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Reversibilidade Revisitada:
Verdades e Valores no contexto da encarnação e desapego
[Apresentado em 10 de Junho de 2013, Toledo, Brasil]
1
These notes are on special reserve in the occidental reading room at the Bibliothèque nationale de
France: Maurice Merleau-Ponty, Vol. XIV, Collège de France, 1955-56, cours du Jeudi, La Philosophie
dialectique, et cours du Lundi, Textes et Commentaires sur la dialectique,
2
Ibid. pp.22f.
3
Ibid, p.28. Cited from my: “The Political Horizon of Merleau-Ponty’s Ontology,” in: Francis
Halsall, Julia Jansen, & Sinead O’Connor, (eds.), Critical Communities And Aesthetic Practices, Springer
Press, Dordrecht, 2012, pp.111-126.
4
Maurice Merleau-Ponty, notes on reserve in the Occidental Reading Room, Bibliothèque nationale de
France, Box III, p.53b [old reference system prior to microfiche project].
5
Merleau-Ponty published only two texts in his lifetime that indicate the ontological direction of this
late thought: the preface to Signes, and the essay l’Oeil et l’esprit. We do have access to several other
resources that have appeared posthumously, most especially Le Visible et l’invisible, but also several
volumes of his notes de cours. There are also various working notes and some other notes that remain
2
untranscribed and unpublished. By far, the most developed use of reversibility is in the chapter on the
Chiasm and the working notes from The Visible and the Invisible. The second most important resource is
the essay Eye and Mind.
6
Cf. Emmanuel de Saint Aubert, (op.cit.), p.49.
3
7
VI, p.204.
8
VI, pp.325-6/ p.272.
9
Maurice Merleau-Ponty, L’Oeil et l’esprit, Gallimard, Paris, p.20.
10
Merleau-Ponty, notes, Vol XIII, cf. 2nd typed version.
11
VI, p.176.
12
Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’nvisible, Gallimard, Paris, 1964, p.172. [English translation, The
Visible and the Invisible (tr. A. Lingis), Northwestern University Press, Evanston, 1968, p.130.] Hereafter
I will cite the French texts followed by the English pagination, i.e., i72 / 140.
4
importante fornecer um relato daquilo que antecede a distinção sujeito / objeto, mas
também que o que ele está tentando revelar em tal relato também é a condição de
possibilidade de uma tal consideração. Esta é outra fina expressão da reflexividade
fundamental e intransponível reflexibilidade intrínseca à reflexão filosófica para
Merleau-Ponty. É uma expressão de um novo tipo de filosofia transcendental – que eu
acredito ser a chave para todo o seu pensamento. 13
A carne do mundo não é uma metáfora – ela não é parecida com nossa carne.
Merleau-Ponty salienta que ela nutre e sustenta as coisas que percebemos. Elas são isso,
e ainda assim a carne do mundo não se esgota por elas em sua capacidade como seres
estáticos. A posição de Merleau-Ponty não é uma busca de certeza ou encerramento.14
Assim, "não se pode dizer que" o que reina é o olhado ou o olhar. A filosofia
forneceu relatos que reivindicam ou um ou outro como primordial, privilegiado e
original. A questão dessa nova indicação é resistir a fazer apelos metafísicos banais e
abraçar a ambiguidade: não se pode e nem se deve dizer se é o olhar ou o que é olhado
que domina. Além disso, Merleau-Ponty está fazendo uma enorme contribuição por
desconstruir as reivindicações habituais de prioridade destinadas a alcançar uma espécie
de resolução filosófica. Isso é verdade na percepção e também no uso da linguagem.
“Assim, entre o som e o sentido, a fala e o que ela quer dizer, ainda existe a relação de
reversibilidade, e nenhuma questão de prioridade, uma vez que a troca de palavras é
exatamente a diferenciação da qual o pensamento é integral.” 15
13
The central thesis of my forthcoming book [Merleau-Ponty’s Eye and Mind: From a Phenomenology
of Perception to a Situated Ontology] is that Merleau-Ponty is trying to articulate a new form of
transcendental ground throughout his work. I argue for this thesis by adumbrating six dialectical
moments where one can see a trajectory, a parcours, emerge. At each dialectical moment, a new
transcendental ground is disclosed, only to reveal some important difficulty with this proposed ground.
This lack occasions the next dialectical moment where a new transcendental ground is proposed, which
then discloses a new lack. Merleau-Ponty’s final position is final only in the most morbid sense—it is the
last one he articulated before he died.
14
VI., pp. 175 / 132-3: “[It] is rather a sort of straits between exterior horizons and interior horizons
ever gaping open, something that comes to touch lightly and makes diverse regions of the colored or
visible world resound at the distances, a certain differentiation, an ephemeral modulation of this
world—less a color or a thing, therefore, than a difference between things and colors, a momentary
crystallization of colored being or of visibility. Between the alleged colors and visibles, we would find
anew the tissue that lines them, nourishes them, and which for its part is not a thing, but a possibility, a
latency, and a flesh of things.”
15
VI, p.190, fn. / p.145, n.5. Judith Butler has noted the value of these aspects of Merleau-Ponty’s
contribution to philosophy very well. “[It] attempts in a certain way to offer an alternative to the erotics
of simple mastery. It makes thinking passionate, because it overcomes, in its language and in its
argument, the distinction between a subject who sees and one who is seen, a subject who touches and
one who is touched. It does not, however, overcome the distinction by collapsing it. It is not as if
everyone is now engaged in the same act or that there is no dynamic, and no difference. No, and this is
where the distinction between active and passive is confounded, we might say, without being negated
5
Isso também revela uma interdependência ou invasão entre estes seres não-
priorizados no mundo. Esta invasão dentro dos seres na carne do mundo é uma das
maneiras inovadoras em que Merleau-Ponty tentou articular este novo tipo de fundo
transcendental. Nesta seção de O Visível e o Invisível, ele ecoa um pouco do espírito de
seu pensamento inicial sobre a encarnação, quando ele escreve o seguinte sobre o status
ontológico peculiar do corpo, entre outras coisas.
in the name of sameness.” Judith Butler, “Merleau-Ponty and the Touch of Malebranche,” in: T. Carmen
& M. Hansen (eds.), The Cambridge Companion to Merleau-Ponty, Cambridge University Press,
Cambridge, 2006, p.194.
16
VI, p. 181 / p.137, my emphasis. We shall return to this fascinating passage later in this essay.
17
OE, p.23 / p.164.
18
VI, p.177/ p. 133
6
formulação para isso é que podemos pensar o parentesco, a "identidade" [se podemos
falar nisso desta maneira], como um horizonte implícito de diferenciação. Como de
costume, a explicação parecerá, a princípio, paradoxal. Por um lado, a implicação é
virtual e não real. Assim, a carne do mundo é um horizonte virtual implícito de relações
reversíveis, em vez de um substrato metafísico. Por outro lado, a implicação do
horizonte para a diferenciação como a carne do mundo nada mais é do que real. Suas
relações reversíveis são a “textura imaginária do real.” 19
“Nós vemos as coisas em si
mesmas, o mundo é o que vemos [...]”20 Mas esse paradoxo desmente vaidades
metafísicas sobre a natureza do real e um equívoco importante entre eles. A carne não é
real no sentido de um objeto empírico como estudados pelas ciências naturais – mas tão
pouco são as coisas que a ciência se propõe a estudar. Do mesmo modo, a carne do
mundo é real, no sentido de sua materialidade – mas assim são os sonhos, ficções, e
assim por diante. Então, quando eu digo que a carne do mundo é “um horizonte
implícito de diferenciação”, a implicação é e não é real – de acordo com os dois
conceitos (e nenhum) da realidade. 21
A reversibilidade da carne é o princípio ontológico responsável por essa
ambiguidade reflexiva enigmática no coração da nossa existência. “Eu sou vidente-
visível, porque há uma reflexividade do sensível.” 22
19
OE, p.24 / p.165.
20
VI, p.17 / p.3.
21
Cf. OE pp.21-2/ p.164. In Eye and Mind, Merleau-Ponty describes reversibility in terms of painting.
Once this strange system of exchanges is given, we find before us all the problems of painting. These
exchanges illustrate the enigma of the body, and this enigma justifies them. Since things and my body
are made of the same stuff, vision must somehow take place in them; their manifest visibility must be
repeated in the body by a secret visibility. Hence, the secrecy of the visibility of painting is not hermetic.
It is clear that “painting celebrates no other enigma but that of visibility.” [OE, p.26 / p.166.]
22
Maurice Merleau-Ponty, L’Oeil et l’esprit, Gallimard, Paris, 1964, pp.32-33; Eye and Mind in: The
Primacy of Perception and Other Essays [ed. J. Edie], Northwestern University Press, Evanston, 1964, p.
168. Hereafter I shall cite this essay as OE with pagination in the French first followed by the English.
23
OE, p.18 / p.162.
7
sua definição plena; o mundo é feito do mesmo material que o corpo”.24 Mas ser feito
do mesmo material dá vulnerabilidade e não só harmonia. 25
Apesar de toda a discussão sobre a reversibilidade como uma paridade
ontológica ou parentesco, Merleau-Ponty enfatiza constantemente que não há
reversibilidade sem écart. Isso se manifesta em sua escolha de termos que enfatizam a
diferenciação, fissão, divergência, dissonância, invasão, deiscência, e o desapego entre
as coisas. Merleau-Ponty fala de reversibilidade como uma espécie de transcendência,
como uma “propagação” de trocas entre corpos, mas ele explicitamente descreve este
em termos de diferenciação: “e por esta virtude da fissão fundamental ou segregação do
pensante e do sensível [...].”26 Vamos nos concentrar no desapego nestes diferenciais.
24
OE, p.19 / p.163.
25
Cf. Sue Cataldi, Emotion, Depth, and Flesh: A Study of Sensitive Space: Reflections on Merleau-Ponty’s
Philosophy of Embodiment, State University of New York Press, Albany, 1993. This beautifully written
book brilliantly accounts for the vulnerability of the reversibility of the flesh. I also tried to make this
point briefly in my “Reversible Subjectivity: The Problem of Transcendence and Language,” in: Martin C.
Dillon, ed., Merleau-Ponty Vivant, State University of New York Press, Albany, NY, 1991, pp.31-45.
26
VI, p.188 / p.143.
27
VI, pp.180-1 / 137, my emphasis.
28
VI, p.189 / p.144.
29
VI, pp.180-1 / 137: “We say therefore that our body is a being of two leaves, from one side a thing
among things and otherwise what sees them and touches them; we say, because it is evident, that it
unites these two properties within itself, and its double belongingness to the order of the “object” and
to the order of the “subject” reveals to us quite unexpected relations between the two orders. It cannot
be by incomprehensible accident that the body has this double reference; it teaches us that each calls
for the other.”
8
Agora, com o nosso trabalho preliminar feito, estamos em uma posição melhor
para revisitar a reversibilidade. Podemos conceber a práxis do filósofo fora das
estruturas e restrições de reversibilidade redentora? Vamos recuperar a descrição da
reversibilidade redentora, a fim de ver as promessas e as limitações da reversibilidade
da carne de Merleau-Ponty. Vamos considerar, de passagem, três críticas da posição de
Merleau-Ponty por John Caputo e Jacques Derrida. Cada um desses críticos pode ser
usado para mostrar que noção de reversibilidade de Merleau-Ponty se baseia em
pressupostos onto-teológicos. Devemos atender ao desapego intrínseco às descrições de
Joseph de Maistre e Merleau-Ponty sobre a reversibilidade para ver que promessa
Merleau-Ponty espera para desmitificar a reversibilidade e ir além da reversibilidade
redentora. [O desapego é a chave para desmitificar a reversibilidade.] Vamos também
desconstruir uma passagem sobre desapego de um período anterior da carreira de
Merleau-Ponty para mostrar as limitações do desapego em seu pensamento. Finalmente,
devemos considerar algumas implicações práticas da reversibilidade desmistificada.
Reversibilidade, para de Maistre [bem como para Merleau-Ponty] era a verdade
fundamental da existência. Para de Maistre ela apresentava a intercorporeidade como
essa condição intramundana depravada que merece perdição. O sofrimento vicário do
inocente forneceu um sacrifício propiciatório que poderia fornecer expiação
generalizada para toda a reversibilidade. Reversibilidade foi nossa maneira de
participação na necessidade de sacrifício, bem como a possibilidade de sua redenção.
Devemos cultivar um desapego de nossos corpos, a fim de participar da redenção,
embora o mecanismo para sacrifício – sacrifício de sangue – envolve necessariamente
sacrifício do corpo.
A reversibilidade redentora ofereceu um remédio para a condição humana
depravada. O desapego está envolvido, mas em todos os casos é resgatável. [Mas
9
precisa o desapego ser resgatado? Ele pode ser resgatado?] Mas o que se passa com a
reversibilidade de Merleau-Ponty? [Talvez ele tenha muito em comum com seu
antecessor.]
Vimos que, na descrição de Merleau-Ponty sobre a reversibilidade da carne do
mundo, nós somos desapegados em direção às coisas e desapegados a partir das coisas.
Isso realmente reflete dois níveis de ambiguidade na existência: a ambiguidade entre a
existência objetiva e subjetiva; e a ambiguidade entre o corpo e a carne do mundo. Para
o primeiro, ambos somos e não somos nem sujeitos e objetos; para o segundo, nós
ambos somos e não somos nem corpos-como-coisas e carne do mundo por si só.
Devemos estar desapegados de qualquer desses pólos que definem as dicotomias aqui
em questão, e por isso estamos desapegados em direção aos sujeitos, objetos, corpos e
carne – não mais tomados em suas conotações de oposição. [Mas isso é uma outra
espécie de redenção?]
A retórica de Merleau-Ponty muitas vezes suporta uma leitura de sua
reversibilidade como reversibilidade redentora. A frase, que soa como um mantra, “pela
primeira vez”, na passagem citada em baixo do capítulo sobre o quiasma é um bom
exemplo disso. Há locuções similares por todo o seu trabalho posterior. Uma maneira de
lê-lo é como uma experiência de conversão. Da mesma forma, devemos considerar a
afirmação na Dúvida de Cézanne “Não pode haver consciência de que não é sustentada
30
por seu envolvimento primordial na vida e pela forma de seu envolvimento.” Claro
que, por um lado, isso pode ser lido como uma afirmação simples do princípio
fenomenológico da intencionalidade: uma vez que “a consciência é sempre consciência
de alguma coisa”, a consciência é inevitavelmente situada no mundo. Mas também se
pode ver uma reivindicação redentora aqui, se cada desapego é simplesmente um
desapego relativo e, simultaneamente, uma ligação com outra coisa [É cada desapego o
mesmo?], diminui-se a força do desapego. Isto quer dizer, o desapego relativo é
reduzido a uma diferença componente em uma mais ampla identidade não distinta
daquela que Merleau-Ponty critica em Hegel em seu sistema dialético idealista. [O
famoso slogan do prefácio à Fenomenologia da percepção de que estamos "condenados
ao sentido" assume um novo sentido por si próprio, com toda a condenação de um
cobertor de segurança metafísico.] É claro, devemos ser justos: Merleau-Ponty sempre
nega a visão pura sobre a história (ou sobre qualquer coisa) associada com o idealismo
30
SNS, p.31 / p.24. We shall return to this passage very soon, since it seems to cast all consciousness as
healthy consciousness.
10
[Por que os filósofos se referem apenas à Antígona? Não leem outros dramas?]
Estes são “corpos bem-vestidos, bem-alimentados, bem alojados”. Caputo
deliciosamente observa que os corpos da fenomenologia de Merleau-Ponty estão “em
excelente saúde, muito bem descansados, frescos de uma viagem para as ilhas ... com
31
Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, Gallimard, Paris, p.188-9. The Visible and the Invisible
[tr. A. Lingis], Northwestern University Press, Evanston, 1968, pp.143-4.
32
SNS, p.31 / p.24.
33
John D. Caputo, Against Ethics, Indiana University Press, Bloomington, 1993, p.194. I would like to
thank my friend and colleague from Western Carolina University, Dr. John Whitmire, for providing me
with this reference while I did not have access to the text for various reasons—as well as some careful
notes on this chapter of Caputo’s brilliant book.
12
34
Ibid., p.195. By contrast, in note 1 Caputo describes the Other’s body is “unbecoming, uncomely,
embarrassing, improper.”
35
Ibid., pp.216-7.
36
Jacques Derrida, Le Toucher: Jean-Luc Nancy, Editions Galilée, Paris, 2000. English translation by: C.
Irizarry, On Touching: Jean-Luc Nancy, Stanford University Press, Stanford, 2005.
13
ele começa a discussão com uma referência explícita à psicanálise. Então, vamos nós
discutir o texto em dois níveis: o sentido do texto com relação ao uso do exemplo para
construir o esboço de Cézanne, [e então devemos revelar outro sentido e direção do
texto em que Merleau-Ponty revela que o esboço de Cézanne é para ser um
autorretrato - interessante para os nossos propósitos de prestar atenção ao desapego e
revisitar a reversibilidade].
Merleau-Ponty faz a transição de Cézanne para da Vinci ao discutir como, ao
mesmo tempo, somos livres em nossas vidas, enquanto as coisas nos são dadas ou
predestinadas. Merleau-Ponty volta, em seus cursos de 1954-1955, no Collège de
France37, para este problema, o que é particularmente interessante para a psicanálise – é
importante compreender a nossa atividade e a nossa passividade no que diz respeito à
relação da consciência para com o inconsciente. De um lado, uma série de eventos ao
longo do nosso desenvolvimento psicossexual, que determinam a forma como nós nos
desenvolvemos como seres saudáveis [- ou insalubres? Podemos realmente distingui-
los tão claramente?]. De outro, fazemos escolhas em nossas vidas e determinamos
ativamente o nosso destino.
37
Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire, in: L’Institution / La Passivité, Belin,
Paris, 2003.
38
SNS p.28 / p.21.
39
Ibid.
40
SNS., p.28 / p.22.
15
pelo qual ele considera agir e saber não como antinomias, mas igualmente como
"exercícios" para contemplar – a diferença entre eles é dissolvida através do
"conhecimento desapegado" [au détachment de la connaisance].41 Merleau-Ponty diz
que é preciso olhar mais de perto a descrição do desapego de da Vinci feita por Valéry
para revelar a verdadeira liberdade dentro de sua vida, e não fora dela. Ou seja,
Merleau-Ponty situa o desapego próprio de da Vinci como um laço dentro do mundo,
em vez de um meio de controlá-lo de fora.
Merleau-Ponty aponta um ato falho no relato que da Vinci faz do voo do
pássaro, onde “de repente, interrompe-se” e confessa que da Vinci o apresenta como
uma “memória” de infância, que é certamente uma reconstrução.42 A “memória” é que
quando ele era uma criança, um urubu pousou em seu berço e com as penas da cauda
várias vezes tocou seus lábios e boca. Aqui, Merleau-Ponty zomba da interpretação de
da Vinci como pura liberdade ou consciência pura.
41
Ibid.
42
SNS, p.29 / p.22.
43
Ibid. By the way, note the two allusions to Baudelaire in the last sentence. Poets were involved in a
secret science, and in his poem Correspondences, nature is described as a forest of symbols.
44
SNS, p.30 / p.23.
16
Ele deixou sua obra inacabada, assim como seu pai havia lhe
abandonado. Ele não prestou atenção à autoridade e confiava só na
natureza e em seu próprio julgamento em matéria de conhecimento,
como é frequentemente o caso de pessoas que não foram criadas na
sombra do poder intimidatório e de proteção de um pai. Assim, mesmo
este puro poder de exame [...] tornou-se apenas a referência de Leonardo
à sua história. No auge de sua liberdade ele era, naquela mesma
liberdade, a criança que tinha sido: ele se desapegou de uma maneira só
porque ele estava ligado a outro. 46
45
This is an important anticipation of the opening line of Merleau-Ponty’s final publication, l’Oeil et
l’esprit [Eye and Mind], where he states that science manipulates the world at the price of no longer
living in it. OE, p.9.
46
SNS, pp.30-31 / p.24.
47
SNS, p.31 / p.24: “There can be no consciousness that is not sustained by its primordial involvement
in life and by the manner of its involvement.”
48
SNS, p.32, p.25.
49
SNS, p.32 / p.25.
17
vez, um sentido do texto é que o desapego de da Vinci é parte de seu estilo de ser, em
vez de alguma forma de escapar de sua vida. Mas foi mesmo o rosto de Cézanne ou da
Vinci aqui apresentado?
[É claro que há uma outra face emergente na expressão desses esboços, e é a de
Merleau-Ponty. Vamos revelar um outro sentido para esta parte do texto. Assim como
Merleau-Ponty observou que da Vinci interrompeu o voo do pássaro para confessar
sua memória / fantasia sobre o abutre, Merleau-Ponty compulsivamente interrompe seu
relato da expressão na obra de Cézanne para discutir da Vinci. Ele chama a atenção
para uma leitura psicanalítica de um texto, discutindo as vantagens e desvantagens da
hermenêutica de narrativas psicanalíticas e, portanto, convida a tal leitura de seus
próprios atos falhos. Da Vinci era um filho ilegítimo que foi criado por sua mãe.
Merleau-Ponty foi, por alguns relatos, também um filho ilegítimo, mas certamente ele
foi criado por sua mãe sozinha. Sartre escreveu que Merleau-Ponty não se recuperou
de uma infância incomparável. Então, quando Merleau-Ponty escreve sobre o fato de
da Vinci desenvolver um intelecto aguçado pelo seu desapego, ele está confessando seu
próprio desapego – bem como colocando em primeiro plano a sua própria percepção
fenomenológica, que ele já tinha começado a fazer em seu autorretrato de Cézanne
como fenomenólogo. Sartre escreveu esta observação sobre a infância de Merleau-
Ponty depois da morte de Merleau-Ponty ao expressar remorso sobre a sua separação
amarga sobre questões políticas. Sartre, muito injustamente, na minha perspectiva,
havia retratado Merleau-Ponty como alguém que se retirou da realidade política para
assumir a cátedra no Collège de France. Sartre retratou a ontologia de Merleau-Ponty
como abstrusa e removida – desapegada da realidade política. Alguém poderia
perguntar por que é tão importante para Merleau-Ponty insistir que o desapego de Da
Vinci é ao mesmo tempo ligação em outro sentido, e não uma libertação do mundo.
Sabemos o que está em jogo teoricamente; não é a sua afirmação da intencionalidade
antes mencionada, mas o ponto do ensaio é que o trabalho do artista ou a obra do
filósofo é inseparável de seu estilo de ser. Assim, vemos que há um investimento pessoal
aqui também para Merleau-Ponty: a sua própria atitude indiferente, seu forte senso de
privacidade, o seu desdém para a atenção do público em que Sartre prosperou, sua
perspicácia analítica e talento como fenomenólogo, tudo isso é o resultado de um
desapego de quem não foi "criado na sombra do poder intimidatório e de proteção de
um pai." Mas, assim como não estamos considerando da Vinci como um "monstro da
liberdade", não devemos considerar essas características de Merleau-Ponty como
18
monstruosas, já que não estão o extraindo de seu mundo. É neste sentido que o seu
desapego, e, talvez, todo o desapego, é redimido …]
Isto pode ser visto como uma contribuição para desmistificar reversibilidade
redentora. No entanto, Merleau-Ponty, pelo menos às vezes, optou pelo desapego
relativo de reversibilidade redentora de tal forma que o desapego de alguma coisa era
inevitavelmente um apego a outra coisa, já que nunca deixamos o mundo ou a carne das
coisas. [Mas às vezes nós o fazemos …] E sua noção de reversibilidade parece ter
alguma ligação com a fundação onto-teológica.
Então, devemos nos perguntar se é possível fazer mais progressos na
desmitificação da reversibilidade, e, em caso afirmativo, quais seriam as implicações
práticas disto. Claro que tudo para o que nós temos tempo aqui é uma visão
antecipatória de áreas que carecem de investigação sustentada e reflexão. Por isso,
vamos esboçar algumas reflexões provisórias sobre duas áreas das implicações práticas
de uma reversibilidade desmistificada: psicologia, e linguagem. É claro que essas áreas
se sobrepõem na prática, e isso deve se refletir em nossas observações.
Em primeiro lugar, no que diz respeito à possibilidade de mais desmitificação,
nossos críticos de Merleau-Ponty nos mostraram algumas restrições e limites para a sua
compreensão da reversibilidade. No entanto, nenhum dos críticos seguiu explicitamente
esta via em direção à desmitificação da reversibilidade. Vamos provisoriamente
descrever o progresso ao longo destas linhas ao tomar o desapego mais seriamente
como um recurso e não apenas como uma ameaça a ser redimida. Desapego estava,
[ironicamente] no centro de todos os relatos de reversibilidade redentora; no entanto,
em sua maior parte, apesar de ter sido essencial para o relato, o destacamento foi
ultimamente reconhecido como um perigo exigindo redenção. Reversibilidade
desmitificada deixará de oferecer essa concessão [se isso puder ser evitado], o que é
inevitavelmente um conceito metafísico.
Em segundo lugar, e na sequência deste primeiro critério para o progresso, a
reversibilidade desmitificada vai acentuar as ambiguidades de Merleau-Ponty a partir de
sua descrição da reversibilidade da carne, especificamente para revisitar a descrição da
encarnação. Desde o início de sua carreira, Merleau-Ponty ressaltou que o si mesmo é
um ser encarnado. Primeiro, ele trabalhou isso em termos de consciência, onde le corps
propre foi consciência encarnada, e ele apresentava desapego em termos de sua
proveniência fenomenológica. Assim, seu mundo foi revelado através do desapego de
matrizes intencionais ingenuamente assumidas como dadas ou fixas, enquanto le corps
19
50
I have developed this notion of self-similarity in: “Political Embodiment and Subjectivity,”
Representaciones: Revista de Estudios sobre Representaciones en Arte, Ciencia, y Filosofia, Vol. 3, No. 1
(July 2007), pp 30-47, esp. pp.40-41.
20
51
Leonard Lawlor, Early Twentieth-Century Continental Philosophy, Indiana University Press,
Bloomington, 2012, p. 171. Lawlor is quoting Merleau-Ponty from VI, p.141 / p.104.
52
Ibid., p.172. Incidentally, I remember several years ago when Len Lawlor and I were at a
phenomenology conference in Perugia, Italy, and noting that there was another conference on
phenomenology in Cittá di Castello, just a few kilometers down the road, I remarked that people in the
region might be worried to see the absent-minded, distracted behavior of so many phenomenologists in
the region. They might easily come to think of phenomenology as some sort of mental illness. One
imagines the bocce ball players remarking at one passerby from the conference, “Just leave him alone—
he has phenomenology.”
21
[Levar este desapego a sério é reconhecer que o ser de alguém é posto em questão
constantemente – que o reconhecimento é a condição de a possibilidade de sua própria
existência. Evidentemente, o si mesmo não oferece auto evidência existencial. O
reconhecimento da auto evidência na auto similaridade é, como Merleau-Ponty bem
colocou às vezes, conseguido apenas em retrospecto e nunca na prática. Meu ser é uma
ferida aberta. Mas ele não era consistente sobre isso. Talvez essa ameaça de
despersonalização é porque Merleau-Ponty, pelo menos às vezes, aplicou a pomada de
reversibilidade redentora com seu desapego relativo.]
Finalmente, as implicações práticas da reversibilidade desmistificada em nossa
compreensão da linguagem também são enormes. Se o desapego deixa de ser redimido
para salvaguardar o conceito metafísico da identidade pessoal, então vamos ter que
rever os conceitos de autor, de leitor, de significado, de interpretação, de crítica, e na
verdade de linguagem também.
Resumidamente, para tomar apenas um exemplo, podemos ver consequências
importantes aqui que foram antecipadas por Marilena Chauí. Existe uma certa
notoriedade entre os estudiosos de Merleau-Ponty a respeito de seu uso e abuso dos
textos de outros pensadores. De forma educada dizemos que Merleau-Ponty ofereceu
leituras criativas de obras dos outros como uma plataforma para a articulação de suas
próprias ideias. Seus relatos de Husserl, Marx, Freud, Saussure, Sartre e muitos outros,
por vezes, desrespeitam qualquer pretensão de fidelidade hermenêutica. Mas, como
aponta Chauí, também podemos ver isso como exemplos de teoria hermenêutica. Isto é,
podemos ver cada leitura de uma outra figura, outro texto, como um exemplo de como
Merleau-Ponty vê a arte da leitura. Chauí chamou a atenção para isso em seu trabalho
brilhante e importante, Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo.53 Aí Chauí
associa as leituras críticas e criativas de Merleau-Ponty de uma série de figuras a um
motivo central à discussão daquele autor. É interessante considerar de quem são esses
motivos – do autor do texto que Merleau-Ponty está lendo, de Merleau-Ponty ou do
leitor de Merleau-Ponty. Claro que a resposta é que esses motivos são "em todos os
lugares e em lugar nenhum", no sentido de que eles não pertencem exclusivamente a
ninguém, e ainda assim são intersubjetivos e reversíveis. Se não buscamos resgatar o
desapego na reversibilidade, então e só então poderemos levar a sério os problemas da
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Marilena Chauí, Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo, Editora brasilienese, São Paulo,
1981, esp. pp.193-208.
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interpretação, uma vez que é somente quando negamos a nós mesmos recorrer aos
conceitos metafísicos usuais que estamos engajados na criação do significado do texto
enquanto nós nos criamos nós mesmos na linguagem.
Além disso, a reversibilidade desmitificada aponta o caminho para novas
descobertas sobre a relação de sentido e silêncio na linguagem. Mais uma vez, a obra de
Judith Butler é instrutiva aqui. Em uma passagem citada acima, ela notou as raízes
teológicas da descrição merleau-pontyana sobre a encarnação. Ela também observou
que a ideia de uma sensibilidade táctil fundadora que em si mesma não fosse tocável era
um conceito romântico. Precisamos desiludir-nos de qualquer redenção oferecida por
um deus – mais especialmente se o deus acaba por ser a nossa própria reflexão, como
certamente acontece no romantismo. Mais especificamente, vamos considerar ainda
mais a ideia do que pode ser dito sobre essa origem romântica e suas implicações para a
linguagem.
54
Butler (op. cit.), p.190, my emphasis.
55
I want to thank theologian Mark C. Taylor for this image presented at Duquesne University, obviously
referring to Derrida’s “Tout autre est tout autre.”
56
Cf. Cheryl Emerson, “Unsaid,” [ms. 12/8/12]:
“Where bodies speak first,
(Knowing language as I do,
Will weigh its usual censor).
What the body would say before words,
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pura. O silêncio não é o oposto de dizer ou significar alguma coisa. Falamos quando o
silêncio diz muito.
Quando nós estamos à altura do desapego como um recurso e aceitamos a auto
similaridade em vez de identidade, quando desmitificamos a reversibilidade redentora,
talvez então, “pela primeira vez”, podemos evitar tais apelos à identidade original e
começar a apreciar as ambiguidades fundamentais da carne.