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Reversibilidade Revisitada:
Verdades e Valores no contexto da encarnação e desapego
[Apresentado em 10 de Junho de 2013, Toledo, Brasil]

I. Reversibilidade e Intercâmbio: Contexto Fenomenológico


A. A Carne do Mundo e Reversibilidade
A noção ontológica de la chair du monde [a carne do mundo] foi a tentativa final
de Merleau-Ponty de articular uma nova noção de um fundo transcendental em seu
desenvolvimento dialético. Ele desenvolve isso em termos das noções complementares
de réversibilité [reversibilidade] e écart [distância]. O primeiro uso de Merleau-Ponty
do termo reversibilidade neste sentido ontológico, a meu conhecimento, ocorre em suas
notas do curso para o ainda não oficialmente transcrito e inédito curso de 1955-1956
sobre Filosofia Dialética.1 Há uma seção inestimável intitulada "Dialética e
Subjetividade", que inicia uma análise ao longo de várias páginas que emprega pela
primeira vez termos de que irão informar sua ontologia situada nos próximos anos,
como "écart" e "a não-unidade da subjetividade”,2 e mesmo de “um ser que é
reversível”. 3 Ele também usa os termos ocasionalmente ao longo das notas de trabalho
para a preparação de O Visível e o Invisível – incluindo as muitas notas que não foram
incluídas no manuscrito publicado editado após a morte de Merleau-Ponty por Claude
Lefort. Em uma dessas notas de trabalho inéditas de 1958, Merleau-Ponty escreveu
sobre a reversibilidade e da sua complementar noção de distância que "écart =
Intentionalität, sans rapport" ["distância (de reversibilidade) = intencionalidade, sem
intercâmbio"].4 O limite da reversibilidade reside no intercambio que Merleau-Ponty
tentou afastar de seu relato ontológico de la chair du monde [a carne do mundo]. 5

1
These notes are on special reserve in the occidental reading room at the Bibliothèque nationale de
France: Maurice Merleau-Ponty, Vol. XIV, Collège de France, 1955-56, cours du Jeudi, La Philosophie
dialectique, et cours du Lundi, Textes et Commentaires sur la dialectique,

2
Ibid. pp.22f.
3
Ibid, p.28. Cited from my: “The Political Horizon of Merleau-Ponty’s Ontology,” in: Francis
Halsall, Julia Jansen, & Sinead O’Connor, (eds.), Critical Communities And Aesthetic Practices, Springer
Press, Dordrecht, 2012, pp.111-126.
4
Maurice Merleau-Ponty, notes on reserve in the Occidental Reading Room, Bibliothèque nationale de
France, Box III, p.53b [old reference system prior to microfiche project].
5
Merleau-Ponty published only two texts in his lifetime that indicate the ontological direction of this
late thought: the preface to Signes, and the essay l’Oeil et l’esprit. We do have access to several other
resources that have appeared posthumously, most especially Le Visible et l’invisible, but also several
volumes of his notes de cours. There are also various working notes and some other notes that remain
2

O intercâmbio em questão é essencial para a fenomenologia, devido à


centralidade da intencionalidade. Há reflexividade neste relato que inspira a
fenomenologia de Merleau-Ponty. O conceito ontológico de Merleau-Ponty da carne do
mundo é sempre carne na carne - que está implícito na locução de Merleau-Ponty, a
"promiscuidade do ser." A carne é sempre carne na carne, sempre manifesta nas
relações reversíveis de divergência. Merleau-Ponty oferece uma nova maneira enfrentar
esta reflexividade ao fundar o nosso ser através de um relato de encarnação. Assim,
enquanto a ontologia da carne é reflexiva, é também um relato da diferenciação dos
fenômenos em sua situação concreta e não a pura possibilidade de seu ser. A carne é
sempre carne na carne.
Quando Merleau-Ponty afirma que a carne não é uma metáfora, isto não
significa que se pode concluir que ela é uma coisa. A carne do mundo é aquilo que
"permite" seres serem seres. A carne do mundo é a estrutura do ser dos seres. Como
reversibilidade e écart, a carne é a expressão ontológica do fundo transcendental que
Merleau-Ponty tentou articular ao longo de sua carreira.
A carne é sempre carne na carne. Isso expressa a ambiguidade fundamental da
vida e do ser – de um ser e de ser, ambos situados na encarnação. A vida tem uma
integridade que aparece em retrospecto. Não há consolação sanguínea procurado no
resgate da ambiguidade da vida revelada na fenomenologia de Merleau-Ponty. [No
entanto, como veremos, pode haver problemas com esta noção de reversibilidade que
limitam isso.] Merleau-Ponty reafirma repetidas vezes que o termo carne não é uma
mera metáfora e deve ser lido "à la lettre."6 Por isso, emite-se um imperativo existencial
para tirar o máximo de nossa existência carnal. Minha vida tem valor na finitude, e não
apesar dela. Esta ontologia situada está em contraste gritante com o benigno "cuidado"
do Dasein de Heidegger, que "está interessado em sua própria existência." A
ambiguidade fundamental da vida que se manifesta na ontologia de Merleau-Ponty da
carne do mundo – o meu corpo, minha carne do mundo – emite este imperativo: viver a
vida!

untranscribed and unpublished. By far, the most developed use of reversibility is in the chapter on the
Chiasm and the working notes from The Visible and the Invisible. The second most important resource is
the essay Eye and Mind.

6
Cf. Emmanuel de Saint Aubert, (op.cit.), p.49.
3

Merleau-Ponty descreve a reversibilidade como "verdade suprema"7. Ele


contrasta esse princípio ontológico à oposição dialética dualista sartreana e, ao invés,
enfatiza a relação reversível de diferenciação. Reversibilidade é o cerne da ontologia de
Merleau-Ponty, ao lado da écart, e expressa a maneira como as coisas atingem suas
identidades frágeis divergentes através de suas ações de diferenciação entrelaçadas
umas nas outras. Reversibilidade é a capacidade, em princípio – nunca completa – de
ser outro ser.8 Reversibilidade envolve uma latência que iremos analisar criticamente
mais adiante neste ensaio. Por agora, vamos sublinhar que a reversibilidade mostra que
a identidade que tomamos como base para as verdades e os valores modernos se baseia
na capacidade de compartilhar a existência por meio de ações de diferenciação.

Um corpo humano está aí quando, entre o ver e o visível, entre tocante e


tocado, entre um olho e outro, [...] entre um lado e outro, entre a mão e a
mão uma espécie de entrecruzamento [recroisement] tem lugar [...] 9

E a ênfase aqui, mais uma vez, é no evento, a atividade, e o processo de


diferenciação. De fato, até a versão final deste ensaio, Merleau-Ponty também incluiu
10
aqui "uma invasão, uma transgressão" imediatamente após esta passagem. Uma
passagem paralela agradável em Le visible et l'invisible ocorre no capítulo sobre a
quiasma: "Por este entrecruzamento dentro do toque e do tangível, esses mesmos
movimentos são incorporados dentro do universo que eles interrogam […]" 11 É assim
que nossos estilos divergentes de entes emergem. Isto é como nos tornamos o que
somos.
Merleau-Ponty diz que a filosofia deve "instalar-se em um lugar onde [sujeito e
objeto] ainda não foram distinguidos, em experiências que ainda não foram
“elaboradas”, que oferecem-nos a todos de uma só vez, confusamente, tanto sujeito
quanto objeto, tanto a existência quanto a essência e, portanto, dar recursos à filosofia
12
para redefini-las.” É importante notar que não só Merleau-Ponty pensa que é

7
VI, p.204.

8
VI, pp.325-6/ p.272.
9
Maurice Merleau-Ponty, L’Oeil et l’esprit, Gallimard, Paris, p.20.
10
Merleau-Ponty, notes, Vol XIII, cf. 2nd typed version.
11
VI, p.176.
12
Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l’nvisible, Gallimard, Paris, 1964, p.172. [English translation, The
Visible and the Invisible (tr. A. Lingis), Northwestern University Press, Evanston, 1968, p.130.] Hereafter
I will cite the French texts followed by the English pagination, i.e., i72 / 140.
4

importante fornecer um relato daquilo que antecede a distinção sujeito / objeto, mas
também que o que ele está tentando revelar em tal relato também é a condição de
possibilidade de uma tal consideração. Esta é outra fina expressão da reflexividade
fundamental e intransponível reflexibilidade intrínseca à reflexão filosófica para
Merleau-Ponty. É uma expressão de um novo tipo de filosofia transcendental – que eu
acredito ser a chave para todo o seu pensamento. 13
A carne do mundo não é uma metáfora – ela não é parecida com nossa carne.
Merleau-Ponty salienta que ela nutre e sustenta as coisas que percebemos. Elas são isso,
e ainda assim a carne do mundo não se esgota por elas em sua capacidade como seres
estáticos. A posição de Merleau-Ponty não é uma busca de certeza ou encerramento.14
Assim, "não se pode dizer que" o que reina é o olhado ou o olhar. A filosofia
forneceu relatos que reivindicam ou um ou outro como primordial, privilegiado e
original. A questão dessa nova indicação é resistir a fazer apelos metafísicos banais e
abraçar a ambiguidade: não se pode e nem se deve dizer se é o olhar ou o que é olhado
que domina. Além disso, Merleau-Ponty está fazendo uma enorme contribuição por
desconstruir as reivindicações habituais de prioridade destinadas a alcançar uma espécie
de resolução filosófica. Isso é verdade na percepção e também no uso da linguagem.
“Assim, entre o som e o sentido, a fala e o que ela quer dizer, ainda existe a relação de
reversibilidade, e nenhuma questão de prioridade, uma vez que a troca de palavras é
exatamente a diferenciação da qual o pensamento é integral.” 15

13
The central thesis of my forthcoming book [Merleau-Ponty’s Eye and Mind: From a Phenomenology
of Perception to a Situated Ontology] is that Merleau-Ponty is trying to articulate a new form of
transcendental ground throughout his work. I argue for this thesis by adumbrating six dialectical
moments where one can see a trajectory, a parcours, emerge. At each dialectical moment, a new
transcendental ground is disclosed, only to reveal some important difficulty with this proposed ground.
This lack occasions the next dialectical moment where a new transcendental ground is proposed, which
then discloses a new lack. Merleau-Ponty’s final position is final only in the most morbid sense—it is the
last one he articulated before he died.
14
VI., pp. 175 / 132-3: “[It] is rather a sort of straits between exterior horizons and interior horizons
ever gaping open, something that comes to touch lightly and makes diverse regions of the colored or
visible world resound at the distances, a certain differentiation, an ephemeral modulation of this
world—less a color or a thing, therefore, than a difference between things and colors, a momentary
crystallization of colored being or of visibility. Between the alleged colors and visibles, we would find
anew the tissue that lines them, nourishes them, and which for its part is not a thing, but a possibility, a
latency, and a flesh of things.”
15
VI, p.190, fn. / p.145, n.5. Judith Butler has noted the value of these aspects of Merleau-Ponty’s
contribution to philosophy very well. “[It] attempts in a certain way to offer an alternative to the erotics
of simple mastery. It makes thinking passionate, because it overcomes, in its language and in its
argument, the distinction between a subject who sees and one who is seen, a subject who touches and
one who is touched. It does not, however, overcome the distinction by collapsing it. It is not as if
everyone is now engaged in the same act or that there is no dynamic, and no difference. No, and this is
where the distinction between active and passive is confounded, we might say, without being negated
5

Isso também revela uma interdependência ou invasão entre estes seres não-
priorizados no mundo. Esta invasão dentro dos seres na carne do mundo é uma das
maneiras inovadoras em que Merleau-Ponty tentou articular este novo tipo de fundo
transcendental. Nesta seção de O Visível e o Invisível, ele ecoa um pouco do espírito de
seu pensamento inicial sobre a encarnação, quando ele escreve o seguinte sobre o status
ontológico peculiar do corpo, entre outras coisas.

Se os toca e os vê, isso é apenas porque, sendo de sua família, em si


visível e tangível, ele usa seu próprio ser como um meio de participar dos
seus, pois cada uma das duas coisas é um arquétipo para o outro, porque
o corpo pertence à ordem das coisas como o mundo é carne universal. 16

A falta de prioridade é manifesto na frase enfatizada. Nossos corpos não são


coisas entre as coisas que uma das formas redutivas se poderia imaginar – onde nossos
corpos seriam o esquema para a materialidade das coisas que podemos ver ou tocar; ou
onde as coisas forneceriam o esquema para a materialidade de nossos corpos. No
entanto, os nossos corpos não são mais que coisas materiais; e as coisas invadem a
existência uma da outra, como coisas. “Eles são o interior do lado de fora e do lado de
fora para dentro, que o sentimento de duplicidade possibilita [...]”17 Reversibilidade é o
princípio que responde por esta invasão.
Entre a exploração e o que vai me ensinar, entre os meus movimentos e
que eu toco, deve existir alguma relação por princípio, algum parentesco,
de acordo com o que eles não são apenas [...] deformações vagas e
efêmeras do espaço corporal, mas a iniciação e a abertura para um mundo
tátil. Isso só pode acontecer se a minha mão, enquanto ela se sente por
dentro, é também acessível a partir do exterior, o próprio tangível, para a
minha outra mão, por exemplo, se ela toma o seu lugar entre as coisas
que toca, é em certo sentido uma delas, abre finalmente sobre um ser
palpável do qual também faz parte. Através deste entrecruzamento dentro
dele do toque e do tangível, seus próprios movimentos se incorporam no
universo que interrogam, estão registrados no mesmo mapa [...]18

Reversibilidade da carne é uma relação lateral entre as coisas visíveis na invasão


e sobreposição das coisas, a sua diferença uma em relação a outra. Minha própria

in the name of sameness.” Judith Butler, “Merleau-Ponty and the Touch of Malebranche,” in: T. Carmen
& M. Hansen (eds.), The Cambridge Companion to Merleau-Ponty, Cambridge University Press,
Cambridge, 2006, p.194.
16
VI, p. 181 / p.137, my emphasis. We shall return to this fascinating passage later in this essay.

17
OE, p.23 / p.164.
18
VI, p.177/ p. 133
6

formulação para isso é que podemos pensar o parentesco, a "identidade" [se podemos
falar nisso desta maneira], como um horizonte implícito de diferenciação. Como de
costume, a explicação parecerá, a princípio, paradoxal. Por um lado, a implicação é
virtual e não real. Assim, a carne do mundo é um horizonte virtual implícito de relações
reversíveis, em vez de um substrato metafísico. Por outro lado, a implicação do
horizonte para a diferenciação como a carne do mundo nada mais é do que real. Suas
relações reversíveis são a “textura imaginária do real.” 19
“Nós vemos as coisas em si
mesmas, o mundo é o que vemos [...]”20 Mas esse paradoxo desmente vaidades
metafísicas sobre a natureza do real e um equívoco importante entre eles. A carne não é
real no sentido de um objeto empírico como estudados pelas ciências naturais – mas tão
pouco são as coisas que a ciência se propõe a estudar. Do mesmo modo, a carne do
mundo é real, no sentido de sua materialidade – mas assim são os sonhos, ficções, e
assim por diante. Então, quando eu digo que a carne do mundo é “um horizonte
implícito de diferenciação”, a implicação é e não é real – de acordo com os dois
conceitos (e nenhum) da realidade. 21
A reversibilidade da carne é o princípio ontológico responsável por essa
ambiguidade reflexiva enigmática no coração da nossa existência. “Eu sou vidente-
visível, porque há uma reflexividade do sensível.” 22

O enigma é que meu corpo vê simultaneamente e é visto. Aquilo que


olha para todas as coisas, também pode olhar para si mesmo e
reconhecer, o que ele vê, o “outro lado” de seu poder de olhar. Ele se vê
vendo, ele toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo. 23

A reversibilidade da carne não é uma ordem moral do mundo, estamos sempre


em nossa própria maneira como olhamos o ser. “As coisas são um anexo ou
prolongamento de si mesmas; elas estão incrustadas em sua carne, eles são uma parte de

19
OE, p.24 / p.165.
20
VI, p.17 / p.3.
21
Cf. OE pp.21-2/ p.164. In Eye and Mind, Merleau-Ponty describes reversibility in terms of painting.
Once this strange system of exchanges is given, we find before us all the problems of painting. These
exchanges illustrate the enigma of the body, and this enigma justifies them. Since things and my body
are made of the same stuff, vision must somehow take place in them; their manifest visibility must be
repeated in the body by a secret visibility. Hence, the secrecy of the visibility of painting is not hermetic.
It is clear that “painting celebrates no other enigma but that of visibility.” [OE, p.26 / p.166.]
22
Maurice Merleau-Ponty, L’Oeil et l’esprit, Gallimard, Paris, 1964, pp.32-33; Eye and Mind in: The
Primacy of Perception and Other Essays [ed. J. Edie], Northwestern University Press, Evanston, 1964, p.
168. Hereafter I shall cite this essay as OE with pagination in the French first followed by the English.
23
OE, p.18 / p.162.
7

sua definição plena; o mundo é feito do mesmo material que o corpo”.24 Mas ser feito
do mesmo material dá vulnerabilidade e não só harmonia. 25
Apesar de toda a discussão sobre a reversibilidade como uma paridade
ontológica ou parentesco, Merleau-Ponty enfatiza constantemente que não há
reversibilidade sem écart. Isso se manifesta em sua escolha de termos que enfatizam a
diferenciação, fissão, divergência, dissonância, invasão, deiscência, e o desapego entre
as coisas. Merleau-Ponty fala de reversibilidade como uma espécie de transcendência,
como uma “propagação” de trocas entre corpos, mas ele explicitamente descreve este
em termos de diferenciação: “e por esta virtude da fissão fundamental ou segregação do
pensante e do sensível [...].”26 Vamos nos concentrar no desapego nestes diferenciais.

Porque, se o corpo é uma coisa entre as coisas, é assim em um sentido


mais forte e mais profundo do que eles: no mesmo sentido em que, como
dissemos, é um deles, e isso significa que ele se desapega sobre eles, e,
consequentemente, desapega-se deles. 27

A reversibilidade da carne de Merleau-Ponty “define a carne.” 28 Reversibilidade


informa o relato ontológico da encarnação aqui de tal maneira que salienta a
interdependência e, de fato, a interferência da subjetividade e objetividade – cada uma
“apela para” a outra, e não necessariamente de forma positiva. Nossos corpos têm uma
“dupla referência” [voltaremos a essa passagem na próxima seção] no mundo na
medida em que encarnação é não é subjetiva e objetiva.29 Reversibilidade é a demanda
que devo ter, como ser vidente, do visível e, como visível, do vidente – mas esta é uma
relação que nunca é completa. Devemos ser desapegados da nossa identidade como
sujeitos, a fim de ser objetificáveis; mas também temos de ser desapegados da nossa

24
OE, p.19 / p.163.
25
Cf. Sue Cataldi, Emotion, Depth, and Flesh: A Study of Sensitive Space: Reflections on Merleau-Ponty’s
Philosophy of Embodiment, State University of New York Press, Albany, 1993. This beautifully written
book brilliantly accounts for the vulnerability of the reversibility of the flesh. I also tried to make this
point briefly in my “Reversible Subjectivity: The Problem of Transcendence and Language,” in: Martin C.
Dillon, ed., Merleau-Ponty Vivant, State University of New York Press, Albany, NY, 1991, pp.31-45.

26
VI, p.188 / p.143.
27
VI, pp.180-1 / 137, my emphasis.
28
VI, p.189 / p.144.
29
VI, pp.180-1 / 137: “We say therefore that our body is a being of two leaves, from one side a thing
among things and otherwise what sees them and touches them; we say, because it is evident, that it
unites these two properties within itself, and its double belongingness to the order of the “object” and
to the order of the “subject” reveals to us quite unexpected relations between the two orders. It cannot
be by incomprehensible accident that the body has this double reference; it teaches us that each calls
for the other.”
8

identidade como objetos, a fim de sermos subjetiváveis. [Mas, se tomarmos este


desapego muito a sério, quem somos nós?] Vemos agora o que Merleau-Ponty quis
dizer quando ele disse que isso era como as relações intencionais que ele descreveu em
seu trabalho inicial, mas “sem intercâmbio”. E se esta reversibilidade define a carne do
mundo como desapego?

II. Reversibilidade e o Remanescente: Desmitificando a


Reversibilidade

Agora, com o nosso trabalho preliminar feito, estamos em uma posição melhor
para revisitar a reversibilidade. Podemos conceber a práxis do filósofo fora das
estruturas e restrições de reversibilidade redentora? Vamos recuperar a descrição da
reversibilidade redentora, a fim de ver as promessas e as limitações da reversibilidade
da carne de Merleau-Ponty. Vamos considerar, de passagem, três críticas da posição de
Merleau-Ponty por John Caputo e Jacques Derrida. Cada um desses críticos pode ser
usado para mostrar que noção de reversibilidade de Merleau-Ponty se baseia em
pressupostos onto-teológicos. Devemos atender ao desapego intrínseco às descrições de
Joseph de Maistre e Merleau-Ponty sobre a reversibilidade para ver que promessa
Merleau-Ponty espera para desmitificar a reversibilidade e ir além da reversibilidade
redentora. [O desapego é a chave para desmitificar a reversibilidade.] Vamos também
desconstruir uma passagem sobre desapego de um período anterior da carreira de
Merleau-Ponty para mostrar as limitações do desapego em seu pensamento. Finalmente,
devemos considerar algumas implicações práticas da reversibilidade desmistificada.
Reversibilidade, para de Maistre [bem como para Merleau-Ponty] era a verdade
fundamental da existência. Para de Maistre ela apresentava a intercorporeidade como
essa condição intramundana depravada que merece perdição. O sofrimento vicário do
inocente forneceu um sacrifício propiciatório que poderia fornecer expiação
generalizada para toda a reversibilidade. Reversibilidade foi nossa maneira de
participação na necessidade de sacrifício, bem como a possibilidade de sua redenção.
Devemos cultivar um desapego de nossos corpos, a fim de participar da redenção,
embora o mecanismo para sacrifício – sacrifício de sangue – envolve necessariamente
sacrifício do corpo.
A reversibilidade redentora ofereceu um remédio para a condição humana
depravada. O desapego está envolvido, mas em todos os casos é resgatável. [Mas
9

precisa o desapego ser resgatado? Ele pode ser resgatado?] Mas o que se passa com a
reversibilidade de Merleau-Ponty? [Talvez ele tenha muito em comum com seu
antecessor.]
Vimos que, na descrição de Merleau-Ponty sobre a reversibilidade da carne do
mundo, nós somos desapegados em direção às coisas e desapegados a partir das coisas.
Isso realmente reflete dois níveis de ambiguidade na existência: a ambiguidade entre a
existência objetiva e subjetiva; e a ambiguidade entre o corpo e a carne do mundo. Para
o primeiro, ambos somos e não somos nem sujeitos e objetos; para o segundo, nós
ambos somos e não somos nem corpos-como-coisas e carne do mundo por si só.
Devemos estar desapegados de qualquer desses pólos que definem as dicotomias aqui
em questão, e por isso estamos desapegados em direção aos sujeitos, objetos, corpos e
carne – não mais tomados em suas conotações de oposição. [Mas isso é uma outra
espécie de redenção?]
A retórica de Merleau-Ponty muitas vezes suporta uma leitura de sua
reversibilidade como reversibilidade redentora. A frase, que soa como um mantra, “pela
primeira vez”, na passagem citada em baixo do capítulo sobre o quiasma é um bom
exemplo disso. Há locuções similares por todo o seu trabalho posterior. Uma maneira de
lê-lo é como uma experiência de conversão. Da mesma forma, devemos considerar a
afirmação na Dúvida de Cézanne “Não pode haver consciência de que não é sustentada
30
por seu envolvimento primordial na vida e pela forma de seu envolvimento.” Claro
que, por um lado, isso pode ser lido como uma afirmação simples do princípio
fenomenológico da intencionalidade: uma vez que “a consciência é sempre consciência
de alguma coisa”, a consciência é inevitavelmente situada no mundo. Mas também se
pode ver uma reivindicação redentora aqui, se cada desapego é simplesmente um
desapego relativo e, simultaneamente, uma ligação com outra coisa [É cada desapego o
mesmo?], diminui-se a força do desapego. Isto quer dizer, o desapego relativo é
reduzido a uma diferença componente em uma mais ampla identidade não distinta
daquela que Merleau-Ponty critica em Hegel em seu sistema dialético idealista. [O
famoso slogan do prefácio à Fenomenologia da percepção de que estamos "condenados
ao sentido" assume um novo sentido por si próprio, com toda a condenação de um
cobertor de segurança metafísico.] É claro, devemos ser justos: Merleau-Ponty sempre
nega a visão pura sobre a história (ou sobre qualquer coisa) associada com o idealismo

30
SNS, p.31 / p.24. We shall return to this passage very soon, since it seems to cast all consciousness as
healthy consciousness.
10

de Hegel. O significado nunca pode ser totalmente expresso; a redução fenomenológica


nunca é completa; a história nunca confessa; e reversibilidade da carne nunca é
completa. Assim, o sentido a que estamos condenados não é um fixo ou determinado
sentido – é um sentido a se fazer. E o sentido que é feito tem integridade e propriedade
só retrospectivamente. Assim, para Merleau-Ponty, a reversibilidade pode ser “o
princípio fundamental” e pode "definir a carne", mas é evidente que ele não define uma
ordem mundial moral fixa ou determinada.
Não há dúvida de que o desapego é essencial para reversibilidade de Merleau-
Ponty, e de fato em seu pensamento como um todo. Por vezes, pode ler-se a
reversibilidade de uma maneira que ela se desloca entre dissociação e desapego. Na
verdade, toda a fenomenologia inevitavelmente impõe uma forma de desapego na
medida em que envolve uma epochē. Nós nos retiramos, e, portanto, estamos
desapegados de nossos preconceitos e, assim, um fenômeno é reduzido à sua essência –,
embora haja grandes desacordos entre os fenomenólogos sobre o grau em que isso é
possível e como proceder para fazê-lo. Para Merleau-Ponty, o desapego é fundamental
para seu pensamento, para colocá-lo de uma forma muito irônica. Para a própria ideia de
um centro fixo, um núcleo estável no centro do nosso ser, um sujeito tradicional ou
alma como identidade, [sim, até mesmo a identidade dessa narrativa] é o que é posto
em causa pelo desapego.
[Mas às vezes a fenomenologia tem sido um pouco sanguínea sobre suas
proclamações.] Existe realmente um mundo que se abre com igual facilidade para todos
os seres da mesma forma através dos mesmos tipos de corpos?
Pode-se pensar então de algumas passagens da obra de Merleau-Ponty.
Pela primeira vez, o ver que eu sou é para mim realmente visível; pela
primeira vez, eu apareço para mim mesmo completamente virado do
avesso sob meus próprios olhos. Pela primeira vez também, os meus
movimentos não procedem às coisas para serem visto, para serem
tocados, ou ao meu próprio corpo ocupado em vê-los e tocá-los, mas eles
dirigem-se para o corpo em geral e para si (seja meu próprio ou de outro),
pois pela primeira vez, por meio de outro corpo, vejo que, em seu
acoplamento com a carne do mundo, o corpo contribui mais do que
recebe, somando ao mundo que eu vejo o tesouro necessário para o que o
outro corpo vê. Pela primeira vez, o corpo já não se acopla ao mundo, ele
agarra um outro corpo, aplicando-se [de si a ele] com cuidado e com toda
a sua extensão, formando incansavelmente com suas mãos a estátua
estranha que por sua vez dá tudo o que ele recebe; o corpo é perdido fora
do mundo e seus objetivos, fascinado com a ocupação única de flutuar
em ser com outra vida, de se fazer a si mesmo o exterior do seu interior e
o interior do seu exterior. E daí em diante o movimento, tato, visão,
11

aplicando-se para o outro e para si mesmos, voltam-se para a sua origem


e, no paciente e silencioso trabalho do desejo, começa o paradoxo da
expressão. 31

Assim, a nova direção de Merleau-Ponty na fenomenologia revela,


aparentemente, uma dissociação ou desapego do si mesmo consciente onde, "perdido",
nós estamos “fascinados flutuando no ser com outra vida”, onde agarrando o corpo de
outra pessoa “dá-se tudo que recebe” – lugar do acoplamento com a carne do mundo
que revela “o tesouro necessário para o que o outro corpo vê.” [Isso soa maravilhoso. O
desapego é redentor.] Podemos lembrar a passagem citada anteriormente de A Dúvida
de Cézanne: “Não pode haver consciência de que não é sustentada por seu
envolvimento primordial na vida e pela forma de seu envolvimento.”32 Existem
diferenças importantes nas passagens no que diz respeito à centralidade da consciência,
mas não no que diz respeito à caracterização de desapego que é sempre também uma
vinculação de algum tipo.
Alguns críticos têm sugerido corretamente que a narrativa de Merleau-Ponty
sobre a encarnação pode não valer para todos. John Caputo criticou a descrição de
Merleau-Ponty do corpo como tendência para um corpo feliz, saudável – o corpo sobre
o qual os filósofos falaram desde a antiguidade.

[O corpo discutido pelos filósofos] a partir de Platão e Aristóteles até


Merleau-Ponty – é um atlético, saudável, ereto, branco corpo masculino
sexualmente capaz e de gênero inequívoco, bem-nascido, bem-educado e
bem enterrado. 33

[Por que os filósofos se referem apenas à Antígona? Não leem outros dramas?]
Estes são “corpos bem-vestidos, bem-alimentados, bem alojados”. Caputo
deliciosamente observa que os corpos da fenomenologia de Merleau-Ponty estão “em
excelente saúde, muito bem descansados, frescos de uma viagem para as ilhas ... com

31
Maurice Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, Gallimard, Paris, p.188-9. The Visible and the Invisible
[tr. A. Lingis], Northwestern University Press, Evanston, 1968, pp.143-4.
32
SNS, p.31 / p.24.

33
John D. Caputo, Against Ethics, Indiana University Press, Bloomington, 1993, p.194. I would like to
thank my friend and colleague from Western Carolina University, Dr. John Whitmire, for providing me
with this reference while I did not have access to the text for various reasons—as well as some careful
notes on this chapter of Caputo’s brilliant book.
12

decência e decoro, dignidade e graça (com apenas um toque de bronzeado).”34 Sua


crítica visa mostrar que a descrição de Merleau-Ponty é apresentada como uma
representação genérica de encarnação, enquanto ele não leva em conta o corpo
traumatizado, o corpo sofredor. Na verdade, é pior do que isso: Caputo acha que o relato
da encarnação oferecido por Merleau-Ponty se opõe a atender a corpos traumatizados e
sofredores, exceto de uma forma que venha a consolidar a normas tradicionais
(tendenciosas).
Caputo é apaixonadamente preocupado com o sofrimento e trauma daqueles que
têm sido tradicionalmente excluídos das posições de poder – ele é um homem carinhoso
e um pensador importante a quem eu respeito muito profissionalmente e pessoalmente.
[Você sabe muito bem que em breve eu vou escrever a palavra "mas" ou "porém" ou
"ainda".]
No entanto, [aí está] enquanto não pode haver dúvida de que o privilégio da
diferença na descrição de Caputo é importante e bem-intencionada, algo está errado
aqui. Pode-se resumir a sua agenda como deslocar a lógica tradicional de "o poder faz o
certo" com o "sofrimento torna certo." O sofrimento e trauma inscritos sobre os corpos
“desagradáveis e desfigurados” daqueles feitos Outros pelo padrão tradicional da
encarnação, da perspectiva de Caputo, suscitam a exigência de revisitar nossos padrões
e normas de encarnação. Aqueles que sofreram, em virtude de seu sofrimento, exigem e
merecem nossa compaixão. Aqueles que têm sido marginalizados, em virtude de sua
marginalização, merecem a oportunidade de criticar as normas que os julgaram tão
duramente. Seu sofrimento os torna certos. Caputo afirma que deve divergir do
entendimento da fenomenologia do corpo para desenvolver a noção de carne [Que
termo original...] configurado em uma "poética da obrigação", onde a mudança é a
partir de uma ênfase na liberdade e autonomia a uma obrigação, capacidade de resposta
e passividade. 35
Jacques Derrida, em seu importante trabalho, Le Toucher: Jean-Luc Noncy,36
dedica um capítulo para discutir a noção de carne do mundo de Merleau-Ponty, o que
Derrida crê transmitir uma alusão messiânica – o advento de uma carne ainda por vir. A
latência da noção de reversibilidade de Merleau-Ponty é, naturalmente, a defesa de

34
Ibid., p.195. By contrast, in note 1 Caputo describes the Other’s body is “unbecoming, uncomely,
embarrassing, improper.”
35
Ibid., pp.216-7.
36
Jacques Derrida, Le Toucher: Jean-Luc Nancy, Editions Galilée, Paris, 2000. English translation by: C.
Irizarry, On Touching: Jean-Luc Nancy, Stanford University Press, Stanford, 2005.
13

Merleau-Ponty contra a adequação metafísica: a reversibilidade não é completa porque


a minha existência nunca é completamente substituível ou suficiente para a existência
de outro. Os nossos seres se entrelaçam, mas não substituem um ao outro, sem um
remanescente. Mas as alusões de Merleau-Ponty ao longo de sua obra para os
significados inesgotáveis aparecendo à frente de uma pintura, por exemplo, pouco
fazem para desacreditar as afirmações de Derrida sobre as raízes onto-teológicas da
reversibilidade da carne de Merleau-Ponty. Em ambos os casos, Butler e Derrida,
Merleau-Ponty parece estar articulando uma reversibilidade redentora, em virtude das
raízes onto-teológicas de sua noção de reversibilidade da carne.
Mas porque esse desapego é o cerne da reversibilidade, e com o objetivo de
melhor compreender o desapego no pensamento de Merleau-Ponty, a fim de avaliar a
sua promessa e perigo no que diz respeito à desmistificação da reversibilidade
redentora, vamos brevemente voltar nossa atenção para uma passagem curiosa no ensaio
de Merleau-Ponty de 1945, A Dúvida de Cézanne.
Agora, a fenomenologia de Merleau-Ponty salientou mais do que ninguém até
então, indo bem além de Husserl, que esta intencionalidade da consciência não era
nenhuma relação intelectual, mas a própria encarnação. Então as apaixonadas e físicas
lutas de Cézanne que ele descreveu são manifestações da matriz intencional por meio de
que a expressão artística é alcançada. O corpo de Cézanne não fica no caminho de sua
arte, é a condição sine qua non de sua expressão estilística original.
É um relato belo e instrutivo da expressão artística; mas pergunta-se se a
descrição que retrata Cézanne como um fenomenólogo não seria bastante tendenciosa.
Será que Cézanne teria sido surpreendido ao saber que ele estava buscando a essência
dos fenômenos pela pintura? Na verdade, o esboço de Cézanne feito por Merleau-Ponty
é um autorretrato em que Merleau-Ponty revela muito sobre o seu próprio projeto e os
seus objetivos – da mesma maneira como aquele que conta uma piada revela mais sobre
si mesmo do que o pretendido. [Às vezes, eles riem quando eu conto uma piada, mas
agora eu me pergunto por que eles riem.] Nós podemos desconstruir este esboço, ou
uma parte dele, e reconstruir o seu significado sem observar [lembre-se: não olhe lá!] as
intenções do autor.
Abruptamente, Merleau-Ponty conclui o texto com uma discussão sobre
Leonardo da Vinci [Por que eu quase escrevo da Vinci de Moraes?] que queremos
desconstruir como uma espécie de ato falho. Merleau-Ponty parece convidar o
escrutínio – o título do ensaio não é A Dúvida de Da Vinci, afinal. E é interessante que
14

ele começa a discussão com uma referência explícita à psicanálise. Então, vamos nós
discutir o texto em dois níveis: o sentido do texto com relação ao uso do exemplo para
construir o esboço de Cézanne, [e então devemos revelar outro sentido e direção do
texto em que Merleau-Ponty revela que o esboço de Cézanne é para ser um
autorretrato - interessante para os nossos propósitos de prestar atenção ao desapego e
revisitar a reversibilidade].
Merleau-Ponty faz a transição de Cézanne para da Vinci ao discutir como, ao
mesmo tempo, somos livres em nossas vidas, enquanto as coisas nos são dadas ou
predestinadas. Merleau-Ponty volta, em seus cursos de 1954-1955, no Collège de
France37, para este problema, o que é particularmente interessante para a psicanálise – é
importante compreender a nossa atividade e a nossa passividade no que diz respeito à
relação da consciência para com o inconsciente. De um lado, uma série de eventos ao
longo do nosso desenvolvimento psicossexual, que determinam a forma como nós nos
desenvolvemos como seres saudáveis [- ou insalubres? Podemos realmente distingui-
los tão claramente?]. De outro, fazemos escolhas em nossas vidas e determinamos
ativamente o nosso destino.

Não existe diferença entre dizer que a nossa vida é completamente


construída e que é completamente determinada. Se houver uma
verdadeira liberdade, ela só pode acontecer no decorrer de nossa vida,
indo além da nossa situação original e ainda não deixar de ser a mesma:
este é o problema [...] Cabe a nós entendermos essas duas coisas ao
mesmo tempo, bem como a forma como a liberdade nasce dentro de nós,
sem quebrar os nossos laços com o mundo. 38

Estes laços incluem os atos de reconhecimento envolvidos na psicanálise.


Merleau-Ponty aponta que nossos laços com o mundo “estão sempre lá, mesmo e
sobretudo quando nos recusamos a admitir que eles existem.” 39
Aqui Merleau-Ponty
volta-se para a análise de da Vinci feita por Valéry como um “monstro de pura
liberdade” que parece ter cortado todas e quaisquer ligações com o mundo, ao sujeitá-
las à análise intelectual.40 Da Vinci, de acordo com Valéry, descobriu um estilo analítico

37
Le problème de la passivité: le sommeil, l’inconscient, la mémoire, in: L’Institution / La Passivité, Belin,
Paris, 2003.

38
SNS p.28 / p.21.

39
Ibid.
40
SNS., p.28 / p.22.
15

pelo qual ele considera agir e saber não como antinomias, mas igualmente como
"exercícios" para contemplar – a diferença entre eles é dissolvida através do
"conhecimento desapegado" [au détachment de la connaisance].41 Merleau-Ponty diz
que é preciso olhar mais de perto a descrição do desapego de da Vinci feita por Valéry
para revelar a verdadeira liberdade dentro de sua vida, e não fora dela. Ou seja,
Merleau-Ponty situa o desapego próprio de da Vinci como um laço dentro do mundo,
em vez de um meio de controlá-lo de fora.
Merleau-Ponty aponta um ato falho no relato que da Vinci faz do voo do
pássaro, onde “de repente, interrompe-se” e confessa que da Vinci o apresenta como
uma “memória” de infância, que é certamente uma reconstrução.42 A “memória” é que
quando ele era uma criança, um urubu pousou em seu berço e com as penas da cauda
várias vezes tocou seus lábios e boca. Aqui, Merleau-Ponty zomba da interpretação de
da Vinci como pura liberdade ou consciência pura.

Assim, mesmo essa consciência transparente tem seu enigma, real


memória de uma criança ou uma fantasia de um homem adulto. Ela não
vem de lugar nenhum, nem se sustenta sozinha. Estamos presos em uma
história secreta, em uma floresta de símbolos. 43

A memória / fantasia do abutre de Da Vinci, expressa compulsivamente, revela


mais sobre ele do que ele pretendia. Merleau-Ponty enquadra isso dentro de
informações biográficas de Da Vinci. Da Vinci era um filho ilegítimo, criado por sua
mãe, até que ele tinha quatro anos de idade. Ele foi, então, chamado para a casa de seu
pai, onde ele se tornou “desapegado”.

Sua sede de vida só poderia ser voltada para a investigação e


conhecimento do mundo, e, já que ele mesmo havia sido “desapegado”,
ele tinha de se tornar o poder intelectual, o homem que era todo mente,
aquele estranho entre os homens. Indiferente, incapaz de qualquer
indignação forte, amor ou ódio, ele deixou suas pinturas inacabadas para
dedicar seu tempo para experimentos bizarros, ele se tornou uma pessoa
em quem seus contemporâneos pressentiram um mistério. 44

41
Ibid.
42
SNS, p.29 / p.22.

43
Ibid. By the way, note the two allusions to Baudelaire in the last sentence. Poets were involved in a
secret science, and in his poem Correspondences, nature is described as a forest of symbols.
44
SNS, p.30 / p.23.
16

Note como a atitude científica analítica de Leonardo é apresentada como um


sintoma de uma falta de capacidade de viver a sua vida de outras maneiras.45 Merleau-
Ponty apresenta o desapego de Da Vinci como um mecanismo de defesa que revela as
ligações dentro de seu mundo – uma delas revela da Vinci como da Vinci.

Ele deixou sua obra inacabada, assim como seu pai havia lhe
abandonado. Ele não prestou atenção à autoridade e confiava só na
natureza e em seu próprio julgamento em matéria de conhecimento,
como é frequentemente o caso de pessoas que não foram criadas na
sombra do poder intimidatório e de proteção de um pai. Assim, mesmo
este puro poder de exame [...] tornou-se apenas a referência de Leonardo
à sua história. No auge de sua liberdade ele era, naquela mesma
liberdade, a criança que tinha sido: ele se desapegou de uma maneira só
porque ele estava ligado a outro. 46

“Naquela mesma liberdade”, da Vinci estava ligado à seu próprio passado.


Vimos anteriormente que Merleau-Ponty está convencido de que todo desapego é um
desapego relativo.47 Assim, a liberdade de Leonardo conquistada através de seu
desapego é ao mesmo tempo uma ligação de outra maneira.
A psicanálise, ao chamar a nossa atenção para a interdependência entre o
passado, presente e futuro, nos ensina que a liberdade é “uma repetição criativa
[reprise] de nós mesmos, sempre, em retrospecto, fiel a nós mesmos.”48 Absorvendo
Bergson, Merleau-Ponty mais tarde se referiu a isto em suas palestras sobre a Natureza
como o “movimento retrógrado do verdadeiro.” Só se deve à revisão retrospectiva o fato
de que reconhecemos nossas repetições criativas como a nós mesmos e nossos estilos de
ser. [Desapego é um processo contínuo essencial para o que chamam erroneamente de
identidade pessoal.]
Merleau-Ponty conclui o ensaio: “Nós nunca fugimos de nossa vida. Nós nunca
vemos as nossas ideias ou a nossa liberdade face a face.”49 Face a face é uma expressão
interessante que implica intimidade e proximidade. Mas é uma questão interessante
perguntar agora qual rosto temos olhado aqui – a liberdade e ideias de quem? Mais uma

45
This is an important anticipation of the opening line of Merleau-Ponty’s final publication, l’Oeil et
l’esprit [Eye and Mind], where he states that science manipulates the world at the price of no longer
living in it. OE, p.9.
46
SNS, pp.30-31 / p.24.
47
SNS, p.31 / p.24: “There can be no consciousness that is not sustained by its primordial involvement
in life and by the manner of its involvement.”
48
SNS, p.32, p.25.
49
SNS, p.32 / p.25.
17

vez, um sentido do texto é que o desapego de da Vinci é parte de seu estilo de ser, em
vez de alguma forma de escapar de sua vida. Mas foi mesmo o rosto de Cézanne ou da
Vinci aqui apresentado?
[É claro que há uma outra face emergente na expressão desses esboços, e é a de
Merleau-Ponty. Vamos revelar um outro sentido para esta parte do texto. Assim como
Merleau-Ponty observou que da Vinci interrompeu o voo do pássaro para confessar
sua memória / fantasia sobre o abutre, Merleau-Ponty compulsivamente interrompe seu
relato da expressão na obra de Cézanne para discutir da Vinci. Ele chama a atenção
para uma leitura psicanalítica de um texto, discutindo as vantagens e desvantagens da
hermenêutica de narrativas psicanalíticas e, portanto, convida a tal leitura de seus
próprios atos falhos. Da Vinci era um filho ilegítimo que foi criado por sua mãe.
Merleau-Ponty foi, por alguns relatos, também um filho ilegítimo, mas certamente ele
foi criado por sua mãe sozinha. Sartre escreveu que Merleau-Ponty não se recuperou
de uma infância incomparável. Então, quando Merleau-Ponty escreve sobre o fato de
da Vinci desenvolver um intelecto aguçado pelo seu desapego, ele está confessando seu
próprio desapego – bem como colocando em primeiro plano a sua própria percepção
fenomenológica, que ele já tinha começado a fazer em seu autorretrato de Cézanne
como fenomenólogo. Sartre escreveu esta observação sobre a infância de Merleau-
Ponty depois da morte de Merleau-Ponty ao expressar remorso sobre a sua separação
amarga sobre questões políticas. Sartre, muito injustamente, na minha perspectiva,
havia retratado Merleau-Ponty como alguém que se retirou da realidade política para
assumir a cátedra no Collège de France. Sartre retratou a ontologia de Merleau-Ponty
como abstrusa e removida – desapegada da realidade política. Alguém poderia
perguntar por que é tão importante para Merleau-Ponty insistir que o desapego de Da
Vinci é ao mesmo tempo ligação em outro sentido, e não uma libertação do mundo.
Sabemos o que está em jogo teoricamente; não é a sua afirmação da intencionalidade
antes mencionada, mas o ponto do ensaio é que o trabalho do artista ou a obra do
filósofo é inseparável de seu estilo de ser. Assim, vemos que há um investimento pessoal
aqui também para Merleau-Ponty: a sua própria atitude indiferente, seu forte senso de
privacidade, o seu desdém para a atenção do público em que Sartre prosperou, sua
perspicácia analítica e talento como fenomenólogo, tudo isso é o resultado de um
desapego de quem não foi "criado na sombra do poder intimidatório e de proteção de
um pai." Mas, assim como não estamos considerando da Vinci como um "monstro da
liberdade", não devemos considerar essas características de Merleau-Ponty como
18

monstruosas, já que não estão o extraindo de seu mundo. É neste sentido que o seu
desapego, e, talvez, todo o desapego, é redimido …]
Isto pode ser visto como uma contribuição para desmistificar reversibilidade
redentora. No entanto, Merleau-Ponty, pelo menos às vezes, optou pelo desapego
relativo de reversibilidade redentora de tal forma que o desapego de alguma coisa era
inevitavelmente um apego a outra coisa, já que nunca deixamos o mundo ou a carne das
coisas. [Mas às vezes nós o fazemos …] E sua noção de reversibilidade parece ter
alguma ligação com a fundação onto-teológica.
Então, devemos nos perguntar se é possível fazer mais progressos na
desmitificação da reversibilidade, e, em caso afirmativo, quais seriam as implicações
práticas disto. Claro que tudo para o que nós temos tempo aqui é uma visão
antecipatória de áreas que carecem de investigação sustentada e reflexão. Por isso,
vamos esboçar algumas reflexões provisórias sobre duas áreas das implicações práticas
de uma reversibilidade desmistificada: psicologia, e linguagem. É claro que essas áreas
se sobrepõem na prática, e isso deve se refletir em nossas observações.
Em primeiro lugar, no que diz respeito à possibilidade de mais desmitificação,
nossos críticos de Merleau-Ponty nos mostraram algumas restrições e limites para a sua
compreensão da reversibilidade. No entanto, nenhum dos críticos seguiu explicitamente
esta via em direção à desmitificação da reversibilidade. Vamos provisoriamente
descrever o progresso ao longo destas linhas ao tomar o desapego mais seriamente
como um recurso e não apenas como uma ameaça a ser redimida. Desapego estava,
[ironicamente] no centro de todos os relatos de reversibilidade redentora; no entanto,
em sua maior parte, apesar de ter sido essencial para o relato, o destacamento foi
ultimamente reconhecido como um perigo exigindo redenção. Reversibilidade
desmitificada deixará de oferecer essa concessão [se isso puder ser evitado], o que é
inevitavelmente um conceito metafísico.
Em segundo lugar, e na sequência deste primeiro critério para o progresso, a
reversibilidade desmitificada vai acentuar as ambiguidades de Merleau-Ponty a partir de
sua descrição da reversibilidade da carne, especificamente para revisitar a descrição da
encarnação. Desde o início de sua carreira, Merleau-Ponty ressaltou que o si mesmo é
um ser encarnado. Primeiro, ele trabalhou isso em termos de consciência, onde le corps
propre foi consciência encarnada, e ele apresentava desapego em termos de sua
proveniência fenomenológica. Assim, seu mundo foi revelado através do desapego de
matrizes intencionais ingenuamente assumidas como dadas ou fixas, enquanto le corps
19

propre atendia as matrizes intencionais em que participavam – aqueles que literalmente


faziam sentido do mundo e de si mesmos, celebrando a ambiguidade do sujeito e do
objeto. É, entre outras coisas, um relato de identidade pessoal como intercorporeidade.
[Mas é aí que reside o problema – ainda que que este si mesmo seja um si mesmo
virtual, que ainda aspira a um modelo de identidade, pelo menos uma identidade
virtual.]
Quando Merleau-Ponty desenvolveu sua descrição ontológica da reversibilidade
da carne do mundo, ele redobrou sua ênfase no desapego. Como vimos, a sua
reversibilidade da carne muitas vezes é sombria em termos de divergência, cisão,
diferença, dissonância, segregação, não-coincidência, não-adequação e desapego. A
nova ambiguidade que Merleau-Ponty explorou nesta descrição ontológica foi entre o
corpo vivido e a carne do mundo, onde a carne é sempre carne na carne. A carne do
mundo é um horizonte implícito de diferenciação. Vemos que essa ambiguidade
fundamental entre o corpo vivido e a carne do mundo que Merleau-Ponty explora
significa que a carne do mundo é uma descrição ontológica da encarnação. No entanto,
se não redimirmos o desapego nesta consideração, então a nossa encarnação também
deve ser revista em termos de sua reversibilidade desmistificada. Não apenas
conceitualmente, mas também fisicamente, a reversibilidade da carne implica que eu
não sou eu mesmo, que a "identidade pessoal" é um termo impróprio para uma série de
diferenciações. Evidentemente não se quer adotar a posição imatura de que não há si
mesmo, não há subjetividade. Isso é inconsistente com a experiência fenomenológica.
Pois estilos de ser emergem e dependemos deles. Mas podemos melhor responder por
nossa encarnação, sem redimir o desapego, ao redefinir a encarnação como auto
similaridade, em vez de identidade. Naturalmente, esta auto similaridade será
“epistemologicamente inquietante e metafisicamente suspeita.”50 Isso vai levar a ideia
de "dupla referência" dos nossos corpos mais a sério e empurrá-la para os limites.
Assim, com estes dois critérios em mente – vendo o desapego como um recurso, e
encarnação como a auto semelhança, vamos considerar algumas das implicações
práticas deste curso nas duas áreas indicadas da psicologia e linguagem.
As implicações psicológicas para desmitificar a reversibilidade incluem
reconhecer o caráter universal do desapego em nossa experiência. O desapego é um

50
I have developed this notion of self-similarity in: “Political Embodiment and Subjectivity,”
Representaciones: Revista de Estudios sobre Representaciones en Arte, Ciencia, y Filosofia, Vol. 3, No. 1
(July 2007), pp 30-47, esp. pp.40-41.
20

mecanismo de defesa comum em situações traumáticas, no entanto, é muitas vezes


considerado como patológico. De acordo com o DSM-IV, transtornos dissociativos
apresentam o desapego como desrealização e despersonalização. No entanto, longe de
ser patológico, o descolamento pode ser essencial para as verdades e os valores
encarnados. Desrealização envolve a problematização do que conta como realidade.
Como vimos, a ideia de reversibilidade implica desapego. E reversibilidade
desmistificada deve rejeitar qualquer realidade dada, estática. Da mesma forma, a
despersonalização não é uma má descrição do novo modelo de auto similaridade que
propomos para substituir modelos de identidade pessoal. [Isso não romantiza
comportamento patológico. Quando passamos para um modelo auto similar em vez de
buscar um modelo de identidade, reconhecemos a despersonalização, que pode ser
devastadora e debilitante como algo que não é Outro. Nós não devemos redimir o
desapego que nos torna vulneráveis, devemos reconhecê-lo em nossos estilos de ser].
Leonard Lawlor faz uma comparação interessante em sua discussão sobre a obra
de Merleau-Ponty em seu provocativo trabalho, Early Twentieth Century Continental
Philosophy. Lawlor aprecia a ameaça que o desapego apresenta, que nós vimos ter tudo
a ver com a noção de reversibilidade. Lawlor observa que Merleau-Ponty está ciente da
ameaça à noção da realidade da identidade pessoal e de nossa orientação no mundo em
geral. Aparentemente, as pessoas que consideramos sãs são aquelas que simplesmente
encerram a crítica inesgotável garantida pela separação intrínseca à reversibilidade. Eles
encerram, porque eles estão satisfeitos com encerrar, retrospectivamente. Lawlor
observa que “se assistimos e ouvimos as coisas, a sua potencialidade, a questão surgiria
novamente [e novamente] e de fato seria inesgotável”, ‘quase insano’.”51 Assim, um
pintor ou uma pessoa doente ou louca é obrigada [não leia isso como "está disposto"!] a
assumir a ameaça à identidade apresentada pelo desapego. “Habitar (habiter), portanto,
em Merleau-Ponty, não é para se questionar, mas para ser colocado em questão [...]."52

51
Leonard Lawlor, Early Twentieth-Century Continental Philosophy, Indiana University Press,
Bloomington, 2012, p. 171. Lawlor is quoting Merleau-Ponty from VI, p.141 / p.104.
52
Ibid., p.172. Incidentally, I remember several years ago when Len Lawlor and I were at a
phenomenology conference in Perugia, Italy, and noting that there was another conference on
phenomenology in Cittá di Castello, just a few kilometers down the road, I remarked that people in the
region might be worried to see the absent-minded, distracted behavior of so many phenomenologists in
the region. They might easily come to think of phenomenology as some sort of mental illness. One
imagines the bocce ball players remarking at one passerby from the conference, “Just leave him alone—
he has phenomenology.”
21

[Levar este desapego a sério é reconhecer que o ser de alguém é posto em questão
constantemente – que o reconhecimento é a condição de a possibilidade de sua própria
existência. Evidentemente, o si mesmo não oferece auto evidência existencial. O
reconhecimento da auto evidência na auto similaridade é, como Merleau-Ponty bem
colocou às vezes, conseguido apenas em retrospecto e nunca na prática. Meu ser é uma
ferida aberta. Mas ele não era consistente sobre isso. Talvez essa ameaça de
despersonalização é porque Merleau-Ponty, pelo menos às vezes, aplicou a pomada de
reversibilidade redentora com seu desapego relativo.]
Finalmente, as implicações práticas da reversibilidade desmistificada em nossa
compreensão da linguagem também são enormes. Se o desapego deixa de ser redimido
para salvaguardar o conceito metafísico da identidade pessoal, então vamos ter que
rever os conceitos de autor, de leitor, de significado, de interpretação, de crítica, e na
verdade de linguagem também.
Resumidamente, para tomar apenas um exemplo, podemos ver consequências
importantes aqui que foram antecipadas por Marilena Chauí. Existe uma certa
notoriedade entre os estudiosos de Merleau-Ponty a respeito de seu uso e abuso dos
textos de outros pensadores. De forma educada dizemos que Merleau-Ponty ofereceu
leituras criativas de obras dos outros como uma plataforma para a articulação de suas
próprias ideias. Seus relatos de Husserl, Marx, Freud, Saussure, Sartre e muitos outros,
por vezes, desrespeitam qualquer pretensão de fidelidade hermenêutica. Mas, como
aponta Chauí, também podemos ver isso como exemplos de teoria hermenêutica. Isto é,
podemos ver cada leitura de uma outra figura, outro texto, como um exemplo de como
Merleau-Ponty vê a arte da leitura. Chauí chamou a atenção para isso em seu trabalho
brilhante e importante, Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo.53 Aí Chauí
associa as leituras críticas e criativas de Merleau-Ponty de uma série de figuras a um
motivo central à discussão daquele autor. É interessante considerar de quem são esses
motivos – do autor do texto que Merleau-Ponty está lendo, de Merleau-Ponty ou do
leitor de Merleau-Ponty. Claro que a resposta é que esses motivos são "em todos os
lugares e em lugar nenhum", no sentido de que eles não pertencem exclusivamente a
ninguém, e ainda assim são intersubjetivos e reversíveis. Se não buscamos resgatar o
desapego na reversibilidade, então e só então poderemos levar a sério os problemas da

53
Marilena Chauí, Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo, Editora brasilienese, São Paulo,
1981, esp. pp.193-208.
22

interpretação, uma vez que é somente quando negamos a nós mesmos recorrer aos
conceitos metafísicos usuais que estamos engajados na criação do significado do texto
enquanto nós nos criamos nós mesmos na linguagem.
Além disso, a reversibilidade desmitificada aponta o caminho para novas
descobertas sobre a relação de sentido e silêncio na linguagem. Mais uma vez, a obra de
Judith Butler é instrutiva aqui. Em uma passagem citada acima, ela notou as raízes
teológicas da descrição merleau-pontyana sobre a encarnação. Ela também observou
que a ideia de uma sensibilidade táctil fundadora que em si mesma não fosse tocável era
um conceito romântico. Precisamos desiludir-nos de qualquer redenção oferecida por
um deus – mais especialmente se o deus acaba por ser a nossa própria reflexão, como
certamente acontece no romantismo. Mais especificamente, vamos considerar ainda
mais a ideia do que pode ser dito sobre essa origem romântica e suas implicações para a
linguagem.

Se ser tocado precede e condiciona o surgimento do "eu", então não vai


ser um "eu" que é tocado – não, vai ser algo antes do "eu", um estado em
que tocado e tocante são obscurecidos um pelo outro, mas não redutíveis
um ao outro, no qual a distinção torna-se quase impossível, mas onde a
distinção ainda se mantém e onde esta obscuridade, não narrável,
constitui a pré-história irrecuperável do sujeito. 54

Há um silêncio produtivo e destrutivo do desapego na linguagem que podemos


apreciar com a reversibilidade desmistificada, pois irá expor esta origem não narrável
obscura e irrecuperável como uma vaca sagrada. O desapego não é redimido pela
presunção metafísica da pura presença de uma falta. O silêncio não é totalmente outro,
um sagrado Outro [not a wholly other, a holy Other],55 uma identidade original
inescrutável. O silêncio é prenhe de significado e, como qualquer fundo, figura na
linguagem. [Imagine! (It figures!)] O silêncio pode fornecer uma profundidade
intercorporal para a articulação de ser: assim podemos compartilhar “o que o corpo diria
antes das palavras.” 56
O silêncio não é um deus, pura presença no traje de ausência

54
Butler (op. cit.), p.190, my emphasis.
55
I want to thank theologian Mark C. Taylor for this image presented at Duquesne University, obviously
referring to Derrida’s “Tout autre est tout autre.”
56
Cf. Cheryl Emerson, “Unsaid,” [ms. 12/8/12]:
“Where bodies speak first,
(Knowing language as I do,
Will weigh its usual censor).
What the body would say before words,
23

pura. O silêncio não é o oposto de dizer ou significar alguma coisa. Falamos quando o
silêncio diz muito.
Quando nós estamos à altura do desapego como um recurso e aceitamos a auto
similaridade em vez de identidade, quando desmitificamos a reversibilidade redentora,
talvez então, “pela primeira vez”, podemos evitar tais apelos à identidade original e
começar a apreciar as ambiguidades fundamentais da carne.

Dr. Dane H. Davis


Professor de Filosofa
The University of North Carolina at
Asheville [USA / EUA]
ddavis@unca.edu

If it could (once) be clear.”

This essay is dedicated to Cheryl Emerson.

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