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A História, hoje

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Os intelectuais franceses e o estrutura-


lismo"

o diagnóstico do «fim das ideologias», tal como é apresentado


por exemplo por Raymond Aron no seu último livro I, trata geralmente
do conjunto das sociedades desenvolvidas da América e da Europa
Ocidental. Põe em relação a prosperidade, o crescimento económico,
a integração social, por um lado, e a progressiva extinção dos extre-
mismos políticos, por outro: o automóvel, o frigorífico e a televisão
teriam matado a revolução. Este tipo de análise já inspirou inumeráveis
comentários sobre o neocapitalismo, o regime gauIlista e a espécie de
entorpecimento político que caracteriza a França desde o fim da guerra
ela Argélia: como se uma das [unções do nacionalismo gaullista fosse,
IIoje em dia, fazer um balanço de um processo objectivo de «ameri-
canização» da França.
Mas o fim das ideologias significará o fim dos ideólogos? Se é
-.eniade que a França actual, nas suas profundidades sociais, tende
a adormecer numa sociedade de abundância e de integração social,
este diagnóstico será igualmente válido para os grupos e os homens
que têm a profissão de pensar e de escrever? Objectar-se-a talvez que
esta questão supõe um certo desvio em relação à definição original

• Preuves, n." 92, Fevereiro de 1967.


1 Raymond Aron, Trois Essais sur I'âge industriel, Plon.

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t
A OFICINA DA HISTORIA

donde partimos: com efeito, as relações dos intelectuais com as ideo-


logias são de outra natureza, e em todo o caso mais complexas (mesmo
quando são aparentemente simples, ou voluntariamente simplificadas)
do que as do grande público. Todavia, em consequência do magistério
de opinião exercido pelos intelectuais franceses desde a época das
Luzes, são muitas vezes reveladoras dos problemas e das opções da
sociedade inteira. Historicamente, nada é mais simplificador do que
divinizar uma função puramente protestatória da intelligentsia: por
intermédio de grandes antepassados malditos, instalamo-nos facil-
mente numa herança excepcional. Acontece que Voltaire é o homem
mais festejado do século XVIII, Rousseau é levado para o Panthéon
pela Revolução e o caixão de Victor Hugo é seguido por uma multidão
imensa. A esquerda intelectual raramente governou a França contem-
porânea, mas deu-lhe os seus valores universais. Nem o processo Dreyfus,
nem a Frente Popular, nem a expansão do comunismo depois da guerra
são compreensíveis sem o brilho que lhes deu a intervenção dos inte-
lectuais.
É por isso que a ideologia está longe de estar toda ela contida
numa teoria da história, mesmo que o marxismo-Ieninismo tenha
sido a forma mais espalhada e a mais extrema na França de ontem.
A ideologia nasce do sentimento de que um grande problema his-
tórico pode e deve ser resolvido por um comprometimento individual.
Daí a paixão que lhe é inseparável, o proselitismo, a condenação
do adversário e mesmo do indiferente, a amálgama entre a ordem da
razão histórica e a da moral pessoal. As lutas de classes segundo Guizot
ou segundo Marx têm finalidades diferentes, uma assegurando o reino
da burguesia, a outra o advento do proletariado; no entanto, ambas
supõem - mesmo que o neguem, como Marx - uma visão moral
do mundo político, uma partilha entre o bem e o mal e um compro-
metimento do lado do bem.
De facto, a esquerda francesa não tem o monopólio da ideo-
logia: é antes a própria oposição esquerda-direita que é desde há perto
de duzentos anos a trama na qual se tecem as ideologias. Apoiado
em Barrês contra Zola, em Maurras contra Romain RoIland, em Drieu
contra Aragon, o francês de direita possui também o seu pedigree cul-
tural, de que a esquerda denunciou muitas vezes os postulados implícitos

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A. HIBT6RIA., HOJE l
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e a hipocrisia política, O masoquismo nacional do burguês pétainista ~
ou, quinze anos mais tarde, a exaltação nacionalista da «Argélia fran- i
cesa» levam ao mesmo sistema de justificações intelectuais e morais,
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de que apenas as modalidades variaram com o acontecimento. Porque
privilegiar então hoje a ideologia de esquerda e o intelectual de esquerda?
É que a última grande batalha da ideologia de direita foi empreendida
- e perdida - pelo fascismo: desde o fim da guerra, a elaboração
ideológica tornou-se por este facto quase um monopólio da esquerda.
Como Raymond Aron mostrou, esta esquerda vitoriosa a quem
a história «dava razão» abusou loucamente do famoso tribunal hege-
liano, tornado «o ópio dos intelectuais», antes mesmo que o tribunal
político-moral do estalinismo se desmantelasse com a morte de Esta-
line. Combinavam-se aí certeza histórica e juízo moral, reforçando-se
mutuamente: ora, os dois elementos deste apogeu da idade ideológica
foram atingidos ao mesmo tempo pela evolução do mundo contem-
porâneo.
A desestalinização pôs em causa justiça e verdade no interior do
mundo socialista: os «indecentes» não eram unicamente os burgueses,
e a União Soviética não estava forçosamente, sempre e por essência,
na vanguarda da história humana. Primeira diáspora dos intelectuais
comunistas e progressistas: um mundo inteiro desfazia-se -lembro-me
disso, eu estava lá. Varsóvia, Budapeste, o cisma chinês apenas vieram
acentuar o processo, consagrando o fim de um marxismo-leninismo
ao mesmo tempo encarnado e universal. Mas é justamente nestes anos
que uma nova miragem universalista, que um messianismo de substi-
tuição se ofereceu aos intelectuais revolucionários, o da luta do Terceiro
Mundo pela sua independência, isto é, no contexto francês, o apoio
da F.L.N. na guerra da Argélia. Esta experiência suplementar do extre-
mismo ideológico foi tanto mais característica dos meios de intelectuais
de esquerda quanto foi vivida no isolamento social, desacreditada pelo
Partido Comunista, incompreendida pela classe operária: o vínculo
(mítico) do intelectual ocidental com os oprimidos e os agentes da
revolução mundial era procurado para além das fronteiras, num adver-
sário por definição supostamente socialista e internacionalista. O felá
muçulmano cantado por Fanon tinha-se tornado o último aliado em
data do derrotismo revolucionário de tipo leninista, Sabe-se o segui-

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A OFIOINA DA HIST6RIA

mento: onde a esquerda intelectual investira os seus valores revolu-


cionários tornados disponíveis, encontrou uma consciência nacional
e religiosa; ao buscar o partido boIchevique de 17, encontrou o islão,
Boumediene em vez de Lenine.
O fracasso argelino e as próprias vitórias dos povos colonizados
travaram o investimento dos intelectuais de esquerda no Terceiro
Mundo: é que as dificuldades do «arranque» económico são de natu-
reza muitas vezes demasiado técnica para alimentar as paixões, e há
uma espécie de decepção amorosa entre os amigos franceses da F.L.N.
em guerra e a Argélia do coronel Boumediene. No entanto, o fracasso
económico da maior parte dos países recém-descolonizados dá de
novo crédito, de uma certa maneira, à ideia da ditadura leninista
--- ou maoísta: não encontrando nos seus países o terreno favorável a
uma experiência deste tipo, alguns intelectuais ocidentais exaltam a
necessidade desta ditadura para os países subdesenvolvidos como
único meio para quebrar os obstáculos de todos os géneros à mobi-
lização do trabalho e à poupança nacional. Enquanto a revolução
cubana, há alguns anos atrás, tinha entusiasmado sobretudo pelo seu
carácter romântico e antiburocrático (que se distinguia tão nitidamente
dos socialismos de tipo soviético), o modelo chinês parece voltar a dar
os seus direitos prioritários ao desenvolvimento económico, e pode
justificar de novo, desta maneira clássica, a defesa de uma política tota-
litária. Mas é obviamente inadequado às condições das sociedades euro-
peias, ao mesmo tempo demasiado «exótico» pela cultura e demasiado
conhecido pelos seus antecedentes para suscitar muitas adesões; a hos-
tilidade do Partido Comunista Francês tira-lhe finalmente grande parte
do seu esplendor.
Na realidade, em vez de revigorar um marxismo «à chinesa», a
irrupção das nações do Terceiro Mundo na história contribuiu, pelo
contrário, para apressar o fim das ideologias na cultura francesa con-
temporânea; o que, à superfície e por um instante, parecia reanimar
as grandes intenções universalistas de transformação social, desacre-
ditou em profundidade e de maneira duradoura as filosofias da his-
tória do século XIX: fenómeno que se poderia resumir grosseiramente
dizendo que na vida intelectual francesa, tão sensível à conjuntura,

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A HIST6RIA, HOJE

e tão pronta à generalização, a etnologia estrutural tirou uma parte


do seu esplendor do facto de oferecer uma anti-histôria,
Uma esquerda intelectual desiludida, desmoralizada pela história,
virou-se para o homem primitivo, já não tanto para decifrar a infância
do homem - o que conduziria ainda à história -, mas para nele
encontrar a verdade do homem; este plesbicito do «selvagem» por uma
sociedade que se considera satura da de riqueza e de «civilização», como
se dizia já no tempo de Rousseau, não é um fenómeno novo. Mas o
interessante é que o «selvagem» se tenha tornado por um instante o
modelo das ciências do homem: não é portanto por acaso, nem o único
efeito de um chauvinismo cultural aliás demasiado evidente, que o
estruturalismo, que domina as investigações linguísticas europeias desde
o princípio do após-guerra, desabrochou em França, não através da
linguística, mas sobretudo através da etnologia. Também não é só
por causa da importância da obra de Lévi-Strauss: as «estruturas ele-
mentares» datam de 1949 c antecipam portanto de quase dez anos
a grande notoriedade do autor. Foi necessária a deslocação do dogma-
tismo marxista, nos anos 1955-1960, para que a etnologia viesse preen-
cher uma expectativa social, uma situação histórica. É que a descolo-
nização revelou a todos os segredos dos etnólogos, esses pioneiros
do anticolonialismo: que as culturas são múltiplas, igualmente respei-
táveis, e que se manifestam mais em termos de permanência do que de
mudança. A colonização francesa (que foi muitas vezes de «esquerda»
nas suas origens, é preciso não esquecê-lo) pretendera reunificá-las
num «tempo» à ocidental, fazendo-Ihes ultrapassar a todo o custo
as etapas europeias do progresso; em contrapartida, há talvez hoje um
pouco de masoquismo expiatório na revalorização dos mundos extra-
-europeus.
Por outro lado, estes mundos exóticos e pobres têm o condão de
cristalizar todas as repugnâncias e todas as recusas que nascem da
«sociedade da abundância»: mesmo que tenham deixado de ser pólos
revolucionários, mesmo que se afundem a pouco e pouco abaixo da
linha de sobrevivência, são pelo menos inocentes e puros, aos olhos de
uma esquerda que é no fundo moralista e mais cristã do que julga ser;
continuam ainda a ser um recurso do espaço contra o tempo imobili-
zado (visto não ser revolucionário) do Ocidente. Por pouco que a

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A OFICINA DA HISTóRIA

chama revolucionária esteja latente, como na América do Sul, ou


irrompa, como na China, o desespero dos estudantes da Europa rica
pode um dia reinvestir-se de esperança.
Produziu-se finalmente, entre ontem e hoje, uma profunda muta-
ção na ideia que um intelectual francês faz do mundo e do papel que
o seu país tem nele. A transferência da esperança revolucionária para
a União Soviética, depois para o Terceiro Mundo, constituía já uma
confissão de implícita impotência quanto às possibilidades nacionais.
Mas traduzia também a sobrevivência da tradição jacobina, a nostalgia
da França de 93, um patriotismo provisoriamente frustrado mas opti-
mista: um dia, a França retomaria nas suas próprias mãos o archote
da história revolucionária. Eis que até este sonho se apaga no hori-
zonte: hoje que a chama soviética se extingue e o Terceiro Mundo
desconcerta ou desilude os seus amigos dos tempos heróicos, eis que
a própria França já não é a França. O intelectual francês, herdeiro
de um prestígio menos frágil do que a força, e inconscientemente habi-
tuado ao esplendor universal da sua cultura, ainda não vive a infeli-
cidade de ser belga. Mas já se compreende a si próprio, já se compreende
cada vez mais como o cidadão de um país que, apesar da retórica gaul-
lista, já não tem o sentimento de fazer a história humana: esta França,
expulsa da história, aceita tanto melhor expulsar a história. Pode deitar
sobre o mundo um olhar que já não está velado pelo seu próprio
exemplo e pela sua obsessão civilizadora: um olhar quase espacial,
doravante céptico sobre as «lições» e o «sentido» da história. Desde o
primeiro após-guerra, nos seus Regards SUl" /e monde actuel, Valéry
pressentira admiravelmente o fenômeno.
Assim, as desilusões recentes dos intelectuais franceses e a con-
juntura política geral cumulam os seus efeitos para chegar a um ques-
tionamento da história - esta mestra * que foi durante tanto tempo
tirânica, antes de se tornar infiel.

É sem dúvida esta situação que explica a repercussão actual de


um tipo de pensamento de que se vê em Lévi-Strauss o modelo e o

* Maitresse, em francês, tem dois sentidos, que o autor aqui refere simulta-
neamente: o de «mestra» (de escola) e o de amante, eventualmente infiel. (N. do R.)

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A HISTóRIA, HOJE

representante. Não é aliás certo, é mesmo improvável que Lévi-Strauss,


que tem a paixão da exactidão, aceite esta espécie de paternidade geral
e vaga que se quer de todos os lados endossar-lhe, sob o rótulo de
«estruturalismo». No entanto, do ponto de vista de uma sociologia
da sua audiência, pouco importa: é significativo, pelo contrário, que
uma obra tão particular e tão técnica como a sua tenha tido uma resso-
nância bastante geral para que a invoquem hoje homens de letras,
críticos de arte, filósofos. Ao tentar-se inventariar os grandes temas e as
ambições, não se procurará portanto escapar ao movimento que
generaliza o seu alcance, pois que é isso mesmo que se trata de com-
preender.
Por mais abstracta, por mais intelectualista que seja, a obra de
Lévi-Strauss impressiona antes de mais como uma renovação do grande
paradoxo rousseauísta que corta em dois o século XVIII: pressente-se
ao longo de toda ela este amor pela vida natural, pelo campo e pelas
flores, esta ternura pelo homem «primitivo» que evoca inevitavelmente
a nostalgia de uma felicidade perdida pelas sociedades industriais.
Lévi-Strauss fala de um mundo onde a águia, o urso, a selva existem.
Mas tal como Rousseau, um dos seus autores preferidos, não acredita
no regresso de uma felicidade primitiva perdida. O herdeiro de Boas
e de Mauss sabe que não há estado natural, mas múltiplos, colectivi-
dades e culturas que são outras tantas formas dadas ao confronto com
a natureza, e entre as quais o saber positivo não pode estabelecer uma
hierarquia. A sociedade industrial da Europa ou da América perde
então os privilégios que crê ter sobre as tribos perdidas na floresta ama-
zónica: «É preciso muito egocentrismo e ingenuidade para acreditar
que o homem está totalmente refugiado num só modo histórico ou
geográfico do seu ser, enquanto a verdade do homem reside no sis-
tema das suas diferenças e das suas propriedades comuns» (La Pensée
sauvagey. O «selvagem» não oferece portanto a imagem da infância
do homem, como se pensava nos séculos XVIII e XIX, segundo um modelo
ingenuamente europeu da história humana; não é sequer uma imagem
adequada entre outras. Desde que se lhe reconheça ter imaginado
sociedades muito variadas e usar uma lógica tão erudita - ou tão
simples - como a da ciência moderna, já não existe como tal, nem
como «primitivo». Oferece simplesmente, como as chamadas sociedades

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A OFICINA DA HISTóRIA

desenvolvidas, uma multiplicidade de soluções culturais à eterna con-


tradição entre o homem e a natureza.
O papel da etnologia é então o de classificar os sistemas culturais,
de continuar, no interior de cada um deles, a análise objectiva dos
signos e da sua articulação. A ambição psicanalítica é implicitamente
transferi da do individual para o colectivo, da análise clínica para a
«descodificação» de uma linguagem social como o mito: sabe-se até
que ponto o Freud do último período se apaixonou pela interpretação
da informação etnológica (que ele de resto conhecia mal). Aliás, Lévi-
-Strauss recusa a confusão metodológica deste parentesco dissimulado
etnologia-psicanálise. Nunca extrapola no seu domínio os processos
da psicanálise. Mas a sua reflexão sobre os mitos estende ao colectivo
as ambições da cura individual; quer pôr à luz do dia as estruturas
inconscientes da mensagem social, o seu código subjacente anterior
ao que cada homem pensa, e determinando finalmente o que ele pensa
de si próprio e dos outros. Lévi-Strauss está de acordo neste ponto
com Marx, com Freud: tal como o domínio do mito, o das ideologias
é o de uma falsa consciência do real, que depende de uma explicação
feita a um outro nível. Mas, contrariamente a Marx, não entrevê
nenhuma solução histórica para esta falsa consciência, nenhuma
reconciliação do homem com a sua verdadeira história.
Além disso, o que tenta ainda a etnologia estrutural é a promoção
das ciências humanas a uma metodologia enfim rigorosa, comparável
à das ciências exactas. É que em certo sentido a análise etnológica
é uma experiência de laboratório. Tanto nas ciências humanas como
nas ciências exactas, o objecto da observação é tratado como um objecto
natural; desdobrado no espaço, permite experimentações múltiplas;
enfim, a consciência da distância entre o observador e o observado é
muito viva. Porém, noutro sentido, as discussões metodológicas dos
etnólogos ameaçam esta assimilação da etnologia às ciências exactas.
Lévi-Strauss nunca deixou de ter o duplo sentimento deste parentesco
e desta distância a preencher: daí a originalidade da sua obra e sem
dúvida o seu alcance geral que contrasta com o carácter voluntaria-
mente restrito da descrição etnológica. É que, trabalhando com algumas
sociedades onde a história não introduziu o caos e onde é relativamente
fácil a redução a variantes pouco numerosas, Lévi-Strauss pode satis-

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i

A HIST6RIA, HOJE
1

fazer, nas melhores condições, a sua preocupação pelo rigor científico


e a sua obsessão pelo «modelo» linguístico.
É verdade, como repete muitas vezes, que nunca se aventurou
para além desse campo, conquanto, como acontece sempre desde que
a moda se apropria de uma obra, discípulos demasiado zelosos ou impru-
dentes tenham tendência a alargar o seu método a uma teoria geral
das sociedades. Mas esta antecipação ligeira, ilusória talvez, sublinha
ainda mais o brilho metodológico dos livros de Lévi-Strauss. A figura
deste entomólogo dos comportamentos humanos, capaz de executar
com sucesso a saída do seu mundo cultural, não será a imagem inver-
tida do homem sartriano para quem o afundamento na história e a
emergência de uma práxis revolucionária impõem o célebre compro-
misso? É portanto insignificante que Lévi-Strauss pertença à mesma
geração que Sartre, tenha vivido - mais ou menos - a mesma his-
tória e seja considerado também «à esquerda»: para ele, esta própria
definição pertence ao domínio da opinião, não da ciência. Em que
é que, aliás, ele é de esquerda? Esta palavra não tem qualquer sentido
para um homem que pensa que, no estado de infância e de balbucia-
mento, as ciências humanas, a que consagrou a sua vida, e fora das
quais não quer dizer nada, não têm de momento nada a propor de
sério, menos ainda de útil, à cidade e às suas lutas - salvo precisa-
mente em voltar a cair na ideologia. É mesmo com a condição expressa
de se calarem sobre este assunto que podem ter a possibilidade de
merecer um dia o seu nome: «Às ciências exactas e naturais, pode-se
legitimamente perguntar o que são. Mas as ciências sociais e humanas
não estão ainda em condições de prestar contas. Se quisermos exigir
isso delas ou se, por política, crermos ser astucioso fazer de conta,
não nos deveremos admirar se recebermos balanços falsificados» (Revue
internationale des sciences sociales, 1964).
Será necessário ver nesta meticulosa obstinação - o que seria
para o nosso assunto o mais significativo - uma verdadeira ruptura
com a história? Lévi-Strauss não cessa de defender-se disso, de prestar
homenagens explícitas à história, consentindo mesmo em «reservar
os seus direitos» (lição inaugural). Mas para quando, e para que histó-
ria? Tratar-se-á do sentido histórico forjado pela razão dialéctica de
Sartre? Evidentemente que não, visto que um olhar retrospectivo só

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A OFICINA DA HISTóRIA

pode mostrar no presente o resultado necessário do passado à custa


de uma falsificação inconsciente. Para Sartre, um homem pode sempre
retomar a continuação. Para Lévi-Strauss, só pode acreditar nisso.
Tenaz ilusão, que confere ao presente um privilégio um pouco sim-
plório, sem ver que é o presente que introduz nas sucessões uma flexi-
bilidade tirada do seu próprio fundo. Sob o olhar etnológico afunda-
-se portanto a segurança de um movimento retrógrado do verdadeiro,
e a filosofia da história torna-se um mito cuja necessidade não faz
senão sublinhar a inconsistência. Lévi-Strauss, criticando o fabrico
do sentido histórico pela razão dialéctica de Sartre, escreve estas
frases significativas sobre a história da Revolução Francesa: «O cha-
mado homem de esquerda agarra-se ainda a um período da história
contemporânea que lhe dispensava o privilégio de uma congruência
entre os imperativos práticos e os esquemas de interpretação. Talvez
que esta idade de ouro da consciência histórica já esteja terminada; e
o facto de se poder pelo menos conceber esta eventualidade prova que
se trata unicamente de uma situação contingente, como poderia ser
a 'focagem' fortuita de um instrumento de óptica em que a objectiva
e o foco estivessem num movimento relativo uma em relação ao outro.
Estamos ainda 'focados' na Revolução Francesa; mas teríamos estado
'focados' na Fronda se tivéssemos vivido mais cedo» (Pensée sauvage).
Mas, uma vez saldada a conta deste pseudo-saber, continua a
ser verdade que as sociedades se transformam e que pelo menos algu-
mas histórias - se não uma história - podem reclamar os seus obser-
vadores. A história, como o planeta de Le Verrier, é então a incansável
«perturbadora», que introduz os desequilíbrios estruturais. Ora, não
se pode conhecer tudo ao mesmo tempo; sincronia e diacronia não
podem ser apreendidas de um só relance. Quanto mais se multiplicam
num domínio as oportunidades de conhecer, mais nos privamos, em
proporção, das oportunidades de aceder a outro domínio. Precisamos
portanto de etnólogos estruturalistas para a ordem, de historiadores
para a desordem. Esta divisão de tarefas, contudo, tem uma equidade
apenas aparente. O estudo das estruturas conserva um duplo privi-
légio, cronológico e lógico. Cronológico, visto ser pela sua descrição
que é preciso começar. A actividade estruturalista tem por este facto
uma inteira autonomia, e a recíproca não é verdadeira: o trabalho

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A HIST6RIA, HOJE

do historiador é dependente, ornamental, relegado de qualquer forma


a um futuro distante. E lógico, porquanto, ao contrário das estruturas,
a história pulveriza a norma no acontecimento, racionaliza-se com
grande dificuldade e talvez mesmo absolutamente nada.
Deste ponto de vista, que é talvez o mais significativo para o nosso
intento, Marx e Sartre estão do mesmo lado da barricada: o da his-
tória, e Lévi-Strauss do outro, o da estrutura. Como Hegel e como
Marx, Sartre descreve ainda um advento, uma história que realiza o
homem; Lévi-Strauss reduz o homem múltiplo aos seus mecanismos
comuns, dissolve-o no determinismo universal, estende-o no limite
como um objecto natural. Os seus livros, com um rigor um pouco
precioso, são um comentário sem esperança do nada do homem. Corte
epistemológico provavelmente fundamental em relação à «idade ideo-
lógica» e sistematizado por Foucault em Les Mots et les Choses.
Não quereria cair nas facilidades da amálgama, misturando inde-
vidamente obras e autores; mas do ponto de vista em que esta análise
se situa, e de acordo com um parentesco espontaneamente sentido
pela opinião intelectual, é permitido aproximar de Lévi-Strauss os
trabalhos de Barthes e de Foucault. Os domínios de investigação são
muito diversos, mas a inspiração metodológica é comum: trata-se da
tentativa de lançar um olhar etnológico sobre as sociedades e as culturas
contemporâneas. Imitando e invertendo a visão penetrante (télescopage)
cultural do etnólogo, Foucault procura alargar-lhe a luz. Lévi-Strauss
mistura o mundo jívaro e o seu olhar de europeu; quer considerar
a cultura europeia com um olhar de jívaro, para conjurar finalmente a
sua presença, para fazer dela um objecto científico. Quer descrever, não
as modalidades individuais, à maneira de um estudo das opiniões,
mas as estruturas conceptuais que, no interior de cada período, tor-
nam possíveis estas opiniões: a rotura com a historicidade, o fim do
antropocentrismo humanista caracterizam para ele a revolução actual
do saber. Sartre torna-se assim - o que não o terá seduzido! - «o
último filósofo do século XIX». A agressividade metodológica de Fou-
cault -provavelmente uma das chaves do sucesso do seu livro- tem
o interesse de procurar sistematizar a significação geral do estrutura-
lismo na cultura europeia de hoje: os analistas da «dissolução» do
homem sucederam aos profetas do seu advento.

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A OFIOIN A DA HISTÓRIA

Mas se esta significação é precisamente a que Foucault descreve,


se o estruturalismo encerra Marx num século XIX cujo saber é dominado
pela história, é então muito curioso e sociologicamente muito interessante
que o estruturalismo se tenha desenvolvido em França de uma forma ao
mesmo tempo tão tardia e tão sistemática, e nos próprios meios inte-
lectuais e de esquerda que tinham sido marxistas (no sentido lato do
termo) desde a Libération. Fica portanto por descrever e compreender
este fenómeno aparentemente contraditório, ao mesmo tempo que a
contaminação curiosa e, penso, especificamente francesa que daí resul-
tou entre marxismo e estruturalismo.
Num primeiro nível de análise, é evidente que, se o marxismo
continua a estar no âmago do debate dos intelectuais franceses, é menos
como saber do que como valor, menos como instrumento intelectual
do que como herança política. Faz agora vinte anos que Sartre procura
conciliar a causa existencialista e o determinismo marxista, isto é,
a sua teoria da liberdade e as suas opiniões progressistas. O que o leva,
no último trabalho filosófico, a substituir a dialéctica da liberdade
individual pela dialéctica materialista de Marx, ratificando como uma
«evidência» e sem a mínima crítica o conjunto das teses do Capital
- isto é, o essencial da filosofia da história marxista-. Com este subter-
fúgio, põe a consciência filosófica de acordo com o progressismo polí-
tico; mas ilustra ao mesmo tempo a profunda dualidade da sua obra
e a desigualdade do seu rigor intelectual: é a constituição de um novo
fundamento existencial da história humana que o interessa, e a revisão
daquilo que considera na obra de Marx como a marca do cientismo.
A chapelada respeitosa e distante que tira ao Capital não é, no fundo,
de ordem filosófica: indica a fidelidade à intelligentsia de esquerda,
à resistência de ontem e às lutas populares de hoje contra o imperia-
lismo. É a marca histórica de uma época, precisamente a da idade
ideológica. Sartre fala e falará sempre como um grande irmão de
todos os homens que viveram profundamente os tempos do fascismo
e do comunismo: paradoxalmente, o génio deste filósofo profissional

2 Cf. um artigo de R. Aron consagrado à «Critique de Ia raison dialectique»,


Figaro littéraire, 29 de Outubro de 1964.

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A HISTóRIA, HOJE

é talvez feito mais de um segredo de sensibilidade e de arte do que


de um pensamento claro. Por mais que Sartre recuse ser aquilo em
que se tornou, é apanhado pela implacável história da literatura: assumiu
hoje uma figura de patriarca, o rosto de um antepassado que envelhece
na glória, Prémio Nobel contra a sua vontade, mas Prémio Nobel
ainda assim. A última astúcia das «palavras».
Perante o marxismo, é verdade que também Lévi-Strauss pagou a
sua dívida. Mas num sentido diferente: voluntariamente ausente das
lutas políticas do após-guerra, fechado na sua torre de marfim de
sábio, não sentiu a necessidade de se definir em relação ao comunismo
ou ao anticomunismo; as poucas entrevistas que deu à imprensa (visi-
velmente sem entusiasmo), mais do que prudência, demonstram uma
vontade profissional de conservar a distância relativamente ao seu
próprio mundo cultural e à história caótica que nele introduz as suas
desordens. Contudo, mais do que Sartre, Lévi-Strauss pode ser consi-
derado como alguém que permanece fiel às premissas filosóficas e ao
deterrninismo materialista de Marx. Herdou-lhes a ambição científica
de interpretar em termos inteligíveis, através de um outro sistema que
lhes está subjacente, as representações que os homens fazem do natural
e do social; aceita a ideia de uma sociedade global, onde em última
análise as relações do homem com a natureza permanecem determi-
nantes. Mas transforma-a profundamente esboçando uma verdadeira
teoria das superstruturas: é aliás, diga-se de passagem, um dos sin-
tomas mais claros deste fim da idade ideológica nos intelectuais fran-
ceses, este afinco ao estudo das superstruturas, como se se quisesse
cercar, desvendar, compreender as produções intelectuais dos homens
e dos grupos através das suas motivações mais recônditas. Mas é tam-
bém o ponto mais fraco das análises de Marx. Para Lévi-Strauss, que
se explicou a respeito disso claramente em La Pensée sauvage, o pri- :j
1
mado das infra-estruturas deve entender-se no sentido de uma dis-
tribuição das cartas: o que as sociedades fazem desta distribuição,
que é suportada, faz parte da invenção cultural dos homens, mas esta
invenção não propõe um número ilimitado de variantes. Traduz, pelo
contrário, estruturas e sistemas lógicos cujo aparecimento e mutação,
em vez de serem necessários como outras tantas etapas de uma evo-
lução idêntica da humanidade, fazem, pelo contrário, parte do cálculo
.,.,
53 :1
A OFICINA DA HISTORIA

das probabilidades: o que justifica a concomitante multiplicidade das


sociedades e das culturas.
É verdade que se podem tirar interpretações menos materialistas
e menos marxistas de outras passagens dos livros de Lévi-Strauss, visto
nunca se saber bem se a estrutura lógica revelada pela análise é da
mesma natureza que a matéria, produzida por ela, ou se, pelo contrário,
ela enforma a realidade. De facto, o problema de saber se ele próprio
é materialista ou kantiano (um kantismo sem sujeito transcenden-
tal3, disse Paul Ricoeur), interessa pouco Lévi-Strauss, que parece
aceitar as duas hipóteses: seja como for, apenas se interessa secun-
dariamente pelas suas relações filosóficas com o marxismo. '
Aliás, sempre se coibiu de fazer qualquer extrapolação dos seus
processos de análise às mitologias, às crenças ou às sociedades «his-
tóricas»: disse-o explicitamente em resposta ao antropólogo inglês
Leach+, que propunha uma «descodificação» lévi-straussiana do texto
do Génesis - e este contraste entre a ambição teórica implícita das
suas ideias e a escassez do seu campo de aplicação alimenta aliás a
desconfiança de muitos dos seus colegas anglo-saxónicos que continuam
ligados à acumulação empírica de conhecimentos limitados. Em França,
pelo contrário, é esta própria ambição, mais do que o seu contributo
particular para a etnografia sul-americana, que despertou o entusiasmo
dos meios intelectuais e rapidamente provocou discussões a um nível
mais geral: existencialismo, marxismo, estruturalismo. A leitura das
publicações periódicas de esquerda testemunha este facto: um pouco
contrariado, o etnógrafo foi sagrado filósofo. Talvez seja preciso ver-
-se aí, com certos antropólogos anglo-saxónicos, um traço particular
da tradição nacional. Mas no caso presente, a fascinação exercida
por Lévi-Strauss sobre muitos intelectuais marxistas ou ex-marxistas
parece-me ter uma explicação mais precisa: não nasce nem de uma
fraternidade de opiniões políticas - visto Lévi-Strauss ser o contrário

3 Cf. Esprit de Novembro de 1963.


4 Cf. E. Leach, «Genesis as Myth», Discovery, Maio de 1962; «The Legitimacy
.

of Solornon», Archives européennes de sociologie, 1966; «C. Lévi-Strauss, Anthropolo-


gist and Philosopher», New Left Review, 1966.

54
A HISTóRIA) HOJE

de um homem «engagé» - nem de um parentesco filosófico - muito


aleatório, mesmo que este exista, e em qualquer dos casos relativa-
mente indiferente a Lévi-Strauss -, mas de uma relação de inversão
em que a nostalgia do marxismo se pôde investir. Simplesmente, ponto
por ponto, a descrição estrutural do homem convertido objecto subs-
tituiu o advento histórico do homem-deus.
Mas as relações entre marxistas e estruturalistas tomaram também
um outro aspecto, mais espantoso ainda: é significativo que toda uma
corrente de pensamento comunista apele implicitamente para o estru-
turalismo, não para romper com o marxismo, mas para o renovar: é o
sentido da tentativa de A1thusser e dos seus amigos, que procuram dar
à obra de Marx e de Lenine o seu valor teórico pela análise rigorosa
dos seus conceitos operatórios, para a libertar da ideologia prosaica-
mente humanista em que Garaudy a diluiu. Já não se trata, portanto,
como na obra de Sartre, de conciliar uma teoria do conhecimento
com opiniões progressistas, mas antes de unir o método estruturalista
à teoria marxista. Daí resulta um marxismo depurado da sua filiação
hegeliana, lavado de qualquer contaminação com o humanismo bur-
guês, diferente até daquilo que Marx pôde pensar da sua própria dou-
trina, visto tratar-se de a redefinir através da revelação das suas estru-
turas conceptuais fundamentais. Para Althusser, é unicamente com
esta condição que o marxismo pode tornar a ser enfim aquilo que é,
mas que é mascarado pela imensa sedimentação social e histórica: a
teoria, a ciência em oposição às ideologias. Compreende-se desta forma
o curioso itinerário de A1thusser: ao procurar «desideologizar» o
marxismo, não cessa contudo - por postulado ímplicito - de o tomar
ao mesmo tempo como objecto de estudo e como a única referência
científica. A análise estrutural, que é uma tentativa para estender às
«ciências humanas» os métodos das ciências da natureza, é aqui subtil-
mente desviada para o dogmatismo marxista posto como um a priori
da reflexão - visto que o modelo marxista é assimilado logo à partida
ao modelo científico. Dai a contradição epistemológica e a ambigui-
dade política dos trabalhos de Althusser e dos seus amigos, dedicados
a dar de novo vida a uma análise rigorosa de Marx, mas bloqueados
pelo fideísmo a um aparelho conceptual que, por mais genial que tenha
sido, data de uma outra época e de um outro mundo.

55
A OFIOIN A DA HISTORIA

Mas talvez que esta própria ambiguidade seja significativa, num


outro plano, o da evolução de uma parte dos intelectuais comunistas,
entre aqueles que permaneceram no interior do partido desde a crise
da desestalinização, e os mais jovens que aderiram a essa causa desde
então para cá num clima muito mais tolerante e muito mais crítico
do que o dos anos cinquenta: Althusser oferece ao mesmo tempo estru-
turalismo e marxismo, estudo crítico e intransigência doutrinária, fide-
lidade ao PCF e reticências a seu respeito. Há muitas razões para pensar
que um estudo sociológico da sua audiência actual realçaria estes ele-
mentos, tão característicos do passado recente e do presente dos intelec-
tuais comunistas. Pouco importa que sejam contraditórios; é precisa-
mente porque o são que uma interpretação estruturalista de Marx
pode dar-Ihes um asilo provisório. Contradição intelectual e contra-
dição sociológica explicam-se e reforçam-se mutuamente: a «desideo-
logização» estruturalista do marxismo é, sem dúvida, uma forma de
viver o fim das ideologias no interior do próprio mundo comunista.
Se o conjunto desta análise é exacto, se existe um laço entre um
fenómeno geral como o fim das ideologias e a atracção do estrutura-
lismo no meio particular dos intelectuais franceses, seremos então
surpreendidos pelo facto de a dissolução das certezas ideológicas e do
«sentido» da história não ter desembocado numa revalorização da
investigação e da informação empírica, à maneira anglo-saxónica.
Não é que esta investigação e esta informação não se desenvolvam,
uma vez que, pelo contrário, os inquéritos sociológicos, as sondagens
de opinião, as inventariações maciças de séries de arquivos se multi-
plicam tanto em França como no estrangeiro, mas tudo continua subor-
dinado mais do que nunca, mais ainda do que antes, à elaboração de
uma teoria geral. Tudo se passa como se a crise do pensamento mar-
xista tivesse desbravado o terreno para uma metodologia de uma outra
espécie, mas do mesmo nível, herdeira da mesma ambição de inteligi-
bilidade global e sistemática. Aquilo a que se chama, à falta de melhor
termo, a «moda» parisiense do estruturalismo, isto é, o seu sucesso
e o seu momento, explicar-se-ia assim pelas suas relações profundas, ao
mesmo tempo contraditórias e homogéneas, com o marxismo. O modelo
das ciências da natureza substituiu o modelo histórico, ° homem-
-objecto substituiu-se ao homem-sujeito, a estrutura ao processo, °
56
A HIST6RIA, HOJE

conceito à práxis; mas é no interior de uma mesma ambição determi-


nista, a partir de uma mesma vontade de decifrar o sentido do compor-
tamento humano para além do sentido aparente ou simplesmente
consciente.
É portanto provável que entre os intelectuais franceses o fim da
idade ideológica tenha englobado dois fenómenos distintos e de natureza
diferente. A desestalinização, o cisma sino-soviético, a crise do Ter-
ceiro Mundo - e a prosperidade francesa e europeia - atingiram
profundamente o progressismo dos anos cinquenta, tão característico
da idade ideológica. Daí uma disponibilidade da opinião intelectual,
uma espécie de expectativa - um pouco como, há um século atrás,
o fracasso sem glória dos «quarante-huitardsn" românticos precedeu
e facilitou a formação da geração realista e positivista. Mas facilitou-a,
não a criou: a própria transformação intelectual não depende de uma
explicação sociológica. Hoje, as desilusões políticas do progressismo
atingiram profundamente a difusão do marxismo entre os intelectuais
de esquerda, mas neste vazio assim criado não é Raymond Aron que
reina, mas Lévi-Strauss; não uma crítica liberal e empirista do mar-
xismo, mas um pensamento hiperintelectualista e sistemático, que
tende para uma teoria geral do homem. Os marxistas ou ex-marxistas
não puderam só investir nele o seu passado sem se renegarem; encon-
traram nele, «desideologizados», desenvencilhados das ingenuidades
do compromisso e do sentido da história, a ambição de uma ciência
sintética do homem e o seu velho sonho totalizante. É talvez nesta
medida que o caso dos intelectuais franceses merece tornar-se clássico:
o fim da idade ideológica encontrou nele os seus doutrinários.

* Junho de 1848, com a insurreição dos bairros operários a leste de Paris


e a constituição da 11 República, sob a presidência de Louis-Napoléon Bonaparte,
marcou uma geração de pensadores e de artistas românticos tardios conjugando
romantismo e realismo a que se deu o nome de «quarante-huitards», (N. do R.)

57
o quantitativo em história

A história quantitativa está hoje na moda, tanto na Europa como


nos Estados Unidos: assiste-se, com efeito, desde há mais ou menos
meio século, ao desenvolvimento rápido da utilização das fontes quan-
titativas e dos processos de contagem e de quantificação na investigação
histórica. Porém, como todas as palavras na moda, a de «história quan-
titativa» acabou por ter uma acepção de tal modo lata que abrange
praticamente tudo o que se quiser: do uso crítico de uma simples enu-
meração feita pelos aritméticos políticos do século XVII até à utilização
sistemática de modelos matemáticos na reconstituição do passado, a
«história quantitativa» designa com o mesmo termo várias coisas:
quer um tipo de fonte, quer uma maneira de proceder, e sempre, de
uma forma ou de outra, explicitamente ou não, um tipo de conceptua-
lização do passado. Parece-me que, partindo do geral para o particu-
lar e procurando delimitar a especificidade do saber histórico em rela-
ção às ciências sociais, podem distinguir-se três conjuntos de problemas
relativos à história quantitativa.
1. Um primeiro grupo de problemas diz respeito aos processos
de tratamento dos dados históricos quantitativos: problemas de com-
posição das diferentes populações de dados, da unidade geográfica no
interior da qual são reunidos, limiares que diferenciam os grupos no
interior de uma mesma população, dos cálculos de correlação entre
duas séries diferentes, do valor dos diferentes tipos de análise estatís-
tica em relação aos dados, da interpretação das relações estatísticas, etc.

59
A OFICINA DA HIST6RIA

Estes problemas dependem da tecnologia da investigação em ciências


sociais. É verdade que podem também cobrir questões metodológicas:
não só porque nenhuma técnica é «neutra», mas porque, mais espe-
cificamente, qualquer processo estatístico põe forçosamente a questão
de saber se e em que medida o conhecimento histórico ou sociológico
é compatível com ou esgotado por uma conceptualização matemática
de tipo probabilístico. Mas nem a discussão técnica nem o debate
teórico são específicos à história: dizem respeito ao conjunto das ciên-
cias sociais, e a história quantitativa não apresenta a este respeito
qualquer diferença de natureza com o que se chama hoje «sociologia
empírica», que não passa, deste ponto de vista, de uma história quan-
titativa contemporânea.
2. O termo «história quantitativa» designa igualmente, pelo
menos em França, a ambição e os trabalhos de certos historiadores
economistas 1: trata-se de fazer da história uma econometria retros-
pectiva-, quer dizer, de preencher, para os séculos anteriores aos nossos,
e sobre o modelo das nossas contabilidades nacionais actuais, todas
as colunas de um quadro imaginário de input-output. Os defensores
desta história econométrica advogam portanto uma quantificação total
e sistemática: é esta, a seus olhos, a condição indispensável da elimi-
nação do arbitrário na escolha dos dados, e a da utilização de modelos
matemáticos no seu tratamento, a partir do conceito de equilíbrio
geral tal como ele pode ser importado da economia política para a
história económica.
A verdadeira história quantitativa resultaria assim, na lógica desta
concepção, de uma dupla redução da história: redução, pelo menos
provisória, do seu campo à economia, e redução do sistema descritivo
e interpretativo ao sistema que foi elaborado pela ciência social mais
rigorosamente constituída nos nossos tempos: a economia matemática.
Poder-se-ia aliás fazer a mesma análise a propósito da demografia e da
história demo gráfica : uma ciência conceptualmente constituída indica

1 Histoire quantitative de l'économie française, sob a direcção de J. Marczewski,


Paris, I.S.E.A., 1961-1968. Cf., nomeadamente, o tomo I, Histoire quantitative, buts
et méthodes, por J. Marczewski.
2 O termo é de Pierre Vilar.

60
A HISTóRIA, HOJE

os seus dados e fornece os seus instrumentos a uma dada disciplina


histórica, que se torna desde então como que um subproduto da dis-
ciplina principal cujas questões e conceitos transpõe simplesmente
para o estudo do passado.
É naturalmente ainda necessário que os dados existam para o
passado como existem para o presente, que existam ou, pelo menos,
possam existir, quer dizer, suficientemente elaborados, reconstituídos
ou extrapolados. Este imperativo fixa um primeiro limite à quantifi-
cação integral dos dados históricos: é que esta quantificação, supondo
mesmo que ela tenha sido possível antes do século XIX, não pode ir
além do período do recenseamento estatístico ou proto-estatístico,
que coincide com a centralização dos grandes Estados monárquicos
europeus. Ora, a história não começou com Petty ou Vauban.
Além disso, não há nenhuma razão para que o historiador aceite,
mesmo provisoriamente, a redução do seu campo de investigação
à economia ou à demografia. Com efeito, ou a história não é senão
o estudo de um domínio previamente definido como determinado
sector limitado do passado, no interior do qual se importam modelos
matemáticos estabelecidos por certas ciências sociais para os testar,
positiva ou negativamente. Neste caso, voltamos a cair na economia
política contemporânea, que me parece ser a única ciência social que
dispõe de tais modelos; e a história aparece então apenas como um
grande campo adicional de dados e nada mais. Ou então considera-se
a disciplina histórica na sua acepção mais lata, isto é, na sua indeter-
minação conceptual, na multiplicidade dos seus níveis de análise, e tra-
balha-se então na descrição desses níveis e no estabelecimento de sim-
ples ligações estatísticas entre eles, a partir de hipóteses que, originais
ou importadas, não passam de intuições do investigador.
3. É isto que faz que não se possa escapar, mesmo que se acres-
cente o qualificativo de «quantitativo» à história, ao que constitui o
objecto específico da investigação histórica: o estudo do tempo, da
dimensão diacrónica dos fenómenos. Ora, a este respeito, a ambição
ao mesmo tempo mais geral e mais elementar da história quantitativa
é de constituir o facto histórico em séries temporais de unidades homo-
géneas e comparáveis, e, assim, poder medir-lhes a evolução em deter-
minados intervalos de tempo, geralmente anuais. Esta operação lógica

61
A OFICINA DA HISTóRIA

fundamental define a história serial, segundo o termo proposto por


Pierre Chaunu 3: condição necessária, mas não suficiente da história
estritamente quantitativa tal como foi definida acima. É que a história
serial apresenta a vantagem decisiva, do ponto de vista científico, de
substituir ao incompreensível «acontecimento» da história positivista
a repetição regular de dados seleccionados e construídos em função
do seu carácter comparável. Mas ela não implica nem a pretensão à
exaustão do conjunto documental descrito, nem sistema de interpretação
global, nem formulação matemática, visto que, pelo contrário, o corte
da realidade histórica em séries deixa o historiador perante um mate-
rial decomposto em níveis, em subsistemas, cujas articulações ele é
livre, em seguida, de propor ou não.
Assim definidas, a história quantitativa e a história serial apare-
cem ao mesmo tempo ligadas e diferentes. Contudo, têm em comum
qualquer coisa de elementar que serve de fundamento a ambas: a
substituição da série ao acontecimento, isto é, a construção do dado
histórico em função de uma análise probabilística. À pergunta clássica:
que é um facto histórico?, dão ambas uma resposta nova que trans-
forma para o historiador a constituição do seu material de análise,
o tempo. É sobre o alcance desta transformação interior que gostaria
de adiantar algumas ideias.

Acrescento, para evitar qualquer equívoco, que este artigo não


comporta qualquer pretensão normativa: acontece que a história serial
é, desde há dez ou vinte anos, uma das vias mais fecundas do desenvol-
vimento do conhecimento histórico; além disso, apresenta a imensa
vantagem de fornecer a esta tão velha disciplina que é a história um
rigor e uma eficácia superiores aos que oferece a metodologia qualita-
tiva. No entanto, ela é, por natureza, impotente para tratar e até abor-
dar, por razões de circunstância (ausência irremediável de dados) ou de

3 P. Chaunu defendeu e utilizou esta terminologia em numerosos trabalhos.


Referir-nos-emos sobretudo a: «Histoire quantitative ou histoire sérielle», Cahiers
Vilfredo Pareto, Généve, 1968, e «L'hístoire sérielle: bilan et perspectives», artigo
publicado simultaneamente na Revue historique, Abril-Junho de 1970, e na Revue
roumaine d'histoire, n.? 3, 1970.

62
A HIST6RIA, HOJE

fundo (natureza qualitativa irredutível do fenómeno estudado), impor-


tantes sectores da realidade histórica: é o que explica, por exemplo,
que os historiadores da Antiguidade, que trabalham com dados muito
descontínuos no tempo, ou os especialistas da biografia intelectual,
que privilegiam o que a criação comporta de singular e de não com-
parável, sejam mais raramente sensíveis às seduções da história seria I
do que, por exemplo, os historiadores das estruturas agrárias da Europa
moderna.
Haveria deste ponto de vista um outro problema a apresentar e que
é talvez mais fundamental: a história seria I com certeza que apresenta
processos precisos para medir a mudança, mas em que ' medida é que
ela permite pensar as mutações? Por natureza, a série comporta uni-
dades identicamente constituídas, para serem comparáveis: a variação
temporal a longo prazo destas unidades, quando desenha ciclos, remete
para o que se poderia chamar a mudança na esta.nlidade, e portanto
para uma análise em termos de equilíbrio; mas quando a variação tem-
poral de uma ou várias séries desenha uma tendência de crescimento
indefinido, isto é, cumulativo, a decomposição desta tendência em
unidades relativamente pequenas (anuais ou decenais, por exemplo)
obscurece a definição do limiar a partir do qual há transformação da
estrutura da temporal idade e dos ritmos da mudança: daí os temíveis
problemas de datação e de periodização. Além disso, a mutação his-
tória decisiva pode não se inscrever em qualquer das séries endógenas
a um determinado sistema, mas resultar quer de uma inovação da qual
nenhuma contabilidade anterior deixou vestígios, quer de um facto r
exógeno que vem perturbar o equilíbrio plurissecular do sistema: estes
problemas metodológicos estão no centro do debate actual sobre a
questão do arranque industrial 4. Noutros termos, se é verdade que
nenhuma metodologia é inocente, a história serial, porque privilegia

4 Cf. especialmente: P. Deane e W. A. Cole, British Economic Growth, 1688-


-1959. Trends and Structure, Cambridge, 1962; D. Landes, Prometheus Unbound,
Cambridge University Press, 1969, trad. Gallimard, 1975; F. Crouzet, «Angleterre
et France au XVIII" siêcle», in Annales E. S. c., 1966, n." 2.

63
A OFICINA DA HIBT6RIA

o longo prazo e o equilíbrio de um sistema, afigura-se-me dar uma


espécie de crédito à conservação: é um bom correctivo à identificação
da história e da mudança, tal como o século XIX no-Ia legou, e é nesta
medida uma etapa capital na constituição da história como saber;
é, no entanto, ainda necessário darmo-nos conta dos seus pressupostos
e dos seus limites.
Mas este problema dos limites da história serial, que não pode
ser tratado no âmbito deste artigo, não deve servir de álibi à preguiça
intelectual ou à tradição: se, hoje, um pouco por todo o lado, a his-
tória se evade da narração para abordar problemas, isto deve-se em
grande parte à modificação dos elementos do puzzle a partir dos quais
reconstitui as imagens do passado. Graças à história serial, o histo-
riador encontra-se hoje perante uma nova configuração de dados e
perante uma nova tomada de consciência dos pressupostos do seu ofício.
É provável que não lhe tenhamos esgotado as virtudes.

o historiador e as suas fontes

Na medida em que a história quantitativa supõe a existência e a


elaboração de longas séries de dados homogéneos e comparáveis, o pri-
meiro problema que se põe em termos novos é o das fontes. De maneira
geral, os arquivos europeus foram constituídos e classificados no sé-
culo XIX segundo processos e critérios que refiectem as preocupações
ideológicas e metodológicas da história nessa época: predominância
dos valores nacionais e, por consequência, prioridade dada às fontes
político-administrativas, por um lado. Mas, por outro lado, conser-
vação e classificação do documento correspondente a uma finalidade
restrita e precisa da investigação: o arquivo é constituído para teste-
munhar mais sobre o acontecimento do que sobre a duração. Esta deve
ser estabelecida e criticada por si própria, e não como elemento de uma
série. O seu ponto de referência é externo: é o «facto» histórico dos
positivistas, ilusório ponto de fixação da consciência ingénua sobre
o que se supõe ser o real em relação ao testemunho, sequência incom-
preensível, descontínua, particular, no interior de um devir indefinido

64
A HISTóRIA, HOJE

ou de uma cronologia preestabelecida em séculos, em reinados, em


governos. Em suma, o arquivo constitui a memória das nações, como,
à escala de uma vida, as cartas que guardamos testemunham aquilo
que as nossas recordações escolheram.
Pelo contrário, os dados da história quantitativa não remetem para
um incompreensível corte externo do «facto», mas para critérios de
coerência interna: o facto já não é o acontecimento seleccionado por-
que marca o compasso dos tempos fortes de uma história cujo «sen-
tido» foi previamente definido, mas um fenómeno escolhido e eventual-
mente construído em função do seu carácter repetitivo, portanto
comparável através de uma unidade-tempo. A própria concepção
da ciência dos arquivos encontra-se radicalmente transformada no
próprio momento em que as suas possibilidades técnicas se multi-
plicam com O tratamento electrónico da informação. Este encontro
de uma revolução metodológica e de uma revolução técnica, que aliás
não são estranhas uma à outra, permite encarar a constituição de arqui-
vos novos, conservados em bandas perfuradas, que não remetem só
para um novo sistema de classificação, mas sobretudo para uma crí-
tica documental diferente da do século XIX. O documento e o dado já não
existem por si próprios, mas em relação com a série que os precede
e os segue; é o seu valor relativo que se torna objectivo e não a sua
relação com uma incompreensível substância «real». Assim se encontra
deslocado, pela mesma razão, o velho problema da «crítica» do docu-
mento histórico. A crítica «externa» já não se estabelece a partir de uma
credibilidade fundada na comparação com textos contemporâneos de
outra natureza, mas a partir de uma coerência com um texto da mesma
natureza diferentemente situado na série temporal, isto é, antes ou
depois. A crítica «interna» acha-se tanto mais simplificada quanto
muitas das operações de «limpeza» dos dados podem ser postas em
memória de computador.
A coerência é instituída, antes de mais, no momento da verificação,
por um mínimo de formalização do documento, de modo que se possa
reencontrar, num longo período de tempo e para cada unidade-tempo, os
mesmos dados, na mesma sucessão lógica. Deste ponto de vista, a uti-
lização do computador pelo historiador não é unicamente um imenso
progresso técnico, pelo ganho de tempo que permite (sobretudo quando

65
A OFICINA DA HISTóRIA

a verificação dos dados, como no método Couturier 5, se faz verbal-


mente, no gravador); é também um constrangimento teórico muito
útil, na medida em que a formalização de uma série documental desti-
nada a ser programada obriga de antemão o historiador a renunciar
à sua ingenuidade epistemológica, a construir o seu objecto de inves-
tigação, a refiectir nas suas hipóteses e a passar do implícito ao explícito.
O segundo trabalho crítico, desta vez interno, consiste em testar a coe-
rência dos próprios dados, em relação aos que os precedem ou aos que
se lhes seguem, isto é, em eliminar os erros: aparece então como uma
espécie de consequência do primeiro e pode ser aliás largamente auto-
matizado, pelos processos programados de verificação dos dados.
Muito naturalmente, a história serial «artesanal» começou por
utilizar as séries históricas mais simples de manejar, isto é, os docu-
mentos económicos, fiscais ou demográficos. A revolução trazida pelo
computador na recolha e no tratamento dos dados multiplicou progres-
sivamente as possibilidades de exploração destas séries numéricas. Hoje,
estende-se a todas as espécies de dados históricos que sejam reduzíveis
a uma linguagem susceptível de programação: não só aos papéis fiscais
ou às mercuriais*, mas também às séries de corpus literários relativa-
mente homogéneas como os cartulários da Idade Média ou os Cadernos
dos Estados Gerais da França monárquica.
Assim se precisa a primeira tarefa da história serial, o imperativo
do seu desenvolvimento: é a constituição do material de análise. A his-
toriografia clássica foi construída a partir dos arquivos elaborados
e tratados segundo as regras críticas que os beneditinos de Saint-Maur
do século XVIII e os historiadores alemães do século XIX nos legaram.
A historiografia serial de hoje deve reconstituir os seus arquivos em

s M. Couturier, «Vers une nouveJIe méthode mécanograph ique», Annales


E. S. C., 1966, n." 4.
• Disposições que o ministério público tomava a respeito da administração
da justiça, no Antigo Regime, e que eram tomadas em assembleia que na origem
se realizava às quartas-feiras (mercredi). Daí o nome de «mercuriales», As de Agues-
seau, pronunciadas entre 1698 e 1715, em Paris, no Parlamento, ficaram célebres e
tornaram-se praticamente em código do bom magistrado. (N. do R.)

66
A HISTóRIA, HOJE

função da dupla revolução meto do lógica e técnica que transformou


os processos e as regras da disciplina.
Mas temos então o direito de pôr a questão da existência aleatória
deste material histórico, dos acasos da sua conservação, da sua des-
truição parcial ou do seu desaparecimento total. Não estou certo de
que esta questão separe, tão nitidamente como se pretende algumas
vezes, a história das outras ciências do homem cujo objecto é mais
especificamente definido. É que a história se caracteriza, na realidade,
por uma elasticidade extraordinária e quase ilimitada das suas fontes.
São descobertos imensos sectores «adormecidos» de documentação à
medida que se desloca a curiosidade do investigador: qual foi o histo-
riador que, no século XIX, se preocupou em estudar estes registos de paró-
quias, que se tornaram hoje, nomeadamente em França e em Ingla-
terra, uma das bases mais seguras dos nossos conhecimentos sobre a
antiga sociedade pré-industrial?
Além disso, fontes já exploradas no passado podem ser reutili-
zadas para outros fins, se forem investidas de uma nova significação
pelo investigador: descrições de movimentos de preços podem conduzir
a análises sociológicas ou políticas, e passa-se de Avenel a Labrousse.
Séries demográficas, estudadas, por exemplo, do ponto de vista do
desenvolvimento da contracepção conjugal, podem esclarecer problemas
de mentalidade ou de prática religiosa 6. Actas notariais, com a con-
dição de se contabilizar as assinaturas, podem permitir estatísticas de
alfabetização. Biografias sistematicamente reunidas em função de
critérios comuns, a partir de uma dada hipótese de trabalho, podem
constituir séries documentais que renovem completamente um dos
mais velhos «géneros» da narração histórica.
Por outro lado, a história quase só se baseou, até hoje, nos ves-
tígios escritos da existência dos homens. A interrogação oral, que for-
nece tantos dados à sociologia empírica, escapa-lhe sem dúvida para

6 E. Le Roy Ladurie, «Révolution française et contraception, dossiers langue- .~'

dociens», in Annales de démographie historique, 1966, e «Révolution française et


funestes secrets», Ann. hist, Rév,fr., Outubro-Dezembro de 1965. Ver igualmente
A. Chamoux e C. Dauphin, «La contraception avant ia Révolution française: l'exem-
pIe de Chãtillon-sur-Seine», in Annales E. S. C., 1969, n.· 3.

67
A OFICINA DA HIST6RIA

sempre, pelo menos em tudo o que não diz respeito ao período contem-
porâneo. Em contrapartida, porém, quantos testemunhos não escri-
tos cujo inventário e descrição sistemáticos estão ainda por fazer!
O habita! rural, a disposição das terras de cultura, a iconografia reli-
giosa ou profana, a organização do antigo espaço urbano, o arranjo
interior das casas - seria interminável a lista de todos os elementos
de civilização cujo inventário e classificação minuciosos permitiriam a
constituição de séries cronológicas novas e poriam à disposição do
historiador um material inédito, que reclama o alargamento conceptual
da disciplina. É que não são as fontes que definem a sua problemática,
mas é, sim, a sua problemática que define as fontes.
Não se deve sem dúvida desenvolver demasiado este tipo de argu-
mentação. Existem, em história, do ponto de vista das exigências docu-
mentais de certas ciências sociais contemporâneas, lacunas irreparáveis:
não se vê que fontes de substituição ou que extrapolações possam
encher as colunas de um quadro de input-output da economia francesa
na época de Henrique IV, para já não falar de períodos mais recuados.
Mas isto significa sobretudo que, conceptualmente, a história não é
redutível à economia política. Na realidade, para o historiador, o pro-
blema das fontes é menos o das lacunas absolutas do que o das séries
incompletas: não só por causa das dificuldades de interpolação ou
extrapolação, mas em consequência das ilusões cronológicas que são
susceptíveis de acarretar.
Tomarei o exemplo clássico das revoltas populares na França no
ínicio do século XVII: em consequência da grande abundância das fontes
administrativas sobre este assunto, na primeira metade do século XVII,
este período tornou-se o sector cronológico mais bem conhecido da
história das revoltas camponesas, entre o fim da Idade Média e 1789.
Os acasos da conservação fizeram até com que uma grande parte destes
arquivos (o fundo Séguier) fosse parar finalmente a Leninegrado, e
permitisse desta forma a alguns historiadores soviéticos avançar uma
interpretação marxista do «Antigo Regime» francês que suscitou uma
polémica e valorizou tanto os arquivos. Mas existe um problema que
precede o debate de interpretação - o exame da hipótese implícita
comum às duas interpretações: a de que se produz, neste período, isto
é, no momento da construção do Estado absolutista e de um cresci-

68
"/"

A HISTóRIA, HOJE

.mento provavelmente rápido da punção fiscal, uma determinada con-


centração cronológica do fenómeno clássico da história de França que
constitui a «jacquerie»*. Esta concentração cronológica apenas pode
ser estabelecida com certeza pelo exame de uma série homogénea longa
e pela lista das diferenças com o que eu chamaria o montante e o jusante:
ora, esta série não pode ser constituída por várias razões. Primeira-
mente, porque não existe, num período longo, uma fonte única e homo-
génea sobre as revoltas; além disso, há todas as razões para pensar que
a sobrevivência de um fundo excepcionalmente rico deste ponto de vista,
o fundo Séguier de Leninegrado, limitado aos papéis de uma família
e portanto submetido ao acaso das biografias e das carreiras, falseia
a nossa percepção cronológica do fenómeno. A jacquerie é, por outro
lado, uma história sem fontes directas, revolta de analfabetos estranhos
ao mundo da escrita. Atingimo-Ia hoje por intermédio de arquivos
administrativos ou judiciários; mas, na verdade, como o notou Charles
Tilly, qualquer revolta que escape à repressão escapa à história, e a
riqueza das nossas fontes durante um determinado período pode tra-
duzir mais as mudanças institucionais (reforço do aparelho repressivo)
ou puramente individuais (vigilância particular de um administrador)
do que a frequência do fenómeno estudado. A contabilidade dife-
rencial das jacqueries no reinado de Henrique II ou no de Luís XIII
pode reflectir sobretudo os progressos da centralização monárquica.
O manejo das fontes seriais obriga portanto o historiador a reflec-
tir cuidadosamente na incidência que podem ter as condições de organi-
zação destas fontes na sua utilização quantitativa. Deste ponto de vista,
parece-me que se pode distinguir, por ordem de complexidade crescente
no estabelecimento das séries:
1. As fontes estruturalmente numéricas, reunidas como tais, e
utilizadas pelo historiador para responder a questões directamente
ligadas ao seu campo original de investigação. Por exemplo: os registos
das paróquias francesas para o historiador demógrafo, os inquéritos

• A «jacquerie» (de Jacques) é o nome por que são conhecidas as revoltas de


camponeses em França, a mais célebre das quais ocorreu em 1358, depois da derrota
de Poitiers. (N. do R.)

69
A OFIOINA DA HISTORIA

dos governos civis de estatística industrial ou agrícola do século XIX


francês para o historiador economista, ou os dados das eleições presi-
denciais americanas para o especialista de história sociopolítica. Estas
fontes exigem por vezes serem homogeneizadas (quando há variação
da unidade local ou modificação do critério de classificação); quando
há lacunas na cadeia documental, podem-se igualmente extrapolar
certos elementos. Mas as duas operações são feitas então com o mínino
de incerteza.
2. As fontes estruturalmente numéricas, mas utilizadas pelo his-
toriador de forma substitutiva, para encontrar resposta a questões
completamente estranhas ao seu campo original de investigação. Por
exemplo: a análise dos comportamentos sexuais a partir dos registos
de paróquias, o estudo do crescimento económico a partir de séries de
preços, a evolução socioprofissional de uma população a partir de uma
série fiscal. O trabalho do historiador é aqui duplamente mais difícil:
precisa de determinar tanto mais meticulosamente as suas questões
quanto mais o material documental não tenha sido reunido em função
delas e, por conseguinte, quanto mais o problema da sua «pertinência»
em relação a elas se encontrar permanentemente posto. Deve o mais
frequentemente possível reorganizar completamente este material para
o tomar utilizável; contudo, feito isto, toma-o mais arbitrário e por-
tanto mais discutível.
3. As fontes não estruturalmente numéricas, mas que o historiador
procura utilizar de forma quantitativa, por um processo duplamente
substitutivo: é necessário determinar uma significação unívoca, em rela-
ção à questão que põe; mas também que possa reorganizá-Ias em séries,
isto é, em unidades cronológicas comparáveis, à custa de um trabalho
de homogeneização evidentemente mais complexo ainda do que no
caso precedente. Os dados deste tipo - cada vez mais numerosos à
medida que se avança no passado - podem ser eles próprios subdi-
vididos em duas categorias: as fontes não numéricas embora seriais
e portanto facilmente quantificáveis, como os contratos notariais de
casamento da Europa moderna, que podem ser, pela escolha do his-
toriador, indicadores da endogamia, da mobilidade social, dos rendi-
mentos, do grau de alfabetização, etc.; e as fontes estritamente quali-

70
l

A HISTóRIA, HOJE

tativas, portanto não seriais, ou pelo menos particularmente delicadas


para organizar em séries e homogeneizar - como as fontes adminis-
trativas ou judiciárias de que se falou acima, ou ainda os vestígios
iconográficos testemunhos de fidelidades desaparecidas.
Além disso, em todos estes casos, o historiador de hoje vê-se obri-
gado a renunciar à ingenuidade metodológica e a refiectir nas condições
de estabelecimento do seu saber. O computador deixa-lhe tempo livre,
libertando-o daquilo que ocupava até então o essencial do seu tempo,
a recolha dos dados em fichas. Mas obriga-o, em contrapartida, a um
trabalho prévio sobre a organização das séries de dados e sobre a sua
significação em relação àquilo que procura. Como todas as ciências
sociais, mas talvez com um pouco de atraso, a história de hoje passa do
implícito ao explícito. A codificação dos dados supõe a sua definição;
a sua definição implica um certo número de escolhas de hipóteses tanto
mais conscientes quanto é necessário pensá-Ias em função da lógica
de um programa. Assim cai definitivamente a máscara de uma objec-
tividade histórica que se encontraria escondida nos «factos» e desco-
berta ao mesmo tempo que eles; o historiador já não pode escapar à
consciéncia de que construiu os seus «factos» e de que a objectividade
da investigação depende não só do uso de processos correctos na ela-
boração e no tratamento destes «factos», mas também da sua perti-
nência em relação com as hipóteses da investigação.
A história serial não é portanto apenas, nem sobretudo, uma trans-
formação do material histórico. É uma revolução da consciência his-
toriográfica.

o historiador e os seus «factos»

Trabalhando sistematicamente com senes cronológicas de dados


homogéneos, o historiador transforma o objecto específico do seu
saber: o tempo ou, melhor, a concepção que tem dele e a representa-
ção que dele constrói.
1. A história «evenemencial» não é definida pela preponderância
dada aos factos de ordem política; não é constituída tão-pouco pela
simples narração de certos «acontecimentos» seleccionados no eixo

71
A OFICINA DA HISTóRIA

do tempo; é antes de mais fundada na ideia de que os acontecimentos


são singulares e impossíveis de integrar numa distribuição estática, e
que os acontecimentos singulares são por excelência o material da
história. É por isso que este tipo de história medido, ao mesmo tempo
é

e contraditoriamente, pelo curto prazo e por uma ideologia finalista;


como o acontecimento, irrupção súbita do singular e do novo na cadeia
do tempo, não pode ser comparado com qualquer antecedente, o único
meio de o integrar na história é dar-lhe um sentido teleológico: se não
possui passado, terá um futuro. E como a história se desenvolveu,
desde o século XIX, como um modo de interiorização e de conceptua-
lização do sentimento do progresso, o «acontecimento» indica a maior
parte das vezes a etapa de um advento político ou filosófico: República,
liberdade, democracia, razão. Esta consciência ideológica do historiador
pode tomar formas mais requintadas: pode reagrupar o saber adqui-
rido num dado período à volta de esquemas unificadores menos direc-
tamente ligados a escolhas políticas ou a valores (como o «espírito»
de uma época, a sua «visão do mundo»); mas traduz no fundo o mesmo
mecanismo compensador: para ser inteligível, o acontecimento tem
necessidade de uma história global definida fora e independentemente
dele. Daí esta concepção clássica do tempo histórico como uma série
de descontinuidades descritas no modo do contínuo, que é natural-
mente a narração.
A história serial descreve, pelo contrário, continuidades sobre
o modo do descontínuo: é uma história-problema(s), em vez de ser
uma história-narração. Distinguindo por necessidade os níveis da rea-
lidade histórica, decompõe por definição qualquer concepção prévia
de uma história «global» pondo precisamente em questão o postulado
de uma evolução supostamente homogénea e idêntica de todos os ele-
mentos de uma sociedade. A análise das séries só tem sentido se for con-
duzida no longo prazo, a fim de poder distinguir as variações curtas
ou cíclicas das tendências; a série descobre um tempo que já não é
o crescimento periódico e misterioso do acontecimento, mas um ritmo
de evolução doravante mensurável, comparável e duplamente dife-
rencial, consoante for examinado no interior de uma mesma série ou
se se comparar uma determinada série com outra.

72
1

A HIST6RIA, HOJE

Assim, a história serial deslocou o velho império cuidadosamente


fechado da historiografia clássica graças a duas operações distintas
e ligadas. Pela decomposição analítica da realidade em níveis de des-
crição, abriu-se à importação dos conceitos e dos métodos das ciências
sociais mais especificamente constituídas como a economia política,
que foi sem dúvida o elemento motor da sua renovação. Pela análise
quantitativa dos diferentes ritmos de evolução destes níveis, constituiu
finalmente em objecto científico mensurável a dimensão da actividade
humana que é a sua razão de ser, o tempo.
2. Se a hipótese da história se deslocou desde então do nível da
filosofia da história para o de uma série de dados ao mesmo tempo par-
ticulares e homogéneos, só ganha na maior parte das vezes em tornar-
-se explícita e formulável; mas atomiza a realidade histórica em frag-
mentos tão distintos que compromete ao mesmo tempo a pretensão
clássica da história à compreensão do global. Será necessário aban-
donar esta pretensão?
Responderei que provavelmente é preciso conservá-Ia como o
horizonte da história, mas que é necessário, para avançar, renunciar
a tomá-Ia como ponto de partida da investigação, sob pena de cair
de novo na ilusão teleológica acima descrita. A historiografia contem-
porânea só progride na medida em que delimita o seu objecto, define
as suas hipóteses, constitui e descreve as suas fontes tão cuidadosamente
quanto possível. Isto não quer dizer que se deva limitar à análise micros-
cópica de uma única série cronológica; pode reagrupar várias destas
séries e propor então a interpretação de um sistema, ou de um sub-
sistema. Mas a análise global do «sistema dos sistemas» está prova-
velmente hoje em dia fora dos seus meios.
Tomarei o exemplo da história demográfica e da história econó-
mica, que são os sectores mais avançados da historiografia francesa
(e sem dúvida internacional) contemporânea. Sucede que, desde há
vinte anos, o período «moderno» tem sido, em França, objecto do
maior número de investigações de história serial (demográfica e econó-
mica) e que é assim, deste ponto de vista, o menos mal conhecido.
Saída das mercuriais e da reconstituição dos preços, a historiografia

73
A OFICINA DA HISTóRIA

francesa 7 comparou-lhes em seguida a evolução do número dos homens,


a partir das séries demográficas. Foi assim que o conceito de «antigo
regime econômico» se constituiu progressivamente, fundado na prepon-
derância de uma produção de cereais vulnerável aos caprichos meteoro-
lógicos e na «purga» periódica do sistema pela crise cíclica, que assi-
nalam ao mesmo tempo o levantamento súbito da curva dos preços e
o desmoronamento da do número dos homens.
Mas as séries de preços, de significações ambíguas e muito diver-
sas, foram completadas por indicadores mais pertinentes no tocante
ao volume da produção e pela utilização de séries que dizem respeito
à evolução da oferta e da procura, ela própria constitutiva da evolução
dos preços. Do lado da produção, as fontes decimais que, afectando
em cada ano a mesma percentagem da colheita, não nos ensinam nada
sobre o valor absoluto da produção, mas valem pela sua compara-
bilidade relativa; ou então, ao nível macroeconómico, as fontes proto-
-estatísticas recolhidas pela administração do antigo regime e reor-
ganizadas em termos de contabilidade nacional. Do lado da procura,
fora dos movimentos demo gráficos globais, há a reconstituição das
grandes massas monetárias dispcnívcis: tesourarias comunais, senho-
riais, decimais, renda predial, lucro de empresas, salários.
É esta combinação de séries demográficas e económicas múltiplas
que permitiu a Le Roy Ladurie retomar a análise da antiga economia
agrária numa base mais amplas. Trata-se, com efeito, de uma amos-
tragem de dados correspondentes ao conjunto do Languedoc, de uma
cronologia de longa duração (séculos XV-XVIII) e de uma documentação
quantitativa diversa e rica, que permite, sobretudo graças ao cadastro,
o estudo da propriedade rural. Séculosxv-xvnt: é a história de um
muito longo ciclo agrário, caracterizado simultaneamente por um equi-
líbrio geral e por sucessivos desequilíbrios. O equilíbrio geral é, grosso

7 A dimensão da bibliografia desencoraja qualquer tentativa, mesmo sumária.


S E. Le Roy Ladurie, Les Paysans de Languedoc, S. E. V. P. E. N., 1966.
Retomo aqui, abreviando-a, uma análise que fiz num artigo de Social Science Infor-
mation em 1968: «Sur que1ques problêmes posés par le développement de l'histoire
quantitative»,

74
A HISTóRIA, HOJE

~~
modo, conforme ao modelo malthusiano, esse modelo que Malthus
descobre e eterniza quando precisamente deixa de ser verdadeiro, no
momento do take-off inglês: a economia do antigo Languedoc rural
é dominada a longo prazo pela relação da produção agrícola com o
número dos homens; a incapacidade da sociedade para elevar a produ-
tividade agrária, o impasse fundiário, isto é, a ausência de uma reserva
indefinida de boas terras, constituem, pela mesma razão que a famosa
«escassez monetária» cara aos historiadores dos preços, outros tantos
bloqueios estruturais a um crescimento decisivo. Ao perder o seu papel
central, a explicação monetária é assim integrada num sistema múlti-
plo e unificado de interpretação.
Esta estrutura da economia antiga age a longo prazo como uma
regra de funcionamento interno. No entanto, não impede que no inte-
rior do sistema as diferentes variáveis descritas - número dos homens,
evolução da propriedade, repartição da renda fundiária, movimento
da produtividade e dos preços, etc. - permitam referenciar períodos,
segundo o lugar que cada uma delas ocupa em relação ao conjunto,
segundo os ritmos anuais e os ciclos que cada curva particular traduz.
Assim, a estrutura inclui cronologicamente "Váriostipos de combinações
de séries, quer dizer, diversas conjunturas. E é até a partir do exame
atento destas sucessivas conjunturas e dos seus traços diferentes e
comuns que esta estrutura é revelada. Isto, seja dito de passagem,
talvez permita esclarecer o debate entre sincronia e diacronia que separa
muitas vezes antropólogos e historiadores e que está neste momento no
cerne da evolução das ciências sociais. O movimento periódico, a curto
e a médio prazo, que constitui o «acontecimento» na ordem econó-
mica, não é necessariamente contraditório com uma teoria do equilí-
brio geral. A sua descrição empírica pode permitir, pelo contrário,
determinar as condições teóricas deste equilíbrio: a elasticidade que
manifesta indica os limites em que se inscreve.
3. Mas o exemplo precedente - o Languedoc de Le Roy Ladurie
- é um exemplo privilegiado na medida em que a correlação entre as
diferentes séries demográficas e económicas é feita no interior de um
espaço regional relativamente homogéneo e de um sector delimitado da
actividade humana que é a economia agrária. Na realidade, a história
serial «sectorial», mas estendida a espaços diferentes, leva à análise

75
A OFIOINA DA HIST6RIA

dos desequilíbrios regionais ou nacionais. E a história serial «global»


(ou de vocação global), mesmo limitada a uma zona geográfica defi-
nida, arrisca-se a conduzir a uma análise dos desequilíbrios temporais
entre os diferentes ritmos de evolução dos níveis de actividade humana.
O primeiro ponto é agora bem conhecido graças à multiplicação
dos trabalhos de história económica regional. O especialista de his-
tória económica está habituado por excelência à ideia dos desníveis
mensuráveis entre nações, e entre zonas desigualmente sensíveis a
uma mesma conjuntura, ou respondendo diversamente a conjuntu-
ras afastadas no tempo. Os exemplos são numerosos e alguns levan-
tam problemas doravante clássicos da história europeia: a questão,
recentemente retomada 9, dos crescimentos comparados da França e
da Inglaterra no século XVIII; a oposição entre a descolagem agrícola
catalã no século XVIII e a decadência castelhana, realçada por P. Vilar !";
ou o contraste, na França do século XVII, entre o Beauvaisis de P. Gou-
bert! t, miserável, profundamente atingido desde os meados do século
pela regressão económica e demográfica, e a Provence de Baehrel t ê,
relativamente mais afortunada, ou pelo menos aflorada sensivelmente
mais tarde pelo retorno da conjuntura de expansão. De maneira mais
geral, a data deste retorno, deste mergulho no «trágico» século XVII,
é muito diversa consoante as regiões e os países, mas também consoante
a natureza das economias. É também cada vez menos provável que
haja apenas uma única e mesma conjuntura 1 3 para a economia urbana
e para a economia rural.
A história económica serial desemboca assim na análise de conjun-
turas diferenciais ou simplesmente afastadas no espaço; poder-se-ia

9 F. Crouzet, art. citado.


10 P. Vilar, La Catalogne dans l'Espagne moderne, S. E. V. P. E. N., 1962.
Cf. particularmente o tomo IT.
11 P. Goubert, Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, S. E. V. P. E. ~
1960.
12 R. Baeherl, Une croissance: Ia basse Provence rurale.fin du Xl/I" s/ecle-1789,
Paris, 1961.
13 D. Richet, «Croissances et blocages en France du XVe au xvm- siêcle»,
Annales E. S. C., 1968, n." 4.

76
A HISTóRIA, HOJE

dizer: numa geografia da sua cronologia e no exame das diferenças


estruturais assinaláveis por contradições cronológicas. Com efeito,
ciclos afastados no tempo de uma região ou de um país para outro,
mas fundamentalmente comparáveis nas suas articulações internas,
não traduzem senão as variantes geográficas de uma mesma história,
ao passo que evoluções contraditórias, quer no interior de uma mesma
zona geográfica (por exemplo, entre cidade e campo), quer entre duas
regiões, arriscam-se a colocar o historiador em presença de estruturas
económicas diferentes.
Mas a história não poderia ser reduzida apenas à descrição e inter-
pretação da actividade económica. Se tem uma especificidade em relação
às outras ciências sociais, é precisamente por não a ter e por pretender
explorar o tempo em todas as suas dimensões. Compreende-se, evi-
dentemente, porque é que a economia constituiu o domínio prioritário
da investigação histórica quantitativa, pelo carácter necessariamente
mensurável dos indicadores, pela precisão dos conceitos de que permitiu
a elaboração, pela problemática do crescimento, esta imagem privi-
legiada da mudança histórica no pensamento ocidental de hoje. Mas
o homem não é apenas um agente económico. O mundo de hoje oferece
demasiados exemplos de resistências culturais à generalização do modelo
ocidental de crescimento económico para que o historiador não ponha
em questão a problemática manchesteriana do progresso (ou a sua inver-
são marxista) e não oriente a sua curiosidade para a análise político-
-ideológica das sociedades do passado.
Mas, feito isto, não volta, não pode voltar à velha história teleo-
lógica do «progresso», que extrapola para a vida cultural os ritmos
de desenvolvimento da vida económica, quer seja por uma espécie de
adaptação pacífica «natural» quer pela mediação necessária da revolu-
ção. Estes postulados ideológicos do século XIX são hoje de utilidade
nula. Não é agarrando-se a eles que o historiador pode continuar
fiel ao carácter «global» da disciplina. É, pelo contrário, aceitando
inventariar e descrever os níveis da actividade humana diferentes dos
processos objectivos da economia, a partir dos mesmos processos da
história serial. É partindo da hipótese que, segundo os níveis de rea-
lidade ou os sistemas parciais analisados, os modos de apropriação
do tempo, os ritmos cronológicos possam ser diferentes.

77
 OFICINA DA HISTóRIA

No plano prático, quase tudo está por fazer. O historiador deve


examinar quais podem ser os indicadores (quantificáveis ou não)
daquilo a que chamo a sociedade «político-ideológica», constituir a
sua documentação, estabelecer o carácter representativo e o valor com-
parável de uma época para outra. As fontes estão lá, tão numerosas,
e muitas séries, tão homogéneas como no sector económico ou demo-
gráfico - quer se trate da alfabetização das massas popularest+, da
sociologia da educação ou do sentimento religioso 1 5, do consumo das
ideias pelas elites, do conteúdo manifesto ou latente das ideologias
políticas, etc. No plano teórico, há evidentemente interesse em consti-
tuir progressivamente os elementos de uma história global, mas sobre-
tudo, e mesmo primeiramente, em analisar os ritmos diferenciais de
evolução dos diferentes níveis de um conjunto histórico. É sob esta
condição que poderão ser atingidos dois dos objectivos prioritários da
historiografia de hoje:
1. Rever as periodizações globais tradicionais, que são no essen-
cial uma herança ideológica do século XIX e que pressupõem o que fica
precisamente por demonstrar: a evolução grosseiramente concomi-
tante dos mais diversos elementos de um conjunto, no interior do
período considerado. Em vez de partir de uma determinada perio-
dização, é provavelmente mais fecundo pôr primeiramente as questões
em relação aos elementos descritos. O conceito de «Renascimento»,
por exemplo, é sem dúvida pertinente em relação a muitos indicadores
de história cultural, mas despido de sentido em relação aos dados da
produtividade agrária.
2. O problema é então compreender, n~nterior de um conjunto
de dados de natureza diferente, os níveis em evolução rápida, ou em
transformação decisiva, e os sectores de forte inércia, a médio ou a

14 Cf. particularmente: M. Fleury, «Les progrês de l'instruction élémentaíre


de Louis XIV à Napoléon 111»,in Population, 1957; L. Stone, «Literacy and Education
in England 1640-1900», Past and Present, Fevereiro de 1968; C. CipolIa, Literacy
and Deve/opment in the West , Penguin Books, 1969.
15 G. e M. VoveIle acabam de mostrar brilhantemente como utilizar séries
iconográficas para o estudo do sentimento religioso. Cf. «Vision de Ia mort et de
l'au-delà en Provence», Cahier des Annales, 1970.

78
A HIST6RIA, HOJE

longo prazo. Não é evidente, por exemplo, que o dinamismo da história


de França - digamos desde o grande «crescimento» dos séculos XI-XII
- seja de natureza económica: o investimento escolar, cultural em
sentido lato, e do Estado (por intermédio das disposições legais) pode
ter tido para tanto um papel mais fundamental do que o aumento do
produto nacional. Permitir-me-ão talvez terminar este artigo com uma
hipótese um tanto ambiciosa, acrescentando que esta hipórese não
é verificável enquanto a história não adoptar os processos da histó-
ria serial.

79
Da história-narrativa à história-problema *

A história é filha da narrativa. Não se define por um objecto de

,
!
estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não
tem de facto outro sentido que dizer que dispõe todos os objectos que
estuda no tempo: fazer história é contar uma história.
t Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém
t, ou a alguma coisa, a um indivíduo, a um país, a uma instituição, aos
i homens que viveram antes do instante em ql:e se narra e aos produtos
~ da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que constituem
o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito
naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta

I ao homem como a própria imagem do tempo: a duração muito nítida


de uma vida, entre o nascimento e a morte, e as datas referenciáveis

!
dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A divisão do
tempo é portanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto»
da história.
Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no
fundo à mesma lógica: não pode, por definição, começar senão pelas
origens da França, contar em seguida as fases do crescimento e da
aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença
está em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração

* Diogéne, n.? 89, «Problêmes des sciences contemporaines», Janeiro-Março


de 1975.

81
A OFICINA DA HIST6RIA

do passado, tesouro da nação, tem igualmente a responsabilidade de


traçar esse futuro e, por conseguinte, de fechar o tempo.
A narrativa histórica obedece portanto a um recorte do tempo que
se inscreve no dado bruto da vivência: no fundo, fixa as recordações
dos indivíduos e das colectividades. Conserva vivo aquilo que escolheram
do seu passado ou simplesmente do passado, sem desfazer nem recons-
truir os objectos desse passado: fala de momentos, não de objectos.
Mesmo quando trata ou quer tratar de «civilizações», esse tipo de his-
tória não escapa à regra: quando Voltaire compara o século de Péricles
ou de Augusto ao de Luís XIV, a encarnação concreta dessas sucessivas
grandezas indica bem que está a comparar períodos e não conceitos.
Essa é com certeza uma das razões pelas quais esta história foi
principalmente - mas não unicamente - biográfica ou política. Na
vivência colectiva da humanidade aquilo que é mais fascinante para as
testemunhas c mais disponível para a narração é a aventura dos grandes
homens e dos Estados. Não nos devemos admirar de que a história
se tenha desenvolvido, na Antiguidade grega e romana, e depois na
Europa Moderna, como anais do poder e da guerra. O recorte narrativo
compassou os infortúnios e as vitórias dos povos - os grandes mo-
mentos da história.
É que o acontecimento dessa história é um momento. É isso mesmo
que o caracteriza por excelência: é aquele ponto de tempo ímpar em
que se passa qualquer coisa que não é redutível nem àquilo que houve
antes, nem ao que virá depois. Essa «qualquer coisa», ou seja, o facto
histórico revestido da dignidade de acontecimento, não é nunca com-
parável, falando com todo o rigor, a um facto anterior ou posterior,
dado que é o seu carácter empiricamente singular que lhe dá a sua
importância: a batalha de Waterloo ou a morte de Estaline aconte-
ceram apenas uma vez, não se compararam com nenhuma outra bata-
lha, com nenhuma outra morte, e transformaram a história do mundo.
No entanto, o acontecimento, tomado em si próprio, é ininte-
ligível. É como uma pedra que apanho na praia: privada de signi-
ficação. Para que a adquira, tenho de integrá-Ia numa rede de acon-
tecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da
narrativa. Waterloo tem um sentido em relação a uma história que
conte a vida de Napoleão, o Primeiro Império ou a rivalidade franco-

82
I
j

J
A HISTóRIA, HOJE

-britânica do século XIX, por exemplo. A morte de Estaline ganha impor-


tância na história da Rússia no século XX, na do comunismo interna-
cional ou noutra qualquer constelação cronológica de factos que se
possa imaginar. O que significa que, no interior da história-narrativa,
o acontecimento, apesar de por natureza ser único e não comparável,
extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja,
do tempo.
Não sendo ele um objecto intelectualmente construído para ser
estudado, não pode portanto receber a sua significação da análise das
suas relações com outros objectos comparáveis, ou mesmo idênticos,
no interior de um sistema. Pertencendo à ordem do vivido, ao domínio
«daquilo que aconteceu», não pode ser organizado ou mesmo simples-
mente baptizado a não ser em relação à significação externa e global
do tempo histórico que tem por função medir. Toda a história-narrativa
é uma sucessão de acontecimentos-origens, que podemos chamar, se
quisermos, de história evenemencial; toda a história evenemencial é
uma história teleológica: só o «fim» da história permite escolher e com-
preender os acontecimentos com que ela é tecida.
Esse «fim» pode ser diferente segundo os historiadores e os assun-
tos que escolheram para contar. Foi envolvido durante muito tempo
pela apologética religiosa ou pela edificação moral, que hoje em dia
passaram de moda. Não se pode dizer o mesmo da exaltação do poderio
ou da consciência nacionais, que continua a ser uma das grandes
justificações da história-narrativa, depois de ter sido, sem dúvida, o seu
impulso fundamental: todos os povos precisam de uma narrativa das
origens e de um memorial da grandeza que possam ser ao mesmo
tempo garantias do seu futuro. Assim como a escrita é um poder, os
nossos arquivos são recordações ou símbolos do poderio. Mas a his-
tória transnacional, geralmente designada como história das civilizações,
também não foge a essa imposição inevitável de dar um sentido prévio
ao tempo. No mundo laicizado em que vivemos, ela traduz na maior
parte das vezes, para além da pertença nacional, a outra grande vivência
colectiva da humanidade desde o século xvnr: o sentimento do pro-
gresso. Esse progresso tem nomes e rostos diferentes, é por vezes o
desenvolvimento dos bens materiais, mais frequentemente o difícil
advento da razão, da democracia, da liberdade ou da igualdade. Reco-

83
A OFlCIN A DA HISTóRIA

nhece-se nas incertezas desta enumeração ao mesmo tempo toda a


ambiguidade das realizações e dos valores que caracterizam o mundo
contemporâneo e a impossibilidade, no entanto, de não os evocar como
outros tantos fundamentos implícitos de uma certa história: o narrador
tem de situar o mundo de que fala no fim do tempo que narra.
Em suma, a história-narrativa é a reconstrução de uma experiência
vivida no eixo do tempo: reconstrução inseparável de um mínimo de
conceptualização, mas em que essa conceptualização nunca é explicitada.
Esconde-se no interior da finalidade temporal que estrutura qualquer
narrativa como se fosse o seu sentido.
Ora, o que me parece caracterizar a evolução recente da historio-
grafia é o recuo talvez definitivo dessa forma de história, sempre flores-
cente ao nível das produções de grande consumo, mas cada vez mais
abandonada pelos profissionais da disciplina. Parece-me que passamos,
sem o sabermos ainda, de uma história-narrativa a uma história-pro-
blema, à custa de mutações que se podem resumir do seguinte modo:
1. O historiador renunciou à imensa indeterminação do objecto
do seu saber: o tempo. Já não tem a pretensão de contar o que se passou,
ou até o que se passou de importante, na história da humanidade, ou
numa parte da humanidade. Está consciente de que escolhe, nesse pas-
sado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado, ques-
tões selectivas. Por outras palavras, constrói o seu.objecto de estudo
delimitando não só o seu período, o conjunto dos acontecimentos,
mas também os problemas colocados por esse período e por esses acon-
tecimentos, e que terá de resolver. Não pode portanto escapar a um
mínimo de conceptualização explícita: a boa questão, o problema
bem colocado são mais importantes - e são mais raros! - do que a
habilidade ou a paciência em trazer à luz do dia um facto desconhe-
cido, mas marginal.
2. Rompendo com a narrativa, o historidador rompe igualmente
com o seu material tradicional: o acontecimento singular. Se, em lugar
de descrever um vivido, único, fugidio, incomparável, procurar explicar
um problema, vai necessitar de factos históricos menos vagos do que
aqueles que encontra constituídos sob esse nome na memória dos
homens. Tem de conceptualizar os objectos da sua investigação, inte-
grá-los numa rede de significações e, por conseguinte, torná-los, se não

84

I
----,
A HISTóRIA, HOJE

idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo. É pri-


vilégio da história quantitativa oferecer a via mais fácil - mas não
a única - para este tipo de trabalho intelectual.
3. Ao definir o seu objecto de estudo, o historiador tem igual-
mente de «inventar» as suas fontes, que geralmente não são apropriadas,
tal corno estão, ao seu tipo de curiosidade. Pode acontecer, evidente-
mente, que se lhe depare um arquivo que não só será utilizável tal qual
está, mas ainda o vai conduzir a ideias, a uma conceptualização nova
ou mais rica. É uma das bênçãos do ofício. Mas geralmente acontece
o contrário. Ora o historiador que procura colocar e resolver um pro-
blema deve achar os materiais pertinentes, organizá-los e torná-los
comparáveis, permutáveis, de modo a poder descrever e interpretar
o fenómeno estudado a partir de um certo número de hipóteses concep-
tuais.
4. Daí a quarta mutação da profissão de historiador. As conclu-
sões de um trabalho são cada vez menos separáveis dos procedimentos
de verificação que as sustentam, com os constrangimentos intelectuais
que implicam. A lógica muito particular da narrativa, do post hoc,
ergo propter hoc, não se adapta melhor a esse tipo de história do que
a história, também ela tradicional, que consiste em generalizar o
singular. E é aqui que aparece o espectro da matemática: a análise
quantitativa e os processos estatísticos, desde que adaptados ao pro-
blema e judiciosamente conduzidos, estão entre os métodos mais rigo-
rosos de «testagem» dos dados.
Antes de ir mais longe, deveríamos interrogar-nos sobre as razões
desta mutação da história. Referem-se provavelmente a factores exter-
nos ao próprio conhecimento, como a crise geral do progresso com
a qual nos debatemos, que põe em causa o sentido de urna evolução
dominada pelo modelo europeu dos séculos XIX e XX, e a própria noção
de uma história global e linear: Mas também se referem a elementos
internos ao saber, tais como a influência difusa da conceptualização
marxista nas ciências sociais, o desenvolvimento muito brilhante de
algumas dessas ciências de objecto limitado e definido (estou a pensar
na economia, na demografia, na antropologia), ou ainda o impacte
da informática, que permite cálculos até aqui inimagináveis, mas com a
condição de serem prévia e rigorosamente formuladas as questões

85
i
I
!, A OFICINA DA HISTORIA

que se quer resolver e as hipóteses que se pretende testar. Sem me


querer alongar sobre este vasto problema, gostaria de me limitar ao
exame das consequências dessa mutação na nossa profissão e no nosso
saber.
O arquivo com base no qual se escreve a história passou de uma
colecção de documentos a uma construção serial de dados. Com efeito,
se o historiador passa a trabalhar com um objecto de investigação
conceptualmente claro, e se quer por outro lado permanecer fiel à espe-
cificidade da sua disciplina, que é estudar a evolução dos acontecimentos
no tempo, tem de dispor de dados pertinentes (raramente disponíveis
enquanto tais) e comparáveis entre si num período de tempo relati-
vamente longo. O facto histórico já não é a irrupção de um aconteci-
mento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim
um fenómeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que
seja referenciado e estudado através de uma série cronológica de dados
idênticos, comparáveis a intervalos preestabelecidos. Estes dados já não
existem em si, mas como elementos de um sistema formado pelos que
os precedem e pelos que os seguem. São menos susceptíveis de uma
crítica externa de verosimilhança (através da comparação com outros
testemunhos da mesma época) do que de uma crítica interna de coe-
rência (através do estabelecimento da sua comparabilidade no interior
do sistema que formam).
A operação intelectual que constitui os dados é portanto dúbia.
É preciso primeiro estabelecer a sua significação, que condiciona a sua
utilização exacta. Por exemplo: o historiador que se interessa peJa
alfabetização possui antes de mais, para períodos anteriores ao sé-
culo XIX, enumerações de assinaturas. Mas que significa saber assinar
o nome, em relação aos critérios actuais de alfabetização, que são a
capacidade de ler e 'escrever? Ou ainda: o historiador das crises e dos
diferentes tipos de crises económicas na época moderna utiliza em
profusão as séries de preços. Mas tem de responder primeiro à seguinte
pergunta: que significa o preço? Quais os movimentos, quais os níveis
da vida económica de que é indicador? Uma vez estabelecida a
significação dos dados, é necessário constituir a sua série, torná-I os
comparáveis entre si, decidir da unidade-tempo que cobrem, dos
procedimentos estatísticos apropriados, etc. Operações que não são

86
1I
,
q
A HISTóRIA, HOJE l
1
simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas meto- .1
j
1

dológicas. 1

Poder-se-á objectar a esta visão do trabalho histórico uma espécie


de questão prévia: é que as fontes do historiador são geralmente lacu-
nares, parciais ou simplesmente inexistentes, segundo os acasos da sua
conservação. Seja como for, não se trata, entre a história e as outras
ciências sociais, de estabelecer uma diferença de princípio mas de situa-
ções; existem com certeza problemas, sobretudo nos períodos recuados •
do passado, em relação aos quais desapareceram os materiais de análise. 1
l,
Porém, em contrapartida, é preciso ver que esses materiais não foram 1

constituídos de uma vez por todas no século XIX com o depósito público
de arquivos: têm uma elasticidade quase indefinida, e muitos vezes
é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si próprio,
que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos
registos de paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante
séculos, até que o nascimento recente da demografia histórica, nos
anos cinquenta, viesse descobrir o seu imenso valor. Por outro lado,
o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca,
dados constituídos directamente pertinentes pode na maioria dos casos
contornar o obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe
permita a sua utilização em segundo grau.
Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização
substitutiva dos dados históricos. Distingui, num artigo recente, três
tipos de dados seriais: o primeiro, o mais simples e mais fácil de manejar,
é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis constituídos
de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe.
É o caso, por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos
registos de paróquia para o historiador demógrafo: deles se extraem,
com uma manipulação mínima e estandardizada (a técnica da recons-
tituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda
resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas.
O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas
utilizados de modo substitutivo, para responder a questões comple-
tamente diferentes das razões por que tinham sido agrupados esses
dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos
intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção

87
,
A OFICINA DA HISTORIA

e o comportamento sexual das populações do passado. Ou do especia-


lista do crescimento económico que trabalha com séries de preços.
Nestes casos, o problema da pertinência e a eventual reorganização
dos dados em relação ao problema posto é o problema central da sua
manipulação. Por fim, existe um terceiro tipo de fontes, mais delicado
ainda de manejar: as que não são de natureza numérica, mas que o
historiador quer utilizar de modo serial. Para tal, como no caso ante-
rior, deve não apenas estabelecer a sua pertinência e o seu valor como
também reorganizá-Ias sistematicamente em unidades conceptuais e
cronologicamente comparáveis. Exemplos: a utilização de contratos
notariais de casamento para estudar a endogamia, a mobilidade social,
a fortuna ou a alfabetização. Ou a dos testamentos para a análise do
sentimento da morte.
Assim, se se procurasse classificar as mais recentes conquistas
da historiografia contemporânea pelo grau de rigor das suas realizações,
seríamos levados a ter em conta ao mesmo tempo o tipo de conceptua-
lização dos problemas e a qualidade das fontes em relação a esses pro-
blemas. Assim, é fácil de verificar que, por exemplo, a demografia his-
tórica ou a história económica são deste duplo ponto de vista, e pelo
menos em relação ao chamado período «moderno», os sectores mais
bem apetrechados: primeiro porque beneficiam de conceitos elaborados
por disciplinas específicas como a demografia e a economia política,
pelo que basta importá-I os para a história, com adaptações menores.
Depois porque os objectos desses estudos são mais fáceis de abstrair,
de definir e de medir do que a maioria dos produtos da actividade
humana e porque, de resto, a maior parte dos estados europeus esta-
belecem e conservam dados desse género desde há vários séculos.
Contudo, até no interior desses sectores «avançados» da história
as coisas não são tão simples como o poderiam deixar pensar os cri-
térios deste palmarés, retirados da classificação académica das nossas
disciplinas. É que a história, dada a sua natureza indeterminada, tende
a extravasar incessamente às aquisições sectoriais desses saberes espe-
cializados. A questão que se põe é saber se, e em que medida, ao tomar
de empréstimo, ao integrar algumas dessas aquisições, ela terá insti-
tuído um conhecimento do passado que se possa classificar como cientí-
fico.

88
A HISTóRIA, HOJE

É preferível, a fim de ter uma melhor visão deste velho problema,


raciocinar sobre exemplos, numa ordem crescente de complexidade
ou de incerteza. Vou escolhê-los no campo da demografia histórica,
que é um dos sectores mais trabalhados pela historiografia francesa
desde há uns vinte anos. É também um sector que apresenta facilidades
excepcionais para a formalização matemática dos problemas. Esse
privilégio resulta da natureza específica da disciplina e dos sacrifícios
que esta consentiu na definição do seu objecto: a demografia funda-
menta-se inteiramente num postulado abstractamente igualitário, se-
gundo o qual o nascimento de Napoleão tem exactamente a mesma
importância que o de qualquer um dos seus futuros soldados. Sacri-
ficando assim por hipótese tudo aquilo que haja de peculiar na vida
dos indivíduos, ou seja, o essencial da sua história, constitui a humani-
dade histórica em unidades permutáveis e mensuráveis, mediante alguns
tipos constantes e comparáveis de acontecimentos: o nascimento, o
casamento, a morte. Esses acontecimentos, desembaraçados de todas
as significações que as civilizações, cada uma à sua maneira, neles
colocam, ficam reduzidos àquilo que têm de mais elementar: o facto,
simplesmente, de terem acontecido.
Digo propositadamente que são acontecimentos porque não vejo,
a priori, o que possa distinguir determinado facto histórico de outro
facto histórico: por exemplo, um nascimento, mesmo anónimo, de uma
batalha célebre. Deste ponto de vista, a distinção usual entre estrutura
e acontecimento, entre história estrutural e história factual não pode
ter qualquer significação no que diz respeito ao próprio dado histórico;
não há factos não factuais e factos factuais. A história é um aconteci-
mento permanente. Mas certas categorias de acontecimentos prestam-se
mais facilmente do que outros a uma conceptualização, ou seja, a uma
integração num sistema de inteligibilidade: é o caso dos acontecimentos
demo gráficos.
De facto, esses dados brutos, e particularmente simples, sobre
os nascimentos, casamentos e óbitos constituíram o objecto de um
saber específico: a demografia. Podem portanto dar lugar a um certo
número de cálculos e análises, que são em si outros tantos objectos
pré-fabricados da investigação histórica: ou seja, objectos, conceitos
elaborados por uma disciplina que não é a história - neste caso a

89
......~--~~----~-_ ..-._----
.. ~

A OFICINA DA HISTóRIA

demografia, mas para a qual a história fornece igualmente os mate-


riais primários -, o levantamento de nascimentos, casamentos e óbitos.
Por pouco que trabalhe com dados seguros ou verificados - e esse
«pouco» é, na realidade, muito porque o problema da verificação das
fontes numéricas não é simples -, a demografia histórica contribui
com resultados comparáveis aos da simples demografia: o conjunto
das relações que permitem medir os elementos de uma dada população
e o modo como evoluem.
Esses elementos, medidos ano a ano, constituem resultados claros
(não ambíguos) e certos. Mas a sua interpretação já não o é. Tomemos
uma taxa de mortalidade geral que baixa durante um século, por exemplo
na França do século XVIII. É necessário estabelecer, decompor essa
taxa por grupos etários, obter nomeadamente a taxa de mortalidade
infantil ou juvenil, para saber onde se produz a baixa da mortalidade.
Suponhamos que se trata de ganhos espectaculares na sobrevivência
dos recém-nascidos (O- 1 ano): uma série de hipóteses muito diversas
pode explicar um fenómeno desse tipo, desde a multiplicação das par-
teiras nos campos até à transformação do sistema de aleitamento,
passando por este ou aquele progresso pontual da medicina numa dada
doença infantil. Como escolher, sem ter testado cada uma destas ideias
e algumas outras?
É verdade que se pode proceder de outro modo e partir, não de uma
só variável, mas do conjunto das variáveis de um sistema demográfico.
A abordagem é então menos histórica do que propriamente demográfica:
utiliza ou constitui um modelo de reprodução de uma população supos-
tamente estável, pondo provisoriamente entre parênteses o factor tempo.
Suponhamos que todas as «casas» deste modelo foram preenchidas;
a pergunta do historiador subsiste: como evolui o sistema? É possível,
evidentemente, pela observação daquilo que se passou ou mesmo pela
simulação daquilo que se teria podido passar se esta ou aquela variável
do sistema tivesse estado ausente ou fosse muito diferente diagnosticar
por onde é que o sistema se modifica; como é que, por exemplo, se
desenvolve ou, ao contrário, se retrai. Mas a análise dessas variáveis
estratégicas remete, como no caso anterior, para elementos exógenos
ao sistema e que agem sobre ele. Isto é, para hipóteses de interpretação
que saem do campo demográfico e remetem imediatamente para con-

90
«

A HISTÓRIA, HOJE

ceitos não constituídos em disciplina científica e para indicadores que


na maioria dos casos estão por inventar.
Vejamos o problema da idade de casamento, variável central da
regulação demo gráfica nas populações da Europa pré-industrial, entre
os séculos XII e XIX. Sem entrar aqui em pormenores, parece de facto
que o recuo da idade de casamento terá sido o instrumento endógeno
essencial para uma estabilização da dimensão global dessas populações,
submetidas por outro lado a punções externas (fomes, guerras, epide-
mias) cujo impacte decresce ao longo do período. Como se opera essa
regulação? De dois modos. A longo prazo, a elevação progressiva da
idade de casamento, até aos seus «níveis» clássicos de vinte e cinco,
vinte e seis anos (para as mulheres), anula dez anos de fecundidade
possível e diminui assim, independentemente de qualquer acção contra-
ceptiva, o número de crianças por família «completa». Por outro lado,
a mais curto prazo, a extrema variabilidade das taxas de mortalidade
segundo os acasos da conjuntura é equilibrada por variações compensa-
tórias da idade de casamento: quando uma população atravessa uma
crise demográfica (qualquer que seja a sua causa), adia os seus casa-
mentos, pelo que recua a idade de casamento. Mal sai dela, pelo contrá-
rio, acrescenta aos casamentos adiados outros de camadas etárias mais
jovens. O abaixamento provisório da idade de casamento desempenha
então um papel de recuperação do nível anterior à crise. Deste modo,
podemos facilmente conceber e fazer funcionar um modelo demo gráfico
que permita examinar qual a evolução de uma população, permanecendo
todos os outros factores iguais, a partir das variações da idade de casa-
mento: como é que cresce, como é que diminui.
Este tipo de simulação permite seguir o papel desempenhado por
uma variável num sistema, e até na evolução desse sistema. Mas não
as causas que sobre ela actuam. Por outras palavras, permite descrever
e não interpretar e muito menos explicar. De facto, basta colocar a
questão: quais são os factores susceptíveis de agir sobre um comporta-
mento cultural como o da idade em que se casam as pessoas, para se
ser remetido para uma pluralidade de interpretações possíveis. A longo
prazo, a elevação da idade de casamento, na Europa clássica, até aos
vinte e cinco, vinte e seis anos, pode ser interpretada como um ajusta-
mento optimizado da densidade populacional aos recursos disponí-

91
.. '~---.,. ~

A oFICINA DA HISTóRIA

veis: veja-se Chaunu, Le Roy Ladurie, redescobrindo M althus! A Europa


rica, a Europa «desenvolvida» dos séculos XVII e XVIII, essa franja de
alta produtividade agrária que se estende desde a bacia de Londres até
à Itália do Norte, passando pelos Países Baixos, a França do openfield,
o vale do Reno, encontraria a sua estabilidade em torno de uma relação
do homem com a terra de quarenta habitantes por quilómetro quadrado.
Mas esta proposição, mesmo que seja grosso modo verdadeira - o que
não é muito evidente, porquanto os dados sobre a produtividade e a
produção agrárias desta época são difíceis de manejar -, não diz
nada sobre as mediações através das quais foi vivido esse ajuste da idade
de casamento. Será que se trata - na medida em que não é acompa-
nhado de um aumento dos nascimentos ilegítimos - de uma mais
perfeita interiorização, durante urna adolescência mais longa, das regras
de austeridade sexual? Ou deveremos ver aí sobretudo uma adaptação
de tipo socioeconómico, de tal modo que os filhos esperam, para se
casar, isto é, para SE estabelecerem, que a geração precedente lhes entre-
gue a exploração familiar?
Dir-me-ão que se deve começar pelo mais fácil e que as incer-
tezas são menores no que respeita às variações da idade de casamento
a curto prazo. Porque é que, em períodos de crise, uma população
adia os seus casamentos? A resposta é relativamente clara: por causa
das incertezas em relação ao futuro, que nascem do espectáculo do
presente. A consciência histórica é, de facto, uma consciência deter-
minada pelos acontecimentos a curto prazo; é a conjuntura que con-
diciona as suas reacções de optimismo ou de pessimismo em relação
ao futuro. Quando o historiador tem de lidar com reacções deste tipo,
que são estratégias conscientes de resposta a um dado acontecimento,
está relativamente à vontade para reconstituir-Ihes o encaminhamento
através dos vestígios que elas deixaram; pois não faz mais do que ressus-
citar as razões dos agentes históricos. O aborrecimento é que essa redun-
dância não leva longe! A crise adia os casamentos, a prosperidade
multiplica-os antes que a crise seguinte os atinja novamente. Bom!
Mas fica por compreender o problema essencial: saber como se estabe-
lece, através dessa sucessão de ajustamentos em sentido contrário, um
recuo global da idade de casamento que permita travar o crescimento
«natural» das populações da Europa pré-industrial.

92
A HISTóRIA, HOJE

É aqui que uma descoberta de tipo descritivo, como esta, leva


forçosamente o historiador a hipóteses explicativas que são duplamente
delicadas: primeiro porque estavam por natureza fora do alcance dos
homens cujo comportamento estuda e, portanto, não existem traços
escritos directamente utilizáveis. Depois, porque é obrigado a sair da
análise propriamente demográfica e da precisão conceptual e factual
que ela implica. Tem de compreender os mecanismos através dos quais
a probabilidade de comportamento colectivo que está inscrita na aná-
lise dos dados sobre a idade de casamento se encarna na multiplicidade
das condutas individuais.
Retomemos a título de exemplo as duas hipóteses sugeridas acima.
Apesar de serem de natureza diferente, não são incompatíveis. Têm
em comum facilitar nos indivíduos que viveram nessa época a har-
monização das expectativas e das oportunidades que é uma das condi-
ções da vida social, esse mecanismo um pouco melancólico com o
qual os homens prevêem e fabricam o seu futuro mais provável. Mas
a primeira é de ordem psicológica, a segunda de ordem económica.
A primeira é uma moral, a segunda uma estratégia. A primeira não
é mensurável, a segunda já o é. De facto, o historiador poderá estabe-
lecer uma relação entre a procura das novas gerações e o mercado das
explorações, ou dos empregos livres, em resultado do desaparecimento
dos velhos. Se não dispuser de dados suficientes para trabalhar numa
escala macroeconómica, poderá ao menos abordar o problema por
intermédio de uma série de monografias de explorações familiares, que
lhe permitirão definir a rotação das gerações numa mesma exploração.
Trata-se de um processo objectivo, que pode, pelo menos em teoria,
ser objecto de uma conclusão clara. Ao contrário, a generalização na
Europa clássica de um super-ego puritano (no plano sexual) é uma hipó-
tese que não pode implicar respostas não ambíguas. Vê-se facilmente
o que é que torna essa hipótese verosímil: a ética protestante, a Contra-
-Reforma, a «civilização» de Norbert Elias! ... Mas não se pode provar
realmente nem que é verdadeira nem que é falsa.
Porquê? Antes de mais porque o super-ego é um conceito psico-

1 Norbert Elias, La Civilisation des maurs, Calmann-Lévy.

93
A OFICINA DA HIST6RIA

lógico a propósito do qual nenhuma demonstração é possível. Serve


para interpretar comportamentos que são indefinidamente interpretáveis
noutros termos: por exemplo, substituindo a ideia weberiana de auto-
disciplina do indivíduo pela do reforço dos constrangimentos externos,
neste caso a Igreja e o padre; todavia, por outro lado, não existem
e não existirão nunca dados pertinentes para responder a hipóteses
que dizem respeito à psicologia dos agentes históricos: estes morreram
já e poucos foram, mesmo entre os raros que falavam de si, os que
se interessaram por essa parte de si próprios que não tinham, antes de
Freud, nem os meios nem mesmo a curiosidade de explorar. O his-
toriador daquilo que hoje em dia se designa de um modo muito vago
por «mentalidades» é assim levado quer a raciocinar sobre textos espar-
sos ou ambíguos quer a achar um indicador, não nas psicologias, mas
nos próprios comportamentos, para induzir a partir deles as caracte-
rísticas psicológicas.
No primeiro caso, vai encontrar dificuldades ligadas à significação
de um testemunho ao mesmo tempo subjectivo e excepcional. É verdade
que, em certo sentido, todos os dados históricos (tirando aqueles que
constituem os vestígios da vida material do homem) são subjectivos:
mesmo o registo de um nascimento ou a contabilidade de uma explo-
ração agrícola foram, num certo momento do tempo, lançados no
papel por um indivíduo. Mas as imposições do registo são muito dife-
rentes conforme o objecto observado, a natureza da observação e do
observador: consoante se trate de um acontecimento normal, repeti-
tivo, isto é, comparável a um anterior, ou de um acontecimento extraor-
dinário, anotado exactamente porque foge aos hábitos; consoante se
trate de uma observação sistemática, submetida a regras, ou de um
testemunho fortuito, de uma contagem ou de uma impressão; consoante,
enfim, a relação que une o observador e a coisa observada é da ordem
do conhecimento ou não.
No que ao meu exemplo diz respeito, os testemunhos históricos
que nos podem informar sobre as características psicológicas dos com-
portamentos de há vinte séculos são, evidentemente, de ordem lite-
rária; digo «literária» no sentido lato do termo, nele incluindo alguns
textos que a posteridade não elevou a essa dignidade, alguns diários
íntimos inéditos, uns quantos manuscritos antigos que possam lançar

94
A HIST6RIA, HOJE

alguma luz sobre o tema. Porém, limitados a um meio social restrito,


estes testemunhos são por natureza raros, impossíveis de explorar
em séries temporais sistemáticas. Quem quiser ultrapassar o seu carácter
aleatório deve voltar-se para uma documentação diferente, de tipo nor-
mativo: por exemplo, os manuais de bem-viver ou os tratados espe-
cializados de moral religiosa, como os livros de' penitências. Mas os
textos dessa natureza apresentam a mesma ambiguidade que a produção
legislativa dos Estados: prescrevem um dever-ser, do qual nunca se
sabe em que medida é aceite, obedecido, interiorizado pelos homens.
A repetição, no decurso de um longo período histórico, das mesmas
prescrições traduzirá uma penetração social do comportamento pres-
crito ou, pelo contrário, traduzirá resistências a esse comportamento?
A segunda hipótese é tanto, se não mais, verosímil do que a primeira:
neste caso, o texto normativo é mais interessante pela «exposição dos
motivos» e o que implica de observação do que por aquilo que inter-
dita ou ordena; no fundo, é essencialmente testemunho dos meios de
que provém, o Estado ou a Igreja.
Por isso o historiador das mentalidades, que procura alcançar
níveis médios de comportamento, não se pode satisfazer com a literatura
tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjectiva,
não representativa, ambígua. Deve voltar-se para os próprios compor-
tamentos, ou seja, para os sinais objectivos desses comportamentos.
A hipótese discutida aqui de um super-ego «weberiano» que estenderia
o seu domínio às almas da Europa clássica pode ser testada com vários
desses sinais: o número de nascimentos ilegítimos e de concepções
pré-nupciais ou a prática da contracepção. A diminuição ou o baixo
número de nascimentos ilegítimos ou de concepções pré-nupciais num
mundo onde a idade de casamento é elevada traduz de facto uma prolon-
ganda castidade aceite. Mas é ainda necessário, para que estes indica-
dores façam sentido, que não tenha havido, na época, práticas contra-
ceptivas largamente desenvolvidas entre as populações da Europa.
Como saber isso? Não por meio de testemunhos literários, que são
por natureza, nesse domínio por excelência do não-dito, muito raros.
Essencialmente através da medida dos intervalos intergenésicos, ou
seja, .do espaçamento dos nascimentos das crianças durante a vida con-
jugal dos casais. É conhecida a técnica estatística que permite medir

95
A OFIOINA DA HISTõRIA

a evolução desse espaçamento na vida das famílias. Consiste, a partir


de um stock de mulheres casadas em idade de ter filhos, em relacionar
o número de nascimentos e a idade das mães. Se a fecundidade dos casais
diminuir muito rapidamente depois das primeiras crianças e com a idade
da mãe, há intervenção de práticas contraceptivas; senão, há apenas
sucessão dos nascimentos, travada unicamente pela duração do aleita-
mento dos recém-nascidos e pelo enfraquecimento biológico da fecun-
didade à medida que a mãe potencial envelhece.
As condições da experimentação parecem assim simples e claras.
As curvas estabelecem sem ambiguidade, por exemplo, que as popu-
lações canadianas no século XVIII ignoravam a contracepção e que os
duques e os pares de França da mesma época já a praticavam. Mas entre
estes dois extremos, os resultados permanecem ambíguos: precisamente
porque o espaçamento dos nascimentos, na vida de um casal, está
sujeito a factores diferentes da simples contracepção, é impossível
isolar esse elemento. E o alongamento do intervalo intergenésico,
quando não é brutal, pode dever-se, por exemplo, a uma modificação
das práticas de aleitamento e a um desmame mais tardio do recém-
-nascido. Por isso as conclusões categóricas são difíceis, como teste-
munha a discussão em curso sobre este problema desde há uma dezena
de anos.
Quando se tenta fazer o resumo do balanço metodológico, parece-
-me que encontramos incertezas inultrapassáveis a três níveis: o do
conceito (o super-ego pensado como uma espécie de consciência colec-
tiva de austeridade que dá forma às condutas individuais), que na
realidade não é susceptível de demonstração; o dos dados históricos
subjectivos, dos testemunhos, que são raros, não representativos,
ambíguos ; o dos indicadores objectivos, que são igualmente ambíguos.
A hipótese adiantada é mais do domínio do verosímil do que do ver-
dadeiro.
Seria portanto inexacto pensar que basta passar da história-narra-
tiva à história-problema (ou, se se preferir, à história conceptualizante)
para entrar, ipso facto, no domínio científico do dernonstrávelvA his-
tória conceptualizante é provavelmente superior, do ponto de vista do
conhecimento, à história-narrativa porque substitui a inteligibilidade
do passado em nome do futuro por elementos de explicação expli-

96
A HIBTORIA, HOJE

citamente formulados, porque descobre e constrói factos históricos


destinados a dar apoio à explicação proposta e alarga assim conside-
ravelmente o domínio da história propriamente dita, ao recortá-Ia e
especificá-lo. Max Weber talvez tenha seguido por um caminho errado
com a sua Ética Protestante, mas que posteridade não teve! Uma des-
coberta conceptual mede-se pelo campo de investigações que abre,
pelo rasto que deixa ...
Mas ainda assim não se passa tão simplesmente para uma história
científica. Primeiro porque existem questões, conceitos, que não têm
respostas claras (não ambíguas). Depois porque há questões que, em
princípio, têm respostas claras e que, no entanto, não podem ser resol-
vidas quer por causa da falta de dados, quer pela sua natureza - seja
pelo carácter ambíguo dos indicadores ou pelo facto de estes não serem
susceptíveis de procedimentos de análise rigorosos.
De facto, como já se viu - e a este respeito poder-se-iam multipli-
car os exemplos -, esses procedimentos adaptam-se ao manejo de indi-
cadores claros (ou assim tornados), disponíveis em séries cronológicas
e respondendo a questões não ambíguas geralmente elaboradas pelas
ciências sociais contemporâneas mais desenvolvidas, como a demogra-
fia ou a economia. Nesta medida, a história também é susceptível
de resultados certos. Por exemplo; podem calcular-se as grandes variá-
veis dos comportamentos demográficos da Europa ocidental desde o
século XVII. É possível medir a alta dos preços na França do século XVUl
ou o aumento brusco da produtividade agrária no século XIX. Isto equi-
vale a dizer que este tipo de história, caracterizado pela possibilidade
de extra polar no passado questões muito específicas geralmente elabo-
radas Doutras disciplinas, é ao mesmo tempo muito rendível e muito
limitado. Permite chegar a resultados seguros, a uma boa descrição
do fenómeno localizado que foi escolhido como objecto de estudo.
Mas a interpretação desses resultados não apresenta o mesmo grau
de certeza que os próprios resultados. A interpretação é no fundo a
análise dos mecanismos (objectivos e subjectivos) pelos quais uma
probabilidade de comportamento colectivo - essa mesma que foi
revelada pelo tratamento dos dados - se encarna nos comportamentos
individuais numa dada época e o estudo da transformação desses
mecanismos. A interpretação consiste portanto em ultrapassar o nível

97
A OFIOINA DA HISTORIA

dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade


histórica. Exige geralmente dados adicionais, pertencentes a um campo
diferente, e que nem estão forçosamente disponíveis, nem são forçosa-
mente claros. Geralmente acarreta hipóteses não verificadas, ou não
verificáveis.
Por isso, o problema colocado pela evolução recente da história,
e em particular pela utilização de procedimentos rigorosos de demons-
tração, não é saber se a história como tal pode tornar-se ciência: dada
a indeterminação do seu objecto, a resposta a esta pergunta é indubi-
tavelmente negativa. O problema está em conhecer os limites no inte-
rior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma disciplina
que fundamentalmente não é científica. Do facto de esses limites serem
evidentes não se deve deduzir que a história deve regressar à sua fun-
ção antiga de contadora de excelentes aventuras. Devemos antes acei-
tar a redução das ambições pouco razoáveis da história total, para uti-
lizar ao máximo, dentro do nosso conhecimento do passado, as desco-
bertas sectoriais e os métodos de algumas disciplinas, assim como as
hipóteses conceptuais que nascem dessa grande embrulhada contem-
porânea chamada ciências do homem. O preço a pagar, para essa recon-
versão, é o estilhaçar da história em histórias, a renúncia do historiador
a um magistério social. Mas o ganho em conhecimento merece talvez
essas abdicações: a história oscilará provavelmente sempre entre a
arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas; mas
se essas provas forem mais seguras, os conceitos mais explicitados, o
conhecimento ganhará com isso e a arte da narrativa nada perderá.

98
História e etnologia *

A história e a etnologia constituíram-se na época clássica como


disciplinas ao mesmo tempo parentes e contraditórias, mantendo entre
si relações que decorrem de duas categorias-mães, o tempo e o espaço.
São ambas instrumentos da descrição do universo humano; mas a
história efectua o inventário do tempo, e a etnologia o do espaço.
Assim, nas velhas classificações bibliográficas da Europa baconiana,
as narrativas de viagens longínquas fazem parte dos livros de «história»;
constituem uma subcategoria deles, dedicada à descrição dos países
estrangeiros e em particular exóticos. Aliás, trazendo para o leitor os
hábitos de populações remotas, o viajante não procura unicamente
vulgarizar o pitoresco da diferença: traz do espaço contemporâneo
uma imagem do passado. O selvagem é a infância do civilizado. Assim
se encontram reunificadas duas leituras da mesma imagem do homem.
Reunificadas é talvez um termo excessivo. Porque, entre a história
e a etnologia, já existe a espessura do facto nacional, que teve um papel
decisivo na constituição - e na separação - da história como saber.
Tudo começa, neste domínio, com o século XVII e com a secularização
do tempo em relação à velha cronologia apocalíptica das quatro monar-
quias que, segundo a profecia de Daniel, deveriam suceder-se por
fi
;:j
;~
• Comunicação ao seminário internacional realizado em Veneza (2-8 de Abril
de 1971) sob os auspícios da Associação Internacional para a Liberdade da Cultura,
da Fundação Giovanni Agnelli e da Fundação Giorgio Cini.

99
A OFIOINA DA HISTóRIA

ordem de degenerescência crescente, constituindo o Império Romano


um interminável fim da história humana, que sobreviveria a si própria
através do Sacro Império da Cristandade medieval. O legendário vetero-
-testamentário cede perante a pressão humanista, depois a protestante e,
por fim, o desenvolvimento do estado-nação. A filosofia humanista
está demasiado fascinada peJa Antiguidade para poder comportar uma
visão historicista do passado; no entanto, cria pelo menos as suas con-
dições intelectuais ao inventar a erudição, ao criar a distinção entre
as «fábulas» e a história «verdadeira». De qualquer modo, o cisma reli-
gioso baralha o sentido dos textos sagrados e desloca a narrativa das
origens ao mesmo tempo que a previsão do fim. Mas se a decifra-
ção do passado se separa do apocalipse e da Igreja, é porque pode
investir noutro lado, no Estado, o sentido da irreversibilidade e da
obsessão das origens; a laicização da história coincide com o momento
em que ela se encarrega do facto nacional. O fenómeno é nítido no caso
francês, com Jean Bodin, La Popeliniêre, o chanceler Pasquier: é como
rcacção contra o humanismo «italiano», suspeito de um duplo impe-
rialismo romano - Antiguidade e papado - que se constitui a his-
tória galicana dos legistas franceses, preocupados com a justificação
do poder real, nomeadamente contra o extremismo ligueiro 1.
Assim, entre o século XVI e o Século das Luzes, a história - pelo
menos a história profana, cuidadosamente distinguida da história sa-
grada - é antes de mais a das nações, ou seja, dos Estados e dos povos
europeus. Até Voltaire, que procura ultrapassar o quadro desta visão,
tem por referência implícita na sua história universal o Estado de
Luís XIV, ponto culminante da civilização. Os progressos do homem
são marcados pelo estado-nação; a antropologia nascente é reservada
aos grupos elementares.
É igualmente por isso que desde o século XVIII, quando a descri-
ção dos povos «primitivos» se torna uma disciplina mais ou menos
sistemática, se estabelece uma escala de valores única que dignifica

1 Cf. em particular: Kelley, Foundations 01 Modern Historical Scholarship,


Columbia University Press, 1970; Huppert, The Idea 01 Perfect History, Univ. of
Illinois Press, 1970 (trad, francesa: L'Idée de l'histoire parfaite, Flammarion, 1973).

100
l
A HISTóRIA) HOJE

o estudo do tempo em detrimento da viagem. As sociedades nacionais


exploradas pelo historiador são o dever-ser dos grupos descritos pelo
viajante.
O século XIX agravou provavelmente o carácter antagonista das duas
disciplinas, apagando-Ihes o carácter complementar. A linha imaginária
que juntava, através do tempo e do espaço, duas figuras universais, o
homem-criança e o homem-adulto, a sociedade primitiva e a sociedade
civilizada, quebrou-se no incompreensível e no singular: o estado-
-nação deixou de ser a imagem de uma promoção colectiva da humani-
dade para se tomar o lugar por excelência do antagonismo e da diferença.
Por outro lado, a história já não é só sustentada por um quadro de refe-
rência que situa as etapas do desenvolvimento humano, mas rasgada
por relações de força em permanente transformação e por justificações
antagónicas. A ideologia do progresso, que extrapola rapidamente de
mais para o conjunto das actividades humanas dos ritmos extraordiná-
rios das mutações económicas, faz do tempo uma espécie de deriva
indefinida, submetida à sobrevalorização dos nacionalismos: o pro-
gresso é um meio e uma aposta do poderio em que se alimenta o con-
fronto das histórias nacionais. A história então já só diz respeito a
algumas nações, as que produzem, as que modificam - em resumo, as
que contam. O resto do espaço humano é assim abandonado ao não-
-ser histórico, e a viagem perde: aliás com isso o seu estatuto bibliográ-
fico e científico. A etnologia desenvolve-se então como um saber re-
sidual, definido negativamente em relação à história da Europa
ocidental e da América do Norte. Que é ao mesmo tempo subordinada
e secundária, subproduto mal definido da expansão europeia, mistura
de cegueira e de má consciência, tudo isso se poderia ler não só nos
grandes economistas ou historiadores liberais do século XIX como atra-
vés do extraordinário eurocentrismo de Marx. Como o historiador
transformou a excepção em modelo, a etnologia reina sobre um reverso
da história, ao mesmo tempo imenso e marginal; é o domínio doravante
separado do não-escrito contra o escrito, do imóvel contra a mudança,
do primitivo contra o progresso.
Esta dicotomia ainda a vivemos, mas de maneira cada vez mais
desconfortável. É que foi seriamente posta à prova por uma dupla

101
A OFICINA DA HISTÓRIA

série de acontecimentos contemporâneos, uns de natureza externa e


outros ligados à evolução das ciências sociais.
1. Muitos acontecimentos importantes da história contempo-
rânea puseram em causa a ideia de progresso. Nem o apocalipse
hitleriano, nem a transformação da Revolução Russa em Terror buro-
crático e ideológico se integram facilmente numa marcha da humanidade
em direcção ao advir da racionalidade ou da liberdade. O mundo de
hoje, ao mesmo tempo que desenvolve a um ritmo ainda inédito o pode-
rio humano sobre a natureza, multiplica os problemas insolúveis, os
impasses históricos, as manifestações da violência social; o progresso
técnico e económico abre o seu caminho por entre a irracionalidade
política e a desordem planetária, lançando assim um desafio à ideia
de uma história global, cujos níveis evoluíram todos ao mesmo ritmo
e segundo uma temporalidade única. Deste ponto de vista, dois fenó-
menos desempenham provavelmente um papel fundamental na disso-
lução da oposição tradicional entre etnologia e história: o espaço
humano tomou-se homogéneo no momento em que o tempo deixou
de o ser.
O espaço humano não é só explorado, inventariado, fechado. Foi
o domínio, nos últimos decénios, nomeadamente através da descoloni-
zação, da irresistível extensão do modelo político europeu, ou seja,
da apropriação nacional. Ei-lo portanto promovido por inteiro, como a
Europa, à dignidade das histórias nacionais; os países daquilo a que
chamamos, em função de critérios económicos, o Terceiro Mundo estão
todos entregues à febril exaltação das suas origens, em que procuram
uma definição de si próprios. É que deixaram de pensar a sua diferença
em termos de espaço, para a valorizar em termos de história. O próprio
Ocidente, quando procura resistir à difusão intelectual das suas verti-
gens, já só tem por fronteira distinta a da história económica, por exem-
plo o arranque econômico de Rostow; modo dissimulado, talvez, de
se apresentar como exemplo, através da construção de um esquema
linear no qual a sociedade «pós-industrial» constitui o horizonte da
humanidade; pelo menos esta, por este meio, volta a ser reintegrada
na história.
O espaço é portanto historizado; mas é-o à custa de uma segmenta-
ção do tempo. Com efeito, à medida que vai integrando toda a humani-

102

~ ...
A HISTaRIA, HOJE

dade e se toma menos eurocêntrica, a história tem de encarar o desafio


etnológico da pluralidade das sociedades e das culturas, que decompõe
a ideia de um tempo homogéneo: não apenas as sociedades não evo-
luem a um mesmo ritmo, como no interior de cada uma dessas sociedades
os diferentes níveis de realidade que a constituem não obedecem a uma
temporalidade global e homogénea, A «mudança» tomou-se um con-
ceito mensurável em termos económicos, nos seus vários aspectos; mas
descobre ao mesmo tempo as resistências à mudança. O «arranque»,
a «modernização», a universalização do progresso material e do cres-
cimento económico são pensados como o sentido fundamental da
história contempôranea; mas esbarram nas tradições, nas heranças,
no conjunto das inércias socioculturais. Assim, a história, estendendo-se
ao mundo humano, descobre que é igualmente não-história; a mudança
revela o imóvel. A grande história do século XIX, ao mesmo tempo
manchesteriana e marxista, feita de um progresso global carreado
pelo desenvolvimento económico, está assim duplamente comprometida,
ao mesmo tempo por crises do nosso mundo contemporâneo e pela
inserção das suas hipóteses em espaços não europeus. Não é de admirar,
portanto, que, ao mesmo tempo que procura desesperadamente salvar
o seu imperialismo como exportadora da «modernização», regresse
à etnologia como consciente dos seus fracassos.
2. Uma segunda série de modificações das relações entre história
e etnologia, provavelmente menos visível, inscreve-se no interior da
própria história e da sua evolução como disciplina, nestes últimos
trinta ou quarenta anos. Estou a falar daquilo que em França se chama,
utilizando-se um termo aliás vago e negativo, a substituição da histó-
ria «não evenemencial» pela história «evenemencial»,
Procuremos explicitar estes termos subtraindo-os a uma polémica
inútil. A história «evenemenciab parece-me ser ao mesmo tempo um
tipo de descrição do passado e um tipo de selecção dos factos. Feita
da vontade de reconstituir «aquilo que aconteceu» e de o contar em
seguida pela narrativa, escolhe os seus materiais em função dessas ambi-
ções; o que significa que os famosos «acontecimentos» são seleccionados
e organizados no eixo do tempo de modo que alimentem a progressão
de uma narrativa. O acontecimento, então, inclui a mutação, e a cadeia
de acontecimentos encarrega-se de dar sentido à sucessão das mutações.

103
A OFICINA DA HISTóRIA

É por isso que este tipo de história é marcado ao mesmo tempo, e con-
traditoriamente, pelo curto prazo e pela teleologia; como o aconteci-
mento, irrupção brusca do único e do novo no encadeamento do tempo,
não pode ser comparado com nenhum antecedente, o único meio de
o integrar na história é dar-lhe uma finalidade. E como a história se
desenvolveu como modo de interiorização e de conceptualização do
sentimento do progresso, o «acontecimento» constitui a maior parte
das vezes a etapa de um advento: República, liberdade, democracia,
razão. O «facto» histórico que por excelência constitui, apesar de ser
reconstituído com inesgotável paciência e regras de erudição muito
restritas, continua a retirar o seu sentido apenas de uma história global
definida exteriormente e independentemente dele. O tempo dessa histó-
ria é feito de uma série de descontinuidades descritas sobre o modo do
contínuo: a matéria clássica de uma narrativa. .
A história «não evenemencial» recusa a narrativa - pelo menos
esse tipo literário de narrativa - na medida em que define antes de tudo
problemas. Vivendo de empréstimos às ciências sociais contempo-
râneas - demografia, geografia, sociologia, etc. -, renovou a curiosi-
dade histórica, especificando-a. O seu primeiro movimento consiste em
decompor os vários níveis da realidade histórica para reter apenas alguns
deles, ou um só, e descrevê-lots) o mais sistematicamente possível, ou
seja, isoladamente. Por isso constrói «factos» históricos duplamente
diferentes dos da história «evenemencial»: estranhos, na maioria dos
casos, ao campo clássico das grandes mutações políticas e já não defi-
nidos pelo seu carácter único, mas pelo seu valor comparativo com
os que o antecedem e os que lhe sucedem. O «facto» já não é o aconte-
cimento escolhido porque marca os tempos fortes de uma história cujo
«sentido» foi provavelmente constituído, mas sim um fenómeno selec-
cionado e construído em função do seu carácter repetitivo, e portanto
comparável num dado lapso de tempo. O documento, os «factos» já
não existem por si, mas em relação à série que os antecede e lhes sucede;
é o seu valor relativo que se torna objectivo, e não a sua relação com
uma incompreensível substância «real». Daí que a história renove as
suas curiosidades e os seus métodos. Os corpus históricos são, por
definição, de natureza tão diversa que o historiador pode reconstruí-I os
segundo as suas preferências ou competências, tratá-los como econo-

104
 HIBTORIÂ, HOJE

mista, como demógrafo, como sociólogo, como etnólogo ou como


linguista.
Mas não há metodologia inocente. Ao fazê-lo, o historiador
modifica a natureza dos problemas tradicionalmente tratados pela sua
disciplina. O único, o não-comparável escapam a uma metodologia
deste tipo, e o especialista da biografia intelectual não irá encontrar aí
o que lhe interessa. Tão-pouco o historiador da Antiguidade que tem
e terá sempre falta de séries de dados indispensáveis a um tratamento
quantitativo sistemático. Mas há mais: a história feita a partir de dados
seriais privilegia um tipo de fontes, um tipo de problemas e sobretudo
um tipo de tempo. As fontes devem ser, se não numéricas, pelo menos
redutíveis a unidades homogéneas e comparáveis, o que restringe e
estende ao mesmo tempo o seu campo; de facto, se o «apax» já não é
utilizável, uma parte da imensa «reserva» do não-escrito, da qual o
historiador fez até agora um uso tão tímido, pode pelo contrário ser
organizada em séries; com essa relação, dados iconográficos, fotogra-
fias de campos de cultura podem constituir material histórico mais
importante do que a eterna literatura da eterna testemunha É igual-
mente natural que esse tipo de fontes sirva de suporte a investigações
ou a hipóteses de um tipo mais económico, ou ainda etnológico, do que
propriamente político, porquanto inclui implicitamente a igualização
dos indivíduos no seu papel de agentes económicos e socioculturais.
Assim se encontraram, aliás, em virtude de um mal-entendido, a história
que se queria mais «científica», mais liberta do juízo de valor, e a his-
tória que se queria mais «democrática», no seu desejo de reabilitar o
«zé-ninguém» anónimo, esmagado pelos grandes heróis da política
e, no entanto, condição da existência deles.
Por último, esta história serial é uma história do longo prazo.
Fernand Braudel já o mostrou melhor do que ninguém, nos seus livros
e num artigo agora clássico. Constituída pela descrição de repetições
e de regularidades, ela só tem interesse se trouxer à luz do dia evoluções
suficientemente longas para que essas repetições, ou essas regularidades,
desenhem movimentos e amplitudes. Será o crescimento da economia
agrícola dos dois primeiros terços do século XVI, que se pode verificar
com a ajuda de vários indicadores, uma tendência decisiva de arranque
económico ou uma simples recuperação da imensa crise que marcou

105
A OFICINA DA HI8T(jRIA

o período de 1350 a 1450? Só a análise de uma duração mais longa, para


montante e para jusante, permite responder à pergunta. Deste modo,
a selecção de indicadores idênticos num longo período de tempo oferece
ao historiador os meios para definir os contornos das diferentes tempo-
ralidades, das crises curtas, das recessões mais longas, dos ciclos e das
tendências e para os integrar numa interpretação geral. Mas privilegia
ao mesmo tempo os elementos de conservação de um dado sistema,
em detrimento de factores de mutação qualitativa. Nesta escola, o
historiador redescobre as longas permanências económicas, as inér-
cias sociais e culturais que caracterizaram durante muito tempo as socie-
dades do etnólogo; também ele tem, segundo as palavras de Lévi-
-Strauss, as suas «sociedades frias».
Podemos imaginar um inventário em parte duplo da história pela
etnologia. A primeira coluna diria respeito à transformação dos métodos
da história, como o recurso sistemático às fontes não escritas, a utili-
zação crescente, no interior do escrito, de documentos estatísticos ou
pré-estatísticos, ou a análise textual de tipo «estrutural» (sendo o modelo
fornecido pela psicanálise, pela linguística ou pela análise de conteúdo,
por exemplo). A segunda coluna recensearia os novos objectos histó-
ricos, elaborados no seguimento da vasta deslocação de interesse que
foi descrita: o homem anónimo em vez do grande homem, o não-desen-
volvimento em lugar apenas da transformação, as formas elementares
da vida cultural substituindo o testemunho da «grande» literatura, etc.
A lista cobriria, de facto, uma grande parte da historiografia contem-
porânea, em França e fora dela.
Na verdade, a linha que separa história e etnologia nunca teve
critérios epistemológicos; fundamentada muito mais nas condições
externas do desenvolvimento dos dois saberes, e depois numa espécie
de costume, que separava os dois campos académicos, apaga-se hoje
como tantas outras em proveito de uma configuração que já não é
mais fácil de definir do que as disciplinas de ontem.

106

_._- -- ----------- ...J


A história na cultura clássica
l
"
v :

o nascimento da história *

Uma dupla tradição

Se a história não existe no ensino, e portanto como disciplina


escolar, na época clássica, é simplesmente porque não existe como dis-
ciplina. Está dividida em duas actividades intelectuais que se ignoram
quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia. A primeira
está nas mãos dos antiquarii, que os antigos textos franceses também
chamam de antiquários: ou seja, especialistas do antigo, e natural-
mente da Antiguidade, escondidos por detrás de conhecimentos estrei-
tos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas. É desta
tradição que nos vem, não a história, como a entende o século XIX,
mas o facto histórico, tal como deve ser estabelecido como material
constitutivo da história.
Velha tradição, que remonta ao Renascimento, e que, na sua ori-
gem, não é uma tradição crítica t. Não toca nos textos sagrados. Se diz
respeito à Antiguidade greco-romana, na qual a Europa do século XVI
procura apaixonadamente uma nova identidade, não é porque queira
reescrever a história: essa história já foi escrita pelos Antigos, e quem

• H - Histoire, n." 1, Março de 1979, Hachette.


1 A melhor exposição desta questão é a de A. Momigliano: «Ancient Hís-
tory and the Antiquarian», in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Lon-
dres, vol. 13, 1950. pp. 285-315.

109

~.'
A OFICINA DA HISTÓRIA

faria melhor do que Tucídides, Tito Lívio ou Tácito? Os «modernos»


limitam-se a comentar os historiadores antigos, a trabalhar nas suas
margens: a isto se consagram as «belas-letras». Ou então, quando querem
escapar a este jogo de espelhos, escrevem «antiguidades», e não «his-
tórias» romanas (ou gregas). Mas essas «antiguidades» são também
duplamente marginais em relação à via real da história: descrevem
fontes não literárias, exumam partes de monumentos, moedas, pedras,
inscrições, vestígios aleatórios de um irremediável naufrágio. Alimen-
tam comentários e estudos que não são verdadeiramente história,
visto que dizem respeito a costumes, instituições, arte, e a história é
feita da análise cronológica dos regimes e dos governos.
Assim, o antiquário não é um historiador. Mas na segunda metade
do século XVII, no momento em que vacila a ideia de que existe uma
história universal no interior da qual cada história foi escrita de uma
vez por todas, o antiquário toma-se um crítico da história. O campo da
sua «arte» (a ars antiquaria) estende-se para lá da Antiguidade clássica
e alcança a Antiguidade sagrada, por exemplo. Sobretudo emancipa-se
da espécie de tutela que sobre ele exercia a historiografia antiga, o
modelo dos Antigos. O antiquário nem sempre é um historiador. Mas
visto que o passado não foi fixado eternamente por Tito Lívio ou Plu-
tarco, ele pode escrever história.
O que significa que os materiais que exuma e classifica deixaram
de ser marginais: representam, tal como as fontes literárias, elementos
constitutivos da história. E as próprias fontes literárias tomaram-se
objecto da crítica erudita. A filosofia não serve apenas para os
restituir, mas para os discutir. E as moedas, as inscrições, os fragmentos
de arcos e colunatas permitem cotejar-lhes as informações. A crítica
interna e externa do documento nasce com a integração dos diferentes
tipos de fontes numa busca do verdadeiro.
Deste modo, a segunda metade do século XVII não inventa a his-
tória. Retrabalha os seus materiais e, ao fazê-lo, desloca as suas linhas
que pareciam fixadas para sempre. Bossuet ainda escreve uma His-
tória Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na cro-
nologia sagrada a história profana dos povos antigos da qual as desco-
bertas dos «antiquários» alargam doravante os limites. A própria
história sagrada, esse bloco intangível, imóvel no fluxo indefinido

110
,
r
I A HISTóRIA NA OULTURA OLÁBSIOA

do tempo, é reexaminada pelos cronologistas modernos. O oratoriano


Ríchard Simon publica, em 1678, uma História Crítica do Antigo Tes-
tamento, que lhe custa a exclusão da ordem.
No entanto, é a própria Igreja que dá o exemplo da investigação
erudita, mesmo que não controle sempre o seu desenvolvimento. Não
só é apanhada no espírito do tempo, como ainda se vê obrigada, por
necessidade da controvérsia antiprotestante, a inventariar e exaltar o
o conjunto da tradição cristã: e em primeiro lugar esses seis primeiros
séculos que constituem a Antiguidade cristã e que dão a interpretação
fundamental da Escritura. A erudição eclesiástica diz antes de tudo
respeito aos Padres da Igreja. Floresce em Port-Royal, sobretudo atra-
vés da obra de Tillemont. Vai encontrar o seu centro nos beneditinos
de Saint-Maur que, mais de um século antes da historiografia alemã,
estabelecem os cânones da crítica histórica.
A arte do antiquário culmina assim, no fim do século, na empresa
sistemática dos monges de Saint-Germain-des-Prés para distinguir o
verdadeiro, o verosímil e o falso. De acordo com a divisa de Mabillon:
«A verdadeira piedade só gosta daquilo que se funda na verdade», a
investigação histórica moderna nasceu da aplicação dos processos da
razão crítica à exploração da Antiguidade cristã; assim, a Antiguidade
pagã, que não se pode separar dela neste aspecto, porque está incluída
na mesma cronologia, é susceptível do mesmo tratamento.
Mas se a divisão canónica entre história sagrada e história profana
tende a desaparecer por esta razão, a própria história continua a dis-
tinguir-se da investigação histórica. Constitui um género literário, do
qual uma das regras é precisamente excluir qualquer referência ao apa-
relho crítico e às «provas». Os antiquários publicam cronologias,
«anais», «compilações», «memórias»; a história é uma narrativa con-
tinuada, que não se incomoda com originais e que apresenta ao mesmo
tempo uma lição de moral e uma forma regular e ornamentada. A his-
tória perdeu a sua rigidez de conteúdo, mas conserva todas as suas regras
estéticas e morais. É um trabalho de escritor.
Quando Tillemont quis publicar aquilo que serão as suas Mémoires
pour servir à l'histoire ecclésiastique, hesitou no título que daria ao seu
trabalho. Se escolheu «mémoires», foi porque nelas utiliza um método
de exposição que é o dos antiquários: «Parece o mais sólido e o mais

111

.~
A OFICINA DA HISTóRIA

seguro. É como apresentar peças de um processo; ao leitor caberá


escolher. Mas este método obriga a uma grande extensão e a repetições
frequentes[...]. É mais a matéria da história do que a própria história.»
No entanto, o mesmo autor aceitou o termo «história» para a parte
profana da sua obra, publicando três anos antes, em 1640, a Histoire
des empereurs, com um título que merece ser citado por inteiro: His-
tória dos imperadores e dos outros príncipes que reinaram durante os seis
primeiros séculos da Igreja, das perseguições que fizeram aos cristãos,
das suas guerras contra os judeus, dos escritores profanos e das mais ilus-
tres pessoas do seu tempo, justificada por citações dos autores originais,
com notas para esclarecer as principais dificuldades da história. Deste
modo, Tillemont mescla, e é um dos primeiros a fazê-Ia, história e
erudição. Mas como se desculpa por isso na sua advertência! Escute-
mo-Io, para poder avaliar a tirania dos «géneros» na época clássica:
«Hesitou-se durante muito tempo em dar a esta obra o título de memó-
rias, mas é certamente o que mais lhe convém, seja pelo modo como se
compõe, seja pela visão com que foi empreendida. Ainda se pensou no
de anais, porque, na realidade, nela se segue tanto quanto possível
a ordem dos tempos e quase sempre está dividida por anos; para além
de que parece que um estilo sem elevação nem ornamento, como aqui
se encontrará, convém melhor a anais do que a uma história. No entanto,
o título de história prevaleceu, como aquele em relação ao qual se é
menos obrigado a dar razões, por ser o mais comum e porque qualquer
narrativa é de certo modo uma história. Mas pede-se aos leitores que
não o tomem senão nesse sentido e que não esperem encontrar aqui
uma história regular. Nunca o autor teve a intenção de fazer uma história
desse tipo e gostaria que se soubesse que sempre viu essa intenção como
muito difícil em si e extremamente acima do talento e das luzes que
pode ter-.»

2 B. Neveu, Un Historien à Pécole de Port-Royal. Sébastien Le Nain de Ti/le-


mont 1637-1698, Haia, 1966, pp. 182-185.

112
1
!

A Hl8TóRIA NA OULTURA CLA88IOA

o século XVIII: um ensino impossível

Poderia, no entanto, inferir-se desses protestos tão modestos que o


fosso entre historiadores e antiquários está a fechar-se. Pelo contrário,
o século XVIII francês vai abri-lo ainda mais, pondo em moda a «his-
tória filosófica» cada vez mais afastada da investigação dos antiquá-
rios, que desdenha.
Na realidade, são os próprios progressos desta investigação que
se viram contra ela, à passagem do século XVII para o século XVIII.
Pelo facto de haver criticado uma parte das crenças históricas tradi-
cionais, de ter, por exemplo, destruído milagres, diminuído o número
dos mártires cristãos, remodelado a cronologia bíblica, o individualismo
racionalista atrai uma dúvida sistemática sobre o próprio facto histó-
rico. Bayle dedica um Dicionário inteiro, de A a Z, à destruição dos
fundamentos históricos das crenças religiosas, mas deixa o indivíduo
racional apenas com incertezas. Fontenelle constata simplesmente a
impossibilidade de uma história verdadeira: «Acostumaram-nos com
tanto apego durante a nossa infância às fábulas dos Gregos que, quando
estamos em idade de raciocinar, já não as achamos tão admiráveis
como o são. Mas se acabarmos por nos desfazer dos jogos do hábito,
não podemos deixar de nos apavorar ao ver toda a história antiga de
um povo que é apenas um acervo de quimeras, de sonhos e de absurdos.
Será possível que se tenha dado tudo aquilo por verdadeiro? Com que
fim no-lo teriam dado por falso? Qual teria sido esse amor dos homens
pelas falsidades manifestas e ridículas e porque não duraria ainda?»
Mas sobretudo este derrotismo histórico é feito de uma obsessão
do moderno, ou seja, do presente. As elites europeias viveram, desde
o Renascimento, com uma identidade retirada da Antiguidade, cujos
artistas e autores constituíam inultrapassáveis modelos e cujos géneros
literários formavam as molduras obrigatórias do belo e do verdadeiro.
Ora, eis que a Europa põe a questão da sua autonomia cultural: a
querela académica dos Antigos e dos Modernos, na França do fim do
reinado de Luís XIV, exprime no fundo esse pensamento de que a
cultura clássica não é um passado, mas um presente, e a história, não
um recomeço, mas um progresso. Sendo assim, ela também se organiza

113
A OFIOINA DA HIST6RIA

em volta da percepção do presente, o que vai relegar a curiosidade dos


antiquários para a gaveta de um período ultrapassado.
Aliás, os «filósofos» anexaram às suas novas histórias as fontes
e as «provas» não literárias. Ao quebrar a tirania da história política
como a Antiguidade a tinha transmitido e a sucessão dos imperadores,
utilizam a arte, a religião, as instituições: escrevem a história da «civili-
zação». Mas escrevem-na para compreender o seu tempo. Montesquieu
procura na história romana os segredos da estabilidade ou da deca-
dência dos regimes. Voltaire compara o século de Péricles com o de
Luís XIV. O século procura na história dos povos não só o espectáculo
da diversidade das religiões e dos costumes, mas o sentido de um
devir liberto da Sagrada Escritura e indefinidamente aberto ao pro-
gresso.
A história filosófica tem outro pólo conceptual para além dos
progressos da civilização: é a origem da nação. Os Franceses do sé-
culo XVIII procuram na sua história nacional simultaneamente a fonte
do seu «contrato» com o rei e a legitimidade da nobreza. Supõe-se que
as invasões germânicas trouxeram para a Gália romana uma realeza
electiva e uma aristocracia de guerreiros. A polémica em tomo de
Clóvis traduz deste modo, à sua maneira, o drama de uma sociedade em
busca da sua representação. Mas a história de Boulainvilliers, assim
como a de Voltaire, já não tem nada que ver com os «antiquários».
A França do século XVIII não tem nenhum Gibbon. Os filósofos e os
eruditos estão separados por uma linha intransponível, que aliás exalta
os primeiros para atirar os segundos para o gueto da academia das
inscrições. A tradição da investigação crítica e a da grande narrativa
filosófica e literária só irão reconciliar-se com os historiadores da Res-
tauração.
Basta observar um pouco as bibliografias daquela época para
compreender até que ponto a história nelas constitui um género hete-
rogéneo, em plena evolução: as classificações das bibliotecas, por
exemplo, agrupam em nome dela um vasto sector na classificação dos
conhecimentos. A história reúne tudo aquilo que se relaciona com o
saber nas sociedades humanas: como cabeçalho de rubrica episte-
mológica, acumulou todas as contribuições eruditas ou simplesmente
descritivas da cultura europeia desde o Renascimento. Reina sobre

114
A HISTóRIA NA CULTURA CLASSIGA

o conjunto, com a sua divisão canónica, história sagrada-história pro-


fana, a preponderância cultural da Antiguidade, o modelo de narra-
tiva moral à Tito Lívio. Mas subordinou, como subgéneros, não só
as técnicas e as aquisições da ars antiquaria -a cronologia, a diplo-
mática, a arqueologia, etc - mas também o inventário do espaço
- aquilo que não é ainda a geografia, mas as «viagens». Com efeito, as
sociedades não europeias, perdidas na superfície do Mundo, e progres-
sivamente descritas pelos viajantes, testemunham igualmente, à sua
maneira, da história: o «selvagem» é a infância do homem. O espaço
e o tempo oferecem deste modo ângulos complementares para a cons-
tituição de um saber sobre a evolução. E é a partir desta cumplicidade
epistemológica que a geografia vai avançar ao mesmo tempo que a
história, como que ligada a ela, nas futuras reformas do ensino francês.
Mas no século XVIII a indiferenciação do campo histórico é sufi-
ciente para mostrar a que ponto o estudo do passado está longe de ser
uma disciplina escolar: se a história não é ensinada, é porque não está
constituída em matéria ensináve/.
Os dois tipos de actividade intelectual que abrange são demasiado
estranhos um ao outro para formarem um saber homogéneo. Um e
outro são, aliás, pouco talhados para o ensino, mesmo secundário.
A erudição é ao mesmo tempo uma arte demasiado incerta e demasiado
sábia para ser objecto de uma transmissão escolar. É uma ocupação
de gentlemen e de um pequeno mundo de especialistas que discutem os
seus achados longe do público, até do público culto. Será que se ensina
a numismática na escola ou no colégio? A história filosófica, por seu
lado, atrai numerosos leitores, mas constitui um género demasiado
moderno em todos os sentidos da palavra, para não ser, escolarmente,
um produto perigoso. De facto, é demasiado recente, no século XVIII,
para ter criado legitimidade e, por conseguinte, o respeito que envolve
as matérias da aprendizagem escolar. Está sobretudo em contradição
com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não
passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo
de Tito Lívio ou de Tácito. É que os colégios jesuítas são fiéis à sua
carta, que data do fim do século XVI: o modelo antigo constitui neles
a identidade cultural da Europa. Os alunos só aprendem a história
- para além da história sagrada - nas páginas de Cícero.

115
A OFICINA DA HISTORIA

Houve e há excepções a esta regra. As pequenas escolas de Port-


-Royal fizeram da história uma disciplina central, à qual se devia con-
sagrar uma parte do tempo quotidiano. Mas o seu carácter muito
provisório, visto que foram encerradas na altura da perseguição dos
«Messieurs» de Port-Royal por Luís XIV, ao mesmo tempo que estri-
tamente elitista, visto que agrupavam apenas filhos da alta burguesia
jansenista, ilustra mais o carácter excepcional da história do que a sua
presença no ensino. Também os colégios oratorianos tiveram remorsos
de não falar mais dela. E as escolas militares, criadas no terceiro quarto
do século pela monarquia, para formar soldados profissionais, procu-
ravam incluí-Ia no currículo. Mas até à expulsão dos Jesuítas do reino,
em 1762, são os seus colégios que dão o tom ao ensino secundário;
e posto que continuem conservadores nos seus programas e só inte-
grem, por exemplo, o cartesianismo no século XVIII, seria um erro pensar
que são particularmente «reaccionários». As universidades da época
- e antes de tudo a de Paris - são ainda infinitamente mais insen-
síveis às deslocações nos campos do saber. No fim do século XVIII, os
professores de retórica da Faculdade das Artes, em Paris, não vêem o
que é que poderiam modificar nas suas práticas: apontamentos de his-
tória antiga na periferia do sacrossanto discurso latino.
Acontece que a expulsão dos Jesuítas marca o início de um grande
debate de ideias sobre o sistema educativo nacional. Os famosos colé-
gios, abandonados pelos seus mestres, são colocados sob a jurisdição
do Parlamento de Paris, que tem portanto de os preencher com pro-
fessores e ideias novos. Dai o florescer de planos de educação, entre
os quais o mais conhecido é o de La Chalotais, e cujo presidente RoIland
d'Erceville procura fazer a síntese num relatório de 1768. É um pouco
uma desforra jansenista, na medida em que os parlamentares do sé-
culo XVIII nunca aceitaram verdadeiramente a condenação do janse-
nismo por Roma e prezam muito os aspectos políticos do que foi uma
das raras resistências à autoridade absoluta de Luís XIV. É portanto
também uma desforra da história, que estivera em tão grande plano
em Port-Royal. Mas sobretudo os parlamentares tinham detestado
na Companhia de Jesus uma ordem estranha ao reino, totalmente
dependente do papa. Pretendem a partir de então uma educação «na-
cional», controlada pelo Estado. Esta grande nobreza de toga, apaixo-

116
A HIBTIJRIA NA OULTURA CLAB8IOA

nadamente galicana, exprime à sua maneira, e com a sua própria


cultura, o forte surto do sentimento de nacionalidade, enraizado num
passado muito antigo: não é tanto a história que ela deseja ver apa-
recer nos programas escolares, mas a história de França, garante do
contrato original entre a nação e o rei e depositária de uma tradição
imprescritível.
De facto, encontramos aqui e ali, no currículo dos colégios fran-
ceses reorganizados no fim do Antigo Regime um alargamento do ensino
da história. No famoso colégio Louis-Ie-Grand no monte de Sainte-
-Geneviêve, a partir de 1769, existe meia hora obrigatória para a his-
tória nos «dias feriados - domingos e festas». Muitos temas históricos
são propostos como matérias nos «exercícios» dos alunos, esses con-
cursos públicos que se realizavam nos dias sem aulas e que tinham por
finalidade pôr à prova as faculdades de exposição e raciocínio. Em
1772, um exercício do colégio de Arras tem por tema demonstrar que
«só o estudo sobretudo da história de França pode fixar no espírito do
advogado os verdadeiros princípios do nosso governo», Em Lille, a
história de França está incluída no próprio currículo, a partir do ter-
ceiro ano e abrange o estudo da Gália, das invasões germânicas e das
duas primeiras dinastias (Merovíngios e Capetíngios), para no segundo
ano ir até ao século XVI 3.
O melhor exemplo, a este propósito, porque é talvez o mais pre-
coce, é o do famoso colégio de Juilly, vitrina do ensino oratoriano e
frequentado por crianças da alta sociedade do reino. Esses velhos rivais
dos Jesuítas que são os Oratorianos têm como ponto de honra oferecer
à sua clientela um currículo escolar mais «moderno». Já no fim do
século XVII um dos padres recomendava «o grande cuidado, segundo
o uso desta academia, em ensinar o brasão, a geografia, um pouco de
cronologia e a história». Esses diferentes saberes já têm, portanto,
aos seus olhos, um estatuto escolar independente; estão, por outro lado,

3 Retiro estes exemplos de um artigo infelizmente inédito de Louis Trénard,


«L'enseignement de I'histoire en France de 1770 à 1885», que é o texto de uma con-
ferência pronunciada em Junho de 1968 sob a égide da Federação Belga dos Pro-
fessores de História.

117
A OFICINA DA HISTORIA

emancipados da relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade:


ensina-se em Juilly tanto a história nacional como a geografia da Amé-
rica. O ensino da história apresenta, para a época, o carácter distintivo
de ser cronológico e de culminar, digamos assim, na história de França:
passa-se da história sagrada à história de França, através da Antigui-
dade greco-romana, indo dos «mínimos» até aos «grandes». Conserva,
no entanto, um carácter relativamente marginal, visto que não faz
parte dos programas regulares das aulas. É dispensado nas «câmaras»,
ou seja, nas salas onde os vários grupos de alunos vivem e estudam
(Juilly é um colégio interno), fora das aulas oficiais. Também faz parte
dos «exercícios» públicos nos dias feriados, às quintas-feiras e aos
domingos, mas são exercícios obrigatórios; parece, aliás, que têm um
grande sucesso entre os alunos no século xvm+,
Estes exemplos, que se poderiam multiplicar, mas não indefini-
damente, mostram que o ensino da história avança a pouco e pouco,
no fim do Antigo Regime, ao nível do ensino secundário, e tende pro-
gressivamente a quebrar a dupla tirania da história sagrada e da Anti-
guidade clássica. Mas a evolução é lenta, e os progressos tímidos:
como disciplina ensinável, a história é a maior parte das vezes um passa-
geiro clandestino dos programas oficiais, oferece mais temas para disser-
tações do que matéria que se baste a si própria; não existe no ensino
elementar, mesmo no mais avançado da época, o dos irmãos das esco-
las cristãs. No outro extremo do sistema educativo, até o alto ensino
parisiense, quero dizer o Collêge de France, quase especializado na
inovação visto que foi criado, no século XVI, para contrabalançar a
inércia da Sorbonne, não tem ainda no século XVIII uma cadeira de
história especializada. Surge apenas um ensino intitulado «História
e Moral», que vai sobreviver no século XIX na sexta categoria do car-
taz: «Ciências Morais e Políticas», e ao lado do «Direito da Natureza
e das Pessoas», da «História das Legislações Comparadas», da «Econo-
mia Política». A história encontra-se emancipada da tirania das línguas

4 Tiro estas informações sobre o colégio de Juil1y de uma tese muito recente
(1978), ainda inédita, de Etienne Broglin: De T'Académie royale à t'instttution, le
Collêge de Juilly, 1745-1828.

118
r ,
A HISTóRIA NA OULTURA OLASSIOA

antigas (que formam a segunda categoria de cadeiras). Mas continua


como história filosófica, separada da erudição. A contribuição indirecta,
e de certo modo negativa, do Collêge de France na especificação da
disciplina passa sobretudo pela definição de áreas culturais específicas,
progressivamente separadas do tronco comum da história, porquanto
são marginais em relação à experiência europeia, como a sinologia.
Assim, o contraste entre a efervescência reformadora a propósito
da modernização dos estudos e a lentidão da evolução pedagógica mostra
que haveria um certo perigo em confundir história das ideias sobre
educação com história da educação propriamente dita: as duas ordens
de factos não obedecem aos mesmos ritmos, não possuem as mesmas
cronologias; é também verdade que não deparam com as mesmas inér-
cias.

A Revolução: ruptura e continuidade

Esta observação aplica-se muito especialmente ao período da Revo-


lução Francesa. Na verdade, a Revolução legislou muito mais sobre
a educação nacional do que transformou duradouramente as institui-
ções de ensino: o que é facilmente explicável tanto pela brevidade cro-
nológica do período revolucionário como pela ilusão, precisamente
típica da época, de uma renovação completa dos homens e das coisas.
Na realidade, a escola secundária sai praticamente impoluta do colapso
aparentemente universal das instituições, e nada é mais parecido com
um colégio do Antigo Regime do que um liceu imperial. A história, em
particular, continua a ser neles apenas um complemento dos estudos
clássicos e da aprendizagem do latim.
Vale a pena, no entanto, deitar uma olhada pela legislação revolu-
cionária para medir a evolução das mentalidades e as aspirações das
novas elites políticas. A Constituinte esperou pelos últimos dias da
sua existência (Setembro de 1791) para ouvir um vasto relatório de
Talleyrand sobre a educação. O bispo retoma as ideias dos parlamentares
do fim do Antigo Regime: enquanto conserva a ossatura do currículo
secundário clássico (gramática, humanidades, retórica, lógica), intro-
duz a história e a geografia. Condorcet, que o substitui durante a Legis-

119
A 01l'IOIN~ DA HISTóRIA

lativa, e, por seu lado, um herdeiro directo dos homens da Enciclopédia;


é um espírito extenso e profundo, um matemático e filósofo, atormen-
tado pela separação dos conhecimentos em disciplinas e pela unidade
do saber humano. Constrói um projecto de uma ambição bem dife-
rente, que consiste em reorganizar todo o ensino nacional em função
de uma classificação «filosófica» dos conhecimentos, de modo a situá-Io
na vanguarda da inovação intelectual. Logo a partir do ensino secun-
dário, os alunos deverão abordar «os elementos de todos os conheci-
mentos humanos», repartidos em quatro grupos: ciências matemáticas
e físicas, ciências morais e políticas, aplicações das ciências às artes
(por exemplo, a anatomia comparada, os partos, a arte militar, os
princípios das artes e ofícios), finalmente a literatura e as belas-artes
(nas quais vamos encontrar, reduzidas à sua parte congruente, as huma-
nidades dos antigos colégios). A história encontra-se portanto abran-
gida pelas «ciências morais e políticas», que para além disso agrupam
a análise das sensações e das ideias, a moral, o direito natural, a ciência
social, a economia política, o direito público, a legislação. É exactamente
aquilo que os homens do século XVIII tinham baptizado de «história
filosófica»: uma reflexão sobre a evolução dos povos e das civilizações,
um estudo do passado indispensável para a análise do progresso da
humanidade nas vias da razão. É acompanhada pela cronologia e pela
geografia, decifrações complementares do tempo e do espaço.
De Condorcet, pode-se passar a Lakanal>, porque os debates
dedicados à educação durante o período montagnard são obcecados
pelo aspecto puramente político da questão, e de resto não acrescentam
nada de interessante.
Foi depois do 9 Termidor que a sociedade política revolucionária
retoma os seus direitos durante uns tempos abandonados ao Comité
de Salvação Pública. A lei de Frimário ano Hl (Dezembro de 1794),
revogada por Lakanal, institui dois graus de ensino, as escolas pri-

S Podem encontrar-se os principais discursos dedicados pelos autores das assem-


bleias revolucionárias às questões da educação nacional em: C. Hippeau, L'Instruc-
tion publique en Franee pendant Ia Révolution, 1881. Para uma informação mais
ampla, ver: J. Guillaume, Procês-verbaux du Comité d'Instruction Publique de Ia
Convention nationa/e, 6 vols., Imp. Nat.

120
1

A HIBT6RIA NA OULTURA OLA.BBIOA

márias, para todos, e as escolas centrais, para instruir a elite da nação.


Essas escolas centrais, que são ao mesmo tempo secundárias e supe-
riores, rompem com o sistema das aulas ordenadas desde O 1.° ano
até à filosofia, por grupos de níveis. Instituem um sistema de cursos
paralelos, destinados a cobrir a totalidade dos conhecimentos, e no
interior dos quais os alunos podem circular com toda a liberdade. Das
catorze cadeiras que uma escola reúne e que reconstituem a enciclopédia
dos conhecimentos de Condorcet, revista pelos ideólogos, uma delas
é dedicada à «história filosófica dos povos». Nos anos seguintes, os
termidorianos, desejosos de estabelecer novamente um nível superior
de ensino, sob a forma de escolas especiais, organizadas em tomo de
determinada disciplina, imaginam que algumas seriam consagradas à
história, reunindo a legislação, a economia política, a filosofia, a crítica
e as antiguidades.
Assim, a Revolução fez triunfar, antes e depois da ditadura de
Robespierre, a concepção da história que tinha sido a dos enciclo-
pedistas, sistematizada por Condillac e Condorcet. Trata-se no fundo
de fazer da história um dos terrenos privilegiados de demonstração
do sentido da existência social. A história filosófica é um «discurso sobre
a história universal» laicizado. A questão que se põe é a de compreender
porque é que essa burguesia revolucionária, que tantas energias e senti-
mentos patrióticos investiu na guerra com a Europa, não manifestou
mais gosto pela tradição parlamentar e legista da história nacional, tão
forte no fim do Antigo Regime. Para isto vejo várias séries de razões.
Umas de ordem epistemológica: a história pertence, tanto para Con-
dorcet como para os outros ideólogos, ao domínio do raciocínio cientí-
fico, e a exaltação da particularidade nacional não se enquadra bem
com uma visão científica do universo, no interior da qual essa particu-
laridade forma uma espécie de resíduo irredutível. Por outro lado, no
plano da ideologia política, os revolucionários franceses também não
se pensaram no interior de um quadro estritamente nacional: comba-
tendo pela liberdade e pela igualdade, a França jacobina e termidoriana
constitui uma vanguarda da própria humanidade. Mesmo quando os
seus exércitos espoliam os países conquistados, a França revolucionária
nunca abdica do universal democrático. Por fim, e talvez sobretudo,
para que lhe servia esse interminável passado nacional, que pertence

121
A OFICINA DA HISTóRIA

à monarquia e à feudalidade? Só esteve durante muito pouco tempo


ligada à restauração de uma idade de outro entre a monarquia e a nação;
todas as ideais de um contrato popular, de direitos originais e de uma
constituição primitiva desaparecem logo que se mostra e dá a conhecer
aquilo que é: é ela que é a origem, que constitui o contrato e a constitui-
ção primitiva, e que funda a história nacional arrancando os Franceses
do seu passado. Visto que corta a nossa história ao meio, porquê narrar
a sua parte maldita, que pertence aos inimigos? Mas a outra parte é
demasiado curta para formar um passado; é apenas a celebração de uma
origem.
Para os revolucionários franceses, a história não é portanto uma
genealogia, como o vai ser para as ideologias nacionalistas do século XIX.
Constitui um quadro universal de referências em relação ao qual se
revela a excelência e a racionalidade suprema da experiência francesa.
É o laboratório de uma ciência social que tem a seu cargo organizar
os materiais, e não um saber constituído como tal em volta do estudo
cronológico dos anais da nação. Daí que a Revolução Francesa não
legue às gerações que lhe sucedem nenhum corpo doutrinário dura-
douro sobre a história. A ideia de uma «ciência social» vai continuar
a viver graças a Saint-Simon e a Auguste Comte, mas como corrente
marginal, ilegítima, suspeita, da nossa cultura; o conceito enciclopédico
começa a tornar-se antiquado já no tempo do Directório e nunca pas-
sou para o ensino. Quanto à história nacional, que vai representar o
terreno por excelência da constituição da disciplina e da legitimidade
escolar, a Revolução Francesa fez dela um campo de guerra civil inte-
lectual. Os Franceses do século XIX são esse povo que só pode prezar
metade da sua história; não pode amar a Revolução sem detestar o
Antigo Regime e amar o Antigo Regime sem detestar a Revolução.

A Constituição de uma disciplina

A história torna-se assim um problema e uma aposta escolar


tanto mais agudos quanto a sua linha de desenvolvimento, como saber
e como disciplina, vai ser a genealogia da nação e, por isso, se torna
cada vez menos ensinável à generalidade dos Franceses. O Primeiro

122
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSICA

Império pôde ignorar a questão e reinstaurar o estudo da história como


um simples anexo do latim: essa «colocação entre parêntesis» indica
a vontade e a capacidade de amnésia do regime imperial, mas não é
uma solução duradoura. Na mesma época em que a Restauração traz
de volta ao poder, com Luís XVIII e os emigrados, as imagens concretas
do passado, a história recebe a consagração de disciplina instituída,
ao mesmo tempo no ensino e na nossa vida intelectual. Guizot, quase
meio século depois de Gibbon (que traduz para francês), funde a tra-
dição dos historiadores com a dos antiquários, ao mesmo tempo que
reconcilia história nacional e história da civilização. A «filosofia» fora
o tribunal do século XVIII. A história torna-se o magistério do século XIX.
Mas, ao certo, que história? A Restauração, que é o primeiro regime
a estabelecer um ensino sistematicamente cronológico dela, procura
recuperar a sua própria genealogia, a da tradição monárquica. Um texto
de 1814, preparado por Royer-Collard, por conseguinte de inspiração
constitucional e moderada, divide o ensino da história em fatias crono-
lógicas para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no pri-
meiro ano, Egipto e Grécia no segundo, Roma (até ao Império) no
terceiro, de Augusto a CarIos Magno no quarto, a Idade Média no
quinto, Tempos Modernos e história de França no sexto. É uma tentativa
de síntese entre o antigo ensino, baseado na história sagrada e na Anti-
guidade, e as exigências de uma cronologia laicizada, mais moderna
e mais «nacional». O espírito do programa consiste em sublinhar a
dupla tradição católica e dinástica de França e formar os espíritos para
a monarquia segunda a Carta. A história não é nunca inocente, e é-o
menos do que nunca na cultura francesa do século XIX. Mas é signifi-
cativo que se tenha tomado ponto de passagem obrigatório para a
monarquia constitucional.
Aliás, sobrevive mal à passagem autoritária de 1820 e à queda dos
Constitucionais. É que, mesmo que se interrompessem os programas
em 1789, é preciso compreender esse terminus ad quem que é a Revo-
lução Francesa e que domina toda a paisagem para montante. Ora,
para tal, a direita ultra-realista não utiliza nenhum dos conceitos que
estão disponíveis, nem o progresso, nem a democracia, nem a nação.
Propõe apenas o direito divino, a Providência, o regresso a Bossuet.
É por isso que inaugura um período durante o qual a história se toma

123
A OFIOINA DA HISTaRIA

uma disciplina suspeita, que deve ser mantida sob a estreita vrgi-
lância dos poderes públicos não só nos estabelecimentos de ensino
secundário, como também nas faculdades de letras, cujas conferên-
cias são nessa altura acontecimentos políticos e mundanos. Enquanto
a história vegeta nos colégios, Guizot enobrece a Sorbonne atacando
o regime de Villêle em nome do terceiro estado, da antiga monar-
quia e da marcha da civilização. Quando é destituído, em 1822, é
de novo a antiga grande burguesia do terceiro estado, a tradição pro-
testante, a liberdade, 1789 enfim, que são atingidos por intermédio
dele. A queda de Villêle, em 1827, consagra também a desforra da
história, que não tarda a ser emancipada da tutela das humanidades,
sendo-lhe atribuído, nas classes secundárias, um professor especial
(cedo admitido por agregação particular).
Mas é em 1830, com o regime de Julho, que se abre um período
decisivo para o ensino da história. Não só, evidentemente, porque os
dois maiores historiadores franceses do século XIX, Guizot e Michelet,
brilham então com todo o seu esplendor, um no poder (o que, injus-
tamente aliás, vai comprometer a sua fama de bistoriador), o outro
na oposição erudita e republicana do Collêge de France. Mas sobretudo
porque o regime de Orléans, nascido da sublevação parisiense, tem por
única legitimidade a que retira ao mesmo tempo do Antigo Regime e da
Revolução Francesa. Ao contrário do bonapartismo, não dispõe, para
esconder a sua miséria jurídica, de nenbuma lenda, de nenhum assen-
timento prévio ao despotismo. Tem de se situar no ponto exacto em que
se justapõem e se somam as duas tradições liberais da história nacional,
a da nobreza e a da burguesia, ou seja, re-estabelecer 1789, mas como
traço de união entre o passado e o futuro e não como linha de divisão
e despojo de guerra civil. Louis-Pbilippe transforma o palácio de Ver-
sailles em museu das glórias nacionais e manda regressar o caixão do
Imperador aos Invalides. A história de França toma-se assim a grande
instância de legitimação do regime, que a envolve em atenções como
criança mimada, e testemunho disso é o enorme esforço de conservação
do património arquivista nacional que foi empreendido nesses anos.
Essa vontade política traduz-se igualmente ao nível do ensino. Em
1838, o ministro da Instrução Pública, Salvandy, remodela os programas
de história deslocando-os cronologicamente 'para: história sagrada,

124
A HI8TÓRIA NA OULTURA OLA88IOA

Ásia e Grécia no primeiro ano; Grande Grécia, Macedónia, Judeus


no segundo; Roma no terceiro; Idade Média no quarto; Tempos Mo-
dernos (1453-1789) no quinto; história de França de 406 a 1789 no sexto.
Já aqui se desenha uma cronologia universitária de que ainda somos
tributários, visto que na nossa consciência historiográfica nacional,
o «moderno» acaba em 1789, como se isso fosse uma evidência uni-
versal. Por outro lado, o facto de reservar todo o sexto ano do ensino
secundário à história de França sublinha o carácter definitivamente
central dessa pedagogia, em oposição à tradição das humanidades.
Quando Louis-Philippe recebe em 1838 no palácio de Versailles os
alunos de dois colégios parisienses, para lhes dar a honra de atravessa-
rem consigo o passado, não esconde as suas intenções: «Quis que
pudésseis usufruir de todos estes belos exemplos da nossa história,
de todas estas gloriosas recordações da antiga monarquia francesa
que bem valia essas repúblicas de Atenas e de Roma, com as quais
vos ocupam talvez demasiado.»
Mas com este jogo, a história inteira, e não só a história de França,
toma-se um dos centros essenciais do debate político e intelectual
francês. A história ecuménica e meio-termo de Guizot esbarra à sua
direita na tradição reaccionária, possuída pela ideia da politicização dos
espíritos jovens, e à sua esquerda nos dois grandes intérpretes democrá-
ticos da história nacional e europeia: Michelet e Edgar Quinet. Não cabe
no quadro deste artigo traçar novamente a famosa batalha dos dois pro-
fessores contra os Jesuítas e contra o domínio clerical da Universidade.
Mas aquilo que importa para a minha intenção é compreender a que
ponto essa batalha desestabiliza uma história que o regime de Julho
quisera fixar em volta de 1789 e do seu remake de 1830. Guizot vira
na Revolução de Julho um novo enraizamento das conquistas de 1789,
uma espécie de 1688 francês, destinado-a abrir para a França uma era
de concórdia e de prosperidade social comparável com a que tinha
inaugurado para a Inglaterra a Glorious Revolution. Eis que Michelet
e Quinet exumam da história a dinâmica da Reforma, o inacabamento
da Revolução e a promessa indefinida da democracia. O consenso dos
Franceses em tomo da sua história não parece mais profundo do que
o seu acordo acerca do regime de Julho. Desaparecem em conjunto
em 1848.

12S
,
A OFICINA DA. lilSTôRIA

No entanto, aquilo que fora iniciado com Louis-Philippe é irre-


versível - a história e o ensino da história, mesmo que continuem a
ser objecto de ruidosos conflitos políticos, permanecem no centro de
qualquer pedagodia nacional. Por fim a 11 República, apesar do alarido
do partido da ordem, e o Segundo Império, apesar da sua desconfiança
no pensamento crítico, irão no sentido da reforma de Salvandy. Em
1848, Carnot inclui o período 1784-1814 nas classes de seconde e de
Retórica *: eis a Revolução e o Império no ensino secundário. Em
1852, o decreto que estabelece a bifurcação entre estudos literários
e estudos científicos (outro aspecto da modernização do currículo)
remodela igualmente os programas de história. A história sagrada
é daí em diante reservada para os mais jovens, na terceira e quarta clas-
ses. Os primeiro, segundo e terceiro anos do secundário são dedicados
à história de França até 1815. Por fim, nos quarto, quinto e sexto anos,
a tríade já clássica: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos.
Mas esta reforma de Fortoul é por sua vez transformada pela reor-
ganização dos programas por Victor Duruy, em 1865. História sagrada
na terceira classe, história de França na quarta: esta progressão da
história de França nas classes mais jovens representa o sinal de um acordo
crescente sobre a necessidade pedagógica desse ensino e sobre o seu
conteúdo. Para cima, Duruy instaura uma divisão muito moderna,
a Antiguidade do primeiro ao terceiro ano, a Idade Média no quarto,
os Tempos Modernos no quinto, o período 1661-1815 no sexto ano,
e o século XIX, até ao Segundo Império, no sétimo ano, chamado de
filosofia. Ganha assim a batalha da história contemporânea, que anexa
ao ensino secundário. Ao mesmo tempo que dá ao século XIX a digni-
dade histórica, estende, graças ao século XIX, o campo escolar da his-
tória aos factos económicos e sociais. Com efeito, a história não é só
a genealogia da nação, mas também o estudo do progresso científico e
material da humanidade. E é assim que se prepara, em novas condições,
a reconciliação da ideia nacional com a ideia enciclopédica.

•. As classes de seconde e de Retórica equivalem aos anos terminais do ensino


secundário francês. (N. do R.)

126
A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSIOA

A partir de então a história aparece como o veículo privilegiado


por duas séries de razões. As primeiras são de ordem científica e dizem
respeito ao seu estatuto como tipo de conhecimento e como disciplina.
Os meados ou este terceiro terço do século XIX marcam, em França,
uma etapa-chave do desenvolvimento dos estudos históricos, a mais
importante, talvez, desde os beneditinos de Saint-Maur, Taine, Renan,
Fustel, Gabriel Monod fundam de novo a história como ciência. Victor
Duruy cria, em 1866, a Escola Prática de Altos Estudos, para ambientar
em França a investigação à alemã, na qual a transmissão de um método
rigoroso e de um saber crítico do mestre para o aluno substitui a confe-
rência mundana em voga nas universidades.
Mas se a história aparece revestida do prestígio intelectual da ciên-
cia, permanece essencialmente, do lado da exigência social, não aquilo
que a sociedade sabe sobre si própria, mas aquilo que a nação conhece
do seu passado. É o outro aspecto da sua eminente dignidade. Ora,
depois dos anos de «ordem moral», que fizeram reviver os receios
reaccionários sobre os perigos de que ela é veículo, a República vitoriosa
traz aos Franceses, ao mesmo tempo que um consenso duradouro
em tomo do regime, uma interpretação cumulativa das suas tradições
em confronto. Ao contrário da Monarquia de Julho, que procurava
sobretudo um lugar geométrico comum às classes dirigentes do país,
aquela integra Michelet em Guizot e oferece a toda a nação uma história
democrática de si própria. Os reis de França não foram todos modelos
de virtude ou de consciência profissional; mas, melhor aqui, pior ali,
construíram a França, asseguraram o seu progresso e a sua irradiação.
A própria Revolução teve os seus excessos; mas a Declaração dos
Direitos do Homem e os exércitos do ano 11 fazem da nossa história
uma espécie de modelo universal. Assim as duas metades da nossa
história não são tanto rivais como complementares: não, como escrevera
Tocqueville, porque em comum têm ° Estado administrativo centra-
lizado, mas porque partilham o culto do estado-nação, instrumento
do progresso. A Il I República nascente assume por fim toda a herança
nacional em nome do povo, porque ela própria é, finalmente e quase ao
fim de um século, a Revolução Francesa no poder: essa figura provi-
sória, mas que vai revelar-se bastante duradoura, é constituída por um
poder conservador que governa em nome dos valores revolucionários.

127
A OFICINA DA HIST6RIA

o Magistério no século XIX

A partir deste momento a história já não constitui apenas uma


matéria de ensino secundário ou superior; é também indispensável
aos mais pequenos, cujo juízo e patriotismo devem ser formados cedo.
A partir do momento em que é conhecida a sua economia geral, assente
no encaixe de uma história de França numa história universal cujo
sentido é o progresso material e moral da humanidade, o mestre pode
abandonar nas classes mais jovens as ideias abstractas: a «filosofia»
geral da evolução poderá nascer de uma anedota, de um pormenor,
ou, como se diz tão bem, «de uma história». Ouçamos, por exemplo,
Lavisse recomendar o ensino da história antiga, nas suas célebres «Ins-
truções» de 1890, e meçamos o caminho percorrido desde os colégios
jesuítas; «A história de Grécia e de Roma é já a nossa história, visto
que as origens da inteligência e da política moderna já nelas se encontram.
É necessário mostrar ao aluno essas origens e explicar-lhas, mas quase
sem que ele dê por isso, não lhe propor considerações filosóficas nem
o embaraçar com nenhum pormenor de instituições.» A Antiguidade já
não é um modelo; é uma introdução à história da Europa e de França.
Já não dá ao mundo moderno o seu sentido; recebe-o dele.
A capacidade de Lavisse de escrever a história a todos os seus ní-
veis, não do mesmo modo, mas com a mesma certeza (e aliás com uma
grande felicidade de expressão) testemunha a que ponto se trata de um
saber e de uma disciplina que atingem então uma espécie de classi-
cismo escolar. Não é que Lavisse seja superficial: as suas leituras são
imensas, mas sabe sempre para onde vai. Escreve à sua maneira, ele
que tanto admira a Enciclopédia e o século XVIII, uma história «filo-
sófica», dominada pela burguesia esclarecida e erudita, progressiva-
mente emancipada da Igreja e dos reis, estendendo rapidamente ao
mundo as conquistas das ciências e do progresso. Mas esta «história
filosófica» apresenta em relação à sua antecedente diferenças capitais:
integrou a ars antiquaria, sob a forma aperfeiçoada do positivismo;
fez do estado-nação a figura central da evolução. Em suma, tem um
método e um objecto; é aquilo a que se chama uma disciplina.
Pouparei ao leitor o comentário do famoso «pequeno Lavisse», no
qual dezenas de gerações de franceses aprenderam, para a vida inteira,

128
A HIST6RIA NA OULTURA OLASSIOA

o essencial da sua história. O seu testemunho é, evidentemente, capital


no que respeita à utilidade pedagógica e social da história na França
republicana do fim do século XIX: na verdade, é a esse nível que os efei-
tos da escrita histórica devem ser particularmente visíveis, para ter
o máximo de impacte nos espíritos jovens. Mas o próprio Lavisse,
muito claramente, escreveu a meta-história da sua história de França
contada às crianças, no seu célebre texto de 1885 sobre o ensino da
história nas classes primárias. Nele explicou, melhor do que ninguém,
aquilo que fazia. A República nascente não tinha má consciência:
nunca a visão de conjunto foi tão explícita. Primeiro há o lento nas-
cimento da França, com o esforço dos reis, lutando contra o caos feudal:
a viragem decisiva é a Guerra dos Cem Anos: «Expulso o Inglês, a nossa
França aparece. Mas, nesta França, a personagem principal é aquele
em que punha as suas esperanças Jeanne d'Arc, é o rei. Pelo facto de
ter feito a unidade e reconquistado o seu reino ao inimigo, concentra
por assim dizer nele a França inteira. E eis aquilo que os alunos devem
saber bem: no século XV, quando já não há vassalos poderosos, quando
Luís XI reuniu as últimas grandes províncias independentes e as comu-
nas foram desamparadas pelos agentes do rei e arruinadas pela guerra,
o rei já não é um suserano e um protector, mas um mestre.»
Segue a história do desenvolvimento do poder absoluto, história
ambígua, visto que leva a França até à preponderância europeia, embora
a mine também e oprima os Franceses. A Revolução prolonga o «lado
bom» da monarquia, enquanto elimina o lado mau: «É uma indiscu-
tível verdade que a Revolução Francesa fez um esforço heróico para
substituir a monarquia antiga pelo reino da justiça e da razão. É uma
indiscutível verdade que abriu o mundo a uma era nova e que quase
toda a Europa foi de certo modo refundida por ela. O mestre não
irá portanto ferir qualquer consciência quando expuser os princípios
dessa Revolução e mostrar como, pela força das nossas ideias e das
nossas armas, os governos absolutos foram transformados por todo
o lado e novos povos adquiriram, ao longo da nossa história contem-
porânea, o direito à existência.»
Mas cuidado! A advertência que segue é capital para os futuros
cidadãos: «É uma indiscutível verdade o facto de o regime ideal sonhado
pela Revolução Francesa ser, de entre todos, aquele que é mais difícil

129
A OFIOIN A DA HISTóRIA

de pôr em prática: a revolução e os golpes de Estado que se seguiram


mostram-no com bastante clareza. É uma indiscutível verdade [a repe-
tição destas palavras é por si só reveladora de que precisamente todas
estas verdades são discutidas e não deveriam sê-lo] o facto de que essas
revoluções e esses golpes de Estado enfraquecem a França e que, a
processarem-se de novo, a matariam. O mestre não irá portanto enganar
qualquer consciência se ensinar que toda a violência contra a lei é um
atentado contra o país e que a condição da salvação da França é a
estabilidade política.»
Por fim, um pensamento sobre a Alsácia-Lorena: «O mestre que
tiver traçado perante os seus alunos os destinos da França, de toda a
França, a antiga e a nova, saberá falar da mutilação que ela sofreu,
há quinze anos.» A finalidade do ensino da história é tão clara que a
escola se tomou laica, obrigatória e gratuita: formar «um cidadão
compenetrado dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma».
Com o segundo grau, os programas tornam-se mais vastos e as
directivas mais diferenciadas. Permitem sobretudo tomar o pulso a
essa parte da transformação pedagógica que não é devida à ideologia
republicana, mas antes à própria disciplina. Neste campo, a Ill República
consolidou primeiro a obra de Victor Duruy, ameaçada durante a
ordem moral. Sobretudo, com a reforma de 1902, que modifica com-
pletamente o ensino secundário francês, reformulou novamente os
programas, fundamentados a partir de então - e até hoje - em dois
ciclos no interior do secundário: Antiguidade, Idade Média, Tempos
Modernos (até 1789), período contemporâneo do primeiro ao quarto
ano. E de novo história moderna no quinto e no sexto ano (mas até 1815:
esse no man's land entre 1789 e 1815 continua difícil de baptizar), e
contemporânea no último ano. Existe sobre os considerandos desta
reforma um interessante comentário, redigido pelo homem que desem-
penhou o papel principal na sua concepção: Charles Seignobos. Trata-
-se aliás de uma introdução geral às suas «aulas», que estava incluída
nos manuais de todos os anos, do primeiro ao último.
Seignobos não separa aquilo que ele apelida de «revolução» sur-
gida na concepção do ensino da história desde as famosas «Instruções»
de Lavisse, daquilo que se tornou a própria disciplina. Separa mal as

130
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSIOA

duas ordens de factores cuja distinção nos parece evidente e necessária:


a autonomia pedagógica da história cobre a sua emancipação como
saber. Outro modo de dizer que a escolarização triunfante da histó-
ria naquela época coroa uma disciplina constituída a todos os níveis,
possuindo método, objecto e utilidade social específicos - as três
coisas estão indissoluvelmente ligadas.
A sua «matéria» já não se reduz ao comentário da grande literatura
greco-romana, como nos colégios jesuítas, ou à análise dos tratados
e das guerras, como na tradição da Escola Militar. Já não prepara
para uma carreira especial. Forma, em cada um dos Franceses, o cida-
dão. «O estudo das ciências permite conhecer o mundo material; o
estudo das letras desvenda o mundo das formas e das ideias; a história
introduz o aluno no mundo social e político. As letras anteriormente
ignoravam este mundo que as mantinha afastadas; um francês, destinado
a viver numa democracia, precisa de a compreender.» Trata-se portanto
de formar, através do ensino da história, uma ciência social geral,
que ensine ao mesmo tempo aos alunos a diversidade das sociedades do
passado e o sentido geral da sua evolução. Mas esse passado continua
a ser «genealógico», escolhido em função daquilo que se pretende
anunciar ou preparar: a Antiguidade clássica, a Idade Média cristã,
a Europa moderna e contemporânea. As outras sociedades, espalhadas
no espaço, são abandonadas a outras disciplinas. A história só concede
a honra de se interessar por aquelas que participem da «evolução»,
que é o outro nome do progresso.
Daí advém o relevo posto no período contemporâneo, em detri-
mento da Antiguidade e da Idade Média: não só para marcar a inde-
pendência finalmente conquistada pela história sobre as humanidades,
como ainda por ser o contemporâneo que dá sentido ao passado e,
por conseguinte, justifica o seu estudo. «Os Tempos Modernos desde
o século XVI fornecem agora a matéria essencial do ensino; desses tem-
pos data a maioria dos factos que importa conhecer para compreender
o estado actual do mundo.» Mas no próprio interior daquilo que é
«moderno», as proporções tradicionais são invertidas: o século XVII,
«durante o qual não se produziu nenhuma transformação profunda
para além das revoluções de Inglaterra», é reduzido a uma proporção
congruente, em proveito do século XVIII, «durante o qual se formaram

131
} ..

A OF'IGINA DA HISTÓRIA

os grandes Estados contemporâneos, o Império Russo, a Prússia, os


Estados Unidos, a Inglaterra parlamentar, a França revolucionária»,
e do século XIX, «durante o qual a vida material e intelectual foi sub-
vertida pela constituição definitiva das ciências e a vida política trans-
formada pelo regime representativo e pela igualdade democrática».
A história não é só uma genealogia; é igualmente o estudo da mudança,
daquilo que é «subvertido», «transformado», campo privilegiado em
relação àquilo que permanece estável. Genealogia e mudança são aliás
duas imagens gémeas: a investigação das origens da civilização con-
temporânea só tem sentido através das sucessivas etapas da sua for-
mação.
Este fechamento do campo da matéria histórica implica uma modi-
ficação da natureza dos factos nos quais incidem o estudo e o ensino.
É preciso renunciar a essas intermináveis nomenclaturas cronológicas,
e em particular a essas enumerações de reis, de personagens ministe-
riais, de generais, de batalhas e de tratados que sobrecarregam sem
proveito a memória dos alunos. O essencial é acentuar duas ordens
de factos: aqueles que dizem respeito à civilização material, primeiro,
porque é o fundamento da civilização propriamente dita; e aqueles
que permitem compreender o carácter específico de um período em
relação a outro, ou seja a mudança. E esses factos serão naturalmente
apontados, datados e descritos segundo o método celebrado pelo posi-
tivismo, que deve despertar o espírito dos alunos para a análise crítica,
em lugar de se dirigir apenas à sua memória. Deixando de ser uma lição
de moral, ou a ocasião para um lugar-comum literário, o novo ensino
deve por fim renunciar ao estilo oratório ou filosófico: «Agora que a
história começou a instituir-se como ciência, chegou o momento de
romper com a tradição oratória romana e académica e de adoptar a
língua das ciências naturais.»

Uma pedagogia do cidadão

O que faz portanto com que a história seja, no fim do século XIX,
uma matéria ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método
científico, uma concepção da evolução e ainda a eleição de um campo

132
A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSICA

de estudos ao mesmo tempo cronológico e espacial. As regras elementa-


res da ars antiquaria, codificadas pelos positivistas, entram no ensino
secundário por intermédio de um consenso provisório quanto ao sen-
tido da história. Para chegar a esse consenso, Lavisse e Seignobos
retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a
história é a nação; a história é a civilização. Mas reúnem-nos de um
modo muito mais orgânico do que o puderam fazer, cinquenta anos
antes, Guizot e os homens de Julho. Esses mantinham-se prisioneiros
de uma concepção estritamente burguesa da evolução e da «civilização»;
parando a história em 1830, ou seja, em 1789, ou ainda no habeas corpus
inglês, apresentavam uma base demasiado estreita para o campo his-
tórico aberto pela Revolução Francesa. Os Franceses nunca foram
tão entusiastas do regime representativo que fizessem dele a cúpula
da história universal.
Em contrapartida, «a evolução da humanidade», ao estilo de Sei-
guobos ou de Lavisse, propõe-Ihes uma série de figuras em que investem
mais facilmente um consenso colectivo. A economia interna dessas
figuras pode ser decomposta em três níveis sucessivos: a «civilização»
é o outro nome da profecia científica reinante nesse fim de século.
Leva os homens, pelas conquistas do espírito, ao domínio sobre a natu-
reza. Desta marcha para o progresso intelectual e material, o principal
agente histórico é a nação ou, mais precisamente, o Estado nacional,
essa invenção da Europa moderna. Ora, desse Estado nacional, portador
de progresso, a história de França oferece o exemplo por excelência,
por intermédio da monarquia absoluta e da Revolução Francesa. É que
não é correcto dizer-se que a bistoriografia republicana desse tempo
seja estritamente patriótica; o que ela tem de nacionalista nunca
esquece, segundo o exemplo jacobino, o universal democrático. A carac-
terística de eleição da história de França é a de possuir, como história
real e como ensino da história, um valor e um alcance pedagógico espe-
cíficos desse ponto de vista. Foram necessários cem anos para reunir
Mably e Condorcet pela escola republicana.
A outra vertente desta análise consistiria em ver porquê e como é
que este consenso se desfez, desde então, e em especial depois da Segunda
Guerra Mundial, simultaneamente pelo exterior e pelo interior, em
razão da evolução da disciplina e das ciências sociais em geral, e como

133
A OFIOINA DA HISTóRIA

consequência do fim da preponderância da Europa no Mundo. Apesar


de, ou em virtude de, os programas escolares sobreviverem sempre
durante muito tempo às conjunturas que explicam o seu nascimento,
toda a gente sente hoje que o nosso ensino da história deve ser retomado.
E talvez que a primeira coisa a fazer seja, antes de avançar com pro-
postas, compreender aquilo que se desfez em cem anos. Mas para isso
é necessário o conhecimento prévio dos diferentes elementos da síntese; a
viagem de ida é uma condição prévia; eis como vejo as suas principais
etapas.
Para existir como disciplina escolar, a história teve de sofrer várias
mutações, de modo a constituir um campo do saber ao mesmo tempo
intelectualmente autónomo, socialmente necessário e tecnicamente ensi-
nável. De facto, ela não tem por natureza objecto específico (visto
que tudo é «histórico»), sem linguagem autónoma (visto que é narra-
tiva), sem limites fixáveis: existe em todo o lado e em lugar nenhum.
Apresenta portanto dificuldades específicas a ser pensada em termos
de disciplina, e mais ainda em termos de disciplina escolar. Ou não ensi-
é

nável, ou então é ensinada, como durante vários séculos passados,


unicamente à margem das letras clássicas, e até, quando se tornou
«matéria» escolar, passou a ser objecto de meticulosas delimitações,
com receio de que o aluno se perca no oceano dos «factos históricos»,
sem por isso ganhar a aprendizagem de uma linguagem ou de um
método.
Desde o século XVII que o processo de autonomização da história
se desenvolveu em duas direcções paralelas, ou seja, independentes
uma da outra. A história filosófica ganhou a batalba do «moderno»
sobre o «antigo» e acabou por elaborar, com Condorcet e os ideólogos,
uma doutrina do progresso. Por seu lado, desde Port-Royal aos bene-
ditinos de Saint-Maur, passando pela Academia das Inscrições, a ars
antiquaria construiu um método de localização e de pesagem do facto
histórico. Mas na ausência de um Gibbon francês, o Século das Luzes
nunca uniu as duas tradições eruditas; lega à Revolução e ao século XIX,
por um lado, um discurso laicizado sobre a bistória universal e, por
outro lado, um conjunto de técnicas e de saberes descritivos distintos,
cronologia, diplomacia, viagens, etc.

134
A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA

São essas tradições distintas que o século XIX vai remodelar profun-
damente e especificar para delas fazer, no início da Hl República, a
história que se ensina aos jovens franceses. Remodelar significa antes
de mais excluir. A cultura clássica tinha indicado o caminho come-
çando por colocar fora da história certos sectores do imenso espectá-
culo dado pelas sociedades humanas. As «viagens» representam um
inventário do espaço, antes de se tomarem geografia e antropologia.
As civilizações não europeias, do passado e do presente, que exigem
investimentos linguísticos especiais, tendem a constituir campos espe-
cíficos. Esta tendência prossegue com a Restauração e a Monarquia
de Julho, como se pode ver ao nível do ensino mais elevado, no Collêge
de France. A história das religiões, na mesma época, separa-se igual-
mente do tronco geral da história para se tomar um campo separado
da erudição. Em sentido inverso, em razão da decadência do latim
como língua escolar, a história erudita tende a recuperar progressiva-
mente a Antiguidade greco-romana como matéria que deve ser ensi-
nada sob um ângulo que não seja o de um modelo literário. Aquilo
que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora
a sua geneaIogia.
É que a grande mutação do século XIX, e em particular dos anos
1820 e 1830, está aí: a história é a árvore genealógica das nações euro-
peias e da civilização de que são portadoras. Guizot ainda tem como
modelos a França e a Inglaterra, Michelet já só tem a França. A partir
do momento em que o discurso enciclopédico do século XVIII recebe
essa significação, a história nacional é liberta da maldição «feudal»
que a Revolução fez pesar sobre ela e da condenação que a envolvia.
Constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas não única)
do progresso da humanidade e uma «matéria» que deve ser estudada,
um património de textos, de fontes, de monumentos que permitem
a reconstituição exacta do passado. É na confluência dessas duas ideias
que se instala a «revolução» positivista: dá-Ihes, às duas, a bênção
da ciência. A história dali em diante já tem o seu campo e o seu método.
Toma-se, sob os dois aspectos, a pedagogia central do cidadão.

135
A «Lioraria» * do Reino de França
no século XVIII**
Para o historiador, o livro é sempre um objecto de perplexidade.
Envolto no seu título como numa definição intemporal, está para sem-
pre fechado e não cessa de revestir apesar disso sucessivas significações.
Produto de uma elaboração individual por excelência, supõe a comuni-
dade de uma linguagem e de todo um sistema de cumplicidade social.
É duplamente misterioso, como invenção e como familiaridade; de
facto, o seu estudo cristaliza todas as dificuldades do ofício de histo-
riador: a passagem do individual ao colectivo, a relação do individual
com o social, os juízos do tempo sobre o tempo, a medida da inova-
ção e da inércia. Mesmo quando está coberta por tantas sedimentações
críticas, a escrita dos homens está longe de ter sido decifrada em termos
de história.
Há cento e cinquenta anos que a tradição literária segue de perto
os segredos do livro a dois níveis: simultaneamente do interior, pelo
estudo do próprio texto, e do exterior, pela erudição biográfica. É assim

• «Livraria» era um termo corrente no século XVIII para designar biblioteca.


Seguiu-se aqui o critério de traduzir por biblioteca, exceptuando os casos em que
F. Furet utiliza a palavra entre' aspas. (N. do T.)
•• XXII Congresso Internacional das Ciências Históricas, 1965. Também se
poderá encontrar este estudo em: F. Furet, Livre et société dans Ia France du XVIIIe
siêcle, Mouton, 1965.

137
A OFlOINA DA HIST(JRIA

levada a presumir o social e o colectivo a partir de testemunhos do que


é individual. Ora é essa relação que o historiador desejaria, em pri-
meiro lugar, inverter. Não é que seja obrigado a dirimir a priori o velho
debate sobre o colectivo e o individual ou sobre a infra-estrutura e a
superstrutura. Mas a sua razão de ser é a de reintegrar o acidente no
número e no inteligível. É portanto a de salientar, da extraordinária
confusão criadora dos livros, um certo número de movimentos e de
constantes: deve começar pelos mais fáceis de apreender, porque são
externos e mensuráveis.
Pode-se então arriscar uma aproximação às conquistas recentes
da história económica: a exemplo delas, deveria ser possível combinar
o macroscópico e o microscópico, fazer, por um lado, recenseamentos
globais da produção literária de uma sociedade 1 e multiplicar, por
outro lado, as investigações parciais sobre meios ou grupos sociocul-
turais. É a partir da convergência desses dois tipos de estudos que pode
nascer a certeza histórica sobre os grandes movimentos e os seus meca-
nismos.
Mas nos dois casos trata-se de análises deliberadamente exteriores
à melodia única de cada livro. Por isso poderão originar suspeitas de
simplificação excessiva. Bastará responder, a fim de evitar um falso
debate, que, se nada pode substituir o estudo dos próprios textos,
este tipo de investigação pode fazer surgir com mais evidência -- e
menos pressupostos teóricos - os grandes pontos de convergência
entre uma sociedade e a sua produção escrita. Não deve ser entendido
senão como um prefácio e um quadro à análise propriamente literária.
Nada mais, mas também nada menos.

A sorte quis que no século XVIII o historiador dispusesse, no domí-


nio do livro, de uma série de fontes quantitativas muito preciosas: as
da administração da biblioteca, recentemente exumadas por dois livros

1 O exemplo foi dado neste campo pela obra de L. Febvre e H.-J. Martin,
Le Livre (col. «Evolution de I'Humanité»),

138
A HIST6RIA NA OULTURA OLASSIOA

de R. Estivals Desde o Renascimento, a monarquia francesa manteve


ê,

sob a sua alçada a produção literária do reino. Regista-a cuidadosa-


mente na Chancelaria, que concede as autorizações de publicação, ou
no Depósito Legal, que recenseia as obras publicadas. Essa contabilidade
burocrática do livro, que é tão minuciosa e complexa, tem a vantagem
póstuma de permitir enumerações muito extensas e substituir biblio-
grafias que são ao mesmo tempo tardias e parciais. Mas dá igualmente
ao historiador uma luz mais subtil, a que põe uma sociedade frente
às suas próprias obras. A este respeito, o século XVIII é um caso privi-
legiado.
É que a monarquia francesa de Luís XV e Luís XVI não é apenas
esse simples poder de repressão e de censura que é descrito a posteriori
pela libertação revolucionária. Não que seja inexacto, num certo sen-
tido, abordar o Século das Luzes como o de uma longa luta entre as
forças da inovação intelectual e as resistências do conservadorismo:
mas o papel do inquisidor pertence então por excelência, não ao poder,
mas aos parlamentos, que são ao mesmo tempo adversários encarni-
çados da administração real. O rei de França permite mais livros do
que aqueles que a Sorbonne ou os grandes magistrados suportam,
como é testemunhado, entre outras, pela crise da Enciclopédia. Na
realidade, o Estado monárquico, que entrega a biblioteca a Malesherbes
durante doze anos capitais, segue as correntes da época mais do que as
governa. Caracteriza-se por uma grande sensibilidade às pressões da
sociedade civil, ao mesmo tempo que se abre às ideias do século e a
uma administração mais racional dos homens. Em suma, tomou-se
ao mesmo tempo mais fraco e mais moderno. As fontes públicas da
polícia das ideias definem-se assim melhor: pelo seu duplo valor técnico
e social, constituem um documento bastante excepcional de uma socie-
dade sobre aquilo que escreveu.
Do que ela escreveu, podemos recensear o essencial, visto que
cada obra teve de obter do chanceler a autorização para ser impressa:
mas mesmo as que a viram recusada têm o seu título apontado

2 R. Estivals, La Statistique blb/iografique de Ia France sous Ia monarchie au


XVIIIe siêcle (tese dactilografada), Le Dépõt Légal, Paris.

139
A OFICINA DA HISTóRIA

nos registos dos pedidos e assim os cortados pela censura não escapam à
enumeração global. Tradicionalmente, a autorização pedida é um pri-
vilégio ou uma simples licença da chancela. A primeira, mais onerosa 3,
confere ao requerente um monopólio sobre a obra por um período
determinado. A segunda não é exclusiva, mas evita as despesas do
privilégio. Ambas são públicas, explicitamente indicadas na obra e
equivalentes a um acórdão do Conselho. O código da biblioteca de
1723 reafirmou este procedimento que já existia há mais de um século.
Os dois tipos de licença são revogáveis e temporários, por conseguinte
renováveis; ao expirar o prazo coberto pelo privilégio, o impressor que
quiser manter o seu monopólio ou preparar uma reedição pede uma
renovação ou uma continuação do privilégio, que figura no mesmo
registo e constitui assim um indicador do sucesso da obra.
Esta tendência para a perpetuação dos privilégios de impressão,
que faz a felicidade dos livreiros parisienses, simultaneamente mais
próximos do poder e dos autores, alimenta no século XVIII uma pro-
longada polémica. Os livreiros de província opõem-se, não aos privi-
légios, mas à sua prorrogação; num texto célebre, Diderot defende os
de Paris, em nome do direito de propriedade+, Neste debate em que se
elabora lentamente a noção moderna de direito de autor, é decidido
por Luís XVI em 30 de Agosto de 1777 através de uma série de impor-
tantes acórdãos: doravante, o autor que reserve o privilégio em seu nome
e venda a sua obra poderá transmitir aos seus herdeiros um direito
perpétuo sobre essa obra. Todavia, a cedência do manuscrito a um
terceiro torna essa propriedade transitória, porque o privilégio atri-
buído aos livreiros só durará enquanto viver o autor, e, em qualquer
dos casos, um mínimo de dez anos. É portanto o fim da perpetuação
dos privilégios, que desde então desaparecem dos nossos registos.
Aliás, parece que os acórdãos de 1777 levam ao aparecimento de

3 Encontram-se, no verso do último folheto do Ms. Fr. 22001, na B.N., as


tarifas seguintes: Privilégio geral: 101 livres, 2 sous. Licença simples por seis anos:
61 livres, 18 sous. Licença simples por três anos: 30 livres.
4 Diderot, Lettre sur le commerce de Ia librairie. Uma reedição recente deste
texto acaba de ser feita por J. Proust com o titulo: Lettre sur Ia Iiberté de Ia presse,
Editions Sociales, 1963.

140
A H18T6RIA NA OULTURA OLA88IOA

um novo tipo de licenças que não precisa de sinete da Chancela: a


«licença simples» *. O Manuel de l' auteur et du libraire de 1777 não
fala disso. Pelo contrário, o Almanach de Ia librairie de 1778 define-a
assim: «A licença simples dá apenas o direito de fazer uma edição
desta ou daquela obra da qual não haja privilégio ou cujo privilégio
tenha expirado, conforme o acórdão do Conselho de 30 de Agosto
de 1777 respeitante aos privilégios. Ela é válida com a simples assina-
tura do Sr. Director-Geral.
Qualquer livreiro ou impressor de cada cidade pode obter uma
licença deste tipo, ficando obrigado a registá-la no prazo de dois meses
nos Registos da Câmara Sindical da zona onde está domiciliado, sob
pena de nulidade.»
Deste modo, os acórdãos de 1777, fazendo recair um maior número
de livros no domínio público, facilitaram as reedições, em particular
pelos livreiros de província. Mas a partir daí estes livros fogem ao nosso
recenseamento, visto que as licenças simples já não são da competência
da Chancelaria, mas apenas do director-geral.
O século XVIII vê desenvolver-se um outro tipo de licença de im-
pressão: as «licenças tácitas» **. Foi Malesherbes quem fez delas
o melhor comentário, no seu quinto Mémoire sur les problêmes de
Ia librairie, redigido em 1759. Primeiro, sobre as causas: «Desde que
o gosto pela impressão de toda a espécie de temas se tornou mais geral
e os particulares, sobretudo os homens poderosos, se tornaram mais
susceptíveis às alusões, houve circunstâncias nas quais não se ousou
autorizar um livro publicamente e nas quais apesar disso se sentiu
que não seria possível proibi-lo. Foi isso que deu lugar às primeiras
licenças tácitas [... ].» Quando? Malesherbes diz que se multiplicaram
«desde há trinta anos», mas escreverá mais tarde, em 1785, que ignora
a sua data de origem>: o seu predecessor na biblioteca, M. d'Argenson,
que tinha sido tenente da polícia durante a Regência e que estava desde
a sua origem «em todos os segredos da Administração», tinha-as pra-

• Em francês, no texto, «permission sirnple». (N. do T.)


•• No texto, «permissions tacites», (N. do T.)
5 Malesherbes, Mémoire sur Ia liberté de Ia presse, 1788.

141
A OFlOINA DA HIST6RIA

ticado sempre. «Penso», acrescenta Malesherbes, «que começaram mais


ou menos ao tempo da morte de Luís XIV.» No entanto, são ilegais,
nos termos da legislação em vigor, porque não são públicas: ({Aúnica
diferença entre estas licenças ilegais e as outras é que não passam pela
Chancelaria e o público não vê o nome do censor. Esta forma intro-
duziu-se provavelmente para que os livreiros e autores tivessem urna
justificação e, por outro lado, para que os censores ficassem ao abrigo
das queixas de clientes hostis. Mas conservou-se um registo dessas
licenças e o censor culpado não se subtraía aos rigores do Governo.»
Esses registos encontram-se efectivamente nos manuscritos da Bi-
blioteca Nacional sob o título: «Registo dos livros de impressão estran-
geira apresentados ao Senhor Chanceler para licença de circular». O pri-
meiro começa em 1718; mas a série conserva o seu título fictício até 1772:
trata-se de mascarar a ilegalidade da nova jurisprudência a coberto
da importação. A licença real quer cingir-se ao registo*, recusando
qualquer responsabilidade oficial na impressão. Pelas mesmas razões,
numerosas obras do século XVIII impressas em Paris com licença tácita
têm debaixo do título a indicação: Amesterdão, Londres, Genebra ou
mesmo Pequim. Só a partir de 1772 é que os registos dessas autorizações
ousam confessar o que são e permitem o seu título real: sinal interes-
sante de que a administração real deixou de recear o seu passado e as
suas próprias leis.
Mas desde o princípio do século, à custa de uma mentira colec-
tivamente consenti da, ela permitiu e recenseou urna literatura que ela
própria designa como assinalada por uma suspeita de não-conformismo.
Aceita-a corno inevitável, ou seja, como uma manifestação social e inte-
lectual que já não se trata de reprimir mas de canalizar. Quando, em
1758, o peso do escândalo leva o chanceler à revogação do privilégio
da Enciclopédia através de um acórdão do Conselho, Malesherbes
contorna a dificuldade pela concessão de uma licença tácita. Porém,
de um modo mais geral, todo o livro que procure minorar as dificuldades
ou o custo da impressão, qualquer livro que especule sobre a maneira
de minorar a resistência do poder evita o circuito administrativo da

• No texto «débit», (N. do T.)

142
A HISTORIA NA OULTURA OLÁSSICA

chancela pública. Limita-se a pedir uma tolerância cuja única garantia


está no consenso entre a opinião pública e a administração. Neste
lote de novidades um pouco suspeitas e que admitem sê-lo frente ao
censor, domina largamente o manuscrito, mas Diderot indica que não
é o único: «De entre as produções que não tenham licença tácita,
é necessário distinguir dois tipos: umas de autores estrangeiros e já
publicadas fora do reino, outras de autores autóctones, manuscritas
ou publicadas com títulos estrangeirosé.»
Deste modo, as duas grandes séries de arquivos que dizem respeito
aos pedidos de licença de imprimir são qualitativamente diferentes.
O século traçou, entre duas literaturas, uma linha externa de demar-
cação que é preciosa para o historiador, visto testemunhar na origem
linhas de defesa de uma sociedade em relação à sua própria cultura.
Este único dado bastaria para justificar a sua manutenção e, por conse-
guinte, o exame separado dos privilégios e licenças tácitas. Mas a análise
quantitativa das fontes reforça essa necessidade de método 7.

6 Diderot, op. cito


7 Os registos de pedidos de licenças de imprimir que servem de base para este
estudo são os seguintes;

Privilégios e licenças da Chancelaria


Ms. Fr. 21995 1723-1728
Ms. Fr. 21 996 1728-1738
Ms. Fr. 21997 1738-1750
Ms. Fr. 21998 1750-1760
Ms. Fr. 21999 1760-1763
Ms. Fr. 22000 1763-1768
Ms. Fr. 22001 1768-1774
Ms. Fr. 22002 1774-1784
Ms. Fr. 21978 1784-1789

Licenças tácitas
Ms. Fr. 21990 1718-1746
Ms. Fr. 21994 1750-1760
Ms. Fr. 21992 1760-1763
Ms. Fr. 21991 1763-1766
Ms. Fr. 21993 1766-1772

143
A OFIOINA DA HISTóRIA

Entre 1723 - data do início dos registos, depois de uma lacuna


cronológica que vai de 1716 a 1723 - e 1789, podem-se enumerar
31 716 obras que pedem privilégio ou licença à Chancelaria. O número
é superior ao que está indicado no trabalho de R. Estivals, porquanto
ele recenseia as próprias obras, e não as licenças: ora pode acontecer
que um livreiro ou um impressor inclua várias obras no pedido de um
único privilégio ou de uma única licença da Chancelarias. Passa-se
aliás a mesma coisa com as licenças tácitas; mas as obras que nelas
figuram são no conjunto bastante menos numerosas: 12610 apenas,
pouco mais de um terço do número de livros da outra série.
Este desnível numérico é devido essencialmente a uma disparidade
cronológica entre as duas fontes: apesar de existirem depois da Re-
gência, as licenças tácitas só se desenvolveram verdadeiramente a partir
dos anos cinquenta. A prática só se desenvolve com a entrada de Males-
herbes na direcção-geral da livraria em 1751. De facto, o primeiro
registo dessas licenças, que vai de 1718 a 1747, refere 713 livros para
trinta anos, ou seja uma média muito baixa de 24 livros por ano. O se-
gundo, que se inicia em Dezembro de 1750 e termina em Março de 1760
e que, tal como o primeiro, também não permite uma divisão anual,
reúne 714 títulos para nove anos e quatro meses, ou seja 126 por ano.
Esta média quase decenal representa por si só apenas o início de um
desenvolvimento que se vai confirmar, visto que os dois registos

Ms. Fr. 21983 1772-1782 (aparecimento do título: licenças tácitas)


Ms. Fr. 21986 1782-1788
Ms. Fr. 22003 1788-1789 (este último registo de pedidos de licenças tácitas
está classificado erradamente no inventário da
B. N. entre os pedidos de privilégios).

8 A contagem de vários livros inclusos no mesmo pedido de privilégio não


põe geralmente nenhum problema. As estampas e gravuras, geralmente muito nume-
rosas para uma única requisição, não foram contabilizadas. Pelo contrário, os bis-
pados do reino solicitam geralmente um único privilégio para uma série de manuais
de Iiturgia ou de devoção rapidamente enumerados: breviários, diurnais, missais,
antifonários, directórios, etc. Neste único caso a distinção entre licença e livro não
se pode fazer e fomos levados a contabilizar arbitrariamente os «usos» das dioceses
como um único livro - o que lhes reduz artificialmente o número.

144
A HIST6RIA NA OULTURA OLASSIOA

seguintes mostram uma subida anual muito rápida: 156 livros por ano
entre Março de 1760 ,e Outubro de 1763; 396 de Outubro de 1763 a
Novembro de 1766. A partir de 1767, as fontes permitem estabelecer
uma contabilidade anual que situa o volume dos pedidos de licenças
tácitas quase ao mesmo nível dos registos de privilégios. A curva que
se estabeleeeu é testemunho disso.
Mas se os dois movimentos estão muito próximos um do outro
a partir do fim dos anos 1760, só o segundo apresenta elementos variáveis
de comparação interna desde o início do século, em função da estabi-
lidade relativa do seu volume anual global. De facto, para uma média
secular (1723-1789) de 463 livros por ano, recenseiam-se 456 até 1750
e 469 de 1750 a 1789: o corte tão característico dos registos de licen-
ças tácitas é aqui inexistente. Não é portanto possível misturar os tes-
temunhos das duas práticas administrativas que não são comparáveis,
visto que uma é a instituição tradicional e a outra, por muito tempo
inconfessável e inconfessada, só se desenvolve nos anos 1760.
O problema permanece aliás em saber se e como, nos decênios
anteriores, as centenas de obras anuais que aparecem tardiamente
chegavam a ser impressas. No seu quarto Mémoire SUl' Ia librairie,
que podemos datar do início de 1759, Malesherbes indica que desde
«há trinta anos que o uso das licenças tácitas se tornou quase tão comum
como o das licenças públicas». Há trinta anos? Desde os anos 1730?
A afirmação pode surpreender se a relacionarmos com a imensa dispa-
ridade dos números anuais revelada pelas duas séries de registos da
biblioteca na primeira metade do século. No entanto, é difícil recusá-
-Ia completamente, já que provém de um homem tão bem colocado
para o dizer. Podemos presumir ao mesmo tempo que a frase é exces-
siva? e que, no entanto, um número importante de livros beneficiaram
durante esse período de licenças tão «tácitas» que não deixaram sequer
rasto escrito. É aliás isso que deu Malesherbes a entender, no último
Mémoire já citado, quando, distinguindo as licenças tácitas e as simples
tolerâncias das quais não resta qualquer vestígio, acrescenta: «As pri-

9 Malesherbes escreve no seu Mémoire: as licenças tácitas «multiplicaram-se


a ponto de se terem tornado hoje em dia tão correntes como as licenças públicas».

145
A OFICINA DA HISTóRIA

meiras licenças tácitas dadas foram com certeza deste tipo; acontece
por vezes ainda que se dêem licenças dessas por causa da falta de prin-
cípios fixos em virtude dos quais o censor possa considerar-se ao abrigo
de qualquer protesto. Mas as verdadeiras licenças tácitas são muito
diferentes desses actos de tolerância ou mesmo de conivência.»
Assim, é provável que, até aos anos 1750, toda uma literatura
ilegal, apesar de tudo distinta da que era propriamente clandestina
e perseguida pela polícia real, tenha sido simplesmente tolerada pelo
poder, sem que possamos localizá-Ia nos registos da livraria.
Na charneira do meio século, um simples exemplo mostra toda
a incerteza da jurisprudência. Em 1748, Montesquieu manda impri-
mir em Genebra, sem nome de autor, L' Esprit des lois, cuja repercussão
imediata em França indica a sua grande difusão. Jesuítas e jansenistas,
os Mémoires de Trévoux e as Nouvelles ecclésiastiques, dedicam-lhe
cada um dois artigos no ano seguinte. O jornal jansenista, que ful-
mina o livro, conclui o seu segundo artigo, datado de 16 de Outubro
de 1749, acusando explicitamente a autoridade pública: «Mandarão
queimar pela mão do carracco as Nouve/les ecclésiastiques cujo único
e perpétuo fim é confirmar os homens na posse das verdades que fazem
o verdadeiro cristão e o fiel súbdito do rei; e deixarão divulgar um
deplorável escrito que ensina os homens a olhar a virtude como um
móbil inútil na monarquia, e todas as religiões, mesmo a verdadeira,
como um assunto de política, uma pura consequência do clima, ete.
Seja-nos permitido perguntar: um não será punição do outro?» Em
Agosto de 1750, a Sorbonne intervém, por sua vez, para substituir
post eventum a censura administrativa que a obra não solicitou. Propõe
um certo número de cortes, que Montesquieu rejeita através de um
apelo à opinião pública: «Toda a Europa leu o meu livro e toda a gente
reconhece que nele não se podia descobrir se eu pendia mais para o
governo republicano ou para o governo monárquico [... J.» De facto,
a acreditar em Malesherbes 1 O, o seu livro consegue de pronto uma

10 Malesherbes afirma-o efectivamente no seu Mémoire de 1788. Uma carta


dos livreiros parisienses Huart e Moreau a Montesquieu, de 8 de Janeiro de 49, faz-se
eco do rumor segundo o qual L'Esprit des tais teria obtido uma licença tácita. O facto
não pode ser verificado DOS registos, que faltam do final de 1746 ao fim de 1750.

146
1

A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA

licença tácita que autoriza imediatamente numerosas reedições, sem que


nelas se encontre qualquer vestígio das exigências da Sorbonne.

A complexidade deste exemplo mostra como é difícil medir o valor


bibliográfico exacto das duas séries de registos da biblioteca que foram
descritos. Como não é possível compará-Ia com as duas fontes que
seriam de acesso relativamente simples - o Depósito Legal, por defi-
nição mais incompleto, ou o catálogo alfabético de autores da Biblio-
teca Nacional, que não contém os anónimos -, o mais simples é reca-
pitular aquilo que nele se encontra para saber o que não está lá:
I. Os registos de privilégios e de licenças da Chancelaria incluem
três tipos de requisições: as que aparecem em maior número e que dizem
respeito a um manuscrito novo. Mas até ao Decreto de 1777, que suprime
a sua necessidade, também neles se encontram as requisições para conti-
nuação de privilégios, através das quais o autor ou o impressor deseja
prolongar o seu monopólio: constituem presunções de que a obra é
objecto de uma procura social e da vontade do livreiro em reimpri-
mi-Ia num futuro próximo. Finalmente, as novas edições de livros
antigos impressas e não manuscritas passam igualmente pelos censores
reais, quer o livreiro reinvindique uma licença já obtida para uma
edição anterior, e caduca, quer um concorrente invoque o carácter
original da nova edição para reclamar o direito de publicar um autor
que ainda não consta do seu fundo. Fá-lo com despesas menores, requi-
sitando uma licença simples à Chancelaria. Os registos da primeira
metade do século mencionam com um certa regularidade o sinal R
nessas reedições, sensivelmente mais numerosas do que os pedidos de
,tontinuação de privilégios. Mas a notação é muito descuidada - desa-
parece inclusivamente nos anos 1760 - para que se possa fazer uma
contagem com um mínimo de exactidão. A partir de 1778, finalmente,
o aparecimento da «licença simples» diminui nos registos a frequência
das reedições.
Essas novas edições dizem respeito quase sempre às mesmas cate-
gorias de obras: clássicos latinos, obras-primas do Grande Século (em
particular o teatro), grandes manuais de direito, livros de devoção
e de liturgia, por fim aquilo a que se pode chamar, à falta de melhor,

147
A OFICINA DA HISTORIA

a «literatura popular»: almanaques e pequenos romances da Biblio-


teca Azul de Troyes e das outras livrarias especializadas. Se tem como
consequência duplas entradas na contagem global, a frequência das
reedições é no entanto uma indicação preciosa sobre o consumo dp
livro. Nesta medida, os registos de privilégios não só permitem med~r
o volume de uma produção tradicionalista, como também revelam os
grandes pontos de acordo do público ea comunidade de uma cultura,
ou seja, de um passado.
Mas ensinam-nos também que até o presente se pode tornar «clás-
sico». O carácter subversivo de um livro cuja primeira edição foi feita
no estrangeiro pode esbater-se com o tempo e com o sucesso: as ideias
perigosas tornam-se ideias correntes. Acontece então que a obra bene-
ficia de um privilégio tardio que a faz aparecer a posteriori nos registos
oficiais da livraria. É, por exemplo, o caso para a Henriade ou o Siêcle
de Louis XlV. E é-o também para as Lettres de Madame de Maintenon,
espécie de história secreta do reinado de Luís XIV, das quais Males-
herbes nos diz que foram originariamente editadas no estrangeiro e
toleradas no reino por ordem do tenente-geral da polícia: «É que,
se não se quisesse, as pessoas mais ligadas à Corte não teriam fornecido
materiais ao editor [ ... ]. Era preciso estar dentro dos segredos para se
ter a certeza de que o rei não acharia mal que se deixasse publicar essa
obra, na qual o casamento secreto de Luís XIV, do qual não se sabia
nada até então, está contado circunstanciadamente.» Em suma, desde
Fleury que a Corte tinha às escondidas pequenas desforras da grande
humilhação. Mas a partir dos anos 1750, é muito publicamente que
a obra aparece sob várias formas nos pedidos de privilégio e é, aliás,
autorizada.
2. As licenças tácitas são por excelência o asilo da novidade, visto
que é essa a sua função. Incluem também reedições, geralmente sob
uma forma que deixa pensar que se trata de um livro totalmente remo-
delado, mas o caso é infinitamente mais raro do que nos pedidos de
privilégio. Agrupam essencialmente o manuscrito, o livro novo cuja
aprovação anónima não irá comprometer nem o censor nem o poder:
por isso acolhem por vezes um livro que foi riscado do circuito público
dos privilégios. Quase mudos em relação à primeira metade do século,
os registos tornam-se cada vez mais ricos a partir de Malesherbes: enCOD-

148

ii.•...
A HISTóRIA NA OULTURA OLABBIOA

tram-se aí, por exemplo, Helvétius, Condillac, Mably, Condorcet,


Beaumarchais. São tanto mais ricos quanto recenseiam igualmente
os manuscritos recusados.
Por fim, esse período bibliográfico administrativo para legal trans-
creve por períodos uma última categoria de livros: aqueles que, vindos
do estrangeiro, já impressos, não escapam ao controle e chegam em
pacotes selados à câmara sindical da biblioteca. Aparecem nos pedi-
dos de licenças tácitas entre 1767e 177811, solicitando como manuscritos
«reinícolas» a autorização para serem divulgados em França. Conta-
bilizados à parte, geralmente no fim do volume, alargam assim a massa
da produção nacional autorizada.

A partir daqui, põe-se a questão inversa: que escapa aos pedidos


de licença de impressão, pública ou tácita? Essencialmente três cate-
gorias de livros.
Sem dúvida, a menos importante agrupa uma parte da edição
de província. No século XVIII, na província, as impressões autorizadas
de livros novos parecem ser maioritariarnente de obras de interesse
local, resultantes de encomendas das administrações, do bispado,
dos tribunais, da Academia ou da Universidade. É pelo menos isso que
resulta da investigação levada a cabo no Languedoc por Madeleine
Ventre 12, e esses dados parecem conformes àquilo que se sabe da
rápida decadência das edições provincianas a partir do século XVII.
De facto, muitos livreiros e impressores de província habituaram-
-se no século XVIII a dirigir-se directamente à administração central,
sobretudo para encomendas não oficiais dos poderes locais. Os tempos
são de centralização e os hábitos estão adquiridos. Mas o carácter
apesar de tudo minoritário dos pedidos provinciais nos nossos registos
confirma e justifica a posteriori as sucessivas queixas dos livreiros pio-
vinciais do século XVIII contra os seus colegas de Paris, duplamente

11 Depois de 1778, os «livros entrados na câmara sindical» não aparecem


nos registos de pedidos, mas só nos das folhas das licenças tácitas.
12 Madeleine Ventre, L'Imprimerie et Ia Librairie en Languedoc au dernier
siêcle de l'Ancien Régime, Paris.

149

"
A OFIOINA DA HIBTORIA

soberanos no mercado da edição, graças às continuações de privilé-


gios, que prorrogam em seu favor o monopólio do antigo, e à vizinhança
com a maioria dos autores, que Ihes assegura o monopólio do novo.
O exemplo do Languedoc mostra que os decretos de 1777 melhoram
um pouco a edição de província, sem atingir seriamente a preponde-
rância parisiense.
Na realidade, o livreiro de Paris só se vê privado de um manus-
crito se o autor, receando até a censura das licenças tácitas, preferir
a via oblíqua de uma impressão prévia na província ou no estrangeiro
e só então a entrada do livro pela câmara sindical. Mas também neste
caso a obra figura nos registos de licenças tácitas, sob a rubrica dos
«livros entrados pela câmara sindical». Deste modo, o carácter parisiense
e central das fontes da administração da livraria não é provavelmente,
pelo menos quanto ao século XVIII, um inconveniente maior.
As duas outras categorias de livros que faltam comprometem
muito mais gravemente uma contagem exaustiva da livraria naquela
época. Há primeiro aqueles que são meramente tolerados pela polícia,
sem nunca aparecerem em qualquer texto de origem pública. «Não sei»,
diz Malesherbes, que fala muito deles, «que nome hei-de dar a este tipo
de licenças cuja utilização se tornou corrente. Trata-se no fundo apenas
de garantias de impunidade.» Antes de qualquer licença tácita, é, por
exemplo, uma licença dessas que o livreiro parisiense de Montesquieu
diz ter recebido do conde de Argenson para L' Esprit des lois, logo
no início de 174913.
Vimos que a própria curva dos pedidos de licenças tácitas indica
como esse procedimento deve ter sido «corrente» até Malesherbes entrar
na livraria. Mas, pelo contrário, o aumento das licenças tácitas a
partir de 1751 leva a pensar que o primeiro director-geral conseguiu
fazer passar para os costumes administrativos a doutrina que expõe
ao delfim em 1759, afirmando que só conhece «um meio de fazer exe-
cutar as proibições, é o de decretar muito poucas». Podemos assim
constatar que os seus sucessores lhe foram fiéis.
Não é que a simples tolerância tenha desaparecido completamente.

13 Carta de Huart a Montesquieu, Março de 1749.

150
A HISTóRIA NA OULTURA OLASBIOA

Demasiados incidentes testemunham o contrário, e o próprio Males-


herbes não achou outra solução, em 1761, senão deixar circular o Emile
por sua conta e risco, sem poder conceder-lhe uma licença tácita. Mas
considerando o desenvolvimento da instituição a partir dos anos 1760,
vendo Restif de Ia Bretonne e Mirabeau solicitarem e obterem licenças
tácitas, presume-se que a instituição se substituiu em grande medida
às tolerâncias secretas da primeira metade do século.
No entanto, o parlamento e o clero continuaram a fazer pesar sobre
os livros mesmo autorizados a ameaça do escândalo e da perseguição
judicial. Intimidam não só os autores como também os censores e o
poder real. É a sua pressão que explica em grande parte a existência
da última categoria de livros que nos escapa: aqueles que não bene-
ficiam de qualquer licença ou tolerância e que, impressos em França
ou, mais geralmente, no estrangeiro, são pura e simplesmente clan-
destinos. As fontes policiais e judiciais da livraria no Antigo Regime+'
estão demasiado dispersas para que possam ser facilmente recenseadas.
Esses livros escapam portanto por definição ao quadro do nosso es-
tudo 15.
Não obstante, os pedidos de privilégios e de licenças tácitas per-
mitiram enumerar um pouco mais de 44000 títulos de obras: o número
é considerável, se o compararmos, por exemplo, com as 25 000 edições
parisienses a que fazem referência Lucien Febvre e H.-J. Martin para
o século XVI, e mesmo que admitamos que se trata de pedidos de edi-
ção e não de edições propriamente ditas. Mas já vimos como o valor
estatístico desta contagem está irregularmente repartido: quase 13 000
livros de privilégios até 1750 e só algumas centenas de livros de licenças
tácitas. É portanto sobretudo através das 30000 obras da segunda
metade do século do Antigo Regime que as fontes estudadas perma-

14 Encontram-se essencialmente nos manuscritos da B. N. e na biblioteca do


Arsenal.
15 Os livros proibidos escapam ao recenseamento, mas os registos da livraria
guardam infalivelmente o rasto dos mais importantes: o Emile ou o Contrat social,
por exemplo, inscrevem aí um trilho de comentários através dos quais se pode veri-
ficar a sua repercussão social.

151

. -i
. ~
1
,

A OFICINA DA HISTóRIA

necem fiéis ao seu titulo e contabilizam realmente a «livraria» da


época.
Imaginemos durante um instante todos esses livros alinhados numa
biblioteca da época: dupla ficção, na medida em que reedições sucessivas
coexistiriam com manuscritos nunca publicados e nenhum homem culto
do século se teria privado das grandes obras editadas no estrangeiro
e mantidas proibidas. Mas essa biblioteca imaginária é ainda, em
grande medida, como já vimos, a de uma sociedade. É mais rica e repre-
sentativa do que as bibliografias parciais e tardias que o século nos
propõe. Tentámos reconstituí-la por géneros através de sondagens
cronológicas.
A classificação das obras foi estabelecida segundo os critérios da
época. A Biblioteca Nacional possui um fundo imenso de inventários
de bibliotecas privadas do século XVIII, em que os livros estão repartidos
pelas cinco grandes categorias daquele tempo: teologia e religião,
direito e jurisprudência, história, ciências e artes, belas-letras. Por outro
lado, manuais bibliográficos como os de Durcy de Noinville ou de Cels-
-Martin permitem explicitar a doutrina de todos esses inventários e,
por conseguinte, facilitar a nossa. Eis a nomenclatura que foi utili-
zada+v;

1.o TEOLOGIA E RELIGIÃO 17

A. Sagrada Escritura, Bíblia, Intérpretes da Bíblia 1 8

16 Foi estabelecida em colaboração com o Sr. Daniel Roche.


17 A classificação em cinco categorias principais é confirmada pela prática
dos catálogos de biblioteca. Cf., por exemplo: Catalogue de Ia bibliothêque de Mon-
tesquieu (publicado por Louis Desgraves, Droz, 1954). Catalogue des bibliothéques
des parlementaires parisiens (Bluche, Les Magistrats du Parlement de Paris, p. 291).
Durcy de Noinville, Dissertation sur les bibliothêques, Paris, 1758, B. N. Q. 3507.
J.-M. Cels-Martin, Coup d'oeil éclairé d'une bibliothêque, Paris, 1773, B. N. Q. 5346.
18 Cf. catálogos de bibliotecas, por exemplo: Catalogue des livres de leu Mon-
sieur le Maréchal de Lautrec, Paris, 1762 (B. N. Q. 8138). Cf. as referências da nota 1.
Cf. Cels-Martin, op. cito Classificaram-se aqui as Histoires do Antigo e do Novo
Testamento, as Vies de Jesus Cristo, etc., porque se trata ainda de história santa
ou sagrada, muito diferente da história eclesiástica.

152
.i
;
.,
,
A HIST(jRIA NA OULTURA OLASBIOA

B. Padres da Igreja, Literatura Conciliar 19

C. Teologia e Apologética:
1) Católica 20
2) Não Católica
D. Liturgia e Devoção ê !

2.0 DIREITO E JURISPRUD~NCIA22


A. Direito Canónico e Eclesiástico 23
B. Direito CiviJ24:
I) Direito Antigo
2) Direito Natural e Público
C. Jurisprudência e Prática

j:

P HISTÓRIA 25

A. História Eclesiástica êv

19 Cf. referências da nota 2.


20 A divisão das obras de teologia em católicas e não católicas (ortodoxas e
heterodoxas) é praticada nas bibliotecas públicas. Cf. «Cata!. général de Ia Biblio-
thêque du Roi», editado em 1739-1742 in Introduction ou catal, général auteurs (1897).
Esta secção inclui, evidentemente, os teólogos sermonários, os polémicos, catequistas,
ascéticos e místicos. Cf. Cels-Martin. u .j

21 A categoria «liturgia» está representada nas obras já mencionadas nas quais !


agrupa as obras de devoção e de catequismo.
22 Cf. nota 1.
23 Cf. Cels-Martin, op. cit., e Cata/o de /0 bibliothêque de Montesquieu, Cata/o
de /0 bibliothêque Malesherbes, 1797 (B. N. 8.·, INV. Q. 9128), Catal. Lautrec.
24 Cf. M. Camus, Lettres sur Ia profession d'avocat (com um catál. sistemático
dos livros de direito que é mais útil adquirir e conhecer). Cf. também Cata/o Males-
herbes, lI. Cf. Cels-Martin.
25 As biografias e as memórias de homens ilustres, a história literária, a his- "
]

tória do teatro, a heráldica, a arqueologia, etc., foram classificadas em «ciências .j

auxiliares da história» (3 B 3). Cf. Cels-Martin e Malesherbes. '1


26 Cf. Catal. de /a Bibliothêque du Roi (1688): história eclesiástica. Cf. Cels-
-Martin, Histoire sacrée. Cf. Cata/o Lautrec. Em todas estas obras e em todos os
catálogos, os trabalhos de geografia estão agrupados com os de história.

153
A OFICINA DA HIBT6RIA

B. História Profana:
1) Antiga
2) Moderna (por Estados)
3) Ciências Auxiliares
(Genealogia, Numismática, Inscrições, etc.)
C. Geografia, Viagens e Cartografia

4.0 CI~NCIAS E ARTES27


A. Filosofia:
1) Antiga
2) Lógica
3) Moral
4) Metafísica êf

B. Ciências:
1) Física
2) Matemáticas:
a) Astronomia
b) Mecânica
c) Álgebra, Aritmética, Geometria
d) Ciências, Matemática Aplicada
3) Naturais:
a) Botânica
b) Mineralogia
c) Zoologia
d) Química

27 Cf. nota I: em certos autores, esta categoria identifica-se com a filosofia


por causa da tradição: Philosofia comprehendit artes et scientias. Ex.: Formey, Con-
seils pour former une bibliothéque peu nombreuse mais choisie. Pelo contrário, no
catál, dos livros de M. Augry, advogado em Vendôme (B. N. Q. 3026), toda a cate-
goria está agrupada no titulo «matemáticas». As obras de pedagogia foram classi-
ficadas na «moral.» As de teodiceia, ontologia, antropologia, magia e cabalística
foram classificadas em «metafísica». A ciência da navegação está classificada, se-
gundo Cels-Martin, em «astronomia»; a alquimia em «química».
28 Cf. Cels-Martin. Cf. Catal. Lautrec e Cata/o Malesherbes.

154
A HIST6RIA NA CULTURA CLÁSSICA

4) Medicina, Cirurgia, Farmáciav?


C. Economia Política 3 o
D. Agricultura e Agrouomia- t

E. Artes Liberais ê -

F. Artes Mecânicas 3 3
G. Artes Especializadas++
H. Diversos

5.° BELAS-LETRAS35

A. Dicionários 3 6
B. Gramática e Filologia
C. Poesia:
1) Poesia
2) Arte Dramática
3) Romances
4) Correspondência 37

29 A distinção entre ciências físicas, matemáticas e naturais, encontra-se em


Cels-Martin, no Catal. Lautrece, no Catal. Ma/esherbes. Cf. igualmente Encyclopédie,
tomo I, «Systêrne figuré des connaissances humaines»,
30 Agrupa obras sobre administração, política, comércio e finanças. Cf. Cata/o
de Ia bibliothéque Malesherbes, a Encyclopédie méthodique (1784), art. Economia
política, cf. Cels-Martin.
31 Cf. Catal. de Ia Bibliothéque du Roi, Catal. Malesherbes, Cels-Martin,
Formey, Conseils ... , Maieul de Chaudon, Bibliothêque d'un homme de goút, Paris,
1772-1777 (B. N. 5340-41 e Q. 5542-45), A/manach de Ia Librairie, 1781.
32 Música, pintura, escultura, desenho, gravura, dança, arquitectura, arte
militar, arte de escrever, decoração ... Cf. Cels-Martin,
33 Cf. Cels-Martin, Encyclopédie, tomo I, Systême figuré ... , Cata/o Males-
herbes. Madeira, seda, pedras preciosas, ferro, cobre, relógios, lã, pirotecnica, fogo, etc.
34 Cf. nota 17. Os jogos de exercício e de divertimento.
35 Belas-letras. Cf. nota 1. Os ensaios, a crítica, a retórica, etc., foram classi-
ficados em «gramática e filologia» (5 B) segundo Cels-Martin.
36 Cf. nota 1.
37 Forrney, Conseils ... , Mateul de Chaudon, Bibliothêque d'un homme de
goãt,

155
"'~.'..-

A OFICINA DA [[[ST6RIA

D. Oradores
E. Facécias
F. Jornais e Periódicos
G. Almanaques t"
H. Miscelâneas

Como qualquer classificação, esta tem a sua rigidez e portanto


as suas dificuldades. Pôs antes de mais o problema da relação entre
o título e a obra. A tradição do título comprido e circunstanciado per-
mite geralmente um conhecimento suficientemente pormenorizado da
matéria do livro. Mas também acontece, sobretudo na primeira metade
do século, que a negligência do escrivão deixe cair uma parte do enun-
ciado e a substitua por um «etc.»: ora, é geralmente o subtítulo expli-
cativo, a equivalência semântica proposta pelo próprio autor, que
é tão frequente no século XVIII e tão preciosa para nós, que então nos
escapa. Por exemplo, em 1750, um pedido de privilégio para o livro
intitulado L'Art de vérifier les dates. etc., que foi efectivamenre editado
em Paris, nesse ano, pelo livreiro Desprez. A abreviação do título esconde
que se trata de um polémico tratado de teologia, de orientação janse-
nista e galicana, fundamentado na cronologia dos erros de diferentes
papas como Honorius ou Liber: o dicionário de PatouilIet classifica-o
entre as obras mais perniciosas.
De um modo geral, estes títulos incompletos foram mais fáceis
de identificar, nos diferentes catálogos da Biblioteca Nacional, do que
os títulos simplesmente ambíguos, mas completos, como Promenades
d'un solitaire ou Lettres de Monsieur X à Monsieur Y. Em qualquer
dos casos, foram realizadas várias centenas de verificações. Permiti-
ram estabelecer que não existe praticamente nenhum título falso des-
tinado a camuflar o conteúdo real de um livro: de resto, a leitura obri-
gatória da obra pelo censor bastaria para retirar qualquer eventual
eficácia a uma dissimulação que parece, pelo contrário, frequente nas

38 Cf. Formey, Conseils ...• Maieul de Chaudon, Bibliothêque ...• Cels-Martin,


op. cit .• e Cata/o Btbliothéque du Roi, Cata/o de Ia Bibíiothéque Malesherbes, Catal.
Lautrec.

156
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSICA

obras proibidas e circulando clandestinamente. Mas subsistem na nossa


enumeração alguns títulos ambíguos que não foi possível encontrar
na Biblioteca Nacional, nem no catálogo de autores, nem nos anónimos,
nem nas bibliografias do século XVIII ou dos princípios do século XIX 39:
logo esses livros que nunca foram publicados ou que se perderam são
inclassificáveis. São um pouco mais numerosos nas licenças tácitas
do que nas licenças públicas: a sua percentagem não ultrapassa
nunca 5 %.
Depois destas investigações, uma última dificuldade da classi-
ficação deriva da imprecisão dos critérios bibliográficos para um certo
número de obras. A hesitação pode nascer do próprio livro: o Discours
sur les sciences et les arts será «filosofia» ou «política»? Pelo menos
não se discute o seu lugar na categoria IV. Outros títulos - muito
raros- põem o problema do critério de forma ou conteúdo: por exem-
plo, Le Bonheur, poema de Helvétius. Poesia ou moral? ·Em qualquer
dos casos, foi a indicação dos contemporâneos que orientou a nossa
escolha: o tema do Discours de 1750 foi proposto por um académico
de Dijon, pensionista da classe de moral, e é assim que o classificam
a maioria das bibliotecas do tempo. Le Bonheur de Helvétius está arru-
mado no catálogo da biblioteca de Malesherbes em «Ética e Moral»:
excepção raríssima à tirania das nomenclaturas da estética clássica,
que se impõe muitas vezes, logo a seguir ao enunciado do título, sob
a forma de uma aposição de género.
Compreender-se-à que a lentidão na identificação dos livros não
tenha permitido a classificação de 45000 obras. Para eliminar o aci-
dente anual e tentar medir a evolução, demarcaram-se três secções
quinquenais (1723-1727, 1750-1754, 1784-1788) nos livros de privilégios,
cada uma abrangendo umas duas mil obras. Os das licenças tácitas,
utilizáveis a partir dos finais de 1750, foram igualmente classificados
em três períodos: o primeiro de dez anos (1750-1759) para obter um
número de obras não muito restrito, os dois seguintes de cinco anos
(1770-1774 e 1784-1788). Todos os números foram reduzidos a percen-

39 O auxílio dos meus colegas e amigos Jean-Louis Flandrin e Daniel Roche


foi muito preciosa para a identificação de elevado número destes livros.

157
A OFICINA DA HISTôRIA

tagens para serem comparados. Representam unidades muito díspares


em absoluto, dado que não há nada mais diferente de um livro do que
outro livro, mas muito comparáveis em valores relativos, visto que os
grandes números apagam no interior de cada período as mesmas dis-
paridades.

A bibliografia dos livros de privilégios nos anos vinte do século XVIII


faz transparecer como prioridade - e é essa a hierarquia da época - a
importância dos fundamentos sobrenaturais do mundo social: mais
de um terço de obras de religião+u, no sentido lato do termo, que es-
condem uma distribuição muito desigual dos volumes nas rubricas
tradicionais. Poucos comentários da Sagrada Escritura, e ainda menos
da literatura patrológica, numa época dominada pela obsessão agos-
tiniana. Mas seria errado concluir daí uma supressão autoritária da
inspiração jansenista: uma sociedade não pode proscrever adminis-
trativamente a sua própria sensibilidade religiosa. Examinadas uma
por uma, as obras de teologia e de devoção desse período mostram a
extraordinária profundidade da impregnação jansenista que deve ser
distinguida, a exemplo da censura real, da política jansenista. A Bula
Unigenitus é uma lei do reino em relação à qual qualquer comentário,
mesmo favorável, está proibido. Do mesmo modo, os censores recusam
geralmente todos os livros em cujos títulos figuram, por exemplo, as
seguintes palavras: missal para leigos, graça, predestinação, Port-Royal,
conhecimento, concílio, exposição ou ainda Embrun, Tencin, Senez,
Soanen, Auxerre, Montpellier, etc. Em contrapartida, pode consta-
tar-se o desenvolvimento autorizado de uma abundante literatura
religiosa popular de matiz jansenista, que constitui uma boa metade
das nossas obras de religião.
Desta viva tirania do sagrado, o direito e a jurisprudência tiram
a sua regulamentação dos universos humanos: a Igreja, primeiro,
enquanto organismo temporal, e o mundo civil e político. Daí a impor-
tância do direito canónico e eclesiástico e a da jurisprudência. O pri-

40 Nas quais, os «usos» das dioceses intervêm apenas como uma unidade:
escolha arbitrária, mas inevitável.

158
..,

A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSICA

meiro constitui o modelo e como que a garantia do resto. A segunda é


esforço de publicação, de actualização, de adaptação: testemunha as
justificações lentamente elaboradas pelo saber dos legistas reais para
unificar os costumes e os direitos consuetudinários, definir os estatu-
tos e as categorias, fundamentar a sociedade política. Trata-se de livros
por definição mais volumosos do que as pequenas obras de devoção,
mais esotéricos também, e portanto muito menos numerosos; mas
continuam a encarnar por excelência a grande civilização real absolutista.
Para além destas obras, começa um saber no fundo menos essen-
cial, porque é, num certo sentido, acessório: é o ornamento e quase
o prazer da vida, e não as suas regras. Mas ocupa já um lugar maiori-
tário nos livros publicados ou reeditados. A história é de dominante
. profana, visto que só um quarto dos livros dizem respeito ao passado
da Igreja. É também de dominante moderna, mas a sua leitura do pas-
sado é ao mesmo tempo largamente internacional e quase exclusiva-
mente europeia: França, Inglaterra, Espanha, Itália, Rússia, Polónia,
Suécia, etc. O mundo extra-europeu é o das viagens, que transformam o
presente já não através do tempo mas do espaço. Mas a curiosidade geo-
gráfica também está ligada à história por um parentesco mais secreto do
que a fraternidade do passado e do longínquo: é que revela no presente
o passado, no além do homem a infância do homem. Servan explicá-
-lo-á em 1781: «Sempre me pareceu que a descoberta da América não
tinha contribuído pouco rara os progressos da moral [.. .]. De facto,
antes dessa época, não sabíamos nada da infância da nossa espécie.»
A história e a geografia começaram assim a sua difícil coabitação.
O interesse que suscitam é antigo. Logo desde o início do século, agru-
pam um conjunto de obras bastante importantes.
Mas o essencial do saber profano é constituído pelas «ciências e
artes» - nomenclatura clássica para designar tudo aquilo que é acti-
vidade intelectual de conhecimento e beleza. Já antes de Boileau, o
paralelismo das artes e das ciências, que é uma das teses fundamentais
do classicismo francês, é afirmado em nome da origem comum a ambas,
a razão. «As artes têm em comum com as ciências», diz Le Bossu no
início do seu tratado do poema épico (1675), «o facto de serem como
elas fundadas na razão e de nelas devermos deixar-nos guiar pelas luzes
que a natureza nos deu.» Assim, as belas-letras são apenas um campo

159
A OFIOINA DA HIST6RIA

particularmente importante das ciências e das artes: é a sua dimensão


e sobretudo o seu grau de «nobreza» que justificam a sua nomencla-
tura particular, mais do que a sua própria natureza.
Os livros de privilégios dos anos 1723-1727 designam toda a impor-
tância social das ciências e das artes e das belas-letras: cerca de metade
do total. No interior da primeira categoria, moral e metafísica domi-
nam a filosofia, a medicina domina as ciências. As «artes liberais»,
entre as quais a música constitui o essencial, esmagam com o seu volume
a agricultura e as artes mecânicas, que mantêm a ignomínia de tudo o
que é manual. Os livros de «política», se se exceptuar «o compêndio de
paz perpétua», são quase todos manuais de técnica comercial.
Nas belas-letras, a estética clássica conserva todas as suas impo-
sições: são muitos os livros de gramática e de filosofia que conservam
e ensinam a ciência e as regras da linguagem nobre. A «poesia», no
sentido lato do termo, é largamente maioritária e testemunha a duração
dos grandes géneros clássicos: os versos, a arte dramática, as correspon-
dências. Livros gregos e sobretudo latinos são igualmente numerosos.
Mas deve notar-se já a importância proporcional dos romances, mais
frequentes que as peças em verso ou as tragédias.
Tal é portanto em grandes traços a economia bibliográfica de
uma grande cultura clássica tradicional no início do século XVIII e o
equilíbrio dos seus diversos elementos. A comparação pode então ser
feita com as duas outras sondagens dos anos 1750 e do fim do século,
só nos livros de privilégios.

Ora acontece que as permanências chamam a atenção tanto como


a evolução: volumes comparáveis de livros de direito, de história e de
belas-letras, expressando através de todo o século a manutenção de
um grande tipo de escrita e da sua procura social. O direito enriqueceu-se
sensivelmente com os desenvolvimentos da jurisprudência, que expres-
sam ao mesmo tempo a multiplicação das chicanas individuais e dos
«memoriais» de processos, e o grande esforço nacional de racionali-
zação jurídica. A história perde durante o século parte da sua matéria:
um quarto das obras de história eclesiástica em 1724-1728, 15 % nos
anos 1750, 11 % nos anos 1780. Mas mantém-se fiel às grandes
orientações desenhadas desde a origem: reserva à Europa a inteligi-

160
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSICA

bilidade e a dignidade inerentes a um passado comum, enquanto o


resto do mundo depende a maior parte das vezes da leitura horizontal
das viagens. Ao longo do século, o elevado número de livros dedicados
à França antiga - em particular a carolíngia - traduz a formação
de uma consciência nacionalista antiabsolutista, na qual a nostalgia
nobiliária das assembleias francas se converte em pedagogia consti-
tucional.
A extraordinária estabilidade dos livros de belas-letras não é apenas
a da sua proporção em relação ao conjunto. Caracteriza igualmente
o equilíbrio interno que distribui as obras em grandes géneros lite-
rários: oradores, poesia, teatro, romances, gramática, etc. A formalização
estética do classicismo atravessa o século sem perder qualquer dos seus
deveres, apesar de um Diderot e de um Rousseau; penetrou bastante
profundamente no gosto do público para não receber a sua duração.
Deixa transparecer a perenidade desse estilo nobre em que se vai
desenvolver, para depois morrer, a eloquência revolucionária.
Nessas belas-letras do fim do século intervêm, no entanto, dois
elementos novos. Um deles é a multiplicação dos dicionários, que é
um aspecto conhecido do fanatismo enciclopédico das Luzes e desse
furor de classificar e fechar os campos do saber. O outro é mais surpreen-
dente e só pode ser apreendido pela leitura dos títulos: ~ o desapare-
cimento quase total, nos anos 1780, dos clássicos latinos ainda muito
numerosos nos meados do século+t. Não se entende muito bem as
razões culturais deste facto, numa época dominada pela estética neo-
clássica. Trata-se mais provavelmente de uma incidência administrativa
da lei de 1777 sobre a renovação dos privilégios e do desenvolvimento
do regime da licença simples.
Mas se, através dos seus livros, toda uma cultura do século XVIII
nos aparece como uma duração e como uma grande habituação social,
duas das categorias bibliográficas permutam, pelo contrário, as suas
dimensões respectivas entre 1724 e 1789: a teologia e as ciências e as
artes. Os dois movimentos parecem progressivos e quase regulares;

41 É este fenómeno que explica no essencial a diminuição relativa dos livros


de «poesia» em 1784-1788.

161
A OFICINA DA HISTÓRIA

não confirmam a hipótese de Daniel Momet que limita à primeira


metade do século a grande batalha anti-religiosa 42. Já nítidos nos mea-
dos do século, aceleram-se até ao fim do Antigo Regime, projectando
uma luz interessante sobre os ritmos da dessacralização de um mundo.
Na realidade, as obras de religião que desaparecem são as de litur-
gia e de devoção. A teologia e a apologética católicas continuam a mobi-
lizar até ao fim do século quer a sensibilidade jansenista, quer um tra-
dicionalismo que vai surgir nos anos 1780 contaminado pela «filosofia»:
as verdades cristãs «filosoficamente demonstradas» estão em voga.
Aliás abandonaram quase totalmente o latim. Mas a raridade relativa
das brochuras de devoção e dos rituais encomendados pelas dioceses
talvez constitua um indício da falta de público. Esse anticlericalismo
urbano do qual DOS falam tantos autores do século XVIII desde a grande
crise dos anos vinte e que seria portanto muito anterior à Constituição
civil não encontrará neste fenómeno uma confirmação? As suas raízes
jansenistas, ou mesmo richeristas, explicam sem dúvida a contrario
a manutenção de uma importante cultura teológica.
Mas no fim do século o sector maioritário da produção de livros
passou a ser «as ciências e as artes». As palavras são aqui tanto mais
significativas quanto o seu sentido enriqueceu: já não designam, como
no século XVII, uma espécie de harmonia entre as actividades sociais
e uma ordem divina, de que verdade e beleza, natureza e razão
são apenas expressões diversas. Em 1850, Rousseau dissocia brutal-
mente o social do natural: as ciências e as artes perdem então a
inocência e passam a ser amaldiçoadas ou abençoadas. São dora-
vante como essas fachadas neoclássicas que o fim do século vai cons-
truir, perdidas numa natureza «à inglesa» que designa a natureza,
estranha e secreta. É que se tornaram agentes privilegiados da história
e do humano, e Condorcet dirá: «do progresso do espírito humano».
A controvérsia sobre as ciências e as artes - como a que se travará
acerca do luxo, que a ela se liga natura!mente- está assim no próprio
cerne da sociedade das Luzes, que a sente como um dilaceramento da
sua própria consciência de si; daí o extraordinário eco do primeiro

42 Daniel Mornet, Les Origines intelectuelles de Ia Révolution française.

162
A HISTóRIA NA CULTURA CLASSIOA

discurso de Rousseau, literariamente mais banal do que a intuição que


o sustém.
Ora, os registos de privilégios testemunham o número crescente
desses livros que são por excelência portadores de um mundo mais civi-
lizado, mais rico, mais humano. A percentagem duplica no decurso
do século. Os números inscrevem aqui uma espécie de grande compen-
sação colectiva pelo desaparecimento dos livros de devoção. Pelo con-
trário, a repartição interna da categoria permanece relativamente está-
vel: mesmas percentagens de filosofia, em que a moral progride no
entanto em relação à metafísica: percentagens comparáveis das ciências,
dominadas pela medicina e em particular pela obsessão venérea que
manifesta a extensão do seu poderio psicológico. Os livros de agricul-
tura e sobretudo de política são cada ve .uars numerosos; os segundos
mudam igualmente de natureza, deslizando da economia para a polí-
tica propriamente dita. Ao ler os seus títulos, vê-se a influência que
neles tem a crise dos últimos anos do Antigo Regime.
Nas «artes liberais», os livros de pintura, de arquitectura e de arte
militar são proporcionalmente mais numerosos até aos anos 1750.
No fim do século, a diminuição da percentagem global incide sobretudo
nas obras de música, que são numerosas entre 1750 e 1754 e muito
raras entre 1784 e 1788. Mas também se pode tratar de um enfraque-
cimento do regime da licença pública resultante dos decretos de 1777,
no que respeita a livros tão inofensivos como as obras de música.
O elemento mais surpreendente desta classificação das artes e das
ciências é a parte constantemente mínima que cabe às «artes mecânicas»,
às quais o século XVIII se honra muitas vezes de ter devolvido a impor-
tância. Mas mais do que uma mentira, a nossa estatística bibliográfica
talvez denuncie uma confusão: na realidade, se a sociedade das Luzes
quis efectivamente reabilitar as artes mecânicas, não é tanto pelo estudo
da tradição manual do mundo pré-industrial que não tem nada para lhe
ensinar. Desejou antes talvez erguê-Ias até ao estilo nobre, e incluí-Ias,
em nome do universal, na utopia hedonista: as cidades felizes de Ledoux
talvez sejam mais significativas do que as famosas pranchas da Enci-
clopédia.

163
A OFICINA DA HIST6RIA

Mas perante todos estes livros de tradição, que nos dizem as li-
cenças tácitas?
A comparação só é possível para a segunda metade do século;
mas por isso mesmo as três sondagens operadas nas licenças tácitas
são relativamente mais importantes. Fazem transparecer desde o início
dos anos 1750 a queda vertiginosa das percentagens dos livros de reli-
gião e de direito, que se situam entre 2 % e 3 % do total - número
que não vai variar muito até 1788: dupla verificação do carácter tradi-
cionalista deste tipo de obras e do destino específico das licenças tácitas.
A inovação intelectual e aquilo a que hoje se chamaria a «moda» estão
aí artificialmente majoradas em relação aos hábitos intelectuais e so-
ciais+ê,
Porquê, então, obras de religião, mesmo em número reduzido?
A literatura litúrgica desapareceu, a de devoção é muita rara. É a teo-
logia que domina, geralmente empenhada em combater os «erros domi-
nantes» da época e os filósofos. As numerosas sondagens que foram
efectuadas nessas obras - quanto existem na Biblioteca Nacional
- revelam geralmente de novo a inspiração e o vocabulário jansenistas.
Sob os Pensées morales adaptées aux figures de I'Ancien Testament
qui représentent Jésus-Christ, obra que obtém uma licença tácita em
1788, revela-se, por exemplo, um autor anónimo de estilo rigorista
que evoca o da grande época dos solitários; a violência da polémica
antifilosófica lembra igualmente a das Nouve/les ecc/ésiastiques.
Mas independentemente destes livros de religião e de direito, dema-
siado escassos para suscitar comentários que não sejam individualizados,
as licenças tácitas são quase exclusivamente o domínio da história,
das ciências e das artes e das belas-letras. Campos mais fluidos do
que nos pedidos de licenças, não só porque as percentagens obtidas
para cada grande categoria variam mais, mas sobretudo porque as
relações das suas estruturas internas surgem de uma secção para outra

43 Esta majoração é tanto mais forte quanto as três sondagens, para se man-
terem coerentes e comparáveis, não tomaram em conta os «livros entrados pela
câmara» que só aparecem entre 1767 e 1778. Ora, esses livros já impressos, vindos
da província ou do estrangeiro, são de géneros mais variados do que os manuscritos
que escolheram deliberadamente o circuito das licenças tácitas.

164
BELAS-LETRAS
11931ivroo 2728livroo 228~ Iívros '13 IiYrol 821 liYrol 724 livros
12 indelerminad08 72 indetenniDadoo 49 indctennjoadoo 100 % Miscelftneas
100%: Almanaqu<s
Teologia Jornaís
Di~ito 80 Facécias
80 Oradores
Hiatória
Poesia
60

CUncias e Arfa 40 (Romance)

Gramática
20 Filologia
l.ctras
o Dicionários
o ••• 1723-27 11»-54 1184-88 Diversas
1123-27 11»-54 1184-8a 100 % A. especializada.
A. mecânicas
Artes liberais
LICENÇAS PÚBLIcAs Agricultura

Política

40
Ciências

20

Filosofia
o
330 livros 686 liYrol 742 livros
mNCIAS E ARTES
1082 livros 1863 livros 2165 JiYroI BELAS-LETRAS
55 indeterminados 71 iodeterminados 94 indeterminados
100 % Teologia
Direito
Hist6ria 80
80

CiO
60 Ci&>ciaa e Arfa

40
40

BeI••. LeIru 20
20
Onunática
o Dicionários
o 17»-59 1770-74 1'/80-84
A. cspecializadas
1710-74 1180-84 100 %
Div(..TSOS A. m«Jinicas
Artes liberais
LICENÇAS TÁCITAS 80-
AgriclJ!Lurc!. '

PoHtica
CiO

Ciências

FilO6Ofia

CI~NCIAS E ARTES
A OFICINA DA HISTóRIA

100,----------------

80

Licenças
tácitas,
Ciências-
e Artes

20
Livros
de política

1770 71 72 73 74 1784 8S 86 87 88

loo.-----~----~----._----_r----~----~--~

~r---~-----+----~----+-----~--~
- Livros de privilégios
_ Livros de licenças tácitas
•••••••.•• Livros de licenças tácitas
JO~ + ~.ívros «entrados
~~ pela __ L_cAmara» L_ L_ L_ __ ~
1720 30 40 50 70 80 88

166
A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSICA

profundamente transformadas, e mais submetidas ao tempo, ou seja,


às modas. No interior de uma permanência, a grande estética clássica,
eis que transparecem na exageração as conjunturas e as evoluções.
O principal destes movimentos é conhecido: é a rápida progressão
dos livros de «ciências e artes», que passa de 25,6 % nos anos 1750
para mais de 40 % nos anos 1780. Mas aqui toma o seu cariz pré-revo-
lucionário, através da multiplicação privilegiada dos livros de política,
que agrupam no fim do século mais de metade dos da rubrica. É a
crise do Antigo Regime, evidentemente, que tem de ser aqui enten-
dida no sentido estrito: com efeito, o exame distinto dos anos 1784-
-1788 mostra que, se a proporção das ciências e das artes é anualmente
mais ou menos constante, a percentagem interna das obras de política
cresce rapidamente a partir de 1787: exactamente a partir da assembleia
dos notáveis de Fevereiro, que desencadeia o fluxo da literatura revo-
lucionária. Um fenómeno da mesma ordem, mas actuando em sentido
contrário, explica talvez a contracção relativa do volume dos livros
de política entre 1770 e 1774 em relação aos anos cinquenta: é o período
do Triunvirato, é a última grande tentativa neo-absolutista do rei de
França. Além disso, a percentagem da política recupera bruscamente
em 1774 em relação aos anos anteriores, com a morte de Luís XV,
a abertura Turgot e o regresso dos parlamentos. Deste modo, os regis-
tos de licenças tácitas não confirmam apenas essa alacridade das ciências
e das artes tão característica da época das Luzes. Dão dela uma versão
mais conjuntural, na qual a história tradicional regressa de novo.
Daí o carácter ao mesmo tempo mais instável e mais acentuado
das percentagens internas. A visão mais nítida nasce aqui da adição
dos livros de filosofia e de política; têm volumes proporcionalmente
variáveis, mas muitas ligações interiores na medida em que as obras
morais dos filósofos contemporâneos dominam a primeira categoria.
Além disso, não é o século xx, mas precisamente o século XVIII, com o
P.C Baudeau, que inventa a expressão «ciências morais e políticas».
Podemos medir então a sua predominância numérica sobre as ciências,
que não aparece nos privilégios: todo um fluxo de curiosidades novas
sobre o social se inscreve aqui com um relevo surpreendente. Em contra-
partida, outros traços são comuns às duas fontes: a preponderância

167
A OFIOINA DA HISTóRIA

da medicina 44 nas ciências, a importância relativa da curiosidade agro-


nómica, por fim a percentagem ínfima dos trabalhos sobre as artes
mecânicas.
Aparentemente, a história recupera nas licenças tácitas, nos meados
e no fim do século, percentagens muito vizinhas das dos privilégios:
que significa a diminuição intermédia que sobrevém, em 1770-1774?
Percebem-se mal as hipóteses de explicação. O que é certo, no entanto,
consultando os títulos, é que a natureza dos livros de história é aqui
um pouco diferente da que se encontra nos privilégios: ao lado das ver-
dadeiras narrativas históricas, assiste-se à multiplicação dos materiais
da história, e em particular as memórias mais ou menos autênticas
de personalidades do passado mais ou menos célebres. A simples pala-
vra «memórias» é bastante reveladora da ambiguidade do género e da
contaminação romanesca. O século XVIII, que romanceia a história
e historiza o romance, discutiu com paixão o paralelismo entre os dois
géneros.
Mas é também porque o romance, esse eterno suspeito da esté-
tica clássica, se esconde por detrás da história. Foi um dos meios
que achou - como o exotismo artificial da viagem persa ou turca,
como o processo das «cartas» - para se libertar da hipoteca poética
e para abrir sem escândalos os caminhos da descrição do mundo real.
Mémoires de Monsieur X, Histoire de Mademoiselle y, este intitulado
tão frequente trai muitas vezes a passagem do bucólico ao realismo,
e da idealização colectiva à verdade particular, como o deseja Diderot
no seu elogio de Richardson: «Este autor não faz escorrer o sangue
dos Iambrins ; não vos expõe a ser comido por selvagens; não se fecha
em locais clandestinos de deboche, não se perde nunca nas zonas do
feérico. O mundo em que vivemos é o lugar da cena. O fundo do seu
drama é verdadeiro; as suas personagens possuem todas uma realidade

44 Classificou-se em «medicina», nas licenças tácitas, e segundo os critérios


do tempo, a longa polémica dos anos 1780 em volta das teses de Mesmer sobre o
magnetismo animal. De uma maneira mais geral, a grelha bibliográfica espalha por
rubricas diferentes (metaffsica, química, medicina) a unidade do pensamento ocul-
tista de que se conhece a importância no fim do século.

168
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

possível.» Não se pode dizer de melhor maneira que um certo romance


à inglesa quebra no século XVIII a formalização estética do classi-
cismo.
Não é portanto de admirar que as licenças tácitas sejam por exce-
lência o abrigo do romance. As percentagens são a esse respeito per-
feitamente claras; indicam a invasão da poesia pelo romance, que agrupa
entre 25 % e 50 % dos livros de belas-letras contra 15 %, 13 ~;.;e 15 %
nas três sondagens feitas nos registos de privilégios+>. A categoria
das belas-letras, apesar de diminuir nas licenças tácitas, por ser ampu-
tada dos clássicos antigos e modernos, e sobretudo comprimida pela
expansão das ciências e das artes, conserva ainda uma percentagem
interna muito elevada de romances.
Esta indicação levou-nos a comparar neste campo, e para os
dois períodos de 1740-1745 e 1750-1755, os romances encontrados nas
fontes da livraria e os recenseados por Daniel Momet na sua grande
edição de La Nouvelle Héloise+», Para isso foi necessário voltar a
classificar por ordem cronológica obras de que Daniel Mornet esta-
belecera a lista por géneros. Mas a comparação é frouxa, porque a
bibliografia Momet recenseia romances efectivamente publicados ou
reeditados, e desde então conservados, quer tenham sido impressos em
França quer no estrangeiro; enquanto os pedidos de impressão agru-
pam apenas os romances que solicitem em Paris a autorização do
chance1er: são reedições, mas também, dentro da multidão dos manus-
critos, romances simplesmente virtuais ou eventualmente perdidos,
cuja identificação permanece, para alguns deles, difícil e discutível 4 7.
Ainda por cima, existe entre os dois elementos da comparação uma
irredutível diferença cronológica, visto que o pedido de impressão
antecede com um intervalo de tempo arbitrário a publicação efectiva.

4S Excluiu-se dessa percentagem os pequenos romances da Biblioteca Azul


e de outras livrarias especializadas.
46 Daniel Mornet, La Nouvelle Héloise, tomo I, Paris, 1923.
47 A «Biblioteca Universal dos Romances» é um bom instrumento de identi-
ficação.

169
A OFICINA DA HISTORIA

Os números estabelecidos parecem, no entanto, suficientemente inte-


ressantes para serem indicados:

MANUSCRITOS

Licenças
Privilégios Momet
tácitas

1741-1745 74 18 205
1751-1755 123 193 199

Os romances identificáveis nos manuscritos da administração real


são portanto menos numerosos do que os da bibliografia Momet nos
anos 1740 e sensivelmente mais numerosos nos anos 1750: a ruptura
deriva essencialmente do aumento das licenças tácitas, cuja represen-
tatividade é confirmada a partir de 1751. Um elevado número de roman-
ces citados por Momet como tendo sido editados no estrangeiro encon-
tra-se nos pedidos de licenças tácitas, mas naturalmente nem todos.
Ao contrário, a lista Momet omite muitos títulos romanescos que encon-
tramos DOS registos da livraria.
Mas independentemente dessa comparação que será necessário
retomar num quadro menos geral do que o deste estudo+s, o paralelo
entre as duas séries de arquivos da livraria faz ressaltar a importância

48 Os registos manuscritos da livraria podem permitir renovar o exame de


certos problemas de história literária: o que colocou, por exemplo, Georges May
numa obra aliás notável sobre a proscrição dos romances pelo chanceler d'Agues-
seau em 1738. Retomando uma bibliografia estabelecida por Jones, para a primeira
metade do século (A List of Frencb Prose Fiction, New York, 1939), May fundamenta
a sua argumentação na raridade dos novos romances publicados em Paris durante
o ano de 1738: apenas seis. Entre esses seis, aliás, um deles, o Essai sur Ia nécessité
et les moyens de plaire, de Paradis de Moncrif, é essencialmente uma obra de moral,
seguida, é certo, de um conto. Mas a consulta dos registos de pedidos de impressão
mostra que de 20 de Fevereiro de 1737 - data dada por May como inicio da pros-
crição - até ao fim de 1738, os romances novos autorizados são sensivelmente mais
numerosos. Durante o mesmo período, é verdade que os censores recusaram uma
vintena de edições e reedições.

170
A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA

considerável do romance nos pedidos de licenças tácitas: importância


proporcional tanto mais forte quanto o número anual de livros é nessa
época três vezes menor. Nos anos cinquenta, a França não parece
portanto apenas, como pretende a famosa passagem de Voltaire, obce-
cada pela discussão sobre os trigos. O romance deve ter sido então
um grande artigo de consumo, visto que as belas-letras são invadidas
por ele. O movimento é mais remoto, marcado por uma longa querela
estético-literária que Georges May historiou. Mas as licenças tácitas
da segunda metade do século dão testemunho do lugar preponderante
que o romance passou a ocupar na inovação literária.

As sondagens realizadas confirmam o carácter das duas fontes,


que todos os contemporâneos sublinharam: sem as licenças tácitas,
a livraria do Antigo Regime não indicaria o fascínio que o romance
exerceu sobre uma sociedade inteira. Mas sem as licenças públicas, apa-
garia o rasto de uma cultura latina ou de uma estética tradicional que
formou inclusivamente as gerações revolucionárias.
Estes dois exageros distintos são preciosos para a história, não
só porque separam em certa medida o novo do antigo, mas sobre-
tudo porque, reunindo no início as condições da contradição, elas aca-
bam por se revelar complementares: as proporções diferem, mas os
movimentos são idênticos.
A permanência dos livros de direito exprime o esforço permanente
de uma sociedade política que é filha dos grandes legistas da monarquia.
Indica ao mesmo tempo a efervescência dos interesses individuais e
a aspiração à arbitragem abstracta e única dos códigos. A das obras
de histói ia é ambígua como a própria história, que é ao mesmo tempo
convenção recitativa, curiosidade indiferenciada do tempo e do espaço,
tomada de consciência nacional. Enn e a retórica, o conhecimento e a
justificação, o Século das Luzes mantém um equilíbrio que já é antigo.
A importância das belas-letras e a manutenção dos grandes géneros
são igualmente muito legíveis nas prateleiras das nossas bibliotecas
imaginárias. O mundo do século XVIII continua sendo o dos gramáticos
e dos críticos normativos da época clássica. A cultura antiga, a arte
oratória, a poesia, o teatro conservam o seu privilégio de classe e o
seu público. É através do romance que o Belo toma por vezes um novo

171

e'tW
A OFICINA DA HISTóRIA

rosto, emancipado dos constrangimentos do grande estilo: e ainda assim


conserva-lhe muitas vezes a aparência, vestido dos títulos tradicionais
do bucolismo, da moral, da viagem ou da história. É sem dúvida menos
por prudência do que por uma espécie de homenagem ao gosto domi-
nante do público. A indicação geral não é indiferente, pois não se cessa
de determinar aquilo que a Revolução deve à filosofia das Luzes. Talvez
fosse interessante examinar o que deve à sua retórica. Robespierre e
Saint-Just escreveram versos antes de pronunciar discursos.
Subsiste, o grande movimento secular inverso das obras de reli-
gião e de «ciências e artes» que exterioriza através dos seus volumes
variáveis a mobilidade de uma atenção colectiva ou as suas novas
disponibilidades. Ao nível mais global e grosseiro da análise, exprime
aquilo que é conhecido de todos e que foi sentido como tal pelos contem-
porâneos: o esforço filosófico para evacuar o sobrenatural do mundo
humano. Não é por acaso que tantos textos do século XVIII opõem como
sintagmas antagónicos «as ciências e as artes» e «os costumes e a reli-
gião». A dessacralização de uma sociedade e de uma cultura exprime-se
através do velho conceito unificador da nomenclatura clássica.
Mas «as ciências e as artes» não são só instrumentos da laicização
de um mundo. Surgem já -muito antes das espectaculares vitórias
da eficácia industrial - investidos pelo destino que mais tarde lhes
atribuirá o optimismo liberal e a sua inversão marxista: já não são um
ornamento, nem mesmo um simples saber, mas meios específicos do
homem, os trunfos da sua aventura. A grande ideia que governa a racio-
nalidade do mundo contemporâneo nasce também, no seio da cultura
clássica, da própria acumulação da reflexão sobre as ciências e as
artes.
Que esta ideia seja muito anterior à transformação industrial,
explica com certeza o carácter específico que toma na nossa história
nacional: a fraqueza da investigação técnica, as relativas lentidões
da elaboração propriamente científica, a sobrevivência dos quadros
da reflexão clássica, a preponderância da reflexão sobre a felicidade social.
«As ciências e as artes» não são mais esse conhecimento conjunto do
Verdadeiro e do Belo espontaneamente reconhecidos na ordem eterna
do mundo. São já a consciência de uma separação e de uma história:
mas é menos a das relações do homem com a natureza do que a dos

172
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

conhecimentos humanos, cujo progresso é ao mesmo tempo reconhecido


como um facto e transfigurado como um valor.
Neste progresso dos conhecimentos, a «moral» e a «política»
repartiram para si a parte do leão. Trata-se tanto da observação técnica,
da reforma de um «abuso» como da reconstrução de toda a cidade:
uma inteira elevação social se exprime através da dupla linguagem
da experiência e do sonho. No que tem de mais novo, o pensamento
das Luzes transporta ao mesmo tempo ambição e utopia: a ambição
do poder e a utopia da felicidade. É conquista, alargamento do saber,
mas ao mesmo tempo conjuro secreto de uma história agora aberta.
Legou à França contemporânea uma alternativa que não deixou,
de há duzentos anos para cá, de apaixonar a nossa história cultural
e política.

173
Duas legitimações históricas da sociedade
francesa no século XVIII:
Mably e Boulainvilliers*

o século XVIII coloca duas questões à história: Que é uma civi-


lização? Que é uma nação?
Estas duas questões são independentes. Não se misturam nunca.
A primeira está ligada ao sentimento vivo do progresso que anima este
século e à elaboração de um esquema .,linear da história humana: a
«civilização» é esse ponto de perfeição dos costumes, das letras e das
artes de que a Antiguidade grega e romana delineou os traços e de que
a Europa das Luzes ilustrará de novo ~s vantagens. Entre Voltaire e
Condorcet, a «civilização» deixa até de ser pensada como uma identi-
dade cíclica com o modelo antigo, pari figurar simplesmente o estádio
superior dos «progressos do espírito hur iano». Ponto de passagem obri-
gatório das sociedades, é o sonho das c.ue nunca a atingiram e a sorte
das que nela desabrocham. Mas de qua lquer modo, mais cedo ou mais
tarde, a história constitui a sua garantia para todos, desde o momento
em que tem um sentido.

• Annales E. S. C., n." 3, Maio-Junho de 1979.


Agradeço a Mona Ozouf, co-autora deste artigo, o ter-me autorizado a publi-
cá-lo aqui de novo.

175
A OFICINA DA HISTCJRIA

A segunda questão não tem nada a ver - pelo menos até à Revo-
lução Francesa - com esse racionalismo profético. Vai antes buscar
as suas fontes ao mal-estar da sociedade francesa perante o absolu-
tismo, e é natural então que se nos deparem os primeiros ecos durante
as guerras de religião e, na altura da Fronde, nas duas crises anteriores
do absolutismo. A interrogação: que é a nação? implica efectivamente
uma consciência autónoma da sociedade civil em relação ao poder.
Inclui a ideia de direitos: se um reino é um conjunto de súbditos, uma
nação é uma colectividade de cidadãos. Um reino é uma propriedade,
uma nação é um contrato. À história compete revelar-lhe as cláu-
sulas, afirmar-lhe a imprescritibilidade, verificar-lhe a execução, denun-
ciar-lhe o abandono. Está investida, em vez e no lugar de uma Provi-
dência enfraquecida, da missão geral de verificação dos títulos: os do
rei e os da nação. Se não for depositária do contrato original, será
apenas uma cronologia do despotismo: outro modo de dizer que a nação
é a liberdade.
Mas que é, ao certo, essa nação? Todo o problema reside nesta
pergunta. É que se a sociedade francesa manifesta muito cedo, a partir
de 1715, uma vontade turbulenta de transformar as suas relações com
o poder real, não consegue pensar-se a si própria como uma colecti-
vidade política.
Muito mais do que submetida, foi verdadeiramente quebrada pela
tirania de Luís XIV, de que nunca exorciza a recordação. Com todo o
tipo de meios, diferentes nos princípios mas convergentes nos resulta-
dos, por razões intelectuais, políticas, fiscais, o Grande Rei misturou
todas as categorias. A servidão geral, a venda ou a renegociação dos
títulos e privilégios, a arbitrariedade das promoções burocráticas pri-
varam a nobreza não tanto do seu papel como da sua própria defi-
nição. Todavia, enquanto a destruía nos seus princípios, a monarquia
absoluta manteve, e até «castifícou» nas suas aparências, a sociedade
das ordens; o protocolo inflexível da Corte recobre na realidade um
Estado e uma sociedade que já não têm a mesma legitimidade comum.
Por outro lado, modificaram-se as condições intelectuais para
pensar uma nova legitimidade. A partir do início do século XVII!, o
político e o social são incluídos no campo do pensamento crítico e a
justificação providencial e organicista da hierarquia social não basta

176
A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA

para renovar um consenso. Esta hierarquia já não é aceite como natural:


é, pelo contrário, com a igualdade natural dos homens que deve ser
tornada compatível; é o contrato social, e já não o desígnio de Deus
que deverá revelar e traduzir; é, por fim, uma participação no poder,
uma espécie de cidadania elementar, que deve fundar a todo o custo.
A esses imperativos complexos, ao mesmo tempo sociais, psicoló-
gicos e culturais, a história de França oferece o campo imenso das suas
justificações. Em lugar de Deus, tornou-se depositária do contrato
original, dos direitos dos Franceses e dos segredos do pacto social.
É doravante a instância decisiva de legitimação. É a ela que se pede
a resposta à pergunta: que é a nação? É com ela que se escrevem ao
mesmo tempo uma teoria do poder, uma reivindicação de cidadania
e um discurso sobre a desigualdade. É surpreendente vê-Ia solicitada,
nos mesmos termos, por homens tão diferentes como Boulainvilliers
e Mably, tantas vezes opostos, como o defensor da ideologia nobiliária
ao defensor da ideologia democrática. O que desejamos mostrar é que
as figuras que constroem são contraditórias mas comparáveis: obtidas
pela manipulação dos mesmos dados históricos e dos mesmos mate-
riais conceptuais. Através deles, descobrimos que no século XVIII histórias
idênticas podem escrever-se com sinais contrários, desde que as soli-
citações do presente as sobrecarreguem de significações imprevistas.
O que, na história que vivem, salta aos olhos de Boulainvilliers
e de Mably é o aviltamento da liberdade política. Facto decisivo na
época, segundo eles, que no entanto insistem em ignorar, à sua volta,
os homens cuja tarefa é a de compreender o presente, como os inten-
dentes, que devem fazer um inventário da França. Os seus Mémoires,
em que ressoam os direitos da realeza, não dizem palavra sobre os dos
Franceses. «Não vêem ou não querem ver outro princípio de governa-
ção que não seja o do despotismo do Príncipe e dos seus ministros 1»,
afirma, indignado, Boulainvilliers, decidido a censurá-los. Mably, por
seu lado, aflige-se por ler a história do P. e Daniel: «De Clóvis até nós»,
conduz o leitor «como se se tratasse de uma única e mesma monarquia 2.»

1 Boulainvilliers, Histoire de I'Ancien Gouvernement de Ia France, Haia-Amester-


dão, a custos da companhia, 1727.
2 Mably, De Ia maniêre d'écrire l'histoire, Paris, A. Jombert Jeune, 1783.

177

.M
A OFIOINA DA HIST6RIA

Esta tranquilidade é a de homens para quem o presente é evidente;


mas o presente assim vivido é necessariamente ininteligível. Só a insa-
tisfação do presente dá um sentido ao passado.
Um presente em que tudo fala dos abusos da realeza despótica;
observadores que nem sequer parecem dar por ela. Nesta dupla reacção
se enraíza, para Boulainvilliers e Mably, a necessidade da história.
Tão semelhante neste e naquele que Mably tem de resistir aos amigos
que desejariam vê-lo baptizar as suas observações: «História do nosso
governo». Histoire de l'Ancien Gouvernement de Ia France era, meio
século antes, o título da grande obra de Boulainvilliers. Assim se vê
a idêntica visão dos dois homens: a história como reflexão sobre as
origens do poder, como remédio para o fascínio do presente.
Confessar essa finalidade é, evidentemente, romper com a história
providencialista; Boulainvilliers fá-lo com mais vigor do que Mably,
visto que para ele o modelo de Bossuet, por mais repulsivo que seja
- «um dos mais vergonhosos testemunhos da indignidade do nosso
século 3» - é também mais constrangedor e mais próximo; Boulain-
villiers julga ainda necessário, antes de empreender uma obra histórica,
precisar que Deus pôde ter dado ao homem a luz natural sem controlar
o uso que ele ia fazer dela. «Abandonou o mundo à nossa disputa»:
esta declaração firme, que liberta a história da metafísica, abre o Abrégé
d' Histoire Universelle, que redige por volta de 1700 para os seus filhos.
Cinquenta anos mais tarde, Mably já não julgará necessário esse salvo-
-conduto*, esse livre-pensamento*, nem sequer como precaução retó-
rica.
Há ainda outra história de que a própria lógica do seu projecto
os desvia: a dos príncipes para os príncipes. No entanto, conforme à
tradição, Boulainvilliers escreve para o duque de Borgonha, Mably
para o infante de Parma. Mas não guardam, dessa história com destino
clássico, nem o conteúdo nem o tom. As minúcias eruditas que dizem
respeito «aos reis ociosos e preguiçosos que nada fizeram para a felici-

3 Boulainvilliers, op. cito


• No texto francês, laissez-passer e laissez-penser, respectivamente.

178
A HISTÓRIA NA CULTURA CLASSICA

dade dos homens+» parecem supérfluas a ambos. Não deve existir


qualquer sinal de bajulação numa obra que se quer totalmente crítica.
Desforra do despotismo, a história pode fazer comparecer os monarcas
perante o seu tribunal. Mézeray, o P." Daniel ficavam apavorados quando
apareciam papas e reis: mas a sua pusilanimidade é bastante esclare-
cedora acerca do interesse do seu trabalho.
Com a história erudita - outra forma de história de que a tra-
dição lhes fornece o modelo - não desejam romper nem Mably nem
Boulainvilliers. A história, para eles, segundo a lição de Bayle, continua
a ser uma empresa de rectificação dos erros; mas essa história exigente,
ávida de arquivos, preocupada com a verificação, está na imperiosa
dependência do presente; é esse presente que preside à escolha neces-
sária entre os acontecimentos que proliferaram no passado; é em seu
nome que reduzem à insignificância a «sucessão dos feitos de armas
e de guerra», os «caprichos» e os «preconceitos» para apenas guardarem
o que é essencial: a fonte da autoridade, a extensão e os limites do poder,
as regras da governação da França; «os princípios>», enfim, de que
tudo decorreu até ao detestável presente.
De facto, a história de Boulainvilliers e Mably é a de uma degra-
dação; conta como é que os «princípios incontestáveis» se gastaram,
se alteraram, se transformaram, até se tornarem irreconhecíveis. A his-
tória de França é uma decadência. Boulainvilliers di-Io à sua maneira
empírica e realista, pedindo desculpa, quando, por exemplo, tem de
abordar «o reino mais desagradável da história de Françaé», o de Car-
los VI, por ter de se alongar sobre as desgraças do Estado. Mably confe-

4 Mably, De l'étude de I'histoire, à Monseigneur le Prince de Parme, Maês-


tricht, Cavelier, 1778. Mably acrescenta, exortando o seu aluno a escolher um modelo:
«Mas aviso-vos para que não seja um príncipe. Não sei que glória falsa e ambiciosa
embacia sempre a vida dos maiores reis. Escolhei corno modelo um simples cidadão
da Grécia ou de Roma.»
5 Mably, op. cit.: «Notai-o cuidadosamente: as mesmas leis, os mesmos cos-
tumes, as mesmas virtudes, os mesmo vícios produziram constantemente os mesmos
efeitos. A sorte dos Estados depende, portanto, de princípios fixos, imutáveis e asse-
gurados. Descobri os princípios, Monsenhor, e a política deixará de ter segredos
para vós [... ]»
6 Boulainvilliers, op. cito

179
A OFlOINA DA HIBT6RIA

re-lhe a nota mais trágica de quem assimila toda a história à decadência.


«A história é um quadro quase contínuo de misérias, de desastres e de
calamidades 7.» Que benefício retirar de um quadro tão negro? Em
Mably como em Boulainvilliers vive uma crença um pouco intermi-
tente na pedagogia da infelicidade.
Não é, no entanto, neste ensino negativo que reside a real utili-
dade da história, mas sim no realçar de uma transformação contínua,
em que o passado está sempre presente no presente. A história de Mably,
tal como a de Boulainvilliers, e ao contrário da história voltairiana,
procede de um vivo sentimento da mudança permanente. Nem um
nem outro acreditam na possibilidade de recortar, no fluxo temporal,
épocas que formariam outros tantos conjuntos fortemente indivi-
dualizados e relativamente autónomos. Para eles, a história, que enca-
deia intermináveis transformações e mostra em todo o lado a diferença
actuando, é portanto ao mesmo tempo uma máquina de guerra contra
o governo centralizador e um remédio contra o pensamento centrali-
zador e fixista. A sua virtude singular é a de autorizar, graças ao carác-
ter bem ligado das sucessivas transformações, o recuo até às origens.
Pôr diante dos olhos dos Franceses «o seu antigo governo» é,
portanto, tanto para Mably como para Boulainvilliers, o próprio fun-
damento do trabalho do historiador. Contam com a poderosa signi-
ficação emotiva desse regresso às origens para prevenir essa ligeireza,
tão comum entre os Franceses, que atribui abusivamente ao presente a
solidez daquilo que sempre foi; para curar a frivolidade que os impede
de se agarrarem às «ideias sobre o governo 8»; e para lutar contra a sua
prodigiosa capacidade de esquecimento. É que os Franceses são apenas

7 Mably, De Ia Législation ou Principes des Lois, em (Euvres Completes, Lon-


dres, 1789. Boulainvilliers, por seu lado, vê na história mais exemplos a evitar e a
detestar do que exemplos a imitar: ver Lettre à Mademoiselle Cousinot sur l'His-
toire et sa méthode, ms. Bibl. de Angoulême, 23.
8 Sobre este tema, Mably parece frequentemente copiar Boulainvilliers: «Isto
pode cada vez mais convencer-nos do princípio certo de que no meio de todas as
nações do Mundo, a nossa se distingue pelo carácter de ligeireza e desatenção, de
tal modo que de um século para o outro os Franceses esqueceram sempre o que os
seus pais tinham feito.» E Mably: «A França é a nação mais inconsiderada e mais
fácil de enganar, porque é a menos atenta na consulta do passado.»

180
A HISTCJRIA NA OULTURA OLÁSSICA

culpados de esquecimento. A severidade de que dão mostras Mably


e Boulainvilliers em relação a uma nação tão irreflectida que até esque-
ceu que «teve um Carlos Magno» - o seu herói positivo e comum
- tinge-se assim de esperança: com efeito, o esquecimento não é exac-
tamente a ignorância. Mesmo abafadas, as «antigas noções de sociedade
e de ordem» precisam menos de ser inculcadas do que reanimadas; a
história é uma reminiscência. Basta então apresentar aos Franceses
uma nova interpretação do seu passado. Basta mostrar-lhes o passado
para que a sua memória reviva. Depois de tantas «memórias para uma
história perfeita», é preciso agora escrever histórias para uma memória
perfeita.
Vemos então melhor qual é a função que os seus sistemas atri-
buem à descrição elogiosa da barbárie original, função tão estranha
vinda de homens que tão visivelmente cultivam as luzes do seu século.
Como é que os hábitos sem amenidade de uma gente militarona, per-
correndo em armas as florestas germânicas, podem constituir a terra
natal da liberdade e da igualdade? Porque é que Mably e Boulainvilliers,
de acordo com os «germanístas?» do seu século, assimilam tão facil-
mente a barbárie à energia e vêem na selvajaria a promessa da inde-
pendência? Com que intuito fazem da própria crueldade o símbolo de
uma «alma altiva»? Só se pode compreender essa ternura referindo-nos
à necessidade de medir os abusos do presente. Sem esta ascensão até
à selvajaria primitiva da nação nascente, ninguém poderia julgar o
presente como ele é; nem ser sensível aos «desvios» que separam das
suas tradições históricas a nação francesa. A rude camaradagem dos
Francos, o cioso cuidado que têm da sua independência servem para
evidenciar o ilegítimo crescimento do despotismo e o seu cortejo de
servidões. A origem, que introduz uma pedagogia comparativa, é por-
tanto um conceito regulador.
Mas que não é objecto de nenhuma sacralização. Nem Mably nem
Boulainvilliers consideram as primeiras leis de uma nação como as suas

9 A melhor exposição destas teses está no livro de Elie Carcassonne, Mon-


tesquieu et le problême de Ia Constitution française au XVJIr siêcle, Paris, P. U. F.,
1927.

181
A OFIOINA DA HISTaRIA

leis fundamentais. Ninguém, afirma Mably, é tão ignorante que con-


funda umas e outras. E rejeita o sonho da idade de ouro: os «primeiros
gregos 1o» de Mably não vivem coroados de mirto, na paz graciosa
da pastoral. Também eles, como os Francos, marcham determinados
e armados. O romance da origem é assim, curiosamente, tingido de
realismo. Sabemo-lo sobretudo em Boulainvilliers; mais constrangido
do que Mably pela necessidade de legitimar a sociedade de ordens, tem
de admitir que a violência é o princípio das distinções sociais. Viciosa,
esta origem era-o com certeza. O manuscrito de Angoulême aponta
que a nobreza «é odiosa, se se quiser, pela pavorosa violência que deso-
lou a terra». Mas essa violência não justifica de maneira nenhuma que
se procure, para além da sua afirmação, remontar a uma origem ino-
cente e mais primitiva. O sentimento de que é preciso parar na retro-
dição preside com certeza a essa interrupção; mas trata-se também de
um realismo sem ilusões: «A antiguidade da origem cedeu então com
razão à força superior de uma conquista+! [... ]». É por isso que a difi-
culdade que têm certos historiadores em camuflar a usurpação cape-
tiana afigura-se a Boulainvilliers como perfeitamente burIesca: uma
posse de 700 anos será um título assim tão medíocre 12?
Para atenuar a surpresa que se sente ao encontrar num homem

10 Mably, Observation sur les Grecs, Genebra, pela Compagnie des Libraires,
1749: «Sabe-se hoje o que se deve pensar desses leitos de verdura, dessas coroas de
flores, desses concertos, desse doce lazer [... [.»
11 Boulainvilliers, Mémoire sur Ia noblesse de Ia France, ms. Bibl. de Angou-
lême, n. o 23. Boulainvilliers tem uma palavra de comiseração para com os homens
livres que, de repente, a conquista torna escravos. Mas para acrescentar logo a seguir
que «tendo-se defendido mal, sofreram justamente a lei do vencedor».
12 Boulainvilliers, Histoire de l'Ancten Gouvemement de Ia France, op, cit.:
«Como se uma posse incontestada de 700 anos parecesse titulo assim medíocre!
Esta fraqueza é tanto mais perigosa quanto gerou o falso e o ridículo sistema daque-
les que dizem que Hugo Capeto abandona aos seus novos súbditos a propriedade
das terras, dos feudos e dos imóveis para compensá-los do facto de eles lhe terem,
atribuído a Realeza. Sistema de que se retirou a mais abominável consequência,
a saber, que todos os bens pertencem ao rei, que só pode deixar aos seus súbditos
a parte que ele quiser.»

182
A HISTORIA NA CULTURA CLASSICA

tão representativo das «primeiras luzes» uma identificação tão tran-


quila do direito ao facto, é preciso lembrarmo-nos das leituras assí-
duas que ele fez de Spinoza. A frequentação de um sistema em que o
direito de Deus se identifica com o seu poder e em que cada indivíduo
goza de direitos exactamente proporcionais à sua força predispõe segu-
ramente para que não se coloque o direito no plano dos fins ideais. Tal
como a urbe spinozista, a sociedade de Boulainvilliers é a resultante
de uma pura relação de forças. A descrição histórica é para ele apenas
a tradução de uma situação empírica e deixa de fora qualquer axio-
logia. Este realismo encontra a sua expressão mais acabada no manus-
crito de Angoulême: «Não há realmente nobreza mais verdadeira do
que aquela que é adquirida pelo direito de conquista; assim como não
há maior distinção entre os homens do que a do vencedor e do ven-
cido [... ].»
Mably, por seu lado, não reconhece nenhum direito ao vencedor;
de acordo quanto ao estado dos Franceses antes da conquista, recusa
no entanto a fórmula brutal que lhe parece resumir a história original
como a escreve Boulainvílliers: «Todo o Francês foi fidalgo, todo o
Gaulês foi plebeu.» Mas também ele não tem a certeza de que se possa
proceder na história a uma marcha atrás ilimitada. Não é possível
nunca remontar da história à natureza. Os «monumentos mais antigos
da história» representam sociedades já degradadas: nem por isso nos
devemos deter menos nelas.
Mas é só para melhor compreender e não para melhor reviver.
A tradição é mobilizadora de energia intelectual e moral. Mas não con-
vida ao devaneio. Nenhuma nostalgia acompanha a descrição das
origens. É que a visão de cada século equilibra as suas vantagens e as
suas desvantagens; de tal modo que mesmo a nobreza decadente de
Boulainvílliers não se pode queixar singelamente «de ter perdido essa
condição superior e incomunicável de que gozou durante tanto tempo
nos séculos de ignorãncia e grosseria»; e, do mesmo modo, seria inde-
cente censurar perpetuamente o terceiro estado e a magistratura pela
sua condição primeira; louco quem queira <<retrogradar até à condição
de servo» os deputados do terceiro estado; absurdo pretender restaurar

183
A OFICINA DA HISTORIA

a igualdade turbulenta da horda saqueadora U, Mably tem menos segu-


rança: com um pouco de sorte, e com um pouco de tempo, ter-se-ia
conseguido a marcha até às origens. Por vezes dá-se ao prazer de o
imaginar, adoptando os motivos do legislador a braços com a reforma
de uma sociedade que não teria atingido o ponto em que a acumulação
dos vícios e dos preconceitos se torna irreversível; e a sua descrição
atinge então a leveza da utopia: «Julgo ver os cidadãos divididos em
diferentes classes [...]. Vejo por todo o lado lojas públicas, em que se
encerram as riquezas da República [...]. E os magistrados, verdadeiros
pais da pátria [... [». Mas, definitivamente, a ocasião de reatar com a pri-
mitividade já passou. «As luzes vêm demasiado tarde, quando os cos-
tumes já estão corrompidos 14.»
A previsão, por seu lado, não é impossível. Um desenrolar temporal
bem ligado leva o historiador aos «horóscopos» - o termo é de Mably:
o facto de cada época ser a esse ponto solidária com o passado e tomada
numa rede de efeitos e de causas que deixa tão pouco lugar ao acaso,
encoraja com certeza a prospectiva; mas desencoraja ao mesmo tempo,
tão certamente como o regresso às origens, a esperança de um salto
em frente. As mutações sociais só se podem fazer lentamente, tran-
quilamente. Boulainvilliers limita-se a desejar que se restabeleçam os
Estados Gerais, dotando-os sobretudo de atribuições financeiras. Mably,
que se faça reviver sob esse nome os Campos de Março e de Maio.
Ainda assim, o recurso a «essa prática esquecida» não dará mais do que
a ilusão da mudança, se a nação degenerada não estiver em estado de
«beneficiar do acontecimento». A ressonância profética atribuída à
obra de Mably deve muito à sua proximidade com o acontecimento
revolucionário: escritos nos meados do século, os Droits et Devoirs
du citoyen são publicados em 1789. Mas não há em Mably, tal como

13 Na «Dissertation abrégée sur les premiers Français et leur origine» (Ames-


terdão, 1732), que encerra os Essais sur Ia noblesse de France, Boulainvilliers chega
a tranquilízar os enobrecídos do despotismo: «Quanto aos novos nobres e enobrecídos,
nada têm a recear do nosso trabalho. Os nossos pontos de vista são gerais, simples
e inocentes. Nunca chegam nomeadamente a um exame particular. Podem portanto
gozar tranquilamente a sua metamorfose.»
14 De Ia Législation ou Principes des Lois, op, cito

184

~ ..
A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSIOA

em Boulainvilliers, qualquer espírito messiânico. O presente não é visto


ainda como o lugar de uma restauração iminente; muito menos de uma
revolução.

Deste modo, os dois homens partilham a mesma concepção da his-


tória. Mas possuem também os mesmo materiais, e uma temática idên-
tica. Seguir o correr do tempo não é, nem para Mably nem para Bou-
lainvilliers, traçar os progressos da civilização: é reencontrar as origens
perdidas da nação, as razões, as etapas desse eclipse. Só a tese germanista
da conquista lhes oferece os meios dessa investigação: pois só ela per-
mite arrancar a história nacional à sujeição do imperium romano; só ela
pode fazer surgir das florestas da Germânia esses guerreiros portadores
do contrato original. Só ela fez dos Franceses uma nação livre. Está
tudo dito, já no fim do século XVIII, com essa palavra.
A história é, portanto, depositária da grandeza das origens e do
segredo das usurpações: constitui um sistema de referência puramente
imanente que se substituiu ao desenrolar do desígnio providencial.
Mas Boulainvilliers obrigou-a a sustentar um «discurso sobre a desi-
gualdade» exactamente inverso do de Mably.
Para o conde de Boulainvilliers, portanto - o que prova mais uma
vez a que ponto ele pertence ao século XVIII -, os homens, na origem,
são livres e iguais em direitos. O problema desse intelectual tão cioso
da sua pertença à nobreza é portanto pensar e justificar a hierarquia
social tradicional no interior de um mundo cultural que já é o das Luzes,
ou seja, separado de qualquer referência transcendental e compene-
trado da igualdade natural dos indivíduos. Ora, é a história que está
encarregada, com o fundo dessa igualdade natural, de fazer surgir o
facto da desigualdade, fruto de uma conquista que tomou nobres os
vencedores, ignóbeis os vencidos. Mas Boulainvilliers não fica por
aqui: visto que a história fez, poderá desfazê-Io. É a raça que vai asse-
gurar a duração daquilo que fundou: a distinção original dos estatutos,
acidental de qualquer modo, toma-se necessária quando se reproduz
pelo sangue. Assim, esse conceito de «raça», longe de ser arcaico,
aparece ligado, como sugeriu Louis Dumont, ao nascimento da ideolo-
gia igualitária. Permite, de facto, substituir à velha justificação orga-
nicista da desigualdade uma argumentação histórico-biológica que não

185
v'1

~r··-··'/

A OFIOIN A DA HIST6RIA

só é compatível com a igualdade «natural» como também permite


recuperar a igualdade no interior da desigualdade: os nobres são dife-
rentes (superiores aos) dos plebeus, mas entre eles são iguais. Elemento
fundamental, na representação que Boulainvilliers constrói da nobreza,
e que o opõe tão fortemente a Saint-Simon, obcecado pela preeminên-
nência dos duques e dos pares.
Aos seus olhos, a casta militar definida pela conquista é uma socie-
dade de iguais. Não deixa nunca de sublinhar que entre os livres con-
quistadores vindos da Germânia «não se conheciam as distinções de
título que se usam hoje». Mas esta sociedade igualitária é também uma
sociedade fechada: se a conquista confere a condição, que o sangue
perpetua, nada mais a pode conferir em seu lugar; nem mesmo, sobre-
tudo, o favor do rei. Boulainvilliers insiste portanto em marcar o encer-
ramento da nobreza -a ideia de fazer, de uma vez por todas, o inven-
tário geral das famílias nobres do reino 15 depende dessa ambição - e
a igualdade rigorosa no interior desse grupo fechado.
Há nesta construção, que reinstala a igualdade no seio da desi-
gualdade, um ponto difícil de sustentar: o argumento da hereditariedade
parece, de facto, a Boulainvilliers tão pouco convincente para o rei
(todas as infelicidades do Estado vieram da monarquia hereditária)
como para o povo (a virtude pode perfeitamente «aparecer» entre os
plebeus, é estritamente individual e não passa para os filhos); em con-
trapartida, assegura «a incomunicável nobreza»; privilégio justificado,
sem grande rigor, por argumentos estatísticos: a virtude é mais comum
nas boas raças do que nas outras; um nascimento nobre é, por outro
lado, o meio mais comum de valorizar e honrar a virtude.
Por outro lado, dois perigos contraditórios ameaçam este curioso

15 Boulainvilliers, Mérnoire pour Ia construction d'un nobiliaire général, ms.


Ec. sup. de guerre, n." 25-26: «A nobreza antiga não tem nenhum meio de assegurar
o seu estado; uma parte perdeu os seus títulos e cartas com as guerras estrangeiras
ou intestinas, e à excepção das famílias cujos nomes ficam na história, só restam
às outras actos individuais, sujeitos a perecer numa sucessão de incidentes.» O fim
desejado é aliás claramente exposto: é preciso que «a antiga nobreza possa distin-
guir-se da nova, a que foi concedida por determinadas cartas ou que resulta da posse
de certos cargos [... ]».

186
A HISTóRIA NA CULTURA CLÁSSICA

arranjo. Por um lado, a desigualdade dos estatutos poderia ser posta


em causa do exterior: é, portanto, necessário opor-se à subida do ter-
ceiro estado e da magistratura. Por outro lado, a igualdade poderia,
no interior do grupo privilegiado, ser alterada: é necessário impedir
que, no seio da segunda igualdade conquistada sobre a desigualdade,
proliferem novas desigualdades. A sociedade nobre deve portanto re-
cear tanto a adjunção - que o poder de nobilitar agregue ao grupo dos
iguais falsos iguais - como a separação - que no interior do grupo
dos iguais apareçam e se cavem novas distinções. Eis porque Filipe, o
Belo, é o grande vilão da história de França segundo Boulainvilliers:
aquele que primeiro «se atribuiu o poder de nobilitar o sangue dos ple-
beus e que por um abuso mais ou menos semelhante, apesar de dife-
rente em espécie, criou novos pariatos 16. É significativo que os dois
empreendimentos sejam apresentados como idênticos, indissociáveis
ambos do espírito trapalhão inseparável do despotismo. Filipe, o Belo,
é duplamente culpado: por ter posto igualdade na desigualdade (visto
que os «enobrecidos construíram a ideia de que chegaram a uma ver-
dadeira igualdade») e desigualdade na igualdade, instituindo um pariato
que nada na história pode letigimar (visto que «quer fossem pares,
quer fossem príncipes ou senhores de sangue, todos faziam corpo com
a nobreza nas Assembleias do Bstado»), O único argumento capaz de
atenuar a oposição de BoulainvilIers a Saint-Simon na querela dos
duques e dos pares é que não há razão, visto que a facilidade em comprar
cargos abre «a qualquer burguês» a porta das magistraturas, para que
«o favor dos reis não possa igualmente exercer-se em favor de alguns
nobres [ ... [». No entanto, os dois raciocínios são, em relação aos prin-
cípios, igualmente viciosos.
Em consequência disto, que fazer? A ambição de Boulainvilliers
é, no fundo, a de construir, face à apologética absolutista, um outro
modelo da história nacional: é a sociedade «feudal» que lho fornece.
Mas cuidado! Boulainvilliers não é um «feudal» no sentido que dará
à palavra a filosofia das Luzes e a Revolução; critica a Igreja e a esco-
lástica, a barbárie dos costumes, a ignorância do tempo. Saúda com

16 Boulainvilliers, Histoire de l'Ancien Gouvernement de Ia France, op. cito

187
A OFIOINA DA HI8TORIA

entusiasmo o Renascimento das letras e das artes no século XVI 17 -


o que não constitui um corte cronológico tão frequente nas histórias
de França dessa época, e do século XVIII em geral.
Aquilo que, na realidade, Boulainvilliers deseja devolver a uma
nobreza que, no esquecimento em que está da sua origem, nem mesmo
consegue definir-se, é o sentimento da sua existência. Ora, ela tinha-o
quase perdido se não fosse a avidez dos plebeus. A «paixão desmedida»
que estes mostram «para se colocarem no lugar da nobreza pelas cartas
do Príncipe» mantém ainda na nobreza o sentimento de ser um só
corpo, com a sua dupla componente de exclusão e de igualdade. Boulain-
villiers sonha com um fundamento menos exterior. Mas o regime feu-
dal que lho traz é simplesmente um ideal-tipo das relações da sociedade
civil com o rei de França e comporta dois traços: uma sociedade fun-
dada na desigualdade dos estatutos e na igualdade dentro de cada esta-
tuto; a independência dos nobres em relação ao rei, o primus inter pares.
O problema de Mably é completamente diferente. Parte, como Bou-
lainvilliers, de uma igualdade originária, tomada «numa natureza que
não delimitou os campos». Mas não se vê obrigado a achar a todo o
custo uma legitimidade para uma hierarquia social metafisicamente
inaceitável, visto que ajulga, ainda por cima, sem verdadeiro fundamento
histórico. É que ele radicaliza a crítica da hereditariedade: não se
trata só de a contestar em relação aos reis, mas em relação a toda a
humanidade. Enquanto as distinções concedidas aos /eudes forem
pessoais, está tudo bem na história de Mably: a nobreza não se trans-
mite pelo sangue; os filhos dos nobres ficam dentro da classe comum
dos cidadãos; há uma só ordem e duas classes. Toda a infelicidade histó-
rica provém da transformação dessas duas classes (que se desfazem
e se recompõem sem cessar ao sabor das competências e das virtudes
pessoais) em ordens fixas: o herói negativo de Mably, não é Filipe,
o Belo, mas sim Clotário lI, por ter introduzido, com a hereditarie-
dade dos benefícios, uma ordem privilegiada no seio da nação.

17 Boulainvilliers, Abrégé de r Histoire de France, Haia, Gesse et Néaulme,


1733. «As Belas-Letras, que esmoreciam há muito tempo e estavam soterradas no
mau gosto dos séculos anteriores, reapareceram neste com todo o seu brilho [... [.»

188
A HISTóRIA NA CULTURA CLASBIOA

o nascimento dessa ordem, desde então inimiga mortal da igual-


dade - quanto mais não fosse pelo fascínio que exerce sobre o povo,
que impede de se aceitar como corpo (nota-se aqui a exacta inversão da
tese de Boulainvilliers) -, Mably fixa-o portanto numa época mais
primitiva. Contudo, para ele, o essencial é mostrar que a nobreza não
existiu sempre e retirar, por conseguinte, ao privilégio o prestígio da
origem: ponto tão capital que, para o estabelecer, não hesita em con-
testar a autoridade de Montesquieu e em pedir ajuda - uma vez só,
é verdade - às razões do campo adverso, o do P." Dubos: «Não ima-
gino que o senhor presidente de Montesquieu acredite que as nações
tenham começado por ter fídalgos.» Nas origens da nação, portanto,
Mably não encontra rasto da feudalidade política. Nos materiais que
vai buscar aos germanistas, o que mais conta é o arranjo do «Antigo
Governo»: um rei mais capitão do que monarca, comandando soldados
mais do que súbditos, um poder executivo colegial exercido em conse-
lho pelo rei e pelos notáveis, um poder legislativo nas mãos de uma
assembleia geral, no Champ de Mars *: eis o essencial do sistema de
Mably.
A isto se deve acrescentar uma visão da conquista tirada de Mon-
tesquieu, a meio caminho entre o idílio absurdo imaginado por Dubos
entre Gauleses e Romanos e a separação estanque desejada por Boulain-
villiers: em Mably como em Montesquieu, os vencidos, libertos do
imperium romano, aliam-se ao seu vencedor. Aliança que Mably vê
não tanto como efeito do hábito ou de uma escolha voluntária, cons-
ciente e pública: uma declaração solene, um juramento. Por este preço
- a declaração de renúncia à lei romana - um gaulês «começa a
gozar das mesmas prerrogativas», obtém as mesmas composições, enfim
- é, evidentemente, o triunfo da assimilação! - entra no Champ
de Mars.

•. Champ de Mars é um vasto terreno situado entre a fachada setentrional da


Escola Militar e o Sena, em Paris, onde se desenrolaram grandes exposições ao longo
da história de França e onde se celebrou, nomeadamente em 14 de Julho de 1790,
a festa da Federação, no primeiro aniversário da Tomada da Bastilha: Aí se realizou
a célebre batalha de 17 de Julho de 1791, na sequência da deposição de uma petição
com 6000 assinaturas pedindo a deposição do rei Luís XVI. (N. do R.)

189

--- -------------"", .....•..•••


A OFIOINA DA HISTORIA

Deste modo, a desigualdade está duplamente desacreditada em


Mably: não é nem fruto da raça - porque, ao contrário de Montesquieu,
não admite nobreza franca original - nem fruto de uma conquista
- porque, ao contrário de Boulainvilliers, estabelece uma fusão dos ven-
cedores e dos vencidos; é uma perversão, o primeiro anel de uma longa
cadeia de vícios. Leva ao crescimento das riquezas privadas, à perda
do gosto pela liberdade, e - de longe o pior! - a uma assiduidade
intermitente no Champ de Mars. Não se pode portanto, aos olhos de
Mably, construir a não ser com base na igualdade.
Ainda assim é preciso compreender o que é ao certo essa igualdade.
Assim como em Boulainvilliers, trata-se de uma igualdade de confusão
cujo modelo é, uma vez mais, o despotismo: «Quanto mais nos aproxi-
mamos do despotismo, mais as categorias se confundem 18.»De Boulain-
villiers, Mably - seguro igualmente da autoridade de Montesquieu
- herda a imagem de um despotismo atingido de presbitismo que vê os
objectos de longe e de alto de mais para perceber neles qualquer dife-
rença. Mas também não se trata de uma igualdade mortal para a depen-
dência; pois «só na Turquia ou noutro qualquer Estado despótico é
que se pode acreditar que a subordinação necessária na sociedade seja
incompatível com a igualdade» 19.
Desta vez, é portanto a desigualdade que deve ser recuperada no
seio da igualdade, e Mably consagra-se a essa tarefa. Na realidade,
bastam algumas disposições para tornar a desigualdade tolerável. Será
que se pode manter a desigualdade das fortunas? O exemplo suíço
mostra como judiciosas leis sumptuárias impedem a proliferação anár-
quica. Será que se pode aceitar a desigualdade dos poderes? Sim, se
a fundarmos na competência, ou seja, se reinvindicarmos o poder
menos como soberano do que como magistrado. Pode-se portanto
- visto não ser possível regressar à igualdade primitiva - manter
toda a desigualdade dos estatutos em troca de certas precauções, algumas
das quais lembram «a mão escondida» do rousseauísmo: os súbditos obe-

18 Mably, Observations sur l'Histoire de France, Genebra, pela Compagnie


des Libraires, 1765.
19 Mably, De Ia Législation ou Principes des Lois, op. cito

190
A HISTóRIA NA OULTURA CLÁSSICA

decerão «sem pesar nem humilhação a soberanos que, limitando-se a


ser burgueses simples, pouco ricos e parcimoniosos como eles, escondam
que formam uma ordem privilegiadas ã'', Quanto à nobreza, para se
justificar plenamente, basta saber «que o espírito de servidão é a maior
das decadências» *.
O arranjo comporta um excluído: essa «populaça sem crédito, sem
consideração, sem fortuna, que nada pode por si só». Certos textos de
Mably levam sem dúvida a pensar que cada homem deve ser incluído
numa ordem e nela gozar de um direito real; todo o homem deve ser
declarado livre. Mas não é nada evidente que por isso deva participar
no governo. Encarados como homens livres pela lei, os artesãos dos
Entretiens de Phocion não têm qualquer existência política: não parti-
cipam nas assembleias. «É obrigação da própria multidão, aviltada
pelo trabalho e pelas ocupações, não tomar conta da governação I.» ã

Não se está muito longe dos termos em que Boulainvilliers descreve


a sociedade submetida, também ela excluída das assembleias «porque
destinada ao trabalho e à cultura da terra e não à partilha das honras
de governo». Os excluídos são mais numerosos em Boulainvilliers,
mas o princípio de exclusão é o mesmo.
A história de Mably justifica portanto no essencial a sociedade de
ordens. Perseguido como Boulainvilliers pelo sentimento da alteração
perpétua das sociedades, Mably procura fixar a interminável deriva
histórica. Deseja, por conseguinte, manter as ordens, mas impedindo
essas usurpações, essas contestações, essas passagens que anunciam novas
transformações; o que pode ser feito atribuindo a cada um património
fixo 22 : as pessoas individuais poderão portanto crescer ou decrescer,
mas a fortuna global de cada ordem será sempre a mesma; nenhum
deles, deste modo, «cairá no desprezo». Este esforço para proporcionar

20 Mably, De l'étude de l'Histoire, op. cit.: o exemplo de alguns cantões suíços


ilustra aos olhos de Mably esse astucioso arranjo.
'" No original francês, dérogeance, acção de decair do estado de nobre. (N. do R.)
21 Mably, Entretiens de Phocion, Amesterdão, 1763.
22 É a solução preconizada em Les Lois, op, cit.: «Que a nobreza tenha um
património que não possa aumentar, que sob pretexto algum lhe seja permitido
possuir terras ou heranças destinadas a outra ordem de cidadãos [... ].»

191
A OFIOINA DA HIST6RIA

às ordens uma inultrapassável «condição constante» deveria ser acom-


panhado por uma educação colectiva. Mably é tão severo quanto Bou-
lainvilliers em relação àqueles que procuram usurpar os direitos da ordem
vizinha: os parlamentares, por exemplo, sustentando encarniçadamente
«que o clero e a nobreza eram só recebidos por favor nas assem-
bleias de notáveis cujos magistrados formavam a maior parte». Não
dá muito por um reino «em que ninguém se quer manter no seu lugar,
em que cada um aspira a introduzir-se numa ordem que se recusa a
recebê-lo»; é que então a vaidade torna-se o principal interesse de todos
os cidadãos.
A grande novidade de Mably não é, portanto, a inversão da tese
do liberalismo nobiliário, versão democrática do germanismo; é antes o I
seu alargamento, a instalação do povo nas assembleias da nação, ao
lado do clero e dos /eudes. E é a união do ideal igualitário com a manu-
tenção das «categorias». Essa união - que mostra aliás como seria J
aventuroso opor no século XVIII a corrente liberal e a corrente demo-
crática - é realizável, segundo ele, pela graça de uma legislação conce-
bida como uma harmonia. I
I
É que a ideia nova que se encontra em Mably e que se poderia I
procurar em vão em Boulainvilliers é a da harmonia. A metáfora orga-
nicista é, evidentemente, inútil à descrição de uma sociedade dividida
entre vencedores equiparados em privilégios e vencidos equiparados
em servidão. Em contrapartida, é indispensável para a representação 1
pluralista do corpo social: assegura a dignidade de cada uma das partes
(ceada uma das categorias de cidadãos compreende que pode ser feliz
sem oprimir as outras») e a sua participação numa finalidade comum:
o «bem público», possível de realizar numa hierarquização aceite das
funções sociais. É por isso que o soberano mais digno de admiração em
toda a história de França é Carlos Magno, maestro da harmonia:
a sua mediação permitiu reaproximar as ordens e fazer-lhes esquecer
as velhas inimizades. A obra do legislador ideal é segurar a balança
entre as diferentes ordens: equilíbrio que «é hoje a única igualdade
imaginável entre os homens»; e é por isso que a tarefa do legislador
é tanto mais fácil quanto as ordens são numerosas: equilibram-se melhor
umas às outras e ainda por cima é mais belo fazer com que contribuam
para o bem colectivo. Talvez fosse melhor então que existissem quatro I

192 I
I

J
A HIST6RIA NA OULTURA OLA.SSIOA

ordens em vez de três; e cinco em vez de quatro. O que triunfaria então,


segundo o voto de Mably, seria a pluralidade harmónica: é ela, no
fundo, que constitui a nação.

Deste modo, a discussão da história de França faz parte do que de


mais vivo existe na cultura do século XVIII, porque essa discussão está
enraizada na subida da sociedade civil ao poder e na procura de uma
legitimidade que possa ser não substituída - porque o absolutismo é
uma usurpação - mas restaurada. Boulainvilliers e Mably são dois
momentos essenciais dessa discussão na medida em que escrevem res-
pectivamente a versão nobiliária e a versão plebeia de uma mesma histó-
ria, a da nação. O que os diferencia é importante ao nível das opiniões:
Boulainvilliers é um aristocrata exclusivo, Mably reintegra o terceiro
estado na nação; mas é praticamente insignificante segundo dois outros
pontos de vista: tanto um como o outro comungam dessa reivindi-
cação literal da sociedade frente ao poder, reivindicação de que a
nobreza foi, no fim do reinado de Luís XIV, a portadora natural. Tanto
um como o outro, sobretudo, escrevem intelectualmente a mesma his- .
tória, tecida com as mesmas instituições, representada pelos mesmos
actores: a «nação» permite-Ihes pensar ao mesmo tempo o social e o
nacional, ao contrário do século XIX, que só verá o nacional. O social
e o nacional juntos: as núpcias da sociedade e do seu mito.
Os anos que antecedem imediatamente a Revolução Francesa vão
carregar esse tema histórico da nação com um conteúdo político parti-
cularmente forte: podemos encontrá-lo, de facto, muitas vezes nas bro-
churas pré-revolucionárias, publicadas entre a reunião dos Notáveis e
a dos Estados Gerais (fim de 1787-Abril de 1789). Essas brochuras, que
são quase sempre anónimas, testemunham até que ponto a história da
França do tipo Boulainvilliers-Mably penetrou na sociedade culta do
século XVIII: as referências às origens e à história da nação são de facto
muito frequentes.
Têm a vantagem, nesses textos de circunstância estritamente liga-
dos à actualidade, de explicitar claramente a parte de reivindicação
política que contêm e de mostrar até que ponto a tese «democrática» de
Mably triunfou nos espíritos sobre a tese aristocrática de Boulainvilliers.
Com efeito, quando uma dessas brochuras defende as ordens da socie-

193
v'.#.V/
" .. ,

A OFICINA DA HIST6RIA

dade como constitutivas da monarquia, é em nome da tradição, ou da


Constituição, nunca em nome da raça: em vez de ter podido fundar uma
nova legitimidade em proveito da nobreza, a ideia é orientada, pelo
contrário, contra os nobres pelo famoso panfleto de Sieyês, propondo
recambiar «para as florestas da Francónia todas essas famílias que con-
servam a louca pretensão de provir da raça dos conquistadores e ter
sucedido aos seus direitos».
É que, na realidade, as «liberdades germânicas» tomaram-se patri-
mónio mítico da nação inteira, empenhada no combate definitivo
da restauração. No centro da representação, existe o par rei-nação, duas
potências que não se definem por um conflito, mas que são os dois
elementos indispensáveis à autoridade pública legítima. A sua definição
teórica não é contraditória, mas complementar: o rei, que dispõe de uma
eleição histórica atestada por filiação, é a encarnação do Estado. A na-
ção é um colectivo humano ao mesmo tempo histórico e mítico, depo-
sitária do contrato social, vontade geral que se perde na noite dos
tempos, promessa de fidelidade às origens. Entre os dois, existe um laço
aparente de subordinação, que na realidade é uma obrigação à coope-
ração: o rei é o chefe da nação, mas só governa legitimamente se res-
peitar os direitos, as leis da nação.
Quando não as respeita, é que elementos nefastos põem obstáculos
à cooperação: quer seja o despotismo ministerial como a partir de Riche-
lieu, quer a usurpação nobiliária, como durante a época feudal. Deste
modo, o combate que se trava, nos anos de 1787-1789, é pensado como
uma reapropriação dos seus direitos pela nação e um restabelecimento
da comunicação entre o rei e a nação, que deve ser simbolizada pelo
reinado da lei: uma arrancada legista multissecular triunfa nessa nova
religião laica, base da monarquia renovada.
Deste modo a Revolução Francesa, antes de se tornar o ponto zero
da história de França, o mito das origens da nossa sociedade contem-
porânea, terá sido primeiro o culminar do nosso passado mais lon-
gínquo: a restauração do colectivo nacional na plenitude dos seus di-
reitos. No fundo, ponto culminante ou origem, há nas duas visões a
mesma abolição do tempo que é inseparável da ideologia revolucionária
e a mesma carga emotiva que constitui as nações modernas.

194
--~

Civilização e barbárie segundo Gibbon *

Nessa Paris das Luzes onde Gibbon foi beber uma grande parte
da sua inspiração intelectual, o século tinha começado com uma querela
literária que não parece ter sido muito viva até ele, se bem que esteja
no coração da sua vida intelectual: a querela dos Antigos e dos Moder-
nos. O que está em causa, neste debate, a partir do fim do reinado de
Luís XIV, é esse sentimento de uma identidade cultural entre antigo
e moderno que constituía o património comum da intelligentsia europeia
desde o Renascimento. Não é que os «Modernos» recusem a filiação,
ou a herança da Antiguidade; mas já não aceitam que a sua própria
contribuição seja apenas a redescoberta do modelo greco-romano.
Afirmam a superioridade do «moderno» sobre o «antigo», em especial
no que respeita ao progresso dos conhecimentos, o rigor do racio-
cínio, a busca da verdade; deste modo, rompem com uma concepção
cíc1ica da história e afirmam, pelo contrário, o valor criador do tempo,
que separa progressivamente o erro da verdade.
Este afastamento do conceito de moderno em relação à Antiguidade
constitui a pouco e pouco, no século XVIII, uma história evolucionista
e uma teoria do progresso. Depois da história providencialista da Igreja,
depois da história cíc1ica dos Humanistas e dos Reformados, é chegado
o momento de uma história aberta, indefinidamente aberta; a angústia

• Versão francesa do artigo publicado em Dadalus, 1976.

195
A OFICINA DA HIBTORIA

latente que lhe é inseparável é conjurada pelo espectáculo do progresso


das artes e das ciências, prova do progresso geral. As figuras mais aca-
badas do «moderno», no século XVIII, são o Discours préliminaire de
D'Alembert e o Tableau des progrês de l'esprit humain de Condorcet.
Ou seja, a «civilização» é um processo antes de ser um estado: o facto
de tornar «civil», «policiado», aquilo que não o era. A própria palavra,
que data dessa época, em francês e em inglês, nasceu para exprimir
essa subida da sociedade das Luzes no sentido de um dever-ser, essa
consciência de estar no bom caminho, essa certeza de que o tempo é
cumulativo e a história tem um sentido 1.
Ora, em muitos aspectos, Gibbon escreveu uma história diferente
da do seu século: ao mesmo tempo mais antiga e mais moderna. Mais
antiga, porque Gibbon é um profissional da Antiguidade, que vive,
na familiaridade dos eruditos e das sociedades eruditas do século XVII,
para cujo conhecimento contribui o seu domínio do francês. Mais
moderno, porque integra essa erudição na arte de contar o passado
e inventa assim o fresco histórico que será um dos grandes géneros
românticos. Gibbon está algures entre TilIemont e Renan, mas esse
algures não é apenas o consenso filosófico das Luzes; é também uma
visão original do passado e do presente da Europa.
A sua biografia comporta já essa estranheza: os anos estudiosos
e retirados em Lausanne de um gentleman inglês que provou a sedução
dos salões de Paris e de Londres. É que, nas margens do lago de Gene-
bra, nessa zona dos conflitos franco-alemães, que vai ser crucial nas
transformações da cultura europeia, Gibbon vê apenas um retiro para
continuar a sua obra. Depois de ter sido a terra de exílio da sua juven-
tuda, a Suíça é o asilo da sua maturidade; tê-Ia eleito é para ele uma
maneira de não pertencer a nenhuma das nações da Europa e de signi-
ficar que as suas duas pátrias são universais: a erudição histórica, que
é a cultura mais internacional, e Roma, que é a mãe da Europa. O des-
lumbramento do dia 15 de Outubro de 1764 deu um sentido à sua vida
como uma verdadeira conversão religiosa: Freud só consegue entrar

1 E. Benveniste, «Civilisation, contribution à l'histoire du mot», in Hommage


à Lucien Febvre, Paris, 1954.

196
A HIST6RIA NA OULTURA OLÁSSIOA

em Roma quando já é Freud, pronto a enfrentar a Antiguidade da


sua infância, que é também o mundo dos Gentios. Ao contrário, Gibbon
só se toma Gibbon nesse dia em que pisa «com os pés orgulhosos
as ruínas do Forum», É que de Roma recebe mais do que a sua ideia
de civilização: recebe a sua identidade cultural.
Entre Roma e ele existe o mesmo laço que unia à Antiguidade os
intelectuais europeus do Renascimento: uma história de amor. Existe
esse mesmo encantamento da descoberta, essa frescura e essa alegria
da reconquista dos segredos perdidos. No entanto, desde o Renasci-
mento, o ensino deixou Roma em todas as memórias; o latim e a
história que se aprende nas margens de Cícero ou de Tácito nunca
deixaram de estar no centro da aprendizagem escolar dos futuros gen-
tlemen. Em suma, quando Gibbon descobre Roma, como tantos outros
viajantes do século XVIII, já a conhecia: é o topos mais clássico da cultura
europeia, o centro do seu teatro e da sua arte, da sua filosofia moral,
da sua reflexão histórica. Estranho é que o seu encontro com esse
lugar sobrecarregado de significações seja ainda uma surpresa e como
que uma reconversão existencial. Quando Montesquieu reside em Roma,
em 1729, não é suspeito de indiferença em relação à história romana,
acerca da qual já escreveu um Essaiê (1716), antes das famosas Consi-
dérationss (1734); mas precisamente pelo facto de a Roma antiga ser
aos seus olhos um objecto de conhecimento, conserva, em relação à
Roma pontifical, reflexos de turista inteligente, observador dos costumes,
da política e das artes. Gibbon, trinta e cinco anos depois, vê em Roma
apenas a Urbs: «Todos os locais memoráveis onde Rómulo parou,
onde Cícero falou, onde César caiu, apresentavam-se ao mesmo tempo
aos meus olhos; e perdi ou gozei vários dias de ebriedade antes de estar
em estado de passar a um exame frio e minucioso.»
Esta emoção do viajante, que prefigura o investimento afectivo
dos escritores românticos sobre a história, traduz ao mesmo tempo a
fidelidade de Gibbon às «humanidades» da Europa clássica e à tradi-

2 Politique des Romains dans Ia religion, 1716.


3 Considérations sur les causes de Ia grandeur des Romains et de leur décadence,
1734.
!
I 197
I
i
I
A OFICINA DA HISTORIA

ção dos séculos XVI e XVII: Roma é um modelo de civilização que não
foi ultrapassado. Esta proposição central não é em Gibbon de ordem
filosófica. Não tem teoria sobre o homem em sociedade, sobre a lei
natural, sobre o contrato social. Não se interessa por uma das interro-
gações essenciais do seu século: Que é um «selvagem»? Como incluir
o selvagem na história da humanidade? É espontaneamente, totalmente
historiador, ou seja, empirista, narrativo, e espontaneamente, total-
mente eurocêntrico, no interior de um mundo no qual só contam a
Antiguidade greco-romana, a tradição judeu-cristã e a sua filha: a
Europa.
A superioridade de Roma não é portanto tema de demonstração:
é da ordem da evidência, da constatação. Tem a ver com uma experiên-
cia singular, que se deve descrever, e não com o jogo das leis históricas.
Gibbon leu e admira Montesquieu, mas as duas obras têm finalmente
pouco em comum. Para Montesquieu, a história romana é apenas
um case study de uma tipologia geral dos regimes políticos: as mesmas
causas que fizeram a grandeza de Roma estão na origem da sua queda,
quando a extensão do império torna um governo monárquico incom-
patível com as leis que no entanto o tornaram necessário. Gibbon,
fazendo eco, por intermitência, da teoria do seu predecessor, não é um
espírito inclinado para uma conceptualização rigorosa. É um ecléctico;
não só multiplica as explicações possíveis para a grandeza e a queda de
Roma, mas até os tipos de explicação. É que a história de Roma não
é aos seus olhos um laboratório de experiências; é simplesmente a que
atinge, no século 11 d. C., o cume da história humana, «lhe period in lhe
history of lhe world, during which lhe condition of the human race was
most happy and prosperousn+, É mais um momento do que um conceito.
Então, esse momento privilegiado não se pode integrar numa his-
tória linear do progresso da humanidade, como a que escreve Con-
dorcet no fim do século. Caracteriza, pelo contrário, uma concepção
cíclica da história, segundo a qual a civilização não é um dever-ser
para o qual conduzem a pouco e pouco os progressos acumulados da
humanidade, mas encarna-se, pelo contrário, numa série descontínua

4 Decline and Fali, capo IH.

198

j
A HISTÔRIA NA OULTURA OLASSIOA

de períodos abençoados. No interior dessa história cíclica, Roma repre-


senta no século 11 o coroar do mais belo ciclo, a tal ponto que a expec-
tativa atribuída por Gibbon à Europa clássica não é a de ultrapassar
esse modelo, ou os valores de que é portador, mas fazer dela um
berço menos frágil.
Para falar verdade, é díficil definir com grande exactidão, posi-
tivamente, as razões dessa devoção. Gibbon não apresenta em nenhum
texto qualquer descrição sistemática da civilização romana: está interior-
mente tão compenetrado da sua superioridade que nem sente a necessi-
dade de comentar as suas razões, nem mesmo de inventariar os seus ele-
mentos. O famoso juízo do capítulo IlI, que citei um pouco acima, sobre
a felicidade excepcional do género humano na época dos Antoninos,
apoia-se em justificações um pouco curtas, como sejam a virtude e a
sabedoria dos imperadores, que sucederam aos distúrbios do século I.
A perda das liberdades - essas famosas liberdades romanas que ali-
mentaram tantos livros do século - é mais do que compensada pelo
exercício de um despotismo tão esclarecido. De facto, Gibbon inte-
ressa-se pouco pela filosofia política, que tanto apaixona os seus con-
temporâneos; escreve, como os seus mestres da Antiguidade, como
Tucídides, como Cícero, como Tácito, uma história moral. Para que
uma época seja grande, é necessário e suficiente que tenha produzido
um certo tipo de homem: os imperadores do século 11 são os seus exem-
pla, ao mesmo tempo uma cultura e uma moral.
No entanto, como sempre, a história romana de Gibbon é também
uma história do indivíduo Gibbon, O culto dos Antoninos remete para
a relação que o historiador mantém com o seu presente. A este respeito,
Gibbon é um escritor perfeitamente original. Não tem, como os homens
do Renascimento, de redescobrir Roma por detrás da sedimentação
medieval: o trabalho já fora feito antes dele; mas também não crê,
como os artistas e os letrados do século XVII, que se possa verdadeira-
mente imitá-Ia: já é demasiado historiador - no sentido do século XIX
- para não conceber a história como um fluxo, que nunca apresenta
duas vezes as mesmas imagens ou os mesmos sucessos. Os ciclos de civi-
lização que apresenta são ao mesmo tempo incomparáveis e fugidios.
The Decline and Fali of the Roman Empire está completamente domi-
nado por um sentimento romântico da unicidade e da fragilidade dos

199
A OFICINA DA HISTóRIA

grandes períodos da história; extraordinário testemunho do momento


em que o velho conceito cíclico da história cai no historicismo do
século XIX.
Afinal, Gibbon não escreveu urna história do Império Romano;
preferiu escrever urna história do seu declínio e da sua queda. Nos
próprios anos em que as ruínas cuidadosamente neoclássicas espalham
o seu toque de tristeza domesticada pelos parques dos palácios aristo-
cráticos, junta a sua voz poderosa ao concerto europeu da melancolia
erudita. É que longe de ser uma promessa da história, a civilização
é urna nostalgia do historiador.
O texto mais claro deste ponto de vista é o fim do capítulo XXXVIII,
as célebres «General Observations on the Fali of the Roman Empire
in the West», que constituem o único comentário verdadeiramente
analítico do problema que dá o título ao livro. Sabe-se que Gibbon,
depois de ter resumido as causas da queda de Roma, propõe-se
tirar delas conclusões para a sua própria época. Quererá isso dizer
que assimila a Europa do século XVIII ao Império Romano da grande
época? Sim e não. Sim, porque nota que, sob pena de passar por mau
patriota, considera a Europa como uma grande república, unida pre-
cisamente do ponto de vista da civilização, porque os seus habitantes
alcançaram «almost the same levei of politeness and cultivation», Quer
dizer com isto que as elites europeias do seu tempo, quaisquer que
fossem as vicissitudes das relações de poder entre as nações, se carac-
terizam por um «state of happiness» e por um «system of arts, and
laws, and manners», que é comum a todas elas e que define a civilização.
Tudo nesta aproximação pertence ao pensamento mais clássico das
Luzes. Mas, por outro lado, a comparação com a civilização da grande
época tomana só é feita em relação aos perigos exteriores: a história
romana já não constitui um mito de identidade cultural, como na época
clássica, mas uma pedagogia de defesa europeia.
Noutros termos, o que fascina Gibbon na civilização romana, não
é tanto que ela seja a matriz da Europa, mas o facto de ter sido tão
frágil, como o é talvez a da Europa. Sentado nas ruínas de Roma, o
gentleman humanista interroga os tempos que se aproximam sobre
as oportunidades que ainda tem aquilo que ele ama. Esse sentimento
de pertencer a um momento privilegiado e ameaçado da história, Gibbon

200
A HIBTtJRIA NA OULTURA OLABBIOA

não o retira de uma análise das contradições internas da civilização


europeia; indica, pelo contrário, que a existência de uma pluralidade
de nações portadoras dessa civilização e a sua emulação são para ele
factores de força e não de fraqueza. Não suspeita de maneira nenhuma
que os nacionalismos possam tomar-se, no interior dessa comunidade de
cultura europeia, elementos de desagregação. Raciocina apenas em rela-
ção a uma eventual ameaça bárbara (ou mais exactamente «selvagem»),
como se as invasões tivessem sido a única causa da deslocação do Impé-
rio do Ocidente (quando incriminou expressamente, umas páginas antes,
a sua excessiva dimensão e a influência dissolutora do cristianismo),
e como se a Europa plurinacional do século XVIII pudesse ser comparada
com o limes romano (quando indica pouco depois que a Europa do
Norte, outrora reservatório de bárbaros, se civilizou a pouco e pouco).
De facto, a comparação beneficia a Europa do século XVIII. Gibbon
enumera os elementos que militam em favor de uma relativa estabilidade
da civilização que ela atingiu - a sua extensão geográfica, a sua diver-
sidade nacional, o domínio da arte da guerra, o carácter imprescri-
tível das invenções e das técnicas fundamentais, e adianta mesmo, in
fine, a ideia de um progresso cumulativo da humanidade «since the
first discovery of the arts», Mas, por outro lado, a civilização da Europa,
mesmo que seja provavelmente indestrutível, permanece submetida ao
desafio das «savage nations of lhe globe». Pode ser seriamente ameaçada,
obrigada a recuar, a expatriar-se «in the American world»: num século
em que se acelera o colossal impulso de europeização do Mundo que
caracteriza a história universal desde o século XVI, Gibbon discute
a hipótese inversa, tirada do exemplo romano. Não é que a considere
verosímil; é que o seu conceito de «civilização» supõe um inverso amea-
çador, uma exterioridade permanente: o mundo selvagem.
Selvagem ou bárbaro? Geralmente, o pensamento das Luzes dis-
tingue esses dois termos, como definidores de duas etapas diferentes da
evolução para a civilização. A Encyclopédie (1751) ainda os confunde,
visto que «selvagens» evoca para ela os «povos bárbaros que vivem sem
leis, sem polícia, sem religião, e que não possuem habitação fixa».
Mas acrescenta em seguida: «Existe uma diferença entre os povos sel-
vagens e os povos bárbaros: os primeiros são pequenas nações dis-
persas que não querem reunir-se, ao passo que os bárbaros se reúnem

201
i

l
A OFICINA DA HIBTORIA

muitas vezes, e isso faz-se quando um chefe submete outros. A liber-


dade natural é o único objecto da polícia dos selvagens; com essa liber-
dade, quase só o clima e a natureza dominam entre eles. Ocupados com
a caça ou a vida pastoril, não se entregam a práticas religiosas nem
adaptam qualquer religião que os ordene.»
O Dictionnaire de Trévoux (edição de 1771), estando muito próxi-
mo da Encyclopédie, tem o cuidado de não utilizar a palavra «bárbaro»
como sinónimo de «selvagem»; a palavra «aplica-se também aos povos
que vivem errando pelas florestas, sem habitação fixa, sem lei, sem
polícia e quase sem religião». Deste modo, os dois dicionários concor-
dam com Montesquieu para opor selvagens e bárbaros, enunciando
que os primeiros «vivem dispersos, retirados nas florestas e nas monta-
nhas, sem se reunirem, enquanto os segundos se unem muitas vezes
e vivem por vezes dominados por um chefe que os submeteu» 5. Fer-
guson (1767) escreve que o selvagem não tem nem propriedade, nem
governo, nem juízes (na América), enquanto o bárbaro, na Europa,
conhece a propriedade e segue um chefe 6. De Pauw distingue claramente
diferentes etapas da história, quando, por exemplo, diferencia o tra-
tamento dos prisioneiros segundo se tratam dos «mais selvagens» ou
dos «selvagens comuns», dos «povos semibárbaros» ou das nações
«menos bárbaras» 7.
Deste modo, a filosofia das Luzes, em França e em Inglaterra,
elabora progressivamente um esquema histórico trinário «selvagem-
-bárbaro-civilizado». Logo a seguir a Démeunier ê, é Robertson quem,
em 1778, definirá mais claramente as três etapas da evolução a partir
de critérios materiais: os selvagens não têm nem escrita, nem metais,
nem animais domésticos (América); os bárbaros têm metais e domes-
ticaram os animais (Europa, México e Peru); as nações civilizadas têm

5 Esprlt des Lois, livro XVIII, capo lI.


6 History of Civil Society, ed. de 1767, pp, 124 e 185.
7 Recherches philosophiques sur les Américains, 1768, t. I, p. 218.
8 L'Esprit des usages et des coutumes. Todo este desenvolvimento deve muito
°
a um trabalho de Mme. Edna Lemay dedicado a esse livro, com titulo: Naissance
de l'anthropologie sociale en France au XVIII" siêcle: Jean Nicolas Démeunier et
l'esprit des usages et des coutumes.

202

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~_.,...._ ...•,~,----"~

A HISTóRIA NA OULTURA OLÁSSIOA

a indústria e as artes 9. Nesta classificação materialista, que vai ter um


grande futuro no século seguinte, os pensadores do século XVIII vão no
entanto introduzir quase sempre critérios filosófico-políticos: o sel-
vagem pertence à ordem da natureza; não tem habitat fixo, não tem
religião, não tem leis, não tem costumes, representa a origem da huma-
nidade - mas está apto a aceder à história e à sociedade policiada,
desde que o seu natural não seja corrompido pelo contacto com os
Europeus. O bárbaro, por seu lado, já pertence à ordem da história:
constitui nações, forma Estados, mas não goza da protecção de leis
regulares e possui conhecimentos e costumes que permanecem ou se
tomaram grosseiros. É que a barbárie é aquilo que antecede, que amea-
ça ou que segue o estado de civilização: «As nações oscilaram todas»,
diz Diderot+P, «entre a barbárie e o estado policiado, entre o estado poli-
ciado e a barbárie, até que causas imprevistas as levem a uma segurança
que nunca mantêm completamente.»
Ora, Gibbon não distingue o selvagem do bárbaro. Neste ponto
ainda, é um atrasado, preso à dicotomia histórica do início do século.
Na realidade, aquilo que interessa à filosofia das Luzes no conceito de
selvagem, ou seja, do homem na ordem da natureza, não lhe interessa a
ele. A sua percepção é mais histórica do que filosófica, é mesmo comple-
tamente histórica: a queda do mundo romano joga-se entre a sociedade
civilizada por um lado, e os que estão no exterior dessa sociedade, por
outro. No fundo, o velho leitor de Tucídides e de Tácito retoma a dis-
tinção dos próprios Antigos: Gregos e bárbaros, Romanos e bárbaros.
O bárbaro é aquele que está fora do limes. Mas também o intitula sel-
vagem, provavelmente em consequência da vasta utilização da palavra
no século XVIII e para mostrar claramente o fosso que o separa do
civilizado.
Basta ler o capítulo IX, dedicado à Germânia, para nos darmos
conta disso. Gibbon segue aí Tácito de perto, o seu mestre e exemplo:
quer compreender o que faz desses «wild barbarians of Germany» os

9 Histoire de I'Amérique.
10 Histoire des Indes. Citação in M. Duchet, Anthropologie et Histoire au siêcle
des Lumiêres, Paris, Flammarion, 1971.

203
rr A OFIOIN A DA HISTóRIA

f
f
l
mais temíveis inimigos de Roma. Nem cidades, nem letras, nem artes,
nem moeda, eis os traços negativos que definem aquilo a que chamou
«savage state». Quando chega ao famoso tema das liberdades germâ-
nicas, tão importantes na historiografia do seu tempo, em particular
em Montesquieu e Mably, que leu atentamente, a descrição do sistema
das assembleias e da independência dos soldados não faz vibrar nele
qualquer simpatia «democrática». No fundo, o estado atrasado dos
costumes, das letras e das artes implica no seu espírito uma condenação;
e qualifica várias vezes as tribos germânicas de «selvagens», para chegar
a esta conclusão que define exactamente o seu pensamento: «Modern
nations are fixed and permanent societies, connected among themselves
by laws and government, bound to their na tive soil by arts and agricul-
fure. The German tribes were voluntary and fluctuating associations of
soldiers, almost of savages»
Juízo extraordinário, num leitor tão apaixonado pela historiogra-
fia do seu tempo, testemunho do debate central da historiografia fran-
cesa sobre as origens da nação: romanas ou francas? Em momento
algum Gibbon parece ter-se interesado pelo que constituiu na Europa,
desde o século XVI, uma das próprias razões de ser da história e como
que a sua pulsão fundamental: a procura das origens, o contrato ori-
ginal de que emanou a nação. É que, das duas questões que o século XVIII
coloca à história - Que é a nação? Que é a civilização? -, só se inte-
ressa pela segunda. Leu Boulainvilliers, Montesquieu, Dubos, Mably,
mas como puro erudito, como etnólogo dos Francos, não como her-
deiro. A partir do momento em que esses povos germânicos são despo-
jados da sua dignidade fundamental, passam a existir apenas como
«quase-selvagens».
Não se teria grande dificuldade em encontrar o mesmo tipo de
juízo a propósito de outros povos, cujos movimentos ameaçam Roma.
Por exemplo, no capítulo XXVI, em que Gibbon descreve as tribos
nómadas do extremo leste, cuja avançada vai finalmente destruir o
império, impelindo para oeste os Godos «and so many hostile tribes
more savage than themselves». A propósito dessas populações de pas-
tores nómadas, Gibbon nota que aquilo que toma o seu estudo rela-
tivamente simples é a sua proximidade da animalidade: «It is much
easier to ascertain the appetites of a quadruped than the speculations of

204
A HIBTORIA NA OULTURA OLABBIOA

a phi/osopher; and the savage tribes of mankind, as lhe} approach nearer


to the conditions of animais, preserve a stronger resemblance to themselves
and to each other. The uniform stability of their manners is the natural
consequence of lhe imperfection of their faculties. Reduced to a similar
situation, their wants, their desires, their enjoyments stil! continue the
same; and the influence of food or climate, which, in a more improved
state of society, is suspended or subdued by so many moral causes, most
powerfully contributes to form and to maintain the national character
of barbarian:»
Assim, os bárbaros são selvagens. Não existe homem natural
em Gibbon. Também não há «bom selvagem». Há apenas um homem
histórico, de que algumas manifestações, não submetidas ao império
da razão, permanecem coladas à dependência em relação às condições
naturais, a estagnação e a ausência de sociedade policiada. No outro
extremo está o homem civilizado, que não é forçosamente vencedor: a
queda do Império Romano ilustra essa dialéctica central. O paradoxo
está em que Gibbon se interessou pela vitória da barbárie sobre a
civilização.
A chave do paradoxo é que ele escreve, a par dessa história da
civilização e da barbárie, uma segunda história, misturada com a
primeira, embora diferente: a do cristianismo. Gibbon é o primeiro
historiador a tratar conjuntamente a história romana e a história reli-
giosa: essa inovação está inscrita no deslocamento cronológico a que
submeteu a história romana, visto que se trata para ele de compreender,
não os segredos da grandeza romana, não só o desabamento dessa
grandeza, mas, além disso, a transição da Roma dos imperadores para a
Roma dos papas. Se a queda do Império Romano inclui aos seus olhos
toda a Idade Média, é porque o historiador procura nela mais do que
a queda de uma civilização invadida pelos bárbaros. Di-Io in fine com
a doçura de uma provocação: «I have described the triumph of bar-
barism and religion» (cap. LXXI).
«Barbarism and religion»: a frase indica bem que, se nessa história
dramática da queda de Roma, os dois fenómenos concorrem para o
mesmo resultado, não deixam no entanto de ser distintos. A religião
ajudou a barbárie a triunfar, mas não é a barbárie. É que, inseparável
das sociedades humanas, enraizado no medo e na ignorância, o fenó-

205
A OFIOINA DA HISTóRIA

meno religioso é multiforme: Gibbon é um bom discípulo de Bayle


e encama perfeitamente, neste campo, a tradição das Luzes. Mas vai
mais longe do que Bayle: é o primeiro historiador que relativiza siste-
maticamente a religião, o que não significa reduzir a sua importância
- pelo contrário, atribui-lhe uma atenção extrema -, mas integrá-Ia,
nas suas diversas formas, nas sociedades e nos impérios de que traça
a história. Há portanto nele um historiador do paganismo, um histo-
riador dos cultos dos antigos povos germânicos, um historiador do
islão, um historiador do cristianismo. A religião é um fenómeno cul-
tural que ele analisa com muito cuidado, mesmo nos seus refina-
mentos, como o mostram os capítulos dedicados aos debates teológicos
dos primeiros séculos do cristianismo.
A este propósito, as religiões fazem portanto parte desse grande
drama histórico e social que é a queda do Império Romano. Mas quando
Gibbon refere que descreveu «the triumph of barbarism and religion»,
designa apenas uma dessas religiões: o cristianismo. A análise do fenó-
meno religioso passa de genérica a particular: do mesmo modo que aos
olhos do gentleman-scholar há várias sociedades históricas que alcan-
çaram e encamaram a civilização, mas nenhuma ao ponto de perfei-
ção a que a levou o Império Romano, assim também, inversamente,
aparece uma pluralidade de religiões na história humana, mas nenhuma,
provavelmente, foi tão nociva como o cristianismo. Aqui se aflora a
segunda articulação central do Decline and Fall: a primeira circula
em tomo do confronto de Roma com os bárbaros; a segunda em tomo
da decomposição interior do Império pelos cristãos. É uma Roma eu-
fraquecida pelo «espírito do cristianismo», poder-se-ia dizer, paro-
diando Montesquieu, que finalmente foi vencida pelas invasões bárbaras.
E o verdadeiro vencedor, como mostra a história da Idade Média
- oriental e ocidental-, foi o cristianismo.
Tal é provavelmente a razão - a pulsão existencial, se se pre-
ferir - que levou Gibbon a escrever, não um quadro da civilização
romana, mas uma história da sua queda. Claro que, como os seus
contemporâneos, é sensível à fragilidade dos grandes sucessos da his-
tória; mas esse sentimento não justifica que tenha levado a sua narrativa
até ao século XIV! Se quis incluir toda a Idade Média na queda de
Roma, e sob esse título apesar de tudo curioso, é que tanto, talvez

206
Á HISTóRIA NA OULTURA OLASSIOA

mais do que a de Roma, a história do cristianismo o fascina. Nela


investe todo o seu ódio, não pela religião cristã, mas pelas Igrejas,
pelos padres e pelos monges, o seu combate contra a intolerância e
o fanatismo, em suma, toda a tradição anticIerical do Enlightenment
francês.
É demasiado bom historiador para dizer, e nunca o diz, que esse
cristianismo das Igrejas constituídas, de que não gosta nada, faz parte
da «barbárie»; visto que não deixa de provar que ele é o grande prin-
cípio reconstrutor do mundo - do seu mundo histórico, a Europa
- sobre os escombros do Império Romano. Pretende, por um lado, expri-
mir, com a ajuda do espaço histórico a três dimensões no qual se movem
civilização, barbárie, cristianismo, que a sua preferência vai para uma
civilização pré-cristã mais do que para uma barbárie cristianizada. Mas
não deixa também de dizer, mais radicalmente, que aquilo que motiva
o seu culto por Roma, pelos seus valores, pelo seu «espírito», pelas
suas figuras morais, é a existência da civilização no seu estado quimi-
camente puro: isto é, sem Igreja.

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INDICE

Prefácio 7

A HISTÓRIA, HOJE

Os intelectuais franceses e o estruturalismo 41

o quantitativo em história 39

Da história narrativa à história-problema 81

História e etnologia ... 99

A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA

O nascimento da história 109

A «livraria» do Reino de França no século XVII!... 137

Duas legitimações históricas da sociedade francesa no século XVIII: Mably


e Boulainvilliers... 175

Civilização e barbárie segundo Gibbon 195

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