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PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS (EM DEBATE)

DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

Organização

Eleonora Vaccarezza Santos


Patrícia da Silva
PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS
(EM DEBATE)
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

Organização
Eleonora Vaccarezza Santos
Patrícia da Silva
PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS
(EM DEBATE)
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
III Plenário do Conselho Regional de Psicologia 19ª região

Presidente
Alan Santana Santos - CRP 19/2076 (desligado em novembro 2017)
Vice-Presidente
Frederico Alves de Almeida - CRP 19/2849
Tesoureira
Lidiane dos Anjos Santos Andrade - CRP 19/1742
Secretária
Vanessa Ramalho Ferreira Strauch - CRP 19/2339

Conselheira/os Efetiva/os
Adriana de Moraes Teixeira - CRP19/2867
Bruna Santana Oliveira - CRP19/2870
Danilo Rocha Ribeiro - CRP19/1904
Jayane Pinheiro Andrade - CRP19/2010
Michelle da Conceição Silva - CRP19/1756

Conselheira/os Suplentes
André Faro Santos - CRP19/0773 (desligado em novembro 2017)
Baruc Correia Fontes - CRP19/2890
Claudson Rodrigues de Oliveira - CRP19/2764
Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas - CRP19/2276
Maria Emília de Melo Boto - CRP19/1399(desligada em novembro 2017)
Paula Ferreira Marques - CRP19/1670 (desligada em novembro 2017)
Petruska Passos Menezes - CRP19/0636
Tais Fernandina Queiroz - CRP19/0741(desligada em novembro 2017)

Conselho Editorial
Dr. Alexandro Dantas Trindade – (UFPR/BRA)
Dr. Altair dos Santos Paim – (IFBA/BRA)
Dra. Dalila Xavier de França – (UFS/BRA)
Dra.Elizabeth Hordge-Freeman - (USF/EUA)
Msa. Ionara Magalhães – (UFRB/BRA)
Dra. Maria Batista Lima – (UFS/BRA)
Dr. Roberto dos Santos Lacerda – (UFS/BRA)

Conselho Regional de Psicologia 19ª região


Comissão de Direitos Humanos
Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Interétnicas
Rua Osvanda Oliveira Vieira, 128,
CEP: 49000-000 – Aracaju – SE
relacoesinteretnicas@crp19.org.br
crp19@crp19.org.br
Eleonora Vaccarezza Santos
Patrícia da Silva

PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS


(EM DEBATE)
DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES
Todos os direitos de tradução, de reprodução e de adaptação desta edição em Língua
Portuguesa reservados ao Conselho Regional de Psicologia 19ª região.

Coordenação Editorial
Patrícia da Silva

Revisão
Allyce Gomes Correia
Isabela Cristina Ramos Moraes
Naiane França

Projeto Gráfico
Carlos Fabiano de Oliveira Fernandes
Petruska Passos Menezes

P974 Psicologia e relações interétnicas (em debate) : diálogos


interdisciplinares / organização Eleonora Vaccarezza
Santos, Patrícia da Silva. – Aracaju : Conselho
Regional de Psicologia, 2017.
240 p. : il.

1. Psicologia. 2. Psicologia racial. 3. Etnopsicologia. 4. Racismo.


5. Negros – Educação – Sergipe (SE). I. Santos, Eleonora Vacca-
rezza, org. II. Silva, Patrícia da, org.
CDU: 159.922.4
Ficha Catalográfica elaborada por
Luiz Marchiotti Fernandes – CRB-5/1644

Conselho Regional de Psicologia 19ª região


Comissão de Direitos Humanos
Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Interétnicas
Rua Osvanda Oliveira Vieira, 128,
CEP: 49000-000 – Aracaju – SE
relacoesinteretnicas@crp19.org.br
crp19@crp19.org.br
SUMÁRIO
PREFÁCIO .................................................................................................................... 12
PARTE 1 – ENSAIOS TEÓRICOS E EMPÍRICOS 16

INTRODUÇÃO...............................................................................................................
18
1. DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA............................................. 26
Dalila Xavier de França

2. A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE: APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS


DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS.....................................................................
45
Sônia Oliveira Santos

3. DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES


EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS........................................................................
58
Roberto dos Santos Lacerda

4. ENTRE PLANTAS E ENTIDADES: O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS


GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU………………………………………….…………..
72
Luciana Galante
5. ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA: ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO
ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES
87
PÚBLICAS......................................................................................................................
Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

6. AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO............................................. 107


Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

7. BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE………………………………………….. 123


Ionara Magalhães de Souza
Edna Maria de Araújo
8. ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL................................................. 135
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

9. TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS 156


SERGIPANAS................................................................................................................
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

10. RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP: DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO


PSICOLÓGICA...............................................................................................................
173
Marcelo Oliveira

11. RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA..................... 182


Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

12. RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL… 196


Ana Raquel Silva Santos Alves
Jéssica Francielle Resende de Jesus

PARTE 2 - REDAÇÕES E TRABALHOS PREMIADOS NO SEMPRI I 201

13. PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO


DE MANIFESTAÇÕES VELADAS.................................................................................... 203
Norton Cruz Machado
Iza Fontes Carvalho

14. O RACISMO QUE O BRASIL DEIXA NAS ENTRELINHAS…………………………….. 208


Rita de Cassia de Jesus Oliveira

15. PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER


COM ISSO?...................................................................................................................
212
Maria Suely dos Santos Nascimento
16. “PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA INTERSECÇÃO
HISTÓRICA………………………………………………………………………………..
218
Tarciana Lôbo Menezes

SOBRE AS/OS AUTORAS/ES 223

ANEXOS 234

ANEXO A………………………………………………………………………………… 235

ANEXO B………………………………………………………………………………… 237


PREFÁCIO

Marcus Eugênio Oliveira Lima


(Universidade Federal de Sergipe)

A
s sociedades mais modernas e formalmente democráticas vivem um
fenômeno estranho: o racismo sem racistas. Nos consideramos
igualitários, afirmamos não vermos cores, mas pessoas, e condenamos
com performática veemência qualquer forma de exclusão baseada na cor ou,
“Deus me livre”, “raça”. Com efeito, pesquisas com amostras nacionais indicam
que quase 90% dos brasileiros se considera não racista, ao mesmo tempo em
que igual percentagem acredita que existe racismo no Brasil (Turra & Venturi,
1995). Camino, Silva, Machado e Pereira (2001) encontram resultados muito
semelhantes em estudantes universitários.
Vivemos uma “ficção sincera” (Bonilla-Silva, 2010), assim como os norte-
americanos, acreditamos que o racismo é sempre um problema do outro,
distante de cada um de nós. Seja porque “nós brancos”, enquanto atores sociais
doutrinados nos valores do igualitarismo e da justiça da nossa formação
democrática, consideramos o racismo uma falha do outro “xenófobo”; seja ainda
porque “nós negros” achamos, em muitos casos, que as vítimas de racismo são
outros que “não sabem sair ou entrar” e nunca nós mesmos (Lima & Vala, 2004).
Todavia, o racismo é um problema de todos nós: perpetradores ativos,
perpetradores passivos, beneficiários conscientes ou inconscientes e vítimas

12
PREFÁCIO

atentas ou desatentas. Um problema que, por ser simultaneamente político,


social, econômico, cultural, histórico e psicológico, demanda um foco de análise
psicossocial. Ou seja, um fenômeno que impõe para o seu entendimento e
controle a articulação de níveis de análise e estratégias de ação.
A psicologia, de forma geral, e a psicologia social, de forma mais
específica, têm obrigações incontornáveis e contribuições fundamentais a dar no
entendimento e combate do racismo. A análise do racismo na psicologia tem, ao
longo dos anos, transitado de atitudes ou posturas de omissão, chancela e
condenação.
No final da década de 1980, Michael Billig, um psicólogo social britânico,
escreveu um livro intitulado “Psychology, Racism & Fascism”. A questão que
inquietava a Billig era a de entender a relação entre a produção de conhecimento
psicológico e a evolução de tendências políticas subjacentes. De forma particular
ele analisou as relações entre as teorias psicológicas da raça e crescimento do
fascismo no Reino Unido. Billig cita um conjunto de publicações na psicologia
que chancelavam o racismo político. O livro de Hans J. Eysenck “Race,
Intelligence and Education”, publicado em 1971, no qual são analisadas
diferenças de desempenho acadêmico e de QI entre brancos e negros nos
Estados Unidos e é defendida a ideia de que a hereditariedade é um dos fatores
explicativos importantes dessas diferenças. Na mesma direção, é publicado em
1958 o livro “The Testing of Negro Intelligence” de autoria de Audrey M. Shuey.
O autor argumenta, ao longo das 600 páginas, que os negros são menos
inteligentes que os brancos (Billig, 1979). A introdução desse livro foi feita por
Henry Garrett, reconhecido por Shuey como a pessoa que encorajou tal
publicação. O próprio Garrett tem um conjunto de publicações com as mesmas
conclusões, inclusive um artigo publicado em 1961, intitulado "The Equalitarian
Dogma", no qual defende a inferioridade genética dos negros. Durante muito
tempo e até recentemente manuais de Garrett eram utilizados nos cursos de
formação de psicólogos no Brasil.
Na Europa e Estados unidos da década de 1950 e 1960 parte da
psicologia assumia a atitude de chancela ao racismo. No Brasil, entretanto, a
postura era de omissão. A psicologia nacional parecia estar contaminada pelo
mito da democracia racial de Gilberto Freyre. Diferentemente da psicologia
norte-americana, preocupada com esta questão desde as décadas de 1920 e
1930, seja para chancelar ou para condenar (Duckitt, 1992), a psicologia
nacional não tinha interesse pelas questões raciais. Um estudo em que foram
analisados 3862 artigos em 30 periódicos, 656 dissertações e 393 teses nas
bibliotecas da USP e da PUC de São Paulo, num total de 4911 trabalhos
realizados na área da psicologia a partir de 1987, indicou que apenas 12 deles,
ou seja, 0.2%, estavam relacionados com o preconceito de cor, sendo que
destes 12 trabalhos apenas 3 foram publicados (Ferreira, 1999).
De fato, antes de 1987 apenas as ciências sociais procuravam analisar e
denunciar o racismo no Brasil. Sacco, Couto e Koller (2016), numa busca mais

13
Marcus Eugênio Oliveira Lima

ampla e atual nas bases de dados Scielo, PePSIC, Index Psi, LILACS e
PsycINFO, utilizando os termos “racismo ou preconceito racial” em português e
em inglês, publicados até agosto de 2014, encontram 77 artigos, tendo o mais
antigo sido publicado em 2001. Ou seja, nenhum artigo em periódico científico
publicado pela psicologia brasileira sobre racismo ou preconceito racial no
século XX no país com a maior população negra não africana do mundo.
É por tudo isso que iniciativas como estas, materializadas neste livro,
envolvendo o apoio direto do Conselho Regional de Psicologia, fortalecem o
movimento recente de entendimento e de combate ao racismo na e pela
psicologia brasileira.
O Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI) tem produzido
efeitos políticos e epistemológicos fundamentais em relação ao fenômeno do
racismo no Brasil e, mais particularmente em Sergipe. Os efeitos políticos se
referem ao rompimento do silêncio cúmplice que durante muito tempo foi a
postura da psicologia e dos psicólogos nacionais sobre o racismo. Os efeitos
epistemológicos remetem à criação de um ambiente científico de troca de
informações, de estímulo à produção do conhecimento e de fomento ao encontro
de pessoas e visões para o entendimento e combate ao racismo.
O SEMPRI já se encontra na sua terceira edição. O primeiro seminário,
realizado entre 5 e 7 de novembro de 2015, teve como tema: “Preconceito,
racismo e estereótipos: O que a psicologia tem a ver com isso”. O segundo
seminário, realizado entre 10 e 12 de novembro de 2016, teve como tema: “A
psicologia e o papel social do(a) psicólogo(a) no enfrentamento do racismo e
promoção da igualdade étnico-racial”. Os textos que compõem esta coletânea
foram produzidos para o terceiro SEMPRI, realizado entre 9 e 11 de novembro
de 2017, sob o tema: “15 anos de 018/2002 – atuação da psicologia frente ao
preconceito e a discriminação racial: avanços e novas proposições”.
O SEMPRI tem se constituído como o principal espaço na psicologia
sergipana para debate sobre o racismo. Os temas dos três eventos já realizados
demonstram o compromisso dessa área de conhecimento com a pesquisa e a
ação contra essa forma de exclusão da alteridade. Neste último evento temos
duas ótimas novidades: a produção deste livro, integrando os trabalhos que têm
sido produzidos pelos grupos de pesquisa da região e de outros estados
interessados na temática do preconceito racial e a publicação dos ensaios do 1º
Prêmio de Psicologia e Relações Interétnicas.
Finalizamos parabenizando o Conselho Regional de Psicologia pela
iniciativa, os organizadores do SEMPRI pela ação e os autores dos textos da
presente coletânea pela atualidade e relevância das reflexões apresentadas.

REFERÊNCIAS
Billig, M. (1979). Psychology, racism & facism: A searchlight booklet.
Birmingham: A.F. & R. Publications.

14
PREFÁCIO

Bonilla-Silva, E. (2010). Racism without Racists: Color-Blind Racism and the


Persistence of Racial Inequality in the United States. Rowman & Litllefiel
Publishers: Nova York.
Camino, L., Silva, P., Machado, A., & Pereira, C. (2001). A face oculta do racismo
no Brasil: Uma análise psicossociológica. Revista de Psicologia Política, 1, 13-
36.
Duckitt, J. (1992). A historical analysis and integrative framework. American
Psychologist, 47, 1182-1193.
Ferreira, R.F. (1999). A construção da identidade do afro-descendente: a
psicologia brasileira e a questão racial. In J. Bacelar & C. Caroso (Orgs.),
Brasil, um país de Negros? (pp. 71-86). Rio de Janeiro: Pallus.
Lima, M. E. O. & Vala, J. (2004). As novas formas de expressão do preconceito
e do racismo. Estudos de Psicologia, 9(3), 401-411.
Sacco, A.M., Couto, M.C.P. de P., & Koller, S.H. (2016). Revisão Sistemática de
Estudos da Psicologia Brasileira sobre Preconceito Racial. Trends in
Psychology / Temas em Psicologia, 24, 233-250.
Turra, C., & Venturi, G. (1995). Racismo Cordial: a mais completa análise sobre
preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática.

15
PARTE 1
ENSAIOS TEÓRICOS E EMPÍRICOS
INTRODUÇÃO

Eleonora Vaccarezza Santos


Patrícia da Silva

C
om o objetivo garantir o debate e consequente visibilidade dos
efeitos psicossociais e dos fatores de sofrimento psíquico
gerados pelo racismo, que no dia 11 de julho de 2015, durante a
22ª reunião do II Plenário do Conselho regional de Psicologia de
19ª região, foi apresentada a proposta para a criação do Grupo
de Trabalho Relações Interétnicas, e no mesmo mês, no dia 25
de julho de 2015, o grupo iniciou suas atividades, com a realização da primeira
reunião que teve por objetivo apresentar a proposta inicial aprovada pela
plenária e traçar metas e próximos passos para o alcance dos objetivos
propostos pelo referido coletivo.

Composto por pesquisadoras/es, profissionais e estudantes dos


programas de mestrado e doutorado da área de Psicologia Social,

18
INTRODUÇÃO

Comunicação Social, História e Sociologia. Atualmente se reúnem toda


primeira quinta-feira do mês, na sede do CRP-19, para discutir propostas com
vistas a garantir o debate e a sensibilização da categoria profissional, frente
aos fatores de sofrimento gerados pelo racismo. O grupo propôs várias
atividades, dentre elas se destaca o Seminário Psicologia e Relações
Interétnicas ou como já ficou conhecido – SEMPRI. Outra iniciativa do grupo
que merece ser louvada, partiu da professora Dra. Patrícia da Silva, presente
no grupo desde seu início, para realizarmos o Prêmio Psicologia e Relações
Interétnicas, e do qual este livro recebeu contribuições.
Assim, a criação do Prêmio de Redações cumpre as funções de: (a)
envolver psicólogos e estudantes na discussão do tema das relações étnico-
raciais, reafirmando o compromisso da categoria com uma prática que promova
a igualdade racial e a saúde psíquica para as vítimas do racismo brasileiro; (b)
divulgação da resolução 018/2002 do Conselho Federal de Psicologia, que
estabelece normas de atuação para as (os) psicólogas (os) em relação ao
preconceito e à discriminação racial. Com vista a tornar a resolução 01/2002
que o GT- Relações Interétnicas, propôs a este CR, ainda no ano de 2015 a
realização do I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas, com vistas a
alcançar o público-alvo a saber – profissionais, estudantes de psicologia e
demais profissionais que demonstrem interesse pela temática étnico-racial.
Assim, o SEMPRI se tornou um espaço interdisciplinar, no qual é impossível
pensar a temática, a partir de referencial isolado dos saberes acadêmicos e
sociais.
O I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas abriu inscrições para
que estudantes de graduação, pós-graduandos e profissionais dissertassem
sobre o tema: “Preconceito, Racismo e discriminação racial, o que a psicologia
tem a ver com isso...”. E durante o I SEMPRI, ocorreu a entrega da premiação
dos trabalhos selecionados nas categorias: 1) Mestra (e); 2) Graduada (o),
Especialista e Estudante de Mestrado e; 3) Estudante de Graduação (ver
anexo D). O Seminário Psicologia e Relações Interétnicas, em sua primeira
edição trouxe o tema – “Ninguém Nasce odiando o outro” para o cerne das
discussões levantadas ao longo dos três dias em que ocorreu o evento.

Em sua primeira edição o seminário reuniu estudantes, professores,


pesquisadores de alguns estados do país como Bahia, Paraná e Sergipe, além
de entidades de promoção da igualdade racial do estado e comunidade
acadêmica. O seminário recebeu um número de inscrições bem acima do
estipulado inicialmente pela organização, o que reflete o interesse e a
necessidade de estudantes e profissionais da psicologia por informação e
qualificação. Todo o registro do evento foi disponibilizado na página criada no
Facebook para o seminário.

19
Eleonora Vaccarezza Santos
Patrícia da Silva

Na mesa de abertura do I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas


SEMPRI-2015 – contou com as presenças do: Conselheiro Presidente do
Conselho Regional de Psicologia – Adriano Ferreira Bastos. Coordenadora do
GT- Psicologia e Relações Interétnicas e Presidenta do I SEMPRI - 2015 –
Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas. Presidente da Comissão de Direitos
Humanos do CRP-19 – Fernando Antônio Nascimento da Silva. Presidenta da
Comissão Científica do I SEMPRI – Dra. Patrícia da Silva.
Para as palestras de abertura e demais mesas contou-se com a
presença das/os convidadas/os: Dr. Marcus Eugênio Oliveira Lima (UFS); Dr.
Marcos Emanoel Pereira (UFBA); Me. Roberto dos Santos Lacerda (UFS);
Msa. Ionara Magalhães de Souza (UFRB); Msa. Neli Gomes da Rocha (UFPR);
Dr. Hippolyte Brice Sogbossi (UFS); Dra. Dalila Xavier de França (UFS); Ma.
Luciana Galante (UniAGES). Dra. Patrícia da Silva (UFS); Msa. e Yá Sônia
Oliveira (OMOLÀIYÉ). Ao final das apresentações das comunicações e dos
debates, foi realizada a entrega dos kits, contendo livros específicos sobre a
temática do racismo e dos direitos humanos (ver anexo E). Assim estiveram
entre os selecionados ao prêmio: Khalil Costa – contemplado na categoria,
mestre; Tarciana Lobô Menezes – contemplada na categoria, graduada,
especialista ou estudante de mestrado; Rozelia dos Anjos Santos Oliveira –
contemplada na categoria, graduada, especialista ou estudante de mestrado;
Norton Cruz Machado – contemplada na categoria, estudante de graduação;
Rita de Cássia de Jesus Oliveira – contemplada na categoria, estudante de
graduação; Maria Suely dos Santos Nascimento – contemplada na categoria,
estudante de graduação.
Durante a mesa de encerramento, a coordenadora do GT, realizou uma
homenagem a todos que participaram da organização do evento, de modo
direto ou indireto, entre elas podemos citar: Ana Raquel Silva Santos, Andréa
dos Santos Dória, Baruc Correia Fontes, Carina Feitosa dos Santos, Cláudia
Mara Oliveira Bezerra, Cristiane Gonçalves, Guilherme Fernandes Melo, Jorge
Antônio Rodrigues Barbosa, José Marcelo Barreto de Oliveira, Laila Batista,
Lidiane Drapala, Rodrigo de Sena e Silva Vieira, Rozélia dos Anjos e Selma da
Silva Santos. E até mesmo não estando fisicamente presentes, mas que
colaboraram para a concretude do seminário, a exemplo de Camila Araújo e
Luíza Lins Araújo. Alguns aspectos negativos foram discutidos com o grupo e
revistos para próximos eventos do GT, a exemplo da segunda edição do
SEMPRI -2016.
Já em sua segunda edição o SEMPRI superando nossas expectativas
em termos de adesão somou mais 210 inscrições em menos de duas semanas.
Este fato só reafirma para nós a carência e, consequente, necessidade de
discussão da temática no âmbito de formação dessas/es atuais e futuras/os

20
INTRODUÇÃO

profissionais. E de que este grupo de trabalho está disposto a assumir a tarefa


de chamar a categoria para o debate.
Alguns dados que foram possíveis de serem apreendidos nesta edição,
foi o perfil sociodemográfico das/os participantes. Assim, dos 210 inscritos 79%
eram mulheres e 21% homens. Destes 80% eram da área da psicologia e 20%
de outras áreas, sendo que 81,4% eram graduandos, 9% eram graduados,
1,9% mestres, 2,4% Pós-graduados ou especialistas e 1% de áreas de
mestrado e doutorado. Com relação as áreas de atuação, tivemos profissionais
da psicologia atuando nas seguintes áreas: 31,8% Psicologia Social; 13% na
área de saúde mental; 18,2% Clínica; 18,2% formação em psicologia; 4,5%
Psicologia Organizacional e do Trabalho; 4,5% Psicologia escolar e Jurídica.
Foram objetivos dessa segunda edição: visibilizar o fenômeno do
racismo, suas consequências, estratégias de enfrentamento e promoção da
igualdade étnico-racial, para psicólogos, estudantes de Psicologia e a
comunidade em geral, através da realização II Seminário Psicologia e Relações
Interétnicas (II SEMPRI-2016). E Especificamente: a) instituir Grupos de
Discussão que abordem o tema do enfrentamento do racismo e da promoção
da igualdade étnico-racial; b) ofertar palestras e cursos com atores envolvidos
com o tema do enfrentamento dos estereótipos, preconceito e discriminação
raciais; c) engajar estudantes e profissionais da psicologia e demais áreas, na
discussão sobre a importância de uma atuação não discriminatória e que
considere o sofrimento psicossocial gerado pelo racismo e suas formas de
manifestação. Por isso, nesse ano, houve a formação de grupos de discussão
(GD’s), cujos textos colaboram para a composição deste livro.
Uma novidade desta edição, foi a transição de plenária, e a mesa de
abertura contou com a presença da nova presidência da Comissão de Direitos
Humanos, Jayane Trindade. Além da presidência da CDH estavam também
presentes nesta mesa, o professor Mestre José Alexandre Raad, coordenador
do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes, instituição que apoiou o
grupo na realização do evento; a coordenadora da Comissão Científica do II
SEMPRI, Dra. Patrícia da Silva; e da psicóloga e conselheira recém-
empossada Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas, coordenadora do GT-
Psicologia e Relações Interétnicas e coordenação geral do II SEMPRI – 2016,
que ao final do seu discurso ressaltou a importância do trabalho que o grupo
vem realizando e de todas/os que ali estavam para apoiar o evento, como por
exemplo, Ana Raquel Silva Santos, Andréa dos Santos Dória, Baruc Correia
Fontes, Camila Lima de Araújo, Carina Feitosa dos Santos, Cristiane
Gonçalves, Guilherme Fernandes Melo, José Marcelo Barreto de Oliveira,
Joseane dos Santos Bispo, Lidiane Drapala, Luíza Lins Araújo Costa, Rozélia
dos Anjos, Selma da Silva Santos, Yá Sônia Oliveira e Thaiane Santos Simões
da Paixão.

21
Eleonora Vaccarezza Santos
Patrícia da Silva

As palestras tanto de abertura quanto dos demais dias, contaram com as


contribuições das/os convidadas/os tanto da Psicologia como das demais áreas
que contemplavam temas de pesquisa e atuação no enfreamento do racismo,
assim tivemos a participação das/os seguintes convidadas/os: Dr. Leoncio
Camino - (UFPB); Msa. Luíza Linz (UFS) e (GT-Psicologia e Relações
Interétnicas); Promotor Luís Dias Fausto Valóis (MP/SE); Roberto Lacerda
(UFS); Dra. Patrícia da Silva (UFS); Lívia Jéssica Messias de Almeida (UFS);
Miraci Correia (Maurício de Nassau); Valdenice Portela (UFS); Eleonora
Vaccarezza (CRP19/UFBA) Racismo e Empregabilidade: narrativas de
mulheres negras sergipanas; Dra. Maria Batista Lima (UFS); psicóloga Rozélia
dos Anjos (UFS/GT-Psicologia e Relações Interétnicas). Nos Grupos de
discussão tiveram como colaboradoras/es: Ana Raquel Santos Silva (GT-
Relações Interétnicas); Jéssica Francielle Resende de Jesus (Unit/SE); Lívia
Jéssica Messias de Almeida (UFS); Baruc Correia (CRP-19/UFS); Djean
Ribeiro Gomes (CRP-03/UFBA); Alessandra Santos da Graça (Auto-
organização de Mulheres – Rejane Maria); Selma Santos (GT-Relações
Interétnicas e Auto-organização de Mulheres – Rejane Maria); Thaiane Santos
Simões da Paixão (GT-Relações Interétnicas); Joseane dos Santos Bispo (GT-
Relações Interétnicas); José Marcelo Barreto de Oliveira (GT-Relações
Interétnicas). Os grupos de trabalho tiveram seus temas propostos pelos
participantes do I SEMPRI, de modo que foram contempladas as seguintes
temáticas: 1) Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnico-
racial; 2) A Clínica Psicológica e Enfrentamento a Intolerância Religiosa; 3)
Resolução 018/2002 do CFP: desafios frente a sua aplicação; (4) Gênero e
Relações Interétnicas.
Os temas dos GD’s tiveram a seguinte adesão, a partir do total de
participantes (210): 44,8% tinham interesse em discutir Psicologia, Políticas
Públicas e Promoção da Igualdade étnico-racial; 22,9% demonstraram
interesse no tema do Gênero e Relações Interétnicas; 26,7% para A Clínica
Psicológica e Enfrentamento a Intolerância Religiosa e; apenas 5,2% dos
inscritos indicaram o tema Resolução 018/2002 do CFP: desafios frente a sua
aplicação para debate. Os GD's foram realizados no segundo dia do evento.
As/os moderadores de um modo geral, eram membros do Grupo de Trabalho
Psicologia e Relações Interétnicas ou profissionais convidadas/os, da
Psicologia e de áreas afins que atuavam com a temática.
Os capítulos presentes nesta publicação, divididos em duas partes,
visam materializar as discussões que o SEMPRI e o Prêmio Psicologia e
Relações Interétnicas suscitaram nestes últimos dois anos. Todas/os que
fizeram parte de nossas edições foram convidadas/os a escreverem textos
para esta edição do livro. O intuito desta produção é ampliar o espectro de
alcance do SEMPRI e provocar a categoria a pensar sobre o nosso papel

22
INTRODUÇÃO

enquanto promotores da saúde mental e do enfrentamento de fenômenos


como o racismo brasileiro.
Assim, no primeiro capítulo, “Discriminação de crianças negras na
escola” a autora discute a partir de uma pesquisa empírica que versa sobre
alguns processos pelos quais perpassa a discriminação racial contra crianças
negras no interior da escola, tendo atenção ao professor como seu perpetrador.
O segundo capítulo, “A educação dos negros em Sergipe: apontamentos
históricos e atuais das políticas de ações afirmativas”, busca compreender as
políticas de ações afirmativas no âmbito educacional no município de Aracaju.
Assim, este trabalho faz um apanhado histórico sobre a educação dos negros
em Sergipe, especificamente a educação das crianças negras, tendo como
referencial a Sociedade Abolicionista Aracajuana, a Cabana de pai Thomaz. De
modo que, a autora busca fomentar uma reflexão sobre a Educação para as
Relações Étnicos Raciais como estratégia viável para a educação, versando a
diversidade e um indicativo para quem busca estudar a relação entre raça e
classe.
Já no terceiro capítulo, “Descolonização do pensamento e combate ao
racismo: contribuições epistemológicas afrocentradas” o autor traz a partir de
um olhar afrocentrado críticas as narrativas hegemônicas, valorização da
experiência afro-brasileira e elementos de fortalecimento da identidade e
consciência racial imprescindíveis no combate ao racismo. Destaca-se no seu
texto, a abordagem do termo: “afrocentricidade” ressalta a necessidade de
modo a demarcar localização do sujeito para desenvolver um engajamento
teórico próprio ao grupo social e fundamentado em sua experiência histórica e
cultural.
O quarto capítulo, “Entre plantas e entidades: o conhecimento
etnobotânico dos Guarani-Mbya de Tekoa Pyau”, traz uma compreensão
acerca dos instrumentos que as sociedades indígenas se munem para ordenar
e perceber o universo em que se inserem.
O quinto capítulo, intitulado: “Entre o discurso e a prática: atitudes dos
profissionais do direito acerca das políticas de cotas para negros nas
universidades públicas brasileiras”, as/os autoras/es, discutem, a partir de uma
pesquisa empírica com juristas, advogados e professores de direito, sobre a
legislação brasileira no que se refere as relações raciais. As/os autoras/os
abordam, especificamente o conceito de igualdade e aplicabilidade
constitucional das políticas de cotas para negros nas universidades públicas.
“Ações afirmativas no mercado de trabalho”, aborda as medidas
preventivas realizadas no domínio do emprego como combate às
desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho sergipano, entre elas,
a norma de responsabilidade social empresarial propagada pelo Instituto Ethos.
Inicialmente, as/os autores situam historicamente as desigualdades de raça e
gênero no mercado de trabalho sergipano, enfocando o processo de transição

23
Eleonora Vaccarezza Santos
Patrícia da Silva

do trabalho escravo para o trabalho livre entre o período de 1850 e 1930. Para,
em seguida, discutirem os conceitos de ações afirmativas, norma de
responsabilidade social empresarial e normas sociais.
No capítulo sete, “Branquitude e interseccionalidade”, as autoras
discutem as ambiguidades e contradições envolvendo processos de
racialização e as consequências materiais e simbólicas para os grupos
envolvidos nos sistemas de subordinação. Nessa perspectiva, as autoras
propõem explanar sobre a identidade racial do branco, situar o lugar da
branquitude nas relações raciais e na atualização do racismo e, na dimensão
da interseccionalidade, os privilégios interseccionais de ser branco no Brasil.
“Estética negra, consumo e ascensão social”, é o oitavo capítulo deste
livro, as autoras partem de proposições levantadas por outras autoras, ao
afirmarem que os padrões estéticos atuais excluem a beleza negra. No
trabalho de pesquisa apresentado, por elas, utiliza-se a metodologia de estudo
de caso para compreender os significados atrelados ao cabelo crespo e
cacheado para mulheres negras pertencentes à classe C. As discussões foram
embasadas em referencial teórico da psicologia social e da sociologia que
tratam do racismo, ideologia do branqueamento e ascensão social.
O capítulo nove, “Trajetórias e estratégias de mobilidade social de
mulheres negras”, as autoras abordam, a trajetória de mobilidade social de
mulheres negras e os possíveis efeitos de fenômenos tais como o racismo, o
preconceito e discriminação racial para o emocional desta mulher. As autoras
apontam, que embora na literatura sobre relações raciais, o tópico da
mobilidade social seja considerado fundamental para determinar se há
preconceito ou discriminação racial, no Brasil esses estudos ainda não são
numerosos. Neste sentido, o trabalho se propõe a compreender a trajetória de
mobilidade social de mulheres negras e suas percepções em relação ao
preconceito e a discriminação racial no que diz respeito ao mercado de
trabalho.
Já o capítulo dez, “Resolução 018/2002 do CFP: desafios a sua
aplicação na atuação psicológica”, o autor propõe-se a expor e ampliar, a luz
da resolução 018/2002, as discussões levantadas nos trabalhos realizados
durante o II Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI-2016).
De igual modo, os autores do capítulo onze, “Racismo, intolerância
religiosa e atuação psicológica” ampliam as discussões que foram iniciadas
durante o Grupo de Discussão: “A clínica psicológica e o enfrentamento a
intolerância religiosa” neste capítulo que trabalha a partir da tríade Psicologia,
Relações Raciais e Intolerância Religiosa, datada de períodos longínquos.
Para finalizar esta primeira parte, o capítulo doze, “Relações interétnicas
e políticas públicas na assistência social”, as autoras propõem de modo
semelhante, alargar as discussões travadas durante o Grupo de Discussão

24
INTRODUÇÃO

sobre “Psicologia, políticas públicas e promoção da igualdade étnico-racial”.


Entendem que a vivência grupal é um espaço de trocas e aprendizado
particularmente significativo e ao sistematizarem a experiência vivida. São
nesses espaços de trabalho que, percebe-se como a relação de etnias
diferentes refletem tanto nas condições de privilégio e de subestimação de
outras por parte daqueles que se enquadram em padrões eurocêntricos. E no
quanto a psicologia social e o serviço social atuam na luta da discriminação e
do sofrimento psíquico, ao despertarem para o seu papel de protagonista social
e ao auxiliarem no empoderamento da pessoa negra, enquanto sujeito de
direitos.
A segunda parte deste, inicia-se com o capítulo treze, “Preconceito e
racismo pós-abolição: contexto histórico e discussão de manifestações
veladas” fruto da redação na qual os autores, a partir da pergunta: “esta é a
realidade da sociedade pós Lei Áurea ou um recorte não muito distante do
século XXI? ” Discorre sobre realidade das relações interétnicas no Brasil, de
como o racismo afeta a pessoa negra em sua identidade, estética e
oportunidades dentro de uma sociedade racista, machista, lesbofóbica e
homofóbica.
O capítulo quatorze, “O racismo que o Brasil deixa nas entrelinhas”, a
autora, problematiza sobre questões relacionadas ao preconceito racial
disseminado no Brasil. Na mesma linha, o capítulo quinze, “Preconceito,
racismo e estereótipos: o que a psicologia tem a ver com isso? ”, trata da
pergunta tema do prêmio nessa primeira edição. Neste capítulo, a autora
discute sobre o papel da Psicologia e sua importância para o desenvolvimento
de trabalhos que visem combater preconceitos, estereótipos e discriminações
decorrentes do racismo. Baseia-se na Resolução 018/2002 e em autores da
Psicologia Social.
Por fim, o último capítulo, “Psicologia das raças e religiosidade no Brasil:
uma intersecção histórica”, fruto de um ensaio teórico, no qual a autora discorre
sobre as manifestações religiosas afrodescendentes e como ela é observada
através da ciência psicológica no Brasil; menciona também a influência das
teorias raciais e eugenistas, entre os séculos XIX e XX.

25
CAPÍTULO 1

DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA


ESCOLA

Dalila Xavier de França

N
o Brasil, a preocupação com as relações entre grupos virou
pauta de debates e de políticas públicas. Essa questão foi
transformada em leis de reformas educativas, como se pode
verificar nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais para a
Educação, através da Lei n. 10.639, que incluiu dois artigos, os
quais tornam obrigatório o ensino de História da África e da
Cultura Afro-Brasileira em todo o currículo escolar (OLIVEIRA, 2008). A
promulgação dessas leis vem no âmbito da constatação de que, para a
superação do preconceito racial na escola, faz-se necessário um conhecimento
da história do negro brasileiro, assim como um mapeamento de experiências
ligadas às relações étnico-raciais na escola. O preconceito, entendido como
uma antipatia baseada numa generalização falha e inflexível que pode ser
sentida ou expressa, além de dirigida a um grupo em sua totalidade, ou a um
indivíduo por fazer parte do referido grupo (ALLPORT, 1954), configura-se num
fator que dificulta o acesso e a permanência da criança negra na escola.
Assim, a psicologia, em particular, a psicologia social, em seus pressupostos
teóricos relativos às relações entre grupos sociais, pode colaborar com a

26
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

compreensão dos processos que subjazem ao preconceito na escola. Este


capítulo traz uma pesquisa empírica que versa sobre alguns processos pelos
quais perpassa a discriminação racial contra crianças negras no interior da
escola, tendo atenção ao professor como seu perpetrador.

A discriminação é definida por Allport (1954) como o comportamento ou


prática social baseada na depreciação, hostilização e impedimento de que
determinados indivíduos ou grupos gozem dos seus direitos sociais, apenas
pelo fato de terem certas características (consideradas desagradáveis) ou por
serem membros desses grupos. A discriminação, assim como o preconceito,
são motivadores de exclusão social não apenas do negro como daqueles
considerados diferentes, como homossexuais, pessoas com dificuldades
motoras, cognitivas ou em algum órgão sensorial. Nesse estudo examinamos
como na escola, o professor pode contribuir para a exclusão social de base
racial através da expressão do preconceito e da discriminação raciais. O
objetivo do presente estudo é analisar o papel do professor no processo de
discriminação de crianças negras. Este estudo se justifica pela importância da
escola enquanto espaço de debate e crítica ao racismo e à discriminação. Para
isso, é imprescindível entender como se processam as relações intergrupos na
escola, bem como a participação dos professores no manejo das questões
raciais, especialmente no tratamento dado às crianças quando em seus
conflitos as questões raciais estão salientes.
Esse estudo sugere que a prática psicológica pode extrair guias e
princípios para intervir em questões sociais amplas, como o preconceito e o
racismo, a partir do conhecimento específico gerado pelas pesquisas sobre
relações entre grupos sociais. Concordamos com estudos que admitem que o
comportamento, as atitudes e os valores que perpassam a relação
professor/aluno e, da mesma forma, as atitudes e expectativas dos
professores, podem ter impactos nas atitudes étnicas da criança (FEITOSA
DOS SANTOS, 2014), na formação de sua identidade (CAVALLEIRO, 2001) e
no seu desempenho escolar (CHAGAS; FRANÇA, 2010; ZIVIANI, 2014).
No interior da escola, o racimo pode se apresentar na dinâmica das
relações interpessoais entre alunos e profissionais da educação
(CAVALLEIRO, 2001). Racismo é a discriminação de base racial, ou seja,
aquela associada a uma marca física externa e genética, que é ressignificada
em característica cultural interna determinadora de padrões comportamentais,
psicológicos e morais, produzindo a crença na inferioridade natural dos
indivíduos ou grupos que possuem essas marcas em comparação àqueles que
nãos as possuem (LIMA, 2003; REID, 1988). Aspectos como a cor da pele, cor
e formato dos olhos, estilo de cabelo são exemplos de marcas físicas genéticas
geradoras de racismo, um grupo alvo de racismo na nossa sociedade é o grupo

27
Dalila Xavier de França

dos negros. De acordo com Oliveira (2008), a escola está impregnada de


visões deturpadas e profundamente arraigadas sobre o negro, visões que
prejudicam um olhar diferenciado para o indivíduo como pessoa (LINS
RODRIGUES, 2013; MONTEIRO; VENTURA, 1997). Na escola, precisamente
na educação básica, observa-se que o racismo se apresenta de diferentes
formas, implícitas ou explícitas tornando a escola um ambiente inóspito para os
indivíduos negros (CAVALLEIRO, 2001; ZIVIANI, 2014).
As dificuldades enfrentadas pelas pessoas negras na escola vão desde
o acesso às instituições de ensino até a vivência de situações de racismo, que
se iniciam no ensino básico e atravessam o ensino médio e o universitário.
Como argumenta Rosemberg (2000), crianças negras apresentam dificuldades
nos estudos elementares e ingressam mais tarde na escola do que as crianças
brancas. Esta autora mostra, com dados referentes aos anos de 1987 a 1995,
que 63% das crianças negras, aos 11 anos, ainda estão na pré-escola,
enquanto que entre as brancas este índice cai 36%. Ao analisar a situação
educacional na qual os negros estão submetidos, Gomes (1997) observa que
são eles os mais atingidos pelo fenômeno da evasão e repetência. Embora
atualmente haja uma relativa facilidade de acesso à escola por parte das
crianças negras, elas encontram mais dificuldade para se manter nela e
concluir os estudos, o que leva essa população a compor o maior percentual
daqueles que deixaram de se alfabetizar entre os 7 e os 14 anos (QUEIROZ,
2000).
Na mesma perspectiva de Rosemberg (2000), Gomes (1997) e Queiroz
(2000), Chagas e França (2010) realizaram um estudo relacionando a diferença
na trajetória escolar de crianças negras e brancas em Sergipe ao racismo e
preconceito. As autoras lançaram mão de indicadores de aprovação,
reprovação, repetência, evasão e defasagem idade-série e verificaram que
crianças negras se encontram em situação de desvantagem, pois a trajetória
escolar delas é mais longa e acidentada do que a dos brancos. Também
Menezes (2003) afirma que trajetória escolar de crianças negras e pardas é
marcada pelo analfabetismo, baixo rendimento, e elevados índices de
reprovação e evasão em comparação ao de crianças brancas. A escola, para
muitas crianças negras, é vista como um referencial de fracasso. A autora
chama atenção para o fato de a dificuldade de aprendizagem dessas crianças
está mais relacionada à forma de inserção delas no espaço escolar do que a
um impedimento cognitivo. As crianças negras passam por um processo de
exclusão simbólica, ou seja, apesar sua entrada na escola ser permitida,
através da matrícula e acesso à sala de aula, elas não se sentem aceitas por
colegas e professores que, frequentemente, demonstram preconceito por meio
de insultos baseados em suas características fenotípicas.

28
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

Desse modo, segundo Menezes (2003), a escola reserva um lugar social


específico para a criança negra, um lugar de ser que não merece
reconhecimento, incapaz e inferior. A autora exemplifica como a escola leva as
crianças negras a introjetarem essas concepções, através de um estudo com
crianças pobres de periferia urbana e do meio rural. Nesse estudo, solicitou-se
às crianças que desenhassem os lugares sociais de brancos e negros. Os
resultados indicaram que o branco estava ligado à civilização, ao meio urbano,
enquanto o negro estava associado ao meio rural, ao trabalho braçal. As
representações no desenho opõem um mundo triste e alegre, o primeiro para
os negros e o segundo para os brancos. Nesse estudo, investigou-se o relato
da representação de si, e observa-se que a criança negra se descreve de
modo depreciativo, avaliando-se em conformidade com o discurso dos colegas.
As meninas referiam que aquelas de cabelos grandes e lisos eram mais
desejadas pelos meninos do que as de cabelos curtos e cacheados.
A desigualdade educacional é muitas vezes entendida como
consequência das condições socioeconômicas dos negros, desconsiderando o
racismo fora e dentro da escola. O que relembra a tese do class-over-race (ver
PIERSON, 1942/1967 citado em DEGLER, 1971), a qual consiste na afirmação
de que, se existe preconceito no Brasil, este é de classe social e não de cor,
uma vez que “negros” e “brancos” pobres são igualmente discriminados nesta
sociedade. Contudo, Rosemberg (1998) observa que os negros (pretos e
pardos) frequentam as escolas de pior qualidade. Alguns indicadores de
qualidade verificados são: baixa qualificação e informação dos educadores;
espaço físico restrito e índices elevados de reprovação e atraso escolar. Como
afirmam Hasenbalg e Silva (1990, p.12), “estas desigualdades não podem ser
explicadas nem por fatores regionais nem pelas circunstâncias
socioeconômicas das famílias”.
A este respeito, Castro e Abramovay (2006) realizaram um estudo em 25
escolas públicas e particulares das cidades de Belém, Salvador, São Paulo,
Porto Alegre e Distrito Federal, com o objetivo de analisar o racismo como
produtor de desigualdades na escola. Especificamente, as autoras
pretenderam investigar as práticas sutis de racismo existentes entre alunos e
professores. Participaram do estudo alunos, professores, diretores e os pais
dos alunos. As autoras evidenciaram, em seus resultados, a existência de
desempenho inferior entre os alunos da escola pública comparados aos das
escolas particulares, entre os alunos que têm nível socioeconômico mais alto,
há uma diferença nos indicadores de desempenho, ou seja, os negros
apresentam desempenho inferior aos brancos desse extrato social. Já entre os
alunos de nível socioeconômico baixo, brancos e negros apresentam índices
similares. Entretanto, pais, professores, diretores e alunos não percebem
diferenças no desempenho escolar pautado na cor da pele ou raça.

29
Dalila Xavier de França

Essa suposta dificuldade em perceber o racismo no ambiente escolar,


ou mesmo desinteresse em tratar das relações raciais, é por vezes
compreendida em termos do silenciamento imposto a análise da questão do
racismo, que parece estar presente em vários lugares. De modo que, as
dificuldades escolares de crianças negras são atribuídas a problemas
comportamentais ou familiares destas crianças e nunca como decorrentes do
preconceito que as atinge (CAVALLEIRO, 2001; WRIGHT, 1992). Assim, como
afirma Munanga (2005), a maioria de nós não recebe da escola, da educação
transmitida por professores, o preparo necessário para lidar com questões de
diversidade, racismo e preconceito.
O silêncio ou denegação do preconceito pode ser observado ainda na
essencialização das questões raciais, isto é, muitas vezes, os professores
percebem o racismo como parte da “natureza humana”, sendo o próprio negro
o responsável pela sua propagação. Como resultado, esses professores
tornam-se coniventes com situações de exclusão das crianças negras que são
rotuladas pejorativamente e de forma depreciativa e são recusadas como pares
em filas, nas brincadeiras, nas festas (CAVALLEIRO, 2001; SANTANA;
MÜLLER, 2011).
Esse tratamento dado às crianças negras pelos professores foi
encontrado também por Wright (1992), ao observar que as crianças negras
inglesas são mais criticadas quando participam das discussões em sala de aula
e sofrem desaprovação imediata no caso de mau comportamento quando
comparadas às crianças brancas. As sanções aplicadas às crianças negras
incluem ofensas verbais, exclusão da classe e retirada de privilégios,
geralmente são feitas em público e vão além da disciplina, tornando-se ataques
a pessoa.
Em outro estudo, este norte-americano, com o objetivo de analisar a
avaliação de desempenho de alunos latinos, negros e brancos observou-se
que os professores brancos de escolas públicas são menos severos nos
comentários e retorno sobre o desempenho de alunos latinos e negros
comparados aos alunos brancos (HABER, 1998, 2004). O autor pressupõe que
ocorre um viés da parte dos professores no momento de oferecer esse retorno,
que pode ocorrer em virtude de motivos sociais gerados pelo esforço para
evitar a tensão intergrupal e o contato interétnico, ou por motivos cognitivos,
que estão baseados em crenças de que negros e latinos têm menos
competência acadêmica do que os brancos. Assim, isso levaria os professores
a automatizar as suas respostas quando avaliam indivíduos desses grupos.
No caso dos professores brasileiros, ocorre igualmente a falta de
preparo para lidar com as questões interétnicas na escola, ressaltando que a
deficiência na sua formação os leva a agir negando as diferenças e, assim,

30
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

reproduzindo práticas pedagógicas discriminatórias (LOPES, 1995; OLIVEIRA;


LINS, 2008; SANTANA; MÜLLER, 2011). Coelho (2006) aponta três aspectos
que fundamentam a deficiência na formação dos professores: 1) a produção
intelectual orientada por uma perspectiva eurocêntrica, associada a uma
imagem da nação como mestiça e plural que mascara as reais condições de
discriminação vivida pela parcela não branca da população; 2) a formação
voltada para a dimensão pedagógica do processo educacional, negando as
dimensões humana e a sociopolítica, que contribui para a perpetuação de
visões reprodutoras do preconceito e da discriminação, e 3) a formação não
contempla aspectos da memória histórica da origem dos grupos, especialmente
aqueles alvo de preconceito e discriminação, a fim de preparar profissionais
atentos às questões colocadas pela lei n. 10.639 de 2003. Para Munanga
(2005), esse despreparo impede os educadores de se apropriar de forma
pedagógica das situações de preconceitos expressas pelos estudantes e
utilizá-las como momentos para discutir a diversidade e conscientizá-los da
riqueza que a diferença pode trazer para a cultura e a identidade.
Outros processos psicológicos que entram em jogo e têm que ser
considerados nesse contexto são as expectativas dos professores sobre os
seus alunos. Sexo, raça, atratividade, entre outros fatores, podem influenciar as
expectativas dos professores sobre o sucesso dos alunos (BREWER; CRANO,
1994).
Ziviani (2014) analisou em seu estudo os processos de exclusão e
inclusão escolar de crianças e adolescentes negros e não negros em Minas
Gerais. Entre vários de seus importantes resultados, destaca-se as evidências
colhidas da relação dos professores com seus alunos negros, consideradas
pela autora como excludente e propagadora de preconceito. O estudo
demonstra para além dos fatos já evidenciados em outras investigações, como
se dirigir ao aluno negro através de apelidos pejorativos, utilizando insultos
estigmatizadores como se referir aos meninos negros como violentos e uso do
termo “safada” para se referir às meninas. E ainda a clara diferenciação de
expectativa em relação a criança negra pelo professor que se recusa a vê-los
no papel de leitores e escritores demonstrada pela desvalorização do
conhecimento produzido pelos alunos desse grupo.
Essas evidências são preocupantes pois as expectativas do professor
podem levar à proliferação de profecias autorrealizadoras. Esse é um termo
cunhado por Robert Merton (1948) e estudado experimentalmente por
Rosenthal (1989) em escolas norte americanas, que consiste na concretização
das expectativas do professor sobre seus alunos, quer positivas, quer
negativas. Segundo Rosenthal (1989), as expectativas que o professor tem
sobre o potencial acadêmico de seus alunos é acompanhada de resultados
pertinentes com essas expectativas. Crano e Mellon (1978), estudando esse

31
Dalila Xavier de França

fenômeno em crianças de escolas inglesas, observaram que crianças cujos


professores tinham prazer em tê-las na sala de aula, provavelmente obtinham
melhores notas em suas disciplinas do que as consideradas como tendo
comportamento censurável. As profecias autorrealizadoras são também
conhecidas como Efeito Pigmaleão (DIAZ-AGUADO, 1996). A avaliação que os
professores fazem dos alunos estão sujeitas às expectativas que eles têm dos
mesmos e podem ter efeitos não só sobre o desempenho, mas também sobre
a auto estima da criança (CRANO; MELLON, 1978).
As percepções e expectativas presentes no meio social não passam
imperceptíveis pelas crianças e podem repercutir de modo negativo na
percepção que têm do próprio grupo, é o que demonstra um estudo de França
e Lima (2014) sobre identidade e estereótipos de crianças indígenas e
quilombolas. As participantes desse estudo percebem as crianças brancas
como mais bonitas, mais inteligentes e mais ricas do que as indígenas e
quilombolas. Sobretudo as crianças negras afirmam que são as crianças
brancas as que as (os) professoras (es) gostam mais. A criança negra foi
percebida por ambos os grupos estudados como a mais briguenta, mais pobre
e menos querida do (a) professor (a). Do mesmo modo, o apoio e a expectativa
positiva advinda do meio social repercute positivamente na percepção que têm
do próprio grupo. A este respeito um estudo de Lima e França (2012) mostra
que o apoio governamental, através de políticas de ação afirmativa, fortalece a
identidade étnica de crianças negras quilombolas e indígenas que sentem mais
orgulho de sua etnia do que crianças negras não apoiadas por esses
programas.
Esses estudos demonstram que a escola é um espaço onde as relações
intergrupais se apresentam, necessitando de uma atenção por parte dos
estudiosos para diferentes aspectos desse contexto. Para o entendimento da
discriminação racial no interior da escola, é imprescindível analisar o fenômeno
do preconceito e do racismo em várias perspectivas, aprofundando-o e
questionando-o, pois, o racismo produz efeitos graves para a identidade racial
de crianças negras (FRANÇA; MONTEIRO, 2002), para seu desempenho
acadêmico (ZIVIANI, 2014), para seu o bem-estar psicológico (KINDER;
SEARS, 1981) e saúde geral (BALSA; MCGUIRE, 2003).
Assim, consideramos a escola um importante espaço de gerenciamento
das relações entre os diferentes grupos. De modo que, a articulação entre as
teorias das relações intergrupais e da educação pode ser uma alternativa para
traduzir, em forma de ação, o gerenciamento dessas relações. Como
demonstra o estudo de Rutland, Brown e Cameron (2005) que visou traduzir
achados de pesquisa em psicologia social em estratégias de redução do
preconceito, o ato de contar história para as crianças que saliente as
características culturais dos grupos (abordagem multicultural), as similaridades

32
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

entre os grupos e suas pertenças comuns (abordagem do grupo comum) são


medidas eficientes de redução do preconceito, sobretudo se essa prática se
inicia na pré-escola. Esses autores comparam intervenções baseadas na
abordagem multicultural e do grupo comum com as abordagens: color blind e
do contraestereótipo. A intervenção baseada na abordagem do color blind
desconsidera os pertencimentos grupais das pessoas e salienta suas
individualidades enquanto a do contraestereótipo procura desconstruir as
preconcepções existentes sobre os grupos, ensinando as crianças que os
estereótipos atribuídos pelos adultos e crianças aos grupos são falsos (ver
RUTLAND; BROWN, 2005, para uma revisão).
Neste trabalho, deter-nos-emos no objetivo de analisar o papel do
professor no processo de discriminação de crianças negras. Nesse estudo, a
discriminação será evidenciada na relação professor-aluno, através da
atribuição de notas diferenciadas para as crianças brancas e negras. Assim,
levantamos a seguinte hipótese: os professores atribuirão, em suas avaliações,
notas maiores às crianças brancas do que às crianças negras.

MÉTODO

Participantes

Participaram da pesquisa 109 professores em formação, alunos dos


terceiros e quartos anos de uma escola normal, sendo que seis (5,6%) são do’
sexo masculino, 102 (94,4%) são do sexo feminino e uma pessoa não declarou
o gênero. As idades variaram de 18 a 52 anos, das quais 51 (48,1%) têm entre
18 e 25 anos de idade; 36 (34%) têm entre 25 e 35 anos de idade, 19 (17,9%)
têm entre 36 a 52 anos de idade e três pessoas não declararam suas idades. O
grupo racial dos participantes era atribuído pelos entrevistadores que
classificavam o participante através de uma escala de cor que variava de um a
sete (quanto maior o valor mais o participante era avaliado como mais negro).
Foram categorizados como brancos 56,9% dos sujeitos (classificados nos
valores que iam de um a quatro na escala de cor), e os classificados nos
valores que iam de cinco a sete foram categorizados como negros (43,1%). No
que diz respeito à renda familiar, 71,2% recebem entre um a dois salários
mínimos; 22,1% , entre dois a cinco salários mínimos e 6,7%, acima de cinco
salários mínimos.

Instrumentos e procedimentos

Os participantes foram abordados em sua própria escola, por quatro


entrevistadoras. Foi solicitado aos participantes que avaliassem uma redação
feita por um aluno escolhido ao acaso, indicando uma nota (de zero a dez) para

33
Dalila Xavier de França

o seu desempenho. Anexo à redação havia a fotografia de uma criança que,


em uma condição, era negra e, em outra, era branca e aparentava oito anos e
meio de idade. As fotografias foram pré-testadas em estudo anterior (FRANÇA;
MONTEIRO, 2002). Além da redação, havia um questionário com perguntas
exploratórias sobre os critérios utilizados na avaliação. O instrumento foi
disposto num documento de quatro páginas: na primeira, havia a apresentação
da pesquisa e instruções; na segunda, havia uma única fotografia de uma
criança branca ou negra no centro da folha e informações gerais sobre a
criança embaixo da fotografia; a redação estava na terceira folha, com um
espaço no canto superior direito para a colocação da nota, e, na quarta, um
pequeno questionário e o levantamento sociodemográfico do participante.
Os critérios utilizados na avaliação da criança pelos professores foram
categorizados, com base nas respostas dos participantes, em cinco categorias:
1) Gramática e Caligrafia: as avaliações se pautaram no uso da
gramática e da caligrafia;
2) Criatividade: as avaliações se pautaram na criatividade, na
capacidade de construir o texto e na capacidade de expressão da criança;
3) Idade e Série: as avaliações consideraram a adequação entre idade e
série da criança;
4) Tema escolhido: as avaliações foram baseadas no tema da redação;
5) Esforço: os participantes avaliaram com base no esforço do aluno, no
seu interesse e em sua vontade de aprender.
Foi dito aos professores que o estudo versava sobre a uniformidade na
avaliação do desempenho escolar dos alunos pelo docente. Cada professor
avaliava a redação de uma criança de um único grupo racial. Em cada turma
também foi aplicado o questionário relativo a um único grupo racial, sendo que
a mesma redação foi avaliada por todos os participantes, variando apenas o
grupo racial da fotografia da criança afixada nos questionários.
As variáveis do presente estudo foram:
1) a cor da pele da criança, manipulada através de duas fotografias, uma
de uma criança branca e a outra de uma criança negra;
2) a discriminação, manipulada experimentalmente através da nota
atribuída à redação pelos professores;
3) cor da pele e idade dos professores, a primeira avaliada pelo
entrevistador através de uma escala de sete pontos e a segunda declarada
pelo participante;
4) critérios para a nota atribuída declarada pelo participante.

34
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

RESULTADOS

Para análise das médias atribuídas pelos participantes às redações,


retiraram-se os outliers severos, como recomenda Tabachnick e Fidel (2007).
Nossa hipótese, a de que os professores atribuiriam notas mais altas às
crianças brancas do que às crianças negras nas suas avaliações, foi testada
utilizando-se uma análise de variância univariada (ANOVA). Usamos como
variável dependente a nota atribuída pelos professores às redações, e como
variáveis independentes, a cor da pele da criança avaliada, a idade e a cor da
pele do professor. Verificou-se um efeito principal da cor da pele da criança
avaliada F(1,104)= 3, 72, p= .05, o qual indica que a criança branca recebeu
notas mais altas do que a criança negra (M= 7,8; M= 7,3 respectivamente).
Estes resultados, que podem ser vistos na Figura 1, não foram influenciados
pela idade do professor F(1,104)= .13, p= ns, nem pela cor de sua pele F(1,
104)= 1,75, p= ns.
Figura 1 – Médias das notas atribuídas pelos professores às redações da
criança branca e da negra.

7,9
7,8
7,8
7,7
7,6
7,5
7,4 7,3
7,3
7,2
7,1
7
Negro Branco

Para analisar os critérios utilizados pelos professores, realizamos uma


análise de contingência (qui-quadrado) dos critérios utilizados pelos
professores na atribuição de notas à redação da criança negra e à da criança
branca em função da cor da pele da criança avaliada x2= 9.32; gl= 4; p > .05.
Os resultados podem ser vistos na Tabela 1 e indicam que há uma diferença
significativa na avaliação da criança branca e da criança negra com relação
aos critérios utilizados. Os critérios adotados pelos professores em formação

35
Dalila Xavier de França

para avaliação da criança branca foram, predominantemente, criatividade,


expressão, construção textual, idade, série e tema escolhido. Para avaliar as
crianças negras, eles utilizaram critérios como uso da gramática, caligrafia e,
sobretudo, o esforço, conforme pode ser visualizado na Tabela 1.
Tabela 1 – Frequência e percentual dos critérios utilizados pelos professores na
avaliação do desempenho das crianças branca e negra.

Critérios
Gramática e Criatividade Idade Série Tema Esforço
Condição Caligrafia Escolhido
Branco 17 12 5 13 2
(38,6%) (60%) (62,5%) (68,4%) (22,2%)

Negro 27 8 3 6 7
(61,4%) (40%) (37,5%) (31,6%) (77,8%)
Total 44 20 8 19 9
(100%) (100%) (100%) (100%) (100%)

DISCUSSÃO

As análises realizadas demonstram que os professores atribuem notas


mais elevadas à criança branca do que à criança negra, confirmando nossa
hipótese de que os professores atribuiriam notas mais altas à redação da
criança brancas do que à da criança negra nas suas avaliações. Esta
observação, realizada num nível comportamental e de forma experimental, foi
vista através de observações por Cavalleiro (2001), nos estudos realizados nas
escolas por ela investigadas, por Lopes (1995), em escolas de São Carlos,
Ziviani (2014) em escolas de Belo Horizonte, e por Wright (1992), em escolas
inglesas. Acreditamos que esses resultados demonstram a existência de
preconceito na escola. O fato de os professores estarem despreparados quanto
à compreensão dos processos históricos e políticos subjacentes à criação e
perpetuação de diferenças entre os grupos, estes são colocados em situação
de vulnerabilidade em relação ao preconceito, pois aceitam, sem crítica, as
crenças difundidas sobre o grupo dos negros na sociedade, como a de que o
Brasil é uma nação racialmente democrática, o que mascara as reais
condições de discriminação vivida pelos negros. Dessa forma, como afirmam
Coelho (2006), Lopes (1995) e Munanga (2005), o despreparo dos professores
se revela como elemento pernicioso no processo de ensino–aprendizagem e
de socialização ampla da criança.
Esses resultados são diferentes daqueles observados por Haber (1998,
2004), em seu estudo sobre a avaliação de alunos negros e latinos. Embora
nossos resultados apresentem-se diferentes daqueles de Haber, sua
explicação de uma avaliação ligeira do grupo dos negros por parte dos

36
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

professores, baseada na crença na incapacidade do grupo parece pertinente


para analisar nossos resultados. Isso demonstra que esses professores
utilizam critérios diferentes para avaliar os grupos, sendo os negros avaliados
com base na expectativa de fracasso, ou mesmo na crença em sua
incapacidade de gerar um produto de qualidade (Ziviani, 2014).
Os resultados do presente estudo reafirmam os achados de Rosemberg
(1998), de Cavalleiro (2001) e de Wright (1992) no que tange ao fato da
carência de um adequado tratamento afetivo e julgamento igualitário às
crianças negras por parte da escola. Estas crianças enfrentam o preconceito
por diversas frentes, através de seus companheiros, seus professores e da
sociedade. É importante que seja dado às crianças negras o direito de
participarem de uma escola sem preconceitos. Isso pode ser possibilitado pela
valorização da compreensão deste fenômeno por parte dos professores no seu
processo de formação docente, assim como pela ampla discussão na escola
dos processos que subjazem as diferenças entre os grupos. Pois a
compreensão de que processos históricos, políticos e econômicos de cada
época foram os produtores da supremacia de um grupo sobre outro,
questionaria a crença na essencialização da diferença, ou na diferença como
naturalizada. Entretanto, a compreensão da história do grupo, de sua cultura e
seus valores, pode fornecer tanto a alunos quanto aos professores o
entendimento das diferenças e a compreensão destas diferenças como
construídas histórica e socialmente.
A discriminação de que são vítimas as crianças negras independe da cor
da pele e da idade do professor. Sendo assim, poderíamos esperar que
professores negros discriminassem menos a criança negra por se identificarem
com elas. Entretanto, nossos dados demonstram que isso não acontece. Ao
que tudo indica, professores brancos e negros participam de um mesmo
contexto de relações raciais e sendo o preconceito e a discriminação
fenômenos sociais aprendidos via processo de socialização1, podemos
imaginar que esses professores, por estarem vivendo numa sociedade em que
o racismo é experienciado numa idade precoce, sequer percebam que foram
vítimas ou que estão vitimando (ALLPORT, 1954). Como demonstram os
estudos de Cavalleiro (2001), os professores essencializam as questões
raciais, considerando-as imutáveis. Castro e Abramovay (2006) chamam
atenção para o fato de o preconceito na nossa sociedade ser sutil e, muitas
vezes, passa imperceptível, como no seu estudo em que professores pais,
diretores e alunos não percebem as diferenças de rendimento escolar entre os

1 Processo através do qual a criança se torna membro de uma sociedade, referindo-se à


aprendizagem das regras, crenças, proibições, valores e modos de comportamento
compartilhados por seu grupo social (GUIMOND, 2000).

37
Dalila Xavier de França

alunos negros e brancos. Esse viés, na percepção da defasagem em função da


cor, pode ainda ser interpretado como uma forma de essencialização.
Já na análise dos critérios utilizados pelos professores para avaliar as
crianças, a discriminação ocorre de maneira mais sutil, porém não
imperceptível. Observamos o uso de critérios superficiais na avaliação da
criança negra, enquanto que para a criança branca os critérios lembram sua
capacidade de pensar e agir inteligentemente. Como afirmam Fiske e cols.
(2002), nas avaliações intergrupais, há uma tendência a utilizar características
de competência ao grupo dominante e a analisar os grupos dominados através
de critérios superficiais, o que representa uma forma de inferiorização do outro.
Como no estudo de Haber (1998, 2004) o esforço para evitar a tensão
intergrupal pode explicar os critérios escolhidos para avaliar a criança negra, ou
seja, os professores avaliam a criança negra de modo menos severo e mais
superficial. Também motivos cognitivos baseados em crenças de que negros
têm menos competência acadêmica do que os brancos levariam a essa
avaliação diferenciada da criança negra. Como afirmado nos estudos de Haber
(1998, 2004) e Ziviani (2014) os professores automatizariam as suas respostas
quando avaliam indivíduos desses grupos, ou seja, se recusam a dedicar
tempo a eles. Já a criança branca é avaliada segundo os moldes do grupo
dominante, ou seja, como criativa, que sabe construir porque é inteligente e
capaz.
Fundamentalmente, essas formas de avaliar os grupos se propõem a
manter o status quo dos grupos, limitando seu campo de trabalho e de poder.
Assim, o que se pode depreender desses dados é que as impressões que os
professores têm das pessoas negras é de que elas não precisam alimentar
expectativas, pois seu lugar social está previamente definido. Como afirma
Menezes (2003), a escola reserva um lugar social de fracasso para a criança
negra e, através de uma série de comportamentos partilhados por muitos do
corpo escolar, levam-nas a internalizarem concepções negativas sobre si
mesmas. Considerando-se que as crianças constroem seu lugar social,
amparando-se no que é refletido a partir de seu contexto social, e a escola é
um importante contexto de projeção, é necessário discutir o preconceito e a
discriminação na escola a fim de reduzir o preconceito racial no seu interior e
na sociedade (ZIVIANI, 2014). Para isso, faz-se necessário, ainda, como afirma
Coelho (2006), zelar pela formação dos professores preparando profissionais
atentos tanto para a dimensão pedagógica quanto para as dimensões humana
e sociopolítica do processo educacional.

38
DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No espaço escolar, reúnem-se diferentes grupos e suas diferenças


muitas vezes não são consideradas como importantes elementos de análise,
causando, assim, uma pressão que tem impactos diversos. O objetivo deste
estudo é o de analisar o papel do professor no processo de discriminação de
crianças negras. As análises feitas indicam que, provavelmente, as crianças
negras estão submetidas, nas escolas, à forte pressão que é exercida em
forma de crenças depreciativas e atitudes discriminatórias mantidas não
somente por seus colegas, mas também por seus professores. Esta
experiência tem efeitos sobre o comportamento, a autoestima e a percepção de
si mesmo e das relações raciais, levando-as a perceber o ambiente social
como hostil (CAVALLEIRO, 2001; LIMA; FRANÇA, 2012).
A escola não é apenas um espaço para a aprendizagem de conteúdos
acadêmicos, mas também é um espaço de socialização para as atitudes
raciais. Sendo assim, é importante preocupar-se com os valores sociais e as
crenças difundidas nesse contexto, haja vista que o manejo inadequado das
relações raciais pode criar um ambiente de proliferação da inferioridade
pessoal e disseminar profecias autorrealizadoras. Com base nas
considerações de Merton (1948), Rosenthal (1989), Crano e Mellon (1978) e
Diaz-Aguado (1996), podemos, portanto, afirmar que, se as crianças se sentem
inferiorizadas, indesejadas ou como elementos estranhos ao contexto escolar,
há uma forte possibilidade de evadirem-se da escola ou terem insucesso nesse
contexto. Se dentro desse contexto perpassam crenças e ações que levem à
diferenciação de grupos, seja pelo gênero, seja pela raça, seja pela classe, os
indivíduos discriminados podem estar sob pressão. O resultado da pressão
grupal é, em muitos casos, a diminuição da autoestima, e a luta pela sua
proteção pode fazer indivíduos de baixo status diferenciar-se, negar ou evadir-
se de seus grupos.
O professor é uma figura de identificação e detém o conhecimento
dentro da escola. Em seu papel de socializador, espera-se que o professor
tenha a preocupação de promover a igualdade entre os alunos, considerando
suas diferenças raciais, culturais, religiosas, etc., evitando ser perpetuador de
visões deturpadas e arraigadas sobre os grupos (OLIVEIRA, 2008). Enquanto
educador, o professor precisa estar aberto para discutir as diferentes visões
que as crianças apresentam sobre os grupos que compõem a sociedade. É
importante refletir sobre suas próprias opiniões, pois elas serão transmitidas
por sua expressão, postura do corpo e impostação da voz. Se a criança sente
que é percebida como incapaz, poderá encarar isso como verdade. O resultado
é a consubstanciação de uma profecia autorrealizadora que terá efeitos
nocivos talvez em diversas áreas da vida.

39
Dalila Xavier de França

Como afirma Haber (1998), a avaliação do aluno pelo professor deve ser
tanto vertical (baseado nos seus conhecimentos) quanto horizontal (baseado
na sensibilidade e respeito a dignidade da pessoa) visando proteger sua
autoestima e moral, de modo que ele deve estar atento no momento de suas
avaliações para manter seu viés sob controle. Tendo em vista que a educação
que a criança recebe no estágio inicial é de grande importância e forma base
para seu desenvolvimento emocional, social e intelectual, preparar os
professores para o manejo das questões raciais no interior da escola pode ser
um modo de reduzir as desvantagens sofridas por crianças negras nesse
estágio.
Algumas medidas podem ser empreendidas visando a redução dos
preconceitos na escola. Em conformidade com os estudos de Rutland, Brown e
Cameron (2005), fornecer aos professores e alunos informações sobre as
características culturais dos distintos grupos e sobre as bases dos preconceitos
através do ato de contar histórias, que podem estar associadas a ênfase no
que há de comum nos grupos existentes em determinado contexto; ter atenção
a implementação da Lei n. 10.639 e ampliar o alcance de seus efeitos para
outros grupos vulneráveis; elaborar ações que atinjam toda a escola no sentido
de atuar junto todo corpo escolar, sobretudo, professores e alunos, na redução
do preconceito na escola, semelhante ao estudo desenvolvido por Souza
(2005).
Estudos futuros podem centrar-se na formação dos professores para o
aprimoramento ou aquisição de estratégias de redução do preconceito e à
discriminação no contexto escolar, à luz dos novos Parâmetros Curriculares
Nacionais para a Educação, através da Lei n. 10.639 e seu possível subsídio a
estratégias de redução do preconceito e discriminação.

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44
CAPÍTULO 2

A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:


APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS
POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

Sônia Oliveira Santos

“Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua
personalidade, não pela cor de sua pele”
Martir Luther King

T
rataremos, especificamente, da educação dos negros em Sergipe
onde faremos um apanhado histórico sobre a educação dos negros
em Sergipe, em especial a educação das crianças negras, tendo
como referencial a Sociedade Abolicionista Aracajuana, a Cabana de
Pai Thomaz.

RETOMEMOS O PROCESSO HISTÓRICO...


Em março de 1838, o presidente da Província Sergipana, o Sr. Eloi
Pessoa da Silva, através do Decreto nº 15, sancionou a criação de um “Colégio
de artes mecânicas” para o ensino de órfãos, pobres e filhos de pais indigentes

45
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

e expostos, que tivessem cerca de dez anos de idade e nenhuma ocupação. Os


escravos não foram admitidos nesse projeto, mesmo que o seu senhor arcasse
com as despesas.
De acordo com as pesquisas de Nunes (1984), em registros datados de
1850, foram encontrados alunos brancos, pretos e pardos, frequentando aulas
públicas de primeiras letras nas Comarcas de São Cristóvão, Laranjeiras,
Estância e Villa Velha.

Quadro 1 - Demonstrativo do número de escolas e alunos de primeiras letras ano 1850

MASCULINO FEMININO
Brancos 822 Brancas 227
Pardos 771 Pardas 129
Pretos 30 Pretas 1
Alunos 1.623 Alunas 357
Escolas 38 Escolas 12
Fonte: NUNES (1984, p. 285).

De acordo com o quadro, as escolas masculinas correspondem ao triplo,


aproximadamente, de escolas femininas, e justifica o papel social
desempenhado pelas mulheres na primeira metade do século XIX.
É notória a participação de pretos1 e pardos2 nas instituições públicas
sergipanas. No que se refere à cor da pele, a quantidade de homens pretos é
bastante inferior (cerca de 2%) com relação ao número de homens brancos e
pardos matriculados; em relação às mulheres negras, a diferença é bastante
gritante (0%) comparada às mulheres brancas e pardas matriculadas. No estado
de Sergipe, segundo Cardoso (2005), na segunda metade do século XIX foram
localizados grupos de escravos islamizados que sabiam ler.
A digressão feita é para situar a história educacional de Sergipe. As
escolas públicas já estavam em funcionamento, naquele momento, baseadas
nas reformas educacionais nacionais e nos decretos específicos para o estado.
Nesse período, em Sergipe, como em outros períodos da história
brasileira, existiam grupos de pretos e pardos matriculados em escolas oficiais,

1
A denominação “preto” designa escravos africanos e escravos alforriados.
2
A denominação “pardo” designa homens e mulheres livres que tivessem traços
de origem africana.

46
Sônia Oliveira Santos

independentemente de a legislação amparar esse grupo étnico, como também


existia a presença de escravos letrados, como visto no processo histórico
brasileiro.
A reforma de Couto Ferraz, de 1854, instituía a obrigatoriedade da escola
primária a crianças maiores de 07 anos; contudo, restringia o acesso às crianças
portadoras de moléstias. Concomitante a esse pensamento, o Sr. José Leandro
Martins, vice-presidente da Província Sergipana, através da Resolução nº 1185
de 08 de maio de 1881, delegou os pais e tutores e curadores obrigatoriedade
de vacinar filhos, escravos de servos, tutelados ou curatelados num prazo de
seis meses após data de alerta à vacina, como também proibiu que crianças com
um ano de idade completo fossem batizadas sem apresentar ao pároco a
declaração de vacina. Sendo assim, os critérios higiênicos passaram a ser uma
exigência também para a participação em aulas de estabelecimentos públicos
ou privados.
Nessa fase, os escravos, homens e mulheres livres que vagavam nas ruas
aracajuanas, foram vistos como proliferadores de moléstias, o que
automaticamente os impediam de frequentarem os bancos escolares.
Após a Reforma Couto Ferraz, em Sergipe, a divisão do Ensino Primário
ocorreu através do Regulamento de 24 de outubro de 1870, na gestão do
Presidente da província Manoel Luís Azevedo de Araújo, que dividiu o ensino
primário em dois graus: o elementar e o superior:
(...) para aqueles que desocupados durante o dia nas suas profissões,
de onde retiram os meios de subsistência, podem à noite também ir
buscar a provisão do espírito que, não menos do que o corpo, para
qual trabalham diariamente d’ella precisam. (NUNES, 1984, p.22).

Em setembro de 1978, o Sr. Antonio Cândido da Cunha Leitão, através


do decreto 7.031, sugeriu a implantação do ensino noturno nas cadeias, com o
objetivo de “recuperar a moral” daqueles que estavam marginalizados, e tal
projeto foi transformado em Lei pela Corte.
Na Província Sergipana, a expansão do ensino primário teve sua
efervescência na década de 70 do século XIX, concomitantemente com os
debates sobre a Lei do Ventre Livre e as reformas educacionais que, através de
decretos, permitiam, ou não, o acesso de mulheres, homens e crianças negras
ao sistema escolar.
No que se refere à legalidade, o Decreto de nº 7247 de 19 de abril de 1897
foi uma reforma ministerial que defendia o acesso de escravos nas escolas
públicas do Império, conforme legislação:
... a obrigatoriedade do ensino dos sete aos quatorze anos e a
eliminação da proibição de escravos de frequentarem as escolas

47
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

públicas, considerou a livre frequência e aboliu ensino religioso


obrigatório aos alunos católicos tornando-o facultativo.

O contexto histórico foi necessário para repaginar as legislações


educacionais mais expressivas na Província Sergipana e revelar como os negros
estavam inseridos nesse contexto.
Passemos para os anos oitenta do século XIX...
Em todo o Império, o movimento “abolicionista” era liderado por
intelectuais e estava em pleno estado de ebulição. Segundo Clovis Moura
(2004), o ato de abolir aconteceria por meio de movimentos, como foi o caso do
Haiti, ou pelas interferências jurídicas.
Vários homens e mulheres da Província Sergipana destacaram-se nas
questões abolicionistas, mas gostaria de me deter na figura do Sr. Francisco
José Alves.
Segundo Santos (1997), Francisco José Alves nasceu em 12 de janeiro
de 1825, na Província de Itaporanga, e sua origem racial não era de sangue
africano: “(...) posso asseverar (...) que também era portuguez eu o conheci; era
um homem alvo, corado e até bonito (...) como pode informar alguns velhos
moradores de Itaporanga.” (Jornal Descrito. 31.10.1882 apud SANTOS,1997).
Aprendeu a ler e a escrever em onze meses. Por causa da vivência culta
e das boas relações sociais em Sergipe, tornou-se funcionário público. Suas
leituras o fizeram admitir apropriações e a construção do abolicionista Francisco
José Alves, de pseudônimo Pai Thomaz3.
Não importa ser a ideia iniciada por um pequeno, para ser abraçada
pelos grandes, o abaixo firmado pobre ficará com a denominação de
Pae Thomaz, e sua caza a cabana d’elle; e em quanto os ricos irão
dormir em suas colchas adamascadas e em regosijos de terem
concorrido para uma obra grandiosa, como bem seja a liberdade do
homem escravizado por outro homem. (Jornal o Sergipe, nov. de 1882
apud SANTOS, 1997)

Assim sendo, em 1882 na véspera do natal, na Rua de Capela (a sua


residência), o Sr. Francisco José Alves “instalou a tipografia e a “Sociedade
Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz” 4 (SANTOS, 1997, p. 42).

3
A Cabana de Pai Tomás (1850) é de autoria norte-americana de Harriet Elisa
Beth Beecher Stowq, que apresenta a estória do escravo civilizado encontrado na ficção
e a proposta de educação e instrução aos ingênuos.
4
A inauguração foi marcada pela entrega da carta de liberdade do escravo
Manoel pertencente ao tenente Coronel José Ignácio do Prado (Santos, 1997, p. 91).

48
Sônia Oliveira Santos

A Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz exercia


várias atividades de cunho abolicionista, como a compra de cartas de alforria,
denúncias feitas em jornais e atividades educativas que compreendiam
palestras, conferências, representações teatrais e a alfabetização voltada à
instrução de ingênuos5, assunto do interesse de nossa pesquisa.
É muita ousadia da minha parte dirigir-vos a palavra neste momento
solene – Eu, um quase analfabeto que tive a infelicidade de ñ cultivar
as letras o que poderei dizer perante uma plêiade de jovens tão
estudiosos e de homens tão provectos da dialética. Nada que vos
possas agradar estou certo: Mas srs. É tal a grandeza da causa que
defendo e da liberdade do homem escravizado por outro homem, que
ella me empresta forças para dizer-vos o fim o que convidei para vos
reunir nesta cabana do pobre velho Pae Thomaz. (Jornal O Sergipe,
17 de novembro de 1882, p.1).

Após a criação da Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai


Thomaz, o jornal o Sergipe publicou uma nota: “abertura de uma aula de
primeiras letras, onde serão admitidos os ingênuos, filhos dos escravos que se
libertarem.” (idem).

A escola de Pai Thomaz


A Escola de Pai Thomaz passou a funcionar em outubro de 1882, em sua
residência, situada à Rua de Capela, em uma das salas de sua casa, durante
todos os dias da semana, exceto aos sábados e domingos e dias santificados.
Sei que existem muitas cadeiras públicas n’esta cidade onde eles
podem educar-se; porem sei também que pelo luxo que é preciso
sustenta se n’essas aulas os pobres ingênuos, cujos paes sahirão há
pouco do captiveiro não podem sustental-os (...). (Jornal O Libertador.
19 de outubro de 1882, p.2).

Na escola, não existia calendário, período de férias, e não exigia


fardamento, “a ordem era frequentar de qualquer maneira, mesmo que ‘de pés
descalços, de tamancos, vestidos de chambre ou calça’”. (SANTOS, 1997,
p.105). A escola era mantida com recursos próprios, e os alunos recebiam
materiais didáticos doados pela própria escola (cartilhas, tinta, papel e canetas).

5
Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz foi criada meses
depois da Lei do Ventre Livre, num período em que foram travadas discussões sobre os
cuidados com a criança negra.

49
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

As aulas eram ministradas pelas professoras: Etelvina Amália de Siqueira 6 e


Maria dos Prazeres Siqueira Alves7.
O público da escola consistia em crianças que moravam nas proximidades
da casa do Sr. Francisco José Alves, e os filhos das mães que já estavam
libertas, ou filhos que, de acordo com a Lei do Ventre Livre, estavam prestando
algum serviço, desde que os responsáveis por eles dessem permissão.
A escola de Pai Thomaz esteve à frente do seu tempo, e tinha como
proposta tornar-se um grande instrumento de inserção de ex-escravos e seus
descendentes na sociedade brasileira da época. Os conteúdos ministrados na
escola eram direcionados ao ensino da leitura e da escrita, ensinamentos morais,
patrióticos.
Para o Sr. Francisco José Alves, a liberdade estava para além das
amarras do cativeiro: “(...) toda província sabe que de 1872 para cá, tomei a peito
deffender a liberdade do escravo que a ella tem direito”. (Jornal o Libertador.
24.02.1883). A liberdade, para ele, estava relacionada ao provimento de
instrução intelectual, condição primeira para que o indivíduo pudesse ter acesso
à sociedade de classes.
A instrução é a base em que se firma a liberdade.
Promovendo eu a liberdade do mísero escravo, nesta província não
posso esquecer-me da educação de seus filhos; por essa razão resolvi
abrir uma aula de ensino primário, em minha residência, na Rua de
Capella, para ensinar aos ingênuos de ambos os sexos, cujas mães já
gozem de sua liberdade...(Jornal O Libertador, 11.12.1882, p. 02.)

A inexistência de documentos não possibilita maiores informações sobre


o tempo de duração da escola de Pai Thomaz, bem como de outros lugares
destinados à educação dos ingênuos na província Sergipana, o que abre um
leque para a investigação de estudos posteriores.
Contudo, Sergipe tem um precedente histórico no processo inicial de
políticas para a promoção da igualdade racial voltada para a educação desde o
período do império, como iniciativa ímpar para o nordeste abolicionista, que foi

6
Etelvina Amália de Siqueira era sobrinha do Sr. Francisco José Alves. “Cultora
do verso e da prosa, oradora vibrante, educadora, conhecedora do idioma pátrio,
abolicionista convicta e como tal amante da liberdade e da república”. (FREIRE, 1988,
p. 29.).
7
Maria dos Prazeres Siqueira Alves. Filha do Sr. Francisco José Alves. Ingressou
no curso normal no ano de 1882 e atuou em Aracaju como professora primária, oradora,
jornalista e abolicionista.

50
Sônia Oliveira Santos

noticiado e parabenizado pelos intelectuais da época, propiciando às crianças,


de forma objetiva, valores éticos, morais sociais e intelectuais para a sua
inserção na sociedade do século XIX.
Parabéns oh! Sergipe já na capital de tua província se levanta uma
plêiade de jovens estudos, amantes do progresso e da civilização,
profigrando as trevas dos tempos idos e combatendo o erro dos nossos
antepassados! (Jornal o Descrito. 3 de julho de 1882, p. 01).

O atual ensino municipal de Aracaju e as políticas de ações afirmativas


Não poderia iniciar a falar sobre as políticas de ações afirmativas no
município de Aracaju sem fazer uma breve explanação sobre a rede. A partir da
década de 1980, a administração escolar passou por uma profunda modificação,
objetivando a redefinição do conceito de escola.
Segundo o pensamento de Barroso (1998), a década de 1980 trouxe
significativas alterações no papel administrativo do Estado no que se refere à
educação, emprego e outras pautas que estavam diretamente ligadas à crise
econômica. Nesse período, reconhece-se a escola como um local de gestão.
Em 1985, no processo de eleições diretas, parte da população iniciou um
questionamento junto às suas lideranças quanto às ações político-
administrativas. Os sindicatos, partidos, políticos e organizações dos
movimentos populares também se apresentaram atuantes. Nesse período de
movimentação política, a rede municipal de ensino da capital, no que se refere à
gestão democrática, passava por um processo de retrocesso na aplicabilidade
de gestão.
Por conta dessa situação, existiu uma movimentação progressista dentro
da rede no período de 1989 a 1992. Houve a elaboração coletiva de uma
proposta curricular de caráter político pedagógico, nesse período, que
desencadeou um grupo de discussão formado por educadores, alunos, pais e
lideranças comunitárias, na tentativa de formular ou sistematizar um currículo
para a escola pública básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio8.
A experiência de construção coletiva exigia uma escola de qualidade
voltada para o atendimento dos direitos civis básicos do cidadão das camadas
populares que assegurasse seu acesso e permanência regular no sistema de
ensino. Em tempo, citava reclamações sobre a valorização do professor,

8
O objetivo básico voltou-se para a elaboração coletiva de uma proposta curricular
com vistas à orientação e subsídio das ações escolares, enfatizando as atividades de
apropriação e superação críticas do saber historicamente acumulado nos diversos
campos da ciência.

51
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

entendendo que ele era o interlocutor notório do processo de uma gestão


efetivamente democrática.
Essa conjuntura de trabalho proporcionou profundas modificações
na realização de várias atividades. O que perpassou por todos esses eventos foi
a busca da construção de uma proposta curricular coletiva, democrática e
direcionada aos interesses dos trabalhadores e da comunidade.
(...) processo sócio histórico-cultural organizado na própria unidade
escolar em momentos não lineares e sempre vinculados a sociedade
onde foi gerado (...) corporificação dos interesses sociais e luta cultural
que se processa na sociedade. Interesses e luta que invadem e
transitam na escola, concretizando-se nas práticas pedagógicas. É
instrumento de ação política, que se define no posicionamento do
educador diante da realidade e no compromisso com outros sujeitos
educadores-educandos. Ou seja, aqui o currículo é compreendido
como ação coletiva que se funda numa concepção do mundo-homem-
educação. Concepção esta que aceita e acreditada, é trabalhada na
escola, numa sociedade concreta (SEMED/PMA, 1992, p.15).

No período de elaboração da proposta, foram criados grupos de trabalhos


(GT’s)9.O processo dos GT’s fez emergir conflitos de ordem política, motivo pelo
qual grupos foram desfeitos e, em outros momentos, recompostos, registrando
dissidências e adesões.
Existiram, apesar disso, características pontuais e comuns entre a
produção dos GT’s, em relação ao processo democrático da rede municipal,
desencadeado desde 1985: crítica severa das condições físicas das escolas e
dos salários dos professores; tentativa de assimilação do eixo da proposta –
trabalho como gerador de riquezas, bem-estar social e conhecimento (bem
presente nos GT’s de Alfabetização, história e Educação Física); caracterização
de docentes e discentes, mais (para alguns GT’s) ou menos (para outros GT’s)
exaustiva, em termos das suas representações; clareza da função social e

9
Os grupos de trabalhos foram organizados em torno de áreas e conteúdos
considerados essenciais e democráticos, com representação de docentes e
especialistas das escolas e da Secretaria de Educação. Formaram-se três GT’s que
reuniram cerca de 100 docentes em torno das seguintes áreas do processo de
ensino/aprendizagem e conteúdos essenciais da educação básica: Educação Infantil
(incluindo a preocupação com creches e pré-escolas); Alfabetização (de crianças,
jovens e adultos); Língua Portuguesa; Educação Artística; Ciências; História; Geografia;
Educação Física; Ensino Religioso; Língua Estrangeira; Matemática; Contabilidade; e
disciplinas Pedagógicas.

52
Sônia Oliveira Santos

política da escola pública para as camadas populares, na perspectiva de


instrumentalização e domínio do saber (BEZERRA, 2007, p.52).
Segundo a SEMED/PMA (Secretaria Municipal de Educação/Prefeitura
Municipal de Aracaju) (1992), no que se refere à execução, são descritos três
programas amplamente coletivos que tiveram papel fundamental na construção
da versão preliminar da proposta curricular: Programa Horas de Estudos10;
Encontro Regionais de Escolas e I Jornada Municipal de Educação. Segundo
Bezerra (2007, p.53), o Programa Horas de Estudo é uma conquista assegurada
no Estatuto do Magistério do Município de Aracaju (Lei 1.350/88).
O programa Horas de Estudo tem como objetivo a qualificação do
professor da rede municipal de Aracaju no que concerne à qualificação e
elevação da qualidade do ensino da escola municipal através da pesquisa,
estudo em grupo, troca de experiência e outras ações conjuntas que possibilitem
a busca de soluções inovadoras para o problema do cotidiano. Respeitando a
autonomia das escolas e dos educadores, a SEMED montou uma estrutura de
orientação às unidades tanto em sala quanto no Programa Horas de Estudo11.
Desde 1988, através das lutas travadas, os professores conquistaram e
asseguraram, no estatuto do magistério, um percentual de sua carga horária
(25%), destinada a reflexões, análises e trocas de experiência e aprofundamento
das práticas pedagógicas. “O Programa Horas de estudos no momento de sua
criação contribuiria para o avanço político, organizativo e científico da categoria”
(BEZERRA, 2007, p. 53).
Em gestões anteriores, o programa Horas de estudos não vingou, mas,
no período da proposta curricular, o programa passou por uma evolução quali-
quantitativa, chegando a exigir a criação do Centro Municipal de Recursos
Humanos Prof. Paulo Freire, atualmente chamado de Centro Municipal de
Aperfeiçoamento de Recursos Humanos Professor Fernando Lins e Carvalho
(CEMARH).
Nos anos de 1994 e 1995, foi implementado, no município de Aracaju,
através das Leis nº 2.221 de 30 de novembro de 1994, e 2.251, de março de
1995. A lei nº 2.221 institui a criação do curso preparatório para o corpo docente
e outros especialistas da rede municipal de ensino, visando à implantação de
disciplinas ou de conteúdos programáticos no currículo da referida rede,

10
No momento, iremos apenas nos deter ao programa Horas de Estudos, por se
tratar do programa de formação continuada de professores pertinente à pesquisa.
11
Informação disponível em www.aracaju.se.gov.br. Acessado em maio de
2013.

53
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

baseados na cultura e na história do negro e do índio, de acordo com a


pedagogia interétnica e dá outras providências. A Lei nº. 2.251 dispõe sobre a
inclusão, no currículo escolar da rede municipal de ensino de 1º e 2º graus, de
conteúdos programáticos relativos ao estudo da raça negra na formação
sociocultural e política brasileira e dá outras providências a primeira experiência
de leis antirracistas no âmbito municipal, com inclusão no currículo escolar – no
Brasil, no final dos anos 1980, alguns municípios (nove) programaram, em seu
sistema de ensino, a história do negro e a história do continente africano, e
Aracaju saiu na frente, incluindo também a formação de professores no seu
conteúdo programático. A partir daí, então, foi dado início ao processo de
formação de professores na temática, até a chegada da Lei 10.639/2003, que
deu outro encaminhamento de modificação curricular obrigatória. Nesse ínterim,
a formação continuada de professores tomou outra forma no sentido obrigatório,
tanto para a organização quanto para a aplicabilidade da Lei em sala de aula.

CONSIDERAÇÕES
... Negro não sabe o que é dor;
Negro não tem alma não;
Assim dizia o feitor com seu chicote na mão...

E, assim, com as estrofes dessa canção, é impossível não sentir, entender


e compreender que os aspectos pertinentes ao preconceito e ao racismo têm
relação íntima com o negro no Brasil e a sua condição de escravo.
Sem dúvida, o racismo é um fenômeno social presente de forma concreta
na estrutura social brasileira, e a luta por sua superação pode constituir um
elemento importante para a construção de novas dinâmicas na relação social –
na qual ainda se percebe o negro brasileiro enfrentando dupla barreira: social e
racial. Assim, ele sempre será duplamente explorado pela condição de classe e
pela condição de raça. Mesmo aqueles que conseguem superar as condições
sociais, deparam-se com as questões raciais. Então, a questão e a luta de raça
é um componente ativo que tem que ser considerado na luta de classes no país.
Quando iniciei a minha pesquisa, estava investigando a legislação
antirracista do município de Aracaju no que se refere à educação. O olhar da
legislação passa pelo crivo de que somos um país legalista, e muitas das lutas
do movimento social negro reverberam sob a forma da lei.
A minha condição de pesquisadora e militante permitiu-me fazer
interferências sem o olhar da neutralidade que hoje a pesquisa me permite fazer.
Muitas foram as constatações. Uma delas é a de que a educação é um dos

54
Sônia Oliveira Santos

principais indicadores para a mobilidade social quando as políticas de acesso e


permanência à educação estão alinhadas. Agora, e o racismo? Respondo,
perguntado à hipótese do meu trabalho, num olhar intrínseco e íntimo. Minha
mobilidade social está relacionada com minha titulação de mestre?
Trago algumas considerações neste final do trabalho:
 O mito da democracia racial está presente dentro e fora do ambiente
escolar, comprovado na forma de como esses conteúdos estão presentes
no currículo e de como essas relações têm seu trato amenizado;
 A percepção do sujeito negro parte do processo de formação da
identidade do pertencimento étnico-racial;
 A narrativa do processo histórico do povo negro ainda é eurocêntrico;
 Teorias seculares ainda sustentam as bases que reforçam o racismo por
meio de estereótipos - fundamentados na base capitalista;
 Leis são transformadas em letras mortas se não forem de interesse
comum.
Entendo que as leis antirracistas trabalhadas na perspectiva de superação
da ideologia de dominação racial podem constituir-se como instrumentos
importantes no campo do currículo (real), aliando o específico ao universal na
perspectiva de superação das bases constitutivas das desigualdades raciais e
sociais.
A pesquisa me fez perceber que é possível o tempo das mudanças. Não
quero aqui dizer que o país irá ENEGRECER em suas teorias e concepções,
mas que esse movimento deve ser realizado em diferentes instâncias: escola e
sociedade para que a temática negra seja legítima como uma dimensão da vida
brasileira.

... Malvado banzo me mata


Quero à Pátria voltar
Na minha terra sou livre
Como andorinha no ar (autor desconhecido)

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, U. F. O déficit cognitivo e a realidade brasileira. In Aquino Julio Groppa
(org). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas.
5. Ed Summus: São Paulo, 1998

55
A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE:
APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

ARETHUSA, Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada.


Rio Claro, 1871 – 1888. Disponível em
https://historiademografica.tripod.com/bhds. Acesso em: 30 de janeiro de 2012.
BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil 03/constituicao/ constituicao24.htm. Acesso
em: 25 de janeiro de 2012.
_________. Lei 5.540/68. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil
03/leis/l5540.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012.
_________. Lei 5.692/71. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil
03/leis/l5692.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012.
_________. Lei 9.394/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil
03/leis/l9394.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012.
BEZERRA, Ada Augusta Celestino. Gestão democrática da construção de
uma proposta curricular no ensino público: a experiência de Aracaju.
Maceió: EDUFAL, 2007.
CARDOSO, Amâncio. Escravidão em Sergipe: fugas e quilombos, século XIX. In
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Edição
Comemorativa do Sesquicentenário e Aracaju (2003-2005). Aracaju: nº 34 p.
55-57 jul-ago) 2005.
CARVALHO, M.M.C. de. A escola e a República. São Paulo: Brasiliense, 1989.
COSTA. Emilia Viotti. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação editora
da UNESP, 1989.
CRUZ, Mariléia dos Santos. Uma abordagem sobre a história da Educação dos
negros. In: História da Educação do Negro E Outras Histórias. ROMÃO,
Jeruse (org.). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2005.
NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Paz e Terra, 1984.
SANTOS, Ângela Maria. Vozes e silêncio do cotidiano escolar: as relações
raciais entre alunos negros e não negros. Cuiabá: EdUFMT, 2007
SANTOS, Maria Nely. A Sociedade Libertadora. “Cabana do Pai Thomaz”,
Francisco José Alves, Uma história de vida e outras histórias. Aracaju:
Gráfica J. Andrade, 1997.
____________. Aracaju: um olhar sobre sua evolução. Triunfo, Aracaju, 2008

56
Sônia Oliveira Santos

SEMED/PMA. Proposta curricular elaborada para a rede de ensino público


e gratuito de Aracaju: elementos de uma trajetória política e metodológica.
Aracaju: DENSI, 1992.
SILVA, Maria. C; ALVES ,Celeuta.B; SANCEVERO, Marisilda. S. Abordagem
histórica das políticas públicas da educação da criança negra. Uberlândia,
IV simpósio internacional. Dezembro, 2009, p. 105. Disponível em:
http://www.simposioestadopoliticas.ufu.br/imagens/anais/pdf/CC03.pdf.
Acessado em 12 de dezembro de 2011.

57
CAPÍTULO 3

DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE


AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES
EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS

Roberto dos Santos Lacerda

A
era da modernidade é fortemente associada ao desenvolvimento,
capitalista, industrial e científico. Entre os fatos históricos que
marcaram esse período estão a escravização de seres humanos,
principalmente do continente africano para as Américas, e a
colonização europeia na África, Ásia e América Latina.
Significativamente, as categorias raciais surgiram durante essa
época, convenientemente com o projeto de dominação que perpassava pela
estratificação social como um dos pilares para a dominação e exploração.
Além da dominação e exploração física, o processo de escravização e
colonização se deram também no campo do pensamento, das ideias,
principalmente na produção de estereótipos e concepções que legitimavam e
justificavam a supremacia europeia e sua dominação e exploração sobre os

58
Roberto dos Santos Lacerda

grupos escravizados e colonizados. Para Foucault (2001) toda sociedade


controla e seleciona o que pode ser dito numa certa época, quem pode dizer e
em que circunstâncias, como meio de filtrar ou afastar os perigos e possíveis
subversões que daí possam advir (FOUCAULT, 2001).
Além da configuração das “peças do tabuleiro” da geopolítica mundial, o
processo de colonização, estrategicamente, se deu também no campo do saber,
atribuindo valor e legitimidade à produção ocidental eurocêntrica em detrimentos
das demais culturas. Gosfroguel (2007) afirma que o racismo epistêmico, é um
dos racismos mais invisibilizados no “sistema-mundo
capitalista/patriarcal/moderno/colonial” e que:
opera privilegiando as políticas identitária (identity politics ) dos brancos
ocidentais, ou seja, a tradição de pensamento e pensadores dos
homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada
como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a
única com capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. O
racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como
inferiores aos conhecimentos ocidentais. (GOSFROGUEL, 2007, p. 32)

Compreender a importância do reconhecimento de outras narrativas,


discursos e formas de interpretação dos fenômenos é um desafio imprescindível
de ser enfrentado. Os efeitos do histórico de universalização e hegemonia do
pensamento eurocêntrico.
Para Foucault, saber e poder não existem separados um do outro: Não há
relação de poder sem construção de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT Apud
ARAÚJO, 2001). Segundo Foucault, toda linguagem e todo discurso traduz uma
vontade de poder e de dominação. Para realizar esta aspiração de conquista, o
poder investido nos discursos se associa ao saber, em especial àquele saber
socialmente reconhecido/imposto como "verdadeiro" (LIMA, 2003).
Nesse contexto, o saber científico assume o protagonismo na
apresentação do discurso verdadeiro, conquistando esse status ancorado nas
ideias de objetividade e neutralidade.
O combate ao racismo, em suas variadas facetas e desdobramentos,
configura-se numa tarefa em torno da qual gravitam múltiplas e diversas forças
sociais, interesses, leituras. Para tal missão, faz-se necessário a superação da
visão universalista da suficiência do conhecimento científico eurocêntrico sobre
a “verdade”. O reconhecimento e emergência de “novas” formas de
compreender/explicar os fenômenos, principalmente os que incidem diretamente
sobre as questões raciais configura-se como imperativo atual e imprescindível
na superação dos efeitos da colonização e escravidão.
Nesse sentido, o presente artigo visa refletir sobre as possibilidades de
utilização das epistemologias afrocentradas como ferramentas de superação do
racismo.

59
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
AFROCENTRADAS

ABORDAGEM AFROCENTRADA E PARADIGMA DA COMPLEXIDADE:


OUTROS OLHARES SOBRE O RACISMO

A importância da categoria raça1 na análise das relações sociais em


lugares como o Brasil, que se constituiu como país a partir do sistema
escravocrata, torna-se imprescindível na medida que possibilita compreender a
origem e os processos que constituem as persistentes e profundas iniquidades
que existem em nosso país.
A busca pela reflexão a partir de outras epistemologias, como a africana,
não deve ser compreendida como um “revanchismo epistêmico” ou tentativa de
inverter as posições na arena na geopolítica do saber. Deve ser papel do
pesquisador buscar e apresentar alternativas epistemológicas considerando a
complexidade dos fenômenos e a diversidade de formas de pensar e construir
conhecimento. Apesar da epistemologia ser universal, dada a capacidade
humana de conhecer, as formas de aquisição de conhecimento variam segundo
os contextos socioculturais em que as reivindicações de conhecimento são
formuladas e articuladas. (KAPHAGAWINI & MALHERBE, 2002).
A partir do entendimento de que a epistemologia é o “estudo de teorias
sobre a natureza e escopo do conhecimento, a avaliação dos pressupostos e
bases do conhecimento e o estudo minucioso do que o conhecimento afirma”
(KAPHAGAWINI & MALHERBE, 2002, p.2), pode-se perceber o caráter
universal e independente de cultura, tribo ou raça, que a epistemologia possui
enquanto ramo da filosofia que analisa e avalia as reflexões sobre o
conhecimento.
Questionar a hegemonia e apresentar alternativas à epistemologia
eurocêntrica, se faz um imperativo para as pesquisas sobre racismo, na medida
em que essa sempre privilegiou um padrão de pensamento no ocidente que
estuda o “outro” como objeto e não como sujeito produtor de conhecimentos.
Fomentar a utilização de outras epistemologias rompe com a tradição
clássica da pesquisa ocidental, já que,
em vez de um sujeito branco estudando sujeitos não-brancos como
objetos do conhecimento, assumindo-se a si mesmo como um
observador neutro não situado em nenhum espaço nem corpo ("ego-
política do conhecimento"), o que lhe permite portanto reclamar uma
falsa objetividade e neutralidade epistêmica, temos a nova situação de
sujeitos das minorias discriminadas estudando a si mesmos como

1
A categoria raça é compreendida aqui, não como categoria biológica, mas
enquanto constructo social determinante de desigualdades sociais e do processo
saúde-adoecimento-morte.

60
Roberto dos Santos Lacerda

sujeitos que pensam e produzem conhecimentos a partir de corpos e


espaços subalternizados e inferiorizados ("geopolítica e corpo-política
do conhecimento") pela epistemologia racista e o poder ocidental.
(Gosfroguel, 2006, p.32).

Para Gosfroguel (2006) essa posição epistemológica descolonizadora e


política reflete o combate ao racismo epistêmico,
que atribui e reconhece a produção de teoria aos sujeitos ocidentais
brancos enquanto os não-brancos produzem folclore, mitologia ou
cultura mas não conhecimento de igual para igual com o ocidente, mas
abriu um potencial para a descolonização do conhecimento ao desafiar
a "ego-política do conhecimento" cartesiana das ciências ocidentais,
opondo-lhe a "geopolítica e a corpo-política do conhecimento" dos
sujeitos subalternos (GOSFROGUEL, 2006, p. 32)

A proposta de um olhar descolonizador e afrocentrado sobre a


epistemologia opõem-se aos mitos da objetividade e neutralidade, que
contribuíram para invisibilizar e deslegitimar quem fala e a partir de qual corpo e
espaço epistêmico nas relações de poder se fala. Machado (2014) ressalta que
a descolonização da filosofia implica sua ressignificação, onde a filosofia está a
serviço da ética e o indivíduo é o bem maior.
A ruptura no processo de reflexão e apreensão da realidade com
referenciais epistemológicos eurocêntricos pode representar grande avanço à
compreensão do fenômeno saúde. Breilh (2006) destaca que o conhecimento
em saúde que almeja ser transdisciplinar e relacional e pretende converter-se
em uma narrativa de emancipação,
deve assimilar todo conhecimento emancipador proveniente das
diversas fontes do saber – o conhecimento acadêmico, a ciência
ancestral dos povos (“ciência do concreto”, no sentido proposto por
Lévi-Strauss) e até o saber comum, sistematizado pelas coletividade
urbanas e rurais – e extrair desse acúmulo de todas as fontes o que for
necessário para construir objetos/conceitos/campos de ação contra-
hegemônicos. (BREILH, 2006.p.55)

A necessidade de questionamento da ordem estabelecida na produção do


conhecimento no Brasil é apontada desde o século XIX por Tobias Barreto ao
afirmar que
o Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro: tem peçonha no
miolo. É preciso sujeitar-se à dolorosa operação da crítica de si
mesmo, do despego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de
conseguir uma cura radical. (TOBIAS BARRETO, 1874 Apud
MERCADANTE; PAIM, 1990).
Compreender a vivência cotidiana da população negra com o racismo
impõe ao pesquisador, imbuído de intencionalidade emancipatória na sua prática
de reflexão e produção do conhecimento, o imperativo ético e político de revisitar
o arcabouço teórico-metodológico produzido pelos povos de origem africana.

61
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
AFROCENTRADAS

Essa rica e pouco conhecida produção tem sido historicamente anulada pelo
racismo epistêmico que universaliza e legitima as concepções eurocêntricas de
análise dos fenômenos sociais.
Nesse sentido, a compreensão dos valores africanos de referência e
identidade, que se configuram como importantes pressupostos na afirmação da
cultura afro-brasileira. Para articular e recuperar esses valores utilizados na
construção do habitus2 afro-brasileiro, faz-se necessário uma orientação
afrocentrada na pesquisa e no pensamento (ASANTE, 1980).
A filosofia africana apresenta um caráter espacial ao conceber que “um
pensamento não pode existir sem saber de que lugar se origina, qual caminho
de origem e qual destino seguir. É necessário saber de onde pisa para dialogar
com outras construções de caminhos (SANTOS, 2010, p.7).
A ancestralidade permeia a filosofia africana, que tem como preocupação
fundamental o indivíduo, a natureza e também a comunidade. Wiredu (1980)
chama a filosofia africana tradicional de “pensamento de comunidade” e diz que “ele
não é criação especifica de um filósofo” (WIREDU, 1980, p.46-47). Para este autor
o pensamento é propriedade comum e pertence a toda a humanidade.
Cunha (2010, p. 82) considera o pensamento filosófico africano como:
formas filosóficas de refletir e ensinar e aprender sobre as relações dos
seres da natureza, do cosmo e da existência humana, são filosofias
pragmáticas da solução dos problemas da vida na terra,
profundamente ligados ao existir e compor o equilíbrio de forças da
continuidade saudável destas existências, sempre na dinâmica dos
conflitos e das possibilidades de serem postas em equilíbrio. A
contradição e a negociação. Os problemas da existência física e
espiritual fundamentam-se nos da existência de uma totalidade que
governa as gerações e que permite a continuidade dinâmica da vida
pela interferência humana. São formas de pensar, tomadas dos mitos,
dos provérbios, dos compromissos sociais que formam uma ética
social, refletem, inscrevem [...], registrado na oralidade os
condicionantes da existência humana, da formação social, das
relações de poder e justiça, da continuidade da vida. A natureza como
respeito profundo a vida.

Nesse conceito podemos perceber como a alteridade age, nela Oliveira


(2006) destaca que “o diagrama da filosofia africana é construído no plano
horizontal de solidariedade”. Nesse plano, o princípio da circularidade se faz

2
Categoria proposta por Bourdieu (2003) que explica que as percepções e os
sentidos atribuídos às manifestações fenomênicas da saúde dependem da posição que
os sujeitos ocupam nos diversos campos do espaço social e de suas relações, muitas
vezes de lutas e conflitos, mas também cooperativas e comunicativas (VIEIRA, 1999).
O habitus sintetiza a incorporação de elementos relativos a história coletiva e a trajetória
individual no inconsciente dos indivíduos, atuando como matriz de percepção e
classificação das práticas, como um operador prático que ajusta condições objetivas e
esperanças subjetivas (BREILH, 2006).

62
Roberto dos Santos Lacerda

presente, pois no círculo todos são incluídos e interagem entre si, considerando
a cumplicidade de indivíduo e natureza, pois “é o corpo da natureza que dará
corpo à vida [...]. Ela existe como condição da existência” (OLIVEIRA, 2007, p.
220-221). São os princípios da ancestralidade, da diversidade, da integração e
da tradição agindo e dimensionando tal filosofia (MACHADO, 2014).
Refletir a experiência humana na perspectiva africana requer a busca das
bases dessa filosofia. Uma categoria importante no pensamento africano é
ubuntu.
Portanto, ubu-ntu é uma categoria ontológica e epistemológica no
pensamento africano do povo de língua banta. É a indivisível unicidade
e inteireza da epistemologia e ontologia. Ubu é geralmente entendido
como a existência e pode ser dito como uma ontologia distinta.
Enquanto ntu é um ponto no qual a existência assume uma forma
concreta ou um modo de ser no processo contínuo de desdobramento
que pode ser epistemologicamente distinto. (RAMOSE, 1999)

Algumas ideias presentes na filosofia ubuntu nos aproximam da


compreensão da relação entre as pessoas nas comunidades afro-brasileiras.
Uma delas é a ideia da comunidade, de que pessoas dependem de outras
pessoas para serem pessoas, já que a ideia central do Ubuntu é “Eu sou, porque
nós somos”.
Percebemos nitidamente a diferença para a ideia europeia sobre a
natureza humana que tem na liberdade valor fundamental concebendo que
indivíduos tem o poder de escolha. Para o ethos do ubuntu, uma pessoa não só
é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os
seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para
com o meio ambiente e os seres não humanos.
É imprescindível destacar que as consequências das relações instituídas
entre os seres da natureza, animados e inanimados (nas sociedades africanas
tudo tem vida), constitui parte das filosofias africanas vindas das sociedades
ligadas às questões da ancestralidade, da identidade territorial e da transmissão
dos conhecimentos pelas palavras (CUNHA, 2010).
Nesse sentido, a afrocentricidade apresenta-se como uma abordagem
epistemológica inovadora na compreensão dos fenômenos relacionados à
construção identitária e consciência racial, fatores determinantes no combate ao
racismo.
Essa reflexão se faz pertinente tomando como premissa a realidade do
Brasil a partir de dois paradigmas civilizatórios que constituem a sociedade
brasileira, que produzem subjetividades: o paradigma ocidental e o negro-
africano (ALVES et. al., 2015).
Finch III e Nascimento (2006) ressaltam que o pensamento afrocêntrico,
tem seus primeiros registros a partir do século XVIII incluindo depoimentos de
africanos submetidos ao holocausto da escravatura mercantil europeia. Eles

63
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
AFROCENTRADAS

destacam relatos fatos relevantes tais como: a solicitação à justiça de retorno à


África feita por escravizados alforriados em 1773 em colônias inglesas dos
Estados Unidos; a publicação de obras abolicionistas por africanos
antiescravistas com propostas de melhor tratamento, libertação e indenização
do africano pelos danos sofridos.
No Brasil, Ferreira (2008) destaca a “Carta da escrava Esperança Garcia
do Piauí, escrita por ela mesma”. Trata-se de um texto dirigido ao Governador
da Capitania do Piauí apresentando as queixas contra o administrador das
fazendas reais. A carta tem importância para a derrubada do mito da
passividade, da convivência pacífica e da democracia racial dos escravizados
com os senhores no Brasil no cativeiro africano no país. (FERREIRA, 2008).
No século XX diversos ativistas e acadêmicos africanos e
afrodescendentes empenharam esforços para a consolidação do paradigma
afrocentrado para as questões relativas à África e à diáspora. Finch III &
Nascimento (2006) destacam o papel do senegalês Cheik Anta Diop, que ganhou
destaque ao iniciar o processo de “mudança de paradigmas” na forma que a
África era estudada. Destacam-se nesse período, W.E.B.Du Bois, Marcus
Garvey, importantes intelectuais e ativistas afro-americanos que empreenderam
esforços intelectuais e políticos para a mudança da ordem vigente de desprezo
e discriminação à cultura e experiência africana ao redor do mundo.
Os principais estudos iniciaram na década de 1960 em Núcleos de
Estudos Negros em algumas universidades nos Estados Unidos como tentativa
de formular teorias, abordagens e epistemologias originais numa perspectiva
negra opondo-se a naturalização e hegemonia das epistemologias eurocêntricas
acerca de questões africanas. No final da década de 1970, Molefi Asante
começou a falar sobre a necessidade de uma orientação afrocêntrica da
informação. Seus esforços resultaram na publicação do livro “Afrocentricidade:
a teoria da mudança social”, em 1980, seguido por “A ideia afrocêntrica” (1987)
e “Kemet, afrocentricidade e conhecimento” (1990) demarcam o território
epistemológico da afrocentricidade.
A afrocentricidade é definida por Asante como “um tipo de pensamento,
prática e perspectiva que percebe os africanos e seus descendentes como
sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e
de acordo com seus próprios interesses humanos. (ASANTE, 2009, P. 93).
Esse paradigma ampara-se na afirmativa que os africanos devem “operar
como agentes autoconscientes” de sua história, cuja autodefinição positiva e
assertiva deve partir da “cultura africana”. Essa perspectiva rompe com a ideia
de “neutralidade” de ideias, conceito e teorias ao considera-las produto de uma
matriz cultural e história particular. (MAZAMA, 2009, P. 111).
Um dos pontos marcantes da ideia afrocêntrica está na proposta
epistemológica do lugar. Asante (2006), destaca a importância da localização ao
refletir que,

64
Roberto dos Santos Lacerda

Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos,


econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas
condições em qualquer país seja feita com base em uma localização
centrada na África e sua diáspora. Começamos com a visão de que a
afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que
percebe os africanos como sujeitos agentes de fenômenos atuando
sobre sua própria imagem cultural de acordo com seus próprios
interesses humanos. (ASANTE, 2006, p. 93)

Nascimento (2009) ressalta que afrocentricidade trata-se de uma teoria


do centro, que ressalta a necessidade de demarcar localização do sujeito para
desenvolver um engajamento teórico próprio ao grupo social e fundamentado em
sua experiência histórica e cultural. Karenga (1998, p.404) define a
afrocentricidade como sendo “essencialmente uma qualidade de perspectiva ou
abordagem assentada na imagem cultural e no interesse africano”.
A afrocentricidade surge em oposição à supremacia branca, que se
expressou ao longo da história tanto como processo físico, marcado pela
violência e brutalidade nos processos de escravização e colonização europeia,
como na ocupação do psicológico e intelectual africano por meio da massificação
de ideias, teorias e conceitos europeus como naturais, universais e normais
(MAZAMA, 2009). Apesar de explicitar sua não pretensão à hegemonia, a
abordagem afrocentrada não contesta a validade do eurocentrismo para o
Ocidente, mas a sua pretensa universalidade hegemônica (NASCIMENTO,
2009).
De forma assertiva e direta, mas imprescindíveis para sua efetivação
frente à normatização eurocêntrica nos diversos campos, incluindo o acadêmico.
Para Mazama (2009, p.111) “nós africanos devemos operar como agentes
autoconscientes, não mais satisfeitos em ser definidos e manipulados de fora”.
Como um dos fundamentos para definição de localização do africano
como sujeito, faz-se necessário compreender um dos conceitos-chaves que
estruturam a afrocentricidade é o conceito de agência. Definido por Asante
(2006) como a capacidade de dispor de recursos psicológicos e culturais
necessários para o avanço da liberdade humana, esse conceito denota “a
capacidade de pensar, criar, agir, participar e transformar a sociedade por força
própria” (NASCIMENTO, 2009, p.192). Enfim, agente é “um ser humano capaz
de agir de forma independente em função de seus interesses”. Na linha oposta
a desagência é entendida como qualquer situação na qual o africano seja
descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo.
Na realidade brasileira, compreende-se que o paradigma civilizatório
negro-africano é formado pelo conjunto de elementos do complexo cultural
africano que inscreve em território brasileiro uma dinâmica civilizatória (LUZ,
2000; SANTOS, 2008; SODRÉ, 1988) mesmo diante do paradigma dominante
(ALVES, et. al 2015).

65
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
AFROCENTRADAS

O olhar afrocentrado no estudo das relações sociais, principalmente


acerca do impacto do racismo no Brasil perpassa pela necessidade de alinhar
epistemologia e análise dos fenômenos numa perspectiva emancipatória.
Diante do processo civilizatório brasileiro, é importante destacar a
impossibilidade de se pensar a afrocentricidade dissociada da alteridade, já que
o descendente africano no Brasil tem sua identidade formada, também, sob a
influência de valores branco-europeus e indígenas. Entretanto, a pertinência da
abordagem se ampara na necessidade de problematizar o padrão ocidental
como característica principal da “civilização brasileira”. Nesse hegemônico
ocidental, Nascimento (2003) reflete que a africanidade sempre é incluída nos
termos definidos por ele, ou seja,
uma africanidade identificada de forma irredutível com a escravidão,
eliminando-se a ideia de povos africanos soberanos, atores no palco
da história da civilização humana. Trata-se daquela africanidade
lúdica, limitada às esferas da música, da dança do futebol e da culinária
(NASCIMENTO, 2003, p.206).

A complexidade das questões raciais no Brasil só pode ser compreendida


a partir de um pensamento também complexo, capaz de estimular no
pesquisador um modo de pensamento aberto e flexível dentro de uma
perspectiva epistemológica integradora e abrangente capaz de romper com
propostas lineares e superficiais de produção do conhecimento, que concebem
o universo como uma “máquina determinística perfeita” (MORIN, 2005).
A análise das implicações, bem como as estratégias de combate ao
racismo, requer a superação da concepção reducionista e simplificadora
tradicional na das práticas humanas a fim de revelar a ordem simples a que eles
obedecem. Ciência, que comumente dilui a complexidade dos fenômenos e
Segundo Morin (2005), esse modo de traduzir a realidade, amparado pelo
paradigma cartesiano, tem por princípios a disjunção, redução, abstração e se
considera reflexo do que há de real na realidade apresentando consequências
mutiladoras, redutoras, unidimensionais e ofuscantes.
Para Santos (2002, p.10) o “Paradigma Dominante” é construído pela
racionalidade da ciência moderna e estabelece um “modelo totalitário” de
observar e compreender o mundo ao negar a racionalidade de todas as formas
de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas
regras metodológicas.
Esse paradigma pressupõe a separação entre ser humano e natureza;
visa a conhecer a natureza para dominá-la e controlá-la; assenta-se na redução
da complexidade; possui como pressupostos a ordem e a estabilidade do mundo
(MORIN, 2002A; 2003; 2005).

66
Roberto dos Santos Lacerda

O filósofo francês Georges Gusdorf, segundo Minayo (1991 p. 72), afirma


que a ciência moderna, pela fragmentação do saber, ignora “o ser humano como
ponto de partida e de chegada”, “desnaturaliza a natureza” e “desumaniza a
humanidade”.
O totalitarismo tendencial da ciência moderna produziu ideias e
concepções discriminatórias acerca de outras formas de se relacionar e
compreender os fenômenos. Carvalho (2013) aponta algumas consequências
desse processo, as quais, nitidamente, impactaram os povos afrobrasileiros
afirmando que
O arrogante pensamento domesticado, moderno, científico, que se
consolidou a partir do século XV, cercado de certezas, leis,
determinismos, causalidade, teleologias, deixou de lado a
preocupação com a totalidade, com a intuição, com o imaginário,
passando a se concentrar no entendimento do fragmento, da parte,
supondo que através deles seria possível atingir uma objetividade sem
parênteses. Com isso, virou as costas para o sujeito, para a incerteza
e para a complementaridade, privatizou terras e mares, considerou
magias e mitos como algo irracional, produto descartável criado pela
mente obscura de selvagens, ou por alucinações dos civilizados
(CARVALHO, 2013, p.40).

Ao refletir os limites da racionalidade capitalista e sua inerente produção


de escassez, para muitos, e desigualdades Milton Santos traz à tona formas de
resistência que os grupos excluídos desenvolvem, chamando atenção para o
fato que
Na esfera da racionalidade hegemônica, pequena margem é deixada
para a variedade, a criatividade, a espontaneidade. Enquanto isso, nas
outras esferas surgem contraracionalidades e racionalidades
paralelas, corriqueiramente chamadas de irracionalidades, mas que na
realidade constituem outras formas de racionalidade, produzidas e
mantidas pelos que estão "em baixo", sobretudo os pobres, que desse
modo conseguem escapar ao totalitarismo da racionalidade dominante
(SANTOS, 2000p.58)

Para Morin (2009, p.191) o pensamento complexo “permite avançar no


mundo concreto e real dos fenômenos. A perspectiva epistemológica do
pensamento complexo concebe a interrelação entre as partes e o todo. O
pensamento complexo prega que não se pode isolar os objetos uns dos outros.
A complexidade pressupõe a integração e o caráter multidimensional de
qualquer realidade. Morin diz ainda que “não podemos nunca escapar à
incerteza” e “estamos condenados ao pensamento inseguro, a um pensamento
crivado de buracos, um pensamento que não tem nenhum fundamento absoluto
de certeza”. (MORIN, 2009, p.100).

67
DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS
AFROCENTRADAS

A ideia de complexidade apresenta-se como um paradigma científico


alternativo (Almeida-Filho, 2005). Ao contrário da abordagem reducionista,
estática e dicotômica do positivismo cartesiano, que tem como objetivo uma
simplificação da realidade, a pesquisa científica deve respeitar a complexidade
inerente aos processos concretos da natureza, da sociedade e da história
(SANTOS, 1989, 2003). Morin (1995) destaca que devemos enfrentar a
complexidade antropossocial, e não a dissolver ou ocultá-la.
A utilização de uma abordagem afrocentrada e complexa nos permite
visualizar a multiplicidade de aspectos que permeiam uma análise profunda e
realista sobre o racismo. Além das relações de poder e dominação já abordadas,
questões políticas, econômicas, sociológica, de saúde, entre outras, configuram
a necessidade de outros olhares para o fenômeno.
O olhar afrocentrado nos permite enxergar além das narrativas
hegemônicas que, quase sempre, buscam manter as assimetrias nas relações
sociais, conferindo a população negra, quase sempre o papel de subalternidade.
Mudar a percepção da sociedade brasileira, e romper com as ideias
preconceituosas da herança intelectual colonialista é um desafio a ser
enfrentado pelas novas gerações de afro-brasileiros.
O posicionamento e escolha de epistemologias decoloniais e
afrocentradas é uma grande contribuição para a construção de uma sociedade
mais justa, igualitária e equânime. A abertura para abordagens ampliadas sobre
o fenômeno do racismo fará com que as ciências adotem a pluralidade e a
diversidade como princípios indispensáveis para a compreensão da “verdade” e
solução de problemas.

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71
CAPÍTULO 4

ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:


O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS
GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

Luciana Galante

T
oda sociedade humana tenta, de alguma forma, organizar e
classificar o mundo em que vive objetivando o estabelecimento da
ordem. Como a exigência da ordem está na base do pensamento
humano, sendo uma necessidade comum, a taxonomia que é a
organização por excelência responde, segundo Lévi-Strauss, a
necessidades intelectuais e cognitivas antes de satisfazer necessidades
utilitárias, assim “as espécies animais e vegetais não são conhecidas na medida
em que são úteis, elas são classificadas úteis ou interessantes porque são
primeiramente conhecidas” (LEVI-STRAUSS,1970, p.29).
Cabe aqui ressaltar que as taxonomias indígenas muitas vezes são
congruentes com a proposta por Lineu 1 mesmo porque este se refere aos

1 Carl von Linné (1707-1778) ou Lineu como é conhecido, foi um médico e naturalista
sueco, responsável por elaborar o sistema de classificação binomial. Considerado o pai da

72
Luciana Galante

Guarani como “primus verus systematicus” dando a esse povo o crédito pela
sua contribuição intelectual (GIANINNI, 1991). É possível ainda que ele tenha
comprovado a existência de taxonomias nativas para posteriormente
desenvolver o seu famoso sistema binomial pelo qual é reconhecido
mundialmente. Lineu possui uma declaração nada modesta e tipicamente
racionalista quando se refere à ciência taxonômica: “Se Deus criou a natureza,
fui eu quem colocou-a em ordem” (PÁLLSON, 2001).
Por outro lado, são inúmeros os sistemas de classificação e ordenação
elaborados por sociedades tradicionais2 que, baseando-se em sua cosmovisão,
diferem do sistema ocidental vigente no meio científico. Como esses sistemas
não se enquadram em categorias e subdivisões precisamente definidas como as
que a biologia tenta utilizar, eles vêm a ser um conjunto imbricado de plantas,
animais, caçadas, horticultura, espíritos, mitos, ritos, cantos, danças, etc.
(POSEY, 1987).
Um saber sistematicamente desenvolvido não pode estar apenas em
função de sua utilidade prática. A curiosidade é uma das molas propulsoras do
conhecimento, uma pré-condição à sua construção assim como para a
classificação em qualquer ciência. Mesmo em sociedades inseridas em
contextos adversos, como é o caso dos Guarani de Tekoá Pyaú, a curiosidade
é captada na sua essência. Assim como para a ciência moderna, os saberes
indígenas também implicam na introdução de um princípio de ordem no Universo
e qualquer que seja o sistema de classificação e ordenação, este é superior ao
caos e à desordem que nenhuma sociedade humana pode suportar
(LÉVISTRAUSS, 1970, p.29), portanto cabe-nos compreender os instrumentos
que as sociedades indígenas se munem para ordenar e perceber o universo em
que se inserem.

A comunidade
Inserida numa área diminuta de 2,5 hectares, a comunidade Guarani
Mbya de Tekoa Pyau (Aldeia Nova) conta atualmente com cerca de 98 famílias
e 380 moradores. Localizada entre uma rua e uma rodovia, no entorno do Parque

taxonomia moderna, publicou em 1758, sua obra Systema Naturae, um marco importante na
ciência. Nela, propõe o sistema de classificação e abrange 4.400 espécies de animais e 7.700
de plantas

2 Assim como Diegues e Arruda (2001) propuseram, o conceito de ` sociedades


tradicionais ' neste estudo é utilizado para “definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de
vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos
isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-
se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram
modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”.

73
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

Estadual Turístico do Jaraguá, a comunidade enfrenta uma série de dificuldades


em reproduzir suas características sócio-culturais.
Historicamente, a ocupação indígena nessa área é anterior à época da
conquista, em que grupos Tupi circulavam pela região. O nome Jaraguá é de
origem tupi (y= água + jará = senhor, senhora + kuara = esconderijo),
significando “esconderijo do dono/a da água”, referência provável às lagoas
encontradas na região. O topônimo também pode significar “esconderijo do
Senhor”, numa alusão presença da montanha no Parque Estadual, provável
morada de uma entidade Guarani.
A presença de uma forte liderança religiosa nesta comunidade, o pajé
José Fernandes, Karaí Poty3, parece ser o principal responsável por agregar
essa comunidade e sua chegada, em meados dos anos 90 foi decisiva para a
formação da aldeia. Detentor de uma ampla experiência sobre questões
territoriais e protagonista de outras disputas fundiárias, Xeramõi José Fernandes
era a pessoa certa para dar propulsão ao processo de demarcação da aldeia de
Tekoa Pyau.
Apesar da identificação como terra indígena desde 2003, a terra não está
demarcada. Recentemente, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) reconheceu
a ampliação dos limites da área e o processo está em trâmite. Entretanto, como
a área atual é extremamente pequena, muito populosa, com poucos recursos
naturais disponíveis, a comunidade procura outras formas de subsistir. Dessa
forma, o Parque Estadual do Jaraguá, é tido como uma referência quando se
trata da possibilidade de viver o nhanderekó, ou seja, o modo de ser plenamente
Guarani.

PLANTAS, MITOS E A ORDEM DO UNIVERSO


Grande parte das sociedades indígenas possui sistemas de classificação
atrelados aos mitos e expressos em ritos, cujo objetivo é atribuir sentido ao
mundo e à sua própria organização social. O pensamento mítico, além de conter
sistemas conceptuais, simbólicos e imaginários dessas sociedades, explicam os
fatos e trabalham para estabelecer a ordem.
É comum nos mitos o relato de que os seres não-humanos interagiam e
se comunicavam com os humanos através de uma linguagem comum até um
momento em que se distinguiram. Como diria Lévi-Strauss, “se perguntarmos a
um índio americano o significado de mito, é possível que ele responda que se

3 José Fernandes também é conhecido pelo apelido de Kamba Puku (negro) e por seu
outro nome Guyra Pepo (asa de pássaro).

74
Luciana Galante

trata de histórias do tempo em que os homens e os animais ainda não se


diferenciavam” (LÉVI-STRAUSS; ERIBON 1988, p.178).
Dessa forma, isolar o universo botânico Guarani de suas demais
concepções não faria muito sentido além de parecer inconcebível. O
conhecimento que encerram encontra-se sempre associado à sua esfera
religiosa, à conduta ética ou ao seu “entendimento”, como costumam dizer.
A predileção e o conhecimento sofisticado que os Guarani possuem sobre
determinados vegetais estão aparentemente pautadas pela sua cosmologia e, a
partir dessa premissa, torna-se razoável avaliar quais são as relações existentes
entre essas plantas e os mitos. Vale dizer que relacionar plantas/mitos requer
um esforço contínuo em compreender uma cosmologia que não é a nossa e,
longe de esgotar o assunto, não só devido à sua complexidade, mas também ao
acesso a esses elementos, muitas vezes restrito à apenas alguns membros.
Uma das categorias de plantas que merece destaque são as poã, ou seja,
as plantas medicinais. Estas parecem ter um domínio próprio, com elementos
específicos e são agrupadas em quatro categorias de acordo com sua
especificidade:
Poã araku: são os chamados “remédios quentes”, geralmente utilizados
no preparo de infusões indicadas para combater sintomas provocados por gripes
e resfriados;
Poã piro’y, são os “remédios frios” ou refrescantes, utilizados em
situações onde é preciso reanimar o doente após mal-estares e desmaios,
provavelmente com ação estimulante;
Poã guaxu, traduzido como “remédio grande”, são aqueles cujos atributos
vão além da eficácia no tratamento de diversas doenças, mas principalmente por
possuírem atributos sobrenaturais;
Poã pochy, considerados “remédios bravos”, utilizados em situações
críticas como “possessões” ou surtos psicóticos, descritos na literatura4 como
“demência”, são administrados em casos extremos, pois os efeitos são muito
fortes.
Outra categoria, denominada Ka’avo, cuja classificação ocorre através do
uso e distingue-se das demais, possui efeitos mágicos específicos
principalmente no que se refere às relações conjugais, como provocar
separações ou serem responsáveis por paixões lancinantes. Geralmente as
ervas pertencentes a esta categoria possuem nomes associados a animais,
como a ju’i ka’avo (erva da rã) ou churuku’a ka’avo (erva do surucuá). Godoy

4
Este termo é utilizado por Leon Cadogan em seu livro Ayvy Rapyta.

75
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

(2003, p.147) afirma que essa prática é sigilosa e que raramente as pessoas se
declaram socialmente. Cadogan cita a ka’avo tory, a erva da alegria, que espanta
a tristeza quando guardada. Esta planta teria surgido no mesmo momento do
nascimento do filho de Tupa Ru Ete e a pessoa deve levá-la “para que sua
conduta agrade a todos e para que seus semelhantes sejam felizes em sua
companhia” (CADOGAN, 1959, pp.139-140).
Como todas as plantas têm alma, essas também podem interferir na
produção do remédio e na cura do paciente. Dessa forma, existe uma série de
normas a serem obedecidas desde o momento em que se colhe a planta até o
preparo do remédio. E quando se vai coletar uma planta para preparar um
remédio, é importante que ela seja colhida na lua nova (jaxy pyau). Pedir licença
ao ja5, ou seja, o dono do recurso, também é uma condição para que se possa
utilizar a planta, não só no que se refere ao preparo de remédios, como também
para outros fins. Segundo os Guarani “todos os seres têm espírito, e tem o dono,
o ja: o jejyja é o dono do palmito, itaja1 é o dono da pedra, yyjá é o dono da água,
e assim por diante. Além disso, o batismo da planta torna-se importante para que
o dono (ja) autorize seu uso.
Várias plantas tiveram sua fauna associada descrita. A presença de larvas
(yxo) nos caules do jarakatia, pindó e takuá e os relatos detalhados de sua
ecologia são indicativos de que esses animais também faziam parte da culinária
Guarani.
Pássaro importante na cosmologia Guarani, o beija-flor (maino), é
considerado um mensageiro e seu vôo pode ser um prelúdio do que está por
acontecer. A predileção do beija-flor (maino) por uma planta denominada maino
kaguyjy, traduzida como “a chicha do beija-flor”, também indica uma observação
atenta não só para o animal ou a planta em si, mas do estabelecimento de
analogias entre animais-plantas-humanos, muito comum nas sociedades
ameríndias.
A ideia de que as plantas, os remédios, os animais entre outros recursos
foram deixados por Nhanderu para os Guarani utilizarem, é muito difundida
(LADEIRA, 2008; CADOGAN, 1959). Segundo relatos, Nhanderu deixou as
plantas próximas ao Guarani para serem utilizadas. Porém, como enfrentam
dificuldades em acessar os recursos devido à sua dispersão, explicam que Anhã
as colocou separadas umas das outras e em locais distantes.

5
A enorme difusão no continente americano da noção de espíritos “donos” dos animais,
plantas e outros não-humanos é bem conhecida. Esses espíritos, segundo Viveiros de Castro
(2002) são dotados de uma intencionalidade semelhante à humana, funcionando como
hipóstases das espécies a que estão associados, criando um campo intersubjetivo entre
humanos e não humanos.

76
Luciana Galante

Podemos perceber que esse universo é imbricado de elementos que


extrapolam a nossa razão e para tentar compreendê-lo foi necessário um
mergulho profundo num mundo povoado de símbolos e significados, o que me
levou a buscar na cosmologia Guarani a explicação para uma predileção por
certos vegetais.

A COSMOLOGIA E AS PLANTAS
Constantemente citadas, as palmeiras ocupam lugar de destaque na
cosmologia Guarani. O Pindó (Jerivá) é considerado a palmeira eterna, muitas
vezes denominada Pindovy6, a palmeira sagrada que formou os sustentáculos
da terra. Também acreditam que é no centro da terra (yvy mbyte), lugar onde
viveu originariamente a “nossa avó”, mãe de Kuaray e Jaxy, que se ergue a
palmeira milagrosa (CADOGAN, 1959, p.72). As palmeiras também podem
representar a nervura do nosso corpo (Godoy,2003), nos dando um exemplo que
parece próximo ao conceito de analogismo. (CADOGAN,1968 APUD GODOY,
2003) relata que para os Guarani, foram cinco as palmeiras eternas que
asseguraram a morada terrena, uma fixada no centro da terra e as outras
representando os quatro pontos cardeais: karaí – leste; tupã (trovão) – oeste;
yvyty porã (ventos bons) – norte e ara yma rapyta (tempo originário) - sul . Godoy
(ibidem) também atenta para a expressão pindó rupy gua, que traduzida
literalmente como “seguir o pindó”, mostra o quanto esse vegetal espelha a
sabedoria e a conduta Guarani.
A fruta do pindó, conhecida como guapytã surge diversas vezes nos mitos
como um dos alimentos preferido de Jaxy (Lua)7. Indicada pelos moradores de
Tekoá Pyau como a planta que “ajudou muito os Guarani antigo a sobreviver”, o
pindó é conhecido por todos e seu fruto, guapytã, consumido e muito apreciado.
As crianças ficam eufóricas quando encontram o fruto e costumam colhê-los para
consumo direto ou levá-los para casa para preparar um suco. O preparo do suco
do guapytã, consiste em escolher os melhores frutos, lavá-los, socá-los no pilão
e misturar um pouco de água. Muito saboroso e nutritivo, é preciso conhecer
bem a ecologia do Pindó para consumi-lo pois, segundo os moradores, “não é
qualquer fruto que é gostoso, tem que ser os que estão mais próximos à mata
fechada pois eles são mais doces, se está longe da mata o fruto fica aguado”.

6 Pindovy para Cadogan (1959:33) indica palmeira-azul, as palmeiras eternas, milagrosas


e indestrutíveis. O autor alerta que ovy seria a cor do céu e ju a cor do sol. Estas cores são
consideradas sagradas e emblemáticas das divindades, sendo indestrutíveis como o Sol e o Céu.

7
Esse mito segundo Ladeira (2008), amplamente difundido como o mito dos “gêmeos”
que descreve as aventuras e os feitos na terra pelos dois irmãos, foi apresentado em várias
versões reduzidas por Nimuendajú, Bartolomé, Cadogan e pela própria autora. Também coletei
alguns fragmentos deste mito.

77
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

Já o palmito do Pindó, apesar de ser identificado como o alimento preferido do


jacu, não deve ser consumido por humanos, pois, segundo relatos, “se você
comer o palmito do Pindó, você perde as forças...”.
No mito do dilúvio que narra a destruição de Yvy Tenondé (a primeira
terra), Karaí Jeupié (o senhor incestuoso), personagem principal desta
passagem, casa com sua tia paterna transgredindo contra Nhanderu Tenonde
(os primeiros pais). Quando as águas começam inundar a terra, Karaí Jeupié
nada até o Pindoju8 e descansa em seus ramos para, em seguida, dirigir-se à
sua futura morada pois após orar, cantar e dançar com fervor, consegue atingir
a perfeição e habitar entre os homens virtuosos e os deuses menores. No
entanto, alguns habitantes que “careceram de entendimento, transgrediram e se
inspiraram na má ciência” sofreram metempsicose 9 , transformando-se em
animais (CADOGAN, 1965, p.67).
Conta-se que a flecha feita do Pindó (u’y) é queimada e colocada ao lado
do amba (altar) na opy (casa de reza) representando a nervura do corpo da
árvore que, sob efeito da tatachina (fumaça) revela poderes sobre a sorte dos
fiéis.
Uma das palmeiras preferidas e que adquire uma importância
fundamental na subsistência Guarani é o jejy (Juçara), da qual extraem o
palmito. Consumido tradicionalmente com o mel, essa planta foi e ainda é muito
comercializada devido à sua grande aceitação entre os juruá. No entanto, a
extração do jejy como alternativa econômica não é muito bem-vista, embora
muitos a pratiquem mesmo a contragosto. Esse fato deve-se não à legislação
ambiental que proíbe essa prática, mas principalmente por ser pautada pelo
reconhecimento e respeito a uma entidade que os guaranis denominam jejyja, o
dono do palmito.
A ideia de que a extração desenfreada da planta pode provocar a ira de
seu dono, causando inúmeros males ao transgressor, é muito difundida, o que
consequentemente leva à regulação da extração deste recurso. Godoy
(ibidem:90-107) afirma que a exploração do jejy tem exigido dos Guarani uma
grande dívida com relação ao jejyja. Alguns acidentes que atingem os cortadores
de palmito como quedas, ferimentos, dores na coluna ou fadiga, também são

8
Atento para o fato de o sufixo ju estar relacionado a mitologia, indicando a origem
cósmica da planta, uma vez que ju indica amarelo, ou seja, a cor resplandecente do sol,
traduzindo o conceito de eterno, indestrutível, milagroso, semelhante ao Pindovy (CADOGAN,
1959, p.33).

9
Metempsicose é a crença na transmigração da alma de um corpo para outro. Os Guarani
acreditam que após a morte o corpo também pode transmutar, atribuindo ao fenômeno o termo
jepota..

78
Luciana Galante

atribuídos ao jejyja10. Talvez uma forma de aliviar a “dívida” seja realizar o plantio
de mudas, prática comum realizada próximo às residências. Os “berçários de
jejy”, como são conhecidos, são importantes para que o recurso não acabe.
As plantas da família Bignoniaceae, pertencentes ao gênero Tabebuia são
amplamente citadas e classificadas como Tajy. Cadogan (1965: 53) relata a
presença do tadjy no mito da criação numa passagem em que a planta marca “o
surgimento dos ventos novos e do espaço novo”, caracterizando a chegada da
primavera. Numa outra passagem mítica, o tajy é considerado a árvore que
possui a “alma mais feroz” e mesmo quando sua madeira é cortada em pedaços,
sua alma não desaparece. Os moradores afirmam que “a alma do tadjy é brabo”
e, dessa forma, sua madeira não é utilizada na construção das casas, pois
certamente sua alma ameaçaria os moradores.
Quando uma árvore de alma indócil fere alguém, os que possuem a “boa
ciência” são os únicos que conseguem extrair o mal, que costuma materializar-
se através de pedras, vermes, gravetos ou folhas que são extraídas do paciente.
A cura pode se realizar somente após o contato do xamã com as entidades, pois
estas o informam sobre o mal que afeta o paciente. Essas plantas de “alma
brava” também podem ser castigadas por entidades como Tupã e Jakaira que,
furiosos, lançam-lhes raios. Os seres invisíveis 11 , que também podem ser
responsáveis pelas enfermidades, sofrem a mesma punição
(Cadogan,1959:102).
Uma das plantas que merece atenção é o pety (tabaco). Utilizado
diariamente através do petynguá, cachimbo feito com nó de cedro, além de fazer
parte do cotidiano, tem seu lugar certo nos momentos ritualísticos. Ao produzir a
tatachina (fumaça), o pety purifica o corpo, deixando-o livre das imperfeições. Na
filosofia Mbyá, Pa’i rete Kuaray (Sol) deixou alguns preceitos a serem seguidos
para que os Guarani não levassem uma existência dolorosa nessa “terra
imperfeita”. Um desses preceitos é o ato de “desinfetar a primeira peça de caça
com a fumaça do tabaco”, pois se assim não fizerem, ao consumi-la, podem
adquirir mal-estar, enfermidades e imperfeições.
Criado por Jakairá, o pety foi dado aos Mbyá para que pudessem se
defender de males como as enfermidades e os seres malévolos. No relato mítico
colhido por Cadogan (1959:61-68) que narra a substituição de Yvy Tenonde, a
primeira terra (destruída pelo dilúvio), por Yvy Pyau (a nova terra), cuja existência

10
Também verifiquei a influência desta entidade através do relato de algumas mulheres.
Quando estas se queixavam sobre o fato de que muitos homens “vão cortar palmito e arrumam
outra mulher”, resposabilizavam o “jejyja” pela atitude masculina.
11 Cadogan os denomina “duendes malévolos”.

79
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

efêmera já está predestinada (como o lugar por onde os homens passarão por
provações), o tabaco assume um papel fundamental que é o de reproduzir a
tatachina ambojaity (neblina vivificante), soprada por Jakaira sobre todos os
seres verdadeiros que circularam pelo caminho da imperfeição. O nome religioso
da fumaça do tabaco, empregado em rituais é tatachina reko achy, a neblina
mortal, imperfeita, possivelmente uma alusão à substituição à tatachina
ambojaity, a neblina vivificante:
Mi tierra ya contiene presagios de infortunio para nuestros
hijos hasta la postrer generación: ello no obstante,
esparciré sobre ella mi neblina vivificante; las llamas
sagradas, la neblina ha de esparcir sobre todos los seres
verdaderos que circularán por los caminos de la
imperfeición. Yo crearé el tabaco y la pipa para que
nuestros hijos puedan defenderse. Yo iluminaré
mansamente com mis relámpagos sin trueno la totalidad de
los valles situados entre las selvas” (CADOGAN, 1965,
p.69).

Durante as cerimônias religiosas é comum a opy ficar repleta de fumaça


oriunda dos inúmeros petyngua em ação. Os auxiliares de Xeramoi sopram a
tatachina sobre o ambá (altar) no início dos rituais e também sobre a cabeça das
pessoas presentes, o que mostra que a ação da fumaça do tabaco, assim como
o sopro de Jakairá atua como agente purificante tornando-se imprescindível.
Nas reuniões, durante uma boa conversa ao redor da fogueira ou mesmo
nos momentos de contemplação, o petynguá está sempre presente. A palavra
(nheé) parece fluir muito melhor assim. Afinal, os que seguem arandu porã, o
bom entendimento ou a boa ciência, estão sempre “pronunciando boas orações
e espalhando a neblina” (CADOGAN,1959, p. 91).
Considerada a árvore geradora de todas as árvores, o yary (cedro) tem
um importante significado na cosmologia Mbyá. Por destilar uma seiva, no início
da primavera, recebe o nome de Jasuka venda (lugar de Jasuka) e nessa seiva
inspirou-se o autor ou a autora da metáfora “fluido das árvores da palavra-alma”,
afinal é do cedro que “flui a palavra” (yvyra ne’ery). Conta-se que depois do
dilúvio, suas sementes deram origem a toda a diversidade de vegetais hoje
conhecida (CADOGAN, 1971, p.25, APUD CHAMORRO, 2008).
Tido como poã guaxu (remédio grande), o yary também possui lugar na
medicina tradicional, assumindo um prestígio grandioso. Considerado vegetal de
alma dócil, não é à toa que a “árvore de Nhamandu” é utilizada na confecção do
petynguá. Certamente, a associação do cedro com o tabaco garante aos
Guarani maiores possibilidades de seguirem o arandu porã “ o bom caminho ou
o bom entendimento” e atingirem aguyje (perfeição). O yary também é utilizado

80
Luciana Galante

na confecção de outros instrumentos rituais além do petynguá, entre eles, a


barca (apyka), o violino (rave) e a vara (popygua), utilizada no batismo ritual e
que representa a “vara insígnia”, que Nhanderu ete utilizou na criação do mundo.
A yy karai (água sagrada) é colocada na apyka e esta é feita com cedro
pois de acordo com Schaden (1969, p.130), o uso de sua casca na água batismal
pode dar mais força a esta. A presença do cedro se torna indispensável, pois o
portador da vara insígnia, símbolo da masculinidade, denominado yvyraija (dono
da varinha) conduz a cerimônia e nomeia os presentes, colocando a água sobre
suas frontes.
Outra planta cuja alma também é considerada dócil é o aju’y. Este vegetal
pertence à família das Lauráceas cuja característica principal é a produção de
óleos essenciais. Utilizada no preparo de um poã piro’y, ou seja, “um remédio
frio”, é indicada para restabelecer as pessoas após mal-estares e desmaios.
A presença do peguaó (caeté), também é marcante no mito dos gêmeos,
pois enquanto a mãe caminhava perdida pela terra, Kuaray, ainda em seu ventre,
pedia a ela que colhesse algumas flores pelo caminho para que ele pudesse
brincar, sendo uma delas a flor do peguaó. Também utilizado na medicina, para
aplacar dores abdominais podendo ser misturada ao mate, a planta faz parte do
cotidiano pois suas folhas servem para enrolar o bodjapé um alimento tradicional
semelhante à pamonha.
O nhandyta (jenipapo) surge no mito dos gêmeos no momento em que
Jaxy transgride o tabu do incesto ao se relacionar com a tia materna. Na versão
coletada por Cadogan, Jaxy faz chover para que as manchas em seu rosto -
provocadas pela tinta do jenipapo, aplicadas por sua tia - desapareçam. É assim
que na Lua nova, Jaxy tenta livrar-se das manchas fazendo chover, fato que,
segundo os Guarani, ocorre até o presente. Apesar de nunca ter presenciado o
uso desta planta durante minha permanência em campo, verifiquei que algumas
pessoas a cultivavam em seus quintais.
Outro vegetal que possui lugar cativo na cosmologia Guarani é o guembé,
um cipó muito difundido e utilizado na cultura material devido à sua resistência.
As plantas que são amplamente consumidas como o avati (milho) ou que tenham
caráter simbólico costumam ser batizadas, pois somente assim o ja (dono)
autoriza sua utilização. Com o guembé não seria diferente, apesar de que o ritual
de “batismo do guembé nem sempre é realizado”, como contou-me um morador.
A planta marca presença no mito que narra a história de Pa’i Rete Kuaray
(o senhor do corpo resplandecente como o sol), muitas vezes mencionado
apenas como Kuaray o irmão mais velho da saga dos “gêmeos”. O guembepi foi
usado para laçar os pássaros caçados por Kuaray. O pássaro denominado jayry
(também chamado jaku changue), espécie de jacu que possui coloração

81
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

vermelha no peito, apresenta esta cor “pois foi laçado pelo guembepi fresco cuja
coloração também é vermelha”.
Também nas raízes do guembé vive uma cigarra denominada guapo’y ou
guembe paje, que junto com a mamangava e o colibri, adquire o status de um
amuleto importante na aquisição de valor ou “entendimento”. Um dos meus
colaboradores informou que “é só ir lá ver pra saber que é verdade mesmo”, o
que leva a crer que essa prática ainda deve ser realizada.
Várias frutas são citadas no mito dos “gêmeos”, pois enquanto caminham
após os jaguares terem devorado sua mãe, Jaxy, o irmão mais novo de Kuaray,
fica o tempo todo perguntando o nome das frutas que encontra pelo caminho.
Como é muito inocente ou “bobo” como falam os Guarani, seu irmão mais velho
tem que explicar tudo, inclusive como ele deve proceder para consumi – las além
de “ficar o tempo todo consertando as besteiras que ele faz”.
O guavirá (gabiroba) é citado com frequência no mito, onde Kuaray
adverte Jaxy que a fruta lhe dará vermes se ele não desinfetá-las antes de
comer. Chama a atenção o fato de os Guarani classificarem essa planta em
quatro etnoespécies: guavira, guavirá regua, guavira’i e guavira pyta, mostrando
que há uma relação intrínseca entre o conhecimento de certas espécies vegetais
à predileção que as divindades possuem sobre estas. Uma das formas de
identificar o guavira na ausência de frutos é a aparência de seu tronco, pois “a
casca fica descascando”. Também utilizada na medicina Guarani, as folhas são
empregadas no preparo de um chá antidiarreico.
O aguaí que também tem seu lugar no mito, foi descrito por um morador
como uma planta cujos frutos são agradáveis ao paladar, mas que carece de
cuidados para serem consumidos. A planta aparece como matéria-prima onde
suas sementes aliadas ao mingau de milho, foram utilizadas por Kuaray na
reconstrução de sua mãe e também na construção de seu irmão Jaxy. Há uma
passagem em que os irmãos caminham pelas margens opostas de um rio, Jaxy
aponta para o aguaí e pergunta a seu irmão que fruta é Kuaray pede que ele a
descreva e, sem vê-la, pois, conforme relatos “ele fala o nome das plantas sem
olhar para elas”, consegue identificá-la. Em seguida, alerta Jaxy para que acenda
o fogo e asse o fruto, pois não pode comê-lo cru. Também pede a Jaxy que
pegue as sementes e coloque-as no fogo apertando-as com seu arco, o que
parece ser uma brincadeira típica de irmãos, já que as sementes estalam muito
e Jaxy, assustado com o barulho, acaba dando um salto e cai na mesma margem
em que se encontrava o irmão.
Apesar de não se ter informações sobre o uso do timbó pelos Guarani na
atualidade, a origem da planta foi relatada por um dos moradores como filho de
uma importante entidade. Antigamente, quando os Guarani não conseguiam
pescar, Nhanderu orientouos que bastaria banhar as crianças no rio para os

82
Luciana Galante

peixes boiarem, facilitando assim a pesca. Anhã, entidade que inveja os Guarani,
ao ver uma mulher banhando o filho no rio, pegou o menino e o bateu na pedra,
transformando-o em timbó.
Há uma outra versão deste mito em que a criança é identificada como filha
de Pa’i (Kuaray). Vendo Kuaray pescar facilmente quando lavava os pés da
criança no rio, Charia ou Anhã pediu o menino emprestado para que também
pudesse pescar e o golpeou várias vezes como se faz com o timbó, matando-o.
Kuaray, enfurecido, lutou com Anhã e ambos caíram. Como Anhã não podia
vencê-lo, acabou derrotado e Kuaray levantou-se. O resultado dessa luta seria
representado pelos eclipses solares (Kuaray oñeama). Metaforicamente filho de
uma divindade, o timbó assume posição relevante no imaginário. Seu caráter
humano, sugere que se estabeleça uma relação diferenciada com a planta onde
todo cuidado é necessário ao manuseá-la (CADOGAN, 1959, pp. 81-82).
Emblematicamente feminina, a takua é utilizada na produção de
artesanato e de um importante artefato religioso denominado takuapu, bastão
que marca o ritmo durante as cerimônias. Assim como o cedro representa a
masculinidade através da “vara insígnia”, a takua, representada através do
takuapu, é uma planta femina por excelência. Muitos nomes femininos são
compostos por Takua e o bastão é utilizado nos rituais exclusivamente pelas
mulheres onde estas marcam o ritmo batendo-o no chão.
O Avati (milho), além de ser um alimento básico na cultura Guarani
também possui atributos divinos. Afinal, afirmam que, Kuaray criou Jaxy a partir
de um grão de milho. A colheita do milho costuma coincidir com a chegada de
ara pyau e a realização do nheemongaraí com o consequente benzimento da
planta. Se há fartura dos frutos, este é um momento de reunir as pessoas e fazer,
oferecer e consumir uma série de alimentos tradicionais: o mbojape (pão de
milho socado), mbyta (pão de milho ralado), mbaipy (polenta) e kaguyjy (bebida
fermentada de milho).
Lamentavelmente, Tekoa Pyau não conta com área suficiente para
produção de grandes roças e as famílias quando cultivam, limitam-se num
espaço muito reduzido produzindo uma quantidade ínfima de alimento, o que
seria insuficiente para disponibilizar nos rituais. Nesse caso, a única solução é
adquirir os produtos, entre eles o milho, externamente, o que leva a comunidade
depender da produção dos jurua para comprá-los. Inclusive o kaguyjy, bebida
tradicionalmente fermentada a partir do milho, costuma ser feito com fubá pois
nem sempre há milho disponível para sua produção.
Largamente consumida no cotidiano o ka’a (mate) tem presença certa
durante os rituais e é de extrema importância na cultura Guarani. A planta
adquire seu caráter sagrado por estar diretamente associada às divindades e
sua origem cósmica sugere que “foi criada por Nhanderu para que os Guarani

83
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

pudessem tomar”. Segundo relatos, Nhanderu morava com sua esposa, mas
não havia crianças na casa. Para alegrar a casa, criou om pedaços de cedro,
Para-miri, uma menininha. Esta ficava passeando pela casa e, a cada vez que
esta urinava, nascia uma erva-mate no lugar.
A erva, também é batizada e entre os meses de agosto e setembro, ocorre
o “Ka’a nheemongaraí” ritual que marca a chegada de ara pyau (tempo novo).
As folhas são amarradas ao redor da opy para secarem e posteriormente
colocadas sobre o fogo para completar a secagem. Segundo informações, este
é um momento importante, pois “o mate fala com o Xeramoi”. É através do
crepitar12 que o mate envia mensagens ao Xeramoi que as interpreta e faz as
previsões para ara pyau (o tempo novo).
A profecia nada favorável do ka’a, bem como sua associação à escassez
de recursos naturais, soa como um alerta. As queixas em relação à falta de
recursos naturais são recorrentes bem como sua associação com a
impossibilidade de “se viver plenamente como Guarani”. Também são
constantes as manifestações de descontentamento com o modo de vida dos
juruá e aproveitam esses momentos para mostrar aos jurua seus equívocos e a
urgência em apresentar novas propostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os Guarani costumam dizer que o conhecimento ou o “entendimento” não
é algo que se aprende nos bancos escolares ou através da educação oficial. As
experiências pessoais e a liberdade para vivenciá-las são uma condição que
permeia o seu modo de ser plenamente Guarani. Assim, toda a relação com o
ambiente que o cerca é pautada pela vivência. Apesar de existirem preceitos a
serem seguidos e uma conduta ética muito bem estipulada, é através da
vivência, com as crianças imitando os adultos e através da experimentação que
o indivíduo se constrói e passa a ter domínio sobre si próprio.
Seu universo cosmológico bem como a educação e saúde estão
completamente imbricados, caminham juntos, não havendo fragmentação entre
essas instâncias da vida. A relação com o ambiente natural, especificamente
com a Mata Atlântica, é marcada pela reverência. Afinal, é lá que estão os seres
que regem influências e poderes sobre a comunidade, interferindo diretamente
em suas vidas.
Dessa forma, é preciso saber ler os códigos, identificar os sinais e
interpretá-los. Para isso, é necessário estar atento, aberto e sensível a um

12
Uma entidade denominada Tataendy reapy ja, ou seja, o dono do ruído do crepitar das chamas
cuja manifestação está associada à primavera, indica que o crepitar é uma forma de a entidade
estabelecer comunicação com os xamãs.

84
Luciana Galante

universo que tem suas próprias regras e que para nós, juruá (brancos), encontra-
se cada vez mais distante. Esta parece ser a principal proposta desse povo:
exercitar os sentidos, reverenciar e respeitar os demais seres vivos, sejam eles
humanos ou não-humanos e, assim, estabelecer novas possibilidades de
coexistência, garantindo sua manutenção física e cultural e também a
biodiversidade.

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85
ENTRE PLANTAS E ENTIDADES:
O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem. Cosac


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Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:


ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO
ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA
NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

E
m 2004, num ato simbólico, 70 estudantes negros se
acorrentaram frente a Universidade de São Paulo, reivindicando
a adoção de uma política de cotas e outras medidas que
ampliassem o acesso ao ensino superior. Este ato remete ao
período escravocrata no qual as correntes faziam parte do
cotidiano dos bisavôs desses estudantes, que hoje anseiam
ocupar um espaço que antes lhes era estranho (MOEHLECKE, 2004).
Com a reivindicação de cotas raciais nas universidades há o
reconhecimento explícito da discriminação, evidenciando uma emergência na
adoção de medidas que reduzam as desigualdades provenientes de posturas
discriminatórias institucionalizadas. Contudo, quando se pensa em medidas de
ações afirmativas e, precisamente, cotas raciais, automaticamente nos

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ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS

esbarramos no campo jurídico e em sua retórica doutrinária para entendimento


do que venha a ser constitucional ou não, principalmente quando uma proposta
denota reestruturação de conceitos e tratos com temas tabus, a exemplo das
relações raciais brasileiras.
Assim, falar sobre o tratamento jurídico dispensado às relações raciais
no Brasil significa discutir a forma brasileira de juridicizar esse fato social. Há
diversas formas de ler um mesmo objeto, e o Direito utiliza as suas diversas
gramáticas (Direito Penal, Direito Civil, Direito do trabalho, Direito Comercial,
etc.) para a reconstrução e ressignificação dos fatos sociais.
As estratégias de juridicização, independentemente de quais sejam,
levam em consideração que os procedimentos de aplicação das normas
jurídicas sempre envolvem alguma indeterminação. Nesse sentido, o juiz não
pode ser compreendido como um mero técnico, a atividade de aplicação do
direito é um espaço de tomada de decisões que não está determinado pela lei.
No foro específico do trato acerca das desigualdades sociais e raciais os
juristas, estudiosos e profissionais do direito têm se empenhado em analisar o
sentido e alcance do Princípio Constitucional da Isonomia, previsto no caput do
art. 5º da Constituição Federal Brasileira (CFB) de 1988, com intuito de
esclarecer a constitucionalidade da aplicação das Políticas de Ações
Afirmativas (PAA). Dentre estas PAAs a política de cotas para negros nas
universidades é a que tem recebido maior atenção por ter gerado um maior
número de debates.
O objetivo do estudo é abordar a legislação brasileira no que se refere
as relações raciais, especificando uma discussão mais acurada acerca do
conceito de igualdade e aplicabilidade constitucional das políticas de cotas para
negros nas universidades públicas por meio de uma pesquisa empírica com
juristas, advogados e professores de direito.

PRECONCEITO RACIAL, RACISMO E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA


Conceitualmente, o preconceito racial e o racismo são compreendidos
como fenômenos distintos. O preconceito racial ou étnico é visto como
necessariamente negativo e, se caracteriza por uma atitude hostil, dirigida ao
membro de um grupo desvalorizado socialmente, pelo simples fato de
pertencer a esse grupo, associada à presunção de que esse membro teria as
mesmas qualidades atribuídas ao grupo de pertença (ALLPORT, 1954/1979).
O racismo, por sua vez, não se restringe aos aspectos atitudinais. Ele
engloba processos hierarquizadores de exclusão e discriminação social,
institucional e cultural (JONES, 1973), baseados em características físicas ou
fenotípicas dos grupos minoritários ressignificadas em características
psicológicas ou culturais. Possui, assim, um caráter essencialista e naturalista,

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Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

distinto do preconceito, que se restringe basicamente a atitudes contra


membros dos grupos minoritários (LIMA; VALA, 2004).
No Brasil, o racismo e o preconceito racial têm sua origem na escravidão
e a sua força pode ser medida pelo fato da escravidão ter dominado o País por
mais de três séculos (KALCKMANN; SANTOS; BATISTA; CRUZ, 2007). O
modelo das relações raciais pós-abolicionistas do Brasil mostra uma etiqueta
de distanciamento social e uma diferenciação no estatuto e nas possibilidades
econômicas entre negros e o restante da população, ressaltando o caráter
peculiar das relações raciais aqui existentes (LIMA; VALA, 2004).
As peculiaridades do seu contexto histórico e a suposta harmonia racial,
compreendida como cordialidade do povo brasileiro, permitiram a propagação
de uma crença na existência de uma democracia racial frente ao Estado
Democrático de Direito durante muito tempo. Entretanto, evidências históricas
assinalam esta utopia como “mito do paraíso racial”, contrariando o conceito
difundido por Gilberto Freyre, o qual caracterizava o Brasil como um país livre
de bloqueios institucionais para a igualdade entre raças, isento de preconceito
e discriminações raciais informais.
Assim, no decorrer dos séculos é possível perceber algumas
ambivalências jurídicas, oriundas das proibições legais de práticas culturais dos
negros e do crescente avanço no ordenamento jurídico no que se refere às
legislações que tratam da liberdade dos escravos e combate ao racismo. Entre
as legislações antiescravagistas destacamos:
A Lei nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, sancionada em 13 e maio de
1888 pela Princesa Imperial Regente, que declara em seu art. 1º “extinta desde
a data desta Lei a escravidão no Brasil” (Rio de Janeiro, 1888). Apesar das
cartas de alforria previstas em Lei, os negros, mulatos e mestiços eram
socialmente marginalizados, no Brasil colonial, praticamente desprovidos de
recursos financeiros e viviam em condições mais precárias que os escravos
(RUSSELL-WOOD, 2005).
Os negros libertos tinham sua integração e mobilidade social e
econômica restritas pela política da Coroa Portuguesa, dada tamanha
discriminação, estabelecida por leis, evidenciada pelos diversos regulamentos
relativos a porte de armas e códigos de vestimentas. O não cumprimento de
tais regulamentos, por parte dos negros libertos, era passível de punições
severas a exemplo de açoitamentos em público, para o porte de armas e do
confisco dos bens proibidos (joias ou adornos de ouro ou prata) ou pagamento
de multa no valor do artigo caso tivesse dinheiro, na impossibilidade de
pagamento receberia um açoite em público. Essas punições eram aplicadas na
primeira transgressão, em casos de reincidência a punição era o exílio pelo
resto da vida na Ilha de São Tomé (RUSSELL-WOOD, 2005).

89
ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS

O antigo regime persistia na mentalidade, no comportamento, na


organização das relações sociais e nas desigualdades entre brancos e negros
(MOEHLECKE, 2004). Florestan Fernandes em A Integração do negro na
sociedade de classes (1965/78) ressalta o racismo e as desigualdades raciais
existentes no país e questiona nossa suposta democracia racial, redefinida
como um mito, uma falsa realidade, que, paradoxalmente, contribui para
viabilizar sua própria efetivação. Salienta ainda que com o fim do sistema
escravista, a ordem racial permaneceu intacta, estabelecendo-se “uma espécie
de composição entre o passado e o presente, entre a sociedade de castas e a
sociedade de classes” (FERNANDES, 1978, p.248).
Por outro lado, somente após a abolição do regime escravocrata foi
possível cogitar instrumentos normativos em repúdio ao racismo (SILVEIRA,
2007). Assim, em 03 de julho de 1951 é editado o primeiro diploma
infraconstitucional que buscou combater a discriminação racial, a Lei nº 1.390,
conhecida como Lei Afonso Arinos, que incluiu entre as convenções penais a
prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor (RIO DE
JANEIRO, 1951).
Esta foi a primeira Lei Brasileira de punição ao racismo, editada sob a
vigência da Constituição de 1946, teve seu projeto de lei apresentado pelo
deputado mineiro Afonso Arinos de Melo Franco sob a justificativa:
[...] Urge, porém que o Poder legislativo adote medidas convenientes para que
as conclusões científicas tenham adequada aplicação na política do Governo.
As disposições da Constituição Federal e os preceitos dos acórdãos
internacionais de que participamos, referentes ao assunto, ficarão como
simples declarações platônicas se a lei ordinária não lhe vier dar forças de
regra obrigatória de direito. 5 – Por mais que se proclame a inexistência, entre
nós, do preconceito de raça, a verdade é que ele existe, e com perigosa
tendência a se ampliar. [...] é sabido que certas carreiras civis, como o corpo
diplomático, estão fechadas aos negros; que a Marinha e a Aeronáutica criam
injustificáveis dificuldades ao ingresso de negros nos corpos de oficiais e que
outras restrições existem, em vários setores da administração. 6 – Quando o
Estado, por seus agentes, oferece tal exemplo de odiosa discriminação,
vedada pela Lei Magna, não é de se admirar que estabelecimentos comerciais
proíbam a entrada de negros nos seus recintos. [...] 9 – [...] Nada justifica, pois,
que continuemos disfarçadamente a fechar os olhos à prática de atos injustos
de discriminação racial que a ciência condena, a justiça repele, a Constituição
proíbe, e que podem conduzir a monstruosidade como os “progooms”hitleristas
ou a situações insolúveis como da grande massa negra norte-americana
(FRANCO, 1950, citado por SILVEIRA, 2007, p. 63).

Esta pauta veio adquirir ainda mais força com a Constituição da


República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, que em
seus dispositivos demonstrou repugnância ao racismo e quaisquer formas de
discriminação, além de prever o racismo como crime. Em consonância as

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Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

disposições da Constituição Federal Brasileira, em 05 de janeiro de 1989 foi


editada a Lei 7.716 de autoria do deputado Carlos Alberto Caó, que apresentou
o projeto de Lei nº 668 de 1988, com o objetivo de criminalizar a prática do
racismo. Esta Lei conhecida como Lei do Racismo e Lei Caó definiu os crimes
resultantes do preconceito de raça ou de cor ao classificar “a prática do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei” (BRASIL, 1988).
Por conseguinte, em 13 de maio de 1997 esta Lei foi alterada em seus
artigos 1º e 20º, pela Lei 9.459, e acrescida do parágrafo 3º ao art. 140 do
Código Penal Brasileiro qualificando “os crimes de injuria em atenção ao
repúdio do racismo, sendo então punidos, na forma desta Lei, os crimes
resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional” (BRASIL, 1989).
Para Silveira (2007), de acordo com o art. 1º da Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial,
discriminar significa promover qualquer tipo de exclusão, restrição ou
preferência, enquanto que o preconceito diz respeito à atitude, à esfera da
intimidade, precedendo a discriminação, funcionando como móvel da ação
discriminatória, tornando assim, junto ao dolo, o aspecto subjetivo do juízo de
tipicidades dos crimes raciais, não possuindo assim, isoladamente, relevância
penal.
Com a criação dos dois tipos penais, passaram a surgir mais registros
de ocorrências policiais e, consequentemente, mais processos criminais.
Todavia, algumas situações podem gerar dúvidas aos interpretes no que
compete ao enquadramento de condutas como crime previsto na Lei Caó ou
como injúria qualificada.
O critério adotado pelo Direito para a diferenciação das condutas diz
respeito ao alcance das expressões, gestos ou modos de exteriorização do
pensamento preconceituoso. O crime de preconceito e racismo destoa da
injuria na medida em que este remete a honra subjetiva da pessoa, e aquele é
manifestação de um sentimento em relação a uma raça (SANTOS, 2006).
Assim, um indivíduo que manifesta contra uma pessoa negra a
expressão “negão safado”, faz ofensa à honra subjetiva da vítima com base em
elementos preconceituosos, situação em que se enquadra como injúria
qualificada. No entanto, ao afirmar algo assemelhado a “tinha que ser preto
para fazer uma caca dessas…”, pratica-se o preconceito e racismo, pois atribui
características negativas ao indivíduo por pertencer a um determinado grupo.
Essa diferença é crucial para o entendimento jurídico e consequente
classificação do crime/pena, contudo no campo da Psicologia Social, ambas
são classificadas como formas de expressão do preconceito racial e racismo e,
que, portanto, seriam igualmente passíveis de punição baseada numa lei de
crime racial, o que parece estar por trás da “manobra jurídica” talvez sejam

91
ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS

formas de justificar e legitimar práticas discriminatórias (PEREIRA; VALA,


2011) usando-se da retórica e de artifícios legais.
Algo semelhante parece ocorrer quanto à análise da constitucionalidade
das políticas de cotas para negros nas universidades federais. A seguir será
exposto o processo de proposta e implantação das políticas de ações
afirmativas, precisamente as políticas de cotas nas universidades e o embate
quanto à constitucionalidade da sua implantação.

Ações afirmativas e discriminação positiva


Como vimos neste breve percurso histórico, as relações raciais no
contexto jurídico brasileiro passaram por diferentes desdobramentos. Em
consonância com Lima, Neves e Silva (2014), compreendemos as relações
raciais como um campo de particular interesse para estudar as percepções de
justiça e legitimação da ordem estabelecida, pela forte assimetria de poder e
dominação que as têm caracterizado ao longo da história.
Destacamos que a noção de discriminação é central tanto na
criminalização da prática do racismo como em outras discussões acerca das
relações raciais. Para Gomes (2002), é preciso uma ampla conscientização
sobre o fato de que a marginalização socioeconômica a que são relegadas as
minorias, especialmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a
discriminação.
A implantação das ações afirmativas se caracteriza pela assunção da
existência de discriminação contra as minorias raciais na sociedade brasileira,
apesar da peculiaridade do discurso nacional sobre as relações raciais.
Portanto, conceitualmente pode-se definir ações afirmativas como políticas
públicas (e privadas), voltadas à concretização do princípio constitucional de
igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de
gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física (GOMES, 2002).
A Índia foi pioneira na adoção de cotas no ensino superior no ano de
1930, promovendo o acesso dos Dalits a universidade. Na primeira constituição
indiana, em 1948, previam-se medidas especiais de promoção dos dalitsou
intocáveis (reserva de assentos) no parlamento, no ensino superior e no ensino
público.
Do mesmo modo diversos outros países da Europa Ocidental, Malásia, Sri
Lanka, Nigéria, África do Sul, Austrália, Canadá, Cuba, Argentina, Brasil e
Estados Unidos as ações afirmativas têm historicamente contemplado vários
setores sociais (MOEHLECKE, 2002; SOWELL, 2004).

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Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

Nesse sentido, podemos transpor a constatação de Kennedy1 quanto à


desigualdade vivida pelas pessoas negras na sociedade norte-americana para
o contexto das universidades públicas brasileiras, por exemplo. Pois, em 2005,
em pesquisa citada na assessoria de comunicação do MEC, apenas 1% de
professores negros atuava nas universidades públicas. Assim, observamos que
as leis supracitadas representam um avanço significativo na questão, mas não
são suficientes para combater as desigualdades nas relações raciais no Brasil.
Para isso é necessário agir positivamente, criar estratégias concretas e não
apenas condenar formalmente a discriminação.
A discriminação positiva é uma forma de estratégia concreta de combate
às desigualdades sociais. Conceitualmente diferente das ações afirmativas,
que visam incentivar e dar suporte aos grupos que necessitam (ex. curso pré-
vestibular para negros e estudantes de escolas públicas), a discriminação
positiva estabelece o trato desigual aos desiguais com intuito de promover a
igualdade, de fato, entre os grupos (ex. reserva de vagas nas universidades
públicas para pessoas negras e provenientes de escolas públicas).
Atualmente no Brasil esta discussão está muito relacionada ao âmbito
educacional, mais especificamente à reserva de vagas para negros em
universidades públicas. Neste âmbito, a expressão “cotas numéricas” é
confundida como sinônimo de ação afirmativa, mas na verdade são apenas um
aspecto ou uma possibilidade. Porém, embora as ações afirmativas sejam mais
amplas, o sistema de cotas tem um impacto pedagógico muito importante no
nosso contexto, por se tratar de uma forma de discriminação positiva.
Para Lima, Neves e Silva (2014), as cotas estimulam o debate sobre
raça, racialidade, justiça e racismo numa sociedade que sempre pareceu
dormir no berço esplêndido do mito da democracia racial, permitindo assim um
avanço na compreensão do fenômeno do racismo no Brasil.
Contudo, apesar de não existir relação direta entre a atitude perante as
cotas para negros e o preconceito racial, Silva (2014) aponta que as atitudes
positivas e o preconceito flagrante estão positiva e significativamente
relacionadas a aceitação e maior atribuição de justiça a política de cotas, ao
passo que, maior pontuação em preconceito sutil e racismo estão
significativamente relacionados a uma menor aceitação e menor atribuição de

1
A origem das ações afirmativas nos Estados Unidos ocorre nos anos 1960, após diversos
movimentos sociais clamarem por igualdades raciais e sociais. Fazendo com que o então
presidente John Kennedy constate, em um final de expediente e ao rodear a casa branca, que
não havia ali nenhum funcionário negro. Após tal constatação o presidente teria decidido
afirmar, ou seja, reconhecer a situação de desigualdade vivida pelas pessoas negras e tomar
uma medida positiva em vez de apenas condenar a discriminação por meio de leis formais que
declaravam os princípios de igualdade.

93
ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS

justiça à política de cotas. As atitudes negativas não estão significativamente


relacionadas a atribuição de justiça a política de cotas.
Os resultados apontaram para uma possível existência de conflitos
ambivalentes pelo fato de concomitante às expressões de atitudes
explicitamente contrárias aos negros, ocorre uma adesão ao discurso
compartilhado da necessidade de proporcionar um trato igualitário aos grupos
no acesso a bens materiais e simbólicos, a exemplo do acesso ao ensino
superior. Pode ser explicada devido à necessidade de preservação de uma
autoimagem positiva de si. Assim, por mais que haja uma maior expressão do
preconceito flagrante e direto, por outro, tenta-se minimizar tal efeito
mostrando-se benevolente para com os grupos minoritários discriminados
(neste caso os negros) (SILVA, 2014).
Essa temática complexa suscitou diversos posicionamentos e
apreciações divergentes no plano jurídico, bem como discussões impactantes
no plano social. A Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de
Brasília (UnB) foram as primeiras universidades públicas brasileiras a
instituírem um sistema de cotas, a partir de 2003, afirmando os direitos
fundamentais e sociais de todos e o princípio de igualdade que parece
inquestionável (BAYMA, 2012). Entretanto, neste âmbito, a noção de igualdade
parece ter mais de uma interpretação.
Segundo Gomes (2002), o cerne da questão reside em saber se, na
implementação do princípio constitucional da igualdade, o Estado deve
assegurar apenas uma certa neutralidade processual ou, ao contrário, se sua
ação deve se encaminhar para a realização de uma igualdade de resultados ou
igualdade material.
Para o autor, enquanto a concepção de igualdade formal não leva em
conta os fatores que antecedem a entrada dos indivíduos no mercado
competitivo, contrariamente, a igualdade dos resultados tem como nota
característica exatamente a preocupação com fatores externos à luta
competitiva, tais como classe ou origem social.
A perspectiva “ideal-típica” de meritocracia, que defende uma suposta
igualdade de oportunidade a todos, pode ser entendida como uma ideologia
que, por trás da defesa do mérito individual, esconde e camufla uma prática
discriminatória de fato. Pois, como afirmam Zoninsein e Júnior (2008), as ações
afirmativas são um instrumento importante de promoção do mérito verdadeiro e
não da reprodução do privilégio disfarçado de mérito, isso porque o princípio de
seleção que opera, por exemplo, em cada cota, é o do mérito.
As sociedades que se apegaram ao conceito de igualdade apenas
“perante a lei” são aquelas em que se verificam os mais gritantes índices de
injustiça social o que levou à adoção de uma nova postura que já aparece na
constituição brasileira de 1988, como apresenta o autor:

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Patrícia da Silva
Camila Lima de Araújo
Luiza Lins Araújo Costa
José Andrade Santos

A constituição brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação,


afirmando a igualdade, mas permite também a utilização de medidas
que efetivamente implementem a igualdade material. Tem-se, assim,
uma concepção moderna e dinâmica do princípio constitucional da
igualdade, que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a
renunciar a sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento
ativo, positivo, afirmando, quase militante, na busca da concretização
da igualdade substancial (GOMES, 2002, p. 141).

Sarmento (2008) é ainda mais enfático ao determinar que a isonomia


tratada na Constituição brasileira é substancial, como visto no artigo 3º que
positiva os objetivos fundamentais da República: “construir uma sociedade
livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III) e” promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (inciso IV). Observa-se, ainda segundo Sarmento
(2008) que o constituinte empregou verbos de ação ao tratar da igualdade,
porque partiu da premissa que a igualdade não é um dado de realidade, mas
algo que deve ser construído (p.246).
Neste sentido, o conceito de igualdade se caracteriza pelo fato de não
se limitar a mera positivação legal, mas promover ações que visam uma
igualdade de fato, no futuro, possível mediante alterações na norma
(ZONINSEIN; JÚNIOR, 2008). Portanto, segundo Piovesan (2005), a igualdade
é assegurada, essencialmente, por “estratégias promocionais para estimular a
inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (p.36), não
apenas por legislação repressiva que proíba a discriminação.
Gomes (2003), conclui o amplo e diversificado respaldo jurídico às
medidas afirmativas, pois estas são práticas diferenciadas que permitem
compensar as desigualdades existentes e justificam-se em virtude de
discriminações impostas pela sociedade. Nesse sentido, em 26 de abril de
2012, mediante a Lei Federal 12.711, após anos de debate, a questão foi
julgada constitucional, por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal
Federal (BAYMA, 2012).
Assume-se então que as políticas públicas de ações afirmativas que
possibilitam o acesso às universidades não maculam o princípio constitucional
da isonomia, não havendo dúvidas quanto à sua viabilidade e restando, então,
escolher os critérios, as modalidades e as técnicas adaptáveis à nossa
realidade, cercando-as das devidas cautelas e debates sociais necessários
para essa implementação (BAYMA, 2012; GOMES, 2002).
Todavia, a despeito da unanimidade em que foi julgada a lei de cotas no
plano jurídico, permanecem as críticas e argumentos contrários à implantação
na sociedade. A experiência de implantação, antes do julgamento de

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ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS

constitucionalidade, gerou interpretações variadas e algumas polêmicas como


na Universidade de Brasília (UnB) que considerava o critério da
autodeclaração, mas realizava uma espécie de banca para avaliação desta
declaração. Em 2007, por exemplo, gêmeos univitelinos foram considerados de
raças diferentes, nesta banca da UnB, um deles foi considerado negro, o outro
não.
Diante de situações como essa, de acordo com a lei aprovada apenas a
autodeclaração deve ser o critério considerado, mas permanecem as
discussões sobre esse problema “metodológico” para a implantação das ações
afirmativas. Argumentos contrários afirmam a impossibilidade de caracterizar
quem seria negro no Brasil, devido a miscigenação da população como um
todo, ou ainda, respaldam-se na ideia de preconceito de classe e não de cor,
mitos legitimadores das assimetrias de poder entre brancos e negros que têm
como objetivo obliterar o caráter opressivo das relações raciais no Brasil
(OLIVEIRA Filho, 2009; LIMA; NEVES; SILVA, 2014).
As ações afirmativas têm contemplado vários setores sociais, como as
mulheres e os portadores de necessidades especiais, entretanto estes outros
setores não provocam calorosas discussões como no caso das cotas para
negros (SILVA, 2005; NEVES; LIMA, 2010) em que chegam a reconhecer que
o racismo e a discriminação racial inviabilizam a existência plena das pessoas
negras, mas as possíveis soluções, como a adoção de cotas, são combatidas
(SILVA, 2002).
Para Silva (2002), a dúvida sobre quem é negro no Brasil soa
estapafúrdia, pois é contraditório que as pessoas o saibam quando se trata de
preterir a pessoa negra por pressupostos e características raciais e que
ninguém saiba quando se trata de implementar ações que visem combater as
práticas discriminatórias presentes e enraizadas nas nossas relações sociais.
Nesse sentido, a discriminação não é um fenômeno do presente e nem
atua apenas sobre alguns indivíduos. Os efeitos persistentes do nosso
passado, nossa história de discriminação, são psicológicos, culturais,
comportamentais e impactam a sociedade como um todo, criando barreiras
artificiais e invisíveis que dificultam o avanço dos negros nessa sociedade
(GOMES, 2002).
Tais efeitos agem sobre todos os que nela estão inseridos, incluindo
aqueles que compõem os quadros burocráticos do Estado cuja missão é a
observação da lei e sua aplicação: os operadores de Direito, que estabelecem
uma compreensão da lei utilizando significados ou “teorias implícitas”
construídas em seu cotidiano (CIARALLO; ALMEIDA, 2009).
Desse modo, à luz das discussões supracitadas e considerando o
impacto da mentalidade coletiva, moldada pela tradição, pelos costumes e pela

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José Andrade Santos

história (GOMES, 2002), nas posições dos operadores, analisamos o


posicionamento de juristas, estudiosos e profissionais do direito quanto à
constitucionalidade da aplicação das políticas de ações afirmativas.
Foram realizadas entrevistas, antes do julgamento de
constitucionalidade das cotas realizado em 2012, nas quais foi perguntado a
profissionais que trabalham com Direito (magistrados, advogados, defensores
públicos, promotores e professores universitários) a opinião pessoal sobre: “O
que significa Justiça?”; “O que significa Igualdade?”; “Em que medida é
constitucional a aplicação das Políticas de Ações Afirmativas?” e; “Em que
medida é constitucional a aplicação da Política de Cotas para negros nas
Universidades Públicas?”.

ANÁLISES E DISCUSSÕES DOS DADOS


Participaram da pesquisa 19 profissionais, da cidade de Aracaju, que
trabalham com o direito, sendo 11 juízes; 01 promotor; 01 defensor público e
06 advogados. Quanto ao tempo de exercício profissional, apenas 05 tinham
menos de 10 anos e os demais entre 10 a mais de 20 anos. Destes, 11 eram
graduados, 06 especialistas e 02 mestres. As idades variavam dos 25 aos 70
anos. Quanto ao sexo foram 12 homens e 07 mulheres. No que se refere a cor
de pele 14 se declararam brancos, 02 negros e 03 outros (mulato, mestiço e
pardo).
No que se refere ao posicionamento favorável ou contrário as políticas
de ações afirmativas, as cotas sociais e as cotas raciais nas universidades
pública foi feita uma distribuição da frequência do posicionamento em relação
ao tipo de conceito de justiça e igualdade adotado. Vale salientar que os
conceitos de justiça e igualdade quanto a formalidade ou materialidade da sua
aplicação foram coerentes entre si, isto é, os que adotaram o conceito de
justiça formal também adotaram o conceito de igualdade formal, o mesmo
ocorreu em relação a adoção do conceito de justiça material/substancial e
igualdade material/substancial. Fato que denota uma coerência discursiva nos
conceitos ora pesquisados.
Pode-se perceber que dos profissionais contrários as P.A.A 04
apresentaram o conceito de justiça e igualdade formal, ao passo que os demais
(n=15) com posicionamentos favoráveis conceituaram justiça e igualdade no
sentindo substancial. Com isso, fica claro, ao menos, no que se refere as
políticas de ações afirmativas, uma relação direta entre os conceitos de justiça
e igualdades adotadas e o posicionamento favorável ou contrário a aplicação
de tais políticas.
No que se refere, as cotas sociais, foi percebida uma certa ambivalência.
Os que se posicionaram favoráveis as cotas sociais apenas 01 adotou os

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ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS
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conceitos de justiça e igualdade formal, ao passo que 04 adotaram o conceito


de justiça e igualdade material/substancial, já aqueles que se posicionaram
contrários as cotas sociais a grande maioria (n=11) adotou os conceitos de
justiça e igualdade material/substancial, o que indica uma certa inversão entre
os conceitos e adesão favorável a aplicação de medidas efetivas que visão pôr
em prática o que apregoa a teoria.
Algo semelhante ocorre, no que se refere, a aceitação da aplicabilidade
das cotas raciais, sendo que apenas 01 (um) que aderiu ao conceito de justiça
e igualdade material, antes era favorável a cotas sociais, passou a ser contrário
as cotas raciais. No mais, o padrão de respostas, para os que adotam os
conceitos formais de justiça e igualdade, permaneceu o mesmo, assim, 01
sendo favorável e 03 contrários a adoção de cotas raciais. Assim, para melhor
compreensão do fenômeno foram feitas perguntas abertas sobre os conceitos
de justiça e igualdade; o posicionamento em relação às políticas de ações
afirmativas e em relação às cotas sociais e raciais.
Conceitos de Justiça e Igualdade

Quadro 1 – Categorias sobre os conceitos de justiça e igualdade

Justiça Igualdade
Formal (04) Substancial (15) Formal (04) Substancial
(15)
“Dar a cada um o “Usar as “Ausência de “Tratar os iguais
que é seu” (We) ferramentas do qualquer tipo de de forma igual e
direito para discriminação” (Ce) os desiguais de
contemplar o “Tratar de forma forma desigual, na
interesse dos mais igual independente exata medida de
necessitados, do sexo, credo...” suas
daquele que mais (Pa). desigualdades”
precisa de justiça” (Mc).
(Ma).

Um menor número de participantes alegou que justiça significa “Dar a


cada um o que é seu” (We), portanto, na sua conceituação formal, sem fazer
qualquer distinção. O que aponta a um tipo específico de justiça baseada no
princípio meritocrático de posse. Contudo a grande maioria (15 participantes)
conceituou justiça no seu sentido substancial ou material, em que segundo Ma,
a justiça é “usar as ferramentas do direito para contemplar o interesse dos mais
necessitados, daquele que mais precisa de justiça” (Quadro 1).

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No que se refere ao conceito de igualdade a distribuição foi semelhante


à de justiça, quanto ao sentido formal ou substancial, como visto na tabela 2.
Os conceitos de igualdade parecem indicar algo mais pragmático, portanto, de
maior aplicabilidade, saindo da esfera abstrata do conceito de justiça, para
esfera pragmática do conceito de igualdade, a exemplo das falas de Ce e Pa,
respectivamente, “Ausência de qualquer tipo de discriminação” e “Tratar de
forma igual independente do sexo, credo…” ao especificar igualdade no seu
sentido mais formal ou ainda, na fala de Mc “Tratar os iguais de forma igual e
os desiguais de forma desigual, na exata medida de suas desigualdades”, que
estabelece o conceito de igualdade no sentido material ou substancial (Quadro
1). Interessante frisar que os mesmos que adotam o conceito de justiça formal
também adotam o conceito de igualdade formal, algo congruente, o mesmo
ocorre na adoção do conceito de justiça e igualdade material ou substancial.
Os conceitos estão congruentes entre si e denotam uma preocupação com a
lógica, algo realmente importante na doutrinária do direito.
Nosso objetivo, foi exatamente observar através da adoção conceitual
de justiça e igualdade avaliar o posicionamento desses profissionais quanto a
aplicabilidade e constitucionalidade das medidas de ações afirmativas no
âmbito geral e específicos (cotas sociais e cotas raciais).

Quadro 2 – Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das


Políticas de Ações afirmativas
Constitucionalidade das P. A. A.
Favorável (15) Contrário (04)
“Diante da desigualdade concreta, e na “Constituição...legitima...mas há opiniões
constituição há princípios que garantem contrárias...eu sou contrário” (Mc)
isso, que tratem desigualmente os “Quebra a desigualdade...mas acaba
desiguais de forma momentânea para gerando sectarismo” (Pa)
que eles tenham condições iguais, de “sim...pelo princípio da dignidade da
fato, para competir”(Si) pessoa humana” mas “o ideal seria
combater a causa pela raiz” (Ga)

No que se refere a análise quanto a constitucionalidade das políticas de


ações afirmativas (Quadro 2), a maioria é favorável inclusive ao salientar que a
constituição já assegura tais políticas com o objetivo de que “Diante da
desigualdade concreta, e na constituição há princípios que garantem isso, que
tratem desigualmente os desiguais de forma momentânea para que eles
tenham condições iguais, de fato, para competir” (Si).
Os que responderam contrários ao entendimento da constitucionalidade
das políticas de ações afirmativas, especificaram que apesar de existir

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ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA:
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UNIVERSIDADES PÚBLICAS

dispositivo constitucional discordam porque, a exemplo de Pa, “Quebra a


desigualdade...mas acaba gerando sectarismo” ou ainda segundo Ga é
constitucional “sim...pelo princípio da dignidade da pessoa humana” mas “o
ideal seria combater a causa pela raiz” (Quadro 1) Desta forma pode-se
perceber que há uma aceitação de que existem desigualdades reais, mas que
tais medidas afirmativas acabam por promover mais diferenças e não
resolveriam problemas de base.
Pode-se perceber que há uma consonância entre posicionamentos
formais do conceito de igualdade e justiça e a não aceitação da
constitucionalidade das políticas de ações afirmativas. Bem verdade que
conceituar material e substancialmente justiça e igualdade também conota
consonância com entendimento favorável a constitucionalidade das PAAs.
Desta forma, entender que justiça é dar a cada um o que é seu e tratar a
todos de forma igual sem distinção parece remeter a um posicionamento
contrário as políticas de ações afirmativas no seu sentido mais amplo. Ao
passo que o entendimento de justiça como algo reparador e proporcional e,
igualdade como algo que precisa ser promovido para que desiguais se tornem
iguais na medida da sua desigualdade, remete a um juízo de
constitucionalidade das PAAs.
De fato, os dados remetem a uma congruência entre conceitos e
atribuição de constitucionalidade às políticas de ações afirmativas no sentido
amplo, as vezes até inespecífico, contudo nos perguntamos será que essa
congruência se manterá quando inqueridos acerca da constitucionalidade das
cotas sociais e raciais das vagas nas universidades públicas? Logo abaixo
analisaremos os discursos dos participantes quanto aos seus posicionamentos.
Pode-se perceber, como visto na tabela 2, que houve uma inversão
quanto a distribuição em relação a aceitação das cotas sociais, se comparado
a aceitação as políticas de ações afirmativas, isto é, o número daqueles que
são favoráveis as cotas sociais reduziram drasticamente e os que mantiveram
o posicionamento favorável se empenharam em justificar a emergência do uso
da discriminação positiva com intuito de reduzir as desigualdades. Para
aqueles que se posicionaram contrários as cotas sociais, o discurso antes
igualitário no sentido material se torna formal na sua aplicabilidade, inclusive
com justificativas de outra ordem, que o importante é o empenho em melhorar
o ensino público proporcionando oportunidade de fato, pois com as cotas
sociais corre-se o risco de sucatear as universidades públicas, além, enfatizam,
de provocar o sectarismo entre cotistas e não-cotistas (Quadro 3).

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Quadro 3 - Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das


Políticas Cotas sociais nas universidades
Constitucionalidade das Cotas Sociais
Favorável (05) Contrário (14)
“o poder público está alicerçado no “o ideal seria combater a causa na
modelo oligárquico...as vagas nas raiz...então dá oportunidade na base ...
universidades ficaram nas mãos de uma pois pode comprometer a qualidade do
elite...melhor forma seria melhorar o ensino...sucatear a universidade” (Ga)
ensino público...mas o que fazer com os “provoca sectarismo entre cotistas e não-
jovens que hoje anseiam por entrar na cotistas” (Nc).
universidade?... tratar de forma
discriminativa para reduzir as
desigualdades”(Sy).

Vimos até agora que o discurso da necessidade de uma justiça e trato


igualitário entre os grupos na sua forma material pode ser aplicada em medidas
de ações afirmativas, no entanto, quando parte-se para esfera da discriminação
positiva, com ressalva para alguns grupos ou categorias sociais (ex.
deficientes), os conceitos retomam seu sentido formal, isso se pensarmos nas
cotas sociais, como seriam então esse discurso sobre a constitucionalidade
das cotas raciais?

Quadro 4 – Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das


Políticas cotas raciais nas universidades públicas
Constitucionalidade das Cotas Raciais
Favorável (04) Contrário (15)
“o que levou o legislador a conceder um “institucionaliza o racismo” (Ri)
tratamento diferenciado para mulheres e
deficientes...se respalda na constatação “hoje é muito conveniente se dizer afro-
que esses grupos...historicamente descendente...no momento que isso
sofreram discriminação no Brasil e em pode representar uma cadeira ou não na
função dessa não tiveram oportunidades universidade” (Mc)
de acesso...se transpormos para o
campo das discriminações raciais
veremos que a premissa é a mesma..”
(Sy)

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No que se refere, a avaliação da constitucionalidade das cotas raciais a


distribuição foi similar à vista nas cotas sociais, contudo as respostas são mais
contundentes, dado que aqueles que foram favoráveis a constitucionalidade
das cotas raciais tende a analisar a situação dos negros no Brasil de forma
análoga a dos demais grupos desprivilegiados e discriminados historicamente
(ex. mulheres e deficientes).
Contudo, aqueles que se posicionaram contrários a constitucionalidade
das cotas raciais, argumentam que seria uma forma de institucionalizar o
racismo ou que tal adoção permitiria a alguns (inescrupulosos) se identificar
como negros já que teriam alguma vantagem nessa identificação, o que remete
a ideia da difícil classificação racial no Brasil devido ao processo de
miscigenação.
Um dos entrevistados, autodeclarado negro, Juiz de direito, fez questão
de se posicionar de forma mais contundente ao declarar: “Minhas conquistas
pessoal e profissional não dependeram de medidas de ações afirmativas, não
sei se por felicidade ou não…mas eu sei o quanto sofri e não posso ver minha
situação pessoal como sendo uma regra o que de fato não é, de fato é uma
exceção, então me sinto confortável para fazer a defesa das PAA em relação
aos negros…porque os negros como eu não precisam sofrer para conquistar
seus objetivos para assegurar sua dignidade como pessoa humana que é
dever do Estado assegurar. É inaceitável viver no país em que há uma
probabilidade maior de um jovem negro permanecer pobre em relação ao
branco…” (Sy).
Pode-se inferir que na fala de Sy o componente identitário é
marcadamente um dos fatores que subjazem o posicionamento favorável as
cotas sejam de ordem social ou racial, essa assertiva corrobora os achados de
Silva (2005) sobre a correlação positiva entre identificação racial e
posicionamento favorável as políticas de cotas raciais nas universidades
públicas.

CONSIDERAÇÕES
Diante do exposto pode-se notar que os conceitos de Igualdade e
Justiça estão, na maioria dos discursos, pautados no sentido
substancial/material ao se estabelecer a necessidade de aplicar um trato
diferenciado entre os grupos com intuito de promover justiça aos mais
necessitados, assim, trata-se de maneira desigual os desiguais na medida da
sua desigualdade para que possam galgar uma igualdade com o grupo que
detém o poder. Um exemplo é assegurar uma defensoria pública para aqueles
que não têm recursos financeiros para contratar serviços advocatícios.

102
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Contudo ao transpor para a ideia de discriminação positiva, no sentido


mais pragmático dos conceitos de justiça e igualdade, ocorre uma retomada do
sentido formal, um tanto quanto pouco reflexivo e, aparentemente reduzido a
um discurso politicamente correto e ideal. Isto é, no campo conceitual e
abstrato é possível a adoção dos conceitos de igualdade e justiça material e
substancial, mas impensável transpor ao campo da aplicabilidade prática.
Segundo muitos dos profissionais do direito o posicionamento favorável
as P.A.A., são aceitáveis para aquelas já previstas em lei, portanto, imposta
coercitivamente. No entanto, ao tratar de cotas universitárias percebe-se que
os posicionamentos saem da esfera jurídica e se respaldam mais
contundentemente no campo político. Tendo em vista principalmente quando
questionados sobre as cotas raciais, os argumentos se sustentam na ideologia
da meritocracia, no mito da democracia racial e, portanto, na reprodução de um
discurso dominante constituinte de uma estrutura de poder, em que a alteração
das coisas, isto é, do status quo do grupo dominante gera uma distorção da
ordem social estabelecida até o momento.
Desta forma, o discurso igualitário tornou-se uma norma, que precisa de
uma reinterpretação hermenêutica, pois ficou no plano idealizado abstrato e
pouco viabilizado na prática. A retórica é perfeita e congruente, mesmo que
destoe da aplicabilidade prática, pois ter um discurso igualitário, no sentido
material, é reforçado por uma imagem positiva de si. As justificativas para não
aplicabilidade das cotas são perpassadas por argumentos legitimadores das
desigualdades, como princípio da meritocracia, termos, muitas vezes, usados
de forma indiscriminada e descontextualizada.
Contudo, acreditamos que, com o reconhecimento da
constitucionalidade das cotas raciais em 2012, dois anos após o início dessa
pesquisa, alguns posicionamentos aqui presentes seriam expressos de forma
diversa, pois alguns profissionais que se posicionavam contrários a adoção das
cotas sociais e raciais o eram porque esta não estava contemplada na
Constituição Federal Brasileira, isto é, não existia uma lei explícita sobre a
legitimação das cotas.
Para uma melhor compreensão do fenômeno seria interessante
repensar e, quem sabe, até replicar a pesquisa com intuito de verificar
diferentes desdobramentos e justificativas que por ventura possam surgir em
relação aos posicionamentos contrários à adoção das cotas sociais e raciais.

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julgamento das cotas. Ensaio: aval. pol. públ. Educ, 20 (75), 325-346, 2012.

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106
CAPÍTULO 6

AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE


TRABALHO1

Valdenice Portela Silva


Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

U
ma das esferas sociais onde há profunda desigualdade entre
mulheres e homens, negros e brancos, é o mercado de trabalho.
Isso, não apenas é constatado em dados referentes ao período de
transição do trabalho escravo para o trabalho livre (PASSOS
SUBRINHO, 2000), mas em diversos dados sobre a participação
da população negra brasileira no mercado de trabalho na década

1
Este capítulo consiste em parte da dissertação de mestrado “A discriminação da
mulher negra no setor industrial sergipano entre 2007 e 2014: Uma análise dos impactos
da norma de responsabilidade social empresarial”, defendida no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) no ano
de 2017. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES).

107
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

de 2000. Nestes dados, é possível verificar a distribuição das mulheres negras


no mercado de trabalho formal e informal e a situação de precariedade a que
elas duplamente se encontram (IBGE, 2014).
Negros e mulheres estão sujeitos a estas distorções desde o período da
colonização do Brasil. Os propósitos d’As Políticas de Ações Afirmativas são: a
redução das desigualdades de raça e gênero em relação às altas taxas de
desemprego, às diferenças salariais injustificadas e à falta de acesso aos postos
de maior visibilidade. Essas ações são uma forma de reduzir essas distorções.
Para entender a desigualdade, é necessário analisar inicialmente a
igualdade e os direitos humanos, a fim de alcançar meios que proporcionem às
mulheres e aos negros o respeito à diversidade através da isonomia de renda e
de condições de trabalho.
Existem três concepções centrais da igualdade: a) a igualdade formal, que
se reduz à fórmula ‘todos são iguais perante a lei’, fundamental para diminuição
de privilégios; b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social
e distributiva e é orientada pelos princípios sócios econômicos; e c) uma
igualdade substancial, orientada por um princípio de justiça mais amplo e
centrada no reconhecimento da identidade de gênero, raça, etnia, dentre outras
(PIOVESAN, 2005).
Neste capítulo, a partir de dados sobre desigualdades de raça e gênero
no mercado de trabalho, será abordado o período de transição do trabalho
escravo para o livre no Estado de Sergipe, nas décadas de 1850 a 1930, para,
logo depois, serem apresentados alguns dados da década de 2000 sobre
desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro.
Frente aos dados que serão apresentados e a constatação do fato de que
persistem as desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho brasileiro,
a discussão sobre ações afirmativas, neste artigo, tem o intuito de buscar
entender o que está sendo feito na esfera privada para reduzir as desigualdades
de raça e gênero no mercado de trabalho brasileiro.

DESIGUALDADES DE RAÇA E GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO


A propriedade de escravos se difundiu por todas as regiões e atividades
econômicas da província Sergipe Del Rey, ainda que não de forma homogênea.
A necessidade de mão de obra escrava dependia das necessidades da atividade
econômica desenvolvida na região. Nesse sentido, uma das regiões que mais
teve a participação de escravos (22,60%) e população livre (29,01%) foi a Mata
Sul na época formada pelos municípios de São Cristóvão, Estância, Santa Luzia,
Indiaroba e Itabaianinha (PASSOS SUBRINHO, 2000).
A relação da distribuição relativamente homogênea da população livre da
Província com a concentração relativa da população escravizada determinará

108
Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

não apenas os tipos de atividades econômicas desenvolvidas na época (a


pecuária, agricultura de subsistência e agro-indústria açucareira), mas a
substituição, após a derrocada da escravidão, da mão-de-obra escrava pela
livre. O que se percebe é que o tipo de atividade econômica desenvolvida na
região dependia da relação população livre e escrava. Em regiões com um
contingente maior de escravos em relação à população livre havia maior
probabilidade de desenvolvimento da agroindústria açucareira do que nas
regiões cujo contingente de população livre era maior.
A estrutura ocupacional da população escrava sergipana na segunda
metade do século XIX, conforme os dados do Censo de 1872 e as matrículas de
escravos de 1873 e de 1887, é representada por mapas que agrupam as
profissões exercidas pelos escravos desta época em certas categorias
profissionais (PASSOS SUBRINHO, 2000).
No ano de 1872 as profissões da população sergipana eram agrupadas
nas seguintes categorias: a) profissionais liberais, proprietários e outros,
religiosos, juízes, advogados, notários e escrivães, procuradores, oficiais de
justiça, médicos cirurgiões, farmacêuticos, parteiros, professores e homens de
letras, empregados públicos, militares, capitalistas e proprietários; b) marítimos
e pescadores; c) industriais e comerciantes; manufaturadores e fabricantes,
comerciantes, guarda-livros e caixeiros; d) artesãos de profissão declarada,
costureiras, canteiros, calceteiros, mineiros, cavoqueiros, operários em: metais,
madeiras, tecidos, edificações, couros e peles, tinturas, vestuários, chapéus e
calçados; e) agricultores, lavradores e criadores; f) criados e jornaleiros e; g) sem
profissão.
Dentre as ocupações, relacionadas acima, os escravos exerciam as
seguintes profissões: parteira, pescador, marítimo, artesãos (artistas e
costureiras), lavradores, jornaleiros e serviçais domésticos. A Província de
Sergipe, entre as Províncias do Nordeste, foi a que apresentou a mais alta
relação de escravos empregados na agricultura como lavradores (PASSOS
SUBRINHO, 2000).
Se a agricultura em 1872 foi a atividade econômica que mais empregou
escravos, “em segundo lugar foram os serviços domésticos que mais
empregaram escravo (a)s, com percentual de 11,47% praticamente igual à
média nacional.” (PASSOS SUBRINHO, 2000, p. 84).
Não apenas em Sergipe, mas nas demais regiões do Brasil constata-se
que da grande quantidade de mulheres negras que hoje se encontram ainda no
mercado de trabalho informal, a maioria é empregada doméstica (59,65%), com
baixa escolaridade, baixos salários, corroborando dados fartamente divulgados
pelos institutos de pesquisa do governo de organismos internacionais como a
OIT e a ONU Mulheres (IBGE, 2014).

109
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

Passos Subrinho (2000) concluirá, acerca das bases de dados usadas,


que o Censo de 1872 pode ser considerado uma fonte mais segura de
informações sobre a estrutura ocupacional da população escrava do que os
dados publicados na matrícula de 1873, isso pelo fato destes, ao serem
registrados pelos senhores de escravos, apresentam-se enviesados: para os
senhores não era viável, nessa época, acrescentar na matrícula uma profissão
que desvalorizasse seu escravo.
[...]. A matrícula de escravos foi um registro civil, de caráter nacional,
da população escrava, mas também tinha diversas implicações legais
e tributárias; por exemplo, não se podia legar ou vender escravos não
matriculados, já que a matrícula era a prova legal da condição servil.
Por outro lado, a matrícula de escravos seria a base para a elaboração
das listas dos escravos classificados para serem beneficiados pelo
“Fundo de Emancipação”. Nesse sentido, é provável que os senhores
fizessem declarações sobre a aptidão ao trabalho de seus escravos,
de forma a valorizá-los, evitando declarações como “sem profissão”,
ou ocupações que pudessem depreciar economicamente seus
escravos, como por exemplo, serviços domésticos (PASSOS
SUBRINHO, 2000, p.86).

A partir dos dados do censo de 1872 e da matrícula de 1873, percebe-se


que muito antes de ocorrer a abolição da escravatura, boa parte da população
escrava (69,5% no Censo de 1872 e 86,6% na Matrícula) estava empregada na
Agroindústria. De modo que, antes mesmo dos escravos serem libertos, tanto
nos censos demográficos como nos registros feitos pelos senhores de escravos,
a eles era atribuída uma profissão que após abolição, era possivelmente utilizada
por eles para a inserção no mercado de trabalho.
Os dados apresentados contestam a ideia de que os escravos eram todos
domésticos. Em Sergipe o que se tinha era uma sociedade com um número
relevante de escravos em outras atividades produtivas e sob o domínio daqueles
que detinham a maior parte da mão-de-obra escrava. De modo que, quando a
produção de açúcar caía, surgia o problema de organização de trabalho, ou seja,
de como permitir que esse contingente trabalhasse.
Observa-se que a formação do mercado de trabalho livre em Sergipe não
se deu da mesma forma do Oeste Paulista, onde a imigração europeia foi um
fator decisivo para o abastecimento de força de trabalho da grande lavoura
(DOMINGUES, 2008). Descartando a solução da imigração pelo Governo, “por
se entender tratar-se de um desperdício de recursos públicos, recursos que
deveriam ser direcionados preferencialmente ao crédito agrícola, à construção
de ferrovias e portos, subsídios às linhas de navegação a vapor ou,
genericamente, nos ‘auxílios da lavoura” (DOMINGUES, 2008, p. 199). Dessa
forma, foi adotada como estratégia para persuadir ou obrigar a população livre a
se engajar nos trabalhos agrícolas a coerção extra-econômica para o

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Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

fornecimento de força de trabalho como a “repressão à vagabundagem”. E, em


Sergipe tal fenômeno ocorreu no início da República. (PASSOS SUBRINHO,
2000).
O que as autoridades públicas entendiam como “vagabundagem”, nada
mais era do que a tentativa do liberto conduzir a sua própria vida, ao enxergar
na pequena plantação, ou em outras atividades consideradas pelo Estado como
marginais, a possibilidade de garantir sua subsistência e o acesso ao mercado
de bens, independentemente do controle senhorial, bem como o de recusar o
trabalho nos moldes das antigas relações escravistas (DOMIGUES, 2008).
Conclui-se, portanto, que a situação da população negra no Brasil retrata
uma realidade que não se encontra muito distante da vivida no período de
transição do trabalho escravo para o livre (BORGES, 2013). Na década de 2000,
“quanto à remuneração média, (…) a estrutura hierárquica, no que diz respeito
à raça e gênero, permanece: homens e mulheres brancos, homens negros e,
finalmente, mulheres negras” (BORGES, 2013, p.65).
A ideia que se tem a princípio é do posicionamento de homens e
mulheres, brancos e negros no mercado de trabalho não ser apenas de ordem
estrutural, relacionada às mudanças ocorridas nos últimos anos no modo de
produção; porque se assim fosse o processo de flexibilidade e precarização seria
suficiente para explicar o posicionamento de mulheres e negros no mercado de
trabalho. Há algo que vai além do observado e pode estar relacionado ao sistema
de crenças daqueles que constituem e administram este mercado determinando
quem deve fazer parte desta esfera social e de que forma e quem não deve.
O fato de que a discriminação pode determinar a desigualdade, e o quanto
esta tanto pode ser determinada por fatores “produtivos” (escolaridade,
experiência profissional, região de moradia e faixa etária) como “não produtivos”
(raça/gênero) é de extrema importância. Muitas vezes, a desigualdade de renda
no mercado de trabalho entre mulheres e homens é explicada por fatores “não
produtivos”, pois mesmo com alta escolaridade, a mulher, na maioria das vezes,
sequer chega próximo da renda do homem dentro do mercado de trabalho
(SOUZA; SALVATO; FRANÇA, 2013).
A discriminação abrange toda distinção, exclusão, restrição ou preferência
que tenha por objetivo prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de
condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Por esse
motivo, associa-se a discriminação à desigualdade.
O combate à discriminação é medida fundamental para que se garanta o
pleno exercício de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.
Cabendo, neste caso, combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Por isso, a

111
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial


prevê, no artigo 1o, parágrafo 4o, a possibilidade de “discriminação positiva”, ou
seja, “ação afirmativa”, a qual tem como principal objetivo a adoção de medidas
especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos a fim de promover a
igualdade não apenas racial mas de gênero, esta última por meio da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
(PIOVESAN, 2005).
Diferente do conceito de discriminação, que consiste no comportamento
de identificar ou prejudicar um grupo por conta da cor da pele ou do sexo, ou
seja, na ação de separar, isolar e/ou diferenciar, a discriminação positiva
“assegura aos grupos minoritários um trato, uma proteção institucional, para que
possam vislumbrar uma posição igualitária com os membros dos grupos
majoritários.” (DA SILVA, 2014, p.69). Assim, é por meio de ações afirmativas,
políticas públicas e/ou privadas, que se buscará a igualdade de oportunidades
reduzindo as desigualdades econômicas e sociais, para que se tente promover,
de fato, a “justiça social”.

AÇÕES AFIRMATIVAS DE EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA NO MERCADO


DE TRABALHO
De natureza multifacetada, as ações afirmativas não apenas são impostas
pelo estado, mas também por entidades privadas com objetivo de combater tanto
manifestações flagrantes de discriminação como a discriminação por impacto
desproporcional ou adverso2, seja através de normas de aplicação geral ou
específica, ou mediante mecanismos informais difusos e informais.
As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas)
voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade
material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de
gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua
compreensão a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio
jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo
constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela Sociedade.
(GOMES, 2005, p.51).

O termo ação afirmativa surge nos Estados Unidos na década de 1960,


em virtude das condições de vida da população negra, por meio de “medidas

2
Diferentemente da discriminação flagrante que consiste na discriminação
intencional, a discriminação por impacto desproporcional implica no uso de
procedimentos administrativos ou legais instituídos de forma aparentemente neutra,
mas que reproduzem desigualdade no acesso aos bens materiais, aos postos de
trabalho e aos espaços de poder e usufrutos de resultados econômicos (FILHO, 2008).

112
Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

especiais de proteção ou assistência” adotadas em um determinado período


(GOMES, 2005). Devido às controvérsias associadas ao termo é criada a uma
variedade de outros termos, tais como: Equidade no emprego, Discriminação
Positiva e Gerenciamento para diversidade, expressões que agradam a
empregadores e administradores. Entre as Convenções e Recomendações da
OIT que contribuíram para a implantação dessas “medidas protetivas” no século
XX e XXI em países desenvolvidos e subdesenvolvidos se encontra a
Convenção 111 da OIT, cujo decreto legislativo de n. 104 foi aprovado em 24 de
novembro de 1964. O art. 5o desta Convenção foi um dos primeiros de um tratado
internacional que permitiu a adoção de medidas de proteção ou assistência com
a intenção de atender pessoas reconhecidas como necessitadas destas de
medidas (TOMEI, 2005).
No Brasil, o primeiro registro de uma discussão sobre ações afirmativas é
datado de 1968. Na década de 1980 será formulado o projeto de lei n. 1332, de
1983, de autoria do deputado federal Abdias Nascimento, o qual propõe medidas
compensatórias para o afro-brasileiro após séculos de discriminação. Apesar de
o projeto não ter sido aprovado, as reivindicações permanecem, contribuindo
para criação da primeira política de cotas a nível nacional no ano de 1995
(TOMEI, 2005).
Embora o movimento de reparação dos danos causados à população com
base na cor negra tenha se consolidado na década de 1990. As políticas públicas
promovidas pelo Estado em relação à dimensão racial surgem com a política
imperial de estímulo à imigração de colonos brancos ao longo do século XIX,
que contribuiu para a elaboração da “Lei dos Dois Terços”, implantada na década
de 1930, para garantir a participação majoritária de trabalhadores brasileiros nas
empresas em funcionamento no Brasil em virtude de muitas firmas de
propriedade de imigrantes discriminarem os trabalhadores nativos, sobretudo em
São Paulo e nos Estados do Sul.
“A ação afirmativa opera em dois domínios: emprego e educação. Em
ambos os domínios o princípio subjacente é o mesmo: a ação afirmativa existe
quando uma organização utiliza recursos para garantir que as pessoas em
categorias designadas recebam tratamento justo” (CROSBY; KONRAD, 2002,
p.01, tradução nossa). Em outras palavras, é quando uma organização se
mobiliza com a finalidade de combater a discriminação no emprego, na educação
e de promover a igualdade de oportunidades.
Uma das metas das ações afirmativas consiste em implantar maior
“representatividade” dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de
atividade pública ou privada, tais como em posições de mando e prestígio no
mercado de trabalho onde determinados grupos são sub-representados, a fim
de eliminar as barreiras que emperram os avanços de negros e mulheres em
certos espaços sociais. No entanto, a solução deste problema não deve caber

113
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

apenas à esfera pública, mas envolver diversos atores da sociedade civil. De


modo que, entre as estratégias previstas, incluam-se mecanismos que
estimulem às empresas a buscarem pessoas de outro gênero e de grupos
étnicos e raciais específicos para comporem seus quadros.
As medidas de ações afirmativas se inserem num amplo espectro de
políticas que se estruturam em três categorias maiores: ações de divulgação e
recrutamento, de contratação e de promoção e metas para as políticas públicas
de aquisição. Alguns dos países que adotam tais medidas são os Estados
Unidos, Canadá, Índia, Malásia, Namíbia e Irlanda do Norte. No caso das metas
de contratação e promoção é criada uma comissão que fica responsável por
fiscalizar o trabalho das empresas por meio de relatórios anuais produzidos pelos
empregadores acerca da representação dos grupos beneficiários nos diversos
tipos de ocupações e faixas salariais (TOMEI, 2005).
Esse processo de automonitoramento da coleta de dados comparativos
de forma sistemática pelas empresas, por meio do qual a empresa fornece dados
acerca de quantos homens e mulheres, negros e brancos são empregados na
organização, por si já é considerada uma ação afirmativa.
No bojo desta discussão sobre ações afirmativas é importante observar,
primeiro que sua realização não cabe exclusivamente ao poder público e não se
reduz à política de cotas, pois se refere a esforços orientados e voluntários
empreendidos tanto pelo governo como por empregadores privados que tenham
por finalidade promover oportunidades iguais no mercado de trabalho
(GOMES,2005). Entretanto, não é viável a exportação de modelos de ação
afirmativa vigente em outros países sem a devida atenção às diferenças culturais
do local. Isso porque tais medidas preventivas não apenas afetam as políticas
de recursos humanos das empresas, mas para que essas estruturas se
desenvolvam é essencial tanto o envolvimento dos administradores como uma
boa comunicação entre administração e sindicatos (TOMEI, 2005).
Frente as desigualdades existentes entre homens e mulheres negras,
brancos e negros, no mercado de trabalho e a existência de estruturas de
discriminação que limitem as oportunidades destes grupos de exercerem
determinadas ocupações profissionais ou hierarquias de comando em setores
da economia, tais medidas preventivas estão voltadas para obtenção de
melhorias no posicionamento de grupos discriminados no emprego. Neste
sentido, a Ação Afirmativa pode ser associada à ideia de responsabilidade social
empresarial, pois ela tem como preocupação a redistribuição de poder e
recursos, enfatizando a importância de mudanças nas políticas e práticas
organizacionais.

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Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

NORMA DE RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL

É na segunda metade do século XX que se fortalece nos Estados Unidos


a ideia de uma atuação social das empresas. No início da década de 1950, surge
em algumas empresas a preocupação com as questões sociais e com o impacto
que as decisões empresariais têm sobre a vida de milhares de pessoas em
diversos lugares do mundo. Tais mudanças de atitudes empresariais, na época,
tinham também muito a ver com a pressão social sobre as empresas em relação
aos malefícios que estas causam sobre o meio ambiente e os consumidores.
Nessa época, pós-abolição, além do movimento pelos direitos civis nos Estados
Unidos, também surge o movimento feminista. Todos eles têm como principal
objetivo a reivindicação por igualdade de oportunidades entre homens,
mulheres, negro e brancos (MACHADO, 2012).
Surge, então, o que passa a ser conhecido como movimento ativista social
empresarial, que se intensifica como projeto político neoliberal, quando a
“empresa passa a ter suas funções ampliadas para além da mera produção de
bens e serviços e o consequente retorno de lucros. Essa responsabilização das
empresas foi denominada pelos teóricos estadunidenses como Corporate Social
Responsibility, ou em bom português Responsabilidade Social Empresarial
(RSE)” (MACHADO, 2012, p. 17-18).
A Responsabilidade Social Empresarial (RSE) pode ser entendida como
uma forma de gestão regida pela relação ética e de transparência da empresa
com o público com o qual se relaciona, bem como pelo estabelecimento de
metas compatíveis com o desenvolvimento sustentável, resguardando os
recursos ambientais e culturais, respeitando a diversidade e promovendo o
combate às desigualdades sociais (INSTITUTO ETHOS, 2013).
O campo da RSE se consolida com maior força no plano mundial na
década de 1990 por meio de organizações multilaterais como a Organização das
Nações Unidas (ONU). No Brasil, embora a RSE surja na década de 1980, ela
ganha sistematização e institucionalização na década de 1990, quando, em
1998, é criado o Instituto Ethos, a principal instituição difusora e promotora da
RSE no Brasil (MACHADO, 2012).
A atuação social da iniciativa privada no Brasil ocorre no século XX por
uma necessidade das indústrias de buscarem melhorar a produtividade dos seus
trabalhadores e amenizar o conflito entre capital e trabalho, ou seja, solucionar
problemas que o próprio sistema capitalista gera. O campo da ação social no
Brasil se desenvolve com a finalidade muito mais de atender as necessidades
do empregador do que a do empregado, já que aquele visava à melhoria das
condições de trabalho para aumentar a produtividade e, consequentemente, o
lucro. Nesta perspectiva, foram movimentos sociais, dentre eles o movimento

115
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

sindical e o movimento feminista que contribuíram para o fortalecimento da ação


social empresarial.
Com o surgimento, na década de 1980, do projeto político neoliberal, que
tinha como proposta a redução da participação do Estado na área social e
econômica, movimentos sociais como o movimento sindical “foram ofuscados
pela emergência de novas formas de ação coletiva na sociedade civil, tal como
o ‘terceiro setor’ e as ONGs” (MACHADO, 2012, p.30-31). Diante dos limites do
Estado e sua reconhecida incapacidade em dar conta de todos os problemas
sociais, reforça-se a necessidade de novos espaços públicos, novas formas de
parceria e mobilizações da parte de diferentes atores sociais e distintas
organizações da sociedade civil.
A fim de minimizar os impactos sociais das políticas neoliberais
implantadas no país, ONGs e Fundações Empresariais passam a vincular suas
ações no campo social com aspecto filantrópico e sem fins lucrativos. De modo
que, na década de 1980, entre as bandeiras levantadas pelo empresariado
brasileiro está o combate às desigualdades sociais e até a defesa das crianças
e adolescentes.
O processo de institucionalização das ações empresariais no campo
social é pautado em ações por normas e rotinas baseadas em regulamento e
códigos de condutas que devem ser adotados pelas empresas. Aos poucos,
conforme organizações empresariais voltadas para questão social são criadas,
a visão de filantropia cede lugar a uma visão mais integrada entre empresa e
sociedade. “O Instituto Ethos encampa os valores da mudança social de um
empresariado consciente de seu papel no desenvolvimento e econômico e social
nacional” (MACHADO, 2012, p.38).
Percebe-se, então, na década de 1990, uma mudança de visão de uma
parte do empresariado brasileiro que se inicia com a criação do Grupo de
Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e chega ao Instituto Ethos, criado em
1998 com a finalidade de sensibilizar as empresas para uma gestão socialmente
responsável, com o propósito de transformá-las em protagonistas de mudanças
sociais (MACHADO, 2012). Assim, a atitude inicialmente de filantropia é
substituída pela de responsabilidade social e empresarial decorrente da
necessidade de integração entre sociedade e empresa, ou melhor, de uma
rearticulação entre os valores sociais, políticos e éticos por parte do
empresariado brasileiro.
Historicamente, a substituição da atitude filantrópica pela
responsabilidade social empresarial não somente tem a ver com uma resistência
do empresariado brasileiro em relação à intervenção estatal no mercado, mas,
em especial, com as diversas pressões das classes trabalhadoras, e, mais tarde,
da sociedade civil, por meio de diversos outros movimentos sociais, que

116
Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

desencadearam uma mudança no posicionamento dos empresários em relação


à questão social (VARELLA, 2009).
Muito do que foi feito inicialmente pelo setor empresarial em relação à
melhoria das condições do ambiente de trabalho para os operários da indústria,
por exemplo, tem a ver com a necessidade que tinha o empresariado de
arrefecer os ânimos do movimento sindical brasileiro (MACHADO, 2012). No
decorrer do tempo, a ênfase estratégica que é dada à questão social contribuiu
para a ação social empresarial passar “a ser encarada dentro de uma
perspectiva de RSE, na qual o compromisso da empresa com a sociedade
extrapola o âmbito econômico-corporativo” (MACHADO, 2012, p. 50). Tais ações
se transformaram em ações coletivas, com envolvimento de ONGs e governo na
concepção e execução de políticas públicas.
Segundo a última atualização, datada de 22 de novembro de 2016, 538
empresas estão associadas ao Instituto Ethos, distribuídas em todos os estados
do país. Entre os estados de maior representatividade se encontram São Paulo
(52,04%), Rio de Janeiro (14,13%) e Minas Gerais (7,6%). Estados com menor
representatividade estão representados por Maranhão (0,19%), Amapá (0,37%),
Mato Grosso do Sul (0,37%), Pará (0,56%), Tocantins (0,56%) e Sergipe
(0,56%). Dentre as empresas associadas em Sergipe ao Ethos estão:
ENERGISA, INFOX e INFRAERO (INSTITUTO ETHOS, n.d.).
Com a finalidade de disseminar a prática da responsabilidade social
empresarial, entre as medidas preventivas promovidas pelo Instituto Ethos
estão: a produção de Publicações (incluindo manuais, guias, pesquisas, livros
ferramentas de gestão); exposição do balanço social de empresas (balanços
financeiros e atuação no campo social); o prêmio Ethos Valor que tem por
objetivo envolver docentes, grupos de pesquisa, estudantes e instituições de
ensino superior com a RSE e o UniEthos – Educação para a Responsabilidade
Social Empresarial e Desenvolvimento Sustentável – “associação independente,
sem fins lucrativos, dedicada integralmente à educação por meio do
desenvolvimento de estudos, pesquisas e capacitação em RSE.” (INSTITUTO
ETHOS, n.d.).
Como formulador de diretrizes para o campo da Responsabilidade Social
Empresarial (RSE) no Brasil, entre os documentos (ou manuais) produzidos pelo
Instituto Ethos no eixo sociais direcionados para a promoção equidade de gênero
e raça na esfera do trabalho encontram-se: O compromisso das empresas com
a valorização da mulher e O Compromisso das empresas com promoção da
igualdade racial, o primeiro publicado em 2004 e o segundo em 2006.
O Instituto Ethos por meio da publicação – O compromisso das empresas
com a valorização da mulher – tem como objetivo oferecer subsídios para que
as organizações brasileiras incorporem políticas de promoção de equidade entre

117
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

os gêneros em suas práticas de responsabilidade sociais cotidianas, isso tanto


para o público interno como para a comunidade e as demais empresas em seu
entorno.
Quanto ao compromisso que as empresas devem ter com a equidade
entre os gêneros, observa-se que o Censo Interno (Ver Anexo A) se assemelha
ao processo de automonitoramento de coleta de dados comparativos de forma
sistemática realizado pelas empresas dos Estados Unidos e outros países
(TOMEI, 2005), o que dá condições à empresa tanto de fornecer dados acerca
do quantitativo de homens e mulheres, negros e brancos empregados, como
meios de promover políticas internas relacionadas a redução das discriminações
salarial, ocupacional, de emprego e de acesso ao capital humano.
O manual O Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade
Racial (2006) tem por objetivo fomentar a discussão sobre a desigualdade racial
no meio empresarial por meio de propostas de superação do problema. Dessa
forma, além de apresentar dados sobre a situação da mulher negra como o
segmento mais desfavorecido da sociedade brasileira, os quais indicam um
quadro de evidente discriminação no mercado de trabalho, o manual também
contém a legislação antirracista e antissexista e recomendações para a
promoção da igualdade racial nas empresas brasileiras.
Entre as recomendações, constam: censo interno; políticas de promoção
de equidade para o público interno; políticas de saúde, bem-estar e proteção
contra a violência; compromissos com a comunidade e compromissos na cadeia
de negócios. Em relação ao compromisso das empresas com a igualdade racial
e entre as recomendações apresentadas pelo Ethos, encontram-se: censo
interno; sensibilização; fóruns de diálogo; comitê de diversidade; sustentação de
ações; cursos sobre diversidade; revisão de procedimentos; gestão de pessoas;
recrutamento diversificado; metas para a seleção e promoção; capacitação;
educação corporativa; acompanhamento; investimento social; diálogo com os
fornecedores; fornecedores negros; comunicação com diversidade; parcerias;
fóruns empresariais e oportunidades de negócios (Ver Anexo B).
Neste sentido, a responsabilidade social empresarial será
institucionalizador meio do Instituto Ethos, ou seja, da norma da
responsabilidade social empresarial que consistência prescrição de como os
empresários brasileiros devem se comportar em relação à questão social, bem
como medidas preventivas a serem tomadas para o alcance da promoção da
equidade de gênero e raça na esfera do trabalho.

118
Valdenice Portela Silva
Marcus Eugênio Oliveira Lima
Patrícia da Silva

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, foram analisados dados sobre desigualdades de raça e
gênero no mercado de trabalho, tomando o período de transição do trabalho
escravo para o livre no Estado de Sergipe como estudo de caso para discutir as
políticas de ações afirmativas no setor produtivo.
Uma questão que a literatura nos impõe é de que é preciso entender como
tais normas sociais podem ser utilizadas para a compreensão do comportamento
humano. No caso da Norma de Responsabilidade Social Empresarial, o modo
como ela nos auxilia na compreensão do comportamento do empresariado, ou
melhor, da cultura organizacional brasileira. Talvez isso possa ser observado
comparando as medidas preventivas de redução das desigualdades de gênero
e raça na esfera de trabalho de países como os Estados Unidos e o Brasil.
As normas sociais, por exemplo, possibilitam compreender a cultura de
um povo ou de um grupo, por meio das quais se apreende o comportamento
adotado por um indivíduo em função das normas estabelecidas pelo grupo. Em
contrapartida, da mesma forma que uma pessoa pode ajustar seu
comportamento às normas de um grupo, ela pode adotar uma atitude diferente.
Não é bem o que ocorre em relação à norma de responsabilidade social
empresarial proposta pelo Ethos, pois além de muitas empresas no Brasil não
se encontrarem associadas ao Instituto (em Sergipe apenas três empresas),
mesmo as empresas associadas nem sempre adotam as recomendações do
Instituto.
As normas sociais possuem também uma dimensão subjetiva, associada
à pressão social percebida, ou seja, referem-se à percepção do indivíduo com
relação à aprovação/reprovação de se realizar um comportamento (TORRES;
RODRIGUES, 2011). Elas “prescrevem como determinadas pessoas de um
certo grupo (p. ex. pessoas ocupando um determinado papel na sociedade) se
comportam para receber aprovação de seus colegas, ou para evitar sanções
sociais” (TORRES; RODRIGUES, 2011, p. 104). A compreensão do
funcionamento das normas sociais pode contribuir tanto para a construção de
um corpo teórico adequado para entender o comportamento social do brasileiro
como na adoção de modelos organizacionais advindos de outras culturas
(TORRES; RODRIGUES, 2011).
Se as normas sociais constituem a cultura de um povo, determinando o
comportamento social dos indivíduos que compõem um grupo social, entender
o que vem a ser a norma de responsabilidade social empresarial produzida pelo
Instituto Ethos, na década de 1990, é fator preponderante para prever e
descrever o comportamento do empresariado brasileiro acerca das
desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho. Contudo, como nem
todas as empresas brasileiras se associam ao Ethos, é pouco provável a

119
AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO

correlação entre redução da discriminação no mercado de trabalho brasileiro e


norma de responsabilidade social empresarial.
Mesmo com o surgimento de movimentos sociais como o feminista a
reivindicar direitos iguais entre homens e mulheres e pressionar empresários no
sentido de repensarem seus negócios além do aspecto econômico, a norma de
responsabilidade social empresarial parece ser insuficiente para reverter às
atitudes preconceituosas do empresariado brasileiro em relação a marcadores
sociais como de cor/raça, sexo, faixa etária entre outros. Por isso, é de suma
importância realizar estudos que avaliem de forma sistemática e longitudinal o
impacto da norma de responsabilidade social empresarial na redução da
discriminação contra mulheres e negros para aferir a discriminação no mercado
de trabalho, após a introdução da respectiva norma, com o propósito de analisar
o resultado das ações afirmativas no combate às desigualdades entre homens e
mulheres, brancos e negros no setor privado (TOMEI, 2005).

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122
CAPÍTULO 7

BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

Ionara Magalhães de Souza


Edna Maria de Araújo

A
compreensão do branco enquanto sujeito racializável, objeto de
pesquisa, revela-se como uma das transições históricas dos
estudos das relações étnico-raciais no âmbito científico. Isso
porque ao passo que o negro foi enfaticamente estudado,
dissecado, problematizado, símbolo de degeneração humana, ao
branco foi atribuída uma invisibilidade histórica, um lugar não
visitado, considerado este um ser não racializado. Nessa perspectiva, em 1957,
Guerreiro Ramos publicou sobre a “Patologia Social do Branco Brasileiro”, cuja
tônica correspondeu a problematizar o lugar histórico imputado ao negro

123
BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

enquanto tema e objeto de investigações, ao tempo em que o branco recebeu


uma invisibilidade sistêmica e pretensiosa.
Assim, a branquitude é compreendida aqui, como uma posição que
outorga, aos sujeitos brancos, privilégio no acesso aos recursos simbólicos e
materiais instaurados pelo colonialismo e imperialismo e sustentados na
contemporaneidade (SCHUCMAN, 2012).
As discussões sobre branquitude emergiram a partir da década de 1990
e foram impulsionadas pelos Critical Whiteness Studies (Estudos Críticos da
Branquitude), inicialmente desenvolvidos nos Estados Unidos e, posteriormente
na Inglaterra, África do Sul, Austrália e Brasil. Os estudos críticos da branquitude
sinalizam a importância de estudar os brancos com o propósito de evidenciar o
racismo, haja vista, a sua expressiva participação na manutenção e legitimação
de privilégios (SCHUCMAN, 2012). Para Ribeiro (2004), a compreensão da
sociedade e dos padrões de relações raciais dominantes transita
necessariamente pela construção histórica, social e o imaginário das identidades
consideradas brancas.
Os estudos sobre a identidade do branco são emergentes no contexto
brasileiro. No Brasil, pouquíssimos estudos foram publicados acerca da
branquitude. Destacam-se: Alberto Guerreiro Ramos (1995[1957]a); Edith Piza
(2002); César Rossatto; Verônica Gesser (2001); Maria Aparecida Bento (2002);
Liv Sovik (2004); Lúcio Alves de Oliveira (2007) e Lia Vainer Schucman (2012).
Analisar o poder da identidade racial branca no contexto brasileiro implica
extrapolar o racismo para além da dimensão interpessoal e realocá-lo na
dimensão de estruturas de poder sociais (SCHUCMAN, 2012).
A identidade racial do branco brasileiro instaura-se a partir das ideias
sobre branqueamento. A ideologia do branqueamento e a tentativa de alvejar a
pele e fazer do Brasil um país culto, civilizado, desenvolvido é produto da
branquitude construída pela elite branca brasileira. O branqueamento é um
processo histórico, uma manobra política e psicológica resultante do medo das
elites brasileiras face ao crescimento da população negra. Desse modo,
projetou-se uma sociedade calcada nos padrões estéticos, atitudes e valores do
branco com a consequente construção e assimilação de uma identidade étnico-
racial branca pelo negro (BENTO, 2002).
A ideologia do embranquecimento talvez seja uma das mais cruéis
expressões do racismo no Brasil; primeiro, favorece a falta de
identidade de uma raça imputando-lhe um outro modo de identificação
que não corresponde a sua essência e, ainda, a ideologia do
embranquecimento retira do cenário nacional a discussão da questão
racial, visto que defende a ideia de ausência de raças e faz apologia
da existência da cordialidade entre brancos e negros, excluindo a
possibilidade de conflitos. Contudo, apenas o branco é sinônimo de
valores positivos, desde os valores mais elementares do cotidiano,

124
Ionara Magalhães de Souza
Edna Maria de Araújo

como aqueles relacionados ao status social. Se o negro quiser fazer


parte do estrato superior deverá abdicar da sua raiz "inferior" e tomar-
se "branco" (SILVA, 2000).

As questões destacadas por Silva (2000) são deveras relevantes e


pontuais. Não obstante, é interessante salientar que o engenhoso processo de
branqueamento não produziu reflexos apenas nos sujeitos negros. As relações
de dominação e todo esse processo de branqueamento influenciou,
sobremaneira, e psicologicamente, a construção identitária dos sujeitos brancos
e esse processo de racialização do branco – identidade hegemônica, compõem
os estudos sobre branquitude.
A branquitude é considerada um símbolo de dominação (MALOMALO,
2014), o lugar da normatividade e do poder, do privilégio racial, econômico e
político (BENTO, 2002). Para Harris (1993), a branquitude é uma propriedade
sistematicamente sustentada pelo racismo estrutural, fundamentado em
representações racializadas em contextos de hierarquias de poder.
A branquitude sintetiza a racialidade neutra, não nomeada, caracterizada
pela invisibilidade histórica, falta de percepção do branco como ser racializado,
modelo paradigmático de aparência e de condição humana (PIZZA, 2002, p. 72).
O branco não se posiciona, não se racializa nem se reconhece como agente no
processo discriminatório, coloca-se numa posição de “invisibilidade”, sustentada
por estruturas de poder e privilégios sociais (BENTO, CARONE, 2002).
Entretanto, convém salientar que essa invisibilidade é relativa, haja vista que no
que diz respeito às vantagens sociais, econômicas, políticas os brancos
dominaram com exclusividade, não padeceram de invisibilidade, ao passo que
os negros estiveram alijados nos estratos sociais mais pobres, desprovidos de
direitos, violentados, subjugados e invisibilizados pelo estado de bem-estar
social.
Para Bento (2005), “a branquitude é território do silêncio, da negação, da
interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre outros, enfatizamos
que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais pleno da ideologia:
com sangue, ícones e calor”. A socióloga inglesa Ruth Frankenberg, define a
branquitude como “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a
si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir
ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (FRANKENBERG, 1999).
A identidade racial branca representa assim, uma forma de viver o mundo
assegurada por um sistema de hierarquia racial que silencia e privilegia material
e simbolicamente pessoas brancas, configurando o que Bento (2002) denomina
de pacto narcísico. O pacto narcísico consiste em acordos tácitos, alianças
intergrupais que lançam mão de mecanismos capazes de assegurar o sistema

125
BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

de dominação e privilégios. Neste pacto, contractua-se não falar de racismo e de


suas consequências para negros e brancos e nem responsabilizar os brancos
por todo o histórico de discriminação. Consequentemente, esse pacto produz o
isolamento branco e a interdição de negros em espaços de poder.
Nesse contexto, a raça opera como dispositivo que classifica, hierarquiza,
aloca sujeitos nas distribuições de recursos e dominação. Compreender a
branquitude implica compreender como se constroem essas estruturas de poder,
os efeitos e a materialidade sobre os quais sustentam as desigualdades raciais
(SCHUCMAN, 2012).
Na dinâmica das relações raciais, o branco é favorecido e,
simultaneamente, produtor ativo de uma estrutura racializada na medida em que
aciona mecanismos de discriminação, parte em defesa da democracia racial e
ideologia do branqueamento. Esses mecanismos e crenças foram desenvolvidos
sem que se estabelecesse uma relação direta com a raça, fato que produz nos
brancos um sentimento de isenção de responsabilidade pelos problemas sociais
enfrentados pelos não-brancos (BENTO, 2002).
As práticas racistas sedimentadas na estrutura histórica, social,
econômica e cultural da sociedade estabelecem o lugar do negro, assim como o
lugar do branco (FANON, 1980). Nesse sentido, a raça tem sido mantida como
símbolo hierárquico que fornece a lógica para confinar os membros dos grupos
raciais subordinados àquilo que o código racial da sociedade estabelece como
‘seus lugares apropriados’ (HASENBALG, 1979). Nesse prisma, ser branco
implica ocupar os melhores espaços, deter o lugar mais elevado da hierarquia
racial, representa a própria geografia existencial do poder (CARDOSO, 2014).

BRANQUITUDE: PRIVILÉGIOS QUE SE INTERSECCIONAM


Os esquemas de subordinação e as inúmeras barreiras institucionalizadas
impostas são engendrados por uma condição que a jurista norte-americana
Kimberlé Crenshaw conceituou como interseccionalidade, isto é, um campo
relacional atravessado por múltiplas e imbrincadas formas articuladas de
opressão e subordinação, cujas ações e políticas confluem gerando aspectos do
desempoderamento (PISCITELLI, 2008). Nesse sentido, problematizam outros
aspectos desses sistemas de dominação, opressão e marginalização que
determinam identidades, exclusivamente vinculadas aos efeitos da subordinação
social e o desempoderamento (PRINS, 2006).
A origem do termo interseccionalidade remonta ao movimento do final dos
anos de 1970, conhecido como Black Feminism (cf. Combahee River Collective,
2008; Davis, 1981), cuja crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o
feminismo branco, de classe média, heteronormativo. No final da década de
1980, o termo foi cunhado por Kimberlé Crenshaw e objetivou revelar o impacto

126
Ionara Magalhães de Souza
Edna Maria de Araújo

nefasto da articulação entre racismo e sexismo na configuração de experiências


discriminatórias de mulheres negras nos Estados Unidos. As diversas
discussões e teorizações sobre raça e gênero foram desenvolvidas também por
outras pesquisadoras inglesas, canadenses e alemãs (HIRATA, 2014) e se
intensificaram ao longo das décadas de 1970 e 1980 nos Estados Unidos
(SANTOS, 1995)
Conceitualmente, a interseccionalidade objetiva capturar as relações e as
consequências estruturais e dinâmicas da articulação entre dois ou mais eixos
de sistemas de subordinação, compreendidos pelo racismo, patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios, bem como, trata das
opressões geradas pelas ações e políticas específicas que acompanham esses
eixos de subordinação agenciando desempoderamento (CRENSHAW, 2002). As
lentes de críticos sociais consideram a leitura de Crenshaw expressiva de uma
linha sistêmica e estrutural sobre a formação de identidades (HIRATA, 2014).
Kimberlé Crenshaw propõe uma metáfora discursiva ao conceito de
interseccionalidade representado por avenidas. Segundo Crenshaw, cada
avenida representa um dos eixos da opressão: racismo, classismo, patriarcado
perfazendo assim, os aspectos sociais, políticos e econômicos que se cruzam e
interseccionam. Crenshaw aborda, principalmente, as intersecções de raça e
gênero. A mulher racializada e grupos vulnerabilizados, não raro, se situam no
cruzamento das vias, atravessados por múltiplas opressões e sujeitos ao intenso
fluxo de tráfego que incide simultaneamente de diversas direções. Nesse
entrecruzamento, por vezes, terão que realizar permanentes negociações, sofrer
vários impactos e colisões concomitantes, vários danos interseccionais
(CRENSHAW, 2002).
A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa
apreender a complexidade das identidades e das desigualdades
sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o
enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da
diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe,
raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque
interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade
dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e
postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades
sociais (BILGE, 2009, P. 70).

Nessa direção, alguns pressupostos importantes, a saber: mulheres


brancas, classe média, cristãs, heterossexuais ocupam lugar de privilégio com
relação à raça, status econômico, religião e orientação sexual, mas são
desprivilegiadas com relação ao gênero. Por conseguinte, uma mulher negra nas
mesmas condições acumularia dupla discriminação: com relação à raça e ao
gênero. Para Crenshaw (1989, p. 149), as experiências que culminam em

127
BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

vantagens, desvantagens e discriminações precisam ser compreendidas a partir


da dimensão da interseccionalidade de múltiplas identidades.
Para Crenshaw, a interseccionalidade se configura em duas categorias: a
interseccionalidade estrutural e a interseccionalidade política. A
interseccionalidade estrutural considera a posição das mulheres de cor na
intersecção da raça e do gênero, as consequências e respostas às múltiplas
violências. A interseccionalidade política abrange as políticas feministas e
antirracistas que marginalizam (CRENSHAW, 2014).
A interseccionalidade possui duas dimensões políticas: o
desempoderamento e empoderamento. A dimensão do desempoderamento é
pensada sob a perspectiva da discriminação e desigualdade produzida pelos
eixos possíveis de poder e discriminação como o racismo, o patriarcado, as
relações de classe. Todavia, a interseccionalidade desses eixos não produzem
apenas opressão, mas ativismos, resistências e mobilizações políticas
individuais ou coletivas (CRENSHAW, 2002). Essa dialética entre opressão e
ativismo é compartilhada por Patricia Hill Collins (COLLINS, 2000:13).
Outra autora deveras importante por suas contribuições à discussão do
conceito de interseccionalidade é Avtar Brah (1996 e 2006) que salienta a
dimensão opressiva, discriminatória e exploratória das relações de poder, mas
impulsiona na discussão a dimensão de ativismo, democracia, mobilização e
agenciamento político (BRAH, 2006: 16).
Os sistemas de opressão, dominação e marginalização institucionalizados
e hipotetizados pela teoria da interseccionalidade impõem na
contemporaneidade um redirecionamento epistemológico que propõe em
sociedades racializadas, um paradoxo histórico, ou seja, investigar o branco, o
detentor de vantagens materiais, simbólicas e interseccionais sustentados pela
perspectiva da branquitude.
A perspectiva da interseccionalidade possibilita a compreensão da
estrutura das relações de poder que transcende a enumeração dos fatores
discriminatórios (VIGOYA, 2008 e 2010). Desse modo, a compreensão do
fenômeno discriminatório é redimensionada em complexidade, abrangência e
profundidade, elucidando e evitando invisibilidades expressas como
superinclusão e subinclusão de situações discriminatórias (CRENSHAW, 2002,
p. 174-76).
Com efeito, a branquitude instaura a discussão sobre o privilégio de raça.
No âmbito da discussão sobre interseccionalidade, um aspecto digno de
consideração é de que existem efeitos cumulativos, mas distintos das
discriminações. Nesse tocante, a discriminação cumulativa vai se
potencializando em direções opostas. Para os negros, em forma de sucessivas
desvantagens que se interseccionam e, por outro lado, em vantagens que se

128
Ionara Magalhães de Souza
Edna Maria de Araújo

potencializam na direção do branco. O cerne dessa discussão numa sociedade


racializada é, marcadamente, a cor da pele. Os lugares ocupados por negros e
brancos tem a cor da pele como o signo mais proeminente, do qual derivam
outras dimensões. Esse signo representa processos de mobilidade social em
direções contrárias. Para os negros a subalternidade, para os brancos, o
prestígio social. Essas dissonantes representações simbólicas são estruturantes
das relações sociais, de modo que, ainda que os negros ocupem espaços e
condições sociais privilegiados, traz o signo adversativo da cor: ser preto.
Ser negro ou ser branco não é uma entidade fixa e sólida, é fluida e
cambiável. Denota-se que há um caráter dinâmico e processual na construção
das identidades individuais e coletivas. A depender do interesse e convenção
social, a identidade racial pode ser acionada ou escamoteada. Para Schumann
(2014), a identidade racial, do branco, figura a norma e os outros grupos
aparecem como margem, desviante, inferiores. Há uma construção implícita,
mas materializada de supremacia racial que se incorpora e se materializa em
todos os níveis (intelectuais, morais, estéticos, econômicos), uma construção
orientada por uma lógica hierárquica bipolar: brancos, não-brancos, sendo o
branco concebido por referência num juízo hierárquico universal.
Para Fanon (2010), um sistema hierárquico é politicamente produzido e
reproduzido como estrutura de dominação que segmenta os seres humanos.
Nessa linha hierárquica, enquanto alguns são reconhecidos com humanidade
atestada e acesso aos direitos humanos; outros tem sua humanidade negada,
questionada, são socialmente considerados sub-humanos ou não-humanos.
Fanon (2010) pensa o racismo a partir dos distintos processos históricos
coloniais e o racismo sistematicamente multifacetado.
Nesse sentido, Fanon (2010) defende que não há uma concepção teórica
universal de racismo. Existem marcadores de divisão racial estabelecidos
conforme a cor, língua, cultura, etnicidade e religião, configurados conforme o
histórico local e o processo peculiar de colonização/racialização. O processo de
racialização representa a estigmatização de corpos, no qual alguns corpos são
racializados como superiores e ocupam a zona do ser ao passo que outros
corpos são racializados como inferiores, vivem na zona do não-ser (FANON,
2010).
O racismo é produtor de iniquidades, característico de nossa organização
social, na qual grupos são subordinados e subalternizados e as relações
assimétricas assumem dimensão de poder. O racismo é uma realidade subjetiva,
objetivada e atualizada constantemente. Existem mecanismos de reprodução,
forças históricas e contemporâneas que concorrem para uma relação de poder
assumidos pela branquitude.
Nessa direção, a branquitude sustenta e retroalimenta o racismo. O
racismo é estruturante da sociedade brasileira, perpassa por todas as relações,
assujeita grupos, imputa vulnerabilidades seletivas, limita o acesso a direitos e

129
BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

serviços, e paradoxalmente, privilegia o acesso a direitos e serviços. O racismo


pessoal, interpessoal e institucional tem o poder de produzir afecções subjetivas
e são atravessadas pelo processo histórico de colonização e construção de
identidades sedimentadas historicamente.
Para Bento (2002), a branquitude brasileira reconhece a existência do
racismo e da desigualdade racial, contudo, a discriminação experimentada pelo
negro cotidianamente passa desapercebida, além disso o tema das relações
étnico-raciais é sempre silenciado e há uma tendência de culpabilização do
negro por suas condições de vida e dificuldades - um discurso hegemônico que
desmobiliza processos de militância ou desenvolvimento de consciência racial
negra no Brasil.
No livro Pele Negra, Máscaras Brancas, escrito por Fanon (2010), as
máscaras brancas surgem como metáfora de rejeição do negro a si mesmo.
Essa suposta rejeição do negro a si e aos seus pares, tão recorrente em
discussões étnico-raciais, é apresentada com força argumentativa na medida em
que se postula que a negação de determinados grupos étnico-raciais representa
um projeto de sociedade fundamentada em um sistema de dominação.
Assim, a branquitude representa a arquitetura do branco enquanto ser
desejado, intocável, um lugar a ser alcançado. Esse projeto se materializa por
violência física e estrutural, mas principalmente, simbólica que faz com que o
branco mediante um processo de deformidade psicológica acredite nessa
suposta superioridade, crie e engendre, com sutilidade e requinte, mecanismos
de dominação que façam com que negros alimentem essa rejeição a si e a seus
pares.
Das representações raciais no Brasil, ao negro foram atribuídas
adjetivações de depreciação humana, ao branco um juízo de valor ímpar ao
patrimônio físico e cultural. Assim, a branquitude não se reduz a distintivos
fenotípicos, mas a um cinturão guardião de privilégios e de poder. Para Bento
(2005), o discurso de branquitude mascarava as profundas desigualdades
raciais que marcavam a ordem social.
O papel do branco na legitimação do racismo e desigualdades sociais não
é refletido, nem problematizado. O foco de discussão é o negro, como se fosse
problema do negro. Nesse contexto, importa situar o problema racial como
problema do branco. Os brancos se projetaram e construíram uma supremacia
racial atestada historicamente. Com efeito, diferentemente dos negros, os
brancos não precisam pensar acerca de sua branquitude, tem sua identidade
preservada, não são alvos de discriminação, nem veem necessidade de discutir
racialização. Não raro, as crianças brancas têm mais chance de serem adotadas,
mulheres brancas de serem desejadas, homens brancos de ter competência e

130
Ionara Magalhães de Souza
Edna Maria de Araújo

dignidade atestada. A necessidade de discutir sobre o privilégio branco é


imperativa e emergente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A perspectiva da branquitude é engendrada como privilégios modulados,
de modo que os brancos assumem vantagens sistêmicas, simbólicas e materiais.
As identidades são fluidas e os processos são socializados dentro de uma ordem
histórica e estrutural. Nessa direção, ser branco corresponderia a um atributo
que assegura acessibilidade e mobilidade social. O branco é favorecido e
produtor ativo do sistema de significação que assegura privilégios aos brancos
em detrimento dos não-brancos. Desse modo, a branquitude foi legitimada por
doutrinas e ideologias racistas que atingiram proporções universalizáveis e se
destina a assegurar, por mecanismos diversos, a hegemonia e reprodução do
sistema de dominação.
A questão racial se faz presente na distribuição de poder e recursos, nas
experiências subjetivas, nas identidades coletivas, manifestações culturais, nos
sistemas de significação. O signo da cor representa uma demarcação forte das
relações no Brasil. O racismo e a discriminação racial se apresentam como
explicações mais sólidas para o abismo das desigualdades sociais e, no bojo da
branquitude, nos impele a questionar o que é ser branco no Brasil, ou ainda,
inquirir quem quer ser negro no Brasil.
Na dimensão da interseccionalidade, os elementos são indissociáveis, os
fatores operam conjuntamente. As intersecções estão relacionadas a estruturas
sociais, relações de poder e identidade com repercussões históricas distintas
para negros e brancos. A constatação de uma racialidade branca na nossa
construção identitária configura um importante princípio para provocar
descontinuidades e rupturas epistemológicas.
A dimensão da branquitude e interseccionalidade evidencia os privilégios
interseccionais do ser branco. Logo, faz-se necessário reconhecer a gama de
privilégios que perpassa pelos aparelhos ideológicos do Estado para entender
os sistemas de opressão. É preciso reconhecer que há uma produção ativa que
compactua com a manutenção desse sistema excludente e que políticas e
processos de reparação social de grupos degradados, massificados precisam
ser instaurados e fortalecidos. Os processos históricos necessitam de
ressignificação, precisamos repensar sobre os legados da colonização para
negros e brancos, o jogo de forças históricas e contemporâneas que se
interseccionam, se potencializam e se materializam.

131
BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

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134
CAPÍTULO 8

ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO


SOCIAL

Neli Gomes da Rocha


Eleonora Vaccarezza Santos

A
estratégia de alterar a fisionomia corpórea temporariamente para
obter alguma conquista pessoal é um fenômeno praticado em todo
contexto de sociedades simples e complexas, que passa pela
racionalidade e pela atribuição de sentido às ações humanas,
subjetivamente visadas. Compondo o quadro de fenômenos sociais
observáveis pela sociologia compreensiva, para utilizarmos uma
referência clássica.

135
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

A modernidade e o saber científico estipulam normativas de convivência


mútua, globalizando técnicas de manipulação de traços físicos, que se tornam
amplamente acessíveis. Bastando apenas adentrar ao contexto capitalista de
inter-relações entre as pessoas e as coisas, estimulando o poder de consumir
bens e serviços (fruto do desejo, em um primeiro momento; e, posterior, pela
gradual crença no que foi adquirido). O que é necessário ser feito para que um
indivíduo seja considerado um participante do grupo desejado? Quais as
possibilidades que o indivíduo lança mão para conquistar o que deseja? O que
é necessário para ser considerado ‗de dentro‘ pela pessoa ou grupo desejado
naquele momento geracional?
Neste trabalho, pretende-se levantar algumas reflexões sobre a maneira
como o corpo das pessoas é percebido pelo outro. A partir das construções
discursivas identificadas em materiais publicitários de produtos e serviços que
permeiam o universo da indústria da beleza na realidade brasileira, e voltados
ao público que apresenta traços físicos, como: pele escura, cabelos crespos e
outras características fisionômicas. Observando assim, quais as possibilidades
e sentidos atribuídos ao produto ou serviço que surgem no contexto de
ascensão social das minorias historicamente excluídas do imaginário de beleza
estabelecida dentro de padrões sociais e da globalização do mercado
consumidor.

“LEMBRA-TE QUE ÉS MULATO!”


Nos países de referências ocidentais como o Brasil, tivemos o avançar
acelerado do capitalismo e seu imperialismo colonial. Desta feita, a expansão
marítima encontrou o momento propício para o desenvolvimento econômico,
político, migratório e cultural de toda ordem. No Brasil, durante mais de três
séculos, navios comercializavam ‗peças‘ de toda natureza, inclusive a humana,
com alta rotatividade e lucro imediato. Neste sentido, Fernandes (1965) afirma:
Na virada do século XVIII para o XIX, o Rio de Janeiro já suplantara
Salvador como o principal porto de desembarque de escravos vindos
da África. Entre 1790 e 1830, chegaram na então capital da Colônia
(depois Império) 706 mil africanos, provenientes principalmente de
onde hoje ficam Angola, Congo e Moçambique, conforme dados
compilados pelos historiadores João Fragoso e Manolo G. Florentino.
Parte significativa desta massa humana teve como destino inicial no
Brasil o mercado do Valongo — na verdade um conjunto de casas ou
―armazéns‖ distribuídos ao longo de um vale entre os morros da
Conceição e o do Livramento. (FERNANDES, 1965, pp.55-56)

Ao se instituir por diversas regiões, o regime escravocrata no Caribe,


América do Norte, América do Sul e Europa se estabeleceu também a
exportação de mão de obra em larga escala durante séculos. Uma imensidão
de culturas que configuram hábitos, costumes, línguas, modos de vida,

136
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

pessoas e suas memórias. Fernandes (1965) elucida, ao descrever as relações


naquele contexto de cativeiro, no qual limitava o acesso aos bens e serviços,
situação que dependia do consentimento de seu proprietário, o autor diz que
um escravo não deveria usar calçado, pés nus e estar de cabeça descoberta.
Na realidade efervescente de modernização na região de São Paulo e
Rio de Janeiro, havia restrição no acesso às roupas finas, exceto em ―dias
festivos, com a nova ordem vigente em expansão, identificamos orientações de
conduta para homens e mulheres, sejam estes adultos ou crianças, maneiras
de se portar em espaços públicos e privados‖. Configura assim, a dominação
econômica e simbólica, inclusive do estatuto de poder estipular propostas de
comportamentos aceitáveis para diferentes classes e grupos sociais. Do
mesmo modo, ―A moda de pentear-se, calçar-se e vestir-se, acentuaria no
mestiço a esquisita sedução que a Aloísio de Azevedo pareceu ter sua sede
nos olhos e que, para os outros, está sobretudo nesse modo de sorrir,
agradando aos outros, tão do mulato‖ (FREIRE, 1936, p.742).
No contexto de Pós-Abolição, o comércio marítimo inseriu no mercado
uma gama de produtos que prometiam a proeza, por exemplo, de alterar a
textura dos cabelos (considerada a principal marca definidora de raça do país)
e o tom da cor da pele, como aponta (DOMINGUES, 2002). No Brasil, entre os
anos de 1900 e 1930, havia dezenas de publicidades que concorriam no
combate dos mais diversos defeitos na aparência, dentre elas estavam
pomadas para afinar a cintura, branquear a pele (SANT‘ANA, 2005). O que
chama a atenção era o fato destes produtos serem designados como
medicamentos, anúncios de remédios nos mais diversos veículos de
comunicação da época. A peculiaridade do contexto no qual o lugar do médico
é fundamental para a organização moral e social das famílias de elite, a falta de
beleza, logo era traduzida em termos de doença, portanto merecia o exame
médico e o tratamento com remédios (SANT‘ANA, 2005, p. 112).
Entretanto, Domingues (2002) vê a constante inserção nos anúncios dos
anos de 1915 a 1930 como um exemplo do ‗branqueamento estético‘. Nesta
direção, Flores (2007) defende que no Brasil o gesto que embeleza não
desenha somente uma mera fisionomia, mas estrutura a moda, em detrimento
de uma aparência doravante considerada ultrapassada, portanto feia. Contudo,
qual era a aparência reportada como feia pelos brasileiros daquela época?
Uma possível resposta é ensaiada por Flores (2007) ao retratar o emprego da
tecnologia contra a população negra daquele período. O propósito se restringia
a inserir o Brasil em um contexto mais moderno, por meio do ‗embelezamento
da raça‘. E nesta empreitada, duas grandes disciplinas se tornam aliadas – a
estética e a medicina antropológica, "[...] a estética devia fazer a ‗política da
raça‘ ao colaborar com a medicina antropológica, como um conhecimento

137
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

científico, no tratamento da fisiologia, da antropometria e da morfologia do


humano. Ambas arte e ciência, contribuíram para a perfectibilidade racial"
(FLORES, 2007, p.17).
No intuito de alcançar a então sonhada perfectibilidade dos corpos, era a
então beleza da raça, medida a partir da branca ariana, distinguia o grau da
civilização, da moral, dos bons costumes e dos ideais estéticos (Flores, 2007).
E deste modo acreditava a intelligentsia brasileira da época que, para
modernizar o Brasil, dever-se-ia passar por uma política cultural na qual, o
aperfeiçoamento do povo brasileiro estava sobre o tripé: saúde, força e beleza
(FLORES, 2007).
O projeto pensado para o embelezamento da raça, no qual a estética
baseada em um modelo eugênico, classista, eurocêntrico e entraria para ditar
os parâmetros a serem seguidos. De norte a sul do Brasil é possível localizar
ações que alguma maneira permita-lhes acessar informações para adequar-se,
para atingir seu objetivo e, nesse bojo, até mesmo redefinir sua percepção e
intervenção sobre o próprio corpo e cabelo.
Para a conquista do que se deseja ‗torna-se branco‘, mesmo que de
forma provisória, configura a alternativa promissora para o indivíduo nos mais
diversos espaços: trabalho, marido, amigos, escola, etc. Aqui a noção de ‗boa
aparência‘ estabelece elo com o avanço das descobertas científicas ocidentais,
especialmente na indústria de cosméticos, que prometem a realização de
sonhos inimagináveis de gerações herdeiras das tantas e variadas estéticas e
representações corpóreas quanto possível for. ―Durante a década de 20 e 30, a
liberdade de modificar o corpo em nome da beleza‖ e completa "...o
embelezamento da mulher negra, historicamente passa pelo branqueamento
de traços, visando à mobilidade social, estabelecem-se ‗padrões de beleza
apropriados para os negros", para isso, ―manuais de conduta de civilidade,
formas de superação dos vícios como álcool, fumo e incentivo ao trabalho
honesto e hábitos civilizados‖ (LOPES, 2001, pp.70-79) perspectiva que
dialoga com pensamentos de Ramos (1954), que diz:
Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo
no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de
determinada sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido
diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por
exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência
de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta,
fortemente, os nativos governados por europeus. [...]
Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, não escapa, quanto à
estética social, à patologia coletiva acima descrita. O brasileiro, em
geral, e, especialmente, o letrado, adere psicologicamente a um
padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si
próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto ao brasileiro de

138
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos
cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto
de vista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque
traduz a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação
da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que
consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de
julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um prestígio
exterior (RAMOS, 1954, pp.194-195).

Branqueamento estético – aparência física e identidade

Nestes termos, o branqueamento é visto recorrentemente como um


‗problema do negro‘, entretanto o contingente não-negro pouco aparece nesse
processo, o que contribui simbolicamente para o fortalecimento da autoestima
do grupo em detrimento do outro. Contudo, estas ideias sobre branqueamento
foram importadas da Europa, ganhando seguidores além-mar e configura o
racismo científico. Segundo os pensadores e cientistas do século XX, o diálogo
entre as culturais dos povos e a miscigenação dos povos significa a formação
da nação brasileira, suas qualidades e benfeitorias a partir da cultura e do
‗amálgama das raças‘ e configura ―um processo que superaria a divisão da
nação em raças e proveria não apenas a ascensão social dos mestiços, mas
também alguma democratização social‖ (FREIRE, 2004, pp.779-790).
Temos aqui o indicativo do processo de branqueamento ocorrido no
Brasil como desejo último do mestiço que ascende socialmente, mesmo que,
para isso, seja preciso alterar o corpo, visando ampliar suas redes de
socialização e status social. E por certo, conseguir ser tolerado no restrito
convívio do meio social das elites, na ânsia em conviver no universo social da
riqueza e do prestígio. Para isso, é necessário internalizar os códigos de
conduta e normatividade e de ‗europeização‘ quanto aos comportamentos e
sua convivência em espaços notadamente hierarquizados, sedimentados em
concepções balizadas pela religiosidade de matrizes cristãs e ocidentais.
Para Bento (2002), a ideologia do branqueamento com a mestiçagem
são os principais responsáveis por se discutir o racismo como um problema do
negro, que descontente e pressionado a adequar sua aparência ao referencial
mais próximo, que é a classe dominante não-negra, de valores eurocêntricos,
para assimilar e diluir suas características raciais, tornando-se o mais próximo
do ‗natural‘. Entretanto, a nível conceitual, o branqueamento pode ser definido
como:
[…] um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira,
embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro
brasileiro. Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como
padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma

139
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a auto-estima e o


autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa
apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e
social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de
um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua
identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação
que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais (BENTO,
2002,p. 01).

A publicação de Freire (1936/2004) expressa o imaginário de nomes da


intelectualidade brasileira que imprimiram em seus escritos a noção de ‗boa
aparência‘ enquanto símbolo do branqueamento, nas palavras do autor, ―O
poeta Cafuzo foi uma ferida sempre sangrando embora escolhida pelo croisé
de doutor sensível à inferioridade de sua origem, ao estigma de sua cor, aos
traços negróides gritando-lhe sempre do espelho: ‗Lembra-te que és mulato!‖
(FREIRE, 1936/2004, p.781).
Para Lima (2002), o branqueamento pode ser compreendido a três
níveis: (a) ao nível de políticas públicas; (b) ao nível das percepções de
estatuto social; e (c) ao nível da autopercepção e das relações interpessoais.
Higienistas em suas políticas, embasadas em teorias importadas da Europa as
quais serviam para livrar o país do destino menosprezado pela Europa de povo
mestiço, o Brasil incentivou a imigração europeia, concedendo vantagens aos
migrantes europeus que se estabeleciam no país, esta estratégia partia de
políticas públicas racistas e eugenistas desenvolvidas no século XIX (SILVA;
ROSEMBERG, 2008). É neste contexto que o branqueamento ganhava foros
de ideologia. Posto que esta era a ideia difundida pelos cientistas, de que a
miscigenação traria a regeneração ao povo brasileiro e o separaria do atraso.
Não era novidade para aqueles homens das ciências que a forma mais eficaz
de eliminar uma raça era misturando-a com outras (SANTOS, 1984).
Na atualidade, não à toa ideias relativas ao branqueamento da
população se fazem presentes no imaginário do brasileiro. Desta feita, Venturi
e Bokany (2005), em seu estudo sobre autodeclaração de cor, entrevistados e
suas percepções acerca do que é ter a pele escura e ser socialmente
reconhecido como um indivíduo negro. Apresentaram quatro perguntas2 com o
intuito de investigar a identidade racial dos participantes e identificou, na
primeira pergunta aberta, que 38% dos sujeitos se classificaram como brancas,
10% como pardos, 7% como pretos. Já na segunda pergunta, 45% dos

2
As perguntas são: (1) No Brasil, há gente de várias cores ou raça. Qual é a sua cor? (2) O
senhor diria que sua raça ou cor é: () branca, () preta, () parda, () indígena, () amarela; (3)
Considerando as combinações de cor ou raça de seus avós e de seus pais, o senhor(a) tem
quais das seguintes combinações de cor ou raça? (4) O(a) senhor(a) se considera branco(a),
negro(a) ou índio(a)?

140
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

entrevistados se disseram brancos e na quarta questão 53% se definiu como


branco. Entretanto, apenas 27% deles afirmaram ter descendido apenas de
pessoas brancas, em resposta à questão três. Essa identidade se mostrou
mais divergente entre os pardos, uma vez que na pergunta da ascendência,
63% afirmaram ter descendido de negros, mas apenas 34% deles
responderam parda para a pergunta sobre a cor ou raça.
Outro dado relevante ao tema se refere à pesquisa realizada por Costa
(2009), que no processo de doação de gametas para a inseminação artificial,
há a classificação de quatro grupos de doadores: brancos, negros, mulatos e
orientais, e é a partir desta classificação que os médicos viabilizam a doação
para pessoas do mesmo grupo, no entanto se constatou que as entrevistadas
não se negavam a receber doações de grupos diversos ao seu, desde que cor
fosse mais clara que a dela e se recusam a receber de doadores cuja a pele
seja mais escura. O que demonstra uma forte assimilação dos ideais do
branqueamento. Ainda, a ideologia do branqueamento teve, e continua tendo,
enorme impacto no terreno estético (BENTO, 2002; CARVALHO, 2000). E
influência ainda nos dias de hoje, maneiras de perceber beleza em si e em
outros, e regula as escolhas sobre a manipulação da aparência física de
brancos e negros no Brasil (DOMINGUES, 2002; FIGUEIREDO, 2002;
SANT‘ANA,2005).

PRODUÇÃO, CONSUMO E ESTRATÉGIAS DE EMBELEZAMENTO NO


BRASIL APARÊNCIA FÍSICA E ASCENSÃO SOCIAL
Descreva uma pessoa feia. Identifique seus traços. Nosso imaginário
social possui símbolos para caracterizar uma pessoa desprovida de beleza,
mas a partir de qual parâmetro? Análises documentais sobre a mídia brasileira
apresentam estudos que identificam os discursos e valores presentes nas
inserções publicitárias dos jornais, tanto da ‗imprensa negra‘ quanto da
‗imprensa branca‘ sobre os novos produtos de embelezamento (GOMES,
2002). Em diálogo com esta perspectiva, Sant‘Anna (2005) nos explica que " a
feiura, neste período de início de século XX, era vista como o ‗resultado da
degenerescência da raça‘, tanto do acaso ou de uma vida viciosa e doente, a
feiura não se deve, ainda, à inconsciência de cada mulher diante da sua
própria identidade" (SANT‘ANNA, 2005, p.128).
Vale ressaltar que, naquele momento histórico, a preocupação com a
beleza ou sua falta era designada apenas às mulheres, em especial ás da elite
econômica. Paralelo a esta vivência da elite em se ocupar com remédios para a
cura de todo tipo de fealdade, havia uma política de Estado que visava ao
‗embelezamento da raça‘ por meio da mestiçagem e da ideologia do
branqueamento (FLORES, 2007). Para isso, as tecnologias e o acesso à
informação produzem idealizações a partir da concepção estética ocidental de

141
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

belo, aos moldes europeus interpretados nos anúncios publicitários. E


conforme se pode verificar na Figura 1, que ilustra o pente denominado “O
Cabelisador”. Em formato de ferro ou aço, aquecido em brasa ou elétrico,
utilizado para manipulação dos fios crespos. O utensílio adaptou-se,
modernizou-se e, atualmente, é identificado como chapinha, que se tornou a
alternativa acessível por gerações de mulheres e homens, adultos e crianças
para viabilizar ao custo baixo e configura a ‗fórmula‘ de transformação em
‗alguém mais elegante e moderna‘ conforme ‗a mulher negra deveria
apresentar-se não só de cabelos lisos, mas de cabelos compridos‘ (LOPES,
2001).

Figura 1: Slogan do anúncio inserido no jornal da época sobre o ―Cabelisador‖ e Figura 2.


Ilustração de Neli Gomes da Rocha, inspirada na publicidade de 1929.

A relação com o próprio corpo envolve questões de identidade,


subjetividade e contradições. O tema miscigenação é um deles, em especial
aos indivíduos mais claros e mestiços e a possibilidade de mobilidade social.
Situação outrora apontada em estudos sociológicos dos anos 1940-1950, e
presente como denúncia de ativistas negros, sobre o processo de
branqueamento.
Possibilidade que muitos recorrem para serem aceitos e inseridos no
meio social desejado. O sociólogo Oracy Nogueira, com base em estudos
produzidos nos anos 1950, apresenta a perspectiva das relações raciais no
Brasil como algo que, não raro, ocorre a sobreposição de: diferença
social/classe e de pertencimento racial, estabelecendo uma relação
desproporcional de tratamento entre classe e raça. Como se nota na situação
apresentada nos estudos de Nogueira:
Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto
é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços
físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é
de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de
certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito,
diz-se que é de origem (NOGUEIRA, 2007, p.292).

142
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

Nestes termos, o ‗racismo à brasileira‘ inquieta-se com o conceito de


democracia racial e a ideologia do branqueamento – como impeditivos para se
pensar as relações raciais no nosso país. Segundo os autores Lima e Vala
(2004), ―o racismo no Brasil se manifesta pelo branqueamento dos indivíduos
que fazem sucesso e o enegrecimento ou empardecimento dos que
fracassam‖. E concluem que há ―uma forte relação entre o fracasso social e
econômico com a cor negra e entre sucesso e a cor branca‖ (Lima & Vala,
2005:13). O processo de branqueamento também é analisado por Lima (2002)
em estudo realizado no Brasil, no qual fica comprovada a associação: sucesso
social e o maior índice de brancura atribuído ao sujeito detentor do status, e
como ficou comprovado que o contrário também ocorre. Negros que
fracassaram foram vistos como mais negros e menos características
tipicamente humanas lhe foram dadas.
Em contraste, Lima (2002) defende que o racismo prevalece no Brasil
por meio das normas sociais que estão inscritas nas relações intergrupais, a
exemplo o igualitarismo e o individualismo meritocrático. Buscou comprovar,
por meio de uma série de estudos, o efeito das normas do igualitarismo e do
individualismo Meritocrático na infra humanização dos negros e de que modo
essas normas sociais contribuem para a predominância deste fenômeno. O
autor chega a conclusões do tipo: (a) uma maior adesão ao Individualismo
Meritocrático (IM) implica em maior infra humanização dos negros; (b) os
negros que se tornam mais parecidos com o protótipo ‗branco dominante‘ são
mais discriminados do que os que se mantêm diferentes.
Nesse bojo, o mercado de bens e serviços ‗cria‘ as condições para os
indivíduos alcançassem o desejo que lhes foi inculcado, aquele produzido no
imaginário da ‗boa aparência‘ e se torna algo amplamente acessível a partir da
chegada de inovadoras técnicas de manipulação do corpo. Com isso, os
indivíduos gradualmente aderem às propostas de transformação corpórea,
impulsionado pelo mercado de cosméticos que se propõe a solucionar os
percalços cotidianos, como a textura da pele e dos cabelos, tornando-os mais
‗aceitáveis‘, inicialmente aos padrões das elites e, posteriormente, aos
aspirantes a ela (elite), especialmente nas décadas de 1920 e 1930.
Manipular os fios crespos, tornando-os lisos, configura modalidades de
procedimentos tradicionais3 que danificam o formato natural do fio crespo,
alterando sua textura e vitalidade. A indústria do embelezamento permanece
míope diante das inexpressivas alternativas compatíveis às restrições físicas

3
Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2007/07/38-43-fio-137.pdf.

143
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

ou financeiras dos produtos existentes e comercializados desde 1901, a base


de hidróxido4 ou alisamentos térmicos5.
A pesquisadora Inês Joekes investiga a eficiência de cosméticos de
cabelo em 1983: o alisamento dos fios, feito por pessoas que têm cabelo
crespo ou ondulado e desejam deixá-los impecavelmente lisos. O estudo
aponta que o objetivo dos produtos é aproximar a textura dos crespos à ideia
de ―leveza, maciez e brilho‖ dos cabelos lisos e superar a ―rebeldia‖ do cabelo
―bandido, aquele que está preso ou armado‖, como costuma afirmar o senso
comum. Assim observado no trecho que segue:
Aplicou em mechas de cabelos crespos dois tipos de cremes
alisadores encontrados no mercado – um à base de tioglicolato de
amônia e outro com hidróxido de cálcio ou lítio. Em seguida, deixou
agir por 20 minutos, tempo de uma sessão de alisamento, e 60
minutos (três sessões), antes de analisar os fios ao microscópio.
Tanto o tioglicolato como o hidróxido – também usados por quem tem
cabelo liso e quer deixá-lo encaracolado com um tipo de penteado
chamado permanente – destroem as ligações das fibras de queratina,
desfazendo as voltas microscópicas do fio. O cabelo fica liso e mais
frágil, como um fio de alumínio retorcido que é esticado, surgem
trincas e sulcos que reduzem a menos da metade a resistência dos
6
fios ao alongamento, explica Inês .

Nesse sentido, a reflexão de Figueiredo (1994) sobre "o mercado da


aparência ou o mundo da beleza é uma esfera marcada pela construção de
estereótipos negativos associados aos fenótipos negros", todavia, nas últimas
décadas do século XX, houve significativas mudanças e ampliação de técnicas,
produtos e serviços voltados para o seguimento.
Eu aliso o meu cabelo desde os treze anos de idade, então você
imagine o que é para uma pré-adolescente aos treze anos tomar essa
decisão! „Não quero mais ter esse cabelo‟. „Esse cabelo só me dá
desgosto!‟ Por que na minha cabeça [o cabelo] só me enfeava mais.

4
Pasta que possibilita o tipo de penteado chamado permanente. Entretanto, danificam e
chegam a destruir os elos de queratina, impossibilitando o formato cilíndrico do fio,
transformando de forma abrupta em liso e esticado, para especialista: ―surgem trincas e sulcos
que reduzem a menos da metade a resistência dos fios ao alongamento‖, explica Inês, que
investiga a eficiência de cosméticos de cabelo, em 1983.
5
Prende-se o cabelo entre duas chapas aquecidas de um pequeno aparelho – a famosa
chapinha, versão moderna de passar o cabelo a ferro, aquecido em brasa e aplicado
diretamente aos fios até que os mesmos adquiram a forma do fio liso, todavia, não deve ter
contato com qualquer umidade, acarretando o retorno imediato ao formato anterior ao
procedimento. Amplamente utilizados desde a ampliação de técnicas de manipulação dos fios.
6
http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/07/01/fio-por-fio/.

144
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos
Eu só era mais feia por ter o cabelo daquele jeito [crespo] (Mayara,
22 anos).

No trecho acima, podemos identificar a insatisfação com os cabelos


crespos identificado nos estudos realizado por Santos e Silva (2014) junto a
mulheres negras do estado de Sergipe/Brasil, no qual investigou os
significados do cabelo crespo para elas. O ponto central, a insatisfação com a
aparência dos cabelos foi recorrente em seus relatos, e pode ser ilustrado na
fala das entrevistadas, como a exemplo de Mayara, que devido às pressões do
seu entorno, optou pela manipulação do cabelo. Desta feita, o presente
trabalho pretende demonstrar, a partir da metodologia de estudo de caso, as
estratégias de marketing utilizadas pela rede de salões de beleza do Brasil,
―Instituto Beleza Natural‖, presentes no mercado brasileiro há duas décadas. A
rede de salões de beleza do Brasil, Instituto Beleza Natural, propõe-se a
transformar os fios de cabelo crespo, a partir de técnicas de manipulação
química, tornando-o um tipo de cacheado, considerado pelo senso comum,
como modelo aceitável de convívio.

“EM TEMPOS DE CHAPINHA QUEM TEM CACHOS É RAINHA”


Analisou-se material empírico fruto de visitas realizadas entre março de
2011 e outubro de 2014, realizadas nas sedes Ipanema/RJ, Madureira/RJ,
Largo Treze/SP e Lapa/SP do Instituto Beleza Natural durante excursões
coletivas em formato de caravanas agendadas previamente. Assim, como o
material disponível online em diversos formatos de mídia, filmagens,
entrevistas, participações nas reuniões organizadas pelo próprio instituto para
impulsionar a organização de caravanas oriundas das regiões que não
possuem sede, são cerca de 300 caravanas percorrem o Brasil em grupos de,
no mínimo, 28 pessoas, em geral, mulheres jovens e adultas. Conforme consta
na série de reportagens apresentadas sobre o BN e sobre uma das sócias
majoritárias, Zica de Assis (ver quadro 1). Banco de dados que nos permitiu
fazer interpretações de um contexto social específico, suas visões construídas
no imaginário social brasileiro e aqui apresentadas, partindo da ideia de ‗boa
aparência‘ e suas implicações na realidade brasileira.

A trajetória do empreendimento nasce na década de 1970 da


inquietação de uma mulher de pele escura e cabelos muito crespos (descritos
por ela como ‗grosso, crespo e volumoso demais e ainda crescem para cima‘),
moradora de periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ainda muito jovem, torna-se
responsável por parte da fonte de renda da família, em busca de trabalho,
passa a transitar por outros espaços sociais diferentes, com isso interage em
outras realidades sociais. A necessidade financeira impulsiona lançar mão de
sua força de trabalho de diversas maneiras: partindo dos serviços simples,

145
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

como o doméstico; seguindo para as vendas e na atualidade empresária


reconhecida internacionalmente.
A insatisfação da patroa com a aparência da empregada instaura a
necessidade de alteração dos traços físicos, a estética torna-se um ‗problema a
ser resolvido‘ e age na esfera simbólica na forma de pressão cotidiana, para
que esta se comporte de acordo as condutas de ‗boa aparência‘ necessárias a
uma ‗boa empregada‘. Diante das condições assimétricas de dominação e
poder, a alternativa é adequar-se à mudança de sua aparência, especialmente
a dos cabelos crespos em formato arredondado estilo Black Power, muito
utilizado nas décadas de 1970. Nas palavras de Zica.
Dei um basta e cortei meu cabelo, cortei meu cabelo curtinho e fui
fazer o curso de cabeleireiro para entender o meu fio de cabelo,
porque que ele era todo duro? Porque que ele era tão crespo, não
entrava pente. Gente, não entrava mesmo. [Fala de modo enfático],
Era garfo, garfo para pentear. Mesmo curtinho, era garfo. Garfo Black
Power, conhecem?
Você acha que todos os cabelos cacheados são iguais? Não são.
Para entender melhor cada tipo de fio crespo e ondulado, o Beleza
Natural, em parceria com a Universidade Nacional de Brasília (UNB),
pesquisou mais de 300 cacheadas, num estudo que durou dois anos
e é inédito no Brasil e no Mundo. (Beleza Natural, 2014,p.13).

A rede de salões de beleza do Brasil, Instituto Beleza Natural, propõe a


transformar os fios de cabelo crespo, a partir de técnicas de manipulação
química e do uso contínuo de produtos capilares de fabricação própria e
exclusiva. Tornando-o um tipo de cacheado considerado pelo senso comum
como modelo aceitável de convívio. Há pouco mais de duas décadas, Heloisa
Helena de Assis, mais conhecida como Zica, em parceria com sua rede de
relações, deram início ao projeto que gerou o Instituto Beleza Natural.
Empreendimento que se propõe ‗vender autoestima‘ na transformação
do fio de ‗cabelo crespo‘ em ‗fio cacheado‘, assumindo o papel de alternativa às
pessoas interessadas em alterar seus traços físicos em nome da praticidade da
vida moderna e que não querem recorrer aos processos tradicionais de
manipulação dos fios crespos, em geral, voltados para a modificação radical,
tornando-o provisoriamente alisado, em geral procedimentos químicos
agressivos, como o uso de formol e soda cáustica, por exemplo. Em
entrevista7, a empresária Zica nos explica:
[...] Então eu fui aprender a ser cabeleireira sonhando que eu ia ter a
solução inteira pra aquilo, mas gente, aprendi, aprendi tudo o que o

7
Utilizamos como material empírico um amplo acervo de entrevistas cedidas à mídia televisiva,
virtual e redes sociais e impressa, além do site oficial www.belezanatural.com.br.

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Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos
mercado oferecia, alisamentos escovas, cortes, tudo, tudo, tudo bem,
amei, amei lidar com cabelo. Aprendi a profissão, fiquei maravilhada e
tudo, mas cadê a solução pro meu cabelo? Nada.
Teria que alisar novamente, eu não aceitei isso, eu deixei meu cabelo
crescer [fazendo o movimento que demonstra o volume do cabelo],
conversei até com algumas patroas que na época, já gostavam de
mim e eu tinha como encantar, botava um lenço, amarrava, dava um
jeito, mas não alisei mais [...].
Gente, depois que eu fiz esse curso e não quis mais alisar o cabelo,
comecei a fazer experiência em casa, na bacia, com uma colher de
pau misturando matérias-primas naquela época [...] eu não sou
química né?

[...] e eu pegava esses pozinhos e saí misturando em casa, eu


trabalhava pra caramba, trabalhava, mas quando chegava o final de
semana eu estava lá na minha fôrma, na minha bacia, e aí, apliquei
no meu cabelo.

O trânsito social insere também a ideia depreciativa ao corpo negro, os


traços negroides, como os cabelos crespos, adquirem sentidos divergentes: 1.
A necessidade em recorrer aos procedimentos químicos e ‗resolver‘ a textura
para que ‗ganhe movimento‘, sem abdicar do formato dos fios; 2. A postura de
domesticar os traços físicos, todavia sem afastar-se da área de conforto do
padrão ocidental de embelezamento dos cabelos; 3. Ocultar traços de
subjetividade no ambiente de trabalho com a ideia de uniformizar para
distinguir.

147
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

Figura 3: Zica - relação com o cabelo.

Na década de 70, Heloisa Assis não estava satisfeita com os cabelos.


Não queria alisá-los, mas não existiam produtos no mercado que
‗domassem‘ os seus cachos. Zica fez um curso de cabeleireira e foi
misturando produtos até chegar à famosa fórmula do Super-
Relaxante, abrindo espaço para um nicho de mercado não muito
8
explorado no início da década de 90 .

Com a proposta de que ―o salão Beleza Natural é um salão de beleza


não é uma indústria de cosméticos”, surge no slogan e na visão que a empresa
quer passar. Atualmente, o Instituto Beleza Natural (BN)9 conta com 26
institutos, espalhados pelas principais capitais do país e em crescente
expansão. Possui 3000 colaboradoras, em geral a primeira experiência
profissional e o primeiro emprego de carteira assinada. Possui atualmente
fabricação própria de 310 toneladas de produtos ao mês e possui uma clientela
de 130 mil pessoas, que frequentam o periodicamente as sedes e adquirem os
produtos comercializados nestes institutos de modo recorrente10.

8
Fonte: < http://belezanatural.com.br/>.
9
Fonte: <http://www.factual.inf.br/noticias/zica-assis-e-uma-das-mulheres-de-negocios-mais-
poderosas-do-brasil>.
10
Fonte: < http://belezanatural.com.br/>.

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Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos
“Cachos no laboratório” – rotina de trabalho
Durante doze horas de estrada, um grupo de 30 mulheres e 2 homens
partem da cidade de Curitiba com destino ao bairro de Ipanema ou Madureira,
na cidade do Rio de Janeiro (ver figura 4). Às sete horas da manhã de sábado,
mulheres (mães, avós e filhas), em fila, esperam o recebimento da senha
individual que permitirá passar por uma avaliação capilar que autoriza o uso do
produto Super-Relaxante (serviço/produto muito procurado nos Institutos
Beleza Natural e possui restrição de idade, 12 anos). Os dois homens são os
motoristas que seguem para o descanso de 6 (seis) horas, para retorno ao
destino.

Figura 4. Encontro de líderes de caravana/SP – 2014.

O espaço comercial privado abre oficialmente às 9 (nove) da manhã,


todavia, às 7 (sete) o espaço do Instituto Beleza Natural inicia mais um dia de
trabalho e distribui senhas às pessoas agendadas em caravanas e aquelas que
aguardam em fila. O foco no embelezamento dos cabelos crespos e cacheados
atinge um vasto público brasileiro, outrora usuário de tratamentos químicos
insatisfatórios, por vezes traumatizantes. O fato da cidade de Curitiba/Paraná
ainda não possuir sede do Instituto Beleza Natural mobiliza mulheres de
diversas faixas etárias, profissões em torno de um objetivo comum, ‗balançar
os cachos‘.
Ao entrar em qualquer sede do Instituto Beleza Natural, a estrutura é
inteiramente racionalizada. Na recepção, orientações sobre o procedimento: 1.
Retira a senha; 2. Passa por avaliação com uma profissional treinada; Esta
identifica as condições do fio crespo. Em caso positivo, 3. A cliente efetua o
pagamento e 4. Segue para o setor de ‗desembaraçar e separar em pequenas
partes geométricas‘; em seguida, 5. Aguarda para receber o produto ―Super-
Relaxante‖; 6. Aguarda, 7. Hidrata, 8. Penteia. Espelhos enormes, Televisores

149
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

ligados, inúmeras fotografias de mulheres de pele parda ou preta, por toda a


estrutura (colaboradoras, clientes ou modelos não profissionais).
A cada nova cliente, novas orientações para o uso dos produtos e
informativos para realizar em casa a manutenção dos crespos. Ao final do
atendimento, um tapete vermelho em direção à loja com todos os produtos de
fabricação exclusiva da empresa. Tudo devidamente setorizado, a ‗colmeia‘ que
produz cachos. A logística para o atendimento é elaborada desde a esfera
virtual (site oficial, blog, disque-atendimento) ao espaço da face a face,
elaborado para o universo predominantemente feminino, muitas acompanhadas
por crianças e adolescentes, notadamente afrodescendentes.
O quadro de colaboradoras, em geral, pertence ao mesmo status social
do público-alvo, as empreendedoras apostaram na inclusão de mão de obra
sem experiência prévia, feminina, em contexto de baixo poder aquisitivo e com
escolaridade média.
A gente lida com beleza, com gente, com toque (Funcionária 1). A
empresa é feita de gente, pra gente e pra que a gente se sinta
realmente bem (Funcionária 2). (Funcionária 3) mostrar um valor que
o brasileiro não é acostumado a ter, que é o valor de servir, de passar
adiante sem se achar menor. A gente vem de uma cultura
escravocrata, nossos antepassados foram escravos e essa coisa de
servir às vezes fica muito colocada como algo menor, e não, servir é
nobre. Poder fazer pelo outro como você gostaria de ser tratada é
algo maravilhoso (Beleza Natural, 2014, p.21).

A rotina do trabalho e a representação valorizada de corporeidade e


traços do corpo negro saltam aos olhos, sendo condicionante, inclusive, para a
participação na equipe, a utilização e adesão às linhas de produtos da
empresa, aproximando esteticamente idealizadoras, colaboradoras e clientela.
―Fazer as pessoas mais felizes, promovendo beleza e autoestima‖11, é a
chamada mais recente para apresentar a Empresária do Ano de 2014,
considerada como uma das empresárias mais influentes do Brasil, pela revista
FORBES. Atualmente, é uma das proprietárias da maior rede de salões
brasileira a oferecer tratamento de embelezamento para cabelos crespos a
cacheados. Diante deste quadro, ao ser questionada sobre seu sentimento em
relação ao título, Zica afirma:
Estar nesta lista é reconhecimento à minha trajetória e à história do
Beleza Natural. Nossa empresa sempre acreditou na classe C e
cresce junto com ela. Sempre tivemos o foco em dar oportunidade de
emprego às pessoas. Eu nunca tive carteira assinada e me orgulho
hoje de ter 1.700 funcionários legalizados, oferecendo benefícios
como plano de saúde e odontológico e convênio com universidade.

11
Fonte: < http://belezanatural.com.br/>

150
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

Todavia, estudos sobre a trajetória da instituição já trazem reflexões


pertinentes. Uma delas é a tese do sucesso do empreendimento, associado à
divisão rígida da produção dos cachos, e o controle da venda dos produtos,
fruto da pesquisa de Dantas (2013). A partir de sua trajetória, desenhamos um
processo de repercussão e ampliação no reconhecimento do Instituto Beleza
Natural. Em termos econômicos, é possível identificar a oportunidade que esta
empresária oferece aos seus funcionários. Mas, e em termos simbólicos e
valorativos?
QUADRO 1. Publicações sobre o empreendimento ―Beleza Natural entre os anos de 2012.
Ano da publicação

Beleza Natural investe em tapete vermelho JORNAL VALOR ECONÔMICO


(RJ)

Propagando do produto comercializado nas lojas do instituto JORNAL EXTRA (RJ)

Enxerto de texto falava sobre o aumento das vendas de NEGÓCIO E COMPANHIA


produtos do BN, com a chegada do carnaval (JORNAL O GLOBO (RJ))

Enxerto de texto em uma das colunas do jornal, reportando JORNAL O GLOBO (RJ)
sobre o príncipe que ficou encantado com a força da classe
c, ao ponto de convidar uma das sócias do salão para
apresentar o negócio em Londres.

Reportagem que fala sobre ―domar os cachos‖, traz a REVISTA ANA MARIA
cantora sertaneja Paula Fernandes, e em um box, aponta
Zica Assis, como uma especialista em cabelos crespos do
país

Reportagem que traz como título: ―Beleza Natural quer JORNAL PROPAGANDA E
atingir novos mercados‖ MARKETING

Reportagem de quatro páginas, retratando a transformação JORNAL EXTRA (RJ)


de Zica, traz como chamada ―conheça a história de sucesso
e veja as dicas de Zica, a doméstica que virou empresária e
2012

dona de uma rede de salões‖, a menciona que a dezoito


anos o BN vem transformando os cabelos (e a vida) das
mulheres.

Reportagem da TV britânica BBC, sobre o negócio


desenvolvido por Zica, e do seu produto que acabou por
tratar os cabelos crespos de muitas mulheres brasileiras.

Reportagem que traz como título ―madeixas bem cuidadas‖ O ESTADO DE MINAS (MG)

Uma série de reportagens exibidas no jornal, entre elas há A GAZETA (ES).


uma por título ‗fábrica de cachos‖ atrai caravana de
mulheres. As demais falam sobre o tempo de espera para
ser atendido; de como o comércio ao redor podem se valer
do empreendimento para lucrar mais. E da trajetória de Zica
―de doméstica à dona de 12 salões de beleza‖.

―A trança certa para o São João‖ comentário em jornal sobre JORNAL MASSA (BA).
penteado para o São Joao que o BN disponibiliza para sua
clientela.

Reportagem da revista Claudia sobre o prêmio Claudia do REVISTA CLAUDIA


qual Zica foi indicada para receber.

Reportagem que aborda o desenvolvimento do REVISTA EXPERIENCE CLUB


empreendimento, bem como sua projeção internacional, é

151
ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

discutido neste artigo. Fala de autoestima elevada


promovida pela sensação de inclusão e de valorização de
um segmento que até então era negligenciado pelo mercado
dos cosméticos para os cabelos.

Reportagem exibindo clientes do BN, na qual há fotos do REVISTA VIVA


antes e depois de passarem pelo instituto, seus rostos antes
abatidos e com os fios alisados, e a outra após passarem
pelo tratamento do Super-Relaxamento.

Matéria que fala sobre os benefícios do ―Spa capilar‖, um JORNAL O GLOBO (RJ)
tratamento oferecido pelo BN, há relato das clientes sobre a
sensação agradável que sentem ao utilizarem o serviço. O
tema central é abordado como ―beleza sem danos‖.

Matéria divulgada por jornal de grande circulação na Bahia, JORNAL A TARDE


que fala sobre empresas que veem o estado como um
mercado promissor para o setor de cosméticos.

Reportagem de duas páginas que traz em sua chamada os REVISTA AMÉRICA ECONOMIA
dizeres, ―receita de beleza‖: como a ex-empregada
doméstica Zica montou uma empresa que dar poder as
mulheres de cabelos crespos.

Fonte: Imprensa Beleza Natural (2012)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, apresentamos o corpo negro percebido e refletido no
espelho invertido, que é a construção do olhar do ―outro‖, as relações de poder
e representatividade. Construções discursivas identificadas em materiais
publicitários de produtos e serviços que permeiam o universo da indústria da
beleza na realidade brasileira, possibilidades e sentidos atribuídos àqueles que
apresentam traços físicos, como pele escura, cabelos crespos.
Compreender a gradativa mudança nas estratégias de embelezamento
do cabelo crespo, acompanhadas pelo desejo de ascensão social das minorias
historicamente excluída do imaginário de beleza ocidental. Percebe-se a
relação entre padrões estéticos, identidades e ideologias raciais.
A valorização de um padrão estético, que basicamente volta-se para a
manipulação do cabelo crespo e da cor da pele, como forma do negro ser
aceito socialmente e ter mobilidade social (COUTINHO, 2005; FIGUEIREDO,
2002). Contudo, empreendimentos que promovam a desconstrução do padrão
universal de beleza a ser seguido, o surgimento de práticas de
embelezamento, sobretudo do cabelo crespo, mostrou-se como promotores de
um fortalecimento da autoestima.
Apresentamos aqui complexas perspectivas, por vezes assimétricas,
que congregam: 1. A inovação empresarial e o mercado sem concorrentes; 2. A
valorização da estética negra conduzidas por padrões pré-estabelecidos; 3.
Reflexões sobre o processo de branqueamento e as mil facetas do debate
sobre os sentidos da miscigenação para a identidade do indivíduo, seja esta

152
Neli Gomes da Rocha
Eleonora Vaccarezza Santos

negra ou não, mas que valorize traços aceitáveis ao convívio; 4. A divergência


radical com base nos ideais políticos contestadores das normativas
eurocêntricas no plano da estética, faceta simbólica da dominação. A proposta
de não alteração nem da forma, nem da textura dos cabelos crespos como
ação de cunho político, a exemplo do movimento Black Power.
Um ―espaço colmeia‖, setorizado em segmentos de um processo
racionalizado, transformar ‗crespos‘ em ‗cacheados‘ de maneira homogênea,
atuando na forma de uma linha de produção capilar. Desafiando o histórico de
frustrações e nome da autoestima duradoura para suas frequentadoras
predominantemente feminina, trabalhadora, jovem e adulta, e em perspectiva
de ascensão social, com o slogan ‗Em tempos de chapinha, quem tem cachos
é rainha‘, as criadoras da marca conquistam vasta clientela, majoritariamente
feminina e negra. Em geral de pouco poder aquisitivo, que desejam praticidade,
autoestima e o desejo em manter a textura e formatos dos fios crespos, sem
altos investimentos a curtos prazos.

REFERÊNCIAS
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http://belezanatural.com.br/categoria/imprensa/, [consultado em 12-8-2014].
BELEZA NATURAL, Quem somos: empresa, Disponível em
http://belezanatural.com.br/categoria/empresa/, [consultado em 12-8-2014],
2014.
BELEZA NATURAL, Quem somos: caravanas, Disponível em
http://belezanatural.com.br/caravanas/, [consultado em 12-8-2014], 2014.
BENTO, M.A.S., ―Branqueamento e Branquitude no Brasil‖, In: I., Carone &
M.A.S., Bento (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude
e branqueamento no Brasil, Petrópolis: Vozes, pp. 25-58, 2002.
CARVALHO, J.J., ―Racismo fenotípico e estética da segunda pele‖, Revista
cinética, [s/n], Disponível em http://www. revistacinetica.com.br, [consultado em
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COUTINHO, C.L R., ―Estética Negra: o jornal como fonte de pesquisa‖,
Programa de Pós- Graduação em História regional e local, Universidade do
Estado da Bahia, Disponível em http://www.alb.com.br, [consultado em 09-8-
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DANTAS, F.R., A atitude dos clientes do salão Beleza Natural. Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: Departamento de Administração. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2010.

153
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DOMINGUES, P.J., ―Negros de alma branca? A ideologia do branqueamento no


interior da comunidade negra em São Paulo, 1915-1930‖. Estudos Afro-
Asiáticos, (24), (03), Disponível em http://www.scielo.com.br, [consultado em
15-5-2013], 2002.
FIGUEIREDO, A., ―‗Cabelo, cabeluda, descabelada‘: identidade, consumo e
manipulação da aparência entre os negros brasileiros‖, In: XXVI Reunião Anual
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais,
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155
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE


SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

Eleonora Vaccarezza Santos


Ionara Magalhães de Souza

E
mbora tenhamos normas antirracistas que visam coibir
manifestações racistas, também sabe-se que a lei por si só não
garante que mulheres negras não sejam alvos do preconceito
racial, em especial quando esta busca se inserir no mercado de
trabalho. Assim, seja por sua estética, que não se adequa aos
padrões de beleza vigente, seja por não ter a devida escolarização para ocupar
determinados cargos de chefia, mas volta e meia sempre se arranjam
justificativas para a não-inserção desta mulher em espaços de poder e
prestígio. Por outro lado, desde cedo enfrenta o sofrimento psicossocial gerado
pelo racismo.
Falar da mulher negra e trazer a suas histórias foi um grande desafio
para a autora, posto que também vivenciou estes processos ao longo de sua
inserção no mercado de trabalho. Mas este capítulo vai além de reforçar as
trágicas estatísticas no que diz respeito à mulher negra, se o racismo por um
lado gera sofrimento, para a pessoa negra que cresce neste meio social hostil,
pode gerar algo ainda mais forte, que é a resiliência. Ou seja, a capacidade de
transformar situações adversas em benefícios para si. Estas mulheres que
contaram suas histórias demonstraram ter esta capacidade bastante
desenvolvida.

156
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

É neste sentido que este texto, produzido a partir de pesquisa feita pela
autora durante seu trabalho de conclusão de curso, serve de contribuição para
o despertar da/os psicólogos, em especial os que atendem em consultório para
a quantas anda a subjetividade da mulher negra, que empreenderam no projeto
de mobilidade social e dos mecanismos que estas mulheres tiveram que
desenvolver para conseguirem alcançar seus objetivos de vida. E como forma
de contextualização, alguns conceitos precisam ser melhor elucidados, como
exemplo o que venha ser racismo e/ou preconceito racial, que no senso
comum são tomados como iguais, porém há diferenças importantes que
precisam ser abordadas.
Dentro da psicologia social, há o entendimento do racismo como um
fenômeno mais amplo que o preconceito racial, pois engloba processos como a
discriminação e a exclusão social (LIMA; VALA, 2004). E o preconceito racial,
definido pela literatura mais tradicional como uma antipatia baseada em
generalização errada e inflexível que, ao ser sentida ou abertamente expressa,
pode ser dirigida a um grupo como um todo ou a um indivíduo por ser membro
de tal grupo sob forte influência do componente emocional (ALLPORT, 1954).
No que se refere à discriminação, influi o componente comportamental, quando
uma ação negativa injustificada ou prejudicial é contra os membros de
determinado grupo. Assim sendo, o preconceito é compreendido como um
fenômeno que nasce e se estabelece em meio às relações sociais (CAMINO;
SILVA; MACHADO, 2001), além de trazer em si uma noção de superioridade
para aquele que alimenta sentimentos preconceituosos. Logo, o preconceito
gera hierarquização, supondo que um ideal é mais correto que outro. E para
quem sofre o preconceito, tende a sofrer também perdas de autoestima e
autoconfiança (ARONSON; WILSON; ARKET, 1995).
No campo social, o racismo no Brasil é difundido como ―preconceito à
brasileira‖ ou ―racismo cordial‖, tipicamente subliminar. Conforme defendem
Turra e Venturi (1995, pag. 11): ―os brasileiros sabem haver, negam ter, mas
demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros‖. E como
então lutar contra algo que não existe? Não à toa, integrantes do Movimento
Negro, paulatinamente, lutavam para dar visibilidade ao problema do
preconceito racial, que tem na sua raiz, o racismo. Para as pessoas do
movimento, a luta deve ser baseada na reivindicação de direitos negados ao
povo negro desde a época em que se decretou o fim da escravatura. Contudo,
somente em 1994, o Estado brasileiro se declara racista, ou seja, reconhece
que o racismo está na sua estrutura social, daí iniciou-se um processo de
retomada às diversas reivindicações por políticas públicas afirmativas tão
importantes para a mobilidade social.

157
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

Nos estudos sobre relações raciais no Brasil, nota-se que a mobilidade


social sempre foi um tópico importante e utilizado para evidenciar o
falseamento da tese de que o preconceito racial seria menos importante que o
de classe (RIBEIRO, 2006). Embora na literatura sobre relações raciais, o
tópico da mobilidade social seja considerado fundamental para determinar se
há preconceito ou discriminação racial, no Brasil, esses estudos ainda não são
numerosos (RIBEIRO, 2006), sobretudo estudos que fazem a intersecção com
gênero e raça.
Estudos anteriores denunciam um cenário de dupla discriminação para a
mulher negra, pois além de carregar consigo o preconceito de gênero, ainda
acompanha o preconceito racial (BENTO, 1995; CARNEIRO, 2003;
CARNEIRO, 1995; SAFIOTHI, 1987; SILVA, 2010; SOARES, 2000). Mormente,
apontam para a ínfima presença da mulher negra nos principais indicadores,
sejam de saúde, educação, renda ou moradia (ABRAM, 2006; DIEESE, 2005;
OIT, 2006). Por um lado, percebe-se que a sociedade brasileira vem
presenciando melhorias em diversos indicadores, tais como uma maior
participação de gênero e raça no mercado de trabalho, no acesso à saúde, na
educação e no serviço público (OSÓRIO, 2006; SCHUCMAN, 2015; SILVA,
2010). Contudo, ainda pouco se sabe sobre o impacto no emocional desta
mulher que projeta sua mobilidade social em uma sociedade sujeita às normas
antirracistas, mas cujo preconceito racial, longe de acabar, tem tomado formas
cada vez mais veladas e sutis (CAMINO; SILVA; MACHADO, 2001).
A escolha deste enfoque também partiu de alegações de autores que
acreditam que o racismo se manifesta de modo diferente quando se leva em
consideração o fator gênero (ABRAM, 2006; COUTINHO, 2010; NUNES,
2010). De acordo com Brah (2006), as questões que afetam as mulheres não
deveriam ser tratadas de forma isolada de seus contextos de desigualdades
nacionais e internacionais. É neste sentido que a pesquisa de campo, presente
neste artigo, buscou peculiaridades pouco identificadas em estudos anteriores
envolvendo público que se encontra em movimento de ascensão.
A importância de trazer ―mulher negra‖, sua trajetória e estratégias de
mobilidade social como objeto de discussão se dá ao passo que há essa
necessidade de considerarmos que as questões raciais também perpassam o
gênero. A sociedade brasileira não é só racista, também há machismo na base
de sua formação identitária. Alguns questionamentos são: Como ocorre o
processo de mobilidade social para as mulheres negras? Há a presença do
preconceito e da discriminação racial na trajetória de mobilidade social de
mulheres negras? De que modo a mulher negra é afetada pelo preconceito e a
discriminação racial em sua trajetória de mobilidade social e que tipos de
estratégias esta desenvolve para si?

158
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

A fim de responder a tais inquietações, tem-se como objetivo deste


trabalho compreender a trajetória de mobilidade social de mulheres negras e
suas percepções frentes ao preconceito e à discriminação racial. E
especificamente: a) identificar quais as estratégias de mobilidade social foram
utilizadas pelas entrevistadas; b) verificar possíveis efeitos e implicações de
fenômenos como o preconceito e a discriminação racial para o seu emocional.
AS MULHERES E SUAS TRAJETÓRIAS
A pesquisa que ilustra este capítulo valeu-se da abordagem qualitativa,
uma vez que acreditava-se ser a mais adequada para chegar ao propósito
deste trabalho, que é o de compreender a realidade vivida pela mulher negra
ao buscar sua mobilidade social. O trabalho de campo foi realizado durante
dois meses, em Aracaju-Sergipe. Para alcançar as participantes, utilizamos a
técnica da ―bola de neve‖, em que uma entrevistada indicava outras possíveis
interessadas em participar da pesquisa, desde que fosse maior de 18 anos e
possuísse qualquer nível de ascensão social, traduzido por mobilidade social.
O contato foi realizado por telefone ou pessoalmente. No geral, demonstravam
certa expectativa positiva em relação ao que seria a entrevista. Seguindo os
critérios adotados em estudos anteriores, a mobilidade social é entendida neste
trabalho como o fenômeno no qual um indivíduo (ou um grupo) transita de uma
determinada posição social à outra (HASENBALG; DO VALLE SILVA, 1988;
RIBEIRO, 2006; SOUZA,1983).
Um roteiro com questões norteadoras foi elaborado para as entrevistas
com a técnica de ―história de vida‖ (PAULILO, 1999). Também foi utilizado um
questionário com perguntas que inferiam sobre a situação socioeconômica das
participantes. O termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado e
assinado pelas colaboradoras. Antes de partir a campo, foi feita uma entrevista
piloto com o objetivo de ajustar a pergunta e verificar qual deveria ser a postura
da entrevistadora frente às entrevistadas.
No geral, as entrevistas com a técnica de história de vida necessitavam
mais de uma escuta do que um diálogo entre pesquisadora e pesquisada.
Requeria da entrevistadora uma postura mais acolhedora e interativa, no
sentido de deixar a participante à vontade, sem intervir em suas falas. Afinal, o
que se desejava, ao utilizar este tipo de técnica, era perceber como cada uma
construía sua história pessoal. Realizamos, então, os seguintes
questionamentos: a) ―fale como ocorreu a sua trajetória no mercado de
trabalho, e como vem acontecendo até então‖; b) ―durante esse processo de
inserção, você teve alguma vivência de preconceito ou discriminação?‖.
Notamos que o recorte feito possibilitou que as entrevistadas direcionassem
mais o seu foco para as vivências que tiveram no mercado de trabalho, mas,
mesmo assim, ainda tínhamos detalhes de suas vidas familiar, amorosa,

159
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

escolar, ou seja, estes conteúdos estiveram presentes em suas falas. Assim,


as entrevistas duraram, em média, 30 minutos.
A análise do material transcrito se deu através dos procedimentos
descritos por (BARDIN,1977). Após ter concluído o procedimento denominado
por Bardin (1977), como ―leitura flutuante‖, passamos para a exploração do
material, sendo descrita por alguns pesquisadores como a etapa mais
cansativa. É nesta parte do processo que os dados brutos serão transformados
de forma organizada e logo agregados em unidades. A escolha das unidades
de registro dar-se-á a posteriori, conforme a exploração do material apresente
categorias temas que ―saltem‖ de seu conteúdo integral (FERREIRA, 1990).
Estas serão apresentadas por meio de três grandes categorias: a) ―trabalhar e
estudar – estratégias de mobilidade social‖; b) ―estudar e trabalhar – sobre
outras estratégias de mobilidade social‖ e; c) ―preconceito e discriminação
racial – percepções e enfrentamento‖.
Ao todo, 10 mulheres aceitaram colaborar com a pesquisa, com idades
variando entre 23-60 anos, com nível de escolaridade fundamental até a pós-
graduação, que se autodeclararam negras, conforme IBGE (2010). Este
número foi alcançado a partir do critério de maior abrangência dos relatos,
portanto procurou-se ampliar as faixas etárias para garantir uma diversificação
na produção de dados. Na época da pesquisa, todas elas estavam
empregadas, algumas em posições de comando, outras eram autônomas,
funcionárias de algum setor industrial e do setor de entretenimento. O perfil
socioeconômico das participantes, em consonância aos parâmetros do IBGE
(2010), situava-as entre as classes C e B.
De modo geral, a renda familiar das entrevistadas variava entre dois a
vinte salários-mínimos para as mulheres do setor público, e de um salário
mínimo e meio a sete salários mínimos para as mulheres inseridas no setor
privado, o que confere aos dados um caráter heterogêneo com variados graus
de mobilidade social. Em geral, elas relataram ter tido uma infância pobre, com
a casa sendo chefiada por apenas um dos pais (a mãe é recorrentemente
citada) sem a presença ou auxílio financeiro do outro cônjuge. Algumas delas
mencionaram terem sido criadas por ambos, uma das consulentes mencionou
ter sido criada por outro familiar (a avó), mas sem a presença de um
companheiro (nesse caso, o avô), e apenas uma delas não mencionou a
composição de sua família. As entrevistadas receberam nomes fictícios, para
que suas identidades fossem preservadas.
Nos relatos das entrevistadas, houve indícios de como certas
localizações socioeconômicas contam na hora de se inserir no mercado,
quando e onde se inserir. Contudo, uma ligeira melhora das condições de vida
e de acesso aos estudos se mostrou como um diferencial, tanto na inserção no

160
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

mercado de trabalho, como em relação ao tempo de estudos. Os achados que


se obteve tratam, em muitos aspectos, sobre o concurso público, o qual as
entrevistadas proclamaram como a alternativa mais eficaz, frente a um
mercado discriminador. Não obstante, houve situações em sua trajetória em
que o preconceito racial mesclou-se com o preconceito de gênero, gerando
uma dupla situação de discriminação. E como consequência destes
fenômenos, sente a necessidade de se impor, de colocar ao outro que ela
também é cidadã e goza dos mesmos direitos.

“Trabalhar cedo”
―Trabalhar cedo‖ foi um termo frequente nos discursos das
entrevistadas. Chama atenção a história de Milena, que iniciou aos doze anos
como doméstica, e conforme relatou durante a entrevista, era um fato
corriqueiro no local onde vivia com a avó:
Eu comecei a trabalhar eu tinha uns doze anos, em casa de família.
Eu trabalhei muito em casa de família, sempre trabalhei em casa de
família (...) trabalhava para ter minhas coisas, porque ela [avó] não
poderia me dar, roupa essas coisas (...) Mas a pessoa ia nas portas
com os carros „moça, tem alguém para tomar conta de meus filhos?‟
ai eu dizia: „não, eu vou‟, (...) era assim, agora não porque se rouba,
[sobre o fato de acontecerem furtos durante o trabalho doméstico] e
ninguém faz mais isso, mas antigamente era assim (MILENA, 38
anos, zeladora).

As mulheres negras estão em situações de trabalhos vulneráveis


(situações que englobam assalariados sem carteira de trabalho assinada).
Infelizmente, estas pesquisas acabam não contemplando os números do
trabalho infantil doméstico, o que dificulta a avaliação e a adoção de
estratégias que visem resolver essa dupla violação de direitos.
Uma realidade presente não só na vida de Milena, como na de Márcia,
inserida em uma escola de reforço, mas que não fugiu à regra:
Eu comecei dando aula de reforço em escola de banca desde meus
quinze anos, quando eu completei dezoito anos eu trabalhei como
auxiliar de professora numa escola particular, trabalhei durante um
ano, mas sem carteira assinada, por que não era formada, na época
eu cursava o pedagógico, mas não era formada, então nunca
assinaram minha carteira, mas pagavam direitinho (MÁRCIA, 35
anos, professora).

Estratégias de mobilidade social


Há um certo consenso entre teóricos das relações raciais, de que ser
negro no Brasil demanda vencer barreiras de preconceito que limitam a suas

161
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

oportunidades de vida e de mobilidade social (BENTO, 2007; FERNANDES,


1972; LIMA, 2002; NUNES, 2010), mas há de se convir que o preconceito de
gênero acompanhe essa mulher participante de tal segmento discriminado,
acarretando-lhe um duplo preconceito – de gênero e de raça (ABRAM, 2006;
COUTINHO, 2010; SAFIOTTI, 1987). Assim, pedíamos às entrevistadas: ―Fale
como ocorreu a sua trajetória no mercado de trabalho, e como vem
acontecendo até então‖. Tendo a maioria das entrevistadas relatado que havia
estudado e paralelamente trabalhado, algumas delas iniciando essa jornada
mais cedo que outras, como o caso de Clarice, Milena e Adriana. Também
trouxeram, em seus relatos, dificuldades encontradas pela mulher negra que
deseja ascender socialmente. E a realidade vivida por suas mães, que sem
instrução (educação formal), recebiam baixos salários e chefiavam o lar sem a
presença de um cônjuge. Esta é a recordação que Magda tinha de sua
infância:
Eu tive uma infância pobre, pobre, mas era uma pobreza que não era
de ficar com fome, mas uma pobreza que não me dava o luxo de ter
brinquedo, de ter duas fardas, então eu tinha uma farda só, eu tinha
que ter um sapato só. (...)Eu vim da escola pública, não trabalhava,
minha mãe era professora primária, então eu me sentia na obrigação
de estudar para mantê-la, obrigação de tirá-la, porque (...) professor
ganha pouco, principalmente professora primária, do ensino
fundamental, então ela me sustentou até o ensino médio
(...).(MAGDA, 54 anos, professora e diretora acadêmica).

Atualmente, com a criação das políticas públicas de acesso ao ensino,


este quadro, paulatinamente, vem se revertendo, à medida que se amplia o
acesso de segmentos historicamente excluídos do ingresso aos serviços
básicos disponibilizados pelo Estado (MUNANGA, 2001). Entretanto, Adriana,
que faz parte de outra geração em relação à de Magda, relata sobre a sua
inserção precoce no mercado de trabalho e das suas escolhas baseadas nos
escassos recursos. Após alguns anos tentando, enfim consegue chegar à
Universidade, contudo enfrenta alguns dilemas:
(...) Antes de prestar vestibular [avisei]: “mãe, vou fazer vestibular
para um curso que só tem à tarde. Pois de todos, o que mais eu me
identifiquei e gostei foi esse. A senhora me apoia?”. “Eu vou fazer, se
eu passar, vou ter que parar de trabalhar!”. Aí, minha mãe: “vá
Adriana, pode ir, já fizemos as contas” (...) “É para estudar? Pode ir,
de fome ninguém morre não!”. Eu trabalho desde os meus dezoito
anos, eu passei na faculdade, eu ia fazer vinte e seis, então assim,
você trabalha um tempão, [e agora] ficar sem dinheiro algum (...)
(ADRIANA, 28 anos, recepcionista).

Foram as políticas de ação afirmativas, ou mais comumente conhecidas


como ―cotas‖ raciais e/ou sociais, que possibilitaram o ingresso, de Adriana e

162
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

de maior parte da população negra excluída, ao sistema de ensino superior.


Adriana trabalhava e estudava, no entanto, ao entrar na Universidade se viu
com um dilema: ―permanecer no curso sem dinheiro algum, ou trabalhar e não
frequentar mais o curso‖. Ela não conseguia arranjar trabalho compatível com o
horário das aulas. Assim, para Adriana, que hoje parou de estudar e agora
trabalha como recepcionista num banco, o desafio era se manter no curso, já
que deixou de colaborar com a renda da família para ter acesso ao ensino
superior. A sua permanência poderia ter sido garantida, se à época de sua
entrada na universidade já houvessem programas destinados a auxiliar a
permanência estudantil na universidade, popularizado como ―bolsa
permanência‖, destinados a estudantes em situação de vulnerabilidade social,
quilombolas e indígenas (BRASIL, 2013).

“Estudar e trabalhar” – outras estratégias de mobilidade social


Assim como houve histórias nas quais as barreiras geradas pelo racismo
estrutural da sociedade brasileira impuseram dificuldades para as mulheres
que buscavam no trabalho e estudo a chave para ascenderem socialmente,
temos outros exemplos que demonstram que uma ligeira melhora das
condições de vida e de estudos podem fazer diferença, tanto na inserção no
mercado de trabalho como em relação ao tempo de estudos. O que nos leva
direto à realidade de Margarete, um pouco antes das políticas afirmativas
serem implantadas:
Eu me sentia na obrigação de passar porque eu estava sacrificando
elas, para darem aquele dinheiro, então eu cuidava da minha filha
pelo dia. Eu não trabalhava, mesmo por que eu era muito nova e não
tinha qualificação profissional, e eu achava que tinha que estudar (...)
então fui fazer o „pré‟ [preparatório para vestibular] (...) eu não saía,
para compensar tudo (...) (MARGARETE, 36 anos, diretora
carcerária).

Assim, para Margarete, o que sua família fez por ela foi visto como
sacrifício, pois ela sabia que eles dispunham de pouco recurso financeiro, logo
pagar um curso pré-vestibular seria um investimento ao qual ela haveria de
retornar aos seus familiares por meio de sua aprovação na universidade.

163
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

“Venci pelo estudo”


Eu quem coloquei minha mãe para estudar, eu quem matriculei minha
mãe, depois de formada (...). Agente não sabia o significado de „ah!
dá um dinheiro pro pré [vestibular]‟ Eu sabia por que eu vinha
estudando, eu estava começando a entender o que era estudar, ter
nível superior, mesmo porque, na minha família, eu sou a primeira a
ter nível superior completo (...). (MARGARETE, 36 anos, diretora
carcerária).

Na literatura que fala de mobilidade social, o estudo aparece como um


dos principais instrumentos para a conquista da ascensão social (RIBEIRO,
2006). Nas histórias de Margarete e de Clarice, mostra-se mais uma vez
presente. Por outro lado, Clarice vê no estudo apenas uma das vias para a sua
mudança de status, pois viu que apenas ter o diploma não lhe garantiria o tão
esperado emprego de professora. Ela, assim como as demais, lançou mão do
trabalho, como garantia de manutenção dos estudos. Para Clarice, um
complementava o outro:
(...) Senti que não era só a universidade que (...) faria com que eu
tivesse bons conhecimentos, eu teria que ter algo mais, por que para
me inserir dentro do mercado de trabalho, que é muito difícil,
principalmente para a mulher negra, a gente tem muitos obstáculos,
preconceito dentro da universidade, preconceito na área de
licenciatura, que era um curso que as pessoas que faziam eram por
que não tinham QI (...) Então, eu fui ampliei meus horizontes dentro
da universidade, continuei trabalhando e estudando (...). (Clarice, 46
anos, empresária).

Após passar em um concurso para professora do estado, Clarice


também resolveu abrir sua própria escola, voltada para o ensino do idioma que,
em determinado período de sua vida, lhe proporcionou morar fora do país e
―ampliar seus horizontes‖, conforme afirmou durante a entrevista.
Concurso público
As mulheres entrevistadas, em geral, trabalhavam em órgãos e
empresas públicas, ou em empresas privadas (de médio e grande porte),
porém a grande maioria tinha algum vínculo com o setor público. Desse modo,
os achados que obtivemos tratam, em muitos aspectos, sobre o concurso
público, o qual as entrevistadas proclamaram como a alternativa mais eficaz,
frente a um mercado discriminador, conforme alega Isadora:
Era muito difícil, mas assim, como era uma empresa estatal, eu acho
que as minhas dificuldades não eram tantas, quanto às pessoas que
acho que encaram numa empresa privada, eu acho que esse

164
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

processo na empresa privada é muito mais complicado, por que você


faz um concurso para uma empresa dessas, e já na empresa privada
não. Às vezes você entra, até pode ter uma seleção, mas é de uma
forma diferente, é a simpatia, enfim, nem sempre é a questão da
competência que prevalece (...) (ISADORA, 54 anos, tec. operações
de petróleo).

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios


(PNAD), constante no relatório sobre desigualdades raciais e de gênero no
serviço público, em 2002, dos 171,6 milhões de brasileiros, 580 mil eram
servidores em atividade no início de 2003, sendo que os homens se
encontravam numa proporção muito maior que a das mulheres (OSÓRIO,
2006). Logo, as desigualdades encontradas na pesquisa podem levar à
conclusão de algum tipo de barreira para o ingresso de mulheres no serviço
público. O que vai de encontro com o pensamento de Margarete, ao acreditar
que se trata de uma disputa legal:
(...) Aí eu dizia: „eu quero ser varredora de rua, mas eu quero ser
funcionária pública‟. (...) Todo concurso que aprecia, sendo do
estado, da prefeitura, eu fazia. (...) Eu já tinha feito esse concurso da
guarda prisional, e aí as pessoas diziam que eu tinha coragem, mas
eu: „eu quero passar, eu quero estabilidade‟ (...). Eu tive esse
objetivo, trabalhar e ser concursada, então eu acho que é diferente
você ser concursada, por que você vai disputar legalmente(...).
(MARGARETE, 36 anos, diretora carcerária).

Contudo, para as mulheres que entrevistamos, o concurso público não


deixou de ser menos atrativo para elas, uma vez que se garante estabilidade,
há um processo seletivo que não irá avaliar a aparência física, o que torna-o
menos injusto, uma vez que o que contará são as habilidades em resolver as
questões da prova e não, necessariamente, a simpatia (conforme relata a
Isadora).

Preconceito e discriminação racial – percepção e enfrentamento


Significativas mudanças históricas, como a exemplo da emergência dos
movimentos de denúncia do preconceito e de reivindicação dos Direitos
Humanos, levaram a mudanças nas formas de expressão do racismo e do
preconceito, a ponto de se acreditar que estas teriam deixado de existir (LIMA;
VALA, 2004). No entanto, o que se percebe é que apenas mudaram sua forma
de expressão (CAMINO; SILVA; MACHADO, 2001).
Imediatamente, perguntamos às nossas entrevistadas: ―durante esse
processo de inserção, você teve alguma vivência de preconceito ou
discriminação?‖. Ao que estas mulheres, em sua imensa maioria, diziam que
não, mas seguida de alguma pausa aqui ou ali relatavam algum fato ocorrido

165
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

com elas próprias ou com amigos mais próximos. Nessa categoria, procuramos
trazer a perspectiva dessas mulheres com relação ao preconceito, suas
vivências, percebidas ou não. Decidimos pela divisão destes relatos em duas
categorias de preconceito – de gênero e raça.

Vivências de preconceito racial


(...) Se eu disser a você que senti realmente qualquer tipo de
preconceito, discriminação na minha vida profissional e até pessoal,
eu estaria realmente mentindo, não senti (...) e eu sempre na minha
vida tanto profissional eu busco cultivar pra mim o que é bom, o que
soma, então assim, as coisas que podem ficar à margem que não vai
somar, eu não cultivo. (INGRID, 34 anos, Assistente Social).
Eu não sinto por nenhum âmbito pelo qual já passei atualmente,
aspecto de discriminação nenhuma, de forma alguma, mas é claro
que a gente sente (...) nas pessoas... Eu não sei se é admiração, ou
se [é] o que você está me perguntando: „como ela chegou até ali?‟
(...) (MAGDA, 54 anos, diretora acadêmica).

Por outro lado, tivemos relatos de mulheres que sofreram algum tipo de
preconceito e até discriminação, mas que as mesmas identificaram como uma
ação indireta, já que os agentes não se manifestaram abertamente, ou
souberam por terceiros. Isso ocorreu com Márcia:
(...) Logo no início, quando eu comecei a trabalhar como estagiaria no
município de Aracaju, eu tive um pequeno problema [pausa] por que,
inclusive, era por causa dos alunos, não me disseram diretamente
(...) mas eu vi os alunos comentando: „ah! Mas a professora é
pretinha, a professora é neguinha, a professora de fulano, de ciclano!‟
Mas os meus alunos me defendiam, uma vez uma aluna escreveu
uma cartinha para mim: „professora, gosto muito da senhora, mesmo
os meus coleguinhas lhe chamando de negra, pra mim a senhora é a
melhor professora do mundo!‟ Isso marcou a minha vida, foi quando
eu trabalhei como estagiária na escola da prefeitura (...) (MÁRCIA, 34
anos, professora).

Márcia sentiu na pele o preconceito, ao ser citada por seus pequenos


alunos de modo discriminatório, além disso, ela ainda conta que tiveram alguns
deles que se recusaram a terem aula com a mesma. Com base nessa
perspectiva, de que crianças a partir dos quatro anos de idade já expressam
atitudes racistas, que França (2013) vem desenvolvendo estudos sobre
racismo em crianças. Segundo ela, não que os mesmos já nasçam
preconceituosos, mas acredita-se que aprendam com os adultos os
estereótipos dos diferentes grupos raciais, e à medida que vão sendo
socializados em conformidade com as normas antirracistas vigentes, aprendem
a camuflarem tais atitudes (FRANÇA, 2013).

166
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

E quando esta mulher, além do preconceito racial, experimenta o


preconceito de gênero ou sexismo?

Vivências de preconceito de gênero


(...) eu fiz o concurso já para trabalhar no campo, e era pior ainda por
que só tinham homens, e eles achavam por que tinha uma mulher na
área, eles podiam mexer, podiam... Eu tive algumas dificuldades no
começo, até a gente se impor é meio complicado (...) (ISADORA, 56
anos, técnica em petróleo).

A luta contra o sexismo foi e continua a ser uma das bandeiras


levantadas pelo movimento feminista brasileiro. Com efeito, foram os
encaminhamentos da Constituição de 1988 que contemplaram cerca de 80%
das suas propostas, o que mudou radicalmente o status jurídico das mulheres
no Brasil (CARNEIRO, 2003). Entre os anos de 1988 a 1997, a lei recebeu
várias emendas abrangentes que ampliaram o leque em outras formas e
expressões de discriminação (BANDEIRA; BATISTA, 2002). Entre estas, estão
aquelas específicas que se observam no trabalho. No entanto, esta mulher há
de estar atenta para a menor tentativa de violação de seus direitos, como no
caso de Isadora, que acredita que precisa ―se impor‖ perante seus colegas.

Enfrentamento do preconceito e da discriminação racial


As reivindicações dos movimentos sociais se fez sentir sobre o contexto
legislativo, a exemplo, dos critérios relativos à ocupação diferencial dos cargos,
a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define em 21 artigos, os crimes
resultantes de preconceito de raça e de cor (BANDEIRA; BATISTA, 2002). A
Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas
aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religioso,
etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de comunicação ou por
publicação de qualquer natureza (BANDEIRA; BATISTA, 2002).
Entretanto, mesmo sendo amparada por lei antirracistas e/ou
antidiscriminatórias, a mulher negra ainda sente a necessidade de ter que se
impor, para não ser discriminada, conforme segue o relato de Renata:
(...) não me senti assim discriminada, por que eu sempre ocupei o
meu espaço, eu sempre me respeitei para ser respeitada, então até
hoje, com 23 anos de serviço, a gente sente alguma resistência em
alguns pontos, em alguma função (...), hoje eu estou comandando um
batalhão de guarda. (...) tem alguns que não gostam de mim, mas
pelo meu lado profissional, ninguém tem o que falar de mim, por que
eu respeito para ser respeitada (RENATA, 47 anos, coronel de
polícia).

167
TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

Todavia, quando alcançam níveis mais elevados, percebem, ainda, a


presença de um racismo ―cordial‖ (TURRA; VENTURINI, 1995). Expresso por
Magda, ao se referir a sua percepção frente ao preconceito:(...) O preconceito
não cessa, mas o respeito...ele se sobrepõe (...) a profissional se sobrepõe (...).
Assim, pode-se afirmar, com base nos relatos das entrevistadas, que a mulher
negra vivencia situações de preconceito racial em seu processo de mobilidade
social, que hora se mescla com o preconceito de gênero.

CONSIDERAÇÕES
Este trabalho procurou compreender as trajetórias de mobilidade social
de mulheres negras sergipanas e suas percepções frente ao preconceito e a
discriminação racial. Mediante análise do material das entrevistas, observou-se
que a estrutura familiar favorecia, de certo modo, o período em que essa
mulher iria se inserir no mercado de trabalho. Pois, em famílias nas quais os
progenitores possuíam formação escolar mais elevada, ocorreu, para a
entrevistada, a possibilidade de prolongar os seus estudos, possibilitando,
dentre outras ações, uma melhor colocação no mercado de trabalho. Em geral,
saíam a competir com formação profissional concluída ou em andamento.
Assim, podemos considerar que os anos de estudo exerceram um papel
importante em suas inserções no mercado de trabalho. Entretanto, foram
realizados com sacrifício, devido aos parcos recursos de que dispunham, para
mantê-las no sistema de ensino formal. A esse tipo de esforço, as
entrevistadas definiram como ―valor dado à educação‖, por visualizá-la como
via de acesso à mobilidade social. Prontamente, caberia a realização de
estudos comparativos, pois o lugar de partida se mostrou um indicador para o
nível-limite de mobilidade que estas mulheres poderiam alcançar.
A escolha profissional foi um assunto bastante abordado pelas mulheres
entrevistadas, uma vez que se mostrava como um determinante para o futuro
profissional e, consequentemente, para o tipo de ganhos que teriam. Dentre as
consulentes, havia as que tinham prestado o vestibular para uma universidade
pública de âmbito federal. Outras prestaram vestibular em instituições
particulares. As políticas públicas de acesso ao ensino superior mostraram-se
como elemento chave para a superação da inserção dessas mulheres nas
instituições de ensino superior. A falta destas políticas foi sentida por algumas
das entrevistadas, uma delas ao adentrar pelo sistema de cotas, não conseguiu
permanecer, devido à falta de programas de incentivo, como a exemplo do
―bolsa permanência‖, que à época da pesquisa, ainda não havia sido criado
(BRASIL, 2013).

168
Eleonora Vaccarezza Santos
Ionara Magalhães de Souza

Houve momentos nos relatos das trajetórias, em que o preconceito racial


mesclou-se com o preconceito de gênero, gerando uma dupla situação de
discriminação. E como consequência destes fenômenos, sentir necessidade de
se impor, de colocar ao outro que ela também é cidadã e goza dos mesmos
direitos. Foi algo que se notou de contraditório nos discursos, pois ao mesmo
tempo em que declararam inicialmente não terem sido discriminadas, falavam
de alguns mecanismos para ―coibir‖ possíveis discriminações. O que Paim e
Pereira (2011, p.11) defendem como ―uma forma de manter a autoestima
elevada é perceber que a discriminação racial contra o grupo existe, mas
relatar que nunca sofreu esta discriminação como membro deste‖. Contudo,
algumas delas que adentraram o mercado por meio do concurso público e
cresceram em suas carreiras profissionais ou em seus setores, percebiam no
reconhecimento profissional, a superação de preconceitos.
Também se apreendeu, em seus relatos, uma tendência à resiliência,
visto que conseguiram transformar situações de precariedade e falta de
recursos na infância, em propulsores de seu crescimento. Outro aspecto
revelado durante as análises foi a solidariedade das mulheres entrevistadas, ao
ajudarem familiares que acreditavam ter menos recursos, ou mesmo deixado
de buscar ganhos pessoais (como exemplo de Adriana) em benefício da família
e da comunidade onde viviam. Por fim, dados como esses que apresentamos
nos levam a compreender que a educação, conjuntamente com o trabalho,
ainda é comumente utilizada como estratégias para a mobilidade social da
mulher negra no Brasil. E o preconceito e a discriminação racial ainda se
apresentam como problemas a serem superados por esta mulher a qual busca
construir para si um projeto de mobilidade social.

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172
CAPÍTULO 10

RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP:


DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO
PSICOLÓGICA

Marcelo Oliveira

N
o dia 19 de dezembro de 2002, no Conselho Federal de
Psicologia, foi criada a resolução 018/2002. Esta resolução
estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao
preconceito e à discriminação racial. Para entender sua
importância, é preciso considerar que se o racismo humilha e a
humilhação social faz sofrer, é sim da competência da Psicologia
trabalhar no combate e enfrentamento do fenômeno, não colaborando para a
sua reprodução e dos efeitos psicossociais gerados pelo preconceito e
discriminação racial. Assim, este capítulo visa expor e ampliar, a luz da resolução
018/2002, as discussões levantadas durante os trabalhos realizados durante o II
Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI-2016).
Nos séculos XIX e até meados do século XX, o racismo firmou-se como
doutrina, em especial no meio científico que difundia a ideia de raça,
reinterpretando toda a história à luz desta perspectiva, reduzindo as diferenças

173
RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP:
DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

à essência das “leis da natureza”, e mesmo havendo críticas com relação a esse
tipo de determinismo, tal visão avançava e constituindo-se como uma das
características do racismo, embasou o extermínio de milhões de judeus e
ciganos pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, sendo mais
tarde o racismo universalmente repudiado (BORGES; MEDEIROS; ADESKY,
2002).
Mas como o racismo se manifesta? E quais são essas manifestações?
Encontramos em Bento (2002, p. 27-28) uma definição do que venha a ser uma
de suas maneiras de manifestar-se – a discriminação racial, e a descreve:
No campo da teoria da discriminação como interesse, a noção de
privilégio é essencial. A discriminação racial teria como motor a
manutenção e a conquista de privilégios de um grupo sobre outro,
independentemente do fato de ser intencional ou apoiada em
preconceito. Em minha dissertação de mestrado, discuto essa questão
que sempre me inquietou, que é o fato de que a discriminação racial
pode ter origem em outros processos sociais e psicológicos que
extrapolam o preconceito. O desejo de manter o próprio privilégio
branco (teoria da discriminação com base no interesse), combinado ou
não com um sentimento de rejeição aos negros, pode gerar
discriminação.

De modo que compreendemos a discriminação racial como uma


manifestação menos subjetiva do racismo e mais revelada em práticas, tomando
como aporte a ideologia racista. Os tipos e as formas de racismos existentes
abrangem três níveis: individual, cultural e institucional, e diferentemente do
preconceito, manifesta-se por meio de práticas como a exclusão e a
discriminação (LIMA; VALA, 2004). E o racismo individual é o que estaria mais
próximo do preconceito (NUNES, 2010). No Brasil, acredita-se que ele seja
estrutural, ou seja, encontra-se na base da sociedade, portanto pode estar
presente nas diferentes esferas, sejam elas culturais, individuais ou
institucionais.
A Resolução da qual este GD debateu faz referência ao Código de Ética
Profissional dos Psicólogos, em que se tem o Art. VI dos Princípios
Fundamentais, que diz: “O Psicólogo colaborará na criação de condições que
visem a eliminar a opressão e a marginalização do ser humano”.
Contudo, vale ressaltar que o texto do Código de Ética, editado em 2005,
traz algumas modificações em seu texto, mas podemos encontrar no Art. I e no
Art. II dos Princípios Fundamentais, respectivamente: “O psicólogo baseará o
seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade
e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a
Declaração Universal dos Direitos Humanos”; e “O psicólogo trabalhará visando
promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e

174
Marcelo Oliveira

contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação,


exploração, violência, crueldade e opressão”.
No Grupo de Discussão do II SEMPRI, foram debatidos os artigos que
esta Resolução traz, explorando seus significados.
Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da
profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o
preconceito e para a eliminação do racismo.
Nair Iracema Silveira dos Santos, do departamento de Psicologia Social e
Institucional da UFRS, diz que:
“A ética refere-se a uma construção permanente de si e implica uma
atitude de crítica constante de nosso ser histórico e dos valores que conduzem
nossas ações no mundo. O papel da psicologia é justamente o de fazer com que
tanto os indivíduos quanto os grupos e instituições percebam que os lugares e
as escolhas que fazemos não são neutros; ao contrário, refletem os valores e os
jogos de verdade que marcam a produção da nossa subjetividade e nossas
escolhas. A ética está relacionada às nossas práticas, aos modos de trabalhar e
de se relacionar, às formas como nos conduzimos como profissionais em
qualquer contexto, exigindo uma permanente análise das implicações, dos
lugares que ocupamos, das lógicas que regulam nossas ações e dos efeitos de
nossas práticas na vida das pessoas e dos grupos com os quais trabalhamos”.
A proposta do artigo no Código de Ética não é uma diminuição, mas a
extinção do racismo, da intolerância. Isso leva a pensar que o psicólogo não
deve estar numa posição neutra ou meeira. Deve saber identificar toda e
qualquer manifestação de racismo e combatê-la. O silêncio alimenta o
preconceito, fazendo crer que a opinião própria e a postura desdenhosa com o
outro é superior à dignidade humana.
Art. 2º - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a
discriminação ou preconceito de raça ou etnia.
Para fazer isso, é preciso que os psicólogos sejam capazes de enxergar
onde existe preconceito. Pois discriminação racial não se refere somente à cor
da pele, mas suas culturas e religiosidades. Então faz-se necessário que os
profissionais entendam e eles mesmos não tenham preconceito com tais
referências de origem africana.
Por exemplo, tomemos a divindade chamada Exu. Os missionários
cristãos, quando começaram a catequizar o Brasil, ao perceberem o grande
poder que Exu exercia entre os adeptos do candomblé, começaram a execrá-lo
e transformá-lo num ser maligno e perigoso e sincretizaram-no como a figura do
diabo no catolicismo. Infelizmente, sua figura continua sendo vilipendiada pela
dominação de movimentos religiosos que ditam normas e pautam valores no

175
RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP:
DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

imaginário coletivo. Então, é preciso saber desse tipo de história para saber
combater as discriminações com total embasamento.
A intolerância religiosa também vem se configurando como tema de
preocupação da Psicologia, tanto de forma indireta, como na categorização de
graus de discriminação (MATA, 2009), bem como de forma direta, considerando,
principalmente, as estratégias de copping utilizadas por líderes do Candomblé
frente aos ataques neopentecostais (FILHO, 2009).
A intolerância religiosa é: “Toda distinção, exclusão, restrição ou
preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou
institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção
religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou
litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, que atente
contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras, ou seja, capaz de
fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos”. (BAHIA,
2014, p. 1)
Essa intransigência caracteriza-se como um fenômeno que inclui o
desprezo, o desrespeito, evoluindo para ações mais insidiosas, como a
segregação e os ataques às pessoas e às propriedades e símbolos que
representam as religiões profanadas.
As ocorrências de intolerância religiosa, quase sua totalidade contra as
religiões de tradições africanas, caracterizam-se pelas formas mais agressivas
e danosas de preconceito e discriminação. Em geral, atingem uma coletividade
de forma concreta e subjetiva, fragilizando a integridade da segurança e do
sagrado ao mesmo tempo.
Fragilizam a todos de forma individual e coletiva, uma vez que se trata de
negar crenças centrais, estruturantes do indivíduo e da sua compreensão de
mundo. Tais atos são uma forma de aniquilação do legado cultural dos povos da
diáspora africana, desestruturando uma forma de manutenção de sua cultura e
saberes.
No Brasil, é sabido que o Cristianismo utilizou a sua influência para
justificar o escravismo e demonizar as manifestações religiosas de negros e
índios (SANTOS, 1994). Isso ainda ocorre nos dias atuais, como fica explicitado
nos casos de intolerância religiosa. No nosso caso, o racismo e a intolerância
religiosa andam lado a lado.
Art. 3º - Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes
e nem se omitirão perante o crime do racismo.
Um dos participantes contou a seguinte metáfora: “um sujeito morreu e foi
lhe dado a escolha entre o céu e o inferno. E ficou em cima do muro, olhando
para um lado e para o outro, tentando escolher. Do lado do céu, os anjos ficavam

176
Marcelo Oliveira

gritando para vir para aquele lado, pois era bom e tudo mais. E do lado do inferno,
o diabo apenas observava calado. Chegou um capeta menor e falou para o diabo
que se ele não fizesse nada, perderiam o sujeito para o céu. Ao que o diabo
respondeu: ‘Tolo! Em cima do muro, já é o meu lado! ’”.
A célebre frase do filósofo anglo-irlandês Edmund Burke, que viveu no
século XVIII, também foi lembrada: “a única coisa necessária para que o mal
triunfe é que os bons homens não façam nada”.
Art. 4º - Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas
psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos
ou discriminação racial.
E se fosse possível usar os instrumentos e técnicas para dirimir tais
discriminações? E se pudesse utilizar todas as ferramentas possíveis para lutar
nesta guerra?
Vimos o exemplo do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP 03)
o qual lançou uma cartilha onde divulga publicações e pesquisas de psicólogos
com a temática racial e do nosso referido Conselho Regional de Sergipe, que
tem fomentado ao longo destes quase dois anos, a discussão da temática nos
mais diversos espaços e, atualmente, o Conselho Federal de Psicologia (CFP)
tomou para si a responsabilidade de atualizar as referências da cartilha no site
da instituição.
E nisso também se levantou a questão das cotas. O que dizem as
pesquisas e o que, de fato, elas geram? Quais seus resultados?
Na introdução a esta temática, foi exibido um vídeo com o ator Hélio de
La Peña, o qual comenta como vê a política de cotas universitárias: “O ideal seria
termos colégios de alto nível abertos à população de baixa renda em favelas e
bairros pobres. Isso favoreceria pessoas negras de classe baixa a se
capacitarem para disputar vagas em igualdade de condições, em vez de terem
o acesso à universidade facilitado. Mas estamos longe disso. As cotas, no
momento, beneficiam muitos estudantes, mas devem ser vistas como medidas
paliativas. Eu, por exemplo, se fosse jovem, hoje, estudante do São Bento, iria
disputar uma vaga plena. Ia querer a vaga de branco”.
Art. 5º - Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que
sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de
culturas institucionais discriminatórias.
Surgiu a questão: de que maneira os psicólogos podem efetivamente
fazer a diferença nesta representação social? Para compreender o que se pode
fazer, é útil primeiro entender a natureza do próprio preconceito.
Hoje, o Dr. Vamik Volkan é psiquiatra na Universidade da Virgínia, mas
ele lembra o que foi ser criado numa família turca na ilha de Chipre, então

177
RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP:
DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

seriamente contestada entre turcos e gregos. Quando criança, Volkan ouvia


rumores de que o cordão da cintura do povo grego tinha um nó para cada criança
turca que os estrangulara, e lembra-se do tom de consternação com que lhe
disseram que os vizinhos gregos comiam porco, cuja carne era considerada
imunda demais em sua cultura turca.
Agora, como estudioso do conflito étnico, ele cita essas memórias de
infância para mostrar como os ódios entre grupos são mantidos vivos pelos anos
afora, à medida que cada geração é mergulhada em preconceito hostis como
esses. O preço psicológico da lealdade ao próprio grupo pode ser a antipatia por
outro, sobretudo quando há uma longa história de inimizade entre os grupos
(ALPPORT, 1954).
Os preconceitos são uma espécie de aprendizado emocional que ocorrem
cedo na vida, tornando essas reações especialmente difíceis de erradicar,
mesmo em pessoas que, adultas, acreditam ser errado tê-las, outro ponto que
tem pesado diz respeito a como as crianças que sofrem com o preconceito racial
estão sendo socializadas para lidar com as situações de discriminação. França
(2011) realizou um estudo junto às mães de crianças indígenas, negras e
mulatas, do estado de Sergipe, e constatou que as mesmas cultivavam valores
da autonomia e da autorrealização para os seus filhos, além de os socializarem
para negarem a existência do preconceito e com valores da igualdade. O que
pode ser percebido como pouco eficaz, posto que, no momento em que esta
criança se deparar com situações nas quais as diferenças são postas como
empecilho para sua autorrealização, a mesma poderá não saber como agir
(FRANÇA, 2011).
A tenacidade dos preconceitos sutis pode explicar por que, nos últimos
quarenta anos, mais ou menos, as atitudes raciais dos americanos brancos em
relação aos negros se tomaram cada vez mais tolerantes, mas persistem formas
mais sutis de preconceito; as pessoas negam atitudes racistas quando ainda
agem com preconceitos encobertos. Quando perguntadas, tais pessoas dizem
que não sentem intolerância, mas em situações ambíguas ainda agem de forma
preconceituosa, embora apresentem outra justificação que não o preconceito.
Essa tendenciosidade pode assumir a forma, digamos, de um alto administrador
branco que julga não ter preconceitos rejeitar um candidato negro a um emprego,
ostensivamente não por sua raça, mas porque sua educação ou experiência não
são muito adequadas para o trabalho, enquanto emprega um candidato branco
com a mesma formação.
Uma frase dita pelo ator norte-americano Morgan Freeman iniciou a
discussão: “o dia em que pararem de pensar em consciência negra, branca ou
amarela e começarem a pensar em consciência humana, aí o racismo acaba”.
As opiniões a esta frase foram divergentes. Por um lado, é o ideal a se alcançar,

178
Marcelo Oliveira

mas por outro, ainda há muita descriminalização para simplesmente ignorar,


silenciar e não se levantar com todas as forças contra as ações racistas.
Provas de que a situação está caótica e que precisa ser transformada
urgentemente são os dados da Comissão Nacional Contra a Discriminação
Racial: 70 % dos negros trabalham em serviços não técnicos; 80,9% das
mulheres negras ganham até dois salários-mínimos; 62% dos homens negros
ganham até dois salários-mínimos; 80% dos negros moram em favelas ou em
locais insalubres; 87% das crianças fora das escolas são negras; 47% dos
negros concluíram o segundo grau; 40,25% dos homens negros são analfabetos
contra 18,5% dos brancos; Somente 1% dos negros completam a faculdade; A
renda de uma família negra é de apenas R$ 689,00 contra a de uma família
branca, que é de R$ 1440,00. E o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da
população negra brasileira ocupa a 107ª posição no ranking das Nações Unidas,
enquanto o da população branca está no 46ª lugar.
Outro ponto referente a este artigo é que os psicólogos não devem “vestir
e desvestir” sua postura como psicólogo. Ou seja, quando der alguma opinião
que fere o Código de Ética, simplesmente dizer que não está falando como
psicólogo, mas como uma pessoa comum, como um pastor, ou seja, como for.
Em 7 de fevereiro de 2013, o Conselho Federal de Psicologia publicou
uma nota de repreensão a Silas Malafaia, que é graduado em Psicologia, em
razão de suas declarações na entrevista ao programa de Marília Gabriela.
Segundo o Conselho, a "atitude desrespeitosa de Malafaia com homossexuais
ressalta um tipo de comportamento preconceituoso que não se insere, em
hipótese alguma, no tipo de sociedade que a Psicologia vem trabalhando para
construir com outros atores sociais igualmente sensíveis e defensores dos
Direitos Humanos". O CFP explicou que, na visão corrente da Psicologia, a
homossexualidade não pode ser considerada doença, desvio ou perversão.
Nesse sentido, o pastor "agrediu a perspectiva dos direitos humanos a uma
cultura de paz e de uma sociedade que contemple a diversidade e o respeito à
livre orientação". O CFP considerou "lamentável que exista um profissional que
defenda uma posição de retrocesso que chega a ser quase inquisitório,
colocando como vertentes do seu pensamento a exclusão e o preconceito na
leitura dos direitos humanos." Este psicólogo também atacou o jornalista Ricardo
Boechat, quando este comentou em seu programa que “os evangélicos são uma
massa monumental de brasileiros, sempre ficam muito sensíveis quando se faz
alguma crítica que generalize a abordagem. E nesse sentido, eu quero deixar
bem claro que essa crítica é uma crítica muito dirigida a pastores e algumas
igrejas neopentecostais, e alguns grupos específicos dentro de algumas
agremiações religiosas que estão estimulando e levando a cabo ações de
hostilidade contra outras religiões, especialmente as religiões de origem
africana".

179
RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP:
DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

Então, caberia ao CFP uma postura mais firme e incisiva, cabendo até
mesmo a cassação do registro de um profissional que se comporte desta
maneira tão instigante à descriminalização.
Na conclusão, uma leitura da reportagem “Meu psicólogo disse que
racismo não existe”. Nele, há depoimentos de pacientes que revelam que muitos
psicólogos não sabem lidar com questões raciais no consultório. Psicólogos que
disseram que a dor que seu paciente sofria era criação da sua mente.
A maior carência é uma formação que aborde o problema do racismo no
Brasil. Para Cinthia Vilas Boas, psicóloga e militante do movimento negro, o
problema começa nos cursos de formação. “A realidade está muito longe do que
chamamos de transversalidade”, afirma. Embora o racismo seja um profundo
problema no Brasil, a formação dos psicólogos ainda não reconhece a
discriminação racial como uma fonte de adoecimento psíquico.
“As políticas públicas estão aí; já falamos em conferências e agora
precisamos tirá-las do papel”, afirma Vilas Boas. “A Política Nacional de saúde
da população negra, que pode diminuir disparidades raciais na saúde, é pouco
conhecida, bem como a Lei 10.639, entre outras várias leis, campanhas e
diretrizes. A fim de avançar no tema, o Conselho Federal de Psicologia criou a
Resolução Nº 018, em 2002, que estabelece normas de atuação para psicólogas
e psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial”, explica. Porém,
na prática, a realidade é outra. “Existe a discriminação institucional, quando
profissionais da área não estão preparados para atender a população negra ou
até são preconceituosos, levando a diferenças e desvantagens no tratamento
devido à raça. Para o profissional da saúde, é importante trabalhar a equidade
do SUS, é importante que ele saiba trabalhar as diferenças”.
A educação pode ser um ponto chave para modificar esse quadro – Vilas
Boas explica que é necessário construir um espaço legitimo e confortável para
que as pessoas negras construam sua identidade.

REFERÊNCIAS
ALLPORT, Gordon. W., The nature of prejudice, New York: Basic Books, 1954.
BAHIA, Governo do Estado. Estatuto da Igualdade Racial, em
http://www.sepromi. ba.gov.br/wp-content/uploads/2014/03/estatuto-da-
igualdade-racial-e-de-combate- %c3%80-intoler%c3%82ncia-religiosa3.pdf.
Aceso em 29 de Junho 2014.
FILHO, M. V. Estratégias de enfrentamento do povo de santo frente às crenças
socialmente compartilhadas sobre o candomblé (dissertação). Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social, Universidade Federal da Bahia - UFBA,
Salvador.

180
Marcelo Oliveira

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional: a teoria revolucionária que redefine


o que é ser inteligente. Editora Objetiva, 1995.
MATA, V. P., Discriminação Racial: um estudo dos episódios registrados na
promotoria de combate ao racismo do Ministério Público de Salvador
(dissertação). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade
Federal da Bahia. UFBA, Salvador, 2012.
OLIVEIRA, Fábio Dantas de. Águas de Aruanda. Pará de Minas, MG:
VirtualBooks Editora, 2014.
Sites:
http://www.ufrgs.br/e-psico/etica/temas_atuais/questoes-etnicas-texto.html
http://site.cfp.org.br/cfp-se-posiciona-contrariamente-declaracoes-do-pastor-
silas-malafaia/
http://www.emresumo.com.br/2015/06/19/treta-pastor-silas-malafaia-jornalista-
ricardo-boechat-trocam-ofensas_99022.html
http://revistaquem.globo.com/Entrevista/noticia/2016/01/nao-sou-animador-de-
mesa-de-bar-diz-helio-de-la-pena.html
http://site.cfp.org.br/legislacao/codigo-de-etica/
http://relacoesraciais.cfp.org.br/
http://www.inf.ufes.br/~fvarejao/cs/PreconceitoRacial.htm
http://www.revistaforum.com.br/2015/06/25/meu-psicologo-disse-que-racismo-
nao-existe

181
CAPÍTULO 11

RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO


PSICOLÓGICA

Djean Ribeiro Gomes


Valdisia Pereira da Mata

A
s transformações sociais e políticas para promoção e garantia
de direitos como a liberdade e expressão religiosa são frutos de
conquistas de lutas sociais, que culminaram no princípio
constitucional da Laicidade. Ao mesmo tempo em que se
registram avanços nesse sentido, ocorrem mudanças legais,
organizadas por grupos políticos ligados a denominações
religiosas específicas. Essas alterações provocam retrocessos, muitos com
apoio de religiosos intolerantes que também são profissionais de psicologia,
violando o código de ética profissional.
A configuração das relações sócio religiosas no Brasil tem grande
relação com as relações sócio raciais, pois são decorrentes dos grandes fluxos

182
Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

de povos oriundos dos continentes africano, europeu, asiático e dos povos


ameríndios que aqui já estavam. Aliado a isso existia uma cultura político-
econômica de exploração colonial e escravagista, com brancos católicos à
frente, que estruturaram uma sociedade hierarquizada fixando os diversos
segmentos populacionais em lugares distintos, gerando assimetrias e exclusão
social (VALDISIA1 MATA, 2009) que se perpetuaram ao longo do tempo, por
diversas maneiras, cristalizando lugares socialmente construídos.
Esse trabalho se propõe a tecer reflexões sobre o processo de
construção do racismo e intolerância religiosa no Brasil e a atuação profissional
na psicologia, apontando percursos históricos, produções de práticas
violadoras e atentando a novos horizontes de um exercício profissional com
compromisso ético, promotor de direitos e potencializador da democracia.

VIOLAÇÕES DE DIREITOS E A PSICOLOGIA


A psicologia brasileira surge oficialmente enquanto profissão em um
período de recessão de direitos, aliada aos grupos hegemônicos, com uso de
seus conhecimentos em prol do controle da população, a exemplo do uso de
hipnose em interrogatórios, prescrito no primeiro código de ética (MARCIA
AMENDÔLA, 2014). Foi exatamente no período da Ditadura Militar (1964-1985)
que a profissão foi sancionada pela lei nº 4119, regulamentada pelo decreto nº
53.464. Após esse período de institucionalização da violação de direitos, a
Carta Magna de 1988, considerada a Constituição Cidadã pelo seu viés
garantidor de direitos, passa a ser a principal diretriz normativa a ser seguida
por todas as instâncias. Em conformidade constitucional, a Psicologia e suas
orientações normativas específicas, a exemplo do código de ética profissional,
seguem os parâmetros legais que, em tese, garantem e promovem a dignidade
humana em todos os aspectos.
Apesar dos avanços legislativos vigentes, registros históricos datados
entre o século XIX a meados do século XX revelam um legado intensificado de
perseguição e discriminação institucionalizadas e permeabilizadas em diversas
áreas do saber. Durante o final do século XIX os conhecimentos psicológicos
eram utilizados aliados aos saberes biomédicos, tendo na sua materialização
mais eficiente a atribuição – negativa, biologicista e determinista – de
características físicas e morais de escravizados e ex-escravizados como
suspeitos e perigosos, sujeitados ao crivo do controle, da higienização e
rejeição social.
No período oitocentista, a partir de intercâmbios intelectuais com a
Europa de cunho eugenista e darwinista, como os produzidos por Cesare

1
Na primeira vez que uma referência for citada, virá acompanhada do primeiro nome
para evidenciar a diferença de gênero de cada autor(a)

183
RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

Lombroso e Arthur de Gobineau, o Brasil passa adotar através de diversas


áreas científicas como a Psiquiatria, Neurologia, Medicina social e Medicina
legal, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e Bahia (MITSUKO
ANTUNES, 2012), investigações científicas alinhadas ao pensamento
lombrosiano tendo um dos principais expoentes, o médico Nina Rodrigues. O
legista e também antropólogo produziu estudos e potencializou um discurso
bastante enviesado no período escravocrata, sobre a perspectiva da raça como
fator preditivo das desigualdades sociais e morais, validando uma suposta
hierarquia racial, justificadora da organização social. A partir do pressuposto
epistemológico positivista com base no evolucionismo social, foi possível
produzir hipóteses e discursos relacionando raça, patologias psiquiátricas e
tipologias criminais. Esses impulsionaram mudanças na ordem social, onde ser
de um grupo racial e adotar determinados elementos culturais significa infra-
humanidade, merecedores das piores mazelas da sociedade. Em uma de suas
obras, Africanos no Brasil, Nina Rodrigues analisou diversas manifestações
religiosas dos negros africanos, colocando-as no cerne de fetichistas, animistas
e degeneradas. Concluiu até que nesse período o desenvolvimento econômico
baiano retardatário, estava ligado a grande expressão numérica de pessoas
negras e mestiças no Estado, que com suas doenças, práticas culturais e
religiosas, influenciavam o restante da população (NINA RODRIGUES, 2010).
Essas produções acerca da racialidade e religiosidade tiveram efeitos que
perduraram através dos tempos e se arraigaram através das mudanças sociais
e políticas. Antunes (2012) nos lembra que nas Faculdades de Medicina do Rio
de Janeiro e Bahia do final do século XIX, foi produzido e sustentado esse
discurso a partir de saberes da psicologia.

Assim foi também com muitas teses produzidas nesse período, das
quais muitas relacionadas às questões psicológicas. Além das teses,
encontram-se outros escritos produzidos por médicos, como livros,
artigos em revistas e jornais e transcrição de conferências, nos quais
é também recorrente a presença de temas de natureza psicológica,
muitos dos quais apresentavam e defendiam (ANTUNES, 2012, p. 51-
52).

Após o processo de proclamação da república e revogação do sistema


escravocrata, diversas mudanças representativas ocorreram, a exemplo da
separação entre Estado e religião católica, oficial à época, provocando a
ampliação do direito à liberdade de crença e culto às diversas religiões. Todavia,
em relação às religiões de matriz africana, o que se viu foi uma repressão
desenfreada e tentativa de eliminação pela via da patologização, criminalização
e demonização. Maurício Araújo (2007) põe em xeque o ambiente de liberdade
de crença e culto pós-abolição e proclamação da república, uma vez que
ocorreu o oposto com as religiões de matrizes africanas. O declínio do sistema
escravocrata foi conduzido por um novo mecanismo e ideologia de dominação,

184
Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

o Biopoder sobre essa população e a ideologia supremacista de base


eugenista, como meios para desenvolver o país entre as elites mundiais,
extirpando a população negra e toda a sua cultura, tidas como degeneradas.
Dessa forma, a produção da intolerância direcionada às religiões de matrizes
africanas tem por fundamento o racismo através da desumanização de
africanos(as) escravizados(as), coisificação, criminalização e bestialização
dessas pessoas e de toda a cultura que lhes fosse relacionada (ARAÚJO,
2007). Dessa forma, há uma estreita ligação entre intolerância religiosa e
racismo quando se trata de religiosidades negras.
A via da patologização e criminalização foram as principais searas de
contribuição da psicologia, pois justificavam através de uma lógica racista e
intolerante que as pessoas negras tinham tendências a práticas criminosas,
charlatanismo e distúrbios psíquicos.
A Psicologia, assim como muitas outras áreas do conhecimento,
utilizou sua credibilidade em prol da disseminação de teorias que
sustentavam crenças nas diferenças entre os grupos, tais como
inteligência, temperamento, comportamentos, com base na cor da
pele e outros elementos como estatura, formato de crânio, tal como
disseminado pelas teorias positivistas em voga no século XIX, que
inspiraram um importante corrente da medicina no Brasil (VALDISIA
MATA; DJEAN SANTOS, 2015, p. 44).

Os efeitos das produções desses discursos nas instituições públicas


tiveram repercussões diversas, principalmente nos serviços ligados à
segurança pública, sanitaristas e de saúde mental. Ari Oro e Daniel Bem (2007)
relatam que no decorrer do século XX, o candomblé sofreu diversas
perseguições e proibições de suas práticas religiosas durante o Governo
Getúlio Vargas e o Estado Novo no Rio de Janeiro. Os espaços religiosos
precisavam de autorização para celebrar suas liturgias e na maioria das vezes
os templos eram invadidos durante as cerimônias, os objetos litúrgicos
confiscados e seus adeptos presos ou detidos. No mesmo período, em
Pernambuco, foi registrado o aumento da perseguição e controle das
manifestações de práticas religiosas de matriz africana e espírita através da
Comissão de Censura de Diversões, da Secretaria de Segurança Pública e
pelo Instituto de Psicologia, que requeriam os seguintes critérios:
“1.º) saúde psiquiátrica completa de babalorixá ou médium de centro
espírita; 2.º) determinação da I.M. [idade mental] e Q.I. (escala Binet-
Simon-Terman, revisão pernambucana) e perfil psicológico de
Rossolimo (adaptação pernambucana) 3.º) entrega de estatutos e
regulamentos das seitas e centros espíritas, assim como as listas dos
dias de funções; 4.º) registros desses centros em livro especial; 5.º)
compromisso de não se entregarem à prática ilegal da medicina e
permitirem visitas de nossos auxiliares” (CERQUEIRA, 1989 apud
MASIERO, 2002, p. 6).

185
RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

Os discursos negativos propagados sistematicamente a respeito dessas


religiões construíram um ideário de inferioridade civilizatória da população
negra, através de expedientes legais, jornalísticos e científicos, que as
demonizavam ao associar suas práticas religiosas à rituais de bruxaria e
feitiçaria; criminalizavam acusando suas formas e relações de cuidado ao
exercício ilegal da medicina; e, a patologizavam classificando os seus adeptos
como pessoas com tendência a distúrbios psíquicos e à histeria (MARIA
ANDRÉ, 2007).
Ao longo do tempo, as religiões de matrizes africanas se instituíram, e
ainda são instituídas, como estruturas sólidas de resistência cultural e luta
política na diáspora africana e negra no Brasil. Essas religiosidades e suas
lideranças são responsáveis pela manutenção de um legado bastante
diversificado de culturas de alguns países africanos, referentes a aspectos
linguísticos, culinários, organização política e familiar, dentre outros. Há
também grande destaque a respeito da presença dessas lideranças no cenário
político brasileiro, no que tange o combate ao racismo e intolerância religiosa, e
outras formas de violações e discriminações correspondentes (SÔNIA LAGES,
2012; JOSÉ SILVA, 2007; JOÃO VALENÇA; ALEXANDRE FONSECA, 2009).
Ainda nesse sentido, é possível verificar a atuação positiva das religiões de
matrizes africanas em diversas esferas da sociedade, principalmente quando
há o predomínio da população negra. Para Márcio Mello e Simone Oliveira
(2013), a religiosidade dá sentido à vida, direciona e orienta formas de ser e
estar no mundo, influencia modos de cuidado com o corpo, concepções de
saúde, doença e cuidado, além de criar uma rede de apoio e agregação social.
Em suma, é inegável a importância que a religião e suas práticas têm na vida
das pessoas que dela participam. No caso das religiões de matrizes africanas,
seus adeptos experimentam forte ligação identitária religiosa e também racial,
visto a ligação com os movimentos de emancipação política e social da
população negra ao longo do tempo.
Quando se pensa nas diversas religiões que compõe o universo
brasileiro, há um desequilíbrio na divisão social da intolerância, evidenciando
um predomínio para determinados segmentos em detrimento de outros. O
documento de mapeamento da intolerância religiosa no Brasil, de acordo com
Alexandre Gualberto (2011), aponta que as religiões de matrizes africanas
continuam como os principais alvos de intolerância religiosa no Brasil, o que é
ratificado por Djean Gomes (2016) nos casos atendidos e analisados no
serviço de psicologia do Centro de Referência de Combate ao Racismo e
Intolerância Religiosa Nelson Mandela, uma perspectiva de uma política
pública que se constrói alicerçada com o compromisso e entendimento dos
agravos históricos, atento criticamente à realidade social, tendo no horizonte a
promoção e garantia de direitos das populações historicamente discriminadas.

186
Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

Fazemos uso do conceito de intolerância utilizado no Estatuto da Igualdade


Racial do estado da Bahia, tendo em vista que este consegue abarcar diversas
formas dessa violência se manifestar. Assim, de acordo com a lei 13.182, este
fenômeno é compreendido como
toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se
qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de
conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa,
credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou
litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais,
atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou
seja capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e
seus adeptos; (BAHIA, 2014, p. 5)

Uma perspectiva de uma política pública que se constrói alicerçada com


o compromisso e entendimento dos agravos históricos, atento criticamente à
realidade social, tendo no horizonte a promoção e garantia de direitos das
populações historicamente alijadas da desejabilidade social.

A PSICOLOGIA NA ATUALIDADE E AS MUDANÇAS POLÍTICAS


Logo que oficializada enquanto profissão, a psicologia atuava
principalmente nas áreas da clínica e do trabalho. Nas organizações
empresariais o exercício profissional era basicamente destinado para
treinamento e seleção, enquanto que na clínica a atuação obedecia ao modelo
patológico e normalizador sem muitas preocupações com o contexto social.
Apenas no final dos anos 70 do século XX, com a pressão dos movimentos
sociais e a aproximação de psicólogas/os frente às agruras do período ditatorial,
ocorreram mudanças no Código de Ética do Profissional de Psicologia (CEPP)
com inclinações para questões de ordem sociais. Apesar das inclusões dos
aspectos sociais e do entendimento enquanto categoria do dever em responder
aos problemas sociais – possibilitando desenvolver áreas como a psicologia
social e comunitária, dentre outras – muitas questões ligadas ao pertencimento
étnico-racial, religioso, de gênero e sexualidade ainda eram incipientes
predominando as concepções estereotipadas e enviesadas pelo preconceito.
Após outra modificação no CEPP, igualmente reflexo das mudanças legislativas
como a Constituição de 1988, foram criadas novas resoluções, a exemplo da
018/2002, que orienta sobre o exercício profissional e proíbe a conivência com
culturas institucionais discriminatórias, não colaboração com serviços que
contribuam com a naturalização da discriminação racial ou étnica (CFP, 2002).
Alessandro Santos ao se debruçar sobre os marcos regulatórios que
promoveram direta ou indiretamente igualdade racial no Brasil, e afetaram a
psicologia, destaca os seguintes documentos:
 Artigo 2º da Declaração dos Direitos Humanos de 1948;

187
RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

 Artigos 5º e 7º da Convenção sobre Eliminação de Todas as


Formas de Discriminação Racial de 1965 da ONU;
 Artigo 3º (incisos IV e VIII), Artigo 5º (inciso XLII) e Artigo 215º
(parágrafo 1º) da Constituição de 1988;
 A Lei CAÓ, de 1989;
 Artigo 140º (parágrafo 3º) do Código Penal, revisto em 1997;
 Artigo 26º-A (parágrafos 1º e 2º) e Artigo 79º-B da Lei 10.639
de 2003 que institui o ensino da história e cultura afro-brasileira
nas escolas;
 Artigo 1º (parágrafo 1º) e Artigo 2º (parágrafo 1º) da Lei 12.288
de 2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial;
 Artigos 1º a 8º da Lei 12.711 de 2012 que institui as cotas
raciais no ensino público superior;
 A Resolução 18º criada em 2002 pelo Conselho Federal de
Psicologia sobre atuação do psicólogo em relação ao
preconceito e à discriminação racial. (SANTOS et. al. 2015. P,
19)

Paralelo a essas mudanças políticas e sociais desde a primeira metade


do século XX até o final desse período, diversas/os intelectuais e
pesquisadoras/es da Psicologia produziram alguns estudos e investigações
sobre as relações raciais, negritude, branquitude, processos identitários e
culturais. Muitos propiciaram o deslocamento do sujeito negro enquanto objeto
de pesquisa, trouxeram para o campo das análises científicas os sujeitos não
negros e constituíram o campo das relações raciais na psicologia. Autoras/es
como Virgínia Bicudo, Aniela Meyer Ginsberg, Dante Moreira Leite, Neusa
Santos, Maria Aparecida Bento, Iray Carone, contribuíram para desobjetificar o
sujeito negro, produzir reflexões críticas acerca do sujeito branco e dos estudos
sobre branquitude. Essas/es intelectuais denunciaram uma pseudo-realidade
harmoniosa que foi construída no Brasil pós-colonial e pós-abolição, onde as
relações raciais, religiosas, políticas e sociais eram propagadas como
simétricas.
O mito da convivência harmoniosa entre as raças foi uma construção
bem recebida, pois no período em que ela foi apresentada como projeto de
identidade nacional, atendeu à necessidade de uma ideologia que unificasse e
incluísse todos no esforço de integração nacional necessária a industrialização
e desenvolvimento. Importante destacar que o ônus do racismo segue as
qualidades da singularidade brasileira e se transforma, de forma acrítica, em
defeitos que impedem o avanço do povo, que muda seu ideal identitário de
branco europeu para branco, protestante estadunidense (JESSÉ SOUZA,
2011). A democracia racial se transformou numa fachada e condição essencial
para silenciar todo e qualquer conflito. Por isso o racismo brasileiro é tão nocivo,
pois não aceita a crítica e a discussão sobre o mesmo como base dos
problemas sociais. Todo e qualquer conflito deve ser contornado e silenciado,

188
Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

desde que cada um cumpra o seu papel social. Esse pensamento interfere nas
lutas sociais, na autopercepção como sujeito de direitos na política, nas
relações de poder e afetivas. Portanto, impregna todo o tecido e instâncias
sociais ao compartilhar discursos, narrativas e ideologias que essencializam
questões conjunturais, mantém a raça como reprodutora de hierarquia e
estabelece, por fim, esse sistema de valorização do branco como mérito desse
e incompetência dos demais.
As inúmeras desigualdades naturalizadas, nas mais diversas ordens,
engendraram uma forma de percepção e concepção das relações interpessoais,
que implantou e estruturou um modus operandis de organização e
funcionamento em diversas instituições (educação, trabalho, segurança pública,
saúde etc.), contaminando também as profissões.
Atualmente a intolerância religiosa e suas mazelas, aqui circunscrita
como expressão do racismo, também vem se configurando como tema de
preocupação da Psicologia, a exemplo da categorização de graus de
discriminação (MATA, 2009) e as estratégias de copping utilizadas por líderes
do Candomblé frente aos ataques neopentecostais (MATA FILHO, 2009). As
consequências e efeitos da intolerância incluem aspectos que se expressam
como desprezo e desrespeito, evoluindo para formas mais agressivas e
violadoras como a segregação física e social e os ataques às pessoas e às
propriedades e símbolos que representam as religiões profanadas.
Apesar dos diversos ataques e processos discriminatórios que as
religiões de matrizes africanas sofrem ao longo do tempo, a Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde da População Negra reconhece esses espaços
como potenciais núcleos de promoção de saúde (BRASIL, 2009), e que estes
têm relevante contribuição por conta de sua visão de mundo e suas históricas
aproximações com a temática da saúde e cuidado (CELSON MONTEIRO,
2016). Todavia, nem sempre os aspectos do contexto cultural que a pessoa
está inserida são levados em consideração na análise da condição subjetiva e
objetiva da vida e do viver. São recorrentes as reclamações de pessoas que
foram atendidas por profissionais em serviços públicos ou privados, em que
aspectos culturais e identitários são relegados. “Tais situações mostram que
racismo e relações raciais são temas espinhosos para a sociedade brasileira e
ainda pouco discutidos, seja no âmbito da escolarização formal ou do ensino
superior” afirmaram Alessandro Santos e Lia Schucman (2015, p. 136), o que
desvela uma formação acadêmica deficitária nesses aspectos. Ademais. Maria
Aubert (2016) pondera que o mais importante, pensando nossa atuação
científica e profissional, é acolher os conteúdos subjetivos da vivência religiosa
e entender os sentidos construídos da religiosidade na vida das pessoas.

189
RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

CONSIDERAÇÕES
A prática da intolerância religiosa por se configurar como um conflito
social que interfere nas relações interpessoais e intergrupais com agravos no
processo identitário das pessoas e coletividades causa prejuízos às pessoas
discriminadas (GOMES, 2016). Produz danos simbólicos e materiais para os
discriminados, ao mesmo tempo em que embrutece, dessensibiliza e promove
o autoritarismo nos discriminadores e seu grupo de pertença. A não
consideração dessas questões terminam por gerar um desserviço às pessoas
que vão em busca de cuidado, pois se percebem desassistidas, e em muitos
casos, abandonam o acompanhamento profissional.
Do ponto de vista da atuação clínica, os fatores ligados ao
pertencimento identitário e cultural são essenciais na constituição da pessoa,
contendo importantes elementos a potencializar no processo psicoterapêutico
(ROSE MURAKAMI; CLAUDINEI CAMPOS, 2012). Todavia, as/os profissionais
precisam ser estimulados a se debruçar sobre esses aspectos históricos e
sociais que fazem parte da complexidade humana, tão importantes quanto
componentes biológicos e individuais, além de ampliar a sua formação
estabelecendo laços e parcerias com outras áreas do saber como Sociologia e
Antropologia, percussoras nas temáticas e cruciais para uma apreensão crítica
da realidade social.
Os reflexos da experiência do racismo e da intolerância religiosa
provocam consequências de ordem material e simbólica. E se houve pouco
avanço nas questões ligadas à saúde, educação, infraestrutura, segurança,
entre outros, avançamos timidamente nos estudos para a compreensão,
mitigação e resolução de problemas oriundos das relações raciais assimétricas
e conturbadas. O Brasil adotou a via legal para combater as desigualdades
raciais (SETH RACUSEN, 1996) e a ênfase da problemática da discriminação
racial e da intolerância religiosa recaiu na judicialização. Do ponto de vista de
uma estratégia coletiva e que busca coibir ou desestimular o comportamento
racista de qualquer cidadão, ao estabelecer sanções de restrição de liberdade
e desembolso pecuniário, são importantíssimas, pois se aplicada visa extinguir
o comportamento discriminatório. Todavia, ela não repara danos subjetivos,
imediatos e coletivos da convivência com o racismo (ROBERT CARTER, 2007),
o que provoca a necessidade de caminhar horizontalmente com outras
instâncias do saber tais como a psicologia, a sociologia, antropologia, a
assistência social e pedagogia, uma vez que questões complexas requerem
um olhar multi e interdisciplinar, que tem foco na prevenção da expressão do
fenômeno. A judicialização pura e simples não dá conta de reparar as perdas
sociais, não possui tecnologias para a educação multicultural voltada para o
agente da discriminação, o discriminado e sociedade como um todo, não dá
conta das especificidades identitárias e de reconhecimento, além de não

190
Djean Ribeiro Gomes
Valdisia Pereira da Mata

suprime a dor, o estresse, a desesperança e a perda de confiança em si


mesmo e nos outros. Enfim, situações que precisam ser resolvidas de forma
enérgica e horizontal para surtir efeitos encorajadores que mudem a face das
relações raciais brutais, autoritárias e segregadoras, ou seja, desumanas.
Se num plano concreto a relação entre ação e consequência é direta, no
plano psicológico a relação não apresenta linearidade. Na verdade, há
variáveis que tem maior ou menor relevância que apresentam reações diversas,
dando singularidade a cada experiência (CARTER, 2007; ROBERT CARTER;
JANET HELMS, 2009; VALDISIA MATA, 2016). O resultado pode ser
devastador e, não há condenação ou ação pecuniária que devolva a percepção
de dignidade e segurança às vítimas dessa inaceitável violência. Por isso,
aspectos como a experiência em si, as concepções e formas de sociabilidade,
os sentimentos, a identidade social e de grupo, a força das estratégias de
enfrentamento, a ressignificação da experiência são essenciais no trabalho
com vítimas de racismo e intolerância religiosa, figurando como importantes
mecanismos para nossa atuação profissional.
Uma clínica alinhada aos direitos e a integralidade da pessoa humana
leva em conta o que o indivíduo traz e com isso sua história, narrativas, um
modo de ser e interpretar a realidade, construídos no processo de socialização.
O movimento de olhar para trás para compreender o presente e ampliar a visão
de futuro é fundamental numa terapêutica que se proponha a trabalhar a
experiência racial traumática direta ou indireta e histórica (MATA; SANTOS,
2015). A organização dos fatores desencadeados pode desorganizar a pessoa
de forma bastante expressiva com prejuízos concretos à sua saúde (CARTER,
2007; MATA; CATULA PELISOLI, 2015). Essa atenção do profissional pode
gerar encaminhamentos para a promoção de denúncias e atendimentos
especializados, bem como proporcionar um atendimento que leve em conta à
dor promovida pela discriminação racial ou religiosa sofrida ou presenciada.
As/os psicólogas/os e outros profissionais que cuidam de seres
humanos alinhados a sua realidade sociocultural é necessário romper com o
pacto da branquitude (BENTO, 2012), naturalizado em nossas práticas, quando
se enxerga o padrão branco de ser, produzir cultura e estar no mundo, e estar
atento à promoção de um cuidado descolado de padrões eleitos por uma
minoria e com base nos seus valores que ignora, despersonaliza e desqualifica
as pessoas que não se enquadram nesses padrões.
É urgente romper o ciclo vicioso do racismo denunciado por Hélio
Santos (1994), para que situações verificadas por Mata (2009) e Gomes (2016)
deixem de ser regra e passem a ser cada vez mais raros na convivência social.
O racismo e intolerância religiosa desumanizam, gera ódio, opressão e
desigualdade com ônus para toda a sociedade. Em síntese um mal que

191
RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

necessita de união de todos os segmentos populacionais e instituições para ser


eliminado definitivamente das nossas relações.

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195
CAPÍTULO 12

RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS


NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

Ana Raquel Silva Santos Alves


Jéssica Francielle Resende de Jesus

A
s relações Interétnicas no Brasil, que surgiram desde o contato
dos exploradores europeus com os índios e posteriormente com a
chegada dos negros escravizados, camadas mais afetadas pela
exploração e colonização, são pouco faladas para fundamentar
todas as desigualdades, para a compreensão das condições de
privilégio e racismo. Estes contatos interpessoais se refletem nas
condições de poder que um grupo étnico impôs sobre os índios e negros no
Brasil na era escravocrata. De acordo com Rossoni (2002, p. 2):
O homem contemporâneo toma parte de uma realidade social
múltipla, e as ciências que lidam, de alguma forma, com as questões
culturais, nesse contexto, vêem-se diante de verdades questionadas,

196
Ana Raquel Silva Santos Alves
Jéssica Francielle Resende de Jesus

de paradigmas indefinidos, de contornos e comportamentos sociais


imprecisos. É certo que o universo humano sempre revelou em
plenitude sua pluralidade, no entanto, hoje, questões historicamente
minimizadas começam a ganhar um desenho mais tolerante na
circunspecção científica.

Assim, o convívio entre os colonizadores e os povos nativos foram se


definindo em diferentes contextos sociopolíticos, enfatizando-se numa
concentração econômica dos recursos e a tentativa de uniformizar a
característica étnica nacional. Dessa forma, Athias (2005, p. 02) afirma que:
Os estudos sobre a identidade étnica têm sido um tema importante
nas ciências sociais, pois trata especificamente da relação
indivíduo/sociedade. No entanto, o pensamento social sobre as
questões étnicas e raciais compartilhou uma perspectiva eurocêntrica
resultado de um “evolucionismo social” onde a história é concebida a
partir de uma linearidade sem levar em consideração os diversos
contextos políticos e condições sociais na relação que se estabelece
entre indivíduo e sociedade.

Destarte, o multiculturalismo, com os conflitos entre identidade e


alteridade culturais, presentes na formação de miscigenação que,
historicamente, constrói a cultura brasileira. Logo, o propósito deste artigo é o
de, sistematizar a experiência das atividades do Grupo de Discussão (GD):
Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnico-racial como
metodologia de educação não-formal, utilizando os conceitos de educação não
formal para compreender este espaço de troca e aprendizagem que tem tido
importância particular dentre as atividades construídas pelo II SEMPRI, em
Aracaju-SE.

RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA POLÍTICA DA


ASSISTÊNCIA SOCIAL
Mediante as questões sociais que pulularam durante séculos a política
de Estado interventivo pós-crise de 1929, evidenciou a importância da criação
de políticas públicas. No Brasil, o olhar para as expressões sociais foram tomar
forma e notoriedade em 2004 com a regulamentação do Sistema Único de
Assistência Social, a qual estabeleceu a Proteção Social, dividindo-a em
básica, especial e de alta complexidade.
Sendo assim, foram criados os Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS) e o Centro de Referência Especial de Assistência Social
(CREAS). Com estes órgãos, o trabalho uno da equipe multiprofissional, pode-
se trabalhar com a máxima aproximação com o usuário e o seu contexto social.
Nesse espaço de trabalho, percebe-se como a relação de etnias diferentes

197
RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

refletem tanto nas condições de privilégio e de subestimação de outras por


parte daqueles que se enquadram em padrões eurocêntricos.
As ações desenvolvidas no âmbito da assistência social, visa a garantia
dos direitos e desenvolvimento humano, devem afiançar seguranças
socioassistenciais aos usuários expressas: nas seguranças de sobrevivência
ou de rendimento, autonomia, segurança de convívio ou vivência familiar,
segurança de acolhida. Tais seguranças visam fortalecimento de vínculos,
autonomia, protagonismo, participação, proteção as famílias, indivíduos e
comunidades. A efetivação dessas ações está associada a outras atividades
pertinentes as demais políticas públicas que de forma articuladas garantam o
direito aos cidadãos (BRASIL, 2009).
Nesse diapasão, o sistema único da assistência social (SUAS)
considerando os níveis organização considerando os níveis de proteção social:
proteção social básica (PSB) e proteção básica especial (PSE). Na PSB – os
programas e projetos são desenvolvidos no intuito de prevenção as situações
de vulnerabilidade e riscos pessoais e sociais. Nos CRAS - Centros de
referências da assistência social desenvolve uma rede de proteção social
básica de seu território, oferta serviço de proteção social e atendimento integral
a família – PAIF e outros serviços. Ou seja, o indivíduo negro pode ser inserido
nos grupos de convivência onde ele possa interagir e participar de eventos
culturais, sociais, exigir seus benefícios socioassistenciais e atividades
comunitárias na luta pelos seus direitos de uma sociedade igualitária.
Já na proteção social especial PSE organiza e oferta serviços de cunho
especializado, no intuito de reconstruir as violações de direitos e situações de
risco pessoal e social. Existem alguns grupos vulneráveis a essas violações
como idosos, pessoas com deficiência, populações de LGBT, mulheres e suas
famílias, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. No
CREAS - serviços especializados da assistência social é um equipamento de
média complexidade no intuito ofertar serviços de proteção especial, na rede
de atendimento no âmbito da assistência social. O indivíduo negro encontra-se
vulnerável a essas situações mencionadas anteriormente, fatores de
discriminações e preconceitos vivenciados.
Embora o racismo possa trazer um sofrimento psíquico, esses usuários
procuram os órgãos da assistência na luta de seus direitos muitas vezes
negligenciados por uma dívida histórica, afetando a sua saúde mental, isto é,
sua identidade e a autoestima. O sujeito negro não possui referenciais
identitários valorizados na nossa sociedade resta ao grupo subalterno se
identificar com a sua “inferioridade natural”, ou seja, Complexo de Desprezo.
As consequências somáticas: produções sádicas, persecutórias, delirantes,
depressão, ansiedade, autodepreciação, alcoolismo, síndrome do pânico.

198
Ana Raquel Silva Santos Alves
Jéssica Francielle Resende de Jesus

Perante esse quadro, muitas vezes os usuários são encaminhados para


unidades de saúde mental e o profissional não possui um manejo adequado e
determinada experiência para se diagnosticar que essas manifestações podem
advir da discriminação racial.
Os relatos de mulheres negras e não negras que utilizam equipamento
da assistência social revelaram as dinâmicas já demonstradas em outros
estudos sobre a violência doméstica: machismo, violências física e sexual;
conflitos intrafamiliares, questões socioeconômicas, disputas patrimoniais. As
restrições para o acesso e uma efetiva articulação entre os serviços públicos
(CARNEIRO, 2016). A importância deste equipamento no fortalecimento da
rede de movimentos culturais e sociais para a inclusão em serviços públicos de
acesso à cidadania ratificado no estudo de Silva, Hüning e Mesquita (2012)
relata a relação entre culturas e políticas na construção da Assistência Social
no Estado do Alagoas, como estratégia de enfrentamento às diversas situações
de vulnerabilidade.
Preliminarmente, o Psicólogo do SUAS precisa romper com alguns
imaginários ainda dominantes de atendimento clínico de consultório, atuando
com o assistente social e educadores sendo técnicos de referência na sua
territorialidade diante dos atendimentos psicossociais, visitas domiciliares onde
o indivíduo e a demanda esteja.
A superação do racismo precisa ser comunitária. Logo, se faz
necessário que profissionais de assistência social realizem um trabalho que
não subsidie a execução de um projeto burguês de segregação, uma visão
transformadora da cultura do racismo. A prática diária como profissionais da
assistência a esse grupo presente nos espaços da assistência e como
operadores do direito fazendo-o exercitar a plena cidadania e responder pelas
ações que objetivam o empoderamento da população negra. Dentre as
atividades engendradas nesses equipamentos como encaminhar e
acompanhar toda e qualquer denúncia de discriminação racial ou de violência
que tenha por fundamento a intolerância racial; constatar e revelar ações
racistas constrangedoras; criar espaços coletivos para construir ações
conjuntas; dialogar com a experiência coletiva para o reconhecimento de
saberes; atendimento e avaliação psicossocial e jurídico para os casos;
Publicizar o racismo em espaços coletivos com relatos com profissionais e
usuários na Promoção dos debates, palestras, fóruns e oficinas, produção e
distribuição dos materiais informativos, com o escopo de sensibilização social
da importância da garantia de direitos, racismo e à intolerância religiosa e
promoção da igualdade racial.

199
RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito do texto foi sistematizar a experiência da atividades do
Grupo de Discussão (GD): Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da
Igualdade étnico-racial como metodologia de educação não-formal, utilizando
os conceitos de educação não formal para compreender este espaço de troca e
aprendizagem que tem tido importância particular dentre as atividades
construídas pelo II SEMPRI, em Aracaju-SE. Percebemos que o crescimento
da discriminação nas relações interétnicas, num contexto de acirramento de
desigualdades sociais e a luta dos direitos da população negra é um fenômeno
global. É fundamental que as administrações públicas não tenham soluções
prontas, mas que procurem a sociedade para, através do diálogo, encontrá-las.
Buscamos apresentar como os processos de apropriação dos conceitos
relacionados à igualdade étnico-racial se constroem no espaço da política da
assistência social, perpassado a partir de espaços que valorizam a troca de
experiências individuais, as falas das participantes e, também, o saber
sistematizado relacionado a estas questões. Empreender o diálogo é
desafiador, pois ocorre transformação. A psicologia social e serviço social na
abrangência da assistência social atuam por ações coletivas dos profissionais
na participação dos usuários e profissionais nas vivências, grupos, projetos
onde pudemos perceber o potencial deste espaço como espaço de educação
não-formal e de construção de cidadania.

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200
PARTE 2
REDAÇÕES E TRABALHOS PREMIADOS
NO SEMPRI I
CAPÍTULO 13

PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO:


CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE
MANIFESTAÇÕES VELADAS

Norton Cruz Machado


Iza Fontes Carvalho

M
enos oportunidade de educação e emprego, marginalização,
distanciamento social em relação a população branca, lugar
segregado na sociedade, racismo etc. Esta é a realidade da
sociedade pós Lei Áurea ou um recorte não muito distante do
século XXI?
De acordo com o censo realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, 51% dos brasileiros são
pretos ou pardos e esta pequena diferença em relação às demais etnias ficam
apenas nesses números. Ainda há um abismo entre as representações dos
negros e dos brancos na sociedade, sustentadas por um discurso motivado
pelo estereótipo, preconceito e racismo.
Passaram-se 127 anos da promulgação da Lei Áurea que garantiu a
liberdade aos escravos negros e, mesmo assim, é possível perceber que não
foi o sancionamento dessa lei que garantiu um acesso igual aos direitos dessas

203
PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO:
CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE MANIFESTAÇÕES VELADAS

populações, mesmo que assegurado constitucionalmente. O pensamento e as


opiniões são frutos de uma construção social que massifica e homogeneíza a
população que reproduz esse padrão de comportamento preconceituoso e que
não universaliza o tratamento igual independentemente da cor da pele. Ou
seja, o pensamento é socialmente construído e “ninguém nasce odiando o
outro pela sua cor”, como disse Nelson Mandela. Ao negro, nunca foi lhe dada
a escolha de sofrer esse tipo de discriminação ou não, ao contrário ele tem que
conviver com isso até hoje, diferentemente da população branca.
Diversos estudos realizados com o objetivo de traçar as querelas entre
as populações etnicamente diferentes apontam: a população negra é vítima de
agressão em maior proporção que a população branca – seja homem ou
mulher; sete em cada dez casas que recebem o benefício do Bolsa Família são
chefiadas por negros, segundo dados do estudo “Retrato das Desigualdades
de Gênero e Raça”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); o
desemprego atinge 5,3% dos homens brancos, entre os negros, o índice chega
a 6,6%; dois terços das casas presentes nas regiões de favela são chefiadas
por homens ou mulheres negros; entre as mulheres brancas, o desemprego é
de 9,2%, enquanto entre as mulheres negras, ultrapassa os 12%; a taxa de
analfabetismo entre os negros (11,5%) é mais de duas vezes maior que entre
os brancos (5,2%) e isso reflete no fato de a renda dos negros ser 40% menor
que a dos brancos. Os desafios para mudar esta realidade perpassam as
décadas e resistem até a época atual.
Historicamente a trajetória acadêmica da população negra enfrentou
problemas no acesso à educação superior, até que o Governo Federal
implementou o programa de ações afirmativas que traçou estratégias para
mudar essa realidade. Em um levantamento realizado pela Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgado este ano, os negros representam
cerca de 30% dos estudantes de pós-graduação do País. Esta realidade
precisa ser aumentada para que eles garantam seu espaço e sua capacitação
para a transformação de uma realidade muito diferente em comparação a um
outro contingente analfabeto dessa mesma etnia.
Os anos passaram e a organização social mudou em vários aspectos.
No entanto, concepções racistas ainda permeiam a sociedade como pode-se
observar em ditados populares como: “O negro quando não erra na entrada,
erra na saída”. Tal frase amplamente dita pela população em geral, carrega o
gérmen da incapacidade de acerto do negro na reprodução de um preconceito
dito velado e que não abre margem para uma reflexão crítica.
Esse tipo de racismo sutil foi fruto de uma pesquisa realizada pela
Universidade do Texas em 1930 e reaplicada em outros países. No contexto,
crianças com idade entre 4 e 6 anos são apresentadas a duas bonecas: uma
branca e uma negra. Os pesquisadores perguntaram às crianças com qual das
bonecas elas se parecem e a resposta confirmou que tanto as crianças brancas

204
Norton Cruz Machado
Iza Fontes Carvalho

como as negras se enxergavam como a boneca branca de olhos azuis, tida


como padrão de beleza. Em outras palavras, desde muito cedo a criança negra
já não identifica o seu espaço na sociedade e é ensinada que o que deve ser
admirado é branco, tem os cabelos lisos, loiros e os olhos claros. O diferente é
taxado como estranho e, muitas vezes, feio e é nesse padrão que a criança
negra se enxerga.
A mulher negra, principalmente, desde criança é ensinada a controlar
cabelo e os cachos volumosos. Até que essa criança cresce e reproduz os
conceitos que ela mesma vivencia. Esses costumes trazem dificuldades para
que ela assuma a sua autenticidade crespa e encaracolada. Desde muito nova
a jovem negra é levada aos salões de beleza para alisar os cabelos, sentir-se
mais bonita e parte do padrão. Segundo Maria Aparecida Bento, o
branqueamento é um processo que se refere à construção de uma identidade
branca pela pessoa negra, que incorpora um conjunto de padrões de beleza,
de atitudes e de valores visando a assemelhar-se a um modelo branco e a
construir uma identidade étnico-racial positiva (Bento, 2002). Ou seja, os
negros se enxergam com as características dos brancos pelo fato de que o
padrão de beleza hegemônico é o branco. Isso não quer dizer que o negro
rejeita sua raça, mas a ele não é dada a oportunidade de identificar-se
positivamente com ela.
Mesmo sendo um quarto da população economicamente ativa do país e
o setor de cosméticos e beleza é um dos que mais crescem, a mulher negra
também encontra dificuldades neste espaço. Dentre os diversos tipos de
maquiagem, há cerca de sete tons para peles brancas e apenas três para peles
negras. É um tipo de discriminação aberta e que não condiz com a variedade
de cores do País. Não se pode afirmar que isso acontece de maneira
intencional ou faz parte do conjunto de características a que o ser humano é
treinado socialmente e que diferencia as etnias em escala de valor.
Durante o período escravocrata, o pensamento predominante era o de
que a mulher branca, heterossexual, cisgênera era a ideal para se casar. Já a
mulher negra, era a ideal para o trabalho. Sabe-se também que a escolha de
um(a) parceiro(a) sexual está motivada, entre outros aspectos, a: renda, cor ou
raça e educação, por exemplo. Isso serve para concretizar que esta pessoa
está na mesma situação e posição social que o(a) pretendente. Tal constructo
ainda pode ser visto no quantitativo das uniões interétnicas atuais já que
aproximadamente 70% dos casamentos que acontecem no País são entre
pessoas de mesma cor e 53% das mulheres solteiras são negras, segundo o
IBGE. Em uma de suas obras, Saffioti afirma:
“(...) Há um contingente de mulheres negras que não têm com quem
se casar. Como os negros branqueados pelo dinheiro se casaram e
ainda se casam com brancas, em função de uma equalização das
discriminações sofridas, de um lado pelos negros, de outro, pelas
mulheres brancas, em função de seu sexo. Não há como estabelecer

205
PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO:
CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE MANIFESTAÇÕES VELADAS

tal igualdade entre mulheres negras e homens brancos, pois estes


são ‘superiores’ pela cor de sua pele e pela textura de seus cabelos,
sendo ‘superiores’ também em razão de seu sexo. Na ordem
patriarcal de gênero, o branco encontra sua segunda vantagem, caso
seja rico encontra sua terceira vantagem, o que mostra que o poder é
macho, branco e, de preferência, heterossexual (...).” (SAFFIOTI,
2004, p.31)

A mulher negra se concentra na base dessa pirâmide social de e as que


se relacionam com os brancos também enfrentam o preconceito dessa
miscigenação. Caso ela seja homossexual, há um acréscimo nas
discriminações lidadas.
Contudo, há uma ampliação do debate sobre os espaços que durante
anos foram reservados, quase que exclusivamente, aos negros na mais ampla
produção televisiva: a novela. Nesta, o negro tem seu destaque nas cozinhas,
como empregada doméstica, porteiro e, em novelas de época, como escravos,
entre outros, mas dificilmente se encontraria um protagonista negro no horário
nobre ou na apresentação de um telejornal sem que ele experiencie
comentários racistas tais como aconteceram com a jornalista Maju Coutinho em
um episódio recente. Enquanto isso, a população branca se viu representada
nos mais diversos aspectos e espaços da vida cotidiana durante décadas sem
ter refletido sobre essa hegemonia. Tornou-se comuns comentários como: “não
sou racista, inclusive tenho até amigos que são negros. Eu recebo preto para
almoçar na minha casa”. Estas sentenças se dizem parte de um discurso
inclusivo e não como mais uma manifestação comparativa e preconceituosa.
A grande população pode a notar a presença do negro e a influência de
rica cultura no cotidiano popular de maneira geral através do axé. Foi com esse
ritmo musical que muitas pessoas ouviram uma parte da mitologia egípcia que
deu origem à humanidade e relaciona com o surgimento do Pelourinho, em
“Faraó divindade do Egito” do grupo Olodum. Além disso, a banda “As
meninas” na música “Xibom Bombom” realiza uma importante observação
sobre as camadas sociais e sua ascensão ao afirmar que “o rico fica cada vez
mais rico e o pobre fica cada vez mais pobre” em uma tentativa de provocar a
reflexão enquanto todos se embalavam nesse ritmo musical.
Portanto, a sociedade em geral precisa desconstruir o pensamento de
que a cor da pele diferencia os seres humanos de modo a acreditar na
superioridade de uma raça sobre a outra em quaisquer aspectos da vida
cotidiana. Essa diferenciação deve servir apenas para manutenção de uma
sociedade heterogênea e plural. As oportunidades de desenvolvimento
precisam ser iguais para que de fato haja uma equidade entre os povos. Esta
mudança no pensamento deve acontecer através do cotidiano onde haja a
reflexão e a observação crítica dos espaços onde negros e brancos dividem de
maneira muitas vezes diferentes. É chegado o momento em que urge a quebra

206
Norton Cruz Machado
Iza Fontes Carvalho

de preconceitos e estereótipos que rotulam, segregam e diferenciam negros de


brancos. Todos precisam ser ensinados desde cedo que o que mais importa é a
compreensão de que as pessoas existem além da cor da pele. Há uma
necessidade de se questionar a associação das características de identidade
individuais e de pertencimento ao grupo racial negro como forma de produção
de racismo.

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Aparecida Silva et al (Org.). Psicologia Social do Racismo:


Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 2. ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 2013.

BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE. .


Censo IBGE 2010. 2010. Disponível em:
<http://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em: 03 set. 2015.

BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE


Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios: Síntese de Indicadores. 2013.
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94414.pdf>.
Acesso em: 04 out. 2015.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na história do Brasil: mito e


realidade. Editora Atica, 1994.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. Fundação


Perseu Abramo, 2004.

207
CAPÍTULO 14

O RACISMO QUE O BRASIL DEIXA NAS


ENTRELINHAS

Rita de Cassia de Jesus Oliveira

F
alar sobre essa temática é lembrar que mesmo estando no século
XXI, o preconceito racial ainda é estarrecedor. Nesta perspectiva,
este texto tem como objetivo problematizar as questões
relacionadas ao preconceito racial disseminado no Brasil.
Uma das formas de preconceito é a atribuição de estereótipos
ligados à forma como se vê o negro, as características fenotípicas como cor de
pele servindo como definidor da conduta. Pensar o indivíduo como um marginal
porque é negro é o reducionismo de toda a subjetividade, relacionando a
negritude a aspectos negativos, como se a cor da pele determinasse o caráter
do ser humano.
Os negros são incluídos a categorias subalternas por pensamentos
ultrapassados e enraizados na cabeça das pessoas de forma consciente e

208
Rita de Cassia de Jesus Oliveira

inconsciente. Os brancos continuam reprimindo os negros, restringindo seu lugar


como se a eles coubessem só o espaço à margem.
Foi lhes dada em outro período a “liberdade”, mas não oportunidade de
se inserir na sociedade de forma igualitária. Em decorrência disso, há a criação
de uma imagem: de vagabundo, desocupado, criminoso. Muitos são assim
visualizados tanto por grande parte da população, quando veem um negro
andando pela rua, quanto pela tratando-o como criminoso. Procuram na
negritude a marca da criminalidade que não existe, a desigualdade é herança de
um passado escravocrata. “[...] quem segurava com força a chibata agora veste
farda engatilha a macaca e escolhe o primeiro negro pra passar na revista [...]
todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (TERRA, 2004, p.36).
O que há é uma disparidade entre um país com grande diversidade racial,
cultural, humana, onde as pessoas têm necessidades diferentes e uma
sociedade que diz dá direitos iguais, mas não o faz. O branco quando é
encontrando na rua pela polícia está passeando, já o negro está vadiando. O
que diferencia um do outro? Toda uma construção histórica que escravizou o
negro, o tirou de seu país de origem, matou seus descendentes, os torturou, e
as medidas tomadas para minimizar tudo que lhes foi tirado, infelizmente ainda
não são satisfatórias, pois a falta de respeito com a cultura africana persiste até
hoje, as religiões afro-brasileiras são constante alvo do preconceito deixando
bem visível como o racismo não deixou de existir, diferente do discurso pregado
que o Brasil é um país mestiço onde não existe racismo, deixando evidente o
mito da democracia racial, pois essa desigualdade é notável mesmo sendo o
preconceito mascarado de sutileza.
Falar de preconceito racial é difícil por que quem não é preconceituoso?
Até os vícios de linguagem são: mercado negro, ovelha negra da família, nuvem
negra, inveja branca, entre outros exemplos. As coisas ruins são ligadas à
identidade negra estigmatizando-a. É fundamental falar do poder do discurso
quando se atribui palavras pejorativas à descendência negra, mesmo que por
hábito de usar essas frases, que foram introduzidas no vocabulário brasileiro, o
indivíduo já está diminuindo e realizando um preconceito sutil que passa
despercebido numa sociedade onde esses dizeres já são comuns.
As diferenças existem, no entanto, elas não podem ser usadas para
hierarquizar: o branco se sobrepor ao negro apenas por conta da sua cor de pele,
ambos existem e há a necessidade do respeito, lutar por uma sociedade mais
igualitária ao menos em questões raciais, porque já não é aceitável que a cor de
pele seja um aspecto que separa, seleciona, divide. Essa batalha começa com
atitudes simples, primeiramente policiando-se para não reproduzir piadas que
denigram a imagem do outro, mitigar adjetivos ruins que fazem referência à
população negra, por fim, ter mais empatia. As pessoas quando vão identificar
um negro no meio de brancos usam como referência sua cor de pele, o que não
acontece com os brancos, logo, fica o imaginário que branco não tem raça como

209
O RACISMO QUE O BRASIL DEIXA NAS ENTRELINHAS

se o branco fosse normativo. Os discursos estão sempre voltados para o


preconceito, porém, não se pensa quem é esse que prática o preconceito, o
branco sai ileso dessa história.
Ainda se tem o imaginário de que o Brasil é um país mestiço e que o
preconceito aqui não existe, todos são uma mistura de diferentes etnias. “[...] a
elite dominante argumenta confiantemente que o Brasil estava livre do racismo,
porque estava formando uma única raça por intermédio da miscigenação. Para
essa elite, a miscigenação possibilitaria o branqueamento do Brasil”.
(FILHO,2005, p.247)
O negro ainda é taxado, tem dificuldade de se inserir nos espaços e
instâncias de uma sociedade. Na universidade sofre preconceito, encontra
dificuldade para arrumar emprego, ele ainda recebe papéis secundários nos
programas televisivos, além disso a maior parte da população carcerária do
Brasil é negra, eles ainda estão exilados nas favelas. Segundo Munanga (2001),
negro sofre preconceito duas vezes por ser negro e por ser pobre. A ideologia
da democracia racial é facilmente identificada como mito ao se deparar com a
realidade de um país onde se tem a segunda maior população negra fora da
África, mas quando se entra nas universidades são poucos os alunos negros por
uma infinidade de fatores como por exemplo a desigualdade econômica. Nas
novelas é raridade ver uma protagonista negra, falta representatividade, os
produtos de beleza para a população negra ainda são poucos e começaram a
surgir porque a indústria viu um potencial consumidor. É necessário se atentar
para essas questões cobrar por mais igualdade.
É difícil classificar um indivíduo racialmente, mesmo sendo contra
classificação em um país como o Brasil onde se diz que a população é mestiça,
o moreno mesmo tendo uma cor de pele mais clara não deixa de ser negro, vai
sempre ter alguém que vai vê-lo como negro, ou negar suas características; essa
questão de identidade racial é complexa porque existem pessoas que se
identificam com categorias diferentes das que pertencem, mas não é a forma
como o próprio indivíduo se identifica, e sim como a sociedade o classifica e isso
vai definir se ele terá que enfrentar o preconceito em algum momento na vida.
A diversidade de povos que foram introduzidos no país é inegável, em sua
grande maioria negros. A mistura dessas diferentes etnias deu origem a essa
diversidade, assim é fundamental reconhecer a importância dessa integração de
outros povos para a construção da cultura brasileira, todos contribuíram e
merecem reconhecimento. Segundo Arbex (2013), os mesmos homens que
abriram as estradas do progresso hoje são impedidos de andar nela.
A mistura dos diferentes povos levou a elite dominante a criar categorias
intermediárias como moreno, amarelo, pardo. “[...] uma classificação com várias
ou mesmo três categorias raciais seria um artifício para dividir os não brancos”
(FILHO, 2005, p.45-46). Assim, quanto mais a pessoa se aproxima das

210
Rita de Cassia de Jesus Oliveira

características do branco ela tem mais privilégios, exemplo são as atrizes


televisivas que geralmente tem traços finos, dos seus cabelos já foram retirados
os cachos para que ela se aproxime o máximo possível do padrão de beleza
estabelecido. É visível a desvalorização das características negras.
Cabe à psicologia se atentar para essas questões problematizando e
promovendo discussões para que as pessoas reflitam e percebam o quanto as
ideologias racistas estão presas no imaginário da população influenciando no
comportamento, por isso é fundamental ter consciência dos atos praticados e se
responsabilizar.
Essas práticas que estigmatizam precisam de uma mudança, e o primeiro
passo é o sujeito analisar sua própria conduta, perceber os vícios de linguagem
que reproduzem preconceito e se reeducar, como também procurar
conhecimento sobre esse assunto porque o racismo não é só problema dos
outros, é um problema de todos, uma vez que atinge conhecidos, parentes e
estranhos que não merecem passar por essa desumanidade.
É papel do psicólogo não se omitir diante dessas questões e procurar
defender os direitos humanos, buscar novos conhecimentos a respeito desse
tema, com o objetivo de ter mecanismos para lidar com as práticas que ferem a
integridade dos indivíduos; o psicólogo tem que ter como objetivo o bem-estar
das pessoas sem fazer distinção de raça, gênero e classe social porque a
psicologia não pode ser apenas voltada para as camadas sociais mais
favorecidas como foi em outras épocas. É necessário incentivar as pesquisas e
debates sobre esse tema de relações raciais, pois o preconceito no país ainda é
muito forte e tal quadro necessita ser melhorado.
Não cabe a psicologia julgar as pessoas que cometem o preconceito, mas
questionar o que as levam a ter essas atitudes preconceituosas e problematizar
junto a elas se as coisas não podem ser diferentes, ajudar na criação de políticas
públicas, projetos que visem à diminuição do preconceito racial. O objetivo é
promover a igualdade racial para que as pessoas não sofram preconceito e seus
direitos sejam garantidos.
REFERÊNCIA
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Geração Editorial,
2013.
FILHO, Pedro. Miscigenação versus bipolaridade racial: contradições e
conseqüências opressivas do discurso nacional sobre raça. Estudos de
Psicologia 2005, 10(2), 247253.
MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população
negra no brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. Sociedade e Cultura, v.
4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43.
TERRA, Ernani. Português de olho no mundo do trabalho. São Paulo: Scipione,
2014.

211
CAPÍTULO 15

PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS:


O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

Maria Suely dos Santos Nascimento

F
alar do tema em questão não é algo fácil, principalmente discutir
preconceito e racismo. São questões que merecem toda discussão
possível, o problema é que muitas vezes o preconceito é situado apenas
no campo do diálogo, até mesmo nos campus universitários e não é
levado a prática. Assim percebe-se a dificuldade em reconhecer ações
racistas e preconceituosas.
Sabemos que preconceito e racismo são problemas essencialmente
relacionáveis do grupo. Nesse sentido, é importante pensar que a Psicologia tem um
papel fundamental para desenvolver trabalhos no que diz respeito às questões
apresentadas como problemas. Para ELLIOT: “De qualquer modo, a maioria dos
psicólogos sociais concordaria em que os aspectos específicos do preconceito têm de
ser aprendidos” (2013, p, 298). Compreende-se que muitas vezes as famílias podem
transmitir essa “aprendizagem” aos seus filhos, que pode ser intencional ou não, pois
vivemos numa sociedade que ainda “guarda” resquícios preconceituosos de tempos
outrora, e isso ainda reflete no contexto atual.
Dessa maneira, a Psicologia tem algo relevante para se aplicar, como por
exemplo, a sua produção de saberes, as rodas de conversas com estudantes de

212
Maria Suely dos Santos Nascimento

Psicologia nos encontros de universidades/faculdades para que os mesmos possam


levar a discussão a outros campos de saberes e assim os sujeitos fiquem sabendo de
informações que serão pertinentes ao conhecimento sobre o preconceito e racismo,
algo que ainda necessita de diversos movimentos sociais para que possamos viver as
discussões em ações práticas.
Nós nos propomos a discutir o que acreditamos ser mais significativo
no dia-a-dia do mundo subjetivo, e até mesmo do mundo “consciente
ou inconsciente”, pois as experiências raciais neste patamar são mais
difíceis de verbalizada e detectadas. (ROSSATO E GESSER, 2001, p.
12-13)

Sabemos que discutir será importante, pois o pensar exposto irá gerar uma
certa reação em cada sujeito no seu contexto social, e isso pode ser transformado em
algo melhor, que é a conscientização do que somos, como sujeitos que pertencemos
a uma mesma sociedade, cada um com sua singularidade, mas respeitando a
subjetividade do indivíduo.
A sociedade possui diversos espaços que educam o indivíduo, principalmente
analisando questões do ponto de vista da liberdade do indivíduo, e essa educação é
uma maneira de mostrar o quanto somos sujeitos diferentes, com pensamentos,
ações, manifestações que nos caracterizam diante do meio social. Assim, é relevante
refletir que pode ser possível transformar
“o mundo” com informações que se tornem conhecimento. Ouvimos várias expressões
a respeito do preconceito e como diz FREIRE: “O grande problema que se coloca ao
educador ou a educação de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer
possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade” (1996,
p.105).
É notório que a educação é uma ferramenta para combater o preconceito, é por
meio dela que trabalhamos as relações sociais, e que compreendemos que somos
sujeitos pertencentes a um contexto social que nos “olha” de forma preconceituosa e
isso não é fácil de ser quebrado, é um paradigma fortemente enraizado, mas que têm
mudado. As pessoas evoluíram pelo menos um passo, no sentido de perceber que os
estereótipos que foram criados, estão se perdendo, no tempo e no espaço. Hoje
somos mais abertos às transformações a partir de nós mesmos e isso nos faz repensar
ações de tempos outrora que prejudicavam as pessoas a nossa volta, poderíamos
dizer que nos tornamos mais sensíveis a pensar tais questões citadas.
Compreendemos a partir de situações diversas que: “Os estereótipos refletem
crenças culturais – isto é, em uma dada sociedade, eles são descrições facilmente
reconhecidas dos membros de determinado grupo” (ELLIOT, 2013, p, 301). Não é fácil
sofrer na “pele” o que muitos passam, principalmente viver situações constrangedoras
que ninguém deseja para se, mas praticar racismo com o outro é diferente, porque
não é você que tem de suportar tal ação.
Observa-se, que a sociedade discrimina muito o negro, pois sabemos que ser
identificado como um negro ou preto é uma espécie de rebaixamento e estigma social,
dizia Marcio André dos Santos em um dos seus artigos para dissertação de Mestrado

213
PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS:
O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

(2005). Nota-se que há uma valorização no branqueamento, as próprias instituições


sociais transmitem isso, mas o importante é que já se tem novos olhares sobre essas
questões, pois alguns grupos se juntam para repensarem tais paradigmas e quem
sabe ocorrer uma reforma no pensamento de cada sujeito.
É notório que aos poucos, as mudanças vem ocorrendo, estudantes de
Psicologia têm se interessado mais por estas discussões, são poucos, mas é relevante
porque inquieta os demais e quem sabe acrescenta-se outros interessados, pois é
uma discussão de grande valia para contribuir, problematizar e sugerir proposta que
auxiliem nessa construção de cabeças que necessitam se tornar “bem-feitas”, no
sentido de fortalecimento de pensamentos e ações que se façam acontecer, porque
chega de “blá, blá, bla´”, precisamos de demonstrações reais.
Décadas se passaram, até meados dos anos 80 e 90, e as
representações sobre ser negro praticamente continuaram as mesmas
no imaginário popular. As organizações dos movimentos negros
ganharam força na esfera pública e junto aos poderes públicos, porém,
o “mito da democracia racial” continua latente nas representações
sociais dos brasileiros. (SANTOS, 2005, p, 06)

É notório que mudanças ocorreram ao longo dos tempos e que hoje algumas
entidades, como órgãos sociais, bem como ONGs, assim como mutirões e
cooperativas, podem surgir com propósitos de realização de movimentos sociais para
contribuir na vida dos sujeitos, principalmente de comunidades desassistidas dos
direitos que garantam seu bem-estar social. Nesse sentido, que esses movimentos
venham a ganhar espaço no âmbito social, principalmente de manifestações no que
diz respeito as representações sociais.
“Com base nesse princípio pode-se evitar reverter o racismo. Por isso, é
importante dar nome a nossos sentimentos, nossas atitudes e mapear este fenômeno
tão fortemente enraizado mundialmente”. (ROSSATO E GESSER, 2001, p, 29).
Sabemos, nada melhor que o diálogo, o qual pode fomentar transformações na vida
do sujeito. Somos seres subjetivos e é importante citar que os sentimentos movem o
outro, mas que esse sentir possa mostrar que somos diferentes e que não somos
iguais, pois quando nos vemos como seres diferentes contribuímos para novas formas
de pensar o contexto.
A Psicologia pouco se debruçou sobre a questão das relações raciais
no Brasil. Nos currículos dos cursos de psicologia brasileiros,
raramente encontramos qualquer menção ao tema da raça e do
racismo nas disciplinas obrigatórias. A formação dos psicólogos ainda
está centrada na ideia de um desenvolvimento do psiquismo humano
igual entre os diferentes grupos racionalizados.
(SCHUCMAN, 2014, p, 85)

Dessa forma, é importante pensar que precisamos encontrar pessoas que se


motivem a escrever sobre assunto tão pertinente para todos os campos, pois sabemos
que pesquisas serão relevantes, procurar encontrar dados que contribuam na
compreensão desses assuntos, buscar suporte teórico através da pesquisa para trazer

214
Maria Suely dos Santos Nascimento

mais informações aos sujeitos, seja da área da Psicologia, como de outros campos
científicos, o importante é pesquisar e demonstrar dados sobre esse tema tão
necessário, porém pouco discutido, e as pesquisas podem ajudar, principalmente para
a Psicologia, uma ciência que acolhe o sujeito e suas relações com o meio qual ele
vive. O psiquismo é relevante, mas pensar o ser em sua essência é um dos pontos
que mais tem inquietado aos estudantes da Psicologia. Gostaríamos de pensar os
valores, a singularidade de cada um, e principalmente as diferenças, não só de cor,
mas de raça e considerarmos que isso é um problema no contexto atual, que necessita
ser trabalhado e posto em prática nas propostas de práticas da Psicologia.
Nessa perspectiva, a branquitude é uma das questões que merece muita
discussão, pois ela é vista como: “É um lugar de privilégio racial, econômico e político,
no qual a racionalidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de
experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade”. (SCHUCMAN,
2014, p, 5). Observamos a necessidade de entender os novos sentidos do que é ser
negro e o que é ser branco. As mudanças precisam acontecer, não só do ponto de
vista da questão estrutural, mas também dos valores e dos sentimentos de
pertencimento ao mundo das diferenças.
Como diz SANTOS. “No entanto, uma nova negritude renova-se nas práticas
de políticas, sociais, educacionais e, especialmente culturais dos negros em todo país,
como o exemplo dos jovens pertencentes ao movimento hip hop”. (2005, p, 07). Assim,
notamos que já é um “passo” considerado relevante, pois essas práticas são
demonstrações de uma ótica diferenciada, da que estamos acostumadas e
“obrigadas” a ver. Isso muda algo nas pessoas, por mais que seja pouco, mas já é
diferente e relevante para os primeiros passos de uma quebra de paradigmas que
necessita ser desmistificado.
O Conselho Federal de Psicologia diz: “O preconceito racial humilha e a
humilhação social faz sofrer”. (CFP, 018/ 2002). Notamos a relevância do trabalho do
Psicólogo nesse contexto, e o quanto discussões, desde a universidade/faculdade
realizados por professores e estudantes aos pequenos grupos, formados pelos
próprios estudantes, de psicologia, quais deveriam encontrar-se pelo menos uma vez
por semana para discutir textos relevantes em relação ao preconceito, assim se
tornarão diálogos pertinentes aos novos olhares com propostas de reflexão as
políticas públicas que possam mudar a vida de quem passa por isso, porque falar é
fácil, mas viver é difícil, e dói.
Nessa perspectiva, sabemos que o sofrimento é maior do que qualquer palavra,
assim não é fácil dizer o que o outro sente, mas sim fazer com que ocorram
transformações como forma de conscientização, pois precisamos de ações que
modifiquem cabeças. A solidariedade humana, é fator relevante, mas que seja de
forma acolhedora, sem manifestar qualquer imposição, apenas olhar o outro, como se
fosse você, chamá-lo pelo nome e não por sua cor, ou condição social. É importante
lembrar que temos nomes e somos sujeitos de um mesmo universo, então porque
destratar o outro, quando estamos destratando a nós mesmos, é porque muitas vezes
somos o outro e esse é nós.

215
PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS:
O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

Portanto, diante do que foi exposto, percebe-se várias vertentes relevantes, na


análise e discussão desse trabalho, entre elas as dificuldades de reconhecimento nas
ações racistas e preconceituosas que existe no sujeito. Nesse sentido, é relevante
frisar o contexto educacional e suas contribuições no combate a esse problema. A
prática de pesquisas será uma das contribuições também, pois a pesquisa irá trazer
elementos e dados que servirão de análise e discussões para a sociedade,
principalmente para um melhor conhecimento do tema em questão, já que é pouco
discutido, pelo menos é o que se percebe na leitura de algumas teorias. Dessa forma,
é importante pensar que a educação é também considerada uma ferramenta inerente
a essa questão, porque faz, de certa forma, com que o sujeito pense sobre suas ações
no meio social.
A Psicologia pode contribuir, no combate ao racismo de várias maneiras,
principalmente a partir do contexto da sugestão de políticas públicas, bem como
voltadas para a questão da igualdade racial, com reconhecimento da história de vida
do sujeito, no que diz respeito ao espaço do negro no contexto social.
Articulando a esse, outro eixo de referência traz a discussão da relação
Psicologia e Políticas Públicas, que deve começar pela identificação
dos desafios colocados para uma sociedade que se pretende
democrática e que garanta os direitos sociais (GONSALVES, 2010, p,
101).

Compreende-se a necessidade de implantar Políticas Públicas que possam


contribuir a sociedade, principalmente no campo da Psicologia. Nesse sentido,
sabemos que há uma instituição relevante, o Estado, esse que tem o dever de cumprir
com os direitos sociais e quando não o faz, a sociedade precisa lutar em favor dos
direitos humanos, pois se esses direitos não são de fato cumpridos, são violados e
quem sofre é o sujeito que vive a “mercê” da sociedade.
Por fim o papel da Psicologia é de grande importância para desenvolver
trabalhos sobre as questões já mencionadas. Movimentos sociais, trabalhos
cooperativos, mediante a grupos em vulnerabilidade social, diálogos com estudantes
de diversas áreas do conhecimento, e principalmente ações de combate ao
preconceito, são essas e várias outras contribuições que a Psicologia pode colaborar.

REFERÊNCIAS
ARONSON, Elliot. Psicologia social. Rio de Janeiro, 2013.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 018/ 2002. Brasília/DF.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa.-
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GONSALVES, Maria. Psicologia, subjetividade e políticas públicas. São Paulo, 2010
ROSSATO E GESSER. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa
escola / Eliane Cavalleiro (organizadora). São Paulo, 2001.
SANTOS, Marcio. Negritudes posicionadas: as muitas formas da identidade negra no
Brasil. Rio de Janeiro, 2005.

216
Maria Suely dos Santos Nascimento

SCHUCMAN, Lia. Sim, somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana.


São Paulo, 2014.

217
CAPÍTULO 16

“PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO


BRASIL: UMA INTERSECÇÃO HISTÓRICA

Tarciana Lôbo Menezes

O
homem carrega consigo um objetivo de melhora as suas
características raciais inatas, especialmente as suas capacidades
mentais. Dessa forma, notamos o grande incentivo de materiais
para um pequeno grupo, mas que sempre se destacou em vários
aspectos, como artísticas, científicas ou economistas. Galton
queria garantir uma prevalência na “qualidade racial”, assegurando
que esses indivíduos gerassem descendentes em maior quantidade.
Os indivíduos que apresentassem qualquer sinal de distúrbio mental ou
físico não tinham direito de se reproduzir, caso existisse alguma tentativa, o
estado tinha o total direito de impedir, quando esses sujeitos conseguiam se
reproduzir, acontecia à degradação da espécie, onde ela era formada por duas
características: o primeiro foi a mistura de raças e culturas e a segunda foi a
mistura entre indivíduos portadores de boas qualidades genéticas com aqueles
já “degenerados” (principalmente portadores de deficiência física ou mental,
tendências comportamentais desviantes, personalidades criminosas, prostitutas,

218
Tarciana Lôbo Menezes

alcoólatras), independentemente de sua etnia ou origem. Essas duas propostas


eugênicas procuravam atuar estes dois pressupostos, que traziam os problemas
coletivos e individuais.
A análise feita em dois momentos históricos: a criação da Sociedade
Eugênica de São Paulo, em 1919, e a realização do Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia, em 1929. Estes eventos marcaram a tentativa da
institucionalização das teorias raciais no Brasil por meio das políticas públicas,
também contaram com o apoio de cientistas voltados direta ou indiretamente a
pesquisas em diversas áreas da psicologia e psiquiatria.
As teorias raciais e os saberes psicológicos encontraram em
determinados momentos de suas histórias, ocasiões em que cooperaram entre
si. Tivemos no país alguns eventos envolvendo a questão do “aprimoramento
racial”. Por outro lado, a prostituição era tratada como um desvio comportamental
próprio de raças com tendências à sexualidade desenfreada. No início do século
XX, esta era uma das explicações para o fato de encontrarem-se tantas
prostitutas negras nas grandes cidades brasileiras.

A PSICOLOGIA RACIAL NO BRASIL


Por volta de 1916, psicólogos americanos desenvolviam novos testes
psicológicos e começaram a introduzir o conceito de QI. Nesse tempo, muitos
deles foram fabricados com o objetivo de serem testes que selecionavam
pessoas que faziam parte do exército, trabalhavam em fábricas e também para
controlar a entrada e saída de imigrantes no país. Caso os mesmos não
alcançassem a média dos testes mentais, poderiam ser deportados. Segundo os
psicólogos daquela época, era nítido que latinos e negros eram menos
inteligentes do que o padrão da população, portanto, esse deficit poderia
atrapalhar na evolução da nação americana, como não poderia ser diferente, no
Brasil ocorreu a mesma coisa. Nessa época a Psicologia era de fundamental
importância na formação das identidades nacionais no início do século XX.
Várias teorias raciais ganharam espaço principalmente na elite brasileira, que
era voltada para o desenvolvimento e prezavam pela questão da consolidação
da identidade.
No Brasil, o terreno era novo e fértil para as grandes teorias e
especulações da ciência psicológica, tendo em vista que se tratava de um país
com grande miscigenação racial.
Para alguns psicólogos o Brasil estava sofrendo um processo de
degeneração por conta da mistura racial, eles diziam que isso atrapalharia o
desenvolvimento mental e moral do restante da população. Nessa fase a
Psicologia estava em um momento de muita credibilidade, por conseguir agregar
elementos da medicina, da filosofia moral e dos métodos quantitativos e

219
“PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA INTERSECÇÃO HISTÓRICA

classificatórios. Com isso, teve-se a ideia de aplicar técnicas psicométricas que


apuravam qualidades intelectuais e comportamentais dos povos que faziam
parte da nação, principalmente em negros e mestiços. Evidentemente se o “valor
mental” desta era inferior, a investigação dos psicólogos americanos e dos
Europeus que se expandiram ao Brasil estava correta, logo o que era cultural
principalmente a religião também era deficiente, afirmavam que “mentes
imperfeitas não cultivariam tradições culturais sadias. ”
Os principais objetivos da Psicologia no Brasil, eram objetivos
pedagógicos e médicos, em suas ações que visavam disciplina e higiene. Por
conta disso, muitas intervenções eram solicitadas aos saberes psicológicos,
principalmente quando se tratava de higienização mental, que tinha como
objetivo avaliar a qualidade mental das diferentes etnias que compunham o país,
tendo como base os estudos na Europa e nos Estados Unidos da América.

PRINCIPAIS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS


As principais religiões afro-brasileira são umbanda e candomblé, sendo
bastante presentes em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande Do Sul e na Bahia.
De acordo com o censo do IBGE, estima-se que em 1991 existiam quase 650
mil adeptos, estudiosos dessas religiões dizem que mais ou menos um terço da
população brasileira frequenta um centro, incluindo neste número tanto
frequentadores assíduos quanto esporádicos que muitas vezes são adeptos de
outras religiões.
O Candomblé é a religião que mais conservou as fontes do panteão
africano servindo como base para o assentamento das divindades que regeriam
os aspectos religiosos da umbanda. É conhecido e praticado no Brasil e em
outras partes da América latina onde ocorreu a escravidão negra. Para cada
orixá há um toque, um ritmo, um tipo de canto, uma dança, um modo de
oferenda, uma forma de incorporação, um local próprio e uma saudação
específica.
Os encontros são feitos em um barracão rústico, retangular com telhado
feito de palmas e aos redores construídos pequenas casinhas para colocar os
santos. Os deuses do candomblé são originados de ancestrais africanos que
foram divinizados há mais de 500 anos. Acredita-se que esses deuses têm o
poder de manipular as forças da natureza, por isso cada orixá tem sua
personalidade relacionada de acordo com cada elemento da natureza.
Nas cerimônias os cânticos são realizados geralmente em língua yorubá
e nagô, os cânticos em português são realizados com menor frequência, sendo
que refletem o linguajar do povo. Fazem sacrifícios de animais como: galo,
pomba, bode ao som de cânticos e danças. A percussão dos atabaques é a base
da música.

220
Tarciana Lôbo Menezes

Os filhos de santo são os sacerdotes de orixás e nem todos estão


preparados para receber as entidades. Alguns sacrificam animais, outros cuidam
dos guias quando um espírito “baixa” (incorporação de um espírito), há ainda os
que tocam o atabaque e os que preparam as oferendas.
A Umbanda é uma das religiões mais praticadas no Brasil e mais
predominante no Rio De Janeiro onde teve seu início no Brasil, e na Bahia. Teve
início no Brasil em 1530, com a mistura de concepções religiosas trazidas pelos
negros da África na época da escravidão. O primeiro terreiro foi fundado em 1908
através de Zélio Ferdinando de Moraes, um rapaz de família tradicional em
Niterói-Rj, tinha apenas 17 anos. Ele incorporava o Caboclo das sete
encruzilhadas e foi responsável por formar sete tendas, sendo estas
responsáveis pela difusão da umbanda. Estas tendas funcionavam sob o lema:
“manifestação do espírito para a caridade”. Os rituais eram simples com cânticos
de sons baixos e harmoniosos.

PRECONCEITO RACIAL E A RELIGIOSIDADE NO BRASIL


Na década de 20 do século anterior, alguns grupos de negros que
chegavam à costa americana eram submetidos a provas psicométricas e caso
não apresentassem um bom desempenho nas provas mentais, poderiam ser
repatriados. Os psicólogos americanos dessa época diziam que os latinos,
eslavos e negros, seriam menos dotados intelectualmente, sendo, portanto
indesejáveis para a formação da nação americana. Situações semelhantes
ocorreram em diversos países se estendendo por muitos anos.
Do mesmo modo no começo do século XX, a psicologia teve papel
fundamental na busca pela formação das identidades nacionais. A partir de 1870,
as teorias raciais ganham força nas elites brasileiras as quais apoiavam as mais
variadas especulações inclusive no âmbito das ciências psicológicas no cuidado
a miscigenação racial que poderia ser perigosa para eles, pois acreditava-se que
o Brasil passava por um processo de degeneração, causado pela mistura de
raças.
Com a aplicação dos testes psicométricos utilizados para apurar a
capacidade intelectual e comportamento dos povos da nação, principalmente
negros e mestiços, constatavam que o “valor mental” do negro era deficiente e
sendo assim o cultural, particularmente religioso também era. Partindo do
pressuposto de que mentes imperfeitas não cultivariam tradições culturais sadias
é que optaram por evitar a miscigenação racial.
Utilizavam o termo higienização Mental para denominar práticas
higienistas que objetivavam avaliar a qualidade mental das diferentes raças que
compunham a nação, tomavam como base estudos apresentados na Europa e
E.U.A. com suas populações.

221
“PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA INTERSECÇÃO HISTÓRICA

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o estudo aqui desenvolvido podemos concluir que o Brasil
foi muito citado entre os teóricos racistas e os darwinistas sociais europeus como
um exemplo de degeneração produzida pela “miscigenação racial promíscua”.
Assim, os saberes psicológicos tiveram intenso contato com as teorias raciais,
pois estas forneciam subsídios para abordar problemas como as causas da
loucura, saúde mental, inteligência, personalidade e do comportamento
individual e social.
Os testes psicológicos atestavam uma inferioridade ou não na capacidade
mental e biológica dos indivíduos. Eles achavam que a raça negra não atingiria
o mesmo patamar de desenvolvimento dos brancos devido à sua condição
inferior. Desaconselhavam assim a imigração deste povo. Então, novas técnicas
de exame psicológico possibilitariam a seleção da população desejável para o
país. Após a abolição do regime escravocrata, não houve exatamente uma
repressão aos cultos afro-brasileiros. A aplicação de técnicas psicométricas no
âmbito religioso pretendia manter essas manifestações populares sob vigilância
preventiva, para que episódios de “loucura epidêmica de origem religiosa” não
voltassem a ocorrer, como em vários momentos da história do Brasil.
As interpretações racistas no âmbito das ciências psicológicas
encontraram uma resistência a partir dos anos 50. Ainda hoje, só que com outra
finalidade esses testes são aplicados. Mesmo que os testes de inteligência
meçam alguma capacidade mental, o que é duvidoso, o que fazem é medir
estados mentais e não traços. Por fim, o presente trabalho será possivelmente
válido para maior estudo e acréscimo de conhecimento.

REFERÊNCIAS
MASIERO, A.L. “Psicologia das raças” e Religiosidade no Brasil: Uma
intersecção histórica. In: Psicologia ciência e profissão.v 22 n.1, Brasília 2002.
___________. “A Psicologia racial no Brasil (1918 - 1929). In: Estudos de
psicologia vol.10. Natal, RN.2005.

222
SOBRE AS/OS AUTORAS/ES
SOBRE AS/OS AUTORAS/ES

* Ana Raquel Silva Santos Alves


Mestra em Psicologia Social na Universidade Federal De Sergipe, Membro Do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia da Saúde (GEPPS) da UFS.
Possui graduação em psicologia pela Universidade Tiradentes (2007)
especialista em Direito De Família e Políticas sociais-UFS (2008-2010) e pós
graduada em Docência e Tutoria em educação a distância-UNIT. Atualmente
encontra-se como tutora a distância do Centro Superior De Educação a Distância
(CESAD) da Universidade Federal De Sergipe, psicóloga do CREAS-Nossa
Senhora do Socorro e professora visitante nas escolas e universidades. Atuou
como psicóloga Asilo Rio Branco, Instrutora de Recursos Humanos (FUNDAT)
nas comunidades, Membro titular por quatro anos no Conselho Municipal e
Estadual da Assistência Social de Aracaju (CMAS e CEAS),psicóloga clínica.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicogerontologia e
Assistência Social, atuando principalmente nos seguintes temas: idoso-cuidador-
instituições, qualidade de vida, família, assistência social, adolescentes-
instituições, inclusão social para as pessoas com deficiência e educação à
distância. Psicóloga do CREAS Leonel Brizola; Mestre em psicologia Social e
especialista em direito de família; E-mail: raquel.psi@hotmail.com

* Camila Lima de Araújo


Possui graduação em Psicologia (2014) e mestrado em Psicologia Social (2016)
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com período sanduíche no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Normas
Sociais, Estereótipos, Preconceitos e Racismo (NSEPR). Atua como psicóloga
clínica em consultório particular. Desenvolve estudos no âmbito da Psicologia
Social, com ênfase em Processos Grupais, Normas Sociais, Preconceito e
Racismo. E-mail: kmilla.araujo@gmail.com

225
* Dalila Xavier de França
Possui graduação em Formação de Psicólogo pela Universidade Federal da
Paraíba (1989), mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade
Federal da Paraíba (1996) e doutorado em Psicologia Social pelo Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (2006). professora Associada
da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Psicologia do Desenvolvimento Humano, atuando
principalmente nos seguintes temas: Socialização das atitudes intergrupais nas
crianças, preconceito, identidade racial e racismo. E-mail:
dalilafranca@gmail.com

* Djean Ribeiro Gomes


Mestrando em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia. Membro
Conselheiro do XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-
03) e membro do Grupo de Trabalho – Psicologia e Relações Raciais do CRP-
03 Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem
interesse e inserção nas áreas de Psicologia em interface com Direitos
Humanos; Sistema Prisional e de Socioeducação; Crianças e Adolescentes em
situação de rua; Educação; Relações Étnico-Raciais, Povos e Comunidades
Tradicionais. E-mail: gomes.djean@gmail.com

* Edna Maria de Araújo


Enfermeira, doutorado em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da Bahia (2007). Estágio sanduiche (2006) e pós
doutorado (2013) na Public Health School of the University of North Carolina at
Chapel Hill - EUA (UNC) com Bolsa de estudos financiada pela CAPES.
Professora Titular do Departamento de Saúde da UEFS onde leciona as
disciplinas Enfermagem na Saúde Coletiva (Graduação) e Epidemiologia (Pós
graduação). Coordenadora do Colegiado da Pós Graduação em Saúde Coletiva
(mestrado acadêmico); Responsável pelo convênio de cooperação internacional
entre a UNC e a Universidade Estadual de Feira de Santana; Membro do Comitê
Técnico Municipal, Estadual e Nacional de Saúde da População Negra; Áreas
de atuação: Saúde Coletiva/Epidemiologia. Líder de grupo de pesquisa e
coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades
Sociais em Saúde (NUDES). Linhas de pesquisa: Saúde de grupos
populacionais específicos: Epidemiologia das Desigualdades Sociais em Saúde

226
(raça, gênero e classe), Saúde da População Negra, Saúde de grupos
vulneráveis; Saúde, Trabalho e Ambiente; Violência e Saúde. Filiada a
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN) e Associação dos Docentes Universitários de
Feira de Santana (ADUFS-BA). E-mail: ednakam@gmail.com.

* Eleonora Vaccarezza Santos


Psicóloga formada pela Faculdade Pio Décimo (2012), mestre em Psicologia
Social pela Universidade Federal de Sergipe (2015) e doutoranda de Psicologia
Social na Universidade Federal da Bahia. Atualmente é docente em pós-
graduação da Faculdade Pio Décimo, coordenadora de grupo de trabalho do
Conselho Regional de Psicologia 19 região, psicóloga conselheira do Conselho
Regional de Psicologia 19 região, presidente comissão avaliação de títulos do
Conselho Regional de Psicologia 19 região e colaboradora grupo de pesquisa
Cognição Social e Representação da Universidade Federal da Bahia. Tem
experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando
principalmente nos seguintes temas: racismo, estética negra, preconceito racial,
representações sociais e discriminação. E-mail:
vaccarezzaeleonora@gmail.com

* Ionara Magalhães de Souza


Mestra em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva
da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Especialista em Estudos
Étnicos e Raciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da
Bahia (IFBA). Atua como professora Substituta da Universidade Federal de
Sergipe, Campus de Lagarto-SE, do Departamento de Educação em Saúde com
Práticas de Ensino na Comunidade para os cursos da área da Saúde. Integrante
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades em Saúde
(NUDES/UEFS) e pesquisadora do Núcleo Transdisciplinar de Estudos em
Saúde Coletiva (NUTESC-UFS). Desenvolve pesquisas na área Saúde de
Grupos Populacionais Específicos, especialmente, a Saúde da População Negra
e Epidemiologia das Desigualdades Sociais em Saúde (raça, gênero e classe).
Filiada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. E-mail:
narafenix@yahoo.com.br

227
* Iza Fontes Carvalho
Possui graduação em psicologia (2013), mestre em Saúde e Ambiente pela
Universidade Tiradentes (2015-2017).Tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Relações Interpessoais, testagem psicológica, psicologia clínica
e organizacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Stress, qualidade
de vida, violência, prostituição, saúde, adolescentes e avaliação psicológica. E-
mail: izafontes_psi@hotmail.com

* Jéssica Francielle Resende de Jesus


Assistente Social do CRAS “João Batista Neto”; Advogada; Pós-Graduanda em
Processo Civil; Bacharel em Serviço Social pela Universidade Tiradentes (2011).
Bacharel em Direito também pela Universidade Tiradentes (2016). Possui
experiência na área de Políticas da Assistência Social e Direito. Integrante do
Grupo de Pesquisa Educação, Sociedade e Direito. E-mail:
jessicafrj.as@gmail.com

* José Andrade Santos


Pós-graduando em Direito pela Universidade Tiradentes – UNIT. Aracaju,
Sergipe. E-mail: joseandradesantos@gmail.com

* Luciana Galante
Professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - AGES onde ministra
as seguintes disciplinas na graduação: Antropologia, Antropologia Cultural,
Sociologia, Teoria Social, História e etnologia Indígena. Mestre em Antropologia
pela PUC-SP (2011), com experiência na área de etnobiologia e etnologia
indígena. Pesquisa as relações que as comunidades tradicionais estabelecem
com o ambiente natural e os impasses existentes entre Unidades de
Conservação e áreas de ocupação tradicional. Assessora do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). E-mail: lugalante@hotmail.com

228
* Luíza Lins Araújo Costa
Possui graduação em Psicologia (2014) e Mestrado em Psicologia Social pela
Universidade Federal de Sergipe - UFS (2016) sob orientação do Professor
Marcus Eugênio Oliveira Lima, com mestrado sanduíche no Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). É vinculada ao grupo &quot;Normas Sociais, Estereótipos,
Preconceito e Racismo (NSEPR);. Atualmente é tutora do Centro de Educação
Superior a Distância da UFS (CESAD - UAB) e membro do GT Psicologia e
Relações Interétnicas do Conselho Regional de Psicologia 19ª Região.
Desenvolve estudos sobre a temática do Adolescente em Conflito com a Lei e
tem interesse por áreas e temáticas relacionadas à Psicologia Social,
Desenvolvimento Humano, Representações Sociais, Preconceito e Racismo. E-
mail: luizaalins@gmail.com

* Marcus Eugênio Oliveira Lima


Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (1995), mestre
em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (1997). Doutor em
Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
em 2003 (ISCTE-PT). Pós-Doutorado no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa em 2011. Desenvolve pesquisas no âmbito da psicologia
social, com ênfase em Processos Grupais, Normas Sociais, Racismo e Infra-
humanização. Atualmente é professor do Departamento e do Mestrado de
Psicologia e Presidente da Associação Sergipana de Ciência, mandato 2016/18.
Desenvolve pesquisas no âmbito da psicologia social, com ênfase em Processos
Grupais, Normas Sociais, Racismo e Infra-humanização. E-mail:
marcuseolima@gmail.com.

* Maria Suely dos Santos Nascimento


Graduada em Letras – habilitação em Português e Literaturas da Língua
Portuguesa Especialista em Literatura brasileira Estudante de Psicologia VI
Período Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UniAGES. E-mail:
d.mariasuely@yahoo.com.br

229
* Neli Gomes da Rocha
Graduada em Ciências Sociais pela UFPR (primeira turma de cotistas raciais);
Mestre em Sociologia pela UFPR; Cursa o Doutorado - Pós-graduação em
Sociologia UFPR, linha de Produção e Circulação de Ideias. Atua como
educadora na área de Pensamento Social Brasileiro e das Relações Raciais no
Brasil. Integra o Núcleo de Estudos Afro brasileiros da UFPR na área de Estética
Negra, Produtora Cultural – SANKOFA produções. E-mail:
neliprodução@yahoo.com.br.

* Norton Cruz Machado


Estudante de Psicologia da Universidade Tiradentes, com período sanduíche na
Univerdidad de Guadalajara - México. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-
Fapitec (2015-16). Membro do Laboratório de Pesquisa e Promoção da Saúde
do Instituto Tecnológico e de Pesquisa da UNIT. E-mail:
mamchadonorton@gmail.com

* Patrícia da Silva
Doutora em Psicologia Social, tem experiência na área de Psicologia, com
ênfase em Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas:
representações sociais, identidade social e racial, preconceito, ações afirmativas
e cotas raciais universitárias, E-mail: dasilvapaty@yahoo.com.br.

* Rita de Cassia de Jesus Oliveira


Acadêmica do 7º período do curso de bacharelado em Psicologia do Centro
Universitário AGES. E-mail: rita-de--cassia@hotmail.com

* Roberto dos Santos Lacerda

Professor Assistente da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutorando em


Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA-UFS, Mestre em Saúde Coletiva
pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) com estágio na Gillings

230
School of Global Public Health,University of North Carolina at Chapel Hill (EUA).
Graduação em Biomedicina pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Membro do do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Desigualdades em
Saúde (NUDES-UEFS) e do Grupo CRESCER (EEUFBA). Foco de pesquisa e
consultoria: Desigualdades em Saúde, Saúde da População Negra,
Sustentabilidade e Saúde em Comunidades Quilombolas, Educaç o Popular em
Saúde e Tecnologias Sociais. Email: robertosl3@hotmail.com

* Yá Sônia Oliveira
Mestre em Políticas Sociais pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP UNICSUL.
Graduada em Pedagogia e pós-graduada em Pedagogia Empresarial pela
Faculdade São Luís de Franca/SE. Docente da disciplina História da Educação
pelo Instituto de Formação e Educação Teológica - IFETE. Membro do GEPPED
- Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais e Educação da UNICSUL
e da Sociedade de Estudos Étnicos, Políticos, Sociais e Culturais OMOLÀIYÉ e
filiada a CONEN - Coordenação Nacional de Entidades Negras. E-mail:
sonia7_oliveira@hotmail.com

* Tarciana Lôbo Menezes


Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Pio Décimo (2013). Atualmente
atua como psicóloga clínica na empresa Viver Melhor – Psicologia e Saúde. Tem
experiência na área de Psicologia. E-mail: pashimina3@hotmail.com

* Valdenice Portela Silva


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) com experiência profissional e interesse
de pesquisa nos seguintes temas: Racismo institucional; Gestão da diversidade
racial; Cultura organizacional; Estrutura e gestão de organizações culturais
(Organizações criativas); Práticas organizacionais de movimentos sociais e
Administração pública. Membro do Grupo de Pesquisa Normas Sociais,
Estereótipos, Preconceito e Racismo (NSEPR / PPGP), no qual pesquisa
temáticas acerca das Identidades sociais, representações sociais de grupos
estigmatizados; sexismo; racismo e outras formas de preconceito, E-
mail:valdenice.portela3@gmail.com.

231
* Valdisia Pereira da Mata
Possui Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia -
UFBA (2009), graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
(1999) e graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia
(1992). Conselheira do CRP03, Coordena a Comissão de Saúde do referido
conselho. Atualmente atua como psicóloga clínica na Secretaria Municipal de
Saúde de Salvador Bahia e na Faculdade Metropolitana de Camaçari.
Experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitiva,
Relações Raciais, Identidade, Avaliação diagnóstica, Saúde Mental e Exclusão
Social. E-mail: valdisia@gmail.com

232
ANEXOS
ANEXO A

Quadro1 – Conjunto de ações voltadas para a promoção da igualdade de


condições entre homens e mulheres dentro e fora da empresa
RECOMENDAÇÕES PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES PARA
AS EMPRESAS
CENSO INTERNO  Avaliar a proporção de homens e de mulheres no conjunto dos
empregados, em todos os segmentos da empresa e em todos
os níveis hierárquicos, observando-se, também, a
porcentagem de negros e de negras;
 Observar os níveis salariais de homens e de mulheres em
todas as funções, calculando se as diferenças médias e por
função;
 Calcular o tempo de progressão funcional de homens e de
mulheres;
 Medir as expectativas quanto à capacitação e observar se há
proporcionalidade entre o número de homens e o de mulheres
que realizam cursos de capacitação ou especialização, na
empresa ou fora dela, ou que recebem estímulo para isso, em
relação ao total de funcionários de cada sexo.
POLÍTICAS DE PROMOÇÃO  Recrutar e indicar mulheres para posições gerenciais e cargos
DE EQUIDADE PARA O de diretoria, assegurando sua participação nas tomadas de
PÚBLICO INTERNO decisão e na gestão, em todos os níveis e áreas do negócio;
 Assegurar que os salários e benefícios, incluindo os de
previdência social pública e privada, sejam iguais para
homens e mulheres em trabalhos equivalentes;
 Estabelecer metas de contratação, treinamento e promoção
com vistas à eqüidade de gênero em todas as áreas da
empresa e em todos os níveis hierárquicos;
 Estimular as funcionárias mulheres a realizar cursos de
capacitação e de especialização, para progredirem na
carreira;
 Proibir tomadas de decisão relativas a contratação, demissão
ou promoção de mulheres baseadas no fato de elas serem ou
não casadas, no status do marido, se têm ou não filhos ou em
sua condição reprodutiva;
 Promover a adequação dos espaços de trabalho e dos
equipamentos para que sejam compatíveis com as condições
físicas das mulheres;
 Estimular a participação das mulheres nas organizações
internas da empresa, como Cipa, comitês de produtividade e
comissões de fábrica, como maneira de garantir que suas
demandas sejam consideradas nesses organismos;
 Proibir atividades no ambiente de trabalho que possam
intimidar as mulheres empregadas ou restringir de alguma
forma sua liberdade.
POLÍTICAS DE SAÚDE, BEM-  Conceder dispensa às mulheres que estão em tratamento ou
ESTAR E PROTEÇÃO precisando de cuidados médicos;
CONTRA A VIOLÊNCIA  Facilitar às mulheres informações sobre gravidez e
contracepção e garantir-lhes segurança no emprego durante
a gravidez e no pós-natal, possibilitando-lhes ausentar se do

235
trabalho para acompanhamento pré-natal, licença-
maternidade e licença para amamentar e cuidar dos filhos;
 Estimular a paternidade responsável, com a sensibilização
dos funcionários que são pais para assumirem papel ativo no
cuidado e manutenção dos filhos, licença-paternidade,
possibilidade de licença para cuidar de filhos doentes e fazer
o acompanhamento da vida escolar;
 Considerar creche e assistência à educação como direitos das
crianças, acessíveis tanto aos filhos das funcionárias quanto
aos dos funcionários;
 Proibir e sensibilizar os funcionários para que evitem todas as
formas de violência no local de trabalho, incluindo agressão
física, sexual ou verbal, manter canais de denúncia de tais
agressões, que preservem a integridade de denunciantes e
denunciados, e ter políticas claras e amplamente divulgadas
de punição para tais atos;
 Sensibilizar os funcionários para que evitem todas as formas
de violência doméstica contra as mulheres — mães, esposas,
filhas, irmãs, empregadas — e contra as crianças;
 Sensibilizar os funcionários para que dividam igualmente com
a companheira as tarefas domésticas e os cuidados com os
filhos;
 Garantir a segurança das mulheres empregadas ou
prestadoras de serviço no local de trabalho e procurar
garantir-lhes condições seguras de locomoção entre a casa e
o local de trabalho;
 Proibir discriminação contra mulheres com problemas de
saúde, incluindo portadoras de HIV.
COMPROMISSOS COM A  Apoiar ou desenvolver ações para promover e aprimorar a
COMUNIDADE educação e as oportunidades profissionais de garotas e
mulheres na comunidade em que a empresa está inserida;
 Apoiar ou promover campanhas na comunidade contra a
violência direcionada a mulheres e meninas e pelo estímulo à
paternidade responsável;
 Apoiar campanhas na comunidade ou promover a instalação
de serviços públicos que contribuam para reduzir o peso das
tarefas domésticas e do cuidado com os filhos, como creches
e escolas de tempo integral, serviços de saúde, restaurantes
populares, lavanderias públicas etc.
COMPROMISSOS NA CADEIA  Evitar políticas de marketing que apelem para estereótipos
DE NEGÓCIOS sexuais e atentem contra a dignidade das mulheres;
 Promover e estimular negócios e empreendimentos dirigidos
por mulheres, incluindo microempresárias, concedendo-lhes
crédito e procurando realizar financiamentos justos;
 Cuidar para que seus fornecedores e parceiros respeitem os
direitos trabalhistas de seus empregados e prestadores de
serviços e assegurar-se de que não sejam praticadas relações
de trabalho não-legais, ilegais ou clandestinas em toda a
cadeia produtiva, o que muitas vezes ocorre em segmentos
que empregam grande número de mulheres;
 Estimular todas as empresas participantes da cadeia de
negócios a adotar políticas de valorização da mulher e de
promoção da eqüidade de gênero em suas relações internas
e externas.
Fonte: Instituto Ethos (2004)

236
ANEXO B

Quadro2 – Recomendações do Instituto Ethos para promoção da igualdade


racial nas empresas
RECOMENDAÇÕES PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NAS EMPRESAS
CENSO INTERNO: Realizar um censo interno, com o quesito raça/cor, permitindo uma gestão
mais eficaz de pessoas e o planejamento de ações que promovam a diversidade existente ou a
ausência de determinados segmentos na organização.
SENSIBILIZAÇÃO: Criar uma estratégia inicial de sensibilização sobre a diversidade. Realizar
internamente campanhas de sensibilização e comunicação sobre a questão do negro na
sociedade, com palestras, diálogo com lideranças do movimento social, exposições,
levantamento de livros e apresentação de filmes nacionais e estrangeiros, entre várias outras
possibilidades.
FÓRUNS DE DIÁLOGO: Abrir espaços e fóruns de diálogo para abordar dilemas sobre a questão
racial e formas de tornar possível a inclusão do negro no mercado de trabalho em condições
melhores que as atuais.
COMITÊ DE DIVERSIDADE: Criar um comitê ou conselho de diversidade, com a participação de
diferentes áreas da empresa. Incentivar pessoas de segmentos pouco presentes ou em situação
de desvantagem dentro da organização a constituir grupos, para trocar ideias, de modo a se
fortalecer e auxiliar os demais funcionários a aprender a lidar com sua realidade e as demandas
da sociedade.
SUSTENTAÇÃO DAS AÇÕES: Desenvolver uma estratégia de sustentação das ações em favor
da diversidade, mediante palestras, cursos e diálogos permanentes, para que a cultura da
empresa absorva a importância da inclusão. É essencial ouvir a comunidade negra, suas
lideranças e os movimentos sociais que atuam na área como um dos segmentos a serem
priorizados nesse programa.
CURSOS SOBRE DIVERSIDADE: Realizar cursos para todos os funcionários sobre o valor do
respeito às pessoas, garantindo a diversidade pela atração e retenção de talentos advindos dos
grupos sociais mais sujeitos a discriminação no mercado de trabalho.
REVISÃO DE PROCEDIMENTOS: Avaliar políticas, normas e procedimentos com a perspectiva
da diversidade, buscando retirar barreiras ou construir condições de igualdade racial no acesso,
por exemplo, a benefícios, oportunidades de desenvolvimento na carreira, acesso a curso no
exterior etc. Há empresas que possuem políticas específicas de valorização da diversidade, de
promoção da igualdade racial ou de respeito às pessoas, capacitando seus funcionários e criando
mecanismos para inibir práticas de discriminação ou de assédio de qualquer natureza, tão
prejudiciais às pessoas e aos negócios.
GESTÃO DE PESSOAS: Inserir o quesito raça/cor nos formulários ou documentos-padrão
relacionados à gestão de pessoas, sempre acompanhado de uma declaração a empresa sobre
seu compromisso com a diversidade.
RECRUTAMENTO DIVERSIFICADO: Realizar processos de recrutamento com diversificação de
fontes ou contratação específica de consultoria de recursos humanos com foco ou abertura para
lidar com a questão racial.
METAS PARA SELEÇÃO E PROMOÇÃO: Estabelecer metas em relação ao número de vagas
a ser preenchido por homens ou mulheres negros, apontado o esforço voluntário da empresa
para produzir alterações na demografia interna no curto ou médio prazo. Realizar processos de
seleção com metas percentuais de negros estipuladas previamente, o que sugere ao RH ou aos
gestores que entrevistem um número razoável de candidatos de todos os segmentos da
população. O mesmo vale para os processos de promoção ou de carreira dentro das organizações
que contam com poucos homens ou mulheres negras em cargos de liderança.
CAPACITAÇÃO: Desenvolver e/ou apoiar programas de capacitação voltados especialmente
para a preparação e qualificação profissional de mulheres e homens negros, de modo a favorecer
uma participação em melhores condições nos processos de seleção da empresa.
EDUCAÇÃO COORPORATIVA: Estabelecer metas e prioridade para os negros na destinação
de oportunidades de estudo dentro ou fora da organização, bolsas de estudo, cursos no exterior

237
e outras formas de investimento na construção de competências, formação de líderes e de
incentivo à retenção de talentos desse segmento na organização.
ACOMPANHAMENTO: Criar programas de mentoring para que profissionais mais experientes e
em posição de liderança possam contribuir (e ao mesmo tempo aprender) com profissionais
negros, favorecendo condições equânimes no acesso aos postos mais altos da organização e
maior familiaridade de todos com a questão das relações raciais.
INVESTIMENTO SOCIAL: Adotar a abordagem étnico-racial nas ações sociais realizadas pela
empresa e em seu programa de voluntariado. Colocar, sobretudo, recursos do investimento social
privado na formação escolar de qualidade de pessoas negras, homens e mulheres.
DIÁLOGO COM FORNECEDORES: Compartilhar com os fornecedores o posicionamento da
empresa, bem como os desafios e possibilidades na promoção da igualdade racial, trocando
idéias, cooperando em questões de recrutamento (com banco de currículos compartilhado, por
exemplo) e realizando ações sociais conjuntas na comunidade, entre outras possibilidades.
Acrescentar critérios de responsabilidade social no relacionamento com os fornecedores, com a
promoção da igualdade racial e o combate à discriminação, sempre com base no diálogo, na
cooperação e no respeito de todos.
FORNECEDORES NEGROS: Apoiar empreendedores negros e favorecer a sua inclusão no
conjunto de fornecedores da empresa.
COMUNICAÇÃO COM DIVERSIDADE: Cuidar para que os modelos presentes nas peças de
comunicação interna ou externa da empresa expressem a diversidade da sociedade, combatendo
a lógica dos lugares predefinidos para as minorias. Colocar nas mensagens publicitárias ou
institucionais pessoas negras em situação de desvantagem tem o poder de trabalhar com as
desvantagens simbólicas e produz bons resultados em relação à auto-imagem desse segmento,
ajudando a demonstrar que novas realidades podem ser criadas. Entre outras coisas, permitem,
por exemplo, que uma criança negra possa ter referências plurais para seu futuro e sonhar com
posições de vantagem na sociedade, deixando de achar que o seu lugar está predefinido na base
da pirâmide em razão de seu pertencimento étnico ou racial.
PARCERIAS: Iniciar um diálogo e criar parcerias com entidades do terceiro setor e com outras
empresas para a promoção da diversidade. Compartilhar seu aprendizado sobre a valorização da
diversidade com organizações parceiras nos negócios ou empresas da comunidade em geral,
difundindo o conceito e novas práticas de gestão que dêem conta da complexidade do tema.
FÓRUNS EMPRESARIAIS: Criar ou participar de fóruns empresariais voltados para a questão
racial ou levar o tema para os já existentes, promovendo o debate sobre os desafios para a gestão
de pessoas e para os negócios, a comunicação e o investimento social, entre tantos outros
aspectos que podem ajudar a acelerar resultados e a melhorar as práticas de cada empresa. O
tema é muito complexo e o compartilhamento de conhecimentos e de práticas se mostra cada
vez mais importante para todos.
OPORTUNIDADES DE NEGÓCIOS: Realizar diálogos sobre oportunidades de negócios
considerando a questão racial, seja no âmbito interno da empresa, seja com outras organizações,
envolvendo, sempre que possível, representantes da população negra. Verificar se os produtos
ou serviços e a qualidade do atendimento da empresa, bem como a forma e os veículos utilizados
em sua divulgação, estão compatíveis com a diversidade de nossa sociedade. Diferentes áreas
da empresa reunidas em torno do tema podem encontrar oportunidades de negócios que antes
não foram consideradas.
Fonte: Instituto Ethos (2006)

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