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ISSN 2317-3246

A QUESTÃO INDÍGENA
NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Lucia Alberta Andrade de Oliveira


(Org.)

Cadernos do GEA, n.10, jul.-dez. 2016


Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais/Brasil
Salete Valesan Camba – Diretora
Marcelle Tenório – Assistente de Direção

Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior/Fundação Ford


André Lázaro – Coordenador
Carolina Castro Silva e Luciano Cerqueira – Assistentes de Pesquisa

Laboratório de Políticas Públicas/UERJ
Emir Sader – Coordenador
André Lázaro, Gaudêncio Frigotto e Zacarias Jaegger Gama – Comitê Gestor
Carmen da Matta – Coordenadora Técnica de Projetos Institucionais
Felipe B. Campanuci Queiroz – Coordenador Técnico de Projetos Institucionais
Carla Navarro – Bolsista Técnica Proatec/Depesq/SR-2
Carolina Costa, Pedro Gesteira e Viviane Marques – Bolsistas de Extensão

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

C122 Cadernos do GEA – n. 10 (jul./jdez. 2016). – Rio de Janeiro :


FLACSO, GEA, UERJ, LPP, 2012-
v.

Semestral
ISSN 2317-3246

1. Ensino superior – Brasil – Periódicos. 2. Programas de


ação afirmativa – Brasil – Periódicos. I. Grupo Estratégico de Análise
da Educação Superior no Brasil. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Laboratório de Políticas Públicas.

CDU 378(81)(05)

André Lázaro Marcelo Giardino Wendell Setubal Bárbara Corrêa dos Reis
Editor Projeto Gráfico Revisão Tradução de Inglês
Carmen da Matta Pedro Biz Luciano Cerqueira Carolina Costa e Viviane Marques
Editora Executiva Diagramação Revisão Assistentes de Edição

FLACSO-Brasil/GEA e LPP-UERJ
Rua São Francisco Xavier, 524/12.111/Bloco-F/subsalas 8 e 9
Maracanã – CEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: 55 21 2234-0969/2334-0890/ E-mail: uerj-lpp@gmail.com
<http://www.flacso.org.br/gea> e <http://www.lpp.uerj.br>
SUMÁRIO
Editorial
Indígenas nas universidades brasileiras: estudos sobre práticas | 3
André Lázaro e Renata Montechiare

Resumo (Abstract ) | 7

A formação de professores indígenas nas universidades no âmbito


do PROLIND/MEC (2005-2010) | 9
Lucia Alberta Andrade de Oliveira

Índios antropólogos: apontamentos sobre a produção de dissertações


por Tukano orientais no PPGAS/UFAM | 14
Melissa Santana de Oliveira

Ingresso de indígenas em cursos regulares nas universidades


e desafios da interculturalidade: o caso da UFSCar | 27
Clarice Cohn e Talita Lazarin Dal'Bó

Veiculação de propriedade intelectual indígena na universidade:


um desafio para todos | 38
João Rivelino Rezende Barreto

Resultados e desafios da inclusão de estudantes indígenas


pela política de ações afirmativas da UFSC | 43
Antonella Tassinari

A experiência na Licenciatura Intercultural Indígena


do Sul da Mata Atlântica da UFSC | 52
Clarissa Rocha de Melo

Projeto Vidas Paralelas Indígenas no ensino-pesquisa-extensão:


uma experiência acadêmica na UnB | 58
Maristela Sousa Torres, Laura Celeste Gonçalves Cardoso e Tânia Pinto Pereira
EDITORIAL
INDÍGENAS NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS: ESTUDOS SOBRE PRÁTICAS
André Lázaro* e Renata Montechiare**

Este número 10 dos Cadernos do GEA traz relevantes educação própria, em sua língua materna.2 Embora até hoje,
contribuições de pesquisadores/as indígenas e não indígenas passados quase trinta anos de sua promulgação, não tenha
que se dedicaram a estudar aspectos do ingresso de estudan- sido concluída a demarcação das terras para “proteger e fazer
tes indígenas na educação superior. Não se trata apenas de respeitar todos os seus bens”, os povos indígenas continuam
quantificar esse ingresso: o perfil da população indígena bra- a luta pelo reconhecimento de suas diferenças, como alerta o
sileira impõe que a dimensão qualitativa dessa presença seja professor Gersem Baniwa:
considerada. O Brasil é um dos países com maior diversidade
indígena nas Américas. Segundo o Censo Demográfico 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE): A marca principal dos direitos indígenas é a diferença e a
equivalência e não a igualdade ou similaridade, em razão da
qual os povos indígenas têm reivindicado tratamento diferen-
(...) no total, foram contabilizadas 305 etnias. Dentro das ter- ciado em que o foco da política seja a valorização e o reco-
ras [indígenas], foram contadas 250 e fora das terras, 300 et- nhecimento das diferenças e da diversidade e não a inclusão
nias. Para efeito do Censo Demográfico 2010, considerou-se e homogeneização das políticas, mesmo no âmbito das políti-
etnia ou povo a comunidade definida por afinidades linguísti- cas para a diversidade ou minorias sociais.3
cas, culturais e sociais.1

O melhor conhecimento sobre os distintos povos in-


Tal diversidade se traduz também em grande varie- dígenas e suas relações com a educação superior é, portanto,
dade de interesses e condições de acesso e posse da ter- parte fundamental da luta pelo reconhecimento dos direitos
ra, uso da língua materna e frequência à escola. Do total de dos povos indígenas e pela valorização do imenso patrimônio
praticamente 900 mil indígenas no Brasil, 37,4% falavam ao cultural e linguístico desses povos. Não se trata de um favor,
menos uma língua indígena, enquanto 76,9% declararam fa- uma benesse, um presente, uma concessão: ao contrário, a
lar o português. A perda de línguas indígenas é um processo questão tem valor estratégico para toda a sociedade brasileira
que se encontra em rápida expansão e equivale a perder um e para o planeta.
elo na formação humana, um ponto de vista único e singular
sobre a vida, o mundo e o universo.
A partir de 1988, a Constituição Federal reconhece o O acesso ao ensino superior por indígenas não é apenas um
direito dos povos indígenas a suas terras ancestrais e a uma direito, é também uma necessidade deles e um desejo da

2
  Constituição Federal: o art. 210, § 2º, assegura às comunidades
*  Professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e proces-
Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ). Pesquisador da FLACSO-Brasil,
sos próprios de aprendizagem. No art. 231, é reconhecido o direito
onde coordena o Projeto Grupo Estratégico de Análise da Educação
a sua organização social, costumes, línguas e tradições e os direitos
Superior (GEA-ES), com apoio da Fundação Ford e parceria com o
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
Laboratório de Políticas Públicas (LPP/UERJ). Diretor da Fundação
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Santillana no Brasil.
Cf.: Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena.
**  Doutoranda em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Parecer CNE/CEB, nº 13, de 5/5/2012.
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro 3
  BANIWA, G. A Lei das Cotas e os povos indígenas: mais um desa-
(UFRJ).
fio para a diversidade. In: Cadernos do Pensamento Crítico Latino-
1
  Censo Demográfico 2010. Características Gerais dos Indígenas. Re- -Americano, jan. 2013, p.18-21. Disponível em: <http://flacso.org.
sultado do Universo. IBGE, 2012, p.85. br/>. Acesso em: 11/7/2016.

3
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

sociedade brasileira, na medida em que os povos indígenas escola é determinante futuramente, não apenas para a par-
administram hoje mais de 13% do território nacional, sendo ticipação dos indígenas nos espaços tradicionalmente “bran-
que na Amazônia Legal este percentual sobe para 23%. Não cos”, como para sua escolha entre mobilizar conhecimentos
se trata apenas de garantir capacidade interna das comuni- tradicionais e/ou científicos nos diversos espaços em que atu-
dades indígenas para gerir seus territórios, suas coletividades am, seja na universidade, seja entre seus parentes.
étnicas e suas demandas básicas por políticas públicas de Lucia Alberta Andrade de Oliveira, organizadora
saúde, educação, autossustentação, transporte, comunica-
deste número, abre a série de trabalhos comentando a Lei
nº 9394/1996 e as diretrizes pedagógicas específicas para a
ção, mas, também de possibilitá-los condições de cidadania
formação de professores indígenas. Trata da criação, no Bra-
plena e diferenciada para dialogar com o Estado e com a so-
sil, de cursos de magistério intercultural indígena para formar
ciedade nacional no que tange a interesses comuns e nacio-
professores e professoras da educação infantil e do ensino
nais, como, por exemplo, a contribuição econômica dos terri- fundamental nos territórios indígenas e aponta a grande de-
tórios indígenas, a relevância da diversidade cultural, étnica, manda de formação superior para profissionais de nível mé-
linguística e da sociobiodiversidade indígena que são também dio dessas escolas. A Universidade do Estado de Mato Grosso
patrimônio material e imaterial da sociedade brasileira. (Id.ib.) (UNEMAT) foi pioneira nesse curso, resultado de um grupo
de trabalho que se estendeu entre os anos de 1997 e 1999,
reunindo órgãos públicos e organizações sociais no estado.
O Projeto Grupo Estratégico de Análise da Educa- O avanço desse trabalho resultou no Programa de Educação
ção Superior (GEA-ES), uma parceria da FLACSO/Brasil e do Superior Indígena Intercultural (PROESI) na Universidade Fede-
Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado ral de Mato Grosso (UFMT) e na criação da Faculdade Supe-
do Rio de Janeiro (LPP/UERJ), com apoio da Fundação Ford, rior Indígena. Em 2005, o Ministério da Educação (MEC) criou
apresenta esta edição como expressão de um compromisso o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas
político e educacional. O número 10 dos Cadernos do GEA Interculturais Indígenas (PROLIND), que promoveu a ampliação
traz artigos que discutem e analisam a presença de indígenas da oferta de cursos de formação de professores indígenas pe-
nas universidades brasileiras e o quanto essa participação re- las universidades federais. O artigo defende a centralidade de
organiza as relações sociais entre os membros da comunida- ações estruturais, como as citadas, para estreitar o diálogo da
de acadêmica, na mesma proporção em que incita à reflexão universidade com os povos indígenas, sempre marginalizados
sobre os modos de produção do conhecimento científico. em seus conhecimentos e modos de transmissão.
Ao receber estudantes indígenas, as universidades A autora Melissa Santana de Oliveira analisa como
precisam trabalhar pela permanência e defesa dos direitos dos seus colegas do Mestrado em Antropologia Social concluí-
mesmos frente às reações conservadoras internas e externas ram a pós-graduação na Universidade Federal do Amazonas
aos campi e reconhecer que essa presença pressupõe revisões (UFAM). Percorre a trajetória comum a muitos indígenas do
epistemológicas profundas. Apoiar a formação de intelectuais Alto Rio Negro em sua formação inicial junto aos missioná-
indígenas significa rever a gênese do conhecimento no forma- rios salesianos, passando pelas iniciativas de construção de
to ocidental incorporado pela academia brasileira e permitir conhecimento integrado entre indígenas e não indígenas, e a
discutir seus paradigmas. Ainda que todos os estudantes apor- forma como esse processo interferiu nas escolhas de objeto
tem às universidades experiências a partir de sua trajetória de estudos dos mestres antropólogos indígenas. Mostra como
pessoal e intelectual, uma política que demanda a participação a luta pela regulamentação da política de cotas na pós-gradu-
de indígenas como produtores de sentidos deve estar aberta o ação, revogada em 2012, após três anos de implementação, e
suficiente para se confrontar com as próprias contradições do finalmente aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Ex-
conhecimento que produz, como produz, para quem produz e tensão da UFAM, em 2016, integra-se a um movimento mais
como é apropriado o saber que cria e sistematiza. amplo de reflexões sobre a apropriação do saber indígena no
Os trabalhos aqui reunidos convidam-nos a conhecer cotidiano da produção acadêmica dos que passam a conviver
o caminho percorrido por muitos indígenas até chegarem à com os alunos cotistas. Essa nova dinâmica requer repensar
universidade: da escolarização nos territórios de origem, por tanto as regras quanto as premissas do conhecimento pro-
meio de instituições religiosas – e as idiossincrasias desse duzido, por meio de experiências testadas pela primeira vez
processo – até as experiências de formação dialógica que nesse contexto, tais como a autoria compartilhada entre pes-
trazem o saber concreto das aldeias como parte da aprendi- quisadores e indígenas e a adoção da língua Tukano para o
zagem formal. Os artigos apontam que esse contato inicial na texto final das dissertações dos estudantes.

4
Clarice Cohn e Talita Lazarin Dal’Bó discutem o soluções aos desafios enfrentados pelas universidades em
contexto das políticas de inclusão de estudantes indígenas seus sistemas administrativos e burocráticos, e ainda no
na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e as con- cotidiano das instituições, surpreendidas pela nova dinâmi-
tradições inerentes à compreensão sobre os parâmetros da ca que a inclusão dos estudantes cotistas traz. Na UFSC,
iniciativa, de divergências sobre autodeclaração indígena, as primeiras iniciativas nesse sentido datam de 2006. As
aos métodos de avaliação para o vestibular diferenciado. So- necessidades de ajustes nas políticas adotadas ao longo
bre este último, as antropólogas comentam os debates so- dos últimos anos foram analisadas por Antonella Tassinari,
bre métodos e a inclusão de supostos contextos do mundo membro da Comissão de Acompanhamento do Programa
indígena para responder questões sobre Álgebra ou Física: de Ações Afirmativas da UFSC. A pesquisadora comenta os
tentativas, acertos e equívocos de se arriscar a construir uma resultados do sistema de autodeclaração para as vagas su-
política pública inovadora. Em termos positivos mais atuais, plementares oferecidas e a alta demanda pelo que chama
em 2016 a universidade recebeu 43 estudantes indígenas, de “simpatizantes da cultura indígena ou de ascendência
número crescente desde a primeira turma, em 2009. Além longínqua”. A universidade pretendia alcançar também in-
do trabalho para o ingresso, há políticas de permanência, ar- dígenas moradores das aldeias do estado e estabeleceu o
ticulando parcerias institucionais para a oferta de bolsas de critério da moradia para atender a cinco vagas disponíveis,
estudo. De todo modo, a experiência do estudante indígena ainda que sem o recurso do vestibular diferenciado indí-
na universidade vai além dos recursos financeiros para sua gena, que garante uma avaliação mais coerente com sua
permanência. As autoras relatam as cobranças sofridas quan- escolarização, tendo sido este um dos argumentos da bai-
do se tornam mais um estudante no enorme e complexo con- xa capacidade de preenchimento das vagas ofertadas. São
junto da universidade, que exigem dos indígenas que ora se muitos os desafios enfrentados, como problemas técnicos
comportem como iguais a seus colegas não indígenas, nas de acesso à internet, desconhecimento sobre os prazos
leituras, avaliações e nos demais compromissos acadêmicos, e especialmente a fluência em português como exigência
ora demonstrem que são de fato indígenas, como num tipo imediata; entretanto, seu trabalho nos mostra que é possível
de autenticidade que afirme sua identidade aos que com eles vencê-los: a partir de uma iniciativa individual, o vestibular
se relacionam. Diante de todas as variáveis experimentadas, de 2014 contou com 136 inscritos, frente aos 17 do ano an-
descrevem os resultados qualitativos do I Encontro Nacional terior. A política inspira-se ainda nos pequenos movimentos
de Estudantes Indígenas, em que os integrantes das mesas de que, por sua vez, produzem dados e informações centrais
conferências eram todos indígenas, recebendo participantes e para ajustá-la ao contexto da universidade.
representantes de povos do país inteiro. O trabalho desenvolvido no Curso de Licenciatura In-
João Rivelino Rezende Barreto, indígena Tukano, tercultural Indígena no Sul da Mata Atlântica é analisado no
doutorando em Antropologia Social pela Universidade Fede- artigo de Clarissa Rocha de Melo. A iniciativa surgiu a par-
ral de Santa Catarina (UFSC), apresenta um artigo autobio- tir da demanda de organizações indígenas da região e hoje
gráfico, narrando a trajetória de sua formação intelectual e a atende populações Guarani, Kaingang e Xokleng dos estados
forma como articula o pensamento Tukano de suas origens de Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa
no Amazonas com o pensamento científico no Mestrado em Catarina e Rio Grande do Sul, por meio de metodologia que
Antropologia na UFAM. Seu trabalho nos informa sobre as di- incorpora a pedagogia da alternância como prática educacio-
ficuldades pelas quais um aluno indígena passa ao ingressar nal coerente com as diretrizes do curso: um tempo na aldeia,
na universidade, os contrastes que observa, os preconceitos um tempo na universidade. Esta é a base da proposta que
sofridos e o acúmulo intelectual que produz justamente por considera primordial a presença dos indígenas ao lado dos
atravessar perspectivas tão diversas. Da aplicação do idioma demais estudantes na universidade, na mesma medida em
ao complicado distanciamento científico, seu relato analisa os que seu retorno ao território é fundamental, inclusive para a
embates de se reconhecer como indígena e tornar o modo garantia de sua permanência no curso. Da percepção sobre
de conhecimento de seu povo como parte das teorias com as o ruído das conversas no campus à centralidade da escrita, a
quais trabalha, e pondera que conhecer sua própria cultura é autora reúne um importante material de reflexão, não apenas
diferente de pensar sobre ela: “hoje entendo que a escola é sobre a experiência indígena no espaço acadêmico, mas sobre
sim importante nas aldeias, mas o mais importante é o aluno o modo “branco” de produção e difusão de conhecimento. São
indígena dominar a escola e não a escola dominar o indígena”. análises ricas em contraste, entre o mundo prático e concre-
As análises de experiências da implementação to da aldeia e a mediação que o idioma pressupõe, reunidos
das políticas de ações afirmativas têm contribuído para as para formar os professores que atuam nas escolas indígenas

5
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

e constatando que a forma de aprender importa tanto quanto Estes povos desejam formação superior em seus termos, ou
o conteúdo assimilado. seja, para atender suas demandas, realidades, projetos e filo-
A pesquisadora Maristela Sousa Torres e as estu- sofias de vida. Aqui reside o maior desafio da formação supe-
dantes indígenas Baré e Tupinikim Laura Celeste Gonçalves rior de indígenas nos contextos das atuais IES [instituições de
Cardoso e Tânia Pinto Pereira, respectivamente, apresentam- ensino superior], fundamentadas na organização, produção e
-nos um estudo descrevendo as atividades do Projeto Vidas reprodução de saber único, exclusivo, individualista e a servi-
Paralelas Indígenas, iniciado em 2010 na Universidade de ço do mercado. O desafio é como esta instituição superior for-
Brasília (UnB). A proposta em desenvolvimento toma como
madora pode possibilitar a circulação e a validação de outros
base a interação dos indígenas com as tecnologias digitais.
saberes, pautados em outras bases cosmológicas, filosóficas
Por meio de câmeras e celulares distribuídos em comodato,
e epistemológicas. Os povos indígenas, por exemplo, não gos-
os participantes indígenas do projeto de extensão registram
sua percepção sobre o mundo, produzem fotografias e víde- tariam de ser enquadrados pelas lógicas academicistas que
os, conhecem e acessam redes sociais e descobrem novas alimentam e sustentam os processos de reprodução do capi-
possibilidades de interação social por meio das tecnologias talismo individualista, que tem gerado uma sociedade cada
de comunicação. O resultado é a expressão do olhar indígena vez mais em retorno à civilização da barbárie e da selvageria,
sobre seu cotidiano e suas expectativas, apresentado em ci- por meio da violência, da exploração econômica desumana,
neclubes e espaços de socialização, que estreitam o contato do império da lei do mais rico e dos que têm poder político
da UnB com as comunidades de seu entorno. à base de democracias das elites econômicas e políticas. Os
A FLACSO/Brasil almeja que essa coletânea de tra- povos indígenas gostariam de compartilhar com o mundo, a
balhos contribua para que o Estado brasileiro e suas institui- partir da universidade, seus saberes, seus valores comunitá-
ções de educação ajustem os rumos e estratégias das polí- rios, suas cosmologias, suas visões de mundo e seus modos
ticas de ação afirmativa, em particular no tocante ao direito de ser, de viver e de estar no mundo, onde o bem viver cole-
adquirido pelos povos indígenas com a legislação de cotas.
tivo é a prioridade.4
Em respeito à luta dos intelectuais indígenas, cabe a Gersem
Baniwa concluir esta apresentação:

4
  BANIWA, G. Op.cit.

6
A QUESTÃO INDÍGENA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Resumo – Este número traz relevantes contribuições de Abstract – This volume presents relevant contributions from
pesquisadores/as indígenas e não indígenas que se de- indigenous and non-indigenous researchers who dedicated
dicaram a estudar aspectos do ingresso de estudantes themselves to study aspects of the admission of indigenous
indígenas na educação superior. Não se trata apenas de students in higher education. It is not only a matter of quanti-
quantificar esse ingresso, já que o perfil da população in- fying this admission, since the brazilian indigenous population
dígena brasileira impõe que a dimensão qualitativa dessa profile dictates that the qualitative dimension of this presence
presença seja considerada. Os artigos discutem e analisam must be considered. The articles discuss and analyze the way
o quanto essa participação nas universidades reorganiza as this participation in universities reorganizes the social rela-
relações sociais entre os membros da comunidade acadê- tions between the members of the academic community, in
mica, na mesma proporção em que incita a reflexão sobre the same proportion that it incites reflexion on the modes of
os modos de produção do conhecimento científico. Estes production of scientific knowledge. These studies invite the
estudos convidam o leitor a conhecer o caminho percorrido reader to know the path trailed by many indigenous people
por muitos indígenas até chegar à universidade: da escola- in order to enter a university: from schooling in their original
rização nos territórios de origem, por meio de instituições territories, by religious institutions, to the dialogical formation
religiosas, até as experiências de formação dialógica que experiences which brings concrete knowledge of the villages
trazem o saber concreto das aldeias como parte da apren- as part of formal learning.Keywords: higher education; inclu-
dizagem formal. sion; democratization; quality; Enade; internationalization.

Palavras-chave: indígenas; educação superior; ações afir- Keywords: indigenous people; higher education; affirmative
mativas; inclusão; pesquisa científica. action; inclusion; scientific research.

7
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
NAS UNIVERSIDADES NO ÂMBITO DO PROLIND/MEC
(2005-2010)1
Lucia Alberta Andrade de Oliveira*

1. ANTECEDENTES1 Estado de Mato Grosso (UNEMAT) foi a primeira a criar um


curso de licenciatura intercultural no Brasil, sendo a pioneira
Até 2005, um pequeno número de professores in- nesta discussão.
dígenas dispunha de licenciaturas interculturais específicas. Em 1997,3 após a Conferência Ameríndia de Educa-
Os profissionais que quisessem ter uma formação superior ção Escolar Indígena, realizada no estado de Mato Grosso, foi
tinham que ingressar nos cursos superiores regulares ofer- criada pelo Governo do Estado a Comissão Interinstitucional
tados pelas universidades estaduais, federais ou particulares. e Paritária, que iniciou as discussões sobre a formação de
Com a aprovação da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Di- professores indígenas em nível superior, atendendo à reivin-
retrizes da Educação Nacional-LDBEN),2 que define diretrizes dicação do movimento indígena. A Comissão era constituída
pedagógicas específicas para formação de professores indí- por representantes da Secretaria de Estado da Educação de
genas e estabelece um prazo para que se formem adequa- Mato Grosso (Seduc/MT), Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
damente para trabalhar nas respectivas escolas, começaram Comissão Estadual de Educação (CEE/MT), Central Eletrônica
a surgir em todo o Brasil, a partir de 1997, diversos cursos de Integração e Informações (CEI/MT), Universidade Federal
de magistério indígena intercultural em nível médio, o qual de Mato Grosso (UFMT), UNEMAT, Coordenadoria de Assuntos
possibilitava a formação de professores indígenas para atuar Indígenas de Mato Grosso (CAIEMT) e representantes indíge-
na Educação Infantil e no ensino fundamental, principalmente nas. Em 1998, a Comissão elaborou o anteprojeto para for-
nos anos iniciais. Estes cursos possibilitaram um avanço mui- mação em nível superior, estabelecendo as diretrizes gerais
to grande na educação escolar indígena no país. da proposta.
No entanto, com o aumento da escolaridade dos O projeto foi concluído pela CEE no final de 1999,
alunos indígenas – já que antes a maioria das escolas indí- com a entrega oficial do documento ao governo do estado
genas funcionava até a 4ª série do ensino fundamental, com de Mato Grosso. O ano de 2000 foi dedicado às negociações
a formação dos professores, a grande maioria das escolas políticas e financeiras, com a assinatura dos convênios entre
indígenas atualmente oferece o ensino fundamental completo as instituições parceiras e sua aprovação nos colegiados da
– começou-se a perceber a necessidade da continuidade da UNEMAT.
formação dos professores indígenas em nível superior, para Em 2001, teve início oficialmente o Projeto de Forma-
que, com isso, eles pudessem também trabalhar com as sé- ção de Professores Indígenas – 3º Grau Indígena, com a rea-
ries finais do ensino fundamental e médio. lização do vestibular e o início das aulas no mês de julho para
Antes de começarmos a falar diretamente do Pro- a primeira turma dos cursos de licenciatura específica para a
grama de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indí- formação de professores indígenas. Em janeiro de 2005, tive-
genas (PROLIND), é bom destacar que a Universidade do ram início as aulas para a segunda turma dos cursos.
Em junho de 2006, a primeira turma concluiu as ati-
vidades do curso, sendo realizada a colação de grau e a entre-
* Mestre em Educação pela Universidade Federal do Amazonas ga dos diplomas de licenciados a 186 acadêmicos indígenas.
(UFAM). Coordenadora Geral da Educação Escolar Indígena da Secre- Em agosto de 2007, considerando a necessidade de fortalecer
taria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão as ações desenvolvidas pela UNEMAT, em prol da Educação
(Secadi/MEC). Superior indígena em Mato Grosso, o Projeto 3º Grau Indígena
1
 Este artigo foi construído a partir dos produtos oriundos da foi transformado no Programa de Educação Superior Indígena
Consultoria do Projeto BRA nº 09/004-OEI estabelecida com o
Ministério da Educação (MEC). Qualificação 153, 2010.
2
 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.
htm/>.   Disponível em: <http://indigena.unemat.br/index.php/historico/>.
3

9
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

Intercultural (PROESI). Em janeiro de 2008, iniciaram as aulas como agentes interculturais na promoção e realização dos
para a terceira turma dos cursos de Licenciatura. projetos de suas comunidades.
Durante o II Congresso Universitário da UNEMAT, Desde o lançamento em 2005, até 2010, o PROLIND
realizado em dezembro de 2008, foi aprovada a criação da teve três editais de convocação: 2005 – Edital de Convo-
Faculdade Indígena Intercultural, incorporando as ações re- cação nº 5, de 29/6/2005; 2008 – Edital de Convocação
lacionadas à Educação Superior indígena. A Faculdade tem nº 3, de 24/6/2008; e 2009 – Edital de Convocação nº 8,
por objetivo a execução dos cursos de licenciaturas plenas e de 27/4/2009.
bacharelado, com vistas à formação em serviço e continuada
de professores e profissionais indígenas; abertura de vagas
2.1. EDITAL DE CONVOCAÇÃO Nº 5, DE 29/6/2005
nos cursos regulares de pós-graduações lato sensu e stricto
sensu; cursos de formação continuada, acompanhamento de
O primeiro edital do PROLIND contou com a partici-
acadêmicos indígenas nos cursos de graduação e administra-
pação de 12 instituições de ensino superior (IES), as quais pu-
ção do Museu Indígena a ser implantado.
deram apresentar propostas para três eixos. O MEC instituiu
Em julho de 2009, a segunda turma concluiu as ativi-
um comitê técnico multidisciplinar para avaliar as propostas
dades do curso, realizando então a colação de grau e a entre-
recebidas, ficando o resultado da seguinte forma:
ga dos diplomas a mais 90 professores indígenas. A partir de
2005, com a criação do PROLIND, o curso de Licenciatura In-
Projetos aprovados
tercultural da UNEMAT começou a receber financiamento des-
te programa da Secretaria de Educação Continuada, Alfabeti- Eixo I: Implantação e manutenção de cursos de licenciaturas
zação e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC). específicas para a formação de professores indígenas em ní-
Além da UNEMAT, no Brasil outras universidades vel superior
também tiveram o seu protagonismo na implantação de cur-
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
sos de licenciaturas específicas para formação de professores Título: Formação Intercultural de Professores
indígenas, como a Universidade Federal de Roraima (UFRR),
a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Universidade Federal de Roraima (UFRR)
Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Título: Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura
Amazonas (UFAM). Como poderemos ver adiante, até 2010 Intercultural
existiam 21 universidades em todo o Brasil com programas de
formações específicas para professores indígenas. Projetos pré-aprovados
Eixo I: Implantação e manutenção de cursos de licenciaturas
específicas para a formação de professores indígenas em ní-
2. O PROLIND/MEC vel superior
Universidade do Estado do Amazonas (UEA)
O PROLIND é uma iniciativa do Ministério da Educa- Título: Curso de Licenciatura Plena para Professores Indígenas
ção, por intermédio da Secad/MEC, atual Secretaria de Edu-
Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT)
cação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Se-
Título: Projeto de Formação de Professores Indígenas – 3º Grau
cadi), com apoio da Secretaria de Educação Superior (Sesu)
Indígena
e execução financeira do Fundo Nacional de Desenvolvimento
da Educação (FNDE), em cumprimento às suas atribuições de Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
responder pela formulação de políticas públicas de valoriza- Título: Licenciaturas Interculturais das Áreas: Ciências Sociais,
ção da diversidade e promoção da equidade na educação. Educação Matemática, Ciências da Linguagem e Ciências da
O PROLIND apoia projetos de cursos de licenciaturas Natureza
específicas para a formação de professores indígenas para o
exercício da docência nas escolas indígenas, que integrem Eixo II: Elaboração de projetos de cursos de licenciaturas es-
ensino, pesquisa e extensão e promovam a valorização do es- pecíficas para formação de professores indígenas em nível
tudo de temas relevantes, tais como línguas maternas, gestão superior
e sustentabilidade das terras e culturas dos povos indígenas. Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Os projetos apoiados devem também promover a capacitação Título: Diagnóstico Socioeducacional das Populações Indígenas
política dos professores que atuam na docência aos indígenas, no Paraná

10
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Universidade do Estado do Ceará (UECE)
Título: Elaboração de Projeto de Curso de Licenciatura Específi- Título: Licenciatura Intercultural Indígena
ca para Formação de Professores Indígenas Mura
Universidade do Estado de Alagoas (UNEAL)
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Título: Curso de Licenciatura Específica para a Formação de
Título: Licenciatura para Professores Indígenas Professores Indígenas

Universidade do Estado da Bahia (UNEB)


Título: Universidade na Aldeia Eixo II: Desenvolvimento de cursos de licenciaturas intercultu-
rais para a formação de professores que atuam nas escolas
Eixo III: Permanência de alunos indígenas na Educação Su- indígenas em nível superior
perior Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Título: Curso de Licenciatura Específica para a Formação de
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Professores Indígenas
Título: A Permanência do Estudante Indígena na UEMS: Uma
Proposta de Ação (aprovado integralmente) Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
Título: Curso de Licenciaturas Indígenas no Contexto dos Gua-
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
rani e Kaiowá – Projeto Teko Arandu
Título: Povo Pataxó em Luta pela Educação Superior
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Projetos aprovados parcialmente Título: Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior

Fundação Universidade Federal do Tocantins (UFT) Universidade Federal de Goiás (UFG)


Título: Educação e Interculturalidade: políticas de permanência Título: Curso de Licenciatura Intercultural
dos estudantes indígenas na UFT
Universidade Federal do Amapá (UNIFAP)
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Título: Curso de Licenciatura Intercultural
Título: Caracterizar as condições de saúde/educação nas
comunidades Guarani e Kaingang na área indígena Rio das Eixo III: Elaboração de projetos de cursos de licenciaturas
Cobras-PR específicas para a formação de professores que atuam nas
escolas indígenas em nível superior
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
2.2. EDITAL DE CONVOCAÇÃO Nº 3, DE 24/6/2008
Título: Programa de Licenciaturas dos Povos Indígenas do Sul
da Mata Atlântica – Guarani, Kaingang e Xokleng
O segundo edital do PROLIND contou com a partici-
pação de 12 IES, as quais puderam apresentar propostas para
Projeto pré-aprovado a ser reformulado para Eixo III
três eixos, sendo que o eixo III, a partir deste edital, mudou
seu foco de atendimento. É importante destacar que o MEC Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
instituiu um comitê técnico multidisciplinar para avaliar as Título: Curso de Licenciatura Intercultural Indígena
propostas recebidas, ficando o resultado da seguinte forma:
2.3. EDITAL DE CONVOCAÇÃO Nº 8, DE 27/4/2009
Projetos aprovados
O terceiro edital do PROLIND contou com a partici-
Eixo I: Implantação e desenvolvimento de cursos de licencia-
pação de 9 IES, as quais puderam apresentar propostas para
turas interculturais para a formação de professores em nível
três eixos, sendo que o eixo III, a partir deste edital, mudou
superior que atuam nas escolas indígenas
seu foco de atendimento. É importante destacar que o MEC
Universidade do Estado da Bahia (UNEB) instituiu um comitê técnico multidisciplinar para avaliar as
Título: Curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar propostas recebidas, ficando o resultado da seguinte forma:
Indígena

Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Projetos aprovados


Título: Curso de Licenciatura em Educação Indígena
Eixo I: Implantação e desenvolvimento de cursos de licencia-
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) tura interculturais para formação de professores indígenas em
Título: Curso de Licenciatura de Educação Intercultural nível superior

11
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

Universidade Federal do Ceará (UFC) Projetos pré-aprovados a serem reformulados para


Título: Magistério Indígena Superior dos Povos Pitaguary, Tape- Eixo I
ba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé (Misi-Pitakajá)
Licenciatura Intercultural Específica Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Título: Licenciatura Indígena, Políticas Educacionais e Desen-
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) volvimento Sustentável
Título: Licenciatura Intercultural Indígena “Povos do Pantanal”
Atikum, Guató, Kamba, Kadiwéu, Kinikinau, Ofaié e Terena Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Título: Licenciatura em Educação Básica Intercultural
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Título: Licenciaturas dos Povos Indígenas do Sul da Mata Atlântica
Guarani, Kaingang e Xokleng
3. AS IES E OS CURSOS DE LICENCIATURAS
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da INTERCULTURAIS
Bahia (IFBA/Campus Porto Seguro)
Título: Licenciatura Intercultural Indígena Os cursos de licenciaturas interculturais podem
vir a ser um dos principais mecanismos de afirmação cul-
Eixo II: Desenvolvimento de cursos de licenciatura intercultu- tural e gestão territorial, mensagem transmitida nas confe-
rais para formação de professores indígenas em nível superior rências regionais de educação escolar indígena e na Con-
Universidade Federal do Acre (UFAC) ferência Nacional de Educação Escolar Indígena realizada
Título: Licenciaturas Interculturais para Formação de Professo- em 2009.
res Indígenas em Nível Superior Para isso os cursos vêm possibilitando uma ampla
participação das lideranças, pajés, rezadores, jovens, anci-
Eixo III: Elaboração de projetos de cursos de licenciatura intercul- ões, anciãs e demais membros das comunidades em todos
turais para formação de professores indígenas em nível superior os momentos dos cursos, para com isso criarem um vínculo
entre os professores a serem formados, suas comunidades e
Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
a universidade responsável pelo curso.
Título: Projeto de Curso de Licenciatura Específica para Forma-
ção de Professores Indígenas Sateré e Munduruku
Historicamente, as universidades brasileiras sempre
tiveram dificuldade para se relacionar com os povos indíge-
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) nas, por diversos motivos. No entanto, com essas iniciativas
Título: Projeto de Curso de Licenciatura Intercultural Indígena inovadoras, podemos afirmar que as portas de algumas insti-
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do tuições acadêmicas estão se abrindo para um diálogo equipa-
Amazonas (IFAM) rado com os povos indígenas, possibilitando uma inter-relação
Título: Projeto de Cursos de Licenciaturas Específicas para For- entre os conhecimentos produzidos e os saberes ancestrais
mação de Professores Indígenas em Nível Superior dos povos indígenas.

Historicamente, as universidades brasileiras sempre tiveram difi-


culdade para se relacionar com os povos indígenas, por diversos
motivos. No entanto, com essas iniciativas inovadoras, podemos
afirmar que as portas de algumas instituições acadêmicas estão
se abrindo para um diálogo equiparado com os povos indígenas,
possibilitando uma inter-relação entre os conhecimentos produzidos
e os saberes ancestrais dos povos indígenas.

12
4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROLIND em propostas inovadoras como estas é que elas criem meca-
nismos para garantir ampla participação dos povos indígenas
Os projetos das 22 IES beneficiadas pelo PROLIND em todas as fases do projeto, da elaboração à implementação.
até 2010 representam grande avanço para a política nacional Com o apoio do PROLIND, muitas escolas indígenas
de educação escolar indígena. No entanto, não têm acompa- puderam dar um salto de qualidade, principalmente na cons-
nhamento técnico-pedagógico da equipe do MEC para avaliar trução de propostas pedagógicas específicas. No entanto,
se os objetivos definidos estão sendo alcançados, e se os re- ainda temos muito para avançar, pois não basta apenas as es-
sultados da formação específica para os professores indíge- colas indígenas terem professores qualificados, bons projetos
nas estão tendo algum tipo de impacto dentro das aldeias/ político-pedagógicos, se os órgãos responsáveis pela execu-
comunidades indígenas. ção da política de educação escolar indígena não garantirem
Para que estes cursos realmente atendam às neces- o que prevê a nossa Carta Magna.
sidades dos povos indígenas de cada região, é necessário que É o que hoje está ocorrendo nas escolas indígenas;
os cursos tenham uma avaliação constante e um acompanha- não têm apoio estrutural dos estados e municípios para colo-
mento por parte do MEC em parceria com o movimento indí- carem em prática os princípios e objetivos da educação esco-
gena local, para que as propostas de formação possam sem- lar indígena. Mas o que se vê é a organização do movimento
pre ser aprimoradas, visando atender aos planos de vida dos indígena para reverter esse quadro, para garantir os seus di-
povos indígenas. Uma recomendação que parece ser crucial reitos constitucionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. MEC. Edital de Convocação nº 5, de 29/6/2005. _____. Edital de Convocação nº 3, de 24/6/2008.


CESI/SESU/MEC.
_____. Edital de Convocação nº 8, de 27/4/2009.
BRASIL. MEC. Portaria Conjunta nº 55, de 10/8/2005. SECAD/
MEC. _____. Portaria nº 61, de 23/6/2009.

PROLIND. Edital de Convocação nº 5, de 29/6/2005. _____. Portaria nº 100, de 6/8/2009.

13
ÍNDIOS ANTROPÓLOGOS: APONTAMENTOS SOBRE
A PRODUÇÃO DE DISSERTAÇÕES POR TUKANO
ORIENTAIS NO PPGAS/UFAM
Melissa Santana de Oliveira*

INTRODUÇÃO 1. DA ESCOLA MISSIONÁRIA À ESCOLA INDÍGENA:


ESCOLARIZAÇÃO ENTRE OS TUKANO DO ALTO RIO NEGRO1
Neste artigo, tematizo a produção de dissertações de
Mestrado em Antropologia Social no Programa de Pós-gra- O Alto Rio Negro, situado no noroeste amazônico,
duação em Antropologia Social da Universidade Federal do é marcado pela diversidade étnica, pelo multilinguismo2 e
Amazonas (PPGAS/UFAM), por parte de três alunos indígenas pelo antigo histórico de escolarização, que remonta à che-
Tukano orientais, originários de comunidades do Alto Rio Ne- gada dos salesianos na região a partir da década de 1910.
gro. Entendendo este processo como parte de um movimento A partir desta época, foram instaladas missões salesianas
mais amplo, em que os indígenas tomam para si o protagonis- em diversos pontos estratégicos no Rio Negro: São Gabriel da
mo na produção de registros escritos sobre seus conhecimen- Cachoeira, 1914; Taracuá (Uaupés), 1923; Iauaretê (Uaupés),
tos, procuro demonstrar o que tais dissertações revelam sobre 1929; Pari Cachoeira (Tiquié), 1940; Santa Isabel (Médio Rio
a trajetória destes alunos Tukano, os critérios de escolha e o Negro), 1942; e Assunção do Içana (Içana), 1952. (Cabalzar e
teor das suas temáticas de pesquisa, a metodologia utilizada e Ricardo, 2006, p.93) A maior parte dos adultos e velhos que
as reflexões sobre as condições da produção de conhecimen- habitam atualmente as comunidades do Rio Uaupés e afluen-
tos antropológicos sobre os conhecimentos Tukano por parte tes foram alunos internos das missões de Taracuá, Iauaretê e
destes alunos e suas consequências. Antes de tudo, apresen- Pari Cachoeira.
to o contexto dos Tukano do Alto Rio Negro, focalizando dois A atuação missionária literalmente atacou e destruiu
pontos que a meu ver são cruciais para se compreender o as malocas (casas comunais) e as propriedades materiais e
universo referencial de tais antropólogos indígenas: as nuan- imateriais a elas relacionadas e em seu lugar instaurou insti-
ces do histórico de escolarização e da tradição de registros de tuições poderosas: a igreja e o internato, que por décadas foi
conhecimentos por parte de antropólogos e missionários em o local de estudo e de vivência das crianças e jovens Tukano,
parceria com indígenas nesta região. 1 que, apartados do espaço da maloca, afastados de seus pais
e familiares, foram privados da possibilidade de participar de
situações cotidianas de formação da pessoa e transmissão
de saberes que os preparariam para mais tarde acessarem
conhecimentos importantes. Conforme relatou o pedagogo
salesiano Tuyuka Rezende (2007) para Pari Cachoeira, o dia a
dia na missão era marcado pela proibição da fala nas línguas
*  Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa
indígenas, uma rotina rígida e repetitiva voltada para os estu-
Catarina (UFSC).
dos, orações e realizações de trabalhos braçais.
1
  Este tópico foi desenvolvido a partir de adaptação de partes dos
Capítulos 1 e 3 da minha Tese de Doutorado intitulada: Sobre Casas,
Pessoas e Conhecimentos: Uma Etnografia Entre os Tukano Ñahuri e
Hausirõ Porã do Médio Rio Tiquié, Noroeste Amazônico, defendida em
2016, pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da 2
  A região do Alto Rio Negro é composta por 27 etnias, sendo 22
UFCS. Para o desenvolvimento da tese, contei com o apoio da Fun- no lado brasileiro, pertencentes a três famílias linguísticas – Aruak,
dação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), que Tukano e Maku, falantes de mais de 20 línguas (ISA, s/d). A família
me forneceu bolsa, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal linguística Tukano oriental é composta, para além dos Tukano propria-
de Nível Superior (Capes), que me contemplou com uma bolsa do mente ditos, por 18 grupos linguísticos: Tuyuka, Kubeo, Desana, Ua-
Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE) na Universidade nana, Pira-Tapuya, Bará, Barasana, Makuna (Ide masa e Yeba masã),
de Cambridge, e do Instituto Brasil Plural (IBP), que financiou meu Tatuyo, Taiwano (ou Eduria), Karapanã, Siriano, Yuruti, Miriti-Tapuya,
trabalho de campo no Rio Tiquié, TI Alto Rio Negro. Arapaso, Letuama, Pisá-mira e Tanimuka. (Cabalzar, 2008)

14
Com a demarcação da terra indí- respeito as suas formas próprias de ensino e aprendizagem
na educação escolar. Em 1998, tendo a sua frente o Se-
gena Alto Rio Negro em 1992, cretário de Educação Gersem Baniwa (gestão 1997-1999),
o movimento passa a ter como inicia-se a formação de professores indígenas no nível do
magistério indígena pela Secretaria Municipal de Educa-
um de seus principais focos uma ção (Semec). Em julho de 1999, os professores indígenas
revisão da educação escolar na criaram a Associação dos Professores Indígenas do Alto
Rio Negro (APIARN), com o objetivo de “valorizar as escolas
região, respaldados pela LDB de nas comunidades, reestruturá-las de maneira a valorizar as
1996 e artigos posteriores, que culturas e as línguas da região (...) e valorizar o trabalho
do professor indígena das comunidades, antigamente cha-
garantem aos povos indígenas mado de professor rural”. Na mesma época, a Federação
o respeito às formas próprias das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e o Ins-
tituto Socioambiental (ISA) assinam o contrato do Projeto
de ensino e aprendizagem. de Educação Indígena no Alto Rio Negro com a Fundação
Rainforest, da Noruega, cujo principal objetivo era buscar
a “renovação e a reestruturação das escolas indígenas da
Apesar de fazerem duras críticas aos missionários,
região”, investindo na implementação de três redes de ação
muitos Tukano orientais costumam ressaltar algumas de suas
– Escola Indígena Baniwa e Coripaco, Escola e Educação
qualidades, como o fato de os terem protegido dos violentos
Tuyuka e Educação e Valorização da Língua e Cultura Taria-
comerciantes, a quem estavam submetidos em um sistema de
na, proposta que, ao obter êxito a partir de 2000, se disse-
endividamento, e de terem sido os primeiros não índios que os
minou, tendo sido criadas escolas como a Escola Indígena
ensinaram a ler, escrever e fazer contas. Em sua dissertação
Tukano Yupuri, no Médio Tiquié, e a Escola Kotiria Kumuno
sobre a Escola Indígena Utapinopona-Tuyuka, Rezende afir-
Wuu, no Alto Uaupés. Os projetos político-pedagógicos das
ma que, por proporcionar o ensino-aprendizado da leitura em
escolas indígenas do Alto Rio Negro, e especialmente no
português e de certos ofícios, os missionários passaram a ser
Uaupés e Tiquié, são voltados para os objetivos e projetos
chamados añureâ buera (os que ensinam coisas boas); añu-
de fortalecimento da vida nas comunidades e os processos
reâ neatira (os que trouxeram as coisas boas); basuka seiñora
escolares ultrapassam o espaço da sala de aula e se imbri-
(os que nos tornarão civilizados). Meus interlocutores mais ve-
cam no espaço e tempo da vida cotidiana das comunidades.
lhos, que vivenciaram a chegada dos missionários salesianos
(ISA, p.276-277)
aos rios Uaupés e Tiquié, referem-se a estes na língua Tukano
Em 2005 e 2011, as escolas indígenas do Alto Rio
como mahsã heõrã, aqueles que estavam trazendo civilização,
Negro formaram suas primeiras turmas de ensino funda-
ou literalmente, aqueles que iriam torná-los “considerados”.
mental e médio. Atualmente, tais escolas ainda não tive-
(Rezende, 2007)
ram seu ensino médio reconhecido pelo Conselho Estadual
Se a princípio o ensino escolar consistiu numa ação
de Educação do Amazonas (CEE/AM), sendo consideradas
forçada por parte dos salesianos, aos poucos os indígenas de-
“salas de extensão” de escolas municipais maiores. Por
senvolveram um grande interesse na educação escolar de suas
outro lado, cursos de ensino superior indígena foram im-
crianças. Com a extinção dos internatos a partir dos anos 70,
plementados ou estão em fase de implementação. É o caso
começaram a ser implantadas escolas municipais em algumas
de curso de Licenciatura Indígena – Políticas Educacionais
comunidades ao longo do Rio Tiquié, sob a supervisão das frei-
e Desenvolvimento Sustentável da UFAM, instaurado no
ras Filhas de Maria Auxiliadora. (Cabalzar e Ricardo, 2006, p.47)
âmbito do Programa de Apoio à Formação Superior e Li-
Com a demarcação da terra indígena Alto Rio Ne-
cenciaturas Interculturais Indígenas (PROLIND), que formou
gro em 1992, o movimento passa a ter como um de seus
a primeira turma em 2013, em São Gabriel da Cachoeira, e
principais focos uma revisão da educação escolar na região,
iniciou uma segunda turma em 2016, e a aprovação parcial
respaldados pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB)3 de 1996
pelo Ministério da Educação (MEC) do Instituto de Conhe-
e artigos posteriores, que garantem aos povos indígenas o
cimentos Indígenas e Pesquisa do Rio Negro (ICIPRN), pri-
meira instituição federal de ensino superior voltada espe-
cificamente para indígenas no país, que continua em fase
  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm/>.
3 de análise.

15
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

2. REGISTRO DE CONHECIMENTOS NO RIO UAUPÉS nas suas pesquisas e de certo modo os “iniciaram” na realiza-
E AFLUENTES: MISSIONÁRIOS, ANTROPÓLOGOS ção de registros dos conhecimentos de seus parentes. Porém,
E INDÍGENAS4 apesar de apresentarem muitos conhecimentos indígenas em
seus livros, a autoria indígena é pouco reconhecida ou reco-
Neste tópico, tratarei de modo resumido de um tema nhecida de modo oscilante nos trabalhos dos salesianos.
bastante discutido na literatura contemporânea sobre o Alto O padre Alcionilio Bruzzi da Silva, que atuou nas regi-
Rio Negro e que compõe o universo referencial da geração ões do Uaupés e Tiquié e participou da fundação do Centro de
atual de antropólogos indígenas, que são os diferentes pro- Pesquisas de Iauaretê, na introdução da segunda edição de
cessos de registro de conhecimentos realizados ao longo da A Civilização Indígena do Uaupés, afirma que:
história na região. Em sua análise da Coleção Narradores
Indígenas no Alto Rio Negro, Andrello (2010) afirma que ela
faz parte de uma linhagem não tão recente de combinação (...) Os verdadeiros autores, ou ao menos, os seus principais
entre antropólogos e indígenas no registro de conhecimentos, colaboradores são os beneméritos Missionários que há várias
que é geralmente oculta na publicação dos antropólogos. Vol- dezenas de anos mourejam no meio da selva quase inóspita
tando nossa atenção ao caso específico dos grupos Tukano, da Amazônia, no afã de incorporar os pobres silvícolas na ci-
podemos mencionar alguns antropólogos e missionários que
vilização brasileira e cristã. (1977, p.9)
contaram com a parceria de indígenas nas suas atividades de
pesquisa e produção de livros sobre a região. No entanto, a
participação dos indígenas no desenvolvimento das obras e
Em seu estudo linguístico, Silva (1966) reconhece a
o modo como têm seus créditos de autoria reconhecidos são
ampla colaboração de auxiliares/consultores indígenas, ressal-
variados. Nos últimos 20 anos, com o fortalecimento do mo-
tando, no entanto, que todos eles foram alunos dos salesianos.
vimento indígena na região, há uma proliferação da produção
O padre lituano Casimiro Beksta chegou em 1951 no Amazo-
de livros e outros materiais de autoria ou coautoria reconhe-
nas e por mais de vinte anos morou e atuou na área do Alto Rio
cidamente indígena.
Negro e afluentes, como Uaupés e Tiquié; ele estranhou o fato
Theodor Koch-Grünberg, etnólogo alemão, que es-
das línguas nativas serem consideradas “sujas” pela Igreja e
teve no Alto Rio Negro entre 1903 e 1905, pautado em um
a obrigatoriedade do português. (Farias, 2004) Interessado na
projeto etnográfico voltado a Völkerkunde alemã – marcado
cultura dos povos da região, contou com o apoio de alguns in-
pela obsessão na documentação – realizou variadas anota-
dígenas na realização de pesquisas e registro de conhecimen-
ções, fotos, filmagens, gravação de músicas e sons, esboços,
tos Tukano. Nesse sentido, Feliciano Lana (2012), renomado
com domínio de equipamentos muito modernos para a época.
artista plástico Desana, que foi interno da missão salesiana de
(Frank, 2010) Além de realizar seus próprios registros, o etnó-
Pari Cachoeira no final dos anos 1940, e que é originário da
logo coletou diversos mapas e desenhos realizados pelos pró-
região do Médio Tiquié, contou6 que anos após ter se formado
prios indígenas, com papéis e lápis fornecidos por ele, parte
na missão, quando retornou ao Rio Tiquié depois de uma longa
dos quais estão reunidos e publicados no livro Começos da
temporada de trabalho na Colômbia, foi convidado pelo padre
Arte na Selva, de Koch-Grünberg (2009 [1905]). No prefácio,
para realizar registros da vida dos Tukano com materiais para
o etnólogo reconhece que os desenhos são de “propriedade
gravação de áudio, fotografia e desenhos.
espiritual” dos indígenas.
Os salesianos, para além da implementação do pro-
jeto de “conduzir os indígenas pelos caminhos da civilização”,
foram os primeiros a realizar registros mais detalhados da vida
cotidiana e a transpor a língua Tukano para a escrita de modo
6
  Entrevista concedida a mim e a então mestranda do PPGAS/UFAM,
mais sistemático.5 Alguns missionários envolveram indígenas Rosseline Tavares, no Jardim Botânico de Manaus, em abril de 2012.
Feliciano Pimentel Lana, Desana, nascido em 1937, em São Luís, co-
munidade do Médio Tiquié, é artista plástico desde a juventude. Suas
obras foram expostas em museus brasileiros e na Alemanha, França,
Itália e Espanha. Realizou ilustrações para os livros Antes o Mundo
4
  Este tópico foi desenvolvido a partir de adaptação de partes dos
Não Existia (Pãrõkumu e Kenhíri, 1995), Peixe e Gente no Rio Tiquié
Capítulos 8 e 9 da minha Tese de Doutorado. (Oliveira, 2016)
(Cabalzar, 2005), entre outros. A animação “Gain Panãn e a Origem
5
 Cf.: Gallo, 1972; Giacone, 1965; e Silva, 1966, 1977 [1961] e da Pupunheira” (Perazzo, ECO/UFRJ, 1994) foi realizada a partir de
1994. desenhos de Feliciano coletados pela antropóloga Berta Ribeiro.

16
A ação concomitante dos missionários na destruição livros condensam as palavras dos ancestrais”. (Hugh-Jones,
do modo de vida e registro dos conhecimentos Tukano não 2010, p.210-213, [traduções minhas])
deixou de suscitar interpretações dúbias sobre a “natureza” Para além desta Coleção, muitas experiências de re-
dos padres. Em alguns discursos, a imagem do missionário gistro de conhecimentos e publicações têm sido efetivadas
se mescla com a do antropólogo e o interesse de ambos no no âmbito de pesquisas colaborativas realizadas por mem-
registro de conhecimentos geralmente vem acompanhado bros de associações comunitárias e indígenas, profissionais
de um julgamento negativo, de que estes brancos estão en- de ONGs e especialistas de diversas áreas. Enquanto muitos
ganando os Tukano e roubando seus conhecimentos, assim materiais são produzidos nas línguas indígenas, seguem uma
como outrora roubaram artefatos e caixas de ornamentos. lógica conceitual indígena e possuem uma circulação mais
A primeira versão do livro Antes o Mundo Não Existia, local, outros são desenvolvidos na língua portuguesa e visam,
de 1980, de autoria dos Desana Umúsin Panlõn Pãrõkumu e para além do alcance do público local e regional, conferir vi-
Tõrãmu Kenhíri, pode ser considerada a primeira publicação sibilidade a esses processos, tornando-os acessíveis a um
reconhecidamente de autoria indígena da região do Alto Rio público mais amplo. Entre estes últimos, podemos destacar
Negro, assim que, na sua contracapa, lê-se: “Este é o primeiro de um modo mais abrangente, na região do Alto Rio Negro, a
livro brasileiro totalmente escrito (e ilustrado) por um índio”. coletânea Manejo do Mundo (Cabalzar, 2010), em que a ideia
E ainda: “Este ‘caderno’ foi trazido (por vontade de Tolamãn) de coautoria entre indígenas e não indígenas é valorizada.
ao mundo dos brancos pela antropóloga Berta Ribeiro, que fez Outro exemplo de produção escrita de autoria indí-
também a introdução do livro, as notas explicativas e o prefá- gena são as experiências de pesquisa e registro de conhe-
cio”. Há, nessa obra, além da novidade de ser reconhecidamen- cimentos nas línguas indígenas, que têm sido realizadas há
te de autoria dos índios, o fato de que seu público-alvo também aproximadamente quinze anos nas escolas indígenas da
inclui os próprios índios da região e não apenas os missioná- região do Alto Rio Negro, por meio do envolvimento de alu-
rios, linguistas ou antropólogos. (Hugh-Jones, 2010, p.205) nos, professores, “conhecedores”, assessores e consultores
Inaugura-se, então, uma tradição de publicações de organizações não governamentais, entre as quais apenas
com autoria indígena produzidas com apoio e/ou organização uma parte ínfima é encaminhada para publicação. Nas esco-
de antropólogos, que vai se consolidar com o fortalecimento las indígenas, as línguas indígenas são as línguas de instru-
do movimento indígena no Alto Rio Negro, a criação da FOIRN ção, consideradas principais línguas faladas e escritas nas
e a parceria com ONGs como o ISA, Saúde sem Limites (SSL) e escolas, e a grafia produzida pelos missionários salesianos e
Instituto de Políticas Linguísticas (Ipol). A Coleção Narradores linguistas é revista, visando-se sua simplificação e uma maior
Indígenas do Rio Negro, desenvolvida pela FOIRN em parceria aproximação da língua tal como é usada no dia a dia; o foco do
com o ISA e com associações locais, hoje possui oito volumes ensino e aprendizagem estava precisamente no diálogo com
e segue basicamente o modelo do livro Antes o Mundo Não conhecimentos locais, sendo que velhos e velhas eram consi-
Existia, cuja reedição consiste no seu primeiro número. Nesta derados “conhecedores” (mahsirã) e referência fundamental.
Coleção mantém-se, de certo modo, a regra de transmissão “Os velhos são nossos livros”, dizem os Tukano. Nestas es-
patrilinear dos conhecimentos masculinos, característica dos colas, há uma articulação necessária entre capitães, “pajés”
povos Tukano, um pai narra ao seu filho histórias de origem e professores/líderes de associação para implementação de
do universo, da humanidade e da trajetória de seu clã. Para a uma educação escolar indígena pautada na metodologia de
produção do livro, o filho anota ou grava a narrativa, reprodu- pesquisa que valoriza o registro de conhecimentos indígenas.
zindo depois de modo escrito na língua no papel. O antropó- Ao mesmo tempo, para que a realização de pesqui-
logo apoia na tradução para o português, revisão conceitual sas nas escolas indígenas do Rio Negro se tornasse realidade,
e entra como organizador, prefaciador e escreve as notas do foi necessária a apropriação de conhecimentos e formas de
livro. (Andrello, 2010) transmissão de conhecimentos não indígenas por parte de pro-
De acordo com Hugh-Jones, há um duplo direciona- fessores, alunos e moradores das comunidades, algo que de-
mento dos livros desta Coleção. Enquanto para uma audiência mandou a composição de alianças das lideranças que estavam
externa as mensagens dos livros são: “Nós também somos à frente do movimento da escola indígena – coordenadores
educados e civilizados. Nós continuamos índios a despeito de de associação, gestores da escola, professores, secretários –
sua ‘civilização’, mas nós também podemos selecionar as- com brancos, assessores e consultores de ONGs, funcionários
pectos da sua civilização para promover nossos próprios fins e da Secretaria de Educação; gestores e professores de insti-
continuar nossos próprios projetos de vida”, para “um público tuições acadêmicas, algo que ocorreu e continua ocorrendo
indígena, no contexto de um sistema político multiétnico, os em variados contextos, em maior ou menor profundidade: nos

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cursos de magistério indígena, licenciatura intercultural, ofici- Neste contexto, destacam-se as pesquisas e eventos desen-
nas pedagógicas realizadas nas escolas, intercâmbios envol- volvidos no âmbito do Núcleo de Estudos Amazônia Indígena
vendo organizações indígenas e ONGs, encontros promovidos (NEAI), que agrega pesquisadores indígenas e não indígenas
pela FOIRN na cidade de São Gabriel, encontros de educação e entre as quais menciono como exemplo a mesa-redonda
realizados pela secretaria de educação do município, estado de acadêmicos indígenas, intitulada “O Que é Antropologia
e/ou pelo MEC. Nestes contextos, indígenas aprendem e/ou Para os Indígenas”, realizada em abril de 2016, e o curso
aprimoram técnicas de pesquisa, sistematização e apresen- Cosmografia, Vida Social e Classificações Tukano, coordenado
tação de ideias mediante a elaboração de pequenos textos, e ministrado por alunos Tukano do corpo discente, em feve-
artigos, cartazes, jornais, em PowerPoint, monografias, mapas reiro de 2015.
de territórios, calendários, além da manipulação de GPS, câ- É importante ressaltar que, apesar da diversidade
meras fotográficas, câmeras de vídeo, o uso de gravadores, de povos existentes no estado do Amazonas, os alunos Tuka-
computadores, impressoras, scanners. no orientais possuem forte presença e atuação marcante no
PPGAS, não apenas como estudantes indígenas que alme-
jam a titulação de mestres em Antropologia Social, mas como
3. A PRODUÇÃO DE DISSERTAÇÕES POR ALUNOS intelectuais indígenas, que são parte ativa e fundamental na
TUKANO ORIENTAIS NO PPGAS/UFAM criação de um debate sobre os significados em torno do im-
pacto da presença de estudantes indígenas na universida-
O PPGAS da UFAM, em Manaus, foi fundado em de, sobre as possibilidades de diálogo entre conhecimentos
2008 e, em 2009, estabeleceu cotas para indígenas. A partir indígenas e não indígenas e sobre os limites da produção de
deste período houve um crescimento do número de alunos conhecimentos na universidade. Neste sentido, é importante
indígenas, que levou a um debate interno ao programa e à reforçar que a presença de alunos Tukano na pós-graduação
criação de um colegiado indígena composto por pesquisado- é possível devido ao alto índice de escolarização no Alto Rio
res indígenas que residem na cidade de Manaus. (Montar- Negro em comparação com outros contextos indígenas, e a
do, 2014) Em 2012, tal colegiado apresentou uma proposta atuação destes alunos como intelectuais indígenas é, sem
de seleção diferenciada, que foi acatada e implementada no dúvida, informada pela longa tradição de produção conjunta
mesmo ano. (Barreto, 2014) Porém, em setembro de 2014, a de conhecimentos entre indígenas e não indígenas, pontos
UFAM cancelou as cotas para alunos indígenas e negros em abordados nos tópicos anteriores.
seus programas de pós-graduação, alegando que tal política Compreendendo este processo como inovador, mas
de cotas não tinha amparo legal e regulamentação. (Farias, também como parte de um movimento mais amplo de diálogo
2014) Tal postura, por parte da procuradoria jurídica da UFAM, intercultural em que os indígenas tomam para si o protago-
levou a uma reação direta dos estudantes do Colegiado Indí- nismo na produção de registros escritos sobre seus conhe-
gena do PPGAS, que se manifestaram por meio do pedido de cimentos, procuro, neste tópico, focalizar nesta modalidade
impugnação do cancelamento da reserva de vagas na Pró-rei- específica de registro – a produção antropológica Tukano na
toria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPESP) e com artigos universidade. Dedicarei minha atenção às primeiras disser-
publicados na mídia (Barreto, 2014), nos quais procuraram tações defendidas por alunos Tukano orientais no PPGAS: de
demonstrar o conservadorismo de tal postura e ressaltar os Rivelino Barreto (Tukano), de João Paulo Barreto (Tukano) e
potenciais avanços e mudanças epistemológicas, estruturais de Rosilene Fonseca Pereira (Piratapuia), com o intuito de ex-
e políticas que a presença indígena na universidade permite plorar o que cada uma destas dissertações revela sobre a
e deve impulsionar. Após estas repercussões negativas, em trajetória do aluno, os critérios de escolha e o teor da temática
2016, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE) de pesquisa, a metodologia utilizada e as reflexões acerca da
da UFAM aprovou a Resolução nº 010/2016, que dispõe sobre produção de conhecimentos antropológicos sobre os conheci-
a política de ações afirmativas para pretos, pardos e indíge- mentos Tukano por parte destes alunos Tukano.
nas na pós-graduação stricto sensu na instituição, por meio Rivelino Barreto, Tukano, do clã Buberã Põra, foi o
da implementação de “vagas suplementares, (...), para serem primeiro aluno indígena a defender o mestrado pelo PPGAS/
ocupadas pelos cotistas e extintas no final do certame, caso UFAM, fato que ocorreu em março de 2012 e teve repercus-
não sejam preenchidas”. (Farias, 2016) sões na mídia. (IBP, 2012 e Farias, 2012) A sua dissertação,
Desde 2009, além de receber alunos indígenas, intitulada “Formação e Transformação de Coletivos Indígenas
o PPGAS da UFAM tem promovido atividades que incentivam no Noroeste Amazônico: do Mito à Sociologia das Comuni-
o diálogo entre conhecedores/conhecimentos indígenas. dades”, foi orientada pelo Prof. Dr. Carlos Dias e tematizou

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“o processo de formação e transformação social no universo seu próprio reconhecimento como Tukano, sobre a diferença
cultural Tukano em seus próprios termos”. (Barreto, 2012) entre a lógica da comunidade e a da cidade (reciprocidade
Nessa dissertação, a autobiografia do pesquisador x individualidade), as continuidades e descontinuidades do
indígena torna-se uma estratégia metodológica e o Capítulo modo de vida Tukano na cidade, sobre as diferenças entre as
1, um ponto a partir do qual se busca constituir um foco, seu noções salesianas e Tukano, sobre as contradições da vida
clã7 Buberã Porã, e que tem como referência uma localidade em Manaus (oportunidades x dificuldades), sobre a importân-
– a comunidade de São Domingos, Alto Rio Tiquié, TI Alto Rio cia de viver na cidade construindo uma identidade com dupla
Negro –, onde Rivelino passou parte de sua infância. Ao narrar referência – Tukano e cidadão urbano. Por fim, como sua “tra-
sua trajetória segue uma lógica patrilinear Tukano: começa jetória revela uma faceta da dispersão do coletivo SYBP8” e
falando de seu pai, fala de si e finalmente de seu filho. Conta como a familiarização em diversos lugares o fez perceber as
que nasceu em Mira Flores, Colômbia, local onde seu pai tra- diferenças, os contornos socioculturais.
balhou na extração de borracha e na plantação de coca. De Ao apresentar sua metodologia, Barreto faz algumas
lá saiu aos seis meses, junto com seu pai e sua mãe que era reflexões sobre modos de transmissão e aquisição de conhe-
uma Tuyuka, e foram viver no Brasil, em São Domingos, co- cimentos Tukano. Neste cruzamento de métodos, explicita o
munidade onde viviam seus avós paternos. Descreve o modo desafio de pesquisar o próprio coletivo étnico que integra
de vida na comunidade, pautado pelo ritmo das atividades fa- e a dificuldade em compilar conhecimentos orais em papel.
miliares e comunitárias – pesca, roça, caça, festas, rituais – e É notável que as entrevistas seguiram a lógica patrilinear de
pela frequência à escola. Em meados dos anos de 1980, seus transmissão de conhecimentos Tukano. Grande parte das en-
familiares estiveram envolvidos em trabalhos de garimpo, en- trevistas e gravações foi feita em um momento em que Riveli-
quanto isso, apesar de visitar o garimpo, continuou na comu- no não pensava em ser antropólogo, mas já se interessava em
nidade com o intuito de estudar. Nos anos de 1990, passa um aprender e registrar conhecimentos Tukano, ainda em 2007,
tempo na cidade de São Gabriel da Cachoeira e em uma co- quando morava na casa de formação salesiana e trouxe seu
munidade no Rio Negro, devido à doença da mãe, que falece pai para Manaus. Outra parte foi feita em outras ocasiões em
em 1992. Regressam para a comunidade, onde continua os Manaus, com o pai e com outros membros do clã. Seguindo
estudos. Seus familiares voltam ao garimpo, onde ele passa orientações de seu pai, também “perguntou” a outros homens
um tempo e retorna para continuar os estudos. Mudam-se Buberã Porã na comunidade de São Domingos Sávio, onde
para a cidade de Santa Isabel, onde ele estuda com as irmãs realizou trabalho de campo, com outros membros na cidade
salesianas. Os familiares vão para o garimpo e mais uma vez de São Gabriel e no distrito de Pari Cachoeira, por ocasião
ele opta por permanecer na cidade para estudar. Mora um da mesma viagem. O antropólogo afirma que se surpreendeu
tempo no internato e quando o internato é fechado, passa com a atitude de seus tios e primos durante seu trabalho de
a trabalhar como garçom. Em 2003, ingressa no curso de campo: a princípio, não queriam lhe transmitir conhecimen-
Filosofia na Faculdade Salesiana Dom Bosco (FSDB) e para tos, pois estes já haviam sido “bem transmitidos pelo seu pai”.
realizar seus estudos reside em Manaus, Mato Grosso do Sul Então compreendeu que isso se dava devido a uma questão
e Recife. Em 2008, passa “a praticar um novo projeto de vida: hierárquica interna da linhagem: seu pai era irmão maior de
a família e o conhecimento tradicional do meu povo”. Casa todos – reconhecido kumu (benzedor) e seu avô havia sido o
com sua esposa Jussara, de Manaus, com quem tem seu filho último yai (pajé). Elabora uma reflexão sobre o fato de que en-
João Carlos, que foi benzido por seu pai, de acordo com as tre os Tukano nem todo indígena é detentor de conhecimentos.
regras Tukano (benzimento de nominação, banho e alimenta- Há pessoas preparadas especificamente para isso e isto segue
ção). (Barreto, 2012, p.22-70) uma lógica genealógica: filhos de pais conhecedores podem
Ao tecer esta narrativa, o autor realiza algumas re- falar de conhecimentos Tukano, embora outros possam se
flexões sobre como a experiência de sair de sua própria co- aproximar de tal conhecimento. Ao discorrer sobre as entrevis-
munidade lhe trouxe o contato com a diversidade cultural e tas realizadas com o pai, explica como ele lhe chamou atenção
sobre dois pontos: a necessidade de haver uma concentra-
ção e a importância da sintonia entre os dois no momento de
transmissão – pois a distração de um reflete no pensamento
7
  Os grupos Tukano orientais possuem uma organização social com
grupos de descendência patrilinear que tendem a se identificar como
unidades linguísticas, subdivididos em sibs [clãs] nomeados e hierar-
quizados, a exogamia e a virilocalidade. (Cabalzar, 2008, p.39) 8
  Sararó Yuúpuri Búbera Põra.

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de outro e sobre a importância de sempre estar “lembrando” João Paulo Barreto, Tukano, do clã Buberã Porã, de-
do conhecimento, para não esquecer. (Id., p.19-21) fendeu em 2013 sua dissertação intitulada “Wai-Mahsã: Pei-
Barreto afirma-se como Tukano e o Alto Rio Negro xes e Humanos. Um ensaio de Antropologia Indígena”, sob a
como lugar de onde veio, onde nasceu, aprendeu a olhar, ver, orientação do Prof. Dr. Gilton Mendes dos Santos e dos coo-
escutar, ouvir, pensar, ler e escrever, sistematizar e classificar rientadores Prof. Dr. Geraldo Mendes dos Santos, do Instituto
o mundo de modo não formal e como sente e experimenta Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), e o kumu (especia-
a diferença entre duas referências sociais claras e comple- lista xamânico/benzedor) Ovídio Lemos Barreto Tukano, seu
xas. Ressalta a dificuldade em traduzir e colocar no papel e pai, que foi, salvo engano, o primeiro conhecedor indígena a
estabelece como desafio de seu trabalho “grafar o ambiente ser reconhecido oficialmente como coorientador de uma dis-
complexo deste trânsito” em seu próprio pensamento, entre sertação de mestrado, fato que em si já aponta para o caráter
mundos diferentes, mas que estão interconectados e interde- inovador da pesquisa. A dissertação se constituiu numa refle-
pendentes, reconhecendo a Antropologia como uma disciplina xão sobre o conhecimento Tukano da relação entre humano e
que se preocupa com essas traduções. Ao eleger a “autobio- não humano para além de narrativas míticas, tendo como foco
grafia comentada e acrescida de alguns elementos etnográfi- a diferenciação entre as categorias de wai-mahsã (humanos
cos pontuais” como modo de enfrentar o desafio de etnografar invisíveis) e wai (peixe).
seu próprio coletivo, apresenta a preocupação pelo fato deste Barreto insere a narrativa de sua trajetória de estu-
método não ser algo próprio ao pensamento ameríndio sul- dante no contexto de explicação do como chegou a sua opção
-americano, mas ressalta que realizou uma autobiografia pau- em cursar Antropologia e a definição de seu objeto de pes-
tada em elementos narrativos Tukano: a referência a pessoas, quisa. Conta que nasceu no Alto Tiquié e até os cinco anos
eventos e lugares, e etnográfica – repleta de descrições da foi formado pelo avô Ponciano, que era um yai (pajé) que lhe
vida na aldeia e da cidade. (Id., p.18) transmitiu conhecimentos para que fosse seu substituto. Co-
Perante o grau de complexidade apresentado pelos meçou a estudar na escola da comunidade por incentivo da
sistemas sociais do Alto Rio Negro, no que tange à definição mãe, e completou estudos de ensino fundamental na escola
de unidades sociais, destaca a dificuldade que os conceitos da missão em Pari Cachoeira, em regime de internato, época
desenvolvidos pelos etnólogos têm para dar conta das ações em que deixou de ter contato com seu avô. Cursou o ensino
e relações dos grupos indígenas na região e afirma que suas médio em Manaus, na Escola de Mineração da empresa mi-
teorias devem ser “situadas no tempo, no lugar, na pessoa neradora com a qual a organização indígena local tinha um
coletiva (do narrador)”. Apesar das tentativas da etnologia no convênio. Após se formar, retornou ao Tiquié e lecionou na
noroeste amazônico de dar interpretações gerais aos grupos escola de Pari Cachoeira, onde havia se formado. Retornou a
étnicos residentes na região do Alto Rio Negro, afirma que Manaus para estudar no seminário e passados alguns anos
“é difícil uma interpretação homogênea da formação cultural desistiu e passou a lecionar na rede municipal de Manaus.
do noroeste amazônico, pois, cada grupo tem seu ponto de Cursou Filosofia na UFAM e Direito na Universidade do Estado
vista quando o assunto é cosmogonia, etnogênese ou etno- do Amazonas (UEA), na qual entrou por meio do sistema de
-história”. (Id., p.144-145) cotas para indígenas. Durante a formação no ensino superior
Por fim, demonstra como a relevância de sua disser- teve “desencontros marcantes, sobretudo no confronto entre
tação aponta para um duplo sentido: para ele, como antropó- conhecimentos científicos e indígenas” e aumento de “crises
logo em formação, para o seu pai, como conhecedor e pro- intelectuais” e “(...) acerca da validade dos conhecimentos
fessor Tukano, para os Buberã Porã e moradores do Alto Rio indígenas no contexto onde a objetividade é o motor de pro-
Negro, especialmente Tukano falantes; e para o âmbito aca- dução de conhecimentos”. Ressalta que nessa época seu pai
dêmico, especialmente para o PPGAS/UFAM, que forma seu passou seis meses em Manaus e lhe falou dos conhecimentos
primeiro aluno indígena no curso de mestrado. Espera que Tukano, algo que até então ele não havia dado atenção. (Bar-
a dissertação possa estimular tanto a reflexão antropológica reto, 2013, p.20-21)
sobre os povos indígenas do Alto Rio Negro, quanto à reflexão Em 2010, conhece professores da UFAM, começa
dos Tukano sobre os humanos e suas unidades sociais. Re- a participar dos seminários do NEAI, participa de discussões
gistra sua esperança de que “o esforço desta tradução possa sobre antropologia simétrica, principalmente a respeito da
contribuir para abrir mais espaços onde o pensamento indí- obra de Roy Wagner. Toma conhecimento da política de va-
gena possa ser expresso com mais densidade para o diálogo gas reservadas para candidatos indígenas no PPGAS/UFAM,
acadêmico” e de estimular colegas a levar adiante “o exercício com a qual não se empolga devido ao desencantamento com
do conhecimento em suas múltiplas formas”. (Id., p.21-23) a Antropologia. Interessado em estudar os brancos a partir

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das teorias Tukano, do modo como estes estudam os indí- Em suma, minha proposta de uma “antropologia indígena”
genas, ingressa no PPGAS da UFAM em 2011, com o pro- não se dá pelo fato de ser um indígena antropólogo, mas por-
jeto intitulado “Um Olhar Indígena (Tukano) Sobre a Ciência: que me disponho a pensar os conhecimentos a partir dos
uma Etnografia no Laboratório de Pesquisa de Ictiologia no conceitos indígenas, identificando-os e colocando-os em
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia”. Seu orienta- operação no processo de “tradução antropológica”. (Barreto,
dor o estimulava a servir-se da Antropologia para fazer uma 2013, p.25)
Antropologia indígena, olhar para a prática científica a partir
do conhecimento Tukano. Pouco a pouco foi se dando conta
de que para fazer um estudo da ciência teria que realizar Para dar conta de sua temática inicial, realizou pes-
trabalho de campo no laboratório e dialogar com certos au- quisa de campo no Inpa, participando de cursos do programa
tores. Ao mesmo tempo, começou a organizar debates com de Pós-graduação em Biologia Aquática: Ictiologia e Taxo-
conhecedores indígenas no NEAI, mais especificamente com nomia de Peixes, frequentando disciplinas em laboratório e
kumuã benzedores nos quais discutiam longamente certos observação das práticas de pesca desenvolvidas pelos pes-
temas, ocasião em que se deu conta do estilo narrativo dos quisadores do Inpa no Lago Catalão. No entanto, esta pes-
kumuã, mitos e benzimentos e da importância de se realizar quisa o incitou a querer compreender mais as teorias e co-
uma reflexão antropológica sobre tais conhecimentos. Sua nhecimentos Tukano sobre os peixes, sua distinção entre wai
participação em cursos e eventos promovidos no âmbito do e wai-mahsã. Apresenta um esquema de sua metodologia,
Programa de Cooperação Acadêmica (PROCAD) entre a Uni- que apresenta três pólos de interação mútua: 1. orientador
versidade de São Paulo (USP) e a UFAM e seu contato com (Antropologia); 2. pai (conhecimento indígena); 3. ciência ic-
Roy Wagner e Stephen Hugh-Jones em suas passagens na tiológica (Inpa); e o resultado dessa interação: 4. seu traba-
UFAM, num contexto que estimulava o diálogo destes antro- lho (dissertação). Neste esquema, seu principal interlocutor é
pólogos com conhecedores indígenas, como Higino Tuyuka, o seu pai, que mora com ele, outros interlocutores Tukano, e a
levaram a refletir sobre as diferenças entre os conhecimen- própria bagagem que carrega como Tukano, além de interlo-
tos indígenas e acadêmicos e a vislumbrar o diálogo possível cutores parentes e não parentes. Ressalta que seu pai, como
entre o conhecimento indígena e a ciência, lançando mão da especialista, utiliza linguagem e expressões próprias dos ben-
própria Antropologia. Todo este processo o levou a redefinir zimentos, a qual ele precisa filtrar para ordenar em termos
seu tema primeiro, estudo da ictiologia, para um estudo da antropológicos. O orientador o incentivou a buscar conceitos
relação entre animais e humanos peixes e pessoas entre os que melhor explicitassem os conhecimentos indígenas, para
Tukano. (Id., p.21-24) além das narrativas míticas, o que o levou a perceber que não
Ao tratar de metodologia, João Paulo apresenta as tinha o conhecimento Tukano suficientemente sistematizado e
vantagens do seu modo de fazer antropologia em relação a a buscar identificar conceitos importantes para o estudo dos
um antropólogo não indígena: “facilidade de acessar, com mitos e benzimentos contados por seu pai. Esse movimento
certo nível de compreensão e profundidade, os conhecimen- o levou a refletir sobre o estatuto do conhecimento indígena
tos sob os quais estou imerso ou que posso alcançar a partir e a procurar trazê-lo para uma posição mais simétrica (no
das consultas, diálogos e debates insistentes com os conhe- sentido Latouriano) perante o conhecimento científico. Desta-
cedores indígenas”, especialmente seu pai, que é kumu, e ca a publicação de artigos em coautoria com seu orientador,
na ocasião morava com ele em Manaus, e seu conhecimento como parte importante deste processo de sistematização de
da língua e da cultura Tukano, que não induz os informantes conhecimentos Tukano. (Id., p.25-27)
indígenas a simplificarem noções complexas para facilitar o Situa a sua abordagem como um terceiro caminho
entendimento do antropólogo. (Id., p.24-25) O autor se propõe diante do que tem sido feito até hoje em termos de aborda-
a tomar os conhecimentos indígenas como conceitos e teorias gens do conhecimento indígena (no Alto Rio Negro): o ensi-
e refletir sobre tais conhecimentos expressos em mitos me- namento de kihti e basesse de um velho conhecedor a um
diante um diálogo com a Antropologia, algo que os indígenas jovem que se torna herdeiro desse conhecimento e tradução
não costumam ser estimulados a fazer. Ressalta que o método direta de narrativas míticas de um especialista tomado por
de conversa com seu pai segue uma lógica própria, em que informante, feita por um jovem que domina o português, com
suas perguntas são respondidas com referência a narrativas intuito de salvaguardar conhecimento, e disseminar conheci-
míticas e enunciados de práticas de benzimentos, e é a partir mentos para um público mais amplo, por meio da produção de
disso que o antropólogo extraiu conceitos e categorias Tukano. livros, como é o caso da Coleção Narradores Indígena do Rio
Nas palavras do autor: Negro. Sua posição seria servir-se da Antropologia para filtrar

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e sistematizar, em termos antropológicos, os conhecimentos o português, para que pudessem ajudar os parentes. Na se-
Tukano, realizar um estudo “por dentro” do conhecimento, de gunda parte do ensino fundamental, a diferença entre hipóte-
um estudante indígena de Antropologia que “lança mão do co- ses científicas e conhecimentos do seu avô a inquietava. Em
nhecimento antropológico para explorar uma ‘visão indígena’ 1991, foi enviada pelos pais, que queriam a profissionalização
sobre o sistema de saberes e práticas Tukano”. (Id., p.27-28) dos filhos, para cursar ensino médio (magistério) no internato
Sua experiência o fez perceber a diferença entre em São Gabriel da Cachoeira. Por reclamar da obrigação das
modelos de construção de conhecimentos, o conhecimento moças em tomar banho no rio durante o ciclo menstrual, ela e
indígena é uma prática e não algo sobre o que se reflete, é a irmã foram dispensadas do internato. Passaram a morar em
da ordem do vivido e não do pensado. A partir da disciplina casas de parentes, mas eram vistas como “forasteiras”. Con-
antropológica, “identificar certos conceitos e noções Tukano, seguiu emprego de garçonete num bar e o dono lhes cedeu
que se mostraram capazes de fornecerem condições para uma casa para morar. Terminou o ensino médio e voltou para
eu entender e sistematizar algumas concepções e lógicas casa em Santa Isabel, mas não queria realizar os trabalhos de
sobre a ordem do mundo, sobre a origem dos humanos e roça com a mãe. (Pereira, 2013, p.12-15)
sobre a relação dos humanos com os wai-mahsã, e destes Conheceu a FOIRN, atuou como secretária da Comis-
últimos, com os peixes particularmente”. Afirma que “é im- são de Organizações Indígenas do Médio Rio Negro (COIMRN)
portante extrair e estabelecer os conceitos indígenas numa em sua cidade. Em 1994, participou do VII Encontro dos Pro-
lógica compreensível para o contexto científico, acadêmico fessores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR).
e para o público em geral, ou seja, para além do contexto e Como professora, levou para a sala de aula questões do en-
do sentido das comunidades locais”. (Id., p.90-91) sino da história indígena, algo que foi negado pelos gestores.
Por fim, afirma: Em 1999, foi eleita diretora da FOIRN, no cargo de Secretária
Executiva para o mandato de 2000 a 2004, sendo uma das
primeiras mulheres a participar da gestão executiva da insti-
(...) é preciso investir nessa dimensão de um conhecimen- tuição, protagonizou a criação do departamento de Mulheres
to propriamente indígena, que foge do modelo racional, lógi- Indígenas da FOIRN. Em 2005, retornou ao trabalho de pro-
co e explicativo baseado na “epistemologia ocidental”, e que fessora com crianças indígenas na escola e ingressou no Cur-
nem sempre faz sentido no momento da produção do texto. so Normal Superior (PROFORMAR/CNS/UEA), na modalidade
Por isso mesmo, acredito que a academia deveria estimular
Licenciatura em Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino
Fundamental. Em 2007, ministrou múltiplas disciplinas no
pesquisas que investiguem um tipo de conhecimento-práti-
ensino médio. Em 2009, retornou à FOIRN como técnica em
ca, típico do modus operandi indígena. Talvez esse seja um
educação, atuando como Coordenadora Pedagógica no Curso
caminho eficaz para revelar novos campos de entendimen-
de Gestores de Projetos Indígenas – FOIRN e Universidade
to antropológico e novos métodos de diálogo com o conheci- Federal de Pernambuco (UFPE). Passou a cursar pela UFAM,
mento do outro. Só depois disso, acredito que seria possível por meio da Universidade Aberta do Brasil (UAB), Licencia-
fazer uma espécie de antropologia cruzada ou reversa. (Bar- tura em Ciências Biológicas, na modalidade à distância. Em
reto, 2013, p.91) 2008, concluiu o Curso Normal Superior defendendo o traba-
lho de conclusão de curso intitulado “Diversidade Linguística
na 1ª Série do Ensino Fundamental na Escola Ir. Inês Penha”.
Rosilene Fonseca Pereira, Piratapuia, defendeu em A partir de sua monografia, elaborou o projeto de pesquisa
2013 sua dissertação intitulada “Criando Gente no Alto Rio por meio do qual obteve a bolsa de estudo no Programa Bolsa
Negro: um Olhar Waíkhana”, sob orientação da professora de Ação Afirmativa de Pós-graduação do International Fellow-
Deise Lucy Montardo, na qual aborda conceitos nativos e pro- ships Program (IFP)/Fundação Ford, em 2009, ingressando no
cessos de compartilhamento de conhecimentos na criação de PPGAS/UFAM. (Id., p.15-17)
gente na região do Alto Rio Negro, focando o período de 0 a O interesse em pesquisar a infância foi se delineando
12 anos. a partir de várias observações relacionadas à criança indígena
A antropóloga descreve sua trajetória de vida no no Alto Rio Negro, durante sua atuação no movimento indí-
Capítulo 1, intitulado “A Pesquisa e Trajetória como Pesqui- gena: a presença de crianças nos eventos, visitas e reuniões
sadora”. Conta que iniciou a escolarização aos cinco anos na FOIRN e associações comunitárias, no acompanhamento
numa escola na cidade de Santa Isabel, por incentivo de seus da implantação de escolas indígenas em comunidades, na
pais, que queriam que os filhos estudassem e aprendessem sua percepção como diretora, de que as mulheres não viam

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problemas na presença de crianças em eventos e projetos e português, conseguindo obter apenas algumas informações
no questionamento sobre mulheres que tinham filhos e esta- sobre seu clã e história. Em Santa Isabel, focou na conversa
vam à frente de cargos de associações. Participou no Encon- com seu pai, mãe e tia paterna. (Id., p.28-30)
tro de Crianças Indígenas em Quito, no Equador, em 2001, Ao refletir sobre a relação entre os conhecimentos
organizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância indígenas acadêmicos, remete à discussão antropológica de
(Unicef), que levou a proposta da criação de departamento de James Clifford sobre a possibilidade de a etnografia retratar
Jovens e Adolescentes na FOIRN e a Secretaria de Jovens no múltiplas vozes, atentando ao fato que a produção antropo-
município de São Gabriel da Cachoeira. (Id., p.21-24) lógica de qualquer forma recai no reconhecimento de uma
A princípio, a antropóloga iria realizar uma etnografia autoridade máxima, a do antropólogo, que continua sendo o
dos processos de ensino da criança indígena dentro do con- único autor e tendo reconhecimento acadêmico. Pontua que
texto escolar. Sua mudança de tema foi inspirada em conver- os indígenas, ao entrarem na academia, reiteram essa situa-
sas que teve em 2011 quando, com sua mãe, realizou uma ção ao se diferenciarem de conhecedores de suas próprias
cirurgia em Manaus, acompanhada de uma irmã de seu pai famílias, e levanta a importância de se contribuir para a não
(por consideração) e se recuperou em sua casa, ocasião em marginalização dos conhecedores da oralidade. (Id., p.27-28)
que conversaram sobre processos e criação de pessoas. Em
2012, seu pai esteve em Manaus para resolver questões de
aposentadoria e as conversas com ele também a direcionaram * * *
a querer aprofundar os saberes de seus ancestrais. (Id., p.25)
A pesquisa foi realizada a partir de um acervo pes­ Ao analisar comparativamente estas três disserta-
soal composto por conversas informais, gravações com seu ções em Antropologia Social produzidas por alunos Tukano
avô Pinõmáakwë Arapaço, e do diário pessoal Kamumun, es- orientais, alguns pontos chamam especial atenção. O primei-
crito na fase em que a antropóloga estava se tornando “mo- ro deles é a opção por relatar a própria história de vida como
cinha”, “mulher”. Os interlocutores privilegiados da pesquisa modo de situar e justificar a escolha pelo estudo da Antropo-
realizada especificamente para o mestrado foram seu pai (Pi- logia e/ou pelo tema de pesquisa. Como pudemos observar,
ratapuia), sua mãe (Arapaso) e sua tia paterna (Piratapuia). todos os três pesquisadores possuem em comum a experiên-
A autora escolheu os Waíkhana e Arapaço principalmente por cia de escolarização no internato salesiano, incentivada pelos
ser filha de um Waíkhana e uma mulher Arapaço, e, de acor- pais, embora tenham seguido a partir de sua formação no
do com as regras ancestrais, o pertencimento é herdado dos ensino fundamental rumos diferentes: Rivelino Barreto cursou
avôs paternos, por isso é Waíkhana. O interesse para realizar ensino médio com os salesianos e cumpriu os estudos em
anotações e o desejo de ser pesquisadora surgiram a par- Filosofia na Congregação, João Paulo Barreto enveredou pe-
tir do seu contato com historiadores e antropólogos no Alto los estudos financiados pela mineradora e em seguida cursou
Rio Negro, José Bessa, Márcio Meira, Renato Athias, Gabriele ensino superior – Direito e Filosofia – em universidades pú-
Brandunbher, que de uma maneira ou de outra a incentivaram blicas e Rosilene Pereira cursou duas licenciaturas, relaciona-
a seguir este caminho. (Id., p.26-27) das à sua carreira como professora. Todos os pesquisadores
Seguindo a tradição antropológica, a pesquisadora nasceram em comunidades indígenas, mas cedo, na infância
optou por realizar trabalho de campo em São Gabriel da Ca- ou adolescência, foram morar na cidade de São Gabriel da
choeira e Santa Isabel do Rio Negro. Sobre tal experiência, Cachoeira, Santa Isabel e Manaus e, portanto, são indígenas
elenca alguns estranhamentos. O primeiro foi pedir termo de que possuem um duplo referencial de socialidade das regras
anuência para analisar seu próprio grupo familiar, o segundo que pautam a vida na comunidade e na cidade, algo que pro-
foi a própria experiência de trabalho de campo – observar seus blematizam em diversas passagens. Todos os três narram as
parentes, colegas e fazer registros no caderno de campo, o escolhas que fizeram para continuar no caminho da escola-
que a levou a estranhar a si mesma. Contribuiu numa reunião rização e por fim para adentrar na Antropologia, contrapondo
da FOIRN com algumas sugestões sobre sustentabilidade no a outras possibilidades: vida na roça, vida religiosa, vida no
Baixo Rio Negro, acompanhou uma família vizinha, cuja mãe garimpo. Rosilene Pereira possui o diferencial de ter se en-
era Piratapuia na ida à roça. Em Santa Isabel, foi até a Ilha de volvido mais profundamente com o movimento indígena do
Bombachi, local onde reside seu tio-avô José Waíkhen, Terra Alto Rio Negro nas cidades de São Gabriel e Santa Isabel e
Indígena Médio Rio Negro II, para registrar parte da história de de ter tido contato próximo e diálogo desde a adolescência
seu bisavô, porém achou que seria uma violência fazer várias com variados pesquisadores – antropólogos e historiadores
perguntas ao avô, que tinha dificuldades de entendimento do que foram inspiração para sua carreira, algo que Rivelino e

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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

João Paulo Barreto demonstram ter realizado apenas com os Porã – seguindo a lógica de transmissão patrilinear, clânica
professores da UFAM, em Manaus. Além disso, a trajetória e vertical de conhecimentos masculinos (Hugh-Jones, 1996).
de Rosilene Pereira é peculiar pelo fato de ela ser mulher, se Pereira (2013), Piratapuia, por sua vez, acessa conhecimentos
considerarmos que no Alto Rio Negro, enquanto o homem está de sua mãe (Arapaso), de suas tias paternas (Piratapuia) e
mais envolvido nas questões xamânicas, políticas e nas rela- de seu próprio pai (Piratapuia), seguindo o modo feminino de
ções com brancos, as mulheres estão mais voltadas para a transmissão de conhecimentos Tukano, que conforme argu-
esfera doméstica da vida cotidiana na comunidade. É inegável mentado por Strapazzon (2013) e Oliveira (2016) é mais aber-
que Rosilene foi inovadora em relação a tal padrão por ter sido to, horizontal e circular. De uma maneira mais direta, Barreto
uma das primeiras mulheres a compor a diretoria da FOIRN e (2012) e Barreto (2013) se referem especificamente a como
a primeira mulher mestre em Antropologia no Alto Rio Negro. as conversas, entrevistas e gravações realizadas seguiram a
Outro ponto interessante a se observar é a escolha lógica ditada por seus pais – concentração, sintonia entre a
de objetos e temas e a metodologia das pesquisas desses an- dupla, modo de enunciação de perguntas e respostas, a im-
tropólogos Tukano orientais. Na escolha dos temas, é notável portância de se lembrar e praticar os conhecimentos ensi-
que todos eles optaram por pesquisar conhecimentos Tukano, nados. Rosilene menciona, para além da conversa com seus
ou a “própria cultura”, algo que pode parecer óbvio quando se pais e suas tias paternas, a realização de uma etnografia de
trata de alunos indígenas estudando Antropologia. No entanto, uma família na roça, na qual passou o dia acompanhando as
é interessante observar que mesmo Barreto (2013), que ha- mulheres em seus afazeres, momento considerado privilegiado
via entrado no curso com intenção de “estudar os brancos”, para transmissão de conhecimentos femininos. (Strapazzon,
acabou se sentindo atraído, num efeito ioiô como ele mesmo 2013, e Oliveira, 2016)
descreve, a pesquisar noções Tukano. Essa escolha pode ser Por fim, é importante pontuar que os pesquisadores
explicada de duas maneiras, que a meu ver se entrelaçam: apresentam reflexões sobre a produção de conhecimento an-
uma delas é situá-la como um modo de continuidade, em tropológico por parte de antropólogos indígenas e suas rever-
novos termos, da tradição de registro de conhecimentos no berações nos universos acadêmico e Tukano. Nesse sentido,
Alto Rio Negro, abordada no tópico anterior. Outra maneira é Barreto (2012) fala da importância da realização deste traba-
entendê-la como um modo atual ou alternativo, pelo qual os lho para ele como antropólogo e para seu pai como conhece-
indígenas que vivem na cidade, longe de seus pais, conse- dor/professor e para o PPGAS, que formou seu primeiro aluno
guem acessar conhecimentos que são considerados impor- indígena. Além disso, espera contribuir para estimular tanto a
tantes na formação de adultos Tukano orientais. Todos eles reflexão antropológica sobre o Rio Negro como a reflexão dos
mencionaram como a presença de seus pais na cidade foi Tukano sobre eles mesmos e para adensar e tornar múltiplas
fundamental para o desenvolvimento da pesquisa. as formas que o pensamento indígena se expressa no diálogo
Nesse ponto, chegamos a uma questão crucial: como acadêmico. Pereira (2013) descreve seu estranhamento em
a produção destas dissertações levam em conta sutilezas dos pesquisar etnograficamente sua própria família e problemati-
modos de produção e transmissão de conhecimentos Tukano. za a assimetria existente entre conhecedores/conhecimentos
Se compararmos os temas pesquisados por estes indígenas, orais e escritos. Barreto (2013), por sua vez, situa sua abor-
por exemplo, veremos que há um recorte de gênero. Barre- dagem como um terceiro caminho em relação ao modo de
to (2012) pesquisou questões relativas à organização social conhecimento indígena tal qual vem sendo produzido no Alto
do clã, numa sociedade patrilinear, Barreto (2013) pesqui- Rio Negro, transmissão oral de conhecimento e registro escrito
sou noções cosmológicas que remetem ao xamanismo, co- de conhecimentos, pois realiza um estudo antropológico por
nhecimento esotérico masculino e Pereira (2013) pesquisou “dentro do conhecimento”, em que filtra e sistematiza conhe-
criação de gente, algo que, apesar de envolver os homens, cimentos Tukano em termos antropológicos e toma a própria
em termos xamânicos é parte fundamental da formação e da lógica Tukano para compreender o ordenamento do conheci-
atuação cotidiana da mulher na comunidade. A escolha dos mento e explicações Tukano. Finalmente, coloca a imprescin-
interlocutores segue a mesma lógica, Barreto (2012) e Barre- dibilidade da academia em investir na dimensão de um conhe-
to (2013), ambos Tukano do clã Buberã Porã, têm como inter- cimento indígena, epistemologicamente diverso do ocidental,
locutores principais seus próprios pais, e no caso de Rivelino, como caminho para descoberta de novos campos de entendi-
também seus tios paternos, todos homens Tukano, Buberã mento antropológico e de diálogo com conhecimentos outros.

24
CONSIDERAÇÕES FINAIS parte de indígenas, tanto para a academia como para os pró-
prios Tukano. Em dezembro de 2015, os mestrandos Tukano,
Com este artigo, procurei demonstrar que a produção Dagoberto Azevedo e Gabriel Maia encaminharam uma carta à
de dissertações de alunos Tukano orientais no PPGAS/UFAM Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da UFAM, solicitan-
deve ser analisada considerando como pano de fundo o con- do um parecer para a escrita da dissertação na língua Tukano,
texto rionegrino marcado pelo antigo histórico de escolariza- com argumento de que se expressam melhor em suas línguas
ção e pela tradição de registro de conhecimentos indígenas. e de que precisam reparar distorções conceituais realizadas
Argumentei que, por um lado, as dissertações são perpassa- por pesquisadores não indígenas. Em fevereiro de 2016, ti-
das pela lógica de produção e transmissão de conhecimentos veram um parecer favorável da pró-reitoria e do colegiado do
Tukano e, por outro, os alunos realizam um movimento refle- PPGAS. (Farias, 2016) Este artigo consistiu numa pequena
xivo sobre suas próprias trajetórias de vida, sobre os conhe- aproximação deste recente capítulo da longa história da pro-
cimentos Tukano e sobre as consequências da produção de dução de conhecimento dos Tukano do Alto Rio Negro, movi-
conhecimentos antropológicos sobre os Tukano orientais, por mento que merece ser acompanhado e analisado com afinco.

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26
INGRESSO DE INDÍGENAS EM CURSOS
REGULARES NAS UNIVERSIDADES E DESAFIOS
DA INTERCULTURALIDADE: O CASO DA UFSCar
Clarice Cohn* e Talita Lazarin Dal’Bó**

INTRODUÇÃO1 cursos ofertados em seus quatro campi, para a qual é sele-


cionado um(a) candidato(a) a partir de um vestibular indígena
A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) rece- amplamente divulgado em todo o país.4
be estudantes indígenas no nível de graduação desde 2008. Se nem sempre estas vagas são ocupadas – e não
Sua política de inclusão desses estudantes está ligada à im- são cumulativas, desaparecendo se não houver candidato se-
plantação do Programa de Ações Afirmativas (PAA)2, e tem lecionado –, o número de estudantes indígenas ingressantes
por particularidade selecionar candidatos indígenas com re- tem crescido. O acompanhamento mantido pela equipe téc-
sidência de origem em qualquer lugar do Brasil para todos os nica do PAA5 tem demonstrado este crescimento: em 2008,
cursos por ela ofertados.3 Não circunscrevendo esta política na primeira turma de estudantes indígenas, com 37 vagas
de acesso nem em termos étnicos nem linguísticos ou regio- oferecidas pela UFSCar, foram 14 os ingressantes; em 2009,
nais, ela tampouco limita a oferta a determinados cursos pre- as vagas eram 57 e foram 19 ingressantes; em 2010, foram
viamente definidos pela universidade. A cada ano, uma vaga 33 ingressantes; e assim seguiu-se até o ano de 2016, quan-
suplementar para estudante indígena é gerada em todos os do 43 estudantes indígenas foram aprovados no vestibular
específico, somando-se, atualmente, mais de uma centena
de estudantes indígenas matriculados, sempre em todos os
centros em que se organizam administrativamente os cursos
*  Professora da Pós-graduação em Antropologia Social na Universi- da universidade. Até o momento, a universidade atendeu a
dade Federal de São Carlos (UFSCar). Coordenadora do Laboratório estudantes de diversas etnias do Brasil: Terena, Xukuru do
de Estudos e Pesquisas em Antropologia da Criança (LEPAC) e do
Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI) da UFSCar. Doutora
em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

**  Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São 4


  O vestibular para candidatos indígenas da UFSCar contou, desde
Carlos (UFSCar) e Doutoranda em Antropologia Social pela Universi- o primeiro ano, com uma comissão de professores para discutir
dade de São Paulo (USP). Membro do Centro de Estudos Ameríndios os critérios de avaliação. Inicialmente, a formulação ficou a cargo
(CestA/USP). da Fundação de Apoio Institucional (FAI/UFSCar), passando em
seguida para a Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual
1
 Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada pelas autoras
Paulista (VUNESP), a mesma que elabora o processo de seleção
no Primer Congreso Internacional “Los Pueblos Indígenas de Améri-
para os demais candidatos. Até 2015, o vestibular indígena era
ca Latina, Siglos XIX-XXI – Avances, Perspectivas y Retos”, realizado
aplicado exclusivamente no campus de São Carlos/SP, em três
no México, em 2013. Agradecemos aos coordenadores do Simpósio
etapas, que ocorriam em dois dias seguidos: prova objetiva, prova
Conocimientos Indígenas y Educación Superior Indígena: Perspecti-
de redação e prova oral. Em 2016, após demanda dos próprios
vas Interculturales, pelas contribuições; e à Fundação de Amparo à
estudantes indígenas, que alegavam a impossibilidade de muitos
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo apoio à pesquisa de
candidatos participarem do processo seletivo devido à dificuldade de
doutorado.
deslocamento, a universidade descentralizou a aplicação do mesmo
2
  Disponível em: <http://www.acoesafirmativas.ufscar.br/>. e, pela primeira vez, ocorreu em quatro capitais do país: São Paulo/
SP, Recife/PE, Manaus/AM e Cuiabá/MT, eliminando, contudo, a etapa
3
 A UFSCar, única instituição federal de ensino superior localizada
prova oral.
no interior do Estado de São Paulo, oferecia, em seus três campi
(São Carlos, Araras e Sorocaba) 37 cursos presenciais de graduação 5
 A equipe técnica de acompanhamento das ações afirmativas
até 2008, aumentando para 57, em 2009, devido ao Programa de também passou por algumas alterações, desde Grupo Gestor de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Ações Afirmativas até, atualmente, a Coordenadoria de Ações
Atualmente, após a criação de alguns novos cursos e do quarto campus, Afirmativas e outras Políticas de Equidade (CAAPE), ligada à Pró-
Lagoa do Sino, são ofertados 62 cursos de graduação presenciais. reitoria de Graduação da UFSCar.

27
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

Ororubá, Guarani Mbya, Manchineri, Tupiniquim, Xavante, Ka- etnográfica com os estudantes indígenas, da participação na
lapalo, Baniwa, Baré, Pankararu, Surui, Piratapuia, Mayuruna, gestão do programa de inclusão e do acompanhamento da
Umutina, Krenak, Kaingang, Kambeba, Tariano, Tukano, Boro- criação do Centro de Culturas Indígenas (CCI/UFSCar), propo-
ro e outras.6 mos analisar a interculturalidade que se pode realizar neste
Esta política de acesso vem acompanhada de uma contexto e refletir sobre os diversos desafios vivenciados tanto
política de permanência que engloba bolsas (moradia, ali- pelos estudantes como pelos docentes e pela instituição.9
mentação, bolsa-atividade) e programas de acompanhamento
acadêmico (tutorias, acompanhamento pela equipe técnica do
programa, ações específicas para este público de projetos da UM BREVE HISTÓRICO DO PROCESSO DE INCLUSÃO DE
universidade como o Grupo de Estudos do Núcleo UFSCar/ ESTUDANTES INDÍGENAS NA UFSCar
Escola). Em 2009 e 2010, estudantes indígenas, tal como os
demais ingressantes pelo sistema de reserva de vagas, pu- A necessidade de desenvolver políticas de ações
deram concorrer a uma bolsa de pesquisa ou de extensão afirmativas na UFSCar já vinha sendo observada pela ins-
oferecida pela UFSCar com o apoio da Fundação Ford; nos tituição desde 2004,10 a partir da análise de diagnósticos
anos subsequentes, foram também contemplados com bolsas sobre o perfil socioeconômico do público ingressante, que
de permanência oferecidas pela Fundação Nacional do Índio apontava para uma presença muito pequena de egressos do
(FUNAI), distribuídas por critérios socioeconômicos. A partir ensino público frente aos de ensino privado, e também de
de 2013, com o lançamento do Programa Bolsa Permanência alunos negros, pretos ou pardos frente a alunos brancos, de-
pelo Ministério da Educação (MEC),7 passaram a contar com monstrando a urgência de medidas paliativas. Inicialmente,
esse auxílio. Levantamentos recentes demonstram também a participação da população indígena como beneficiária do
que eles têm obtido sucesso em receber bolsas de pesquisa, programa não era debatida. Em 2005, formou-se a Comissão
tais como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico de Ações Afirmativas (CAA) da UFSCar, que ficaria encarrega-
e Tecnológico – Programa Institucional de Bolsas de Inicia- da de conduzir o processo de construção da proposta de um
ção Científica (CNPq-Pibic), Coordenação de Aperfeiçoamento PAA para a universidade.
de Pessoal de Nível Superior (Capes e Fapesp), e têm-se be- Em setembro de 2006, a CAA promoveu uma sema-
neficiado também de projetos específicos, tais como o Pibic na de debates intitulada: “UFSCar Debate Ações Afirmativas”,
Indígena, o Conexão de Saberes Indígena e o Programa de com o intuito de discutir a proposta do programa e conhecer
Educação Tutorial Indígena (PET/MEC).8 a experiência de outras instituições. No entanto, a pequena
Se o acesso se amplia, assim como a diversidade dos participação do público universitário, tanto de alunos quan-
estudantes, denotando o sucesso do empreendimento, a uni- to de professores, demonstrou que ainda não havia um bom
versidade, não obstante, tem que se ver com os grandes de- conhecimento pela comunidade universitária sobre o assunto
safios que são colocados pela diversificação de seu alunado. e, menos ainda, um consenso. O seminário previa debates a
Nem sempre preparados para atendê-los, alguns professores respeito do rendimento acadêmico dos egressos de ensino
resistem a esta política, às vezes de forma aberta. Nem sempre público, da questão racial – negros, pretos e pardos, como
a convivência com os colegas é fácil. E o rendimento acadêmi- se convencionou chamar no programa a partir de um debate
co de alguns destes estudantes nos demonstra a necessidade sobre identidades raciais – e uma tarde de debate sobre os
de repensar a universidade e suas práticas pedagógicas, em
que nem sempre se encontram apoio e engajamento.
Neste trabalho, buscamos relatar o processo de im- 9
  É fundamental mencionar que esse trabalho procura destacar al-
plementação desta política pela UFSCar, com especial atenção guns pontos refletidos na dissertação de mestrado de uma das auto-
para o primeiro ano de sua aplicação e, a partir de pesquisa ras (Dal’ Bó, 2010) realizada sob a orientação da outra, a professora
Clarice Cohn, e que, além disso, esta última também participou do
processo de implementação das ações afirmativas na UFSCar e conti-
nua, desde então, acompanhando e apoiando essa experiência.
6
  Afiliações étnicas tais como aparecem nas fichas de inscrição des-
ses alunos. 10
  Tratava-se de um contexto nacional de discussões sobre políticas
de ações afirmativas, que estavam, pouco a pouco, sendo implan-
  Disponível em: <http://permanencia.mec.gov.br/>.
7
tadas por diferentes instituições. No entanto, não exploraremos aqui
8
 Disponível em: <http://www.conexoes.ufscar.br/pet-conexoes- esse contexto e, tampouco, alguns debates sobre a constituição das
indigenas-1/>. políticas em si, por se distanciarem do objetivo aqui proposto.

28
direitos indígenas, seu acesso à educação e as possibilidades origens étnico-raciais; e também ampliação e aperfeiçoamen-
de formulação de políticas para seu ingresso nos cursos da to, para atender às novas demandas, da moradia estudantil,
UFSCar. Ressalte-se que a tarde dedicada à temática indígena do restaurante universitário e da bolsa-atividade. Além disso,
viu um auditório vazio, contando apenas com a presença dos promover espaços acadêmicos de convivência da diversidade,
membros da comissão e de alguns estudantes interessados no e a educação das relações étnico-raciais a estudantes, docen-
tema – entre eles uma das autoras deste texto, naquele perío- tes e servidores, nos diferentes âmbitos da vida universitária.
do candidata ao mestrado –, enquanto o debate sobre a temá- É importante destacar que a presença da população
tica racial encheu o mesmo auditório, demonstrando a menor indígena como beneficiária do PAA/UFSCar foi colocada em
capacidade de mobilização que, à época, a questão indígena pauta apenas mediante uma demanda levantada por profes-
tinha na universidade, o que iria se modificar posteriormente. sores da área de Antropologia, que elaboraram documentos
Apesar do pouco interesse e conhecimento do públi- a respeito do tema, com dados de sua implantação por todo
co universitário, em dezembro de 2006, em reunião conjunta o país.11 A partir de então, esses professores passaram a fa-
do Conselho Universitário (CONSUNI) e do Conselho de Ensino zer parte do processo, tendo que negociar junto à instituição
Pesquisa e Extensão (CEPE), foi aprovado, não sem disputas, e aos estudantes indígenas, conquistando vitórias, mas nem
o PAA/UFSCar, com início a partir de 2008, prevendo: (1) me- sempre tendo suas sugestões aceitas, como a questão do
canismos de acesso: de 2008 a 2010, o sistema de reserva sistema de autodeclaração, entendido por eles como sufi-
de vagas disponibilizaria 20% das vagas, em cada curso de ciente para realização da inscrição no vestibular, por ser uma
graduação, a egressos do ensino médio cursado integralmente aplicação da Resolução 169 da Organização Internacional do
em escolas públicas. Deste percentual da reserva de vagas, Trabalho (OIT),12 mas considerado insuficiente pela CAA, que,
35% seriam ocupadas por alunos negros (pardos e pretos); após consulta a representantes indígenas, complementou o
de 2011 a 2013, a reserva de vagas subiria para 40% e de sistema de autodeclaração com a demanda de reconheci-
2014 a 2016 para 50% (continuando os mesmos 35% para mento pela comunidade indígena e pelo órgão indigenista
negros). Em 2017, ao completar 10 anos, o sistema de re- FUNAI.
serva de vagas seria avaliado pelos colegiados superiores da
instituição, que decidiriam pela continuidade do programa,
necessidade de ampliação ou finalização do mesmo; (2) para
a população indígena, estabeleceu-se que o sistema de reser-
va de vagas disponibilizaria anualmente uma vaga para cada
curso de graduação, além do número de vagas total de cada
curso, destinadas a candidatos das etnias indígenas de todo
o Brasil, vagas não cumulativas, caso não fossem preenchi-
das. Os candidatos deveriam ter cursado o ensino médio in- 11
  É importante destacar que a CAA da UFSCar realizou o primeiro
tegralmente em escolas da rede pública (municipal, estadual contato com o setor de Antropologia do Departamento de Ciências So-
ou federal) e/ou em escolas indígenas reconhecidas pela rede ciais apenas em 2006, a partir do qual as professoras Marina Cardoso
pública de ensino (devidamente cadastradas junto ao MEC), a e Clarice Cohn foram convidadas para participar do seminário men-
partir da autodeclaração no ato de inscrição para o vestibular cionado; apenas, em 2007, houve um convite para que. Clarice Cohn
– em 2007 esse critério foi modificado com a Resolução CEPE participasse da comissão, quando se pôde mais diretamente debater
n° 563, que, entre outras coisas, decidiu que os candidatos o ingresso de índios nesse âmbito. De fato, a proposta inicial, en-
deveriam comprovar seu pertencimento às etnias indígenas caminhada à comunidade acadêmica, demonstrava desconhecimento
presentes no território brasileiro por meio de uma Declaração da situação indígena e de seus direitos, nomeando, anacronicamente,
de Etnia e Vínculo com a Comunidade Indígena, assinada por os potenciais beneficiários como “índios aldeados” a partir da anuên-
sua liderança e certificada pela unidade local ou regional da cia do “cacique”. Destaca-se também que o professor Igor de Rennó
Machado, lotado no mesmo departamento, teve grande importância
FUNAI; e (3) mecanismos de apoio à permanência: a UFSCar
nesse processo, demonstrando em instâncias deliberativas – à época
se comprometeu a ampliar suas ações de apoio institucional,
a Comissão de Pesquisas, da qual fazia parte – a necessidade de um
visando oferecer a todos os alunos ingressantes nesta institui- debate mais fundamentado e mais adequado às especificidades da
ção – com atenção especial aos ingressantes pelo sistema de questão indígena, para dar prosseguimento à elaboração do programa
reserva de vagas, condições de permanência e sucesso aca- como um todo, indicando então a necessidade da participação em sua
dêmico durante todo o tempo de permanência na universida- formulação dos especialistas atuantes na própria universidade.
de, independentemente de suas condições socioeconômicas e
  Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/>.
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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

OS DESAFIOS DAS POLÍTICAS DE ACESSO: teriam aprendido nas escolas indígenas, em uma tentativa
A CONSTRUÇÃO DO PRIMEIRO VESTIBULAR de inseri-los ou mesclá-los nos conhecimentos exigidos no
ESPECÍFICO PARA CANDIDATOS INDÍGENAS vestibular. Felizmente, nem todos os professores pensavam
assim. Mas, de um modo geral, havia muitas dúvidas sobre o
Em 2007, foi criada a Comissão para o Vestibular In- que seria um vestibular específico para estudantes indígenas,
dígena da UFSCar, composta por professores de diversas áreas como avaliá-los de uma maneira específica (sendo que as va-
dessa instituição. Ao longo de todo o ano, mas com frequên- gas eram dirigidas a candidatos indígenas de todo o país) e
cia irregular, a comissão se reuniu para discutir os critérios de quais conhecimentos se deveriam exigir que demonstrassem
avaliação que seriam instaurados no vestibular específico, não que eles estariam aptos a cursar o nível superior.
tendo podido, no entanto, elaborar as questões, pois a Reso- Mesmo havendo muita discordância entre os profes-
lução CEPE n° 563, que regulamentou a execução do proces- sores sobre os critérios que embasariam a formulação das
so seletivo destinado a candidatos indígenas, decidiu que as questões, algumas delas aplicadas no vestibular demons-
provas seriam elaboradas, aplicadas e avaliadas, naquele ano, traram essa ideia genérica sobre as realidades indígenas e
pela Fundação de Apoio Institucional da UFSCar (FAI/UFSCar).13 as confusões com os conteúdos a serem cobrados, como se
A maioria dos professores da comissão de 2007, pode observar nas questões 24 e 28, presentes na prova ob-
apesar de muito experientes nas questões de ensino de suas jetiva do Vestibular UFSCar 2008 para Candidatos Indígenas:14
respectivas áreas – as que seriam cobertas por este exame,
que avalia conhecimentos de conteúdos do ensino médio –,
não tinha experiência com a temática indígena. Havia mesmo Questão 24 – Após a demarcação e homologação das terras
a compreensão de que seria importante constar nas questões indígenas de uma aldeia, os índios começaram o cultivo de
“algo de indígena”, para que fossem mais facilmente compre- milho em larga escala. Para evitar prejuízos, o cacique consul-
endidas pelos candidatos. Discutia-se se não seria possível tou um engenheiro agrícola de uma instituição de pesquisas
trazer a realidade indígena para a redação das questões: por
agronômicas, com o objetivo de usar adequada e racional-
exemplo, se, em uma questão de Física, para se medir a velo-
mente adubo em sua lavoura. Feita a análise da terra, obser-
cidade de determinado objeto, esse objeto fosse uma flecha,
vou que a produção P é dada pela expressão:
ou se, em uma questão de Biologia, fosse utilizada alguma
planta mais conhecida pelos índios etc., ou seja, se desse
modo eles poderiam reconhecer mais facilmente o teor da P(x)= - 1/8 x² + 5/4 x + 3
questão, como se a simples presença de objetos do cotidia-
no indígena – sem entrar no mérito da questão do cotidia-
em que x representa a quantidade de adubo (em quilo) por
no indígena metropolitano – pudesse tornar a questão, cuja
resolução era algébrica ou Matemática, mais compreensível hectare.
aos candidatos indígenas. Nestes casos, a referência era uma Um assistente do engenheiro, que o acompanhava na ocasião,
realidade indígena genérica, desconsiderando-se as diferen- fez alguns cálculos e apresentou as seguintes conclusões:
ças culturais, de utilização diferenciada de tecnologias (como
a de caça), de escolarização – mais ou menos diferenciada I – A produção em toneladas por hectare será a mesma, não
– e de ambientes em que estes povos vivem, variando des- adubando a terra ou adubando-a, utilizando 10 kg de adubo
de o urbano até o rural, ou ribeirinho etc.. Discutia-se ainda
por hectare.
a possibilidade de medir, de alguma maneira, no vestibular,
II – A produção será nula ao utilizar-se de 11,5 kg/ha de
um “conhecimento indígena ou tradicional” que os estudantes
adubo.
III – A produção máxima por hectare será de 6,125 toneladas.

13
  Desde o início, as provas do vestibular indígena apresentaram desa-
fios que, de modos diversos, se repetiram nos anos seguintes, quando
o vestibular indígena passou a ser formulado e aplicado pela VUNESP, 14
  O vestibular, realizado entre 9 e 10 de fevereiro de 2008, era com-
devido, em grande parte, à inexistência no quadro da FAI/UFSCar de posto de uma prova objetiva (com 40 questões de múltipla escolha,
profissionais com conhecimento da situação indígena e de seus direi- sendo 8 de leitura, compreensão e interpretação de textos, 15 de
tos e acesso à escolarização e dada a dificuldade em compatibilizar ciências naturais – Física, Química e Biologia –, 5 de Matemática, 6
o trabalho já realizado com as especificidades do vestibular indígena. de História e 6 de Geografia), uma prova de redação e uma prova oral.

30
O engenheiro e o cacique efetuaram alguns cálculos e veri- É bastante claro que as questões fazem apenas uma
ficaram que: leve referência a temas ou a personagens indígenas em seus
a) Apenas as conclusões I e III estão corretas. enunciados, mas de modo bastante genérico e completa-
b) Apenas a conclusão II está correta. mente desconectado do conhecimento exigido, que está de
c) Apenas as conclusões I e II estão corretas. acordo com a disciplina na qual estão inseridas (Matemática).
d) Apenas as conclusões II e III estão corretas. Essas questões e outras como essas, que, por falta de espa-
e) Todas as conclusões estão corretas.
ço não serão anexadas aqui, demonstram a tentativa de dar
uma “cara indígena” ao vestibular, porém mais compreensível
à ideia de realidade indígena genérica dos formuladores das
questões que às realidades e experiências cotidianas dos
Questão 28 – Uma comunidade indígena organizou uma cam-
próprios candidatos indígenas. Isso ficou bastante claro tam-
panha de coleta de lixo reciclável. Os recursos arrecadados
bém nos textos utilizados para responder a algumas ques-
com a venda desse material serão destinados à construção de
tões de Português e Geografia, que tratavam apenas de índios
uma quadra de esportes. As quantidades coletadas de cada Guarani,15 causando certo incômodo em alguns estudantes
tipo estão registradas no gráfico a seguir: de outras etnias, como afirmou no dia da aplicação do exa-
me uma candidata Pataxó Hã Hã Hãe: “Tem muitas coisas
sobre guarani, por que não tem sobre o meu povo?”. Algu-
mas questões de História e Geografia exigiram dos candidatos
um conhecimento sobre a legislação e a história dos povos
indígenas no Brasil, mais uma vez de modo generalizado, e
também com ênfase nos Guarani. Ademais, dificilmente nas
questões de História de um vestibular são abordados de modo
específico aspectos da política indigenista, pois também é di-
fícil encontrar livros didáticos que tratem do assunto. Pesqui-
sas sobre o assunto nos informam que a temática indígena é
apresentada de forma bastante retrógrada e generalizada nos
livros de História nas escolas brasileiras. (Gobbi, 2006)
A questão que aqui colocamos é por que os organiza-
dores da prova esperavam dos candidatos um conhecimento
sobre a história da política indigenista no Brasil? Por serem ín-
dios, eles deveriam saber, devido ao seu engajamento político
às causas indígenas e ao debate do indigenismo? Por terem
Considere as seguintes proposições: estudado em escolas indígenas? Esse conteúdo é ensinado
I – A quantidade de vidro coletada corresponde a 1/4 do em todas as escolas indígenas? Sabemos que os conteúdos
total coletado. ensinados nas escolas indígenas variam, de acordo com as
II – A quantidade coletada de vidro e plástico, juntos, corres- demandas e decisões locais. Além disso, vários candidatos ao
ponde ao dobro da quantidade coletada de metal. vestibular poderiam não ter estudado em escolas indígenas,
por não ser uma exigência do edital.
III – A quantidade coletada de plástico corresponde a 3/20
Outra discussão bastante relevante era a necessi-
do total coletado.
dade de uma avaliação oral, aspecto pouco problematizado
à época por muitos professores da Comissão do Vestibu-
lar Indígena, que acreditavam que os índios, por possuírem
Podemos afirmar que:
a) Apenas as proposições I e III estão corretas.
b) Apenas as proposições II e III estão corretas.
c) Todas as proposições estão corretas. 15
  Um dos textos foi retirado do livro Os Tupinikim e os Guarani Con-
d) Apenas a proposição I está correta. tam (1999), organizado pelos educadores Tupinikim, Guarani e Mu-
e) Apenas as proposições I e II estão corretas. grabi, e outro que apresentava um trecho do livro de Curt Nimuendaju:
As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da
Religião dos Apapocúva-Guarani (1987 [1914]).

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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

tradição oral, apresentariam maior facilidade em se expressar feita uma lâmpada. Já um candidato à Imagem e Som, tam-
oralmente. No entanto, tal procedimento é de difícil aplicação bém indígena Terena de MS, disse que o questionaram sobre
– em especial se pensarmos em uma aplicação efetivamente seu interesse no curso, se pretendia depois trabalhar em prol
respeitosa –, tanto mais se não prevê a variedade das éticas de sua comunidade indígena e como o faria. Os candidatos
e das etiquetas do falar indígena, em suas marcações etá- aos cursos da área de Saúde foram os mais questionados
rias, de gênero, de situação, e de políticas narrativas e da sobre se havia interesse ou não em trabalhar posteriormente
oratória,16 e se não se possibilita a formação adequada da- em suas aldeias/comunidades. À candidata à Filosofia, indí-
queles que serão os examinadores, voluntários do quadro do- gena Terena de SP, foi feita uma pergunta bastante peculiar.
cente e técnicos da UFSCar. Desconsiderava-se também que Ao sair da prova apresentando um aspecto de preocupação,
os candidatos ao vestibular eram todos egressos do ensino com a certeza de que não seria aprovada, contou-nos que lhe
médio, o que significa que haviam passado, todos, por uma haviam feito a seguinte questão: “O que quer dizer para você
experiência de escolarização, que pautava também seu rendi- a frase ‘o céu cair sobre nossas cabeças’?”. E ela respondeu
mento neste processo. Ademais, poder-se-ia temer com isso aos professores que não sabia, que para ela essa frase não
privilegiar os que têm maior fluência no português ou nas mo- fazia sentido algum. Logo depois, uma das conselheiras in-
dalidades oratórias não indígenas, diminuindo potencialmente dígenas que estava acompanhando o vestibular a convite da
a diversidade indígena na universidade. Enfim, relacionar as UFSCar comentou com a candidata: “Mas você não conhece
tradições orais indígenas a uma prova para ingressar na uni- uma dança dos Terena em que as mulheres protegem a ca-
versidade, além de não nos parecer suficiente para garantir beça porque alguma coisa lhes será derramada, uma dança
o respeito cultural e as especificidades indígenas (qualidade simbólica?”, e ela respondeu que não conhecia. Destaque-se
do processo muitas vezes destacada por gestores das ações que: essa candidata estava prestando vestibular para o cur-
afirmativas da UFSCar), também poderia gerar receio e des- so de Filosofia. Mas por que esperar que em uma avaliação
conforto para os candidatos. E isso também esteve claro no de seleção para o curso de Filosofia a candidata indígena se
dia da avaliação, quando se podia notar entre os candidatos recordasse de uma dança de seu povo (que pode até mesmo
maior nervosismo e apreensão, pois não era sabido por eles não ser conhecida por ela)? Por que esperar que ela estabele-
o que se esperar dela. Soubemos, ao final da avaliação, que cesse esse tipo de comparação, de paralelo entre uma dança
cada candidato foi entrevistado por dois professores da uni- e uma questão de Filosofia? E mais, por que sequer achar que
versidade, dos quais pelo menos um era da área na qual o a dança tenha um “significado” e que seja discutido igual-
candidato pretendia ingressar. As avaliações, por sua vez, va- mente por todos os membros de um povo indígena?
riaram entre entrevistas com questões mais pessoais, como o Esse caso nos parece bastante ilustrativo sobre
porquê da escolha dos cursos, o que pretendiam fazer quan- a possível confusão entre os conteúdos escolares e outros
do se formassem, e questões mais objetivas sobre conteúdos saberes indígenas, presente nesse episódio, aparentemente,
disciplinares ou coisas do tipo. Temos alguns exemplos: um como uma tentativa de comparar mitos e expressões rituais
candidato ao curso de Engenharia de Computação, indígena (o significado de uma dança) com conteúdos da área de Filo-
Terena de MS, informou que perguntaram para ele como era sofia. Isso porque, como mencionado acima, uma das discus-
sões entre os professores da comissão do vestibular específi-
co era sobre a possibilidade de medir, de alguma maneira, no
vestibular, um “conhecimento indígena ou tradicional” que os
16
  Para fornecer apenas um exemplo, os Xikrin, povo indígena do Su- estudantes teriam aprendido nas escolas indígenas, tentando
doeste do Pará, respeitam em seu processo de aprendizado algumas inseri-lo ou mesclá-lo aos conhecimentos exigidos no vesti-
especificidades, como discrição e pia’am (vergonha, respeito), e não bular. Esse longo debate, que em muito se aproxima daquele
costumam demonstrar seus conhecimentos antes de serem conside- colocado já há algum tempo pelas experiências de educação
rados prontos para exercê-los, assim como não destacam suas habi-
escolar indígena,17 foi discutido pelas autoras desse texto em
lidades frente àqueles que as possuem há mais tempo. Isso já fazia
com que enfrentassem algumas dificuldades no processo escolar,
como afirma Cohn: “os professores esperavam que as crianças parti-
cipassem das aulas, respondessem as perguntas e elas não se sen-
tiam à vontade para falar em sala de aula, muito menos de um modo 17
  Sobre o debate a respeito da educação escolar indígena diferen-
que lhes lembra muito diretamente a oratória masculina – aquele em ciada, sugerimos também conhecer os trabalhos de Lopes da Silva
que alguém se destaca e fala sozinho, ganhando a atenção de todos”. (2001), Grupioni (2008), Paladino e Garcia (2007), D’Angelis (2012),
(2005, p.504 [grifo da autora]) Cohn (2005 e 2014), Gallois (2001 e 2014), entre outros.

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outros momentos18 e, portanto, não será resgatado nesse haviam deixado seus filhos na aldeia e, além de saudades,
trabalho, que se preocupa em apresentar alguns momentos demonstravam bastante preocupação com eles, pois nunca
dessa experiência de ingresso de indígenas na UFSCar e os haviam ficado tanto tempo longe. Essas dificuldades se so-
desafios e dificuldades de vivenciar essa temática. mavam às dificuldades com os conteúdos das aulas. Alguns
estudantes indígenas estavam há um bom tempo sem estu-
dar, haviam terminado o ensino médio, realizado cursos de
A INTERCULTURALIDADE QUE SE BUSCA ALCANÇAR NA formação, trabalhado e não se lembravam do conteúdo das
UNIVERSIDADE E OS DESAFIOS DA PERMANÊNCIA aulas escolares. Com tudo isso, dois deles, a estudante de
Pedagogia (mencionada acima) e o estudante de Engenharia
Passados os desafios da construção e aplicação do Florestal, indígena Guarani de São Paulo/SP (único estudante
vestibular, iniciava-se um novo ciclo de demandas e expec- indígena no campus de Sorocaba, o que dificultava ainda mais
tativas. Ao longo do primeiro semestre de 2008, era possível sua adaptação) abandonaram a universidade logo no início do
notar um excesso de compromissos demandados aos es- primeiro semestre. Os outros estudantes indígenas não desis-
tudantes indígenas, muito acima do que se costuma exigir tiram, ao menos não tão cedo. E cada um foi se adaptando
de estudantes universitários, pois, além da pesada rotina de a sua maneira e em seu tempo, alguns com mais facilidade,
aulas e estudos, frequentavam cursos extras,19 bolsa-ati- outros com menos. No final do primeiro semestre, as notas
vidade, reuniões, projetos específicos (como organizar uma demonstraram que a maioria das reprovações não fugiu muito
apresentação cultural), entrevistas, palestras, entre outros. da média de reprovações dos alunos não indígenas, ocorren-
Também parecia haver sobre eles uma pressão para que se do nas disciplinas nas quais há maior número de reprovações
adaptassem com facilidade à nova rotina e ao ritmo univer- em geral. Ou seja, o resultado, em geral, segundo o grupo que
sitário, e que apresentassem resultados positivos nas avalia- acompanhava as ações afirmativas, havia sido positivo.
ções acadêmicas. Sabemos que o início de uma graduação, Atualmente, estamos no 9° ano de ingresso de estu-
em um ambiente universitário que para muitos estudantes dantes indígenas na UFSCar, tendo ocorrido em 2013 as duas
é novo e distante de suas realidades cotidianas, não é uma primeiras formaturas de estudantes indígenas da primeira
tarefa simples e a adaptação a isso não é fácil nem rápida. turma de ingressantes (Agenor, indígena Terena, do curso de
Por que esperar que para os estudantes indígenas fosse? Na Imagem e Som, e Ednaldo, indígena Xukuru do Ororubá, do
verdade, foi uma constante no primeiro semestre a afirma- curso de Psicologia). De 2008 para cá, há muito que contar
ção, dos próprios estudantes indígenas, de que não estavam sobre as experiências pelas quais passaram e passam esses
dando conta de acompanhar os cursos. Eles passavam pelo estudantes em sua vida acadêmica. Como não seria possível
que todos os estudantes passam quando ingressam na uni- relatar todo esse acúmulo de experiências, escolhemos alguns
versidade, mas de modo ainda potencializado. Sentiam falta acontecimentos e momentos que destacam a presença dos
de casa, muitas saudades e dificuldades. Duas estudantes, de estudantes indígenas na UFSCar e que nos levam a refletir so-
Filosofia e Pedagogia, ambas indígenas Terena de Bauru/SP, bre a interculturalidade que se pode alcançar na universidade.
Uma das demandas recorrentes colocadas a esses
estudantes, desde sua chegada à universidade, era a respeito
de comprovar suas “indianidades”. Acompanhamos em uma
  Cf.: Cohn (2005) e Dal’Bó (2010).
18
reunião realizada no alojamento estudantil, um dos estudan-
19
  Como, por exemplo, o curso de português oferecido pelo Departa- tes, que cursava Engenharia de Computação, indígena Terena
mento de Letras da universidade, que poderia ser interpretado como de MS, afirmar: “Meus colegas ficam dizendo que não sou
um “mal-entendido”, pois havia sido criado para atender a não falan- índio, que não pareço índio”. Quando perguntado sobre o
tes de português, ou seja, a alunos de outros países; mas, por decisão
que respondia aos colegas, ele disse: “Eu falo pra eles que
do Grupo Gestor, estendeu-se aos estudantes indígenas, imaginando,
queria ver se eles fossem na minha aldeia, vissem como a
na verdade, que eles poderiam pertencer a etnias que falavam so-
gente vive lá, se aguentariam ficar lá um dia. Aí sim eles iam
mente a língua indígena ou muito pouco de português. Porém, todos
os estudantes indígenas que ingressaram na UFSCar em 2008 fa- ver que eu sou índio”. Com isso, notávamos a dupla posição
lavam o português, sendo que a maioria deles conhecia poucas pa- que eles precisavam ocupar na universidade para dar conta
lavras na sua língua indígena, mas não era falante de outra língua. de tantas exigências: ora como estudante “igual a todos os
Isso causou certa dúvida entre os estudantes indígenas a respeito da outros”, pois nas salas de aulas, nas moradias, no refeitório,
importância do curso e foi um dos motivos pelos quais apenas dois nas atividades, no dia a dia em geral, eram tratados e cobra-
deles o frequentaram integralmente. dos da mesma maneira e intensidade dos outros estudantes

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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

universitários; ora como “estudante indígena”, pois eram outros estudantes (e também professores e funcionários) isso
comumente questionados sobre sua condição de “índios” e não era tão óbvio assim. E isso foi percebido pelos estudantes
interpelados sobre suas “diferenças”. Foi interessante notar indígenas. Na verdade, desde o dia do vestibular, quando, por
como se saíram diante dessas exigências, afinal, para eles es- exemplo, uma das candidatas, uma Guarani-Kaiowá de MS,
sas posições não pareciam separadas, elas se sobrepunham; na manhã antes da prova oral, a caminho da prova, pediu que
não havia necessidade de serem uma coisa ou outra, porque esperássemos e voltou atrás. Quando questionada, ela disse:
eram as duas, ou, mais precisamente, não eram nenhuma por “Fui pegar meus colares de índia, preciso parecer mais índia
si só, visto que a própria categoria “índio” é formulada a partir para essa prova”.
de uma relação interétnica, ou de um “sistema interétnico de Essas situações nos remetem ao amplo debate acer-
representações”. (Carneiro da Cunha, 2009, p.371) Isso ficou ca de o que é ser índio e de como representar-se como tal, e
bastante claro em um evento que decidiram organizar no mês ainda, do conhecimento que grande parte da população não
de abril, quando se comemora o “Dia do Índio”. O evento, in- indígena tem sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil.
titulado “Apresentação Cultural dos Acadêmicos Indígenas da Sabemos, como dito anteriormente, que “índio” é uma cate-
UFSCar”, ocorrido em 29 de abril de 2008, contou com uma goria étnica que não existe por si só, mas sempre a partir de
dança Terena conhecida como “Bate-Pau”,20 na qual também relações interétnicas. Sabemos também que não é possível
participou um estudante indígena Xukuru do Ororubá; a mesa estabelecer quem é e quem não é índio, pois essa é uma prer-
era composta por três estudantes indígenas, cada um repre- rogativa dada apenas às comunidades indígenas, que podem
sentando uma das etnias presentes no campus de São Carlos dizer quem a elas pertencem ou não. Em relação ao Estado
à época (Xukuru do Ororubá, Manchineri e Terena), falando brasileiro, todos os povos indígenas (mais de 230) são ditos
sobre o significado do Dia do Índio para eles; em seguida do “índios”, mas que, com relação a um Terena, um Guarani é um
comentário do filme “Brasil Indígena – cinco séculos de re- Guarani e um Terena é um Terena, podendo ser tão diferentes
sistência” (Conselho Indigenista Missionário/CIMI); finalizando entre si quanto em relação a um não índio.
com uma apresentação do estudante indígena Manchineri, Por fim, sabemos que essas diferentes categorias
tocando violão e cantando uma música em sua língua. A ideia operam ao mesmo tempo, sendo formuladas constantemente
do evento, as apresentações e o filme foram sugeridos e mon- e variando de acordo com cada situação.21 Assim, para esses
tados pelos próprios estudantes indígenas, com o apoio do estudantes indígenas, dependendo da relação que se trava-
Grupo Gestor de Ações Afirmativas. va, eles destacavam a condição de “estudante indígena” ou a
Em intervenções, os estudantes indígenas tentaram simples condição de estudante. E parece-nos que essa con-
demonstrar que muitas pessoas tinham uma visão errada so- dição de “estudante indígena”, que era atualizada por todos
bre eles, que eram, sim, índios e estavam na universidade, os estudantes indígenas em alguns momentos, e que, numa
estudando e aprendendo como qualquer outro estudante, que escala maior, era nomeada como “cultura indígena”, tratava-
não andavam de cocar e adereços – o que de fato não acon- -se do que já há algum tempo vem apontando Turner (1991),
tece o tempo todo, nem nas aldeias, mas apenas em ocasiões seguido de Sahlins (1997), e que Carneiro da Cunha (2009)
especiais – e que isto não fazia deles menos índios. As per- convencionou chamar de “cultura” (com aspas) para explicitar
guntas direcionadas a eles ao fim da apresentação eram todas uma reflexividade que os índios estão fazendo sobre suas pró-
relacionadas a essas questões. Talvez fosse óbvio para alguns prias culturas. É por esse motivo que, sem nenhum problema,
que na universidade os estudantes indígenas não precisariam
andar de cocar ou utilizar ornamentos indígenas, mas para

21
 As palavras de Carneiro da Cunha podem novamente nos
esclarecer quanto a essa questão: “Embora esses sistemas sejam
20
  Os estudantes indígenas optaram por uma dança Terena porque, conceitualmente distintos, tendem a se articular entre si. É claro que
na época, a maioria deles pertencia a esta etnia. E ainda tiveram estamos operando em escalas diferentes, cada qual com sua própria
a iniciativa de convidar outros índios Terena da Aldeia Kopenoty organização: um mesmo índio é um membro de uma casa específica
(localizada na reserva indígena Araribá – Bauru/SP, de onde era uma na aldeia, é um Krahô em relação a outros grupos étnicos vizinhos, é
das estudantes) pois, assim, a dança ficaria mais bonita, além de um índio diante do Congresso Nacional ou em um sistema de cotas na
resolver o problema de conseguirem roupas e artefatos necessários. universidade e pertence a um povo tradicional na ONU. Essas escalas,
O estudante indígena de Psicologia, mesmo sendo de outra etnia, por mais diferentes que sejam, não são interdependentes entre
Xukuru do Ororubá, quis aprender a dança para se apresentar junto. si; antes, apoiam-se em uma constante atividade de articulação”.
Os outros não quiseram. (2009, p.371)

34
Em intervenções, os estudantes no ensino superior. Devido às suas características singulares,
como, principalmente, um vestibular específico e um grupo
indígenas tentaram demonstrar técnico responsável pelo acompanhamento dos estudantes
que muitas pessoas tinham indígenas, o PAA/UFSCar passou a receber muitos elogios e
a ser reconhecido por todo o país. Esse impacto surtia efeito,
uma visão errada sobre eles, especialmente pela mobilização dos próprios estudantes indí-
que eram, sim, índios e esta- genas que, apoiados desde o início do programa pela equipe
técnica responsável, nunca se deixaram invisibilizar na uni-
vam na universidade, estu- versidade, mas, muito ao contrário, passaram a estabelecer
dando e aprendendo como cada vez mais presença e envolvimento nos espaços e polí-
ticas universitários, negociando as demandas que julgavam
qualquer outro estudante, necessárias à melhoria de suas condições acadêmicas.
que não andavam de cocar e Uma das principais conquistas ocorreu em 2013,
quando criaram o Centro de Cultura Indígena (CCI/UFSCar),
adereços – o que de fato não uma sala na qual eles podiam refletir sobre suas experiências,
acontece o tempo todo, nem realizar estudos, expor trabalhos e pesquisas, e organizar/criar
novos eventos. Mais do que um espaço, o CCI é considerado
nas aldeias, mas apenas em uma espécie de coletivo formado pelos estudantes indígenas,
ocasiões especiais – e que isto no qual discutem e negociam tudo aquilo que lhes diz respeito
na universidade. Foi nesse contexto que surgiu a proposta
não fazia deles menos índios. de um dos encontros mais importantes desse longo período
de presença indígena na UFSCar, o I Encontro Nacional de
Estudantes Indígenas (ENEI), ocorrido de 2 a 6 de setembro
um estudante indígena Xukuru do Ororubá pôde participar de de 2013. Todo o evento, desde sua concepção até a relatoria
uma dança indígena Terena no dia da Apresentação Cultural, final, contou com a participação desses estudantes, auxilia-
o que não fez dele nem “mais Terena”, nem “menos Xukuru”, dos pela equipe de gestão das ações afirmativas na UFSCar.
mas, nesse momento, um “estudante indígena da UFSCar”. Entre as muitas coisas interessantes do evento, sem dúvida a
Isto nada tem de banal, pois é por meio dessas ope- principal delas foi a proposta de sua formatação: somente in-
rações que eles podem até mesmo parecer “pouco índios”, ou dígenas poderiam participar das palestras (mesas-redondas),
“nada índios”, ou, ao contrário, em determinados momentos lideranças, professores, estudantes e profissionais de outras
a “indianidade” deles fique mais visível, pois trata-se de uma áreas. Segundo o documento final do evento: “A ideia foi a
“condição inventada a partir de uma relação”.22 Algo que, no de, ao invés de fazer mais um evento acadêmico em que a
entanto, não parecia ser facilmente compreensível aos olhos fala é dos não indígenas, chamar ‘nossas lideranças, que nos
de alguns estudantes, professores e funcionários, provocando são nossa inspiração’, como formulou Mayara Suny na pri-
diversas situações de constrangimento para esses alunos. meira reunião em que apresentou a proposta ao Mg. Reitor
A cada ano, porém, mesmo com os desafios e difi- Prof. Targino”.23 A única exceção foi a mesa de abertura, que
culdades, que muitas vezes causaram a desistência de alguns contou com representantes da universidade organizadora do
estudantes indígenas da universidade, a presença marcante evento e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
dos “estudantes indígenas da UFSCar” foi crescendo e ga- e Diversidade (Secad/MEC).
nhando destaque, tanto na universidade, como fora dela, em Para a realização do evento ocorreram muitas reuni-
eventos e situações que debatiam o ingresso de indígenas ões no CCI, nas quais os estudantes da então formada Comis-
são Organizadora (também composta pela professora Clarice
Cohn, do Departamento de Antropologia e estudantes não indí-
genas de graduação e de pós-graduação) discutiam questões
22
  Talvez seja dispensável comentar que não estamos afirmando que
esses estudantes indígenas “representam”, no sentido de simular,
uma condição que não seria real, verdadeira. Não é absolutamente
disso que se trata, mas que são capazes de refletir sobre as respostas 23
  Cf.: documento final do I ENEI entregue em reunião em Brasília
compreensíveis que as diferentes relações que travam na universidade para representantes da Secad/MEC. Disponível em: <http://www.
exigem deles. Ver: conceito de “invenção” em Wagner (2010 [1981]). blogdareitoria.ufscar. br/wp-content/uploads/enei_docfinal.pdf/>.

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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

relacionadas à estrutura do evento, ao recebimento e à ava- se abrir para repensar sua própria capacidade de dar conta
liação dos trabalhos que seriam apresentados, à formação deste público tão diverso. Parte importante dos esforços de
e à coordenação das mesas-redondas, entre outras coisas. ações afirmativas é democratizar o ensino universitário, e isso
A UFSCar contava, naquele momento, com 77 estudantes in- parece ser alcançado com iniciativas de formação e informa-
dígenas, sendo que, destes, 39 participaram da comissão que ção dos professores, de mobilização para pensar em moda-
organizou o evento. Com isso, após vários meses de intenso lidades de apoio ao estudante indígena, de busca de melhor
trabalho, com muitos momentos de ampla negociação com as conhecimento sobre a realidade indígena.
instituições universitárias, em 2 de setembro de 2013 teve Porém, e provavelmente como não poderia deixar de
início um evento que contaria com a participação de aproxi- ser, a presença dos estudantes indígenas na universidade traz
madamente 400 pessoas, entre estudantes, professores, pes- consigo grande parte dos vícios que o Brasil tem mantido fren-
quisadores e lideranças indígenas, com comitivas de 27 uni- te a estas populações. De um lado, práticas paternalistas, de
versidades, representando 51 povos indígenas de todo o país. “adoção” de estudantes, e uma competição, ao menos para
Foi um evento memorável, dada a grande presença nós imprevista, por este nicho de alunado. De outro, acusações
de estudantes, professores e lideranças indígenas, e a oportu- que põem em dúvida a capacidade destes alunos de aprender,
nidade de estabelecer importantes diálogos e troca de experi- estipulando-se absurdos, tais como que eles precisam ser en-
ências, discutindo desde o tema relativo ao ingresso no ensino sinados a aprender – como se não soubessem aprender ante-
superior, até outros, como educação, saúde, gestão de terri- riormente – ou que são limitados por suas culturas – como se
tórios, movimento indígena etc., e proporcionando momentos cultura fosse um fator limitante ao aprendizado.
acadêmicos, políticos, festivos, todos ao mesmo tempo. Ge- Sendo assim, entendemos que estas experiências são
rou, assim, muita riqueza, tanto para os estudantes indíge- ocasião não só de (necessária e bem-vinda) democratização do
nas, como para as instituições e o público presente. Entre as ensino superior, mas também de seu debate e reformulação.
importantes conquistas do encontro, uma a ser destacada é Assim também devem ser ocasião de oferecer conhecimentos
a aprovação de sua realização anual e itinerante, que deveria mais aprofundados sobre a presença indígena no Brasil con-
ser decidida a cada evento. temporâneo e sobre sua diversidade. Porque o desconhecimen-
Ele, sem dúvida alguma, marcou a experiência, tanto to disso é que leva à presunçosa afirmação de que temos que
dos estudantes que participaram de sua elaboração, quanto ensiná-los a aprender, ou a superar suas limitações culturais.
da própria universidade entre seus gestores, professores e Mais profundamente, nos leva a debater esta postura
alunos, e demonstrou a contribuição que a potencialidade e contemporânea do respeito à diferença e à cultura – na qual
a qualidade da presença indígena nesse ambiente universitá- um desentendimento do que seja cultura leva à prática de
rio e acadêmico podem trazer para uma universidade que se intolerância, em contraposição a um discurso de tolerância,
busca cada vez mais plural. como nestes casos – e sobre o desconhecimento da presença
indígena no Brasil contemporâneo – a mesma que facilitou a
aprovação do ingresso dos estudantes indígenas na universi-
CONSIDERAÇÕES FINAIS dade, mas que tem tornado difícil sua permanência e a real
adequação da universidade a este desafio a que se propôs.
A experiência da UFSCar na formulação e implanta- Por fim, nos permite colocar em debate a educação
ção de uma política de ações afirmativas e de inclusão de es- e o sistema educacional ele mesmo. De um lado, os ingres-
tudantes indígenas também tem visto seus primeiros suces- santes indígenas se veem com as mesmas dificuldades que
sos e fracassos. Elogiada por indígenas de todo Brasil, pela os demais ingressantes na universidade, o que nos permi-
FUNAI, pela Fundação Ford, pelo MEC e por outras instituições te discutir de outro modo o próprio sistema universitário; de
que acompanharam e apoiaram este processo, ela é também outro, seus problemas são agravados, o que nos leva, ne-
considerada “ambiciosa”. cessariamente, a discutir o sistema educacional básico que
Em especial, o que se viu nestes últimos anos foi atende a esta população, e a colocar em questão, agora que
um acirramento do debate sobre os estudantes indígenas. De os egressos de escolas indígenas cada vez mais chegam à
uma parte pouco discutida e que recebeu pouca atenção nos universidade, a qualidade deste ensino. Esperamos que este
debates sobre a implantação das políticas de ações afirmati- debate seja cada vez mais profícuo, e que experiências como
vas na UFSCar, o ingresso de estudantes indígenas passou a a nossa na UFSCar, com seus sucessos, mas também fracas-
potencialmente monopolizar o debate. De um lado, parece- sos, possam ajudar a consolidar uma educação escolar que
-nos que isso tem um aspecto positivo: a universidade parece efetivamente responda aos projetos indígenas de futuro.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GOBBI, Izabel. A temática indígena e a diversidade cultural nos Naify, 2010 (1981).
livros didáticos de História: uma análise dos livros recomendados

37
VEICULAÇÃO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: UM DESAFIO
PARA TODOS
João Rivelino Rezende Barreto*

Apresento este texto cujo conteúdo é muito mais ins- na escola onde se aprende a escrever e ler. De forma que o
piração de minha experiência acadêmica do que mesmo para indígena hoje está imerso nesses dilemas, entre a primeira via
grandes balanços, análise ou reflexão teórica. Muito menos de formação que não é reconhecida pelo Estado, e a segunda
se tem a preocupação de produzir um texto complexo, ainda via de formação reconhecida e regulamentada pelo Estado.
mais porque a própria maneira da escrita indígena já é um Esses são alguns dos desafios que tentarei abor-
motivo de curiosidade e interesse para muitos leitores e pes- dar no presente texto. Passemos então para a apresentação
quisadores. Mas, entendo que para um Tukano iniciante como de uma experiência acadêmica indígena em um contexto
eu, é importante iniciar pensando sobre a dinamicidade da universitário; pode ser que seja uma coisa muito particu-
escrita e oralidade em seus termos, significados e fluxividade, lar. Certamente, outros indígenas tiveram experiências dife-
pois é nesse processo que se enquadra a veiculação da pro- rentes, com mais tranquilidade e com maior produtividade.
priedade intelectual indígena no contexto acadêmico. A questão é que, na minha experiência acadêmica, quanto
Para tanto, a fluxividade da intelectualidade indígena mais estudo as didáticas de ensino acadêmico na universi-
e do contexto acadêmico está movida entre a simplicidade e dade, sinto que a responsabilidade sobre os conhecimentos
a complexidade, e que ao mesmo tempo criam obstáculos e indígenas aumenta, mas com uma visão de compreensão in-
limitações para um indígena Tukano como eu que diariamente tercultural, isto é, não só pensar a partir do que sou Tukano;
aprende a ler, escrever e compreender; um desafio e tanto assim como a partir daquilo que sou entre tantas culturas e
que proporciona para a experiência de transição entre a aldeia modos de ser e pensar.
e a universidade. Isto porque parece que nos dias de hoje o
processo de formação indígena passou a se adequar em duas
vias de conhecimento: a de conhecimento indígena (aldeão) e “SE NÃO ESTUDAR VAI ACABAR INDO PRA ROÇA COMO EU”
a de conhecimento acadêmico (urbano).
A primeira via se fundamenta na tradição cultural e A partir do momento em que comecei a ser aluno na
na oralidade, seja isso do ponto de vista Tukano, bem como escolinha da nossa aldeia (São Domingos Sávio), passei a ter
do ponto de vista de outras etnias. A segunda via surge como acesso ao modelo de ensino escolar regularizado. Regulariza-
nova alternativa para a formação indígena a partir da escrita e do, porque só o modelo daquele ensino é que tinha validade
do ensino seriado, ao mesmo tempo que surge também como e reconhecimento, inclusive na própria compreensão cultural
uma ameaça constante de sobreposição. É em meio a esses da aldeia; assim, quem não estudasse logo estava fora das
dois universos que nascemos, crescemos, vivemos, casamos, alternativas de vida no futuro.
pensamos, organizamos como Tukano, mas com a necessida- Essa compreensão cultural assimilada acabou sendo
de de estudar, rezar, e comportar-se como brasileiros; ficando uma nova modelagem na aldeia, pois, por exemplo, quando
divididos entre escolher seguir o caminho de formação, tra- muitos de minha geração resistiam em ir estudar eram re-
dicional Tukano e a necessidade de uma formação, regular preendidos pelas mães e pais, na medida em que a esco-
la era compreendida como um espaço de aprendizado para
uma alternativa de vida e profissionalidade. Isto é, os filhos
estudando na escola certamente teriam no futuro condições
de vida melhores em relação à deles naquele momento, e
* Tukano do Alto Rio Negro. Licenciado em Filosofia na Faculdade
sempre que chamavam atenção dos filhos, diziam: “se não
Salesiana Dom Bosco (FSDB-Manaus/AM); Mestre em Antropologia
estudar vai acabar indo pra roça como eu.”
Social na Universidade Federal do Amazonas (UFAM); Doutorando em
Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); A questão é que, na compreensão dos pais e das
bolsista do Programa de Apoio à Formação de Recursos Humanos mães, a escola era um caminho para uma alternativa de vida
Pós-graduados do Estado do Amazonas. com maior prosperidade, pelo contrário, se não seguíssemos

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na escola, continuaríamos com a vida na aldeia, trabalhando Essa é a base de ensino que foi se constituindo na
nas roças, carregando mandioca, torrando farinha, pescando; minha vida. Não saberia dizer o que teria sucedido se tivesse
atividades de subsistência que geralmente são diárias. continuado a vida inteira na aldeia, mas também não me arre-
Por outro lado, pelo menos para quem era aluno(a), pendo por ter passado a viver em outros contextos culturais,
nem sempre a escola era um espaço de paixão pelo ensino, pois hoje entendo que a escola é sim importante nas aldeias,
na medida em que o professor estabelecia o método da pal- mas o mais importante é o aluno indígena dominar a escola e
matória. Com isso, alguns alunos preferiam ir às roças com não a escola dominar o indígena, isso desde a escolinha que
as mães do que ir à escola, principalmente nas aulas de ma- tem numa aldeia até a universidade. A questão é que existe o
temática, quando o professor tomava a lição dos alunos na caminho de formação escolar, mas não se sabe muitas vezes
frente de outros colegas em fila indiana. E toda vez que errá- até onde vamos chegar, muito menos no que seremos com a
vamos, recebíamos palmatórias. escola e o que a escola é para nossas aldeias.
Em certo momento, o professor Afonso Camilo dos
Santos, da etnia Desana, colocou em disputa um sabonete
para o primeiro colocado e um desodorante para o segundo, O CHOQUE CULTURAL E ACADÊMICO NA UNIVERSIDADE
coisas fora do nosso alcance econômico naquela situação,
quando estava na terceira série; a lição que tínhamos que Praticamente, saí da aldeia São Domingos Sávio com
tomar era matemática na sala de aula. Entre todos os alunos sete anos, muito mais motivado pela situação de vida que
que entraram na disputa, fiquei em segundo lugar, perdendo passamos a ter a partir da debilitação da saúde de minha
para um aluno Tuyuca que era da quarta série e que ficou em mãe. Assim, transitamos em diferentes contextos, conviven-
primeiro lugar. Foi um dos dias mais felizes da minha vida, pois do com pessoas de diferentes culturas e línguas. Em outro
recebi muitos elogios da minha mãe, até porque já estabelecia momento, particularmente, passei a assumir várias funções
meu método de estudo próprio, isto é, decorando subtração, desgastantes e humilhantes para minha idade, pois, traba-
divisão, adição, multiplicação embaixo do ingazeiro que tinha lhei como garimpeiro, pescador, garçom e vaqueiro. (Barreto,
perto da nossa casa. Era uma situação que vivíamos, sem 2012) Essas funções para mim foram humilhantes, princi-
mesmo saber até onde a escola nos levaria e de que forma palmente no período em que passei um tempo no garimpo
estava ajudando na nossa formação. Tukano, onde passamos fome e muita necessidade, a ponto
Desta forma, em prática, na escolinha da aldeia o en- de sentirmos a aproximação da morte.
sino que tínhamos era na verdade uma “imitação de ensino”, Como falei anteriormente, no início a escola estava
que funcionava na base de “sim, não”, “bom dia, boa tarde”, inclusa em mim, mas eu não. Ainda mais depois da enfermi-
“como vai, tudo bem”. Não havia uma preocupação concreta dade e do falecimento de minha mãe, não me sentia inclu-
em pensar a formação intelectual, e sim para a formação que so na escola, porque não tinha como pensar positivamente
condicionasse para a relação social com as pessoas e realida- se ia pra escola com fome, se não tinha condições mínimas
des fora da aldeia. Era o que acontecia quando chegavam as em termos financeiros. Além disso, a continuidade na escola
irmãs salesianas, responsáveis pelas escolinhas nas aldeias, garantia minha permanência até o 3º ano do ensino médio,
inclusive na nossa. O professor, atendendo ao calendário de mas a continuidade acadêmica e a vida profissional não davam
visita das irmãs que passavam em todas as escolinhas para esperanças. Cursar a faculdade na nossa ideia era uma coisa
aplicar exames, estabelecia momentos preparativos e pedia que nunca iríamos alcançar, ainda mais porque soava como
para que decorássemos um canto ou jogral. No dia marcado, um nível intelectual que estava acima do nosso alcance, um
recebíamos as irmãs no porto da aldeia onde recepcionáva- nível de formação específico para as pessoas da cidade.
mos com cantos e jogral, pondo em prática o “sim, não”, “bom A questão é que tudo se transformou, graças aos sa-
dia, boa tarde”. Após a recepção, nos dirigíamos à escolinha lesianos de Dom Bosco, a partir do momento em que ingressei
onde as irmãs aplicavam exames, eram trabalhos para com- para a formação de vida religiosa entre 2003 a 2008. Assim,
provar nossas condições para seguir na escola para outras de um momento para outro me vi cursando filosofia na Facul-
séries. Em certo momento, lembro que fiz o exame escolar em dade Salesiana Dom Bosco, em Manaus. O curso de filosofia
pouco tempo e uma das irmãs me disse: “agora pode brincar.” em si já era um desafio, envolvendo o método de ensino e as
Nesse dia, saí “voando” da escola antes de todos pra casa, exigências acadêmicas. Nesses termos, não conseguia acom-
precisamente pra cair no rio em seguida com os coleguinhas, panhar o ritmo de leituras, simplesmente tentava acompanhar
mas nesse dia não foi possível reunir todos porque muitos com poucas leituras, me angustiando todos os dias porque
tiveram que passar a tarde toda fazendo exame escolar. não conseguia compreender o que lia, e isso fazia com que

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CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

fosse dormir todas as noites angustiado. Aliás, não só devido quando ingressei no Mestrado em Antropologia Social pela
à vida acadêmica, pois a própria vida religiosa também me UFAM. Voltarei a falar sobre essa questão mais à frente.
deixava angustiado, porque tinha que provar diariamente que Como informei anteriormente, participei do processo
tinha condições para seguir no caminho vocacional. seletivo para mestrado no final do ano de 2008. O processo
As coisas tomaram outro rumo, e hoje acredito no seletivo contava com quatro fases: homologação de projetos;
que certa noite, falou o padre João Benedito da Cunha: “Não prova de conhecimentos gerais; entrevista e prova de língua
só queremos que venham para nossas casas para se tornarem estrangeira, no caso, a língua inglesa. Passei nas três fases,
salesianos padres, mas também para serem ‘bons cristãos e mas, na última fase, quando realizei a prova de língua es-
honestos cidadãos’.” Por decisão particular, e aval da direção, trangeira, não consegui, mas no edital essa fase já não re-
me desliguei da vida religiosa salesiana em 2008, ano em que provava. Assim, já estava garantido entre os 11 candidatos
concluí também o curso de Filosofia. Nesse mesmo período, selecionados, no caso, a última vaga foi minha, e, em 2009,
precisamente entre os meses de novembro e dezembro, parti- iniciei o mestrado, único indígena na turma. Aliás, em todo
cipei do processo seletivo e consegui passar para o mestrado o percurso de minha formação acadêmica, procurei enca-
em Antropologia Social pela UFAM, turma 2009. Fato é que rar como qualquer outra pessoa, inclusive, quando iniciei as
as coisas foram fluindo de acordo com minha capacidade e aventuras acadêmicas na UFAM, ainda não havia as políticas
dedicação acadêmica. afirmativas. No Programa de Pós-graduação em Antropolo-
Esses dois universos acadêmicos passaram a ser gia Social da Universidade Federal, por exemplo, as políticas
importantes, na medida em que me formava pensando a mi- afirmativas foram implantadas a partir do processo seletivo
nha própria cultura, isso precisamente em Antropologia. Em de 2011, quando ingressaram quatro alunos indígenas. Isso,
certo momento, na graduação, deparei com o livro de Werner a princípio, foi uma conquista, mas infelizmente, em 2015,
Jaeger (2003), Paideia: a formação do homem grego, e pre- o programa foi impedido de realizar processo seletivo dife-
cisamente foi a partir da leitura desse livro que passei a de- renciado, e esperamos que esse obstáculo seja logo resolvi-
senvolver meu Trabalho de Conclusão de Curso, praticamente do, para que as oportunidades acadêmicas na antropologia
tentando pensar na formação do homem Tukano, um desafio possam continuar disponíveis. A justificativa que encontraram
e tanto. Serviu de inspiração para o retorno ao conhecimento é que a Política de Cotas não era autoaplicável à pós-gra-
Tukano, porque, até então, tentava ser o que não podia ser duação. Essa decisão foi tomada com base no parecer da
no contexto urbano. Significa que em certo momento cheguei Procuradoria Federal da instituição, que dizia que “a reserva
a querer negar que era Tukano, falante de uma língua, com de vagas para ingresso nas universidades federais para auto-
história e cultura própria. Mas quando me arriscava em fa- declarados pretos, pardos e indígenas só alcança a graduação
lar, logo outras pessoas que se consideravam não indígenas como expressamente estabelecido na Lei nº 12.711, de 29 de
vinham com pensamentos e discursos preconceituosos. Par- dezembro de 2012”. A Lei nº 12.711, mais conhecida como
ticularmente, sempre tive ódio de pessoas que perguntavam Lei das Cotas, é de 29/8/2012.1
por que eu estava na faculdade, muito mais ainda quando Sem dúvida, as políticas afirmativas no Brasil estão fa-
pediam para falar alguma coisa em minha língua, porque não zendo diferença nas universidades, inclusive para mim, que in-
adiantava eu falar em língua se a pessoa que me fazia a per- gressei no Curso de Doutorado pelo Programa de Pós-graduação
gunta ou que pedia para que eu falasse em minha língua, não em Antropologia Social da UFSC. Mas também esse sistema
entendia. Creio que o maior desafio mesmo foi (está sendo) passou a ser um desconforto para muitos, assim como o pró-
na academia, a partir do momento em que passei a estudar prio choque cultural entre os conceitos teóricos da ciência e
minha própria cultura. os conceitos teóricos indígenas.
No primeiro momento pensei que, por ser Tukano, Particularmente, entendo que para mim o choque
seria fácil estudar minha própria cultura e em termos de no- cultural entre as “teorias” indígena e a científica tem ocorrido
ções que condicionavam para pensar as histórias de forma- dentro do processo de formação em que assumo dentro do
ção Tukana. É claro, ouvir as histórias por meio da oralidade aspecto de direitos e deveres, isto é, que na universidade o
parece não ser tão difícil, mas pensar sobre isso e com isso
é que é o grande desafio. Desse ponto de vista, não tive tanta
produtividade na graduação, pois, no meu entender, a filosofia
não deu muito espaço para o pensamento Tukano que eu ten- 1
 Disponível em: <http://amazoniareal.com.br/ufam-cancela-cotas-
tava entender e aprofundar, mas tudo que foi possível consegui -para-alunos-indigenas-e-negros-da-pos-graduacao/>. Acesso em
desenvolver, aliás, foi a partir disso que dei o passo seguinte, 20/06/ 2015.

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acadêmico indígena tem direitos e deveres. De forma que os É importante sempre construir
direitos passam pelo acesso e à integração nas universidades,
por exemplo. Ao passo que os deveres passam pela respon- um diálogo entre o conheci-
sabilidade que o acadêmico indígena assume, investindo nos mento indígena e o que vem
estudos ou pelo menos tentando se adequar e acompanhar o
ritmo de estudo universitário, pois, pelo contrário, o que se tem da universidade. Mais do que
são as evasões numerosas. É importante sempre construir um isso, é necessário uma aber-
diálogo entre o conhecimento indígena e o conhecimento que
vem da universidade. Mais do que isso, é necessária uma tura entre os dois universos,
abertura entre os dois universos, indígena e universidade. Isso indígena e universidade. Isso
porque nós mesmos, indígenas, muitas vezes estamos subor-
dinados ao sistema de “ostracismo cultural”. Vale ressaltar porque nós mesmos, indíge-
que esse ponto de vista advém de minha experiência particu- nas, muitas vezes estamos
lar, aliás, muito mais inspirado pelo espírito de superação que
tive quando fui garimpeiro, pescador e vaqueiro. subordinados ao sistema de
Os desafios geralmente são em relação ao desem- "ostracismo cultural".
penho que condicionam para a obtenção de uma determinada
nota. Dentro do Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social da UFAM, por exemplo, não havia a forma de tratar com excluído do curso. Parece que gerou uma tensa discussão entre
diferenças no desempenho acadêmico, isto é, na sala de aula os membros do colegiado, claro, não presenciei isso, mas ouvi
eu era como todos os demais colegas: discente de mestrado. através de outros colegas. Isso fez com que o próprio colegiado
Meus professores não tinham pena de mim, não me tratavam ficasse dividido entre os que defendiam minha permanência e
diferente, o que eles queriam ver era meu desempenho. Em os que defendiam minha exclusão. Mas não foi preciso essa
nenhum momento tive em mãos um texto diferenciado e es- ideia seguir em frente, porque, após esse episódio, me preparei
pecífico para minhas leituras ou uma avaliação diferenciada melhor para fazer boa prova em língua inglesa. Acho que só foi
em relação a outros colegas. Mas hoje está em discussão o para aquela prova, pois os desafios continuaram.
processo de avaliação diferenciada para os indígenas nas uni-
versidades. Entendo que essa discussão vai longe ainda, uma
vez que esse sistema de avaliação diferenciada ainda não se PESQUISANDO A PRÓPRIA CULTURA
constituiu bem nas próprias escolas de educação básica das
aldeias indígenas. Em termos da verbalidade, não é difícil falar de
Assim como subia todos os dias na Serra Traíra (Ga- valorização da cultura indígena. Aliás, se ouve muito hoje
rimpo Tukano) como pequeno garimpeiro, para chegar ao lo- sobre manutenção, preservação, resgate, revitalização e va-
cal de trabalho, ou quando saía todas as manhãs com minha lorização das culturas indígenas, praticamente são questões
canoinha pelos rios Ayuana e Uinewixi, para tentar aumentar que envolvem as lutas pelos direitos indígenas. De fato, são
o volume de peixe para venda, bem como quando atravessava temas de suma importância, na medida em que estão em
o Rio Negro, junto com meu pai todas as manhãs em dire- jogo as reivindicações dos direitos indígenas garantidos pelo
ção à cidade de Santa Isabel do Rio Negro para trabalharmos Constituição Federal de 1988. E, essas iniciativas têm pro-
na vacaria dos padres salesianos, entendia que meu esforço porcionado novos rumos para questões indígenas, pois, en-
acadêmico na universidade não tinha que ser diferente do de volvem discursos políticos de abrangência regional, nacional
outras pessoas, pois, para um bom proveito, era necessário e internacional.
mergulhar nas leituras, mesmo que muitas vezes não tivesse Como não tenho muito espírito político para estar à
entendido nada. frente dessas discussões, resolvi investir, a partir da minha
Esse esforço não é suficiente também, principalmen- formação acadêmica, na pesquisa sobre minha própria cultu-
te, porque “sofro” com as línguas estrangeiras, como inglês ra. Esse exercício antropológico tem proporcionado um novo
e francês. Aliás, precisei fazer três provas para poder passar desafio, o de me formar em Antropologia pensando minha
na prova de conhecimento de língua estrangeira no mestra- própria cultura, Tukana. Em certo momento, pensei que seria
do. Isso criou um desconforto no colegiado, pois, para alguns fácil, pelo fato de eu próprio ser Tukano falante da língua.
professores, era um problema sério, e, portanto, eu deveria ser Mas o que a experiência tem-me mostrado até agora é que

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o grande desafio é a relação da oralidade para a escrita. Isto Dito de outro modo, as noções antropológicas continuam
é, transformar o sistema narrativo para o sistema acadêmico. prevalecendo sobre as teorias indígenas, e por isso é muito
Geralmente, o sentido de transformação é constante importante o ingresso dos indígenas na Antropologia para a
no contexto indígena, isso desde as histórias ancestrais. Nesse construção de um diálogo mais reflexivo.
sentido, uma narrativa indígena como tipo permanece o mes-
mo, o que muda são as pessoas, isto é, um tipo permanente
que nunca é o mesmo. Fato é que não é difícil fazer uma gra- CONSIDERAÇÕES FINAIS
vação, o desafio, no entanto está no acesso a esses arquivos,
pois, se grava, guarda em arquivos nos computadores, note- Penso que a Antropologia vive novos tempos com
book, cartão de memória, gravadores, filmadoras. São novos as questões indígenas, e que dentro de sua especialidade
tempos, com novos desafios, em que a prática de gravação científica tem contribuído muito com as questões culturais
parece ser uma alternativa, mas ao mesmo tempo podendo indígenas. Hoje, com o ingresso de indígenas na antropologia
ser um mecanismo de pura mercantilização acadêmica. percebe-se que se inicia nova fase, com novas maneiras de
De fato, existe essa preocupação por parte dos nar- fazer Antropologia, dos próprios indígenas. É claro que os de-
radores Tukano, especificamente daqueles que realmente são safios também vêm junto.
detentores dos conhecimentos Tukano sobre kirtí (histórias), Minha proposta aqui não era fazer grandes balanços
kumuasse (benzimentos), bayasse (músicas) e yayasse (xa- teóricos, mas compartilhar a experiência acadêmica que ve-
manismo). A preocupação é sempre pela continuidade e for- nho vivenciando nos últimos nove anos. Creio que as ideias
ma de valorização precisa sobre seus conhecimentos. Outro compartilhadas no presente texto ainda são bem simples e
desafio é o próprio domínio das teorias Tukana, e o acesso por isso precisam ser amadurecidas cada vez mais. Não tive a
às histórias é uma das alternativas, isto é, é ouvindo kirtí que intenção de construir a crítica sobre o exercício da Antropolo-
se chega à base de conhecimento Tukano para pensar em gia, aliás sinto orgulho hoje por ser Antropólogo, pode ser um
“teorias” Tukano. Parece que isso é de suma importância, pois motivo bobo, mas cultuo essa profissão com muita satisfação.
ouvir a narrativa é muito bom e ao mesmo tempo desgastan- Sempre existem angústias, em se tratando do re-
te, na medida em que toda narrativa como tipo é o mesmo, conhecimento teórico do conhecimento indígena nas uni-
mas o exercício da reflexividade mostra que cada palavra oral versidades. Muitas vezes, quando participo de palestras, fico
da narrativa é uma continuidade do que foi, do que é e do pensando se aquilo que estou falando para uma plateia está
que será. As palavras da oralidade são assim partículas in- sendo valorizado ou se aquelas pessoas estão ali por obriga-
terconectadas do universo natural para o universo humano. ção acadêmica, aliás, isso não é novidade nas universidades.
Por isso, o desafio é justamente o acesso a esses arquivos, e Creio que a responsabilidade maior está nas mãos dos pró-
certamente é o processo que vai trazer novo modelo e método prios indígenas nas universidades, trazendo a discussão e a
de fazer Antropologia no Rio Negro, a partir daquilo a que reflexividade das teorias indígenas nas universidades.
me referia anteriormente, isto é, se “formar em Antropologia Vale ressaltar que essa linha de discussão é muito
pensando minha própria cultura”. voltada para as questões das teorias indígenas, como foi dito
A questão é que isso, dentro do aspecto da antropo- anteriormente; por não ter muito um discurso de espírito polí-
logia clássica, sempre foi pensado a partir de coleta de dados tico, resolvi seguir no exercício de um retorno para as teorias
das narrativas com base no exercício etnográfico. Não estou Tukana a partir da Antropologia. Geralmente um discurso de
dizendo que isso foi ruim, mas uma coleta de dados parece espírito político indígena é muito tenso, e requer uma base
que é também um sinônimo de limitação, quando o processo de conhecimento das leis para o diálogo com as propostas
de análise passa a ser um exercício de conhecimento científi- constitucionais. É um investimento acadêmico necessário
co. Ou seja, as partículas do conhecimento indígena acabam também. Mas creio que o percurso acadêmico que faço é
muitas vezes se dissolvendo entre tantas análises científicas. de grande validade, ainda mais quando se trata de tempos
Aliás, o desafio maior, no meu ponto de vista, é o próprio re- contemporâneos.
conhecimento de o que o universo acadêmico precisa dar Particularmente, mais do que me tornar/formar um
ao universo das teorias indígenas. Isso porque o que ainda antropólogo na universidade o desafio maior é me tornar um
prevalece sobre as teorias de conhecimento indígena são os yaí (pajé) como meu avô Kuriano, um bayá (mestre de música
fundamentos de conhecimento científico. E, no caso da An- e rituais) como meu tio José Barreto, um kumu (benzedor)
tropologia, sua constituição científica como área das ciências como meu pai Luciano Barreto e um ótimo antropólogo, como
humanas se deu com base nas teorias do universo indígena. tantos antropólogos.

42
RESULTADOS E DESAFIOS DA INCLUSÃO
DE ESTUDANTES INDÍGENAS PELA POLÍTICA
DE AÇÕES AFIRMATIVAS DA UFSC
Antonella Tassinari *

INTRODUÇÃO Adequações à Lei de Cotas foram feitas a cada ano,


envolvendo debates sobre a permanência de algumas espe-
Este artigo reflete sobre os desafios da inclusão de cificidades da Política de Ações Afirmativas da UFSC, espe-
estudantes indígenas no ensino superior a partir da experiên- cialmente sobre a manutenção das cotas para o segmento
cia do Programa de Ações Afirmativas da Universidade Fede- “negro”, das vagas suplementares para “pertencentes a po-
ral de Santa Catarina (PAA/UFSC), no período de 2008-2015. vos indígenas” e das bancas de verificação das autodeclara-
Criado por meio da Resolução Normativa nº 008/CUN/2007, o ções. Estas foram suprimidas para o segmento “negro” em
PAA previa reserva de 20% de vagas para candidatos oriun- 2013, mas mantidas para as vagas suplementares. Em 2015,
dos de escolas públicas, 10% para negros, além de cinco foram abertas também nove vagas suplementares para “qui-
vagas suplementares (a serem ampliadas anualmente) para lombolas”, seguindo a experiência das vagas para indígenas,
“pertencentes a povos indígenas”. Após cinco anos de sua com banca de validação da autodeclaração (Resoluções 033/
implantação, uma avaliação interna propõe algumas mudan- CUN/2013, 041/CUN/2014, 052/CUN/2015).
ças e o programa passa a ser reconhecido institucionalmente Uma análise realizada pelo Núcleo de Estudos de Po-
como uma política de ações afirmativas (Resolução nº 022/ pulações Indígenas (NEPI), sobre os ingressantes pelas vagas
CUN/2012). suplementares para indígenas para subsidiar a avaliação dos
No mesmo ano, com a implementação da Lei nº cinco primeiros anos do PAA, alertava para:
12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, a PAA/UFSC
passou por adaptações que incidiram principalmente nas
duas primeiras modalidades, sendo que as vagas suplemen- (...) necessidade de melhorias, tanto para a efetivação do
tares para candidatos indígenas continuaram a ser oferecidas, preenchimento das vagas, quanto para a garantia da per-
em número crescente, ao lado da reserva de vagas destina- manência dos estudantes no ensino superior. Se conside-
da pela referida lei ao segmento “pretos, pardos e indígenas/ ramos que 44 indígenas se candidataram às 35 vagas ofe-
PPI” (Resolução nº 026/CUN/2012). A diferença entre essas recidas para indígenas de 2008 a 2012, somente 8 efeti-
duas modalidades é grande: as vagas suplementares são
varam sua matrícula e apenas 6 se mantêm no curso, veri-
destinadas a candidatos “pertencentes a povos indígenas”
ficamos a necessidade urgente de revisão dos mecanismos
com qualquer percurso escolar e são abertas nos cursos es-
de Ações Afirmativas para indígenas na UFSC. (Tassinari et
colhidos pelos candidatos mais bem classificados, sendo o
al, 2012, p.11)
máximo de três vagas por curso, não havendo concorrência
com os vestibulandos das outras modalidades. Os candidatos
selecionados para estas vagas passam por uma comissão de
O documento propôs, entre outras coisas, um pro-
verificação de sua autodeclaração. Nas vagas PPI, destinadas
cesso seletivo específico, estratégias de divulgação que atin-
somente a candidatos que cursaram o ensino médio em es-
jam os estudantes de escolas indígenas e programas de as-
colas públicas, aqueles autodeclarados indígenas concorrem
sistência e acompanhamento, visando garantir a permanência
com os candidatos autodeclarados pretos e pardos e não há
desses estudantes na UFSC.
qualquer verificação de sua autodeclaração.
Após essa avaliação, lamentavelmente, não houve
mudanças significativas no PAA/UFSC para reverter esse
quadro. Um expressivo aumento no número de inscrições de
*  Professora do Departamento de Antropologia da Universidade Fede- indígenas e do preenchimento dessas vagas suplementares,
ral de Santa Catarina (UFSC) e membro da Comissão de Acompanha- nos anos de 2012 a 2015, pode ser atribuído às iniciati-
mento do Programa de Ações Afirmativas (PAA/UFSC). vas de docentes vinculados ao NEPI, realizadas por meio de

43
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

programas de extensão financiados pelo PROEXT/MEC.1 foram convidadas a participar de alguns seminários ao longo
Entre essas iniciativas, destacam-se o Projeto Observatório desse processo.
das Ações Afirmativas da UFSC2 (que busca registrar expe- O Seminário “Cotas e Ações Afirmativas na Univer-
riências de vida e trajetórias escolares de alunos ingressos sidade Federal de Santa Catarina”, realizado pela CADSE em
nos vários segmentos do PAA/UFSC, visando obter infor- 1º/06/2006, reuniu convidados de várias universidades que
mações qualitativas que permitam melhor conhecer o perfil expuseram suas experiências com ações afirmativas. Na oca-
desses estudantes, suas expectativas e demandas especí- sião, representantes Xokleng e Kaingang apresentaram suas
ficas frente ao ensino superior) e o Projeto Oficinas em Es- reivindicações a respeito da inclusão de indígenas na UFSC:
colas Indígenas3 (que visa realizar oficinas pedagógicas em
escolas indígenas de Santa Catarina a fim de promover, junto
à comunidade escolar, momentos de diálogo sobre questões (...) reserva de 18 vagas para as etnias Xokleng, Kaingang e
relativas à igualdade étnico-racial, ações afirmativas e cur- Guarani na UFSC; grupo de acompanhamento de estudantes
sos universitários). indígenas; convênios com os governos estadual e federal para
A partir deste conjunto de experiências relacionadas manutenção dos estudantes indígenas; projetos de pesquisa
à PAA/UFSC, busco, a seguir, sistematizar alguns resultados e sobre a questão indígena; vestibular diferenciado para indíge-
desafios da inclusão de indígenas no ensino superior.
nas; isentar os indígenas do Enem; priorizar vagas para os in-
dígenas catarinenses. (Tragtenberg 2012, p.243)
OS DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO DE INDÍGENAS
NA ELABORAÇÃO DO PAA/UFSC
Após o encontro, a CADSE organizou um grupo de
O Programa de Ações Afirmativas (PAA) é implantado trabalho para tratar especificamente do acesso de indígenas,
na UFSC no vestibular de 2007, após um “período de gesta- composto por docentes e discentes pesquisadores das po-
ção” que tem início em 2002, impulsionado por membros do pulações indígenas de Santa Catarina, organizações não go-
movimento docente Associação dos Professores da Universi- vernamentais e Secretaria Estadual de Educação. Esse grupo
dade Federal de Santa Catarina (APUFSC) e Sindicato Nacio- efetuou uma pesquisa sobre os cerca de 70 estudantes au-
nal dos Docentes das Instituições de ensino superior (ANDES- todeclarados indígenas classificados no vestibular de 2006
-SN) e do movimento negro de Santa Catarina, por meio da e concluiu que “nenhum era vinculado a um povo indígena:
constituição de grupos de trabalho e realização de seminários, eram simpatizantes da cultura indígena ou tinham ascendên-
conforme descrito detalhadamente por Tragtenberg (2012). cia longínqua de indígenas. Não havia indígenas nos cursos
Em 2006, finalmente, a discussão sobre as ações afirmativas de graduação da UFSC”. (Id.ib., p.246)
é institucionalizada na UFSC, pela criação da Comissão para A CADSE elaborou uma primeira proposta que, dis-
Acesso com Diversidade Socioeconômica e Étnico-Racial (CA- cutida em diversas instâncias da UFSC, deu origem à formu-
DSE), composta por docentes de vários departamentos e da lação da Resolução Normativa nº 008/CUN/2007. A resolução
Comissão Permanente do Vestibular (COPERVE), representan- versa sobre o processo de seleção e também sobre medidas
tes do movimento negro e da Secretaria de Estado da Educa- de assistência e acompanhamento dos alunos cotistas. Além
ção (SED). Lideranças indígenas do estado de Santa Catarina das cotas para estudantes oriundos do ensino fundamental e
médio públicos (20%) e para estudantes com fenótipo negro
(10%), a resolução contempla estudantes que “pertençam aos
povos indígenas” em seu artigo 2º, inciso III. O artigo 9º, prevê
1
  Edital PROEXT 2012: Promoção da Igualdade Étnico-Racial no En- a criação de “cinco vagas suplementares que serão preenchi-
sino Superior (Coordenação de Antonella Tassinari); Edital PROEXT das pelos candidatos mais bem classificados no vestibular”,
2013: Ações Afirmativas para a Promoção da Igualdade Étnico-Racial
sendo criadas novas vagas a cada ano, até um total de 10
no Ensino Superior (Coordenação de Marcelo Tragtenberg); e Edital
vagas em 2013. As vagas são criadas nos cursos de escolha
PROEXT 2014: Indígenas e Negros no Ensino Superior e em Acervos
Virtuais (Coordenação de Edviges Marta Ioris).
dos candidatos, no máximo de duas vagas por curso por ano.4
2
  Este projeto foi idealizado e coordenado por José Nilton de Almeida,
em 2012, e por Antonella Tassinari, em 2013-2014.
3
  Projeto coordenado por Suzana Cavalheiro de Jesus, em 2012, e 4
  A Resolução nº 022/CUN/2012, após cinco anos, acrescenta novas
por Edviges Marta Ioris, em 2013-2014. três vagas/ano e amplia o máximo de vagas para três por curso.

44
TABELA 1
INSCRIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DE CANDIDATOS AUTODECLARADOS INDÍGENAS
PAA/UFSC – VAGAS SUPLEMENTARES (2008-2015)
Ano de ingresso 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 Total
Inscritos 7 14 7 3 13 17 136 96 293
Aprovados 3 2 1 2 6 7
57
26 1 46
Classificados 3 2 26 2 5 4 13 168 47
Matricula Inicial 3 1 5
2 2 2 5
4 12 16 43
Vagas Oferecidas (Suplementares) 5 6 7 8 9 10 13 16 74
Ocupação das vagas 60% 16,6% 28,5% 25% 22,2% 40% 92,3% 100% 56%
Relação candidatos/ vagas 1,4 2,3 1 0,37 1,44 1,7 10,46 6 3,9

Fonte: Tassinari et al, 2013; e dados da COPERVE/UFSC (2014 e 2015).

A questão do pertencimento étnico, ou seja, reconhe- contra a realização de um processo seletivo diferenciado
cer-se e ser reconhecido como membro de um povo indígena, para indígenas.
(Barth, 1969) e não somente ter ascendência indígena, foi a Ao acompanhar, ao longo desses anos, as tentativas
chave encontrada pela CADSE para definir o perfil dos estu- de inscrição no processo do vestibular, observamos que os de-
dantes que poderiam se candidatar às vagas suplementares. safios encontrados pelos candidatos indígenas são de diversas
Esse vínculo deveria ser comprovado junto a uma comissão ordens, que vão muito além do sucesso na prova em si. Des-
institucional de verificação da autodeclaração de indígenas.5 6 tacamos: falta de acesso às formas usuais de divulgação do
Observa-se, nesse processo inicial, o desafio da par- vestibular; falta de acesso à rede internet para a realização da
ticipação do movimento indígena para a elaboração do PAA/ inscrição on-line; dificuldade de transporte até os locais da pro-
UFSC. Residentes em aldeias localizadas em diferentes muni- va; a língua portuguesa como segunda língua, em alguns casos.
cípios de Santa Catarina, a participação de lideranças dos três A Tabela 1 apresenta dados de inscrição e classifica-
povos indígenas presentes no estado (Kaingang, Xokleng e ção dos candidatos ingressos pelas vagas suplementares do
Guarani) só foi possível em alguns momentos pontuais, como PAA/UFSC de 2008 a 2015. Os estudantes que ingressaram
os seminários organizados pela APUFSC e pela CADSE/UFSC. pela modalidade “pretos, pardos, indígenas” (PPI), que passou
a vigorar a partir de 2013 seguindo a Lei de Cotas, não estão
contabilizados nesta tabela.
BARREIRAS DO VESTIBULAR: ACESSO À INFORMAÇÃO, Como se pode notar, os resultados dos primeiros
INSCRIÇÃO, TRANSPORTE E LÍNGUA7 8 anos dessa política de inclusão de indígenas na UFSC foram
muito frustrantes. As poucas vagas ofertadas não foram pre-
A demanda de um processo seletivo específico, rea- enchidas por uma somatória de fatores, que incluíram: a baixa
lizada pelas lideranças indígenas no início do processo e rei- procura das vagas, a não aprovação no vestibular e alguns
terada em diversos momentos de avaliação, nunca foi con- casos de autodeclaração não validadas (que serão tratados
templada pela UFSC. Segundo Tragtenberg, naquele primeiro no próximo item). Foram esses resultados que levaram alguns
momento, “o argumento que prevaleceu foi o de economia” docentes a elaborarem os programas de extensão menciona-
(2012, p.246) e esse continua sendo o principal argumento dos acima (ver notas 2 a 4).
Em relação ao baixo número de inscritos, observou-
-se que as costumeiras formas de divulgação do vestibular
realizadas pela UFSC não estavam atingindo o alunado das
5
  Um candidato teve a auto declaração não validada.
aldeias. Entendemos que a falta de acesso às informações era
6
  Houve uma classificação por vaga remanescente do Enem. uma primeira barreira desse processo. A partir de 2012, por
7
  Mais aprovados em Medicina do que o número máximo de vagas meio do PROEXT/MEC, foram organizadas oficinas em aldeias
previsto por curso. indígenas Guarani, Xokleng e Kaingang, buscando discutir
junto aos estudantes questões relativas às ações afirmativas,
8
  O número corresponde também a candidatos ingressos por vagas
igualdade étnico-racial e ensino superior.
remanescentes.

45
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

Alguns aspectos que se destacaram destas oficinas Analisando os dados da COPERVE a respeito dos 30 candida-
foram: o grande número de indígenas que terminam o ensino tos não aprovados nos vestibulares de 2007 a 2011, observa-
médio e buscam a educação superior em instituições privadas mos que a ausência nos dias de provas (10) e questões asso-
mais próximas das aldeias; o interesse dos jovens indígenas ciadas à língua portuguesa constituíram os principais motivos
por uma gama ampla de cursos, para além dos cursos que de reprovação. Considerando que os candidatos podem ser
são mais procurados no vestibular (Medicina, Direito, Enge- reprovados por mais de um motivo, temos:
nharias); a impossibilidade de realizar a inscrição on-line9 nas
aldeias; a falta da documentação solicitada para a inscrição e
para a solicitação de isenção da taxa do vestibular; o interesse Significativa incidência de reprovação nas questões associa-
em cursos preparatórios para o vestibular, por meio dos quais das à Língua Portuguesa e Literatura em Língua Portuguesa
possam melhor compreender as regras de realização da prova. (7), ao conjunto das questões discursivas (6) e à Redação (3),
No final de 2012, lideranças indígenas protocolaram com 16 ocorrências; falta (10); insuficiência de acertos (9); e
um documento10 na Reitoria da UFSC solicitando a possibili- zero em uma ou mais disciplinas (4) são ocorrências que apa-
dade de realização de inscrições no vestibular por formulários
recem na sequência. (Tassinari et al, 2013, p.224)
de papel, enquanto não fosse realizado processo seletivo di-
ferenciado. Após discussões junto à COPERVE, essa demanda
foi considerada inexequível por questões técnicas do sistema
Numa análise sobre o público atendido pelas Oficinas
de informática. Como medida alternativa, a equipe do projeto
em Escolas Indígenas (PROEXT/MEC) em 2013/2014, Finateli
Oficinas em Escolas Indígenas, coordenada por Edviges Ioris,
(2014) aponta que as faltas em um ou mais dias do vestibular
elaborou formulários com todos os dados necessários para a
chegaram a ser o motivo de 50% das reprovações.
inscrição, distribuiu os formulários nas aldeias, em colabo-
O transporte para a realização do vestibular é, efeti-
ração com as direções das escolas indígenas e esses dados
vamente, uma importante barreira para o ingresso de indíge-
foram posteriormente incluídos no sistema, destacando-se o
nas. Considerando que o sistema de inscrições nem sempre
protagonismo de Marcelo Finateli, então bolsista do projeto.
relaciona os candidatos de uma mesma aldeia para os mes-
Essa estratégia garantiu um aumento considerável de can-
mos locais de prova, e considerando as dificuldades de trans-
didaturas indígenas, pulando de 17 inscrições (no vestibular
porte das aldeias até esses locais, fica evidente a necessidade
2013) para 13611 (2014). Isso comprovou que o baixo número
de medidas para superar essa barreira.
de inscrições dos anos anteriores, que chegou a 0,37 candi-
A respeito da língua portuguesa, tivemos dois mo-
datos/vaga em 2011, não refletia a demanda existente por
mentos muito frustrantes ao longo desses anos, quando a
educação superior (que chegou a 10,46 candidatos por vaga
COPERVE aumentou as notas de corte das provas, indo de
em 2014), mas era fruto dessa segunda barreira do vestibu-
encontro às iniciativas de um vestibular mais inclusivo. No
lar: a forma de inscrição on-line.
vestibular de 2009, tivemos apenas duas aprovações, entre
A respeito dos motivos das reprovações dos candi-
as 14 inscrições, a maior parte devido às alterações na nota
datos que conseguiam superar as barreiras iniciais, um pri-
de corte e nos critérios de reprovação na prova de Língua
meiro levantamento foi realizado por Tassinari et al (2013).
Portuguesa. Um relatório sobre a questão, apresentado pela
Comissão de Acompanhamento do PAA/UFSC, apontava:

9
 Mesmo em aldeias vinculadas a programas de inclusão digital,
como é o caso da aldeia Guarani Itaty, em Morro dos Cavalos, obser- (...) considerando que os indígenas não têm a língua portu-
vamos que o acesso é intermitente e os formulários de inscrição, sen-
guesa como língua materna, e que suas línguas são oficial-
do muito longos e não tendo possibilidade de serem salvos durante o
preenchimento, são perdidos a todo momento. mente reconhecidas pelo estado; considerando ainda a im-
possibilidade de realizar o vestibular nas suas línguas nati-
  Documento resultante do Seminário “Universidade e Educação Su-
10
vas, pleiteia-se um tratamento diferenciado aos candidatos
perior Indígena: desafios para inclusão de qualidade e construção de
um espaço intercultural de produção e trocas de saberes” organizado indígenas no vestibular no que se refere à língua portuguesa:
por AntonellaTassinari, Edviges Marta Ioris e José Nilton de Almeida no redução das notas de corte das provas de português e reda-
âmbito do PROEXT/MEC em 10 e 11/12/2012. ção para os valores de 2008 (ou seja, para 3,0); redução do
  Sendo 109 o número de inscritos atendidos pelo projeto. (Finateli,
11 critério de “insuficiência de acertos” para os valores de 2008
2014) (ou seja, de 20 pontos). Pleiteia-se, ainda, o oferecimento de

46
cursos específicos de língua portuguesa para os indígenas
Ao acompanhar, ao longo desses
egressos no PAA. (Tassinari, 2009, p.2)
anos, as tentativas de inscri-
ção no processo do vestibular,
Essa solicitação foi acatada pela COPERVE no vesti-
bular seguinte, no que diz respeito à manutenção das notas observamos que os desafios
de corte iniciais. Porém, no vestibular 2015, uma nova altera- encontrados pelos candida-
ção ocorreu, com o aumento das notas de corte das demais
disciplinas, de forma que somente um candidato indígena foi tos indígenas são de diversas
aprovado, entre os 96 inscritos. Nesse ano, as vagas suple- ordens, que vão muito além do
mentares só foram preenchidas porque alguns candidatos in-
dígenas que haviam se inscrito no vestibular se candidataram sucesso na prova em si.
novamente ao processo seletivo para as vagas remanescen-
tes da UFSC.
Com isso, destacamos que o processo seletivo do A formulação “pertencentes a povos indígenas” visa
vestibular tem sido extremamente impeditivo para a efetiva garantir um vínculo dos candidatos com seu povo de origem
inclusão de indígenas na UFSC, principalmente em virtude das para essas poucas vagas que, em tese, teriam menos concor-
barreiras apontadas acima: as dificuldades para o acesso às rência e seriam mais acessíveis. As comissões de validação
informações, forma de inscrição on-line, transporte para os da autodeclaração têm observado esse vínculo por meio de
locais de prova e língua portuguesa como segunda língua. documentação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) ou de
Apesar de todas as barreiras, os dados da COPERVE correspondência de lideranças indígenas que reconhecem os
indicam que duas candidatas Xokleng, que se inscreveram candidatos como membros de um povo. A residência fora das
para as vagas suplementares, acabaram sendo aprovadas aldeias ou não saber falar uma língua indígena não são impe-
pela classificação geral (em 2014, no curso de Educação Físi- dimentos para a ocupação dessas vagas. No entanto, houve
ca e, em 2015, nas vagas remanescentes para Educação no casos de candidatos que não demonstraram qualquer vínculo
Campo), um resultado bastante promissor. com a população indicada, inclusive um caso referindo-se a
população não residente no Brasil.13
Nos primeiros anos do PAA/UFSC, observamos que
O PERFIL DOS ESTUDANTES INDÍGENAS DA UFSC os poucos ingressos nas vagas suplementares eram indíge-
INGRESSOS PELO PAA – VAGAS SUPLEMENTARES12 nas que já residiam em centros urbanos e que cursaram es-
colas fora das aldeias durante todo ou parte significativa do
Como apontado acima, o grupo de trabalho que sub- percurso escolar. Principalmente das etnias Xokleng e Kain-
sidiou a CADSE para a formulação do PAA/UFSC avaliou a im- gang de Santa Catarina, além de um Tikuna e um Wapixana,
portância de garantir vagas suplementares para atender uma que tinham contatos com familiares residentes no estado.
demanda do alunado egresso do ensino médio nas aldeias O número de homens e mulheres é equilibrado e há prevalên-
indígenas de Santa Catarina, conforme demanda de lideran- cia de estudantes solteiros e sem filhos.
ças Guarani, Kaingang e Xokleng. No entanto, tratando-se de A partir de 2013, esse perfil começa a sofrer alte-
uma instituição federal, as vagas não puderam se restringir rações, passando a incluir os primeiros estudantes Guarani,
aos indígenas do estado e têm também sido preenchidas, em assim como alunos que fizeram todo o ensino fundamental
menor número, por indígenas de várias partes do Brasil. e médio em escolas das aldeias. Outra mudança ocorreu em
virtude da especificidade do PAA/UFSC em relação à Lei de

12
  Este item analisa somente dados sobre estudantes indígenas in-
gressos pelo PAA/UFSC na modalidade de vagas suplementares, não 13
  Em virtude disso, após avaliação dos primeiros cinco anos de ex-
considerando os ingressantes pelas vagas PPI nem os alunos do Curso periência, essas vagas passaram a ser especificadas como “perten-
de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, que centes aos povos indígenas residentes no território nacional e trans-
teve início em 2011 e formatura realizada em 2015. O curso, com um fronteiriços” (Resolução nº 022/CUN/2012), considerando que não
ingresso inicial de 120 estudantes Guarani, Kaingang e Xokleng, repre- seria possível atender ou comprovar o pertencimento de candidatos
sentou uma mudança efetiva na presença indígena na universidade. indígenas de outros países.

47
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

GRÁFICO 1 Engenharia Química, Engenharia Civil, Letras Espanhol, Jor-


ETNIAS DOS ESTUDANTES INGRESSOS PELO PAA/UFSC nalismo, Educação no Campo, Museologia, Ciências Sociais,
VAGAS SUPLEMENTARES (2008-2015) Antropologia, Cinema, Design, Farmácia, Fonoaudiologia, Nu-
trição e Odontologia.
1 1 Xokleng
1 Em relação ao motivo das escolhas desses cursos,
3 a maioria dos estudantes14 destaca a vontade de dar um
Kaingang
retorno para seu povo com os conhecimentos adquiridos.
Observamos, inclusive, que alguns estudantes que ingressa-
Guarani
5 ram nos primeiros anos do PAA/UFSC, e que haviam cresci-
Atikum do em centros urbanos para onde suas famílias migraram,
acabaram se engajando em projetos de extensão ou estágios
22 que os aproximaram de suas aldeias de origem, num percurso
Wapixana
semelhante ao que Oliveira (1998) definiu como “viagem da
5
Ticuna volta”. Esse foi um resultado bastante positivo e não esperado
do PAA/UFSC.
Terena
Fonte: COPERVE/UFSC. DESAFIOS PARA A PERMANÊNCIA DOS ESTUDANTES
INDÍGENAS
Cotas. Enquanto as vagas PPI previstas pela referida lei são
restritas para estudantes que cursaram o ensino médio em Após superar todos os desafios para o ingresso na
escolas públicas, as vagas suplementares da UFSC são aber- universidade, temos um alto índice de evasão dos candida-
tas a candidatos com qualquer percurso escolar. Isso motivou tos. Até 2012, dos nove candidatos indígenas matriculados,15
três candidatos Atikum e uma candidata Terena com esse per- dois haviam desistido. (Tassinari et al, 2012) Segundo Finateli
fil a se apresentarem ao vestibular a partir de 2013, embora (2014), de um conjunto de nove estudantes atendidos pelo
não tivessem parentes no estado. Projeto Oficinas em Escolas Indígenas que efetuaram a matrí-
Até 2015, continua equilibrado o número de homens cula na UFSC em 2014, apenas cinco continuavam matricu-
e mulheres, sendo que a prevalência de estudantes solteiros lados no segundo semestre. Isso indica que a taxa de evasão
e sem filhos se acentua, com o ingresso de vários estudan- aumenta significativamente em relação ao alunado oriundo
tes recém-egressos do ensino médio, alguns com apenas 17 das aldeias indígenas e aponta para a necessidade de medi-
anos. das específicas visando a permanência destes alunos.
A respeito da etnia dos estudantes ingressos du- Quanto aos motivos de evasão, são relatados: difi-
rante o período de 2008 a 2015, verificamos que a grande culdade para pagar o transporte da aldeia até a universidade;
maioria é Xokleng, seguida por Kaingang e Guarani. O núme- impossibilidade de conciliar trabalho e estudos (principalmen-
ro indicado no gráfico é menor que o número de inscrições te no caso dos estudantes casados e com filhos); saudades da
da tabela, pois temos vários casos de estudantes que refa- família; e sentimento de solidão na vida universitária e urbana.
zem o vestibular nos anos subsequentes, seja para mudar Conforme relata uma estudante:16
de curso, seja para reingressar após uma desistência, seja
garantir sua permanência na universidade por um período
mais longo.
Em relação aos cursos escolhidos, apontados no Grá-
fico 2, observamos a prevalência do curso de Medicina (nove
14
 Aqui e no próximo item consideramos as entrevistas realizadas
pelo Projeto Nenhum a Menos de bolsas do PPGAS/UFSC (2010 e
inscritos), que é o único curso em que há real disputa de vagas.
2011), pelo Projeto Observatório das Ações Afirmativas (2012-2014)
Nos primeiros anos, a procura por Direito também foi signifi-
e nas comissões de validação das autodeclarações de indígenas.
cativa (três inscritos) mas, atualmente, há outros cursos com
o mesmo número de inscrições: Agronomia, Educação Física   O número não corresponde ao que está na tabela, pois há reingres-
15

e Serviço Social. Houve duas vagas suplementares para indí- so de mesmo candidato em ano subsequente.
genas abertas nos cursos de Sistemas de Informações e Geo-   Não são feitas referências aos entrevistados para resguardar seu
16

grafia e uma vaga nos seguintes cursos: Engenharia Sanitária, anonimato.

48
GRÁFICO 2
CURSOS DOS ALUNOS INGRESSOS PELAS VAGAS
SUPLEMENTARES PARA INDÍGENAS (2008-2015)
9

3 3 3 3
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Fonte: COPERVE/UFSC.

A universidade não está preparada para receber estudan- na sala de aula, especialmente relativas ao questionamento
tes indígenas, negros e pessoas de escolas públicas. Faz da sua condição de indígenas:
seis anos que foram implantadas ações afirmativas, e ainda
acham que escola pública é pra estudantes de elite, eles não
estão preparados para a diferença na universidade, sendo que Não sofri muitas dificuldades. Eu sofri mais preconceitos.
há diferenças econômicas, sociais e tudo mais, eles não es- Tinha que ver como eu era antes, eu tinha o cabelo aqui as-
tão preparados estruturalmente. Inclusive, os professores não sim, cacheado, né? Devido à mistura. (...) Eles me olhavam
estão preparados pra isso, aí a gente acaba passando por cir- e diziam: “ah, fala alguma coisa aí para gente”. Como se eu,
cunstâncias desagradáveis... sendo índio, eu tenho que ser como índio, que falar como ín-
dio, eu tenho que me portar com alguns conceitos já formados.
Aquela coisa que a imagem, o semblante indígena, daquele
ser diferente de cara redonda e pele escura, tá muito embu-
Embora a UFSC tenha um programa de auxílios vi- tida na cabeças das pessoas. Quando eu falava que era in-
sando garantir a permanência do alunado de baixa renda, in- dígena, as pessoas tinham um estranhamento: “você é índio
cluindo vagas em moradia estudantil, auxílio-moradia, gratui- mesmo?” Sou!
dade no Restaurante Universitário e “bolsas permanência”, os
Quando falam, no caso, “tão usando roupa” e tal, eu fico tris-
alunos indígenas têm relatado a extrema dificuldade para se
te porque, no caso, se nossos direitos fossem garantidos, eu
candidatarem a esses auxílios, já que o “cadastro socioeco-
não precisaria estar aqui estudando para ter que trabalhar pra
nômico”, que deve ser preenchido e apresentado ao Serviço
Social da UFSC, exige uma série de dados e documentos que garantir os nossos direitos. Eles nos obrigam a sair das nos-
não fazem sentido para o contexto das aldeias indígenas. Fica sas terras indígenas pra depois nos apontarem, nos dão mo-
evidente a necessidade de um programa institucional especí- tivo pra sair de lá, estudar e ter os conhecimentos para lutar
fico de auxílios para a permanência dos estudantes indígenas. por direitos igualmente, pois hoje eu não posso mais usar as
Muitas das entrevistas apontam também para as armas como os antigos usavam, hoje temos que usar a arma
“circunstâncias desagradáveis” vivenciadas pelos estudantes do conhecimento, a mesma que eles usam contra a gente.

49
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

E usam disso também contra a gente de todas as maneiras “falar em celulares” seja um sinal de que alguém não é in-
possíveis, pois alegam que a gente, saindo das aldeias, eles dígena. Somados à ignorância, há casos de preconceito ex-
alegam que a gente não é mais indígena. plícito e hostilidades que reverberam nas salas de aula os
conflitos fundiários envolvendo indígenas em Santa Catarina.
Como na pesquisa feita por Sagaz (2015) com estu-
Além de serem constantemente cobrados a provar dantes negros na UFSC, vincular-se a projetos de extensão e
sua condição de indígenas, os estudantes relatam que muitas pesquisa ligados às populações indígenas ou negras tem sido
vezes se sentem excluídos dos círculos de amizade e às vezes uma estratégia comum que esses estudantes encontram para
vivenciam situações de hostilidade explícita. afirmar sua identidade e encontrar solidariedade para resistir
a essas pressões vivenciadas cotidianamente.

Parecia que sempre tinha alguém querendo que eu provas-


CONCLUSÕES
se alguma coisa: “ah vamos ver se tu sabe mesmo”, não sei
se é questão de discriminação, é bem sucinto, mas a gente
Este relato dos resultados e desafios da Política de
percebe.
Ações Afirmativas da UFSC em relação às vagas suplemen-
Você convida pra estudar contigo e a pessoa não quer e, você tares para indígenas demonstra que o processo da inclusão
vai ver, tá a turminha estudando ali de lado... de indígenas no ensino superior caminha a passos lentos,
Um vídeo foi postado no facebook por um deles indagando so- entre avanços e retrocessos. Percebe-se que há setores da
bre a existência da opressão das elites sobre os povos indíge- universidade mais comprometidos que outros, já que o en-
nas, onde tinham vários comentários lá e a mãe dele comen- tendimento de que a inclusão de indígenas demanda políticas
tava “por isso que eu não gosto de indígenas”. específicas não é igualmente aceito por todos os setores. Para
A gente tem que ficar discutindo com professor todo semes- o sucesso da inclusão e permanência de indígenas, seria ne-
tre, sempre tem um, engolir umas coisas, semestre passado cessário um comprometimento institucional mais global, que
eu reprovei em uma disciplina por que eu discuti com minha reconheça as especificidades do alunado indígena e desen-
professora (...). Então, ela foi infeliz, não sei se foi preconcei- volva programas visando a valorização e o respeito à presença
indígena na universidade.
tuosa, mas como repetiu três vezes a frase eu pensei que não
Enquanto a experiência da Licenciatura Intercultural
foi infelicidade não quando disse que “no Brasil existe lei pra
do Sul da Mata Atlântica na UFSC conseguiu resultados ex-
tudo, até pra índio”. Na terceira vez [que ela falou isso] eu vi
pressivos, com a formatura de 85 dos 120 alunos matricu-
que não, ela estava abusando, aí acabei discutindo com ela,
lados, após quatro anos de curso,17 a PAA/UFSC teve apenas
aí na prova final que era oral eu discuti de novo e aí eu preferi um aluno formado, entre os 43 matriculados durante os sete
sair da sala porque estava muito chateada, com muita raiva anos de vigência. O sucesso de Iharan Carlos Nunc-Nfoonro,
e eu reprovei. Xokleng, merece destaque: ingressou no curso de Direito No-
turno em 2009, teve uma participação brilhante no curso e, no
segundo semestre de 2012, mesmo antes da formatura, já ha-
Esses relatos podem dar uma dimensão do sen- via sido aprovado no exame da OAB e já atuava em escritório
timento de solidão que os estudantes indígenas reclamam de advocacia. Esse exemplo demonstra que, apesar de todos
experimentar no ambiente universitário, especialmente nos os percalços, as políticas de inclusão de indígenas no ensino
cursos mais elitizados. Mesmo que de brincadeira e, inicial- superior são promissoras e devem prosseguir e se aprimorar.
mente, aceitos por eles, alguns apelidos que são atribuídos
aos estudantes indígenas por colegas e professores indicam o
estranhamento que sua presença causa no meio universitário:
“Pocahontas” e “Elo perdido” são alguns exemplos relatados.
É evidente que esses alunos sofrem, no cotidiano da 17
  Ressalta-se que muitos desafios apontados aqui foram resolvidos
sala de aula, as consequências da ignorância sobre a reali- pela referida Licenciatura, que contou com recursos do PROLIND/MEC
dade das populações indígenas no Brasil, tanto da parte dos para garantir: vestibular específico em línguas indígenas, transporte
colegas quanto dos professores. Não é razoável que estudan- até as aldeias, alojamento comum, contratação de professores com
tes ingressem na universidade achando que “usar roupas” ou conhecimentos sobre os contextos indígenas.

50
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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res. Relatório de Atividade de Extensão, 2014. vação do Programa de Ações Afirmativas da Universidade Fe-
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Ações Afirmativas, 2009. CUN/2012, nº 026/CUN/2012, nº 033/CUN/2013, nº 041/
CUN/2014 e nº 052/CUN/2015.
______. A presença de estudantes indígenas na Universidade
Federal de Santa Catarina: um panorama a partir do Programa
de Ações Afirmativas – PAA/UFSC. In: Século XXI – Revista de
Ciências Sociais, v.3, 2013, p.212 - 236.

51
A EXPERIÊNCIA NA LICENCIATURA INTERCULTURAL
INDÍGENA DO SUL DA MATA ATLÂNTICA DA UFSC
Clarissa Rocha de Melo*

DA UNIVERSIDADE À CASA DE REZAS GUARANI A itinerância do curso é uma característica central;


E VICE-VERSA além das constantes mudanças de prédios e salas de aula,
os períodos das etapas são bastante variados. Em alguns
Esses apontamentos e reflexões se baseiam tanto momentos coincidem com férias escolares e em muitos não,
em dados institucionais sobre a presença indígena no ensino estimulando, portanto, os encontros e diálogos com os estu-
superior, quanto em dados de campo sistematizados por meio dantes não indígenas. Muitos são os momentos em que os
da vivência nas aldeias indígenas Guarani; pela participação acadêmicos indígenas podem entrar em contato com esse
em encontros e seminários sobre o tema. E, centralmente, universo distinto, que se traduz a universidade para muitos
pela participação na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul deles: a fila enorme do restaurante universitário (RU) que os
da Mata Atlântica, sediada na Universidade Federal de Santa assusta; as atividades musicais e as rodas de capoeira, que
Catarina (UFSC). encantam os acadêmicos indígenas às quartas-feiras, no Pro-
Em Santa Catarina, as demandas por formação su- jeto 12:30;2 os eventos sediados pela universidade, como a
perior indígena começaram a surgir a partir dos cursos de Semana de Ensino Pesquisa e Extensão (SEPEX), quando os
magistério específicos quando se refletia sobre a possibili- indígenas entram em contato com os núcleos da universida-
dade de um curso superior indígena que os qualificasse para de e pesquisas em desenvolvimento.3 Enfim, foram diversos
atuar nas suas respectivas comunidades. Deste modo, a Li- momentos de encontros, troca de saberes e também de es-
cenciatura Intercultural Indígena foi resultado de um proces- tranhamentos, como os acadêmicos Guarani, que achavam de
so dialógico entre os grupos indígenas envolvidos – Guarani, uma intensidade singular o barulho das conversas no restau-
Xokleng/Laklãnõ e Kaingaing. Essa parceria se constituiu com rante universitário e em outros locais da universidade.
a Comissão Interinstitucional para Educação Superior Indíge- Foram momentos em que os acadêmicos indígenas
na (CIESI), composta por pesquisadores que desenvolvem tra- refletiam sobre o modo de pensar e agir dos não indígenas, e
balhos entre os povos indígenas, por técnicos da Secretaria de aos poucos formavam parte do cenário da UFSC: cada grupo
Educação do Estado, por membros de entidades indigenistas, selecionava sua árvore preferida e lá sentavam para descan-
como o Conselho Indigenista Missionário (CIMi) e a Comissão sar nos intervalos das aulas, fumar um petyngua (cachimbo)
de Apoio aos povos Indígenas (CAPI).1 e conversar. Aos poucos, outros acadêmicos se aproximavam
A Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata e perguntavam se podiam sentar e começavam a fazer per-
Atlântica começa em 2011, com o preenchimento de 120 va- guntas que eram, em sua maioria, respondidas com simpá-
gas para três turmas compostas por estudantes Guarani (ES, ticas risadas.
RJ, SP, PR, SC e RS), Kaingang (SP, PR, SC e RS) e Xokleng As crianças eram levadas a cada etapa e assistiam
(SC). Funciona a partir da pedagogia da alternância, dividido às aulas junto com suas mães, transitavam pelo espaço es-
em tempo-universidade – etapas presenciais na UFSC – e colar, e aos poucos foram crescendo na universidade. Eram
tempo-comunidade – quando retornam para suas comunida-
des e realizam os trabalhos solicitados pela formação.
2
  O Projeto 12:30 é um evento que acontece todas as quartas-feiras
na UFSC, e tem como foco apresentações artísticas e musicais reali-
*  Doutora em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa zadas na concha acústica, localizada no pátio central da universidade.
Catarina (UFSC). 3
  Na última SEPEX, realizada em outubro de 2013, foi criado um
1
 Podem-se observar mais experiências de Licenciaturas Intercul- estande para a Licenciatura Intercultural, por meio do qual os aca-
turais Indígenas no Brasil, sistematizadas no Relatório sobre as ex- dêmicos indígenas puderam expor seus trabalhos em andamento e
periências de Licenciaturas Interculturais Indígenas no Brasil (2001- permitir a visibilidade do curso à comunidade acadêmica e à comu-
2013), em anexo, na Tese de Doutorado (Melo, 2014). nidade em geral.

52
cuidadas pelos irmãos e irmãs mais velhos, ou por “cuida- e os outros escutam atentamente: “nossos ouvidos ainda não
doras”, geralmente mulheres e parentes próximos, que eram estão treinados para tanto barulho e informação!”. Esta é uma
trazidas para a etapa, junto com a mãe da criança. As cuida- comparação de um entre muitos aspectos salientados por um
doras ficavam com as crianças, brincavam, davam comida, professor indígena e acadêmico do curso, sobre a vivência
e, quando o choro não cessava, levavam-nas às suas mães. entre brancos e índios. Segundo ele, refletem sobre a nossa
Na universidade, os acadêmicos indígenas “reprodu- forma de adquirir conhecimento, de pensar e ver o mundo, fil-
ziam”, de certo modo, o jeito de cuidar das comunidades indí- trando os conhecimentos advindos da universidade, para sua
genas: todos olhavam as crianças, muitos colegas de sala aju- entrada nas aldeias indígenas. Apontam nossa cultura como
davam as mães carregando seus filhos no colo, empurrando “rápida” e “pesada”, e enfatizam em seu discurso a necessi-
carrinho e cuidando para que nada acontecesse às crianças, dade atual de registrar e praticar a cultura indígena, para que
enfatizando a coletividade na criação das crianças. esta não fique apenas na memória e se perca em meio ao
Durante as etapas presenciais ou tempo-universida- movimento e às mudanças.
de, os acadêmicos indígenas esforçaram-se para experienciar Esses acadêmicos têm o objetivo de obtenção deste
uma rotina que não faz parte do cotidiano das aldeias. Assim, conhecimento outro, que envolve dificuldades, desgastes físi-
o tempo-universidade se traduz também por um tempo de cos, afastamento dos núcleos familiares e ingestão de alimen-
vivenciar os bairros de Florianópolis, suas características e tos “perigosos”.4 É, nesse contexto, que tanto o xamanismo
as peculiaridades de estadia. Exemplo disso foi quando os quanto o ensino superior, são tomados como possibilidades
acadêmicos hospedaram-se em um hotel com a estrutura de de comunicação, aquisição de conhecimentos e trânsito entre
um prédio. Uma das estudantes Guarani nunca tinha andado mundos distintos. Compreende-se que, na atualidade, esse
de elevador e não quis enfrentar esse medo, pediu para trocar esforço é vislumbrando como uma possibilidade de trânsito
de quarto para que pudesse subir pela escada. Apesar desse entre mundos: o “mundo Guarani” e todas as especificidades
incômodo, ficou deslumbrada com a praia que se localizava culturais e conhecimentos que o compõem; e o não indígena,
nas proximidades. buscando os conhecimentos dos brancos que lhes são postos
O tempo-universidade é ainda o tempo de conhecer na educação escolar e ensino superior.
a ilha de Florianópolis e vivenciar as distintas experiências Todavia, esse trânsito entre mundos tem suas regras
que ocorreram de norte a sul da ilha: hotéis e bairros distintos, próprias e suas interdições. Alguns acadêmicos Guarani res-
praias, amigos que moram nas proximidades. Tudo é novida- saltam que há um limite nesse processo, explicam que cami-
de. Para experienciar as novidades, a turma Guarani, que pos- nham em direção à aquisição de conhecimentos dos brancos,
sui estudantes que vivem nas aldeias mais próximas da ilha, e voltam para suas aldeias para conviver com seus modos de
traz seus filhos e parentes para passar os fins de semana e transmissão e aquisição de conhecimentos próprios de seus
até mesmo para as atividades do curso, que incluem viagens grupos – com a participação na opy (casa de rezas Guarani).
de campo a locais próximos. Alguns acadêmicos Guarani, além de frequentar a
opy, como a maioria, participam de um ritual anual denomi-
nado kaaguy´i nhemboe, “aprendendo com a mata”. Durante
MODOS DE AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTO: esse período, passam por processos de jejum de água e de
A EXPERIÊNCIA GUARANI alimentos para purificação do corpo, durante alguns dias na
montanha. Ao indagá-los sobre qual processo era mais difícil
A turma Guarani é composta por 30 acadêmicos in-
dígenas que possuem objetivos diversos no curso, mas um
objetivo é comum a todos: remete a obtenção de um conheci-
mento outro. Sejam pais, mães ou filhos; lideranças e apren-
4
  Paladino correlaciona a formação escolar ao sofrimento, no caso
dos grupos Tikuna, no Amazonas, em que o afastamento dos núcleos
dizes xamânicos; enfrentam grandes obstáculos para adqui-
familiares e a solidão são aspectos ressaltados. As falas dos jovens Ti-
rirem o conhecimento advindo da educação escolar, e nesse
kuna associam as formações ao sofrimento: “quando a pessoa estuda
caso, do ensino superior indígena. deve sofrer”. (2006, p.233-238) Associam o sacrifício, o esforço, as
Além de aquisição de conhecimentos que residem na provas e os perigos envolvidos na formação escolar como legitimado-
alteridade, esses estudantes analisam o modo como nós pen- res de prestígio na comunidade. Posteriormente, a autora cita Collet
samos. Os djuruá – não indígenas – são vistos como “abe- (2006) para exemplificar a analogia que esta última realiza entre a
lhas” na universidade, pois estão sempre “reunidos falando formação escolar Bakairi com aquelas que aconteciam nos rituais de
junto”, ao contrário de um grupo de Guarani, em que um fala puberdade ou iniciação de um pajé.

53
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

– permanecer durante semanas de formação acadêmica na Durante as etapas presenciais


universidade ou permanecer 4, 7, 9, 13 dias na montanha
sem água e sem comida – a maioria me respondeu que a ou tempo-universidade, os
universidade exigia mais. Associam a formação no ensino su- acadêmicos indígenas esfor-
perior ao sofrimento, ao “ter que aguentar”, assim como nos
eventos rituais, nos quais é necessário “ter coragem” – py´a çaram-se para experienciar
guachu. De todo modo, entendo que para os grupos Guarani, uma rotina que não faz parte do
todo processo de aprendizagem envolve o esforço, e muitas
vezes, o sofrimento de “ter que aguentar”. cotidiano das aldeias. Assim,
Durante as cerimônias de reza na opy Guarani, deve- o tempo-universidade se tra-
mos nos esforçar para dançar e cantar, mesmo que o corpo
“reclame”, pois é a partir desse movimento de persistência, duz também por um tempo de
que o corpo se tornará leve e preparado para receber os en- vivenciar os bairros de Floria-
sinamentos. Nesse sentido, na universidade esse processo é
mais complexo, pois não há um preparo do corpo, mas um nópolis, suas características e
disciplinamento do mesmo. as peculiaridades de estadia.
Os acadêmicos Guarani apontam a necessidade de
disposições adequadas para adquirir certos conhecimentos.
Nesse sentido, percebeu-se que a escrita não se encaixa nes-
se protocolo. Pois escrever não é somente uma alternativa
à fala, quando escrevemos, perdemos de certo modo carac-
terísticas de tonalidade da voz, da pronúncia e do contexto Do mesmo modo, a importância das crianças durante as aulas
(Ingold, 2000). A escrita transmite dados e conteúdos sem as na universidade se deve ao fato de serem seres sagrados, pu-
disposições adequadas, “é como aprender a dirigir um car- ros, e promoverem a proteção e contínuo vinculo com o plano
ro lendo um manual”, assim como a leitura e interpretação telúrico. O uso do kaa, “erva mate”, no chimarrão, auxilia na
de textos em português. Nesse sentido, Carneiro da Cunha limpeza do corpo, afetado diariamente pelos alimentos exóge-
(2012) enfatiza que “todas as compilações escritas não po- nos e “perigosos” dos não indígenas, e auxilia na concentra-
derão realmente transmitir saberes tradicionais, poderão ser ção durante as aulas, djapychaka.
índices de sua existência e fornecer pistas”. Além disso, estar junto aos parentes indígenas é
Todavia, reconhecemos que na atualidade os indíge- apontado pelos acadêmicos Guarani como fundamental para
nas em geral valorizam cada vez mais os materiais didáticos que se sintam mais próximos de casa e possam utilizar a lín-
e as publicações de livros com autoria indígena, como ocorre, gua Guarani, aspecto fundamental que explicita os modos de
por exemplo, com a publicação da Coleção Narradores Indí- conceitualizar o mundo e o pensamento Guarani. Assim, levar
genas do Rio Negro. Os livros e suas publicações são objetos em conta as diferenças epistemológicas é fundamental para
de interesse recente, fato que ocorre também entre os grupos promover o diálogo entre as formas de conhecimento que são
Guarani. Por outro lado, o próprio processo de feitura, as rela- regidas por distintos protocolos.
ções que se estabelecem, muitas vezes são mais importantes Os acadêmicos indígenas demonstram nas expe-
que o produto em si. riências de formação universitária que saber e saber fazer
Em contrapartida, com o número cada vez maior de (contexto de prática) são indissociáveis, assim como saber e
acadêmicos indígenas nas universidades, os livros vão sendo saber sentir (experiência vivida). A acadêmica Eunice Antunes
solicitados, os acadêmicos querem ler as pesquisas realiza- explica que “saber” está ligado ao “sentir”: “(...) Por exemplo,
das em suas comunidades com seus grupos, e, além disso, a laranja, você só sabe quando sente o sabor da laranja (...)
publicar materiais escritos por eles. Mas, por outro lado, a uma coisa é eu dizer e você imaginar, a outra é ir lá e provar
apropriação dos saberes exógenos provenientes da universi- a laranja para sentir o sabor doce e salgado”.
dade deve ser realizada com atenção, buscando compensar os Geraldo Moreira, acadêmico do curso, explica que os
excessos e também a falta de cuidados específicos. Exemplo professores atuantes no curso têm muito conhecimento dos
disso é o uso do petyngua – pois o cachimbo Guarani permite livros que leram e de tudo que está escrito no papel. Todavia,
a contínua comunicação com nhanderu, “nosso Deus”, mesmo não são conhecimentos ligados às vivências e às experiências
em um local distante de casa, em meio aos não indígenas. pessoais que, segundo ele, estariam no plano do “sagrado”.

54
O conhecimento sagrado é aquele sentido e vivido, repassado Durante o curso, pude acompanhar trajetórias aca-
a partir da experiência pessoal, um “conhecimento vivo”, “pois dêmicas de muitos estudantes indígenas, ouvir seus rela-
a gente tá vivo” – diz ele. Geraldo conclui que na universidade tos, compreender suas atitudes a partir do conhecimento
os conhecimentos são repassados a partir da experiência dos de suas vivências. Observei transformações pessoais de al-
livros, do papel, de algo sem vida e não sagrado. Em con- guns acadêmicos e acadêmicas Guarani, por exemplo, que
trapartida, o conhecimento repassado a partir da experiência não falavam mais a língua indígena. Sofriam preconceito
sentida, destacando os rituais xamânicos e a necessidade da por parte de alguns colegas falantes, mas foi interessante
preparação do corpo por meio de jejum, seria um conheci- perceber como em sala de aula eles se reconhecem, trocam
mento vivo, que “sai direto do coração para outro coração”, e compartilham experiências que os aproximam, mostran-
assim como os aconselhamentos, “nhemongueta”, dos mais do uma compreensão recíproca de suas vivências. Outros,
velhos. Finalmente, ele ressalta os desafios impostos pelo en- por outro lado, mal falavam a língua portuguesa, e, com
sino superior, em que as informações saem dos livros, são o passar dos anos, aprendem o idioma e começam a se
repassadas pelo professor e entram primeiro na mente, após expressar, demonstrando empoderamento. Exemplo disso,
no corpo e depois são acessadas em doses homeopáticas. a emergência de lideranças indígenas durante a formação,
muitas delas, mulheres.5
Por outro lado, a língua indígena ainda é um as-
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA FORMAÇÃO pecto que deve ser reavaliado durante as formações. Não
ACADÊMICA basta consciência e estímulo para que os acadêmicos falem
na língua indígena, depende em grande parte da atitude dos
Certa vez, já finalizando o terceiro ano do curso, em docentes e da coordenação dos cursos. Sabemos que esses
uma reunião de avaliação, a equipe composta pela coordena- acadêmicos nos observam, nos escutam atentamente, per-
ção e docentes se questiona sobre as possibilidades e limites cebem e avaliam nossas atitudes. Enquanto professores do
do curso em questão. Será que estes acadêmicos indígenas curso somos exemplos em construção.
conseguirão fazer a diferença? Será que eles serão os pro- As relações devem, portanto, ser dialógicas. Assim
tagonistas de uma escola diferenciada em suas respectivas como esses acadêmicos utilizam-se desses espaços para se
comunidades? Olhamo-nos e refletimos se a pergunta era fortalecerem enquanto coletivos e indivíduos, a universidade e
realmente essa a ser feita. Será que o protagonismo destes os cursos devem incentivar e valorizar suas línguas indígenas,
acadêmicos deve passar necessariamente pela escola? suas pesquisas, metodologias e conteúdos próprios de cada
Muitos acadêmicos enfatizam a melhoria de suas comunidade indígena.
aulas, destacando suas atuações como professores indíge- Para que o diálogo aconteça – principalmente na
nas nas aldeias. Todavia, o conhecimento indígena não passa universidade, entre estudantes indígenas e não indígenas –
necessariamente e exclusivamente pela escola, e sim por to- devemos falar sobre a diferença, sobre as distintas formas
dos os âmbitos da comunidade. Se um curso pode fomentar de pensar e conceitualizar o mundo. Algumas falas desses
reflexões e protagonismos, que estes não se restrinjam ao acadêmicos, sejam em encontros, seminários, ou em sala de
espaço escolar.
Essas indagações surgiram durante toda a pesqui-
sa, e permearam as reflexões e fomentaram diálogos entre
a equipe do curso. Percebemos que a escola indígena e a
5
  As mulheres indígenas Guarani na atualidade estão reinventando o
educação escolar não poderão ser diferenciadas de fato. São que é ser mulher Guarani a partir de suas experiências como acadê-
micas. Experiências que revelam os perigos latentes à produção dos
oriundas de um sistema hegemônico, que, apesar de garantir
corpos nesses espaços, a ingestão de alimentos, os resguardos ne-
constitucionalmente o direito à diferença, não se dá nas mes-
cessários, mas também apontam para as possibilidades de circulação
mas proporções na prática. Ou seja, mais do que implementar
por outros espaços fora das comunidades. A escolarização nas aldeias
a diferença na sala de aula das escolas indígenas, percebe-se indígenas e o acesso ao ensino superior na atualidade é um fenômeno
a importância de valorizar todos os espaços das comunidades almejado por homens e mulheres. Estas últimas, aos poucos sobres-
como educativos. Que esses acadêmicos indígenas possam saem, e cada vez mais ingressam no ensino superior como meio de
ser protagonistas em projetos de sustentabilidade, desenvol- adquirir conhecimentos, afirmarem-se como lideranças e emitir suas
vendo a autonomia, capacitando lideranças, professores e vozes a um público amplo, constituído por grupos indígenas distintos e
moradores a autogerir seus recursos, fortalecendo e vitalizan- não indígenas que, na atualidade, fazem parte do universo acadêmico.
do sua cultura. Para mais informações, ver: Melo, 2014.

55
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

aula, expressam o preconceito que existe nos espaços acadê- demonstrou Bruno Latour (2008), não é homogênea e não se
micos em que “ser índio” não é nada fácil. dá em um vácuo político e social.
Além do preconceito, um aspecto importante nesses Os conhecimentos indígenas possuem mecanismos
cursos, sejam regulares ou não, tem a ver com as avaliações, próprios para sua aquisição, transmissão, e “habilitação” –
pois falas recorrentes de acadêmicos indígenas apontam que skillment –, nas palavras de Ingold (2000), conhecimentos es-
não se mede conhecimento por meio de uma prova com al- tes que estão ligados a um contexto de prática e a disposições
gumas questões. Para os acadêmicos indígenas, “o conheci- adequadas. Disposições que valorizam a forma de aprender
mento é embrionário, gestado, nascido (...) e não terminado”. e não apenas do conteúdo, o que se aprende. Além disso,
Ou seja, são conhecimentos impossíveis de serem expressos valorizam o conhecimento expresso pela fala quando esta se
através de palavras escritas no papel. baseia na experiência, que pode ser sentida pelo ouvinte, di-
Sabemos dos desafios da escrita para muitos aca- ferentemente da fala baseada apenas nos livros e em teorias.
dêmicos indígenas, do uso de tecnologias (data-show, Google Os Guarani demonstram a importância da troca e da
Maps, entre outros recursos). Coloca-se o desafio de avaliar relação, do conhecimento que reside na alteridade, seja ela
de acordo com critérios preestabelecidos, incentivando outras a mata e todos os seres que nela habitam, ou a universidade
práticas e formatos desses trabalhos que ultrapasse a “fôrma e todos os atributos que a compõem. Nesse movimento in-
acadêmica”. trínseco a estes grupos, caracterizado pelo devir, os Guarani
aderem a conhecimentos que fazem sentido a eles, tanto no
xamanismo – em seus rituais – quanto no ensino superior –
CONSIDERAÇÕES FINAIS com a seleção do que ensinar nas escolas indígenas e quais
conhecimentos entram na escola e quais não.
A Antropologia tem um trabalho árduo pela fren- Acredito que estes exemplos demonstram os desa-
te, que exige uma reflexão densa sobre a educação escolar fios que enfrentamos em nossa prática antropológica, e que
indígena e o ensino superior, que se volte antes de tudo à alguns aspectos relacionados aos sistemas de conhecimen-
compreensão dos sistemas de conhecimentos indígenas, tos indígenas podem estar em diálogo no ensino superior, na
para possibilitar mecanismos de diálogo interculturais. Diálo- Licenciatura Intercultural Indígena, e outros não. Além disso,
gos que qualifiquem conhecimentos indígenas em um mesmo o intuito não é, de modo algum, criar ou reforçar dicotomias
patamar de autoridade. entre saberes indígenas, de um lado, e saberes científicos de
Temos que insistir em desconstruir a falsa premissa outro, mas sim, de “reconhecer que os paradigmas e práticas
de que o conhecimento científico se pautaria numa pretensa das ciências tradicionais são fontes potenciais de inovação
verdade absoluta, numa afirmação de universalidade, num da nossa ciência”. (Carneiro da Cunha, 2009, p.306) Desse
status de hegemonia, e o conhecimento indígena, sob o ponto modo, os obstáculos podem ser superados, ou pelo menos
de vista do senso-comum, seria um saber espontâneo e de- reduzidos, ao apreendermos e valorizarmos cada vez mais es-
sinstitucionalizado. Ambas são formas de entender e agir no tes processos de conhecimento, não apenas de direito, mas
mundo, se fazendo constantemente, pois a Ciência, como já de fato.

56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Editora Perseu Abramo, 2013.

57
PROJETO VIDAS PARALELAS INDÍGENAS
NO ENSINO-PESQUISA-EXTENSÃO:
UMA EXPERIÊNCIA ACADÊMICA NA UnB
Maristela Sousa Torres,* Laura Celeste Gonçalves Cardoso** e Tânia Pinto Pereira***

INTRODUÇÃO de propostas de ação que fossem ao encontro das expectati-


vas e necessidades das comunidades indígenas, consideran-
O Projeto Vidas Paralelas (PVP) busca revelar o co- do e valorizando sua cultura, crenças, valores e cosmovisão,
tidiano de vida e de trabalho a partir do olhar dos sujeitos principalmente dentro do espaço segregador e elitista da UnB.
pertencentes a diferentes grupos sociais, especificamente de Dentro dessa proposta, uma das atividades é a re-
trabalhadores, povos indígenas, população do campo e ato- alização de oficinas de inclusão em cultura indígena, que já
res de práticas tradicionais e populares de saúde (rezadei- foram ministradas em comunidades indígenas de diversos
ras, parteiras, raizeiras, benzedeiras, entre outros) por meio povos, cujos estudantes fazem parte do Projeto de Extensão
da apropriação da cultura digital e do compartilhamento das PVPi. As oficinas servem como espaço de expressão do olhar
expressões culturais em uma rede social e em espaços socio- indígena e possibilitam a emersão de inquietudes e realida-
culturais que favoreçam a reflexão, a participação social e a des frequentemente invisíveis ao conjunto da sociedade e da
construção de políticas públicas. comunidade acadêmica. As atividades organizadas nas comu-
O projeto é desenvolvido por meio de processos nidades indígenas envolvidas contemplam também a exibição
pedagógicos que articulam ensino-pesquisa-extensão, cul- no formato de cineclube dos filmes realizados pelos indígenas
minando na construção de redes e espaços que possibilitam para toda a comunidade, bem como palestras dos estudantes
aos grupos sociais conferirem novos sentidos à cultura digital, envolvidos sobre temas que os filmes abordam e que sejam
favorecendo o resgate e a valorização da cultura, a construção de suas respectivas áreas de estudo, desencadeando, assim,
de saberes e a ampliação da participação social. Atualmente, um processo de reflexão acerca da necessidade de aprofun-
o PVP conta com apoio de povos indígenas e suas comunida- damento do conhecimento das realidades para a construção
des de diversas etnias, em praticamente todas as macrorre- das bases teóricas capazes de instrumentalizar o enfrenta-
giões do país, e outros segmentos dos movimentos sociais e mento das adversidades e as transformações sociais.
populares.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
JUSTIFICATIVA
O referencial teórico norteador das práticas desen-
O Projeto Vidas Paralelas Indígenas (PVPi) nasce volvidas no PVPi, fundamenta-se na educação popular e na
em 2010 como uma demanda dos estudantes indígenas da ergologia. Buscamos sustentação teórica e metodológica em
Universidade de Brasília (UnB) pela criação de uma iniciativa Paulo Freire para refletir sobre o diálogo, a pesquisa e as ativi-
que viabilizasse a construção participativa e contextualizada dades acadêmicas, com foco na relação de saberes e práticas
ancoradas na transmissão oral, e popularização dos saberes
e experiências vivenciadas pelos povos indígenas. O diálogo
representa a base de todo o método da educação libertadora,
o qual prevê uma relação comunicativa entre o educador e
*  Professora e Pesquisadora na Universidade de Brasília (UnB). o educando de forma horizontal, para a constituição de um
**  Estudante indígena da etnia Baréna na Universidade de Brasília
processo educativo reflexivo-crítico resultante na práxis trans-
(UnB). formadora, pois como afirma Paulo Freire: “Trata-se de um
processo construído e conquistado em conjunto, que se co-
***  Estudante indígena da etnia Tupinikim na Universidade de Brasília loca a dialogar na intenção de estabelecer caminhos de mu-
(UnB). dança através da ação-reflexiva de sua presença no mundo.

58
FIGURA 1 comunidades indígenas, possibilitando o fortalecimento das
OFICINA NA ALDEIA KARIRI-XOCÓ lutas e demandas dos povos indígenas em seus territórios;
realização de pesquisas sobre as condições de vida e trabalho
dos integrantes do PVPi e formação em cultura digital; valori-
zação da cultura e visibilidade do cotidiano de vida e de traba-
lho dos povos indígenas em suas comunidades; promoção de
espaços educativos e culturais nas comunidades indígenas;
realização de pesquisas sobre os modos de vida, com foco
para a cultura, educação, saúde, luta pela terra, bem como
ampliação da visibilidade dos conflitos sócio-ambientais e o
cotidiano de vida e de trabalho a partir do olhar das popula-
ções indígenas.

METODOLOGIA

A abordagem metodológica do trabalho se dá por


A ênfase para o diálogo indica ser uma relação horizontal, meio da realização de processos de formação em cultura
que nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se digital e da construção de espaços socioculturais articula-
do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança”. dos entre professores, pesquisadores, formadores do PVPi,
(Freire, 2001, p.115) estudantes indígenas da UnB e suas respectivas comunida-
des nas diversas regiões do Brasil, compreendendo os se-
guintes povos: Atikum e Fulni-ô em Pernambuco; Kariri-Xocó
RELAÇÃO ENSINO-PESQUISA-EXTENSÃO em Alagoas; Potiguara na Paraíba; Pataxó na Bahia; Macuxi-
-Wapichana em Roraima; Baré, Tukano, Baniwa, Piratapuia no
O PVPi busca estabelecer articulação entre ensino- Médio Rio Negro e Amazonas e Tupinikim no Espírito Santo.
-pesquisa-extensão no cotidiano da UnB, em parceria com as O trabalho é realizado na UnB e em comunidades destes po-
comunidades indígenas, articulando-se também com outros vos, mas pretende-se expandir para outros grupos indígenas,
segmentos dos movimentos sociais, com ênfase na organi- contemplando assim diferentes contextos socioculturais, em
zação política e social dos sujeitos envolvidos, na participa- todas as regiões do país.
ção em redes sociais e valorização da cultura e promoção da Desde o início do projeto, foi pautado o desenvolvi-
emancipação social. Desse modo, nota-se que as ações do mento de processos de formação em cultura digital com os
PVPi têm produzido conhecimentos e construído intervenções respectivos povos, empenhados na tarefa de compreender e
em conjunto com as comunidades, envolvendo estudantes, desvelar, a partir do olhar dos próprios sujeitos, distintas rea-
povos indígenas, universidades e segmentos da sociedade lidades e cotidianos de vida e de trabalho inseridos em con-
nacional, em um processo amplo de interlocução e constru- textos socioculturais diversos, bem como fortalecer a atuação
ção do conhecimento, associado à práxis. em redes sociais, a valorização da cultura e o exercício de
cidadania dos estudantes indígenas e seus povos.
O PVPi está sendo desenvolvido em etapas. A pri-
OBJETIVOS meira foi constituída pela articulação com os estudantes e
as comunidades indígenas, para constituir um grupo entre os
1. Objetivo geral: revelar e visibilizar o cotidiano de acadêmicos e as comunidades – responsável por articular os
vida, cultura e trabalho de povos indígenas, a partir do olhar diferentes atores sociais para formação de multiplicadores.
dos próprios sujeitos, por meio de processos de formação em Por meio dessa etapa, os participantes têm a oportunidade de
cultura digital e articulação de redes sociais para fortaleci- conhecer e refletir sobre as formas de expressão e potencia-
mento das práticas socioculturais, e participação social na lidades da cultura digital, servindo como uma apresentação
construção de políticas públicas. às possibilidades de compartilhamento de ideias por meio da
2. Objetivos específicos: continuar o estabelecimen- rede social do projeto. A segunda etapa destina-se à realiza-
to do vínculo entre os acadêmicos indígenas da UnB e suas ção de oficinas de cultura digital nas comunidades indígenas,

59
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

com duração de três dias, destinadas aos segmentos (crian- O projeto é desenvolvido por
ças, jovens, adultos, homens e mulheres) que demonstram
interesse em participar do projeto. Estudantes e integrantes meio de processos pedagó-
das comunidades recebem um kit com celular ou câmera di- gicos que articulam ensino-
gital (ambos com a capacidade para filmar e tirar fotografias).
Esses equipamentos são cedidos em forma de comodato para pesquisa-extensão, culmi-
que os sujeitos envolvidos possam utilizá-los em seus regis- nando na construção de redes
tros. Durante as oficinas, eles têm a oportunidade de vivenciar
e refletir sobre a cultura digital, seus sentidos e potências, e espaços que possibilitam
bem como apropriar-se das ferramentas e experienciar o uso aos grupos sociais conferirem
das redes sociais. A terceira etapa é constituída pela realiza-
ção de encontros presenciais periódicos, pautados na aborda- novos sentidos à cultura digital,
gem dialógica entre os sujeitos sociais e redes de apoio das favorecendo o resgate e a valo-
diferentes comunidades, para refletir a partir das construções
simbólicas e construir alternativas de ação para as questões rização da cultura, a constru-
e problemáticas locais. São também articulados processos de ção de saberes e a ampliação
criação de espaços socioculturais e realização de cineclubes
com os diferentes grupos das comunidades indígenas, com da participação social.
base nas demandas locais e sob gestão dos próprios sujei-
tos. Ademais, durante o desenvolvimento de todo o processo,
busca-se articular os movimentos sociais latino-americanos
vinculados aos trabalhadores, indígenas, povos do campo, das formadores, estudantes indígenas e suas comunidades sobre
águas e da floresta, a fim de consolidar uma rede latino-ame- temas de interesses das mesmas como: alimentação tradicio-
ricana de cultura e saúde dos povos da floresta, do campo e nal, preservação da cultura indígena, saúde indígena, nutrien-
da cidade, capaz de visibilizar e fortalecer a atuação em rede tes da alimentação tradicional indígena, alimentação indígena
dos distintos grupos participantes. e diferencial do tratamento em hospitais, desmatamento, me-
As atividades de pesquisa e formação teórica tam- dicina tradicional indígena, desmatamento no território indíge-
bém são realizadas com os respectivos povos, relacionando- na e região, formas de preservação do meio ambiente, entre
-se à análise da atividade humana e das condições de vida e outros temas de interesse das comunidades.
trabalho, aos conflitos sócio-ambientais e ao resgate histórico O projeto encontra-se em fase de desenvolvimento
e cultural das práticas tradicionais e da cultura, obedecendo e foram realizadas oficinas de formação em cultura digital
e respeitando as dinâmicas de cada comunidade indígena. em oito comunidades indígenas das etnias: Macuxi, Poti-
Desta forma, espera-se contribuir para a construção do co- guara, Baré, Baniwa, Tukano, Piratapuia, Pataxó, Tupinikim,
nhecimento, para a promoção da autonomia dos estudantes Kariri-Xocó, distribuídas em sete estados do Brasil: Amazo-
em seus processos acadêmicos, da vida e trabalho dos povos nas, Roraima, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Bahia e Espírito
– rumo à cidadania ativa, ao fortalecimento, à participação Santo. Realizou-se também um Encontro Nacional do Projeto
social e à valorização das expressões culturais de cada povo. Vidas Paralelas Indígenas, com a participação de professores,
pesquisadores, membros da equipe, estudantes indígenas da
UnB, representantes das comunidades e lideranças indígenas,
AÇÕES REALIZADAS no qual se trabalhou o processo de formação em cultura di-
gital com estudantes e membros de comunidades indígenas
Desde o início do PVPi, de 2010 até o momento atu- de distintas etnias. Como produto desses eventos foram feitos
al, realizaram-se as seguintes ações: viagem de trabalho às a produção de conteúdo digital, entre documentários e vídeos
comunidades indígenas que contemplam o projeto; realização para web, fotografias e outros formatos, com a finalidade de
de pesquisa de campo; exibição de vídeos realizados pelas valorização da cultura, resgate da história e memória indí-
comunidades sobre distintas temáticas; rodas de debates e genas, além de fomentar espaços socioculturais (memoriais)
palestras entre pesquisadores, formadores, estudantes indí- nas aldeias. Houve também a criação de uma rede social in-
genas e suas comunidades sobre os temas abordados nos dígena nacional, voltada para a articulação cultural e política,
vídeos e fotografias; palestras e debates entre pesquisadores, resgate, valorização e promoção da cultura e saúde indígena.

60
FIGURA 2 memória, entre outros equipamentos; a realização do Encon-
OFICINA NA ALDEIA PARATAPUYA tro Nacional do PVPi e do PVP do Trabalhador, em Sobradinho/
DF (abril de 2012); a participação dos estudantes indígenas na
Cúpula dos Povos/ATL (RJ); a apresentação de quatro docu-
mentários na Semana Universitária, com os temas “Os impac-
tos ambientais em áreas indígenas”, “Economia verde versus
agricultura tradicional”, “Participação das mulheres indígenas
no movimento indígena” e “A influência do Movimento Indíge-
na na agenda política”; o Encontro Nacional dos Estudantes e
Multiplicadores do PVPi, que se realizou na Paraíba (PB) (ou-
tubro de 2012); a participação com apresentação de trabalho
no Primer Congreso Internacional de los Pueblos Indígenas de
América Latina – Siglos XIX-XXI, em Oaxaca, México (outubro
de 2013); a apresentação de pôster, feita pelo PVPi, sobre as
atividades desenvolvidas nas comunidades indígenas e expo-
Para isso, foi feita a estruturação de uma rede de apoio em sição de painéis com fotografias revelando o cotidiano das
cultura digital e articulação político-cultural destinada ao su-
porte à rede nacional. Realizou-se também a implantação de
cineclubes em aldeias situadas nas oito macrorregiões do FIGURA 3
Brasil e a implementação de pesquisas e extensão no contex- OFICINA NOS XII JOGOS NACIONAIS INDÍGENAS
to sociocultural-ambiental indígena com base no olhar indíge-
na – por meio da cultura digital. Como resultados alcançados
podemos destacar: formação de 200 pessoas, incluindo es-
tudantes, lideranças, mulheres e jovens indígenas das etnias
envolvidas, bem como membros dos movimentos sociais, or-
ganizações indígenas e rede de apoio do PVPi; articulação dos
povos indígenas, rede de apoio e demais atores sociais locais
como mecanismo de promoção da saúde, cultura e participa-
ção social; construção da rede PVPi; produção de conteúdo
digital, aimentação das redes e trocas de experiências; fo-
mentação de espaços sócio-culturais nas aldeias, voltados à
promoção da saúde, cultura e participação social; capacitação
e formação dos estudantes indígenas na cultura digital; dispo-
nibilização de equipamentos de multimídia (câmeras e celu-
lares); realização de trabalho de pesquisa dos estudantes nas
suas respectivas aldeias; sistematização dos dados coletados FIGURA 4
– produção de oito artigos científicos – publicado na revista OFICINA NOS XII JOGOS NACIONAIS INDÍGENAS
Tempus – Actas de Saúde Coletiva. Além desses resultados,
podemos também destacar: o I Seminário de Saúde Indígena
da Semana Universitária da UnB (outubro de 2011); a con-
quista do Edital de Financiamento do Ministério das Comuni-
cações e Ministério da Cultura para desenvolvimento do PVPi
(dezembro de 2011); a criação de espaços socioculturais nas
aldeias e construção de uma rede social indígena (formação
de jovens mulheres e lideranças indígenas); a estruturação
tecnológica dos espaços socioculturais para desenvolvimento
do projeto, por meio da disponibilização, para cada aldeia, de
kits de cultura digital, constituído de laptop, filmadora, mi-
crofone, data-show, caixas de som, estabilizador, cartão de

61
CADERNOS DO GEA, N. 10 JUL.-DEZ. 2016

aldeias indígenas, bem como uma roda de debate sobre a PVPi no México (outubro de 2013); por fim, a realização, pelo
experiência vivida em diversas fases do projeto, principalmen- PVPi, de uma oficina de cultura digital nos XII Jogos do Povos
te sobre a experiência vivida pelos estudantes indígenas do Indígenas (novembro de 2013).

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DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL
(FLACSO/BRASIL E LPP/UERJ)

Coleção Estudos Afirmativos

Os reflexos de Durban Caminhadas


em Ouro Preto e sua dez anos depois
repercussão na UFOP
Relatos de universitários
de origem popular
Adilson Pereira dos Santos
Leonor Franco de Araujo (Org.)

Coleção Estudos Afirmativos, v.5 Coleção Estudos Afirmativos, v.6

Ações afirmativas Universidade


A trajetória do IFRS para indígenas
como instituição inclusiva A experiência do Paraná
Coleção Estudos Afirmativos, v. 8
Coleção Estudos Afirmativos, v. 7

Andréa Poletto Sonza Wagner Roberto do Amaral


Bruna Poletto Salton Letícia Fraga
Jair Adriano Strapazzon Isabel Cristina Rodrigues
(Orgs.) (Orgs.)

Coleção Estudos Afirmativos, v.7 Coleção Estudos Afirmativos, v.8


GRUPO ESTRATÉGICO DE ANÁLISE
DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL
(FLACSO/BRASIL E LPP/UERJ)

Cadernos do GEA
Grupo Estratégico de Análise da
Educação Superior no Brasil
ISSN 2317-3246

AÇÕES
AFIRMATIVAS
E INCLUSÃO:
UM BALANÇO
Grupo Estratégico de Análise da Grupo Estratégico de Análise da
Educação Superior no Brasil Educação Superior no Brasil
ISSN 2317-3246 ISSN 2317-3246

DEMOCRATIZAÇÃO
VINTE E UM ANOS DE
DA EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO SUPERIOR
SUPERIOR Cadernos do GEA, n. 2, jul.-dez. 2012
EXPANSÃO E
NO BRASIL: DEMOCRATIZAÇÃO
AvANÇOS E
Dilvo Ristoff
DESAfIOS
ISSN 2317-3246

Cadernos do GEA, n.1, jan.-jun. 2012


POLÍTICA AFIRMATIVA Cadernos do GEA, n. 3, jan.-jun. 2013
DE ACESSO À EDUCAÇÃO
SUPERIOR
FUNDAMENTOS JURÍDICOS
E EXPERIÊNCIAS DE
Grupo Estratégico de Análise da
IMPLEMENTAÇÃO
Educação Superior no Brasil
ISSN 2317-3246 ISSN 2317-3246

PERFIL SOCIOECONÔMICO
DO ESTUDANTE DE Cadernos do GEA, n. 5, jan.-jun. 2014
A MULHER NO
GRADUAÇÃO ENSINO SUPERIOR
UMA ANÁLISE DE DOIS DISTRIBUIÇÃO E
CICLOS COMPLETOS DO REPRESENTATIVIDADE
ENADE (2004 a 2009)
Andreia Barreto
Dilvo Ristoff
ISSN 2317-3246

OBSERVATÓRIO DE
Cadernos do GEA, n. 4, jul./dez. 2013 POLÍTICAS DE AÇÃO Cadernos do GEA, n. 6, jul./dez. 2014
AFIRMATIVA DO SUDESTE
(OPAAS)
AF_Caderno-do-GEA-N6 - JOGO DE CAPA.indd 1 06/06/2016 20:17:18

Otair Fernandes de Oliveira


Ahyas Siss
(Orgs.)
ISSN 2317-3246 ISSN 2317-3246

DEMOCRATIZAÇÃO DA DEMOCRATIZAÇÃO
EDUCAÇÃO SUPERIOR Cadernos do GEA, n.8, jul.-dez. 2015 DO CAMPUS
NO BRASIL IMPACTO DOS PROGRAMAS
NOVAS DINÂMICAS, DE INCLUSÃO SOBRE O
DILEMAS E APRENDIZADOS PERFIL DA GRADUAÇÃO
Rosana Heringer (Org.) Dilvo Ristoff

ISSN 2317-3246

A QUESTÃO INDÍGENA
Cadernos do GEA, n.7, jan.-jun. 2015
NA EDUCAÇÃO SUPERIOR Cadernos do GEA, n.9, jan.-jun. 2016

Lucia Alberta Andrade de Oliveira


AF_Cadernos do GEA N7 - JOGO DE CAPA.indd 1 22/06/2016 20:23:40

(Org.)

Cadernos do GEA, n.10, jul.-dez. 2016

64
LUCIA ALBERTA ANDRADE DE OLIVEIRA
Licenciada e Bacharelada em Ciências Sociais e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Desde
novembro de 1996, vem trabalhando com educação escolar indígena, inicialmente como servidora pública da Secretaria Municipal
de Educação de São Gabriel da Cachoeira/AM. Atuou como consultora do MEC por meio de contrato com a Unesco, em 2008, e
com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em 2010; e no Instituto Socioambiental (ISA). Em 2012, foi
Assessora da Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai), atuando na interlocução com os povos e organizações indígenas
e as 37 coordenações regionais do país. Entre 2014 e 2015, integrou a coordenação de organização e realização da I Conferência
Nacional de Política Indigenista. Em 2016, foi nomeada para o cargo de Coordenadora Geral da Educação Escolar Indígena da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC).

Autorizada a reprodução total ou parcial dos conteúdos desta publicação desde que sem fins lucrativos e citada a fonte.
Uma campanha do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil GEA da FLACSO Brasil. | www.flacso.org.br

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