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Júlio Cortázar

Fora de Hora
Título original: DESHORAS
EDITORA NOVA FRONTEIRA - 1985
Gênero: conto
Numeração: rodapé - 182 pags

Contracapa

A realidade e a imaginação confundem-se nos oito contos que constituem este novo
livro de Júlio Cortázar, cujo domínio formal e estrutural dá à sua escrita
a marca fascinante do grande autor: o estilo, elemento tão aparentemente
simples e que é por vezes a exploração dos próprios limites da criação. O volume
abre-se
com "Garrafa ao mar", narração de um fato simples e casual, feita com a
capacidade
de transformar o objetivo em subjetivo que é uma das características de
Cortázar,
e termina com "Diáriopara um conto", aparentemente literatura sobre literatura,
mas
que se reveste das qualidades de um depoimento sincero do escritor.
De Júlio Cortázar leia também:
O livro de Manuel
Um tal Lucas
Alguém que anda por aí
Orientação dos gatos

Orelhas

Os oito contos que constituem este novo livro de Júlio Cortázar abrem-se com uma
narrativa baseada num fato simples - a participação de uma atriz num filme -
mostrando
como a realidade e a imaginação se fundem profundamente quando esta é tão forte
que atrai aquela e a transforma em executora de seus caprichos. E termina com
outro
motivo também muito conhecido: uma reflexão do escritor sobre a obra em preparo,
aparentemente um exercício de literatura sobre a literatura, em que se
entrelaçam
a reflexão e o tema. Esses dois assuntos tão comuns transformam-se, quando
tratados pelo gênio de Cortázar, numa fascinante experiência intelectual, humana
e estética,
que se estende aos outros seis contos, num mapeamento prodigioso de um
território misto de cotidiano e de assombro, cujos acidentes o autor vai
descobrindo e enumerando,
mostrando-nos que, embora de longe nos pareçam misteriosos, são na realidade a
configuração de nosso próprio mundo, que é onde sucedem realmente as coisas mais
extraordinárias
e ao mesmo tempo mais simples: a rotina, o desamor, as oportunidades perdidas, a
repetição da sorte, e também a
violência, a tortura, a injustiça.
Cortázar dispõe de um domínio formal e estrutural que dá à sua escrita a marca
facilmente identificável do grande criador: o estilo, esse selo que torna tão
aparentemente
simples o que é às vezes exploração ousada dos próprios limites da criação. E
isso evidencia-se de maneira luminosa neste livro, onde encontramos relatos que
vão
do lirismo até a prodigiosa metáfora ampliada que é "A escola de noite", conto
que se poderia destacar entre tantas outras obras-primas que constituem Fora de
hora.
Júlio Cortázar, argentino nascido em Bruxelas em 1914, viveu em sua pátria até
1951, exercendo ali, entre outras profissões, a de professor secundário e
superior.
A partir de 1951 fixou residência em Paris, onde ganhou a vida como tradutor de
órgãos internacionais, e trabalhando ao mesmo tempo na transposição, para o
espanhol,
de numerosas
obras-primas das literaturas francesa e inglesa. Faleceu em 1984.
Capa: Victor Burton

Júlio Cortázar
Fora de Hora
Tradução de OLGA SAVARY

EDITORA NOVA FRONTEIRA


Título original: DESHORAS
© 1982, by Júlio Cortázar
Direitos de edição da obra em língua portuguesa, no Brasil,
adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Maria Angélica, 168 -* Lagoa - CEP: 22.461 - Tel.: 286-7822
Endereço Telegráfico: NEOFRONT - Telex: 34695 ENFS BR
Rio de Janeiro, RJ.
Revisão
RENATO ROSÁRIO CARVALHO
EDILSON CHAVES CANTALICE
HENRIQUE TARNAPOLSKY

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros,


RJ.
Cortázar, Júlio, 1914-
Fora de hora / Júlio Cortázar ; tradução de Olga Savary. - Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1985.
C854f
84-0983
Tradução de: Deshoras.
1. Romance argentino I. Savary, Olga II. Título
CDD - Ar863 CDU - 860(82)-31

SUMÁRIO

Garrafa ao mar, 7
Fim de etapa, 17
Segunda viagem, 33
Satarsa, 53
A escola de noite, 75
Fora de hora, 105
Pesadelos, 127
Diário para um conto, 143

Epílogo para um conto


Berkeley, Califórnia, 29 de setembro de 1980
Querida Glenda, esta carta não lhe será enviada pelas vias comuns porque nada
entre nós pode ser enviado assim, de acordo com os ritos sociais dos envelopes e
do
correio. Será como se eu a pusesse numa garrafa e a deixasse cair nas águas da
baía de São Francisco, em cujas margens se ergue a casa de onde lhe escrevo;
como
se a prendesse ao pescoço de uma das gaivotas que passam como chicotadas de
sombra diante da minha janela e obscurecem momentaneamente o teclado desta
máquina. Mas
de qualquer modo uma carta dirigida a você, a Glenda Jackson em alguma parte do
mundo que provavelmente continuará
sendo Londres; como muitas cartas, como muitas narrativas, há também mensagens
que são garrafas-ao-mar e entram nesses lentos, prodigiosos sea-changes que
Shakespeare
cinzelou em A tempestade e que amigos inconsoláveis
inscreveriam tanto tempo depois na lápide sob a qual dorme o coração de Percy
Bysshe Shelley, no cemitério de Caio Sexto, em Roma.
É assim, penso, que se efetuam as comunicações profundas, lentas garrafas que
erram em lentos mares, tal como lentamente esta carta abrirá caminho em busca de
você
com seu verdadeiro nome, não a Glenda Garson que também era você, mas que o
pudor e o carinho mudaram sem mudá-la, do mesmo modo como você mudava sem mudar
de um filme para outro. Escrevo a essa mulher que respira debaixo de tantas
máscaras,
inclusive a que eu inventei para não a ofender, e lhe escrevo porque você também
se comunicou agora comigo sob minhas máscaras de escritor; por isso ganhamos o
direito
de falar assim um com o outro, agora que sem a mínima possibilidade imaginável
acaba de me chegar sua resposta, sua própria garrafa-ao-mar espatifando-se nos
rochedos
desta baía para me encher de uma delícia sob a qual pulsa uma espécie de medo,
um medo que não aplaca a delícia, que a torna assustadora, situando-a fora de
toda
carne e de todo tempo como você e eu sem dúvida sempre quisemos, cada um à sua
maneira.
Não é fácil lhe escrever isso porque você não sabe nada de Glenda Garson, mas as
coisas ocorrem ao mesmo tempo, como se eu tivesse que lhe explicar inutilmente
algo
que de alguma forma é a razão de sua resposta; tudo se passa como que em planos
diferentes, em uma duplicação que torna absurdo qualquer procedimento usual de
contato;
estamos escrevendo ou agindo para terceiros, não para nós, e por isso esta carta
toma a forma de um texto que será lido por terceiros e talvez jamais por você,
ou
talvez sim, mas apenas em um dia longínquo, do mesmo modo que sua resposta já
foi conhecida por terceiros enquanto eu acabo de recebê-la há apenas três dias e
por
um mero acaso de viagem. Acho que se as coisas acontecem assim não adiantaria
nada tentar um contato direto. Penso que a única possibilidade de lhe dizer isso
é
dirigindo-o mais uma vez a quem o vai ler como literatura, uma
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história dentro de outra, uma coda para algo que parecia destinado a terminar
com esse desfecho perfeito, definitivo, que para mim devem ter as boas
histórias. E
se rompo com a norma, se à minha maneira estou lhe escrevendo esta mensagem,
você, que talvez não a
lerá jamais, é que está me obrigando, e talvez esteja me pedindo que a escreva
pára você.
Conheça então o que não podia conhecer e no entanto conhece. Há exatamente duas
semanas que Guillermo Schavelzpn, meu editor no México, me entregou os primeiros
exemplares de um livro de contos que escrevi ao longo destes últimos tempos e
que tem o título de um deles: Gostamos tanto de Glenda. Contos em espanhol, é
claro,
e que só serão traduzidos para outras línguas nos próximos anos, contos que
começam a circular no México esta semana e que você não pôde ler em Londres,
onde além
do mais quase não me lêem e muito menos em espanhol. Preciso lhe falar de um
deles, sentindo ao mesmo tempo, e nisso reside o horror ambíguo que há nessa
coisa
toda, a inutilidade de fazê-lo porque você, de um modo que só o conto em si pode
insinuar, já o conhece; contra todas as razões, contra a própria razão, a
resposta
que acabo
de receber me prova isso e me obriga a fazer o que estou fazendo diante do
absurdo, se isso é absurdo, Glenda, e eu acho que não o é, ainda que nem você
nem eu possamos
saber o que é.
Você se lembrará então, mesmo que não possa se lembrar de uma coisa que nunca
leu, alguma coisa cujas páginas ainda conservam a umidade da tinta que as
imprimiu,
que nesse conto se fala de um grupo de amigos de Buenos Aires que compartilham,
em uma esporádica fraternidade de clube, o carinho
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e a admiração que sentem por você, por essa atriz que o conto chama de Glenda
Garson, mas cuja carreira teatral e cinematográfica está demonstrada com
suficiente
clareza para que qualquer um que seja capaz possa reconhecer. O conto é muito
simples: os amigos gostam tanto de Glenda que não podem tolerar o escândalo de
alguns
de seus filmes estarem abaixo da perfeição que todo grande amor postula e
necessita, e que a mediocridade de certos diretores altere o que sem dúvida você
teria
procurado enquanto filmava. Como toda narração que propõe uma catarse, que
culmina em um sacrifício
lustral, essa se permite transgredir a verossimilhança de uma
verdade mais profunda e mais acabada; assim o clube faz o possível para se
apropriar das cópias menos perfeitas, dos filmes, modificando-as ali onde uma
mera supressão
ou uma mudança apenas perceptível na montagem iriam reparar as imperdoáveis
falhas originais. Suponho que você, como eles, não se preocupa com as
desprezíveis impossibilidades
práticas de uma operação que o conto descreve sem prolixidade; simplesmente a
fidelidade e o dinheiro fazem o seu papel, e um dia o clube pode dar por finda a
tarefa
e entrar no sétimo dia da felicidade. Sobretudo da felicidade, porque nesse
momento você anuncia sua retirada do teatro e do cinema, encerrando e
aperfeiçoando sem
saber uma tarefa que a reiteração e o tempo teriam terminado por empanar.
Sem saber... Ah, eu sou o autor do conto, Glenda, mas agora já não posso afirmar
o que me parecia tão claro quando o escrevia. Agora me chegou sua resposta, e
algo
que nada tem a ver com a razão me obriga a reconhecer que a retirada de Glenda
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Garson tinha alguma coisa de estranho, quase de forçado, assim exatamente no
final da tarefa do ignoto e distante clube. Mas continuo narrando-lhe o conto,
embora
seu
final agora me pareça horrível, já que tenho de contá-lo para você, e é
impossível não o fazer, porque está no conto, e todos no México o estão sabendo
há dez dias
e sobretudo porque você também o sabe. Simplesmente, um ano depois Glenda Garson
decide voltar ao cinema, e os amigos do clube lêem a notícia com a triste
certeza
de que já não lhes será possível repetir um processo que sentem encerrado,
definitivo. Só lhes resta um meio de defender a perfeição, o ápice da felicidade
tão duramente
alcançada: Glenda Garson não conseguirá fazer o filme anunciado, o clube fará o
que for preciso e para sempre.
Tudo isso, você está vendo, é um conto dentro de um livro, alguns lances de
fantástico ou de insólito, e coincide com a atmosfera dos outros contos desse
volume
que meu editor me entregou na véspera da minha partida do México. Que o livro
traga esse título apenas porque nenhum dos outros contos tinha para mim essa
ressonância
um pouco nostálgica e apaixonada que seu nome e sua imagem despertam em minha
vida desde que uma tarde, no Aldwych Theater de Londres, eu a vi fustigar com o
sedoso
látego de seus cabelos o torso nu do marquês de Sade; é impossível saber, quando
escolhi esse título para o livro, que de algum modo estava destacando o conto do
resto e pondo toda a sua carga na capa, tal como agora no seu último filme, que
acabo de ver há três dias aqui em São Francisco, alguém escolheu um título,
Hopscotch,
alguém que sabe que essa
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palavra se traduz por Rayuela*, em espanhol. As garrafas chegaram ao seu
destino, Glenda, mas o mar no qual andaram à deriva não é o mar dos navios e dos
albatrozes.
Tudo aconteceu em um segundo. Pensei ironicamente que tinha vindo a São
Francisco a fim de dar um curso para estudantes de Berkeley e que íamos nos
divertir com
a coincidência entre o título do filme e o do livro que seria um dos temas do
trabalho. Então, Glenda, vi a fotografia da protagonista e pela primeira vez me
amedrontei.
Ter chegado do México trazendo um livro que é anunciado com seu nome, e
encontrar o seu nome em um filme que é anunciado com o título de um dos meus
livros, já significava
uma bonita jogada do destino que tantas vezes me aprontou jogadas semelhantes;
mas isso não era tudo, isso não era nada até que a garrafa se despedaçou na
escuridão
da sala e fiquei conhecendo a resposta, digo resposta porque não posso nem quero
acreditar que seja uma vingança.
Não é uma vingança, mas um chamado fora de tudo que é admissível, um convite a
uma viagem que só pode ser realizada em territórios fora de qualquer território.
O
filme, que desde já posso dizer que é ruim, se baseia em um romance de
espionagem que não tem nada a ver com você ou comigo, Glenda, e precisamente por
isso senti
que por trás dessa trama um tanto estúpida e de corriqueira vulgaridade
escondia-se outra coisa, algo absurdo visto que você não podia ter nada para me
dizer e ao
mesmo tempo ter, porque agora você era Glenda Jackson e desde que tinha aceitado
fazer um filme com esse título eu
• Rayuela: "Jogo da amarelinha". Título de um livro do autor. (N.
da T.)
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não podia deixar de sentir que o tinha feito como a Glenda Garson, dos umbrais
dessa história, na qual eu a chamara assim. E mesmo que o filme não tivesse nada
a ver com isso, que fosse uma comédia de espionagem apenas divertida, me forçava
a pensar no óbvio, nessas cifras ou escritas secretas que em uma página de
qualquer
jornal ou livro previamente estabelecido liberam as palavras que transmitirão a
mensagem para quem conhecer a chave. E Glenda era assim, era exatamente assim.
Será
que preciso provar isso para você, quando a autora da mensagem está além de toda
prova? Se o digo é para os terceiros que vão ler o meu conto e ver o seu filme,
para leitores e espectadores que serão as ingênuas pontes de nossas mensagens:
um conto que acaba de ser editado, um filme que acaba de sair, e agora esta
carta
que quase indizivelmente os contém e os guarda.
Abreviarei um resumo que pouco nos interessa agora. No filme, você ama um
espião que começou a escrever um livro chamado Hopscotch com o objetivo de
denunciar os
sujos negócios da CIA, do FBI e da KGB, amáveis escritórios para os quais
trabalhou e que agora tudo fazem para eliminá-lo. Com uma lealdade que se
alimenta de
ternura, você o ajudará a forjar o acidente que o fará passar por morto diante
de seus inimigos; a paz e a segurança os esperam depois em algum canto do mundo.
Seu amigo publica Hopscotch, que, embora não seja o meu romance, é inevitável
que deva se chamar Rayuela quando algum editor de best-sellers o publicar em
espanhol. Quase no final do filme uma cena mostra exemplares do livro em uma
vitrina, assim como a edição de meu livro deve ter estado em
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algumas vitrinas norte-americanas, quando Pantheon Books o editou há anos. No
conto que acaba de sair no México, eu a matei simbolicamente, Glenda Jackson, e
nesse
filme você colabora na eliminação também simbólica do autor de Hopscotch. Você,
como sempre, é jovem e bela no filme, e seu amigo é velho e escritor como eu.
Com
meus companheiros do clube, entendi que só no desaparecimento de Glenda Garson
se fixaria para sempre a perfeição do nosso amor; você soube também que seu amor
exigia
o desaparecimento para se realizar livremente. Agora, no final disso que escrevi
com o vago horror de uma coisa igualmente vaga, sei de sobra que na sua mensagem
não há vingança, mas uma incalculável, formosa simetria, que a personagem da
minha história acaba se reunindo com a personagem do seu filme porque você assim
o quis,
porque somente esse duplo simulacro de morte por amor podia aproximálos. Ali,
nessa terra fora de qualquer bússola, você e eu estamos nos olhando, Glenda,
enquanto
aqui termino esta carta e você, em algum lugar, acho que em Londres, se maquila
para entrar em cena ou estuda o papel para seu próximo filme.
***
Fim de Etapa
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A Sheridan LeFanu, por certas casas.
A Antoni Taulé, por certas mesas.
Talvez tenha parado ali porque o sol estava alto e o mecânico prazer de dirigir
o carro nas primeiras horas da manhã dava lugar à modorra, à sede. Para Diana,
esse
povoado de nome anódino era outra pequena marca no mapa da província, longe da
cidade onde dormiria essa noite, e a praça, que as copas dos plátanos protegiam
do
calor da estrada, era como um parêntese no qual entrou com um suspiro de alívio,
freando ao lado do café onde as mesas se espalhavam sob as árvores.
O garçom trouxe-lhe um anisete com gelo e perguntou-lhe se mais tarde gostaria
de almoçar, sem pressa, porque serviam até as duas. Diana disse que daria uma
volta
pelo povoado e que retornaria. "Não há muito o que ver", informou-lhe o garçom.
Teria gostado de responder que ela também não tinha muita vontade de olhar, mas
ao
invés disso pediu azeitonas pretas e bebeu de modo quase brusco o comprido copo
onde o anisete irisava. Sentia na pele uma frescura de sombra, alguns fregueses
jogavam
baralho, dois meninos com um cachorro, uma velha na banca de jornais, tudo como
que fora do tempo, esticando-se na caligem do verão. "Como que fora do tempo",
tinha
pensado nisso enquanto olhava a mão de um dos jogadores que mantinha a carta
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longamente no ar antes de deixá-la cair na mesa com um gesto de triunfo. Era
isso que ela já não se sentia com ânimo para fazer, prolongar qualquer coisa
bela,
sentir-se viver de verdade nessa demora deliciosa que uma vez a havia mantido no
balanço do tempo. "Curioso que o fato de viver possa se tornar uma pura
aceitação",
pensou olhando o cachorro que arfava no chão, "inclusive essa aceitação de não
aceitar nada, de sair quase antes de chegar, de matar tudo o que ainda não é
capaz
de me matar." Deixava o cigarro nos lábios, sabendo que terminaria por queimar-
se e que teria de arrancar e esmagar o cigarro como fizera com esses anos em que
tinha
perdido todos os motivos para encher o presente com algo mais do que cigarros, o
cômodo talão de cheques e o carro sempre à sua disposição. "Perdido", repetiu,
"um
tema tão bonito de Duke Ellington e nem sequer me lembro dele, perdido
duplamente, moça e a moça também perdida, aos quarenta já é quase um modo de
chorar dentro
de uma palavra." Sentir-se tão idiota de repente exigia compensação e uma volta
pelo povoado, uma ida ao encontro de coisas que já não viriam sozinhas ao desejo
e à imaginação. Ver as coisas como quem é visto por elas, ali uma loja de
antigüidades sem interesse, agora a fachada vetusta do museu de belas-artes.
Anunciavam
uma exposição individual, nenhuma idéia a respeito do pintor de nome pouco
conhecido. Diana comprou um ingresso e entrou na primeira sala de uma modesta
casa de
peças contíguas, penosamente transformada por políticos de província. Tinham-lhe
dado um folheto que continha vagas referências a uma carreira artística
sobretudo
regional, fragmentos de críticas, os típicos elogios; abandonou-o sobre
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um consolo e contemplou os quadros, no primeiro momento pensou que eram
fotografias e lhe chamou a atenção o tamanho, era incomum ver tão grandes
ampliações a cor.
Interessou-se realmente quando reconheceu a matéria, a perfeição maníaca do
detalhe; de repente sucedeu o inverso, teve a impressão de estar vendo quadros
baseados
em fotografias, algo que ia e vinha entre os dois; ainda que as salas estivessem
bem iluminadas, a indecisão persistia diante dessas telas que talvez fossem
pinturas
de fotografias ou resultados de uma obsessão realista que levava o pintor a um
limite perigoso ou ambíguo.
Na primeira sala, havia quatro ou cinco pinturas que repetiam o tema de uma mesa
vazia, ou com poucos objetos, violentamente iluminada por uma luz solar rasante.
Em algumas telas se acrescentava uma cadeira, em outras, a mesa não tinha outra
companhia além da. sua sombra alongada no chão açoitado pela luz lateral. Quando
entrou na segunda sala viu uma coisa diferente, uma figura humana em uma pintura
que
unia um interior a uma ampla saída'para jardins pouco nítidos; a figura, de
costas, já se havia distanciado da casa, onde a mesa de sempre se repetia no
primeiro plano, eqüidistante entre o personagem pintado e Diana. Em pouco tempo
podia
compreender ou imaginar que a casa era sempre a mesma, agora vinha a extensa
galeria esverdeada de outro quadro onde a silhueta de costas olhava para uma
janela-porta
distante. Curiosamente, a silhueta do personagem era menos intensa do que as
mesas vazias, tinha o jeito de visitante casual que passeasse sem grande
motivação por
uma vasta casa abandonada. E depois havia o silêncio, não apenas porque Diana
parecia ser a única presença no
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pequeno museu mas também porque das pinturas emanava uma solidão que a escura
silhueta masculina só contribuía para aprofundar ainda mais. "Há alguma coisa na
luz",
pensou Diana, "essa luz que entra como uma matéria sólida e esmaga as coisas."
Entretanto a cor também estava cheia de silêncio, os fundos profundamente
negros,
a brutalidade dos contrastes que fazia as sombras se assemelharem a panos
fúnebres, moles tapeçarias de catafalco.
Ao entrar na segunda sala, descobriu surpresa que, além de outra série de
quadros com mesas vazias e o personagem de costas, havia algumas telas com temas
diferentes,
um telefone solitário, um par de figuras. Naturalmente, olhava para elas, mas
quase como se não as visse, a seqüência da casa com as mesas solitárias tinha
tanta
força que o restante das pinturas se convertia em um adorno suplementar, quase
como quadros de decoração pendurados na parede da casa pintada e não do museu.
Achou
engraçado descobrir-se tão hipnotizável, sentir o prazer um pouco sonolento de
ceder à imaginação, aos fáceis demônios do meio-dia. Voltou à primeira sala
porque
não estava certa de se lembrar bem de uma das pinturas que tinha visto,
descobriu que na mesa que presumia nua havia um jarro com pincéis. No entanto, a
mesa vazia
estava no quadro pendurado na parede oposta, e Diana permaneceu um momento
tentando conhecer melhor o fundo da tela. a porta aberta atrás da qual se
adivinhava outra
dependência, parte de uma chaminé ou de uma segunda porta. Cada vez ficava mais
evidente que todas as peças correspondiam a uma mesma casa, como a hipertrofia
de
um auto-retrato no qual o artista houvesse tido a elegância de se abstrair, a
menos que estivesse
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representado na silhueta negra (com uma longa capa em um dos quadros) ficando
obstinadamente de costas para o outro visitante, à intrusa que por sua vez tinha
pago
para entrar na casa e passear pelos cômodos vazios.
Voltou à segunda sala e foi em direção à porta entreaberta que se comunicava com
a seguinte. Uma voz amável e um pouco coibida fez com que ela se virasse; um
guardião
uniformizado - com esse calor, coitado - vinha para lhe dizer que o museu
fechava ao meio-dia, mas que abriria de novo às três e meia.
- Falta muito para ver? - perguntou Diana, que, de repente, sentia o cansaço dos
museus, a náusea dos olhos que consumiram muitas imagens.
- Não, a última sala, senhorita. Há apenas um quadro ali, dizem que o artista
exigiu que ficasse sozinho. Quer vê-lo antes de ir embora? Posso esperar um
momento.
Era idiota não aceitar, Diana sabia disso quando disse que não e os dois
trocaram uma brincadeira sobre os almoços que ficam frios se a gente não chega a
tempo.
"Não terá que pagar outro ingresso se voltar", disse o guardião, "agora já a
conheço." Na rua, ofuscada pela luz do sol a pino, imaginou que diabo estava
acontecendo
consigo, era absurdo ter-se interessado a tal ponto pelo hiper-realismo ou o que
fosse desse pintor desconhecido, e de repente deixar de ver o último quadro que
podia ser o melhor. Mas não, o artista tinha querido isolá-lo dos outros e isso
indicava que talvez fosse muito diferente, outro processo ou outro período de
trabalho,
para que romper assim uma seqüência que durava nela como um todo, incluindo-a em
um âmbito sem
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resquícios. Melhor não ter entrado na última sala, não ter cedido à obsessão do
turista consciencioso, à triste mania de querer abarcar os museus até o final.
Viu, a distância, o café da praça e pensou que era a hora de almoçar; não tinha
apetite, mas sempre tinha sido assim quando viajava com Orlando, para Orlando o
meio-dia
era o instante crucial, a cerimônia do almoço sacralizando de alguma maneira a
passagem da manhã para a tarde, naturalmente Orlando teria se negado a continuar
andando
pelo povoado quando o café ficava ali a dois passos. Mas Diana não estava com
fome e pensar em Orlando lhe doía cada vez menos; pôr-se a andar, distanciando-
se do
café, não era desobedecer ou trair rituais. Podia continuar lembrando-se sem
submissão de tantas coisas, abandonar-se à sorte da caminhada e a uma vaga
lembrança
de algum outro verão com Orlando nas montanhas, de uma praia que talvez voltasse
para exorcizar o fogo do sol nas costas e na nuca, Orlando nessa praia batida
pelo
vento e pelo sal enquanto Diana ia ficando perdida nas ruelas sem nomes e sem
pessoas, junto dos muros de pedra cinza, olhando abstraída para algum raro
portal aberto,
uma suspeita de quintais interiores, de bocas d'água fresca, glicínias, gatos
adormecidos nas lajes. Uma vez mais a sensação de não estar percorrendo um
povoado,
mas de ser percorrida por ele, as pedras da calçada resvalando para trás como em
uma correia móvel, esse estar ali enquanto as coisas fluem e se perdem às nossas
costas, uma vida ou um povoado anônimo. Agora vinha uma pequena praça com dois
bancos raquíticos, outra ruela abrindo-se em direção aos campos vizinhos,
jardins
com cercas
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não muito seguras, a solidão total do meio-dia, sua crueldade de matador de
sombras, de paralisador do tempo. O jardim um pouco abandonado não tinha
árvores, deixava
que os olhos corressem livremente até a ampla porta aberta da velha casa. Sem
acreditar e ao mesmo tempo sem negar, Diana entreviu na penumbra uma galeria
idêntica
à de um dos quadros do museu, sentiu-se como se abordasse o quadro do outro
lado, fora da casa ao invés de estar incluída como espectadora em seus
compartimentos.
Se havia algo fora do comum nesse momento, era a falta de estranheza em um
reconhecimento que a impelia a entrar sem vacilações no jardim e a se aproximar
da porta
da casa, por que não, se afinal pagara o seu ingresso, se não havia ninguém que
se opusesse à sua presença no jardim, à sua passagem pela dupla porta aberta,
percorrer
a galeria que se abria para a primeira sala vazia onde a janela deixava entrar a
cólera amarela da luz esmagando-se no muro lateral, recortando uma mesa vazia e
uma única cadeira.
Nem temor nem surpresa, inclusive o fácil recurso de apelar para o acaso tinha
escorregado por Diana sem encontrar pretexto, para que se abater com hipóteses
ou
explicações quando outra porta se já abria à esquerda e em um aposento de altas
lareiras a mesa inevitável desdobrava-se em uma longa sombra minuciosa. Diana
olhou
sem interesse para a pequena toalha branca e os três copos, as repetições se
tornavam monótonas, o embate da luz talhando a penumbra. A única diferença era a
porta
do fundo, que estando fechada ao invés de entreaberta introduzia algo inesperado
em um percurso que se realizava com tanta docilidade. Detendo-se apenas, disse a
si mesma que a porta estava fechada simplesmente
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porque ela não tinha entrado na última sala do museu, e que olhar por trás dessa
porta seria como voltar lá a fim de completar a visita. Tudo demasiado
geométrico
afinal, tudo incrível e ao mesmo tempo previsto, ter medo ou se assustar parecia
tão inconseqüente quanto começar a assobiar ou perguntar aos gritos se havia
alguém
em casa.
Nem sequer uma exceção na única diferença, a porta cedeu à sua mão e outra vez
surgiu a mesma coisa, o jato de luz amarela estatelando-se em uma parede, a mesa
que
parecia mais vazia que as outras, sua projeção alongada e grotesca como se
alguém houvesse arrancado dela uma pasta negra para jogá-la violentamente ao
chão, e por
que razão não vê-la de outra maneira, como um rígido corpo de quatro pés que
acabasse de ser despojado de suas roupas caídas ali em uma mancha negrusca.
Bastava
olhar as paredes e a janela e se deparava com o mesmo teatro vazio, desta vez
nem sequer havia outra porta que prolongasse a casa para novas dependências.
Embora
tivesse visto a cadeira junto à mesa, não a tinha incluído no seu primeiro
reconhecimento, mas agora a acrescentava ao já sabido, tantas mesas com ou sem
cadeiras
em tantos cômodos semelhantes. Vagamente decepcionada aproximou-se da mesa e se
sentou, pôs-se a fumar um cigarro, a brincar com a fumaça que subia no jato de
luz
horizontal, desenhando-se a si mesma como se quisesse oporse a essa vontade de
vazio de todos os cômodos, de todos os quadros, do mesmo modo que o breve riso
em
algum lugar às costas de Diana cortou por um instante o silêncio, se bem que
talvez fosse apenas um breve chamado de pássaro lá fora, um crepitar de madeiras
ressecadas;
era inútil, naturalmente,
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tornar a olhar o aposento precedente onde os três copos sobre a mesa lançavam
suas débeis sombras contra a parede, inútil apressar o passo, melhor fugir sem
pânico
mas sem olhar para trás.
Na ruela, um menino perguntou-lhe a hora e Diana pensou que deveria se apressar
se quisesse almoçar, mas o garçom parecia esperá-la sob os plátanos e lhe fez
um gesto de boas-vindas mostrando-lhe o lugar mais fresco. Comer nada
significava, mas no mundo de Diana quase sempre tinha sido assim, fosse porque
Orlando dizia
que
era hora de fazê-lo, fosse porque não restava outro remédio entre duas
ocupações. Pediu um prato e vinho branco, esperou dernais para um lugar tão
vazio; antes de
tomar o café e pagar, sabia que ia voltar ao museu, que o pior nela a obrigava a
reexaminar o que teria sido preferível assumir sem análise, quase sem
curiosidade,
e que se "não o fizesse, iria se lamentar no final da etapa, quando tudo se
tornasse comum como sempre, os museus e os hotéis e o inventário do passado.
Embora no
fundo nada tivesse ficado claro, sua inteligência se acalmaria como uma cadela
satisfeita logo que verificasse a total simetria das coisas, que o quadro
pendurado
na última sala do museu representava obedientemente o último aposento da casa;
inclusive o restante poderia entrar na ordem se pedisse ao guarda do museu para
preencher
os vazios, afinal, havia tantos artistas que copiavam exatamente seus modelos,
tantas mesas deste mundo tinham acabado no Louvre ou no Metropolitan duplicando
realidades
transformadas em pó ou esquecimento.
Atravessou sem pressa as duas primeiras salas (havia um casal na segunda,
falando em voz baixa
27
embora até esse momento fossem os únicos visitantes da tarde). Diana se deteve
diante de dois ou três dos quadros, e, pela primeira vez, o ângulo da luz entrou
também nela como uma impossibilidade que não havia querido reconhecer na casa
vazia. Viu que o casal retrocedia para a saída, e esperou ficar só antes de ir
até
a porta da última sala. O quadro estava na parede da esquerda, tinha que avançar
até o centro para olhar bem a representação da mesa e da cadeira onde uma mulher
se sentava. Assim como o personagem de costas em alguns dos outros quadros, a
mulher estava vestida de negro, mas tinha o rosto meio de lado, e o cabelo
castanho
lhe caía até os ombros no lado oculto do perfil. Não havia nada que a
distinguisse muito do anterior, como o homem que passeava em outras telas, ela
se integrava
à pintura; era parte de uma seqüência, uma figura a mais dentro da mesma vontade
estética. Ao mesmo tempo havia algo ali que talvez explicasse por que o quadro
estava
sozinho na última sala, das semelhanças aparentes surgia agora outro sentimento,
uma progressiva convicção de que essa mulher não se diferenciava do outro
personagem
somente pelo sexo, mas pela sua atitude, o braço esquerdo caindo ao longo do
corpo, a leve inclinação do torso que descarregava seu peso sobre o cotovelo não
visível
apoiado na mesa, estavam dizendo outra coisa a Diana, mostravam-lhe um abandono
que ia além da abstração ou da sonolência. Essa mulher estava morta, seu cabelo
e
seu braço caindo, sua imobilidade inexplicavelmente mais intensa que a fixação
das coisas e dos seres nos outros quadros: a morte aí como uma culminação do
silêncio,
da solidão da
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casa e de seus personagens, de cada uma das mesas e das sombras e das galerias.
Sem saber como, viu-se outra vez na rua, na praça, subiu no carro e saiu para a
estrada efervescente. Tinha apertado o acelerador, mas pouco a pouco foi
diminuindo
a velocidade e só começou a pensar quando o cigarro lhe queimou os lábios, era
absurdo ficar pensando quando havia tantas fitas com a música que Orlando havia
amado
e esquecido e que ela, às vezes, costumava escutar, deixando-se atormentar com a
invasão de lembranças preferíveis à solidão, à vaga visão do assento vazio a seu
lado. A cidade estava a uma hora de distância, como tudo parecia estar a horas
ou séculos de distância, o esquecimento, por exemplo, ou o agradável banho
quente
que tomaria no hotel, os uísques no bar, o jornal da tarde. Tudo simétrico como
sempre para ela, uma nova etapa como réplica da anterior, o hotel que
completaria
um número par de hotéis ou abriria o ímpar que a parada seguinte culminaria;
como as camas, os postos de gasolina, as catedrais ou as semanas. E a mesma
coisa devia
ter acontecido no
• museu onde a repetição acontecia maniacamente, coisa por coisa, mesa por mesa,
até a ruptura final insuportável, a exceção que tinha feito explodir em um
segundo
esse perfeito acordo de alguma coisa que já não cabia em nada, nem na razão nem
na loucura. Porque o pior era buscar algo razoável naquilo que desde o princípio
tinha sido algo de delírio, de repetição idiota, e ao mesmo tempo sentir uma
espécie de náusea que somente depois da realização de seu ciclo lhe devolveria
uma conformidade
razoável, e poria essa loucura do lado bom da sua vida, e o alinharia com as
outras simetrias, com as outras
29
etapas. Mas então não havia possibilidade, algo ali tinha escapado, e não era
possível prosseguir e aceitá-lo, todo o seu corpo se estendia para trás como se
resistisse
ao avanço, se algo havia a fazer seria dar meia-volta e regressar, convencer-se
com todas as provas da razão de que isso era bobagem, que a casa não existia ou
que
sim, que a casa estava ali, mas que no museu havia apenas uma mostra de desenhos
abstratos ou de pinturas históricas, algo que ela não tinha se dado ao trabalho
de ver. A fuga era uma maneira suja de aceitar o inaceitável, de infringir
demasiado tarde a única vida imaginável, a pálida aquiescência cotidiana à saída
do sol
ou às notícias do rádio. Chegou a um espaço vazio à direita, deu uma volta
completa e entrou de novo na estrada, em alta velocidade até que as primeiras
granjas
ao redor do povoado voltaram ao seu encontro. Deixou para trás a praça, lembrou-
se que virando à esquerda chegaria a um lugar onde poderia deixar o carro,
continuou
a pé pela primeira ruela vazia, ouviu uma cigarra cantar no alto de um plátano,
o jardim abandonado estava ali, a ampla porta continuava aberta.
Por que demorar nos dois primeiros aposentos onde a luz rasante não tinha
perdido a intensidade, verificar que as mesas continuavam ali, que talvez ela
mesma tivesse
fechado a porta do terceiro cômodo ao sair? Sabia que bastava empurrá-la, entrar
sem obstáculos e deparar em cheio com a mesa e a cadeira. Sentar-se outra vez
para
fumar um cigarro (a cinza do outro se acumulava desordenadamente em um ângulo da
mesa, o toco do cigarro deve ter sido jogado na rua), apoiando-se de lado para
evitar
o jato direto da luz da janela. Procurou o isqueiro no
30
bolso, olhou a primeira voluta de fumaça que se enroscava na luz. Se afinal o
leve riso tinha sido um canto de pássaro, do lado de fora nenhum pássaro cantava
agora.
Mas restavam-lhe muitos cigarros por fumar, podia apoiar-se na mesa e deixar que
seu olhar se perdesse na escuridão da parede do fundo. Podia ir embora quando
quisesse,
claro, e também poderia ficar; talvez fosse belo ver se a luz do sol ia subindo
pela parede, alongando mais e mais a sombra do seu corpo, da mesa e da cadeira,
ou
se continuaria assim sem mudar nada, a luz imóvel como todo o restante, como ela
e como a fumaça imóveis.
***
31
Segunda Viagem

Quem me apresentou ao Ciclone Molina foi o baixinho Juárez uma noite depois das
lutas. Pouco tempo depois Juárez foi a Córdoba para um trabalho, mas eu
continuei
encontrando-me de vez em quando com Ciclone nesse café de Maipú quinhentos que
não existe mais, quase sempre aos sábados depois do boxe. É provável que
tenhamos
falado de Mario Pradás logo no primeiro encontro, Juárez tinha sido um dos
torcedores mais fanáticos de Mario, mas não tanto quanto Ciclone porque Ciclone
foi sparring
de Mario quando este se preparava para a viagem aos Estados Unidos, e se
lembrava de tantas coisas de Mario,- o jeito como batia, suas famosas agachadas
até o chão,
sua incrível esquerda, sua coragem tranqüila. Todos nós tínhamos acompanhado a
carreira de Mario, raramente nos encontrávamos no café depois do boxe sem que
alguém
num dado momento se lembrasse de Mario, e então sempre se fazia um silêncio na
mesa, os rapazes fumavam calados, e depois vinham as lembranças, os detalhes, às
vezes
as polêmicas sobre datas, adversários e performances. Sobre o assunto Ciclone
tinha mais para dizer do que os outros porque fora sparring de Mario Pradás e
também
tinha sido seu amigo, nunca se esquecia de que Mario tinha conseguido para ele a
35
primeira preliminar no Luna Park, numa época em que o ringue estava mais cheio
de candidatos do que um elevador de ministério.
- Perdi por pontos - dizia então Ciclone, e todos nós ríamos, parecia engraçado
que tivesse retribuído tão mal o favor que Mario lhe fazia. Mas Ciclone não se
chateava
conosco, sobretudo comigo depois de Juárez lhe ter dito que eu não perdia
nenhuma luta e que era uma enciclopédia a respeito de campeões mundiais desde os
tempos
de Jack Johnson. Talvez por isso Ciclone gostava de me encontrar sozinho no
café, nos sábados à noite, falávamos longamente sobre coisas do esporte e ele
gostava
de se informar sobre os tempos de Firpo, para ele tudo aquilo era mitologia e
saboreava os fatos como uma criança, Gibbons e Tunney, Carpentier, eu ia lhe
contando
aos poucos com esse gosto de trazer à tona as lembranças, coisas que não podiam
interessar nem a minha mulher nem a minha menina, como você pode saber. E havia
mais,
Ciclone continuava lutando nas preliminares, ganhava ou perdia regularmente, sem
melhorar as posições, ganhava ou perdia igualmente, era daqueles que o público
conhece
sem se entusiasmar, uma ou outra vez estimulando-o um pouco na monotonia das
lutas sem importância. Não havia nada a fazer e ele sabia disso, não era um
nocauteador,
faltava-lhe técnica numa época em que havia muitos pesos-leves que conheciam
todos os truques; sem lhe dizer, é claro, eu o considerava um boxeador decente,
o cara
que ganhava algum dinheiro lutando da melhor maneira possível, sem mudar muito
de ânimo quando ganhava ou perdia; como os pianistas de bar ou os cantores de
ópera
que desempenham papéis secundários, veja, desempenhando
36
seus papéis como que distraidamente, nunca notei que mudasse depois de uma luta;
se não estava muito machucado ia para o café, tomávamos umas cervejas e ele
esperava
e recebia os comentários com um sorriso manso, me dava sua versão da coisa lá do
ringue, às vezes tão diferente da minha de espectador. Ficávamos alegres ou
calados,
de acordo com os casos, as cervejas eram para festejar ou consolar, gente fina
esse Ciclone, belo amigo. A ele justamente tinha que acontecer, por quê?, é uma
dessas
coisas em que a gente crê e não crê, o que inesperadamente aconteceu com Ciclone
e que ele mesmo nunca entendeu, uma coisa que começou sem aviso depois de uma
luta
perdida por pontos e um empate justo, no outono de um ano que não me lembro qual
era, faz tanto tempo já.
O que sei é que antes disso começar tínhamos voltado a falar de Mario Pradás, e
Ciclone me ganhava longe quando falávamos de Mario, dele sabia mais que ninguém,
mesmo não tendo conseguido acompanhá-lo aos Estados Unidos para a luta pelo
campeonato mundial, o treinador tinha escolhido somente um sparring porque lá
eles sobravam
e coube a José Catalano ir, mas assim mesmo. Ciclone estava a par de tudo
através de outros amigos e de jornais; cada luta ganha por Mario até a noite do
campeonato
e o que aconteceu depois, o que nenhum de nós podia esquecer mas que para
Ciclone era ainda pior, uma espécie de ferida que se sentia na sua voz e em seus
olhos
cada vez que se lembrava.
- Tony Giardello - dizia. - Tony Giardello, filho da puta.
Nunca o tinha ouvido insultar os que ganhavam dele, em todo caso não os
insultava assim, como se
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tivessem ofendido sua mãe. Que Giardello tivesse vencido Mario Pradás não lhe
entrava na cabeça, e pela maneira como se informara da luta, de cada detalhe que
tinha
juntado lendo e escutando outras pessoas, percebia-se que no fundo ele não
aceitava a derrota, procurava, sem dize-lo, alguma explicação que a mudasse em
sua memória,
sobretudo que mudasse a outra coisa, o que tinha acontecido depois quando Mario
não conseguiu se recuperar de um nocaute que tinha em dez segundos transformado
a
vida para projetá-lo numa queda inapelável, em duas ou três lutas ganhas com
dificuldade ou empatadas contra tipos que antes não teriam agüentado nem quatro
rounds,
e finalmente o abandono e a morte em poucos meses, sua morte de cachorro depois
de uma crise que nem os médicos entenderam, lá por Mendoza, onde não possuía nem
torcedores nem amigos.
- Tony Giardello - dizia Ciclone olhando a cerveja. - Que filho da puta.
Somente uma vez me animei a lhe dizer que ninguém tinha duvidado da boa forma
física com que Giardello havia vencido Mario, e a melhor prova era que após dois
anos
continuava sendo campeão mundial e tinha defendido o título outras três vezes.
Ciclone ouviu sem dizer nada, mas nunca eu repeti o comentário e confesso que
tampouco
ele insistiu no insulto, como se percebesse afinal. O tempo se mistura um pouco
na minha cabeça, deve ter sido nessa época que houve a luta - de certo valor por
falta de coisa melhor nessa noite - com o canhoto Aguinaga, e que Ciclone depois
de golpear como sempre nos primeiros três rounds entrou no quarto como se
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estivesse pedalando, e em quarenta segundos deixou o canhoto pendurado nas
cordas. Essa noite pensei que o encontraria no café mas certamente foi festejar
com outros
amigos ou foi para casa (estava casado com uma menina de Luján e gostava muito
dela), de modo que fiquei sem os comentários. Claro que depois disso eu não
podia
achar estranho que o pessoal do Luna Park arranjasse uma luta de fundo com
Rogelio Coggio, que vinha com muita fama de Santa Fé, e embora temesse o pior
para Ciclone
fui torcer por ele e juro que quase não pude acreditar no que aconteceu, isto é,
no princípio não aconteceu nada e Coggio tinha ganho facilmente a luta logo no
quarto
round, o caso do canhoto começava a me parecer uma pura casualidade quando
Ciclone começou a atacar quase que inesperadamente de início, de repente Coggio
se pendurou
nele como num cabide, o pessoal de pé não estava entendendo nada e Ciclone com
um golpe combinado de esquerda-direita o punha na lona por oito segundos e quase
em
seguida o fazia dormir <com um gancho que deve ter sido ouvido até na praça de
Mayo. Esta eu te devo, como se dizia então.
Nessa noite Ciclone chegou ao café com a turma de aduladores que sempre se
juntam aos vencedores, mas depois de festejar um pouco e tirar fotos com eles
veio à minha
mesa e se sentou como se quisesse que o deixassem tranqüilo. Não parecia cansado
se bem que Coggio lhe tivesse deixado uma sobrancelha estropiada, mas o que
achei
mais estranho foi o modo diferente com que me olhava, quase como me perguntando
ou se perguntando alguma coisa; de vez em quando esfregava sua munheca direita e
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tornava a me olhar de maneira esquisita. Vou lhe contar, estava tão surpreso
depois do que tinha visto que preferiria que ele falasse, se bem que no final
tive que
lhe dar a minha versão da coisa e creio que Ciclone entendeu bem que eu não
estava inteiramente convencido, o canhoto e Coggio em menos de dois meses e
desse jeito,
me faltavam as palavras.
Lembro-me, o café ia se esvaziando embora o dono deixasse a gente ficar o tempo
que nos desse na telha depois de descer a porta metálica. Ciclone bebeu outra
cerveja
quase de um gole e esfregou novamente o pulso machucado.
- Deve ser Alesio - disse -, a gente não percebe bem, mas só podem ser os
conselhos de Alesio.
Dizia-o como se explicando, sem convicção. Eu não estava sabendo que tinha
mudado de treinador e, claro, achei que essa poderia ser a causa, mas hoje
quando torno
a pensar nisso sinto que tampouco estava convencido de tal. Claro que alguém
como Alesio podia fazer muito por Ciclone, mas esse nocaute não podia aparecer
por milagre.
Ciclone olhava para as suas mãos, esfregava seu pulso.
- Não sei o que está acontecendo comigo - disse como se tivesse vergonha. -
Acontece de repente, as duas vezes foi igual, velho.
- Você está treinando esplendidamente - disse-lhe -, vê-se claramente a
diferença.
- Pode ser, mas assim de repente... Alesio é bruxo?
- Continue assim - disse-lhe de brincadeira e para tirá-lo dessa espécie de
ausência na qual eu o via -, acho que ninguém vai conseguir detê-lo, Ciclone.
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E foi assim mesmo, depois da luta com o Gato Fernández ninguém teve dúvidas de
que o caminho estava aberto, o mesmo caminho de Mario Pradás dois anos antes, um
navio,
duas ou três lutas como rápido preparo, o desafio pelo campeonato mundial. Foram
tempos difíceis para mim, teria dado qualquer coisa para acompanhar Ciclone mas
não podia sair de Buenos Aires, estive com ele o máximo possível, víamo-nos
bastante no café, se bem que agora Alesio cuidava dele e controlava sua cerveja
e outras
coisas. A última vez foi depois da luta com o Gato; não esqueço que Ciclone me
procurou entre o pessoal do café e pediu-me que fôssemos caminhar um pouco pelo
porto.
Entrou no carro e impediu que Alesio viesse conosco, descemos em uma das docas e
demos uma volta olhando os navios, já de início eu tinha esboçado um pensamento
achando que Ciclone queria me dizer alguma coisa; falei-lhe da luta, de como o
Gato tinha pelejado até o final, era novamente algo assim como preencher
silêncios
porque Ciclone me olhava sem escutar muito, assentindo e calando, o Gato, sim,
nada fácil o Gato.
- No princípio você me deu um susto - disse-lhe. - Você custa a se esquentar, e
é perigoso.
- Eu sei, porra. Alesio fica uma fera cada vez que isso acontece, acha que eu o
faço de propósito ou por simples vaidade.
- É mau, ora, alguém pode se adiantar nesse momento de pré-aquecimento e
derrubá-lo. E agora...
- Sim - disse Ciclone, sentando-se em um rolo de corda -, agora é Tony
Giardello.
- É mesmo, compadre.
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- O que você quer que eu faça, Alesio está certo, você também está. Não podem
entender, veja. Eu mesmo não compreendo, porque tenho que esperar.
- Esperar o quê?
- Eu sei lá, que aconteça - disse Ciclone e desviou" o rosto. Você não vai
acreditar mas se bem que de alguma maneira não me pegou tão de surpresa, assim
mesmo fiquei
meio sem entender, mas Ciclone não me deu tempo para me recuperar, me olhava
fixo nos olhos como querendo se decidir.
- Veja - disse. - Nem para Alesio nem para ninguém posso falar muito porque
teria que. lhes quebrar a cara, não gosto de ser tido como louco.
Repeti o velho gesto que é feito quando não se pode fazer outra coisa, pus minha
mão no seu ombro e o apertei.
- Não compreendo porra nenhuma - disse-lhe -, mas lhe agradeço, Ciclone.
- Ao menos você e eu podemos nos falar - disse Ciclone. - Como na noite de
Coggio, você se lembra? Você notou, você me disse: "Continue assim."
- Bem, não sei o que terei percebido, sei somente que tudo tinha sido bem-feito
e o disse para você, não devo ter sido o único.
Olhou-me fazendo-me sentir que não era somente isso, depois começou a rir. Rimos
os dois, relaxando os nervos.
- Dê-me um cigarro - disse Ciclone -, unzinho só, enquanto Alesio não está me
vigiando como a um neném.
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Fumamos de frente para o rio, para o vento úmido dessa meia-noite de verão.
- Já viu, é assim - disse Ciclone como se agora fosse mais fácil falar. - Eu não
posso fazer nada, tenho de lutar esperando que esse momento chegue. Em uma
dessas
vão me nocautear a frio, juro-lhe que me dá medo.
- O caso é que você custa a se aquecer.
- Não - disse Ciclone -, você sabe muito bem que não é isso. Dê-me outro
cigarro.
Esperei sem saber o quê, e ele fumava olhando para o rio, o cansaço da luta
estava lhe descendo aos poucos, teríamos que voltar ao centro. Eu tinha
dificuldade em
pronunciar cada palavra, juro-lhe, mas depois disso tinha de lhe perguntar, não
podíamos ficar assim porque seria pior, Ciclone tinha me trazido ao porto para
me
dizer alguma coisa e não podíamos ficar assim, veja.
- Não o entendo muito bem - disse-lhe -, mas talvez tenha pensado como você,
porque de outra maneira não dá para entender. O que está acontecendo.
- Você sabe o que acontece - disse Ciclone. Diga-me o que você quer que eu
pense.
- Não sei - custei a falar.
- É sempre a mesma coisa, começa com uma pasmaceira, não percebo nada, Alesio me
grita não sei o quê na orelha, sinto o sinal e quando desperto é como se
estivesse
começando, não consigo lhe explicar mas é tão estranho. Se não fosse que o outro
é o mesmo, o canhoto ou o Gato, pensaria que estou sonhando ou algo semelhante,
depois não sei bem o que acontece, dura tão pouco.
43
- Para o outro, você quer dizer - intercalei de brincadeira.
- Sim, mas também eu, quando me levantam o braço já não sinto mais nada, estou
de volta e não compreendo, tenho que me convencer aos poucos.
- Pode ser - disse eu sem saber o que falar -, pode ser que seja algo'assim,
quem pode saber. O fato é que você tem de continuar assim até o final, não tem
que se
criar problemas procurando explicações. No fundo acho que o que o deixa assim é
aquilo que você quer, tudo bem, não há necessidade de continuar insistindo.
- Sim - disse Ciclone -, deve ser isso, aquilo que eu quero.
- Embora você não esteja convencido.
- E você também, porque não se anima a acreditar.
- Deixe de história, Ciclone. Você quer é nocautear Tony Giardello, a coisa está
clara, penso.
- Está clara, mas...
- E me parece que você não quer derrubá-lo somente por você.
- Ha, ha.
- E então você já se sente melhor, ou quase. Caminhávamos de volta para o carro.
Achei que
Ciclone aceitava com seu silêncio o objetivo que o tempo todo tinha amarrado
nossa língua. Além do que, era um modo de tocar no assunto sem cair numa de
medo, se
é que você está me entendendo. Ciclone me deixou no ponto do ônibus; dirigia
devagar, meio adormecido no volante. Arriscava-se a acontecer qualquer coisa
antes de
chegar à sua casa. Fiquei inquieto, mas no outro dia vi as fotos de uma
44
reportagem feita com ele pela manhã. Falava dos projetos, claro, da viagem ao
norte, da grande noite que se aproximava vagarosamente.
Já lhe contei que não tive condições de acompanhar Ciclone, mas juntávamos
informações com a turma e não perdíamos nenhum detalhe. Quando Mario Pradás
viajou tinha
sido da mesma forma, primeiro as notícias sobre os treinos em New Jersey, a luta
com Grossmann, o descanso em Miami, um cartãopostal de Mario para a revista
Gráfico
falando de pesca de tubarões ou algo semelhante, depois a luta com Atkins, o
contrato para o campeonato mundial, a crítica norte-americana cada vez mais
entusiasta
e finalmente (veja se não é triste, digo finalmente e é tão real, porra) a noite
com Giardello, nós pendurados no rádio, cinco rounds equilibrados, o sexto de
Mario,
o sétimo empatado, quase na saída do oitavo a voz afogada do locutor repetindo a
contagem dos segundos,
gritando que Mario se levantava, tornava a cair, a nova contagem
até o final, Mario vencido, depois as fotos que faziam reviver tanta desgraça,
Mario no seu canto e Giardello botando-lhe uma luva na cabeça, o final, vou lhe
contar,
o final de tudo que tínhamos sonhado com Mario, de Mario. Como ia achar estranho
que mais de um jornalista portenho falasse da viagem de Ciclone com
subentendidos
de revanche simbólica, era essa a denominação. O campeão continuava lá esperando
contendores e derrubando todos, era'como se Ciclone pisasse nas marcas da outra
viagem e tivesse que passar pelas mesmas coisas, as barreiras que os
45
norte-americanos erguiam para qualquer um que buscasse o caminho do campeonato,
sobretudo se não fosse do país. Cada vez que eu lia esses artigos pensava que se
Ciclone tivesse
estado comigo teríamos comentado tudo simplesmente nos olhando,
compreendendo tudo de uma maneira tão diferente dos outros. Mas Ciclone também
deveria estar
pensando nisso sem precisar ler os jornais, cada dia que passava devia ser para
ele como que a repetição de alguma coisa que lhe apertaria o estômago, sem
querer
falar com ninguém como tinha falado comigo mesmo quando não tínhamos falado
grande coisa. Quando no quarto round espantou a primeira mosca, um tal de Doe
Pinter,
mandei para ele um telegrama de parabéns e ele me respondeu com outro: Estamos
indo, um abraço. Depois veio a luta com Tommy Bard, que no ano anterior tinha
agüentado
os quinze rounds com Giardello, Ciclone o nocauteou no sétimo, nem lhe falo do
delírio em Buenos Aires, você era muito novo e não se lembra, houve gente que
nem
foi trabalhar, houve confusões nas fábricas, acho que não sobrou cerveja em
parte alguma. A torcida estava tão segura de si que a nova luta já era dada como
ganha,
e estavam certos porque Gunner Williams apenas agüentou quatro rounds com
Ciclone. Agora vinha o pior, a espera desesperadora até o doze de abril, a
última semana
nos reunia cada noite no café de Maipú com jornais e fotos .e prognósticos, mas
no dia da luta fiquei sozinho em casa, depois teria tempo para festejar com a
turma,
agora Ciclone e eu tínhamos que estar lado a lado pelo rádio, por algo que
fechava a minha garganta e me obrigava a beber e fumar e dizer idiotices para
Ciclone,
falando-lhe da minha poltrona, da cozinha, dando voltas como um cão e
46
pensando no que Ciclone talvez estivesse pensando enquanto suas mãos eram
enfaixadas, enquanto anunciavam os pesos, enquanto um locutor repetia tantas
coisas que
já sabíamos de memória, a lembrança de Mario Pradás voltando-se para todos
daquela outra noite que não podia ser repetida, que nunca tínhamos aceitado e
que desejávamos
apagar como se apagam na bebida as coisas mais amargas.
Você sabe muito bem o que aconteceu, para que lhe contar, os três primeiros
rounds de Giardello mais veloz e técnico que nunca, o quarto com Ciclone
aceitando a
luta mão a mão e colocando-o em apuros no final do round, a quinta com todo o
estádio de pé e o locutor que não conseguia acompanhar com palavras o que estava
acontecendo
no centro do ringue, impossível seguir a troca de golpes a não ser gritando
palavras soltas, e quase na metade do round o direito de Giardello, Ciclone
desviando-se
para um lado sem ver chegar o gancho que o deitou de costas durante toda a
contagem, a voz do locutor chorando e gritando,
do barulho de um copo espatifando-se na parede antes que a garrafa espedaçasse a
frente do rádio, Ciclone nocaute, a segunda viagem idêntica à primeira, as
pílulas
para dormir, sei lá, às quatro da manhã
em um banco de alguma praça. Puta que pariu, cara.
Lógico, não há nada a comentar, você pode me dizer que é a lei do ringue e mais
outras merdas, de qualquer modo você não conheceu Ciclone e por que vai se
aborrecer.
Sabe, aqui choramos, fomos tantos os que choramos sozinhos ou com a turma, e
muitos pensaram e disseram que no fundo tinha sido melhor por que Ciclone não
teria
aceitado nunca a derrota e foi melhor que acabasse assim, oito horas de
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coma no hospital e tudo se acabou. Lembro-me, escreveram em uma revista que ele
tinha sido o único que não tinha se inteirado de nada, olhe se não é bonito,
filhos
da puta. Nem lhe conto sobre o enterro quando o trouxeram, depois de Gardel foi
o maior 'de Buenos Aires. Eu me separei da turma do café porque me sentia melhor
sozinho, nem sei quanto tempo se passou antes de me encontrar casualmente com
Alesio no hipódromo. Alesio estava em pleno trabalho de treino com Carlos Vigo,
e você
já sabe da carreira desse rapaz, mas quando fomos tomar uma cerveja ele se
lembrou de como eu tinha sido amigo do Ciclone e me falou sobre isso, falou de
uma maneira
especial, me olhando como se não soubesse muito bem se precisava dizê-lo ou se o
estava dizendo porque depois iria me dizer outra coisa, alguma coisa que lhe
minava
o interior. Alesio tinha fama de calado, e eu pensando novamente em Ciclone
preferia fumar um cigarro atrás do outro e pedir mais cerveja, deixar que o
tempo passasse
sentindo que estava ao lado de alguém que tinha sido um bom amigo de Ciclone e
que tinha feito tudo que fora possível por ele.
- Ele gostava muito de você - disse-lhe em um momento, porque o sentia e era
justo dizer-lhe isso, embora ele já o soubesse. - Antes da viagem, sempre que me
falava
de você o fazia como se se referisse a seu pai. Lembro-me de uma noite em que
saímos juntos, em um dado momento me pediu um cigarro e depois disse: "Agora que
Alesio
não está, porque ele cuida de mim como se eu fosse um neném."
- Sei disso - me disse -, era um rapaz direito, nunca tive problemas com ele, às
vezes me escapava
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por algum tempo mas retornava calado, sempre me dando razão, apesar de eu ser um
chato, pelo menos todos dizem isso.
- Ciclone, porra.
Nunca me esquecerei do momento em que Alesio ergueu o rosto e me olhou como se
de repente decidisse alguma coisa, como se tivesse chegado para ele um instante
longamente
esperado.
- Não me interessa o que você está pensando disse marcando cada palavra com seu
sotaque no qual a Itália ainda vivia. - Posso lhe contar isso porque vocês foram
amigos. Só vou lhe pedir uma coisa, se acha que estou amalucado vá embora sem me
responder, eu sei que de qualquer maneira nunca dirá nada.
Fiquei olhando-o, e de repente aconteceu novamente como uma noite no porto, um
vento úmido que molhava o rosto de Ciclone e o meu.
- Levaram-no para o hospital, sabe, e lhe fizeram uma trepanação, porque o
médico disse que o caso era muito
grave, mas havia possibilidade de se salvar. Olhe que
não era somente o soco mas também o golpe na nuca, a forma como bateu na lona,
eu vi isso muito claramente e ouvi o barulho, apesar da gritaria ouvi o barulho,
velho.
- Você realmente acha que ele teria se salvado?
- Sei lá, de qualquer modo já vi nocautes piores em minha vida. O fato é que às
duas da manhã já tinha sido operado e eu estava no corredor esperando, não nos
deixavam
vê-lo, éramos dois ou três argentinos e alguns americanos, pouco a pouco fui
ficando sozinho com alguns funcionários do hospital. Lá pelas cinco, um cara
veio me
procurar, eu não pesco muito o inglês mas compreendi que nada mais
49
podia ser feito. Parecia assustado, era um enfermeiro velho, um negro. Quando vi
Ciclone...
Pensei que não falaria mais, tremia-lhe a boca, bebeu derramando cerveja na
camisa.
- Nunca vi coisa igual, irmão. Era como se o tivessem torturado, como se alguém
tivesse querido se vingar não sei de quê. Não consigo me explicar, estava como
que
oco, como se tivesse sido chupado, como se lhe tivessem tirado todo o sangue,
perdoe o que estou lhe dizendo, mas não sei falar de outra maneira, era como se
ele
mesmo tivesse querido sair de si mesmo, arrancar-se de si mesmo, compreende?
Como uma bexiga desinflada, um boneco quebrado, percebe? Mas, quebrado por quem,
para
quê? Bom, se você quiser pode ir embora, não me deixe continuar falando.
Quando botei a mão no ombro dele me lembrei que também fiz o mesmo com Ciclone
na noite do porto, também coloquei então a mão no ombro de Ciclone.
- Como preferir - disse-lhe. - Nem você nem eu podemos entender, sei lá, talvez
sim mas não acreditaríamos. O que eu sei é que não foi Giardello quem matou
Ciclone,
Giardello pode dormir tranqüilo porque não foi ele, Alesio.
Naturalmente eu não compreendia, e muito menos você pela cara que está fazendo.
- Essas coisas acontecem - disse Alesio. - Claro que Giardello não teve culpa,
ora, não precisa me dizer.
- Já sei, mas você me confiou o que viu, e é justo que eu lhe agradeça. Eu lhe
agradeço tanto que vou lhe contar algo antes de ir embora. Por mais pena que a
gente
sinta do Ciclone, deve haver outro que
50
a merece mais que ele, Alesio. Acredite-me, há outra pessoa da qual eu sinto o
dobro de compaixão, mas é inútil continuar, você não acha?, nem Alesio entendeu
nem
tampouco você agora. E eu, bem, sei lá o que entendi, estou lhe contando porque
de repente, nunca se sabe, realmente não sei porque estou lhe falando, talvez
porque
já estou velho e dei para falar demais.
***
51
Satarsa

Adán y raza, azar y nada.'

Umas coisas assim para se achar o rumo, como essa agora de atar a rata, outro
palíndromo pedestre pegajoso, Lozano tem sido sempre um maníaco desses jogos que
não
parece ver como tal já que tudo se lhe apresenta como um espelho que mente e ao
mesmo tempo diz a verdade, diz a verdade a Lozano porque lhe mostra sua orelha
direita
à direita, mas ao mesmo tempo lhe mente porque Laura e qualquer um que o olhe
verá a orelha direita como a orelha esquerda de Lozano, embora simultaneamente a
definam
como sua orelha direita; simplesmente enxergam-na à esquerda, coisa que nenhum
espelho pode fazer, incapaz dessa correção mental, e por isso o espelho diz para
Lozano
uma verdade e uma mentira, o que o leva a pensar durante muito tempo como diante
de um espelho; se atar a rata não dá mais do que isso, as variantes merecem
reflexão,
e então Lozano olha para o chão e deixa que as palavras brinquem sozinhas
enquanto as espera assim como os caçadores de Calagasta esperam as ratas
gigantes para
caçá-las vivas.
* Adán y raza, azar y nada: Adão e raça, azar e nada (palíndromo).
(N. da T.)
55
Pode continuar assim durante horas, embora neste momento a questão concreta das
ratas não lhe deixa muito tempo para se perder nas possíveis variações. Que tudo
isso seja quase deliberadamente insano não o surpreende, às vezes encolhe os
ombros como querendo se livrar de algo que não consegue explicar, com Laura se
habituou
a falar da questão das ratas como se fosse a coisa mais normal e na realidade o
é, porque não pode ser normal caçar ratas gigantes em Calagasta, sair com o
mulato
Illa e com Yarará para caçar as ratas. Nessa mesma tarde terão de se
aproximar novamente das colinas do norte porque logo haverá um novo embarque de
ratas e deverão
aproveitá-lo ao máximo, as pessoas de Calagasta sabem disso e andam batendo
monte, embora sem se aproximar das colinas, e as ratas também sabem disso, claro
que
sim, e cada vez é mais difícil campeá-las e sobretudo capturá-las vivas.
Por todos esses motivos Lozano não vê nenhum absurdo no fato de que as pessoas
de Calagasta agora vivam quase que exclusivamente da caça das ratas gigantes, e
é
no momento que prepara um laço de couro muito delgado que lhe ocorre o
palíndromo de atar a rata e fica com um laço quieto na mão, olhando Laura que
cozinha cantarolando,
e pensa que o palíndromo mente e diz a verdade como todo espelho, claro que tem
de atar a rata porque é a única maneira de mantê-la viva até enjaulá-la(s) e dá-
las
a Porsena que despacha as jaulas no caminhão que cada quinta-feira sai para o
litoral, onde o navio está esperando. Mas também é uma mentira porque jamais
alguém
atou uma rata gigante senão
56
metaforicamente, subjugando-a pelo pescoço com uma forquilha e enlaçando-a até
enfiá-la na jaula, sempre com as mãos bem longe da boca sanguinolenta e das
garras
que
parecem vidros se agitando no ar. Ninguém nunca atará uma rata, e menos ainda
após a última lua na qual Illa, Yarará e os outros sentiram que as ratas
desenvolviam
novas estratégias, ficavam ainda mais perigosas tornando-se invisíveis e ocultas
em refúgios que anteriormente não usavam, e que caçá-las vai ser cada vez mais
difícil
agora que as ratas os conhecem e até os desafiam.
- Mais três ou quatro meses - diz Lozano para Laura, que está pondo os pratos na
mesa sob o alpendre do barraco. - Depois poderemos atravessar para o outro lado,
as coisas parecem mais tranqüilas.
- Pode ser - diz Laura -, em todo caso é melhor não pensar, quantas vezes já nos
enganamos.
- Sim. Mas não vamos ficar aqui para sempre caçando ratas. -*
- É preferível isso que atravessar para o outro lado fora de tempo e nos
transformarmos em ratas para eles.
Lozano ri, faz outro laço. Na verdade não se acham tão mal, Porsena paga as
ratas à vista e todo mundo vive disto, enquanto for possível caçá-las haverá
comida em
Calagasta, a companhia dinamarquesa que manda os barcos à costa necessita cada
vez mais de ratas para Copenhague, Porseno pensa que são usadas para
experiências
de genética nos laboratórios. Que pelo menos sirvam para isso, diz às vezes
Laura.
57
Do berço que Lozano fabricou com um caixote de cerveja, vem o primeiro protesto
de Laurita. O cronômetro, como a chama Lozano, a choradeira no segundo exato em
que Laura está acabando de preparar a comida e se ocupa da mamadeira. Com
Laurita quase que nem precisam de relógio, ela dá a hora melhor que o bip-bip do
rádio,
diz rindo Laura que agora pega-a nos braços e lhe mostra a mamadeira, Laurita
sorridente e de olhos verdes, o coto batendo na palma da mão esquerda num
arremedo
de tambor, o diminuto antebraço rosado que termina em uma lisa semi-esfera de
pele; o doutor Fuentes (que não é doutor mas em Calagasta é como se fosse) fez
um
trabalho perfeito e quase não há marca de cicatriz, como se Laurita nunca
tivesse tido uma mão ali, a mão que as ratas comeram quando as pessoas de
Calagasta começaram
a caçá-las em troca do dinheiro que os dinamarqueses pagavam e as ratas recuaram
até que um dia houve o contra-ataque, a raivosa invasão noturna seguida de fugas
vertiginosas, a guerra aberta, e muitas pessoas renunciaram a caçá-las para
simplesmente se defenderem com armadilhas e escopetas, e uma boa parte tornou a
cultivar
a mandioca ou a trabalhar em outros povoados da montanha. Mas outros continuaram
caçando-as, Porsena pagava à vista e o caminhão saía a cada quinta-feira em
direção
ao litoral, Lozano foi o primeiro a lhe dizer que continuaria caçando ratas,
disse-lhe ali mesmo no barraco enquanto Porsena olhava para a rata que Lozano
tinha
matado aos pontapés e Laura corria com Laurita para a casa do doutor Fuentes e
já nada mais podia ser feito, somente cortar o que restava
58
pendido e conseguir essa cicatriz perfeita para que Laurita inventasse seu
tamborzinho, seu silencioso jogo.
O mulato Illa não liga para a mania que Lozano tem de brincar tanto com as
palavras, cada qual é louco à sua maneira, pensa o mulato, mas não gosta que
Lozano exagere
e que às vezes queira que as coisas se ajustem a seus jogos, que ele e Yarará e
Laura o acompanhem por esse caminho como em tantas outras coisas o acompanharam
nesses
anos, desde a fuga pelas quebradas do norte depois dos massacres. Nesses anos,
pensa Illa, já nem sabemos se foram semanas ou anos, tudo era verde e sem
interrupção,
a selva com seu tempo próprio, sem sóis nem estrelas, e depois as quebradas, um
tempo avermelhado, tempo de pedra e torrentes e fome, sobretudo fome, querer
contar
os dias ou as semanas era como ter mais fome ainda, então tinham continuado os
quatro, primeiro os cinco mas Ríos se matou em um despenhadeiro e Laura quase
morreu
de frio na montanha, já estava de seis meses e se cansava facilmente, foram
obrigados a ficar sabe-se lá quanto tempo abrigando-a com fogueiras de mato seco
até
que conseguiu andar, às vezes o mulato Illa vê novamente Lozano carregando Laura
e Laura não querendo, dizendo que já está bem, que pode caminhar, e seguem em
direção
ao norte, até a noite em que os quatro viram as pequenas luzes de Calagasta e
souberam que por enquanto tudo iria bem, que essa noite comeriam em algum
barraco ainda
que depois os denunciassem e o primeiro helicóptero chegasse para
59
matá-los. Mas não os denunciaram, ali nem sequer conheciam as possíveis razões
para denunciá-los, ali todo mundo morria da fome como eles até que alguém
descobriu
as ratas gigantes perto das colinas e Porsena teve a idéia de mandar uma amostra
para o litoral.
- Atar a rata não é mais que atar a rata - diz Lozano. - Não tem nenhuma força
porque não vai lhe ensinar nada de novo e porque além disso ninguém pode atar
uma
rata. Você fica como no princípio, isso é que é foda com os palíndromos.
- Ha, ha - diz o mulato Illa.
- Mas se você pensar isso no plural tudo muda. Atar as ratas não é a mesma coisa
que atar a rata.
- Não me parece muito diferente.
- Porque já não vale como palíndromo - diz Lozano. - É só colocá-lo no plural e
tudo muda, nasce-lhe uma coisa nova, já não é o espelho ou é um espelho
diferente
que lhe mostra algo que você não conhecia.
- Que tem de novo?
- Tem que atar as ratas lhe dá Satarsa rata.
- Satarsa?
- É um nome, mas todos os nomes isolam e definem. Agora você sabe que há uma
rata que se chama Satarsa. Todas terão nomes, certamente, mas agora há uma que
se chama
Satarsa.
- E que você ganha sabendo isso?
- Também não sei, mas continuo. Ontem à noite pensei em dar uma volta ao
assunto, desatar em vez
60
de atar. E enquanto pensei em desatá-las* vi a palavra ao contrário e dava sal,
rata, sede. Coisas novas, veja o sal e a sede.
- Não tão novas - diz Yarará que escuta de longe -, afora andarem sempre juntas.
- Pode ser - diz Lozano -, mas mostram um caminho, talvez seja a única maneira
de acabar com elas.
- Não acabemos com elas tão rápido - ri Illa -, de que viveremos se elas
acabarem?
Laura traz o primeiro mate e espera, apoiando-se um pouco no ombro de Lozano. O
mulato Illa pensa outra vez que Lozano brinca demais com as palavras, que em uma
dessas vai ultrapassar os limites e tudo irá para o diabo.
Lozano pensa nisso também enquanto prepara os laços de couro, e quando fica a
sós com Laura e Laurita lhes fala do assunto, fala para as duas como se Laurita
pudesse
compreender e Laura gosta que inclua a sua filha, que fiquem os três mais juntos
enquanto Lozano lhes fala de Satarsa ou de como salgar a água para acabar com as
ratas.
- Para atá-las de verdade - ri Lozano. - Veja se não é curioso, o primeiro
palíndromo que conheci na minha vida também falava de atar alguém, não se sabe
quem mas
talvez já fosse Satarsa. Li-o em um conto onde havia muitos palíndromos mas me
lembro somente desse.
* Em espanhol desutarlas, que ao contrário dá sal, rata, sed.
(N. da T.)
61
- Você me disse isso uma vez em Mendoza, acho, mas já esqueci.
- Atale, demoníaco Caín, o me delata* - diz cadenciadamente Lozano, quase
salmodiando para Laurita que ri no berço e brinca com seu ponchinho branco.
Laura concorda, é verdade que já estão querendo atar alguém nesse palíndromo,
mas para atá-lo tem que se pedir nada menos que a Caim. E como se fosse pouco
tratando-o
de demoníaco.
- Ora - diz Lozano -, o convencionalismo de sempre, a boa consciência
arrastando-se na história desde o início, Abel, o bom e Caim, o mau como nos
velhos filmes
de cowboys.
- O mocinho e o bandido - lembra Laura quase nostálgica.
- Claro que se o inventor desse palíndromo se chamasse Baudelaire, demoníaco não
seria negativo e sim o oposto. Você se lembra?
- Um pouco - diz Laura. - Raça de Abel, dorme, bebe e come, Deus te sorri
compadecido.
- Raça de Caim, arrasta e morre miseravelmente no lodo.
- Sim, e em uma passagem diz qualquer coisa assim como raça de Abel, tua carniça
adubará o chão fumegante, e depois diz raça de Caim, arrasta tua família
desesperada
ao longo dos caminhos, algo assim.
- Até que as ratas devorem teus filhos - diz Lozano quase sem voz.
Laura mergulha o rosto nas mãos, há tanto tempo que aprendeu a chorar em
silêncio, sabe que
* Ate-o, demoníaco Caim, ou me delata: frase lida igual de trás pra frente.
(N. da T.)
62
Lozano não procurará consolá-la, Laurita sim, acha divertido o gesto e ri até
que Laura abaixa as mãos e lhe faz uma careta de cumplicidade. Já está se
aproximando
a hora do mate.
Yarará pensa que o mulato Illa tem razão e que em uma dessas voltas a loucura de
Lozano vai acabar com essa trégua em que pelo menos estão a salvo, pelo menos
vivem
com as pessoas de Calagasta e ali ficam porque nada mais podem fazer, esperando
que o tempo liquide um pouco as recordações do outro lado e que também os do
outro
lado vão se esquecendo de que não puderam aprisioná-los, que em algum lugar
perdido estão vivos e por isso culpados, por isso com a cabeça a prêmio,
inclusive a
do pobre Ruiz despencado de um barranco há tanto tempo já.
- É só não ligar para ele - pensa Illa em voz alta. - Sei lá, para mim ele é
sempre o chefe, isso conta, compreende?, eu não sei bem, mas que conta, conta e
para
mim é o suficiente.
- Quem fodeu ele foi a educação - diz Yarará.
- Passa todo o tempo pensando ou lendo, isso é mau.
- Pode ser. Eu não sei se é isso, Laura também foi para a universidade e veja
bem, nem se nota. Não acho que seja a educação, o que o deixa louco é estarmos
socados
neste buraco, e o que aconteceu com Laurita, pobre garotinha.
- Vingança - diz Yarará. - O que ele quer mesmo é se vingar.
63
- Todos nós queremos nos vingar, alguns dos milicos e outros das ratas, é
difícil manter a cabeça fria.
Illa acha que a loucura de Lozano não muda nada, que as ratas continuam ali e
que é difícil caçá-las, que as pessoas de Calagasta não se animam a ir longe
demais
porque se lembram das histórias do esqueleto do velho Millán ou da mão de
Laurita. Mas eles também estão loucos, e sobretudo Porsena com o caminhão e as
jaulas,
e o pessoal do litoral e os dinamarqueses são ainda mais loucos gastando
dinheiro com as ratas, sabe-se lá para quê. Isso não pode durar muito, há
maluquices que
acabam de repente e então haverá novamente a fome, a mandioca quando houver, as
crianças morrendo com as barrigas inchadas. Por isso é melhor estar loucos, no
final
das contas.
- Melhor estar loucos - diz Illa, e Yarará olha para ele surpreso e depois ri,
quase concordando.
- A questão é não entrar nó ritmo dele quando começa com Satarsa e o sal e tudo
mais, de qualquer maneira nada muda, ele sempre é o melhor caçador.
- Oitenta e duas ratas - diz Illa. - Bateu o recorde de Juan López que andava em
setenta e oito.
- Não me faça passar vergonha - diz Yarará -, eu apenas com minhas trinta e
cinco.
- Veja - diz Illa -, veja, ele sempre é o chefe, de qualquer maneira.
Nunca se sabe bem como chegam as notícias, de repente há alguém que sabe de
alguma" coisa no armazém do turco Adab, quase nunca indica a fonte mas as
pessoas vivem
tão isoladas que as notícias
64
chegam como uma rajada de vento do oeste, o único capaz de trazer um pouco de
frescura e às vezes de chuva. Tão raro como as notícias, tão breve como a água
que
talvez salvará as plantações sempre amarelas, sempre enfermas. Uma notícia ajuda
a continuar levando, ainda que seja má.
Laura se informa pela mulher de Adab, volta ao barraco e a divulga em voz baixa
como se Laurita pudesse compreender, dá outro mate para Lozano que o suga
devagar,
olhando para o chão onde um bicho negro avança devagar em direção ao fogão.
Esticando apenas a perna esmaga o bicho e terminando o mate, devolve-o para
Laura sem
olhá-la, lado a lado como tantas vezes, como tantas coisas.
- É preciso ir embora - diz Lozano. - Se é verdade, logo estarão por aqui.
- Ir para onde?
- Não sei, e aqui ninguém o saberá tampouco, vivem como se fossem os primeiros e
os últimos homens. Para o litoral, no caminhão, suponho, Porsena estará de
acordo.
- Parece piada - "3iz Yarará que enrola um cigarro com lentos movimentos de
oleiro. - Ir-nos com as jaulas das ratas, veja só. E depois?
- Depois não é problema - diz Lozano. Mas é necessário dinheiro para esse
depois. O litoral não é Calagasta, teremos de pagar para que abram nosso
caminho
para o norte.
- Pagar - diz Yarará. - A que ponto chegamos, obrigados a trocar ratas pela
liberdade.
- Pior são eles que trocam a liberdade por ratas
- diz Lozano.
Do seu canto onde se obstina em remendar uma bota sem conserto, Illa ri
parecendo tossir. Outro
65
jogo de palavras, mas há ocasiões nas quais Lozano acerta o alvo e então é quase
como se tivesse razão com sua mania de andar virando tudo ao contrário, de ver
tudo do outro lado. A cabala do pobre, disse certa vez Lozano.
- A questão é a guria - diz Yarará. - Não podemos nos meter no morro com ela.
- Certo - diz Lozano -, mas na costa talvez encontremos algum pesqueiro que
deixe a gente mais acima, é questão de sorte e de dinheiro.
Laura lhe dá um mate e espera, mas ninguém diz nada.
- Eu acho que vocês dois deveriam ir-se agora
- diz Laura sem olhar para ninguém. - Lozano e eu resolveremos o que fazer, não
há razão para demorarem mais, vão imediatamente pela montanha.
Yarará acende um cigarro e enche a cara de fumaça. O fumo de Calagasta não é
bom, faz os olhos, chorarem e provoca tosse em todo mundo.
- Você encontrou por acaso uma mulher mais louca? - diz para Illa.
- Não, ora. Claro que talvez esteja querendo se livrar da gente.
- Vão à merda - diz Laura dando as costas, se negando a chorar.
- É possível conseguir dinheiro suficiente diz Lozano. - Se caçarmos muitas
ratas.
- Se caçarmos.
- Podemos - insiste Lozano. - O negócio é começar hoje mesmo, sair para pegá-
las. Porsena nos dará o dinheiro e deixará a gente viajar no caminhão.
- Concordo - diz Yarará -, mas dizer e fazer são outras.
66
Laura espera, olha os lábios de Lozano como se assim pudesse deixar de ver os
olhos dele fixados num longínquo vazio.
- Teremos de ir até as cavernas - diz Lozano.
- Não falar nada com ninguém, levar todas as jaulas na carroça do tape Guzmán.
Se falarmos alguma coisa vão começar com aquele papo do velho Millán e não vão
querer
que a gente se vá, você já sabe que gostam da gente. Mas o velho também não lhes
disse nada daquela vez e foi por conta própria.
- Mau exemplo - diz Yarará.
- Porque foi sozinho, porque se deu mal, pense o que quiser. Nós somos três e
não somos velhos. Se as encurralássemos na cova, porque acredito que seja uma
cova
só e não muitas, nós as fumegamos até fazê-las sair. Laura cortará essa pele de
vaca para enrolar bem as nossas pernas das botas para cima. E com dinheiro
podemos
seguir para o norte.
- Por via das dúvidas levamos todos os cartuchos - diz Illa para Laura. - Se seu
marido tiver razão haverá ratas de sobra para encher dez jaulas, e as outras que
apodreçam cheias de bala, porra.
- O velho Millán também levava a escopeta diz Yarará. - Mas é claro, ele era
velho e estava sozinho.
Saca o facão e o experimenta em um dedo, dependura a pele de vaca e começa a
cortá-la em tiras regulares. Fará isso melhor do que Laura, as mulheres não
sabem manejar
facas.
O zaino puxa sempre para a esquerda embora o tobiano agüente e a carroça
continua abrindo um rastro impreciso, diretamente para o norte nos
67
pastiçais; Yarará estende mais as rédeas, grita para o zaino que sacode a cabeça
protestando. Quase já não há luz quando chegam ao farelhão, mas de longe
enxergaram
a 'entrada da cova se desenhando na pedra branca; duas ou três ratas os
farejaram e se esconderam na cova enquanto eles descem as jaulas de arame e as
dispõem em
semicírculo perto da entrada. O mulato Illa"corta com machetadas o mato seco,
descem as estopas e o querosene da carroça e Lozano vai até a cova, vê que pode
entrar
apenas encolhendo a cabeça. Os outros lhe gritam que não seja doido, que fique
do lado de fora; a lanterna já percorre as paredes buscando o túnel mais
profundo
pelo qual não é possível a passagem, o buraco negro e móvel de pontos vermelhos
que o feixe de luz agita e revolve.
- O que você está fazendo aí? - chega-lhe a voz de Yarará. - Saia, porra!
- Satarsa - diz Lozano em voz baixa, falando para o buraco de onde é olhado por
olhos em torvelinho.
- Saia você, Satarsa, saia, rei das ratas, você e eu sozinhos, você e eu e
Laurita, filho da puta.
- Lozano!
- Estou indo, cara - diz Lozano devagar. Escolhe um par de olhos mais na frente,
mantém os mesmos sob o feixe de luz, pega o revólver e atira. Um redemoinho de
faíscas
vermelhas e de repente nada, talvez nem sequer acertou. Agora somente a fumaça,
sair da cova e ajudar Illa que amontoa o mato e a estopa, o vento os ajuda;
Yarará
aproxima um fósforo e os três esperam ao lado das jaulas; Illa deixou uma
passagem bem marcada para que as ratas possam escapar da armadilha sem se
68
queimar, para enfrentá-las justamente diante das jaulas abertas.
- E disto é que tinha medo a gente de Calagasta? - diz Yarará. - O velho Millán
deve ter morrido de outra coisa e foi comido quando já era defunto.
- Não se fie nisto - diz Illa.
Uma rata pula para fora e a forquilha de Lozano prende-a pelo pescoço, o laço se
levanta no ar e a arremessa na jaula; a que vem depois consegue escapar de
Yarará,
mas agora saem quatro ou cinco de cada vez, ouvem-se os guinchos na cova e mal
prendem uma e já cinco ou seis escorregam como víboras tentando se afastar das
jaulas
e sumir no pasto. Um rio de ratas sai como um vômito avermelhado, lá onde as
'forquilhas estão encravadas há uma presa, as jaulas vão se enchendo de uma
massa convulsa,
sentem-nas contra as pernas, continuam saindo montadas uma sobre as outras, se
despedaçando às dentadas para escapar do calor do último trecho,
debandando-se na escuridão. Lozano, como sempre, é o mais rápido, já encheu uma
jaula e está na metade da outra, Illa solta um grito abafado e levanta uma
perna,
afunda a bota em
uma massa movediça, a rata não quer largar e Yarará com sua forquilha agarra-a e
laça, Illa xinga e olha a pele de vaca como se a rata ainda estivesse mordendo.
No final, saem as maiores, já não parecem ratas e é difícil afundar-lhes a
forquilha no pescoço e erguêlas no ar; o laço de Yarará se rompe e uma rata
escapa arrastando
o pedaço de couro, mas Lozano grita que não interessa, que falta somente uma
jaula, entre Illa e ele enchem-na e a fecham a golpes de forquilha, empurram os
trincos,
levantam-nas com
69
ganchos de arame e as sobem na carroça e os cavalos se espantam e Yarará tem que
subjugá-los pelo bocado, falar-lhes enquanto os outros trepam no pescante. Já é
noite fechada e a fogueira começa a se apagar.
Os cavalos farejam as ratas e no princípio é necessário afrouxar as rédeas, saem
a galope como querendo fazer em pedaços a carroça, Yarará tem que dominá-los e
até
Illa ajuda, as quatro mãos nas rédeas até que o galope se rompe e voltam a um
trote intermitente, a carroça se desvia e as rodas se enredam em pedras e
matagais,
atrás as ratas chiam e se estraçalham, das jaulas já vem o cheiro de sebo, de
merda líquida, os cavalos farejam isso e relincham defendendo-se do bocado,
querendo
se safar e escapar, Lozano junta suas mãos às dos outros nas rédeas e conseguem
ajustar a marcha pouco a pouco, contornam o monte pelado e vêem surgir o vale,
Calagasta
com apenas três ou quatro luzes, a noite sem estrelas, à esquerda a pequena luz
do barraco no meio do campo parecendo vazio, subindo e descendo com as
sacudidelas
da carroça, apenas quinhentos metros, perdendo-se de repente quando a carroça
entra no matagal onde o caminho é todo de espinhos fustigando os rostos, a
picada apenas
visível que os cavalos descobrem melhor do que as seis mãos que afrouxam as
rédeas pouco a pouco, as ratas gritando e se revolvendo a cada sacudida, os
cavalos resignados,
mas puxando como se quisessem chegar imediatamente, estar lá onde os soltarão
desse fedor e desses guinchos, a fim de partir em direção ao monte e se
encontrar com
a sua noite,
70
deixando para trás essa coisa que os segue e os persegue e os enlouquece.
- Vá voando procurar Porsena - diz Lozano para Yarará -, que venha logo para
contá-las e nos dar o dinheiro," temos que nos aprontar para sair de madrugada
com o
caminhão.
O primeiro tiro parece quase piada, fraco e isolado, Yarará não teve tempo de
responder para Lozano quando a rajada chega com um ruído de cana seca fazendo-se
em
mil pedaços contra o chão, uma crepitação apenas mais forte que os chiados das
jaulas, um golpe de lado e a carroça desviando-se para o matagal, o zaino à
esquerda
querendo se arrancar dos puxões e dobrando as patas dianteiras, Lozano e Yarará
pulando ao mesmo tempo, Illa do outro lado, estatelando-se no matagal enquanto a
carroça continua com as ratas chiando e pára a três metros, o zaino pisoteando o
chão, ainda meio preso pelo eixo da carroça, o tobiano relinchando e se
debatendo
sem poder se mover.
- Corte por aí - diz Lozano a Yarará.
- Pra que merda - diz Yarará. - Chegaram antes, já nem vale a pena.
Illa junta-se a eles, levanta o revólver e olha para o matagal como que
procurando uma claridade. Não dá para ver a luz do barraco mas sabem que ele
está ali, bem
detrás do matagal, a cem metros. Ouvem as vozes, uma que manda aos gritos, o
silêncio e a nova rajada, as chicotadas no matagal, outra rajada procurando-os
mais
embaixo como que tentando ao acaso, esses filhos da puta têm balas de sobra, vão
atirar até se cansar. Protegidos pela carroça e pelas jaulas, pelo cavalo morto
e pelo outro que se debate como uma parede móvel, relinchando
71
até que Yarará lhe aponta para a cabeça e o liquida, pobre tobiano tão corajoso,
tão amigo, a massa se resvalando ao longo do timão e se apoiando nas ancas do
zaino
que ainda se sacode de vez em quando, as ratas denunciando-os com guinchos que
atravessam a noite, agora ninguém conseguirá fazê-las calar, é necessário abrir-
se
em direção da esquerda, nadar de braçada no matagal espinhoso, jogando para
frente as escopetas e apoiando-se para ganhar meio metro, distanciar-se da
carroça onde
agora se concentra o fogo, onde as ratas gritam e clamam como se entendessem,
como que se vingando, não se pode atar as ratas, pensa Illa, você estava certo,
meu
chefe, estou cagando para seus joguinhos, mas você estava certo, puta que pariu
para o seu Satarsa, quanta razão tinha, vai tomar no
cu.
Aproveitar a diminuição do matagal, são dez metros de grama somente, um vazio
que se pode ultrapassar rastejando de lado, as velhas técnicas, rolar e rolar
até entrar
em outro pasto fechado, erguer bruscamente a cabeça para abranger tudo em um
segundo e se esconder novamente, a pequena luz do barraco e as silhuetas em
movimento,
o reflexo instantâneo de um fuzil, a voz do que dá as ordens aos gritos, o
tiroteio contra a carroça que grita e chia no matagal, Lozano não olha para os
lados nem
para trás, ali há somente silêncio, há Illa e Yarará mortos ou talvez como ele
deslizando ainda entre os matos e procurando um refúgio, abrindo picada com o
aríete
do corpo, queimando o rosto contra os espinhos, cegas e ensangüentadas toupeiras
afastando-se das ratas, porque agora sim são as
72
ratas, Lozano divisa-as antes que sumam novamente no matagal, da carroça chegam
os guinchos cada vez mais raivosos porém as outras ratas não estão ali, as
outras
ratas fecham seu caminho entre o matagal e o barraco e embora a luz continue
acesa no barraco, Lozano já sabe que Laura e Laurita não estão ali, ou estão ali
mas
já não são Laura e Laurita agora que as ratas chegaram ao barraco e tiveram todo
o tempo de que necessitavam para fazer o que terão feito, para esperá-lo da
maneira
como o estão esperando entre o barraco e a carroça, atirando uma rajada após
outra, mandando e obedecendo e atirando agora que já não tem sentido chegar ao
barraco
e no entanto mais um metro, outra queda que enche suas mãos de espinhos
ardentes, a cabeça se mostrando para olhar, para ver Satarsa, saber que aquele
que grita
instruções é Satarsa e todos os outros são Satarsa e se endireitar e atirar a
inútil descarga de chumbo contra Satarsa que bruscamente se vira na sua direção
e cobre
o rosto com as mãos e cai para trás, atingido pela chumbada que atingiu seus
olhos, que rebentou sua boca, e Lozano atirando o outro cartucho contra ele que
vira
a metralhadora na sua direção e o macio estampido da escopeta afogado pela
crepitação da rajada, os matagais sendo esmagados sob o peso de Lozano que cai
de boca
entre os espinhos que se afundam no seu rosto, nos olhos abertos.
***
73

A Escola de Noite

De Nito já não sei mais nada nem quero saber. Passaram-se tantos anos e tantas
coisas, talvez ainda esteja lá ou morreu ou anda pelo mundo afora. Mas não vale
a
pena pensar nele, entretanto às vezes sonho com os anos trinta em Buenos Aires,
a época da escola normal e claro, de repente com Nito e eu na noite em que nos
metemos
na escola, depois não me lembro muito dos sonhos, mas alguma coisa de Nito fica
sempre flutuando no ar, faço o possível para esquecer, é melhor que se apague
novamente
até outro sonho, embora eu nada possa fazer, de quando em quando é-essim, de
quando em quando tudo retorna como agora.
A idéia de nos metermos de noite na escola anormal (nós a chamávamos assim de
brincadeira e por outras razões mais concretas) foi de Nito e me lembro muito
bem que
foi em La Perla do bairro de Once quando tomávamos um cinzano com bitter. Meu
primeiro comentário consistiu em lhe dizer que estava mais louco que uma
galinha, nonobistante
- naquela época escrevíamos assim, desortografando o idioma por algum desejo de
vingança que também teria a ver com a escola -, Nito continuou com sua idéia e
tome
esta de escola à noite, seria
77
tão bacana explorá-la, mas o que se pode explorar ali se já a temos mais que
manjada, Nito, mas eu gostava da idéia, e só discutia para brigar um pouco, eu o
deixava
ir acumulando pontos pouco a pouco. Em certo momento comecei a afrouxar com
elegância, porque eu também não achava a escola tão manjada, embora tivéssemos
ali seis
anos e meio de jugo, quatro para nos formar em professor primário e quase três
para a licenciatura em letras, agüentando matérias tão incríveis como Sistema
Nervoso,
Dietética e Literatura Espanhola, esta última a mais incrível porque no terceiro
trimestre não tínhamos saído nem sairíamos do Conde Lucanor. Talvez por isso,
pela
forma com que perdíamos o tempo Nito e eu achávamos a escola meio estranha e ela
nos dava a impressão de ter alguma coisa que desejaríamos conhecer melhor. Não
sei,
penso que havia outra coisa também, para mim pelo menos a escola não era tão
normal como o pretendia seu nome, sei que Nito pensava como eu e me falou sobre
isso
no início de nossa amizade, nos remotos dias de um primeiro ano cheio de
timidez, cadernos e compassos. Já não falávamos disso após tantos anos, mas essa
manhã em
La Perla senti como se o projeto de Nito viesse dali e que por isso ia me
conquistando pouco a pouco; como se antes de acabar o ano e dar para sempre as
costas à
escola-tivéssemos ainda que acertar uma conta com ela, acabar de entender coisas
que nos tinham escapado, esse desconforto, que Nito e eu sentíamos às vezes nos
pátios ou nas escadas, eu sobretudo todas as manhãs quando via as grades da
entrada, sentia um leve aperto no estômago desde o primeiro dia ao ultrapassar
essa grade
pontiaguda atrás da qual se abria o peristilo solene
78
e começavam os corredores com sua cor amarelada e a dupla escadaria.
- Por falar em grade, o jeito é esperar até meianoite - tinha dito Nito - e
subir por ali onde notei duas pontas dobradas, colocando um poncho dá e sobra.
- Facílimo - dissera eu -, justamente na hora aparece a velha na esquina ou
alguma velha da frente dá o primeiro alerta.
- Você vai demais ao cinema, Totó. Quando foi que viu alguém por ali a essas
horas? O músculo dorme, velho.
Eu ia me deixando tentar aos poucos, certamente seria fácil e não aconteceria
nada nem fora nem dentro, a escola seria a mesma escola da manhã, um pouco
frankenstein
na escuridão se se quer, nada mais, poderia haver ali de noite além de bancos e
quadros-negros e algum gato procurando camundongos, e isso sim era o que havia.
Mas Nito dá-lhe com o poncho e a lanterna, é necessário dizer que nos
aborrecíamos bastante* nessa época em que tantas meninas ainda eram guardadas a
sete chaves
marca papai e mamãe, tempos de austeridade imposta à força, não gostávamos muito
de bailes nem de futebol, líamos como loucos de dia, mas de noite vagávamos - às
vezes com Fernández López, que morreu tão jovem - e conhecíamos Buenos Aires e
os livros de Castelnuovo e os cafés do baixo e do dock sur, e afinal não parecia
tão
ilógico que quiséssemos também entrar na escola de noite, seria completar algo
incompleto, algo para guardar em segredo e pela manhã olhar os rapazes
esnobando-os,
pobres tipos obedecendo ao horário e o Conde Lucanor das oito ao meio-dia.
79
Nito estava decidido, se eu não quisesse acompanhá-lo ele pularia sozinho um
sábado à noite, explicou-me que tinha escolhido o sábado porque se alguma coisa
não
funcionasse bem e ficasse trancado, teria tempo para procurar uma outra saída.
Fazia anos que a idéia o rondava, talvez desde o primeiro dia, quando a escola
era
ainda um mundo desconhecido e nós da turma do primeiro ano ficávamos nos pátios
do térreo, perto da sala de aula como franguinhos. Pouco a pouco tínhamos
avançado
por corredores e escadas até adquirirmos uma idéia da enorme caixa de sapatos
amarela com suas colunas, seus mármores e esse cheiro de sabão misturado com o
ruído
dos recreios e o ronronar das horas de aula, mas a familiaridade não havia
tirado totalmente de nós aquilo que a escola tinha de território diferente,
apesar do
costume, dos companheiros, da matemática. Nito se lembrava de pesadelos, onde
coisas instantaneamente apagadas por um violento despertar tinham acontecido nas
galerias
da escola, na sala de aula do terceiro ano, nas escadarias de mármore; sempre à
noite, claro, sempre ele sozinho na escola petrificada pela noite, e Nito não
conseguia
se esquecer disso pela manhã, entre centenas de garotos e de ruídos. Eu, ao
contrário, nunca tinha sonhado com a escola mas da mesma maneira me surpreendia
pensando
como a escola seria com a lua cheia, os pátios do térreo, as galerias altas,
imaginava uma claridade de mercúrio nos pátios vazios, a sombra implacável das
colunas.
Às vezes descobria Nito em algum recreio, afastado dos outros e olhando para
cima onde os parapeitos das galerias mostravam corpos truncados, cabeças e
torsos passando
de um lado para o outro, mais abaixo calças e sapatos que nem sempre
80
pareciam pertencer ao mesmo aluno. Se me acontecia subir sozinho pela grande
escadaria de mármore, quando todos estavam
em aula, sentia-me como que abandonado, subia
ou descia os degraus de dois em dois, e acho que por isso mesmo tornava a pedir
licença uns dias depois para sair da aula e repetir algum itinerário com o ar de
quem vai buscar uma caixa de giz ou vai ao banheiro. Era como no cinema, a
delícia de um suspense idiota, e por tudo isso acho que me defendi tão mal do
projeto
de Nito, de sua idéia de enfrentar a escola; eu nunca teria pensado em entrar à
noite na escola, mas Nito tinha pensado por nós dois e tudo bem, merecíamos esse
segundo cinzano que não tomamos porque não tínhamos dinheiro suficiente.
Os preparativos foram simples, consegui uma lanterna e Nito esperou-me no bairro
de Once com o volume de um poncho embaixo do braço; começava a fazer calor nesse
fim de semana, mas não havia muitas pessoas na praça, dobramos pela rua Urquiza
quase sem falar e quando chegamos ao quarteirão da escola olhei para trás e Nito
estava certo, nenhum gato para nos olhar. Somente então percebi que havia lua,
não era o que esperávamos e não sei se gostamos, embora nos ajudasse a percorrer
as
galerias sem o auxílio da lanterna.
Demos a volta em torno do quarteirão para estar bem seguros, falando do diretor
que morava na casa pegada à escola e que se comunicava com ela por um corredor
no
alto a fim de que pudesse chegar diretamente ao seu escritório. Os porteiros não
moravam ali e estávamos certos de que não havia nem um vigia noturno que
cuidasse
da escola na qual não havia nada de valor, o esqueleto meio quebrado, os mapas
81
rasgados, a secretaria com duas ou três máquinas de escrever que pareciam
pterodáctilos. Nito achou que poderia haver alguma coisa valiosa no escritório
do diretor,
uma vez o tínhamos visto fechar com chave ao sair para dar sua aula de
matemática, mesmo com a escola repleta de gente ou talvez por isso mesmo. Nem
Nito nem eu
nem ninguém gostava do diretor, mais conhecido como Rengo; não porque fosse
severo e nos admoestasse e expulsasse das salas por qualquer bobagem, mas
sobretudo por
algo em sua cara de pássaro embalsamado, sua maneira de chegar sem que ninguém o
visse e aparecer em uma turma como se a condenação estivesse pronunciada de
antemão.
Um ou dois professores amigos (o de música que nos contava sacanagens, o de
sistema nervoso que compreendia a idiotice que era ensinar tal matéria num curso
de letras)
tinham dito para a gente que o Rengo não somente era um solteirão convicto e
confesso como que também hasteava uma misoginia agressiva, razão pela qual na
escola
não tínhamos tido nenhuma professora. Mas justamente esse ano o ministério devia
tê-lo feito compreender que afinal tudo tinha limite, porque nos mandaram a
senhorita
Maggi, que lecionava química orgânica no curso de licenciatura em ciências. A
pobre sempre chegava à escola com um ar meio assustado, Nito e eu imaginávamos a
cara
do Rengo quando a encontrava na sala dos professores. Pobre senhorita Maggi
entre centenas de homens, ensinando a fórmula da glicerina às vítimas do sétimo
ano de
ciências.
- Agora - disse Nito.
Quase enfio a mão em uma das pontas das grades, mas pude pular bem, a primeira
coisa a fazer era agachar-se caso alguém resolvesse olhar das janelas
82
da casa da frente, e arrastar-se até encontrar uma ilustre proteção, a base do
busto de Van Gelderen, holandês e fundador da escola. Quando chegamos ao
peristilo
estávamos um pouco abalados pela escalada e tivemos um ataque de riso nervoso.
Nito deixou o poncho escondido ao pé de uma coluna, e tomamos a direita seguindo
o
corredor que levava ao primeiro cotovelo onde nascia a escada. O cheiro da
escola aumentava com o calor, era esquisito ver as salas fechadas e fomos tatear
uma das
portas; naturalmente os porteiros galegos não as tinham fechado com chave e
entramos um momento na sala onde seis anos antes tínhamos começado os estudos.
- Eu me sentava aí.
- E eu atrás, não me recordo se aí ou mais à direita.
- Olha, esqueceram um globo terrestre.
- Lembra-se de Gazzano, que nunca achava a África?
Tivemos vontade de usar o giz e deixar desenhos no quadro, mas Nito sentiu que
não tinham vindo para brincar, ou que brincar era uma maneira de não admitir que
o
silêncio os envolvia demais. Voltamos ao corredor e fomos para a escadaria; de
longe veio uma espécie de eco musical, reverberando apenas na caixa da
escadaria;
também ouvimos uma freada de bonde, depois mais nada. Podia-se subir sem
recorrer a uma lanterna, o mármore parecia receber diretamente o luar, embora o
andar de
cima o isolasse dele. Nito parou na metade da escadaria para me oferecer um
cigarro e acender outro; sempre escolhia os momentos mais incríveis para começar
a fumar.
Lá de cima olhamos para o pátio do andar térreo, era quadrado como quase tudo na
escola, inclusive
83
o ensino. Seguimos pelo corredor que nos circundava, entramos em uma ou duas
salas de aula e chegamos ao primeiro cotovelo onde estava o laboratório; esse
sim os
galegos haviam fechado à chave, como se alguém pudesse roubar as provetas
rachadas e o microscópio do tempo de Galileu. Do segundo corredor vimos que a
luz da lua
caía em cheio sobre o corredor oposto onde estava a secretaria, a sala de
professores e o escritório do Rengo. O primeiro a se atirar no chão fui eu, e
Nito logo
após, porque vimos ao mesmo tempo luzes na sala de professores.
- Puta que pariu, há alguém ali.
- Fujamos, Nito.
- Espere, pode ser que os galegos a tenham esquecido acesa.
Não sei quanto tempo se passou mas agora percebíamos que a música vinha dali,
parecia tão distante como quando estávamos na escadaria mas sentíamos que vinha
do
corredor à nossa frente, uma música como de orquestra de câmara com todos os
instrumentos em surdina. Era tão inacreditável que nos esquecemos do medo ou ele
de
nós, de repente havia uma espécie de justificativa para se estar ali e não só o
puro romantismo de Nito. Olhamos um para o outro sem falar, e ele começou a
engatinhar
grudado à varanda até chegar à curva do terceiro corredor. O cheiro de pipi das
latrinas contíguas tinha sido como sempre mais forte que os esforços combinados
dos
galegos e da creolina. Quando nos arrastamos até ficar ao lado das portas de
nossa sala, Nito se virou e fez sinal para que eu me aproximasse mais.
- Vamos ver?
Concordei, já que ser maluco parecia a única coisa razoável naquele momento, e
avançamos
84
engatinhando, cada vez mais denunciados pela lua. Quase nem fiquei surpreso
quando Nito se ergueu, fatalista, a menos de cinco metros do último corredor
onde as portas
apenas encostadas da secretaria e da sala de professores deixavam a luz passar.
A música tinha aumentado repentinamente ou como conseqüência da distância menor;
ouvimos rumor de vozes, risos, copos se batendo. O primeiro que vimos foi
Raguzzi, um cara do sétimo ano de ciências, campeão de atletismo e grande filho
da puta,
desses que abriam caminho com a força dos músculos e fanfarronadas. Estava de
costas para nós, quase grudado à porta, mas de repente se afastou e a luz caiu
como
um látego cortado por sombras móveis, um ritmo de maxixe e dois casais que
passavam dançando. Gómez, que eu não conhecia muito, dançava com uma menina de
verde,
e o outro podia ser Kurchin, do quinto de letras, um baixinho com cara de porco
e óculos, que se agarrava a uma
mulheraça de cabelos negros com vestido longo e colares de pérolas. Tudo isso
acontecia ali, estávamos vendo e ouvindo mas naturalmente não podia ser, quase
não podia ser se não sentíssemos uma mão que se apoiava devagarinho
em nossos ombros, sem forçar.
- Vochês não chão convidados - disse o galego Manolo -, mas já que echtão vaiam
entrando e não che f acham de doidos.
O duplo empurrão quase nos joga contra outro casal que dançava, estacamos de
repente e pela primeira vez vimos o grupo inteiro, uns oito ou dez, a vitrola
com o
baixinho Larranaga ocupando-se dos discos, a mesa convertida em bar, as luzes
baixas, as caras que começavam a nos reconhecer sem surpresa, todos deviam
pensar que
tínhamos sido convidados e
85
até Larranaga fez um gesto de boas-vindas. Como sempre, Nito foi o mais rápido,
com três passos se pôs contra uma das paredes laterais e eu me grudei nele,
colados
como baratas contra a parede começamos a enxergar de verdade, a aceitar o que
ali se passava. Com as luzes e as pessoas a sala de professores parecia ter o
dobro
do tamanho, havia cortinas verdes que eu nunca tinha' observado quando de manhã
passava pelo corredor e dava uma olhadela na sala para ver se Migoya já tinha
chegado,
ele era o nosso terror na aula de Lógica. Tudo tinha um aspecto de clube, de
festa organizada para os sábados à noite, os copos e os cinzeiros, a vitrola e
as lâmpadas
que iluminavam discretamente, abrindo espaços de penumbra que aumentavam a sala.
Sabe-se lá quanto tempo gastei para aplicar um pouco dessa lógica que Migoya nos
ensinava ao que estava nos acontecendo, mas Nito era sempre o mais vivo, um
olhar
tinha sido o bastante para que ele identificasse os condiscípulos e o professor
Iriarte, percebesse que as mulheres eram garotos disfarçados, Perrone e Macias e
outro do sétimo de ciências, não se lembrava do nome. Havia dois ou três com
máscaras, um deles vestido de havaiana e muito à vontade, a julgar pelas
reboladas que
dava para Iriarte. O galego Fernando se ocupava do bar, quase todo mundo tinha
copos nas mãos, agora vinha um tango pela orquestra de Lomuto, se formavam os
casais,
os rapazes restantes punham-se a dançar entre eles, e não fiquei muito surpreso
quando Nito me agarrou pela cintura e me empurrou para o meio da sala.
- Se ficarmos parados aqui vai haver um alvoroço - disse-me. - Não pise nos meus
pés, seu desgraçado.
86
- Não sei dançar - disse-lhe, embora ele dançasse pior do que eu. Estávamos na
metade do tango e Nito de vez em quando olhava para a porta encostada, tinha me
levado
lentamente para aproveitar o primeiro descuido, mas percebendo que o galego
Manolo ainda estava ali, voltamos para o centro e até tentamos trocar piadas com
Kurchin
e Gómez, que dançavam juntos. Ninguém percebeu que a porta dupla que se
comunicava com a sala de espera do escritório do Rengo estava se abrindo, mas o
troncudo
Larranaga parou repentinamente o disco e ficamos olhando, senti que o braço de
Nito tremia na minha cintura antes de me soltar repentinamente.
Custo tanto a compreender as coisas, quando comecei a perceber que as duas
mulheres paradas nas portas e de mãos dadas eram o Rengo e a senhorita Maggi,
Nito já
estava por dentro de tudo. O disfarce do Rengo era tão exagerado que dois ou
três aplaudiram timidamente mas depois fez-se apenas um silêncio constrangido,
algo
como um vazio no tempo. Eu tinha visto ttavestis nos cabarés lá da zona mas
nunca uma coisa assim, a peruca ruiva, os cílios de cinco centímetros, os seios
de borracha
tremendo sob uma blusa cor de salmão, a saia pregueada e os saltos altos como
pernas de pau. Tinha os braços cheios de pulseiras, e eram braços depilados e
branquicentos,
os anéis pareciam passear pelos seus dedos ondulantes, agora tinha largado a mão
da senhorita Maggi e com um gesto superefeminado se inclinava para apresentá-la
e lhe ceder passagem. Nito perguntava a si mesmo por que a senhorita Maggi
continuava parecida com ela mesma apesar da peruca loura, o cabelo esticado para
trás,
a silhueta apertada em um longo vestido branco. O rosto estava
87
apenas maquilado, as sobrancelhas talvez um pouco mais acentuadas, mas era o
rosto da senhorita Maggi e não a cara excessivamente pintada do Rengo com o
rimel e o batom e a franja ruiva. Os dois avançaram cumprimentando com uma
frieza quase condescendente, Rengo nos deu uma olhadela talvez espantado mas que
pareceu se transformar
em uma aceitação displicente, como se alguém o tivesse prevenido.
- Não sacou, hein - disse para Nito o mais baixo que pude.
- Não sacou uma ova - disse Nito -, você acha que ele não está vendo que
estamos vestidos de um modo totalmente em desacordo com o ambiente?
Ele tinha razão, tínhamos posto calças velhas por causa das grades, eu estava em
mangas de camisa e Nito vestia um pulôver leve com uma manga um pouco rasgada em
um cotovelo. Mas Rengo já estava pedindo uma bebidinha não muito forte, pedia
para o galego Fernando com uns trejeitos de puta caprichosa, enquanto a
senhorita Maggi
reclamava um uísque mais seco do que a voz com a qual o pedia para o galego.
Começava outro tango e todo mundo se lançou à dança, nós fomos os primeiros por
causa
do pânico e os recém-chegados juntos com os demais, a senhorita Maggi conduzindo
o Rengo com um perfeito gingado. Nito teria desejado se aproximar de Kurchin
para
ver se conseguia obter dele algum esclarecimento, com Kurchin tínhamos mais
contato do que com os outros, mas era difícil nesse momento em que os casais se
cruzavam
sem se roçarem e nunca sobrava espaço livre por muito tempo. As portas que davam
para a sala de espera do Rengo continuavam abertas, e quando em uma das voltas
nos
aproximamos dela, Nito viu que a porta do escritório também
estava aberta e que dentro havia pessoas falando e bebendo. De longe
reconhecemos Fiori, um pesadão do sexto ano de letras, disfarçado de militar, e
talvez essa
morena de cabelo caído no rosto e quadris sinuosos fosse o Moreira, um do quinto
de letras que tinha fama de ser aquilo que eu te disse.
Fiori veio até nós antes que pudéssemos nos esquivar, com o uniforme parecia
muito maior e Nito pensou ver fios brancos no cabelo bem alisado, com certeza
tinha
colocado talco para ficar mais pintoso.
- Novos, né? - disse Fiori. - Já passaram pela oftalmologia?
Deveríamos ter a resposta escrita na cara e Fiori ficou nos olhando por um
momento, sentíamo-nos cada vez mais como recrutas diante de um tenente
fanfarrão.
- Por ali - disse Fiori, mostrando com a mandíbula uma porta lateral
entreaberta. - Na próxima reunião tragam-me o comprovante.
- Sim senhor - disse Nito, empurrando-me bruscamente. Eu teria querido
reprovar-lhe o sim senhor tão servil, mas Moreira
(agora sim, agora estava certo de que era o Moreira) se grudou em nós antes que
conseguíssemos chegar à porta e segurou a minha mão.
- Vamos dançar no outro cômodo, lourinho, aqui são tão chatos.
- Depois - disse Nito por mim. - Voltamos logo.
- Ai, esta noite todos me deixam sozinha. Passei em primeiro lugar, esgueirando-
me não sei
por que em vez de abrir a porta normalmente. Mas a essa altura faltavam-nos
todos os porquês, Nito, que me seguia calado contemplava o longo saguão
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na penumbra e vinha outra vez um dos pesadelos que tinha com a escola, ali, onde
nunca havia um porquê, onde era somente possível seguir adiante e o
único porquê possível era uma ordem de Fiori, esse cretino vestido de milico que
de súbito se juntava totalmente a outro personagem e nos dava uma ordem, valia
como uma perfeita
ordem a que devíamos obedecer, um oficial mandando e quem é que vai pedir
explicações. Mas isso não era um pesadelo, eu estava ao seu lado e os pesadelos
não se
sonham a dois.
- Fujamos, Nito - disse-lhe na metade do saguão. - Tem que haver uma saída, isto
não pode continuar.
- Sim, mas espere aí, tenho a impressão de que estão nos espionando.
- Não há ninguém, Nito.
- Por isso mesmo, idiota.
- Mas Nito, espere um pouco, paremos aqui. Eu tenho que compreender o que
acontece, não vê que...
- Olhe - disse Nito, e era verdade, a porta por onde tínhamos passado agora
estava aberta de par em par e o uniforme de Fiori se destacava claramente. Não
havia
nenhuma razão para obedecer a Fiori, bastava voltar a afastá-lo com um empurrão
como tantas vezes nos empurrávamos de'brincadeira ou a sério nos recreios. Nem
havia
nenhuma razão para seguir adiante até ver duas portas fechadas, uma lateral e
outra na frente, e que Nito se enfiasse por uma e tarde demais percebesse que eu
não
estava com ele, que estupidamente tinha escolhido a outra porta por engano ou
por simples raiva. Era impossível dar meia-volta e sair para me procurar, a luz
violeta
do salão e as caras olhando-o fixavam-no de
90
repente naquilo que abarcou de um só olhar, o salão com o enorme aquário no
centro elevando o seu cubo transparente até o teto, e deixando apenas lugar para
os que
grudados nos cristais olhavam a água esverdeada, os peixes escorregando
lentamente, tudo em um silêncio que se assemelhava a outro aquário exterior, um
petrificado
presente com homens e mulheres (que eram homens que eram mulheres)' e
colando-se nos cristais, e Nito dizendo-se agora, agora voltar para trás, Totó
imbecil onde
você se meteu, idiota, querendo dar meia-volta e fugir mas de quê se não
acontecia nada, se ia ficando imóvel como eles e vendo-os olhar os peixes e
reconhecendo
Mutis, à Porca Delucía, e outros mais do sexto de Letras, perguntando a si mesmo
por que eram eles e não outros, como já tinha se perguntado por que tipos como
Ráguzzi
e Fiori e Moreira, por que justamente os que não eram nossos amigos pela manhã,
os estranhos e os merdas, por que eles e não Láinez ou Delich ou qualquer um dos
companheiros de papos ou vagabundagens ou projetos, por que então Totó e ele
entre esses outros embora fossem culpados por se meter de noite na escola e essa
culpa
os tenha juntado com todos esses que de dia eles não agüentavam, os piores
filhos da puta da escola, sem falar do Rengo e do puxa-saco Iriarte e até da
senhorita
Maggi também ali, quem diria ela também ali, ela, a única mulher de verdade
entre tantos
maricas e desgraçados.
Então um cachorro latiu, não era um latido forte, mas quebrou o silêncio e todos
se viraram em direção ao fundo invisível do salão, Nito viu que da bruma violeta
saía Caletti, um do quinto de Ciências, com os braços para o alto vinha do fundo
como que resvalando entre os outros, segurando pra cima
91
um cãozinho branco que tornava a latir se debatendo, as patas amarradas com uma
fita vermelha e pendendo da fita uma coisa parecida com um pedaço de chumbo,
algo
que o submergiu lentamente no aquário onde Caletti o jogara de uma só vez, Nito
viu o cachorro afundando pouco a pouco entre convulsões, tentando soltar as
patas
e subir à superfície, viu-o começar a se afogar com a boca aberta e expelindo
borbulhas, mas antes dele se afogar os peixes já estavam mordendo-o, arrancando-
lhe
pedaços de pele, tingindo a água de vermelho, a nuvem cada vez mais espessa em
torno do cachorro que ainda se agitava entre a massa fervente de peixe e de
sangue.
Tudo isso eu não podia ver porque detrás da porta que penso ter-se fechado
sozinha não havia mais nada além da escuridão, fiquei paralisado sem saber o que
fazer,
de trás não se ouvia nada, e Nito, onde estava Nito. Dar um passo para a frente
nessa escuridão ou ficar ali encravado era o mesmo horror, de repente sentir o
cheiro,
um cheiro de desinfetante, de hospital, de operação de apendicite, quase sem
perceber que os olhos iam se acostumando às trevas e que não eram trevas, ali no
fundo
havia uma ou duas luzinhas, uma verde e depois uma amarela, a silhueta de um
armário e de uma poltrona, outra silhueta que se deslocava vagamente avançando
de outro
fundo mais profundo.
- Venha, meu filhinho - disse a voz. - Venha até aqui, não tenha medo.
Não sei como pude me mover, o ar e o chão eram como um mesmo tapete esponjoso, a
poltrona com alavancas cremadas e os aparelhos de cristal e as luzinhas; a
peruca
loura e alisada e o vestido branco da senhorita Maggi fosforesciam de modo
indeciso.
92
Uma mão me pegou pelo ombro e me empurrou para a frente, a outra mão se apoiou
na minha nuca e me obrigou a sentar na poltrona, senti na testa o frio de um
vidro,
enquanto a senhorita Maggi ajustava minha cabeça entre dois suportes. Quase na
frente dos olhos vi brilhar uma esfera esbranquiçada por um pequeno ponto
vermelho
no meio e senti o roçar dos joelhos da senhorita Maggi, que se sentava na
poltrona do lado oposto da armação de cristais. Começou a manipular alavancas e
rodas,
ajustou ainda mais a minha cabeça, a luz ia mudando para o verde e voltava ao
branco, o ponto vermelho crescia e se deslocava de um lado para outro, com o que
me
restava de visão para cima conseguia ver, como se fosse um halo, o cabelo louro
da senhorita Maggi, tínhamos as caras separadas apenas pelo cristal com as luzes
e algum tubo por onde ela devia estar me olhando.
- Fique quietinho e fixe-se no ponto vermelho disse a senhorita Maggi. - Está
enxergando ele bem?
- Sim, mas. + - Não fale, fique quieto, assim. Agora, diga-me quando deixar de
ver o ponto vermelho.
Sei lá se via o ponto ou não, fiquei calado enquanto ela continuava olhando do
outro lado, de repente sentia que, além da luz central, estava olhando os olhos
da
senhorita Maggi atrás do cristal do aparelho, tinha os olhos castanhos e acima
continuava ondulando o reflexo incerto da peruca loura. Um momento
interminavelmente
curto se passou, ouvia-se algo assim como um arquejar, pensei que fosse eu,
pensei qualquer coisa enquanto as luzes mudavam pouco a pouco, iam-se
concentrando em
um triângulo
93
avermelhado com contornos violeta, mas talvez não fosse eu que respirava fazendo
barulho.
- Ainda está vendo a luz vermelha?
- Não, não a vejo, mas acho que...
- Não se mexa, não fale. Olhe bem, agora. Um hálito me chegava do outro lado, um
perfume
quente em baforadas, o triângulo começava a se transformar em uma série de
listas paralelas, brancas e azuis, me doía o queixo preso no suporte de
borracha, tinha
vontade de levantar a cabeça e me libertar dessa jaula na qual me sentia
amarrado, a carícia entre as coxas me veio longinquamente, a mão que subia entre
as minhas
pernas e procurava um por um os botões da calça, entravam dois dedos, acabava de
me desabotoar e procurava algo que não se deixava agarrar, reduzido a um
deplorável
nada até que os dedos o envolveram e suavemente o tiraram para fora da calça,
acariciando devagar enquanto as luzes se tornavam cada vez mais brancas e o
centro
vermelho surgia novamente. Devo ter tentado me safar porque senti uma dor no
alto da cabeça e no queixo; era impossível sair da jaula apertada ou talvez
fechada
por trás, o perfume retornava com o arquejar, as luzes dançavam nos meus olhos,
tudo ia e vinha como a mão da senhorita Maggi
enchendo-me de uma lenta e interminável entrega.
- Abandone-se - a voz chegava ofegante, era o próprio arquejo me falando -,
goze, menino, você tem que me dar pelo menos umas gotas para os exames, agora,
assim,
assim.
Senti o roçar de um recipiente ali onde tudo era prazer e fuga, a mão segurou e
correu e apertou docemente, quase não percebi que diante dos olhos só havia o
cristal
escuro e que o tempo transcorria,
94
agora a senhorita Maggi estava atrás de mim e me soltava as correias da cabeça.
Uma chicotada de luz amarela me batia enquanto eu me punha de pé e me abotoava,
uma
porta no fundo e a senhorita Maggi mostrando-me a saída, olhando-me sem
expressão, um rosto liso e saciado, a peruca violentamente iluminada pela luz
amarela. Outro
teria se jogado em cima dela ali mesmo, abraçando-a agora que não havia nenhuma
razão para não abraçá-la ou beijá-la ou lhe bater, outro como Fiori ou Raguzzi,
mas
talvez ninguém o tivesse feito e a porta teria se fechado para ele como para mim
às minhas costas com uma batida seca deixando-me em outra passagem que girava a
distância e se perdia em sua própria curva, em uma solidão onde não estava Nito,
onde senti a ausência de Nito como uma coisa insuportável e corri na direção da
curva do corredor e quando vi a única porta me atirei contra ela e ela estava
fechada a chave, esmurrei-a e ouvi meus golpes como um grito, me apoiei contra a
porta
escorregando pouco a pouco até ficar de joelhos, talvez estivesse fraco, a
tonteira depois da senhorita -Maggi. Do outro lado da porta ouvi a gritaria e os
risos.
Porque ali se ria e se gritava alto, alguém tinha empurrado Nito para fazê-lo
ficar entre o aquário e a parede da esquerda por onde todos se movimentavam
procurando
a saída, Caletti mostrando o caminho com os braços para cima como mostrara o
cachorro ao entrar, e os outros o seguindo aos guinchos e empurrões, Nito com
alguém
atrás dele que também o empurrava tratando-o de pasmado e de preguiçoso, não
terminara ainda de atravessar a porta quando a brincadeira já começava,
reconheceu Rengo,
que entrava por outro lado com os olhos vendados
95
e agarrado ao galego Fernando e Raguzzi, que o protegiam de um tropeço ou de uma
esbarrada, os demais se escondiam atrás das poltronas, em um armário, debaixo
de um móvel, Kurchin tinha subido em uma cadeira e desta para cima de uma
estante enquanto os outros se esparramavam pelo enorme salão e esperavam os
movimentos
do Rengo para tapeá-lo nas pontas dos pés ou chamando-o com vozes de
falsete a fim de enganá-lo. Rengo se rebolava e soltava gritinhos com os braços
estendidos tentando
agarrar alguém, Nito teve que se encostar em uma parede e depois esconder-se
atrás de uma mesa com jarras de flores e livros, e quando Rengo pegou o
baixinho
Larranaga com um guincho de triunfo os outros saíram aplaudindo dos esconderijos
e Rengo tirou a venda e colocou-a em Larranaga, fazia-o duramente e apertando-
lhe
os olhos embora o baixinho protestasse, condenando-o a procurá-los, a ser a
cabra-cega amarrada com a mesma força impiedosa com que tinham amarrado as patas
do cachorrinho
branco. E outra vez a dispersão entre sorrisos e cochichos, o professor Iriaríe
dando pulos, Fiori buscando onde se esconder sem perder a calma fanfarrona,
Raguzzi
estofando o peito e gritando a dois metros do baixinho Larranaga, que se
balançava e não achava nada mais do que ar, Raguzzi deu um pulo fora do seu
alcance gritando-lhe
Me Tarzan, you Jane, gorducho!, o baixinho ficava perplexo girando e procurando
no vazio, a senhorita Maggi, que reaparecia para se abraçar com o Rengo e rir de
Larranaga, os dois com gritinhos de medo, quando o baixinho se jogou na direção
deles e conseguiram escapar por um triz de suas mãos estendidas. Nito pulando
para
trás e vendo como o baixinho pegava
96
Kurchin pelo cabelo quando este se descuidou, o alarido de Kurchin e Larranaga
tirando a venda sem soltar a presa, os aplausos e os gritos, de repente o
silêncio
porque o Rengo erguia uma mão e Fiori a seu lado se plantava em posição firme e
dava uma ordem que ninguém entendeu mas pouco importava, tanto o uniforme de
Fiori
como a ordem que dava, ninguém se movia, nem sequer Kurchin, que tinha os olhos
cheios de lágrimas porque Larranaga quase lhe arrancava o cabelo, mantinha-o ali
sem soltá-lo.
- Tusa - ordenou Rengo. - Agora tusa e caricatusa. Ponha-o.
Larranaga não entendia, mas Fiori mostrou-o para Kurchin com um gesto seco e o
baixinho puxou-o pelo cabelo obrigando-o a agachar-se cada vez mais, os outros

iam formando uma fila, as mulheres com gritinhos e arregaçando as saias, o
primeiro era Perrone e depois o professor Iriarte, Moreira bancando a
melindrosa, Caletti
e a Porca Delucía, uma fila que ia até o fundo do salão e Larranaga subjugando
Kurchin agachado e soltando-o de repente quando Rengo fez um gesto e Fiori
ordenou
"Pular sem bater!", Perrone na extremidade e atrás dele toda a fila, começaram a
pular apoiando as mãos nas costas de Kurchin arqueado como um porquinho,
saltavam
em ordem mas gritando "Tusa!", gritando "Caricatusa!" cada vez que passavam por
cima de Kurchin e refaziam a fila do outro lado, davam a volta
no salão e começavam de novo, Nito quase no final pulando da maneira mais leve
que podia para não esmagar Kurchin, depois Macias deixando-se cair como um saco,
ouvindo Rengo, que gritava
"Pular e bater!", e toda a fila passou novamente por cima de Kurchin, mas agora
procurando chutá-lo e
97
bater-lhe enquanto pulavam, já tinham desmanchado a fila e rodeavam Kurchin, e
com as mãos abertas batiam-lhe na cabeça, nas costas, Nito tinha levantado o
braço
quando viu Raguzzi, que dava o primeiro pontapé nas nádegas de Kurchin, que se
contraiu e gritou, Perrone e Mutis o chutavam nas pernas enquanto as mulheres
furibundas
batiam nas costas de Kurchin, que uivava e queria se pôr de pé e fugir, mas
Fiori se aproximava e o retinha pelo pescoço gritando "Tusa, caricatusa, bater e
bater!",
algumas mãos já eram punhos caindo sobre os flancos e a cabeça de Kurchin, que
clamava pedindo perdão sem poder se libertar de Fiori, da chuva de pontapés e
socos
que o cercavam. Quando o Rengo e a senhorita Maggi gritaram ao mesmo tempo uma
ordem, Fiori soltou Kurchin, que caiu de lado, com a boca sangrando, do fundo do
salão
veio correndo o galego Manolo e o levantou como se fosse um saco, levou-o
enquanto todos aplaudiam raivosamente e Fiori se aproximava do Rengo e da
senhorita Maggi
numa atitude de consulta.
Nito tinha recuado até ficar na borda do círculo que começava a se desfazer sem
entusiasmo, como se quisesse continuar a brincadeira ou começar
outras,
então viu como Rengo apontava o professor Iriarte com o dedo e Fiori, que se
aproximava dele e lhe falava, depois uma ordem seca e todos começaram a se
formar em
quadro, de quatro em quatro, as mulheres atrás e Raguzzi como adail do pelotão,
olhando furioso para Nito, que custava a achar um lugar qualquer na segunda
fila.
Tudo isso eu vi claramente enquanto o galego Fernando me trazia puxando-me pelo
braço depois de me ter encontrado, atrás da porta fechada e abri-la para me
fazer
98
entrar com um empurrão, vi como o Rengo e a senhorita Maggi se instalavam em um
sofá junto à parede, os outros que completavam o quadro com Fiori e Raguzzi na
frente,
com Nito pálido entre os da segunda fila, e o professor Iriarte, que se dirigia
ao quadro como em uma aula, depois de saudar cerimoniosamente Rengo e a
senhorita
Maggi, eu me perdendo como podia entre as loucas do fundo que me olhavam rindo e
cochichando, até que o professor Iriarte pigarreou e se instalou um silêncio que
durou não sei até quando.
- Proceder-se-á a enuhciação do decálogo - disse o professor Iriarte. - Primeira
profissão de fé.
Eu olhava para Nito como se ele ainda pudesse me ajudar, com uma estúpida
esperança de que ele me mostrasse uma saída, uma porta qualquer para escaparmos,
mas Nito
não parecia notar que eu estava ali atrás, olhava fixamente para cima como
todos, agora imóvel como todos.
Monotonamente, quase sílaba por sílaba, o quadro enunciou:
- Da ordem emana a força, e da força emana a ordem.
- Corolário! - mandou Iriarte.
- Obedeça para mandar, e mande para obedecer
- recitou o quadro.
Era inútil esperar que Nito se virasse, creio até ter observado que seus lábios
se moviam como se repetisse o que os outros recitavam. Apoiei-me na parede, um
painel
de madeira que rangeu, e uma das loucas, penso que Moreira, me olhou alarmada.
"Segunda profissão de fé", estava ordenando Iriarte, quando senti que aquilo não
era
um painel mas uma porta, e que cedia pouco a pouco enquanto eu ia me
99
deixando escorregar em uma tonteira quase agradável. "Ai, o que está lhe
acontecendo, lindinho", cochichou Moreira e o quadro enunciava uma frase que não
compreendi,
virando de lado passei para o outro ambiente e fechei a porta, senti a pressão
das mãos de Moreira e Macias, que tentavam abri-la e abaixei o ferrolho que
brilhava
maravilhosamente na penumbra, comecei a correr por uma galeria, uma curva, duas
peças vazias e escuras e afinal outro corredor que levava diretamente ao
corredor
sobre o pátio no lado oposto à sala de professores. Disso tudo só me lembro
muito pouco, eu não era nada mais senão a minha própria fuga, alguma coisa que
corria
na sombra tentando não fazer ruído, escorregando sobre os ladrilhos até chegar à
escada de mármore, descê-la de três em três degraus e sentir-me impulsionado por
essa quase queda até as colunas do peristilo onde estava o poncho e também os
braços abertos do galego Manolo me fechando a passagem. Já disse, me lembro
pouco de
tudo isso, meti talvez minha cabeça na boca do estômago dele ou o derrubei com
um chute na barriga, o poncho ficou preso em uma das pontas da grade, mas mesmo
assim
trepei e pulei, na calçada havia um cinzento do amanhecer e um velho andando
devagar, o cinzento sujo da aurora e o velho que ficou me olhando com uma cara
de peixe,
a boca aberta para um grito que não conseguiu sair. Durante todo esse domingo
não saí de casa, felizmente na família sabiam como eu era e ninguém fez
perguntas a
que eu não respondesse, ao meio-dia telefonei para a casa de Nito mas sua mãe me
disse que ele não estava, à tarde soube que Nito tinha voltado mas tinha saído
novamente,
e quando telefonei às dez da noite, um irmão me disse que não sabia onde
100
ele estava. Fiquei admirado de não ter vindo me procurar, e quando na segunda-
feira cheguei à escola fiquei ainda mais surpreso ao encontrá-lo no vestíbulo,
ele
que batia todos os recordes de impontualidade nas entradas. Estava falando com
Delich mas separou-se dele e veio ao meu encontro, estendeu-me a mão e eu
retribuí
o cumprimento apertando a sua embora não fosse comum tal gesto, era tão raro
darmos a mão quando chegávamos à escola. Mas que interesse havia nisso se já
outro assunto
me vinha aos borbotões, nos cinco minutos que faltavam para o sinal tínhamos que
comentar tantas coisas, mas então o que você fez, como conseguiu fugir, o galego
tentou me segurar e então, sim, já sei, me dizia Nito, não se excite tanto,
Totó, deixe-me falar um pouco. Ei, mas acontece que... Sim, é claro, não é para
menos.
Para menos, Nito, mas você está me gozando ou o quê? Temos que subir
imediatamente e denunciar o Rengo. Espere, espere, não se esquente assim, Totó.
E a coisa continuava, como dois monólogos cada um pelo seu lado, de certo modo
eu começava a perceber que alguma coisa não estava funcionando, que Nito estava
em
outra. Passou Moreira e cumprimentou com um piscar de olho, de longe vi a Porca
Delucía, que entrava correndo, Raguzzi com seu paletó esporte, todos os filhos
da
puta iam chegando misturados com os amigos, com Llanes e Alermi, que também
diziam como vai, viu como ganhou o River, não lhe falei, rapaz, e Nito me
olhando e repetindo
aqui não, agora não, Totó, na saída conversamos no café. Mas olhe, olhe, Nito,
olhe para o Kurchin com a cabeça enfaixada, eu não posso ficar calado,
101
Vamos subir juntos, Nito, ou vou sozinho, juro que vou sozinho agora mesmo. Não,
disse Nito, e havia algo assim como outra voz nessa única palavra, você não vai
subir
agora, Totó, primeiro vamos conversar você e eu.
Era ele, claro, mas foi como se de repente eu não o conhecesse. Tinha dito para
mim que não, como podia tê-lo dito Fiori, que agora chegava assobiando, à
paisana
naturalmente, e cumprimentava com um sorriso exagerado que eu nunca vira nele
antes. Pareceu-me que tudo se condensava nisso de repente, no não de Nito, no
sorriso
estranho de Fiori; era novamente o medo dessa fuga na noite, das escadas mais
voadas do que descidas, dos braços abertos do galego Manolo entre as colunas.
- E por que não vou subir? - disse eu absurdamente. - Por que não vou
denunciar Rengo, Iriarte, e o resto?
- Porque é perigoso - disse Nito. - Aqui não podemos falar agora, mas no café
vou lhe explicar. Você sabe, eu fiquei mais tempo do que você.
- Mas finalmente também escapou - disse eu como que me agarrando a uma
esperança, procurando-o como se não o visse ali na minha frente.
- Não, não precisei fugir, Totó. Por isso lhe digo que agora não fale nada.
- E por que sou obrigado a atendê-lo? - gritei, creio que a ponto de chorar, de
bater nele, de abraçá-lo.
- Porque lhe convém - disse a outra voz de Nito. - Porque você não é tão idiota
para não perceber que se abrir a boca isso vai lhe custar caro. Agora você não
pode
compreender e já está na hora
102
de entrar na aula, mas repito, se disser uma só palavra vai se arrepender para o
resto da sua vida, se é que está vivo.
Brincava, é claro, era impossível estar me dizendo isso, mas era a autoridade, a
forma com que me falava, essa convieção e essa boca apertada. Como Raguzzi, como
Fiori, essa certeza e essa boca apertada. Nunca saberei de que falaram os
professores nesse dia, durante todo o tempo sentia nas costas os olhos de Nito
cravados
em mim. E Nito também não acompanhava as aulas, que lhe importavam as aulas
agora, essas cortinas de fumaça do Rengo e da senhorita Maggi para que o outro,
o que
verdadeiramente interessava a ele, fosse se cumprindo pouco a pouco, assim como
pouco a pouco tinham se enunciado para ele as profissões de fé do decálogo, uma
após
outra, tudo o que iria nascendo alguma vez da obediência ao decálogo, do futuro
cumprimento do decálogo, tudo o que tinha aprendido e prometido e jurado naquela
noite e que alguma vez se cumpriria para o bem da pátria quando chegasse a hora
e o Rengo e a senhorita Maggi dessem a ordem para que começasse a se realizar.
***
103
Fora de Hora

Não havia mais nenhuma razão especial para me lembrar de tudo isso, e embora eu
gostasse de escrever esporadicamente e alguns amigos aprovassem meus versos ou
minhas
histórias, eu me perguntava às vezes se essas recordações da infância mereciam
ser escritas, se não provinham da ingênua tendência para acreditar que as coisas
tinham
sido mais reais quando as punha em palavras para fixá-las do meu modo, para tê-
las ali como as gravatas no armário ou o corpo de Felisa à noite, algo que não
poderia
ser novamente vivido, mas que se tornava mais presente como se na mera lembrança
se abrisse passagem para uma
terceira dimensão, uma quase sempre amarga mas tão
desejada aproximação. Nunca soube bem por quê, mas de vez em quando voltava a
coisas que outros tinham aprendido a esquecer para não se arrastar na vida com
tanto
tempo sobre os ombros. Estava certo de que entre meus amigos havia poucos que se
recordassem de seus companheiros de infância como eu me recordava de Doro,
entretanto
quando escrevia sobre Doro quase sempre não era ele que me fazia escrever mas
outra coisa, alguma coisa de que Doro era apenas o pretexto para a imagem de sua
irmã
mais velha, a imagem de Sara naquela época em que Doro e eu
107
brincávamos no pátio ou desenhávamos na sala da casa de Doro.
Tínhamos sido tão inseparáveis naqueles tempos da sexta série, dos doze ou treze
anos, que não era capaz de me sentir escrevendo separadamente sobre Doro, me
aceitar
do lado de fora da página e escrevendo sobre Doro. Vê-lo era me ver ao mesmo
tempo como Aníbal com Doro, e eu não poderia recordar nada de Doro se ao mesmo
tempo
não sentisse que Aníbal também estava ali no momento, que era Aníbal quem tinha
chutado aquela bola que quebrou um vidro da casa de Doro numa tarde de verão, o
susto
e a vontade de se esconder ou de negar, a aparição de Sara chamando-os de
bandidos e mandando-os brincar no campo da esquina. E com tudo isso vinham
também Bánfield,
claro, porque tudo tinha acontecido ali, nem Doro nem Aníbal poderiam se
imaginar em outra cidade que não fosse Bánfield, onde as casas e os campos de
então eram
maiores do que o mundo.
Uma pequena cidade, Bánfield, com suas ruas de terra e a estação do Ferrocarril
Sud, seus terrenos baldios que, no verão, fervilhavam de gafanhotos mulíicores
na
hora da sesta, e que de noite se encolhia parecendo temerosa em torno dos poucos
postes de iluminação das esquinas, com um ou outro apito dos policiais a cavalo
e o halo vertiginoso dos insetos voadores em torno de cada luz. A tão pouca
distância as casas de Doro e de Aníbal, sendo a rua para eles um corredor a
mais, algo
que continuava mantendo-os unidos de dia ou de noite, no campo jogando futebol
em plena sesta ou sob a luz da lâmpada da esquina olhando como os sapos e outros
bichos
faziam roda para comer os insetos embriagados de tantas
108
voltas em torno da luz amarela. E sempre o verão, o verão das férias, a
liberdade das brincadeiras, o tempo somente deles, para eles, sem horário nem o
sino chamando
para a aula, o cheiro do verão no ar quente das tardes e das noites, nos rostos
suados depois de ganhar ou perder ou brigar ou correr, de rir e às vezes de
chorar
mas sempre juntos, sempre livres, donos do seu mundo de pipas e bolas e esquinas
e calçadas.
Poucas imagens lhe restavam de Sara, mas cada uma delas se recortava como um
vitral à hora do sol a pino, com azuis e vermelhos e verdes penetrando no espaço
a ponto
dê-lhe causar mal-estar, às vezes Aníbal via sobretudo seu cabelo louro caindo-
lhe sobre os ombros como uma carícia que ele gostaria de sentir junto a seu
rosto,
às vezes sua pele tão branca porque Sara quase nunca tomava sol, absorvida pelos
trabalhos da casa, a mãe doente e Doro, que cada tarde voltava, com
a roupa suja, os joelhos machucados, as sandálias enlameadas. Nunca soube a
idade de Sara naquela época, somente sabia que já era uma mocinha, uma jovem mãe
do seu irmão que se
tornava mais infantil quando ela lhe falava, quando lhe passava a mão pela
cabeça antes de mandá-lo comprar alguma coisa ou pedir aos dois para não
gritarem tanto
no pátio. Aníbal a cumprimentava tímido, dando-lhe a mão, e Sara apertava-a
amavelmente, quase sem olhar para ele mas aceitando-o como a outra metade de
Doro, que
quase diariamente vinha a casa para estudar ou brincar. Às cinco ela os chamava
para lhes dar café com leite e biscoitos, sempre na mesinha do pátio ou na sala
sombria;
Aníbal só
109
tinha visto duas ou três vezes a mãe de Doro, docemente da sua cadeira de rodas
dizia-lhes o seu olá meninos, o seu tenham cuidado
com os carros, embora houvesse tão poucos carros em Bánfield e eles sorriam
seguros de seus dribles na rua, de sua invulnerabilidade de jogadores de futebol
e corredores. Doro nunca falava de
sua mãe, quase sempre na cama ou escutando rádio no salão, a casa era o pátio e
Sara, às vezes algum tio de visita perguntava-lhes o que estudavam na escola e
lhes
presenteava com cinqüenta centavos. Para Aníbal só havia verão, quase não
tinha recordações dos invernos, sua casa se tornava um claustro cinza e nebuloso
onde
só os livros contavam, a família com suas coisas e as coisas fixas em seus
buracos, as galinhas que ele tinha de tratar, as doenças com longas dietas e chá
e raramente
Doro, porque Doro não gostava muito de ficar em uma casa onde não o deixassem
brincar como na sua.
Foi ao longo de uma bronquite de quinze dias que Aníbal começou a sentir a
ausência de Sara, quando Doro vinha visitá-lo perguntava-lhe por ela e Doro lhe
respondia
distraído que ela estava bem, a única coisa que lhe interessava era saber se
essa semana poderiam brincar de novo na rua. Aníbal desejaria que lhe falasse
mais de
Sara mas não se animava a perguntar muito, Doro teria achado estúpido que se
preocupassem com alguém que não brincava com eles, que estava tão por fora de
tudo que
eles faziam e pensavam. Quando pôde voltar à casa de Doro, ainda um pouco
fraco, Sara lhe deu a mão e lhe perguntou como passava, não devia jogar bola
para
110
não se cansar, melhor seria que desenhassem ou lessem na sala; sua voz era
grave, falava como sempre falava com Doro, afetuosamente mas distante, a irmã
mais velha
atenta e quase severa. Essa noite antes de dormir, Aníbal sentiu que alguma
coisa subia até seus olhos, que' o travesseiro se transformava em Sara, uma
necessidade
de apertá-la nos braços e chorar com o rosto grudado em Sara, no cabelo de Sara,
querendo que ela estivesse ali e lhe trouxesse os remédios e olhasse o
termômetro
sentada aos pés da cama. Quando sua mãe veio pela manhã para lhe esfregar o
peito com alguma coisa que cheirava a álcool e a mentol, Aníbal fechou os olhos
e foi
a mão de Sara que levantou sua camisa de dormir, acariciando-o levemente,
curando-o.
O verão chegou novamente, e novamente o pátio da casa de Doro, as férias com
histórias 'e figurinhas, com a filatelia e a coleção de jogadores de futebol que
colavam
em um álbum. Essa tarde falavam de calças compridas, já não faltava muito para
usá-las, quem é que iria entrar no curso secundário com calças curtas. Sara
chamou-os
para o café com leite e Aníbal pensou ter ouvido o que diziam e que na sua boca
havia uma espécie de resto de um sorriso, talvez se divertisse ouvindo-os falar
dessas
coisas e os gozasse um pouco. Doro tinha-lhe dito que ela já tinha noivo, um
senhor avantajado que a visitava aos sábados mas que ele ainda não tinha visto.
Aníbal
imaginava-o como alguém que trazia bombons para Sara e conversava com ela na
sala, como o noivo de sua prima Lola, em poucos dias tinha sarado da bronquite e
podia
de novo brincar
111
no campo com Doro e os outros amigos. Mas de noite era triste e ao mesmo tempo
tão belo, só no seu quarto antes de dormir, dizia para si mesmo que Sara não
estava
ali, que jamais entraria ali para vêlo nem são nem doente, justamente nessa hora
em que a sentia tão perto, olhava-a com olhos fechados sem que a voz de Doro ou
os gritos das outras crianças se misturassem com essa presença de Sara sozinha
ali para ele, junto dele, e o pranto retornava como um desejo de entrega, de ser
Doro
nas mãos de Sara, de que o cabelo de Sara lhe roçasse a fronte e sua voz lhe
dissesse boa-noite, que Sara o cobrisse com o lençol antes de ir embora.
Animou-se a perguntar para Doro assim como quem não quer nada quem cuidava
dele quando estava doente, porque Doro tinha tido uma infecção intestinal e
ficara de
cama cinco dias. Perguntoulhe isso como se fosse natural que Doro respondesse
que tinha sido atendido pela sua mãe, sabendo que não podia ser e que então
Sara, os.
remédios e as outras coisas. Doro lhe respondeu que quem fazia tudo era a sua
irmã, e mudou de assunto e começou a falar sobre cinema. Mas Aníbal queria saber
mais,
se Sara tinha cuidado dele desde quando era pequeno, é claro que sim porque sua
mãe se achava quase que inválida há oito anos e Sara se encarregava dos dois.
Mas
então, ela lhe dava banho quando você era criança? Claro, por que está me
perguntando essas besteiras? Por nada, só curiosidade, deve ser tão estranho ter
uma
irmã grande que dá banho na gente. Não tem nada de estranho, ora. E quando você
era criança e ficava doente ela tomava conta de
112
você e fazia tudo? Sim, é claro. E você não tinha vergonha que sua irmã o visse
e fizesse tudo em você? Não, que vergonha ia ter, naquela época eu era pequeno.
E
agora? Bom, agora também. Por que vou sentir vergonha quando estou doente.
Por que, é claro. Quando cerrava os olhos imaginava Sara entrando à noite no seu
quarto, aproximando-se da sua cama, era como que um desejo de que ela lhe
perguntasse
como estava passando, pusesse a mão na sua testa e depois descesse o lençol para
ver-lhe o machucado na panturrilha, mudasse a atadura chamando-o de tolo por ter
se cortado com um vidro. Sentia-a levantando sua camisa de dormir e olhando-o
despido, apalpando o seu ventre para ver se estava inflamado, cobrindo-o
novamente
para que dormisse. Abraçado ao travesseiro sentia-se de repente tão só, e quando
abria os olhos no quarto já vazio de Sara sentia como uma tonteira de angústia e
de delícia porque ninguém, ninguém podia saber do seu amar, nem sequer Sara,
ninguém podia compreender esse sofrimento e esse desejo de morrer por Sara, de
salvá-la
de um tigre ou de um incêndio e morrer por ela, e ela lhe agradecesse e o
beijasse chorando. E quando suas mãos desciam e ele começava a se acariciar como
Doro,
como todos os meninos, Sara não entrava nas suas imagens, nessa hora, era a
filha do quitandeiro ou da prima Yolanda, tal não podia acontecer com Sara que
vinha
para cuidá-lo de noite como cuidava de Doro, com ela não havia senão a delícia
de imaginá-la
inclinando-se sobre ele e acariciando-o e o amor era isso, ainda que
Aníbal já soubesse o que podia ser o amor e o
113
imaginasse com Yolanda, fudo o que um dia iria fazer com Yolanda ou a filha do
quitandeiro.
O dia da vala foi quase no final do verão, depois de brincar no campo tinham-se
separado da turma e por um caminho que somente eles conheciam e que chamavam o
caminho
de Sandokan se perderam no matagal espinhoso onde certa vez encontraram um cão
enforcado em uma árvore e fugiram apavorados. Arranhando as mãos abriram
passagem
até o mato mais denso, afundando a cara na ramagem pendente dos salgueiros
até chegar à beira da vala de águas turvas onde sempre tinham esperado pescar
mojarritas*
e nunca tinham conseguido nada. Gostavam de se sentar à margem e fumar os
cigarros que Doro fazia com palha de milho, falando dos romances de Salgari e
planejando
viagens e outras coisas. Mas nesse dia não tiveram sorte, Aníbal enganchou
um sapato em uma raiz e foi para a frente, segurou-se em Doro e os dois
escorregaram
no íalude da vala e afundaram até a cintura, não havia perigo mas foi como se
houvesse, agitaram as mãos desesperados até se apoiarem nos galhos de um
salgueiro,
se arrastaram trepando e xingando até em cima, a lama tinha entrado neles por
todas as partes, pingava dentro das camisas e das calças e cheirava a podre, a
rato
morto.
Voltaram quase sem falar e se meteram pelos fundos do jardim da casa de Doro,
esperando que não houvesse ninguém no pátio e pudessem se lavar às escondidas.
Sara
pendurava a roupa perto do galinheiro
* Peixes acaniepterígios, de uns 2cm de comprimento, com o corpo ovalado, de
cor escura e com três manchas negras. (N. da T.)
114
e os viu chegar, Doro como com medo e Aníbal atrás, morto de vergonha e querendo
morrer de verdade, estar a mil léguas de Sara nesse momento em que ela os
olhava apertando os lábios, num silêncio que os pregava ridículos e confusos sob
o sol do pátio.
- Era só o que faltava - disse simplesmente Sara, dirigindo-se para Doro e
também para Aníbal, que balbuciava as primeiras palavras de uma confissão, era
culpa
sua, seu sapato tinha ficado preso e aconteceu, Doro não teve culpa nenhuma,
estava tudo tão "escorregadio.
- Vão tomar banho agora mesmo - disse Sara como se não tivesse ouvido o que ele
falava. - Tirem os sapatos antes de entrar e depois lavem a roupa no tanque do
galinheiro.
No banheiro se olharam e Doro foi o primeiro a rir mas era um riso sem
convicção, despiram-se e abriram a ducha, sob a água podiam começar a rir de
verdade, brigar
pelo sabonete, olhar-se de cima a baixo e fazer cóçggas. Um rio de lama corria
até o ralo e se diluía pouco a pouco, o sabonete começava a fazer espuma,
divertiam-se
tanto que no primeiro momento não perceberam que a porta tinha-se aberto, que
Sara estava ali olhando-os, aproximando-se de Doro para lhe tirar o sabonete da
mão
e esfregá-lo nas suas costas ainda enlameadas. Aníbal não soube o que fazer, em
pé na banheira pôs as mãos na barriga, depois se virou de repente para que Sara
não
o visse e fosse ainda pior, meio de lado e com a água correndo pelo rosto,
mudando de lado e outra vez de costas, até que Sara lhe entregou o sabonete com
um lave
melhor suas orelhas, tem lama em todos os cantos.
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Essa noite não conseguiu ver Sara como nas outras noites, mesmo apertando as
pálpebras a única coisa que conseguia ver era Doro e ele no banheiro, Sara se
aproximando
para inspecioná-los de cima a baixo e depois saindo do banheiro com a roupa suja
nos braços, indo com generosidade, ela mesma ao tanque a fim de lavar tudo
enquanto
lhes gritava para se enrolarem nas toalhas de banho até que as coisas secassem,
dando-lhes o café com leite sem falar nada, nem chateada nem amável, instalando
a
tábua de passar sob as glicínias e secando pouco a pouco as calças e as camisas.
Ele não tinha podido dizerlhe alguma coisa no final, quando os mandou vestir as
roupas, dizer-lhe simplesmente obrigado, Sara, que boa que você é, obrigado
mesmo, Sara. Nem isso tinha podido dizer e Doro tampouco, tinham ido vestir as
roupas
calados e depois os selos e as figurinhas de aviões sem que Sara aparecesse
de novo, sempre cuidando da sua mãe ao anoitecer, preparando jantar e às
vezes
írauteando um tango entre o barulho dos pratos e das caçarolas, ausente como
agora sob as pálpebras que já não serviam para fazê-la vir, para que soubesse
quanto
gostava dela, que vontade de morrer de verdade depois de tê-la visto olhando-os
na ducha.
Deve ter sido nas últimas férias antes de entrar no colégio nacional, sem Doro
porque Doro iria para a escola normal, mas os dois tinham prometido continuar
se vendo todos os dias embora freqüentassem escolas diferentes, que
importava se pela tarde continuariam brincando como sempre, sem saber que nada
seria assim,
que algum dia de fevereiro
116
ou de março brincariam pela última vez no pátio da casa de Doro porque a família
de Aníbal se mudava para o centro de Buenos Aires e somente poderiam se ver nos
fins de semana, amargando a raiva por uma mudança que não queriam admitir, por
uma separação que os grandes lhes impunham como tantas outras coisas, sem
preocupar-se
com eles, sem consultá-los.
As coisas, de repente, andaram depressa, eles, com as primeiras calças
compridas, e aí Doro lhe disse que Sara se casaria em princípios de março,
disse-lhe isso
como se fosse coisa sem importância e Aníbal nem sequer fez um comentário,
passaram-se dias antes de se animar a perguntar a Doro se Sara continuaria
morando com
ele depois de casada, mas você é idiota, como vão ficar aqui, o cara tem muita
grana e vai levá-la para o centro de Buenos Aires, ele tem outra casa em Tandil
e
eu ficarei com a minha mãe e tia Faustina, que vai cuidar dela.
Nesse último sábado das férias viu o noivo chegar no seu carro, viu-o de azul e
gordo, com óculos, descendo do carro com um pacotinho de doces e um ramo de
açucenas.
Em sua casa chamavam-no para que começasse a arrumar suas coisas, a mudança era
segunda-feira e ainda não tinha feito nada. Gostaria de ir à casa de Doro sem
saber
por quê, estar somente ali, mas sua mãe obrigou-o a empacotar seus livros, o
globo terrestre, as coleções de bichos. Tinham-lhe dito que teria um quarto
grande só
para ele com vista para a rua, tinham-lhe dito que poderia ir ao colégio a pé.
Tudo era novo, tudo começaria de outra maneira, tudo girava lentamente, e agora
Sara
estaria sentada na sala com o gordo do terno azul, tomando chá com os doces que
ele tinha
117
trazido, tão longe do pátio, tão longe de Doro e dele, sem nunca mais chamá-los
para o café com leite debaixo das glicínias.
No primeiro final de semana em Buenos Aires (era verdade, tinha um quarto
grande só para ele, o bairro estava cheio de lojas, havia um cinema a dois
quarteirões),
pegou o trem e voltou para Bánfield para ver Doro. Conheceu a tia Fausíina, que
não lhes deu nada quando acabaram de brincar no pátio, foram caminhar pelo
bairro
e Aníbal demorou algum tempo para perguntar por Sara. Bom, tinha se casado no
civil e já estavam na casa de Tandil para passar a lua-de-mel, Sara viria cada
quinze
dias para ver sua mãe. E não tem saudades dela? Sim, mas o que posso fazer.
Claro, agora está casada. Doro se distraía, começava a mudar de assunto e
Aníbal
não achava um modo de fazer seu amigo continuar falando de Sara, talvez
pedindo que ele contasse o casamento e Doro rindo, sei lá, deve ter sido como
sempre,
do civil foram para o hotel e então veio a noite de núpcias, se deitaram e então
o cara. Aníbal escutava olhando as grades e as pedras, não queria que Doro visse
sua cara e Doro percebia, com certeza você não sabe o que acontece na noite de
núpcias. Não me chateie, é claro que sei. Você pode saber, mas a primeira vez é
diferente,
o Ramírez me contou e ele sabe porque o irmão contou para ele e o irmão é
advogado e se casou no ano passado, explicou tudo para ele. Havia um banco
vazio na
praça, Doro tinha comprado cigarros e continuava contando e fumando, Aníbal
concordava, tragava a fumaça que começava a deixá-lo
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tonto, não necessitava fechar o's olhos para ver contra o fundo da folhagem o
corpo de Sara que nunca tinha imaginado como um corpo, ver a noite de núpcias
com as
palavras do irmão de Ramírez, com a voz de Doro que continuava lhe falando.
Nesse dia não se animou a pedir o endereço de Sara em Buenos Aires, deixou para
a outra visita porque nesse momento tinha medo de Doro, mas a outra visita não
veio
nunca, começou o colégio e com ele os novos amigos, Buenos Aires engoliu pouco a
pouco Aníbal carregado de livros de matemática e tantos cinemas no centro e o
estádio
do River e os primeiros passeios de noite com Beto, que era um portenho de
verdade. Com Doro também devia estar acontecendo a mesma coisa em La Plata, às
vezes Aníbal
pensava em lhe escrever umas linhas porque Doro não tinha telefone, depois Beto
chegava ou tinha que preparar algum trabalho prático, passaram-se meses, o
primeiro
ano; as férias em Saladillo, de Sara só restava alguma imagem isolada, um
lampejo de Sara quando alguma coisa em Maria ou em Felisa lhe fazia lembrar
repentinamente
Sara. Um dia do segundo ano viu-a nitidamente ao sair de um sonho e doeu-lhe com
uma dor amarga e ardente, afinal não tinha estado tão apaixonado por ela,
naquele
tempo era uma criança e Sara nunca lhe tinha dado atenção como agora Felisa ou a
loura da farmácia, nunca tinha ido a um baile com ele como sua prima Beba ou
Felisa
a fim de festejar o ingresso no quarto ano, nunca tinha permitido que
acariciasse seu cabelo como Maria, ir dançar em San Isidro e à meia-noite se
perder entre as
árvores da praia, beijar Felisa na boca entre protestos e risos, apoiá-la contra
um tronco e acariciar seu peito,
119
descer a mão até perdê-la nesse calor fugidio e depois de outro baile e muito
cinema encontrar um refúgio no fundo do jardim de Felisa e escorregar com ela
até o chão,,
sentir na boca seu sabor salgado e deixar-se levar por uma mão que o guiou,
naturalmente não ia lhe dizer que era a primeira vez, que tinha tido medo, já
estava
no primeiro ano de engenharia e não podia dizer isso para Felisa e depois já não
era necessário visto que tudo se aprendia tão rápido com Felisa e algumas vezes
com sua prima Beba.
Nunca mais soube de Doro e não se interessou em saber, se tinha também esquecido
de Beto que ensinava história em algum povoado de província, as mudanças iam
surgindo
sem surpresa e como com todo mundo, Aníbal aceitava sem aceitar, alguma coisa
que devia ser a vida aceitava por ele, um diploma, uma grave hepatite, uma
viagem ao
Brasil, um projeto importante em um escritório com dois ou três sócios. Estava
se despedindo de um deles na porta antes de sair para tomar uma cerveja depois
do
trabalho, quando viu vir Sara na calçada da frente. Bruscamente se lembrou que
na noite anterior tinha sonhado com Sara e sempre no pátio da casa de Doro,
embora
nada acontecesse, embora Sara estivesse ali somente pendurando a roupa ou os
chamando para o café com leite, e o sonho acabava assim quase sem ter começado.
Talvez
porque nada acontecia as imagens eram de uma precisão cortante sob o sol do
verão de Bánfield que no sonho não era igual ao de Buenos Aires; possivelmente
também
por isso ou por falta de coisa melhor se recordasse de Sara depois de tantos
anos de esquecimento
120
(mas não tinha sido esquecimento, repetiu firmemente no correr do dia), e vê-la
andar agora pela rua, vê-la ali vestida de branco, idêntica àquela época, com o
cabelo
batendo nos ombros a cada passo num reflexo de luzes douradas, encadeando-se as
imagens do sonho em uma continuidade que ele não achou estranho, que tinha
alguma
coisa de necessário e previsível, e atravessar a rua e enfrentá-la, dizer-lhe
quem era e ela o olhasse surpresa, não o reconhecesse Q de repente sim, de
repente
sorrisse e estendesse a mão, apertando-a de verdade e continuando a lhe sorrir.
- Que incrível - disse Sara. - Como ia reconhecer você depois de tantos anos.
- A senhora sim, é natural - disse Aníbal. Mas, como vê, eu a reconheci logo.
- É lógico - disse logicamente Sara. - Se você nem sequer usava calças
compridas. Eu também devo ter mudado muito, mas você é melhor fisionomista.
Pensou um segundo antes de compreender que era tolice continuar tratando-a de
senhora.
- Não, não mudou nada, nem sequer o penteado. É a mesma.
- Bom fisionomista mas um pouco míope disse ela com a antiga voz onde a bondade
e a zombaria se mesclavam.
O sol lhes batia no rosto, não era possível falar no meio do tráfego e das
pessoas. Sara disse que não tinha pressa e que gostaria de tomar alguma coisa em
um café.
Fumaram o primeiro cigarro, o das perguntas gerais e dos rodeios, Doro era
professor em Adrogué, a mãe tinha morrido como um passarinho enquanto lia o
jornal, ele
era sócio de
121
outros rapazes engenheiros, iam bem apesar da crise, claro. No segundo cigarro
Aníbal deixou cair a pergunta que queimava seus lábios.
- E seu marido?
Sara deixou sair a fumaça pelo nariz, olhou-o devagar nos olhos.
- Bebe - disse.
Não havia nem amargura nem pena, era uma simples informação e depois outra vez
Sara em Bánfield antes disso tudo, antes da distância e do esquecimento e o
sonho
da noite anterior, exatamente como no pátio da casa de Doro e aceitando-lhe o
segundo uísque como sempre quase sem falar, deixando-o que continuasse, que
contasse
porque ele tinha muito mais para contar, os anos tinham estado tão cheios para
ele. Quanto a ela, parecia não ter vivido muito e não valia a pena dizer o
motivo.
Talvez porque acabasse de dizê-lo com uma só palavra. Impossível saber em que
momento tudo deixou de ser difícil, jogo de perguntas e respostas, Aníbal tinha
estendido
a mão sobre a toalha de mesa e a mão de Sara não recusou sua pressão, deixou-a
estar enquanto ele agachava a cabeça porque não podia encará-la, enquanto lhe
falava
aos borbotões do pátio, de Doro, contava-lhe as noites em seu quarto, o
termômetro, o pranto contra o travesseiro.
Dizia-lhe isso com uma voz lisa e monótona, amontoando momentos e fatos mas tudo
dava no mesmo, apaixonei-me tanto por você, apaixonei-me tanto e não podia lhe
dizer, você vinha de noite e cuidava de mim,
você era a mãe jovem que eu não tinha, você tirava a minha temperatura e me
acariciava para que eu dormisse, você nos dava o café com leite no pátio,
lembra?,
você repreendia-nos quando fazíamos
122
besteiras, eu desejaria que falasse somente para mim de uma porção de coisas,
mas você me olhava tão de cima, sorria para mim tão de longe, havia um imenso
vidro
entre nós dois e você não podia fazer nada para quebrá-lo, por isso de noite eu
a chamava e você vinha para cuidar de mim, para estar comigo, para me querer
como
eu a queria, acariciando minha cabeça, agindo comigo como fazia com Doro,
fazendo tudo o que sempre tinha feito com Doro, mas eu não era Doro e somente
uma vez,
Sara, somente uma vez e foi horrível e nunca me esquecerei porque desejei morrer
e não pude ou não soube, claro que não queria morrer, mas aquilo era amor,
querer
morrer porque você tinha me olhado por inteiro como a uma criança, você entrou
no banheiro e me viu, a mim que a queria, e tinha me olhado como sempre tinha
olhado
para Doro, você já estando noiva, você que ia se casar e eu ali enquanto me dava
o sabonete e me mandava lavar também as orelhas, me via nu como a uma criança
que
eu era e não se interessava nada por mim, nem sequer me via porque somente via
uma criança e foi embora como se nunca me tivesse visto, como se eu não
estivesse
ali inteiramente constrangido enquanto você estava me olhando.
- Lembro-me muito bem - disse Sara. - Lembro-me tão bem como você, Aníbal.
- Sim, mas não é a mesma coisa.
- Quem sabe se não é a mesma coisa. Você então não podia perceber, mas eu
já tinha sentido que você me queria dessa maneira e que o fazia sofrer, e por
isso
eu tinha que tratá-lo do mesmo modo com que tratava de Doro. Você era um menino,
mas às vezes me dava tanta pena que fosse um menino,
123
me parecia injusto, algo assim. Se você tivesse cinco anos a mais... Vou lhe
dizer agora porque já posso e porque é justo, naquela tarde entrei
propositalmente
no banheiro, não tinha nenhuma necessidade de ver se vocês estavam se lavando,
entrei porque era um jeito de acabar com isso, de curá-lo do seu sonho, para que
percebesse
que você nunca poderia me ver assim enquanto que eu tinha o direito de olhá-lo
inteirinho como se olha para um menino. Essa foi a razão, Aníbal, para que você
se
curasse de uma vez e deixasse de me olhar como me olhava pensando que eu não o
sabia. E agora sim outro uísque, agora que ambos somos adultos.
Do anoitecer até a noite fechada, por caminhos de palavras que iam e vinham, de
mãos que se encontravam um instante sobre a toalha antes de um sorriso e outros
cigarros,
restaria uma viagem de táxi, algum lugar que ela ou ele conheciam, um quarto,
tudo como que fundido numa única imagem instantânea terminando em uma brancura
de
lençóis e a quase imediata, furiosa convulsão dos corpos em um interminável
encontro, nas pausas quebradas e refeitas e violadas e cada vez menos
críveis, em
cada nova implosão que os cortava e os submergia e queimava até o torpor, até a
última brasa dos cigarros da alvorada. Quando apaguei a lâmpada do escritório e
vi
o fundo do copo vazio, tudo era ainda pura negação das nove da noite, da fadiga
à volta de outro dia de trabalho. Por que razão continuar escrevendo se as
palavras
já escorregavam durante uma hora sobre essa negação, se estendendo no papel como
o que eram, meros desenhos privados de qualquer base? Até há pouco tinham
corrido
cavalgando a realidade, enchendo-se de sol e verão,
124
palavras pátio de Bánfield, palavras Doro e jogos e vala, colmeia rumorosa de
uma memória fiel. Chegando entretanto em um tempo que já não era Sara nem
Bánfield a
contagem tinha se tornado o cotidiano, o presente utilitário sem lembranças nem
sonhos, a pura vida nada mais, nada menos. Tinha querido prosseguir e que também
as palavras aceitassem avançar até ao hoje nosso de cada dia, a qualquer das
lentas jornadas no escritório de engenharia, mas então me lembrei do sonho da
noite
anterior, desse sonho de novo com Sara, do retorno de Sara de tão longe e do
passado, e não tinha podido ficar neste presente no qual mais uma vez sairia do
escritório
pela tarde e iria beber uma cerveja no café da esquina, as palavras tinham
ficado novamente plenas de vida e ainda que mentissem, ainda que nada fosse
verdade, tinha
continuado escrevendo-as porque falavam de Sara, Sara vindo pela rua, era tão
lindo prosseguir embora fosse absurdo, escrever que tinha atravessado a rua com
as
palavras que me levariam ao reencontro com Sara e deixar-me reconhecer, a única
maneira de me encontrar finalmente com ela e lhe dizer a verdade, chegar até sua
mão e beijá-la, escutar sua voz e verlhe o cabelo batendo nos seus ombros, ir
com ela em direção a uma noite na qual as palavras iriam se enchendo de lençóis
e carícias,
mas como continuar agora, como começar a partir dessa noite uma vida com Sara,
quando ali ao lado ouvia a voz de Felisa que entrava com as crianças e vinha me
dizer
que o jantar estava pronto, que fôssemos comer logo porque já era tarde e as
crianças queriam assistir ao Pato Donald na televisão às dez e vinte.
***
125
Pesadelos

Esperar, diziam todos, tem que esperar porque em casos assim nunca se sabe,
também o doutor Raimondi, tem que esperar, às vezes acontece uma reação,
sobretudo na
idade de Mecha, tem que esperar, senhor Botto, sim doutor, mas já se passaram
duas semanas e ela não acorda, duas semanas em que está como morta, doutor já
sei,
senhora Luisa, é um clássico estado de coma, não se pode fazer nada senão
esperar. Lauro também esperava, cada vez que voltava da faculdade ficava um
pouco parado
na rua antes de abrir a porta, e pensava hoje sim, hoje vou encontrá-la
acordada, deve ter aberto os olhos e estará
conversando com mamãe, impossível ficar assim
tanto tempo, não pode morrer aos vinte anos, certamente deve estar sentada na
cama e falando com mamãe, mas tinha que continuar esperando, a mesma coisa, meu
filhinho,
o doutor voltará à tarde, todos dizem que não se pode fazer nada. Venha comer
alguma coisa, amigo, sua mãe ficará com Mecha, você precisa se alimentar, não se
esqueça
dos exames, de passagem veremos o noticiário. Mas tudo ali era de passagem, ali
onde a única coisa imutável, a única coisa exatamente igual dia após dia era
Mecha,
o peso do corpo de Mecha nessa cama, Mecha magrinha e leve, dançarina de rock e
tenista,
129
ali esmagada e esmagando todos há semanas, um complexo processo de virose,
estado comatoso, senhor Botto, impossível fazer-se um prognóstico, senhora
Luisa, somente
sustentá-la e dar-lhe todas as chances, nessa idade existe tanta energia, tanto
desejo de viver. Mas acontece que ela não pode ajudar, doutor, não. compreende
nada,
está como, ah perdão meu Deus, já nem sei o que digo.
Tampouco Lauro acreditava totalmente nisso, era como uma brincadeira de
Mecha que sempre lhe aprontava as piores brincadeiras. Vestida de fantasma na
escada,
escondendo um espanador no fundo da cama, os dois rindo muito, inventando ardis
entre si, brincando de continuar sendo crianças. Complexo processo de virose, a
repentina
apagada uma tarde depois da febre e das dores, de repente o silêncio, a pele
cinzenta, a respiração longínqua. A única coisa tranqüila ali onde havia só
médicos
e aparelhos e exames e consultas e que aos poucos a piada de mau gosto de Mecha
tinha sido mais forte, dominando-os todos a cada hora, os gritos desesperados de
dona Luisa terminando num pranto quase escondido, numa angústia de cozinha e de
banheiro, as imprecações paternas divididas pela hora dos noticiários e a
leitura
do jornal, a incrédula raiva de Lauro interrompida pelas idas à faculdade, as
aulas, as reuniões, esse bafo de esperança cada vez que retornava do centro,
você
vai me pagar, Mecha, essas coisas não se fazem, desgraçada, algum dia vou lhe
cobrar, você vai ver. A única coisa tranqüila além da enfermeira tricotando, o
cachorro
tinha sido mandado para a casa de um tio, o doutor Raimondi já não vinha com
colegas, passava lá ao anoitecer e quase nem ficava, ele também parecia sentir o
peso
130
do corpo de Mecha que os esmagava um pouco mais a cada dia, ia habituando-os a
esperar, a única coisa que podia ser feita.
O pesadelo começou na mesma tarde em que dona Luisa não achou o termômetro e a
enfermeira, surpresa, foi comprar outro na farmácia da esquina. Estavam falando
sobre
o desaparecimento, pois um termômetro não some simplesmente assim, ainda
mais quando está sendo utilizado três vezes por dia, acostumaram-se a falar
entre eles
em voz alta ao lado da cama de Mecha, os sussurros do começo não eram
necessários porque Mecha era incapaz de escutar, o doutor Raimondi estava
convencido de que
o estado de coma a isolava de qualquer sensibilidade, podia se falar qualquer
coisa sem que coisa alguma alterasse a expressão indiferente de Mecha.
Ainda
falavam do termômetro quando ouviram os tiros na esquina, ou talvez mais longe,
para o lado da rua Gaona. Olharam-se, a enfermeira encolheu os ombros porque os
tiros
não eram novidade no bairro nem em lugar nenhum, e dona Luisa ia dizer mais
alguma coisa sobre o termômetro quando viram correr o tremor pelas mãos de
Mecha. Durou
um segundo mas as duas o perceberam e dona Luisa gritou e a enfermeira tapou-lhe
a boca, o senhor Botto veio da sala e os três viram que o tremor se repetia em
todo o corpo de Mecha, uma rápida serpente correndo do pescoço até os pés, um
mover de olhos sob as pálpebras, a leve crispação que alterava as feições, uma
espécie
de vontade de falar, de se queixar, o pulso mais rápido, o lento retorno à
imobilidade. Telefone, Raimondi, no fundo nada de
131
novo, talvez um pouco mais de esperança embora Raimondi não tenha querido
dizê-lo, santa Virgem, que seja verdade, que minha filha acorde, que este
calvário termine,
meu Deus. Mas não terminava, recomeçou uma hora mais tarde, depois mais seguido,
era como se Mecha estivesse sonhando e que seu sonho fosse penoso e
desesperador,
o pesadelo voltando e voltando sem que pudesse rechaçá-lo, estar ao seu lado e
olhá-la e falar-lhe sem que nada a atingisse, invadida por essa outra coisa que
de
algum modo continuava o longo pesadelo de todos eles ali sem comunicação
possível, salve-a, meu Deus, não a deixe assim, e Lauro que voltava de uma aula
e também
permanecia ao lado da cama, uma mão no ombro de sua mãe que rezava.
À noite houve outra consulta, trouxeram um aparelho novo com ventosas e
eletrodos que eram fixados na cabeça e nas pernas, dois médicos amigos de
Raimondi confabularam
longamente na sala, é preciso continuar esperando, senhor Botto, o quadro não
teve mudança, seria imprudente pensar-se em um sintoma favorável. Mas é que ela
está
sonhando, doutor, tem pesadelos, o senhor mesmo viu, vai começar outra vez, ela
sente alguma coisa e está sofrendo tanto, doutor. É tudo vegetativo, senhora
Luisa,
não há consciência, eu lhe garanto, é preciso esperar e não se impressionar, sua
filha não sofre, sei que é duro, é melhor deixá-la sozinha com a enfermeira até
que haja uma evolução, trate de descansar, senhora, tome as pílulas que lhe dei.
Lauro velou junto de Mecha até a meia-noite, às vezes lendo apontamentos para os
exames. Quando
132
escutaram as sirenes pensou que deveria telefonar para o número que Lucero lhe
dera, mas não era conveniente fazê-lo da casa e estava fora de questão sair à
rua
logo depois das sirenes. Via os dedos da mão esquerda de Mecha moverem-se
lentamente, outra vez os olhos pareciam girar sob as pálpebras. A enfermeira
aconselhou-o
a ir para o quarto, nada podia ser feito, senão esperar. "Mas é que está
sonhando", disse Lauro, "está sonhando outra vez, veja." Durava tanto quanto
as sirenes
lá fora, as mãos pareciam procurar alguma coisa, os dedos tentando encontrar um
apoio para se agarrar nos lençóis. Agora dona Luisa estava ali de novo, não
conseguia
dormir. Por que - a enfermeira quase chateada não tinha tomado os comprimidos do
doutor Raimondi? "Não os encontro", disse dona Luisa como se estivesse
estonteada,
"estavam na mesa-de-cabeceira, mas não consigo achá-los." A enfermeira ffoi
buscá-los, Lauro e sua mãe se olharam, Mecha apenas movia os dedos e eles
sentiam que
o pesadelo continuava, que se prolongava interminavelmente como que se
negando a alcançar esse ponto no qual uma espécie de piedade, de lástima final a
despertaria
e a todos para resgatá-la do espanto. Mas ela continuava sonhando, de um momento
para o outro os dedos começariam a se mover outra vez. "Não os vejo em parte
alguma,
senhora", disse a enfermeira. "Estamos todos tão aéreos, a gente já nem sabe
aonde vão parar as coisas nesta casa."
Lauro voltou tarde na noite seguinte, e o senhor Botto lhe fez uma pergunta meio
evasiva sem deixar de assistir à televisão, em pleno comentário da Copa.
133
"Uma reunião com amigos", disse Lauro procurando material para fazer um
sanduíche. "Esse gol foi uma beleza", disse o senhor Botto. "Ainda bem que
retransmitem
a partida para se ver melhor essas jogadas de mestre." Lauro não parecia
interessado no gol, comia olhando para o chão. "Você deve saber o que faz,
rapaz", disse
o senhor Botto sem tirar os olhos da bola, "mas vá com cuidado." Lauro levantou
os olhos e olhou para ele quase surpreso, era a primeira vez que seu pai deixava
sair um comentário tão pessoal. "Fique tranqüilo, velho", disse-lhe levantando-
se para cortar qualquer diálogo.
A enfermeira tinha baixado a luz do abajur e apenas dava para se ver Mecha. No
sofá, dona Luisa tirou as mãos do rosto e Lauro beijou-a na testa.
- Continua na mesma - disse dona Luisa. Fica assim o tempo todo, filho. Veja,
veja como sua boca está tremendo, pobrezinha, que pode estar vendo, meu
Deus,
como é possível que isto dure tanto, tanto, que isto...
- Mamãe.
- Mas não é possível, Lauro, ninguém percebe como eu, ninguém compreende que
vive o tempo todo com um pesadelo e que não desperta...
- Eu sei, mãe, eu também o sei. Se fosse possível fazer alguma coisa, Raimondi
o teria feito. Você não pode ajudá-la ficando aqui, tem que dormir, tomar um
calmante
e dormir.
Ajudou-a a se levantar e acompanhou-a até a porta. "Que foi isso, Lauro?", disse
ela detendo-se bruscamente. "Nada mãe, uns tiros longe, sabe como é." Mas
realmente
o que sabia dona Luisa, para que falar mais. Agora sim, já era tarde, depois de
134
deixá-la no seu quarto teria que descer até o armazém e dali telefonar para
Lucero.
Não achou a jaqueta azul que gostava de usar à noite, andou procurando nos
armários do corredor porque sua mãe poderia tê-la pendurado ali, e finalmente
vestiu um
casaco qualquer porque fazia frio. Antes de sair entrou um instante no quarto de
Mécha, quase antes de divisá-la na penumbra sentiu o pesadelo, o tremor das
mãos,
o habitante secreto deslizando sob a pele. Lá fora as sirenes outra vez, não
deveria sair senão mais tarde, mas então o armazém estaria fechado e ele não
poderia
telefonar. Sob as pálpebras os olhos de Mecha giravam como se quisessem abrir
passagem, olhá-lo, virar para o seu lado. Acariciou-lhe a fronte com um dedo,
tinha
medo de tocá-la, de contribuir para o pesadelo com qualquer estímulo externo. Os
olhos continuavam girando nas órbitas e Lauro se afastou, não sabia por que
razão,
mas tinha cada vez mais medo, a idéia de que Mecha pudesse levantar as pálpebras
e vê-lo fez com que ele recuasse. Se seu pai tivesse ido dormir
poderia telefonar da sala em voz baixa, mas o senhor Botto continuava escutando
os comentários do jogo. "Sim, disso falam muito", pensou Lauro. Levantaria cedo
para se comunicar com
Lucero antes de ir para a faculdade. Viu de longe a enfermeira que saía do seu
quarto levando algo que brilhava, uma seringa de injeções ou uma colher.
Até o tempo se misturava ou se perdia nesse esperar contínuo, com noites de
vigília ou dias de sonho para compensar, os parentes ou amigos que chegavam a
qualquer
hora e se alternavam para distrair
135
dona Luisa ou jogar dominó com o senhor Botto, veio uma enfermeira suplente
porque a outra teve que ir-se embora por uma semana de Buenos Aires, as xícaras
de café
que ninguém encontrava porque andavam espalhadas em todos os quartos, Lauro
dando uma volta quando podia e saindo a qualquer momento, Raimondi que já nem
apertava
a campainha antes de entrar para a rotina de sempre, não se nota nenhuma mudança
negativa, senhor Botto, é um processo no qual não se pode interferir além do que
se faz que é sustentá-la, estou reforçando a alimentação por sonda, é preciso
esperar. Mas é que está sonhando o tempo todo, doutor, olhe para ela, já quase
não
descansa. Não é isso, senhora Luisa, a senhora acha que está sonhando mas são
reações físicas, é difícil lhe explicar porque nestes casos há outros fatores,
enfim,
não pense que ela tenha consciência disso que parece um sonho, quem sabe lá até
seja um bom sintoma tanta vitalidade e esses reflexos, acredite-me que estou
acompanhando
seu caso de perto, a senhora é que deve descansar, senhora Luisa, venha, que
vou tirar a sua pressão.
Lauro achava cada vez mais difícil voltar para sua casa com a viagem do centro e
tudo o que se passava na faculdade, entretanto mais por sua mãe que por Mecha
aparecia
a qualquer hora e ficava um pouco, inteirava-se do de sempre, conversava com os
velhos, inventava assuntos para falarem e tirá-los um pouco do vazio. Cada vez
que
se aproximava da cama de Mecha era a mesma sensação de contato impossível, Mecha
tão perto e chamando-o, os vagos sinais dos dedos e esse olhar de dentro,
tentando
sair, algo que continuava e continuava, uma mensagem de prisioneiro através de
paredes de
136
pele, seu chamado insuportavelmente inútil. Às vezes a histeria o invadia, a
certeza de que Mecha o reconhecia mais que a sua mãe ou a enfermeira, que o
pesadelo
alcançava sua pior fase quando ele estava ali contemplando-a, que era melhor ir-
se embora logo visto que não podia fazer nada, que era inútil falarlhe,
estúpida,
querida, não chateie, tá bem, abra os olhos de uma vez e acabe com essa gracinha
barata, Mecha boba, irmãzinha, irmãzinha, até quando você vai continuar se
divertindo
à nossa custa, louca de merda, paspalhona, mande essa comédia para o diabo e
venha que tenho muitas coisas para lhe contar, irmãzinha, não sabe nada do que
está
acontecendo mas de qualquer modo vou lhe contar, Mecha. Tudo pensado em rajadas
de medo, com vontade de se agarrar em Mecha, nenhuma palavra em voz alta porque
a
enfermeira ou dona Luisa nunca deixavam Mecha sozinha, e ele ali precisando lhe
falar de tantas coisas, como Mecha talvez estivesse falando para ele por sua
vez,
com os olhos fechados e os dedos que desenhavam letras inúteis nos lençóis.
Era quinta-feira, não porque soubessem em que dia estavam nem tal lhes
interessava mas a enfermeira tinha feito menção a isso enquanto tomavam café na
cozinha, o
senhor Botto lembrou que havia um noticiário especial, e dona Luisa que sua irmã
de Rosário tinha telefonado para dizer que viria na quinta ou na sexta-feira.
Certamente
que já começavam as provas de Lauro, tinha saído às oito sem se despedir,
deixando um bilhetinho na sala, não tinha certeza se iria voltar para o jantar,
não o esperassem
por via das dúvidas. Não veio para o
137
jantar, a enfermeira conseguiu afinal que dona Luisa fosse se deitar cedo, o
senhor Botto tinha se debruçado na janela da sala depois do jogo na televisão,
ouviam-se
rajadas de metralhadoras lá para o lado de Plaza Irlanda, de repente a calma,
quase excessiva, nem sequer um patrulheiro, era melhor ir dormir, essa mulher
que tinha
respondido todas as perguntas do telejogo das dez era um fenômeno, como conhecia
história antiga, quase como se tivesse vivido na época de Júlio César, no final
das contas a cultura dava mais dinheiro do que ser leiloeiro público. Ninguém
soube que a porta não seria aberta durante toda a noite, que Lauro não estava em
seu
quarto, pela manhã pensaram que descansasse ainda depois de alguma prova ou que
estava estudando antes do café da manhã, somente às dez viram que ele não
estava.
"Não fique nervosa", disse o senhor Botto, "certamente ficou comemorando alguma
coisa com os amigos." Dona Luisa tinha que ajudar a enfermeira que iria dar
banho
e mudar a roupa de Mecha, a água temperada e a colônia, os algodões e lençóis,
já era meio-dia e Lauro nada, mas é estranho, Eduardo, como é que nem sequer
telefonou,
nunca fez isso, na festa de fim de curso telefonou às nove, você se lembra?,
tinha medo que ficássemos preocupados mesmo sendo ele naquela época bem menor.
"O garoto
deve estar meio louco com as provas", disse o senhor Botto, "você vai ver como
chegará de repente, sempre aparece para o noticiário da uma." Mas Lauro não
chegou
à uma, perdendo as notícias esportivas e o flash sobre outro atentado subversivo
frustrado pela rápida intervenção das forças da ordem, nada de novo,
temperatura
em paulatino declínio, chuvas na zona montanhosa.
138
Passava das sete quando a enfermeira veio buscar dona Luisa que continuava
telefonando para os conhecidos, o senhor Botto esperava que um comissário amigo
lhe telefonasse
para ver se sabiam alguma coisa, a cada minuto pedia para dona Luisa que
deixasse a linha desocupada mas ela continuava consultando a agenda e
telefonando para pessoas
conhecidas, com certeza Lauro ficara em casa do tio Fernando ou tinha voltado à
faculdade para outra prova. "Deixe o telefone quieto, por favor", pediu mais uma
vez o senhor Botto, "não vê que o rapaz pode estar chamando justamente agora e
vai encontrá-lo sempre ocupado, o que você pensa que ele pode arranjar com um
telefone
público, quando não estão quebrados tem-se de respeitar a fila." A enfermeira
insistia e dona Luisa foi ver Mecha, de repente tinha começado a mexer a cabeça,
de
vez em quando girava-a lentamente para um lado e para o outro, era preciso
arrumar-lhe o cabelo que caía na sua testa. Avisar logo o doutor Raimondi,
difícil localizá-lo
no final da tarde mas às nove sua mulher telefonou dizendo que ele chegaria
logo. "Não sei como passará", disse a enfermeira que voltava da farmácia com uma
caixa
de injeções, "fecharam todo o bairro sabe-se lá o motivo, ouçam as sirenes."
Separando-se um pouco de Mecha,- que continuava movendo a cabeça como numa lenta
negativa
obstinada, dona Luisa chamou o senhor Botto, não, não sabia de nada, certamente
que o garoto também não poderia passar, mas teriam que deixar Raimondi passar
por
causa da chapa de médico.
- Não é isso, Eduardo, não é isso, certamente lhe aconteceu alguma coisa, não é
possível que nesta hora continuemos sem saber nada, Lauro sempre...
139
- Olhe, Luisa - disse o senhor Botto -, veja como mexe a mão e também o braço, é
a primeira vez que mexe o braço, Luisa, talvez...
- Mas isto é pior, Eduardo, não percebe que continua com as alucinações, que
parece estar se defendendo de... Faça alguma coisa, Rosa, não a deixe assim,
eu
vou telefonar para os Romero que talvez tenham notícias, a menina estudava com
Lauro, por favor aplique-lhe uma injeção, Rosa, já volto, ou melhor telefone,
você,
Eduardo, pergunte-lhes, depressa.
Na sala o senhor Botto começou a discar e parou, pendurou o fone. Será que
justamente Lauro, que iam saber os Romero de Lauro, era melhor esperar mais um
pouco.
Raimondi não chegava, haviam-no barrado na esquina, na certa estava dando
explicações, Rosa não podia aplicar outra injeção em Mecha, era um calmante
demasiado forte,
melhor esperar até que o doutor chegasse. Inclinada sobre Mecha, afastando o
cabelo que lhe tapava os olhos inúteis, dona Luisa começou a cambalear, Rosa
teve o
tempo suficiente para pegar uma cadeira, ajudá-la a sentar-se como um peso
morto. A sirene aumentava vindo do lado de Gaona quando Mecha abriu as
pálpebras, os olhos
velados por uma tela que se havia ido depositando durante semanas fixaram-se em
um ponto do teto, derivaram lentamente até o rosto de dona Luisa que gritava,
que
apertava o peito com as mãos e gritava. Rosa pelejou para afastá-la, chamando
desesperada, o senhor Botto, que agora chegava e se punha imóvel aos pés da cama
olhando
Mecha, como que concentrado nos olhos de Mecha que passavam pouco a pouco de
dona Luisa para o senhor Botto, da enfermeira para o teto, as
140
mãos de Mecha subindo lentamente pela cintura, resvalando para se juntar no
alto, o corpo estremecendo-se num espasmo porque seus ouvidos talvez escutassem
agora
a multiplicação das sirenes, as batidas na porta que faziam a casa tremer, os
gritos autoritários e o ranger da madeira estilhaçando-se depois da rajada da
metralhadora,
os gritos de dona Luisa, o empurrão dos corpos entrando aos montes, tudo tão a
tempo para o despertar de Mecha, tudo tão a tempo para que acabasse o pesadelo e
Mecha
pudesse voltar finalmente à realidade, à encantadora vida.
***
141
Diário para um Conto

2 de fevereiro, 1982
Às vezes, vai me invadindo uma espécie de comichão de conto, esse sigiloso e
crescente deslocamento que me aproxima pouco a pouco e resmungando desta Olympia
Traveller
de Luxo
(de luxo a pobre não tem nada, mas por outro lado tem travelliado pelos sete
profundos mares azuis agüentando tudo quanto é golpe direto e indireto que pode
receber
uma portátil metida em uma mala entre calças, garrafas de rum e livros),
é assim às vezes, cfuando cai a noite e ponho uma folha em branco no rolo e
acendendo um Gitane me chamo de estúpido
(para que um conto, afinal, por que não abrir um livro de outro contista, ou
escutar um dos meus discos?),
mas às vezes, quando já não posso fazer outra coisa a não ser começar um conto
como quereria começar este, é quando eu gostaria exatamente de ser Adolfo Bioy
Casares.
Quisera ser Bioy porque sempre o admirei como escritor e o estimei como pessoa,
embora nossas
145
respectivas timidezes não nos ajudassem a fazer amizade, além de outras razões
de peso, entre as quais um oceano prematura e literalmente estendido entre os
dois.
Fazendo as contas da melhor maneira possível, acho que Bioy e eu só nos vimos
três vezes na vida. A primeira, em um banquete da Câmara Argentina do Livro, do
qual
tive que participar, porque nos anos quarenta eu era gerente dessa associação, e
quanto a ele, sei lá o motivo, e no curso do qual nos apresentamos por cima de
uma
travessa de ravióli, nos sorrimos com alguma simpatia, e nossa conversa ficou
reduzida a um pedido da parte dele para que eu lhe passasse o saleiro. A segunda
vez
Bioy veio até minha casa em Paris e tirou umas fotos não sei por que, embora me
tenha ficado o agradável momento que passamos falando de Conrad, penso. A última
vez foi semelhante e em Buenos Aires eu fui cear em sua casa e nessa noite
falamos sobretudo de vampiros. Naturalmente em nenhuma das três ocasiões falamos
de Anabel,
mas não é por isso que agora eu desejaria ser Bioy, mas porque me agradaria
tanto poder escrever sobre Anabel como ele o teria feito se a tivesse conhecido
e tivesse
escrito um conto sobre ela. Nesse caso Bioy teria falado de Anabel como eu serei
incapaz de fazê-lo, mostrando-a próxima e profundamente e ao mesmo tempo
guardando
essa distância, esse desprendimento que decide pôr (não posso pensar que não
seja uma decisão) entre alguns de seus personagens e o narrador. Para mim vai
ser impossível,
e não só porque tenha conhecido Anabel, visto que quando crio personagens também
não consigo me distanciar deles, se bem que às vezes me pareça tão necessário
como
ao
146
pintor que se afasta do cavalete para abranger melhor a totalidade de sua
pintura e saber onde deve dar as pinceladas definidoras. Não me será possível,
pois sinto
que Anabel vai me invadir já de início como quando a conheci em Buenos Aires no
final dos anos quarenta, e embora ela fosse incapaz de imaginar este conto - se
vive,
se ainda anda por aí, velha como eu -, fará também o possível para me impedir
que escreva sobre isso como eu teria gostado, isto é, um pouco como Bioy teria
sabido
escrevê-lo se tivesse conhecido Anabel.
3 de fevereiro
Por isso estas notas fugidias, estas voltas do cachorro ao redor do tronco? Se
Bioy pudesse lê-las iria se divertir bastante, e só para me enraivecer uniria em
uma
citação literária as referências de tempo, lugar e nome que segundo ele a
justificariam. E assim, no seu perfeito inglês, •*
It was many and many years ago,
In a Kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know By the name o f Annabel Lee -
- Bem - eu teria dito -, comecemos porque era uma república e não um reino nessa
época, mas além disso Anabel escrevia seu nome com um ene só, sem contar que
many
and many years ago tinha deixado de ser uma maiden, não por culpa de Edgar Allan
Põe, mas de um viajante comercial de Tren-
147
que Lauquen que a deflorou aos treze anos. Isso sem falar que além disso se
chamava Flores e não Lee, e que teria dito descabaçar em vez da outra palavra
que ignorava
totalmente.
4 de fevereiro
Curioso, ontem não pude continuar escrevendo (refiro-me à história do viajante
comercial), precisamente talvez porque senti a tentação de fazê-lo e lá estava
somente
Anabel, sua maneira de me contar o fato. Como falar de Anabel sem imitá-la, isto
é, sem falsificá-la? Sei que é inútil, que se entro nisso terei de me submeter à
sua lei, e que me falta a habilidade e a noção de distância de Bioy para me
manter longe e marcar pontos sem dar demasiado as caras. Por isso jogo
estupidamente
com a idéia de escrever tudo o que não é verdadeiramente o conto (de escrever
tudo o que não seria Anabel, claro), e por isso o luxo de Põe e as voltas em
círculo,
como agora a vontade de traduzir esse fragmento de Jacques Derrida que encontrei
ontem à noite em La vêrité en peinture e que não tem absolutamente nada a ver
com
tudo isso mas que se lhe pode ser aplicado assim mesmo em uma inexplicável
relação analógica, como ess"as pedras semipreciosas cujas facetas revelam
paisagens identificáveis,
castelos ou cidades ou montanhas reconhecíveis. O fragmento é de difícil
compreensão, como é costume chez Derrida, e o traduzo um pouco como você o criou
(mas ele
também escreve assim, só que parece que o criaram melhor):
148
"não (me) resta quase nada: nem a coisa, nem a sua existência, nem a minha, nem
o puro. objeto nem o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma, natureza por
nada.
Entretanto eu amo: não, ainda é muito, é ainda interessar-se sem dúvida na
existência. Não amo porém me comprazo nisso que não me interessa, ao menos nisso
que é
indiferente que ame ou não. Esse prazer que tomo ou não de preferência o
devolveria, eu devolvo o que tomo, recebo o que devolvo, não tomo O que recebo.
E no entanto
eu o dou para mim mesmo. Posso dizer que o dou para mim? É tão universalmente
subjetivo
- na pretensão de meu julgamento e do senso comum - que pode vir somente de um
todo externo. Inassimilável. Em última instância, este prazer que me dou ou ao
qual,
melhor dizendo, me dou, pelo qual me dou, nem sequer o experimento, se
experimentar significa sentir: fenomenalmente, empiricamente, no espaço e no
tempo de minha
existência interessada ou interessante. Prazer cuja experiência é impossível.
Não o tomo, não o recebo, não o devolvo, não o dou, não o dou nunca para mim
porque
eu (eu, sujeito existente) nunca tenho acesso ao belo enquanto tal. O fato de
existir não me dá jamais um prazer puro."
Derrida está falando de alguém que enfrenta algo que lhe parece belo, e daí sai
tudo isso; eu enfrento um nada, que é este conto não escrito, um vazio de conto,
uma fraude de conto, e de um modo que me seria impossível compreender sinto que
isso é
149
Anabel, isto é, que há Anabel embora não haja conto. E o prazer reside nisso,
ainda que não seja um prazer e se pareça com alguma coisa assim como uma sede de
sal,
como um desejo de renunciar a toda escrita enquanto escrevo (entre tantas outras
coisas porque não sou Bioy e não conseguirei nunca falar de Anabel como penso
que
deveria fazê-lo).
Pela noite
Releio a passagem de Derrida, verifico que nada tem a ver com meu estado de
ânimo e inclusive com minhas intenções; a analogia existe de outra maneira,
pareceria
estar entre a noção de beleza que propõe essa passagem e meu sentimento de
Anabel;' nos dois casos há uma rejeição a todo acesso, a toda ponte, e se quem
fala na
passagem de Derrida jamais tem entrada no belo enquanto tal, eu que falo em meu
nome (erro que nunca Bioy cometeria), dolorosamente sei que jamais tive e jamais
terei acesso a Anabel como Anabel, e que escrever agora um conto sobre ela, um
conto de alguma maneira de Anabel, é impossível. E assim, ao final da analogia
volto
a sentir o seu princípio, o início da passagem de Derrida que li ontem à noite e
me caiu como um prolongamento exasperante do que estava sentindo aqui diante da
Olympia, diante da ausência do conto, diante da nostalgia da eficácia de Bioy.
Precisamente o princípio: "não (me) resta quase nada: nem a coisa, nem sua
existência,
nem a minha, nem o puro objeto nem o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma
natureza por nada." O mesmo confrontamento desesperado com um nada
150
desenvolvendo-se em uma série de subnadas, de negativas do discurso: porque
hoje, depois de tantos anos, não me resta nem Anabel, nem a existência de
Anabel, nem minha existência
em relação à sua, nem o puro objeto de Anabel, nem o meu puro sujeito de então
diante de Anabel no quarto da rua Reconquista, nem nenhum interesse de qualquer
natureza
por nada, já que tudo isso se foi consumando Many and many years ago, em um país
que é hoje meu fantasma ou eu o seu, em um tempo que é hoje como a cinza destes
Gitanes se acumulando dia a dia até que madame Perrin venha limpar o meu
apartamento.
6 de fevereiro
Essa foto de Anabel, colocada simplesmente como marcador num romance de Onetti e
que reapareceu por mera ação da gravidade em uma mudança de dois anos atrás,
tirar
uma braçada de livros velhos da estante e ver surgir a foto, custar a reconhecer
Anabel.
Creio que se parece bastante com ela embora lhe estranhe o penteado, quando veio
pela primeira vez ao meu escritório tinha o cabelo preso, lembro-me num conjunto
de sensações que eu estava metido até as orelhas na tradução de uma patente
industrial. De todos os trabalhos que me cabia aceitar, e em realidade tinha de
aceitar
todos se fossem traduções, os piores eram as patentes, tinha de passar horas
vertendo a explicação detalhada de um aperfeiçoamento em uma máquina de costura
elétrica
ou nas turbinas dos navios, e naturalmente eu não entendia
151
absolutamente nada da explicação e quase nada do vocabulário técnico, de modo
que avançava palavra por palavra tendo cuidado para não pular uma linha, mas sem
a
menor idéia do que poderia ser uma árvore helicoidal hidrovibrante que respondia
magneticamente aos tensores l, l' e l" (figura 14). Certamente Anabel tinha
batido
na porta e eu não ouvi; quando ergui os olhos ela estava ao lado da minha
escrivaninha e o que mais se destacava nela era a carteira de plástico brilhante
e uns
sapatos que não tinham nada a ver com as onze da manhã de um dia útil em Buenos
Aires.
Pela tarde
Estou escrevendo o conto ou continuam os preparativos para provavelmente nada?
Velhíssimo, nebuloso novelo com tantas pontas, posso puxar por qualquer uma sem
saber
no que vai dar; a desta manhã tinha um ar cronológico, a primeira visita de
Anabel. Continuar ou não continuar esses fios: aborrece-me a repetição, mas
também não
gosto dos flashbacks gratuitos que complicam tantos contos e tantos filmes. Se
vêm por conta própria, tudo bem; afinal quem sabe lá o que é realmente o tempo;
mas
nunca determiná-los como plano de trabalho. Da foto de Anabel deveria ter falado
depois de outras coisas que lhe dessem mais sentido, se bem que talvez apareceu
assim por algum motivo, como agora a lembrança do papel que uma tarde encontrei
pregado com um alfinete na porta do escritório, já nos conhecíamos bem e, embora
o bilhete pudesse me prejudicar profissionalmente diante dos clientes
152
respeitáveis, causou-me um prazer infinito ler VOCÊ NÃO ESTA, DESGRAÇADO, VOLTO
À TARDE (as vírgulas eu as acrescento, e não deveria fazê-lo mas essa é a
formalidade).
Acabou não vindo porque à tarde começava o seu trabalho do qual nunca tive. uma
idéia detalhada mas que em conjunto era o que os jornais chamavam de exercício
da
prostituição. Esse exercício mudava bem rapidamente para Anabel na época em que
consegui ter uma idéia de sua vida, quase não passava uma semana sem que de
passagem
me soltasse um amanhã não nos veremos porque no Fénix precisam de uma menina por
uma semana e pagam bem, ou me dissesse entre dois suspiros e um palavrão que a
ronda
andava fraca e que precisava enfiar-se uns dias na Chempe para poder pagar o
quarto no final do mês.
A verdade é que nada parecia durar com Anabel (nem com as outras moças), nem
sequer a correspondência com os marinheiros, tinha-me restado um pouco de
prática
no ofício para avaliar que a média em quase todos os casos era de duas ou três
cartas, quatro por sorte, e constatar que o marinheiro se cansava ou se esquecia
rapidamente
delas ou viceversa, além do que, minhas traduções deveriam carecer de suficiente
libido ou envolvimento sentimental e os marinheiros por sua vez não eram o que
se
pode chamar homens de pena, de modo que tudo acabava rapidamente. Como explico
mal tudo isto, eu também fico cansado de escrever, soltar palavras como cães
procurando
Anabel, acreditando de vez em quando que vão me trazê-la tal como era, tal como
éramos many and many years ago.
153
8 de fevereiro
9 de fevereiro
Mas o pior é que me cansa reler para encontrar um dos fios da meada, e além do
que isto não é o conto, de modo que então Anabel entrou aquela manhã no meu
escritório
da rua San Martin quase esquina com Corrientes, e me lembro mais da carteira de
plástico e dos sapatos com sola dupla de cortiça do que do seu rosto nesse dia

verdade que os rostos da primeira vez não têm nada a ver com aquele que é
esperado no tempo e no hábito). Eu trabalhava na velha escrivaninha que tinha
herdado um
ano antes junto com toda a velharia do escritório e que ainda não me sentia com
ânimo de renovar, e estava chegando a uma parte especialmente abstrusa da
patente,
avançando frase por frase, rodeado de dicionários técnicos e com uma sensação de
estar tapeando Marval e O'Donnell, que me pagavam as traduções. Anabel foi como
a entrada perturbadora de uma gata siamesa em uma sala de computadores, e
poderia se dizer que sabia disso, pois me olhou quase com pena antes de me
dizer
que sua amiga Marucha tinha lhe dado o meu endereço. Pedi-lhe que se sentasse, e
por puro esnobismo continuei traduzindo uma frase na qual uma calandra de
calibre
intermediário estabelecia uma misteriosa confraternização com um cárter
antimagnético blindado X2. Ela então pegou um cigarro de fumo lavado e eu um de
fumo negro,
e embora me bastasse o nome de Marucha para que tudo ficasse esclarecido, deixei
contudo que ela falasse.
154
Uma resistência em construir um diálogo que teria mais de invenção do que de
outra coisa.
Lembro-me sobretudo dos clichês de Anabel, de sua maneira de me dizer "moço"
ou "senhor" alternadamente, de dizer "uma suposição", ou deixar cair um "ah vou
lhe contar". De fumar também por clichê, soltando a fumaça de uma só vez quase
antes
de tê-la absorvido. Trazia-me uma carta de um tal William, datada em Tampico um
mês antes, que lhe traduzi em voz alta antes de escrevê-la como me pediu depois.
"Porque posso me esquecer de alguma coisa", disse Anabel, pegando cinco pesos
para me pagar. Disse-lhe que não valia a pena, meu ex-sócio tinha fixado essa
tarifa
absurda nos tempos em que trabalhava sozinho e tinha começado a traduzir para as
moças da zona de baixo as cartas dos seus marinheiros e o que elas lhes
respondiam.
Eu tinha dito para ele: "Por que lhes cobra tão pouco? Ou cobra mais ou nada,
seria melhor, afinal não é o seu trabalho, você faz isso por bondade." Explicou-
me
que já estava velho demais para resistir ao desejo de deitar de vez em quando
com alguma delas, e que por isso aceitava traduzir suas cartas para tê-las mais
ao
alcance, mas se não tivesse fixado esse preço simbólico todas elas teriam se
tornado umas Madame de Sevigné e aí nem é bom falar. Depois meu sócio saiu do
país e
eu herdei a mercadoria, mantendo-a por inércia dentro das mesmas linhas. Tudo ia
muito bem, Marucha e as outras (havia quatro naquela época) me juraram que não
passariam
a bola para ninguém mais, e a média era de duas por mês, com a carta para ler em
espanhol e a carta para escrever em inglês (mais
155
raramente em francês). Pelo visto Marucha se esqueceu do juramento, e balançando
sua estapafúrdia carteira de plástico reluzente entrou Anabel.
10 de fevereiro
Esses tempos: o peronismo ensurdecendo-me com tanto alto-falante no centro, o
porteiro galego chegando ao meu escritório com uma foto de Evita e pedindo-me de
maneira
nada amável que tivesse a amabilidade de fixá-la na parede (trazia os quatro
percevejos para que não houvesse desculpas). Walter Gieseking dava uma série de
recitais
admiráveis no Colón, e José Maria Gatica caía como um saco de batatas em um
ringue dos Estados Unidos. Nos meus momentos livres eu traduzia Vida e Cartas de
John
Keats, de Lord Houghton; nas horas ainda mais livres passava bons instantes em
La Fragata, quase em frente ao meu escritório, com amigos advogados que também
gostavam
do Demaría bem batido. Às vezes Susana-
Acontece que não é fácil continuar, vou me submergindo em lembranças e ao mesmo
tempo querendo fugir delas, exorcizá-las escrevendo-as (mas então há que assumi-
las
pra valer e aí é que está). Pretender contar desde a névoa, desde coisas
esgarçadas pelo tempo (e que irrisão ver com tanta clareza a carteira negra de
Anabel, ouvir
nitidamente seu "obrigada, moço", quando terminei a carta para William e lhe dei
o troco de dez pesos). Só agora sei realmente o que acontece, o caso é que nunca
soube grande coisa
156
do que tinha acontecido, quero dizer as razões profundas desse tango barato que
começou com Anabel, a partir de Anabel. Como entender realmente essa anedota de
milonga
na qual havia uma morte no meio e ainda por cima um frasco de veneno, não era
para um tradutor público com escritório e placa de bronze na porta e a quem
Anabel
ia contar toda a verdade, supondo-se que a soubesse. Como com tantas outras
coisas nesse tempo, movi-me entre abstrações, e agora no fim do caminho me
pergunto como
pude viver nessa superfície sob a qual se deslizavam e se mordiam as criaturas
da noite portenha, os grandes peixes desse rio turvo que eu e tantos outros
ignorávamos.
É absurdo que eu agora queira contar alguma coisa que não fui capaz de
distinguir bem enquanto acontecia, como em uma paródia de Proust, pretendo
entrar na lembrança
como não entrei na vida a fim de finalmente vivê-la de verdade. Penso que faço
isso por Anabel, finalmente quereria escrever um conto capaz de mostrá-la de
novo
para mim, alguma coisa na qual ela própria se visse como não creio que se tenha
visto naquela época, porque Anabel também se movimentara no ar espesso e sujo de
um Buenos Aires que a continha e ao mesmo tempo a rejeitava como a uma faixa
marginal, lúmpen de porto e quarto de 5.a categoria dando para um corredor em
que iam
dar tantos outros quartos de tantos outros lumpens, onde se ouviam muitos tangos
mesclando-se ao mesmo tempo com broncas, queixumes, às vezes risadas, claro que
às vezes risadas, quando Anabel e Marucha contavam piadas uma para a outra ou
porcarias entre dois mates ou uma cerveja nunca bem gelada. Poder arrancar
Anabel dessa
imagem confusa e manchada que dela me resta,
157
como às vezes as cartas de William lhe chegavam confusas e manchadas e ela as
punha na minha mão como se estendesse um lenço sujo.
11 de fevereiro
Soube então essa manhã que o cargueiro de William tinha estado uma semana em
Buenos Aires e que agora chegava a primeira carta de William, de Tampico,
acompanhando
o clássico pacote com os presentes prometidos, calcinhas de náilon, uma pulseira
refulgente e um vidrinho de perfume. Nunca havia muita diferença nas cartas dos
amigos das moças e seus presentes, elas pediam sobretudo roupas de náilon que
nessa época era difícil conseguir em Buenos Aires, e eles mandavam os presentes
com
mensagens quase sempre românticas nas quais às vezes saltavam referências tão
concretas que me tornavam dificultosa a tarefa de traduzi-las em voz alta para
as meninas
que, naturalmente, me ditavam cartas ou me davam rascunhos cheios de saudades,
noites de dança e pedidos de meias transparentes e blusas cor de tango. Com
Anabel
era a mesma coisa, mal acabei de lhe traduzir a carta de William, começou a me
ditar a resposta, mas eu conhecia esse tipo de clientela e pedi-lhe que somente
me
indicasse os temas que da redação eu me ocuparia mais tarde. Anabel ficou me
olhando, surpresa.
- Mas é a parte sentimental - disse. - Tem que pôr muito sentimento.
- Naturalmente, fique tranqüila e me diga o que devo responder.
158
Foi o nímio catálogo de sempre, aviso de recebimento, ela estava bem mas
cansada, quando voltasse William, que lhe escrevesse pelo menos um cartão de
cada porto,
que dissesse para um tal Perry que não se esquecesse de mandar a foto que tinha
tirado deles dois juntos nas docas. Ah, e que dissesse para ele que aquilo da
Dolly
continuava do mesmo jeito.
- Se não me explicar um pouco isso... - comecei.
- Diga-lhe somente isto, que aquilo da Dolly continua a mesma coisa. E no final
diga-lhe, bem, você já sabe, que seja com afeto, se você me entende.
- Claro, não se preocupe.
Ficou de passar no outro dia e quando veio assinou a carta depois de olhá-la um
momento, parecia capaz de entender muitas palavras, detinha-se longamente em um
ou
outro parágrafo, depois assinou e mostrou-me um papelzinho onde William tinha
escrito datas e portos. Decidimos que o melhor seria mandar a carta para
Oackland,
e já nessa altura o gelo tinha sido quebrado e Anabel aceitava de mim o primeiro
cigarro e olhava-me sobrescritar o envelope, apoiada na borda da escrivaninha e
cantarolando alguma coisa.
Uma semana depois me trouxe um rascunho para que eu escrevesse urgentemente para
William, parecia ansiosa e pediu-me para fazer a carta logo, mas eu estava
atolado
em certidões de nascimento italianas e prometi escrevê-la à tarde, assiná-la por
ela e despachá-la ao sair do escritório. Olhou-me como que duvidando, mas depois
disse tudo bem e saiu. Na manhã seguinte apareceu às onze e meia para se
assegurar de que eu tinha mandado a carta. Foi então
159
que a beijei pela primeira vez e combinamos que eu iria para sua casa quando
saísse do trabalho.
12 de fevereiro
Não que eu gostasse particularmente das meninas da zona de baixo naquela época,
movia-me no acomodado pequeno mundo de uma relação estável com alguém a quem
chamarei
Susana e qualificarei de fisioterapeuta, só que às vezes esse mundo me parecia
demasiado pequeno e demasiado confortável, então surgia uma necessidade premente
de
submersão, um retorno aos tempos adolescentes com as caminhadas solitárias pelos
bairros do sul, retrocesso e escolhas caprichosas, breves interlúdios talvez
mais
estéticos que eróticos, um pouco como a escrita deste parágrafo que releio e que
deveria riscar, mas que guardarei porque assim aconteciam os fatos, isso que
chamei
de submersão, esse acanalhamento objetivamente desnecessário já que Susana, já
que T. S. Eliot, já que Wilhelm Backhaus, e apesar de, e apesar de.
13 de fevereiro
Ontem me irritei comigo mesmo, é divertido pensar nisso agora. De qualquer
maneira já o sabia desde o princípio, Anabel não me deixará escrever o conto
porque em
primeiro lugar não será um conto e depois porque Anabel fará (como fez então sem
sabê-lo, pobrezinha) tudo o que puder para me deixar só diante de um espelho.
Basta-me
reler este diário para sentir que ela não é mais que uma catalisadora
160
que tenta me arrastar para o fundo mesmo de cada página, que por isso não
escrevo, ao centro do espelho onde teria querido vê-la e no entanto vejo um
tradutor
público nacional devidamente diplomado, com sua Susana previsível e até
cacofônica, suasusana, por que não a terei chamado Amália ou Berta. Problemas de
escrita,
qualquer nome não se presta a... (você vai continuar?).
Pela noite
Do quarto de Anabel na rua Reconquista na altura do quinhentos preferiria não me
lembrar sobretudo porque talvez sem que ela pudesse saber esse quarto ficava
muito
próximo do meu apartamento, em um décimo segundo andar e com janelas para uma
esplêndida vista do rio cor de leão. Lembro-me - (incrível lembrar-me de coisas
assim)
que ao marcar o encontro com ela fiquei tentado a lhe dizer que seria melhor vir
à minha casa onde teríamos um uísque bem gelado e uma cama como eu gosto,
contive-me
ao pensar que Fermín, o porteiro, com mais olhos que Argos, a visse entrar ou
sair do elevador e meu crédito com ele fosse por água abaixo, ele que
cumprimentava
quase comovido Susana quando nos via sair ou chegar juntos, ele que sabia
distinguir maquilagens, saltos de sapatos e bolsas. Arrependi-me nem bem comecei
a subir
a escada, estive a ponto de dar meia-volta quando entrei no corredor para o qual
davam não sei quantos quartos, vitrolas e perfumes. Mas Anabel já me sorria da
porta
do seu quarto, e além disso havia uísque embora não estivesse gelado, havia as
inevitáveis bonecas mas também uma
161
reprodução de um quadro de Quinquela Martin. A cerimônia se realizou sem pressa,
bebemos sentados no sofá e Anabel quis saber quando eu tinha conhecido Marucha e
se
interessou pelo meu antigo sócio do qual as outras meninas lhe tinham falado.
Quando coloquei a mão na sua coxa e a beijei na orelha, sorriu-me com
naturalidade
e se levantou para retirar a colcha rosa da cama. Seu sorriso ao nos
despedirmos, quando deixei umas notas debaixo de um cinzeiro, continuou sendo o
mesmo, uma aceitação
desapegada que me comoveu pela sinceridade, outros teriam chamado
profissionalismo. Sei que saí sem lhe falar como tinha pensado fazê-lo acerca de
sua última carta
para William, no final das contas seus problemas nem deveriam me interessar, eu
também podia sorrir-lhe como ela tinha sorrido para mim, eu também era um
profissional.
16 de fevereiro
Inocência de Anabel, como esse desenho que fez um dia no meu escritório enquanto
eu a deixava esperando por causa de uma tradução urgente, e que deve andar
perdido
dentro de algum livro até que talvez apareça, como a sua foto, em uma mudança ou
em uma releitura. Desenho com casinhas suburbanas e duas ou três galinhas
bicando
na calçada. Mas quem fala de inocência? Fácil salientar Anabel por essa
ignorância que a levava escorregando de uma coisa para outra; de repente, de
baixo, tangível
tantas vezes no olhar ou nas decisões, a entrevisão de alguma coisa que me
fugia, disso que a própria Anabel chamava um tanto dramaticamente "a vida",
162
e que para mim era um território vedado que somente a imaginação ou Roberto Arlt
podiam dar-me vicariamente. (Estou me lembrando de Hardoy, um advogado amigo,
que
às vezes se metia em turvos episódios suburbanos por mera nostalgia de algo que
no fundo sabia impossível-, e de onde voltava sem ter realmente participado,
mera
testemunha como eu sou testemunha de Anabel. Sim, os verdadeiros inocentes
éramos os de gravata e que dominávamos três idiomas. Em todo caso, Hardoy, como
bom advogado,
apreciava sua função de testemunha presencial, via-a quase como uma missão. Mas
não é ele e sim eu quem quereria escrever este conto sobre Anabel.)
17 de fevereiro
Não vou chamar isso de intimidade, para tal deveria ter sido capaz de dar a
Anabel o que ela ame dava tão naturalmente, fazê-la subir à minha casa por
exemplo, criar
uma paridade aceitável embora continuasse tendo com ela uma relação tabelada
entre cliente regular e mulher da vida. Nessa época não pensei, como estou
pensando
agora, que Anabel nunca me reprovou por mantê-la estritamente marginalizada;
devia paiecer-lhe a regra do jogo, algo que não excluía uma amizade suficiente
para
encher com risos e brincadeiras os vácuos fora da cama, que são sempre os
piores. Anabel não se cuidara muito de minha vida, suas raras perguntas eram do
tipo: "Você
em criança teve algum cachorrinho?", ou: "Você sempre cortou o cabelo tão
curto?". Eu já estava bastante informado do problema da Dolly e de Marucha, de
alguma coisa
da vida de Anabel, enquanto
163
ela continuava sem saber e sem se importar que eu tivesse uma irmã ou um primo,
barítono este último. Conhecia Marucha antes por causa das cartas, e às vezes no
café de Cochabamba me encontrava com ela e com Anabel para tomar cerveja
(importada). Por uma das cartas para William tinha sabido das broncas entre
Marucha e Dolly,
mas o que chamarei o assunto do frasquinho só se tornou sério muito depois, no
princípio dava para rir de tanta inocência (falei da inocência de Anabel?
Aborrece-me
reler este diário que está me ajudando cada vez menos a escrever o conto),
porque Anabel, que era unha e carne com Marucha tinha contado para William que a
Dolly
continuava tirando os melhores clientes de Marucha, caras de grana e até um que
era filho de um delegado como no tango, tornava impossível sua vida no Chempe e
visivelmente
se aproveitava de Marucha estar perdendo um pouco o cabelo, ter problemas com os
incisivos e que na cama, etecétera e tal. Marucha chorava tudo isso no ombro de
Anabel, comigo menos porque talvez não tivesse tanta confiança, eu era o
tradutor e ponto final, diz que você é um fenômeno, me contava Anabel, você lhe
interpreta
tudo tão bem, o cozinheiro desse navio francês manda agora até mais presentinhos
que antes, Marucha pensa que deve ser pelo sentimento que você põe.
- E você não recebe mais do que antes?
- Não, ora. Certamente que você escreve mal por puro ciúme.
Dizia coisas assim, e ríamos bastante.
Inclusive foi rindo que me contou o caso do frasquinho que por uma ou duas vezes
tinha aparecido no temário das cartas para William sem que eu fizesse perguntas
porque deixá-la falar por si sem lhe dar
164
corda era um dos meus prazeres. Lembro-me de que me contou isso em seu quarto,
enquanto abríamos uma garrafa de uísque depois de termos obtido o direito ao
gole.
- Juro-lhe, quase caí dura. Sempre o achei um pouco maluco, talvez porque não
entendo muito o que ele diz ainda que no final ele sempre se faça entender.
Claro,
você não o conhece, se você visse os olhos que ele tem, como um gato amarelo,
nele fica bem porque é um cara de boa pinta, quando sai veste uns ternos que vou
lhe
contar, aqui nunca se vêem tecidos assim, sintéticos, sabe?
- Mas o que foi que lhe disse?
- Que quando retornar vai me trazer um frasquinho. Desenhou-o no guardanapo e em
cima colocou uma caveira e dois ossos cruzados. Está entendendo agora?
- Mais ou menos, mas não compreendo o por quê. Você lhe falou da Dolly?
- Claro, a noite em que ele veio me procurar quando chegou o flavio, Marucha
estava comigo, chorava e rejeitava a comida, eu tive que segurá-la para que não
saísse
direto para cortar a cara da Dolly. Foi justamente quando soube que a Dolly
tinha lhe tirado o velho das quintas-feiras, quem sabe o que essa filha da puta
lhe disse
de Marucha, talvez que isso do cabelo podia ser contagioso. Com William demos
para ela fernet e a fizemos deitar nesta mesma cama, ela ficou dormindo e assim
pudemos
sair para dançar. Eu lhe contei tudo sobre a Dolly, certamente que entendeu
porque essas coisas sim, me entende tudo, crava-me os olhos amarelos e somente
tenho
que lhe repetir algumas partes.
165
- Espere um pouco, melhor tomarmos outro scotch, esta tarde foi tudo duplo
- disse-lhe dando uma palmada e rimos porque o primeiro já tinha estado bem
carregadinho.
- E você o que fez?
- Você acha que eu sou tão idiota? Que não, claro, rasguei o guardanapo em
pedacinhos para que compreendesse. Mas ele continuava teimando com o vidrinho,
que ia
mandá-lo para que Marucha o deitasse em um aperitivo. In a drink, disse.
Desenhou um policial em outro guardanapo e depois riscou-o com um X, isso queria
dizer que
não suspeitariam de nada.
- Perfeito - disse eu -, este americano acha que os médicos legistas daqui são
uns estúpidos. Fez bem, menina, ainda mais que o tal frasquinho ia passar pelas
suas
mãos.
- Isso.
(Não me lembro, como poderia me lembrar desse diálogo. Mas foi assim, escrevo-o
escutando-o, ou o invento copiando-o, ou o copio inventando-o. É o caso de se
perguntar
de passagem se não será isso a literatura.)
19 de fevereiro
Mas às vezes não é assim porém algo muito mais sutil. Às vezes entra-se em um
sistema de paralelas, de simetrias, e talvez por isso há momentos e frases e
acontecimentos
que se fixam para sempre em uma memória que não tem demasiados méritos (a minha
em todo caso) já que esquece tanta coisa mais importante.
166
Não, nem sempre há invenção ou cópia. Ontem à noite pensei que tinha de
continuar escrevendo tudo isto sobre Anabel, que possivelmente me levaria ao
conto como verdade
última, e de repente foi outra vez o quarto de Reconquista, o calor de fevereiro
ou março, o' rio j ano* com os discos de Alberto Castillo no outro lado do
corredor,
esse cara não acabava nunca de se despedir de sua famosa pampa, até Anabel
começava a ficar cheia e nisso ela pára a música, adióóós pááámpü mííía, a
Anabel sentada
nua na cama e se lembrando de sua pampa lá por Trenque Lauquen, Tanto barulho
que esse cara faz por causa da pampa, Anabel depreciativa acendendo um cigarro,
tanta
chatice por uma merda cheia de vacas. Mas Anabel, eu achava você mais
patriótica, filhinha. Uma pura merda chata ora, eu acho que se não viesse para
Buenos Aires
me atirava em uma vala. Pouco a pouco as lembranças confirmatórias e de repente,
como se precisasse contar-me aquilo, a história do viajante comercial, quase não
tinha começado quando senti que isso eu já sabia, que já tinham me contado isso.
Fui deixando que falasse do jeito que ela precisava falar (às vezes o
frasquinho,
agora o viajante), mas de alguma maneira eu não estava ali com ela, o que estava
me contando chegava-me de outras vozes e outros âmbitos com perdão de Capote,
chegava-me
da sala de refeições no hotel do poeirento Bolívar, esse povoado pampeano onde
tinha morado dois anos já tão distantes, dessa tertúlia de amigos e pessoas de
passagem
onde se falava de tudo mas especialmente de mulheres, disso que então nós os
rapazes chamávamos os
nojuno
* natural de La Rioja. província argentina. (N. da T.)
167
elementos e que tanto escasseavam na vida dos solteiros dos povoados.
Quão claramente me lembro daquela noite de verão, com a sobremesa e o café com
bagaceira voltavam para o careca Rosatti as coisas de outros tempos, era um
homem
que apreciávamos pelo humor e pela generosidade, o mesmo homem que depois de uma
história um tanto forte de Flores Diez ou do gordo Salas, se soltava para nos
contar
de uma dona já não muito jovem que ele visitava em seu barraco lá pelo lado de
Casbas onde ela vivia de umas galinhas e uma pensão de viúva, criando na miséria
uma
filha de treze anos.
Rosatti vendia carros novos e usados, chegava até o barraco da viúva quando bem
lhe entendia em alguns de seus giros, levava alguns presentes e se deitava com a
viúva até o outro dia. Ela era muito carinhosa, preparava-lhe bons mates,
fritava-lhe empanada e segundo Rosatti não era nada má de cama. Mandavam a Chola
dormir
em um galpãozinho onde em outros tempos o finado guardava uma charrete já
vendida; era uma menina calada, de olhos fugidios, que sumia mal Rosatti chegava
e na hora
do jantar se sentava com a cabeça baixa e quase não falava. Às vezes ele levava-
lhe um brinquedo ou balas, que ela recebia com um "obrigado, senhor" quase à
força.
Na tarde em que Rosatti apareceu com mais presentes que de costume porque nessa
manhã tinha vendido um Plymouth e estava contente, a viúva pegou a Chola pelo
ombro
e disse-lhe que aprendesse a agradecer bem a dom Carlos, que não fosse tão
xucra. Rosatti, rindo, desculpou-a porque conhecia seu caráter, mas nesse
instante de
confusão da menina viu-a pela primeira vez, viu-lhe os olhos negros e os
168
quatorze anos que começavam a levantar sua blusinha de algodão. Essa noite na
cama sentiu a diferença e a viúva também deve tê-la sentido porque chorou e lhe
disse
que ele já não a queria como antes, que certamente iria se esquecer dela porque
já não o satisfazia como no princípio. Os detalhes do acordo nunca os soubemos,
em
certo momento a viúva foi pegar a Chola e a trouxe para o barraco aos empurrões.
Ela mesma arrancou-lhe a roupa enquanto Rosatti a esperava na cama, e como a
menina
gritasse e se debatesse desesperada, a mãe subjugou-lhe as pernas e manteve-a
assim até o final. Lembro-me que Rosatti abaixou um pouco a cabeça e disse,
entre envergonhado
e desafiante: "Como chorava..." Nenhum de nós fez o menor comentário, o silêncio
espesso durou até que o pesado Salas soltou uma das suas e todos, e sobretudo
Rosatti, começamos a falar de outras coisas.
Tampouco eu fiz o menor comentário com Anabel. Que podia lhe dizer? Que já
conhecia cada detalhe, salvo que havia pelo menos vinte anos entre as duas
histórias,
e que o viajante comercial de Trenque Lauquen não tinha sido o mesmo homem, nem
Anabel a mesma mulher? Que tudo sempre se passava mais ou menos assim com as
Anabel
deste mundo, salvo que às vezes se chamavam Chola?
23 de fevereiro
Os clientes de Anabel, vagas referências a algum nome ou alguma anedota.
Encontros casuais nos cafés do baixo, fixação de um rosto, uma voz. Naturalmente
nada disso
me interessava, suponho que
169
nesse tipo de relações compartilhadas ninguém se sente um cliente como os
outros, mas além disso eu podia me considerar certo dos meus privilégios,
primeiro por
causa das cartas e também por mim mesmo, alguma coisa da qual Anabel gostava e
me dava, acho, mais espaço que aos outros, tardes inteiras no quarto, o cinema,
a
milonga e algo que talvez fosse carinho, em todo caso vontade de rir por
qualquer coisa, generosidade nada falsa na maneira que Anabel tinha de procurar
e dar o
gozo. Impossível que fosse assim com os outros, os clientes, e por isso não me
interessavam (a idéia era que não me importava com Anabel, mas por que me lembro
hoje
de tudo isso), embora no fundo tivesse preferido ser o único, viver assim com
Anabel e do outro lado com Susana, claro. Mas Anabel tinha que ganhar a vida e
de vez
em quando me chegava algum indício concreto, como cruzar comigo na esquina com o
gordo - nunca soube nem perguntei seu nome, ela chamava-o secamente de gordo -,
e ficar vendo-o entrar na casa, imaginá-lo refazendo meu próprio itinerário
dessa tarde, degrau por degrau até a galeria e o quarto de Anabel e tudo mais.
Lembro-me
que fui beber um uísque em La Fragata e que li todas as notícias do exterior de
La Razón, mas por baixo sentia o gordo com Anabel, era tolice mas sentia-o como
se
estivesse na minha própria cama, usando-a sem direito.
Possivelmente por isso não fui muito amável com Anabel quando apareceu no
escritório uns dias depois. Na hora de rne dar ou ditar-me uma carta conhecia os
caprichos
e os humores de todas as minhas clientes epistolares (torna a sair a palavra de
uma maneira bastante curiosa, hein Sigmund?), e fiquei impassível quando Anabel
quase
me gritou escreva
170
agora mesmo para William me trazer o vidrinho, essa cadela filha da puta não
merece viver. Du calme, disse-lhe (entendia bastante bem o francês), que negócio
é esse
de ficar assim antes do vermute. Mas Anabel estava enfurecida e o prólogo da
carta dizia que a Dolly tinha tirado novamente um cliente com carro da Marucha e
andava
dizendo no da Chempe que tinha feito isso para salvá-lo da sífilis. Acendi um
cigarro como bandeira de capitulação e escrevi a carta onde absurdamente tinha
que
falar ao mesmo tempo do frasquinho e de umas sandálias prateadas trinta e seis e
meio (máximo trinta e sete), tive que calcular a conversão em cinco ou cinco e
meio
para não criar problemas para William, e a carta ficou muito curta e prática,
sem nada do sentimento que habitualmente Anabel reclamava, embora agora o
fizesse cada
vez menos por razões óbvias. (Como imaginava o que eu podia dizer para William
nas despedidas? Já não me exigia que lesse as cartas em voz alta, saía logo
pedindo-me
que a remetesse, não podia saber que eu continuava fiel ao seu estilo e que
falava de saudade e carinho para William, não por excesso de bondade, mas porque
tinha
que prever as respostas e os presentes, e isso no fundo devia ser o barômetro
mais seguro para Anabel.)
Essa tarde pensei lentamente e antes de remeter a carta acrescentei uma folha
separada na qual me apresentava sucintamente a William como o tradutor de
Anabel, e
pedia-lhe que viesse ver-me logo que desembarcasse e sobretudo antes de se
encontrar com Anabel. Quando duas semanas depois o vi entrar, os seus olhos
amarelos me
impressionaram mais que o ar entre agressivo e cortante do marinheiro em terra.
Não falamos muito do tempo, disse-lhe que estava
171
sabendo da questão do frasquinho mas que as coisas não eram tão tremendas como
Anabel pensava. Virtuosamente mostrei-me preocupado pela segurança de Anabel
que,
no caso da coisa pegar fogo, não poderia se mandar em um navio como ele ia fazer
três dias depois.
- Bem, ela me pediu isso - disse William sem se alterar. - Eu sinto pena de
Marucha, e é a melhor maneira de solucionar tudo.
Acreditando nele, o conteúdo do frasquinho não deixava o menor vestígio, e isso
parecia curiosamente suprimir toda a noção de culpabilidade em William. Senti o
perigo
e comecei meu trabalho sem forçar muito a barra. No fundo os problemas com Dolly
não estavam nem melhor nem pior do que na sua última viagem, claro que Marucha
se
sentia cada vez mais angustiada e isso recaía sobre a pobre Anabel. Eu me
interessava pelo assunto porque era o tradutor de todas essas meninas e as
conhecia bem,
etc. Peguei o uísque depois de pendurar um cartaz de ausente e fechar o
escritório à chave, e comecei a beber e fumar com William. Avaliei-o de cara,
primário e
sensível e perigoso. Que eu fosse o tradutor das frases sentimentais de Anabel
parecia dar-me um prestígio quase confessional, no segundo uísque soube que
estava
realmente apaixonado por Anabel e que pretendia tirá-la da vida, levá-la para os
States daí a dois anos quando solucionasse, disse, uns assuntos pendentes.
Impossível
não me colocar do seu lado, apoiar cavalheirescamente suas intenções e apoiarme
nelas para insistir em que o assunto do frasquinho era a pior coisa que podia
fazer
para Anabel. Começou a ver o caso por esse lado, mas não me ocultou que Anabel
não lhe perdoaria uma omissão,
172
que o trataria de frouxo e de filho da puta, e essas eram coisas que ele não
podia aceitar nem sequer de Anabel.
Usando como exemplo o ato de botar mais uísque no seu copo, sugeri o plano no
qual me teria como aliado. O frasquinho naturalmente tinha que ser dado para
Anabel,
porém cheio de chá ou de coca-cola; em contrapartida eu o manteria informado das
novidades com o sistema das folhinhas separadas, para que as cartas de Anabel
guardassem
tudo o que era somente deles dois, e na certa o problema entre Dolly e Marucha
se solucionaria pelo cansaço. Se não fosse assim - em algo tinha que ceder
diante
desses olhos amarelos que iam ficando cada vez mais fixos -, eu ia lhe escrever
para que mandasse ou trouxesse o frasquinho de verdade, e quanto a Anabel estava
certo que compreenderia tudo se eu me declarasse responsável pelo engano para o
bem de todos, etecétera.
- O.K. - disse William. Era a primeira vez que o dizia, e pareceu-me menos bobo
que quando o escutava na boca de meus amigos. Apertamos nossas mãos na porta,
olhou-me
amarela e longamente, e disse: "Obrigado pelas cartas". E disse-o no plural,
seja que pensasse nas cartas de Anabel e não na simples folha separada. Por que
essa
gratidão tinha que fazer-me sentir tão mal, por que uma vez a sós tomei outro
uísque antes de fechar o escritório e sair para almoçar?
26 de fevereiro
Escritores que aprecio têm sabido criticar amavelmente a linguagem de alguém
como Anabel.
173
Divertem-me muito, claro, mas no fundo essas facilidades da cultura me parecem
um pouco canalhas, eu também poderia repetir tantas frases de Anabel ou do
porteiro galego
e no final pode até acontecer que o faça se acabar escrevendo o conto, não há
nada mais fácil. Mas nessa época me dedicava mais a comparar mentalmente a fala
de
Anabel e de Susana, assim as despia mais profundamente que com minhas mãos,
revelava o aberto e o fechado nelas, o estreito e o largo, o tamanho de suas
sombras
na vida. Nunca ouvi Anabel dizer a palavra "democracia", embora eu as escutasse
ou lesse vinte vezes por dia, e por sua vez Susana usava-a por qualquer motivo e
sempre com a mesma cômoda boa consciência de proprietária. Em matérias íntimas
Susana podia aludir a seu sexo, enquanto que Anabel dizia a boceta ou a
palpelonda*
palavra que sempre me fascinou pelo que tem de onda e de pálpebra. E assim estou
há dez minutos já porque não me decido a continuar o que falta (e que não é
muito
e não corresponde bem ao que esperava escrever), ou seja porque a semana toda eu
não soube nada de Anabel, o que se previa, visto que estaria todo o tempo com
William,
mas num final de semana apareceu com evidente parte dos presentes de náilon que
William tinha lhe trazido e uma carteira nova de pele não sei de que espécie do
Alasca
que nessa temporada concorria para elevar a temperatura só de olhá-la. Veio para
me contar que William acabava de ir embora, o que não'era novidade para mim, e
que
tinha lhe trazido a coisa (curiosamente
* palpelonda (em espanhol, parparola) - segundo diz o autor, de párpado
(pálpebra) e olá (onda). A tradutora criou um neologismo aproveitando a
semelhança das línguas,
(Nota do editor)
174
evitava chamá-la de frasquinho) que já estava nas mãos de Marucha.
Agora não tinha nenhuma razão para me inquietar, mas era bom bancar o
preocupado, saber se Marucha tinha clara consciência da barbaridade que isso
significava, etc.,
e Anabel explicou-me que a tinha feito jurar pela sua santa mãe e pela virgem de
Luján que somente se Dolly voltasse a, etc. De passagem interessou-lhe saber o
que
eu achava da carteira e das meias transparentes, e marcamos um encontro em sua
casa na semana seguinte porque ela andava bastante ocupada depois de tanto jull-
time
com William. Já ia embora quando se lembrou:
- Ele é tão bom, sabe. Você pode imaginar o preço desta carteira? Eu não queria
lhe dizer nada de você, mas ele me falava o tempo todo das cartas, diz que você
lhe
transmite realmente o sentimento.
- Ah - comentei, sem saber bem por que a coisa descia-me um pouco atravessada.
- Veja, tem duplo fecho de segurança e tudo mais. Finalmente disse-lhe que você
me conhecia bem e que por isso interpretava as minhas cartas, de qualquer
maneira
ele não vai se interessar porque nem sequer viu você.
- Claro, como vai se interessar - consegui dizer.
- PrometeuHme que na próxima viagem vai me trazer uma vitrola dessas com rádio e
tudo o mais, agora sim, tapamos a boca do
nojano de adiós pampa mia se você me
comprar discos de Canaro e D'Arienzo.
Não tinha acabado de sair quando Susana me telefonou, pelo visto acabava de
entrar em um dos seus ataques de nomadismo e me convidava para ir com
175
ela no seu carro para Necochea. Aceitei para o final de semana e me restaram
três dias nos quais não fiz mais nada além de pensar, sentindo pouco a pouco
como me
subia algo estranho até a boca do estômago (o estômago tem boca?). Primeiro:
William não tinha falado a Anabel sobre seus planos de casamento, era quase
óbvio que
a mancada involuntária de Anabel tinha-lhe caído como um chute na cabeça (e que
o tivesse dissimulado era ainda mais inquietante). Ou seja que.
Inútil dizer que a essa altura eu estava me deixando levar por deduções tipo
Dickson Carr ou Ellery Queen, e que afinal um cara como William não tinha razão
para
perder o sono porque eu era mais um cliente de Anabel. Mas ao mesmo tempo sentia
que não era assim, que precisamente um cara como William podia ter reagido de
outra
maneira, com essa mistura de sensibilidade e pancada com a garra de um felino
que eu tinha dado nele de princípio. Porque além disso agora vinha a segunda
coisa:
informado de que eu fazia algo mais além de traduzir as cartas de Anabel, por
que não tinha subido para me dizer isso, na boa ou na pior das hipóteses? Não
podia
me esquecer de que ele tinha depositado confiança em mim e até admiração, que de
algum modo tinha se confessado com alguém que entretanto se mijava de rir de
tanta
ingenuidade, e isso William tinha que ter sentido e como, no momento em que
Anabel tinha se revelado. Era tão fácil imaginar William derrubando-a com um
soco e vindo
diretamente para o meu escritório a fim de fazer a mesma coisa comigo. Mas nem
uma coisa nem outra, e isso... E isso o quê? Foi o que falei para mim mesmo como
quem toma um Equanil, enfim seu navio já ia
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longe e tudo acabava ficando no terreno das hipóteses; o tempo e as ondas de
Necochea as apagariam aos poucos, e além disso Susana estava lendo Aldous
Huxley, o
que daria matéria para temas um tanto diferentes, em boa hora. Eu também comprei
livros novos no caminho para casa, lembro-me que era alguma coisa de Borges e/ou
de Bioy.
27 de fevereiro
Embora já quase ninguém se lembre, eu continuo me comovendo com a forma com que
Spandrell espera e recebe a morte em Contraponto. Nos anos quarenta esse
episódio
não podia tocar tão de cheio os leitores argentinos; hoje sim, mas justamente
quando já não se lembram dele. Eu continuo sendo fiel a Spandrell (nunca reli o
romance
nem o tenho aqui à mão), e ainda que os detalhes se tenham apagado de minha
memória, parece-me ver novamente a cena na qual escuta a gravação do seu
quarteto preferido
de Beethoven, sabendo que o comando fascista se aproxima da sua casa para
assassiná-lo, dando a essa escolha final um peso que torna mais desprezíveis
ainda os seus
assassinos. Também Susana tinha se comovido com esse episódio, embora suas
razões não tenham me parecido exatamente as minhas e talvez as de Huxley; ainda
estávamos
discutindo no terraço do hotel, quando passou um jornaleiro e comprei La Razón e
na página oito vi polícia investiga morte misteriosa, vi uma foto irreconhecível
da Dolly mas lá estavam seu nome completo e suas atividades notoriamente
públicas, transportada urgentemente para o hospital Ramos Mejía sucumbiu
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duas horas mais tarde vítima de um poderoso tóxico. Vamos voltar esta noite,
disse para Susana, aqui não pára de chuviscar. Ficou frenética, tratou-me de
déspota.
Vingou-se, eu pensava deixando-a falar, sentindo a cãibra que subia das virilhas
até o estômago, o grande filho da puta vingou-se, como deverá estar gozando no
seu
navio, e tinha dito chá ou coca-cola, e aquela imbecil da Marucha vai dar com a
língua nos dentes logo logo. Como rajadas de medo entre cada frase enfurecida de
Susana, o uísque duplo, a cãibra, a mala, puta que pariu vai dar com a língua
nos dentes e como, vai abrir o verbo mal a apertem.
Mas Marucha não contou, na tarde seguinte havia um papelzinho de Anabel debaixo
da porta do escritório, nos encontramos às sete no café do Negro, estava muito
tranqüila
e com a bolsa de pele, nem tinha passado pela sua cabeça pensar que Marucha
podia metê-la em um problema. O jurado jurado, no duro, me dizia isso com uma
calma que
eu teria achado admirável se não fosse a vontade que tinha de cair nela aos
tapas. A confissão de Marucha ocupava meia página do jornal e isso precisamente
era o
que Anabel estava lendo quando cheguei ao café. O jornalista não ia além das
generalidades próprias do ofício, a mulher declarou ter procurado um veneno de
efeito
fulminante que verteu em um copo de licor, isto é, no cinzano que a Dolly bebia
aos litros. A rivalidade entre ambas as mulheres tinha atingido seu ponto
culminante,
acrescentava o consciencioso repórter, e seu trágico desenlace, etc.
Não acho estranho ter esquecido quase todos os detalhes desse encontro com
Anabel. Vejo-a sorrir para mim, isso sim, ouço-a dizer que os advogados
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provariam que Marucha era uma vítima e que sairia em menos de um ano; o que me
lembro dessa tarde é sobretudo um sentimento de absurdo total, algo impossível
de
dizer aqui, percebi nesse momento que Anabel era como um anjo flutuando acima da
realidade, convencida de que Marucha tinha tido razão (e era verdade, mas não
dessa
forma) e que com ninguém aconteceria nada de grave. Falava-me disso tudo e era
como se estivesse me contando uma radionovela, alheia a ela mesma e sobretudo a
mim,
às cartas, sobretudo às cartas, que me embarcavam diretamente com William e com
ela. Dizia-me isso como uma radionovela, dessa distância incalculável entre ela
e
mim, entre seu mundo e meu terror que catava cigarros e outro uísque e claro,
claro que sim, Marucha é de confiança, claro que não vai abrir o bico.
Porque se eu tinha alguma segurança nesse momento era de que não podia dizer
nada para o anjo. Merda, como fazer para que ela compreenda que agora William
não ia
se conformar com isso, que certamente escreveria para aperfeiçoar sua vingança,
para denunciar Anabel e aproveitar para me dedurar como acobertador. Teria me
olhado
sem entender nada, possivelmente me mostraria a carteira como prova de boa fé,
ganhei-a dele, como pode imaginar que faça uma coisa assim, e toda a lista de
coisas.
Não sei do que falamos depois, voltei ao meu apartamento para pensar e no outro
dia acertei com um colega para que se encarregasse do escritório por alguns
meses;
embora Anabel não conhecesse meu apartamento mudei-me por via das dúvidas para
um que providencialmente Susana alugou em Belgrano e não saí desse salubre
bairro
para evitar um encontro
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casual com Anabel no centro. Hardoy, que tinha toda a minha confiança, dedicou-
se com deleite à tarefa de espioná-la, banhando-se na atmosfera daquilo que ele
chamava
baixos fundos. Tantas precauções foram inúteis, mas contribuíram para que eu
dormisse um pouco melhor, lesse um monte de livros e descobrisse novas facetas e
até
inesperados encantos em Susana, convencendo a pobre de que eu estava fazendo uma
cura de repouso e por isso levando-me para todos os cantos em seu carro. Um mês
e meio depois chegou o navio de William, e nessa mesma noite soube por Hardoy
que Anabel tinha se encontrado com ele e que tinham ficado até as três da manhã
dançando
em uma milonga de Palermo. A única sensação lógica deveria ter sido de alívio,
mas não creio tê-lo sentido, ou melhor foi como se Dickson Carr e Ellery Queen
fossem
pura merda e a inteligência ainda pior do que a merda comparada com essa milonga
na qual o anjo tinha se encontrado com o outro anjo (per modo di dire, claro),
para
de passagem entre um tango e outro cuspir-me em pleno rosto, eles do seu lado
cuspindo-me sem me ver sem saber de mim e sobretudo não se importando porra
nenhuma
comigo, como quem cospe no chão sem sequer olhá-lo. Sua lei e seu mundo de
anjos, com Marucha e de certo modo com Dolly também, e eu deste outro lado com a
cãibra
e o Valium e Susana, com Hardoy que continuava me falando da milonga sem
perceber que eu tinha pegado o lenço, que enquanto o escutava e agradecia sua
amistosa vigilância
estava passando o lenço para secar de alguma maneira a cuspida no meio da cara.
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28 de fevereiro
Restam alguns detalhes menores: quando voltei ao escritório tinha tudo pensado
para explicar convincentemente minha ausência a Anabel; conhecia de sobra sua
falta
de curiosidade, aceitaria qualquer coisa e já andaria com alguma carta nova para
traduzir, a menos que tivesse arrumado outro tradutor.' Porém Anabel nunca mais
veio ao meu escritório, vai ver que era por causa de uma promessa que tinha
feito a William, jurando pela virgem de Luján e tudo, ou simplesmente porque
tinha se
ofendido de verdade com a minha ausência, ou por que estava muito ocupada por
causa da Chempe. No princípio acho que a esperei vagamente, não sei se teria
gostado
de vê-la entrar, mas no fundo me sentia ofendido por estar me abolindo tão
facilmente, quem iria traduzirlhe as cartas como eu, quem poderia conhecer
William ou
ela melhor do que eu. Duas ou três vezes, na metade de uma certidão de
nascimento ou de uma patente fiquei com as mãos no ar, esperando que a porta se
abrisse e
entrasse Anabel com sapatos novos, mas depois chamavam educadamente e vinha uma
fatura consular ou um testamento. De minha parte continuei evitando os lugares
onde
poderia têla encontrado pela tarde ou pela noite. Hardoy também não a viu mais,
e nesses meses pintou a possibilidade de eu ir à Europa por algum tempo e
finalmente
fui ficando, fui me acostumando até agora, até os cabelos brancos, esta diabete
que me encurrala no apartamento, estas recordações. A verdade é que teria
gostado
de escrever sobre tudo" isto, fazer um conto sobre Anabel e aqueles tempos,
possivelmente teria me ajudado a me sentir melhor depois de tê-lo
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escrito, deixar tudo em ordem, mas já não creio que vá fazê-lo, existe este
caderno cheio de farrapos soltos, esta vontade de começar a completá-los, de
encher
os vazios e contar outras coisas de Anabel, mas a única coisa que consigo dizer
a mim mesmo é que gostaria tanto de escrever esse conto sobre Anabel e
finalmente
é uma página a mais no caderno, um dia a mais sem começar o conto. O pior é que
não consigo me convencer de que nunca poderei escrevêlo porque entre outras
coisas
não sou capaz de escrever sobre Anabel, não me adianta nada ir juntando pedaços
que definitivamente não são de Anabel porém meus, quase como se Anabel estivesse
querendo escrever um conto e se lembrasse de mim, de como nunca a levei a minha
casa, dos meses nos quais o pânico me tirou da sua vida, de tudo isso que agora
retorna
embora a Anabel pouco tenha interessado e eu me lembro somente de algo que é tão
pouco mas que volta e volta de lá, do que talvez jDoderia ter sido de outra
maneira,
como eu e como quase tudo lá e aqui. Agora que eu penso, quanta razão tem
Derrida quando diz, quando me diz: não (inc) resta quase nada: nem a coisa, nem
sua existência,
nem a minha, nem o puro objeto nem o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma
natureza por nada. Nenhum interesse, de verdade, porque procurar Anabel no fundo
do
tempo é sempre cair de novo em mim mesmo, e é tão triste escrever sobre mim
mesmo ainda que queira continuar imaginando que escrevo sobre Anabel.
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ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA


Graphos Industrial Gráfico Ltda. PARA A EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.. EM AGOSTO
DE MIL NOVECENTOS E OITENTA E CINCO.
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