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01/09/2016 Relendo Nietzsche

Relendo Nietzsche
Olavo de Carvalho
O Globo, 15 de fevereiro de 2003

Do fenômeno que denomino paralaxe conceitual ­­ o
deslocamento entre o eixo da concepção teórica e o da
perspectiva existencial concreta do pensador ­­, os exemplos
são tantos, nos últimos séculos, que não me parece exagerado
ver nele o traço mais geral e permanente do pensamento
moderno. As idéias tornam­se aí a racionalização ficcional com
que um intelectual se esforça para camuflar, legitimar ou
mesmo impor como lei universal sua inaptidão de se conhecer,
de arcar com suas responsabilidades morais, de se posicionar
como homem perante a vida.

Nas culturas européias ou mesmo nos EUA, esse impacto
alienante é amortecido pela barreira residual da tradição cristã
e clássica. Mas, num país como o Brasil, psicologicamente
indefeso entre os muros de geléia de uma cultura verbosa e
superficial, qualquer autor que faça algum barulho no mundo
adquire as dimensões de uma potência demiúrgica, cultuada
com temor reverencial. Suas mais gritantes fragilidades passam
despercebidas, e qualquer tentativa de apontá­las é condenada
como pretensão megalômana ou insolência blasfema.

Um caso particularmente desesperador é Friedrich Nietzsche, a
quem tantos neste país veneram, talvez porque nele encontrem
algo como um monumento à sua própria alienação.

Outro dia, conversando com uma amiga antropóloga, ela me
lembrou que em certa época recente, na USP, ninguém no seu
departamento era aceito como gente grande se não soubesse
classificar na ponta da língua os fenômenos culturais em
apolíneos e dionisíacos ­­ uma distinção nietzscheana a que o
livro de Ruth Benedict, “Padrões de Cultura”, dera foros de
critério científico.

Vamos ver quanto vale essa distinção?

Em “A Origem da Tragédia”, Apolo, deus da luz e da ordem
cósmica, é o senhor das aparências, do universo visível.
Dionísio, caos e turvação, é causa e origem, é a realidade

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01/09/2016 Relendo Nietzsche

tenebrosa e fecunda por baixo do véu apolíneo. Assim diz
Nietzsche, mas no mundo real as coisas às vezes são assim, às
vezes não. Às vezes, é a aparência caótica dos fenômenos que
oculta uma ordem profunda, a qual escapa ao comum dos
mortais mas se revela aos olhos claros daqueles que Schiller
denominava “filhos de Júpiter”. De fato, o contraste Apolo­
Dionísio expressa, no mito grego, a tensão dinâmica entre os
polos do caos e da ordem, da aparência e da realidade, em
contínua rotação e intercâmbio no quadro do mundo. A
compreensão de todo simbolismo mitológico ou religioso
depende de um certo senso das inversões. Um símbolo, por
definição, não tem sentido unívoco, podendo sempre
transfigurar­se em seu contrário, conforme a esfera de ser a que
se aplique num contexto dado. Por isto e só por isto tem força
evocativa e geradora, não cabendo aprisionar na moldura de
um conceito fixo aquilo que é antes, na feliz expressão de
Susanne K. Langer, uma “matriz de intelecções possíveis”. Ao
identificar de maneira estática a ordem com superfície, o caos
com profundidade, Nietzsche eliminou artificialmente a tensão,
congelando os opostos em papéis imutáveis. Degradou o
símbolo em estereótipo. Transmutou o ouro em chumbo.

O pior é que ele cai nessa justamente no momento em que está
protestando contra o racionalismo e clamando pela volta dos
mitos como força renovadora da civilização. Neutralizar as
inversões tensionais, prendendo os pares de opostos na grade
fixa de uma correspondência biunívoca, é o suprassumo do
racionalismo esterilizante. No caso, totalmente involuntário.
Nietzsche simplesmente não entendia o que estava fazendo.

Abominando a dialética, preferindo à busca das sínteses a
ostentação espalhafatosa das oposições estáticas, mas ao
mesmo tempo querendo cavar efeitos de linguagem no
vocabulário da simbólica tradicional, no qual nada pode opor­
se definitivamente a nada porque tudo aí são aparências em
incessante metamorfose, o que ele fez foi uma metafísica
grosseiramente linear camuflada sob um manto de símbolos
falsificados. E nestes o leitor então projeta as mais lindas
sutilezas dialéticas que, é claro, não estão lá. Confunde o Apolo
e o Dionísio do mito grego com os de Nietzsche, o símbolo com
o estereótipo, e vê neste as profundidades daquele. Melhor para
Nietzsche, pior para o leitor.

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01/09/2016 Relendo Nietzsche

Mas a substancialização fetichista dos opostos é somente um
dos vários cacoetes mentais que, no autor de “Zaratustra”,
buscam suprir a falta de autêntica intuição filosófica. Pior é
este: ele confunde a reiteração enfática de um acidente com a
definição de uma essência, e então sai disparando deduções daí
obtidas pela via de um conseqüencialismo furiosamente
mecânico. Assim ele transforma os problemas mais banais em
dilemas insolúveis que lhe parecem tragédias, sem perceber
que uma tragédia fabricada na base do hiperbolismo verbal não
é tragédia, é farsa.

Em “A Gaia Ciência”, após mostrar que em muito do que o
homem faz está presente o instinto de sobrevivência, ele
conclui que esse instinto é “a essência” (sic) do bicho homem, e
então reduz todas as demais qualidades humanas a disfarces do
instinto de sobrevivência. Mas esse instinto, sendo comum a
todas as espécies animais, não pode ser essência de nenhuma
delas em particular. Se o fosse, nas demais teria de ser mera
propriedade ou acidente, o que resultaria em afirmar que só
uma espécie sobrevive por instinto, as outras apenas por
hábito, por acaso ou talvez por frescura. Não é preciso dizer que
elas não concordam com essa tese de maneira alguma.

O melhor em Nietzche são as notas de psicologia pejorativa,
que ele extrai da observação de si mesmo mas em seguida
projeta, com autoconfiança adolescente, em Sócrates, em Jesus
Cristo, na humanidade inteira. O ressentimento do doente
contra as pessoas saudáveis é uma delas. Mas por que esse
diagnóstico deveria aplicar­se antes a Sócrates, velho soldado
robusto, do que ao próprio Nietzsche, paciente crônico que mal
se levantava da cama?

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