a
distância entre o anonimato e o estrelato?” está ao lado de uma re-
portagem sobre o Panorama, ao mesmo tempo em que ironizava a situ-
ação na qual se encontrava o grupo (que, de totalmente anônimo e
avesso às instituições, agora se encontrava em uma grande exposição
de arte), tentava mostrar a perspicácia necessária quando este aceitou
entrar em um embate de representações. A frase colocada na rua, por
sua vez, parecia insistir no anonimato.
Esse parece ser um caso típico da forma como a “crítica insti-
tucional” é vivida por essa geração de coletivos de arte. Se, por um lado,
a perda do anonimato estava sendo questionada; por outro, isso foi feito
a partir da participação na instituição. Se a experiência urbana e os vín-
culos com os movimentos sociais pareciam ser o lugar mais potente de
invenção e resistência, o contato com o mundo dos museus e centros
culturais estava também sendo considerado um lugar potente para a
ampliação das discussões. Naquele momento, essas variações de pers-
pectiva não foram compreendidas pelo grupo como mobilizadoras da
criação de uma postura singular e coerente: a discussão mais parecia
estar imersa em um mar de contradições. Isso fez com que as relações
grupais se esgarçassem a ponto do MICO se desfazer, o que se deu prin-
cipalmente porque a discussão sobre “estar ou não dentro da institu-
ição artística” fez com que a vitalidade da rua fosse substituída quase
por inteira por essa problemática.
Lendo alguns textos escritos por diferentes coletivos, inclusive

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o Contrafilé, interpretando o que aconteceu com o grupo MICO, a par-


tir da participação no Panorama, podemos ver que se coloca em pauta
a necessidade de prontidão e de um estado alerta do corpo em qual-
quer situação, inclusive na relação institucional, e não necessariamente
a negação da instituição. Nesse sentido, se a instituição é entendida
como um espaço de disputa, a crítica institucional deve ser a tentativa
de encontrar clareiras para justamente anunciar essa situação.
Texto do Contrafilé sobre o fim do MICO, escrito na ocasião
do 1o CIA (Congresso Internacional de Ar(r)ivismo)89:

Então eu penso que no nosso tempo nós devemos desen-


volver a nossa reflexão em torno deste problema do con-
tra, quer dizer, meditar até que ponto nós devemos ser
do contra, contra o quê devemos ser, para depois po-
dermos ser, também, a favor.90

No 1o CIA (Congresso Internacional de Ar(r)ivismo)


fomos questionadas - como integrantes do MICO - a res-
peito da participação deste grupo no Panorama da Arte
Brasileira 2001 e de seu consequente “desaparecimento”.

Até a participação no Panorama, não falávamos sobre as


situações, agíamos. Os trabalhos surgiam de tensões,
questionamentos comuns a todos os integrantes. A re-
flexão sobre a prática sempre servia para que déssemos
o próximo passo. A transformação estava na experiência
e não na discussão teórica mediada pela “Arte”.

Depois do Panorama, não só perdemos o pé da experiên-


cia como ela se empobreceu, porque ser contra ou a favor
do circuito da arte tornou-se (por termos nos inserido
nele) praticamente a única situação sobre a qual dis-
cutíamos. Ser contra e/ou a favor deixou de ser algo in-
trínseco e diluído no processo de trabalho, para ser
coisa separada e independente. Ficamos em xeque.

89. O CIA foi um momento de encontro de diversos coletivos de arte em outubro de 2003, para
discutir as suas práticas de “arte ativista” e confrontar/problematizar o termo “arrivista”, que
começou a ser usado de forma irônica pela mídia na época para nomear esse tipo de prática.
90. Cândido, Antonio. Tempo do Contra. In: Textos de Intervenção. São Paulo: Duas Cidades;
Ed. 34, 2002.
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1o CIA (Congresso Internacional de Ar(r)ivismo, realizado em São Paulo em 2003.

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Ora, então a reflexão é esta: se nós estamos entrando


efetivamente numa era de conservantismo, temos que ser
contra, temos que afiar as nossas armas, temos que,
culturalmente e politicamente, nos preparar para ser
contra esta tendência das classes dominantes, que vêm
forçar os controles de conservação. Nós temos que, a
cada momento, manter o contra como a possibilidade de
abertura democrática. Temos que manter o contra como
única possibilidade de propor a questão da democracia,
que é o caminho para a igualdade, que é o que realmente
interessa.91

Contra e a favor andam sempre juntos e é preciso muita


perspicácia para ter um pensamento e uma prática dia-
léticos. Ou seja, estudar cada momento e responder a
ele não a partir de preconceitos e parâmetros exterio-
res, mas do entendimento de sua densidade. Tendo a cla-
reza de que o sentido das ações é a conquista de uma
sociedade realmente democrática, o jogo não precisa ter
regras a priori, somente ser jogado.

“Ser do contra” deve ser, portanto, ao mesmo tempo, um


desafio e uma conquista. Assim, aparece como tensão,
algo que nos atormenta; e deve vir à tona não como dis-
curso, mas como realidade, um possível que nos orienta
em direção de um novo “a favor”.

Trechos da discussão entre artistas-ativistas paulistas – que


depois tornou-se um texto-diálogo na Revista Parachute no. 116
(2003), edição integralmente sobre São Paulo e que foi coordenada
por Suely Rolnik:

- Mas o museu não é em si um inimigo. Ele pode gerar,


consolidar, disponibilizar e fazer circular conheci-
mento, ao invés de ser apenas um depósito de entulho
cívico ou uma Disneylândia cultural. Inclusive, algu-

91. Id. Ibid.

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mas pessoas em museus e instituições culturais, públi-


cas ou privadas, têm pensado nesta direção e acho que
há uma aliança importante a ser feita com elas.
- A opção pela intervenção urbana não deve depender
exclusivamente desse tipo de aliança... Por mais que
se disponham a incorporar estas novas propostas de
ação, museus e galerias ainda estão muito distantes de
participar deste enfrentamento da violenta separação
das práticas artísticas da complexidade da vida co-
tidiana que temos aqui em São Paulo.
- Por isso, trata-se de uma negociação estratégica desse
tipo de arte com as várias instâncias administrativas
da cultura, para que elas se constituam como produ-
toras de conhecimento e de realidade. O desafio é exa-
tamente criar modos de traduzir formalmente essa
necessidade que surge do investimento no real, da re-
lação com o outro, do encontro com a cidade. Então, o
lugar da nossa ação não tem a ver com espaço público
no sentido de espaço aberto, exterior ao espaço fechado,
mas sim com vida pública que se produz tanto em es-
paços abertos como fechados, sejam eles estatais ou
privados.

Trechos do livro do GAC (2009), nos quais refletem sobre as re-


lações que estabeleceram ao longo do tempo e em diferentes ocasiões
e situações, com os convites para participar de projetos expositivos e de
interações com outros grupos mediadas por alguma instituição cultural
ou artística:

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A lo largo de estos años fuimos viendo cómo todas las


experiencias vividas en cuanto a las relaciones con
instituiciones nos fueron moldeando, reconfigurando
permanentemente en relación a los demás o, para de-
cirlo de manera más clara, nos fuimos ‘curtiendo’.A la
par de lo que experimentaban otros grupos semejantes
en BuenosAires [...] descubríamos las diferentes pos-
turas que existían y existen entre nosotras. Esta mu-
tabilidad que se describe en los textos precedentes, esta
movilidad de posiciones es la que nos permitió siem-
pre continuar, buscar permanentemente la vuelta. Re-
formular todo el tiempo los contenidos, los formatos,
los dispositivos, los destinatários: qué, cómo, para
quiénes. Un ejercicio de pensamiento y producción del
cual no siempre se sale ilesa [...] Y también saber
decir no, en algunas ocasiones. Una de las cosas que
más rescato de todo este proceso, o quizá porque lo viví
como una transformación positiva en el grupo, como
un aprendizaje, es el pasaje de una posición ‘dura’, ex-
cesivamente intransigente y juzgadora a una actitud
más permeable, menos prejuiciosa y moralizante con
respecto a la vinculación con instituciones. Profun-
dizando en esta transformación, podría decir que
hubo un momento en el cual nuestra identidad grupal
estaba muy impregnada de cierta visión ‘purista’
sobre el tema, como una espécie de desconfianza an-
ticipada, alimentada por algunos dogmas éticos de la
militancia más tradicional. Una especie de
reglamento moral no escrito, pero compartido,

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aunque más no sea un estereotipo de cómo debe com-


portarse, pronunciarse, y por qué opción debe optar
todo colectivo que se autodenomine militante. Esa mi-
rada se puso en crisis en el momento en que nos con-
vertimos en destinatárias de esa misma mirada
juzgadora. Viendólo desde el presente pienso que
quizás el núcleo de esa crisis se visibilizó más clara-
mente durante nuestra participación en la Bienal de
Venecia. A partir de ahí comenzó un proceso muy
largo, al tiempo que muy duro, de replanteamientos y
reposicionamientos. Digo duro porque nunca es pla-
centero reconocer actitudes tan condicionantes, tan
limitantes en una misma y en el interior del grupo al
que una pertenece. Y el trabajo que implica cambiar
esto, superar estas barreras y transformar concep-
ciones tan arraigadas no es algo que muchos grupos
hayan logrado [...] Cuántos grupos se disolvieron in-
tentando atravesar esa frontera? Cuántas experien-
cias interesantes en el campo de la producción
simbólica cayeron en la trampa mortal de la supuesta
‘cooptación’? Cuántos quedaron enredados en el juego
epistemológico ‘autonomia vs. institución’, como se
fuera más legítimo representar todo lo que se hace en
términos de una polaridad irreconciliable?

A acepção de crítica institucional aqui utilizada é a desenvolvida


por Brian Holmes, que entende que nessa geração a crítica se configura
como uma deriva extradisciplinar (Holmes, 2007) – na qual as práticas se
conectam com os movimentos e fatos sociais, mas não deixam de voltar

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Trabalho do GAC na 50a Bienal de Veneza, Veneza, Itália, 2003.

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Trabalho da Frente 3 de Fevereiro na exposição La Normalidad, Buenos Aires, Argentina,


2006.

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ciclicamente ao campo institucional, com o intuito de aprofundar e


politizar o grau do debate em tais espaços.

Como em práticas similares que se fazem hoje por toda parte, uma
das características das estratégias atuais é a deriva extraterritorial
– que, no caso do Brasil e de muitos países da América Latina, pri-
vilegia a conexão com práticas sociais e políticas (por exemplo, o
Movimento Sem Teto do Centro na cidade de São Paulo). Isso não
implica, no entanto, em desertar por completo da instituição artís-
tica, com a qual mantém-se uma relação despreconceituosa, num
movimento fluido de idas e vindas, que a cada volta tende a injetar
em seu corpo agonizante doses de força poética que promovem sua
desterritorialização crítica. Esta é uma outra característica de tais
práticas, que as diferencia das propostas marcadas pela crítica ins-
titucional dos anos 1960 e 70, como sugere Brian Holmes. O autor
qualifica tal deriva como ‘extradisciplinar’, para designar o que ele
circunscreve como a terceira geração da crítica institucional, de modo
a distingui-la das gerações precedentes: a primeira, dos anos 1960 e
70, que ele caracteriza como ‘anti-disciplinar’ e, a segunda, dos anos
80 que, segundo Holmes, leva o movimento da década anterior ao
seu limite, revelando o impasse ao qual a arte se vê confrontada ao
manter a crítica no interior da própria instituição artística. A
tendência extradisciplinar que se afirma nos anos 1990 é uma res-
posta a este impasse, bem como as questões colocadas no contexto do
neoliberalismo, cuja hegemonia internacional coincide com o surgi-
mento desta geração de artistas (Rolnik, 2007).

Ricardo Basbaum, em texto escrito para o catálogo do


“Panorama da Arte Brasileira 2001” (p. 35-40), apesar de não falar nos

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Contrafilé e Bijari no Seminário Arte, Estética e Política Urbana: Pensamentos e Práticas


Artísticas e Sociais no Espaço Público da América Latina, no Centro Cultural da Espanha,
Santiago, Chile, 2009.

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mesmos termos que Holmes, evoca a perda dos contornos claros do


que pode ou não ser uma obra de arte a partir do pós-1945, asso-
ciando o “ser artista” com um trânsito, um “certo deslocamento
através das coisas combinado com a produção de um espaço parti-
cular de problemas”; portanto, ser artista não seria para ele uma iden-
tidade com limites rígidos e absolutos. Essa concepção de Basbaum
sugere que a dinâmica que forma o “ser artista” envolve uma deter-
minada configuração do sensível na qual certas situações, objetos e
eventos são formulados, “deflagrando toda uma economia própria
deste conjunto de operações”.
Para podermos aprofundar a relação aqui sugerida entre a
“deriva extraterritorial” e o “ser artista” como “um trânsito delimita-
dor de uma certa configuração de problemas”, lanço mão do conceito
de performance, tal como apresentado pela antropóloga Florencia Fer-
rari (2010). Passando por autores como Victor Turner, que relaciona
a performance com o ritual e com a restauração de situações de con-
flito para a constituição da comunalidade; e Judith Butler que, nos es-
tudos de gênero, entende que alguns gêneros só existem na medida
em que são performados, a autora constrói o argumento de que a
“calonidade” (o estudo é sobre ciganos Calon) não é vivida ou enten-
dida como uma identidade fixa ou uma essência, mas como um
eterno processo de “fazer-se calon”, um agenciamento que se con-
figura a partir de certos “atos afetivos” que constituem a realidade.
Sendo assim, para Ferrari, “a ideia mesma de ‘essência calon’ inexiste,
na medida em que a calonidade é entendida como um processo de
‘fazer-se’, de ‘fazer aparecer’. A performance das emoções é, nesse
sentido, constitutiva do modo de ‘fazer-se calon’ que deve ser
mostrado, compartilhado” (Ferrari, 2010, p.174-175).
A performance compreendida como um processo de “fazer-se” a

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cada momento, a partir da delimitação de certos modos de agir, está


sendo aqui utilizada como referência à forma como a “crítica” é vivida
e se constitui nessa geração. Acredito que a falta de lugares e referên-
cias identitárias ou territoriais fixas do que seria uma prática ou um
artista crítico, leva ao medo de deixar-se sucumbir no interior da insti-
tuição em um processo de “indiferenciação”. A “deriva extraterritorial”
é então acionada como uma estratégia fundamental para o restabele-
cimento de uma “linha de fuga”, na qual acontece e toma corpo o
processo de “(re)fazer-se” crítico, de mobilizar-se e mobilizar o espaço
de modo a restaurar constantemente as situações de conflito. É uma
estratégia para relembrar o corpo, a todo instante, o “estado do mundo”;
ou seja, as questões sociais, políticas, econômicas e culturais (entendi-
das macro e micropoliticamente) urgentes de serem acionadas e pen-
sadas, estando dentro ou fora da instituição. A prática crítica para essa
geração pode ser compreendida como real, portanto, apenas na medida
em que é performada; em que se torna uma prática mais performativa
do que reprodutiva, o que significa que não existe um espaço e certas
concepções pré-determinadas para distingui-la, mas que ela pode ser
ou não deflagrada a cada momento.
Marcelo Expósito, pensador espanhol que teve contato, em
diferentes situações, com os coletivos de São Paulo e dialoga com co-
letivos do mundo todo, em seu texto “Entrar e salir de la instituición
– autovaloración y montaje en el arte contemporáneo” (2006),
demonstra essa necessidade de compreensão do que significa a crítica
na atualidade:

Desde hace ya algunos años ha habido una continuidad de proyectos


que se plantean una relación ni cínica ni instrumental con la insti-
tución, con el fin de generar prácticas críticas en su interior buscando

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su puesta en valor simultáneamente ahí y en otro lugar y momento,


bajo otras formas. Se trataría de ‘entrar’ y ‘salir’ de la institución
como un continuo en el que la puesta en forma institucional no se
evite, e incluso se contemple, sin ser el objetivo central. Producir redes
y flujos que no respetan demarcaciones previas y constituyen a cam-
bio sus formas propias de esfera pública - un concepto que segura-
mente comienza a quedársenos algo estático - es con seguridad una de
las invenciones más importantes de la creatividad política de este
nuevo ciclo.

Me parece que são justamente essas redes e fluxos, que não


respeitam demarcações prévias, essa forma de subjetivação que não en-
tende o “ser crítico” como uma identidade ou a identificação com um
lugar pré-definido e fixo, mas como um ato de “(re)fazer-se constante-
mente”, o que cria as condições para que a potência do que é mostrado
e compartilhado, portanto performatizado enquanto crítica social,
aconteça justamente nesse ponto de tensão: a ação parte necessaria-
mente de uma crise de sentido (daquilo que está sendo experienciado)
que abre uma lacuna a partir da qual o projeto de espaço a ser cons-
truído fica em evidente negociação. Por sua vez, é essa negociação
constante do espaço, gerada pela experiência singular e oblíqua do
mesmo, que coloca em xeque as “identidades inamovibles que respon-
den a modos de vivir que no cuestionan el lugar que se les ha otorgado
en el mapa del poder” (GAC, 2009, p. 42).
O que esse tipo de estratégia artístico-urbana-crítica tenta
fazer, é justamente criar a imagem do instante no qual essa ruptura
crítica se espacializa de diferentes formas, não aceitando uma ideia pré-
concebida nem do que seria “a crítica”, nem do que seria, a priori, o
“certo e o errado” como atitude individual ou coletiva em relação à ex-

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periência e sua interpretação. Para definir essa recusa em estabelecer


uma posição que anteceda a experiência, Expósito utiliza o conceito de
espaço heterotópico92, de Foucault:

Parece-me muito oportuno que comece a reluzir o conceito de espaço


heterotópico de Foucault.Acredito que chegamos a um ponto em que,
a propósito dos processos políticos dentro/fora dos mecanismos insti-
tuídos, é conveniente discutir sobre a dicotomia dentro/fora das
instituições culturais. De que maneira podemos defender processos
políticos transbordantes e um tipo de produção política excedente
que fortaleça áreas onde seja possível uma gestão autônoma da ex-
periência social, evitando cair em uma simplificada tendência a ‘tra-
balhar fora das instituições’? Ou, como podemos ultrapassar posições
antiinstitucionais primárias e apriorísticas, ideológicas? O espaço
heterotópico foucaultiano não é dentro nem fora, é um outro espaço;
e penso que se trata de produzir espaços de autonomia que sejam
outros, operando em uma topografia que nos seja própria, que não
respeite as demarcações nem as fronteiras entre um dentro e um
fora que impõe os mapas estabelecidos (Expósito, 2006, p. 355).

A possibilidade de espacializar, a cada momento, a negociação


do espaço, ou seja, de criar formas de tornar visíveis e legíveis os proces-
sos compartilhados de produção e invenção concreta do social em sua
multiplicidade e variação, está no desejo e na crença contidos na per-
formatização da crítica. Por isso, o corpo é central: é nele e através dele
que a experiência se torna um “agir” reconhecível e legítimo, fazendo o
desejo circular.

92. Michel Foucault, no texto da conferência proferida em 1967 “De Outros Espaços”, elabora
o conceito de heterotopia para mostrar que “o espaço do outro” foi esquecido pela cultura
ocidental. Grande parte do empreendimento filosófico de Foucault foi resgatar os espaços
do outro, os quais o exercício do poder pela racionalidade ocidental buscou suprimir pela
busca do “espaço do mesmo”. Por isso, estudou espaços onde se exerciam relações de
poder com vistas a objetivação do mesmo, como: as prisões, a escola, o corpo, a loucura, a
sexualidade, etc. Segundo o autor: “A época atual seria talvez de preferência a época do
espaço. [...] Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos
como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que
religa pontos e que entrecruza sua trama”.
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Jogo do Absurdo Público, Contrafilé e PI, entre 2005 e 2011. Imagens de trabalhos realizados
pelo Contrafilé e pelo PI com comunidades ou em cursos livres, nos quais a ideia de “absurdo
público” deu origem a uma série de experimentações. Campinas, 2006.

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O “Jogo do Absurdo Público” convocava uma comunidade ou grupo a criar um absurdo


e vivê-lo no espaço urbano como campo de experimentação, como forma de restaurar uma
certa energia do corpo em confronto com a cidade. Isso era algo que os grupos viviam nas
intervenções urbanas e que sentiam que restaurava uma situação na qual todos viviam um
conflito de forma compartilhada, o que levava à experiência do comum. Era, de certa forma,
uma tradução da performatização crítica que exerciam constantemente, seja dentro ou fora
das instituições, e um desejo, enquanto educadores, de que outras pessoas pudessem viver
isso com eles. Campinas, 2006.

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CAPÍTULO IV

Eles não podem partir sem nós

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Instalação dos ponteiros de relógio em Rotterdam e a intervenção já realizada, Contrafilé, 2003.

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Local e Global: escala 1:1 em movimento

Contrafilé >>> ROTTERDAM93

Em que medida é possível realizar uma intervenção em


espaço estrangeiro?

Olhar para o espaço com a noção de lugar é ponto fun-


damental do trabalho, porque é no lugar que encon-
tramos material para a ação e para a sua própria
transformação.

O lugar é a porção do espaço apropriável para a vida


– apropriada através do corpo – dos sentidos – dos
passos de seus moradores, é o bairro, é a praça, é a
rua, e nesse sentido poderíamos afirmar que não seria
jamais a metrópole ou mesmo a cidade latu sensu a
menos que seja uma pequena vila ou cidade – vivida /
conhecida / reconhecida em todos os cantos.94

A intervenção em um lugar requer a criação de um diá-


logo, situação que compreende a relação entre o con-
junto de experiências prévias do artista e os
elementos com potencial de ruptura que ele identifica
no contexto – elementos que propõem um horizonte pos-
sível, um estranhamento revelador das contradições
inerentes ao lugar, as quais evidenciam o artista, e
qualquer sujeito, como agentes fundamentais da cons-
trução deste espaço.

Para tanto, o artista deve levar consigo nada além de


seu corpo. O olhar atento e aberto, que se deixa atra-
vessar pelo lugar, possibilita a percepção do que,
dessa interação, se apresenta como tensão. A tensão
identificada, passa a ser a problemática para a qual
o artista criará uma proposição. Assim, ela sugere a
intervenção.

93. Texto reflexivo escrito pelo Contrafilé ao voltar da Holanda, depois de ter participado do
projeto Gear Inside (ver logo abaixo). Arquivo pessoal do grupo.
94. Carlos, Ana Fanni Alessandri. O Lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.

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No primeiro contato com Rotterdam encontramos uma so-


ciedade extremamente organizada, que apresentava,
oficialmente, diversas possibilidades de relação com
o espaço, o que, nesse momento, parecia levar a uma
vida mais democrática e livre.

Durante o diálogo com o lugar, tudo o que pensávamos


como possibilidade de ação, de alteração dos elemen-
tos de seu espaço físico, esbarrava nos limites de
seus mecanismos de controle. Aquela organização que
se mostrava libertadora revelou-se opressora.

Estávamos chegando de São Paulo, onde vivemos a cons-


tante invenção de possibilidades na sua construção -
que pode ser compreendida como liberdade, mas que
acreditamos servir, também, como forma de dominação.

O que é controle e o que é liberdade, afinal?

Se existe uma oposição entre o que pode significar li-


berdade e controle de acordo com os diferentes pon-
tos de vista, é porque algo liga todos nós e faz com
que seja possível atuar em país estrangeiro.

Partindo dessa contradição, interviemos. Alteramos os


relógios das estações de trem e das vias principais
da cidade, acrescentando a eles um segundo ponteiro
de hora. Ao dificultarmos a leitura de seus horários,
propusemos a desordem temporal do cotidiano daquele
lugar. Percebemos que a mais sutil interferência nos
referenciais de comunicação de Rotterdam poderia cau-
sar um estranhamento revelador da sua própria condi-
ção.

Convidado, pouco tempo depois do “Festival Mídia Tática”,


para participar do projeto “Gear Inside”95, na Holanda, o Contrafilé
aos poucos pôde ir aprofundando o seu entendimento desse processo
de investigar um determinado contexto e responder às tensões pre-

95. Com curadoria de Daniela Labra, o projeto “Gear Inside” tinha como foco residências
artísticas curtas para pesquisas sobre a urbe e discussões sobre diferentes modos de
compreensão e utilização das instâncias públicas. Contou com o apoio do Centro de Arte
Witte de With e da Galeria Mirta Demare. Rotterdam, Holanda, 2003.

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sentes nele. No texto escrito pelo grupo, como forma de refletir


sobre a experiência, percebe-se um componente muitas vezes pre-
sente nas investigações-ações propostas pelos coletivos analisados e
que complexifica ainda mais a atuação a partir da escala 1:1: a relação
entre a dimensão local e global da luta.
A intervenção do Contrafilé foi sugerida por um holandês
que acabou ficando amigo do grupo. Ele explicou que na Holanda
tudo era tão controlado96 e as pessoas eram, em geral, tão submissas
ao controle que, se os relógios oficiais da cidade fossem mudados
para uma hora absurda, certamente pensariam que eles estavam cer-
tos, e não elas. Esse mesmo “informante” e outros com os quais o
grupo conversou, também explicaram que lá qualquer ideia transfor-
madora é logo cooptada pelo Estado como, por exemplo, o emprés-
timo de bicicletas: você usa uma bicicleta, deixa ela em um
determinado ponto da ciclovia, e outros podem pegá-la, assim como
você pode pegar outra, e assim por diante; modelo que antes era
vivido de forma orgânica e informal. Nessas conversas com diversos
holandeses, o grupo percebeu que a relação direta entre “cooptação
de ideias” e “controle”, confunde as pessoas, a ponto de deixarem de
acreditar que aquilo que sentem, fazem e inventam faz parte delas,
para acreditar que lhes foi “dado, cedido, designado, oferecido,
doado, atribuído” por um “poder abstrato”, principalmente pelo
poder do Estado.
O contato com aquela realidade e o esboço de um pensa-
mento crítico que tentava entender como uma sociedade aparente-
mente tão “perfeita e ordenada”, fazia com que as pessoas ficassem
tão perdidas, fez com que o Contrafilé trouxesse de volta para casa
a apreensão de que “a realidade” é uma camada que precisa ser cons-
tantemente desmistificada a partir daquilo que o corpo sente como

96. O grupo descobriu algumas curiosidades em relação a isso: que o programa de televisão
“Big Brother” surgiu lá e que as primeiras cidades totalmente “vigiadas” por câmeras são
holandesas.

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tensão produtiva; e de que é possível intervir a partir desse princí-


pio, mesmo nas situações aparentemente mais “distantes” e mais ad-
versas. Vejo nessa capacidade de desmistificação, o próprio exercício
duplo de familiaridade-estranhamento. Esse exercício enquanto ato
de aproximar-se e afastar-se, tendo o corpo e seus atravessamentos
como referenciais, possibilita, por sua vez, que a experiência do comum
se concretize.

Estranhar o próximo, aproximar o distante

A conexão profunda com o lugar, o “pé na experiência”, é


compreendida pelos coletivos como pré-requisitos fundamentais, na
medida em que permitem uma criação que expande o espaço – seja
ele mental ou material – para pensar e atuar sobre um determinado
aspecto ou situação da vida social. Por que, então, atuar em “espaço
estrangeiro” (entendendo estrangeiro não como um lugar que não é
o seu de nascimento, mas como aquele com o qual não existe uma
proximidade a priori)? O exercício cotidiano que leva ao tipo de sub-
jetividade política que estamos tentando captar é justamente o de
reafirmar para si e para o mundo, a cada momento, o estranhamento
em relação ao “próprio lugar”, assim como a proximidade com o
“lugar outro”. É essa espécie de treinamento corpóreo-sensível, o que
leva a elaborar um tipo de comunicação urbana que, como diz o
antropológo Massimo Canevacci, tem como condição:

[…] a de querer perder-se, de ter prazer nisso, de aceitar ser es-


trangeiro, desenraizado e isolado, antes de poder reconstruir uma
nova identidade metropolitana. O desenraizamento e o estra-
nhamento são momentos fundamentais que – mais sofridos do que

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predeterminados – permitem atingir novas possibilidades cogni-


tivas, através de um resultado “sujo”, de misturas imprevisíveis
e casuais, entre níveis racionais, perceptivos e emotivos, como uni-
camente a forma-cidade sabe conjugar (Canevacci, 2004, p.15).

Walter Benjamin desenvolve bem essa ideia no ensaio “O


Flâneur”: a cidade seria um labirinto e o flâneur o sujeito que sai de
casa, todos os dias, como se viesse de longe –, tentando descobrir o
mundo no qual vive, olhando para tudo como se jamais tivesse visto,
percebendo a humanidade “ao mesmo tempo presente e ignorada”
(Benjamin, 1989, p. 85-236). Para Roberto Da Matta, esse “perder-se
na cidade” leva a “estranhar as regras sociais familiares e assim des-
cobrir (ou recolocar, como fazem as crianças quando perguntam os
‘porquês’) o exótico no que está petrificado dentro de nós pela reifi-
cação e pelos mecanismos de legitimação” (1978, p. 23-35).

A viagem é como a do xamã: um movimento drástico onde, para-


doxalmente, não se sai do lugar. E, de fato, as viagens xamanísti-
cas são viagens verticais (para dentro ou para cima) muito mais
do que horizontais, como acontece na viagem clássica dos heróis
homéricos. E não é por outra razão que todos aqueles que realizam
tais viagens para dentro e para cima são xamãs, curadores, pro-
fetas, santos e loucos; ou seja, os que de algum modo se dispuseram
a chegar ao fundo do poço de sua própria cultura. Como conse-
quência [isso] conduz a um encontro com o outro e a um estra-
nhamento (id. ibid., p. 23-35).

Portanto, a atuação em espaço estrangeiro no tipo de trabalho


aqui analisado, só faz sentido se partirmos dessa compreensão de que,

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se o próximo é sempre matéria-prima de um estranhamento que li-


berta, o distante pode então ser matéria-prima de uma familiaridade
que amplia. É provavelmente por uma crença nessa postura que o
movimento cultural, chamado “movimento de movimentos”97 por al-
guns autores98, desembocou em inúmeros deslocamentos (inclusive
dentro da própria cidade e, por que não dizer, de si mesmo), parce-
rias e na constituição de um corpo comum coletivo cujo princípio
emerge da diferença, o que dá força a essa geração de lutas. Toni
Negri e Michael Hardt, em seu livro “Multidão: Guerra e Democra-
cia na Era do Império”, descrevem esse movimento simultâneo no
qual a subjetivação (distanciamento do outro e aproximação de si) e
a produção do comum (distanciamento de si e aproximação com o
outro) evidencia a forma de organização da multidão em sua busca de
uma alternativa em relação ao “corpo político global do capital”:

Nosso ponto de partida é o reconhecimento de que a produção de


subjetividade e a produção do comum podem formar, juntas, uma
relação simbiótica em forma de espiral. Em outras palavras, a
subjetividade é produzida através da cooperação e da comuni-
cação e, por sua vez, esta subjetividade produzida vem a produzir
novas formas de cooperação e comunicação, que por sua vez pro-
duzem nova subjetividade, e assim por diante. Nessa espiral, cada
movimento sucessivo de produção de subjetividade para produção
do comum é uma inovação que resulta numa realidade mais rica.
Talvez devamos identificar nesse processo de metamorfose e cons-
tituição, a formação do corpo da multidão, um tipo fundamen-
talmente novo de corpo, um corpo comum, um corpo democrático
(Hardt e Negri, 2005, p. 247-248).

97. Justamente porque a dimensão “familiar”, a “comunidade”, se dá a partir da diferença


e da multiplicidade. Não é um movimento em bloco, com uma ideologia, palavras de ordem,
etc., como na lógica dos partidos e movimentos do século XX. Ao contrário, o que dá sentido
ao “movimento de movimentos”, é aprender com a riqueza das diversas estratégias locais
inventadas no embate com o capitalismo contemporâneo, a desumanização do próprio
homem, as desigualdades sociais, etc.
98. Como, por exemplo, Brian Holmes e Marcelo Expósito, amplamente citados nesta
dissertação.
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O desenvolvimento de saberes locais e singulares, por um


lado; e a criação de dispositivos para que as trocas ocorram a partir
de uma “escala referencial comum”, por outro, torna visível o pêndulo
entre o local e o deslocado operando em uma territorialização e dester-
ritorialização constante. Uma das questões mais instigantes das práti-
cas artísticas situadas é justamente o desenvolvimento de uma
espécie de saber não excludente que parte de situações reais, nas
quais a produção coletiva e compartilhada de dobras, que singula-
rizam e marcam a diferença no espaço social, é o que efetivamente pro-
duz a experiência do comum.

Um agir que conecta

A própria visão de carreira está em cheque. Quer dizer,


tal como foi visto até aqui, o que era uma carreira de um
artista, em que ela se sustentava, em que ela se apoiava,
como ela se desenvolvia, enfim, os vários processos. A im-
portância do disco nisto, a importância dos meios de co-
municação nisto, da televisão, de tudo isso, a importância
do show business de um modo geral, enfim, tinham estes
clássicos, estas entidades clássicas da produção cultural,
[...] era nisto que se sustentava a ideia, o conceito de uma
carreira propriamente. Hoje não é só. Não é mais propri-
amente nessas colunas que uma carreira se sustenta. Por-
tanto, não é mais propriamente uma carreira como era
visto antes. É uma série de outras coisas. É um conjunto
de fragmentos de várias coisas que vão constituindo o agir
do artista (Gilberto Gil).

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Não à toa, inicio esse último movimento do trabalho com


uma citação de Gilberto Gil a respeito da figura do artista mais como
um “agir” do que como uma “entidade clássica”. Assim como o fluxo
de que fala Basbaum, esse agir do qual fala Gil, que articula frag-
mentos na diversidade, reverberou nos princípios e ações desen-
volvidos pelo Ministério da Cultura de 2003 a 2010, quando Gil era
o titular da pasta. Apesar de ser necessária uma análise mais apro-
fundada sobre as relações existentes entre as práticas discutidas neste
trabalho e o Ministério da Cultura, no período mencionado, o que
não farei aqui, é certo que houve uma influência mútua entre eles.
Na década em que se difundiram práticas coletivas que
repensam noções de identidade e autoria, e criam novas mídias e for-
mas de inscrição e circulação de seus trabalhos em rede, a esfera es-
tatal, ao menos no que diz respeito à cultura, não só olhou para o que
estava acontecendo e aprendeu com isso, como criou dispositivos no
intuito de fomentar ainda mais esses debates e movimentos. Esses
dispositivos mencionados, na forma de editais públicos de vários
tipos (para repasse de recursos, residências artísticas, interações es-
téticas entre artistas e comunidades, criação de redes, promoção de
seminários, etc.), tiveram um eixo condutor transversal que perpas-
sava as ações do Ministério e que pode ser percebido na imagem já
mencionada e presente na fala de Gil, quando diz que a “utopia digital
brasileira” estaria na compreensão de que “a cabaça do berimbau tem
a ressonância da antena parabólica”99. Muitos poderiam ser os exem-
plos citados dos encontros que se tornaram possíveis a partir desse
princípio de transversalidade espaço-temporal operando por trás de
toda uma política pública de cultura.
O mais relevante a mencionar, no entanto, é que no período
de 2001 a 2010, uma efervescência cultural originada de conexões

99. Ver capítulo 1.

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entre realidades diversas tornou-se possível, por muitos motivos,


sendo o apresentado acima um deles. Esse processo desembocou em
práticas e reflexões que acionavam os “espaços do comum” na con-
temporaneidade, não apenas como resultado da “criatividade cole-
tiva”, mas também de um processo de qualificação dessa
“coletividade” como “atualização de tudo aquilo que somos”. Como
diz o Colectivo Situaciones:

A comunidade merece então uma nova atenção. Já não como ex-


centricidade de um passado que resiste a morrer, mas sim como
uma dinâmica de associação e produção comum com muita vigên-
cia política e cheia de ambivalências... Uma comunidade perce-
bida sem apriorismos nem folclorismos (que obstacularizariam a
compreensão dos modos através dos quais o comunitário se rein-
venta). A comunidade é movimento, portanto, um esforço por a-
tualizar o comum, e o comum é sempre o não absolutamente
realizável, é uma universalidade aberta, não aferível em sua
plenitude. A comunidade é sempre, por isso, um devir, uma ten-
tativa, um avanço (Colectivo Situaciones, 2006, p. 213).

Quando temos a oportunidade de entrar em contato com, ao


menos, um conjunto de discussões, imagens, textos, das práticas aqui
apresentadas, o que vemos é a formação de um “território existen-
cial”100 no qual cada fragmento carrega uma sobreposição inusitada
de tempos e espaços, conectando-os e “explodindo”, assim, o espaço
liso do presente. Mais do que discutir as práticas como “arte”, inte-
ressa, portanto, entender esse agir que conecta e o que acontece, a par-

100. Segundo Félix Guattari e Suely Rolnik, “Os seres existentes se organizam segundo
territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O
território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio
do qual um sujeito se sente ʻem casaʼ. O território é sinônimo de apropriação, de
subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações
nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (Guattari
e Rolnik, 2005, p. 388).
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tir disso, com a questão da “autoria”. O GAC desenvolve essa questão


em seu livro, no capítulo denominado “Metodologias” (2009, p. 182):

La Cuestión del Autor


• Sobre la idea de propiedad intelectual vs. creación
colectiva y conocimiento compartido.
• El carácter anônimo de determinadas producciones.
• La autoría de una determinada acción-interven-
ción o imagen se reconfigura según el contexto y
según los agentes involucrados en construcción. No
hay un autor, sino múltiples identidades enunciado-
ras según cada caso.
• La no-firma como estímulo para la reapropriación.
[...]

As implicações do entendimento que o GAC tem de auto-


ria, parecem claras em sua reflexão: a potência circulatória do anún-
cio acontece, sobretudo, em decorrência da insurgência de um corpo
que se faz anônimo para tornar-se público e que estimula, assim, o
aparecimento da multiplicidade. Vera Pallamin, em ensaio no qual
analisa o trabalho da Frente 3 de Fevereiro, constrói a imagem de
uma coletividade organizada, inscrevendo uma outra “espessura” no
social. Segundo ela, a bandeira com a frase:

‘Zumbi Somos Nós’101, situada no estádio, mostra-se a partir das


mãos de um corpo coletivo, de seus movimentos mutuamente com-
preensivos e coordenados que a estendem em posição de evidência.
Ela se apóia nesta vontade. Assim posta, ela eclode, de modo si-
lencioso e no meio do alvoroço do entretenimento, uma espessura

101. “Zumbi Somos Nós” é a frase estampada em uma das bandeiras feitas pela Frente 3
de Fevereiro para intervir em espaços da cidade, evidenciando de forma artística os conflitos
gerados pelo racismo presente na sociedade brasileira.

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de ordem ética e política, sob incontornável contraste com aquela


atmosfera geral de alheamento (Pallamin, 2007, p. 192).

O futebol é uma situação exemplar e potente, em que se


expressa a ideia de igualdade social e racial e, ao
mesmo tempo, se revelam os preconceitos mais ar-
raigados da cultura ocidental e a naturalidade com
que aceitamos, reproduzimos e perpetuamos estereóti-
pos racistas (Frente 3 de Fevereiro, 2007, p. 65)102.
Em fevereiro de 2006 participamos de uma ação de
resistência organizada pelo Movimento dos Sem-
Teto do Centro (MSTC), em conjunto com grupos
artísticos de São Paulo. Esta ação apoiava a ocu-
pação do edifício Prestes Maia, com mais de 2400
famílias, a qual estava com sua reintegração de posse
marcada. Neste contexto, instalamos a bandeira
Zumbi Somos Nós na fachada do edifício (Frente 3
de Fevereiro, 2007, p. 107).

A “espessura que eclode”, mencionada pela autora, parece ter


a ver com a inscrição de uma imagem capaz de espacializar as trans-
versalidades que nos constituem, já que “No interior da sociedade e
no interior de cada um agita-se a efervescência dessa coexistência de
modos, mundos, relações, concepções, que não são contemporâneos”
(Martins, 1996, p. 26).

[...] quando inserida no topo do edifício, segundo uma duração


mais longa [do que no estádio], ‘Zumbi Somos Nós’ torna-se
um ‘selo’ a positivar a verificação em curso do princípio da igual-

102. Fragmento da peça Futebol, criada em 2005 pela Frente 3 de Fevereiro, baseada em
entrevista com Noel Carvalho.

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dade, sendo operado por aqueles grupos sociais. Estampada na


paisagem urbana, seu empenho incluiria o de ser um amplificador
das ações ali sendo travadas por reconhecimento moral e subsí-
dios públicos. Nestes termos, vê-se como os modos de sua espacia-
lização e entrecruzamentos sensíveis alteram sua tessitura
político-estética (Pallamin, 2007, p. 192).

A autora se refere acima ao edifício Prestes Maia situado no


centro de São Paulo e ocupado em 2002 por integrantes do Movi-
mento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Abandonado há cerca de
doze anos, passou a abrigar 468 famílias. Com o intuito de apoiar a
luta para conversão definitiva do edifício em habitação social lega-
lizada, vários coletivos artísticos passaram a criar intervenções sim-
bólicas que, de alguma forma, trouxessem à tona o caráter “residual”
presente naquela situação, ou seja, toda a dimensão inconclusiva,
inacabada, o descompasso de tempos presente em nossa história so-
cial, cultural e política.

[…] Enfim, tudo depende do nosso olhar e dos gestos


individuais ou coletivos de todos. Zumbi Somos Nós,
todos os que procuram converter a violência em uma
resistência simbólica em prol da coletividade, rein-
ventando as formas de convivência na nossa prática
social (Frente 3 de Fevereiro, 2007, p. 11).

A bandeira da Frente 3 de Fevereiro, colocada no edifício


Prestes Maia, no final de 2006, traz à tona essa convivência de tem-
pos em um tempo-espaço muito preciso, tornando impossível igno-
rar o conflito ali existente. Instalando-a exatamente na noite anterior

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Bandeiras da Frente 3 de Fevereiro em diferentes estádios e na ocupação Prestes Maia


(2004-2006). As imagens produzidas pela Frente 3 de Fevereiro trazem, em geral, camadas
sobrepostas e em disputa.

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à iminente ordem de despejo dos moradores (que depois se mostrou


apenas mais uma ameaça), a Frente sabia que, além de inscrever o
gesto estético-político na própria cidade, seria possível inscrevê-lo
na grande mídia, o que de fato ocorreu. Em diversos telejornais, em
cadeia nacional, excedendo qualquer possibilidade de redução pelo
discurso oficial, estava ali a bandeira com a sua mensagem, conden-
sando como estratégia e como conteúdo muitas das discussões, re-
flexões, dúvidas, idas e vindas que tiveram – e ainda têm – como foco
a relação entre os coletivos artísticos e os movimentos sociais. A
perspectiva étnica da “ancestralidade”, que a reduziria a tempos e es-
paços específicos, folclóricos e distantes, dá lugar a uma situação
muito mais complexa, na qual não é a identificação somente com
“Zumbi”, e muito menos com um “Zumbi” estático, o que está em
jogo, mas o auto-reconhecimento como “quilombola” e, assim, com
todo um “território simbólico de existência”.
No projeto “Quilombo Brasil”103, desenvolvido pelo coletivo
Política do Impossível (PI) em parceria com a Casa de Cultura
Tainã104 entre 2009 e 2010, também vemos a tentativa de construir
uma compreensão aberta, mais uma indagação do que uma resposta,
a respeito de “o que é ser quilombola hoje”. Cabe ressaltar que dois
integrantes da Frente 3 de Fevereiro fazem parte do PI e certamente
isso influenciou e provocou o grupo a levar adiante essa “investi-
gação-ação”. Abaixo, em trechos do projeto, textos reflexivos escritos
pelos integrantes do PI e conversas travadas entre o coletivo, quilom-
bolas rurais e urbanos e integrantes da Frente, vemos essa comple-
xidade aparecendo.

103. “Quilombo Brasil” (2009-2010) foi um projeto apoiado pelo Prêmio Interações Estéticas:
Residências Artísticas em Pontos de Cultura (Minc/Funarte) que possibilitou a realização de
seis viagens a diferentes regiões que concentram quilombos do Brasil.
104. O coletivo Política do Impossível trabalha com a Casa de Cultura Tainã desde o início de
2005 e, em parceria com os seus referentes, educadores e gestores, já idealizou e executou
diversas ações: festas comunitárias; intervenções urbanas em espaços ligados à memória
da escravidão - visando questionar o esquecimento da memória reiterado na sociedade
brasileira; rodas de debate sobre intervenção urbana e a possibilidade de atualizar as
estratégias do movimento negro através da arte; entrevistas com referentes da Casa de
Cultura Tainã e da luta negra. Em todos estes momentos, utilizou diversas linguagens para
dar forma aos desejos e potências comuns aos dois grupos.
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No projeto pretendemos expandir e aprofundar es-


paços de discussão e ação sobre a história e a cultura
brasileira através de deslocamentos em diferentes co-
munidades que participam da luta e identidade
quilombola na Rede Mocambos105. Que situações hoje
constituem o marco de luta social e política que
ontem foram corporificadas nos quilombos? Qual a
continuidade desta luta? Quais os seus espaços de in-
tervenção e criação simbólica? Estas são algumas
das questões levantadas pelo projeto (PI)106.
Este é um trabalho que tem como foco contribuir
para o embate simbólico fundamental em um
processo contemporâneo de auto-representação.
Acreditamos ser nesta dimensão simbólica de um
território possível que diversas configurações de
lutas e vidas podem se encontrar e se identificar. E é
assim, através do encontro entre a potência da arte e
a da política, que toma corpo a nossa busca por com-
preender o que é ser quilombola hoje (PI)107.
As expressões da cultura popular praticadas em es-
paços urbanos que se auto-denominam quilombos,
são vividas a partir de uma referência tanto espiri-
tual quanto política. Na ocupação popular Zumbi
dos Palmares, em São Luís do Maranhão, encon-
tramos ruas batizadas coletivamente com nomes de

105. “[A Rede Mocambos] É uma rede de negros e negras de âmbito nacional. Conectando
através das tecnologias da informação e comunicação comunidades quilombolas rurais e
urbanas. Para isso buscamos parcerias de diversos segmentos para que de forma
colaborativa e coletiva possamos reunir diferentes programas, projetos e ações voltados
para o desenvolvimento humano, social, econômico, cultural, ambiental e preservação do
patrimônio histórico e memória dessas comunidades.” Fonte:
http://oca.idbrasil.org.br/wiki2/index.php/Rede_Mocambos.
106. Trecho do projeto que resultou no trabalho “Quilombo Brasil” do coletivo Política do
Impossível em parceria com a Casa de Cultura Tainã e Rede Mocambos.
107. Trecho de texto reflexivo escrito pelo coletivo Política do Impossível sobre experiência
desencadeada pelo projeto “Quilombo Brasil”, 2010. Acervo pessoal.
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Projeto “Quilombo Brasil”, PI, 2009-2010

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lideranças negras (Rua Luiza Mahin, Av. Negro


Cosme etc.). Assim, cotidianamente o bairro con-
voca uma tradição de resistência a valores e proces-
sos dominantes que ainda hoje confinam muitas das
práticas sociais numa ambiguidade e até mesmo em
uma hipocrisia quanto a sua própria cultura. Por
outro lado, como disse Cida, liderança do quilombo
rural de Conceição das Crioulas, ‘queremos uma edu-
cação que aproxime nossas crianças delas mesmas e
de sua cultura, não uma educação que as distancie de
si mesmas.’ Hoje, lideranças jovens como Cida
[Maria Aparecida Mendes] e seu irmão Antônio
[Mendes], estão interessados em re-aprender sobre
os terreiros, os orixás, a religiosidade africana en-
quanto em Olinda, entre becos, ações de crimina-
lização e racismo policial, a comunidade do Coco de
Umbigada se depara com dilemas conhecidos por
quem vive em grandes cidades, especialmente por
aqueles que vivem de expressões culturais urbanas de
resistência: autonomia x dependência institucional;
espaços físicos reduzidos, distanciamento em re-
lação a uma vida auto-sustentável, potencialização
da vida x precarização da vida. Quando olhamos sob
o prisma de uma discussão quilombola atualizada,
ficam evidentes algumas questões: se no campo a
terra é fundamento intrínseco da luta, na cidade a
luta está nas dinâmicas culturais, nos embates soci-
ais e na diversidade de situações e campos de forças
com os quais é necessário lidar todos os dias. Por

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outro lado, mesmo no campo a questão da terra não é


apenas física, mas também simbólica - a luta pela
terra está intimamente ligada à auto-identificação
com um território de vida tanto diacrônico quanto
sincrônico. Isto aproxima o quilombo rural de um
território de produção cultural, tal qual o é, como
raiz, o quilombo urbano. Se aí a questão da terra
como espaço físico no qual se produz uma economia
conectada também à subsistência parece ter se per-
dido, é justamente por isso que se cria um território
de intersecção entre pessoas que se conectam pelo e
através do simbólico. Assim, na dimensão simbólica
de um território possível, estas duas configurações
de lutas e vidas se encontram e se identificam. E está
nesta inquietação a nossa busca por compreender o
que é ser quilombola hoje (PI)108.
A gente pretende formar o pessoal com uma cons-
ciência muito crítica do que é a matriz africana. Não
é só a beleza, o esplendor das festas. Em uma so-
ciedade como a nossa não é fácil ser mulher, não é
fácil ser candomblecista. Isso leva o pessoal a um
conflito muito grande. E é preciso que a gente se for-
taleça mesmo, espiritualmente, fisicamente, no
poder da palavra, porque o enfrentamento é contínuo
(Mãe Lúcia de Oiá)109.
Qual o formato que a gente compreende? É a gente
pensar o futuro que a África que está aqui com a
gente pode nos ajudar a construir. Por isso que eu

108. Idem.
109. Depoimento ao PI de Mãe Lúcia de Oiá, Escola de Ensinamentos de Mãe Preta, Recife-
PE, 2009. In: Quilombo Brasil (DVD), PI, 2010.

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acho importante ter referências, como é o tambor, o


Baobá, porque são simbologias que temos que ter
para nos agarrar. Isso tem que ser a nossa escola. É
aprender a aprender. É assim que se ensina (TC)110.
O decreto 4887 traz a perspectiva muito nova que é a
idéia de território não como terra, mas como um
campo simbólico de representação, com a idéia de in-
terdependência. Se a comunidade não existe, aquele
território não existe. E aí entramos num problema a
mais na atual legislação do INCRA, que remove do
contexto o termo ‘território’ e passa a usar ‘terras e
áreas’. Ou seja, esse campo do simbólico se esvazia
muito (Rosana Meneses)111.
Com o acontecimento das coisas, algumas pessoas
aprenderam que a gente tem que ser de paz, não pode
procurar encrenca, tem que ficar quietinho, no canto,
acomodado, por que Deus quer assim. Eu fui uma das
que começou a procurar encrenca. E eu procurava
vó... Aí vó: Pois é, meu pai já dizia que ia ser desse
jeito, pois vão em frente! E ela transmitiu para a
gente essa força de saber que não vai ser possível re-
conquistar o nosso território, fortalecer a nossa cul-
tura, transformar esses meninos em criaturas
críticas, sem conflito (Maria Aparecida Mendes)112.
O nosso povo, eu digo pelo meu, é segurança, a maio-

110. Antonio Carlos Santos da Silva (TC) é um importante referente da luta negra
contemporânea, criador da Casa de Cultura Tainã em Campinas, articulador da Rede
Mocambos e parceiro contínuo, desde 2005, do PI e da Frente 3 de Fevereiro. Aqui, trechos
de conversa realizada no projeto “Quilombo Brasil” com quilombolas de Conceição das
Crioulas, Pernambuco, 2009. Estavam presentes também todos os integrantes do PI.
111. Rosana Menezes é historiadora, estuda quilombos e participou de várias conversas com
quilombolas do Vale do Ribeira (SP), integrantes da Casa de Cultura Tainã e grupo PI no
projeto “Quilombo Brasil”, 2009.
112. Em conversa realizada com integrantes do PI e Casa de Cultura Tainã em viagem do
projeto “Quilombo Brasil” ao quilombo Conceição das Crioulas, Recife, Pernambuco, em
2009.
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ria é segurança. Você vê em que nível miserável ficou o


nosso povo: corta o cabelo, tira os dreads, tira a roupa
africana, coloca aquela roupinha azul e vai guardar
os estabelecimentos dos bacanas para ter um salario-
zinho e a vida valendo quase nada (Beth de Oxum)113.
Você vai ficar assim: fulano é branco, fulano é negro?
Isso é para pirar. Eu sempre tive isso muito bem re-
solvido. Eu tenho quatro filhos, um é mais claro,
outro é mais escuro. Eu vou dizer o quê? Você é
branco, você é preto, você é quase branco, você é quase
preto. Isso fica para intelectual, com todo o respeito.
Na prática, a gente se reconhece, se percebe, se tem
identidade e acabou-se, está tudo resolvido (Beth de
Oxum, 2009).
Quilombos somos nós, o povo que resiste neste país,
que toca tambor, que faz Coco, Maracatu, Afoxé, são
os terreiros, em essência são os terreiros, envolve
preto, envolve o povo e acabou-se (Beth de Oxum,
2009).
Todos os quilombos que eu já fui, eles convivem com
diferenças, eu não conheço nenhum quilombo só de
negros. Eu não vivo em um quilombo rural, mas me
reconheço quilombo urbano, pela nossa experiência,
como acho que aqui é, mas agora qual a nossa com-
preensão disso? Chegando aqui, em uma ocupação
urbana de São Paulo, ‘nessa quase cidade, nessa
quase favela, onde está todo mundo enlouquecido de
cinza, cimento e pedra, loucos para viver um ro-

113. Beth de Oxum é uma importante liderança do movimento negro contemporâneo de


Recife (PE) e faz parte da Rede Mocambos. Aqui, conversava com o PI e Casa de Cultura
Tainã, sobre “quilombos urbanos”. Parte do projeto “Quilombo Brasil”, Olinda, Pernambuco,
2009.

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mance de novela.’ Então, ser quilombola hoje acho


que passa muito pela consciência de si mesmo, o que
eu sou, por que estou aqui. É mais do que simples-
mente estar aqui por alguma circunstância que me
trouxe aqui. Eu tenho que dizer: ‘Estou aqui por que
quero estar aqui, estou aqui logo este é meu lugar, se
é meu lugar vai ficar do meu jeito, não importa o
quanto me neguem’. Se eu tiver essa consciência, eu
começo a fazer os outros pensarem que eu não estou
aqui para ser negado. O quilombo traz um sentido de
resistência, de liberdade, justamente a possibilidade
de ter um mundo diferente do que está aí, onde não
tem a negação, onde exista o reconhecimento, a iden-
tificação de um com outro (TC).114
Murar as pessoas é não reconhecê-las, é negá-las, é
negar o ir e vir, isso sim. Não é memória, a gente está
vivendo isso. Isso aqui é o que? É gente de desassen-
tados que foram sendo chutados, chutados, desagre-
gados até parar nisso. Quilombos somos todos nós,
então é mostrar isso, esse agora. Quilombo está asso-
ciado com povoamento, com distribuição espacial e
formas de convivência. Resistência são formas de
convivência. Quando você bota um muro, você em-
pobrece, você está dizendo que não há formas de con-
vivência com aquele grupo da população, é
impossível conviver, ou só na bala. E se eu estou me-
xendo com isso, eu estou mexendo com quilombos ur-
banos. A discussão toda é: ‘Eu estou em risco’. E se eu
estou em risco, eu afasto (Maurinete Lima).115
114. Roda de conversa proposta pelo PI a partir da pergunta “O que é ser quilombola hoje?”
realizada na Ocupação Mauá, centro de São Paulo, em abril de 2009. Convidados: Maurinete
Lima (Frente 3 de Fevereiro), TC Santos Silva (Casa de Cultura Tainã) e Conceição Paganele
(AMAR – Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco). In: Quilombo
Brasil (DVD), 2010.
115. Idem.
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Conversa entre Maurinete Lima,


Conceição Paganele e TC no alto da
ocupação Mauá, a partir da pergunta
disparadora proposta pelo PI: “O que é
ser quilombola hoje?”, São Paulo, 2008.
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A situação criada a partir da consigna “Zumbi Somos Nós”,


espacializada no tecido urbano, soa como a imagem do “atlântico
negro” (1993), do sociólogo inglês Paul Gilroy, termo inspirado na
diáspora negra que se “refere metaforicamente às estruturas transna-
cionais criadas na modernidade que se desenvolveram e deram
origem a um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e
trocas culturais” (Santos, 2002, p. 273).
Segundo Hermano Vianna:

Inspirado na desterritorialização deleuziana e na não-lineari-


dade da física contemporânea, Paul Gilroy define o ‘Black
Atlantic’ como uma formação rizomática e fractal, colocando-
se em luta contra a ‘trágica popularidade das idéias sobre a inte-
gridade e a pureza das culturas’ e também contra aquilo que
chama de absolutismo étnico (1999).

Nesse sentido, existe uma questão que sempre permeia as


discussões da Frente 3 de Fevereiro e que diz respeito a uma pro-
dução política que transita entre a afirmação da “identidade” e a ex-
periência da singularidade.
Se, por um lado, muitas vezes aparece pelas vozes dos inte-
grantes a importância de se afirmar como “negro”, por outro, a com-
posição do grupo (composto também por japoneses, “brancos”,
judeus... ou seja, pessoas de “diversas origens”), assim como as ima-
gens produzidas, levam imediatamente a nos questionarmos o que é
exatamente “ser negro”: é apenas a cor da pele? Eu posso ser negra,
mesmo sendo uma “judárabe”?

116. Música presente no CD “O Silêncio”, Arnaldo Antunes, BMG, 1996.

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Inclassificáveis116
Arnaldo Antunes – 1996

que preto, que branco, que índio o quê?


que branco, que índio , que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

que preto branco índio o quê?


branco índio preto o quê?
índio preto branco o quê?

aqui somos mestiços mulatos


cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes

orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs

somos o que somos


inclassificáveis

não tem um, tem dois,


não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,

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não há sol a sós

aqui somos mestiços mulatos


cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros.

somos o que somos


inclassificáveis

que preto, que branco, que índio o quê?


que branco, que índio , que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê?

não tem um, tem dois,


não tem dois, tem três,
não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses,
não tem cor, tem cores,

não há sol a sós

egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol

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Para o antropólogo Osmundo de Araujo Pinho (2003), a as-


sociação entre o “Movimento Negro Moderno” e os chamados
“Novos Movimentos Sociais”, foi o que abriu a possibilidade de re-
definição das problemáticas do movimento negro como questões
públicas comuns a toda a sociedade:

Um processo marcado pelo redirecionamento de questões da esfera


privada - a cor da pele, o racismo operando no plano das relações
interpessoais, a religião Afro-Brasileira, o cotidiano imediato e
periférico dos bairros negros, etc. - para a arena pública, através
da inclusão de discursividades negras, como um novo sujeito, como
um pólo ou eixo de articulação de miríades de vozes que se en-
contram e se cristalizam neste processo de enunciação coletiva.

Assim, se a Frente 3 de Fevereiro parte claramente do discurso


racial, no meio do caminho ele é subvertido por essa situação na qual
um sujeito múltiplo se apresenta. Porque o principal nas estratégias
estéticas e comunicativas criadas pelo grupo, parece ser a criação de
legibilidade para o fato de que é essa potência de um corpo pré-colo-
nial que está sendo ativada para a reinvenção do social. Existe, por-
tanto, no uso do Zumbi como metáfora, não apenas uma ideia
abstrata, mas uma atualização corporal e espacial da sabedoria dos
terreiros, do candomblé, dos orixás. Segundo Araújo Pinho (2003):

O quilombo passa a representar um modelo alternativo de or-


ganização da sociedade que desafiou os poderes coloniais e rein-
ventou um mundo africano - no caso de Palmares, banto -
baseado no trabalho livre, na propriedade comum da terra, em
valores tradicionais, holísticos etc.

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Show da Frente 3 de Fevereiro no qual vemos uma mãe de santo com um rapper e por trás a
imagem de uma intervenção urbana. Discutindo com Daniel Lima, integrante da Frente e que
fez comigo o projeto gráfico desta dissertação, entendemos que nos shows do grupo existe
sempre uma tentativa de re-criar o território urbano com toda a sua transversalidade.
A “colagem” de linguagens artísticas, o apelo ao mesmo tempo ao ancestral e ao
contemporâneo, são estratégias que permitem, no palco, vislumbrar a “espessura” presente
nos trabalhos realizados na cidade. São Paulo, 2006.
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A Frente 3 de Fevereiro, formada por artistas plásti-


cos, cineasta, designer gráfico, músicos, historiador,
socióloga, dançarina, advogada, cenógrafo e atores,
nasceu da mobilização desse grupo com um dado de
realidade: no dia 3 de fevereiro de 2004, o jovem
negro Flávio Sant’Ana, confundido com ladrão, foi
assassinado pela polícia militar de São Paulo. [...]
Dois meses depois do assassinato [...] nós da Frente
3 de Fevereiro realizamos um ATO simbólico no local
do crime – zona norte da cidade de São Paulo – junto
com a família do jovem (Frente 3 de Fevereiro,
2007, p. 8-20).

Hamilton Cardoso, um dos mais notáveis intelectuais negros do


período [década de 1980], procurou explorar todas as conse-
qüências políticas do reconhecimento de Zumbi como herói na-
cional em novembro de 1985, principalmente aquelas que
sinalizam para o aspecto trans-étnico da luta de libertação
quilombola, nesse sentido ‘resgatar’ Zumbi: ‘É um fato cultural
porque é um fato político; é um fato político porque rompe com a
política cultural dominante. Reflete, na verdade, outra forma de
engajamento político do militante negro nos processo sociais. Re-
vela um ponto de vista humano, capaz de romper as fronteiras
da raça. Arrebentando a geografia da pele e da cor’ (Araújo
Pinho, 2003)117.

É interessante pensar que nestas práticas urbanas criam-se


estratégias para inscrever na cidade uma sabedoria ancestral. No

117. Hamilton Cardoso. O Resgate de Zumbi, Cultura e Política.vol.2, no. 4. Lua Nova, 1986,
p. 63-67.

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Monumento Horizontal à Flávio Sant’Ana, podemos entender o


questionamento da “verticalidade” dos monumentos como uma
forma de marcar com o corpo um território autônomo de ação e re-
presentação, função cumprida também pelos quilombos como modo
de vida e invenção de espaço de resistência política. O que está em
jogo é essa subjetividade que se rebela contra a arbitrariedade do
“Poder” e inventa – transformando em indício aquilo que poderia
ficar eternamente na informalidade118 –, um contra-espaço, afim de
evidenciar onde/como/por que/para que/para quem tal “Poder” é fun-
dado e espacializado.
Em outros trabalhos da Frente, vemos como a discussão que
nasce do enraizamento se desloca no sentido da multiplicidade. Con-
vidados em 2006 para ir a Berlim, onde estava acontecendo a Copa do
Mundo, para apresentar o espetáculo “Futebol” (no qual trazem à tona
diversas situações de disputa pela produção da cidade, vividas nos es-
tádios como potente campo de análise social), a Frente se conectou
com grupos locais119 no intuito de discutir questões migratórias. Jun-
tos, demarcaram no mapa de Berlim os estatutos diferenciais de circu-
lação dos migrantes pela cidade. Denominaram as áreas da seguinte
forma: “áreas onde podem ir”, “áreas onde correm perigo”, “áreas
onde correm perigo de vida”, estas chamadas “no go areas” – para-
doxalmente, o próprio Estado, oficialmente, reconhece e informa aos
imigrantes para não irem em tais áreas, denominando-as desta forma.

Workshop HAU
No contexto de nacionalismo e euforia que pairava
sobre a Alemanha na Copa do Mundo 2006, desen-
volvemos um projeto de intervenção em Berlim tendo

118. Por exemplo: o assassinato de mais um jovem negro pelo Estado e sua capacidade de
decidir “quem é suspeito” e “quem deve morrer”.
119. Como Kanak Attack e La Plataforma, grupos de arte e ativismo alemães.

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Em volta do Monumento Horizontal à Flávio SantʼAna, a Frente


e colaboradores, em roda, como num ritual de morte, São Paulo, 2004.

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Imagens do workshop proposto pela Frente


para outros coletivos de Berlim, Alemanha, 2006.

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Frente 3 de Fevereiro discutindo qual estratégia usariam para entrar na festa de abertura
da Copa do Mundo com uma bandeira gigante e imagem do grupo passando pela barreira
de segurança do evento, tocando um samba, Berlim, 2006.

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como foco a situação do imigrante na Europa. De-


senvolvemos um workshop junto com grupos de arte
e ativismo da Alemanha, no qual a relação do imi-
grante com a comunidade européia funcionou como
ponto-chave para a discussão do racismo em contra-
posição à imagem construída por eventos como a
Copa do Mundo, nos quais diferenças políticas, so-
cioeconômicas e culturais parecem ser superadas sem
conflito (Frente 3 de Fevereiro, 2007, p. 94).

Espalharam placas pela cidade, iguais às placas oficiais, com


a frase “Know go areas”120, fazendo um trocadilho com a ideia de “No
Go Area”, demarcando as fronteiras invisíveis e, ao mesmo tempo,
questionando a aceitação pela população nativa, migrante e pelo
próprio Estado desta forma de compreensão do espaço. A partir
desta ação, decidiram fazer uma bandeira com essa mesma frase e
desenrolá-la, com câmeras ao vivo de redes de televisão do mundo
todo, na festa de abertura da Copa do Mundo, a “Fan Party”.
Criaram toda uma estratégia de passagem pela barreira de se-
gurança que dava acesso ao local da festa (vemos aqui um evidente
saber circulatório): entraram tocando um “sambinha”, “disfarçados
de brasileiros”. A polícia alemã simpatizou com eles. Pediu, em inglês,
que abrissem a bandeira – que de tão grande era carregada por mais
de cinco pessoas. Um dos integrantes do grupo respondeu, também
em inglês: “É que depois fica muito difícil para fechar”. O policial, no
clima do samba, autorizou a passagem. No momento em que a festa
começou, com toda sua pompa e glamour, televisionada para todos
os cantos do mundo, eis que vemos a bandeira com a frase “Know go
Area” sendo aberta. Fica no ar por alguns segundos, chegando a bilhões

120. Que mudava o sentido de “áreas proibidas” para algo como “conheça as áreas
proibidas”.

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Bandeira feita pela Frente 3 de Fevereiro e coletivos de Berlim na festa de abertura da


Copa do Mundo de 2006, Berlim, Alemanha.

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Intervenção através do som de tambores do músico DouDou N´diaye Rose e sua orquestra
na Ilha de Goré, um dos lugares que mais mandou negros escravizados para o mundo.

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de pessoas. Nessa imagem, fica clara a simultaneidade de tempos pre-


sente em uma situação que deveria ser prioritariamente asséptica: o
tempo do grande espetáculo sofre a intervenção do tempo das pes-
soas invisíveis e de sua desobediência que “suja” a imagem televisiva
ao dar carne a ela.
Termino com uma sequência de acontecimentos que eviden-
ciam o desejo de agenciamento e atualização de saberes pré-coloniais.
Em 2007, integrantes do coletivo Política do Impossível e Casa de
Cultura Tainã, viajaram ao Festival de Arte Negra (FAN), realizado
em Belo Horizonte, com o intuito de conversar com DouDou
N´diaye Rose, músico, percussionista e mestre griot africano121. O
que motivou o encontro foi um vídeo documentário de uma ocu-
pação musical orquestrada pelo maestro DouDou na “Casa dos Es-
cravos” da Ilha de Goré – porto de onde partiram milhares de negros
escravizados para as Américas. A imagem de uma ocupação física e
simbólica feita através dos tambores, ativando aquele espaço, rever-
berou nos integrantes dos dois grupos. O vídeo da ocupação em Goré
foi também um dos trabalhos – além dos escraches do GAC – que ins-
pirou a ocupação simbólica realizada na Fazenda Jambeiro (Campi-
nas), organizada pela Casa de Cultura Tainã, o coletivo Política do
Impossível, Jongo Dito Ribeiro e outros grupos artísticos. Jam-
beiro foi uma fazenda colonial escravocrata e hoje é um espaço
público abandonado.

Trechos da conversa com DouDou N´diaye Rose122:

TC: Aquele momento na casa dos escravos, na Ilha de Goré, para a


gente foi muito importante, uma referência muito forte. Como foi

121. Frente 3 Fevereiro, Dughetto, Projeto Treme Terra e Associação Cultural Cachuera!,
também estavam presentes na conversa, pois tinham viajado ao festival para participar
apresentando o espetáculo da Frente 3 de Fevereiro “Zumbi Somos Nós”.
122. Tradução de Majoí Gongora e edição de Política do Impossível.

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isso para os que participaram? O que os levou a tocar na Ilha de


Goré?
DouDou: Comecei a tocar o “tam tam” quando tinha 9 anos. E por
que eu fui a Goré? Pois quando aprendi a tocar o “tam tam” queria
marcar a passagem da casa dos escravos. Eu poderia fazer esse regis-
tro em vários lugares, na beira do mar, na minha região, ou ainda em
outras regiões, mas eu preferi Goré. Se há a Martinica, a Ilha da Reu-
nião, outros continentes, é porque eles passaram pela casa dos es-
cravos. [...] É por isso que eu queria mostrar que tudo se passou lá, em
Goré.
TC: Esse lugar é um lugar forte, que marca a história do negro em
diáspora. Goré é importante para nós também, como símbolo. E ver
o tambor tocar ali, pulsar vivo, nos motiva a lutar com a música, com
o tambor.
DouDou: Foi para mostrar o primeiro ritmo que tocamos, o ritmo
que anuncia a partida dos escravos. O primeiro que eu toquei em
Goré foi o ritmo da partida dos escravos. O ritmo se chama “vocês
partem, mas não retornam”. Meus parentes estão lá ou acolá. Eles
partiram. E não retornaram mais. Mas um dia pode acontecer [...] A
gente encontra nossos parentes, mas não somos capazes de recon-
hecê-los.
TC: A gente se reencontra nos sons dos tambores...
[...]
Tenka: Uma pergunta que tem a ver com todo o processo do Jam-
beiro, que é sobre a escravidão. As lacunas que o processo de es-
cravidão deixou na África, porque a gente conhece os resultados da
escravidão no Brasil, mas a gente não sabe qual é a lacuna que ficou
lá... E eu acho que isso é uma ponte interessante.
DouDou: Os africanos, todos os africanos, não estão contentes com

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Intervenção do PI, Casa de Cultura Tainã, Jongo Dito Ribeiro entre outros, na Fazenda
Jambeiro, fazenda escravocrata que hoje se tornou uma praça pública na qual a Casa
Grande, a Senzala e a Casa do Feitor encontram-se totalmente abandonadas, não havendo ali
nenhum tipo de sinalização, conscientização a respeito do significado simbólico e histórico
do lugar ou trabalho educativo. Campinas, 2007.

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o que ocorreu no passado. Os colonizadores, eles tinham a força, eles


nos colonizaram, nos mostraram sua força, mas ninguém ficou con-
tente com aquilo que fizeram. E felizmente, os africanos sabem per-
doar. Se não fosse por isso, em um curto período, muito sangue ia
rolar. Porém eles os perdoaram e nós estamos trabalhando para re-
fazer... para plantar a nossa cultura. Eles queriam que nós fossemos
escravos, eles queriam que nós perdêssemos nossa cultura. Mas eles
não podiam, pois agora, vejam, nossa cultura retorna. Eles não podem
partir sem nós.

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Imagens da conversa com DouDou N´diaye Rose. Belo Horizonte, 2007.

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Contrafilé. A Rebelião das Crianças. Publicação fomentada pelo Programa de


Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), São Paulo, 2007.

Espai en Blan. Materiales para la subversión de la vida. Barcelona, Edicio-


nes Bellterra, 2007.

Frente 3 de Fevereiro. Cartografia do Racismo para o Jovem Urbano. São


Paulo, Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), São Paulo, 2007.

Livro-obra do Panorama da Arte Brasileira 2001. Museu de Arte Moderna de


São Paulo, São Paulo, 2001.

Política do Impossível. Cidade dos Cartógrafos. São Paulo, Oficina Cultural


Oswald de Andrade, 2006.

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Política do Impossível. Cidade Luz: uma investigação-ação no centro de


São Paulo. Edital Conexão Artes Visuais, 2008.

Revista Brumaria. Editores: Darío Corbeira e Marcelo Expósito, Associon Cul-


tural Brumaria, Madrid, Espanha. Todos os números (1 a 8).

Fórum Permanente. Link: http://www.forumpermanente.org, acessado em


junho de 2012.

Portal do SESC. Link: http://www.sescsp.org.br/sesc/, acessado em junho de


2012.

Revista Urbânia, Editora Responsável: Graziela Kunsh, Editora Pressa, São


Paulo, 2008.

Revista Parachute 116 (São Paulo). Editora: Suely Rolnik, Montreal, Canadá,
2003.

Site do Museo Reina Sofía. Link: http://www.museoreinasofia.es/index.html

Rizoma.net, publicação virtual, editores Ricardo Rosas e Marcus Salgado. Link:


http://www.intervencaourbana.org/rizoma/rizoma_afrofuturismo.pdf

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LISTA DE IMAGENS
CAPA:

Monumento à Catraca Invisível, Contrafilé, São Paulo, 2004.

EPÍGRAFE:

p. 18: Egito, 2011. Khaled Elfiqi/European Pressphoto Agency.

INTRODUÇÃO:

p. 35: Imagens cedidas por Suely Rolnik, parte de sua apresentação “Para além do
inconsciente colonial”, concepção Suely Rolnik, execução Bijari.

CAPITULO 1:

p. 53: Imagens do MICO das frases na rua “Chega de Mickey, 500 anos de Mico” e “Chega de
Bananalização, 500 anos de Mico” e do Monumento às Bandeiras coberto com cobertores,
MICO, 2000. Foto: acervo MICO.

p. 59: Imagem do MICO em ação no Vale do Anhangabaú, MICO, 2001. Foto: acervo MICO.

p. 61: Notas de dinheiro carimbadas pelo MICO, 2000. Fotos: Peetssa.

p. 63: Docentes Ayunando, GAC, 1997. Fotos: acervo GAC.

p. 65-71: Ação Direta. Homenagem aos Assassinados pela Repressão Policial na Rebelião
Popular de 20 de dezembro de 2001, GAC. Fotos: acervo GAC.

p. 74-77: Jornais que mostram imagens de rebeliões em presídios de São Paulo, 2001. Fotos:
Peetssa.

p. 80: Imagem dos integrantes do MICO pintando a frase “Não Estamos em Rebelião..”, 2001.
Foto: acervo MICO.

p. 81-83: Imagens de jornais que mostram repercussão do deslocamento da frase pelo MICO,
2001. Foto: Peetssa.

p. 84-85: Faixa com a frase “Não Estamos em Rebelião...” pintada de preto, 2001. Foto: acervo
MICO.

p. 86: Trabalho apresentado na exposição “If You See Something, Say Something”, que
aconteceu na Austrália em fevereiro de 2007. Foto: Peetssa.

p. 87: Trabalho do Contrafilé na Skuc Galerija. Ljubljana, Eslovênia, 2008. Foto: Peetssa.

p. 88: Imagem da sistematização feita pelo Contrafilé do trabalho do MICO utilizando a frase
“Não estamos em Rebelião”. Foto: Peetssa.

p. 94-95: Imagens do trabalho Corda do Contrafilé e de sua instalação, Festival Mídia Tática
Brasil, São Paulo, 2003. Foto: acervo Contrafilé.

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p. 100-101: Cartografias feitas pelos coletivos Política do Impossível, Frente 3 de Fevereiro,


Bureau d’études e Bijari.

p. 106-109: Imagem da cartografia Aquí Viven Genocidas, 2001, GAC. Fotos: acervo GAC.

p. 111-113: Seqüências de jornais sobre as rebeliões na FEBEM. Fotos: acervo Contrafilé.

p. 114-115: Imagens do trabalho A Rebelião das Crianças, Contrafilé, 2005. Fotos: Peetssa.

p. 116-119: Parque para Brincar e Pensar, realizado pelo Contrafilé, Comunidade Brás de Abreu
e Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC, atelier-escola da artista Mônica Nador localizado no
Jardim Miriam), São Paulo, 2011. Fotos: acervo Contrafilé.

p. 134-137: Imagens da publicação “Cidade Luz”, PI, 2008. Fotos: acervo PI.

p. 145-151: Imagens do trabalho Blancos Móviles, GAC. Fotos: acervo GAC.

CAPITULO 2

p.166-167: Placa feita pelo PI mudando o nome da Av. Bandeirantes para Av. dos Quilombolas,
São Paulo, 2008. Fotos: acervo PI.

p. 168-169: Trabalhos que usam códigos oficiais, modificando-os. Fotos: respectivamente


Centro de Mídia Independente, acervo Jerusa Messina e acervo PI.

p. 172-175: Imagens do trabalho Invasion do GAC, 2001. Fotos: acervo GAC.

p. 178-183: Imagens dos Escraches e dos trabalhos do GAC feitos nessa situação. Fotos:
acervo GAC.

p. 199: Imagem slogan prefeitura Marta Suplicy, 2004.

p. 199: Slogan “Programa para Descatracalização da Própria Vida”, Contrafilé, 2004.

p. 200: Assembléia de Olhares sobre o “Programa para Descatracalização da Própria Vida”


com lideranças locais da zona leste de São Paulo, junho de 2004. Foto: Peetssa.

p. 202: Imagem anatomia exterior de uma catraca, Contrafilé, 2004.

p. 204: Imagem da instalação da catraca pelo Contrafilé. Largo do Arouche, São Paulo, junho
de 2004. Foto: acervo Contrafilé.

p. 205: Monumento à Catraca Invisível. Largo do Arouche, São Paulo, junho de 2004. Foto:
acervo Contrafilé.

p. 208: Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 4 de setembro de 2004.

p. 211: Imagens tiras Laerte, Folha de São Paulo, setembro de 2004 a fevereiro de 2005.

p. 212: O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 2005.

p. 212: Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2005.

p. 215: Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 2005.

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p. 216: Folha de São Paulo, 11 de fevereiro de 2005.

p. 217: Imagem produzida pelo Movimento pelo Passe Livre, 2006.

p. 218: 40. Folha de São Paulo, 11 de janeiro de 2005.

p. 219: Folha de São Paulo, 17 de janeiro de 2005.

p. 220-221: Cartazes do “Programa para Descatracalização da Própria Vida”, Contrafilé, 2005.


Fotos: acervo Contrafilé.

p. 222: Sistematização feita pelo Contrafilé com o intuito de refletir sobre o que sucedeu no
“Programa para Destracalização da Própria Vida”, apresentada na Collective Criativity,
Friedericianum Museum, 2005.

p. 223-225: “Programa para Descatracalização da Própria Vida” apresentado como obra-


sistematização de um processo em diferentes exposições ao redor do mundo: Collective
Criativity (Alemanha/Kassel, 2005), La Normalidad (Buenos Aires/Argentina, 2006) e If you See
Something, Say Something (Sidney/Austrália, 2007).

CAPITULO 3

p. 244-245: Imagens do trabalho do grupo MICO para o Panorama, 2001. Fotos: acervo MICO.

p. 248: 1o CIA (Congresso Internacional de Ar(r)ivismo, realizado em São Paulo em 2003. Foto:
acervo Daniel Lima.

p. 253: Trabalho do GAC na 50o Bienal de Veneza, Veneza, Itália, 2003. Foto: acervo GAC.

p. 254: Trabalho da Frente 3 de Fevereiro na exposição La Normalidad, Buenos Aires,


Argentina, 2006. Foto: Peetssa.

p. 256-257: Contrafilé e Bijari no Seminário Arte, Estética e Política Urbana: Pensamentos e


Práticas Artísticas e Sociais no Espaço Público da América Latina, no Centro Cultural da
Espanha, Santiago, Chile, 2009. Fotos: Peetssa.

p. 262-267: Jogo do Absurdo Público, PI, entre 2005 e 2011. Fotos: acervo PI.

CAPITULO 4

p. 268: Instalação dos ponteiros de relógio em Rotterdam e a intervenção já realizada,


Contrafilé, 2003. Foto: Peetssa.

p. 282-283: Imagens: Brasil Negro Salva, Onde Estão os Negros? e Zumbi Somos Nós em
Estádios e no Edifício Prestes Maia, 2004-2006. Fotos: Frente 3 de Fevereiro e Peetssa.

p. 286-287: Projeto “Quilombo Brasil”, PI, 2008-2010. Fotos: acervo PI.

p. 293: Conversa entre Conceição Paganele, Maurinete Lima e TC no alto da ocupação Mauá,
São Paulo, 2008. Fotos: acervo PI.

p. 298-299: Show da Frente 3 de Fevereiro, CEU Casablanca, 2006. Fotos: Peetssa.

p. 302-303: Monumento Horizontal à Flávio Sant’Ana, Frente 3 de Fevereiro, São Paulo, 2004.
Fotos: acervo Frente.

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p. 304: Imagens do workshop proposto pela Frente para outros coletivos de Berlim, Alemanha,
2006. Fotos: acervo Frente.

p. 305: Frente 3 de Fevereiro em Berlim, 2006. Fotos: acervo Frente.

p. 307: Bandeira feita pela Frente 3 de Fevereiro e coletivos de Berlim e aberta na festa de
abertura da Copa do Mundo de 2006, Berlim, Alemanha. Foto: acervo Frente.

p. 308: Intervenção através do som de tambores do músico DouDou N´diaye Rose e sua
orquestra na Ilha de Gore. Frame do vídeo

p. 311: Intervenção do PI, Casa de Cultura Tainá, Jongo Dito Ribeiro entre outros, na Fazenda
Jambeiro, Campinas, 2007. Fotos: acervo PI.

p. 313: Conversa entre diversos grupos e o músico africano DouDou N´diaye Rose, 2007, Belo
Horizonte. Fotos: Cássio Martins.

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Revisão:
Lia Zatz

Pesquisa de Imagens:
Daniel Lima / Joana Zatz

Projeto Gráfico:
Daniel Lima

2012

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