Sei sulla pagina 1di 1399

-•"/'..

-•

-TV,C

><?W

f • -

"^r^
Ie ne fay rien
sans
Gayeté
(Montaigne, Des livres)

Ex Libris
José Mindlin

t
i
(DiBmü
DE

CORRECTAS E EMENDADAS

PELO CUIDADO E DILIGENCIA

DE

3. t). $arretxr £tw t 3. <$. ittontetro.

TOMO PRIMEIRO.

NA OFPICINA TYPOGRAPHICA DK LAXGHOFF.


1834.
ADVERTÊNCIA.

A . grande reputa9ão que Gil Vicente adquirio entre


seus comtemporaneos, e a celebridade que ainda hoje
seu nome goza entre os litteratos, junto á singular
raridade de suas obras; parece deverião ter animado
algum zeloso da nossa litteratura a einprehender uma
nova edÍ9ão deste nosso antigo escriptor. Tal comtudo
tem sido a nossa incúria e desleixo pelas cousas pátrias,
que, apezar de duas vezes se ter imprimido esta obra,
estávamos ameaçados de ver perecer os poucos exem-
plares que delia ainda restavão depositados em algumas
bibliotecas da Europa, sem que nos tivéssemos preve-
nido contra a total perda do fundador do nosso Theatro
nacional e de um dos restauradores do Drama moderno,
como ja por indiíFeren9a nossa ou por estúpida avareza
de seus depositários, deixamos vergonhosamente perder
o famoso romance de Amadis de Gaula, de Vasco da
Lobeira, que quasi todas as na9ões cullas possuem,
traduzido ou imitado, excepto aquella que originalmente
o produzio.
iv ADVERTÊNCIA.

Nós bem sentimos a difficuldade que atégora teria


encontrado a reimpressão de um escriptor que foi o
inimigo jurado daquelles mesmos que tinhão de dispensar
todas as licenças necessárias; e que a thesoura fra-
desco-desembargatoria havia de ser mais desapiedada
do que a mesma inquisitoria que em 1586 mutilou e
desfigurou o nosso poeta. Mas ainda restava o recurso
de imprimir fora do Reino, apezar das desvantagens
em que, a outros respeitos, laborão os que em paizes
estrangeiros tomão sobre si taes emprezas.
Movidos do amor que sempre tivemos pelas nossas
cousas e desejosos de revindicar a parte da gloria que
cabe á nossa Pátria pelos excellentes engenhos, que
illustrando-a com seus escriptos, cooperarão para a
grande obra da restaura9ão das lettras, tínhamos medi-
tado a empreza de tirar á luz uma serie de edições de
nossos clássicos, quando nos veio á notícia, que nas
nossas visinhan9as, na rica biblioteca da Universidade
de Goettíngen, existia um exemplar da 1» edição das
obras de Gil Vicente. Sem perda de tempo nos apre-
sentamos naquella cidade, onde em menos de um mez
tiramos uma mui fiel cópia daquelle precioso livro, sobre
que ao depois fizemos a presente edição. Não passare-
mos em silencio os obséquios que do Dr. Antônio Me-
nezes de Drummond recebemos, o qual, pelo seu amor
das hellas lettras, nos procurou, como membro daquella
Universidade, que então cursava, a faculdade de usar-
mos dos livros da Hiblioteca, o qUe a estranhos é
ADVERTÊNCIA. v

vedado; pelo que lhe rogamos queira acceitar esto


público testimunho da nossa gratidão.
Das obras do nosso poeta se fizerão, como dissemos,
duas edições, ambas posthumas. A primeira foi feita em
Lisboa na Imprensa de João Alvares, em 15612, foi.,
com o titulo seguinte: Copilaçam de tódalas obras de
Gil Vicente, a qual se reparte em cinco livros. O
primeiro he de todas suas obras de devaçam. O se^
gundo as Comédias. O terceiro as Tragicomedias.
O quarto as Farças. No quinto as obras metidas.
O editor foi Luiz Vicente, filho do poeta, que nos diz
que seu pae as andava ordenando para as dar á
estampa, quando a morte o arrebatou em meio de sua
tarefa. O alvará de privilegio, comtudo, foi concedido
a Paula Vicente, igualmente filha do poeta, em 1561.
Esta edição impressa com caracteres gothicos, á excepção
dos argumentos, que são impressos em letra romana,
argue incúria e pouco esmero do impressor, não so
pelos erros typographicos de que abunda, mas pela
freqüente falta de espaços entre as palavras, o que
muitas vezes offerece sérios obstáculos á intelligencia
do texto. Algumas gravuras em pau que adornão esta
edição, não são inteiramente destituídas de mérito e de
interesse para a historia desta arte entre nós. A
2* edição foi igualmente feita em Lisboa na imprensa
de André Lobato, 1585, 4? com o mesmo titulo da
precedente, augmentado com a oininosa observação:
Vam emendadas pelo Sancto Officio, como se manda
vi ADVERTÊNCIA.

no Cathalogo deste Regno. O merecimento desta edição


é infinitamente inferior ao da 1? Pois achando-se nella
reproduzidos todos os erros typographicos e indecentes
chocarrices da primeira, bem se pôde conjecturar que
qualidade de emendas temos a esperar do gosto e litte-
ratura daquelle pio tribunal. Versos omittidos, outros
rediculamente em todo ou em parte alterados, copias
cortadas, e finalmente paginas inteiras a eito supprhnidas.
E estes lugares mutilados, como é de suppor, não são
dos menos interessantes de Gil Vicente. Como poderia,
por exemplo, um inquisidor que aspirasse a bispar, ler
sem se alterar, e sem fulminar iminediatamente o formi-
dável veto a similhantes passagens:

E á gente religiosa
Mandae-lhes velas bispaes,
A cera de renda grossa,
Os pavios de casaes,
E logo não porSo grosa.

Fecharemos estas notícias bibliographicas com advertir


que ultimamente sahírão impressos alguns autos e comé-
dias castelhanas do nosso poeta na interessante collec9ão
intitulada: Teatro Espanol anterior d Lope de Vega.
Gotha, 1833.
Ein quanto ao plano que seguimos na presente
edição, depois de devida reflexão, adoptamos o seguinte,
que esperamos mereça a approvação do publico litterario.
Corrigimos todo o logar onde nos pareceo manifesto o
erro typographico, sem nos deixarmos acanhar pela
ADVERTÊNCIA. vii

cega predilecção que tanto voga entre nós pelas antigas


edições,(*) (superstição que o atrazamento em que a
arte typographica se achava então em Portugal, de
maneira alguma authoriza) que faz com que muitos
tenhão pelos logares claramente corrompidos, a mesma
veneração que a mistérios que não podem comprehender.
Emquanto á ortographia, assentamos aproximar-nos da
moderna, nunca porém de maneira que a pronúncia
soffresse alteração, dando uma voz moderna pela antiga.
Conservamos pois sam e som por sou, devação por
devoção, concrusão por conclusão e outras similhantes.
No fim do 3° vol. encontrará o leitor uma taboa
glossaria mostrando a significação conjectural de alguns
termos antiquados e rústicos, portuguezes e castelhanos,
que se não encontrão nos melhores diccionarios das
duas línguas.
Finalmente assentamos nada omittir do que se
achava impresso na 1? ed. E nesta parte não dissimu-
laremos as objeções que contra si tem este systhema.
Rem sentimos que nas obras do nosso poeta se encon-
trão passagens, que por ineptas e despidas de todo o

(*) Ainda não ha muito tempo appareceo em Lisboa uma


edição da Peregrinação de Fernan Mendes Pinto, em
que o editor se preza de ter seguido o texto da
í"? , regeitando a segunda, aindaque correcta e augmen-
tada pelo Autor. Mas que muito, se a sumptuosa
edição dos Lusíadas de Paris 1817, resuscitou e con-
servou como bellezas poéticas, os erros da i-; corregi-
dos por Camões na 2 a !
viu ADVERTÊNCIA.

alento poético, que em outras partes o autor mostrou


possuir em eminente grau, são summainente fastidiosas
á leitura e prejudíciaes em certo modo á reputação do
nosso poeta. Mas outras principalmente, por sua inde-
cência e por peccarem contra as leis do decoro, não
estão em harmonia com os costumes e civilização do
nosso século, supposto que aqucilas indecentes bufone-
rias se representassem no Paço, muitas vezes na Igreja,
e fizessem as delicias de duas brilhantes cortes. Taes
logares muitos estimarião ver inteiramente supprimidos
ou modificados, e esse seria o nosso parecer, a não ser
esta consideração. Obras como as de Gil Vicente Ce
assim é quasi todo o drama cômico do seu tempo) não
se imprimem hoje em dia com o mesmo fim que na
epocha em que forão escriptas. Então Gil Vicente era
lido, representava-se, gostava-se e talvez passagens
bem reprehensiveis fossem as mais applaudidas; emfiin
depois de impresso, tornou-se propriedade do povo, que,
nas horas de ócio, nelle achava um alegre passatempo e
um rico thesouro de rifões e dictados para colorir e ani-
mar suas conversas, e que seus leitores de pães a filhos
transmittirão á posteridade. Agora porém eslas obras
pertencem ao domínio da historia— da historia da litte-
ratura, dos costumes, e so nas mãos dos litteratos é que
tem de andar. E quem não folgará de encontrar nestas
antigualhas um painel verdadeiro dos tempos dos nossos
maiores? O litterato passa por essas indecências que
encontra entre muita belleza verdadeira, e não culpa o
ADVERTÊNCIA. ix

autor, que bem sabe defeito do século era e não seu; e


lie ein similhantes quadros que o philosopho se apraz ein
contemplar as grandes revoluções que a civilização vai
fazendo no modo de pensar e nos costumes dos homens.
Assim preferimos olhar estas obras como um documento
histórico que se deve conservar intacto.
Emfim, julgamos ter feito um importante serviço á
litteralura ein geral, e em particular á Portugueza,
restaurando as quasi perdidas obras de um de seus
mais celebrados engenhos, satisfazendo lambem os desejos
de muitos litteratos distinctos, tanto nacionaes como
estrangeiros, e cumprindo o vaticinio deGarção, quando
no seu drama intitulado O Theatro novo, assim apo-
strophava os manes dos nossos antigos poetas dramáticos:

Vós manes de Ferreira e de Miranda,


E tu, ó Gil Vicente, a quem as Musas
Embalarão o berço e te gravarão
Na honrada campa o nome de Terencio; —
Esperae, esperae, qu'inda vingados
E soltos vos vereis do esquecimento.
ENSAIO SOBRE A VIDA E ESCRIPTOS
DE

GrlL VICEITE.

No glorioso período da nossa historia que abrange o rei-


nado de D.Manuel até meado o de D. Joãolll.,floreceoem
Lisboa o nosso Gil Vicente, por seus cointemporaneos cha-
mado o Plauto Portuguez. As noticias que á posteridade
chegarão sobre seu nascimento e parentela são extrema-
mente escassas e obscuras. De seus pães se diz que erão
de illustre extracçãof); a respeito do logar e anno de seu
nascimento nada se sabe com certeza. Assim como ja
coube em sorte a muitos varões illustres, vários logares
tem sido mencionados como sua pátria. Guimarães,
Harcellos e Lisboa dispUtão entre si esta honra. A
epocha porém deste acontecimento se pôde fixar no
principio do último quartel do XV século. Mas, ou
o nosso poeta fosse realmente nascido em Lisboa, ou da
Província tivesse vindo freqüentar a Universidade, que
então se achava na capital, uma passagem de suas
obras nos induz a crer que élle ja vivia nesta cidade
no reinado de D. João II., isto é antes do anno de 1495;
pois fallando deste grande rei no seu primeiro Auto, na
figura de pastor Gil, diz, recordando-se delle:(**)

(*) Barbosa, Bibliot. Lusit.


(**) Tom. t°_ pag. o-
E N S A I O $c. xi

Conociste á Juan domado,


Que era pastor de pastores?
Yo Io vi entre estas flores
C'n gran hato de ganado,
Con su cavado real.

Seus pães, ou por lhe quererem dar uma educação


liberal, ou por o destinarem a uma solida e proveitosa
profissão litteraria, o puzerão na Universidade, dedi-
cando-o ao estudo do Direito Civil. Porém Gil Vicente,
dotado liberalmente pela natureza de uma vivíssima ima-
ginação e de um espirito eminentemente poético e jovial,
depressa se enfastiou da escabrosa aridez da Jurispru-
dência, e abandonou — se com quebra de seus interesses
materiaes, talvez com vantagens para a sua fama —
estudos que lhe poderião ter defecado em principio o
brilhante engenho que trouxe seu nome á posteridade.
Se esta deserção teve logar ainda em vida de seu pae,
ou se, como aconteceo a um celebre contemporâneo Ita-
liano,^) a morte delle o lançou decedidamente no com-
inercio das musas, sua natural vocação, não sabemos.
Talvez que a estima que seus talentos poéticos lhe
grangeárão na Corte, não influísse pouco para esta sua
feliz resolução, Com effeito elle mesmo ou seu filho
Luiz, seu primeiro editor, nos conservou em suas obras
a historia de seus primeiros ensaios dramáticos, que
parece favorecer esta conjectura. A Rainha Dona Hea-
triz, mulher de Dom Manuel, tendo ficado mui agradada
do monólogo que Gil Vicente, no character de pastor, foi
recitar na sua mesma camera, onde ainda se achava de
cama, de parto do príncipe D.João, depois D. JoãoIII.,

(*) Ariosto. '


xii ENSAIO §c.

congratulando-a pelo feliz nascimento do herdeiro da


coroa, lhe pedio, esperando talvez que o poeta mudasse
as settas em grelhas, que em dia de Natal lhe repetisse
aquella mesma composÍ9ão, endere9ada ao nascimento do
meninoDeos. Gil Vicente julgou dever satisfazer ao pedido
com mais propriedade e compoz para esse dia o pri-
meiro auto que se acha nas suas obras de devo9ão.
Temos pois que os primeiros ensaios dramáticos do
nosso poeta datão de 150!2, anno em que nasceo D.
João III. Desde então vemos sua musa em constante
actividade em similhantes occasiões, durante os dous
reinados de D. Manuel e de seu successor, não havendo
festa de anno, de nascimento ou casamento de pessoa
Real, para cujo esplendor não contribuíssem os brilhantes
talentos de Gil Vicente.
Foi durante o último destes dous reinados que a
fama do nosso poeta cresceo a ponto, que, como observa
um litterato alIemão,(*) não havia por esse tempo em
toda a Europa poeta cômico mais affamado nem mais
querido dos seus, do que o poeta portuguez. Porém
não somente em Portugal se admirava Gil Vicente; o
seu nome ja corria pelos mais cultos paizes da Europa.
Na verdade, se os louvores recebem valia da auctori-
dade da pessoa que os dá, nenhum poeta nesse tempo
podia gloriar-se de seus successos dramáticos como
aquelle a quem Erasmo deu o primeiro logar entre os
cômicos modernos. Este grande restaurador das lettras,
occupado como estava com os mais sérios e multifarios
trabalhos litterarios, não julgou perder o tempo que ap-

(*) Bouterweck, Geschiclile der portug. Poesie und Bered-


samkeit, pag 190.
ENSAIO $c. xm

plicou ao estudo da língua portugueza, o que somente


emprehendêra afim de completar o prazer que uma im-
perfeita intelligencia das bellezas de Gil Vicente lhe
tinha causado. O
Einquanlo a fama do nosso poeta corria entre os
lilteratos estrangeiros, em Portugal a inveja, desprezível
paixão d'almas ineptas, mas presumidas, disputava a
Gil Vicente a honra da invenção de suas peças; e como
acontece quasi sempre com tão miseráveis creaturas,
defraudavão seu compatriota desta gloria para a conce-
derem a estranhos, accusando-o de furto litterario; como
se quizessem affastar para longe de si o brilho do mérito
superior que os incoinmodava. Foi este atrevido insulto
que deu origem á famosa farça de Inez Pereira, da
qual diz o crítico que acima citamos, que a ter ella sido
composta por Gil Vicente no tempo de Moliere, seria
uma das comédias de characler admiradas na Europa.(**)
Gil Vicente querendo responder de maneira que de uma
vez impozesse silencio a seus detractores e confundisse
a inveja, usou de um meio tão novo como efficaz para
o seu intento. Achando reunidos seus admiradores e
seus zoilos, talvez nos mesmos serãos do Paço, declara
que lhe chegarão aos ouvidos as maliciosas insinuações
contra os seus talentos; e para sua desaffronta se offe-
rece a compor uma farça sobre qualquer assumpto que
seus adversários lhe proponhão. O rifão popular, que
ainda hoje voga entre o povo, Antes quero burro que
me leve, que cai:alio que me derrube, foi o lhema que

(*) Bibliot. Lusit. art. Gil Vicente.


(**) Bout. pag. i ( 3 .
xiv ENSAIO $c.

lhe appresentárão. A engenhosa applicação deste pro-


vérbio, as situações verdadeiramente cômicas que se
encontrão nesta farça, a verdade sempre sustentada com
que pinta os characleres de Inez, de Pero, e do Escu-
deiro; a naturalidade, gra9a e fluencia do dialogo, o
inimitável sal, a elegância de estylo, a musica harmo-
nia da versifica9ão, formão a mais victoriosa resposta
que jamais escriptor, em iguaes circumstancias, deu a
seus zoilos.
Não era o talento poético o único que Gil Vicente
possuía. Não só, como se verá em alguns logares de
suas obras, compunha elle a musica das folias e cantigas
que introduzia em suas peças; mas, como o celebre
Moliere, reunia ao talento de auctor o de actor, como
se vê dos seguintes versos do nosso famoso André de
Resende, seu contemporâneo, que por comprovarem este
facto, e serem um documento da estima em que erão
tidas as composi9ões do nosso poeta, aqui deixamos
transcriptos.

Cunctorum hinc acta es concedia plausu,


Çuam Lusitana Galo àuctor et actor in aula
Egerat ante, dicax atque inter vera facetus:
Gdlo jocis levibus doctus prestringere mores;
Qui si non língua componeret omnia vulgij
Sed potius latia, non Grécia docta Menandrum
Ante suum ferret; nec tam Romana theatra,
Plautinave saleSj lepidi vel scripta Terenti
Jactarent: tanto na/n Galo prceiret utrisque,
Quanto illi reliquos inter, qui palpita rore
Oblita Coryceo digito meruoire /aventem.

A pe9a de que Resende aqui falia é a Tragicomedia


de Lusitânia, que Gil Vicente tinha composto para o
ENSAIO #c. xv

nascimento do Infante D. Manuel, que inorreo em tenra


idade, a qual foi representada em Rruxellas em 1532,
em casa do Embaixador Portuguez D. Pedro deMasca-
renhas, na festa que este deu pelo mesmo motivo, e que
Resende descreve no elegante poema latino, donde
extrahimos a citada passagem.
Foi o poeta casado com Rranca Bezerra, de quem
teve Gil Vicente, Luiz Vicente e Paula Vicente, que
herdarão os talentos do pae. Conta-se que estando Gil
Vicente no zenith da sua reputação, seu filho mais velho
começara a desenvolver uin tal talento na poesia cômica,
que ja assombrava e em breve ameaçava eclipsar a
gloria do pae; e que este, roido de uma desnatural inveja,
o fizera embarcar para a índia, onde Gil Vicente filho,
depois de se haver mostrado não menos esforçado sol-
dado que engenhoso poeta, ficara gloriosamente morto
no campo de batalha. Esta anecdota, adoptada por todos
os que tem fallado do nosso poeta, a ter fundamento,
poria uma nodoa indelebil no seu character. Em justiça
porém ao nosso poeta devemos observar que o escriptor
mais antigo onde encontramos este conto, é Manuel de
Faria e Sousa, autor a quem de certo estamos em muita
obrigação pelas muitas noticias litterarias que deixou
espalhadas por suas obras, principalmente nos seus
Commentarios ás Obras de Camões; mas que se deve
consultar com summa desconfiança pela apparente avidez
e irreflexão com que acolhia quantas anecdolas andavão
na boca do vulgo e com que muitas vezes faz os mais
acerbos ultrages á memória daquelles mesmos, cujo
character é seu maior empenho ennobrecer: exemplos
desta leveza se encontrão na sua vida do probo e in-
feliz Camões.
XVI ENSAIO $c.

De suas suppostas composi9ões apenas se conserva


o titulo de um auto chamado de D.Luiz de losTurcos..(*)
O segundo filho do nosso poeta foi Luiz Vicente,
seu editor. João Baptista de Castro conla deste o que
Faria refere de Gil, acrescentando que a Comedia dos
Captivos em que mostrara um grande talento cômico,
causara os ciúmes que o levarão á India.f*) Esta peça
é igualmente attribuida ao Infante D. Luiz; e no Index
expurgatorio de Filippell. a pag. 84 se prohibe o auto
dos Cativos, chamado de D. Luiz e dos Turcos.
Donde se vê que tanto o auto attribuido por Faria e
Sousa a Gil Vicente, filho, como o que J. B. de Castro
attribue a Luiz Vicente, são uma e a mesma cousa com
diversos títulos; e provavelmente composi9ão do Infante
D. Luiz e não dos filhos de Gil Vicente, como o dá a
entender o Index expurgatorio. (***)

(*) Barb. Bibliot. Lusit. art. Gil Víc. filho.


(**) J.B. de Castro, Mappa de Portugal, tom.II, p 32o. 2* ed.
(***) Taes contradicções acerca da peça que deveria ter cau-
sado tão monstruosos ciúmes, não deixão de favorecer
nossas suspeitas sobre a veracidade de Faria e Sousa;
única authoridade em que se fundou o Abbade de
Barbosa para dar três filhos a Gil Vicente; o que se-
guimos por não ir contra a opinião recebida, sem
estarmos munidos de provas positivas para a combater
com successo. O certo, porem, e, que a existência
deste pretendido filho não e' attestada por documento
algum, emquanto Luiz e Paula Vicente são os únicos
filhos que com certeza sabemos que o poeta tivera
como mostrão os dous documentos que se acharão
transcriptos depois deste ensaio. ( I e II) Demais se
Gil Vicente filho, foi tão grande poeta, se teve tão
infeliz sorte, e foi tão valente soldado como diz Faria
ENSAIO $c. xvn

0 último, e mais interessante dos filhos do nosso


poeta foi sua filha,Paula Vicente. Esta illustre Portu-
gueza, com quem a natureza não foi tão pródiga em
attractivos phisicos como em dotes de espirito, que ella
cultivou com muita felicidade, foi Dama da Infanta D.
Maria, filha d'ElRei D. Manuel e da Rainha D. Leonor.
Provavelmente fazia ella parte da academia de mulheres
doutas que aquella illustrada Princeza formou em sua
casa; CHI), em que se tornarão famosas Lutea Sigea,
Anna Vaz e a nossa Paula — ornamentos do sexo, ás
quaes o conhecimento do Latim e Grego era tão familiar
naquelle nosso grande século, como aos Caiados, Rezendes
e Gouveas. Paula Vicente não so coinpoz um volume
de comédias, que julgamos perdido, (*) mas no fim da vida
de seu velho pae, o ajudava em suas composi9ões.(IV)
Consta alem disto que ella desenvolvera um singular
talento histrionico, representando nas comédias de seu

e Sousa j como não achou elle documentos para men-


cionar na sua Ásia as acções e morte de uma tão in-
teressante victima do- desamor paternal? Porque se
não encontra seu nome na Chronica de D. João III. de
Francisco d'Andi-ade, ou em Couto, nas esliradissimas
listas de mortos, que com tanto cuidado compilavão os
nossos Chronistas, não dizemos ja das pessoas distinctas,
mas ainda de gente obscura, que de certo tinha menos
titulos do que elle á posteridade? Porque de tão
bellas composições se não conserva mais que o titulo
de uma peça que ha tão fortes razões para não acredi-
tar sua? Porque o não louvão ou ao menos mencionão
seus coetaneos, nem Portuguez algum ate' Faria? Temos
mui fortes suspeitas de que este tal Gil Vicente e' menos
filho do poeta, que da imaginação de Faria e Sousa.
(*) Bibliot. Lusit.
xvm ENSAIO âfc.

pae com tanta gfaça e natureza, que passava por uma


das melhores actrizes do seu tempo. Provavelmente
seus irmãos não estavão ociosos nestas occasiões.
Ao vermos Gil Vicente e sua família com tanta
entrada no Paço e ter elle mesmo empregado toda a
sua vida em serviço da Corte, seriamos induzidos a crer
que a abundância e o conforto erão o prêmio de seus
talentos e a recompensa de seus trabalhos, se elle, em
suas obras, não deixasse testimunhos do contrário. Em
1523 dizia elle:

E um Gil . . . um Gil . um Gil,


Hum que não tem nem ceitil,
Q u e faz os aitos a EIRei . .

Aito cuido q u e dizia,


E assi cuido que h e ;
Mas. não ja aito bofe',
Como os aiíos que fazia
Quando elle tinha com que.

Desta passagem se vê que Gil Vicente tinha cahido


em pobreza; tendo talvez consumido seu patrimônio,
sem se ter prevenido para o futuro, confiado na muni-
ficencia daquelles a quem tinha dado tantos momentos
de um prazer inteiramente novo; e que talvez o affastárão
de outro modo de vida, senão de tanta fama, ao menos
de mais proveito. Assim, no último quartel da vida e
em uma terrível occasião, com peste dentro de casa, se
vio reduzido á qualidade de desvalido requerente, re-
mettido a ministros, quando não pedia mais que para
matar a fome. São dignas de attenção as trovas que
elle mandou ao Conde do Vimioso, queixando-se da in-
gratidão com que era tractado, quando diz:
E N S A I O $c* XIX

.Que o medrar
Se estivera em trabalhar,
Ou . valera o merecer,
Eu tivera que comer,
E que dar e que deixar. (*)

Mas destes "illustres ingratos" este é o mais certo


galardão.
Porém apezar de não ser elle homem de fortuna,
que em falta de mais sólidos predicados, muitas vezes
é titulo bastante para se adquirir consideração; um interes-
sante documento que se conserva em suas obras, nos
prova que era elle pessoa de mais autoridade do que
se esperaria do gênero de seus talentos e profissão.
O facto é, além disso, uma bella illustração do seu ca-
racter. No anno de 1531 se sentio em diversas partes
do reino um violento terremoto q^ue causou consideráveis
estragos e espalhou o espanto e terror nos ânimos das
populações. Os padres, longe de tranqüilizarem o povo
e lhe inspirarem confiança, servirão-se, como sempre,
do púlpito para augmentarem o terror e confusão, de-
nunciando aqaella infeliz raça proscripta, a quem então
era costume attribuir todas as calamidades públicas,
como única causa da ira do Ceo, que lhes enviava
aquelles castigos por soffrerem entre si os inimigos de
Deos. A denúncia teve o desejado eflèito; os Christãos
novos forão obrigados a abandonar suas casas e a pro-
curar nos montes um asilo contra o cego furor popular.
Esta scena se passava em Santarém: Gil Vicente que
então se achava ahi, apressa-se a acudir ao perigo:
reúne os energúmenos padres no âdro da igreja; exproba-

(*) Tom. III, pag. i82-3.


xx ENSAIO $c.

lhes o abuso de seu ministério, todo de charidade e con-


ciliação e não de contentar a desvairada opinião do
vulgo; e por fim exhorta-os a que de novo subão ao
púlpito a reparar o damno causado por suas sediciosas
harengas. Os padres obedecem; os Christãos novos e
judeos regressão a suas casas, £ o repouso de toda uma
considerável população é restabelecido á voz de Gil
Vicente — do autor de Mofina Mendes, e do Clérigo
da Beira, que n'um lance de necessidade soube arrancar
a mascara de Momo e assumir a gravidade de mode-
rador das tormentas populares que nos descreve o poeta
latino "pietate gravem ac meritis viruin!"(*)
O anno em que falleceo Gil Vicente se ignora. O
abbade Diogo de Barbosa diz que elle morrera antes do
anno de 1557 em Évora, para onde tinha acompanhado
a corte. E claro que o autor da Biblioteca se funda em
que, estando Gil Vicente, como diz seu filho Luiz, a
colligir as suas obras, com tenção de as dedicar a D.
João III., quando a morte lh'o não consentio levar a
eflèito, devia elle ter fallecido antes deste Rei, que mor-
reo naquelle anno. Se porém se considerar que Gil
Vicente ja em 1531 se achava muivisinho da morte (**),.
e que a última composição sua é de 1536, parecerá
demasiado vaga a epocha apontada por Diogo Barbosa.
Com effeito que motivo impediria o poeta da corte de
continuar a divertir seus reaes patronos desde 1636,
quando até então as suas producções erão quasi annuaes,
muitas vezes duas e três por anno? É provável que

(*) Veja-se a carta em que G. V. dá parte deste successo a


D. João III., no tom. III, pag. 385.
(**) Veja-se tom. III, pag. 388.
ENSAIO $c. xxi

Gil Vicente não sobrevivesse muito a este anno, reali-


sando-se assim os seus pressentimentos, e contando pouco
mais de sessenta annos de idade. (*)

A collecção que Luiz Vicente nos deixou das obras


de seu pae, não contém tudo o que sahio da sua penna.
De muitas composições, tanto lyrícas como dramáticas,
nos diz elle não pudera alcançar copia ;(rV) deste número
foi provavelmente a farça intitulada Caça dos segredos,
de que Gil Vicente fallava ao Conde do Viinioso. (**)

Tão longe estamos de reclamar para a nossa pátria


a honra da invenção das composições dramáticas da
moderna Europa, que a consideramos como a última das
nações cultas em que esta arte foi introduzida. As
Eglogas castelhanas de Encina, os Mystertos represen-
tados na Itália pela Companhia Gonfalone em 1440,
os Milagres inglezes desde tempos remotos, e finalmente
as Farças, Moralidades e os Mystertos Francezes re-
presentados em Paris pela Coüfraria da Paixão desde

(*) Na Comedia Floresta de Enganos, ultima composição


do poeta, representada em i 5 3 6 , diz o Doutor Justiça
Maior:
" Y a hice sesenta y seis,
"Ya ini tieinpo es pasado."
Pode bem ser que fosse o mesmo G. V. que desem-
penhasse este papel e que realmente aqui designasse a
sua idade. Sendo assim teria elle nascido em i47°-
(**) Tom. III, pag. 382.
XXII ENSAIO *e.

1380, são factos em presença dos quaes einmudece


qualquer patriótica parcialidade. É so do principio do
século XVI que data entre nós a introducção de compo-
sições dramáticas com os primeiros ensaios de Gil Vicente.
Debalde remontaremos nós até aos mais remotos tempos
da monarchia em procura de alguma cousa que nos dê
uma idea do conhecimento desta arte entre nós antes
daquella epocha.
Sendo isto assim, resta examinar de qual destas
nações veio a Gil Vicente a primeira idea de compo-
sições dramáticas, ou se elle na sua carreira não teve
modelos e foi absolutamente original. Um sábio Acadê-
mico, em uma erudita memória sobre oTheatro Portu-
guez,(*) adinittindo a possibilidade da primeira hypothese,
julga que a representação da vida de Christo por João
Michel, podia hem ter sugerido ao poeta portaguez a
primeira idea de composições dramáticas, e seria o fun-
damento desta conjectura a similhança entre o Mysteriò
do auctor francez, e o auto da Vida de Deos composto'
por Gil Vicente.

Ainda que, em parte, isto assim possa ser, e haja


muita probabilidade de que o poeta conhecesse as com-
posições francezas, como teremos occasião de dizer,
comtudo é necessário convir em que o Castelhano Juan
de Ia Encina, e não os Francezes, foi o modelo sobre
que Gil Vicente compoz as suas primeiras producções.
dramáticas. Embora se diga que as composições de
Encina não passão de umas simples eglogas; o assuinpto,

(*) Metn. da Acad. Real das Sciencias, Tom, V, Parte II,


pag. 42.
ENSAIO ófe. xxii.

a disposição, o estylo, emfim scenas inteiras imitadas,


mostrão que estas eglogas são a mesma cousa que os
Autos Pastoris de Gil Vicente, com diverso nome.
Mas se o poeta portuguez, ao encetar uma carreira in-
teiramente nova para a sua nação, seguio as pisadas do
poeta hespanhol, bem depressa, arrebatado de sua crea-
dora imaginação, sahio do acanhado terreno a que este
o conduzira, deixando não so a perder de vista seu
antecessor e mestre, nas mesmas composições em que o
tinha tomado por modelo, mas abrindo na Hespanha uma
nova carreira neste ramo da liíteratura, em que depois
o famoso Lope de Vega adquirio tão grande reputação.
Que Juan de Ia Encina era muito conhecido em Portugal,
e que os comtemporaneos de Gil Vicente o consideravão
como seu primeiro modelo, mostra por palavras nada
equívocas Garcia de Resende, quando diz na sua Mis-
cellanea:
E vimos singularmente
Fazer representações,
D'estilo mui eloqüente,
De mui novas invenções:
Elle foi que inventou
Isto cá, e o usou
Com mais graça e mais doutrina.
Posto que Joam dei Enzina
O pastoril começou.

Porém nas obras de devação de Gil Vicente ha


visivelmente mais de um gênero de composições dramá-
ticas: pelo menos é fácil distinguir entre os Autos
pastoris, que em si mesmo tem o cunho da poesia
hespanhola, e as peças bíblicas do gênero dosMysterios
de origem franceza ou italiana e deslas nações levados
a toda a parte da Europa.
XXIV ENSAIO #c.

A este último gênero parece pertencer a Historia


de Deos, o Auto da Cananea, o da Alma e talvez as
Barcas. É possível que Gil Vicente, uma vez empe-
nhado na carreira dramática, por suas próprias diligencias
ou por intervenção da Corte, viesse a deparar com as
composições francezas. Com effeito, quem compara*
qualquer destas peças, particularmente a Historia de
Deos com os Mysterios representados em França, poderá
achar algum fundamento para esta conjectura. Assim
estes títulos e dignidades de que o poeta reveste os
differentes diabos que põe em scena, mais parecem for-
mar uma espécie de systhema adoptado por todos aquelles
que tractárão similhantes assumptos, do que casual in*
venção do poeta portuguez. Se nos Mysterios francezes
Lucifer é sempre o Príncipe dos demônios, ein Gil Vicente
é o Maioral do Inferno; na peça portugueza Bélial é
chamado Meirinho da Corte infernal, nos Mysterios."o
vemos designado por Procureur des Enfers, e em ambas
as partes mostra um • character igualmente violento, em
opposição á astucia de Satanás, que assim no auto por-
tuguez como nos mysterios franceses é encarregado por
Lucifer de tentar tanto os homens como a Christo. É
também digno de se notar que na peça de que estamos
fadando, deixa Gil Vicente a versificação nacional e se
aproxima daFranceza.CVI} Se for necessário para tor~"
nar mais plausível esta conjectura acrescentar que Gil
Vicente conhecia a língua franceza, o seu auto ou farça
da Fama o demonstrará.
Em quanto ás outras composições de Gil Vicente,
se ellas forão invenção propriamente sua, ou se teve
modelo a quem imitasse, não nos parece fácil resolver.
E certo que ja em 1517 sahírão impressas em Nápoles'
ENSAIO $c. xxv

algumas comédias de Bartolomeu Torres Naharro, mas


de uma comparação entre as composições destes dous
auctores não resulta convicção de que elles se conhe-
cessem reciprocamente, ou seja que ambos tiverão um
modelo commum, ou que casualmente se encontrassem
no mesmo gênero de composições.
Mas se Gil Vicente não foi o inventor do drama
moderno, se a honra dessa primazia litteraria não per-
tence á nação portugueza, pode ella gloriar-se de ter
produzido um engenho que não so, dentro de alguns
annos a trouxe ao nivel, nesta arte, das outras nações
da Europa, exercitando-se elle so em quasi todos os
gêneros de drama que ein Itália, França, Inglaterra,
Hespanha tiverão suas epochas distinctas e que lenta-
mente se forão succedendo uns aos outros por espaço
de dous séculos, e occupando cada um delles exclusiva-
mente a vida inteira de muitos poetas; mas ainda exce-
deo seus predecessores e cointemporaneos em alento
poético, originalidade, e interesse que soube dar a suas
variadas composições. E nisto consiste a verdadeira
gloria da nossa nação; os Portuguezes o podem pro-
clamar com um nobre orgulho, que não tendo povo al-
gum moderno tão árduas e prolongadas batalhas a pelejar,
nem tão formidáveis inimigos para suas forças a com-
bater, como a nação portugueza, afim de conquistar e
assegurar a sua independência, o que forçosamente lhe
houve de retardar o progresso de toda a litteraria cul-
tura, pôde não so, no espaço de poucos annos, discorrer
as differentes províncias das lettras, de longo tempo
cultivadas n'outras nações, mas ainda de as alcançar na
sua avançada carreira. Que futuro não aguardava uma
nação a quem a Inquisição, os Jesuítas e um tyrannico
xxvi ENSAIO $c.

jugo de sessenta annos não viesse neutralizar tão ge-


neroso impulso!
É tradicção entre os litteratos que Erasmo, que
tinha em grande conta o talento de Gil Vicente, decla-
rara que era elle o poeta do seu tempo que melhor
tinha imitado a Plauto. Pôde bem ser que a prespicacia
de Erasmo achasse grande similhança entre os dous
engenhos, e dicesse que o poeta poríuguez houvera sido
um Plauto se vivesse em Roma no sétimo século da
sua fundação; mas que o philologo de Rotterdam reco-
nhecesse ein Gil Vicente o discípulo do cômico latino, não
é crivei. Com effeito, se a sua inculta e desleixada musa
apresenta muitas vezes admiráveis rasgos d'engenho,
que a arte não cria, mas só pôde moderar, debalde se
procurará nelle o menor rasto das regras dramáticas
observadas pelos cômicos antigos.
Porém esse mesmo desprezo ou antes essa mesma
ignorância dos preceitos d'Aristoteles e Horacio foi por
ventura a fortuna de Gil Vicente. Houvera elle lido e
meditado os modelos da antigüidade, fora sim mais correcto,
mais judicioso, mais regular; mas talvez hoje não sou-
béssemos que os nossos maiores possuirão entre si um
gênio original: a erudição, inimiga da originalidade, lem
deprimido mais de um talento poético. Por isso nós não
estranhamos nem sentimos encontrar em Gil Vicente
essa falta de unidades: ja ellas tiverão mais ardentes,
sectários que hoje. É verdade que o poeta no auto da
Historia de Deos, chama successivãmente a scena todos
os Patriarchas desde Adão até Jesu Christo; que na
comedia de Rubena o espectador vê nascer a heroina
em Hespanha, de cinco annos pastorar gado, de quinze
transportada a Creta e ahi casar: isto são defeitos sem
ENSAIO fc. xxvn

dúvida, mas não daquelles de que a crítica deva ocu-


par-se quando se tracta de um autor do século e situação
de Gil Vicente-- Mas que? não vemos nós nestes tempos
em que vivemos applaudir essas mesmas incongruidades?
A Comedia de Rubena não é outra cousa mais que o
que presentemente os românticos chamão Quadros ou
Painéis dramáticos, e um moderno auctor a teria intitu-
lado: Painéis dramáticos da vida de uma mulher.
Assim é que Johnson julga ter posto Shakspeare a cu-
berto dos tiros da crítica, dizendo que as suas peças
irregulares ( e neste numero entrão as suas mais subli-
mes composições) não são tragédias nem comédias, mas
um gênero de drama distincto, que o seu mesmo auctor
intitulou Historias (histories). (*) Porém o immortal trá-
gico do Avon não carece destas distineções escholasticas
para conservar o seu Jogar acima de todos os clássicos.
Alem disso, em muitas das composições de Gil Vicente,
em que estas incongruidades parecem mais absurdas,
como quando junta em dialogo personagens da historia
pagan ou fabulosas com os Patriarchas e anjos, ou
quando põe em contacto pessoas que viverão em mui
diversos tempos, nunca devemos perder de vista a idea
que occupava o poeta, que era personificar ou symbolizar,
por meio desses nomes alguma idea abstracta e fazer mais
viva impressão no animo dos espectadores. Assim, quando
Heitor, Achilíes, Annibal, Scipião apparecem em scena
para exhortarein os Portuguezes á guerra, a impressão
causada por seus discursos devia ser mui mais pene-
trante do que sendo estes pastos na boca de entes mais
abstractos, como a Fortaleza, o Valor, a Heroicidade;

(*) Johnson, life of Shakspeare.


xxvni ENSAIO fe.

e aqui são taes personagens tão allegoricas como no


auto de Mofina Mendes, a Prudência, a Pobreza, a Hu-
mildade e a Fé. O mesmo acontece no auto daSibyla
Cassandra. O poeta querendo fazer sobresahir a pre-
sumpçosa confiança de Cassandra e seu soberano des-
prezo pelo matrimônio, faz-lhe regeitar com desdém as
proposições do mais rico e do mais sábio de quantos
homens tem existido — de Salomão, que elle não de-
signa com o titulo de rei, mas do pastor Salomão, por-
que o seu fim é so symbolizar neste nome o summo
grão da opulencia e sabedoria. Mas assim como acolá
empregou nomes profanos para um assumpto profano,
aqui emprega um nome bíblico para um objecto religioso.
Mas quereremos nós com isto dizer que não abstra-
hindo do século em que o poeta viveo e do ponto de vista
em que elle eoneebéo suas composições, tocara elle, no
que nos deixou, as raias do seu engenho? De certo
que não; o talento de Gil Vicente foi muito superior ao
mérito, mesmo relativo, de suas composições. A grande
superioridade da sua Farça de Inez Pereira sobre o
resto de suas composições bem manifesta que elle nem
sempre teve obras de empenho e despique a compor.
Nella é verdade se encontrão ainda esses defeitos d'arte,
mas em troco temos characteres traçados com uma ver-
dade e observação, que so ao verdadeiro talento é per-
miltido; temos uma disposição meditada, tendendo a um
desfecho, incidentes e situações cômicas e muito conhe-
cimento do coração humano. Com que arte o não vemos
sahir desses mesmos labyrintos em que elle se metteo?
Outro qualquer teria cahido nas mesmas irregularidades!
quando chegasse a occasião de se descartar do Escu-
deiro, que o embaraçava de chegar ao seu fim, mas talvez
ENSAIO $fc. XX ix

não tivesse a idea de dar o último toque ao character


do covarde rufião, como com uma admirável simplicidade
fez Gil Vicente na carta em que o irmão de Inez lhe
participa a morte do marido:
Sabei que indo
Vosso marido fugindo
Da batalha para a villa,
Meia légua de Arzilla,
O matou um Mouro pastor.

Mas se investigarmos quaes forão as causas que


impedirão o desenvolvimento de que o estro de Gil Vi-
cente era capaz, talvez acharemos as principaes no
gênero de composições que elle se vio obrigado a tractar,
e o circumscrito circulo de seus espectadores. As peças
de Gil Vicente se podem dividir em três classes: dellas,
umas erão compostas para celebrar uma noite de Natal,
outras para. festejar o nascimento ou casamento de uin
principe, outras para servir de entretenimento nos celebra^
dos serãos da Corte de Portugal. A primeira classe, a que
pertencem os autos, deu Gil Vicente toda a latitude de
que taes composições erão capazes, e muitas vezes sahio
fora de seus acanhados limites para entrar na Farça, em
que mais se aprazia; mas este gênero, de si mesmo tênue,
não era campo sufficiente, para desenvolver o seu talento.
Á segunda pertence a maior parte das Tragicomedias,
gênero, assim como o primeiro resistindo a todo o plano
dramático rasoavel, e so similhante a uma certa compo-
sição exdruxela, conhecida entre nós pelo titulo de
Elogios dramáticos. (*) Em taes composições ninguém

(*) Não se falia aqui de Amadis de Gaulaj ou D. DuardoSj mas


da Nao d''Amores, Fragoad'Amor, Templo d'ApoUoítc.
xxx ENSAIO 4c.

se admirará de não encontrar alguma cousa que pertença


ao domínio do drama, e so admira que Gil Vicente,
podesse assim mesmo, por meio de seu incomparavel
'talento faceto e cômico sal, dar tanto interesse a taes
composições que ainda hoje se não podem ler sem nos
porem n'hum continuado fluxo de riso. A terceira classe
emfim pertencem as Farças e Comédias, gênero em que
o poeta melhor podia desenvolver o seu talento. Porém
nestas, bem como em todas as suas outras composições, o
seu principal empenho era divertir e fazer rir a Corte, que
tirada de rizada em rizada por allusões a factos sabidos
e intrigas conhecidas, ja por satyras indirectas ou per-
sonalidades dirigidas a pessoas presentes, não exigia
demasiados exforços da fácil e creadora musa de Gil
Vicente. Tivera elle tido espectadores menos compla-
centes, um público composto de todas as classes da so-
ciedade, emfim um theatro público, o que em Portugal não
houve senão passado muito tempo; talvez mais farças
como a de Inez Pereira, e ainda mais trabalhadas, sub-
stituíssem muitas das suas outras composições. Porém
na situação de Gil Vicente talvez pudera elle dizer com
Lope de Vega:
Sustento' en fin Io que escrebi y conozco
Que autique fueran mejor de otra manera,
No tuvieran ei gusto que han tenido:
Porque á veces lo que es contra ei justo,
Por Ia misma razon deleita ei gusto. (*)

Porém, apezar de todos estes defeitos ja do século,


ja da situação de Gil Vicente, ha ahi muito que admirar,
ou as suas obras se considerem debaixo d'um ponto de

(*) Arte nuevo de hacer comédias.


ENSAIO 4*. XXXI

vista dramático, ou nós attendamos ás bellezas lyricas


de que abundão. Que variedade de characteres esboça-
dos em todas as suas composições, de que, um século
mais tarde, o mesmo pincel poderia ter feito primores
d'arte tão admirados como um Avarento e um Misan-
thropo f Quem lera com indiferença esses autos pastoris,
similhantes aos painéis de Teniers, em que o campo
ostenta toda a graça e louçania, todo o verdor e luxo
da natureza, povoado de ingênuos e contentes pastores,
que respirão a innocencia, a alegria, a satisfação, o ar
do campo, em seus jogos,.em suas danças e cantigas,
e em sua jovial simplicidade? A quem não deleitarão
estas formas livres e fáceis, a gala e soltura desta poesia
eminentemente nacional, em cadentes e harmoniosas re-
dondilhas, que se vão imprimindo na memória ao passo
que se recitão? O pathetico, o pomposo, não é empre-
gado com menos felicidade por Gil Vicente. Nas Tragi-
comedias de D. Duardos e Amadis, assim como no bel-
lissimo monólogo de Rubena se encontrão affectos ex-
primidos com uma tal energia e delicadeza, imagens de
tão extremada galhardia e formosura, que so nos fazem
sentir que o poeta não se entregasse mais a este estylo
e que enriquecesse com taes bellezas uma língua estranha.
Se do mérito litterario das producções do nosso
poeta passamos a olhá-las debaixo d'outros pontos de
vista, pelo lado moral e histórico, ainda o seu merecimento
será muito relevante. Não suppomos que Gil Vicente
considerasse a moralidade dramática como uma condição
dá comedia, antes julgamos que elle so teve em vista o
agradável; porém como o homem é naturalmente mais
inclinado a rir-se que a commiserar-se dos vicios e
defeitos de seus similhantes, tornão-se estes, materiaes
XXXII ENSAIO tf.

indispensáveis da comedia. Assim se encontra no poeta


um usurario logrado por um cavalleiro de industria, um
ministro prevaricador, por uma moça ladina; rediculisado
o pedantismo d'um medico; a astrologia judiciaria, ainda
em todo o vigor no tempo de Gil Vicente, cuberta de
ridiculo com uma graça e sal inimitável; emfim a soberba
dos grandes e poderosos abatida. Na própria presença
da corte se fazem as mais amargas recriminações contra
os Reis por suas tyrannias; e a mesma corte não está
a cuberto de seus sarcásticos gracejos. (*)
Porém classe nenhuma. foi tão perseguida por Gil
Vicente como os Frades. Este foi o foco em que se
concentrou toda a energia, mordacidade, acrimonia da sua
pungente satyra.. Foi esta a única classe que elle atacou
por ódio e por systhema, que procurou e acometteo de to-1
dos os lados. Não é preciso apontar logares; não ha peça
em que elles não sejão o alvo de seus tiros. E aqui
se offerece naturalmente uma observação: — como é que
o fanático D. João III, o introductor dos Jesuítas e da
Inquisição ein Portugal não so tolerava, mas se ria dos
ataques que a lépida Musa de Gil Vicente fazia contra
uma classe que completamente o dominou? O caso é
que os padres ainda se não tinhão tornado omnipotentes;
os homens illustrados ainda ousavão manifestar os receios
que depois se vierão a verificar; mais tarde Gil Vicente
se teria limitado a odiá-los em silencio: ja Camões no
seu tempo achava prudente não se embaraçar demasiado
com elles:

(*) Veja-se na Farça do Clérigo da Beira a falia do Clé-


rigo que principia "Medraria este rapaz" Tom. III,
pag. 32 0.
ENSAIO 4c. xxxm

"Mas passo "esta matéria perigosa"

diz elle nos immortaes Lusíadas. Que chistosas vaias,


que surriadas não daria Gil Vicente se assistisse em
nossos dias á queda deste descommunal colosso!
Alem do interesse litterario que encerrão as obras
de Gil Vicente, é importantíssima a sua conservação como
um documento para a historia de seus tempos. Nellas
se vem retractados melhor que em nenhum dos nossos
antigos escriptores, os costumes, os usos, as crenças e
as superstições de nossos maiores; a cada passo se
achão provas de como o espirito público estava indenti-
ficado com as grandes emprezas que então occupavão
Portugal e o fazião a admiração do mundo: as conquistas
na Ásia e na Africá, o aperfeiçoamento da navegação,
a ousadia de nossos navegantes, o valor heróico de
nossos guerreiros, erão o scopo ordinário das conversas
da praça e da família.
Em quanto ao maquinismo e decorações theatraes
com que se representavão as peças de Gil Vicente,
pouco se alcança de suas obras. Garcia de Resende
diz que a Tragicomedia Cortes de Júpiter fora repre-
sentada com toda a pompa e magnificência. ( T H ) Porém
attendendo ás raras invenções e estupendas maquinas
que se fizerão no reinado de D. João II. por occasião
das festas do casamento do Príncipe D. Affonso, descrip-
tas extensamente por Resende e Ruy de Pina, se pode
fazer uma idea do apparato com que forão postas em
scena algumas das suas composições, como o Triumpho
do Inverno, em que o poeta deu a seus espectadores
uma vista de mar, com navios e com toda a confusão
d'uma tormenta. (VIU)
xxxiv ENSAIO 4c.

Assim lançado o fundamento do nosso theatro por


um engenho tão superior, estava aberta a estrada para
que seus successores, corrigindo progressivamente os
inevitáveis defeitos do século e da novidade, e appro-
veitando o muito que ahi havia a approveitarf levan-
tassem o edifício de um Theatro nacional. E com effeito
alguns apparecêrão que seguirão as pizadas de Gil Vi-
cente, como o Infante D. Luiz, Antônio Prestes, Braz
de Rezende, os dous irmãos Antônio e Jeronymo Ri-
beiro Chiado, Henrique Lopes e Jorge Ferreira de Vas-
concellos: o mesmo Camões se não dedignou de se alistar
debaixo das suas bandeiras. Mas este por empenhado
em mais elevados assumptos, os outros por falta de um
transcendente talento dramático, mais copiarão que cor-
rigirão o seu modelo. Também a eschola clássica appa-
receo então em Portugal representada por dous grandes
poetas, Sá de Miranda e o Doutor Antônio Ferreira;
mas estes com um limitadíssimo numero de producções,
e alem disso demasiado preocupados da douta antigüi-
dade, não puderão exercer considerável influencia sobre
este ramo da litteratura. Oxalá Gil Vicente tivesse appa-
recido depois de todos elles; seria elle o reformador do
nosso theatro, e verdadeiramente o nosso Plauto.
APPENDIX.

Os dous seguintes documentos devem conservar-se como


os únicos authenticos para a historia de Gil Vicente.

I.
PRIVILEGIO.
Eu EIRei faço saber aos que e ste alvara virem, que
Paula Vicente, moça da Câmara da muito minha amada e" pre-
zada tia, me disse que ella queria fazer emprimir hum livro e
cancioneiro de todas as obras de Gil Vicente seu pay, assi as
que até ora andarão empremidas pelo meudo, como outras
que o ainda narri foram. Pedindo-me que ouvesse por bem,
que por tempo de dez annos nam podessem emprimir nem
vender o dito cancioneiro, senam ella, e as pessoas a que ella
pera isso de'sse licença: e que as ditas obras meudas do dito
seu pay que ate ora andarão empremidas se nam podessem
mais emprimir, nem vender pelo meudo. E visto seu reque-
rimento, e por alguns justos respeitos que me a isto movem,
ey por bem, e me praz que fazendo ella emprimir o dito "can-
cioneiro de todas as obras do dito seu pay — Empressor algum,
nem outra algüa pessoa possa em meus Reynos e Senhorios
emprimir, nem vender o dito cancioneiro, nem trazelo de íóra
do Reyno a vender sem consentimento e licença da dita Paula
Vicente, e isto por tempo de dez annos somente, que começa-
ram da feitura deste alvará. Emprimindo, ou vendendo algüa
pessoa o dito cancioneiro nos ditos meus Reynos e Senhorios,
ou,trazenáo-o de fora delles a vender como dito he dentro
no dito tempo de dez annos sem licença da dita Paula Vi-
cente, perderá todos os volumes que delles lhe forem achados,
e paoarão cincuenta cruzados, ametade pera a minha Camera,
e a outra ametade pera quem os acusar. E assi me praz que
daqui em diante polo dito tempo de dez annos se nam possão
xxxvi APPENDIX.

emprimir nem vender polo meudo obras algüas do dito Gil


Vicente que estiverem no dito cancioneiro sob a mesma pena
acima declarada. E mando a todas as minhas justiças, officiaes
e pessoas a que o conhecimento deste pertencer que cumpram
e guardem inteiramente este alvará, como se nelle contem, o
qual ey por bem que valha, e tenha força e vigor como se
fosse carta feita em meu nome, por mi assignada e passada
pela minha Chancellaria sem embargo da ordenaçam do segundo
livro, quarto, vinte, que diz que as cousas cujo effeito ouver
de durar mais de um anno passem por cartas,, e passando por
palavras não valhão. E valerá este outro si, posto que nam
seja passado pola Chancelaria sem embargo da ordenaçam' que
manda que os meus alvarás que não forem passados pela Chan-
celaria se nam gualdem. Jorge da Costa o fez em Lisboa a
três dias de Setembro de mil quinhentos e sessenta e um.
Manuel da Costa o fez escrever. E cada volume do dito
Cancioneiro se nam poderá vender por mais de hü cruzado
E este alvará se trasladaraa e imprimiraa no principio-do dito
Cancioneiro. R A T N R A

II.
PRÓLOGO
dirigido ao mui alto e poderoso Rei nosso Senhor D.
Sebastiam o primeiro do nome por Luís Vicente.
He tão gloriosa cousa, altíssimo Rei e Senhor nosso, a
fama daquelles que a tem e a tiverão, que a toda pessoa
geralmente faz desejo de a acrecentar, e resuscitar suas obras:
e assi o fazem muitos, huns com contarem em pratica suas
cousas, outros com escreverem suas obras, outros trabalharem
que venhão á noticia de todos com as imprimirem, como foi
aquelle que apurou, e alimpou e fez que fossem vistas e acha-
das as cousas de Homero, porque, se elle nam fora, perderam-se,
e outros que tomarão a seu cargo o trabalho de serem pre-
goeiros daquelles que escreverão, e fizerão obras dinas de.
serem apregoadas, sem outra obrigação mais que somente a
curiosidade que tinhão de quererem que se não perdesse a
APPENDIX. xxxvn

fama de grandes homens. Quero dizer, que se estes não lhe


indo nisso nada, o fizerão àssi, que farão aquelles a que bate
á porta a obrigação de seus antepassados, que suas obras são
desejadas virem á noticia de todos? E ainda que as obras de
meu pay não tenhâo tamanho merecimento como tiverão as
d'outros poetas antigos e modernos, tão celebrados em todo o
mundo: todavia, aindaque as deste livro fiquem muito abaixo
destas; por serem cousas algüas dellas feitas por serviço de
Deos e todas em serviço de vossos avós, e de que elles muito
gostarão, era rezão que se imprimissem. E porque sei que ja
agora nessa tenra idade de V. A. gosta muito dellas, e as lê
e folga de ouvir representadas, tomei a minhas costas o tra-
balho de as apurar e fazer imprimir sem outro interesse, senão
servir V. A. com lh'as dirigir, e cumprir com esta obrigação
de filho. E porque sua tenção era que se imprimissem suas
obrus, escreveu por sua mão e ajuntou em hum livro muito
grande parte dellas, e ajuntára todas, se a morte o não consu-
mira. A este livro ajuntei as mais obras, que faltavão e de
que pude ter noticia. E porque o prólogo que adiante vai
dirigido a elRei vosso avô, que haja gloria, não houve effeito;
esse como o livro todo oífereço a V. A. a quem nosso Senhor,
acrecente e prospere a vida e estado por muitos annos.

III.
Desta illustre Princeza diz um seu biographo: "Se dió
á Ia lengua latina, en que hizo tales progresos, que á poço
tiempo, socorrida de su docilidad y talento, Ia escribia y ha-
blaba como si fuera materna; Io mismo le sucedió cou Ia griega."
(Pacheco, Vid. de Ia Inf. D. Maria.)
E Macedo, nas Flores de Espaíía: "En Ia poesia fue
insigne: escribió en Latin y tenia perpetuamente academia de
mugeres doctas."

IV.
Que muitas obras de Gil Vicente se perderão, se vè do
Prólogo dirigido por seu filho Luiz a D. Sebastião; onde diz:
" A este livro ajuntei as mais obras que faltavão, de que pude
ter noticia." A respeito das obras rneudas mais claramente o
XXXVIII APPENDIX.

dizia elle no fim do Liv. V. por estas palavras: "Fim do quinto


livro o qual vai muito carecido destas obras meudas, porque
as mais das que o autor fez desta qualidade se perderão."

V.
Assim a celebra o Padre Reis , nos seus Enthusiasmos
poéticos, No. 66, comparando-a com a mulher de Lucanoí;
Paula parentem
Oegidium sociat nunc celso in vértice MontU,
Quem juvisse feruni, sicut olim Pola maritum
Scríbentem juvit Lucanum.

VI.
A seguinte scena de Encina e visivelmente o modelo de
outra de Gil Vicente, no seu primeiro auto pastoril a pag. i4
do vol.
JlJAS RODRIOACHO.
Asino, qne dígoles pares.
Hora jnguemos! A N T . Jugueiuos. MIGUEIEIO.
MlGUELEJO. Al diabro tales jngares.
Y <i çjué jnego, companones? RODRIOACHO.
RoDP.rGACHO. Hora ganéte bnen caclio.
Jngnemos pares y nones. D o u muchacho,
JüAN. poernito sabes de juegos:
Aliotas, que bien liaremos. no te aprovechan reniegos;
AMTON. cata qne soy hombre macho,
Comenzeinos. JuAN.
JüAN. Nunca acabaremos h o y :
Qné les dices? A N T . Júri á fios, debemos jnego mudar.
Nones digo. J D A . Dá cá dos. RODRIGACHO.
ÁKTON. T ;í qué podreinos jugar ?
Cata, qne no trainpilleinos! ANTON.
RoDRIGACHO. Miafé, á v i v o te Io doy.
Qné les dices, Mignelejo? MlGUELEJO.
Yo no soy
MrouEiEJo.
Pares les digo. R O D . Perdiste! en jugar jnego tan rnin;
JUAN.
mas jugnemo» ai trentin
Al diabro te dó por triste! qne mny desgraciado estoy.
Ta pones ei sobrecejo? Ei. ANGEI,.
Pastores, no hayais temor!
RoDRIGACHO.
qne os anuncio gran placer:
Guando viejo,
sabed qne quiso nacer
inuy m i n gesto lias de tener:
esta noche ei Salvador
por três castafías perder
Redentor
reniegas de san conejo.
en ia cindad de David.
MlSUELEJ.O. T o d o s , todos le servid,
Qné les dices, Rodrigaclio í que es Cristo nnestro Senor &c.
APPENDIX. XXX1X

Compare-se a cantiga com que Gil Vicente fecha a sua


Tragicomedia dos Aggravados, com a seguinte composição
com que finaliza uma das Eglogas de Juan de Ia Encina:

V i 11 a n c i c o.
Gran gasajo siento yo, gran memória quedará,
Jinihó! hnihá!
Yo tainbien soncas que lia, pnes aqnel que nos crio &x.
lmiliá! Vau virgen de qninca anos
pues aqnel que nos crio morenica de tal gala,
por salvamos nació ya: que tan chapada zagala
Hniliá, hnüiá! n'o se halla en mil rebanos:
qne aquesta noche nació. nunca tal cosa se vió,
huihó!
Esta noche ai médio delia
ni jamas fue ni será,
cuando todo estab.1 en calma,
hnihá!
por nos alninbrar ei alma
pues aqnel qne nos crio &c.
nos nació Ia clara estrella:
Váinonos de dos en dos,
clara estrella de Jaca,
aballemos á Belen,
huihó!
porque percancemos bien
alegrar todos qne ha,
quien es ei liijo de Dios:
hnihá!
gran salnd nos envio,
pnes aqnel qne nos crio &c.
huihó!
En Belen nnestro lngax aqnel, que en Belen está,
inuy gran calor relninbrea, hnihá!
yo te juro qne aquesta aldea pnes aqnel qne nos crio ácc.
por ei mundo ha de sonar: Ya rebnlle Ia inanana,
porque tal fruto nos dió agnijeinos que és de dia,
huihó! pregnntemos por Maria
gran honra se le dará una hijá de Santa Ana,
hniháj qne ella ella Io parió,
pues aqnel que nos crio ke. hnihó!
Una virgen concibiera Vamos, vamos andallá,
sin siniiente de vaion, hnihá!
y virgen sin corrupcion pnes aqnel que nos crio,
ai Iiijo de Dios paríera, por salvamos nació ya:
y despues v/rgen quedo, hnihá! huihó!
huihó < . qne aquesta noche nació.

VIL
Eis-aqui alguns extractos dos antigos Mysterios francezes
tpie aqui se transcrevem para habilitar o leitor a fazer o seu
juizo sobre as observações que fizemos no texto; o seguinte
e' de um antigo Mysterio manuscripto, que Bouterweck nos
fornece na sua historia da Poesia e Eloqüência Franceza. Lu-
cifer falia aos espiritos infernaes:
XL APPENDIX.

"Parles-tu point, Sathan Rccnsatenr,


"Persécnteur de tont humain lignaige?
" T o i Bélial nostre Grand Procureur,
" F a n l x rapinenr, infame détracteur,
f'Et inventeur de larcin et pillaige?"

Neste segundo extracto de uma composição mui posterior á


antecedente, e de um comtemporaneo de Gil Vicente, se ob-
serva a mesma divisão de characteres entre os diabos interlo-
cutores: a supremacia de Lucifer, o orgulho, e os títu-
los de Belial ainda aqui são conservados. A composição, 8
de Luís Chocquet, e foi representada em Paris, no Hotel de.
Flandres em i54*> e impressa no mesmo logar e data. Mais
extensos extractos deste raro livro se achão no Diccionario de
Bajle, artigo Chocquet, donde tiramos os seguintes:

Resposta de Satanás a um discurso de Lucifer:


" Prince cPMnfer, tes cris as faict estendre
" S i tresavant qn'ils sont venns descendre
"Jusqnes au fons de noires regions:
" N o s vils manoirs tn as presque faict fendre:
" Q n e te fanlt-ü? Es tu prest de te pendre?
" Diables sout hors par grandes legions &c.

Discurso de Lucifer:
" H a r o , Haro, approche toy grant Dyable,
"Approche toy Notaire mal fiable,
"Fier Belial, Procureur des Enfèrs;
" S i tu ne fais ung fanlx traict desnoyable,
"Nons perdons tout le genre hnmain salnable,
" E t demenrons senls enchaynez en fers.

VIII.
Eisaqui o logar a que se refere o texto:
" E as danças acabadas, se começou huma muito boa e
"muito bem feita comedia, de muitas figuras, muito bem ata-
v i a d a s e muy naturaes, feita e reprezentada ao cazamento e
"partida, da Senhora Jnfante; couza muito bem ordenada, e
"com ella acabada se acabou o seram."
(G. de Resende, Hida da Infante D. Beatriz
para Saboia.)
APPENDIX. XLI

IX.
A seguinte passagem fará conceber uma grandiosa idea
do maquinismo dos nossos antigos. Foi em i48i que se
fizerão estas memoráveis festas.
" E á terça feira logo seguinte, houve na salla da madeira
^"cxcellentes e mui ricos momos, antre os quaes EIRei, pera
"desafiar a justa que havia de manteer, veeo primeiro momo,
"etoyfencionado cavalleiro do cirne com muita riqueza, graça e
"gentileza, porque entrou pelas portas da salla com hüa grande
"frota de grandes naoos, mettidas em pannos pintados de
"bravas e naturaes ondas do mar, com grande estrondo. d'ar-
"telharias que jogavam, e trombetas e atabales e ministrees
"que tangiam, com desvairadas gritas e alvoroços d'apitos, de
"fingidos Mestres, Pillotos e Mareantes vestidos de brecados
" e sedas, e verdadeiros e ricos trajos Alemães."
(Inéditos da Hist. Portug., Chron. de D. JoãoII,
por Ruy de Pina, pag. 126.)
DAS OBRAS DE DEVAÇAO.

>#-
OBRAS DE GIL VICENTE.

LIVRO I.
DAS OBRAS DE DEVAÇÁO,

Porquanto a obra de devação seguinte procedeu de


hüa visitação, que o autor fez ao parto da muito esclarecida
Rainha Dona Maria, e nascimento do muito alto e excel-
lente Príncipe Dom João, o terceiro em Portugal deste
nome; se põe aqui primeiramente a dita Visitação, por ser
a primeira coisa, que o autor fez, e que em Portugal se
representou, estando o mui poderoso Rei Dom Manoel, e a
Rainha Dona Beatriz sua mãe, e a Senhora Duqueza de
Bragança, sua filha, na segunda noite do nascimento do
dito Senhor. E estando esta companhia assim junta, entrou
hum vaqueiro, dizendo:

VAQUEIRO.

Irardiez! siete arrepelones


Mc pegaron á Ia entrada,
Mas yo dí una punada
A uno de los rascones.
Einpero, si yo tal supiera,
No veniera,
Y si veniera, no entrara,
Y si entrara, yo mirara
De manera,
Que ninguno no me diera.
1
Vol. i.
2 LIVRO L

Mas andar, Io heche es liecho:


Per» todo bien mirado,
Ya que entre neste abrigado,
Todo me sale en provecbo.
Rehuélgome en ver estas cosas,
Tan hennosas,
Que está hoinbre bobo en veUas:
Véolas yo; pero ellas,
De lustrosas,
w

A nosotros son danosas.


(Falia i Rainha.-)

Si es aqui adonde vo?


Dios mantenga si es aqui;
Que yo no sé parte de iní,
Ni deslindo donde esto.
Nunca vi cabana tal,
En especial
Tan notable de memória:
Esta debe ser Ia gloria
Principal
Del paraíso terrenal.
O que sea, ó que no sea,
Quiero decir á que vengo,
No diga que me detengo
Nuestro concejo y aldea.
Enviame á saber acá,
Si es verdá
Que parió Vuestra Nobleza?
Mi fe si; que Vuestra Alteza
Tal está,
Que senal dello me da.
Muy alegre y placentera,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 3

Muy ufana y esclarecida,


Muy prehecha y muy lúcida,
Mas mucho que dantes era.
Oh qué bien tan principal,
Universal!
Nunca tal placer se vió!
Mi fe, saltar quiero yo.
He, zagal!
Digo, dice, salte mal"?
Quien quieres que no reviente
De placer y gasagado!
De todos tan deseado
Este príncipe excelente
Oh qué Rey tiene de ser!
A mi ver
Debiamos pegar gritos:
Digo que nuestros cabritos
Dendê ayer
Ya no curan de pacer.
Todo ei ganado retozã,
Toda laceria se quita;
Con esta nueva bendita
Todo ei inundo se alboroza.
Oh qué alegria tamana!
La montaria
Y los prados florecieron,
Porque ahora se complieron
En esta misma cabana
Todas Ias glorias de Espana.
Qué gran placer sentirá
La ffran corte castellana!
Cuan alegre y cuan ufana
1*.
LIVRO I.

Que vuestra madre estará,


Y todo ei reino á monton!
Con razon,
Que de tal rey proeedió
El mas noble que nació:
Su pendon
No tiene comparacion.
Qué padre, qué hijo y qué madre!
Oh qué aguela y qué aguelo.x!
Dendito Dios de los ciclos,
Que le dió tal madre y padre!
Qué tias, que yo me espanto!
Viva ei príncipe logrado!
Qué él es bien aparentado!
Júri á Sanjunco santo.
Si me ora vagara espado.
Y de prisa no veniera,
Júri á nos que yo os diera
Cuenta de su generacio.
Será rey Don Juan tercero,
Y heredero
De Ia faina que dejaron,
En ei tiempo que reinaron,
El segundo y ei primero,
Y aun los otros que pasaron.
Quedáronme allí detrás
Unos treinta companeros,
Porquerizos y vaqueros,
Y aun creo que son mas;
Y traen para ei nacido
Esclarecido
Mil huevos y leche aosadas,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO.

Y un ciento de quesadas;
Y han traído
Quesos, miei, Io que han podido.
Quiérolos ir á Uamar:
Mas segun yo vi Ias senas,
Hanles de inesar Ias grenas
Los rascones ai entrar.

Entrarão certas figuras de pastores e oferecerão ao


Príncipe os ditos presentes. E por ser cousa nova em Por-
tugal, gostou tanto a Rainha velha desta representação,
que pedio ao autor que isto mesmo lhe representasse ás
matinas do Natal, endereçado ao nascimento do Redemptor;
e porque a substancia era mui desviada, em lugar disto
fez a seguinte obra.
FIGURAS.

GIL.
HRAS.
LUCAS.
SILVESTRE.
GREGORIO.
MATHEUS.
ALTO PASTORIL CASTELHANO
endereçado ás matinas do Natal.

Entra primeiramente hum pastor inclinado á vida


contemplativa, e anda sempre solitário. Entra outro, que
o reprehende disso. E porque a obra em si dalli por
diante vai mui declarada, não serve mais argumento.

GIL.
Aqui está fuerte majada;.
Quiero repastar aqui
Mi ganado; veislo allí
Soncas naquella abrigada.
Yo aqui estoy abrigado
Del tempero de fortuna.
Anublada está Ia luna,
Mal pecado,
Lloverá soncas priado.
Quiero aqui poner mi halo-,
Que cumpre estar anaceando,
Y andarme aqui holgando,
Canticando rato á rato.
Hucia en Dios, vendrá ei verano
Con sus flores y rosetas;
Cantaré mil chanzonetas
Muy ufano,
Si allá Uego vivo y sano.
8 LIVRO I;

Riedro, riedro vaya ei ceno,


Aborrir quiero ei pesar:
Comenzaré de cantar,
Mientras me debroca ei sueno.
C Canta.)
u
Menga Gil me quita ei suenoT
'•Que no duermo."
BRÁS.
Dí, Gil Terron, tú qué has,
Que siemprc andas apartado?
GIL. Mi fe, cuido, mal pecado,
Que no se te entiende mas.
Tú, que andas siempre en bodas,
Corriendo toros y vacas,
Qué ganas tü, ó qué sacas
Dellas todas?
Asmo, asmo que te enlodas.
Solo quiero canticar,
Repastando mis cabritas
Por estas sierras benditas:
No ine acuerdo dei lugar.
Cuando, cara ai cielo, oteo?
Y veo tan buena cosa,
No me parece hermosa
Ni deseo
Zagala de cuantas veo.
Andando solo magino,
Que Ia soldada que gano
Se me pierde de Ia mano
Soncas en qualquier camino.
Nesta soledad me énseno;
Que ei ganado con que ando,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 9

No sabre como ni cuando,


Segun sueno,
Quizá será de otro dueno.
Conociste á Juan Domado,*
Que era pastor de pastores?
Yo Io vi entre estas flores,
Con gran hato de ganado,
Con su cayado real,
Repastando en Ia frescura,
Çon favor de Ia ventura:
Dí, zagal,
Qué se hizo su corral?
Vete tú, Brás, ai respingo,
Que yo desclucio dei terruno.
BRA. El crego de Vico-Nuno
Te ensenó eso ai domingo.
Anda, anda acompanado,
Canta y huelga en Ias majadas;
Que este inundo, Gil, aosadas,
Mal pecado,
Se debroca muy priado.
GIL.
Aunque huyo Ia eompana,
No quiero mal á pastor;
Mas yo apriseo mejor
Apartado en Ia montaíía.
De contino siempre oteo,
Ingrillando los oidos,
Si daran soncas gemidos
De deseo
Los corderos que careo.
* Juan Domado dizia por EIRei D. João II.
10 LIVRO I.

L ü C A S . (de longe.)
Hao! carillos! GIL. Á quien hablas?
Luc. Á vosoíros digo yo,
Si alguno de vos ine víó
Perdidas unas dos cabras?
GIL. Yo no. BRA. Ni yo. Luc. Á Dios pliega!
GIL. Como Ias perdiste? dí.
Luc. Perdiéronse por ahi
Por Ia vega,
Ó algun me Ias soniega.
Nel hato de Brás Picado
Andava Marta bailando;
Yo estúvela oteando,
Boquiabierto Irasportado,
Y ai son batlendo ei pie
Estuve dos horas valientes:
El ganado entanamientes,
Á Ia fe,
No sé para donde fue.
GIL.
Y aun por eso que yo sospecho
Me aparto de saliijones;
Que vanas conversaciones
No traen níngun provecho.
Sieinpre pienso en cosas buenas:
Yo me hablo, yo me digo;
Tengo paz sieinpre comigo,
Sin Ias penas,
Que dan Ias cosas agenas.
LUCAS.
No me quiero estar traâ Iras;
Ya perdido es Io perdido.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 11

Que gano en tomar sentido?


Qué dices, Gil, y tú, Brás?
GIL. Tú muy perezoso estás:
Busca, busca Ias cabritas.
Trás que tienes muy poquitas,
No te das
De perder cada vez mas.
Encomiéndalas á Dios.
Luc. Qué podrá eso prestar?
GIL. El te Ias irá buscar,
Que sieinpre mira por nos.
Luc. S Í los lobos Ias comieron
Hámelas Dios de traer?
Harto terna que hacer:
Y si murieron,
Mucho mas que yo perdieron.
Mas quiero Uamar zagales;
Tengamos todos majada.
BRA. Sube naquella asomada,
Y dales gritos mortales.
Luc. Hace escuro; quien verá!
Caeré nun barrancon.
GIL. Toma, lleva este tizon.
Luc. Dalo acá:
Este nunca allá irá. (Chama de longe.)
Ha Silvestre! ha Vicente!
Ha Pedruelo! ha Bastian!
Ha Jarrete! ha Brás Juan!
Ha Pasival! ho Clemente!
SILVESTRE, (deionge.)
Ha Lucas! qué nos quieres? dí.
Luc. Que vengais acá priado:
i2 LIVRO I.

Tomaremos gasajado,
Que Gil Terron está aqui
En abrigado,
Alegre y bien asombrado.
Vem os pastores, e diz.
SILVESTRE.
Ora terrible placer
Teneis vosotros acá.
HRA. Si, tenemos, soncas ha:
Pues qué habemos de hacer?
Quien ai cordojo se dió,
Mas cordojo se le pega.
SIL. Bailemos una borrega.
BHA. Mi fe no,
Que tú bailas mas que yo.
GIL.
Júri á nos que estás chapado!
Qué es esto, Silvestre hermano?
SIL. NO ves que viene ei verano,
Y soy recien desposado?
GIL. Jesus autem intrinsienes!
Quien te trajo ai matrimuno?
SIL. Mi tio Velasco Nuno.
GIL. Chapados parientes tienes.
Quien es Ia esposa que hubiste?
SIL. Teresuela mi damada.
BHA. Dios! que es moza bien chapada,
Y aun es de buen natío,
Mas honrada dei lugar.
GIL. Neso no hay que dudar;
Porque ei herrero es su tio,
Y ei jurado es ahijado
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 13

Del aguelo de su madre;


Y de parte de su padre
Es prima de Brás Pelado:
Saquituerto, Rodelludo,
Papiharto, y Bodonales
Son sus primos caronales,
De parte de Brisco Mudo.
Es nieta de Gil Llorenle,
Sobrina dei Crespillon;
Casaollas Mamilon
Pienso que es tambien pariente:
Mari Roiz Ia Mamona,
Toribilla dei Mendral,
Y Teresa Ia Gabona
Su parienta es natural.
Maricá de Ia Reinonda,
Espulgazorras Cabrera
Y Ia vieja bendicidiera,
Rapiharta Ia Redonda,
La Cenuda, Ia Plaguenta,
Borracalles Ia Negruza,
La partera de Valmuza
Ahotas que es bien parienta.
LUCAS.
Dios! que es casta bien honrada
Esa que hábeis relatado.
BRA. Ahora estás bien honrado:
No te dan con ella nada?
SIL. Danme una burra preííada,
Un vasar, una espetera,
Una cama de madera;
La ropa no está lidada.
14 LIVRO I.

Danme Ia moza vestida


De halillos dominguejos,
Con sus manguitos vermejos,
Y alfarda muy lúcida:
Danme una puerca parida,
Mas anda muy triste y flaca.
BRA. NO te quieren dar Ia vaca?
SIL. Ha três anos que es vendida.
MATHEUS.
Sus, alto, toste priado,
Respinguemos Ia inajada:
Viénese Ia madruga,
Dejemos ei desposado.
BRA. Démosnos á gasajado,
Tomemos todos placer,
Que ya no quiere lloA^er.
GIL. Ya no, Dios sea loado.
LUCAS.
Tengamos algun remédio:
Qué jugamos, Gil Terron ?
GIL. Jugueinos ai abejon;
Mas tengo de estar en médio.
BHA. Tú naciste mas ternprano.
GIL. Ora sus, sus, veisme aqui:
Tú tainbien pásate allí;
Brás hermano, párate ansí.
Ea, sus, pára Ia mano.
He miedo que me darás;
Alza, alza ei brazo mas:
Tú no ves como está Brás?
Dite una de mal ines.
BHA. Ha! Dios te pliega comigo!
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO, 15

Do á rabia Ia jugada:
Ora viste que porrada!
Luc. Tú, amigo,
Ya no consientes castigo.
BRÁS.
Juguemos á adivinar.
Luc. Que ine plaz. BRA. DÍ, compafíero....
Mas comience Gil primero.
GIL. Que me plaz de comenzar.
Coinenzad de adivinar. Luc. Qué?
GIL. Sabello has tú muy mal:
Qual es aquelle animal,
Que corre y corre, y no se ve?
BRA. E S ei pecado mortal.
MATHEUS.
Mas ei viento, mal pecado,
Creo yo que será ese.
Luc. Que no es buen juego este;
Demos este por pasado.
GIL. Bien será via acostar,
Que ya me debroca ei sueno.
Santiguaos dei demueno.
SIL. Yo no me sé santiguar.
GIL. Decid todos como yo:
En ei mes dei padre,
En ei mes dei hijo —
El otro mes se me olvido.
(Dormem e o ANJO os chama cantando.)
u
Ha pastor!
"Que es nacido ei Redentor."
GIL.
Zagales, levantar de ahí,
16 LIVRO I.

Que grande nueva es venida:


Que es Ia Virgen parida,
Á los ángeles Io oi.
Oh qué tônica acordada
De tan fuertes caramillos!
BRA. Cata, que serian grillos.
GIL. Júri á nos
Que eran ángeles de Dios.
LUCAS.
Y nos aqui levantados
Qué le habemos de hacer?
GIL. Mi fe, vamoslo á ver.
BRA. Y ansí despeluzados ?
GIL. Pardiez, que es para notar!
Pues ei Rey de los senores
Se sirve de los pastores?
Nueva cosa
Es esta, y muy espantosa!
Id vosotros ai lugar
Muy priesto, carillos mios,
Y no vamos tan vacíos:
Traed algo que le dar,
Y ei rabel de Juan Javato,
Y Ia gaita de Pravillos,
Y todos los caramillos,
Que hay en ei hato;
Y para ei nino un silbato.
(Partein-se para n presépio, cantando.)
TODOS
u
Aburramos Ia majada,
U
Y todos con devocion
"Vamos ver aquel garzon.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 17

"Veremos aquel ninilo


"De agora recien nacido.
"Asmo que es ei prometido
"Nuestro Mesias bendito.
"Cantemos á voz en grito
"Con hemencia y devocion,
"Veremos aquel garzon."
Chegando ao presépio diz
GIL.
Dios mantenga a vuestra gloria!
Ya veis que estamos acá
Muy alegres, soncas ha,
De vueslra nueble vitoria.
A vos, Virgen, digo yo,
Que ei muchacho que hoy nació
No enliendo que me entiende,
Mas si que todo comprehende,
Del punto que se engendro.
LUCAS.
Que casa lan pobrecita
Escogió para nacer!
BRA. Ya coinienza á padecer
Dendê su ninez bendita.
SIL. De paja es su camacita.
Luc. Y un establo su posada.
BRA. Loada sea y adorada
Y bendita
La su clemência infinita.
GIL.
Senora, con estes hielos
El nino se está teinblando:
De frio veo llorando
2
Vol. I.
18 LIVRO I.

El criador de los cielos


Por falta de panizuelos.
Júri á san si tal pensara,
Ó por dicha tal supiera,
Un zamarro le irujera
De una vara,
Que ahotas que ei callára.
Ora vosotros qué haceis?
Con muy chapada hemencia
Y con vuestra reverencia,
Dalde de eso que traeis.
SIL. Perdonad, senor, por Dios,
Que, como somos bestiales,
Los presenies no son tales
Coino los inereceis vos.
Com tangeres e bailes offerecem, e i despedida cantSo esta

Cançoneta.
"Norabuena quedes, Menga,
"Á Ia fe que Dios mantenga.
"Zagala santa bendita,
"Graciosa y morenita,
"Nuestro ganado visita,
"Que ningun mal no le venga.
"Norabuena quedes, Menga,
"A Ia fe que Dios mantenga."
GIL.
Qué decis de Ia doncella?
No es harto prelucida?
SÍL. Nunca otra fue nacida,
Que fuese muger y estrella,
Sino ella.
GIL. Pues sabes quien es aquella?
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 19

Es Ia zagala hermosa,
Que Salomon dice esposa,
Cuando canticava delia.
Con su voz muy deseosa
En su canticar decia:
"Levántate, amiga mia,
Columba mea formosa,
Amiga mia olorosa;
Tu voz suene en mis oidos,
Que es muy dulce á mis sentidos,
Y tu cara inuy graciosa.
Como ei lilio, plantada,
Florecido entre espinos,
Como los olores finos
Muy suave eres bailada.
Tú eres huerta cerrada,
En quien Dios venir desea:
Tota pulchra amica mea,
Flor de virgindad sagrada."
SILVESTRE.
Á Dios plegue con ei ruin!
Mudando vas Ia pelleja:
Sabes de achaque de ygreja!
GIL. Ahora Io deprendí.
SIL. Con eso hablas latin,
Tan á punto que es placer.
Mas Io preciára saber
Que me daren un florin.
BRÁS.
Dí por vida de tu tio,
Tú sabes de profecias?
GIL. Sé que dijo Malaquias
2*
20 LIVRO I.

"Eis ei mi ángel os einbio


Con tan fuerte poderio,
Que aparejará Ia carrera
Delante mi haz verdadera
En ei sanlo templo mio."
"Tú, Helhlen, pequena eres,"
Diz Miqueas profetando,
"Mas no te caíarás cuando
Serás grande en tus poderes.
Cuando sin cuido estuvieres,
Ternas ei senoreadoí
De Israel en tu favor
Para cuanto tú quisieres."
LUCAS.
De niniío tan bonito
Hablaban soncas letrados.
GIL. LOS Profetas alumbrados
No jugaban á otro hito.
Con muy ahincado esprito
Y con gozoso placer
Todos desearan ver
Su naciiniento bendito.
Porque este es ei cordero
Qui tollis peccata mundo,
El nuestro Adan segundo,
Y remédio dei primero:
Este es ei hijo heredero
De nueslro eterno Dios;
El cual fue dado á nos
Por Mejías verdadero.
Aquel nino es eternal,
Invisible y "visible;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 21

Es mortal y inmortal,
Mobible y inmobible,
En cuanto Dios, invisible;
Es en todo ai Padre igual,
Menor en cuanto humanai:
Y esto no es bnposible.
Hecha ei sol su rayo en Mayo,
Como mil veces verés;
El mismo rayo sol es,
Y ei sol tambien es rayo:
Entrambos visten un sayo
De un envés,
Y una cosa misma se es.
Ansí este descendió,
Quedando sieinpre en ei Padre:
Aunquè vino á tomar madre,
Del padre no se aparto.
HHA. Gil Terron lletrudo está:
Muy bondo te encaramillas!
GIL. Dios hace estas maravilhas.
BRA. YO IO veo, soncas ha.
Quien te viere no dirá,
Que naciste en serrania.
Luc. Cantemos con alegria,
Que en eso despues se hablará.
(Vão-se cantando.)
FIGURAS.
GREGORIO i
> Pastores.
VALERIO )
HUM EHMITÃO.

HUM CAVALLEIRO.

A dita Senhora Rainha, satisfeita desta pobre


(o auto antecedente), pedio ao autor, que para d
Reis logo seguinte lhe fizesse outra obra. E fez a seg
cuja introducção he, que hum pastor determinou de
Belém e errou o caminho: e entra dizendo:
ALTO DOS REIS MAGOS.

GREGORIO.
Asmo, asmo. soncas ha,
Que ine da
Ua fortuna trasquilon.
He dejado mi zurron
Y eslabon,
Y no sé que hago acá.
Dios plegue, quien me dirá
Adó está
Este nino que es nacido?
Que ando bobo perdido,
Sin sentido,
Trece dias per habrá, *
Que no sé que haga ya.
No sé parte ni recado
Del ganado,
Y los perros son perdidos;
Mis corderos dan gemidos
Muy sentidos
Por entrar en ei poblado.
Todo mi hato he dejado
Desmedrado,
por buscar este ninito.
Dicenme que es tan bonito,
Que me aflito
24 LIVRO I.

Por no haberio topado,


Y ando desesperado.
Despepito mi sentido,
Que en olvido
Tengo los ínemoriales,
Saltando por robledales
Y encinales,
Que jota no he dormido,
De aterido.
De todo no me doy nada,
Si topase Ia posada
Muy loada,
Donde está recien nacido
Este nino esclarecido.
Entra Valeria.
VALERIO.
De donde eres pecador?
Dí, pastor.
GRE. Pastor y bien desdichado!
Que ando descarnado,
Hambriado
Por ver nuestro Redentor.
r

Dijo ei Angel dei Senor:


"Pastor, pastor,
Ve y deja tus cabritas,"
Y dejélas solecitas
Muy marchitas;
Y no sé ser sabidor
Adó nació ei Salvador.
Trece dias son pasados,
Bien contados,
Que ando, perdido ei tino,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 25

Sin bailar nengun camino;


Ni soy dino
De Io ver por mis pecados.
VAL. Ora tienes bien librados
Tus cuidados.
Este padre fray Alberto,
Que tope naquel desierto,
Sabrá cierto
Eso, porque los letrados
Son guia de los errados.
GREGOHIO.
Há, fraile, sabes do vais ?
r

O andais
Á desuso como yo?
El nino que nos crio
Do nació?
Qué es Ia nueva que me dais?
Por Dios que me Io digais;
No hagais
Que me inuera de cordojos.
ERM. Pastor, no tomes enojos,
Que tus ojos
Verán quien todos buscais.
GRE. He medo que ine burlais.
Traeis á ende hreviario,
Ó calendário,
Ó sois frayle? Como quiera,
Si alino aqui hubiera
Bien quisiera,
Si sabeis bien de vicario,
Que digais un trintanario
Al rosário,
26 LIVRO I.

Porque Dios me deje ver,


Sin tener
AI demuno por contrario,
Aquel precioso sagrario.
ERMITÃO.
Oh bendito y alabado
Y exalzado
Sea nuestro Redentor!
Que un rústico pastor
Con amor
Lo busca con gran cuidado;
Desampara su ganado
Muy de grado,
Por ver ai nino glorioso!
Qué haré yo religioso
Perezoso,
Que ando tan sin cuidado
Por aqueste despoblado?
Destos pobres labradores
Y pastores
Quiso ser oferecido,
Adorado y conocido
Y servido
Con cantares y loores,
Escuchando sus primores
Y clamores.
La Virgen nueslra Senora
Y Ia vaquilla Io adora
En Ia hora
Que ei Sefíor de los senores
Nació de flor de Ias flores.
Qué descanso y qué placer
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 27

Fuera ver
El resplandor glorioso,
Aquel verbo gracioso,
Tan Uoroso,
Acabando de nacer!
VAL. Buldas deveis de traer
Á vender,
Que os estais chocarreando.
ERM. Harto es eso de desmando,
Pues veis que estoy baldando.
Contemplando
Lo que nos es inenester,
Si suyos queremos ser.
VALERIO.
Decidnos, padre bendito,
Hallais scrito
Si es pecado estornudar?
Mas os quiero preguntar
Y notar;
Esperad ansí un poquito:
Digo que escondo ei cabrito,
Por hacer berrar Ia cabra;
Y remojo Ia palabra
Á cada habla:
Es gran pecado infinito,
Ó es médio pecadito?
GREGOHIO.
Si ei hoinbre, de birra pura,
Por ventura
Adrede despierna un grillo,
Por no vello ni oillo;
Encubrillo
28 LIVRO I.

Es pecar contra natura?


VAL. Otra cosa mas escura
Y mas dura
Quiero, Gregorio, hacer.
Pergúnlale, quiero ver
Su saber,
Que, á segun su gesladura,
Es letrado en Ia scrüura.
Decid, padre, es gran pecado
üenodado
Andar iras Ias zagalejas
Y enchirles Ias orejas
De consejas
Por meterlas en cuidado?
Dejar entrar ei ganado
En Io vedado
Por andarlas namorando?
Estalo Dios oteando
Y asechando?
Si desto tiene cuidado,
Ni punto estará parado.
Que todos en mi lugar
A Ia par
Andan Iransidos de amores;
Los jurados, labradores
Y pastores,
Y aun ei crego á mas andar
lio veo resquebrajar
Y sospirar
Por Turibia dei Corral:
Decidme, fraile, es gran mal
Desigual,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO, 29
r

O se debe perdonar,
Pues se no puede escusar?
ERMITÃO.
Este inundo peligroso
Sin reposo
Nos trae á todos burlados,
Ciegos, mal aconcejados,
Desviados
De aquel reino glorioso.
Quien puede ser mas dichoso
Ni gozoso,
Que tener puesto ei querer,
El amor y su poder,
Sin torcer,
Neste nino inuy gracioso,
Puerto de nuestro reposo?
Quien se viere sojuzgado
Y apretado
De mundano pensamiento,
Contemple su naciinienlo:
Cuan contento
IiO verá desnudo echado,
De los frios traspasado,
Y adorado
De los brutos aniinales!
Luego olvidará los inales
Desiguales,
Que le presenta ei pecado.
GRE. Pecado es ser namorado?
VALERIO.
Crio Dios por Ia ventura
Hermosura
30 LIVRO I.

Para nunca ser amada?


Crióla demasiada
Para nada?
Como decis que es Iocura?
Mirad, ínirad Ia scritura:
Qué cordura
Hallareis mas amadora?
Dendê Adan hasta ahora
Nesta hora
Fue discreta criatura,
Que no siga esta ventura?
Si á Dios deslo pesara
No criara
Zagalas tan relu cientes :
Fueran prielas y sin dientes,
Y Ias frentes
Mas angostas que Ia cara;
Las narices le ensanchára,
Y achicára
Los ojos como hurones:
Nunca nuestros corazones
De pasiones
Nuestras vidas aterrara,
Ni de Dios nos apartara.
Esmeróse su poder
En hacer
Tan graciosas sus hechuras,
Que entre todas hermosuras
Son mas puras,
Mas dinas de obedecer.
Quien dejará de querer
Su valer,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 31

Pues son de nuestra costilla?


Que natura nos ensilla
Que no podemos torcer
De sujetos suyos ser.
Entra hum Cavalleiro, quevinha emcompanhia dos ReisMagos.
CAVALLEIRO.
Mantenga Dios los senores!
ERM. Dios loores!
VAL. Soncas, vengais norabuena.
Tú abaja Ia melena.
GRE. NO me pena.
CAV. Decidme, amigos pastores,
Sois sabidores
Si iré por aqui bien
Para ei lugar de Belen?
GRE. YO allá vo adó vais,
Y ando, asmo, como andais.
VALERIO.
Andad, senor, por aqui
Ó por allí.
CAV. Mira bien, pastor, que dices.
VAL. En frente de Ias narices
Á perdices
Andarás, prometo á mi.
CAV. Qué linage tan bestial!
Animal
Este bruto pastoriego!
VAL. Doy á rabia ei palaciego,
Por san pego
Que quizás por vueslro mal...
ERMITÃO.
Toda Ia descortesia
32 LIVRO I.

Es villanía.
Senor, de donde sois vos?
CAV. De Arábia. ERM. Bendígaos Dios!
GRE. Arábio sos?
CAV. Si, y perdi Ia companía
De una gran cabâlleria,
Que venía
A tino Iras una estrella,
Y ellos van en pos delia
Sin perdella;
Y alcanzarlos queria,
Fortuna me Io desvia.
ERMITÃO.
Y adonde van, si sabeis?
CAV. Van três Reis
Adorar con sentimíenlo
Y muy grande acatamienlu
El nacüniento
Del senor de todas greis.
En nuestra tierra sabreis,
Si quereis,
Que desde Balan se velaba
La serial que se esperaba,
Que mosíraba
El naciiniento que veis
Del senor de nuestras leis.
GREGORIO.
Decid, senor, qué estrella era?
ERM. Quien Ia viera!
CAV. ES muy reluciente estrella,
Y un nino en médio delia,
Muy mas que ella
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 33

Reluciente en gran manera:


Una cruz en su cimera
Por bandera.
GRE. Donde se vió tal senal?
CAV. Del monte vitoriai.
ERM. Oh divinal
Vitoria muy verdadera
De nuestra culpa primera!
O Profeta Isayas,
Bien decias.
Levántate á ser aluinbrado,
Hierosalen visitado
Y acatado!
Recibe tus alegrias,
Que Ia gloria dei Mesias,
Que querias,
Sobre ti es ya venida;
Y los reis de gran partida
Nobrecida,
Nel resplandor de tus dias,
En tus tierras los verias.
David nel salmo setenta ?t->w
Y uno cuenta,
Reis de Tarsis y Sabá,
Y ei de Arábia verná
Con humilda,
Muy gran compana sin cuenta,
Adorar sin mas afrenta
Muy contenta.
CAV. De oro Uevan gran presente,
Incenso, mirra excelente,
Humildemente.
3
Vol. i.
34 LIVRO I.

GnE. Mira bien, Valerio, atenta


Este senor que recuenta.
VALERIO.

Caballero relator,
Yo pecador,
Vilano, necio, bestial,
No pense que érades tal,
Y hablé mal,
De que tengo gran dolor.
CAV. YO te perdono, pastor,
Que ei Senor
Por cualquier culpa mortal
No pide ai ai pecador.
Apparecem os três Reis Magos cantando o seguinte
Vilancete.
"Cuando Ia Virgen bendita
"Lo parió,
"Todo ei mundo lo sentió.
"Los coros angelicales
"Todos cantan nueva gloria;
"Los três Reis Ia vitoria
"De Ias almas humanales.
"En Ias tierras principales
"Se sono,
"Cuando nuestro Dios nació."

E cantando assi todos juntamente, offerecem os Reis seus


presentes; e assi muito alegremente cantando se vão. E
acaba em breve, porque não houve espaço para mais.
F I G L R A S.
CASSANDRA.
SALOMÃO.
ERUTEA.
PERESICA.
CIMERIA.
ESAIAS.
MOYSES.
ABRAHÃO.

A obra seguinte foi representada á dita Senhora^ no


mosteiro de Enxobregas nas matinas do Natal. Tracta-se
nella da presumpção da Sibilla Cassandra, que, como por
espirito prophetico soubesse o mistério da encarnação, pre-
sumia que ella era a virgem de quem o Senhor havia de
nascer. E com esta opinião nunca mais quiz casar.
A Rainha D. Beatriz.

3*
ALTO DA SIBILLA CASSAIXD

Entra Cassandra, em figura de Pastora, dizenc


CASSANDRA.
Quien mete ninguno andar
Ni porfiar
En casainientos comigo!
Pues séame Dios testigo
Que yo digo
Que no me quiero casar.
Cual será pastor nacido
Tan polido
Ahotas que me meresca!
Alguno hay que me paresca
En cuerpo, visia y sentido?
Cual es Ia dama polida,
Que su vida
Juega, pues pierde casando,
Su libertad cautivando,
Otorgando
Que sea sieinpre vencida,
Desterrada en mano agena,
Sieinpre en pena,
Abatida y sojuzgada?
Y piensan que ser casada
Que es alguna buena estrena!
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 37

SALOMÃO.
Casandra, Dios te mantenga;
Y yo venga
Tambien mucho norabuena!
Pues te veo tan serena,
Nuestra estrena
Ya por mi no se detenga:
Y pues ya que estoy acá,
Bien será
Que diga á qué soy venido;
Y tanto estoy de ti vencido,
Que creo que se hará.
CASSANDRA.
No te entiendo. SAL. Anda, ven!
Que por tu bien
Te envian á llamar tus tias;
Y luego de aqui três dias
Alegrias
Ternas tú y yo tambien.
CAS. Que ine quieren?
SAL. Que me veas
Y me creas
Para hecho de casar.
CAS. Lo que de ahí puedo pensar,
Que ellas ó tú devaneas.
SAL. Somos parientes, ó que?
Bien se ve
Que soy yo para valer
Tal, que juro á mi poder
Que de no ser,
Ni esta paja me dé.
Yo soy bien aparentado
38 LIVRO I.

Y abastado,
Valiente zagal polido;
Y aun estoy médio corrido
De haber acá llegado.
Anda, si quieres venir!
CAS. Sin mentir,
Tú estás ruera de ti:
Lo que te dije hasta aqui,
Será ansí,
Aunque sepa de inorir.
SAL. No me ves? CAS. Bien te veo.
SAL. No te creo:
Pues no queres? CAS. No te quiero.
SAL. Casamiento te requiero.
CAS. Ya primero
Dije lo que es mi deseo.
SALOMÃO.
Que me dices? CAS. YO te digo
Que comigo
No hables en casamiento;
Que no quiero ni consiento,
Ni con otro ni contigo.
SAL. Quieres tú estar á cuenta?
CAS. Y nesa afrenta
Tengo contigo de estar?
No me quiero cautivar,
Pues nací horra y isienta.
SALOMÃO.
Tu tia misina me habló,
Y prometió
Muy chapado casamiento.
CAS. Otro es mi pensamiento.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 39

SAL. Pues yo siento


Que bien te meresco yo,
Y por eso vine acá.
CAS. Bien está.
SAL. Segun ei tu no querer,
Á mi ver,
Otro amor tienes allá.
CASSANDRA.
No quiero ser desposada
Ni casada,
Ni monja ni ermitana.
SAL. Díme, qué es Io que te engana;
Que esa sana
Empleas mal empleada.
Toma consejo comigo
O contigo,
Cuando sin pasion te veas;
Y mira lo que deseas,
Que razon trae consigo.
CAS. No pierdas tiempo comigo:
Yo te digo
Bien clara mi intencion.
SAL. Quien te viese ei corazon,
Por mirar mi enemigo,
Y saber porque razon!
CAS. NO tomes desto pasion
Ni alteracion,
Pues que no desprecio á ti;
Mas nació, cuando nací,
Comigo esta opinion,
Y nunca mas Ia perdi.
40 LIVRO I.

SALOMÃO.
Qué te hizo ei casamiento?
Es tonnento,
Que se da por algun hurto?
CAS. Y aun por eso le surto,
Porque es curto
Su triste contentamiento.
Muchos dellos es notório
Purgatório
Sin concierto ni templanza;
Y si algun bueno se alcanza,
No es médio placentorio.
Veo qnejar Ias vecinas
De malinas
Condiciones de maridos:
Unos de ensoberbecidos
Y aborridos,
Otros de médio gallinas,
Otros Uenos de mil celos
Y receios,
Sieinpre aguzando cuchillos,
Sospechosos, amarillos,
Y malditos de los cielos:
Otros á garzonear
Por ei lugar,
Pavonando trás garcetas,
Sin dejar Mancas ni prietas
Ni reprietas;
Y Ia muger? sospirar,
Despues en casa renir
Y grunir
De Ia triste allí cautiva.
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 41

Nunca Ia vida me viva,


Si tal cosa consentir.
Y pues eres cuerdo y sientes,
Para mieníes.
Muger quiere decir molleja;
Es ansí como una oveja
En pelleja,
Sin armas, fuerzas ni dienles;
Y si le falta sentido
Al marido
De Ia razon y virtud,
Ay de nina juventud,
Que en tales manos se vido!
SALOMÃO.
No soy desos, ni seré:
Por mi fe,
Que te tenga en velloritas.
CAS. Y con floritas
Piensas que ine engafiaré?
No quiero verme perdida,
Entristecida
De celosa ó ser celada.
Tirte afuera! no es nada?
Pues antes no ser nacida.
Y ser celosa es lo peor;
Que es dolor,
Que no se puede escusar.
De los vientos hace mar;
Y afirmar
Que ei blanco es de otra color;
De Ias buenas hace malas,
Con sus falas;
42 LIVRO I.

Y de los santos, Iadrones.


No quiero entrar en pasiones,
Pues que bien puedo escusarlas.
SALOMÃO.
Do seso hay no hay celuras,
Sino holguras;
Que ei seso todo bien da.
CAS. El seso es no ir allá.
SAL. Calla ya,
Que te receias á escuras.
CAS. Allende deso, sudores
Y dolores
De partos, llorar de hijos:
No quiero verme en letijos,
Por inas que tú ine namores,
SALOMÃO.
Yo voy llamar ai aldea
Erutea
Y á Peresica tu tia
Y á Cimeria; y tu porfía
Delante dellas se vea.
CAS. Y á mi que se me da!
Quien será,
Que me case á mi pesar?
Si yo no quiero casar,
A mi quien me forzará?
(Canta.)
"Dicen que me case yo;
"No quiero marido, no.
"Mas quiero vivir segura
"Nesta sierra á mi soltura,
"Que no estar en ventura
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 43

"Si casaré bien ó no.


"Dicen que me case yo;
"No quiero marido, no.
"Madre, no seré casada,
"Por no ver vida cansada,
r

"O quizá mal empleada


"La gracia que Dios me dió.
"Dicen que me case yo;
"No quiero marido, no.
"No será ni es nacido
"Tal para ser mi marido;
" Y pues que tengo sabido
"Que Ia flor yo me Ia só,
"Dicen que me case yo,
"No quiero marido, no."
Entra Erutea, Peresica e Cimeria, com o pastor
Salomão, em chacota, ellas d maneira de lavradoras, e
diz Cimeria a Cassandra.
CIMERIA.
Qué te parece ei zagal?
CAS. Ni bien ni mal,
Que no quiero casar, no.
Vosotras quien os metió
Que case yo?
Pues sabed que pienso en ai.
CIM. Tu madre en su testamento
(No te miento)
Manda que cases, que es bueno.
CAS. Otro casamiento ordeno
En mi seno:
Que no quiero ni consiento.
44 LIVRO I.

SALOMÃO.
Loco consejo lias tomado.
Estoy espantado!
Do se halló tal desvarío?
CAS. Mi fe, nel corazon mio;
Y lo fio,
Que no vó camino errado.
No quiero dar mi limpeza
Y mi pureza
Y mi libertad exenta,
Ni mi anima contenta,
Por sesenta
Mil millones de riqueza.
PERESICA.
Si tu madre eso hiciera!..
CAS. Bien, qué fuera?
PER. Nunca tú fueras nacida.
CAS. Yo quiero ser escogida
En otra vida,
De mas perfeta manera.
ERU. Escucha, sobrina mia:
Todavia
No puedes sino casar;
Y este debes tomar
•Sin porfiar,
Que es inuy bueno en demasia.
CASSANDRA.
Como ansí? ERU. E S generoso
Y virtuoso,
Cuerdo y bien asombrado:
Tiene tierras y ganado,
Y es loado
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 45

Músico muy gracioso.


SAL. Tengo pomares y vinas,
Y mil pinas
De rosas para holgares;
Tengo villas y lugares,
Y mas treinta y dos gallinas.
ERUTEA.
Sobrina, este zagal
Es real,
Y para ti está escogido.
CAS. NO lo quiero ni lo pido
Por marido:
Guárdeme ei Senor de mal!
CIM. Tú no ves como es honrado
Y sosegado,
Cuanto otro lo será?
CAS. Qué sé yo si mudará,
O que hará
Cuando se vea casado!
Oh cuantos ha hí solteros
Placenteros,
De inuy blandas condiciones,
Y casados son leones
Y dragones,
Y diablos verdaderos!
Si Ia muger, de sesuda,
Se hace muda,
Dicen que es boba perdida;
Si habla, luego es herida:
Y esto nunca se muda.
SALOMÃO.
Muy entirrada está!
46 LIVRO I.

Hien será
Que no le digamos mas.
Pues tú te arrepentirás,
Y querrás,
Cuando ei diablo no querrá.
ERU. Muy mas ayna quizá
Se hará,
Si Ia servieses de amores.
SAL. Qué moza para favores!
No veis que respuesta da?
PERESICA.
Si tus tios allegasen,
Y le hablasen,
Que son hoinbres entendidos...
CIM. Pardiez son, y bien validos
Y sentidos!
Bien sé yo que lo acabasen.
SAL. Quiérolos ir á Ilamar
Al lugar:
Veremos esto en que para;
Aunque ella se declara
Por tan cara,
Que ha de ser dura de armar.
Traz Salomão Esaias e Moyses e Abrahão
tando todos quatro de folia a cantiga seguinte.
'•'•Que saiíosa está Ia nina!
"Ay Dios quien le hablaria!"
Volta.
"En Ia sierra anda Ia nina
"Su ganado á repastar;
"Hennosa como Ias flores,
"Sanosa como Ia mar.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 47

"Saiíosa como Ia mar


"Está Ia nina:
"Ay Dios, quien le hablaria!"
ABRAHÃO.
Digo qne esteis norabuena!
Por estrena
Toma estas dos inanijas.
MOY. Y yo te doy estas sortijas
De mis hijas.
ESA. Yo te doy esla cadena.
SAL. Dartehía yo bien sé qué,
Mas no sé
Cuanto puede aprovechar.
ERU. Muchas cosas hace ei dar,
Como contino se ve.
CASSANDRA.
Téngome de captivar
Por ei dar?
No me engano yo ansí.
Yo digo que prometi
Solo de iní,
Que no tengo de casar.
MOY. Blasfemas; que ei casamiento
Es sacramento,
Y ei primero que fué.
Yo Moysen te lo diré
Y contaré
Donde hubo fundamento.
En ei principio crio
Y formo
Dios ei cielo y Ia tierra,
Con cuanto en ello se encierra:
48 LIVRO I.

Mar y sierra
De nada lo edificó.
Era vácua y vacía,
Y no habia
Cosa por quien fuese amado.
Ei spírito no criado
Sobre Ias águas lucía.
Fiat luxl luego fue hecha
Muy prehecha,
Sol y Luna y Ias estrellas,
Criadas claras y bellas
Todas ellas
Por regia justa y derecha.
Al Sol dióle compafiera
Por parcera,
De una luz de ambos guarnidos,
Dominados y medidos
Cada uno en su carrera.
Hagamos mas, dijo ei Senor
Criador,
Hombre a nuestrasemejanza,
Angélico en Ia esperanza
Y en lianza,
Y de lo terrestre — senor.
Luego le dió compafiera
En tal manera
De una gracia ambos liados,
Dos en una carne amados,
Como si ambos uno fuera.
El mismo que los crio,
Los caso,
Y troto ei casamiento;
DAS OBRAS DE DEVAÇÂO. 49

Y por su ordcnainiento
Es sacramento,
Que ai inundo estableció.
Y pues fue casamentero
El primero,
Y es lei determinada;
Como estás tú entirrada,
Diciendo que es captivero?
CASSANDRA.
Que cuando Dios los hacía
Y componía,
En esos tales no hablo:
Mas en aquellos que ei diablo
En su retablo
Hace y ordena cadaldia.
Por codicia los ayunta,
Y no pergunta
Por otra virtud alguna;
Y despues que Ia fortuna
Los enfuna,
Toda gloria le es defunta.
Si yo me casase agora,
Dendê á una hora
No querria ser nacida.
No tengo mas de una vida;
Y, sometida,
Diz, Casandra, tirte afuera.
Marido? ni aun sonado,
Ni pintado.
No cureis de porfiar,
Porque para bien casar
No es tiempo concertado.
50 LIVRO I.

ABRAHÃO.
Y si cobras buen marido,
Comedido,
Y nunca apasionado?
CAS. Nunca? estais inuy errado,
Padre honrado,
Porque eso nunca se vido.
Como puede sin pasion
Y alteracion
Conservarse ei casamiento?
Múdase ei contentamiento,
En un momento,
En contraria division.
Solo Dios es perfeccion:
Si en razon
La verdad quereis que hable;
Que ei hombre todo es mudable
Y variable,
Por humanai complision.
Pero yo quiero decir
Y descubrir
Porque virgen quiero estar:
Sé que Dios ha de encarnar,
Sin dudar:
Y una virgen ha de parir.
ERUTEA.
ESO bien ine Io sé yo,
Y cierta só
Que en un presepe ha de estar;
Y Ia madre ha de quedar
Tan virgen como nació.
Tambien sé que de pastores
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 51

Labradores
Será visto y de Ia gente;
Y le traerán presente
Del Oriente
Grandes Reis y sabedores.
CIMERIA.
Yo, dias ha, que hei sofiado
Y barrunlado,
Que via una virgen dar
r

A su bijo de mamar,
Y que era Dios humanado;
Y aun despues ine parecia
Que Ia via
Entre mas de mil doncellas;
Con su corona de estrellas
Mucho bellas,
Como ei sol resplandecia.
Nunca tan glorificada
Y acatada
Doncella se pudo asmar,
Como esta virgen vi estar;
Ni su par
No fue ni será criada.
De sol estaba guarnida,
Percebida,
Contra Lucifer armada,
Con virgen arnés guardada,
Ataviada
De inalla de santa vida.
Con leda cara y guerrera,
Placentera,
El resplandor piedoso,
52 LIVRO I.

El yehno lodo huniildoso,


Y Mater Dei por cimera:
Y ei nino Dios estaba,
Y Ia llamaba,
Madre y madre, á boca llena;
Los ángeles, grafia plena
Muy serena;
Y cada uno Ia adoraba,
Diciendo: "Rosa florida
Esclarecida,
Madre de quien nos crio!
Loado aquel que nos dió
Reina lan santa nacida."
ERU. Peresica, tú nos decias
Que sabias
Desta virgen y su parto.
PER. Mi fe dello sé bien harto
Y reharto:
Llena estoy de profecias.
Einpero son de dolor:
Que ei senor,
Estando á veces mamando,
Tal via de cuando en cuando,
Que no mamaba á sabor:
Una cruz le aparecia,
Que él temia,
Y lloraba y suspiraba.
La madre lo halagaba,
Y no pensaba
Los tormentos que él via:
Y comenzando á dormir,
Via venir
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 53

Los azotes con denuedo;


Estremecia de iniedo.
Y no puedo
Por ahora mas decir.
CAS. YO tengo eu mi fantasia,
Y.juraria
Que de mi ha de nacer;
Que otra de ini merecer
No puede haber,
En bondad ni hidalguía
ABHAHÃO.
Casandra desvaría.
ESA. Yo diria
Que está muy cerca de loca,
Y su cordura es muy poça,
Pues que toca
Tan alta descortesia.
SAL. El diablo ha de acertar
r

A casar;
Por mi alma y por mi vida,
Que quien Ia viera sabida
Y tan leida,
Que se pudiera enganar.
Casandra, segun que mucstra
Esa respuesta
Tan fuera de conclusion,
Tu loca, yo Sáloinon,
Daine razon,
Qué vida fuera Ia nueslra?
CAS. Aun en mi seso esto:
Que soy yo.
ESA. Cállate, loca perdida,
54 LIVRO I.

Que desa madre escogida


Otra cosa se escrevió.
Tú eres delia ai revés,
Si bien ves:
Porque tú eres humosa,
Soberbia y presuntuosa,
Que es Ia cosa
Que mas desviada es.
La madre de Dios sin par,
Es de notar,
Que humildosa ha de nacer,
Y humildosa conceber,
Y humildosa ha de criar.
Las riberas y verduras
Y frescuras
Pregonan su hermosura,
La nieve Ia su blancura
Liinpia y pura,
Mas que todas criaturas:
Lírios, flores y rosas
Muy preciosas
Procuran de seinejalla;
Y en ei cielo no se halla
Estrella mas luminosa.
Antes santa, que engendrada;
Preservada
Antes reina, que nacida;
Eternalmente escogida,
Muy querida,
Por madre de Dios guardada.
Por virtud reina radiosa,
Generosa;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 55

Por gracia emperadora,


Por humildad gran senora,
Y hasta ahora
No se vió tan alta cosa.
ESALAS.
El su nombre es Maria,
Que desvia
De ser tú Ia madre dél:
Y ei hijo Emanuel
Manteca y miei
Comerá como yo decia.
ABR. Dos mil veces Io decias,
Que ei Mesías
Será Dios vivo en persona,
Y aun te juro á mi corona,
Ahotas que no inentias.
MOYSES.
Y tú tambien, Salomon,
Huen garzon,
Los cantares que hacias
Todos eran profecias;
Que decias
Delia y de su perfeccion:
'•'•Formosa columba mea,
Quien te vea,
De vista ó á sentido,
Gócese por ser nacido,
Por fuerte zagal que sea."
ABRAHÃO.

Si hubiésemos de declarar
Y platicar
Cuanto delia está escrito,
56 LIVRO I.

Seria cuenío infinito,


Que ei spiríto
No puede considerar.
Tudo fue profetizado
Por mandado
Daquel hacedor dei inundo,
Hasta aquel dia profundo,
No segundo,
Mas prostero, es divulgado.
ERUTEA.
Deso profetó Africana.
PjEn. Y lú, hermana,
Dese juicío hablaste,
Escrívisté y declarasie
Cuanto baste
Para informa ciou humana;
Pero cuando ha de ser,
Es de saber.
ERU. Las senales os diré,
Porque las sé
Muy cíertas y bien sabidas.
PER. Ansí Dios te dé iníl vidas
Que las digas,
Y yo te Io serviré.
ERUTEA.
Cuando Dios fuere ofendido
Y no temido,
Generabnente olvidado;
No será mucho alongado,
Mas llegado,
El juicío prometido.
Cuando fuere leal Ia d
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 57

Y Ia verdad
Despreciada y no valida,
Cuando vieren que Ia vida
Es abatida,
Del que sigue Ia bondad;
Cuando vieren que justicia
Está en malícia,
Y Ia fe fria, enechada,
Y Ia Iglesia sagrada
Captrvada
De Ia tirana codicia;
Cuando vieren irabajar
Por levantar
Palácios demasiados,
Y los pequenos menguãdos
Desolados;
No puede mucho tardar.
Y cuando vieren perdida
Y consumida
La vergüenza y Ia razon,
Y reinar Ia presuncion;
Nesta sazon
Perderá ei inundo Ia vida.
Y cuando mas segurado
Y olvidado
De Ia fin él mismo sea,
En aquel tiempo se crea,
Que ha de ser todo abrasado.
Abrem-se as cortinas onde está todo o apparato do
Nascimento, e cantão quatro Anjos.
"Ro ro ro
-Nueslro Dios y Redentor,
58 LIVRO I.

"No lloreis, que dais dolor


"Á Ia virgen que os parió.
"Ro ro ro.
"Nino hijo de Dios Padre,
"Padre de todalas cosas,
"Cesen las lágrimas vuesas,
"No llorará vuestra madre,
"Pues sin dolor os parió.
"Ro ro ro,
"No le deis vos pena, no.
"Ora, nino, ro ro ro,
"Nuestro Dios y Redentor,
"No lloreis, que dais dolor
"Á Ia virgen que os parió.
"Ro ro ro."
MOYSES.
Naquel cantar sento yo,
Y cierto só,
Que nuestro Dios es nacido;
Y Hora por ser sabido
Y conocido,
Que es de carne como yo.
CIM. Yo ansí Io afirmaria
Y juraria;
Que lo deben estar brizando,
Y los ángeles cantando
Su divinal melodia.
ESAIAS.
Pues vámoslo adorar,
Y visitar
EI recien nacido á nos:
Verán nuestros ojos dos
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 59

Un solo Dios,
Nacido por nos salvar.
Vão cantando em chacota, e chegando ao presépio diz
PERESICA.
Erutea, ves allí
Lo que vi,
La cerrada flor parida.
ABR. Oh vida de nuestra vida,
Guarecida
Y remediada por ti!
A ti adoro, Redentor,
Mi senor,
Dios y hombre verdadero,
Santo y divino cordero,
Postrimero
Sacrifício inayor!
MOYSES.
Oh pastorcico nacido,
Muy sabido,
De tu ganado cuidadoso,
Contra los lobos sanoso,
Y piedoso
Al rebano enflaquecido!
Por Ia tierna carne humana,
Nuestra hennana,
Que en ese brizo sospira,
Que nos libres de tu ira,
Y las animas nos sana!
SALOMÃO.
Qué oracion, Dios, te harán,
Qué dirán!
Oh gran Rei desde ninito
60 MVRO I.

Por natureza bendito,


Infinito,
Ab eterno capitan,
De celeste império heredero
Por enlero,
De deidad coronado!
Adórote, Dios humanado,
Y por nos hecho cordero!
ESAIAS.
Adórote, santo Mesías!
En mis dias
Y para sieinpre te creo,
Pues con mis ojos te veo
En tal aseo,
Que cuinples las profecias.
Nino, adoro tu alteza
Con firmeza;
Y pues no tengo desculpa,
A tus pies digo mi culpa,
Y confeso mi flaqueza.
CASSANDRA.
Senor, yo, de ya perdida
Nesta vida,
No te oso pedir nada,
Porque nunca dí pasada
Concertada;
Ni debiera ser nacida.
Virgen y madre de Dios,
A vos, á vos,
Corona de las mugeres,
Por vuestros siete placeres,
Que quieras rogar por nos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÂO. 61

CIMERIA.
Espejo de generaciones
Y naciones,
De Dios hija, madre y esposa,
Alta Reina gloriosa,
Especiosa,
Cumbre de las perfecciones!
Oh estrada en campos llanos
De humanos
Sospiros á ti comentes,
Oidora de las gentes,
Encomiéndome en tus manos!
PERESICA.
Oh clima de nuestro polo!
Un bien olo,
Planeta de nuestra gloria,
Influencia de vitoria:
Por memória
Nuestro sino laureolo.
ERU. Ave, stella matutina,
Bella y dina!
Ave, rosa, blanca flor!
Tú pariste ei Redentor,
Y tu color,
Del parto quedo mas fina.
Acabada assi sua adoração cantarão a seguinte cantiga, feita e ensoada
pelo atitor.

TODOS.
"Muy graciosa es Ia doncella:
"Como es bella y hennosa!
"Digas tú, ei marinero,
"Que en las naves vivias,
62 LIVRO I.

"Si Ia hâve ó Ia vela ó Ia estrella


"Es tan bella.
"Digas tú, ei caballero,
"Que las armas vestías,
"Si ei caballo ó las armas ó Ia guerra
"Es tan bella.
"Digas tú, ei pastorcico,
"Que ei ganadico guardas,
"Si ei gana do ó las valles ó Ia sierra
"Es tan bella."
Isto bailado de terreiro de três por três: e por despedida o vilancete seguinte.

Vilancete.
"Á Ia guerra,
" Caballeros esforzados;
"Pues los ángeles sagrados
r

"A socorro son en tierra.


"A Ia guerra!
"Con armas resplandecientes
"Vienen dei cielo volando,
"Dios y hombre apelidando
"En socorro de las gentes.
"Á Ia guerra,
"Caballeros esmerados;
"Pues los ángeles sagrados
"A socorro son en tierra.
"A Ia guerra!"
F I G L R A S.

FÉ.
BRAZ.
BENITO.
SYLVESTRE.

A seguinte representação foi representada em Almeirim


ao mui poderoso Rei D. Manuel. Cuja invenção he, que
estando nas matinas do Natal, enlrão dous pastores simpres
na capella; e estando maravilhados no pontificai de todas
aquellas cousas, entra a Fé*, que lhe declara a significação
dellas.
ALTO DA FE.

Entra primeiramente um pastor chamado Brt


assi aquella festa, chama seu companheiro, dizem
BRAZ.
Benito, aqui está Ia boda.
BEN. Ha, no te le dije yo?
Juro á diez que allá me vó.
BRA. Aqui está Ia gente toda.
BEN. Cuantos que estes zotes son,
r

O cregos ó son personas.


BRA. Mas que monton de coronas!
Bendígalos santo Anton.
BENITO.
Quien supiese deslindar
Cual es crego ó sancristan!
BRA. De mil relleas eslan.
BEN. Cata, mas ha hi que mirar:
Qué sinifíca esta mesa
Con tanta retartanilla?
BRA. Bobo, es cama á for de villa,
Chaqueada á Ia francesa.
BEN. Cuerpo de santa Pipía!
Sabes mas que tú ni yo.
BRA. YO atabobado esto
De ver tal negroinancía!
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 65

Sabrásme tú rellatar
Que declinan estas lumbreras?
Son candeias ó bugeras?
IRA. NO lo sé pronunciar.
Son^palos daquel natío,
m Sonçjis nacen no sé donde.
IEN...NÍ jota n,04,se te esconde;
Pelletras mas que tu tio.
JRA. Oh que cosa tan garrida
Es aquello que allí está!
ÍEN. Y aquello qué sara?
JRA. Nunca tal vi en mi vida.
Juro á diez, mas bobo esto
Que ei triste que anda en aprifo.
No te quellotras, Benito?
SEN. Mas que tú bobeo yo:
No hago sino pensar,
Maginando nesta fiesta.
ÍRA. Es aquello ciesto ó ciesta,
O artesã de amasar ? *
BENITO.
Que es aquella sevandija
Amarilla incrucijada?
IRA. Será serpiente encantada,
O es negocio de igrija?
O sabes lo que será?
Donde deslindan los pleitos.
JEN. Ternas inuy grandes respetos,
Si Dios Ia vida te da.
Hideputa, como aciertas!
Y pareces bobillon.
* Pola caldeira da água benta.
5
Vol. I.
66 HVKO 1.

BRA. Está quedo, neciarron:


Siempre andas con gingretas.
BEN. Pelletreinos poço á poço,
Que infinita aqui está gente
Tan alegre y tan contente,
Quellotrada de alvorozo.
BRAZ.
Aquellas inágines seran?
BEN. Qué pegullal tan garrido!
BRA. Parece piado florido,
La inanana de San Juan.
BEN. Hay aqui tanto que ver,
Que me siento atabobado.
BRA. Quien hallár-a algun Uetrado,
Que supiera esto entender.
Vem a Fé, e diz Benito,
BENITO.
Esta que viene repieada,
Quellotrada á Ia morisca,
Nos dirá que senefisca,
Que ella debe ser lletrada.
BRA. Y ella hace revellada.
BEN. Cata, cata como está.
BRA. Quien será que viene acá?
Es imagine sagrada.
BENITO.
Ha! no plaga á nuestros amos,
Y no pese no de nos,
Que no hecimos los dos
Revellencia, cuando entramos.
BR v. Llugo, Hugo te quellotras!
Bien se puede corregir:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 67

Tornémonos á salir,
Y revelleinos ahotas.
BENITO,
Tú, Brás, harás Ia entrada.
BRA. Mas entremos par á par,
Porque nos cumple animar
Al dar de Ia revellada.
Comenceinos á Ia una.
BEN. Tente, tente sobre ti.
BRA. Si tú te piegas á mi,
Diablo, bestia ovejuna!
lia inesura bien está:
Las manos tambien pongamos.
BEN. Porque no nos asentainos?
BRA. El diablo acertará.
BEN. Tú no ves como está ella?
BRA. Ora ponte tú, veremos.
BEN. Cuinple que nos debloqueinos,
Y tengamos ojo en ella.
BRAZ.
Está hablando entre dientes.
Haces burla dei verano!
BEN. Ya se ine hincha una mano:
Y tú, carülo, qué sientes?
BRA. Las rodüias entumidas,
Las piernas ine estan temblando.
BEN. Ella que está inaginando?
BRA. Tiene las mientes perdidas.
BENITO.
Levantémonos de aqui:
Nosotros bobos estamos.
Vamos á ver nuestros amos.
5*
68 LIVRO I.

HRA. NO ine tengo de ir ansí.


Sepainos desta zagala
Quien es, y lo que fiííita.
O zagaleja bendita,
Quien sois vos de tanta gala?
No hablais? pues no sois muda*
BEN. Espera; ya se levanta.
BRA. Tanta revellencia, tanta!
BEN. Júri á san que es resesuda.
FÉ. Vós outros, que demandais ?
BRA. Nosotros qué os queremos?
Si á nos lo perguntais,
Nosotros no lo sabemos.
FÉ,
A divinal claridade
Seja em vosso entendimento,
E vos dê conhecimento
De sua natividade.
BRA. Mas quien sois vos, ó quien seres?
FÉ. Pastores, eu sain a Fé.
BRA. Ablenuncio Satané!
Fá ni fé no sé que se es.
FÉ.
Fé he crer o que não vemos,
Pela glória que esperamos";
Amar o que não comprendemos,
Nem vemos nem conhecemos,
Para que salvos sejamos.
BRA. Ahora lo entiendo menos:
Rellata eso mas claro;
Que perjuro á Santo Amaro,
Que ni punto os entendemos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 69

FÉ.
Fé he amar a Deos, so poi? elle,.
Quanto se pode amar,
Por ser elle singular,
Não por interesse delle:
E se mais quereis saber,
Crer na Madre Igreja sanctar
E cantar o que ela canta,
E querer o que ella quer.
BENITO.
El que pergunta no yerra:
Qué es aquella encrucijada,
Que allí está tan replicada,
Que seineja roble en sierra?
FÉ. Aquella he a arvore da vida.
BRA. NO desiludais como ha nombre?
Y qué hace alli aquel hombre
Puesto y Ia color perdida?
FÉ.
AqueHa he a cruz preciosa,
Para sempre esclarecida,
Para os perigos desta vida,
E nao da salvação nossa.
O homem se chama Jesu,
Messias, Rei, Salvador,
Deos e homem, Redemptor;
(Não sei se o entendes t u )
Deos he seu nome maior.
BRAZ.
Mi amo ha nombre tambien
Pero Alonso, y Pero Matos,
Y Perazo lo llainan liados.
70 LIVRO I.

Ansí como á mano vien.


Allá en nuestro lugar,
Si no viene lluvia ni vella,
Toman una como aquella
Nuestros amos* á clamar
Ora pro nubes, ora pro nubes;
Y Ias mugeres ansí
La que mas gritillo tiene:
La lluvia ni va ni viene,
Y Ia cruz estáse ahi.
BEN. Vámonos; anda ca, Brás,
Ya gran rato que aqui estamos;
Bien conoces nuestros amos:
Anda, no cures de mas.
BRAZ.
No sabrás primero, dí,
Aquesta gente baldia
Si dormieron todo ei dia,
O qué noche es esta aqui?
BEN. Ella es noche de alegria;
Ninguno está aqui sonoliento.
FÉ. He noute do nascimento,
Em que Deos mostrou seu dia.
He noute de gran memória,
Noute em dia convertida,
Escuridão consumida
Com gran resplandor de glória:
No meio mais luiniosa
Que no mundo nunca viste,
E de escura, fria e triste,
A mais doce e gloriosa.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 71

Oh noute favorecida
De memorável coroa,
Vista de Deos em pessoa,
Começando humana vida!
Dos anjos toda cercada,.
Dos elementos servidaT
Do Padre e Filho escolhida,.
Do Sprito Sancto espiradal
BRAZ.
Que no os entiendo, no,
Ni sé que cosas baldais.,
Si mas no lo aclarais.
Como estava me esto.
Si es noche de navidá,.
Esa es otra sevandija;
Mas no veo en nuestra igrija
Esto ansí como aqui eslá.
FÉ.
Haveis de crer firmemente
Tudo quanto vos disser
Os que salvos quereis ser
Naquesta vida presente:
Crede o sancto nascimento,
Ser Deos da Virgem nascido,
Verbo de Deos concebido
Para novo testamento.
E que a Virgem gloriosa
Ficou lal como nasceo;
E sem dor appareceo
A nossa flor preciosa,
Deos em toda perfeição,
Homem para padecer,
72 LIVRO I.

E tirar a Lucifer
Toda sua jurdição.
BRAZ.
Qué anos ha que acaeció?
FÉ. Mil e quinhentos e dez.
BRA. Y ahora nace otra vez ?
De mil anos se acordo!
Quizá si hoinbre allá se bailara
FÉ. Tanto monta se agora
Contemplares aquella hora
Como se agora passara.
Pastor, faze tu assi:
Começa de ünaginar
Que ves a Virgem estar
Como se estivesse ahi:
E esta Virgem mui ornada,
De pobreza guarnecida,
De raios esclarecida,
De joelhos humilhada:
E que ves diante delia
Huin menino então nascido,
Filho de Deos concebido
Naquella sancta donzella.
Ve o menino chorar,
E a Senhora affligida,
Sem ter cousa nesta vida,
Nem pannos para o pensar:
Na mangedoura mettido
Em pobre palha chorando,
E os anjos embalando
O menino entanguecido.
BRA. Con eso se me acordo
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 73

Que cuando parió mi ama


Chapuzada allí en Ia cama
Todos los huevos comió.
Y iú, Benito? BEN. Maginava
Que era aquello bien de ver,
Ver á nuestro Dios nacer:
Y en esto me espipitava.
Decidnos, Senora vos,
Porque tan pobre nacia?
Todo ei inundo no tenia
Por suyo, pues era Dios?
FÉ.
Por mostrar que a pobreza
Actual e spritual
He o toque principal
Da celestial riqueza:
Porque he porta da humildade,
Caminho da paciência,
Horto da sancta prudência,
Esteio da sanctidade.
He abrigo dos cuidados,
E de mundanas mudanças,
Forra de vans esperanças
Dos homens desesperados.
Da Fortuna vencedora,
D'adversidades isenta,
Nao segura na tormenta,
Que tem porto cada hora.
Portanto a Virgem real,
Per geração generosa,
Foi a mais pobre e humildosa
De todo o gênero humanai.
74 LIVRO I.

E assi o verbo do Padre


Ecce ancilla concebido
Pobre humilde foi nacido,
Bem parecido á madre.
Sentindo nossa miséria,
Chorava o sancto menino,
Cuberlo, occulto o divino
Daquella fraca matéria.
E porque elle he dado a nós,
Cujo império he eternal,
Faz esta corte real
A festa que vedes vós.
Vós outros também cantai
Por vosso uso acostumado
Como lá cantais co'o gado:
Ambos de dous começai.
BHA. Cantiquemos por San Polo.
BEN. Abrenuncio nos a maio !
Ora pues tenme este paio,
Verás como canto solo.
"No no no no no no
"No no no
Que no quiero estar en casa;
"No me pagan mi soldada
"No no no, que no que no.
"No me pagan ini soldada,
"No tengo sayo ni saya
"No no no, que no que no."
Ha Sylvestre! SIL. Héme aqui,
BHA. Adó diablo estabãs?
SYL. Bien oi lo que hablabas,
Y aun esotra, que está abi.
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 75

BRA. Viste tanto zote ya?


No ha poder que no te asoinbres.
SYL. Mas ha cregos, que no hombres;
Mas á nos qué se nos da.
Yo y estos três companeros,
Pues que es noche de alegria,
Cantaremos melodia,
Mejor que cuatro gaiteros.
BRA. Vos, prehecha Fé sagrada,
Vida de nuestro consuelo,
Pues nos mostrastes ei cielo,
Seais por sieinpre loada.

Cantão a quatro vozes hüa enselada que veio de França,


c assi se vão com ella, e acaba a obra.
FIGLRAS.
VERÃO.
INVERNO.
ESTIO.
OUTONO.
JÚPITER.
HUM SERAPHIM.

Dous ANJOS, e hum Archanjo.

Esta seguinte obra se chama dos Quatro T


representada ao mui nobre e próspero Rei D. J\
cidade de Lisboa, tios paços de Alcaceva, na *
San Miguel, por mandado da sobredita Senhora i
nas matinas do Natal.
ALTO DOS QLATRO TEMPOS.

Entra o Seraphim dizendo ao Archanjo e dous


Anjos, que vem com elle.
SERAPHIM.
Nuevo goso, nueva gloria,
Criada en ei seno eterno,
Es llegada:
Gran mudanza, gran vitoria
Por nuestro Dios sempiterno
Nos es dada.
La clara luz anciana
Mudada, bocha moderna
En nuevo trage,
Y Ia bondad soberana
Se alegra en Ia edad lierna
Sin ultrage.
Nuestro goso se acrecienta,
Nuestra gloria va pujando
Neste dia;
Y Ia infernal serpienta
Ya privando va dei mando,
Que tenia
Los secretos abrazados,
Muy mas que puedo deciros,
Revelados.
78 LIVRO I.

Las paces son acabadas,


Y los antigos sospiros
Son cesados.
Ya ei inundo tenebroso
Reluinbra por las alturas
Dó salió,
Porque ei obrador poderoso
Exalzó las criaturas,
Que crio:
La clara obra infinita,
Infinitamente obrada
Y obradora,
Quiso su bondad bendita
Que fuese manifestada
Nesta hora.
El infinito amador,
Infinitamente amando
Cosa amada
De infinito valor,
Supo donde, quiso cuando
Ser mostrada.
Y ei amor mediante,
Por do ei amador y amado
Son liados,
Es plantado en un infante
Con ei Padre en un estado
Concordados.
Pues vámosle á ver nacido,
Veremos como está puesto
El infinito
De humana carne vestido,
De huesos, niervos compuesto.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 79

Tamafiito
Veremos como se inuestra
Recien nacido de ahora,
Poço ha;
Veremos Ia reina nuestra,
Nuestra gran superiora,
Cual está.
Vamos ver pulcra y decora
Como está, clara y lumbrosa,
Descansada;
Vamos ver nuestra senora,
lia mas bella y graciosa,
D esposada.
Vamos ver Ia clara silla
Eternalmente guardada
En alto grado;
Vamos ver Ia sin mancilla,
Vamos ver Ia preservada
De pecado:
Emperatriz soberana,
De todo cuento dei viso
Angelical,
Reina dei cielo á Ia liana,
Senora dei paraíso
Terrenal:
La gran princesa sin falta
Deste valle lacrimoso,
Donde mora
lia gran Duquesa muy alta
De Ia paz y dei reposo,
Desde ahora.
Vamos ver con que doncellas,
80 LIVRO I.

Con que galas, con que arreos,


La lia liamos,
La madre de las estrellas,
Cumbre de nuestros deseos
Que esperamos.
Llegueinos darle loores,
Vamos servir su Alteza
Esclarecida;
Que no terna servidores,
Segun siempre amó pobresa
En esta vida.
Chegando todos as quatro» figuras, s. o Seraphim,
Anjos e Archanjo, ao presépio, adorão o Senhor, can-
tando o seguinte
Vilancete.
"A ti, dino de adorar,
"A ti, nuestro Dios, loamos,
"A ti, senor, confesamos
" Sanctus, sanctus, sin césar.
"Inmenso Padre eternal,
" Omnis terra honra á ti,
"Tibi omites aiigeli,
" Y ei coro celestial,
"Pues que es díno de adorar
"Querubines te cantamos,
"Arcángeles te bradamos
"Sanctus, sanctus, sin césar.
E depois da adoração dos Seraphins âfc. vem os quatro
Tempos, e primeiramente vem hum pastor, que significa o
Inverno, e vem cantando.
INVERNO.
"Mal haya quien los envuelve
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 81

"Los mis amores:


'•>

"Mal haya quien los envuelve."


Ora pues, ea rabiar,
Grama de Val de Sogar,
Que no ha hi pedernal
Ni aparejo de calentar:
Vienta mas recio que un fuele,
De parte dei reganon;
Enfríame ei corazon,
Que no ama como suele.
"Mal haya quien los envuelve
"Los mis amores;
u
Mal haya quien los envuelve."
La lluvia como desgrana!
Doy á rabia ei mal tempero:
Aquesto no lleva apero
Para que Hegue á ínanana.
Mal grado haya Ia nieve,
Que mis amores, Qtriste yo!)
Cuando yo mas firme esto,
No los hallo como suele.
"Mal haya quien los envuelve
"Los mis amores;
"Mal haya quien los envuelve."
Las unas traigo perdidas,
Los pies llenos de frieras,
Mil rabias de mil maneras
Traigo en ei cuerpo metidas:
Tengo ei hielo en los huesos,
Muérenseme los corderos.
"Los mis amores primeros
"En Sevilla quedan presos:
Vol. I.
82 LIVRO I.

"Los mis amores


"Mal haya quien los envuelve."
Oh qué friasca nebrina,
Graniso, lluvia, ventisco!
Todo me pierdo abarrisco,
El cierzo ine desatina:
Mis ovejas y carneros,
De niebla, no sé qué es dellos.
"En Sevilla quedan presos
"Por cordon de mis cabellos
"Los mis amores:
"Mal haya quien los envuelve."
Todo de frio perece;
Las aves todas se fueron,
Las mas dellas se sumieron,
Que ninguna no parece;
Ni cigueiías, ni milanos,
Ni pitorras, jilgueritos,
Tórtolas y pajaritos,
Y mis amores íamanos.
"En Sevilla quedan ambos
"Los mis amores:
"Mal haya quien los envuelve."
Hideputa! que tempero
Para andar enamorado,
Repicado y requebrado,
Con Ia hija dei herrero!
Los borregos de mis amos,
La burra, hato y cabana,
Con Ia teuipestad tainana,
No sé adó los dejamos.
"En Sevilla quedan ambos,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 83

"Sobre ellos armaban bandos


"Los mis amores:
"Mal haya quien los envuelve."
Quiérome hechar á dormir,
Ver si puedo calentar.
Ora pues, ea rabiar,
Que no tengo de morir.
Por mal trage que me des,
No me ha de matar desmayo.
Oh quien me ora ca mi sayo,
Para cubrirme estos pies!
VERÃO. ( cantando.)
"En Ia huerta nace Ia rosa:
"Quiérome ir allá,
"Por mirar ai ruisenor
"Como cantaba."
Afuera, afuera, nublados,
Neblinas y ventisqueros!
Reverdeen los oteros,
Los valles, sierras y prados!
Reventado sea ei frio,
Y su natío:
Salgan los nuevos vapores,
Píntese ei campo de flores
Hasta que venga ei estío.
"Por las riberas dei rio
"Limones coge Ia virgo:
"Quiérome ir allá,
"Por mirar ai ruisenor
"Como cantaba."
Suso, suso, los garzunes
Anden todos repicados,
6*
84 LIVRO I.

Namorados, requebrados:
Renovar los corazones!
Agora reina Cupido,
Desque vido
La nueva sangre venida:
Agora da nueva vida
Al namorado perdido.
"Limones cogia Ia virgo
"Para dar ai su amigo.
"Quiérome ir allá,
''Para ver ai ruisenor
"Como cantaba."
Como me extiendo á placer!
O hideputa zagal,
Qué tiempo tan natural
Para no adolecer!
Cuantas mas veces me miro
Y me reiniro,
Véome tan quülotrado,
Tan lúcio y bien asoinbrado,
Que nunca lacer me tiro.
"Para dar ai su amigo
"En un sombrero de sirgo.
"Quiérome ir allá,
"Por mirar ai ruisenor
"Como cantaba."
Las abejas cobneneras
Ya me zunen los oidos,
Paciendo por los floridos
Las flores mas placenteras.
Cuán granado vieneíel trigo!
Nuestro amigo,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 85

Que pese á todos los vientos,


Los pueblos trae contentos,
Todos estan bien conmigo.
El sol, que estaba sumido,
Partido deste horizon,
Se sube á septentrion
En este tiempo garrido.
Por eso vengo florido,
Engrandecido,
Dando mal grado á Eneror
Geminis, Toro y ei Carnero,
Me traen loco perdido.
Hago claras las riberas,
El frio hecho en las fuentes,
EI tomillo por los montes
Huele de dos mil maneras.
La luna cuán clara salel
Si me vale,
Tengo três meses floridos,
Y despué^ de estos cumplidos,
Es por fuerza que me calle.
Entra o Es tio, hiia figura muito longa e muita en-
ferma, muito magra, com hiia capella de palha.
ESTIO.
Terrible fiebre efimera,
Ética y fiebre podrida,
Me traen seca Ia vida,
Acosándome que rnuera.
Dolor de inala manera
Traigo en Ias narices mias:
No duermo noches ni dias,
Ardo de dentro y de fuera.
86 LIVRO I.

La boca tengo amargosa,


Los ojos traigo amarillos,
Flacos, secos los carillos,
Y no puedo comer cosa.
La sed es cosa espantosa,
La lengua blanca, s.edienta;
La eabeza me atormíenta
Con calentura rabiosa.
Mi cahna perseverada,
Mis dias duran mil anos:
Los calores son tamanos,
Que es cosa descompasada.
EI água toda ensecada,
Polvorosos los caminos;
Los melones y pepinos
Hacen dolencia doblada.
Câncer, Vírgo y ei Leon,
Los registros de mis dias,
í|aben las cóleras mias,
Y las flemas cuantas son.
Tambien saben Ia razon
Daquesia mi calentura,
Y porque quiere ventura
Que tenga sieinpre sezon.
VERÃO^
O hideputa! qué aseo!
A qué veniste, mortaja?
Sieinpre v ienes hacer paja
Todo cuanto yo verdeo.
Como vienes luengo y feo,
Y chamuscado ei carillo,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 87

Seco, flaco y amariilo,


Vestido de mal aseo!
O malogrado de Estío,
Á qué vienes? vete, vete,
No estío, mas hastío.
EST. CaUa, calla, verdolete,
Que bueno es ei tiempo mio;
Porque asesa tus locuras,
Tus vanas flores y rosas,
Y otras cosas curiosas,
Que en ti no son seguras.
VERÃO.
Este que viene quién es?
INV. E S lo Otono, por mi vida.
OUT. Ora norabuena esteis.
VER. Buena sea tu venida.
OUT. Todos juntos qué haceis?
VER. YO bien tengo trabajado,
Y este cara de ahorcado
Me saco cuanto aqui veis.
OUTONO.
Ya todo está madurado,
Yo vengo coger ei fructo.
VER. Pues si tú no hallas mucho,
Este Estío lo ha estragado.
OUT. Muy bien está, Dios loado.
INV. Abellotas no nacieron.
VER. Muchas fructas se comieron
En estotro mes pasado.
OUTONO.
No quedo fructa ni Dada,
Ni hojas no las verás.
88 LIVRO I.

Tú, Verano, de hoy á mas


Acógete á tu mesnada;
Tú, Estío, á tu posada,
Cura bien tu calentura,
Que, si viene Ia friura,
Ternas cuartana doblada.
Entra Júpiter c diz:
JÚPITER.
O tú, gígantea diesa,
Delante Ia ligereza
De Boreas
Toda Ia tierra atraviesa;
Da combate á Ia tristeza
Do Ia veas.
Dí ai resto de Eneas,
Prosperada Roinulana,
Gran senora,
Que haga fiestas las peleas,
Pues que Latonio y Diana
H*y adora.
Aclara, Febo Iumbroso,
Los pasos peligrinantes
Que cambio;
Porque ei tiempo mentiroso
De los dioses triunfantes
Pierde ei tino.
No se usará ya mas
Venerar templo á Diana.
Ni á Juno;
Ni se verá, ni verás,
Estar Februa ufana
Nel trebuno.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 89

Ni Apoio se verá,
Ni los Bacos adorados
De Romanos:
Ni ei Hímeneo será
Padrino de los casados
Persianos:
Ni las ninfas aguaceras
Traerán águas por raegos
De las gentes:
Ni las hadas hechiceras
Mostrarán fingidos fuegos
De serpientes.
Y Nayades y Dianas,
Las Driades cazadoras,
Y Netuno,
Y las três diesas troyanas,
Dejarán de ser senoras
De consuno:
Y Ia Rhamnusia doncella
Decida de su castillo
Con ultrage,
Y todas estas con ella
Daran ai nino chiquillo
El menage.
La nueva infante Safos
Subió ai monte Parnaso,
Con aliiío
De traer en tierra Dios
De los Alpes en lo raso,
Hecho nino:
La cual infante gloriosa
En Ia Castália fuente
90 LIVRO I.

Se banó;
Porque siendo generosa,
Humildosa por ei monte
Se subió.
La muy escura vision
De Ia caverna Saturna,
Con Ias vidas
De los hijos de Monjergon,
Y de Ia diesa noturna,
Son sumidos.
Los venenos ponzonosos,
Que de Medusa salieron
Goteando,
Sus actos tanto danosos,
Cuando tal mistério vieron,
Van cesando.
lia Hechene venenosa,
Y aquella Estyx laguna
Infernenta,
Desde ahora temerosa
Está su boca importuna,
De contenta.
Creo que oyó los bramidos
De los bregos ancianos
De alegria,
Porque hoy son abatidos
lios infernales tiranos
Neste dia.
Todos van hoy adorar
Al criador poderoso,
Que es nacido;
Las aves con su cantar,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 91

Y ei ganado selvinoso
Con bramido.
Los salvaginos bestiales
Con olicorne pandero
Dan loores;
Y los brutos aniinales
Adoran aquel cordero,
Y los pastores.
Pues qué haceis, Tiempos hennanos,
Descuidados dei amor
Del que nació?
Levantad todos Ias manos,
Vamos ver aquel Senor,
Que nos crio.
INV; NO decís, si puedo yo?
No veis que estoy renegado
Del tempero?
VER. Cuantés yo sudando esto.
EST. Fiebres me tienen cansado,
Pero no os diré de no,
Que ver lo quiero.
INVERNO.
O Júpiter, si en tu ventura
Topásemos allá fuego,
Luego holgaria.
JUP. El criador y criatura
Es ei inundo y es ei huego,
Y él Io envia.
EST. Aquesta dolencia mia
Le tengo de encomendar
De corazon.
VER. Yo cantaré de alegria.
92 LIVRO L

OUT. Comenceinos á cantar


Una cancion.
Até chegarem ao presépio vão cantando hnma cantiga franceza, qne diz:
Ay de Ia noble
Villa de Paris ÓÇc.
JÚPITER.
Alto nino en excelência,
Yo vengo de Ias alturas
A te adorar,.
Y traerte obediência
De todas las criaturas
Sin faltar.
De toda Ia redondeza,
Sin faltar, digo, ninguna,
Se ayuntaron,
Y á adorar tu grandeza,
Tu divindad sola una,
Me enviaron.
Diana y Febo lumbroso,
Márs, Mercúrio, Venus, Juno,
Donde moran,
Y Saturno venenoso,
Todos juntos de consuno
Te adoran.
Castor y Polux unidas,
Y todo ei círculo galajo
Y cristalino,
Y lâs Pleyades lúcidas,
Te adoran en este bajo
De contino.
Planetas, fijas cstrellas,
Y Ia estrella Orion,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 93

Y Ia Canina,
lia inayor y menor dellas,
Con ininensa devocion
Se te inclina.
Y ei tu cielo etereo,
Círculos y Zodíaco,
Y Arcturo sino
Reconocen tu aseo;
No segun ei cuerpo flaco,
Mas divino.
El monte de Ipobnorea,
Y inontaõas de Carmelo,
Y Gelboé,
Y Ia inontana Rifea
Alegres con mucho zelo
Las hallé.
El monte de Selmeron,
Y inontanas de Efrain,
Y de Galaad,
Y las selvas de Frion,
Maridan adorar por iní
Tu deidad.
Y ei noble rio Ganges,
Con oro, piedras, ineíales,
Y arboledas,
Alegre, claro y cortês,
Te ofrecen, con sus iguales,
Cosas ledas.
Eufrates, Tigre, Guijon,
Con cosas muy olorosas
Se te ofrecen
Sin ninguna division.
94 LIVRO I.

En fin que todas las cosas


Te obedecen.
INVERNO.
Senor, yo triste nací,
Y sin ventura ninguna:
Pues me criaste en fortuna,
Cual me soy yo, véisine aqui
Con vientos muy fortunosos
Y rabiosos,
Tempestades y tormentas,
Y con otras mas afrentas,
Y tiempos muy peligrosos.
Con Ia noche me cubriste,
Y dei dia me quitaste;
En tenieblas me formaste:
Esto es lo que me diste.
Con todo esto, que lloro,
Te adoro
Con mi mísero temblar;
Y creo que has de juzgar
Este inundo do me moro.
VERÃO.
Yo Verano, tu vasallo,
Pues me das mejor estrena,
Quiérote dar cuenta buena
De las cosas que en iní hallo,
Y tu bondad Ias ordena.
Hállome fresco y caliente,
Los humore! inucho sanos
De aves, j^erbas, gusanos,
Desta manera siguiente.
Muchas grullas y ciguenas,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 95

Golondrinas, abubillas,
Palomas y tortolillas,
Picapuercos y garcenas,
Zorzales y aveduenas,
Codornices y grideíías,
Milanos y tantaranas,
Muchos gayos y pardenas.
Y tambien los gusanitos,
Hormigas rubias j prielas,
Mariposas y veletas,
Cientopiés y buercitos,
Caracoles y garlitos,
Moscas, ratos y ratones,
Muchas pulgas á inontones,
Y piojos infinitos:
Agriones y rabazas,
Apiopoleo, painpillo,
Mabnequieres amarillo,
Almeirones y margazas,
Florecitas por Ias zarzas,
Madresilva y rosillas,
Jazmines y maravillas,
Rábanos, coles y alfazas:
Puerros, ajos y cebollas,
Mastuerzo,* habas, hervejas,
Gravanizos, granos, lentejas,
Verdolagas y vampollas,
Mil yerbas, fructas y folias,
Untesgina y catasol;
Y ansí hoinbre de prol
Te doy gracias y grollas.
96 LIVRO I.

ESTÍO.
Senor, yo con mi dolencia,
Mis fiebres y mi flaqueza,
Me humillo á tu alteza,
Y adoro tu clemência
De Ia triste vida mia
Dolentía:
Pues te place con ella,
Quiero callar ini querella,
Sufriendo de dia en dia.
Entra D avia, em figura de pastor, e diz.
DAVID.
Pues los ángeles sagrados,
Y los Tiempos y Elementos,
Tocan hoy caramUlos,
Dejen todos los ganados
Los pastores inuy contentos,
Silbemos, demos gritillos.
Yo tambien quiero tocar
Y cantar
Con mi salterio alegrias,
En tono de profecias,
Mientras me vaga lugar;
Y luego os adoraré.
"Levavi óculos meos
"En los montes onde espero
"Aquella ayuda que quiero
"Con ahincados deseos.
" Y Ia ayuda que demando
"Repastando
"En cima daquesta sierra
" Qui fecít caúum y tierra,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 97

"De cuyo ganado ando


"Careando.
"Ecce non dormitabit,
"Ni jamas ei ojo pega
"Aquel que guarda y navega:
"Israel, qui visitabit
"Dominus custodít te.
"k Ia fe,
"No temas cosa ninguna;
"De noche que haga luna,
"Ni de dia ei sol que dé,
"Non uret te.
"Domine, benedixisti
"Terrçtm tuam, y ei ganado,
" Y á Jacob descarnado
" Captivitatem advertisti:
"Al pueblo lleno de males
"Desiguales
"Remisisfí iniquitatem:
"Que te adoren y te acaten
"Los concejos y jarales,
" Y annnales.
"Nuestra rona amara, triste
"De los pueblos apartaste;
"Iram tuam mitigasti,
"Et furor em advertisti.
"Por ventura te pergunto,
"Si barrunto,
"In aternum irasceris?
"No creo, segun quien eres,
" Que hagas ai pueblo junto
"Ser defunto.
Vol. I. 7
98 LIVRO I.

"Bendecid, todalas horas


"Del Senor, ai Senor Dios;
"Bendecid, ángeles vos,
"Bendecid, cielos, mil sobras;
"Benedicite, aquat omnes,
" Y dracones.
"Benedicite sol y luna,
"Tempestates y fortuna;
"Bendecid á Dios, barones,
"Con canciones."
(Adora o presépio,)
No te traigo otro presente,
Quoniam, si voluisses
Sacrificíum, dario hia;
Pero no eres placiente
Por ofertas que aqui vieses;
Ni te causan alegria:
Sacrificíum Deo es.
El espíritu atribulado,
Y ei corazon contrito,
El cual pido que me des,
Andando con mi ganado
Por ei tu poder bendito.
E todos assi juntamente com Te Deum lauda mus se
despedirão, e derão fim a esta representação.

» > « > « > > > C « f <»<•


FIGURAS.

PRÓLOGO.
HUM FRADE.

A VIRGEM.
PRUDÊNCIA.
POBREZA.
HUMILDADE.
FÉ.
O ANJO GABRIEL.
S. J O S E P H .
ANDRÉ.
P A Y O VAZ.
PESSIVAL.
MOFINA MENDES.
B R A Z CARRASCO.
BARBA TRISTE.
TIBALDINHO.
ANJOS.

A obra seguinte foi representada ao excellente Príncipe


e muito poderoso Rei Dom João III, endereçada ás tnatinas
do Natal, na era do Senhor 1534

7*
ALTO DA MOFINA MENDES.

Entra primeiramente hum Frade, e a modo de pregação


diz o que se segue.
FRADE.
Três cousas acho que fazem
Ao doudo ser sandeu;
Hüa ter pouco siso de seu,
A outra, que esse que tem
Não lhe presta mal nem bem:
E a terceira,
Que endoudece ein gran maneira,
He o favor (livre-nos Deos)
Que faz do vento cimeira,
E do toutiço moleira,
E das ondas faz ilheos.
Diz Franciseo de Mairões,
Ricardo, e Bonaventura,
Não me lembra em que escritura,
Nem sei em quaes distinções,
Nem a cópia das razões;
Mas o latim
Creio que ilizia assim:
Nolite vanitatts debemus confidere de
his, qui capita sua posuerunt in ma-
nibus ventorum Sfc.
Quer dizer este matiz
Antre os primeiros que traz:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 101

Não he sesudo o juiz,


Que tem geito no que diz,
E não acerta o que faz.
Diz Beocio — de consolattonís,
Origenes — Marci Aureli,
Sallusfíus — Catelinarium,
Josepho — speculum belli,
Glosa interliuíarum;
Vicentius — scala caúi,
Magister sententiarum,
Demosthenes, Calistrato;
Todos estes concertarão
Com IScoto, livro quarto.
Dizem: Não vos enganeis,
Letrados de rio torto,
Que o porvir não no sabeis,
E quem nisso quer pôr peis
Tem cabeça de minhoto.
O bruto animal da serra,
r

O terra filha do barro,


Como sabes tu, bebarro,
Quando ha de tremer a terra,
Que espantas os bois e o carro?
Pelos quaes díxit Anselmus,
E Seneca, — Vandaliarum,
E Plinius — Choronicarum,
Et tamen glosa ordinária,
E Alexander — de aliis,
Aristóteles — de secreta secretarum:
Albertus Magnus,
Tullius Ciceronis,
Ricardus, Ilarius, Remigius,
102 LIVRO I.

Dizem, convém a saber:


Se tens prenhe tua mulher,
E per ti o composeste,
Queria de ti entender
Em que hora ha de nascer,
Ou que feições ha de ter
Esse filho que fizeste.
Não no sabes; quanto mais
Commetterdes falsa guerra,
Presumindo que alcançais
Os secretos divinaes
Que estão debaixo da terra.
Polo que, diz Quintus Curfáus,
Beda — de religione christiana,
Thomas — super trinitas alternati,
Augustinus — de angelorum choris,
Hieronimus — ãalphabetus hebraice,
Bernardus — de virgo ascentionis,
Remigius — de dignitate sacerdotum;
Estes dizem juntamente
Nos livros aqui allegados:
Se filhos haver não podes,
Nem filhas por teus peccados,
Cria desses engeitados,
Filhos de clérigos pobres.
Pois tens saco de cruzados,
Lembro-te o rico avarento,
Que nesta vida gozava,
E no inferno cantava:
Água, Deos, água,
Que lhe arde a pousada.
Mandárão-me aqui subir
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 103

Neste sancto amphitheatro,


Para aqui introduzir
As figuras que hão de vir
Com todo seu apparato.
He de notar,
Que haveis de considerar
Isto ser contemplação
Fora da historia geral,
Mas fundada em devação.
A qual obra he chamada
Os mysterios da Virgem;
Que entrará accompanhada
De quatro Damas, com quem
De menina foi criada.
A hüa chauião Pobreza,
Outra chamão Humildade;
Damas de tanta nobreza,
Que tod'alma que as preza
He morada da Trindade.
r

A outra, terceira dellas,


Chamão Fé por excellencia;
A outra chamão Prudência.
E virá a Virgem com ellas,
Com mui fennosa apparencia.
Será logo o fundamento
Tractar de saudação,
E depois deste sermão,
Hum pouco do nascimento;
Tudo per nova invenção.
Antes disto que dissemos,
Virá com musica orphea
Domine lábia mea,
104 LIVRO I.

E Venite adoremus
Vestido com capa alhea.
Trará Te Deum laudamus
D'escarlata hüa libre:
Jam lucis orto sidere
Cantará o benedicamus,
Pola gran festa que he.
Quem terra, pontus, cethera
Virá muito assocegado
N'hum sendeiro mal pensado,
E hum gibão de tafetá,
E hüa gorra d'orelhado.

Em este passo entra nossa Senhora, vestida como rainha,


com as ditas donzellas, e diante quatro anjos com musica:
e depois de assentadas, começão cada hüa de estudar per
seu livro, e diz a
VIRGEM.
Que ledes, minhas criadas?
Que achais escripto hi?
PRÜ. Senhora, eu acho aqui
Grandes cousas innovadas,
E mui altas pera mi.
Aqui a Sibylla Cimeria
Diz que Deos será humanado
De hüa virgem sem peccado;
Que he profunda matéria
Para meu fraco cuidado.
POBREZA.
Eruthea profetiza
Diz aqui também o que sente:
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 105

Que nascerá pobremente,


Sem cueiro nem cainiza,
Nem cousa com que sé aquente.
HUM. E O propheta Isaias
Falia nisso também ca:
Eis a Virgem conceberá,
E parirá o Messias,
E frol virgem ficará.
FÉ.
Cassandra d'elrei Priámo
Mostrou essa rosa frol
Com huin menino a par do sol
A César Octaviano,
Que o adorou por Senhor.
PRU. Rubrum quem viderat Moisem
Sarça, que no ermo estava,
Sem lhe pôr lume ninguém;
0 fogo ardia mui bem,
E a sarça não se queúnava.
FÉ.
Significa a Madre de Deos:
Esta sarça he ella so;
E a escada que vio Jacob,
Que subia aos altos ceos,
Também era de seu voo.
PRU. Deve de ser por rezão
De todas perfeições cheia
Toda, quemquer que ella he.
HUM. Aqui a chama Salomão
Tota pulchra amica mea,
Et macula non est in te.
E diz mais, que he porta cceli
106 LIVRO I.

Et electa ut sol,
Balsamo mui oloroso,
Pulchra ut liltum gracioso,
Das flores mais linda flor,
Dos campos o mais fermoso:
Chama-llie plantatio rosa,
Nova oliva speciosa,
Mansa columba Noe,
Estrella a mais luminosa.
PRUDÊNCIA.
Et acies ordinata,
Fennosa filha d' elrei
De Jacob, et tabernacula
ISpeculum sine macula,
Ornata civitas Dei.
FÉ. Mais diz ainda Salomão:
Hortus conclusus, fios hortorum,-
Medecina peccatorum,
Direita vara de Arão,
Alva sobre quantas forão,
Sancta sobre quantas são.
E seus cabellos polidos
São formosos em seu grado
Como manadas de gado,
E mais que os campos floridos,
Em que anda apascentado.
Pnu. He tão zeloso o Senhor,
Que quererá seu estado
Dar ao mundo per favor,
Por hüa Eva peccador,
Hüa virgem sem peccado.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 107

VIRGEM.
Oh! se eu fosse tão ditosa
'Que com estes olhos visse
Senhora tão preciosa,
Thesouro da vida nossa,
E por escrava a servisse!
Que onde tanto bem se encerra,
Vendo-a ca entre nós,
Nella se verão os ceos,
E as virtudes da terra,
E as moradas de Deos.
Neste passo entra o anjo Gabriel, dizendo:
GABRIEL.
Oh! Deos te salve, Maria,
Cheia de graça graciosa,
Dos peccadores abrigo!
Gosa-te com alegria,
Humana e divina rosa,
Porque o Senhor he cointigo.
VIR. Prudência, que dizeis vós?
Que eu muito turbada sam;
Porque tal saudaçam
Não se costuma antre nós.
PRUDÊNCIA.
Pois que he auto do Senhor,
Senhora, não esteis turbada;
Tornae em vossa color,
Que, segundo o embaixador,
Tal se espera a embaixada.
GAB. O Virgem, se ouvir me queres,
Mais te quero inda dizer.
Benta es tu em mereceres
108 LIVRO I.

Mais que todas as mulheres,


Nascidas, e por nascer.
VIRGEM.
Que dizeis vós, Humüdade;
Que este verso vai mui fundo,
Porque eu tenho por verdade
Ser em minha calidade
, A menos cousa do mundo?
HUM. O anjo, que dá o recado,
Sabe bem disso a certeza.
Diz David no seu tractado,
Qu' esse sp'rito assi humilhado
He cousa que Deos mais preza.
GABRIEL.
Alta Senhora, sab'ras,
Que tua sancta humildade
Te deu tanta dignidade,
Que hum filho conceberás
Da divina Eternidade.
Seu nome, será chamado
Jesu e Filho de Deos;
E o teu ventre sagrado
Ficará horto cerrado;
E tu — Princeza dos Ceos.
VIRGEM.
Que direi, Prudência minha?
A vós quero por espelho.
Pnu. Segundo o caso caminha,
Deveis, Senhora Rainha,
Tomar com o Anjo conselho.
Vin. Quomodo fiat istud,
Quoniam virum non cognosco?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 109

Porque eu dei minha pureza


Ao Senhor, e meu poder,
Com toda minha firmeza.
GABRIEL.
Spirttus sanctus supervenit in te;
E a virtude do Altíssimo,
Senhora, te cubrirá;
Porque seu filho será,
E teu ventre sacratissimo
Per graça conceberá.
VIR. Fé, dizei-me vosso intento,
Que este passo a vós convém.
Cuidemos nisto mui bem,
Porque a meu consentimento
Grandes dúvidas lhe vem.
Justo he que imagine eu,
E que este muito turbada.
Querer quem o mundo he seu,
Sem merecimento meu,
Entrar em minha morada;
E hüa summa perfeição,
De resplandor guarnecido,
Tomar pera seu vestido
Sangue do meu coração,
Indigno de ser nascido!
E aquelle que occupa o mar,
Enche os ceos e as profundezas.
Os orbes e redondezas;
Em tão pequeno logar
Como poderá estar
A grandeza das grandezas!
GAB. Porque tanto isto não peses,
110 LIVRO I.

Nem duvides de querer,


Tua prima Elisabeth
He prenhe, e de seis meses.
E tu, Senhora, has de crer,
Que tudo a Deos he possível,
E o que he mais impossível,
Lhe he o menos de fazer.
VIR. Anjoi perdoae-me vós,
Que com a Fé quero fallar.
Pedirei sinal dos Ceos.
FÉ. Senhora, o poder de Deos
Não se ha de examinar.
Nem deveis de duvidar,
Pois sois delle tão querida.
GAB. E d'abinicio escolhida:
E manda-vos convidar;
Para madre vos convida.
VIR. Ecce ancilla Domini,
Faça-se sua vontade
No que sua Divindade
Mandar que seja de mi,
E de minha liberdade.
Em este passo se vai o Anjo Gabriel, e os anjos á
sua partida loção seus instrumentos, e cerra-se a cortina.
#
* #

Juntão-se os Pastores para o tempo do nascimento.


Entra primeiro André e diz:
ANDRÉ.
Eu perdi, se s'anoutece,
A asna ruça de meu pae.
O rasto por aqui vai,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 111

Mas a burra não parece,


Nem sei em que valle cai.
Leva os tarros e apeiros,
E o çurrão co' os chocalhos,
Os çamarros dos vaqueiros,
Dois sacos de pães inteiros,
Porros, cebolas e alhos.
Leva as peas da boiada,
As carrancas dos rafeiros,
E foi-se a pascer folhada;
Porque besta despeada
Não pasce nos sovereiros.
E s'ella não parecer
Atas per noite fechada,
Não temos hoje prazer;
Que na festa sem comer
Não ha hi gaita teinprada.
Entra Payo Vaz e diz:
PAYO V A Z .
Mofina Mendes he ca
Chum fato de gado meu?
AND. Mofina Mendes ouvi eu
Assoviar, pouco ha,
No valle de João Viseu.
PAY. Nunca esta moça socega,
Nem samica quer fortuna:
Anda em saltos como pega,
Tanto faz, tanto trasfega,
Que a muitos importuna.
ANDRÉ.
Mofina Mendes quanto ha,
Que vos serve de pastora?
112 LIVRO I.

PAY. Bem trinta annos haverá,


Ou creio que os faz agora:
Mas socêgo não alcança;
Não sei que maleita a toma.
Ella deu o sacco em Roma,
E prendeu elrei de França:
Agora anda com Mafoma,
E pôz o Turco em balança.
Quando cuidei que ella andava
Co' o meu gado onde sohia,
Pardeos! ella era em Turquia,
E os Turcos amofinava,
E a Carlos César servia.
Diz que assi resplandecia
Neste capitão do ceo
A vontade que trazia,
Que o Turco esinoreceo,
E a gente que o seguia.
Receou a guerra crua
Que o César lhe promettia;
Entances per aliam via
Reverte sunt in pátria sua
Com quanta gente trazia.
Entra Pessival.
PESSIVAL.
Achaste a tua burra, Andrel?
AND. Rofá não. PES. Não pôde ser.
Rusca bem, leixa o fardei;
Que a burra não era mel,
Que a haviâo de comer.
ANDRÉ.
Saltarião pegas nella,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 113

Por caso da matadura?


PES. Pardeos! essa seri' ella!
E que pega seria aquella,
Que lhe tirasse a albardura?
PAY. Mas crê que andou per hi
Mofina Mendes, rapaz;
Que, segundo as cousas faz,
Se isto não for assi,
Que não seja eu Payo Vaz.
Ora chama tu por ella,
E aposto-te a carapuça,
Que a negra burra ruça
Mofina Mendes deu nella.
AND. Mofina Mendes! ah Mofina Men!
Mor. Que queres, André? que has? (de longe)
AND. Vem tu ca, e vê-lo-has;
E se has de vir, logo vem,
E acharás aqui também
A teu amo Payo Vaz.
Entra Mofina Mendes, e diz
PAYO V A Z .
Onde deixas a boiada,
E as vacas, Mofina Mendes?
MOP. Mas, que cuidado vós tendes
De me pagar a soldada,
Que ha tanto que me retendes?
PAY. Mofina, dá-me conta tu
Onde fica o gado meu.
MOF. A boiada não vi eu,
Andão lá não sei per hu,
Nem sei que pascigo he o seu.
Nem as cabras não nas vi,
s
Ü4 LIVRO L

Samicas c'os arvoredos;


Mas não sei a quem ouvi
Que andavão ellas per In
Saltando pelos penedos.
PAY. Dá-me conta rez e rez,
Pois pedes todo teu frete.
MOF. Das vacas morrerão sete,
E dos bois morrerão três.
PAYO VAZ.
Que conta de negregura!
Que taes andão os meus porcos?
MOF. Dos porcos os mais são mortos
De magreira e ma ventura.
PAY. E as minhas trinta vitellas
Das vacas, que te entregarão?
MOF. Creio que hi ficarão dellas,
Porque os lobos dezimárão,
E deu olho mao por ellas,
Que mui poucas escaparão.
PAYO VAZ.
Dize-me, e dos cabritinhos
Que recado me dás tu?
MOF. Erão tenros e gordinhos,
E a zorra tinha filhinhos,
E levou-os hum e hum.
PAYO VAZ.
Essa zorra, essa malina,
Se lhe corréras trigosa,
Não fizera essa chacina;
Porque mais corre a Mofina
Vinte vezes qu'a raposa.
MOF. Meu amo, ja tenho dada
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 115

A conta do vosso gado


Muito bem, com bom recado:
Pagae-me minha soldada,
Como temos concertado.
PAYO VAZ.
Os carneiros que ficarão,
E as cabras, que se fizerão?
MOF. AS ovelhas reganhárão,
As cabras engafecêrão,
Os carneiros se afogarão,
E os rafeiros morrerão.
PES. Payo Vaz, se queres gado,
Dá ó demo essa pastora:
Paga-lh'o seu, va-se embora
Ou ma-ora,
E põe o teu em recado.
PAYO VAZ.
Pois Deos quer que pague e peite
Tão daninha pegureira,
Em pago desta canseira
Toma este pote de azeite,
E vae-o vender á feira;
E quiçaes medrarás tu,
O que eu comtigo não posso.
MOF. Vou-me á feira de Trancoso
Logo, nome de Jeso,
E farei dinheiro grosso.
Do que este azeite render
Comprarei ovos de pata,
Que he a cousa mais barata
Qu' eu de lá posso trazer.
E estes ovos chocarão;
a*
116 LIVRO I.

Cada ovo dará hum pato,


E cada pato hum tostão,
Que passará de hum milhão
E meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada
Per estes ovos de pata,
E o dia que for casada
Sahirei ataviada
Com hum brial d' escarlata,
E diante o desposado,
Que me estará namorando:
Virei de dentro bailando
Assi desfarte bailado,
Esta cantiga cantando.
Estas consas diz Mofina Mendes com o pote de azeite i cabeça, «,
andando enlevada no bailo, cai-lhe, e diz

PAYO VAZ.
Agora posso eu dizer,
E jurar e apostar,
Qu'es Mofina Mendes toda,
PES. E s'ella baila na voda,
Qu'está ainda por sonhar,
E os patos por nascer,
E o azeite por vender,
E o noivo por achar,
E a Mofina a bailar;
Que menos podia ser?
Vai-se Mofina Mendes, cantando.
MOFINA MENDES.
"Por mais que a dita m'engeite,
"Pastores, não me deis guerra:
"Que todo o humano deleite,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 117

"Como o meu pote d'azeite,


"Ha de dar comsigo em terra."
Entrão outros pastores, cujos nomes são Br az Carrasco,
Barba Triste, e Tibaldinho; e diz
BRAZ CARRASCO.
O Pessival meu vezinho!
PES. Braz Carrasco, dize, viste
A burra desse outeirinho?
BRA. Pergunta tu a Tibaldinho,
Ou pergunta a Barba Triste,.
Ou pergunta a João Calveiro.
TIB. O fato trago eu aqui,
E a burra eu a meíti
Na corte do Rabileiro.
Nós deitemo-nos per hi.
Andamos todos cansados,
O gado seguro está:
E nós aqui abrigados
Donnamos senhos bocados,
Que a meia noite vem ja.

Em este passo se deitão a dormir os pastores; e togo


se segue a segunda parte? que he hüa breve contemplação
sobre o Nascimento.
VIRGEM.
O cordeiro divinal,
Precioso verbo profundo,
Vem-se a hora
Em que teu corpo humanai
Quer caminhar pelo mundo.
Desde agora
118 LIVRO I.

Sahirás ao campo mundano


A dar crua e nova guerra
Aos imigos,
E glória a Deos soberano
In excelsis, et in terra
Pax hominibus.
Sahirá o nobre leão,
Rei do tribu de Judá,
Radix Davíd;
O duque da promissão
Como esposo sahirá
Do seu jardim:
E o Deos dos anjos servido,
Sanctus, sanctus, sem cessar
Lhe cantando,
Vereis em palhas nascido,
Sem candeia e sem luar,
Suspirando.
E porque a noite he quasi meia,
E são horas que esperemos
Seu nascer,
Ide, Fé, por essa aldeia
Accender esta candeia,
Pois outras tochas não temos
Que accender;
E sem serdes perguntada,
Nem lhes vir pela memória,
Direis em cada pousada
Qu'esta he a vela da glória.
Em este passo Joseph e a Fé vão accender a candeii
e a Virgem com as Virtudes, de giolhos, a verst
rézão este
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 119

P s a I m o.
VIRGEM.
O devotas almas felis,
Para sempre sem cessar
Laudate Dominum de coelis,
Laudate eum iii excelsis,
Quanto se pede louvar.
PRUDÊNCIA.
Louvae, anjos do Senhor,
Ao Senhor das altezas,
E todalas profundezas,
Louvae vosso criador
Com todas suas grandezas.
HUMILDADE.
Laudate eum, Sol et Luna,
Laudate eum, stellce et lumen,
Et lauda, Hierusalem,
Ao Senhor que te enfuna
Neste portal de Bethlem.
VIRGEM.
Louvae o Senhor dos ceos,
Louvae-o, água das águas,
Que sobre o ceo sois firmadas;
E louvae o Senhor Deos,
Relâmpagos e trovoadas.
PRUDÊNCIA.
Laudate Dominum de terra,
Dracones et omnes abyssi,
E todas diversidades
De nevoas e serra,
Ventos, nuvens et eclipsi,
E louvae-o, tempestades.
120 LIVRO I.

HUMILDADE.
Bestial et universa
Pecora, volucres, serpentes,
Louvae-o, todalas gentes,
E toda a cousa diversa,
Que no inundo sois presentes.
Vem a Fé com a vela sem lume, e diz
JOSEPH.
Não vos anojeis, Senhora,
Pois estais ein terra alheia,
Ser o parto sem candeia,
Porque as gentes d'agora
São de mui perversa veia.
Todos dormem a prazer,
Sem lhes vir pela memória
Que por força hão de morrer;
E não querem accender
A sancta vela da glória.
HüMttiDADE.
Devíão ter piedade
Da Senhora peregrina,
Romeira da christandade,
Que está nesta escuridade,
Sendo Princeza divina,
Pera exemplo dos senhores,
Pera lição dos tyrannos,
Pera espelho dos mundanos,
Pera lei aos peccadores,
E memória dos enganos,
FÉ.
Não fica por lh'o pregar,
Não fica por lh'o dizer,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 121

Não fica por Ih'o rogar;


Mas não querem acordar,
Com pressa de adormecer.
Delles fazem que não ouvem,
E elles ouvem muito bem;
Delles fazem que não vem,
E delles que não entendem
O que vai nem o que vem.
Sem memória nem cuidado
Dormem em cama de flores,
Feita de prazer sonhado:
Seu fogo tão apagado
Como em choça de pastores;
E vossa divina vela,
Vossa eterna candeia,
Feita de cera mais bella,
Em cidade nem aldeia
Não ha hi lume para ella.
Todo o mundo está mortal,
Posto ein tã,o escuro porto
De hüa cegueira geral,
Que nem fogo, nem sinal,
Nem vontade: tudo he morto.
VIR. Prudência, i vós co'ella,
Que nas horas ha hi mudança:
E accendei ess'outra vela,
Que se chama da esperança,
E lhes convém accendê-Ia.
E dizei-lhe que o pavio
Desta vela he a salvação,
E a cera o poderio
Que tem o livre alvedrio,
122 LIVRO L

E o lume a perfeição.
Jos. Senhora, não monta mais
Semear milho nos rios,
Que querermos por sinaes
Metier cousas divinaes
Nas cabeças dos bugios.
Mandae-lhe accender candeias,.
Que chamem ouro e fazenda,
E vereis bailar baleias;
Porque irão tirar das veias
O lume com que se accenda.
E á gente religiosa
Manda-lhes velas bispaes;
A cera, de renda grossa;
Os pavios, de casaes;
E logo não porão grosa.
PRUDÊNCIA.
Senhora, a meu parecer,
Para esta escuridade
Candeia não ha mister;
Que o Senhor qu'ha de nascer
He a mesma claridade;
Lumen ad revelationem genttum
He profetizado a nós,
E agora se ha de cumprir:
Pois para que he ir e vir,
Huscar lume para vós,
Pois lume haveis de parir?
Nem deveis de estar afflita,
Para lhe guisar manjar;
Porque he fartura infinita,
He chamado Panis vita,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 123

Não tendes que desejar.


E se para seu nascer
Tão pobre casa escolheo,
Não vos deveis de doer,
Porque onde elle estiver
Está a corte do Ceo.
Se cueiros vos dão guerra,
Que os não tendes por ventura,
Não faltará cobertura
A quem os ceos e a terra
Vestio de tal formosura.
Em este passo chora o Menino, posto em hum berço:
as Virtudes cantando o embalão, e o Anjo vai aos
pastoj'es, e diz cantando.
ANJO.
" Recordae, pastores!"
AND. HOU de lá, que nos quereis?
ANJ. "Que vos levanteis."
AND. Para que, ou que vai lá?
ANJ. "Nasceu em terra de Judá
"Hum Deos so, que vos salvará."
AND. E dou-lhe que fossem três:
Eu não sei que nos quereis.
ANJ. "Que vos levanteis."
ANDRÉ.
Quero-m'eu erguer, em tanto
Veremos que isto quer ser.
Sempre in' esquece o benzer
Cada vez que me levanto.
ANJOS, (cantando.)
"Ah pastor! ah pastor!"
AND. Que nos quereis, escudeiros?
124 LIVRO L

ANJ. "Chama todos teus parceiros,


"Vereis vosso Redeinptor."
ANDRÉ.
Não durmaes mais, Payo Vaz,
Ouvireis cantar aquillo.
PAY. Ora tu não ves que he grillo?
Vae-te d'hi, arama vas,
Que eu não hei mister ouvi-lo.
AND. Pessival, acorda ja.
PES. Acorda tu a Braz Carrasco.
BRA. Não creio eu, não, em San Vasco,
Se me tu acolhes lá.
ANDRÉ.
Levanta-te d'hi, Barba Triste.
BAR. TU que has, ou que me queres?
AND. Que vamos ver os prazeres,
Que eu nem tu nunca viste.
BAR. Pardeos, vae tu se quizeres,
Salvo se na refestella
Me dessem bem de comer;
Senão leixa-me jazer,
Que não hei de bailar nella:
Vae tu lá embora ter.
Acorda a Tibaldinho,
E ó Calveiro e outros três,
E a mi cobre-me os pés;
Então vae-te teu caminho,
Que eu hei de dormir hum inez.
ANJO.
Pastores, ide a Belém.
VHD. Tibaldinho, não te digo
Que nos chama não sei quem?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 125

Tra. Bem no ouço eu, porém


Que tem Deos de ver comigo?
ANDRÉ.
Isso he parvoejar.
Levantae-vos, companheiros,
Que por valles e outeiros
Não fazem nego chamar
Por pastores e vaqueiros.
ANJ. Pera a festa do Senhor
Poucos pastores estais.
PAY. VÓS bacelo quereis pôr,
Ou fazer algum lavor,
Que tanta gente ajuntais?
ANDRÉ.
Vós não sois officiaes
Senão de guardardes gado.
BRA. Dizei, Senhor, sois casado?
Ou quando embora casais?
AND. Oh como es desentoado!
ANJ. Quisera que foreis vós
Vinte ou trinta pegureiros.
PAY. Antes que vós deis três vôos,
Bem ajuntareinos nós
Nesta serra cem vaqueiros.
ANJO.
Ora trazei-os aqui,
E esperae naquella estrada,
Que logo a Virgem sagrada
A Hierusalem vai per hi
Ao templo endereçada.
Tocão os anjos seus instrumentos, e as Virtudes, can-
tando, e os pastores, bailando, se vão.
F I G L R A S.

PRÓLOGO.

VASCO AFFONSO.

CATHERINA.
JOANNE.
FERNANDO.
MAÜANELIiA.
AFFONSO.
INEZ.
MARGARIDA.
CLÉRIGOS.

O seguinte Auto foi representado ao muito alto e p


deroso Rei nosso Senhor Dom João, terceiro em Portug
deste nome, na sua cidade de Évora pelo Natal, era i
Senhor de 1523.
ALTO PASTORIL PORTLGLEZ.

Entra primeiramente hum lavrador, por nome Vasco


Affonso, e diz:
VASCO AFFONSO.
Pois que ja entrei aqui,
Não se me escusa fallar.
Eu sou d'alem de Thoinar,
E casei em Ahneirhn,
Alli mesmo no logar.
Agora, agora, agora
Esta doma que lá vai
Soma que casei embora
Sem licença de meu pae;
E diz que a não quer por nora.
E seu pae er assi,
Porque se casou furtada,
Nem chique nem mique, nem nada
Dão a ella nem a mi,
Assi pola desnevada.
De maneira,
Qu'elles tem birra de nós,
Dizem que nem giesteira,
Pois que nos casamos sos,
Não temos na panasqueira.
Porém amor lhe tenho eu,
E ella samicas a mi,
128 LIVRO I.

Que ella o diz soma assi;


— Porque elle não tem de seu,
Meu pae deu-me, e eu fugi. —
E juramento faço ós ceos,
Que derão tantas a enha esposa,
Qu'he pera dar graças a Deos;
Porque bem como raposa
Lhe tirarão a ella os veos.
Ora o nosso cura er,
Porque se paga d'ella,
E sequaes andou com ella,
Soma vonda que não quer
Receber-nos a mi e a ella.
Mas raivar,
Que ja recebidos seinos:
Dentro bem no meu linhar
Todos os verbos dissemos,
Que se dizem ó casar.
Dizião a mi lá delles,
Que quem casa por amores
Não vos he nega dolores;
Emperol, que sabem elles?
Deos faz dos baixos maiores.
Aguardae.
Digo agora que casei
Sem licença de meu pae
E d'enha mãe: eu herdarei,
Ou sabeis como isto vai?
A mim dizem-me que não;
E s'he daquella maneira,
Não herdo eira nem beira.
Mas não semelha razão,
DAS OBRAS DE DELAÇÃO. 129

Mas sinifica cenreira;


Que -se fora a cachopa peca ou charra,
Ou algüa zanguizarra,
Pjeguiçosa ou coinedora,
Que bradassem muito embora.
Mas taes vos fossem assim
As pulgas da vossa cama.
Soma abonda que muúYama
Me dixe lá em Almeirim,
(Não sei como s'ella chama)
— Vae, sandeu,
A EIvora por alvaral
D'elrei, que te dem o teu,
Como passar o Natal. —
E a isto vinha eu.
E hum Gil... hum Gil... hum Gil...
(Que ma retentiva hei!)
Hum Gil... ja não direi:
Hum que não tem nem ceitil,
Que faz os aitos a elrei,
Elle ine fêz,
E tirou de minha aquella,
Muito inda emque me pez,
Que entrasse ca na capella
Previcar' hum antremez.
Aito cuido que dezia,
E assi cuido que he;
Mas ja não aito, bofé,
Como os aitos que fazia,
Quando elle tinha com que.
Mas o inundo he ja desgorgomelado;
Todo bem se vai ó fundo:
Vol. I
9
130 LIVRO I

0 dinheiro anda acossado,


E o prazer vagabundo.
Abonda: entrarão porém
Treze trolocutores;
Estes são todos pastores;
Da serra d'Estrella vem
Em preito com seus amores.
Atimar.
Entrará Branca fallando
Com Inez, ambas a par
Cantando de quando em quando,
E ás vezes suspirando
Entre cantar e cantar.
Entrará enha sobrinha,
E Constança das Ortigas,
Que ein todo o val das Corigas,
Nem na villa mui asinha,
Não jazem taes raparigas.
E, como entrar,
Sahirá a bailar Valejo,
O galinheiro que em Thomar
Chamava ao coelho — conejo;
Esse mesmo ha de bailar.
E por festa a Rainalhoa
Bailará com Pero Luz,
Vestido no seu capuz;
E farão a entrada boa
Do bailo c'o sinal da cruz.
Pé-de-ferro,
Bofá hum bom escudeiro,
Bom homem lá per seu erro,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 131

Ledo, humilde, prazenteiro,


Salvos nega se m'eu erro;
Este sahirá a terreiro
Com hüa regateira baça,
Que, quando vende na praça,
Tange ás vezes hum pandeiro.
Estes ambos terão graça.
A cristaleira,
E o ahnotacel pequeno
Railarão á derradeira,
E targer-lhe-ha o Moreno,
Que sabe os bailos da Beira.
Frades virão vinte e sete,
Que vem de furtar melões;
E virão três hortelões,
Que trarão preso hum grumete
Sem jaqueta nem calções.
E acabado
Que os frades todos andarem
Hum contrapasso trocado,
E os outros atimarem,
Será o aito atimado.

Entra Catherina pastor a cantando, com o gado.


CATHERINA.
"Tirae os olhos de mim,
"Minha vida e meu descanso,
"Que me estais namorando."
Cha cha cha, raivarão ellas:
Sainicas doudejais vos?
S'eu lá vou, veremos nós
9
132 LIVRO I.

Se sondes cabras, s'aquellas.


O Decho se chantou nellas!
Cha cha cha, reira de morte.
Nem no mato, nem na corte,
Não pode o Decho co' ellas.
"Tirae os olhos de mim,
"Minha vida e meu descanso,
"Que me estais namorando."
"Os vossos olhos, senhora,
"Senhora da formosura,
"Por cada momento de hora
"Dão mil annos de tristura:
"Temo de não ter ventura.
"Vida, não m'esteis olhando,
"Que me estais namorando."
Vem Joanne, e diz
CATHERINA.
A que vens,. Joanne, ca?
JOA. Bofás samicas não sei.
St'outra doma te catei
Casuso, e não eras lá;
Perguntei a ta mãe por ti.
CAT. Tu a minha mãe por mi?
JOA. A bem, digo; — qu'he de Catalina?
E ella estava mofina,
Disse-me; — e que lhe queres assi?
Bem sei eu ja ella aventa
Qu'ando eu comtigo á choca;
Que quando te eu trougue a roca,
J'ella estava rabugenta.
CAT. Não te empaches de mim, não.
Cha cha cha, demoninhadas.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 133

JOA. Pois sicaes te quero a osadas


Grande bem, se vem á mão.
Sempre eu hei de ser comlego
Lá detraz da casa ó soL
CAT. Joanne, vae fazer prol:
Que tens tu de ver comego?
Jesu! como me amofina!
JOA. Ja tu aqui es, Catalina,
Com tua destempera? CAT. Si:
Ora vae-te arama d'hi.
JOA. Alguém t'a ti empipina.
CATHERINA.
Quem m'ha a mim d'empipinar?
JOA. Pôde ser qu'alguém te engane.
CAT. Digo que te vas, Joanne,
Que não te quero escutar.
Cuidas tu que sam menina?
JOA. E dei-t'eu a roca, Catalina,
E subi em cima da pereira,
E tu agora á derradeira
Jogas comego almolina!
CATHERINA.
Que fallas, ou que has comlego,
Que tudo isto não te presta?
JOA. Pardeos, forte birra he esta,
Que toinaste hoje comego!
Porqu'es ma dia entirrada?
Eu não quero de ti nada,
Senão abraçar como amiga.
CAT. Quem te desse hüa gran figa
Nos olhos bem pespegada!
134 LIVRO I.

JOANNE.
He essa a tua saia nova?
Mostra ca a A^er que lan tem.
CAT. Joanne! JOA. Catalina! CAT. Ora bem,
O demo t'a ti faz a cova.
JOA. Toinae lá! esta vos he ella!
CAT. Tal foste com Madanella,
E sempre chufou de ti:
Pois qu'esperas tu de mi,
Que sam mais valente qu'ella?
JOANNE.
O Dexemo que t'eu digo,
Que porque isso he ja sabido,
Ando eu assi franzido,
E o demo anda comego.
Renego ora d'enha mãe,
Porque as lagrimas me sãe
O dia que te não vejo;
E tu tens-ine tal entejo,
Que os esp'ritos se me cãe.
CATHERINA.
Choros mãos chorem por ti:
Quem te manda a ti chorar?
JOA. TU in'has de fazer botar
Mui cedo per esse chão per hi.
Não sejas ora entirrada,
Catalina minha dama;
Que cedo hei d'ir á feira,
E eu farei de maneira
Que tu sejas bem toucada.
Não m'arrarão alfenetes,
E lambem enxaravia.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 135

CAT. Aperfia tu, perfia,


Que c r o Dexemo te mettes.
JOA. Que cachopa esta, e que vida!
CAT. Cuidas que som Margarida,
Que andavas pola chufar?
JOA. E u ? CAT. A bein. JOA. Atiinar.
CAT. Mas vae-te c'o a ma ida.
JOANNE.
Canfeu não sei que te fige,
Que tal escandola ine tens.
CAT. Mas não sei a que ca vens;
Que a ninguém tanto mal quige.
JOA. Por bein querer, mal haver.
CAT. Ora tens bem de comer.
JOA. ISSO he foscas mui asinlia.
Por me metter rebentinha;
Mas perol não fhei de crer.
CATHERINA.
Vae, vae, Joanne, bugiar,
Não andes como alpavardo.
JOA. Viste ja o meu saio pardo?
Se m'o ves has de raivar,
Que m'está tão bem, tão bem...
Que demo he isto? dirás tu.
CAT. Oh como es parvo! Jesu!
Não falles ante ninguém.
JOANNE.
Oh! couimendo ó demo a vida
A que a eu arrepincho!
Catalina, se ine' eu incho,
Por esta que me va de ida.
A índia não está hi?
136 LIVRO I.

Que quero eu de mi aqui?


Melhor será que me va.
CAT. E a ini que se me dá?
Eis Fernando vem alli.
Entra Fernando, e diz
CATHERINA.
Venhas embora, Fernando!
Eu t'esperei á portella.
FER. Parece ca Madanella?
CAT. Spera que a andas buscando!
Ja me tu a mi entejaste?
JOA. Ah si, Catalina? FER. TU vas-te
Andar pólos chavascais.
JOA. Ah si, Catalina? CAT. Ora nó mais;
Abonda que me leixaste.
JOANNE.
Ah si, Catalina? FER. Não diz
Pera hu foi Madanella.
CAT. Porque perguntas por ella?
FER. Porque a fortuna quiz.
CAT. Dores de morte te dem.
JOA. Ah si, Catalina? Ora bein,
Se xe in'eu isso soubera,
Nunca t'eu a roca dera,
Que trougue de Santarém.
MADANELLA. (de ionge.)
Hai Catalina! Catalina!
FER. Aquella te he Madanella.
CAT. HOU! FER. Pera ca vem ella,
JOA. Mui grande he minha mofina!
Olha ca pera ond'estou.
CAT. O diabo que t'eu dou!
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 137

JOA. Ainen que m'eu encommcudo,


E não m' estarei moendo
Na desenteria em que estou.
Vem Madanella e diz:
MADANELLA.
Affonso parece ca?
Eu não sei onde elle anda.
FER. Inda dura essa demanda?
MAD. Inda dura e durará.
FER. Oh caiso mal comedido!
Ando eu por ti perdido,
E andas-me assoviando.
CAT. Queres tu do pão, Fernando?
FER. Estarei bem aviado,
E muito bem corregido.
MADANELLA.
Viste Affonso, Catalina?
CAT. Sabes tu onde elle s'ia?
FER. Não lh'o digas. MAD. Que porfia
De Fernando e de mofina!
FER. Grande ódio me tem.
JOA. E Catalina a mi também.
MAD. Catalina, onde estava elle?
CAT. Ei-lo vem: não he elle aquelle?
JOA. Aquelle he elle, que alli vem.
Vem Affonso, e diz
MADANELLA.
Affonso, venhas embora.
AFF. Nãõ vejo eu Inez aqui.
MAD. Olha, orna para mi,
Que não sam feia ma ora.
AFF. Viste-me Inez ca andar?
138 LIVRO I.

CAT. Casuso a vi eu estar...


AFF. Naquelle outeiro? CAT. A bem.
AFF. Perguntou-te por alguém?
CAT. Por Joanne. AFF. Ora andar.
Por mi não perguntou nada?
CAT. Não. AFF. Raiva moida!
CAT. Por Joanne he ella perdida.
JOA. Está ella logo enganada.
(de longe.y
INE. Catalina! hai Catalina!
CAT. Aquella he ella que retina.
Inez, vem ca, mana, vem.
JOA. Se tu ine quizeras bem,
Não na chamáras, malina;
Mas do malquerer te vein.
Vem Inez, e diz
AFFONSO.
Venhas embora, Inez!
INE. Joanne, queres belotas?
Mais quero eu ás tuas botas
Qu'a dous Affonsos nem ires.
JOA. Oh Catalina! CAT. Oh Fernando!
FER. Oh Madanella! MAD. Oh Affonso!
Oh quando, quando
Me quercras algum bein!
AFF. Oh Inez! quanto mal tem
Esta maleita, em que ando!
INEZ.
Oh Joanne! quão amiga
Que sain do teu bom doairo!
JOA. Se não tens outro repairo,
Canfeu não sei que te diga.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 139

FER. Isto chamão amor louco,


Eu por ti e tu por outro.
Rogo-te arama, Madanella,
Pois ma ora te vi, e nella
Que m'escutes ora hum pouco.
Porque algorrem se m'entende,
Eu a doma que passou
Este braço me ganhou,
Emperol gansei perende
Abonda que hum de cem,
Huin de cem e hum vintém.
Meu pae er tem bein de seu,
E não tem filho, nega eu:
Está attento ca, Madanella,
Vem agora a Pascoella,
Casemo-nos tu e eu.
MADANELLA.
Catalina he minha amiga,
Sei que se paga de ti.
CAT. Fernando, por meu mal te vi,
Como lá diz a cantiga.
JOA. Oh! cominendo ó Decho a praga!
Gingrae lá com taes cachopas,
Leix'as quem de ti se paga.
CAT. E tu porque não faes sopas
Com Inez, pois que te affaga?
INEZ.
Agora lhe fio eu
Hüa camiza de linho.
Queres, Joanne, toucinho
Com pouco de pão do meu?
AFF. E a mi raiva que me aperte.
140 LIVRO I.

INE. Vae-te, que não quero ver-te:


Não tens tu ahi Madanella?
Falia, falia tu co'ella.
O diabo dou a morte:
Como he partuno, Jesu!
MAD.Affonso. AFF. Pezar ora de san Pego!
M A D . E assi o faes tu comego?
Bofá! ansí mao es tu?
Não sei que houveste cointegos.
FER. Mãos lobos m'acabem ja!
CAT. Guarde-te Deos earamá:
Pois que seria de mi!
Mas casemo-nos eu e ti.
JOA. E Joanne raivará?
Pois, pardeos, bem te servi.
Comego seja essa dança,
Não andes assi do vento.
CAT. Toda m'ora eu arrebento
Pola tua maridança.
AFF. Sabes, Joanne, que façamos?
Vamo-nos todos três. JOA. Vamos,
E busquemos outras três.
Eu te farei a ti, Inez,
Que me jejues os ramos.
Vem Margarida, pàstora, que achou hüa imagem
de nossa Senhora, e tra-la escondida n'hum feixe de lenha,
e diz:
MARGARIDA.
Ai, manas, que eu achei!
CAT. Onde? MAR. Na serra em cima.
MAD. Que he, Margarida prima?
MAn.Quasi, quasi não o sei.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 141

INE. Chufas? MVR. Não, pardeos, amigas.


CAT. Rogo-te que nô-lo digas.
MAR.Mas he para adivinhar;
E quemquer que o acertar,
Eu a fartarei de migas.
INEZ.
Será algum cugumelo?
MAR. Não, que tem olhos e mãos.
CAT. São caçapos temporãos.
MAD. Mas samicas pesadelo.
CAT. Onde o trazes? MAR; Na lenha.
CAT. He raposo, Deos mantenha.
MAR.Si raposo; teu pae torto.
INE. Ouriço cacheiro morto.
MAR. Não he cousa que pel tenha.
MADANELLA-,
Mas sabeis que he leitão,
Que tem couro e não tem pelle?
MAR.Leitão? isso vos era elle.
INE. Elle não ha de ser cão.
MAR. Nem ave, nem cousa viva
Nem morta. CAT. O cativa!
E tem pés e mãos e olhos?
M A R . E narizes e giolhos;
Nem he cousa mansa nem esquiva.
CATHERINA.
Rogo-te que digas que he,
Que isso parece patranha.
MAR. Tenho-a eu por façanha,
E não pequena, abofé.
CAT. Não o deffengules mais.
MAR. Se attentegas estais,
142 LIVRO L

Muito asinha vos direi


O que vi e que achei,
Com tanto que me creais.
Chegando á Pena furada,
Áquem da Virgem da Estrella,
Achei ser hüa donzella,
Hofá donzella dourada:
E como a vi, como digo,
Saltou tal tremor comigo,
Porque ella reluzia,
Que estava se fugiria;
Tal claror tinha comsigo.
E hum menino brincando
Com seis ou sete donzellas;
Sanctas paredão ellas.
MAD. Isso seria sonhando.
MAR. Mas antes bem acordada.
Não me quereis vós crer nada?
CAT. Dize, dize, Margarida.
MAR. Pois chufa tu, Madanella,
Que nossa Senhora era ella!
CAT. Oh! M A R . Por minha vida.
Assim seja eu bein casada,
E Deos se lembre de mim.
CAT. Que te dixe, mana, einfiin?
MAR.Chamou-ine, bein assombrada,
E eu queria chorar,
E ella foi-me affagar.
CAT. E que te dixe despois?
MAR. Que deixasse andar os bois,
E que me fosse ao logar.
E fosse ao nosso cura, e digo
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 143

Que vi a Virgem Maria,


E que ella lhe prometlia
De lhe dar hum bom castigo,
Que horas nunca lhe rezou,
Nem delia soes se acordou.
FER. Houveras-lhe de dizer
Que não lhe escapa mulher.
INE. O demo que eu o dou!
Eu vos direi: he elle tal
Que a filha de Janaffonso
Foi-lhe pedir hum responso,
E elle fallava-lhe ein ai.
AFF. Alguns delles vão per hi,
E na estremadela assi
Não lhes fica moça boa.
JOA. Rom machado na coroa,
Que ficasse logo alli!
FERNANDO.
Seixo calvo. AFF. Mas settada.
MAD.Arrocho d'azambugeiro.
CAT. Mas pousada de palheiro,
E fogo, e á porta fechada.
AFF. Mas bom feixe lagariço.
INE. Penedo. MAD. Tranca. CAT. Sumiço.
MAR.EU quero-o ir avisar,
Ca lhe cumpre de rezar,
E tornar-se a seu serviço.
Por esta cruz, manas minhas,
Qu'ella está delle assanhada.
INE. Oh Virgem nossa a vogada
Que os gados encaminhas!
CAT. Quem m'a vira! INE. Quem lá fora!
144 LIVRO I.

MAD. Tu, prima, naceste embora.


MAR.Se viras o cachopinho,
Tão fennoso e sesudinho,
Filho de nossa Senhora!
Tudo eu hei de dizer
Ao nosso cura tá ó cabo,
E ó priol. INE. Esse diabo
Nunca te ha de querer crer.
AFF. E do priol disse algorrem?
MAR. Não fallou nem mal nem bem.
JOA. Também elle he bom piloto.
AFF. Mas he valente minhoto,
Qu' apanha as frangas mui bem.
JOANNE.
Dou ja ó Decho o reixelo.
FER. E Pero Gil, capellão,
Que lhe dizes? JOA. Que varão!
Como lh' ellas vem a pêllo,
Nenhfías lhe escaparão.
AFV. E Janaffonso Altos-pés?
FER. Também esse he bom freguez,
E muito gainenho zote.
JOA. Hontem lhe dei eu hum mote
Sobr'isso, bem portuguez.
Vão-se earamá casar,
E não andar de soticapa.
Juro a Deos, s'eu fora papa,
Eu lhes seccára o cantar.
MAR. Não me bula aqui ninguém
Neste meu feixe de lenha;
Atá que eu va e venha
Não veja ninguém qu'aqui vem.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 145

Porque eu vou a chamar,


Que venhão com devação
Os melhores do logar
A levar em procissão
O que a Virgem me quiz dar.
Vai-se.
AFFONSO.
Canfeu não me posso ter,
Vejamos o que isto he.
JOA. Vejamos por tua fé,
Que gran cousa deve ser.
Desata Affonso o feixe e diz

AFFONSO.
Ella oinagein in'affegura:
Oh Senhora Virgem pura!
CAT. Quem vos trouge a esta serra?
FER. Ponde os giolhos em terra.
AFF. Ponhamo-la nesta verdura.
E posta a imagem, diz
JOANNE.
Pois não sabemos rezar,
Façainos-lhe hüa chacota,
Porque toda a alma devota
O que tem, isso ha de dar.
FER. Façamos, que bem será.
CAT. Joanne, tir'-te tu lá.
Dá-me tu a mão, Fernando.
FER. Nisso estava or'eu cuidando.
Madanella, vem tu ca.
MADANELLA.
Com Affonso quero eu.
AFF. Inez mana, eu condigo,
146 LIVRO I.

Que nunca tão grande amigo


Ein tua vida tens de teu.
INE. Porque andas bugiando?
MAD. Ora fuge lá, Fernando.
JOA. Onde não ha coiipordança,
Não ha hi festa nem dança:
Nem estemos perfiando-
Vem Margarida com gualro Clérigos, c diz
FERNANDO.
Oh corpo de Deos sagrado!
Quanto zote que ca vem!
MAR. Não quizestes vós perem
Condecer no meu mandado?
Ora seja ja embora.
Padres, vedes a Senhora
Que eu achei bem acasuso.
CLE. Jesu! eu estou confuso!
2° C. Deos te salve, Emperadora!

Hymno O gloriosa Domina


rezado i versos pelos Clérigos & imagem de Nossa Senhora,
r

"O gloriosa Senhora do inundo,


"Excelsa princeza do cep e da tierra,
"Fermosa batalha de paz e de guerra,
,i
"Da sancta Trindade secreto profundo!
"Sancta esperança, ó madre d'amor,
"Ama discreta do filho de Deos,
"Filha e madre do Senhor dos Ceo,s,
"Alva do dia com mais resplandor!
"Fermosa barreira, ó alvo e fito,
"A quem os profetas direito atiravão!
•A ti, gloriosa, os Ceos esperavão,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 141*

" E as três pessoas hum Deos infinito.


" O cedro nos campos, estrella no mar,
"Na serra ave phenix, hüa so amada,
"Hüa so sem mácula e so preservada,
"Hüa so nascida, sem conto e sem par!
"Do que Eva triste ao mundo tirou
"Foi o teu fructo restituidor;
"Dizendo-te ave o embaixador,
"O nome de Eva te significou.
"O porta dos paços do mui alto Rei,
"Camera cheia do Spirito Sancto,
" Janella radiosa de resplandor tanto,
" E tanto zelosa da divina lei!
"O mar de sciencia, a tua humildade,
"Que foi senão porta do ceo estrellado?
"O fonte dos anjos, ó horto cerrado,
"Estrada do inundo para a divindade,
"Quando os anjos cantão a glória de Deos,
"Não são esquecidos da glória tua;
"Que as glórias do filho são da madre sua,
"Pois reinas com elle na corte dos Ceos.
"Pois que faremos os salvos por ella,
"Nascendo em miséria, tristes peccadores,
"Senão tanger palmas e dar mil louvores
"Ao Padre, ao Filho e Esprito, e a ella!
(Aqui ordenão sua chacota; e a letra da cantiga he a seguinte.)
TODOS.
"Quem he a desposada?
"A Virgem sagrada.
"Quem he a que paria?
"A Virgem Maria.
"Em Rethlem, cidade
148 LIVRO I.

"Muito pequenina,
"Vi hüa desposada
" E Virgem parida.
"Em Bethlem, cidade
"Muito pequenina,
"Vi hüa desposada
" E virgem parida.
"Quem he a desposada?
"A Virgem sagrada.
"Quem he a que paria?
"A Virgem Maria.
"Hüa pobre casa
"Toda reluzia,
"Os anjos cantavão,
"O mundo dizia:
"Quem he a desposada?
"A Virgem sagrada.
"Quem he a que paria?
"A Virgem Maria."

E com esta chacota se despedirão.


F I G L R A S.

MERCÚRIO. DOROTHEA.
TEMPO. MONECA.
SERAPHIM, GILBERTO.
DIABO. NABOR.
ROMA. MATHEUS.
AMANCIO VAZ. JUSTINA.
DENIZ LOURENÇO. VICENTE.
BRANCA ANNES. LEONARDA.
MARTA DIAS. MERENCIANA.
TESAURA. THEOÜORA.
JULIANA. GIRALDA.

A obra seguinte he chamada Auto da Feira. Foi


representada ao min excellente Príncipe EIRei D. João,
o terceiro em Portugal deste nome, na sua nobre e sempre
leal cidade de Lisboa, ás matinas do Natal, na era do
Senhor de 1527-
A L T O DA FEIRA.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu


assento, diz:
MERCÚRIO.
Pera que me conheçais,
E entendais meus partidos,
Todos quantos aqui estais
Affinae bem os sentidos,
Mais que nunca, muito mate.
Eu sou estrella do ceo^
E despoís vos direi qual,
E quem me ca descendeo,
E a qne, e todo o ai
Que me a ini aconteceo.
E porque a estronoinía
Anda agora inuí maneira,
Mal sabida e lisongeira,
Eu á honra deste dia
Vos direi a verdadeira.
Muitos presumem saber
As operações dos ceos,
E que morte hão de morrer,
E o que ha de acontecer
Aos anjos e a Deos,
E ao mundo e ao diabo.
E o que sabem tem por fé;
E elles todos em cabo
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 151

Terão hum cão polo rabo,


E não sabem cujo he.
E cada hum sabe o que monta
Nas estreitas que ornou;
E ao moço que mandou,
Não lhe sabe tomar cottfa
D'hum vintém que Ih' entregou.
Porém quero-vos pregar,
Sem mentiras nem cautelas,
O que per curso d'éstrellas
Se poderá adivinhar,
Pois no ceo nasci com ellas.
E se Francisco de Mello,
Que sabe sciencia avoridó,
Diz que o ceo he redondo,
E o sol sobre amarelló;
Diz verdade, não lh'o escondo.
Que se o ceo fora quadrado,
Não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
D'azul fora sua cor,
E não fora assi dourado.
E porque está governado
Por seus cursos naturaes,
Neste inundo onde morais
Nenhum homem aleijado,
Se for manco e corcovado,
Não corre por isso mais.
E assi os corpos celestes
Vos trazem tão compassados,
Que todos quantos nascestes^
Se nascestes e crescestes,
152 LIVRO I.

Primeiro fostes gerados.


E que fazem os poderes
Dos sinos resplandecentes?
Fazem que todalas gentes
Ou são homens ou mulheres,
Ou crianças innocentes.
E porque Saturno a nenhum
Influe vida contina,
A morte de cada hum
He aquella de que se fina,
E não de outro mal nenhum.
Outrosi o terremoto,
Que ás vezes causa perigo,
Faz fazer ao morto voto
De não bulir mais comsigo,
Canta de seu moto próprio.
E a claridade encendida
Dos raios piramidaes
Causa sempre nesta vida
Que quando a vista he perdida,
Os olhos são por demais.
E que mais quereis saber
Desses temporaes e disso,
Senão que, se quer chover,
Está o ceo para isso,
E a terra pera a receber?
A lua tem este geito:
Ve que clérigos e frades
Ja não tem ao Ceo respeito,
Mingúa-lhes as santidades,
E cresce-lhes o proveito.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 153

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Ve-


nus, Regina musicai, secundum Joannes Monteregio:
Mars, planeta dos soldados,
Faz nas guerras conteudas,
Em que os reis são occupados,
Que morrem de homens barbados
Mais que mulheres barbudas.
E quando Venus declina,
E retrograda ein seu cargo,
Não se paga o desembargo
No dia que s'elle assina,
Mas antes por tempo largo.
Et quantum ad Taurus et Aries, Câncer, Capri-
cornius positus in firmamento Cceli:
E quanto ao Touro e Carneiro,
São tão mãos de haver agora,
Que quando os põe no madeiro,
Chama o povo ao carniceiro
SENHOR, c'os barretes fora.
Depois do povo agravado,
Que ja mais fazer não pôde,
Invoca o sino 'do Bode,
Capricórnio chamado,
Porque Libra não lhe açode.
E se este não has tomado,
Nem touro, carneiro assi,
Vae-te ao sino do pescado,
Chamado Piseis em latim,
E serás remediado:
E se piseis não tem ensejo,
Porque pôde não no haver,
Vae-te ao sino do Cranguejo,
154 LIVRO I.

Signum Câncer, Ribatejo,


Que está alli a quem no quer.
Sequuntur mirabília Júpiter, Rex regum, dominus
dominantium.
Júpiter, rei das estrellas,
Deos das pedras preciosas^
Mui mais precioso qu'ellas,
Pintor de todalas rosas,
Rosa mais fermosa dellas;
He tão alto seu reinado,
Influencia e senhoria,
Que faz per curso ordenado
Que tanto val hum cruzado
De noite como de dia.
E faz que hüa nao veleira
Mui forte, muito segura,
Que inda que o mar não queira,
E seja de cedro a madeira,
Não preste sem pregadura.
Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur
declaratio operafíonem suam.
No zodíaco acharão
Doze moradas palhaças,
Onde os sinos estão
No inverno e no verão,
Dando a Deos infindas graças.
Escutae bem, não durmais,
Sabereis por congeituras
Que os corpos celestiaes
Não são menos nem são mais
Que suas mesmas grandüras.
E os que se desvelarão,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 155

Se das estrellas souberão,


Foi que a estrella que olharão,
Está onde a puzerão,
E faz o que lhe mandarão.
E cuidão que Ursa maior,
Ursa inínor e o Dragão,
E Lepus, que tem paixão,
Porque hum corregedor
Manda enforcar hum ladrão?
Não, porque as constelações
Não alcanção mais poderes*,
Que fazer que os ladrões
Sejão filhos de mulheres,
E os mesmos pães varões*.
E aqui quero acabar.
E pois vos disse aléqui
O que se pôde alcançar,
Quero-vos dizer de mi,
E o que venho buscar.
Eu sam Mercurioi, senhor
De muitas sabedorias,
E das moedas reitor,
E deos das mercadorias:
Nestas tenho meu vigor.
Todos tractos e contractos,
Valias, preços, avenças,
Carestias e baratos,
Ministro suas pretenças,
Até as compras dos- çapatos.
E porquanto nunca vi*
Na corte de Portugal
Feira em dia de Natal,
156 LIVRO I.

Ordeno hüa feira aqui


Pera todos em geral.
Faço inercador-mor
Ao Tempo, que aqui vem;
E assi o hei por bem.
E não falte comprador,
Porque o tempo tudo tem.
Entra o Tempo, e arma hüa tenda com muitas cousas,
e diz:
TEMPO.
Em nome daquelle que rege nas praças
D'Anvers e Medina as feiras que tem,
Começa-se a feira chamada das Graças,
Á honra da Virgem parida em Belém.
Quem quizer feirar,
Venha trocar, qu'eu não hei de vender;
Todas virtudes qu'houverem mister,
Nesta minha tenda as podem achar,
A troco de cousas que hão de trazer.
Todos remédios especiabnente
Contra fortunas ou adversidades
Aqui se vendem na tenda presente,
Conselhos maduros de sans calidades
Aqui se acharão.
As mercadorias damos e rezão,
Justiça e verdade, a paz desejada,
Porque a Christandade he toda gastada
So em serviço da opinião.
Aqui achareis o temor de Deos,
Que he ja perdido em todos Estados;
Aqui achareis as chaves dos Ceos,
Mui bem guarnidas ein cordões dourados;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 157

E mais achareis
Somma de contas, todas de contar
Quão poucos e poucas haveis de lograr
As feiras mundanas; e mais contareis
As contas sem conto qu'estão per contar.
E porque as virtudes, Senhor Deos, que digo,
Se forão perdendo de dias em dias,
Com a vontade que deste ó Messias
Memória o teu anjo que ande comigo,
Senhor, porque temo
Ser esta feira de inaos compradores,
Porque agora os mais sabedores
Fazem as compras na feira do Demo,
E os mesmos diabos são seus corretores.
Entra hum Seraphim enviado por Deos a petição do
Tempo, e diz:
SERAPHIM.
A feira, a feira, igrejas, mosteiros,
Pastores das almas, Papas adormidos;
Comprae aqui pannos, mudae os vestidos,
Buscae as çamarras dos outros primeiros
Os antecessores.
Feirae o carão que trazeis dourado;
r

O presidentes do crucificado,
Lembrae-vos da vida dos sanctos pastores
Do tempo passado.
r

O Príncipes altos, império facundo,


Guardae-vos da ira do Senhor dos Ceos;
Comprae grande somma do temor de Deos
Na feira da Virgem, Senhora de inundo,
Exemplo de paz,
Pastora dos anjos, luz das estrellas.
158 WVRO I.

Á feira da Virgem, donas e donzellas,


Porque este mercador sabei que aqui traz
As cousas mais bellas.
Entra hum Diabo com hüa tendinha diante de si, como
bufarinheiro, e diz:
DIABO.
Eu bem me posso gabar,
E cada vez que quizer,
Que na feira onde eu entrar
Sempre tenho que vender,
E acho quem me comprar.
E mais vendo muito bem-,
Porque sei bein o que entendo;
E de tudo quanto vendo
Não pago sisa a ninguém
Por tracto que ande fazendo.
Quero-me fazer á vela
Nesta sancta feira nova.
Verei os que vem a ella,
E mais verei quem m'estro va
De ser eu o maior delia.
TEM. E S tu também mercador,
Que a tal feira foffereces?
DIA. EU não sei se ine conheces.
TEM. Faltando eom salvanor,
Tu diabo me pareces.
DIABO.
Fallando com salvos rabos,
Inda que me tens por vil,
Acharás homens cem mil
Honrados, que são diabos,
Que eu não tenho nem ceitil.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 159

E bem honrados te digo,


E homens de muita renda,
Que tem divedo comigo.
Pois não ine tolhas a venda,
Que não hei nada comtigo.
TEMPO. <ao Seraphim.)

Senhor, em toda maneira


Acudi a este ladrão,
Que me ha de danar a feira-
DIA. Ladrão? Pois haj'eu perdão,
Se vos metter em canceira.
Olhae ca, anjo de bem,
Eu, como cousa perdida,
Nunca ine tolhe ninguém
Que não ganhe minha vida,
Como quem vida não tem.
Vendo dessa marmelada,
E ás vezes grãos torrados,
Isto não releva nada;
E em todolos mercados
Entra a minha quintalada.
SER. Muito bein sabemos nós
Que vendes tu cousas vis.
DIA. Hi ha de homens ruis
Mais mil vezes que não bôs,
Como vós mui bein sentis.
E estes hão de comprar
Disto que trago a vender,
Que são artes de enganar,
E cousas para esquecer
O que devião lembrar:
Que o sages mercador
160 LIVRO I.

Ha de levar ao mercado
O que lhe comprão melhor;
Porque a ruim comprador
Levar-lhe ruim borcado.
E mais as boas pessoas
São todas pobres a eito;
E eu por este respeito
Nunca tracto ein cousas boas,
Porque não trazem proveito.
Toda a glória de viver
Das gentes he ter dinheiro,
E quem muito quizer ter
Cumpre-lhe de ser primeiro
O mais ruim que puder.
E pois são desta maneira
Os contractos dos mortaes,
Não me lanceis vós da feira
Onde eu hei de vender mais
Que todos á derradeira.
SER. Venderás muito perigo,
Que tens nas trevas escuras.
DIA. EU vendo perfumaduras,
Que, pondo-as no embigo,
Se salvão as criaturas.
As vezes vendo virotes,
E trago d'Anda!uzia
Naipes com que os sacerdotes
Arreneguem cada dia,
E joguem té os pellotes.
SER. Não venderás tu aqui isso,
Que esta feira he dos ceos:
Vae lá vender ao abisso
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 161

Logo, da parte de Deos.


DIA. Senhor, apello eu disso.
S'eu fosse tão mao rapaz,
Que fizesse força a alguém,
Era isso muito bem;
Mas cada hum veja o que faz,
Porque eu não forço ninguém.
Se ine vem comprar qualquer
Clérigo, leigo ou frade
Falsas manhas de viver,
Muito por sua vontade;
Senhor, .que lh'hei de fazer?
E se o que quer bispar
Ha mister hypocrisia,
E com ella quer caçar;
Tendo eu tanta em porfia,
Porque lh'a hei de negar?
E se hüa doce freira
Vem á feira
Por comprar hum inguenío,
Com que voe do convento;
Senhor, inda que eu não queira,
L'hei de dar aviamento.
MERCÚRIO.
Alto, Tempo, apparelhar,
Porque Roma vem á feira.
DIA. Quero-me eu concertar,
Porque lhe sei a maneira
De seu vender e comprar.
Entra Roma, eantando.
ROMA.
"Sobre mi arma vão guerra;
162 LIVRO I.

"Ver quero eu quem a mi leva.


"Três amigos que eu havia,
"Sobre mi armão porfia;
"Ver quero eu quem a mi leva."
Vejamos se nesta feira,
Que Mercúrio aqui faz,
Acharei a vender paz,
Que me livre da canceira
Em que a fortuna me traz.
Se os meus me desbaratão,
O meu soccorro onde está?
Se os Christãos mesmo me matão,
A vida quem m'a dará,
Que todos me desacatão?
Pois s'eu aqui não achar
A paz firme e de verdade
Na sancta feira a comprar,
Canfa mi dá-ine a vontade
Que inourisco hei de fallar.
DIA. Senhora, se vos prouver,
Eu vos darei bom recado.
ROM. Não pareces tu azado
Pera trazer a vender
O que eu trago no cuidado.
DIABO.
Não julgueis vós pola cor,
Porque em ai vai o engano;
Ca dizem que sob mao panno
Está o bom ^bebedor:
Nem vós digais mal do anno.
ROMA.
Eu venho á feira direita
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 163

Comprar paz, verdade e fé.


DIA. A verdade pera que?
Cousa que não aproveita,
E aborrece, pera que he?
Não trazeis bôs fundamentos
Pera o que haveis mister;
E a segundo são os tempos,
Assi hão de ser os tentos,
Pera saberdes viver.
E pois agora á verdade
Chamão Maria peçonha,
E parvoice á vergonha,:
E aviso á ruindade;
Peitae a quem vo-la ponha,
A ruindade digo eu:
E aconselho-vos mui bem,
Porque quem bondade tem
Nunca o mundo será seu,
E mil canceiras lhe vem.
Vender-vos-hei nesta feira
Mentiras vinta três mil,
Todas de nova maneira,
Cada hüa tão subtil,
Que não vivais em canceira:
Mentiras pera senhores,
Mentiras pera senhoras,
Mentiras pera os amores,
Mentiras, que a todas horas
Vos nasção dellas favores.
E como formos avindos
Nos preços disto que digo,
Vender-vos-hei como amigo
164 LIVRO 1

Muitos enganos infindos,


Que aqui trago comigo.
ROM. Tudo isso tu vendias,
E tudo isso feirei
Tanto, que inda venderei,
E outras sujas ínercancias,
Que por meu mal te comprei.
Porque a troco do amor
De Deos, te comprei mentira,
E a troco do temor
Que tinha da sua ira,
Me deste o seu desamor:
E a troco da fama minha
E sanctas prosperidades,
Me deste mil torpidades;
E quantas virtudes tinha
Te troquei polas maldades.
E pois ja sei o teu geit©^
Quero ir ver que vai ca.
DIA. A S cousas que vendem lá
São de bem pouco proveito
A quem quer que as comprará.
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz
ROMA.
Tão honrados mercadores
Não podem leixar de ter
Cousas de grandes primores;
E quanfeu houver mister
Deveis vós de ter, senhores.
SER. Sinal he de boa feira
Virem a ella donas taes;
E pois vós sois a primeira,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 165

Queremos ver que feirais


Segundo vossa maneira.
Ca, se vós a paz quereis,
Senhora, sereis servida,
E logo a levareis
A troco de sancta vida;
Mas não sei se a trazeis.
Porque, Senhora, eu me fundo
Que quem tem guerra com Deos,
Não pôde ter paz e'o mundo;
Porque tudo vem dos ceos,
Daquelle poder profundo.
ROMA.
A troco das estações
Não fareis algum partido,
E a troco de perdões,
Que he thesouro concedido
Para quaesquer remissões?
Oh! vendei-me a paz dos ceos,
Pois tenho o poder na terra.
SER. Senhora, a quem Deos dá guerra,
Grande guerra faz a Deos,
Que he certo que Deos não erra.
Vede vós que lhe fazeis,
Vede como o estimais,
Vede bem se o temeis;
Attentae com quem lutais,
Que temo que cahireis.
ROM. Assi que a paz não se dá
A troco de jubileus ?
MER. O Roma, sempre vi lá
166 LIVRO I.

Que inatas peccados ca,


E leixas viver os teus.
E não te corras de mi:
Mas com teu poder facundo
Assolves a todo o mundo,
E não te lembras de ti,
Nem ves que te vas ao fundo.
ROM. O Mercúrio, valei-me ora,
Que vejo mãos apparelhos.
MER. Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora
O cofre dos meus conselhos:
E podes-te ir muito embora.
Hum espelho hi acharás,
Que foi da Virgem sagrada.
Co'elle te toucarás,
Porque vives mal toucada,
E não sintes como estás:
E acharás a maneira
Como emendes a vida:
E não digas mal da feira;
Porque tu serás perdida,
Se não mudas a carreira.
Não culpes aos reis do mundo,
Que tudo te vem de cima,
Polo que fazes ca em fundo:
Que, offendendo a causa prima,
Se resulta o mal segundo.
E também o digo a vós,
E a qualquer meu amigo,
Que não quer guerra coinsigo:
Tenha sempre paz com Deos,
E não temerá perigo.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 167

DIABO..
Preposito Frei Sueiro,
Diz lá o exemplo velho,
Dá-me tu a mim dinheiro,
E dá ao demo o conselho.
Depois de ida Roma, entrão dous lavradores, hum per
nome Amando Vaz, e outro Deniz Lourenço, e diz
AMANCIO VAZ.
Compadre, vas tu á feira?
DEN. A feira, compadre. AMA. Assi;
Ora vamos eu e ti
O longo desta ribeira.
DEN. Bofá, vamos. AMA. Folgo bem
De te vir aqui achar.
DEN. Vas tu lá buscar alguém,
Ou esperas de comprar?
AMANCIO VAZ.
Isso te quero contar,
E iremos patorneando,
E er lambem aguardando
Polas moças do logar.
Compadre, enha mulher
He muito destemperada,
E agora, se Deos quizer,
Faço conta de a vender,
E da-la-hei por quasi nada.
Qu'eu quando casei com ella
Dizião-ine, — hétega he;
E eu cuidei pola abofé
Que mais cedo morresse ella,
E ella anda inda em pé.
E porque era hétega assim
168 LIVRO I.

Foi o que m'a mim danou:


Avonda qu'ella engordou,
E fez-me hétego a mim.
DENIZ LOURENOD.
Tens boa mulher de teu:
Não sei que tu has, amigo.
AMA. S'ella casara condigo.
Benegáras tu com'eu,
E dixeras .o que eu digo.
DEN. Pois, compadre, canfá minha,
He tão mollc e desatada,
Que nunca dá peneirada,
Que não derrame a farinha.
E não põe cousa a guardar,
Que a tope quando a cata;
E por mais que homem se inata,
De birra não quer fallar.
Trás d'hüa pulga andará
Três dias, e oito, e dez,
Sem lhe lembrar o que fez,
Nem tampouco o que fará.
Pera que t'hei de fallar?
Quando hontem cheguei do inalo
Poz hüa enguia a assar,
E crua a leixou levar,
Por não dizer sape a hum gato.
Canfa mansa, mansa he ella;
Dá-me logo canfá disso.
AMA. Juro-f eu que mais val isso
Cincoenta vezes qu'ella.
A minha te digo eu
Que se a visses assanhada,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 169

Parece demoninhada,
Ante San Bartholomeu.
)EN. Ja siquer terá esp'iito:
Mas renega da mulher
Que ó tempo do mister
Não he cabra nem cabrito.
AMANCIO VAZ.
A minha tinir eu em guarda
Para bein de minha prol,
Cuidando que era ourinol,
E tornou-se-me bombarda.
Folga tu que ess'outra tenhas,
Porque a minha he tal perigo,
Que por nada que lhe digo
Logo ine salla nas grenhas.
Então tanto punho sêcco
Me chiinpa nestes focinhos;
Eu chamo pelos vezinhos,
E ella nego dar-*ne em xeco.
DEN. ISSO he de coraçuda;
Não cures de a vender,
Que s'alguein le mal fizer,
Ja siquer tens quem te acuda.
Mas a minha he tão cortez,
Que se viesse ora á mão
Que in'espancasse hum rascão,
Não diria, — mal fazes:
Mas antes s'assentaria
A olhar como eu bradava.
Todavia a mulher brava
He, compadre, a qu'eu queria.
170 LIVRO I.

AMANCIO VAZ.
Pardeos! tanto me faras,
Que feire a minha comtego.
DEN. Se queres feirar comego,
Vejamos que me darás.
AMA. Mas antes in'has de tornar,
Pois te dou mulher tão forte,
Que te castigue de sorte
Que não ouses de fallar,
Nem no mato nem na corte.
Outro bem teras com ella:
Quando vieres da arada,
Conterás sardinha assada,
Porqu'ella jenta a panella.
Então geme, pardeos, si,
Diz que lhe doe a moleira.
DEN. Eu faria por maneira
Que esperasse ella por mi.
AMANCIO VAZ.
Que hVhavias de fazer?
DEN. Amancio Vaz, eu o sei bem.
AMA. Deniz Lourenço, ei-las ca vem.
Vamo-nos nós esconder,
Vejamos que vem catar,
Qu'ellas ambas vem a feira.
Mette-te nessa silveira,
Qu'eu daqui hei d'espreitar.
Vem Branca Armes a brava, e Marta Dias
mansa, e vem dizendo a brava:
HRANCA A N N E S .
Pois casei má hora, e nella,
E com tal marido, prima,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 171

Comprarei ca hüa gamella,


Para o ter debaixo delia,
E hum gran penedo em cima.
Porque vai-se-ine ás figueiras,
E come verde e maduro;
E quantas uvas penduro
Jeita nas gorgoinileiras:
Parece negro monturo.
Vai-se-m'ás ameixieiras,
Antes que sejão maduras;
Elle quebra as cereijeiras,
Elle vendiina as parreiras,
E não sei que faz das uvas.
Elle não vai á lavrada,
Elle todo o dia come,
Elle toda a noute dorme,
Elle não faz nunca nada,
E sempre ine diz que ha fome.
Jesu! posso-te dizer,
E jurar e tresjurar,
E provar e reprovar,
E andar e revolver,
Qu'he melhor pera beber,
Que não pera maridar.
O demo que o fez marido!
Que assi sêcco como he
Beberá a torre da Sé:
Então arma hum arruido
Assim debaixo do pé.
MARTA DIAS.
Pois bom homem parece elle.
DEN. Aquella he a minha froxa.
172 LIVRO I.

MAR. Deu-f elle a fraldüha roxa?


HRA. Melhor lh'esfole eu a pelle.
Que homem ha hi da puxa.
O diabo que o eu dou,
Que o leve em fatieta,
E o ladrão que m'o gabou;
E o frade que me casou
Inda o veja na^ picotã.
E rogo á Virgem da Estrella,
E á sancta Gerjalem,
E ós choros da Madanella,
E á asninha de Belém,
Que o veja eu ir á vela
Para donde nunca vem.
DEN. Compadre, nó mais soffrer:
Sae de lá desse silvado.
AMA. Pera eu ser arrepelado
Não havi'eu mais inester.
DENIZ LOURENÇO.
E não n'has tu de vender?
AMA. Tu dizes que a quês feirar.
DEN. Não qu'ella se me tomar,
Leixar-m'ha quando quizer.
Mas dêmo-las á ma estreia;
E voto que nos tornemos,
E er depois tornaremos
Com as cachopas d'aldeia:
Entonces concertaremos.
AMANCIO VAZ.
Isso me parece a mi
Muito melhor que eu ir lá.
Oh que couces que ine dá,
DAS OBRAS DE DEVAÇAO. 173

, Quando ine colhe sob si!


DEN. Canf aquella si dará.
DIA. Mulheres, vós que me quereis?
Nesta feira que buscais?
MAR. Queremo-la ver, nó mais,
Pera ver ein que <raciais,
E as cousas que vendeis.
Tendes vós aqui anneis?
DIA. Quejandos? de que feição?
MAn.D'huns que fazem de latão.
DIA. Pera as mãos, ou pera os pés?
MAR. Não — Jesu, nome de Jesu,
Deòs e homem verdadeiro!
Foge o Diabo, e Marta diz:
MARTA DIAS.
Nunca eu vi bufalinheiro
Tão prestes tomar o mu.
Branc'Annes mana, cre tu
Que, como Jesu he Jesu,
Era este o diabo inteiro.
BRANCA ANNES.
Não he elle pao de boa lenha,
Nem lenha de bo madeiro.
MAR.Bofá, nunqu'elle ca venha.
BRA. Viagem de Jão moleiro,
Que foi pola cal d'azenha.
MAR. Pasmada estou eu de Deos
Fazer o demo marchante!
Mana, daqui por diante
Não caminhemos nós sos.
BRANCA ANNES.
S'eu soubera quem elle era,
174 LIVRO I.

Fizera-lhe bom partido:


Que me levara o marido,
E quanto tenho lhe dera,
E o toucado e o vestido.
Inda que mais não levara
Desta feira, em extremo
Me alegrara e descançára,
Se o vira levar o demo,
E que nunca mais tornara.
Porque, inda que era diabo,
Fizera serviço a Deos,
E a mim mercê em cabo;
E viera-me dos ceos,
Como vem a frol ao nabo.
Vão-se ao Tempo, e diz Marta:
MAR. Dizei, Senhores de bem,
Nesta tenda que vendeis?
SER. Esta tenda tudo tem;
Vede vós o que quereis,
Que tudo se fará bem.
Conciencia quereis comprar,
De que vistais vossa alma?
MAR. Tendes sombreiros de palma
Muito bôs para segar,
E tapados pera a calma?
SER. Conciencia digo eu,
Que vos leva ao paraíso.
Bn.\. Não sabemos nós qu'he isso:
Dae-o ó decho por seu,
Que ja não he tempo disso.
MARTA DIAS.
Tendes vós aqui borel,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 175

Do pardo de lan meirinha?


BRA. EU queria hüa pucarinha
Pequenina para mel.
SER. Esta feira he chamada
Das virtudes em seus tratos.
MAR.Das virtudes! e ha aqui patos?
BRA. Quereis feirar a cevada
Quatro pares de sapatos?
SER. Oh piedoso Deos eterno!
Não comprareis para os ceos
Hum pouco d'amor de Deos,
Que vos livre do inferno?
BRA. Isso he fallar per pinceos.
SERAPHIM.
Esta feira não se fez
Pera as cousas que quereis.
BRA. Pois canf a essas que vendeis,
Daqui affirmo outra vez
Que nunca as vendereis.
Porque neste sigro em fundo
Todos somos negligentes:
Foi ar que deu polas gentes,
Foi ar que deu polo inundo,
De que as almas são doentes:
E se hão de correger
Quando for todo danado:
Muito cedo se ha de ver;
Que ja elle não pôde ser
Mais torto nem alejado.
Vaino-nos, Marta, á carreira,
Que as moças do logar
Virão ca fazer a feira,
176 LIVRO I.

Ou'estes não sabem ganhar,


Nem tem cousa qu'homem queira.
MARTA DIAS.
Eu não vejo aqui cantar,
Nem gaita, nem tamboril,
E outros folgares mil,
Que nas feiras soem d'estar:
E mais feira de Natal,
E mais de Nossa Senhora,
E estar todo Portugal.
BRA. S'eu soubera qu'era tal,
Não estivera eu ca agora.
Vem á feira nove moças dos montes, e três maneei
todas com cestos nas cabeças cobertos, cantando, e como i
gão, se assentão por ordem a vender; e diz-lhe o
SERAPHIM.
Pois vindes vender á feira,
Sabei que he feira dos ceos;
Por tal vendei de maneira
Que não offendais a Deos,
Roubando a gente estrangeira.
TES. Responde-lhe, Leonarda,
Tu Justina, ou Juliana.
JUL. Mas responda-lhe Giralda,
Tesaura, ou Merenciana.
MERENCIANA.
Responde-lhe, Theodora,
Porque creio que a ti creia.
TES. Responda-lhe Doroteia,
Pois que mora
Junto c'o Juiz d'aldeia.
DOR. Moneca responderá,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 177

Que fallou ja c'o Senhor.


MON. Responde-lhe tu, Nabor,
Comtigo s'entenderá.
Ou Denisio, ou Gilberto,
Qualquer de vós outros três,
E não vos embaraceis nem torvês,
Porque he certo
Que bem vos entenderês.
GIL. Estas cachopas não vem
A feira nego a folgar,
E trazem de merendar
Nesses cestos que hi tem.
Mas pois quanto ao que entendo,
Sois sainica anjo de Deos;
Quando partistes dos ceos,
Que ficava elle fazendo?
SER. Ficava vendo o seu gado.
GIL. Sancta Maria! gado ha lá?
Oh Jesu! como o terá
O Senhor gordo e guardado!
E ha lá boas ladeiras,
Como na serra d'Estrella?
SER. Si. GIL. E a Virgem que faz ella?
SER. A Virgem olha as cordeiras,
E as cordeiras a ella.
GIL. E os Sauctos de saúde
Todos, a Deos louvores?
SER. Si. GIL. E que legoas haverá
Daqui á porta do Paraizo,
Onde San Pedro está?
NABOR.
Lá vem ó redor das vinhas
178 LIVRO L

Compradores a comprar
Sainica ovos e gallinhas.
DOR. Não lhe hei de vender as minhas,
Que as trago pera dar.
Vem dous compradores, hum per nome Vicente, e ou\
Malheus, e diz Matheus a Jus tina.
MATHEUS.
Vós rosa do amareflo,
Mana, tendes hi queijadas?
Jus. Tenho vosso avô marmelo^
Conhecei-lo ?
MAT.Aqui estão einborilhadas.
Jus. Estade ma ora quedo,
Pela vossa negra vida.
MAT.Menina, não hajais medo:
Vós sois mais engrandecida
Que Branca de Figueiredo.
Se trazeis ovos, meus olhos,
Não m'os vendais a ninguém.
Jus. Andar ein burra e ter bem:
Ouvide ora o rasca-piolhos
(Azeite no inicho!) ein que vem!
Vic. Minha vida Leonarda
Traz caça para vender?
LEO. Vossa vida' negra e parda
Não lhe abastará comer
Da vacca com da mostarda?
VICENTE.
E a mesa de meu senhor
Irá sem ave de penna?
LEO. Quem? e vós sois comprador?
Pois nem grande nem pequena
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 179

Não matou o caçador.


Vic. Matais-me vós logo bem
Com dous olhinhos qu'eu digo.
LEO. Mais vos mata a vós o trigo,
Porque não vale a vintém,
E traz mao micho comsigo.
VICENTE.
Vós fazeis de mim rascão.
LEO. Páção vos fizestes vós;
Porém bem vos vimos nós
Guardar bois no Alqueidão.
MAT. Que vindes vender á feira,
Theodora, alma minha,
Minha alma, minha canceira?
Trazeis algüa gallinha?
THE. Som voss'alma gallinheira.
Que ma ora ca vieste
Pera quem vos poz no paço!
MAT. Senhora, eu que vos faço,
Que vos agastais tão prestes?
Dizei-me vós, Theodora,
Trazeis vós tal cousa tal
Deste geito, muito embora?
Mas lá dess'outro metal
Não fallão á lavradora.
VICENTE.
Senhora Moneca, trazeis
Algum cabrito recente?
MON. Não bofé, Senhor Vicente:
Quizera ora trazer três,
De que vós foreis contente.
Vic Jiii-n á saneia cruz de nallta
180 LIVRO I.

Qu'hei de ver o que aqui 'stá.


MON. Não revolvais arama,
Que não trago nemigalha.
VICENTE.
Não me façais descortez,
Nem queirais ser tão garrida.
MON. Pola vossa negra vida!
Olhade como he cortez!
Oh! que lhe saia ma sabida.
MAT.Giralda, eu achar-vos-hei
Dous pares de passarinhos?
GIR. Irei por elles aos ninhos,
Entonces os venderei:
Comereis vós estorninhos?
MATHEUS.
Respondeis como mulher
Muito de sua vontade.
GIR. Pois digo-vo-la verdade:
Pássaros hei de vender?
Olhae aquella piedade!
VICENTE.
Senhora minha Juliana,
Peço-vos que me falleis
Discreta palaciana,
E dizei-me que vendeis.
JUL. Vendo favas de Viana.
Vic. Tendes alguns laparinhos?
JUL. Sim, de porca. Vic. Nem coelhos^
JUL. Quereis comprar dous francelhos,
Para caçardes ratinhos?
Vic. Quero, pólos evangelhos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 181

MATHEUS.
Vós Tesaura, minha estrella,
Não virieis ca ein vão.
TES. Pois si, vossa estrella vos er'ella:
Como aquillo he de rascão!
MvT.Mas como isso he de donzella!
Porém va ja como vai,
E casemo-nos, senhora.
TES. Pois casae co'el!e, casae.
Casar ma ora, meu pae,
Casar ma ora.
MATHEUS.
Porém trazeis algum pato?
TES. E quanto dareis por elle?
Hui! e elle revolve o fato:
Olho mao se metta nelle.
MAT. Não trazeis vós o qifeu cato.
Vic. Merenciana deve ter
Neste cesto algum cabrito.
MER. Não m'haveis de revolver,
Senão pardeos que dê grito
Tamanho, qu'haveis de ver.
VICENTE.
Eu hei de veí que trazeis.
MER.Se vós no cesto bolis...
Vic. Senhora, que me fareis?
MER. Hum aqui-delrei, ouvis?
Não sejais vós descortez.
Vic. Não quero senão amores,
Pois vosso, senhora, sô.
MER. Amores de vosso avô,
182 LIVRO I.

0 da ilha dos Açores.


Andar arama vós so.
MATHEUS.
Vamo-nos daqui, Vicente.
Vic. Bofá vamos. MAT. Nunca vi tal feira.
Vic. Vamos comprar á ribeira,
Qu'anda lá a cousa mais quente.
Vão-se os compradores, e diz o Seraphim ás moças:
SERAPHIM.
Vós outras quereis comprar
Das virtudes? TODAS. Senhor, não.
SER. Saibamos porque razão.
DOR. Porque no nosso logar
Não dão por virtudes pão;
Nem casar não vejo eu
Por virtudes a ninguém.
Quem tiver muito de seu,
E tão bôs olhos como eu,
Sem isso casará bem.
SERAPHIM.
Pois porque viestes ora
Cansar á feira de pé?
THE. Porque nos dizem que he
Feira de Nossa Senhora:
E vedes aqui porque.
E as graças que dizeis
Que tendes aqui na praça,
Se vós outros as vendeis,
A Virgem as dá de graça
Aos bôs, como sabeis.
E porque a graça e alegria
A madre da consolação
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 183

Deu ao mundo neste dia,


Nós vimos com devação
A cantar-lhe hüa folia.
E pois que ja descansamos
Assi em boa maneira,
Moças, assi como estamos,
Dêmos fim a esta feira,
Primeiro que nos partamos.
Alevantãose todas, e ordenadas em folia cantarão a
eantiga seguinte, com que se despedirão.
1° CÔR&
"Blanca estais colorada,
"Virgen sagrada.

"Em Belém vüla da amor


"Da rosa nasceo a flor:
"Virgem sagrada."
2° Côno.
"Em Belém villa do amor
"Nasceo a rosa do rosai:
"Virgem sagrada."
1° CORO.
"Da rosa nasceo a flor,
"Pera nosso Salvador:
"Virgem sagrada."
2° CORO.
"Nasceo a rosa do rosai,
"Deos e homem natural:
"Virgem sagrada."
F I G L R A S.

ALMA.
ANJO CUSTODIO.
IGREJA.
S. AGOSTINHO.
S. AMBROSIO.
S. JERONIMO.
S. THOMAZ.
Dous DIABOS.

Este auto presente foi feito á muito devota Rainha


Dona Leonor, e representado ao muito poderoso e nobre
Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na ci-
dade de Lisboa nos paços da Ribeira, em a noute de en-
doenças; era do Senhor 1508.
ALTO DA ALMA.

ARGUMENTO.
Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos
estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhan-
tes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida
houvesse hüa estalajadeira, pera refeição e desanco das
almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deos.
Esta estalajadeira das almas he a Madre Sancta Igreja;
a mesa he o altar, os manjares as insígnias da paixão.
E desta perfiguração tracta a obra seguinte.
Está posta hüa mesa com hüa cadeira. Vem a Madre
Sancta Igreja com seus quatro doctores, San Thomaz, San
Jeronimo, Sancto Ambrosio, Sancto Agostinho; e diz
AGOSTINHO.
Necessário foi, amigos,
Que nesta triste carreira
Desta vida,
Pera mui p'rigosos p'rigos
Dos iinigos,
Houvesse algüa maneira
De guarida.
Porque a humana transitória
Natureza vai cansada
Em várias calmas;
Nesta carreira da glória
186 LIVRO L

Meritoria,
Foi necessário pousada
Pera as almas.
Pousada com mantimentos,
Mesa posta em clara luz,
Sempre esperando
Com dobrados mantimentos
Dos tormentos
Que o Filho de Deos na cruz.
Comprou, penando.
Sua morte foi avença,
Dando, por dar-nos paraizo,
A sua vida
Apressada, sem detença;
Por sentença
Julgada a paga em proviso,
E recebida.
A sua mortal empresa
Foi, sancta estalajadeira
Igreja Madre
Consolar á sua despesa
Nesta mesa
Qualquer alma caminheira,
Com o Padre
E o anjo custodio aio.
Alma que lh'he encoinmendada,
Se enfraquece
E lhe vai tomando raio
De desmaio;
Se chegando a esta pousada,
Se guarece.
Vem o Anjo Custodio com a Alma, e diz:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 187

ANJO.
Alma humana formada
De nenhüa eousa, feita
Mui preciosa,
De corrupção separada,
E esmaltada
Naquella frágoa perfeita
Gloriosa;
Planta neste valle posta
Pera dar celestes flores
Olorosas,
E pera serdes tresposta
Em a alta costa
Onde se crião primores
Mais que rosas;
Planta sois e caminheira,
Que ainda que estais, vos is
Donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
He ser herdeira
Da glória que conseguis:
Andae prestes.
Alma bem-aventurada,
Dos anjos tanto querida,
Não durmais;
Hum ponto não esteis parada,
Que a jornada
Muito em breve he fenecida,
Se attentais.
ALM. Anjo que sois minha guarda,
Olhae por minha fraqueza
Terreal:
188 LIVRO I.

De toda a parte haja resguarda,


Que não arda
A minha preciosa riqueza
Principal.
Cercae-me sempre ó redor,
Porque vou mui temerosa
Da contenda.
r

O precioso defensor
Meu favor!
Vossa espada lumiosa
Me defenda.
Tende sempre mão em mim,
Porque hei medo de empeçar,
E de cahir.
ANJ. Pera isso sam, e a isso vim;
Mas emfiin
Cumpre-vos de me ajudar
A resistir.
Não vos occupem vaidades,
Riquezas, nem seus dabates.
Olhae por vós;
Que pompas, honras, herdades
E vaidades,
São embates e combates
Pera vós.
Vosso livre alvedrio,
Isento, forro, poderoso,
Vos he dado
Polo divinal poderio
E senhorio,
Que possais fazer glorioso
Vosso estado.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 189

Deu-vos livre entendimento,


E vontade libertada
E a memória,
Que tenhais em vosso tento
Fundamento,
Que sois por elle criada
Pera a glória.
E vendo Deos que o metal
Em que vos poz a estillar,
Pera merecer,
Que era muito fraco e mortal:
E por tal
Me manda a vos ajudar
E defender.
Andemos a estrada nossa;
Olhae não torneis atraz,
Que o imigo
A vossa vida gloriosa
Porá grosa.
Não creais a Satanaz,
Vosso perigo.
Continuae ter cuidado
Na fim de vossa jornada,
E a memória
Que o spirito atalaiado
Do peccado
Caminha sem temer nada
Pera a glória.
E nos laços infernaes,
E nas redes de tristura
Tenebrosas,
Da carreira que passais
190 LIVRO I.

Não caiais:
Siga vossa fermosura
As gloriosas.
Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo e diz:
DIABO.
Tão depressa, ó delicada,
Alva pomba, pera onde is?
Quem vos engana,
E vos leva tão cansada
Por estrada,
Que somente não sentis
Se sois humana?
Não cureis de vos matar,
Que ainda estais ein idade
De crescer.
Tempo ha hi pera folgar,
E caminhar:
Vivei á vossa vontade,
E havei prazer.
Gozae, gozae dos bens da terra,
Procurae por senhorios
E haveres.
Quem da vida vos desterra
A triste serra?
Quem vos falia em desvarios
Por prazeres?
Esta vida he descanso
Doce e manso,
Não cureis d'outro paraizo:
Quem vos põe em vosso siso
Outro remanso?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 191

ALMA.
Não me detenhais aqui,
Deixae-me ir, que ein ai me fundo.
DIA. Oh descansae neste inundo,
Que todos fazem assi.
Não são em balde os haveres,
Não são em balde os deleites,
E fortunas;
Não são de balde os prazeres
E comeres:
Tudo são puros affeítes
Das criaturas.
Pera os homens se criarão.
Dae folga á vossa passagem
D'hoje a mais:
Descansae, pois descansarão
Os que passarão
Por esta mesma roínagem
Que levais.
O que a vontade quizer,
Quanto o corpo desejar,
Tudo se faça.
Zombae de quem vos quizer
Reprender,
Querendo-vos marteirar
Tão de graça.
Tornára-ine, se a vós fora.
Is tão triste, atribulada,
Que he tonnenta.
Senhora, vós sois senhora
Imperodora,
Não deveis a ninguém nada;
192 LIVRO I.

Sede isenta.
ANJ. Oh! andae; quem vos detém?
Como vindes pera a glória
Devagar!
Oh meu Deos! oh summo bem!
Ja ninguém
Não se preza da victoria
Em se salvar.
Ja cansais, alma preciosa?
Tão asinha desmaiais?
Sede esforçada!
Oh como virieis írigosa
E desejosa,
Se visseis quanto ganhais
Nesta jornada!
Caminhemos, caminhemos;
Esforçae ora, ahna sancta
Esclarecida!
Adianta-se o Anjo, e torna Satanaz:
DIABO.
Que vaidades e que extremos
Tão supremos!
Pera que he essa pressa tanta?
Tende vida.
Is mui desautorisada,
Descalça, pobre, perdida
De remate:
Não levais de vosso nada,
Amargurada.
Assi passais esta vida
Em disparate.
Vesti ora este brial,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 193

Mettei o braço por aqui:


Ora esperae.
Oh como vem tão real!
Isto tal
Me parece bem a mi:
Ora andae.
Huns chapins haveis mister
De Valença: — ei-los aqui.
Agora estais vós mulher
De parecer.
Ponde os braços presumptuosos:
Isso si.
Passeae-vos mui pomposa,
Daqui pera alli, e de lá pera ca,
E fantasiae.
Agora estais vós fermosa
Como a rosa;
Tudo vos mui bem está.
Descansae.
Torna o Anjo á Alma, dizendo:
ANJO.
Que andais aqui fazendo?
ALM. Faço o que vejo fazer
Pelo mundo.
ANJ. Ó Alma, is-vos perdendo;
Correndo vos is metter
No profundo.
Quanto caminhais avante,
Tanto vos tornais atraz
E atravez.
Tomastes ante com ante

13
Vol. I.
194 LIVRO L

Por mercante,
O cossairo Satanaz,
Porque queres.
Oh! caminhae com Cuidado,
Que a Virgem gloriosa
Vos espera.
Deixais vosso prineipado
Desherdado^
Engeitais a glória vossa
E pátria vera!
Deixae esses chapins ora,
E esses rabos tão sobejos,
Que is carregada:
Não vos tome a morte agora
Tão senhora;
Nem sejais com taes desejos
Sepultada.
ALMA.
Andae, dae-me ca essa mão;
Andae vós, que eu irei,
Quanto puder.
Adianta-se o Anjo, e torna o Diabo.
DIABO.
Todas cousas com razão
Tem sazão.
Senhora, eu vos direi
Meu parecer.
Ha hi tempo de folgar,
E idade de crescer;
E outra idade
De mandar e triumphar,
E apanhar
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 195

E acquirir prosperidade
A que puder.
Ainda he cedo pera a ihOrte;
Tempo ha de arrepender,
E ir ao ceo.
Ponde-vos á fór da corte,
Desta sorte
Viva vosso parecer,
Que tal nasceo.
O ouro pera que he,
E as pedras preciosas,
E brocados?
E as sedas pera que?
Tende por fé,
Que p'ra as almas mais ditosas
Forâo dados.
Vedes aqui huin collar
D'ouro mui bein esmaltado,
E dez anneis.
Agora estais vós p'ra casar
E namorar:
Neste espelho vos vereis,
E sabereis
Que não vos hei de enganar.
E poreis estes pendentes,
Em cada orelha seu:
Isso si;
Que as pessoas diligentes
São prudentes.
Agora vos digo eu
Que vou contente daqui.

13
196 LIVRO I.

ALMA.
Oh como estou preciosa,
Tão dina pera servir,
E sancta pera adorar!
ANJ. Oh alma despiedosa
Perfiosa!
Quem vos devesse fugir,
Mais que guardar!
Pondes terra sobre terra;
Qu'esses ouros terra são.
O Senhor,
Porque permittes tal guerra,
Que desterra
Ao reino da confusão
O teu lavor?
Não ieis mais despejada,
E mais livre da primeira
Pera andar?
Agora estais carregada
E embaraçada
Com cousas que, á derradeira,
Hão-de ficar.
Tudo isso se descarrega
Ao porto da sepultura.
Alma sancta, quem vos cega,
Vos carrega
Dessa van desaventura?
ALMA.
Isto não me pesa nada,
Mas a fraca natureza
Me embaraça.
Ja não posso dar passada
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 197

De cansada:
Tanta he minha fraqueza,.
E tão sem graça!
Senhor, ide-vos embora,
Que remédio em mim não sento;
Ja 'stou tal
ANJ. Sequer dae dous passos ora
Até onde mora
A que tem o mantimento
Celestial.
Ireis alli ropousar,
Comereis alguns bocados
Confortosos;
Porque a hóspeda he sem par
Em agasalhar
Os que vem atribulados
E chorosos.
ALM. He longe? ANJ. Aqui mui perto.
Esforçae, não desmaieis;
E andemos,
Qu'alli ha todo concerto
Mui certo:
Quantas cousas querereis
Tudo tendes.
A hóspeda tem graça tanta,
Far-vos-ha tantos favores —
ALM. Quem he ella?
ANJ. He a Madre Igreja Sancta,
E os seus sanctos Doutores
Hi com ella.
Ireis d'hi mui despejada,
Cheia do Spirito Sancto,
198 LIVRO I.

E mui fermosa.
0 Alma, sede esforçada!
Outra passada;
Que não tendes de andar tento
A ser esposa.
DIABO.
Esperae, onde vos is?
Essa pressa tão sobeja
He ja pequice.
Como! vós, que presumisT
Consentis
Continuardes a igreja,
Sem velhice?
Dae-vos, dae-vos a prazer,
Que muitas horas ha nos annos
Que lá vem.
Na hora que a morte vier,
Como se quer,
Se perdoão quantos damnos
A alma tem.
Olhae por vossa fazendas
Tendes hüas escripturas
De huns casaes,
De que perdeis grande renda.
He contenda,
Que leixárão ás escuras
Vossos pães;
He demanda mui ligeira,
Litígios que são vencidos
Ein hum riso.
Citae as partes terça-feira,
De maneira
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 199

Como não fiquem perdidos:


E havei siso.
ALMA.
Cal'-te por amor de Deos,
Leixa-me, não ine persigas;
Bem abasta
Estorvares os hereos
Dos altos ceos:
Que a vida em tuas brigas
Se me gasta.
Leixa-me remediar
O que tu, cruel, damnaste
Sem vergonha:
Que não me posso abalar,
Nem chegar
Ao logar onde gaste
Esta pcçonha.
ANJO.
Vedes aqui a pousada
Verdadeira e mui segura
A quem quer vida.
IGR. Oh como vindes cansada
E carregada!
ALM. Venho por .minha ventura
Amortecida.
IGR. Quem sois? pera onde andais?
ALM. Não sei pera onde vou:
Sou salvagem,
Sou hüa alma que peccou
Culpas mortaes
Contra o Deos que me creou
Á sua imagem.
200 LIVRO I.

Sou a triste, sem ventura,


Creada resplandecente
E preciosa,
Angélica em fennosura,
E per natura,
Como o raio reluzente
Lumiosa.
E por minha triste sorte,
E diabólicas maldades
Violentas,
Estou mais morta que a morte,
Sem deporte,
Carregada de vaidades
Peçonhentas.
Sou a triste, sem mézinha,
Peccadora obstinada,
Perfiosa;
Pola triste culpa minha
Mui mesquinha,
A todo o mal inclinada,
E deleitosa.
Desterrei da minha mente
Os meus perfeitos arreios
Naturaes;
Não me prezei de prudente,
Mas contente
Me gozei c'os trajos feios
Mundanaes.
Cada passo me perdi;
Em logar de merecer,
Eu sou culpada.
Havei piedade de mi,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 201

Que não me vi;


Perdi meu innocente ser,
E sou damnada.
E, por mais graveza, sento
Não poder-me arrepender
Quanto queria;
Que meu triste pensamento,
Sendo isento,
Não me quer obedecer,
Como soia.
Sdccorrei, hóspeda senhora,
Que a mão de Satanaz
Me tocou,
E sou ja de mim tão fora,
Que agora
Não sei se avante, se atraz,
Nem como vou.
Consolae minha fraqueza
Com sagrada iguaria,
Que pereço,
Por vossa sancta nobreza,
Que he franqueza;
Porque o que eu merecia
Bem conheço.
Conheço-me por culpada,
E digo diante vós
Minha culpa.
Senhora, quero pousada,
Dae passada;
Pois que padeceo por nós
Quem nos desculpa.
Mandae-me ora agasalhar,
202 LIVRO L

Capa dos desemparados,


Igreja Madre.
iGn. Vinde-vos aqui assentar
Mui devagar,
Que os manjares são. guisados
Por*Deos Padre.
Sancto Agostinho doutor,
Jeronimo, Ambrosio e Thomaz,
Meus pilares,
Servi aqui por meu amor,
A qual melhor.
E tu, Alma, gostarás
Meus manjares.
Ide á sancta cozinha,'
Tornemos esta alma ein si,
Porque mereça
De chegar onde caminha,
E se detinha:
Pois que Deos a trouxe aqui,
Não pereça.
Em quanto estas cousas passão, Satanaz passeia, fazendo
muitas vascas, e vem outro Diabo, e diz:
2° DIABO.
Como andas dessocegado!
i° D. Arco em fogo de pezar.
2° D. Que houveste ?
1° D. Ando tão desatinado
De enganado,
Que não posso repousar
Que me preste.
Tinha hüa alma enganada,
Ja quasi pera infernaL
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 203

Mui accesa.
2° D. E quem t'a levou forçada?
1° D. 0 da espada.
2° D. Ja m'elle fez outra tal
Bulra como essa.
Tinha outra alma ja vencida,
Em ponto de se enforcar
De desesperada,
A nós toda offerecida,
E eu prestes pera a levar
Arrastada;
E elle fê-la chorar tanto,
Que as lagrimas corrião
Pola terra.
Blasfemei entonces tento,
Qu,e meus gritos, reünníão
Pola serra.
Mas faço conta que perdi,
Outro dia ganharei,
E ganharemos.
1° D. Não digo eu, irmão, assi:
Mas a esta tornarei,
E veremos.
Torna-la-hei a affagar,
Depois que ella sair fora
Da Igreja
E começar de caminhar;
Hei de apalpar
Se vencerão ainda agora
Esta peleja.
Entra a Alma, com o Anjo.
204 LIVRO I.

ALMA.
Vós não me desempareis,
Senhor meu anjo custodio.
O increos
Imigos, que me quereis,
Que ja sou fora do ódio
De meu Deos?
Leixae-me ja, tentadores,
Neste convite prezado
Do Senhor,
Guisado aos peccadores
Com as dores
De Cbristo crucificado,
Rederaptor.
Estas cousas estando a Alma assentada d mesa, e o
Anjo junto com ella em pé, vem os Doutores com quatro
bacios de cozinha cubertos, cantando, Vexilla reçis pro-
deuntj e, postos na mesa, diz Sancto Agostinho:
AGOSTINHO.
Vós, senhora convidada,
Nesta cea soberana
Celestial,
Haveis mister ser apartada
E transportada
De toda a cousa mundana
Terreal.
Cerrae os olhos corporaes,
Deitae ferros aos damnados
Appetitos,
Caminheiros infernaes;
Pois buscais
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 205

Os caminhos bem guiados


Dos contritos.
IGREJA.
Benzei a mesa vós, senhor,
E pera consolação
Da convidada,
Seja a oração de dor
Sobre o tenor
Da gloriosa paixão
Consagrada.
E vós, Alma, rezareis,
Contemplando as vivas dores
Da Senhora:
Vós outros respondereis,
Pois que fosles rogadores
Até 'gora.
Oração
para Sancto Agostinho.
Alto Deos maravilhoso,
Que o mundo visitaste
Em carne humana,
Neste valle temeroso
E lacrimoso
Tua glória nos mostraste
Soberana;
E teu filho delicado,
Mimoso da Divindade
E natureza,
Per todas partes chagado,
E mui sangrado,
Pela nossa infirmidade
E vil fraqueza.
206 LIVRO I.

Oh Imperador celeste,
Deos alto mui poderoso
Essencial,
Que polo homem que fizeste,
Offereceste
O teu estado glorioso
A ser mortal!
E tua filha, madre, esposa,
Horta nobre, frol dos ceos,
Virgem Maria,
Mansa pomba gloriosa;
Oh quão chorosa
Quando o seu Deos padecia!
Oh lagrimas preciosas,
De virginal coração
Estilladâs!
Correntes das dores vossas
Cos olhos da perfeição
Derramadas!
Quem hüa so podéra haver,
Vira claramente nella
Aquella dor,
Aquella pena e padecer,
Com que choraveis, donzella,
Vosso amor.
E quando vós amortecida,
Se lagrimas vos faltavão,
Não faltava
A vosso filho e vossa vida
Chorar as que lhe ficavão
De quando orava.
Porque muito mais sentia
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 207

Pólos seus padecimentos


Ver-vos tal;
Mais que quanto padecia,
Lhe doía,
E dobrava seus tormcntos,
Vosso mal.
Se se podesse dizer,
Se se podesse rezar
Tanta dor;
Se se podesse fazer
Podermos ver
Qual estáveis ao cravar
Do Redemptor!
Oh fermosa face bella,
Oh resplandor divina],
Que sentistes,
Quando a cruz se poz á vela,
E posto nella
O filho celestial
Que paristes!
Vendo por cima da gente
Assomar vosso conforto
Tão chagado,
Cravado tão cruelmente,
E vós presente,
Vendo-vos ser mãe do morto,
E justiçado!
Oh rainha delicada,
Sanctidade escurecida,
Quem nãó chora
Ein ver morta debruçada
208 LIVRO I.

A avogada,
A força da nossa vida!
AMBROSIO.
Isto chorou Hieremias
Sobre o monte de Sion
Ha ja dias;
Porque sentio que o Messias
Era nossa redempção.
E chorava a sem ventura,
Triste de Jerusalém
Homecida,
Matando, contra natura,
Seu Deos nascido em Belém
Nesta vida.
JERONLMO.
Quem vira o sancto cordeiro
Antre os lobos humildoso,
Escarnecido,
Julgado pera o marteiro
Do madeiro,
Seu rosto alvo e fermoso Í
Mui cuspido!
AGOSTINHO, (benze « mesa)
A benção do Padre eternal,
E do Filho, que por nós
Soffreo tal dor,
E do Spirito Sancto, igual
Deos immortal,
Convidada, benza a vós
Por seu amor.
IGREJA.
Ora sus, venha água ás mãos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 209

AGO. VÓS haveis-vos de lavar


Em lagrimas da culpa vossa,
E bem lavada.
E haveis-vos de chegar
A aUinpar
A hüa toalha fermosa,
Bem lavrada
C o sirgo das veias puras
Da Virgem, sem mágoa nascido
E apurado,
Torcido com amarguras
Ás escuras,
Com grande dor guarnecido
E acabado,
Não que os olhos alimpeis,
Que o não consentirão
Os tristes laços;
Que taes pontos achareis
De face e envés,
Que se rompe o coração
Em pedaços.
Vereis seu triste lavrado
Natural,
Com tormentos pespontado,
E figurado
Deos creador em figura
De mortal.
Esta toalha de que aqui se falia, he a Verônica, a qual
S. Agostinho tira d'antre os bacios, e amostra á Alma;
e a Madre Igreja, com os Doutores, lhe fazem adoração
de joelhos, cantando, Salve, sancta Facies. E acabando,
diz a Madre Igreja:
14
Vol. I.
210 LIVRO I.

IGREJA.
Venha a primeira iguaria.
JER. Esta iguaria primeira
Foi, Senhora,
Guisada sem alegria
Em triste dia,
A crueldade cozinheira
E matadora.
Gosta-la-heis com salsa e sal
De choros de muita dor;
Porque os costados
Do Messias divinal
Sancto, sem mal,
Forão polo vosso amor
Açoutados.
Esta iguaria em que aqui se falia, são os Açoules; e em
este passo os tirão dos bacios, e os presentão .á Alma,
e todos de joelhos adorão, cantando, Ave fia gel htm; e
despois diz
JERONIMO.
Esf outro manjar segundo
He iguaria,
Que haveis de mastigar,
Em contemplar
A dor que o Senhor do mundo
Padecia,
Pera vos remediar,
Foi hum torinento improviso,
Que aos miolos lhe chegou:
E consentio,
Por remediar o siso,
Que a vosso siso faltou;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 211

E pera ganhardes paraizo,


A soffrio.
Esta iguaria segunda de que aqui se falia, he a Coroa
de espinhos; e em este passo a tirão dos bacios, e de joe-
lhos os sanctos Doutores cantão, Ave corona espiniarum;
e acabando diz a Madre Igreja:
IGREJA.
Venha outra do theor.
JER. Est'outro manjar terceiro
Foi guisado
Em três logares de dor,
A qual maior,
Com a lenha do madeiro
Mais prezado.
Come-se com gran tristura,
Porque a Virgem gloriosa
O vio guisar:
Vio cravar com gran crueza
A sua riqueza,
E sua perla preciosa
Vio furar.
E a este passo tira S. Agostinho os Cravos, e todos de
joelhos os adorão, cantando, Dulce lignum, dulcis clavus.
E acabada a oração, diz o Anjo á Alma:
ANJO.
Leixae ora esses arreios,
Qu'esf outra não se come assi
Como cuidais.
Pera as almas são mui feios,
E são meios
Com que não andão em si
Os mortaes.
li*
212 LIVRO I.

Despe a Alma o vestido e jóias que lh'ç inimigo deu,


e diz
AGOSTINHO.
O Alma bem aconselhada,
Que dais o seu cujo he;
O da terra á terra:
Agora ireis despejada
Pola estrada,
Porque vencestes com fé
Forte guerra.
IGREJA.
Venha ess'outra iguaria.
JER. A quarta iguaria he tal,
Tão esmerada,
De tão inunda valia
E contia,
Que na mente divinal
Foi guisada,
Por mistério preparada
No sacrario virginal,
Mui cuberta,
Da divindade cercada
E consagrada,
Despois ao Padre eternal
Dada em offerta.
Apresenta S. Jeronimo á Alma hum Crucifixo, que tira
d'antre os pratos; e os Doutores o adorão, cantando, Do-
mine Jesu Christe; acabando, diz a
ALMA.
Com que forças, com que sprito,
Te darei tristes louvores,
Que sou nada,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 213

Vendo-te, Deos infinito,


Tão afílicto,
Padecendo tu as dores,
E eu culpada?
Como estás tão quebrantado,
Filho de Deos iminortal!
Quem te matou?
Senhor, per cujo mandado
Es justiçado,
Sendo Deos universal,
Que nos creou?
AGOSTINHO.
A fruita deste jantar,
Que neste altar vos foi dado
Com amor,
Iremos todos buscar
Ao pomar
Aonde está sepultado
O Redemptor.
E todos com a Alma, cantando Tc Deum lauda mus,
forão adorar o moimento.

•?€*""
F I G L R A S.
ANJO — Arrais do Ceo. FRADE.
DIABO — Arrais do In- BRIZIDA VAZ Alco-
ferno. viteira.
COMPANHEIRO do Di- JUDEU.
abo. CORREGEDOR.
FIDALGO. PROCURADOR.
ONZENEIRO. ENFORCADO.
PARVO. QUATRO CAVALLEIROS

SAPATEIRO.

Representase na obra seguinte hüa perfiguração sobre


a rigorosa accusação, que os inimigos fazem a todas as
almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestres
corpos se partem. E por tractar desta matéria põe o Autor
por figura que no dito momento ellas chegão a hum pro-
fundo braço de mar, onde estão dous batéis: hum delles
passa pera a Gloria, outra pera o Purgatório. He repar-
tida em três partes; s. de cada embarcação hüa scena.
Esta primeira he da viagem do Inferno.
Esta perfiguração se escreve neste primeiro livro nas
obras de devação, porque a segunda e terceira parte forão
representadas na capella; mas esta primeira foi represen-
tada de câmara, pera consolação da muito catholica e sancta
Rainha Dona Maria, estando enferma do mal de que fal-
leceti, na era do Senhor de 1517.
ALTO DA BARCA DO INFERNO.

DIABO.
Á barca, á barca, hou lá,
Que temos gentil maré.
Ora venho a caro a ré:
Feito, feito, bem está.
Vae alli muitieramá,
E atesa aquelle palanco,
E despeja aquelle banco,
Pera a gente que virá.
Á barca, á barca, hul
Asinha, que se quer ir.
Oh que tempo de partir!
Louvores a Berzebu.
Ora sus, que fazes tu?
Despeja todo esse leito.
COM. Em bonora, logo he feito.
DIA. Abaixa arama esse eu.
Faze aquella poja lesta,
E alija aquella driça.
COM. O caça, ó ciça.
DIA. Oh que caravella esta!
Põe bandeiras, que he festa;
Verga alta, âncora a pique.
Ó precioso Dom Anrique!
Ca vindes vós? que cousa he esta?
216 LIVRO I.

FHIALGO.
Esta barca onde vai ora,
Qu'assim está apercebida?
DIA. Vai pera a Ilha perdida,
E ha de partir logo essora.
FID. Pera lá vai a senhora?
DIA. Senhor, a vosso serviço.
FID. Parece-me isso cortiço.
DIA. Porque vedes lá de fora.
FIDALGO.
Porém a que terra passais?
DIA. Pera o Inferno, senhor.
Fm. Terra he bein sem sabor.
DIA. Que! e também ca zombais?
FID. E passageiros achais
Pera tal habitação?
DIA. Vejo-vos eu em feição
Pera ir ao nosso cais.
FIDALGO.
Parece-te a ti assi.
DIA. Em que esperais ter guarida?
FID. Que deixo na outra vida
Quem reze sempre por mi.
DIA. Quem reze sempre por ti?
Hi hi hi hi hi hi hi.
E tu viveste a teu prazer,
Cuidando ca guarecer,
Porque rézão lá por ti?
Embarca, ou embarcae,
Qu'haveis d'ir á derradeira.
Mandae metter a cadeira,
Qu'assi passou vosso pae.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 217

FID. Que, que, que! e assi lhe vai?


DIA. Vai ou vem, embarcae prestes:
Segundo lá escolhestes, «
Assi ca vos contentae.
Pois que ja a morte passastes,
Haveis de passar o rio.
FID. Não ha aqui outro navio ?
DIA. Não, senhor, qu'este fretastes,
E ja quando espirastes,
Me tinheis dado signal.
FID. Que signal foi esse tal?
DIA. DO que vós vos contentastes.
FDDALGO.
A est' outra barca me vou.
Hou da barca! pera onde is?
Ah barqueiros, não in'ouvis?
Respondei-me. Hou lá, hou!
Pardeos, aviado estou:
Canf a isto he ja peor.
Que gericocins, salvanor!
Cuidão ca que sou eu grou!
ANJO.
Que mandais? FID. Que me digais,
Pois parti tão sem aviso,
Se a barca do Paraizo
He esta em que navegais.
ANJ. Esta he; que lhe buscais?
FID. Que me leixeis embarcar:
Sou fidalgo de solar,
He bem que me recolhais.
ANJO.
Não se embarca tyrannia
218 LIVRO I.

Neste batei divinal.


Fn>. Não sei porque haveis por mal
Qu'entre minha senhoria.
ANJ. Pera vossa fantasia
Mui pequena he esta barca.
FID. Pera senhor de tal marca
Não ha hi mais cortezia?
Venha a prancha e o atavio;
Levae-ine desta ribeira.
ANJ. Não vindes vós de maneira
Pera entrar neste navio.
Ess'outro vai mais vazio,
A cadeira entrará,
E o rabo caberá,
E todo vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
Vós e vossa senhoria,
Contando da tyrannia,
De que ereis tão curiosov
E porque de generoso
Desprezastes os pequenos;
Achar-vos-heis tanto menos,
Quanto mais fostes fumoso.
DIABO.
A barca, á barca, senhores!
Oh que maré tão de prata!
Hum ventosinho que inata,
E valentes remadores.
"Vos me veniredes á Ia mano,
r

"A Ia mano me veniredes;


"Y vos veredes
"Peixes nas redes."
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 219

FIDALGO.
Ao Inferno todavia!
Inferno ha hi pera mi?
Oh triste! que eih quanto vivi,
Nunca cri que o hi havia;
Tive que era fantasia;
Folgava ser adorado,
Confiei em meu estado,
E não vi que me perdia.
Venha essa prancha, e veremos
Esta barca de tristura.
DIA. Embarque vossa doçura,
Que ca nos entenderemos.
Tomareis hum par de remos,
Veremos como reinais;
E chegando ao nosso cais,
Nós vos desembarcaremos.
FDDALGO.
Mas esperae-me aqui;
Tornarei á outra vida
Ver minha dama querida,
Que se quer matar por mi.
DIA. Que se quer matar por ti?
FID. Isto bem certo o sei eu.
r

DIA. O namorado sandeu,


O maior que nunca vi!
FIDALGO.
Era tanto seu querer,
Que m'escrevia mil dias.
DIA. Quantas mentiras que lias,
E tu morto de prazer!
FID. Pera que he escarnecer,
220 LIVRO I.

Que não havia mais no bem?


DIA. Assim vivas tu ainen,
Como te tinha querer.
FIDALGO.
Isto quanto o que eu conheço.
DIA. Pois estando tu spirando,
Se estava ella requebrando
Com outro de menos preço.
FID. Dá-me licença, te peço,
Que va ver minha mulher.
DIA. E ella por não te ver
Despenhar-s'ha d'hum cabeço.
Quanto ella hoje rezou
Antre seus gritos e gritas,
Foi dar glórias infinitas
A quem na desabafou.
FID. Canf a ella bem chorou.
DIA. E não ha hi choro d'alegria?
FID. E as lástimas que dizia!
DIA. Sua mãe lh'as ensinou.
Entrae, meu senhor, entrae?
Venha a prancha, ponde o pé.
FID. Entremos, pois que assi he.
DIA. Ora agora descansae,
Passeae e suspirae,
Em tanto virá mais gente.
r

FID. O barca, como es ardente!


Maldito quem em ti vai!
OlABO. ( ao moço da cadeira.)
Tu, seu moço, vae-te d'hi,
Que a cadeira ca sobeja;
Cousa que estava na igreja
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 221

Não s'ha de embarcar aqui.


Ca lh'a darão de marfi,
.Marchetada de dolores,
Com taes modos de lavores,
Qu'estará fora de si.
A barca, á barca, boa gente,
Que queremos dar á vela:
Chegar a ella, chegar a ella.
Chega hum Onzeneiro, e diz:
ONZ. Oh que barca tão valente!
Pera onde caminhais?
DIA. Oh que ma ora venhais,
Onzeneiro meu parente!
Como tardastes vós tanto?
ONZ. Mais quizera eu tardar;
Na safra do apanhar
Me deu. Saturno quebranlo.
DIA. Ora muito m'eu espanto
Não vos livrar.o dinheiro.
ONZ. Nem tamsoes para o barqueiro,
Não ine deixarão nem tanto.
DIABO.
Ora entrae, entrae aqui.
ONZ. Não hei eu hi de embarcar.
DIA. Oh que gentil recear,
E que cousa pera ini!
ONZ. Ind'agora falleci,
Deixae-me buscar batei.
DIA. Pezar de Jam Pimentel!
Porque não irás aqui?
ONZENEIRO.
E pera onde he a viagem?
222 LIVRO I.

DIA. Pera onde tu has d'ir,


Estamos para partir:
Não cures de mais linguagem.
Ox\z. Mas pera onde he a passagem?
DIA. Pera a infernal comarca.
ONZ. Dixe, não m'embarco eu nessa barca;
Est'outra tem a vantagem.
(Vai-se á barca do Anjo.)
Hou da barca, hou lá, hou!
Haveis logo de partir?
ANJ. E onde queres tu ir?
ONZ. EU pera o Paraizo vou.
ANJ. Pois canf eu bem fora estou
De te levar pera lá:
Ess'outra te levará;
Vae pera quem f enganou.
ONZENEIRO.
Porque? ANJ. Porqu'esse bolção #
Tomara todo o navio.
ONZ. Juro a Deos que vai vazio.
ANJ. Não ja no teu coração.
ONZ. Lá me ficão de rondão
Vinte e seis milhões n'hüa arca.
DIA. Pois que onzena tanto abarca,
Não lhe deis embarcação.
( Torna ao Diabo. )
Hou lá, hou demo barqueiro,
Sabeis vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao inundo,
E trazer o meu dinheiro,
Qu' aquell' outro marinheiro,
Porque me ve vir sem nada,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 223

Dá-me tanta borregada,


Como arrais lá do Barreiro.
DIABO.
Entra, entra, e remarás;
Não percamos mais maré.
ONZ. Todavia... DIA. Por força he:
Que te pês, ca entrarás;
Irás servir Satanaz,
Pois que sempre f ajudou.
ONZ. Oh triste! quem me cegou!
DIA. Cal'-te, que ca chorarás.
ONZENEIRO. (Entrando no batei, diz ao Fidalgo,)
Sancta Joanna de Valdez!
Ca he Vossa Senhoria?
FID. Dá ó demo a cortezia.
DIA. Ouvis? fallae vós cortez.
Vós, fidalgo, cuidareis
Que estais em vossa pousada?
Dar-vos-hei tanta pancada
Chum remo, que arrenegueis.
Vem hum Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:
PARVO.
HOU d aquella! DIA. Quem he? PAR. EU soo.
He esta naviarra vossa?
DIA. De quem? PAR. Dos tolos. DIA. Vossa;
Entrae. PAR. De pulo, ou de voo?
Oh pezar de meu avô!
Soma vim adoecer,
E fui ma ora morrer,
E nella pera mi so.
DIABO.
De que morreste? PAR. De que?
224 LIVRO I.

Samica de caganeira.
DIA. De que? PAR. De caga merdeira.
Ma rabugein que te dê!
DIA. Entra, e põe aqui o pé.
PAR. HOU lá, não tombe o zambuco.
DIA. Entra, tolaço eunuco,
Que se nos vai a maré.
PARVO.
Aguardae, aguardae, hou lá,
E onde havemos nós d'ir ter?
DIA. AO porto de Lucifer.
PAR. Como? DIA. O Inferno. Entra ca.
PAR. O Inferno ieramá.
Hio hio, barca do corhudo,
Beiçudo, beiçudo,
Bachador d'alverca, huhá!
Sapateiro de Landosa,
Antrecosto de carrapato,
Sapato, sapato,
Filho da grande aleivosa;
Tua mulher he tinhosa,
E ha de parir hum sapo,
Chentado no guardanapo,
Neto da cagarrinhosa.
Furta cebolas, hio, hio,
Excominungado nas igrejas,
Burrela cornudo sejas.
Toma o pão que te cahio,
A mulher que te fugio
Pera a Ilha da Madeira.
Ratinho da Giesteira,
O demo que te pario.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 225

Hio, hio, lanço-te hüa pulha


De pica náquella.
Hio, hio, caga na vela,
Cabeça de grulha,
Perna de cigarra velha,!
Pelourinho da Pampulha,
Rabo de forno de telha.
( Chegando & Barca da Gloria diz: )

Hou da barca! ANJ. TU que queres?


PAR. Quereis-me passar alem?
ANJ. Quem es tu? PAR. Não sou ninguém.
ANJ. TU pássaras, se quizeres.
Porque em todos teus fazeres,
Per malícia não erraste;
Tua simpreza t'abaste
Pera gozar dos prazeres.
Espera em tanto per hi,
Veremos se vem alguém
Merecedor de tal bem,
Que deva d'entrar aqui.
Vem hum Sapateiro carregado de formas, e diz na
Barca do Inferno:
SAPATEIRO.
Hou da barca! DIA. Quem vem hi?
Sancto sapateiro honrado,
Como vens tão carregado!
SAP. Mandárão-me vir assK
Mas pera onde he a viagem?
DIA. Pera a terra dos damnados.
SAP. E os que morrem confessados
Onde tem sua passagem?
DIA. Não cures de mais linguagem,
5
Vol. T. '
226 LIVRO I.

Qu'esta he tua barca — esta.


SAP. Renegaria eu da festa,
E da barca, e da barcagem.
Como pod'rá isso ser,
Confessado e commungado?
DIA. TU morreste excommungado,
E não no quizeste dizer:
Esperavas de viver,
Calaste dez mil enganos.
Tu roubaste, bem trinta annos,
O povo com teu mister.
Embarca-te, eramá para ti;
Qu'ha ja muito que f espero.
SAP. Digo-te que re-não quero.
DIA. Digo-te que si, re-si.
SAP. Quantas missas eu ouvi
Não m'hão ellas de prestar?
DIA. Ouvir missa, então roubar,
He caminho pera aqui.
SAPATEIRO.
E as offertas que darão,
E as horas dos finados?
DLV. E OS dinheiros mal levados,
Que foi da satisfação?
SAP. Oh não praza ó cordavão,
Nem á puta da badana,
S'he esta boa tranquitâna,
Em que se ve Jan'Antão.
Ora j u r o a DeOS.qil'he g r a ç a . (Vai á Barca doPamizo.)
Hou da sancta caravella,
Podereis levar-me nella?
ANJ. A carrega te embaraça.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 227

SAP. Não ha mercê que me Deos faça?


Isto hi xiquer irá.
ANJ. Essa barca que lá está,
Leva quem rouba de praça.
Oh almas embaraçadas!
SAP. Ora eu me maravilho
Haverdes por gran peguilho
Quatro forminhas cagadas,
Que podem bem ir chantadas
No cantüiho desse leito.
ANJ. Se tu vieras direito,
Elias forão ca scusadas.
SAPATEIRO.
Assi que determinais
Que va cozer ao'inferno?
ANJ. Escripto estás no caderno
Das ementas infernaes.
SAP. Pois, diabos, que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo,
E levae-ine aquelle fogo:
Pera qu'he aguardar mais?
Entra hum Frade com hüa Moça pela mão, e vem
dansando, fazendo a baixa com a boca, e acabando, diz o
DIABO.
Que he isso, Padre? que vai lá?
FRA. Deo grafias! Sain cortezão.
DIA. Sabeis também o tordião?
FRA. He mal que m'esquecerá.
DIA. Essa dama ha de entrar ca?
FRA. Não sei onde embarcarei.
DIA. Ella he vossa? FRA. Não sei;
Por minha a trago eu ca.
15*
228 LIVRO I.

DIABO.
E não vos punhão lá grosa,
Nesse convento sagrado?
FRA. Assi fui bem açoutado.
DIA. Que cousa tão preciosa!
Entrae, Padre reverendo.
FRA. Pera onde levais gente?
DIA. Pera aquelle fogo ardente,
Que não temeste vivendo.
FRADE.
Juro a Deos que não f entendo:
E este hábito me não val?
DIA. Gentil padre mundanal,
A Berzebu vos commendo.
FRA. Corpo de Deos consagrado!
Pola fé de Jesu Christo,
Qu'eu não posso entender isto:
Eu hei de ser condemnado?
Hum padre tão namorado,
E tanto dado á virtude!
Assi Deos me dê saúde,
Que estou maravilhado.
DIA. Não façamos mais detença;
Embarcae, e partiremos;
Tomareis hum par de reinos.
FRA. Não ficou isso n'avença.
DIABO.
Pois dada está ja a sentença.
FRA. Pardeos, essa seria ella!
Não vai em tal caravella
Minha senhora Florença.
Como! por ser namorado,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 229

E folgar c'hüa mulher,


Se ha de hum frade de perder,
Com tanto psabno rezado?
DIABO.
Ora estás bein aviado.
FRA. Mas estás bem corregido.
DIA. Dovoto padre e marido,
Haveis de ser ca pingado.
FRA. Mantenha Deos esta c'roa!
DIA. O padre Frei Capacete!
Cuidei que Unheis barrete.
FRA. Sabei que fui da pessoa.
Esta espada he roloa,
E este broquel rolão.
DIA. Dê vossa Reverencia lição
D'esgrima, que he cousa boa.
FRA. Que me praz, dêmos caçada, (esgrime)
Então logo hum contra sus,
Hum fendente, ora sus:
Esta he a primeira levada.
Alevantae a espada;
Mettei o diabo na cruz,
Como o eu agora puz.
Sahi c'o a espada rasgada,
E que fique anteparada.
Talho largo, hum revés;
E logo colher os pés,
Que todo o ai não he nada.
Quando o recolher se tarda,
O ferir não he prudente.
Eia, sus, mui largamente,
Cortae na segunda guarda.
230 LIVRO I.

Guarde-me Deos d'espingarda,


Ou de varão denodado;
Mas aqui estou guardado,
Como a palha na albarda.
Saio com meia espada.
Hou lá, guardar as queixadas.
DIA. Oh que valentes levadas!
FRA. Inda isto não he nada:
Dêmos outra vez caçada.
Contra sus, ora hum fendcnte;
E cortando largamente,
Eis aqui a sexta guarda.
Daqui se sai com hüa guia,
E hum revés da primeira:
Esta he a quinta verdadeira.
Oh quantos daqui feria!
Padre que tal aprendia,
No inferno ha de haver pingos?
Ah! não praza a San Domingos
Com tanta descortezia.
Prosigamos nossa historia,
Não façamos mais detença.
Dae ca a mão, Senhora Florença,
Vamos á barca da Gloria.
(Chega á Barca da Gloria.)
Deo grafias! Ha ca logar
Pera minha Reverença?
E a Senhora Florença
Polo meu ha lá d'entrar.
PARVO.
Andar muitieramá:
Furtaste esse trinchão, frade?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 231

FRA. Senhora, dá-me a vontade,


Que este feito mal está.
Vamos onde havemos d'ir.
Praza a Deos co'a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira,
Senão emfim concrudir.
DIABO.
Padre, haveis logo de vir.
FRA. Si, tomae-me lá Florença,
E cumpramos a sentença:
Ordenemos de partir.
Vem hüa Alcoviteira, per nome Brizida Vaz, e che-
gando á Barca do Inferno, diz:
BRIZIDA.
Hou da barca, hou lá!
DIA. Quem me chama? BRI. Brizida Vaz.
DIA. Eia, aguarda-me, rapaz:
Porque não vem ella ja?
COM. Diz que não ha de vir ca,
Sem Joanna de Valdeis.
DIA. Entrae vós, e remareis.
Bni. Não quero eu entrar lá.
DIABO.
Que saboroso arrecear!
Bni. Não he essa barca a que eu cato.
DIA. E trazeis vós muito fato?
BRI. O que me convém levar.
DIA. Qu'he o que haveis d'enibarcar?
BRI. Seiscentos virgos postiços,
E três arcas de feitiços,
Que não podem mais levar.
Três almarios de mentir,
232 LIVRO I.

E cinco cofres d'enIeios,


E alguns furtos alheios,
Assi em jóias de vestir,
Guarda-roupa d'encobrir:
Emfim casa movediça,
Hum estrado de cortiça,
Com dez cochins d'embair.
A mor carrega que he,
Essas moças que vendia:
D'aquesta mercadoria
Trago eu muita á bofé.
DIA. Ora ponde aqui o pé.
Bni. Hui! eu vou par'ó Paraizo.
DIA. E quem te disse a ti isso?
BRI. Lá hei d'ir desta maré.
Eu sou hüa mártel tal,
Açoutes tenho eu levados,
E tonnentos supportados,
Que ninguém me foi igual.
S'eu fosse ao fogo infernal,
Lá iria todo o mundo.
A esf outra barca ca em fundo
Me vou, que he mais real.
( Chegando á Barca da Gloria, diz ao Anjo.)
Barqueiro, mano, meus olhos,
Prancha a Brizida Vaz.
ANJ. EU não sei quem te ca feraz.
BRI. Peço-vo-lo de giolhos.
Cuidais que trago piolhos,
Anjo de Deos, minha rosa?
Eu sou Brizida a preciosa,
Que dava as moças ós molhos;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 233

A que criava as meninas


Pera os conegos da Sé.
Passae-me por vossa fé,
Meu amor, minhas boninas,
Olhos de perlinhas finas:
Que eu sou apostolada,
Angelada, e martelada,
E fiz obras mui divinas.
Sancta Ursula não converteo
Tantas cachopas, como eu;
Todas salvas polo meu,
Que nenhüa se perdeo:
E prouve aquelle do ceo,
Que todas acharão dono.
Cuidais que dormia eu soinno?
Nem ponta; e não se perdeo.
ANJO.
Ora vae lá embarcar,
Não m'estes importunando.
BRI. Pois estou-vos allegando
O porque m 'haveis de levar.
ANJ. Não cures d'importunar,
Que não podes ir aqui.
BRI. E que ma ora eu servi,
Pois não in'ha d'aproveitar!
Hou barqueiro da ina ora,
Ponde a prancha, que eis me vou;
E tal fada me fadou,
Que pareço mal ca fora.
DIA. Ora enjrae, minha senhora,
E sereis bem recebida.
234 LIVRO I.

Se vivestes sancta vida,


Vós o sentireis agora.
Vem hum Judeu com hum bode ás costas, e diz ao
Diabo:
JUDEU.
Que vai lá, hou marinheiro?
DIA. Oh que ma ora vieste!
JUD. Cuja he esta barca que preste?
DIA. Esta barca he do barqueiro.
JUD. Passae-ine por meu dinheiro.
DIA. E esse bode ha ca de vir?
JUD. O bode também ha d'ir.
DIA. Oh que honrado passageiro!
JUDEU.
Sem bode, como irei lá?
DIA. Pois eu não passo ca cabrões.
JUD. Eis aqui quatro tostões,
E mais se vos pagará:
Por vida de Sema Fará,
Que me passeis o cabrão.
Quereis mais outro tostão?
DIA. Nem tu não has de vir ca.
JUDEU.
Porque não irá o Judeu
Onde vai Brizida Vaz?
Ao Senhor Meirinho apraz ? (a0 Fidalgo.)
Senhor Meirinho, irei eu?
DIA. E ao fidalgo quem lhe deu
O mando deste batei?
JUD. Corregedor, coronel,
Castigae este sandeu.
Azará, pedra mentia.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 235

Lodo, chanto, fogo, lenha,


Caganeira que te venha*
Ma currença que f acuda.
Por ei Deu que te sacuda
Com a beca nos focinhos.
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda.
PARVO.
Furtaste a chiba, cabrão?
Pareceis-me vós a mim
Carrapato d'Alcoutim,
Enxertado em camarão.
D n . Judeu, lá te levarão,
Porque hão d'ir descarregados.
PAR. E s'elle mijou nos finados
No adro de San Gião!
E comia a carne da panella
No dia de nosso Senhor;
E mais elle, salvanor,
Cada vez mija náquella.
DIA. Ora sus, demos á vela.
Vós Judeu, ireis á toa,
Que sois mui ruim pessoa.
Levae o cabrão na trella.
Vem hum Corregedor, e diz, chegando d Barca do
Inferno:
CORREGEDOR.
Hou da barca! DIA. Que quereis?
COR. Está aqui o Senhor Juiz.
DIA. O amador de perdiz,
Quantos feitos que trazeis!
COR. NO meu ar conhecereis
236 LIVRO I.

Qu'elles não vem de meu geito.


DIA. Como vai lá o direito?
COR. Nestes feitos o vereis.
DIABO.
Ora pois, entrae, veremos
Que diz hi nesse papel.
COR. E onde vai o batei?
DIA. NO Inferno vos poremos.
COR. Como! á terra dos Demos
Ha de ir hum Corregedor?
DIA. Sancto descorregedor,
Einbarcae, e reinaremos.
Ora entrae, pois que viestes.
Con. Non est de regula júris, não.
DIA. Ita, ita, dae ca a mão,
Remareis hum remo destes.
Fazei conta que nascestes
Pera nosso companheiro.
Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes.
CORREGEDOR.
Oh renego da viagem;
E de quem m'ha de levar!
Ha aqui meirinho do mar?
DIA. Não ha ca tal costumagem.
COR. Não entendo esta barcagem,
Nem hoc non potest esse.
DIA. Se ora vos parecesse
Que não sei mais que linguagem.
Entrae, entrae, Corregedor.
Con. Hou, videtis qui petatis?
Super jure majestatis
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 237

Tem vosso mando vigor?


DIA. Quando ereis ouvidor,
Nonne aceipistis rapina?
Pois ireis pela bolina
Onde nossa mercê for.
Oh que isca esse papel,
Pera hum fogo qu'eu sei!
COR. Domine, memento mei!
DIA. Non est tempus, bacharel;
Imbarquemini in batei,
Quia judicastis malitia.
Con. Semper ego in justitia
Feci, e bem por nível.
DIABO.
E as peitas dos Judeus,
Que vossa mulher levava?"
COR. Isso eu não no tomava,
Erão lá percalços seus:
Non sunt peccatus meus,
Peccavit uxor mea.
DIA. Et vobis quoque eum ea;
Nemo timuistis Deus.
A largo modo acquiristis
Sanguinis laboratorum,
Ignorantes peccatorum,
Ut quid eos non audistis.
COR. VÓS, arrais, nonne legistis
Que o dar quebra os penedos?
Os direitos estão quedos,
Si aliquid tradidistis.
DIABO.
Ora entrae nos negros fados,
238 LIVRO I.

Ireis ao lago dos cães,


E vereis os escrivães
Como estão tão prosperados.
COR. E na terra dos dainnados
Estão os Evangelistas?
DIA. OS mestres das burlas vistas
Lá estão bem fragoados.
Vem hum Procurador, e diz o Corregedor,-quan-
do o ve:
CORREGEDOR.
O Senhor Procurador!
PRO. Bejo-vo-las mãos, Juiz.
Que diz esse arrais? que diz?
DIA. Que sereis bom remador.
Entrae, bacharel doutor,
E ireis dando á bomba.
PRO. E este barqueiro zomba?
Joga taes de zombador?
Essa gente que hi 'stá^
Pera onde a levais?
DIA. Pera as penas infernaes.
PRO. Dixe, não vou pera lá;
Outro navio está ca,
Muito melhor assombrado.
DIA. Ora estais bem aviado:
Entrae muitierainá.
CORREGEDOR.
Confessastes-vos, doutor?
PRO. Bacharel sou. Dou-me ô demo!
Não cuidei que era extremo,
Nem de morte minha dor.
E vós, Senhor Corregedor?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 239

COR. EU mui bem me confessei;


Mas tudo quanto roubei
Encubri ao confessor.
Porque, se o não tornais,
Não vos querem absolver;
E he mui mao de volver,
Depois que o apanhais.
DIA. Pois porque não einbarcais?
COR. Quia esperamus in Deo.
DIA. Imbarquemini in barco meo;
Para que speratis mais?
(Vão-se á barca da Gloria.)
CORREGEDOR.
HOU arrais dos gloriosos,
Passae-nOs nesse batei.
ANJ. Oh pragas pera papel,
Pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
Sendo filhos da sciencia!
COR. Oh! habeatis clemência,
E passae-nos como vossos.
PARVO.
Hou homens dos breviairos,
Rapinastis coelhorum,
Et pernis perdigotorum,
E mijais nos campanairos.
COR. Anjos, não sejais contrairos,
Pois não temos outra ponte.
PAR. Beleguinis ubi sunte,
Ego latinas macairos.
ANJO.
A justiça divinal
240 LIVRO I.

Vos manda vir carregados,


Porque vades embarcados
Nesse batei infernal.
COR. Oh! não praz a a San Marcai
Co'a ribeira nem c'o rio!
Cuidão lá que he desvario
Haver ca tamanho mal.
Venha a negra prancha ca;
Vamos ver este segredo.
PRO. Diz hum texto do Decreto....
DIA. Entrae, que ca se dirá.
(Entrão no batei dos dainnados, e diz o Corregedor a Brizida Vaz:)
COR. Esteis muito arama,
Senhora Brizida Vaz.
BRI. Ja siquer estou em paz,
Que não me leixaveis lá.
Cada hora encoroçada,
Justiça que manda fazer.
COR. I-VOS tornar a tecer,
E urdir outra meada.
BRI. Dizede, juiz d'alçada,
Vem ja Pero de Lisboa ?
Leva-lo-heinos á toa,
E irá desta barcada.
Vem hum Enforcado, e diz o
DIABO.
Venhais embora, Enforcado.
Que diz lá Garcia Moniz?
ENP. EU vos direi que elle diz
Que fui bem aventurado;
Que pólos furtos que eu fiz,
Sou sancto canonizado;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 241

Pois morri dependurado,


Como o tordo na buiz.
DIABO.
Entra ca, e reinarás
Até ás portas do Inferno.
ENF. Não he essa a nao qu'eu governo.
DIA. Entra, que inda caberas.
ENF. Pezar de San Barrabaz!
Se Garcia Moniz diz
Que os que morrem como eu fiz,
São livres de Satanaz!
E disse que a Deos prouvera
Que fora elle o enforcado,
E que fosse Deos louvado,
Que em bo'hora eu nascera;
E que o Senhor m'escolhera,
E por meu bein vi beleguins:
E com isto mil latins,
Como s'eu latim soubera.
E no passo derradeiro,
Me disse nos meus ouvidos,
Que o logar dos escolhidos
Era a forca e o Lünoeiro:
Nem guardião de mosteiro
Não tinha mais sancta gente,
Como Affonso Valente,
O que agora he carcereiro.
DIABO.
Dava-te consolação
Isso, ou algum esforço?
ENF. C O baraço no pescoço
Mui mal presta a pregação.
1 6
Vol. I.
242 LIVRO L

Elle leva a devação,


Que ha de tornar a jentar;
Mas quem ha de estar no ar,
Aborrece-lhe o sermão.
DIABO.
Entra, entra no batei,
Que para o Inferno has de ir.
ENF. E Moniz ha de mentir?
Dixe-ine: — Com San Miguel
Irás comer pão e mel,
Como fores enforcado. —
Ora ja passei meu fado,
E ja feito he o burel.
Agora não sei que he isso:
Não me fallou em ribeira,
Nem barqueiro nem barqueira,
Senão logo ao Paraizo.
E isto muito em seu siso,
E que era sancto meu baraço.
Porém não sei que aqui faço,
Ou s'era mentira isto.
DIABO.
Fallou-te no purgatório?
ENF. Diz que foi o Lünoeiro;
E ora por elle o salteiro,
E o pregão vitatorio;
E que era muito notório
Que aquelles deciprinados
Erão horas dos finados,
E missa de San Gregorio.
DIABO.
Ora entra; pois has d'entrar,
DAS OBRAS DEDEVAÇÃO. 243

Não esperes por teu pae.


ENF. Entraremos, pois assi vai.
DIA. Este foi bom d'embarcar.
Eia, todos apear,
Qu'está em sêcco o batei.
Vós, doutor, bota batei;
Fidalgo, saltae no mar.
Vem quatro Fidalgos, cavalleiros da Ordem de Christo,
que morrerão nas partes d'África, e vem cantando a quatro
vozes a letra que se segue.
"Á barca, á barca segura,
"Guardar da barca perdida:
"Á barca, á barca da vida.
"Senhores, que trabalhais
"Pola vida transitória,
"Memória, por Deos, memória
"Deste temeroso cais.
"Á barca, á barca, mortaes;
"Porém na vida perdida
"Se perde a barca da vida."
DIABO.
Cavalleiros, vós passais,
E não me dizeis p'ra ond'is?
1? C.E vós, Satan, presumis?...
Attentae com quem fallais.
o
2 C. E vós que nos demandais ?
Sequer conhecei-nos bem:
Morremos nas partes d'alem;
E não queirais saber mais.
ANJO.
Ó cavalleiros de Deos,
A vós estou esperando;
16*
244 LIVRO L

Que morrestes pelejando


Por Christo, Senhor dos ceos.
Sois livres de todo o mal,
Sanctos por certo sem falha;
Que quem morre ein tal batalha
Merece paz eternal.

Aqui fenece a primeira scena.


FIGURAS.

ANJO — Arrais do Ceo.


DIABO — Arrais do Inferno.
COMPANHEIRO da Diabo.
LAVRADOR.
MARTA GIL — Regateira.
PASTOR.
MOÇA Pastora.
MENINO.
TAFUL.
TRÊS ANJOS.

Esta segunda seena he attribuida d Embarcação


do Purgatório. Tracta-se per lavradores^ Foi repre-
sentada á muito devota e catholica Rainha D. Leonor no
hospital de todolos Sanctos da cidade de Lisboa, nas ma-
tinas do Natal, era do. Senhor de 1518.
A L T O DA B A R C A DO
PURGATÓRIO.

Primeiramente entrão três Anjos, cantando o romance


guinte, com seus remos.
Romance.
"Remando vão remadores
"Barca de grande alegria;
"O patrão que a guiava,
"Filho de Deos se dizia.
"Anjos erão os remeiros,
"Que remavão á porfia;
"Estandarte d'esperança,
"Oh quão bein que parecia!
"O masto da fortaleza
"Como cristal reluzia;
"A vela com fé cozida
"Todo o inundo esclarecia;
"A ribeira mui serena,
"Que nenhum vento bolia."
Entra o Arrais do Inferno, e diz:
DIABO.
Ah sancto corpo de mi,
Corpo de mi consagrado!
Como está isto assi
Sem ninguém estar aqui
Neste meu porto dourado,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 247

Agora que está breado


De novo o caravellão,
Espalmado, e apparelhado,
E mais largo bô quinhão,
Que o passado?
Quanto mais se chega a fim
Do inundo, a todo o andar,
Tanto a gente he mais ruim:
E juro ó corpo de mim
Que ja canso de remar.
Cumpre-me d'apparelhar
Hum valente barinel,
Ou hüa nao singular,
Ein que possa mais levar
Que n'hum batei.
E não remar senão tal via,
E depois haver carraca;
Que cobiça e sintonia,
Inveja e tyrannia,
Nenhüa dellas afraca.
Ala, ala! saca, saca!
A terra, á terra, mortaes!
Cerrar o leme a esta banda,
E não curar d'outro cais;
Porque a lei dos mundanaes
Isto manda.
ANJO.
Quem quer ir ó Paraizo?
A glória, á glória, senhores!
Oh que noite pera isso!
Quão prestes, quão improviso
Sois celestes moradores!
248 LIVRO I.

Aviae-vos, e partir;
Que vossa vida he sonhar,
E a morte he despertar
Pera nunca mais dormir,
Nem acordar.
Este rio he mui escuro,
Não tendes vao nem maneira:
Entrae em barco seguro^
Havei conselho maduro,
Não entreis em ina bateira;
Que na viagem primeira,
Quantos vistes embarcados
Todos forão alagados:
No mais fundo da ribeira
São penados.
Pois não se pôde escusar
A passada deste rio,
Nem a morte s' estorvar,
Qu'he outro braço de mar
Sem remédio nem desvio.
E o batei dos damnados,
Porque nasceo hoje Christo,
Está, c'os reinos quebrados,
r

Em sêcco. O descuidados»
Cuidae nisto.
Agora que a madre pia,
Frol de toda a perfeição,
Está com tanta alegria;
Pedi a sua Senhoria
Gloriosa embarcação,
Que sua he a barcagein.
Pedi-lhe como avogada,
DAS OBBAS DE DEVAÇÃO. 249

Per lacrimosa linguagem,


Que nos procure viagem
Descansada.
Falla-Ihe com alegria,
Canta-lhe como souberes,
Visita a Virgem Maria,
Nossa via, nossa guia,
Frol de todalas mulheres.
Quando aqui lhe appareceres,
Roga-lhe que f appareça
Com piedosos poderes,
Porque a alma que tiveres
Não pereça.
DIABO.
Quero ora metter á vela,
E deitar a prancha fora,
E arrumar a caravella,
E deitar do junco nella,
Se vier qualquer senhora.
E que he isto na ma ora?
E o batei está em sêcco!
Oh renego de Çamora!
O rio s^encarainelou!
Nunca tal m'aconteceo.
Hou bota, hou bota, hou!
Oh renego de San grou,
E de San pata do ceo!
Arrenego eu do dinheiro
Que ganho nesta viagem,
Arrenego da barcagem,
E do cornudo barqueiro.
250 LIVRO I.

Vem hum Companheiro do Arrais do Inferno,


e diz:
COMPANHEIRO.
Parceiro, gurgurgarao.
DIA. Porque? COM. Porque he assi.
DIA. Ora bota, hou bota, hao.
COM. EU so botara hüa nao
Com este dedo sem ti:
Mas sabe que este serão
He para nós grande praga,
E trabalhamos em vão,
Porque a promessa d'Abrahão
Hoje he a paga.
Vem hum Lavrador com seu arado ás costas, e diz:
LAVRADOR.
Que he isto? ca chega o mar?
Ora he forte cagião.
DIA. Alto, sus, quereis passar?
Ponde hi o chapeirão,
E ajudareis a botar.
LAV. Da morte venho eu cansado,
E cheio de refregereo,
E não posso, mal peccado.
DIA. Põe eramá hi o arado.
LAV. Perem esse he gran inestereo.
S'eu trouguera mais vagar
Sorrira-me eu tamalavez.
DIA. E vós villão, quereis zombar?
Se vos eu arrebatar?
LAV. Dou-f eu muito de mao mez.
Com'eu a morte passeij
Logo o medo ficou finto.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 251

Enha cédula amanhei,


E meus negócios deixei
Como homem de bô retinto.
Nem fico a dever duas favas,
Nem hum preto por pagar.
DIA. E OS marcos que mudavas,
Dize, porque os não tomavas
Outra vez a seu logar?
LAV. E quem tirava do meu
Os meus marcos quantos são,
E os chantava no seu,
Dize, pulga de Judeu,
Que lhe diz ias tu er então?
DIABO.
Foste o mais ruim villão!...
LAV. Bofá, salvanor salvado,
Vós inentis coma cabrão.
Quer me queirais mal, quer não,
Não dou por isso hum cornado.
DIA. Pois porque vens carregado?
LAV. Porque seja conhecido
Por lavrador muito honrado.
E tenho a glória merecido;
Que sempre fui perseguido,
E vivi mui trabalhado.
Ha hi, pezar não de São,
Afficio mais fortunado?
DIA. Pois para que he o villão?
LAV. Todos nós vimos d'Adão.
DIA. Pousa, pousa ahi o arado.
LAV. Juro a San Junco sagrado
Que te chante hum par de quedas.
252 LIVRO I.

DIA. Aqui has d'ir embarcado.


LAV. Vae beijar o meu bragado
Antre as sedas.
DIABO.
Que villão tão descortez!
LAV. E vós sois mui deneguil!
Dou eu ja ora ó Decho o freguez.
DIA. Dom villão, comigo ires
Onde estão de vós dez mil.
LAV. E VÓS Dom rosto de funil,
Cuidareis que sois alguém?
ANJ. Vinde ca, homem de bem;
Pera onde quereis ir?
LAV. Queria passar alem,
Pera a glória do Senhor.
Sainicas de lá seres?
ANJ. E vens tu merecedor?
LAV. E que fez lá o lavrador,
Pera andar ca ó través?
ANJ. Pôde ser mui austinado,
E não querer-se arrepender.
LAV. Bofá, Senhor, mal peccado,
Sempre he morto quem do arado
Ha de viver.
Nós somos vida das gentes,
E morte de nossas vidas;
A tyrannos — pacientes,
Que a unhas e a dentes
Nos tem as almas roídas.
Pera que he parouvelar?
Que queira sçr peccador
O lavrador;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 253

Não tem tempo nem logar


Nem somente d'alimpar
As gotas do seu suor.
Na igreja bradão com elle,
Porqu'assoviou a hum cão;
E logo excoinmunhão na pelle.
O fidalgo maçar nelle,
Atá o mais triste rascão.
Se não levão torta a mão,
Não lhe achão nenhum direito.
Muito atribulados são!
Cada hum pella o villão
Por seu geito.
Trago a propósito isto,
Porque veio a bem de falia.
Manifesto está e visto
Que o bento Jesu Christo
Deve ser homem de gala.
E he rezão que nos valha
Neste serão glorioso,
Qu'he gran refúgio sem falha.
Isto me faz forçoso,
E não estou temeroso
Nem migalha.
ANJO.
Que bens fizeste na vida,
Que te sejão. ca guiantes?
LAV. Ia ao bodo da ermida
Cada sancta Margarida,
E dava esmola aos andantes;
Benzia-ine pela manhan,
Levava o credo até o cabo.
254 LIVRO I.

DIA. Depois tomavas a lan


Da melhor e a mais san,
E davas ao dizimo a do rabo,
Temporan.
E o mais fraco cabrito,
E o frangão offegoso,
Com repetenado esp'rito.
LAV. Oh fideputa maldito,
Triste avezimão tinhoso,
Lano peccador errado!
Não — vai — não me dezimei?
Dize sabujo pellado.
DIA. Tornaste tu o mal levado?
LAV. Si, tornei.
E de tudo fiz aquesta,
Como homem diz, avantairo:
Leixei ó cura a enha besta.
Abonda que nem aresta
Terá comigo o cossairo.
Hum annal e hum trintairo,
Com raponsos, ladainhas:
A Gil fiz todo repairo
Com missas d'anniversairo
Trinta dias.
Perol que dizeis vós lá?
Sejo eu como deve ser,
Ou que modo se terá?
ANJ. He mui caro d'haver ca
Aquelle eternal prazer.
LAV. Ja o eu lá ouvi dizer.
Perol o evangelho diz,
Quem for bautizado e crer
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 255

Salvus es: ora dizer,


Sede juiz.
Pois quia infernus es,
Nulla redencia ha hi;
Vede vós o que dizês,
Qu'a mim ja me pruem os pés,
Pera me passar d'aqui.
ANJ. Digo que andes assi
Purgando nessa ribeira,
Até que o Senhor Deos queira
Que te levem pera si
Nesta bateira. ''
LAVRADOR.
Bofá, logo quizera eu,
Que m'atormenta este arado;
E dera muito do meu,
Pois que ja hei de ser seu,
Tirar-me deste cuidado.
O mundo, mundo enganado,
Vida de tão poucos dias,
Tão breve tempo passado,
Tu me trou veste enganado,
E me mentias!
DIABO.
Inda esta barca não nada?
Que festa esta pera mi!
Nunca tal balcarriada,
Nem maré tão desastrada
Nesta ribeira não vi.
Vem hüa regateira, per nome Marta Gil, e diz:
MARTA GIL.
Hui! que ribeiros são estes?
256 LIVRO I.

DIA. Venhais embora, Marta Gil.


M A R . E donde me conhecèstes?
DIA. Folgo eu bein porque viestes
Oufana e dando ó quadril.
MAR. Vedes outro perrexil!
E marinheiro sois vós?
Ora assim me salve Deos
E me livre do Rrazil,
Que estais sutil.
Emque eu seja lavradora,
Bein vos hei de responder.
DIA. Não vos agasteis vós ora,
Que, ou lavradora ou pastora,
Aqui vos hei de metter.
MAR.Hui mana! e quem no deu?
Ide beber,
Que bem vos conheço eu.
DIA. EU também vos sei nascer,
E vi fateixas fazer;
Que o que trazeis he meu,
E ha de ser.
MARTA GIL.
E que cousas são fateixas?
Fateixado te veja eu.
DIA. OS feitos que feitos leixas,
E o povo cheio de queixas.
MAR. Cal'-te, almareo de Judeu.
DIA. Não sabes tu que viveste
Lavradora e regateira?
MAR. Ora coinêde-Ia, que vos preste.
Hui! e que gaio he ora este
De ribeira?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 257

Sabedes vós, João Corujo,


Todos fazem seu proveito.
Olhade o frei Caramujo,
Bargante que não tem cujo!
Canf a agora he o feito feito.
Não sabes tu que o respeito
Do inundo he em ganhar?
E sobre isso he seu proveito,
Ou a torto ou a direito
Apanhar.
Fui em tempo de cobiça;
Cada tempo sua usança:
S'eu morrera de preguiça,
Tiveras muita justiça,
E eu pequena esperança.
Vendia minha lavrança,
Hum ovo por dous reaes,
Hum cabrito, se s'alcança,
Té quatro vinténs, nó mais: »
Tendes vós isto em lembrança?
Hum frangão por hum vintém,
E hüa gallinha sessenta;
E acerta-se também
Que ás vezes vem alguém,
Que as leva por setenta.
DIA. E pera que era água no leite,
Que deitavas ierainá?
MAR.Mais azeite:
Ind'hoje o elle dirá!
Vistes ora o diabreite!
O diabo, visses tu,
Bofé asinha o eu direi.
Vol. I. 17
258 LIVRO I.

Como he palreiro, Jesu!


Fora este cucurucu
Bom secretario d'elRei.
Amanhade-lhe o atafal;
Nadar patas, patarrinhas;
Corregêde-lhe o enxoval;
Onças de raiva mortal
Nas badarrinhas.
DIABO.
Valha-te a ti, Marta amiga,
Qu'estamos enfeitiçados.
MAR.Embarcade lá esta figa.
DIA. Passará esta fadiga,
Seremos desembargados.
MAR. Anjos bem-aventurados,
Metterei o canistrel,
Que trago os testos britados?
Carregão estes peccados,
Que fazem lançar o fel
A bocados.
ANJO.
E pera qiferão elles ca?
MAR.Pera o Demo; e que sei eu?
ANJ. Ora pois, embarca lá.
MAR. Melhor creio eu qüe será.
Jesu! Jesu! benzo-ine eu.
O bento Bartholameu,
E vós Virgem do rosairo,
Polo filho que Deos vos deu
Esta noute vosso e seu,
Haja repairo.
Bem sabedes vós, Senhora,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 259

Que venho eu manifestada,


E fui vossa lavradora;
Emque pecasse algum'ora,
Venha a piedosa alçada.
Esta he a noute que paristes:
Benta a hora em que nascestes;
Esqueção meus males tristes,
Polo menino que vestistes,
E envolvestes.
Anjos, ajudade-me ora,
Que vos veja eu bem casados:
Não me deixedes de fora
Por aquella sancta hora
Em que todos fostes creados.
ANJ. Não he tempo ca d'orar,
Canfá para merecer.
MAR. Manos, eu quero provar
Qu'em todo tempo ha logar
O que Deos quer.
Este serão glorioso
Não he de justiça, não;
Mas todo mui piedoso,
Em que nasceo o esposo
Da humanai geração:
E a barca de Satão
Não passa hoje ninguém;.
E per força hei d'ir alem,
Sô pena d'excommunhão,
Que posta tem.
ANJO.
Grande cousa he oração:
Purga ao longo da ribeira,
17*
260 LIVRO X

Segura de damnação,
Teras angústia e paixão,
E tonnento em gran maneira.
Isto até que o Senhor queira
Que te passemos o rio:
Será tua dor lastimeira,
Como ardendo em gran brazio
De fogueira.
MARTA GIL.
Oh esperança, esperança,
A mais certa pena minha
Com toda esta segurança!
Tu es a mesma tardança
Em figura de mézinha.
Oh quem tal arrepender,
Tal maneira de penar,
Lá soubesse no viver!
Oh quem tornasse a nascer,
Por não peccar!
Vem hum Pastor, e diz, olhando pera a barca do imigo:
PASTOR..
Isto he cancêllo, ou picota,
Ou senefica algorrem?
Não lhe marra ella aqui gota
De ser isto terremota
Pera enforcar alguém.
DIA. Queres embarcar, pastor?
PAS. Praz. DIA. Entra neste batei.
PAS. Irra! pulha he isso, salvanor.
S'eu não fora pulhador,
J'ella passava o burel.
Digo, senhor pesadello,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 261

(Vós sabereis isto bem)


Estando em val de Cobello,
Deu-me dor de cotovello,
Einperol morri perem.
E fui-ine per esse chão
A Deos douche alma dizer,
Com meu cacheiro na mão,
Sem soes motrete de pão,
Nem fome pera o comer,
Se vem á mão.
E vinha ora bem descuidado
De topar mar nem marinha.
Avonda, espantalho honrado,
Ao morrer deixei o gado,
E o amo e quanto tinha.
Senão anda que te vas,
Enha mãe nega gritar,.
E chorar que chorarás.
Agora quero passar;
Perem não me levarás.
DURO.
Porque? PAS. Sois busaranha,
E mais féde-vo-lo bafo,
E jogatais de gadanha,
E tendes modão d'aranha,
E samicas sereis gafo.
DIA. Gafo eu? PAS. A bem;
Não hei d'ir per acajuso,
Emque me custe algorrem,
Chinfrão, ou meio vintém,
Ir dereito como o fuso
Pera alem.
262 LIVRO I.

DIABO.
Dize, rústico perdido,
Fizeste tu por saber
O Pater noster comprido?
PAS. E pera que era elle sabido?
DIA. Porque o havias de dizer.
PAS. A quem? DIA. A quem te creou.
PAS. Al tem elle que comer.
DIA. Não fizeste o que mandou.
PAS. Callae-vos, Senhor Jão Grou;
Ja sei quem m'ha de levar,
Sei quem sou.
Esta noite he dos pastores,
E tu, Decho, estás ein sêcco;
E salvão-se os peccadores
Criados de lavradores,
E tu estás coma peco.
DLV. Digo-te, pastor amigo,
Que foste gran peccador.
PAS. Senhor tartarugo, digo
Que inentis como bestigo,
Salvanor.
Falia em tua merencória,
E não falles em passar,
E conta lá outra história;
Porque em festa de tal glória,
Não has ninguém de levar.
Ronca, quês tu pôr comego
Algorrem pera beber,
Que vens de casta de pego,
E neto d'algum morcego?
Pardicas não pôde ai ser.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 263

DIABO.
Não estou "em meu poder,
Pera me vingar de ti.
PAS. Não podes nada fazer
Na noite que quiz nascer
Christo filho de Davi.
DIA. Quem te poz no coração
Fallares cousa tão boa?
Que tu não tens descrição.
PAS. E quem te deu a ti lição
De ser tão ruim pessoa?
ANJO.
Pastor, tu queres passar?
PAS. Este he melhor artezão.
ANJ. Folgarei de te levar,
Se te ajuda o bein obrai-,
Que as obras reinos são.
PAS. Enha mãe in'o bradará,
Que fica no sahiinento,
E o responso do inamento;
E tudo Sa Gil fará
Com bom tento.
ANJO.
Morreste tu bom christão?
PAS. Que sei eu que vós dizeis?
ANJ. Dize ora o krieleison,
Kirieleison, Christeleison.
PAS. O Pater noster quereis?
Ja eu soube hum quinhão delle.
No santo faceto andei ja,
E nunca ine dei por elle;
264 LIVRO I.

E a Ave Maria a par delle


Soube eu laja tempos ha.
E fui assi por ella andando
Nos intes vitus cajuso;
Alli andava eu sandejando,
E suacendo e cansando:
Então dei á treva o uso.
Assaz avonda ao pastor
Crer em Deos, e não furtar,
E fazer bem seu Iavor,
E dar graças ao Senhor,
E fugir de não peccar.
E crer na Igreja assi junta
Com paredes e telhados,
Aliceres e furados;
E não curar de pergunta,
E dar ó Demo os peccados.
Eu nunca matei, nem furtei,
Nega uvas algum'ora;
Nem nunca ínexeriquei,
Como lá se usa agora.
DIABO.
Vae, vae cantar a gamella:
Não andavas tu namorado
Perdido por Madanella?
PAS. E pois que lhe fiz a ella,
Para dizer que he peccado?
Hüa vez armei-lhe o pe
Na chacota em Villarinho,
E ainda pola abofé
Constança Annes, que viva he,
Me mettco naquelle alinho.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 265

DIABO.
Não na foste tu sperar,
Pera a damnares, villão,
E começou de bradar
Que a querias forçar?
PAS. O fideputa cabrão!
Quizera eu e ella não,
Porque a trédora fugio:
E s'isto assi foi, ladrão,
Que peccado se seguio,
Pois não houve concrusão?
Juro ao corpo verdadeiro
Que tu te podes gabar
Que casado nem solteiro,
Não anda tão vil barqueiro
Sôbolas águas do mar.
Soma, Anjo, eu nfenfestei:
Abrenuncio Satanaz!
ANJ. Faze o que f eu direi,
E depois embarcarás,
E eu mesmo te passarei.
Purga ao longo do rio
Em gran fogo, merecendo.
PAS. E quando parte o navio?
Senhor, se eu não tenho frio,
Pera que hei d'estar ardendo?
Vem hüa Pastora menina, e temendo a visão do ini-
migo que lhe appareceo na morte, diz:
MOÇA.
Jesu! Jesu! que he ora isto ?
Ave Maria! Ave Maria!
Qu'he do meu cão qifeu trazia?
266 LIVRO I.

Oh! chagas de Jesu Christo


Vão em minha companhia!
Eu sonho! — triste de mim!
Oh coitada, como treino!
Minha mãe, valei-me aqui,
Que quando de vós parti,
Não cuidei d'achar o Demo.
Mais angústia he o temor
Do imigo, que da morte:
Tomo a Deos por valedor.
Pois me cortas, e dás dor,
Ma mazela que te corte.
DIA. Muchacha, venhas embora.
Moç. Mas na negra, pois te vejo.
Oh! desapparece-me ora,
Que falleci ind'agora
Em mui perigoso ensejo.
Porque era moça e cuidei
Que da velhice gouvíra,
E com tal dor acabei,
Que de ini parte não sei,
Nem tenho ponta de sira.
Não sei quem m'ha d'ajudar,
Não sei quem m'ha de valer,
Não sei quem m'ha de passar,
Não sei se m'hão de matar
Outra vez, ou que ha de ser.
Tir'-te diante de mi,
Verei os anjos de Deos.
DIA. Entrae vós, filhinha, aqui.
Moç. Oh! caP-te: — triste de ini!
DIA. EU VOS levarei aos ceos;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 267

Entrae, minha Polixena;


Não temais nada, Senhora.
Moç. Arre lá! uxte, morena!
r

DIA. O minha Rainha Helena,


Entrae, e vamo-nos ora.
MOÇA.
, Cal'-te, cal'-te na ma ora!
Cuidas que m'has d'enganar,
Porque assi me ves pastora?
DIA. Entrae, minha matadora,
Pois que Deos vos quiz matar.
Moç. Não vedes vós o quebranto,
Que se quer pôr em feição!
DIA. Olhae, flores, não in'espanto
Que ine digais sete tanto:
Padeça meu coração,
O porvir e o presente.
Senhora, por concrusão,
Não quero de vós somente,
Senão dardes-me essa mão,
Se disso fordes contente:
E se m'eu gabar de vós,
Ma pezar veja êu de mi.
E iremos ambos sos
Onde estão vossos avós.
Ora entrae, ireis aqui.
MOÇA.
Jesu! Jesu! raiva na casta!
Cominendo ó Decho a amargura!
Mãe de Deos! como in'agasta!
Ma rabugem na tarasca,
Espezinhada, triste, escura!
268 LIVRO I.

ANJ. Leix'ó, pastora; vem ca.


DIA. Como estou hoje inofino,
E sem dita ieramá!
Mas algum dia virá
Qu'eu estarei mais fino.
MOÇA.
O anjos, minha alegria,
Vista de consolação!
Por virtude e cortezia,
Ensinae-me por que via
Passarei á salvação.
ANJ. Conhecias tu a Deos?
Moç. Muito bem, era redondo.
ANJ. Esse era o mesmo dos ceos.
Moç. Mais ai vinho qu'estes veos,
O vi eu vezes avondo.
Como o sino começava,
Logo deitava a correr.
ANJ. Que lhe dizias? Moç. Folgava,
E toda ine gloriava
Ein ouvir missa e o ver.
ANJ. Pastora, bom era isso.
DIA. Era a mor mexeriqueira
Golosa, que d'improviso,
Se não andavão sobre aviso,
Lá ia a cepa e a cepeira.
E mais quereis que vos diga?
He refalsada e mentirosa.
Moç. Era ainda rapariga.
DIA. Se tu foras minha amiga,
Eu me calara, tinhosa.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 269

MOÇA.
r

O anjos, levae-me ja,


Tirae-me deste ladrão.
ANJ. Não podes ainda ir lá.
Moç. Tão moça, hei de ficar ca ?
Não parece isso rezão.
ANJ. Vae ao longo desse mar,
Que he praia purgatoria;
E quando Deos o ordenar,
Nós te viremos passar
Da pena á eterna glória.
Vem hum. Menino de tenra idade, e diz:
MENINO.
Mãe, e o "coco está alli!
Quereis vós star quedo, quelle?
DIA. Passa, passa tu per hi.
MEN. E vós quereis dar em mi?
w

O demo que o trouxe elle!


DIA. Bé, mé. Filho da puta,
Vós estais muito garrido!
Tirar-vos-hão, Dom perdido,
Dos olhos a marmeluta.
MENINO.
Eu vos tomarei a vós
t

A porta de minha tia;


Entonces veremos nós
Os cães de vossos avós,
Qu'estavão na mancebia.
DIA. Bé. MEN. Mãe, s'elle quer-me comer!
E meu pae não vos dará?
DIA. Bé. MEN. Dona, se hVo eu disser
270 LIVRO I.

E ella matar-vos-ha:
Então ireis a morrer.
DIABO.
Ré. MEN. Aquelle, s'eu chamar
O nosso Joanne! DIA. Bé.
MEN. Não queres senão berrar?
DIA. Onde has d'ir, ou pera que?
MEN. Fica minha mãe chorando,
So porque in'eu vim de lá.
ANJ. Mas fica desvariando,
Que tu es do nosso bando,
E pera sempre será.
Fez-te Deos secretamente
A mais profunda mercê
Em idade de innocente:
Eu não sei se sabe a gente
A causa porqu'isto he.
Cantando, mettem os Anjos o Menino no balei, e entra
hum Taful, e diz o Diabo:
DIABO.
O meu sócio, ó meu amigo,
Meu bem e meu cabedal!
Vós, irmão, ireis comigo,
Que não temeste o perigo
Da viagem infernal.
TAF. Eis aqui flux d'hum metal.
DIA. Pois sabe que eu te ganhei.
TAF. Mostra se tens jogo tal.
DIA. TU perdes o enxoval.
TAF. Não he isto flux com rei.
DIABO.
Baralha o jogo e partamos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 271

TAF. Paga, qu'eu não jogo em vão.


DIA. Lá no frete descontamos;
Quer ganhemos, quer percamos,
Tudo nos fica na mão.
TAF. Muito me gasto eu aqui,
Que tu tens mui mao sembrante;
E pareces-me emfim
Por da ré muito ruim,
E malino por d'avante.
DIABO.
Mas tomemos a jogar,
Porque tenho saudade
De te ouvir arrenegar,
E descrer e brasfemar
Do mistério da Trindade.
TAF. Arainá, como tu fallas
Tão senhor desta alma minha!
DIA. Não sei como agora calas,
Renegando a soltas alas
De Deos e da ladainha.
Este dia e as oitavas,
Por paços, salas e cantos,
Oh quanta glória me davas,
Quando á hóstia blasfemavas,
E deshonravas os Sanctos!
TAF. Canf eu sempre ouvi dizer,
Quem bem renega, bem cre:
Isto vos faço eu saber;
E quando isto não valer,
Entraremos por mercê.
(Vai-se á Barca do Paraizo, c diz:)
Haverá ca piedade
272 LIVRO I.

D'hum homem tão carregado?


ANJ. Mas a infinda crueldade
Com que offendeste a inagestade,
Renegando seu estado?
TAF. Vede que estava occupado
Na gran perda que perdia.
ANJ. E Deos que culpa fhavia,
Taful mal-aventurado,
Sem valia?
Renegar tão feramente
Da Imperatriz dos Ceos!
O pranta de ma semente,
Arderás no fogo ardente,
Com toda a ira de Deos.
TAF. Ma nova he essa pera mi.
Se assi for como dizes,
Digo qu'eramá ca vim.
Porém esperae-me assi,
Fallarei tainalavez.
Deos não quiz hoje nascer
Por remir os peccadores?
ANJ. E pois que queres dizer?
Que so c'o seu padecer
Se sal vão renegadores?
TAF. A perneta ine forçou,
Que era senhora de mi.
DIA. Mente, qu'elle s'incrinou:
Nunca estrella renegou,
Nem tal ha hi.
Sempre jogava o fidalgo,
Bispo, escudeiro, ou que he.
COM. Mestiço de cão e galgo.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 273

ANJ. Tomae-o, dae-lhe de pé.


DIA, Nosso he.
TAF. Estae, iinigos! — Senhores,
Deste sancto nascimento
Não terei alguns favores?
ANJ. Tafues e renegadores
Não tem nenhum salvamento.

Sahem os Diabos do balei, e, com hüa cantiga muito


desacordada, levão o Ta fui; e os Anjos cantando levão
o Menino, e fenece esta segunda scena.

Vol. I, 18
F I G L R A S.

DIAHO — Arrais do Inferno.


ANJO — Arrais do Ceo.
MORTE.
COMPANHEIRO do.Diabo.
CONDE.
DUQUE.
REI.
IMPERADOR.
BISPO.
ARCEBISPO.
CARDEAL.
PAPA.
ANJOS.

Segue-se a terceira scena, que he endereçada á Em-


barcação da Gloria. Tractase per dignidades altas.
Foi representada ao muito nobre Rei D. Manuel, o pri-
meiro em Portugal deste nome, em Almeirim, era do Re-
demptor de 1519.
ALTO DA BARCA DA GLORIA.

Primeiramente entrão cinco Anjos cantando, e trazem


cinco remos com as cinco chagas, e entrão no seu balei.
Vem o Arrais do Inferno e diz ao seu Com-
panheiro :
DIABO.
Patudo, vé muy saltando,
Llámaine Ia Muerte acá;
Díle que ando navegando,
Y que Ia estoy «esperando,
Que luego vuelverá.
Vem a Morte.
MOR. Qué me quieres?
DIA. Que me digas porquê eres
Tanto de los pobrecitos?
Bajos hombres y mugeres,
Destos matas cuantos quieres,
Y tardan grandes y ricos.
En ei viage primero
Me enviaste oficiales:
No fue mas que un caballero,
Y lo ai, pueblo grosero.
Dejaste los principales
Y villanage
En ei segundo viage,
Siendo mi barco ensecado.
18*
276 LIVRO I.

Á pesar de mi linage,
Los grandes de alto estado
Como tarda n en ini passage!
MORTE.
Tienen mas guaridas csos,
Que lagartos de arenal.
DIA. De carne son y de huesos;
Vengan, vengan, que son nuesos,
Nuestro derecho real.
MOR. Ya lo hiciera,
Su deuda paga me fuera;
Mas ei tieinpo le da Dios,
Y preces le dan espera:
Pero deuda es verdadera,
Y los porné ante vos.
Voyme allá de soticapa
Á ini estrada seguida,
Verás como no me escapa
Desde ei Conde hasta ei Papa.
DIA. Haced prestes Ia partida
En buenora.
COM. Pues ei conde que vendrá ora,
Irá echado, ó de qué suerte?
ANJ. O Virgen nuestra Senora,
Sed vos su socorredora
En Ia hora de Ia inuerte.
Vem a Morte, e traz o Conde, e diz:
MORTE.
Senor Conde prosperado,
Sobre todos mas ufano,
Ya pasastes por ini vado.
CON. O Muerte! cuan trabajado
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 277

Salgo triste de tu mano!


MOR. NO fue nada;
lia peligrosa pasada
Desta muy bonda ribera
Es mas fuerte y trabajada,
Mas terrible en gran manera.
Ved, Senor, si traeis flete
Para aquel barco dei cielo.
CON. Allí iria yo por grumete.
MOR. Primero os sudará ei topete.
CON. Tú no das nunca consuelo.
O Muerte escura,
Pues me diste sepultura,
No me des nuevas de mi.
Ya hundiste Ia figura
De ini <;arne sin ventura,
Tirana, déjame aqui.
MORTE.
Hablad con ese barquero,
Que yo voy hacer ini officio.
DIA. Senor Conde y caballero,
Dias ha que os espero,
Y estoy á vueso servido:
Todavia
Entre Vuesa Senoría,
Que bien larga está Ia plancha,
Y partamos con de dia:
Cantaremos á porfía
"Los hijos de Dona Sancha."
CONDE.
Ha niucho que eres barquero?
DIA. DOS mil anos ha y mas^
278 LIVRO I.

Y no paso por dinero.


Entrad, Senor pasagero.
CON. Nunca tú me pasarás.
DIA. Y pues quién?
Mirad, Senor, por iten
Os tengo acá en mi rol,
Y hábeis de pasar allen.
Veis aquellos fuegos bien?
AUí se coge Ia frol.
Veis aquel gran fumo espeso,
Que sale daquellas penas?
AUí perdereis ei vueso,
Y mas, Senor, os confieso
Que hábeis de inensar las grenas.
CON. Grande es Dios.
DIA. A eso os ateneis vos,
Gosando ufano Ia vida
Con vicios de dos en dos,
Sin haber miedo de Dios,
Ni temor de Ia partida?
CONDE.
Tengo muy firme esperanza,
Y tuve dendê Ia cuna,
Y fe sin tener mudanza.
DIA. Sin obras Ia confiança
Hace acá mu cha fortuna!
Suso, andemos;
Entrad, Senor, no tardemos.
CON. Voyme á estotra embarcacion.
DIA. Id, que nos esperaremos.
CON. O muy preciosos reinos,
Socorrcd mi aflicion.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 279

L i ç ã o .
O parce mihi, Dios mio,
Quia níhil son mis dias:
Porque ensalza tu poderio
Al hombre, y das senorío,
Y luego dei te desvias?
Con favor
Visitas eum ai alvor,
Y súpito Io pruevas luego:
Porquê consientes, Senor,
Que tu obra, y tu hechor,
Sea deshecha nel fuego?
Ayudadme, remadores,
De Ias altas hierarquias,
Favoreced mis temores,
Pues sabeis cuantos dolores
Por mi sufrió ei Mesías.
Sabed cierto
Como fue preso en ei huerto,
Y escupida su hermosura,
Y dendê allí fue, inedio inuerto,
Llevado muy sin concierlo
Al juiçio, sin ventura.
DIABO.
Ahora se os acordo?
El asno muerto cevada.
De vos bien seguro esto:
Pensareis que no sé yo
La vuesa vida pasada?
CON. YO te requiero.
DIA. Vos, Senor Conde agorero,
Fuisteis á Dios perezoso,
280 LIVRO I.

A lo vano inuy ligero,


Á las hembras placentero,
A los pobres riguroso.
Viva Vuesa Senoría
Para sieinpre con querella.
CON. O gloriosa Maria!
DIA. Nunca un hora ni dia
Os vi dar paso por ella.
Vem a Morte, e traz hum Duque, e diz
MORTE.
Vos Senor
Duque de grande prünor,
Pensasteis de me escapar?
Dug. O anima pecador,
Con fortisimo dolor,
Sales de flaco lugar!
Como quedas, cuerpo triste?
Damo nuevas, que es de ti.
Siempre en guerra ine trajiste,
Con dolor me despediste,
Sin haber dolor de mi.
Tu hechura,
Que llainaban hermosura,
Y tú ínisma Ia adorabas,
Con su color y blancura, v
Siempre vi tu sepultura,
Y nunca crédito me dabas.
DIABO.
O mi Duque y mi castillo,
Mi alma desesperada,
Sieinpre fuisteis amarillo,
Hecho oro de martillo;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 281

Esta es vuesa posada.


DUQ. Cortesia.
DIA. Entre Vuesa Senoría,
Senor Duque, y remarás.
DUQ. Hace mucha maresía:
Eslotra barca es Ia mia,
Y tú no ine pasarás. _
DIABO.
Veis aquella puente ardiendo,
Muy lejos allén dei mar,
Y unas ruedas volviendo
De navajas, y heriendo?
Pues allí hábeis de andar
Sieinpre jamas.
DUQ. Retro vaya Satanás!
DIA. Lucifer que me acreciente!
Senor Duque, allá irás,
Que Ia hiel se te reviente.
L i ç ã o .
DUQUE.
Manus fuce, Domine,
Fecerunt me, y ine criaste,
Et plasmaverunt me;
Decídme, Senor, porquê
Tan presto me derrocaste
De cabeza?
Ruégote que no escaeza
Quod sicut lutam me heciste,
No permitas que perezca;
Y si quieres que padezca,
Para qué ine redüniste?
Pel v carne ine vestiste,
282 LIVRO I.

Ossibus, nervis et vita,


Misericórdia atribuiste
Al hombre que tú heciste;
Pues ahora me visita.
DIA. Ralear,
Que os tengo de llevar
A los tormentos que visteis;
Por demás os es resar,
Que lo mio me han de dar,
Y vos mismo á mi os disteis.
DUQUE.
O llaga daquel costado
De Ia pasion dolorosa
De ini Dios crucificado,
Redimid ai desterrado
De su pátria gloriosa.
Embarquemos,
Porque vuestros son los reinos,
Nuestro es ei capitan.
DIA. ESO está en velohemos.
DUQ. O ángeles, qué haremos,
Que no nos deja Satan?
ANJO,
Son las leis divinales
Tan fundadas en derecho,
Tan primas y tan iguales,
Que Dios os quiere, mortales,
Remediar v.ueso hecho.
DIA. Remadores,
Enviadme eses Senores,
Que se tardan mucho allá.
DUQ. En vano hubo dolores
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 283

Christo por los pecadores?


Muy iinposible será.
Pues es cierto que por nos
Fue llevado ante Piato,
Y acusado, siendo Dios;
(Senores, no penseis vos
Que le costainos barato)
Y azotado
Su cuerpo tan delicado,
Solo de virgen nacido,
Sin padre humano engendrado;
Y despues fue coronado,
Y de su corona herido.
Vem a Morte, e traz hum Rei, e diz o
REI.
Cuanto dolor se me ayunta!
MOR. Senor, qué es de vuesa alteza ?
REI. Oh rigurosa pergunta!
Pues ine Ia tienes defunta,
No resuscites tristeza.
Oh ventura,
Fortuna perversa escura!
Pues vida desaparece,
Y Ia inuerte es de tristura,
Adonde estás, gloria segura?
Cual dichoso te merece?
DIABO.
Senor, quiero cambiar,
Vuesa Alteza ha de partir.
REI. Y por mar he de pasar?
DIA. Si, y aun tiene que sudar;
Ca no fue nada ei inorir.
284 LIVRO I.

Pasinareis:
Si mirais, dahi vereis
Adó sereis morador
Naquellos fuegos que veis;
Y llorando, cantareis
"Nunca fue pena mayor."
L i ç ã o .
REI.
Teedet anima mea
Vitai meai muy dolorida,
Pues Ia gloria que desea
.Me quita que no Ia vea
La muy pecadora vida
Que pasé.
Loquar in amaritudine
Palabras muy dolorosas;
De mi alma hablaré
A mi Dios, y le diré,
Con lagrimas piadosas:
Noli me condemnare,
Judica mihi, porque
No me dejas quien me ampare:
Si ai infierno bajare,
Tuyo so, cuyo seré?
Ay de mi!
Cur me judices ansí?
Pues de nada me heciste,
Mándame pasar daqui:
Ampárame, fili Davi,
Que dei cielo descendiste.
Responso.
O mi Dios, ne recorderis
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 285

Peccata mea, te ruego,


Naquel tiempo dum veneris,
Cuando ei siglo destruieres,
Con tu gran sana, per fuego.
Dirige a mi
Vias meas para ti,
Que aparezca en tu presencia.
DIA. Vuesa Alteza vendrá aqui,
Porque nunca acá senti
Que aprovechase adherencia.
Ni lisonjas, crer mentiras,
Ni voluntário apetito,
Ni puertos, ni algeciras,
Ni diamanes, ni zafiras,
Sino solo aquese esprito
Será asado:
Porque fuisteís adorado
Sin pensar serdes de tierra;
Con los grandes alterado,
De los chicos descuidado,
Fulminando injusta guerra.
(Vai-se o Rei ú barca dos Anjos.)
REI.
O reinos de gran valor!
O Uagas por nos habidas!
ANJ. Plega á vuestro Redentor,
Nuestro Dios y criador,
Que os dé segundas vidas;
Porque es tal
La morada divinal,
Y de gloria tanto alta,
Que ei ânimo humanai,
286 LIVRO I.

Si no viene oro tal


En ella, nunca se esmalta.
REI.
Buen Jesu, que apareciste
Todo en sangre bafiado,
Y á Pilato oyiste,
Mostrándote ao pueblo triste,
— Eis ei hombre castigado!
Y reclamaron,
Y con Ia cruz te cargaron,
Por todos los pecadores:
Pues por nos te flagelaron,
Y á Ia muerte te allegaron,
Esfuerza nuestros temores.
Vem a Morte e traz hum Imperador, e diz a
MORTE.
Prosperado Emperador,
Vuesa sacra Magestad
No era bien sabedor
Cuan fortísimo dolor
Es acabar Ia edad?
Y mas vos,
Quasi tenido por dios.
IMP. O Muerte, no mas heridas!
MOR. Pues olra mas recia tos
Es esta. IMP. Sed libera nos
De jornadas doloridas.
Adonde me traes, Muerte?
Quê te hice triste yo?
MOR. Yo voy hacer otra suerte;
Vos, Senor, hacéos fuerte,
Que vana gloria os mato.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 287

IMP. Cuan estraiíos


Males das, vida de enganos,
Corta, ciega, triste, amara!
Contigo dejo los anos,
Entregásteme mis danos
Y volvísteme Ia cara.
Mi triunfo allá te queda,
Mis culpas trayo conmigo;
Deshecha tengo Ia rueda
De las pluinas de oro y seda
Delante ini enemigo.
DIA. E S verdad,
Vuesa sacra Magestad,
Entrará neste navio
De muy buena voluniad;
Porque usastes crueldad
Y infinito des vario.
IMPERADOR.
O maldito querubin!
Ansí como descendiste
De ángel á beleguin,
Querrias hacer á mi
Lo que á ti inisino hiciste?
DIA. Pues yo creo,
Á segun yo vi é veo,
Que de lindo einperador
Hábeis de volver muy feo.
IMP. NO hará Dios tu deseo.
DIA. Ni ei vuestro, ini Senor.
Veis aquellos despefiados,
Que echan daquellas alturas?
Son los mas altos estados
288 LIVRO I.

Que vivieron adorados,


Sus hechos y sus figuras;
Y no dieron,
En los dias que vivieron,
Castigo á los ufanos,
Que los pequenos royeron,
Y por su mal consintieron
Cuanto quisieron tiranos.
L i ç a
IMPERADOR.
Quis mihi hoc tribuat
Ut in inferno protegas me?
Con mi flaca humanidad,
De tu ira y gravedad
Adonde me esconderé?
O Senor,
Pase breve tu terror;
A mis culpas da pasada.
Vocabis me pecador,
Responderte hei con dolor
De mi anima turbada.
Responso.
O libera me, Domine,
De muerte, eterna contienda:
En ti sieinpre tuve fe,
Tú me pone juxta te,
In die illa tremenda.
Quando cwli
Sunt movendi contra mi,
Y las sierras y montaiías,
Por Ia bondad que es en li,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 289

Que te acuerdes que nací


De pecadoras entranas.
Vai-se o Imperador aos Anjos, e diz o Diabo:
DIABO.
Allá vais? acá verneis,
Que acá os tengo escrito.
Por mais que me receleis,
Vos y los otros ireis
Para ei infierno bendito.
IMP. NO he temor;
Piadoso es ei Senor.
Dios os salve, remadores!
ANJ. Bien vengais, Emperador.
IMP. Angélico resplandor,
Considerad nuestros dolores.
Adóroos, llagas preciosas,
Remos dei mar mas profundo!
O insígnias piadosas
De las manos gloriosas,
Las que pintaron ei mundo;
Y otras dos
De los pies, reinos por nos,
De Ia parte de Ia tierra!
Esos reinos vos dió Dios
Para que nos libreis vos,
Y paseis de tanta guerra.
ANJO.
No podemos mas hacer
Que desear vuestro bien,
Vuestro bien, nuestro placer:
Nuestro placer es querer
Que no se pierda alguien.
1 9
Vol. I.
290 LIVRO 1.

DIA. Qué pide allá?


Tuvo ei paraíso acullá,
No le falta sino pena;
La pena prestes está.
IMP. La pasion me librará
De tu infernal cadena.
Vivo es ei esforzado
Gran capitan por natura,
Que por nos fue tan cargado
Con Ia cruz en ei costado
Por Ia calle de amargura;
Y pregones
Denunciando las pasiones
De su muerte tan cercana;
Y llevada con sayones
Al monte de los ladrones
La magestad soberana.
Vem a Morte, e traz hum Bispo, e diz o
BISPO.
Muy crueles vocês dan
Los gusanos cuantos son,
Adó mis carnes estan,
Sobre cuales comeran
Primero ini corazon.
MOR. NO cureis,
Senor Obispo; hecho es:
A todos hago esa guerra.
Bis. O mis manos y mis pies,
Cuán sin consuelo estares,
Y cuán presto sereis tierra!
DIABO.
Pues que venís tan cansado,
DAS OBRAS DE DEVACÃO. 291

Verneis aqui descansar,


Porque ireis bien asentado.
Bis. Barquero tan desastrado
No ha obispos de pasar.
DIA. Sin porfía:
Entre Vuesa Senoría,
Que este batei infernal
Ganaste por fantasia,
Halcones de abanaria,
Y cosas deste metal.
De ahí donde estais vereis
Unas calderas de pez,
Adonde os cocereis,
Y Ia corona asareis,
Y freireis Ia vejez.
Obispo honrado,
Porque fuiste desposado
Sieinpre desde juventud,
De vuestros hijos amado,
Santo bienaventurado,
Tal sea vuestra salud.
L i ç ã o .
BISPO.
Responde míhi cuantas son
Mis maldades y pecados,
Veremos si tu pasion
Bastará á mi redencion,
Aun que mil veces doblados.
Pues me heciste,
Cur fadem tuam escondiste,
Y niegas lu piedad
Al anima que redimiste?
19*
292 LIVRO I.

Contra folium escribiste


Amargura y crueldad.
Responso.
Memento mei, Deus Senor,
Quia ventus est vita mea;
Memento mei, redentor,
Envia esfuerzo ai temor
De mi alma dolorida.
Ay de mi!
De profundis clamavi,
Exaudi ini oraeion.
DIA. Obispo, paréceme á mi
Que hábeis de volver aqui
A esta santa embarcacion.
(Vai-se o Bispo aos Anjos e diz • )
BISPO.
O reinos inaravillosos,
O barca nueva segura,
Socorro de los llorosos;
O barqueros gloriosos,
En vos está Ia ventura.
He dejado
Mi triste cuerpo cuitado
Del vano inundo partido,
De todas fuerzas robado,
Del alma desamparado,
Con dolores despedido.
Bien basta fortuna tanta;
Pasadme esta alma por Dios,
Porque ei infierno me espanta.
ANJ. Si ella no viene santa,
Gran tormenta correis vos.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 293

Bis. Yo confio
En Jesu Redentor mio,
Que por mi se desnudo,
Puestas sus llagas ai frio;
Se clavo naquel navio
De Ia cruz donde espiró.
Vem a Morte e traz hum Arcebispo, e diz a
MORTE.
Senor Arzobispo amigo.
Que os parece de ini?
Bien peleaste comnigo.
Anc. No puede nadie contigo,
E yo nunca te temi.
O muerte amara!
I*a vida nos cuesta cara,
El nacer no es provecho.
MOR. Voy hacer otra eeara.
ARC O facciones de mi cara!
O ini cuerpo tierra hecho!
Qué aprovecha en ei vivir
Trabajar por descansar?
Qué se monta en presumir?
De qué sirve en ei morir
Candeia para cegar?
Ni placer
En ei mundo por vencer
Estado de alta suerte,
Pues presto deja de ser?
Nos morimos por lo haber,
Y es todo de Ia muerte.
DIABO.
LO que da, es lo seguro.
294 LIVRO I.

Senor, venga acá ese esprito.


ARC Oh qué barco tan escuro!
DIA. En él ireis, yo os lo juro.
ARC Como me espantas, maldito,
Indiablado!
DIA. VOS, Arzobispo alterado,
Teneis acá que sudar:
Moristes muy desatado,
Y en vida ahogado
Con deseos de papar.
Quien anduvo á puja larga
Anda acá por Ia bolina:
Lo mas dulce acá se amarga,
Vos caisteis con Ia carga
De Ia iglesia divina.
Los ínenguados,
Pobres y desamparados,
Cuyos dineros lograsteis,
Deseosos, hambreados,
Y los dineros cerrados,
En abierto los dejasteis.
ARCEBISPO.
Eso y mas puedes decir.
DIA. Ora pues, alto, embarcar.
ARC No tengo contigo de ir.
DIA. Senor, hábeis de venir
A poblar nuestro lugar:
Véislo está.
Vuestra Senoría irá
En cien mil pedazos hecho;
Y para sieinpre estará
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 295

En água que herverá,


Y nunca sereis deshecho.
L i ç ã o .
ARCEBISPO.
Spiritus meus, tu hechura,
Atteniiabitur; mis dias
Breviabuntur, y tristura
Me sobra, y Ia sepultura:
No sé porque me hacias.
Non peccavi,
Putredine mea dixi,
Padre y madre mia eres,
Vermibus soror et amici;
Quare fuisti me inimici,
Senor de todos poderes?
Responso.
Credo quod Redemptor
Meus vivit, y Io veré.
DIA. Vereis, por vuestro dolor.
ARC Mas porque es mi salvador,
Yo en él ine salvaré.
Dios verdadero
En ei dia postrbnero
De terra surrecturus sum,
Et in carne mea entero
Videbo Deum cordero,
Christum salvatorem meum.
(Vai-se o Arcebispo aos Anjos, e diz:)
ARCEBISPO.
Dadnos alguna esperanza,
Barquero dei mar dei cielo:
Por Ia llaga de Ia lanza,
296 LIVRO I.

Que nos paseis con bonanza


¥

A Ia tierra de consuelo.
ANJ. Es fuerte cosa
Entrar en barca gloriosa.
ARC Reina que ai cielo subiste,
Sobre los coros lustrosa,
Del que te crio esposa,
Y tú virgen lo pariste;
Pues que súpita dolor
Por San Juan recibiste,
Con nuevas dei Redentor,
Y, mudado lo color,
Muerta en tierra descendiste;
Oh despierta,
Pues es dei cielo puerta!
Levántate, cerrada huerta;
Con tu hijo nos concierta,
Madre de consolacion;
Mira nuestra redencion,
Que Satan Ia desconcierta.
Vem a Morte com hum Cardeal, e diz a
MORTE.
Vos, Cardenal, perdonad,
Que no pude mas ama.
CAR. O guia de escuridad,
Robadora de Ia edad,
Ligera ave de rapina!
Qué ínudanza
Hizo mi triste esperanza!
Fortuna, que me ayudaba,
Peso en mortal balanza
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 297

La firmeza y confianza
Que ei falso mundo me daba.
DIABO.
Domine Cardinalis,
Entre vuestra Preeminencia,
Ireis ver vuessos iguales
A las penas infernales,
Haciendo su penitencia:
Pues moristeis
Llorando porque no fuisteis
Siquiera dos dias papa,
Y á Dios no agradecisteis,
Viendo cuan bajo os visteis,
Y en despues os dió tal capa.
Y no quiero declarar
Cosas mas para decir:
Determinad de embarcar,
Y luego sin dilatar,
Que no teneis que argüir.
Sois perdido:
Oyes aquel gran ruido
Nel lago de los leones?
Despertai! bien ei oido:
Vos sereis allí comido
De canes y de dragones.
L i ç ã o .
CARDEAL.
Todo hoinbre que es nacido
De inuger, tien breve vida;
Que cuasi fios es salido,
Y luego presto abatido,
Y su alma perseguida.
298 LIVRO I.

Y no pensamos,
Cuando Ia vida gozamos,
Como delia nos partimos;
Y como sombra pasamos,
Y en dolores acabamos,
Porque en dolores nacimos.
Responso.
Peccantem me quotidie,
Et non me paynitentem Ctriste!)
Sancte Deus, adjuva me;
Pues fue christiana mi fe,
Succurre dolores, Christe,
O Dios eterno,
Senor, quia in inferno
Nulla est redemptio,
O poderio sempiterno,
Remedia mi mal moderno,
Que no sé por donde vo.
(Vai-se o Cardeal ao batei dos Anjos, e diz o)
DIABO.
Váiste, Senor Cardenal?
Vuelta, vuelta á los Francezes.
CAR. Déjame, plaga infernal.
DIA. VOS visteis por vueso mal
Los anos, dias y meses.
CAR. Marineros,
Remadores verdaderos,
Llagas, reinos, caravela,
Embarcad los pasageros,
Que vos sois nuestros remeros,
Y Ia piedad Ia vela.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 299

ANJO.
Socoréos, Cardinal,
A Ia madre dei Senor.
CAR. 0 Reina celestial,
Abogada general
Delante dei Redentor;
Por ei dia,
Senora Virgen Maria,
En que Io viste llevar
Tal que no se conocia,
Y vuesa vida inoria,
Nos queirais resucitar.
Vem a Morte e traz hum Papa, e diz a
MORTE.
Vos, Padre sancto, pensasteis
Ser iminortal? Tal os vísteis,
Nunca me considerasteis,
Tanto en vos os enlevasteis,
Que nunca me conocisteis.
PAP. Ya venciste,
Mi poder me destrüiste
Con dolor descompasado.
O Eva! porque pariste
Esta Muerte amara y triste
Al pié dei arbol vedado?
Estais viva, y has parido
A todos tus hijos muertos;
Y mataste á tu marido,
Poniendo á Dios en olvido
En ei huerto de los huertos.
Véisuie aqui
Muy triste, porque naci,
300 LIVRO I.

Del mundo y vida quejoso.


Mi alto estado perdi,
Veo ei diablo ante ini,
Y no cierto ei mi reposo.
DIABO.
Venga Vuesa Santidad
En buenora, Padre Santo,
Beatísima magestad
De tan alta dignidad,
Que moriste de quebranto.
Vos ireis,
En este batei que veis,
Conmigo a Lucifer;
Y Ia mitra quitareis,
Y los pies le besareis;.
Y esto luego ha de ser.
PAPA.
Sabes tú que soy sagrado
Vicario en ei santo templo?
DIA. Cuanto mas de alto estado,
Tanto mas es obligado
Dar á todos buen ejemplo,
Y ser llano,
w

A todos manso y humano.


Cuanto mas ser de corona,
Antes muerto que tirano,
Antes pobre que mundano,
Como fue vuestra persona.
Lujuria os deSconsagró,
Soberbia os hizo dano;
Y lo mas que os condanó,
Shnonía con engano.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 301

Venid embarcar.
Veis aquellos azotar
Con vergas de hierro ardiendo,
Y despues atanazar?
Pues allí hábeis de andar
Para siempre padeciendo.
L i ç ã o .
PAPA.
Quare de vulvu me eduxisti
Mi cuerpo y alma, Senor?
En tu silla me subisíe,
En tu lugar ine pusiste,
Y me heciste tu pastor:
Mejor fuera
Que dei vientre no saliera,
Y antes no hubiera sido,
Ni ojo de hombre me viera,
Y como fuego á Ia cera
Me hubieras consumido.
Responso.
Heu mihi! heu mihi! Senor,
Quia peccavi nimis in vita:
Quid fadam, miser pecador?
Ubi fugiam, malhechor?
O piedad infinita,
Para ti.
Amercéate de mi,
Que para siempre no llore:
Mándame pasar daqui,
Que nel infierno no ha hi
Quien te loe ni te adore.
302 LIVRO I.

DIABO.
Que me penan esos puntos,
Despues que pasa ei vivir!
Mirad, Senores difuntos,
Todos cuantos estais juntos
Para ei infierno hábeis de ir.
ANJ. O Pastor,
Porque fuiste guiador
De toda Ia Christandad,
Habemos de ti dolor:
Plega a Jesu Salvador
Que te envie piedad.
PAPA.
O gloriosa Maria,
Por las lágrimas sin cuento
Que lloraste en aquel dia
Que tu hijo padecia,
Que nos libres de tormento,
Sin tardar;
Por aquel dolor sin par,
Cuando en tus brazos lo viste,
No le pudiendo hablar,
Y lo viste sepultar,
Y sin él, dél te partiste.
ANJO.
Vuestras preces y clamores,
Amigos, no son oidas:
Pésanos tales senores
Iren á aquellos ardores
r

Animas tan escog-idas.


Desferir;
Ordenemos de partir:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 303

Desferir, bota batei:


Vosotros no podeis ir,
Que en los yerros dei vivir
No os acordasteis dél.
Nota que neste passo os Anjos desferem a vela em que
está o crucifixo pintado, e todos assentados de joelhos, lhe
dizem cada hum sua oração. Primeiro começa o Papa,
dizendo:
PAPA.
0 Pastor crucificado,
Como dejas tus ovejas,
Y tu tan caro ganado!
Y pues tanto te ha costado,
Inclina á él tus orejas.
IMP. Redentor,
Echa ei âncora, Senor,
En ei hondon ilesa mar:
De divino criador,
De humano redentor,
No te quieras alargar.
REI.
O Capitan General
Vencedor de nuestra guerra;
Pues por nos fuiste mortal,
No consientas tanto mal;
Manda remar para tierra.
CAR. No quedemos;
Manda que metan los remos,
Hace Ia barca mas ancha.
O Senor, que perecemos!
O Senor, que nos tememos!
Mándanos poner Ia prancha.
304 LIVRO I.

DUQUE.
0 Cordero delicado,
Pues por nos estás herido,
Muerto y tan atormentado;
Cóino te vas alongado
De nuestro bien prometido?
ARC Fili Davi,
Como te partes daqui?
Al infierno nos envias?
La piedad que es en ti,
Cóino Ia niegas ansí?
Porque nos dejas, Mesías?
CONDE.
O Cordero divinal,
Médico do nuestro dano,
Viva fuente perenal,
Nuesa carne natural;
No permitas tanto dano.
Bis. O flor divina,
In adjuvandum me festina,
Y no te vayas sin nos;
Tu clemência á nos inclina,
Sácanos de foz malina,
Benigno hijo de Dios.
Não fazendo os Anjos menção destas preces, começarão
a botar o batei ás varas, e as Almas fizerão em roda hüa
musica a modo de pranto, com grandes admirações de dor;
e veio Christo da resurreição, e repartio por elles os remos
das chagas, e os levou comsigo.
F I G L R A S.
PRÓLOGO.
ANJO.

LUCIFER — Maioral do MORTE.


Inferno. ABEL.
BELIAL — Meirinho da JOB.
sua corte. ABRAHÃO.
SATANAZ —Fidalgo do MOISÉS.
seu Conselho. DAVID.
ANJO. ISAIAS.
MUNDO. BELZEBU.
TEMPO — Seu Veador. S. JOÃO.
EVA. JESU CHRISTO.
ADÃO.

O auto que se segue he intihdado Breve Summario


da historia de Deos. Foi representado ao muito alto e
mui poderoso Rei Dom João, o terceiro deste nome em Por-
tugal, e á Sereníssima e muito esclarecida Rainha Dona
Catherina, em Almeirim, na era do Senhor de 1527-

Vol. I. 20
ALTO DA HISTORIA DE DEOS.

Entra hum Anjo, e a modo de argumento diz o se-


guinte introito.
ANJO.
Ainda que todalas cousas passadas
Sejão notórias a Vossas Altezas,
A história de Deos tem taes profundezas,
Que nunca se perde em ser recontadas.
E porque o tenor
Da resurreição de nosso Senhor
Tem as raizes naquelle pomar,
Ao pé d'aquella árvore que ouvistes contar,
Aonde Adão se fez peccador,
Convém se lembrar.
Portanto o exordio do auto presente
Começa iractando desta creação,
E como Lucifer tomou gran paixão
De Deos crear mundo tão resplandecente.
E assi a inveja
E a sua malícia d'inveja sobeja
Por ver nossos padres assi nobrecidos,
Feitos gloriosos, tão esclarecidos,
Que não pelos olhos lhe armarão peleja,
Mas pelos ouvidos.
Entrará primeiro o muito soberbo
Lucifer, anjo que foi dos maiores,
E Belial e Satanaz, senhores
DAS OBBAS DE DEVAÇÃO. 307

De muita maldade de verbo a verbo.


Agora vereis
O que por diversos doctores lereis
Wab initio mundi até á resurreição;
A qual se endereça a final tenção
Dos versos seguintes. Não vos enfadeis,
Que breves serão.

Entra Lucifer. o Maior ai do Inferno, e com elle


Belial, Meirinho da sua corte, e Satanaz, Fidalgo do
seu Conselho; e depois de assentado diz
LUCIFER.
Venho herege do mundo que fez
O Deos lá de cima tão longo e tão passo,
Feito de nada por tanto compasso,
Tal que pasmado fico eu desta vez.
BEL. Mais he d'espantar
Do homem e mulher que fez no pomar.
Luc. Isso queria eu agora dizer;
Porque daquelles podem proceder
Tantos espritos, que possão ganhar
O que fomos perder.
Hajamos conselho sobre esta façanha,
Que Deos não nos ha de leixar acuar:
Todo seu feito he fazer-nos pesar,
Alem de deitar-nos de sua companha.
BEL. Assi me parece.
SAT. De Adão e Eva que mal nos recrece?
BEL. Dar Deos a elles o que nos tomou.
SAT. Dar Deos a elles o que nos tomou?
BEL. Não cuides tu ai; que este he o alicesse
Em que se fundou.
20*
308 HVRO I.

SATANAZ.
Pois que remédio? que este mal he muito!
Luc Deos lhe mandou mandado mui forte,
Sob pena de dores, trabalhos e morte,
Que não lhe tocassem em hum certo fruito,
Fruito da sciencia;
Porque perderão sua innocencia,
Angélica em parte, subtil e immortal,
E a posição do paraizo terreal:
Isto em peccando, á primeira audiência
Sentença final.
Vae tu, Satanaz, por embaixador,
Eu te dou meu comprido poder;
E vae-te a Eva, porque he mulher,
E dize que coma, não haja temor:
E, como avisado,
Lhe falia cortez e mui repousado,
Mostrando-te alegre com todo seu bem,
E seu muito amigo maior que ninguém:
Minte-lhe largo, e dá-lhe o cuidado
Que agora não tem.
Vem tomar graça, pois has de pregar
Á mais avisada senhora do mundo:
Eu te outorgo meu poder facundo.
Não hajas dó delia, faze-a finar,
Destrue-la asinha;
Nem por formosa, nem por ser rainha,
Não olhes por nada, aperta com ella:
Que como a venceres, sem ti, mesma ella
Fará ao marido cobrir-se de tinha,
E muito mais qu'ella.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 309

SATANAZ.
Em que figura lhe fallarei bem?
Luc Faze-te cobra, por dissimular,
Porque pareças do mesmo pomar,
Que sabes das fructas as graças que tem;
Porque has de dizer:
Senhora fermosa, deveis de saber
Que aquella fructa que vos foi vedada
Oh! quanta sciencia em si tem cerrada.
SAT. Ja vos entendo, não falleis mais nada;
Leixae-me fazer.
Partido o tentador Satanaz, Belial anojado de inveja
porque Lucifer o não mandou a elle, diz:
BELIAL.
Crede hüa cousa, Senhor Lucifer,
Que não ha hi pena que seja igual
Aquella que sente o grande official,
Quando ninguém lhe dá que fazer.
Eu sou dos primeiros -
E o vosso leal entre os cavalleiros,
E mais sou Meirinho desta vossa corte.
Vós não fazeis guerra em que eu faça sorte,
E sendo meirinho sem prisioneiros
Me pesa de morte.
E foste mandar Satanaz agora
Com todo poder de vosso vigor,
Accrescentado por embaixador,
Ao novo Senhor e nova Senhora,
Porém a mim não.
Se lá me mandáras, me houvera por cão,
Se não os fizera per força peccar:
' Logo per força os fizera tragar
310 LIVRO I.

Quantas maçans naquella árvore estão,


Sem as mastigar.
LUCIFER.
Onde força ha perdemos direito;
Que o fino peccado ha de ser de vontade,
Formando desprezo contra a Magestade;
E não serão nossos, se for d'outro geito.
E porque he errar
Mandar o soberbo a negociar
Cousas que hão de ser feitas per manha,
Não te mandei: que a fúria não ganha;
Mas doces palavras e dissimular
Faz toda a façanha.
Satanaz sei que os fará peccar
Per suas vontades, segundo he manhoso
E mui lisongeiro, e falia mimoso,
E sabe mentir com graça e com ar.
E se elle acabasse,
Convém a saber, que ine derribasse
Aquelles monarchas do mundo primeiros,
Tu terias somma de prisioneiros,
Meu fogo também em que se occupasse,
E meus cozinheiros.
Vem o tentador Satanaz com muita alegria porque
leixa acabado seu negócio, e diz:
SATANAZ.
Senhor Lucifer, prazer hi não ha
Que dê pelos pés ao do vencimento:
Alegrae-vos muito e o nosso convento,
Que vosso desejo cumprido está.
Ja são derrubados
Adão e Eva os primeiros casados,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 311

Voltas as vodas em pranto mui forte,


0 gozo em lagrimas, a alegria em morte,
A vida em suspiros, prazer em cuidado,
Ventura sem sorte.
He ja convertida esperança em temores,
Em pena também a seguridade,
Repouso em favor, e a liberdade
Deixo-a captiva em vivas dolores;
E o paraizo
Lhe fica bem longe do seu pouco siso,
E he pera rir de seu desatino:
Porque o fruito era pequenino,
E pera fazerem tal regno diviso
Não era tão fino.
Porém crede vós que são destruídas
Duas creaturas mui maravilhosas,
Muito acabadas, e tão graciosas,
Que tarde verão outras taes nascidas.
Emfim que, Senhor,
Comerão seu pão com grande suor,
Seu mal tem ja certo, o bem duvidoso.
Oh como andava Adão tão mimoso,
E Eva cuberta de grande esplendor!
Mas eu fui ditoso.
LUCIFER.
Faço-te Duque e meu Capitão
Dos regnos do inundo até sua fim.
Pois os pães venceste, os filhos assi
Trabalha e procura que venhâo á mão;
Que poderá ser
Que alguns farão tão grande prazer
Ao Deos-offendido com tanta vontade,
312 LIVRO I.

Que da sua ira farão piedade,


E sua justiça farão converter
Em benignidade.
SATANAZ.
Bofá, meus amigos, ja eu 'stou cevado:
Nenhum que nascer não m'ha d'escapar.
Oh quantas manhas que sei de luctar,
E quantos enganos que tenho estudado!
Venha embora
O rico ou pobre, senhor ou senhora,
Ou seja villão, ou frade ou freira,
De todas as sortes lhe sei a maneira.
Não falleinos nisto jamais per agora,
Que feita he a pesqueira.
Entra hum Anjo com hum relógio na mão, e traz com-
sigo o Mundo vestido como rei, e o Tempo diante como
seu Veador; e diz o
ANJO.
Deus, cui proprium est miserere,
Porque o seu próprio he perdoar,
De todo a sanha não quer executar,
E a summa bondade assim lh'o requere.
Ca Deos he grandeza,
E he poderio e he fortaleza,
E sabedoria, virtude e verdade,
Glória: tudo isto tem de propriedade;
E estas dignidades tem por natureza
Usar de piedade.
E porque o peccado he em si temporal,
E a bondade de Deos he infinda,
Precede em grandeza toda a cousa finda,
E ser poderoso he seu natural.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 313

A justiça porém
Quando executa, não cuida ninguein,
Que he com mil partes o que merecia.
Adão he deitado de sua alegria,
Porque por seu mal não pôde c'o bem
Que Deos lhe queria.
E porém comtudo piedoso tornado,
Manda-te, Mundo, agasalhar Adão
E todos aquelles que procederão
De sua semente, de qualquer estado,
E lhes dês folgança,
E todalas cousas em muita abastança:
Os peixes, que vão per carreiras do mar;
Aves, que andão as vias do ar;
Ovelhas e bois, e toda abondança
Os leixa lograr.
Porque, ainda que são peccadores,
Não tem outro padre senão o Senhor,
Que não quer a morte ao peccador,
Mas antes que viva e lhe dê louvores.
E a ti porém
Manda-te, Tempo, que temperes bem
Este relógio, que te dou, das vidas;
E como as horas forem cumpridas
De que fez mercê á vida d'alguem,
Serão despedidas.
Assi que tu, Mundo, os gasalharás,
E Satanaz os aconselhará,
O Tempo e relógio os despedirá,
A morte será o que tu verás.
Eis aqui vem
O padre Adão, e Eva também;
314 LIVRO I.

E como saudosos do seu paraizo,


Com dor dolorosa de tal improviso,
Assi desterrados de todo seu bem,
Vem fallando nisso.
EVA.
Oh como os ramos do nosso pomar
Ficão cubertos de celestes rosas!
Ó doces verduras, ó fontes graciosas,
Quem nunca vos vira pera se lembrar!
ADÃ. Lembremo-nos ora
De nosso remédio, mulher e senhora,
Porque isto he o que havemos mister.
EVA. Ó senhor, quem pôde cobrar tal perder,
Que possa perder lembrança meia hora
De tanto prazer?
ADÃO.
Poderoso he o Padre na glória dos Ceos,
Poderoso he o Padre no nosso paraizo,
Poderoso he o Padre neste triste abiso,
Em todo logar poderoso he Deos;
E não vos mateis.
EVA. Segundo o que sinto, vós, senhor, quereis
Que queira soflrer, e meu mal não quer;
Minha dor he grande, e eu sou mulher
Tão desconfiada, como vós sabeis
, Que devo de ser.
A dor e tristeza he no meu coração,
No meu coração está minha vida,
E na minha vida está minha ferida,
De que meus cuidados feridos estão.
ADÃ. Leixae-me dizer,
Eu vos direi que haveis de fazer.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 315

Ajuntae-me a somma de vossos cuidados


Aos meus tristes apassionados,
E dae-m'os a mim, porque eu hei d'ir ter
Cuidados dobrados.
EVA.
Senhor, bem o creio; mas vós bem ou vistes
O que me disse o Senhor dos senhores:
Que eu pariria com mortaes dolores,
A mais desterrada na terra dos tristes.
Oh! triste de mi!
Cada huin de nós penará por si;
Vós tereis cuidados e eu muitos cuidados,
Os nossos prazeres serão trabalhados:
Oh quantos trabalhos teremos aqui
Por nossos peccados!
ADÃO.
Dae ora logar, senhora querida,
Que passe esse pranto; e nós descansemos;
Catemos abrigo em que nos abriguemos.
Pois nos obrigamos a inisera vida,
Façamos pendença;
Cumpramos os termos da nossa sentença,
Pois não cumprimos o que nos cumpria.
Paciência, senhora, que o nojo em porfia
Remédio não causa, nem tira doença,
Mas antes a cria.
MUNDO.
De vosso desastre me pesou assaz;
E, como o Anjo aqui o contasse,
Nunca tive cousa de que mais me pesasse.
Porém por engano tudo se faz.
O Diabo he demo;
316 LIVRO I.

Porque he o rapaz tao subtil em extremo^


Que não ha bugio tão mal inclinado.
ADÃ. Quem sois vós, que assi estais ornado?
MUN. Eu sam o Mundo, que remo meu remo
Em vosso cuidado.
Se vós não houvesseis pezar em dizê-Io,
Desejo saber por que via entrou
Aquelle galante que vos enleou;
Não pera usa-lo, mas pera sabê-lo.
EVA. Senhor, sabereis,
Dizendo ein somma o que me requ'reis,
Que eu concebi neste meu spiríto
Aqúelles enganos do anjo maldito;
E assi concebida, agora vereis
O meu aperto.
Digo que, prenhe, minha ahna e vida
Assi concebida do verbo corrupto,
Desejei, de prenhe, fartar-me do fructo
Da árvore sancta por Deos defendida.
E como comi,
(apparece a Morte)
Vedes alli, Senhor, que pari;
Vedes a minha triste paridura:
Essa he a filha da mãe sem ventura,
Isto nasceu da triste de mi,
Por nossa tristura.
ADÃO.
Vedes aqui, Senhor Mundo, a nossa
Parteira da terra, herdeira das vidas,
Senhora dos vermes, guia das partidas,
Rainha dos prantos, e nunca ociosa,
Adela das dores,
DAS OBRAS DE JDEVAÇÃO. 317

A embaladeira dos grandes senhores,


Cruel regateira, que a todos enleia.
MUN. Não vos espanteis de pessoa tão feia,
Porque cada hum desses lavradores
Colhe o que semeia.
Hou] que dizes, Tempo? TEM. Eu não digo nada:
Eu lhes fallarei lá na derradeira;
Agasalha-os tu, que he gente estrangeira.
MuN.Cortae dessa rama, fazei a pousada,
E va Adão cavar:
Semeae das favas, que haveis de suar:
Comei dessa fructa amargosa, monteza,
E fie da lan a primeira princeza,
Até qu'essa Morte vos venha chamar,
E muito depressa.
Apartãose do auto Adão e Eva, e diz o
MUNDO.
Ora venha Abel seu filho carnal,
E não façais conta aqui de Cain,
Que como o homem he homem ruim,
Pera que he delle fazer cabedal?
Abel he pastor
Amigo de Deos e bom servidor,
Por isso lhe crescem a olho seus gados.
TEM. Pois porque tem dias tão abreviados?
MUN. São fundos segredos que tem o Senhor
Pera si guardados.
Entra Abel pastor, cantando o seguinte
Vilancete.
ABEL
"Adorae, montanhas,
"O Deos das alturas,
318 LIVRO I.

"Também as verduras;
^Adorae, desertos
: " E serras floridas,
"O Deos dos secretos,
"O Senhor das vidas:
"Ribeiras crescidas,
"Louvae nas alturas
"Deos das creaturas.
"Louvae, arvoredos
"De fructo presado,
"Digão os penedos,
"Deos seja louvado,
" E louve meu gado
"Nestas verduras
"O Deos das alturas."
SATANAZ.
Oh como cantas tão doce, pastor!
Quanta doçura que nasceu comíigo!
Conselho-te, irmão, senhor e amigo,
Que te estimes muito: pois es tal cantor,
Bem he que te prezes.
Tu es mais formoso que teu pae mil vezes:
E se eu a ti fosse leixaria o gado,
Que andas nos matos mui mal empregado,
Mancebo disposto: e não te desprezes
De ser namorado.
ABEL.
Queria ora mais fartar o meu gado,
Sem fazer nojo nem perda a ninguém.
SAT. Queres que engorde o teu gado bem?
Sempre apascenta em pasto vedado.
ABE. Quem te mette a ti
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 319

A aconselhares outrem, nem menos a mi,


Sem te pedirem conselho nem nada?
SAT. He tanta a virtude que tenho sobrada,
Que sempre isto faço e fiz atéqui
A cada passada.
ABEL.
Oh! e tu gabas-te e fazes-te sancto?
Juro-te, amigo, que hypocrila es.
Torna-te monge, descalça esses pés,
E serás fino nessa arte dez tanto:
A isto te espero.
SAT. Este he o homem que busco e quero.
Muito desejo tua companhia,
E sem mais soldada, com muita alegria,
Prometto servir-te como escravo mero
De noute e de dia.
TEMPO.
Despachae, Abel, parti pola fria,
Que ja vossas horas estão consumidas.
ABE. O Tempo, tão curtas são aqui as vidas?
Senhor, agravais-me, que ainda crescia;
Não ha aqui justiça.
Leixac-ine, Morte. MOR. O Tempo me atiça.
ABE. Onde me levas? MOR. Lá t'o dirão.
ABE. Mundo, não me vales? MUN. Está bem á mão.
TEM. Pois não se t'escusa, não hajas preguiça:
Não tomes paixão.
Entra Abel na escuridade do Limbo e diz:
ABEL.
Despois de viver vida trabalhada,
Despois de passada tão mísera morte,
Este he o abrigo, esta he a pousada!
320 LIVRO I.

BEL. E esse he o sfso;


Despois que vos vedes neste sancto abiso,
Despois que estais fora de guardardes gado,
Despois que cobraste tal valle abrigado,
Despois de vizinho no nosso paraizo,
Nos dais esse grado?
Sus, sus, á corrente. Luc Aperta-o mui
Que nunca Satan o pôde enganar,
Porque elle fora pousar no logar
Onde pera sempre não virá ninguém,
Senão outros taes.
BEL. Has tu saudade de ir ver a teus pães,
Ou por ventura das tuas ovelhas?
r

ABE. O Senhor Deos! pois tal me apparelhas,


Recebe meus gritos^ prantos e ais,
Nas tuas orelhas.
TEMPO.
Vós, padre Adão, e vossa parceira,
Cheguemos á vara, ja sabeis meu mando;
Mil annos ha que estou esperando;
Esta he a vossa hora derradeira.
ADÃ. O Tempo, espera!
TEM. Este relógio não se destempera,
He muito certo e muito facundo.
Ap\. Queria fallar huin pouco c'o Mundo:
Não apparelharei eu o panno e a cera?
Ora he caso profundo!
TEMPO.
Alto, despachae: e vós aguardais?
Fazeis o alforge á hora da ida?
ADÃ. Dá-me siquer hum dia de vida.
TEM. Diz ca o relógio que não tendes mais;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 321

Nem ha hi maneira.
MOR. Não sabeis vós que sou vossa herdeira,
E a vossa filha a primeira gerada?
ADÃ. O triste Morte, como es apertada!
Como es espantosa, em tanta maneira
Desaventurada!
Entrando na casa de sua prisão, e achando Abel, seu
filho, preso naquella infernal estância, fizerão todos hum
pranto, cantando a três vozes; e acabando diz o
MUNDO.
Eis Job vem fatiando ha grande pedaço,
Triste com causa de ter gran tristeza.
TEM. Oh quantos haveres e quanta riqueza
Perde aquelle homem em tão pouco .espaço!
MUN. Infinitos gados
E muitos haveres lhe tenho ja dados,
E tudo lhe foi atravez brevemente;
Porque Satanaz o achou excellente,
Todos seus bens lhe tem assolados;
E Job paciente.
JOB.
Se os bens do mundo nos dá a ventura,
Também em ventura está quem os tem.
O bem que he mudavel não pôde ser bem,
Mas mal, pois he causa de tanta tristura;
E se Deos os dá,
Como eu creio mui bem que será,
E a fortuna tem tanto poder,
Que os tira logo cada vez que quer,
O segredo disto, oh! quem m'o dirá,
Pera o eu saber?
2 l
Vol. i.
322 LIVRO I.

SATANAZ.
Fallemos huin pouco, Job, a de parte
Sobre esse segredo, verás que te digo.
Eu quero-te bem e sou teu amigo,
Sem usar Comtigo cautela nem arte.
Tu saberas,
E não me descubras nem hoje nem eras,
Deos he aquelle que te tracta assi;
Quer-te gran mal e diz mal de ti:
Não cures delle, e logo tomaras
A como te vi.
Tu dás com teus males louvores a Deos,
E elle pesa-lhe por tu nomea-lo:
Renega, renega de ser seu vassalo,
E logo verás tecer outros veos.
JOB. Se o eu leíxar,
Qual he o senhor que in'ha d'emparar?
Qual he o Deos que me pôde valer?
Nos bens desta vida não está o perder,
Que assi como assi ca hão de ficar,
Pois hei de morrer.
Eú creio, Mundo, que o meu rédeinpíor
Vive, e no dia mais derradeiro
Eu o verei Redemptor verdadeiro,
Meu Deos, meu Senhor e meu Salvador.
Eu o verei, eu,
Não outrem por mim, nem com olho seu,
Mas o meu olho, assim como está;
Porque minha carne se levantará,
E ein carne mea verei o Deos meu,
Que me salvará.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 323

SATANAZ.
Prosigue tu embora tua mania,
Que Deos bem de chapa te assenta elle a mão:
Derribou-te agora as casas no chão,
E matou-te os filhos morte supitania.
JOB. Verdade he isso?
SAT. Assim me veja eu rei do Paraizo.
JOB. Bento e louvado seja o Deos dos ceos!
SAT. Se o tu renegasses, temer-t'hia Deos,
E correr-se-hia muito de te fazer isso.
JOB. La, lá aos increos!
SATANAZ.
Assi! ora espera, farei que renegues,
Quero fazer o que Deos me manda.
(Toca Satanaz a Job, e fica çuberto de lepra.)
JOB. Oh chagado de mi, que esta he outra demanda!
Oh Deos meu! e porque me persegues?
Contra mim perfias,
Sabendo que nada são os meus dias!
Minha ahna s'enoja ja de minha vida,
E como a setta he minha partida.
Senhor, meu Senhor! porque te desvias
De tua guarida?
Responde-me, quantas maldades te fiz?
Ou quantas treições obrei contra ti?
Porque assim escondes a face de mi,
Como meu contrário, sendo meu juiz ?
Contra a folha prove,
Que ligeiramente o vento revolve,
Mostras as forças que tu tens comtigo?
Porque te fizeste contrairo comigo?
21*
324 LIVRO I.

Que a tua bondade me escusa e absolve


De ser teu imigo.
Senhor, homem de mulher nascido
Muito breve tempo vive miserando,
E como flor se vai acabando,
E como a sombra será consumido.
Pois porque, Senhor,
Estimas tu cousa de baixo valor
Pera trazê-lo a juizo comtigo ?
E quem me darás que seja comigo
Em o inferno por meu guardador
E por meu abrigo?
Que a minha pelle, as carnes gastadas,
Logo a meu osso se achegará,
E também solamente o que ficará
Os beiços acerca de minhas queixadas.
O meus amigos,
Ao menos vós outros, amigos antigos,
Amerceae-vos de mim que me vou,
Porque a mão do Senhor me tocou:
E vós perseguis-me como inimigos,
Assi como estou?
TEMPO.
Queixae-vos vós bem, que ainda estais peor,
Pois não tendes mais momento de vida:
Alto, despejae, cuidae na partida.
JOB. Oh! bento e louvado seja o meu Senhor!
O que elle mandar.
A vida he sua, póde-a tirar,
A morte he nossa de juro e herdade;
E pois que elle he o juiz da verdade
DAS OBRAS DE DEVAÇÂO. 325

Faça-se logo sem mais dilatar


A sua vontade.
MORTE.
Vinde ca, bom homem, que esta he dor maior.
JOB. Memento mei, Deos Senhor,
Porque vento he a minha vida.
Apressa-te muito asinha,
Favorece meu temor,
E a minha alma encaminha.
Peccante me quotidie,
Et non me pcenitentem,
Meus espíritos ja não sentem;
Timor mortis, confurbas me.
Ubi fugiam, que farei?
Circumdederunt me dolores:
Ajuda-me, Rei dos senhores,
Não te alembrc que pequei,
Esqueção-te meus errores.
Manus fuce fecerunt me,
Oh! não me desfaças ora;
Acorre-me, Senhor, agora,
Que a minha vida ida he,
E a morte he de mi senhora.
BELIAL.
Ora andae, que tudo he nada
Quanto vós podeis dizer.
JOB. Que me queres tu fazer?
BEL. Servir-te e dar-te pousada,
Onde estes a teu prazer.
(Diz Job despois de preso. )

JOB. Quare de vulva me eduxiste?


Antes alli fora consumido.
326 LIVRO I.

Ó minha esperança^ faze-me soffrido,


Pois vida, morte e prisão tão triste
Me fazem pesar-ine porque fui nascido.
MUNDO.
Agora estes quatro bem abastarão,
Quanto aos Padres da lei da Natura;
Logo virão, da lei da Escriptura,
Moysem, Isaias, David, Abrahão.
Fallará primeiro
Abrahão, patriarcha justo, verdadeiro,
Reprendendo os ídolos da antigüidade;
Porque no seu tempo era vaidade,
E pola verdade se fez pregoeiro
Da sancta Trindade.
ABRAHÃO.
O Deos mui alto, ignoto, escondido,
Deinostra-te ás gentes, que ja tempo he;
Que daquelle tempo do justo Noé
Está o teu nome na terra perdido,
E está sonegado
O tributo do mundo, que he teu de morgado.
E adorão as gentes deoses de palmeira,
Deoses de metal, e de pederneira,
Deoses sem vida, deoses de peccado,
Feitos de madeira.
Tem pés e não andão, mãos e não palpão,
Olhos e não vem, orelhas e não ouvem,
Corpo e não sustem, cabeça e não entendem.
Et tu, qui solus es,
Que tens todo o inundo debaixo dos pés,
E teu ouvir e ver he infinito,
Creador dos spirítos, eternal spiríto,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 327

E sendo seu Deos, não sabem quem es,


Sequer por escrito.
MOISÉS.
Eu Mouses direi como elle formou
No princípio o ceo, terra e paraizo.
A terra era vácua, e sobre abiso
Erão as trevas quando a luz creou.
E assentarei
Mistérios profundos no livro da lei,
Tudo figuras da Sancta Trindade,
Tudo mistérios da eternidade,
Que Deos me dirá e eu escreverei
A sua vontade.
E elle estará em pessoa comigo
Aos cinco livros, quando os escrever;
Porque as ceremonias que mandar fazer,
Outras maiores trazerá comsigo.
Tu, homem, penetra,
E dos sacrifícios não tomes a letra;
Que outro sacrifício figurão em si,
Que matar bezerros, nem aves alli:
Outra mais alta ofterta soletra,
E outro Genesi.
DAVID.
O sacrifício a Deos mais aceito
He o spiríto mui atribulado,
E o coração contrito e humilhado;
Este he a ofterta e serviço direito;
E assi Isaias.
ISA. O sacrifício he o Messias,
Que será nascido em Bethlem de Judá,
Porque do tribu de Judá será
328 LIVRO I.

Da parte da Virgem; e eis virão dias


Em que parirá.
MOISÉS.
Virgem prenhada! ISA. E Virgem parida.
Bem viste a sarça que não se queünava;
Pois este mistério nos perfigurava
A Madre de Deos, do mundo e da vida,
E amado cordeiro
Que tira os peccados. DAV. EU no meu salteij
Digo por este mui alto primor:
Cantae cantar novo a vosso Senhor,
Que fez maravilhas, o Deos verdadeiro,
O Duque maior.
ABRAHÃO.
r

O Isaias, que novas tão bellas,


De tanta alegria, que trazes comtigo!
ISA. Outras tão tristes trago eu comigo,
Que ja Jeremias fez pranto com ellas.
Oh triste mazella!
Que o fructo do ventre daquella donzella,
Em pagamento do fructo vedado,
A justiça divina será oftertado,
Cuberto de sangue, com muita querella,
E crucificado!
DAVID.
Eu também o sei, mui certo sabido;
Serão suas mãos e pés mui furados,
E todos seus ossos lhe serão contados,
E deitarão sorte sobre seu vestido.
TEM. Tendes ja dito;
Leixae tudo isso posto por escrito,
E despejae logo, pagae a pousada;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 329

Cumpri com a terra, que quer ser pagada,


E ós elementos dae o spiríto:
Não falleis mais nada.
MUNDO.
Morte, despeja-os, não fique ninguém.
ISA. Oh quem me tivera mais vida alongada
Pera profetar da Virgem sagrada
Cem mil maravilhas que sei muito bem!
MOR.Profetas, nó mais;
Manda o Tempo que logo partais,
Parti-vos comigo, e não mais demoras.
ABR. O Morte, quão cruas são tuas esporas!
Quão lastimeiras! MOR. Não vos detenhais;
Andae, que são horas.
MOISÉS.
Senhor Rei David, não tendes na corte
Cirurgiães e Físicos mores,
Astrologos grandes e muitos doctores,
Que vos dem saúde e livrem da morte?
Mon. Olhae, não vai nisso;
O mal que se cura não he mal de siso.
Andão deitando remendos á vida;
Mas quanto ao despejo, pois não tens guarida,
Lembra-te, homem, com muito aviso
Que es terra podrida.
BELZEBU.
Ó Morte, ó Morte, sejas bein casada,
Que tão limpa gente nos dás ein poder.
Chegae-vos aqui, Senhor Lucifer,
Pois que r%i vem á vossa pousada;
Que não he rezão,
Pois que he rei, que eu lhe ponha a mão,
330 LIVRO I.

Senão Vossa Alteza, e ponha-o aqui.


Luc Perdoae-me vós, Senhor Rei Davi.
DAV. De profundis clamavi, Senhor, redempção!
BELZ.Bein estais assi.
MUNDO.
Da lei da Escriptura e lei natural
Ja temos passados os mais principaes;
Venha a lei da Graça, porque os mortaes
Alcancem a glória de sempre eternal.
Venha primeiro
Glorioso Joannes, sancto pregoeiro,
Sancto sem mágoa, de Deos enviado,
Sancto nascido e sanctificado,
Mostrando ás gentes alto cordeiro,
Com muito cuidado.
S. JOÃO.
O bravas serpentes que em serras andais,
O dragos ferozes que estais nos desertos,
Ouvi os secretos que estão encubertos;
E vós, dromedários, também não durmais;
E tu, mui serena
Fermosa ave phenix, que tanto sem pena
A ti mesma inatas por tua vontade,
Vae ver o Phenix da Saneia Trindade,
Filho da Phenix grafia plena,
Que está na cidade.
E tu, mui soberbo lobo poderoso,
Que trazes as unhas cruéis, e tingidas
No sangue d'ovelhas de pouco paridas,
Aprende de Christo, cordeiro amdl-oso:
E vós, pomba brava,
Que voais isenta, soberba, alterada,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 331

Em essas montanhas viveis branda vida,


Tomae por espelho a pomba escolhida;
A pomba mui mansa, a pomba calçada,
De sol he vestida.
E tu vil raposa, que vives d'engano,
E inatas quem amas, sem nenhum temor,
Aprende de Christo que so por amor
Offerece á morte seu corpo humano.
Tu, águia real,
Que vences os raios do sol natural
Com tua vista per graça divina,
Guarda não te cegue o sol da rapina,
Pois te allumia a luz divinal
Com sua doctrina.
SATANAZ.
Eu fui hontein á cidade,
E estavão os Fariseus
Fallando nos feitos teus
E na tua sanctidade,
De que pasmâo os Judeus.
Dizem que tu es Elias,
Ou profeta enviado,
Ou anjo dissimulado;
Mas eu digo que es Mexias,
E assi o tenho apostado.
S. JOÃO.
Eu te conheço mui bem,
E quein es, ha muitos dias.
Satan, eu não sam Elias,
Nem desejo de ninguém
Nenhüas lisongerias.
Nem sam sancto nem profeta,
332 LIVRO I.

Nem menos anjo encuberto;


Vox clamantis in deserto
Esta he a minha vida certa;
Pois queres saber o certo.
Nem Messias não sam eu,
Nem pera lhe desatar
A correa que levar
No sancto sapato seu.
Antre os Judeus acharás
O bem qu'elles não conhecem,
Nem tu o conhecerás;
Porque elles não no merecem,
Nem tu o merecerás.
Aparta-se Satanaz, e diz
S. JoÃo.
O mortaes, de terra em terra tornados,
Pois são vossas almas de tão fina lei,
Abri vossos olhos, que ecce agnus Dei,
Que veio ao inundo tirar os peccados.
Elle he por certo;
Crede esta voz clamante em deserto,
E levantae-vos do po desta vida;
Pegae-vos com Christo,
Que he certa guarida,
Que de sua mão está o ceo aberto,
E a glória vencida.
TEMPO.
Este relógio he muito forte,
Vós perdoae-me, Senhor San João,
Que vossas horas cumpridas estão,
Segundo buscastes tão cedo a morte,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 333

E por vossa vontade.


Vós não quereis senão pregar verdade,
E ella vos leva da vida presente.
S.Jo. Que sam muito ledo e muito contente,
Porque a verdade he a mesma Trindade
Verdadeiramente.
E pois eu sam voz de nosso Senhor,
Se eu a calar, quem na ha de dizer?
As offensas de Deos quem as ha de soffrer?
Mas clame em deserto qualquer pregador,
E seu thema*seja
Verdade, verdade. Mas o que deseja
Ser bispo, e portanto prega mui modesto,
Calando e cobrindo o mal manifesto,
Não he pregador da sancta Igreja,
Mas ladrão honesto.
Leva-me, Morte; quero-me ir daqui,
Que ja mostrei Christo a todolos vivos;
Irei dar a nova áquelles captivos,
Cujo captiveiro terá cedo fim.
Entrando S. João naquella prisão, com admiração de
grande alegria cantarão os presos o romance seguinte, que
fez o mesmo autor ao mesmo propósito.
Romance.
Vocês daban prisioneros,
Luengo tiempo estan llorando,
En triste cárcel escuro
Padeciendo y suspirando,
Con palabras dolorosas
Sus prisiones quebrantando:
— Que es de ti, Virgen y Madre,
Que á ti estamos esperando?
334 LIVRO I.

Despierta ei Senor dei mundo,


No estemos mas penando. —
Oyendo sus vocês tristes,
La Virgen estaba orando
Cuando vino Ia embajada
Por ei ángel saludando,
"Ave rosa gracia plena,"
Su prenez le anunciando.
Suelta los encarcelados,
Que por ti estan suspirando;
Por Ia muerte de tu hijo *
A su padre estan rogando.
Crezca ei nino glorioso,
Que Ia cruz está esperando.
Su muerte será cuchillo,
Tu anima traspasando.
Sufre su muerte, Senora,
Nuestra vida deseando.
LUCIFER.
Que fazes? SAT. E U não faço nada,
E suo como cão, sem achar bonança.
Luc Todos aquelles que a morte ca lança
Alcanção per força segura pousada.
Pois has-me d'encher
De almas humanas, convém a saber:
A furna das trevas, ponte de navalhas,
O lago dos prantos, a horta dos dragos,
Os tanques da ira, os lagos da neve,
Os raios ardentes, sala dos tormentos,
Varanda das dores, cozinha dos gritos,
Açougue das pragas, a torre dos pingos,
O valle das forcas: — tudo isto arreio.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 335

SAT. Bem certo he que tudo «ha de ser cheio,


Mas França e Roma não se fez n'hum dia.
Luc Temo, Satan, que esta mercadoria,
Que temos aqui, he braza no seio.
Entra a figura de nosso Redemptor; e o Mundo, o
Tempo e a Morte assentão-se de joelho?, e diz o
MUNDO.
Também vós passais, Deos meu,
Por esta vida mesquinha?
Muita dita he a minha!
Mas onde agasalharei eu
A quem tanta glória tinha?
Oh eternal Creador,
Oh temporal creatura, •;»
Que encubres com terra escura
O divino resplandor
E immensa formosura!
E portanto eu não sam dino
Que entreis na minha morada;
Porque he baixa pousada,
E pera ti, Verbo divino,
Quanto tenho não he nada.
CHRISTO.
Não te agastes tu comigo,
Nem me dês pousada a ini,
Que o meu regno não he aqui,
Nem quero nada comtigo:
Mas quatro cousas quero de ti.
Primeira.
Qnando me vires levar
Pela rua d'amargura,
Que olhes minha figura,
336 "VIU> I.

E o sangue que eu derramar


Tome tua alma por cura.
Segunda.
E quando os saiões da cidade
Me pregarem no madeiro
Com fortes pregos d'aceiro,
Que olhes com que vontade
Me entreguei ao carniceiro.
Terceira.
E quando vires spirar
O meu spirito cansado
O meu coração finado,
Que tu te queiras lembrar
Que mouro por teu peccado.
Quarta.
Quando enterrado ine vires
Sem companha nem emparo,
Que do teu coração tires
Suspiros, com que suspires
Minha morte e desemparo.
E não quero de ti mais;
Lá reparte teus cruzados,
Teus impérios e regnados,
E tuas pompas mortaes,
Qu'eu não quero teus morgados.
Seja papa quem quizer,
Seja rei quem tu quizeres;
Que os impérios e poderes
A morte os ha de prover
E tirar a quem os deres.
TEMPO.
Meu Senhor, eu que farei?
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 337

No relógio que me destes


Digo qu'inda que nascestes
Não se entende em vós a lei,
Pois que vós mesmo a fizestes.
CHRISTO.
Modicum videbitís me.
Eu a cumprirei, que a fiz;
Porque rei que he. bom juiz,
Como a lei feita he,
Faz aquillo que ella diz.'
Cedo me despejárás,
Tem tu o relógio certo:
Emtanto vou-me ao deserto,
E veremos Satanaz
Se me falia descuberto.
LUCD?ER.
Digo que este homem nascido em Belém
Parece perigosa cousa pera nós.
BELZ. Senhor Lucifer, isso vede vós,
Porque todo o mal he de quem o tem.
SAT. Dá ó demo a cantiga:
E crede que temos com elle fadiga,
Que passa.de sancto.
BELZ. Parece-o elle.
Luc Vae, Satanaz, e salta com elle:
Emfim elle he homem, por mais que te diga;
Mais podes tu que elle.
Agora que anda assi so no deserto,
Veste este fato, e faze-te monje,
Porque sem isto andarás de longe,
E assi sünulado fallarás de perto.
Ora vae asinha;
22
Vol. I.
338 LIVRO I.

E se tu este trazes á nossa cozinha,


Eu te farei mui gran cavalleiro.
Vai-se Satanaz tentar a Christo, e diz:
SATANAZ.
Que faz o Senhor neste ermo estrangeiro
Tão so, e tão fraco, que por vida minha
Que he grande marteiro?
CHRISTO.
E tu que cousa es, ou que vens buscar?
SAT. Bem ves tu, Senhor, que sam ermitão;
Logo meu trajo denota quem sain;
E he escusado o mais perguntar.
Sam monje, Senhor.
CHRISTO.
Nem porque o sagaz e bom caçador
Se veste no boi por caçar perdizes,
Não he elle boi, como tu me dizes.
( Diz ao povo.)
Julgae pelas obras, e não pela cor,
Sereis bons juizes.
SATANAZ.
Senhor, ja de fraco e debilitado
Deitas a falia cansada com pena,
E eu ouvi dizer ja que se condemna
Quem mata a si mesmo de próprio grado.
Pois porque te inatas,
E a tua vida assi a maltratas,
Sendo seu preço ao dobro de Elias?
Come, Senhor, que ha quarenta dias
Que te desbaratas.
E mais se tu es o filho de Deos,
(Como eu sinto ainda que ine calo,)
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 339

Faras destas pedras todas pão de callo,


Segundo a virtude trouxeste dos ceos.
CHRISTO.
Escripto acharão
Que não vive o homem somente de pão,
Mas da palavra de Deos procedida.
Esta he a que farta, cria e dá vida.
SAT. Oh como Mias! dá-me outra lição,
Que ja essa he sabida.
E se tu, como digo, filho de Deos es,
Segundo a nova por esta terra anda,
Deita-te abaixo daquella varanda;
E nem hajas medo que quebres os pés,
Porque escripto he
Que nenhüa pedra, em perna nem pé,
Te pôde fazer offensâ nem nada.
CHRISTO.
E se eu posso subir e descer pola escada,
Pera que he tentar a Deos sem porque,
Que he cousa escusada?
SATANAZ.
Canta pola escada hum manco fará isso.
Vem-me á vontade fazer-te hum partido.
Todo o homem pobre he aborrecido:
Tu de meu conselho acolhe-te ao siso.
E que hum homem faça
Muitos peccados e erros de praça
Por enriquecer, tudo he muito bem;
Que bem sabe Deos que quem nada tem,
Que tenha mil graças por divina graça,
Não no quer ninguém.
Sabes Rio-frio, e toda aquella terra,
22"
340 LIVRO I.

Aldeia Galega, a Landeira, e Ranginha,


E de Lavra a Coruche? tudo he terra ininh
E desde Çamora até Salvaterra,
E desde Almeirim bem até Herra,
E tudo per alli,
E a terra que tenho de cardos e pedras,
Que vai desde Cintra até Torres Vedras;
Tudo he meu. Olha pera mi,
Verás como medras.
Isto e muito mais te darei,
Que não quero mais senão senta-te ahi,
Posto em giolhos, e adora em mi:
Olha em quão pouco virás a ser rei,
E muito acatado.
CHRISTO.
Retro, retro, malaventurado,
Falso, enorme, cível Satanaz.
Scripto he, não adorarás
Senão hum so Deos, com grande cuidado
A elle servirás.
Luc Que he isso, Satan?
SAT. Venho embasbacado,
E estou mais mofino que hum alfeloeiro.
Dá-me a vontade que aquelle escudeiro
He o pastor daquelle nosso gado.
CHRISTO.
Eis aqui subimos a Hierusalem
Pera tirar o vestido ein que ando;
Porque os açoutes me estão esperando.
Cumpra-se todo o meu mal e meu bem.
Quero ir levar
Minha breve vida a quem m'ha de matar;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 341

E assi entregar a minha cabeça


A cruel c'roa, porque ella padeça
Com tanto de sangue, que quem me olhar
Que não me conheça.
Quero ir levar estes meus cabellos
Onde sejão feitos duzentos pedaços;
Quero ir pregar estes pés e meus braços
Onde os sinta, e não possa ve-los:
E o delicado
Triste meu peito, que seja pisado
Com couces irosos, e minhas queixadas
E dentes, quebrados com mil bofetadas.
E eu virei logo ser sepultado
Em breves passadas.
BELIAL.
Senhor Lucifer, eu ando doente,
Treme-me a cara, e a barba também,
E doe-me a cabeça, que tal febre teint
Que soma sam hetigo ordenadamente,
E doe-me as canellas:
Sai-me quentura per antre as arnellas,
E segundo me acho, muito mal ine sinto;
E algum gran desastre me pinta o destinto.
Até as minhas unhas estão amarellas,
Que he gran labyrintho.
Em este passo vem os cantores, e trazem hüa tumba,
onde vem hüa devota imagem de Christo morto; e despois
de acabada sua procissão, diz
BELIAL.
Ergue-te, Senhor, que segundo creio,
Pois que assi treino e estou amarello,
Que será tomado este nosso castello,
342 LIVRO I.

E o gado que temos ha de ser alheio.


SAT. Isso he o que eu digo.
BEL. Rugem-me as tripas, arde-me o embigo,
E a boca empolada, assi como de figos.
Crede vós, Rei, que tendes imígos;
Porque estas doenças que trago comigo,
Denotão perigos.
Aqui tocão as trombetas e charamellas, e apparect
figura de Christo na resurreição, e entra, no Limbo, <
tara aquelles presos bemaventurados. E assi acaba o
sente auto.
DIALOGO
SOBRE

A RESURREIÇÃO
ENTRE OS JUDEUS

RABI LEVI RABI AROZ e


RABI SAMUEL DOUS CENTURIOS.

Entra Rabi Levi e diz:


LEVI.
Quem com mal anda, dizia Jacó,
Rabina Rabasse, Rabi Mousern,
Não cuide ninguém, que lhe venha bem,
Nem he bem que alguém haja delle dó.
Quem com mal anda, chora e não canta;
Quem so se aconselha, so se depena;
Quem não faz mal, não merece pena;
Quem chora ou canta, fadas más espanta.
Dizia minha mãe Gemilha saborida:
Filho, não comas, não rebentarás;
Se sempre calares, nunca mentiras;
Come e folga, teras boa vida.
Dizia meu pae Mosé Rabizarão:
Não comas quente, não perderás o dente;
Quem não mente, não vem de boa gente;
Não achegues á forca, não te enforcarão.
344 LIVRO I.

Dizia meu dono, cuja alma Deos tem:


Não peques na lei, não temerás rei;
Se tu te guardares, eu te guardarei;
Quem sempre faz mal poucas vezes faz bem.
Dizia meu tio Rabi mallogrado:
Filho Jacob, o que fazes, dizia, Jacob Badear,
Achega-te ca, quero-te ensinar:
Não sejas pobre, morrerás honrado;
Falia com Deu, serás bom rendeiro;
Quando perderes, põe-te de lodo;
Se nada ganhares, não sejas siseiro.
SAM. Que fallas? que fallás? azara te veio?
LEV. Ando cuidando naquelle coitado
Daquelle Mexias que jaz enterrado.
Todo o que dixe foi devaneio:
Dixe que havia de resuscitar.
SAM. Quando, meu dono? LEV. Assi digo eu.
Daquelles guardados nenhum pareceu
Que lá hontem forão pera o guardar.
SAM. Elle dizia que o dia terceiro.
LEV. Que negro chanto, que guarra seria!
SAM. Não fallemos nisso, tudo he bulraria:
Pois elle seria o Deu verdadeiro?
Fallemos em ai, Rabi Samuel.
Oitras lazeiras ha hi que contar;
Leix'o jazer. Queres arrrendar
Comigo hüa renda? Se fores fiel,
Arrenda comigo este anno que vem.
LEV. Que renda? SAM. Hüa renda.
LEV. E não tem nome?
Ve tu se he tal; que o demo me tome,
Se não arrendar, se me vier bem.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 345

Vem dous Centúrias, e diz


LEVI.
Que dolor ha lá? que foi? que quereis?
CEN. Vimos pasmados. LEV. De que? que achastes?
CEN. Vimos... LEV. Que vistes? de que vos pasmasíes?
Que he? que foi? dizei, que dizeis?
CEN. Estando dormindo... LEV. Dou-lhe que fosse.
CEN. Esta madrugada... LEV. Pela manhan cedo,
Estavas dormindo, sonhaste com medo.
Ora ouvi aquillo, — sonhando espantou-se!
CEN. Não quereis ouvir? LEV. Ouvimos, contae:
Ha de ser hum sonho, que vio hum espanto;
Hüa adivinhação, hum conto, hum chanto,
Hüa patranha. Contae, acabae.
Sonhastes esta madrugada,
Estando dormindo... Eu vos lembrarei.
CEN. Ficae-vos embora, ja não contarei.
SAM. Digo que oivamos esta gente honrada.
LEV. Ora dizei. Tudo ha de ser vento.
CEN. Não he senão cousa de que vos pasmeis,
De grande segredo. 0\ivi se quereis,
E sabereis caso de gran perdimento.
LEV. Sonhou que perdia na sisa do trigo;
O demo me dou se foi outra cousa.
Como dormia debaixo da lousa,
Estava abafado. CEN. Olhae o que digo:
Ja Christo desd'hoje... SAM. Que ha de fazer?
CEN. Sahio do sepulcro. SAM. Furtado seria.
CEN. Mas resuscitado com grande alegria:
Vede vós outros como isto ha de ser.
LEV. Que cabeças estas! que chanto nos veio
Pera juizes de Ponte de Loures!
346 LIVRO I.

Tudo isso erão os vossos tremores?


Monta ao todo hum grão de centeio.
CEN. Ouvi os signaes, porque os creais.
Na hora, no ponto que resuscitou,
Toda a cabeça se me depenou,
E venho pellado. LEV. Ha hi mais signaes?
2° CENTURIO.
E eu desdentado; ma ora nasci:
Somente hum dente m'a mim não ficou.
O sancto Diabo m'a mim lá levou.
SAM. Abre essa boca, vejamos se he assi:
Ja cerrou a cava: ó desventurado,
Andaste ás punhadas com algum rascão,
E quebrou-te os dentes, porque es villão,
E cuidas que o outro que he resuscitado.
LEV. Melhor viva eu e meu filho Jacó,
Que s'elle levante daquelle penedo.
Em dias que vivas, não hajas tu medo
Que nunca o encontres com outro, nem so.
CEN. Ser eu muito certo que estou pellado,
E, alem de pellado, tolhido de hum braço.
LEV. Arrepellárão-te á porta do paço:
Olhae que milagre para ser soado!
o
2 . C. E estes dedos — que dizes, Rabi?
Qué nenhüa unha não ficou comigo.
SAM. Mostra, veremos que houveste comtigo.
2°. C. Attenta se minto, que ve-las aqui.
SAM. Digo-te, amigo, que forão unheiros,
Ou foi dor dos cabos nas pontas dos dedos,
E não nos curaste, com medo dos medos.
Mas estes milagres não são verdadeiros;
Não digais nada á nossa communa,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 347

Não façais rumor no nosso casal.


CEN. Pois que diremos que foi este mal?
Ou que remédio á nossa fortuna?
RABI LEVI.
Dirás que arrendaste na sisa dos pannos,
Ou nos azeites do haver do peso;
E que arrepellaste hum homem-dravcsso,
Sobre razões, haverá dous annos;
E que agora te arrepellou,
E mais que festortegou esse braço;
E est'outro, vendo-te em tal embaraço,
Por te acudir, que foi e einpeçou,
E deu c'os focinhos n'hum ferro d'arado,
E quebrou os dentes, unhas e todo.
E assi em todo ponde-vos de lodo,
De chanto e de guaia, todo misturado.
SAM. Entendeis aquillo, homem de bem ?
Toma hum vintém pera a cabelleira.
Tu come das papas, não teras denteira;
E compra hüas luvas, ou furfas a alguém.
Nem digais que he vivo, que pola benção
De Rabi Ascalvado, e de Dona Sol,
Que vos tenchemos dentro, n'hum lençol,
E a capelladas morrereis ou não.
CVão-se os Centnrios.)

RABI SAMUEL.
Fallemos, saltemos no arrendamento.
LEV. Rabi Samuel, mais releva isto.
Quiçais era sancto este Jesu Christo,
Que elle o mostrou em seu finamento:
O sol escurou, e a terra tremeo.
SAM. EU te direi a verdade inteira.
348 LIVRO I.

Tremeo minha casa, cahio cantareira,


Quebrou-se a loiça, todo se perdeo,
Até o pichei que tinha d'azeite;
Fendeo-se-me hum pote, quebrou-me tigelas,
Bacios, candieiros, panellas;
Não ficou vinagre, nem em que o deite.
RABI LEVI.
Vaino-nos ora a Rabi Aroz,
E a Rabi Franco, e a Rabi Zarão:
Far-lhe-hemos menção daquesta razão;
Que se isto he verdade, o demo he na voz.
SAM. Fallemos também a Rabi Mosé,
E a Jacob lendroso, e Abrahão pellado.
Saibamos se he este o nosso esperado,
Vejamos se foi, se he, se não he.
Vem Rabi Aroz, e diz:
RABI AROZ.
Leixae-ine passar.
LEV. Bem venhas, irmão; pera onde vos.
SAM. Ora está quedo, e não sejas grou,
Que voa pelo ar, e anda pelo chão.
Ora attenta nisto.
Tu saberas que á cerca de Christo
Tens bem que ouvir, e nós que fallar.
ARO. Não posso escutar, que vou campear,
E se lhe tardar, bem sabes tu isto
Em que pôde parar;
Porque este bolção não tem cerradouros.
SAM. Aperta-lhe a boca, até qu'isso passe.
ARO. Pois, emque agora um rei me fallasse,
Eu lhe diria, — Senhor, vou-me a Mouros:
Ou lhe diria:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 349

— Vou despachar hüa mercadoria,


Que está empachada á porta redonda. —
Desta te abasta e isto fabonda
SAM. Disso te fartes de noite e de dia
No tempo da monda.
RABI LEVI.
Pois vamos comtigo e vamos fallando.
Fama he que Christo, depois de enterrado,
De opa netta he resuscitado.
Guai dos tristes que estavão guardando!
Huns ficão pellados,
Outros sem dentes, e braços quebrados,
Outros sem unhas pera fazer prol;
E todos o virão, fora do lençol,
Sair do penedo, todos acordados,
Em saindo o sol.
RABI AROZ.
Pois erão quarenta com armas armados,
Não no podião prender outra vez?
SAM. Que razão essa de siso de pez!
ARO. Pois não no prenderão, merecem matados.
LEV. Quem ha de prender
Aquelle que tem tão grande poder?
Seu corpo açoutado daquella feição,
E hüa lançada pelo coração!
ARO. Sicaes não foi morto, e pôde bem ser...
LEV. Que negra razão!
Se fora doença de que se finara,
E posto na cova se alçara e vivera;
Puderas dizer que esmorecera
E perdera os pulsos, mas a alma ficara.
Mas bem vimos nós,
350 LIVRO I.

E tu bem o sabes, Dom Rabi Aroz,


Que so dos açoutes, que mais não vivera,
E que o soltarão, daquillo morrera;
E so da coroa, também crede vós
Que não guarecêra.
Pois so de levar a cruz tão pesada
Pola serra acima homem tão delgado,
Disto somente ficara matado;
Que são ja três mortes, cada hüa apertada.
E verão os cegos
Que so do tormento que levou dos pregos,
Fora matado hum drago feroz,
Quanto mais a lançada. Cre, Rabi Aroz,
Que fomos ás lebres, tomámos morcegos:
Esta he minha vez.
SAMUEL.
E a minha também, e acabo de crer
Que he este o Mexias nosso desejado;
Porque Isaias, profeta amado,
Fallou deste tudo o que havia de ser;
E Ezechiel,
Amos Salomão, David, Daniel,
Todos fallárão no seu resurgir.
Este he o Messias, sem mais arguir;
Este he o honrado nosso Emanuel;
O ai he mentir.
RABI AROZ.
Meu pae arrendou hüas alcaçarias
Junto do termo de Villa Real,
Com tal condição, que durasse o foral
Ates que viesse o nosso Messias.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 351

Juro pela alma que foi de meu pae,


Que está a cousa bem embaraçada.
Estae ambos quedos, não boquejeis nada,
Não falle ninguém, vereis como vai
Esta emborilhada.
Meu pae era dono d'hüa filha minha,
E minha mãe filha de meu dono torto,
E hum meu irmão, que morreu no Porto,
Era mesmo tio dos filhos qu'eu tinha:
Tudo assi vai.
E minha mulher, nora de meu pae;
E meu pae, marido de sua mulher;
E sua mulher era sogra da minha.
Assi indo fomos, de linha em linha,
Até que meu pae veio a morrer.
Meu pae fallecido,
Vai minha mãe e perdeo o marido,
E fez-se viuva, e as alcaçarias
Forão do pae da mãe de Tobias,
Filha de Dom Donegal dolorido,
Que inorreo nas Pias;
E quando se fez a tomada de Arzila,
Dona Franca Pomba casou ein Buarcos
Com Bento Capaio, capador de gatos,
Que furando alporcas, inorreo ein Tavila.
Ein aquelles dias
Se fez o contracto das alcaçarias,
E David Ladainhas da manga cagada
Leixou assentado, que vindo o Messias
Que as alcaçarias, não tendo ellas nada,
Que fossem vasias.
Segue-se logo, se Christo he Mexias,
352 LIVRO I.

Que he salvador destas alcaçarias,


E ficarão livres, e postas ein cobro:
Porém eu creio que o que me diz meu sogro
He tudo vento, e são fantasias;
E peccais em dobro.
Porque, se fora o que nós esperamos,
Levara os Judeus, povo de Israel,
A terra que mana o leite e o mel,
Que he nossa herança, que de Deos herdamos.
LEV. Não que elle dizia
Que essa herança que não se entendia
Senão que havemos de resuscitar,
Assi como elle, pera nos levar
A mesma herança que Deos promettia,
Lhe ouvi eu pregar.
Porque essas farturas que a terra antremette,
Forão creadas pera os animaes,
E que o Deu poderoso essas cousas taes
Não nas estima, nem dá, nem promette;
E que o Mexias,
Se bem entendermos nossas profecias,
Não vinha a fartar os corpos de mel.
Também tu assi estavas, Rabi Samuel?
Tu, Rabi Aroz, bem vi que dormias,
E Zarababel.
RABI AROZ,
Pois que faremos sobre isto emtanto?
LEV. Que nos calemos em nosso calado:
Quemquer que dixer que he resuscitado,
Dar-lhe-hei hüa figa debaixo do manto:
E leixae estar;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 353

Ter mão na Sinagoga, que nos dá repairo;


Que sabendo-o o povo, he nosso o fadairo:
E se o aventar,
Cada sacerdote lhe cumpre estudar
Pera boticairo.
Tenhamos todos mui bein que comer,
Que farte, e sobeje pera todo o anno.
Tratemos em cousas em que caiba engano,
E se nos perdermos, não pôde mais ser.
ARO. Sabes que receio?
O mal que fazemos he crime tão feio,
Que ja Jeremias o chorou primeiro.
LEV. Fundemo-nos todos em haver dinheiro;
Porque quer seja nosso, quer seja alheio,
He Deu verdadeiro.
E ter mão na burra. Que dizeis, Aroz?
ARO. Façamos tahnud com tantas patranhas,
Coin que embaracemos tamanhas façanhas,
Antes que mettão a frota na foz.
E por simular,
Ordenemos festa com algum cantar,
Porque não entendão que somos vencidos.
Chacota na mão, fender os ouvidos
A quem nos ouvir. Alto, começar
A travar dos vestidos, e cabecear.

Vol. I. 23
F I G L R A S.

SILVESTRA — Lei da Natureza.


HEBREA — Lei da Escriptura.
VEREDINA — Lei da Graça.
SATANAZ.
CHRISTO.
S. THIAGO.
S. PEDRO.
S. JOÃO.
CANANEA.
BELZEBU.

Este auto que diante se segue fez o Autor por rogo da


muito virtuosa e nobre Senhora D. Violante, Dona Abba-
dessa do muito louvado e sancto convento do mosteiro de
Oudivelas; a qual Senhora lhe pedio que por sua devoção
lhe fizesse hum auto sobre o evangelho da Cananea. Foi
representado na era do Senhor de 1534.
ALTO DA CANA1XEA.

Entra Silvestra, Lei da Natureza, cantando.


SlLVESTRA.
"Serra que tal gado tem
"Não na subirá ninguém."
Eu sam Lei da Natureza,
E per nome Silvestra,
Das gentes primeira mestra
Que houve na redondeza.
Dos gentios sam firmeza,
E por pastora me tem.
"Não na subirá ninguém
"Serra que tal gado tem."
Assi que ando a pastorar
Cem mil bandos de veados;
Porque gentios são gados
Mui esquivos de guardar,
E tão bravos d'apriscar,
Que a serra que os tem
"Não na subirá ninguém
"Serra que tal gado tem."
Quando os quero assocegar,
Logo cada huin tresinonta;
De hum so Deos não fazem conta,
Senão correr e saltar.
Todo o seu bem he honrar
Diversos deoses que tem,
23*
356 LIVRO I.

Com que lagrimas me vem.


"Serra que tal gado tem
"Não na subirá ninguém."
Entra Hebrea, Lei da Escriptura, e dk
HEBREA.
Que gado guardas aqui,
Nesta fragosa espessura?
SIL. Guardo per lei de natura
Meu gado: mas vejo em li
Que tu es Lei d'Escriptura.
HEB. SOU pastora de Judea,
Nascida ein monte Sinai,
E o meu nome he Hebrea.
SIL. E o teu gado onde vai?
HEB. Sempre pasce em mesa alheia.
E sabes que gado he?
Tudo raposos e lobos:
E eu te dou minha fé,
Que he a mais falsa relê
Que ha hi nos gados todos.
Nunca ine ouvirão cantar;
Que meu gado he tão erreiro,
Que sempre o verás andar
D'hum peccar n'outro peccar,
De captiveiro em captiveiro.
Que cante, não ha porque,
Com leones e dracones,
Nem prazer nunca me ve:
E se hüa ora canto, he
Super flumína Babilonis.
Depois vou-me a Jeremias,
E lamentamos a par,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 357

E os prantos de Isaias.
Estas são as alegrias
Que meu gado anda a buscar.
SILVESTRA.
Não menos quebro os sentidos
Com meus veados diversos.
HEB. Isso são gados perdidos.
Os meus forão escolhidos,
E fizerão-se perversos.
Os Patriarchas primeiros
Erão gados celestiaes,
Ovelhas, sanctos carneiros,
E os profetas cordeiros,
E os d'agora lobos taes.
Pois tem em mim hüa pastora,
Que nunca foi outra tal.
SIL. Nego eu essa por agora.
HEB. Oh, se tu quizesses ora
Fazer-te minha igual!
SIL. Mas melhor he terdes grandeza.
HEB. Cal'-te, que não dizes nada;
Qu'eu sam per Deos espirada,
E tu pela natureza.
SILVESTRA.
Parece esta que ca vem,
Lei da Graça, sancta e benta.
HEB. Ella assi o representa,
Segundo a graça que tem;
Mas de ti valho eu setenta.
Vem a Lei da Graça, per nome Veredina, e diz
cantando:
358 LIVRO I.

VEREDINA.
"Serranas, não hajais guerra,
"Que eu sam a flor desta serra."
Oh que malhada, e que gado,
E que tempo, e que pastora!
Por sempre seja louvado
Huin so Deos que no ceo mora:
Elle m'enviou agora
Das alturas ca na terra,
"Pera ser flor desta serra.
"Serranas, não hajais guerra."
Ovelhas e cordeirinhos
He o meu gado maior;
Muito humildes e mansinhos,
E pascem pólos caminhos
E montes do Redemptor:
Elle he o summo pastor;
"E vós escusae a guerra,
"Qu'eu sam a flor desta serra.
Outra mais alta pastora
Anda na serra preciosa,
Imperatriz gloriosa,
Principal minha Senhora.
Esta dos anjos se adora
Sancta Rainha na terra;
" E me fez flor desta serra.
"Serranas, não hajais guerra."
Eu repasto suas cordeiras
Virgens e martyrisadas,
Que leixão frescas ribeiras,
E as mundanas ladeiras,
Por serem sacrificadas.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 359

Vós outras sois ja acabadas,


Por demais he vossa guerra,
"Qu'eu sam a flor desta serra.
"Serranas não hajais guerra."
Não he ja tempo de vós,
Porque o tendes ja cumprido,
E se abrirão os ceos,
E lembrou-se o Senhor Deos
Do que tinha promettido:
E cumpria inteiramente,
Como eternal verdade,
Com Abrahão suavemente,
No mesmo tempo presente,
Porque foi sua vontade.
HEBREA.
Como! vindo he o Messias?
VER. Ja veio, e anda pregando,
Ensinando e declarando
As divinas profecias.
HEB. Isso estava eu esperando.
VER. Assi que a Lei da Graça
Ha de ter todo o cuidado,
Pastora mor de seu gado:
Isto he per força que eu faça,
Pois vosso giro he passado.
Na semana que passou,
Pera mais me confirmar,
Satanaz mesmo o tentou
Pelas vias que levou
Com Adão no seu pomar.
E ficou tão comprend|do
Do alto saber eterno....
360 LIVRO I.

Ei-lo vem, que anda fugido,


Porque ha de ser escozido
Dos algozes do inferno.
SATANAZ.
Como rapaz escolar,
Que hYesqueceo a lição,
E sabe que lhe hão de dar;
Assi sei que hei de apanhar
Desta vez hum estirão.
Não porque tenhão razão,
Se for nisto;
Porque eu tentei a Christo
Com muita arte e discrição:
Mas não me ha de valer isto.
Hei de haver tanta pancada,
Porque o não venci de feito;
Tanta negra tiçoada,
Que nunca foi embaixada
Recebida de tal geito.
E segundo o demo he feito,
Vejo a osadas
Estas barbas depennadas,
E os cabellos a eito,
E as orelhas cortadas.
Porém nossas hierarchias
Que culpa me dão aqui,
Se hoje faz oito dias
Fui hum gigante Golias,
Mas topei com elRei Davi?
De temor não lhe fugi,
Nem fiz falha
Em cominetter a batalha,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 361

Nem ficou nada por mi:


Mas não presto nem migalha.
Pude eu melhor pelejar?
Pude eu melhor resistir?
Pude eu mais negociar?
Que mais se pôde arguir?
Na matéria d'enganar
Comecei-lhe de armar,
Per cortezia,
Com piedosa hypocrisia:
Cuidei de o derríbar
Per este erro que sabia.
Ora pois desta feição
Lutei ousado e manhoso,
Que culpa me poerão
Ir topar com Antenhão,
Hercules mui façanhoso?
Porém he tão rigoroso
Lucifer,
Que não quer senão o que quer,
Como menino mimoso;
E a mim não m'ha de crer.
Vem Belzebu, e diz:
BELZEBU.
Como andas dessocegado!
Não sei que diabo has,
Que esta semana não vas
Ter ao nosso povoado,
Nem sabemos onde estás.
SAT. EU muito nas horas más,
Fui d'esperto
Ter com Christo no deserto;
362 LIVRO I.

Mas, desque eu sou Satanaz,


Não me vi em tal aperto.
BELZEBU.
Como! foi teu vencedor?
SAT. EU fiz-me pobre Barbato;
Mas he tão gran sabedor,
Que me conheceo melhor,
Que eu conheço meu sapato:
E ainda que feito pato
Eu lá fora,
Nem convertido em mulato,
Como o rato sente o gato,
Me sentira logo essora.
BELZEBU.
E se he bom ver sem candeia,
He cousa bem innovada:
Mas meu spirito receia,
Porque tenho atormentada
A filha da Cananea.
E se elle he dessa veia,
O cavalleiro,
Deitar-m'-ha, como a sendeiro,
Hüa solta e hüa peia,
E morrerei em palheiro.
Porque a mãe anda apressada
Pera o ir logo buscar,
E eu quero lá tornar,
Que a minha demoninhada
Ha de ser ma de. curar.
SAT. Se sua mãe acabar
Que elle queira,
Eu não te vejo maneira;
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 363

E se te elle hi achar,
Teras inunda carreira.
BELZEBU.
Irmão, quereis ir comigo?
SAT. Vae tu, eramá pera ti,
Qu'eu não posso ir condigo,
E bem m' abasta o perigo
Em que domingo me vi.
Elle ha de vir pera aqui
De rondão
Pera Tiro e Sidão:
Quero ver que faz per hi
Este famoso leão.
BELZEBU.
Eu vou ora atormentar
A filha da Cananea;
E quem a de mim livrar
Fará d'hum rato balea,
E fará secar o mar.
SAT. Vae tu, qu'eu hei d'espreitar
Alguns dias
Se será este o Messias,
Ou o Deos que ha de encarnar,
Como escreveo Isaias.
Porque Abrahão, na verdade,
Nem Elias, nem Moisem,
Não forão da sanctidade,
Nem poderio que este tem,
Nem com grande quantidade.
BEL. Fallas á tua vontade
Eramá;
364 LIVRO I.

Se tu isso dizes ja,


Mao caminho leva o abbade.
Vem Christo, com elle seis Apóstolos, S. Pe
João, S. Thiago, S. Filipe, S. André, S.
e diz
S. THIAGO.
Irmãos, cumpre-vos saber
Como havemos de orar,
E quando houvermos de rezar,
Que havemos de dizer,
Pera nos aproveitar.
E pera s'isto alcançar
Do Redemptor,
Seja Pedro embaixador;
E emquanío elle fallar, >
Adoremos ao Senhor.
S. PEDRO.
Toda esta congregação,
Poderoso Rei sem par,
Te pede com devação
Que os ensines a orar,
E orando que dirão.
Porque estão na região
De ignorantes,
Símprezes principiantes
Perguntão por onde irão,
Como novos mareantes:
E que he o que pediremos,
Quando houvermos de rezar,
E ein que tempo rezaremos,
E as horas e o logar.
E todos estes extremos
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 365

Assi que nos soccorremos


Per tal via
r

A tua sabedoria,
Que nos dê o que não temos.
CHRISTO.
A justiça e boa petição
Traz bom despacho coinsigo;
Mas bento he o varão
Que reza com coração,
E com alma e com sentido:
Que o rezar não he ouvido,
Nem he nada,
Sem alma estar inflamada,
E o spirito transcendido
Na divindade sagrada.
Nem cuideis que arrecadais,
Por rezar muita oração,
Se no coração estais
Fora de contemplação.
Tende prompto o coração
Em seu louvor;
E com lagrimas de amor,
Direis esta oração
A grandeza do Senhor:
Pater noster, qui es in ca>lis, sancti-
ficetur nomen tuum: adveniat regnum
tuum; fiat voluntas tua, sicut in cedo
et in terra.
Com almas limpas e puras,
Direis isto ao Senhor,
Firmando-o por creador,
E padre das creaturas,
366 LIVRO I.

Que he no ceo Imperador.


E direis com grande amor:
Seja louvado
Teu nome e sanctificado,
Neste nosso orbe menor,
Como es no ceo adorado.
E direis a sua Alteza:
O teu reino venha a nós:
Em que pedis fortaleza,
E mais pedis pera nós
Graça e desperta limpeza,
E mais perfeita grandeza
De bondade,
E pedis á Deidade
Que por toda a redondeza
Seja feita a sua vontade.
Panem nostrum quotidianum da no-
bis hodie; etdimitte nobis debita nostra,
sicut et nos dimittimus debitoribus nos-
tris; et ne nos inducas in tentationem,
sed libera nos a maio. Amen.
Direis mais nesta oração,
Sempre com esprito attento,
E com prompta devação:
Faze-nos mercê do pão
De nosso sustentamento;
Porque o certo mantimento,
Mais facundo,
Não se cria ca em fundo,
Nem a neve, nem o vento,
Nem na terra, nem no fundo.
E pedi-lhe, filhos, mais,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 367

Com choros do coração,


Que nos dê hüa quitação
Das dividas em que lhe estais
De vossa condemnação.
Isto com tal condição
Lh'o pedireis,
Que assi perdoareis
Os males que vos farão;
E senão, não no espereis.
E com gemente tenção
Lhe haveis, filhos, de pedir
Que vos não leixe cair
Em nenhüa tentação,
Que vos possa destruir.
Ca não podeis resistir
Ás tentações
Sem Deos, que vence os dragões,
Que vos querem destruir
Per engano os corações.
E mais pedi per final,
Huinildosos e devotos,
Como a padre general,
Que nos perigos ignotos
Vos livre de todo o mal.
Vem a Cananea, cantando.
CANANEA.
"Senhor, filho de David,
"Amercea-te de ini:
"Senhor, filho de David,
"Amercea-te de mi."
Que minha filha he tentada
D'espritos que não tem cabo,
368 LIVRO I.

E minha casa assombrada,


Minha câmara pintada
De figuras do Diabo.
De mal tão accelerado
Quem se livrará sem ti?
"Senhor, filho de Davi,
"Amercea-te de mi."
Triste mulher que faras!
Tanta pena quem t'a deu!
r

O Inferno, que fiz eu,


Que mandaste a Satanaz
Que m'esbulhasse do meu!
Como esbulhada do seu,
Soccorrer-me venho a ti.
"Senhor, filho de Davi,
"Ainercea-te de mi."
Tem os seus braços torcidos,
Os olhos encarniçados,
Os cabellos desgrenhados,
Seus membros amortecidos;
Dá gritos, faz alaridos,
E o soccorro está em ti.
"Senhor, filho de Davi,
"Amercea-te de mi."
Mostra aqui teu poderio,
Manifesta tua grandeza,
E exalça teu senhorio:
Salva-me no teu navio,
No mar de tanta tristeza;
Pois he sobre natureza
Este mal, pois que te vi,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 369

"Senhor, filho de Davi,


"Amercea-te de mi."
S. THIAGO.
r

O Senhor, por piedade


Escuta aquella mulher,
Pois tens de propriedade
Com muito boa vontade
Receberes quem te quer:
E o que te requer
Lhe concede.
Não olhes seu merecer;
Mas ve bem o que te pede
Se se pôde conceder.
S. JOÃO.
Senhor, a tua clemência
Pertence aos atribulados;
Esta dona com seus brados
Chama a tua providencia,
Que he mãe dos desconsolados.
Sejão, Senhor, inclinados
Teus ouvidos
A seus prantos e gemidos,
Porque sejão consolados,
E seus dainnos soccorridos.
S. PEDRO.
Eu creio que es pastor,
E os humanos teu gado,
E o lobo he o Diabo
Seu contrário e matador.
E pois te inata, Senhor,
Esta ovelha,
Incrina-lhe tua orelha;
Vol. I. - '
370 LIVRO I.

Que, segundo seu clamor,


Algum anjo a aconselha.
CHRISTO.
Eu não sam ca enviado
Per piedoso nivel,
Senão soccorrer ao gado,
Que pereceo no montado
Das.ovelhas d'Israel.
Por este vesti borel
De vil terra,
E não por gado de serra,
Que pasce feno infiel,
Sem querer sentir que erra.
CANANEA.
Senhor, não hei de cançar,
Pois ai não posso fazer;
Tu queiras-ine perdoar,
Porque te hei d'importunar,
E tu m'has de soccorrer:
Não que por meu merecer
Tal confio;
Mas peço a teu senhorio,
Que me outorgue o seu querer,
Pois creio o teu poderio.
S, THIAGO,
Oh que fé e que fervor,
E que esforçada vontade!
Bein merece a peccador
Que alcance algum favor
De tua suinma piedade
Mostra a sancta majestade
E perfeição
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 37f

Nas províncias de Canão,


E toda a geralidade
Dos demônios pasmarão.
BELZEBU.
Oh quem vos mette, Senhores,
Em rogardes por ninguém?
Que quando rogardes bem
Por vós outros peccadores,
Ficareis ainda áqtiem.
Que vos vai, ou que vos vem,
Pois d'abinicio
Assombrar he meu oífieio,
E taxados quaes e quem?
S. PEDRO.
¥

O maldito Belzebu,
Quem te deu a ti poder
Que atormentasses tu
Nenhum homem nem mulher,
Sem ter direito nenhum?
BELZEBU.
Senhores Sanctos bemditos.
Hi ha planetas visíveis,
Ha hi outras invisíveis,
Que pertencem aos spirftos,
E causão cousas terríveis.
Qualquer que nascer sujeito
A maldita conjunção,
Sem nenhüa appellação,
Nem estylo de direito,
Pertence á nossa prisão,
Assün como quem nascer
24'
372 LIVRO I.

Na conjunção desastrada
Em que peccou Lucifer.
E quem nasceo na hora tal
E planeta em que peccárão
Os Judeus, quando adorarão
O bezerro de metal,
Pera nossos se gerarão.
Também quem nascer no fito
Da conjunção em que cuido,
Que aftbgou o mar ruivo
Os cavalleiros do Egypto,
São nossas almas e tudo.
Também he da nossa alçada
Toda a pessoa nascida
Na conjunção celebrada
Que Sodoma foi queimada,
E Goinorra sovertida.
E he perdido também
Todo o que nascido for
Na conjunção do item,
Em que com bravo furor
EIRei Nabucodenusor
Destruio Jerusalém.
E esta moça de Canão,
E filha desta Senhora,
Foi nascer na conjunção
Que reinava a nossa hora.
E pois vós rogais por ella
A vosso Mestre, qu'eu temo,
Eu vou chamar outro demo,
E entraremos juntos nella,
E veremos este extremo.
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 373

E vós, Christo, não deveis,


Pois dizem que sois eterno,
Agravar o sancto inferno,
Nem quebrantar suas leis,
E seu sagrado caderno.
S. PEDRO.
Oh que parvo pregador!
Oh que falsa astroloinia!
Que inao siso de doutor!
Que ignorante sabedor,
E que douda fantasia!
w

O mestre da vaidade,
Tu não sabes que es cativo,
E escravo da Trindade?
Quem te deu ter potestade
Sobre nenhum corpo vivo?
BELZEBU.
Não dizem que o Esprito Sancto
Fallava dentro em Davi,
E dos profetas assi?
Porque não farei outro tanto
Nos que tenho pera mi?
E Deos Padre não assombrava
A Moisem com terremoto,
Cada vez que lhe fallava?
Canfeu vi que assombrava
Com temores seus devotos.
S. PEDRO.
Tu queres ser igualado
Com Deos, summa das grandezas?
Como es desavergonhado,
Triste, maldito, austinado,
374 LIVRO I.

Cheio de vans subtüezas!


Não lh'ouçamos vaidades,
Va fallar com quem quizer;
Porque em lhe responder
Honramos suas maldades,
E isso he o qu'elle quer.
CANANEA.
Ó Senhor, escuta a triste,
De todo emparo estrangeira.
Ja, Senhor, viste e ouviste
Em que desastre consiste
A dor da minha canceira.
Não abasta atormentada
Minha filha, e minha dor
Ferida, escalabrada,
Mas agora ameaçada
Pera cada vez peor?
S. Joio.
Supplicainos-te, Senhor,
Que hajas delia piedade.
CHR. Ja vos fallei a verdade;
Meu padre me fez pastor
Do gado da sua vontade,
Das ovelhas de Jacó,
Que procedem de Abrahão:
E dos povos de Canão
Ninguém haja delles dó;
Fazei conta que cães são.
Como aos filhos consentis
Que lhes tire o mantimento,
Polo dar aos cães cevis?
Injusta cousa pedis
DAS OBBAS DE DEVAÇÃO. 375

Com vosso requerimento.


CAN. EU digo, Senhor, que si;
Não tenho disso querella,
Confesso que sou cadella,
E de cadella nasci;
E sou mais perra que ella.
E porém as cachorrinhas
Com os cães deste teor,
E os gatos e gallinhas
Se fartão das migalhinhas
Da mesa de seu senhor:
Quanto mais os seus manjares-.
Que es padre das companhas,
Fartas montes e montanhas.
E desertos e logares,
Até bichos e aranhas.
Com glória, mui sem trabalho,
Fartas os mares e rios,
E as hervas de rocios,
E os lírios de orvalho
Nos logares mais sombrios. À
O Criador liberal,
Que lá nos bosques perdidos
Tens os bichinhos providos,
E a mim so, por meu mal,
Os emparas escondidos!
Pleni sunt cceli et terra
Majestatis gloria; tua>:
Pois inda que seja perra,
Não me leixes tu tão nua
Nesta triste e cruel guerra:
Que se ha remédio sem ti.
376 LIVRO I.

Eu não o posso entender;


E se fesquivas de mi,
Que excommungada nasci,
Quem outrem pôde absolver?
Oh thesouro dos prazeres
E esperanças merecidas!
Pólos teus sanctos poderes
Te peço, Senhor das vidas,
Que' tu não me desesperes.
E se por ser Cananea,
E filha de perdição,
Desprezas minha oração;
A mísera anima mea
Onde achará redempção?
Se perco por mulher ser,
Por meus errores profundos,
Senhor, deves tu de ver
Que nasceste de mulher
Escolhida entre mil mundos.
CHRISTO.
Mulher, muito grande he
O teu bom perseverar,
E muito grande a tua fé;
E he justo que te dê
O que vieste buscar.
Porque tens muito soffrido,
Como constante oradora,
Mando que logo nessora
Se cumpra o que tens pedido,
E sejas san desd'agora.
Em este passo vem fugindo o demônio Belzebu, c topa
com Satanaz, e diz:
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 377

BELZEBU,
Venho saber que isto he.
SAT. Como vens assi turvado?
BEL. Chegou-nos lá hum recado
De Jesu de Nazaré,
Mui terrível e apertado.
SAT. Que recado? BEL.< Eu t'o direi,
Que nenhüa cousa fique.
Não era mais seu repique,
Senão íte maledicti patris mei.
SATANAZ.
Mais que me faz pasmar
Como chegou isso lá;
Que Christo não foi de ca,
Nem se bolio d'hum logar.
BEL. Não sei com'isso será;
Que éramos mil escolhidos
Procedidos das nações
Daquelles coros subidos,
Thronos e Dominações.
A moça com grandes gritos
Ajuntou toda a cidade;
E veio hüa claridade,
Que nos cortou os espritos.
SAT. De fogo, ou que calidade?
BEL. Era assi hum resplandor
Cercado de nuvens pretas;
Os raios erão de seitas,
E o fogo de temor.
No meio logo olhei,
Onde mil espantos vi:
Então sahia dalli
378 LIVRO I.

Esta voz do alto Rei:


Ite, maledicti patris mei.
SAT. Era ahi teu irmão comtigo?
BEL. Meu irmão e teus cunhados,
E Belial teu amigo,
E teu pae era comigo
E os Seraphins desbarbados.
E todos forçosamente
Fomos lançados dalli:
E assi supitainente,
Sem vermos nenhüa gente,
Nos arrastarão per hi.
Pelejar não no ouvi,
Nem chamar aqui-d'elrei,
Senão esta voz assi:
Ite, ite, maledicti patris mei.
Oh que voz pera temer!
Que temor pera sentir!
Que sentir pera doer!
E que dor pera sofirer
A quem tal voz comprender!
SAT. Não estou maravilhado
Senão d'estar hi Hulcão,
E Gerundo bem armado,
E o drago Frei Tropâo,
E não terem coração
Pera se dar a recado.
BELZEBU.
Porque fallas ao desdém,
E me culpas sem concerto,
Poisque viste no deserto
O poder que Christo tem,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 379

Que atégora foi cuberto?


Porém quem adivinhara
Que no inundo visse eu
Nenhum homem que ousara,
E sem temor me lançara
Per força fora do meu?
SATANAZ.
Rogo-te que pratiquemos
Neste homem quem será.
BEL. He hum extremo d'extremos,
Hum caso que não sabemos,
Nem sei se se saberá.
SAT. EU acho no meu caderno,
Qu'isto são desaventuras;
Porque esse homem he eterno,
E ha de roubar o inferno,
E deixar-nos ás escuras.
Vão-se estes, e diz Christo aos Discípulos:
CHRISTO.
Onde o temor sempre atiça,
E o receio melhor cabe,
He no ladrão; porque sabe
Que deve muito á justiça;
Então teme que o pague..
Assi o imigo infernal,
Como peccou por maldade,
Onde enxerga sanctidade,
Tem-lhe temor natural,
E grande ódio per vontade.
Eu vos dei hoje lição
De como haveis de orar,
E quando, e de que feição,
380 LIVRO I.

E o que haveis de fallar


Em vossa sancta oração.
Pois mais haveis de saber,
E notac isto de mim:
Que quem a Deos ha de haver,
Lhe convém permanecer
Nas virtudes até fim.
Porque Deos he duração,
Glória sem acabamento,
E não ha por perfeição
Dous annos de devação,
E trinta d'esquecimento.
Bem viste esta mulher,
E o seu perseverar,
Seu soffrer e o seu crer,
E com isto receber
Quanto quiz arrecadar.
Rogo-vos sem mais latins,
Por alcançardes o preço
Dos anjos e seraphins,
Que sempre os vossos fins
Concertem com o começo.
Notae o soffrer d'Elias,
As paciencias de Job,
As prisões de Jeremias,
As fortunas de Jacob,
E como acabarão seus dias.
Vem a Cananea, e diz:
CANANEA.
Ajudae-me a dar louvores
E graças ao Redemptor,
DAS OBRAS DE DEVAÇÃO. 381

Pois fostes meus rogadores


Até fim de minha dor.
S. PEDRO.
Vere dignum et justum est,.
Pois que a todos fez mercê.
Adoremos nosso mestre
Cheio de graça celeste,
Como por obra se ve.

E cantando C l a m a v a l a u t c m , se acaba o dito auto.

H*~
F I G U R A S .
H U M PORRE.
S. MARTINHO.
PAGENS.

O auto que adiante se segue foi representado á mui


caridosa e devota Senhora a Rainha D. Leonor na Igreja
das Caldas, na procissão de Corpus Christi, sobre a cha-
ridade que o bemavcnturado S. Martinho fez ao Pobre,
quando partio a capa. Era do Senhor 1504.
ALTO DE S. MARTIIXHO.

Entra o Pobre, dizendo:


POBRE.
O piernas, llevadme un paso siquiera;
Manos, pegad os naqueste bordon,
Dcscansad, dolores de tanta pasion;
Siquiera un momento en alguna manera
Dejadme pasar por esta carrera,
Iré á buscar un pan que sostenga
Mi cuerpo doliente, hasta que venga
La muerte que quiero por mi compafiera.
Devotos Cristianas, dad ai sin ventura
Limosna, que pide por verse plagâdo:
Mirad ora ei triste que estoy lastimado
De pies y de manos por ini desventura;
Mirad estas plagas que no sufren cura;
Ya son incurables por mi triste suerte.
Ay! que padezco dolores de muerte,
Y aquesto que vivo, es contra natura.
Mirad ora ei triste con mucho dolor;
Que ante de muerto me comeu gusanos;
Mirad ei tollido de pies y de manos;
Mirad Ia miséria de mi pecador.
Dadme limosna por aquelle Senor,
Que guarde á. vosotros de tantos dolores.
Limosna bendita me dad, mis senores;
Que ya no Ia puede ganar mi sudor.
Haved compasion dei pobre doliente,
Que ya se vió sano manoebo y lúcido.
O mundo que medas, á qué ine has traído!
384 LIVRO I.

Qué recio solia yo ser y valiente,


Cuán alabado de toda Ia gente!
De recio, galan, qué fue de mi bien?
O muerte, qué tardas, quien te detien;
Que yo no me atrevo á ser mas paciente.
O paciência que en Job reposo,
Qué quieres que haja con tantos tormentos?
Perdóname tú, que mis sufrimientos
No pueden callar Ia miséria en que só.
Criante rocio, qué te hice yo,
Que las hiervecitas floreces por Mayo,
Y sobre mis carnes no echas un sayo,
Ni dejan dolores que lo gane yo?
Deje Ia muerte las ninas, las duenas,
Y deje doncellas gala nas vivir:
Deje las aves cantares decir,
Y deje ganados andar por las penas.
Llévame á mi: por qué me desdenas,
Y inatas sin tiempo quien merece vida?
Sácame ya desta cárcel podrida.
Mi anima triste, no quieras mas senas.
Dadme ora limosna por Ia pasion
Del hijo de Dios, que pobre se vido,
Daquel que por nos fue muerto y herido,
Doliente y plagado por Ia redencion.
Mirad ora, ricos, que teneis razon
Dar de sus bienes, pues sois tesoreros,
Sed los suyos buenos dispenseros,
Y vuestras riquezas se os doblaron.
Vem S. Martinho, cavalleiro, com três Pagens, a diz o
r
' '• POBRE.
Devoto Senor, real caballero,
DAS OBBAS DE DEVAÇÃO. 385

Volved vuestros ojos á tanta pobreza,


Que Dios os prospere vuestra gentileza :
Dadme limosna, que de hambre me úmero.
MAR. Hermano, ahora no traigo dinero:
Vosotros traeis que demos por Dios?
PAG. No ciertamente. S. MAR. Entrambos á dos
No traeis que demos á este romero?
POBRE.
NO hay dolor que en mi no lo sienta:
Haved de mis inales, Senõr, compasion.
MAR. Quien ora tuviesse daquella pasion
La parte que tienes que mas te atormenta!
POB. Guárdeos Dios de tan grande afrenta;
Dios lo prospere con mucha salud.
Dadme limosna por vuestra virtud,
Que mi gran pobreza no hay quien Ia sienta.
S. MARTINHO.
No sé que te dé, de dolor de ti,
Ni puedo á tus males ponerte remédio.
Partamos aquesta mi capa por médio;
Pois otra limosna no traigo aqui:
Rógote, hermano, que ruegues por mi.
Pues sufres dolores nesta triste vida,
Tu anima en gloria será recebida
Con dulces cantares, diciendo así.
Emquanto S. Martinho com sua espada parte a capa,
cantão mui devotamente hüa prosa. Não foi mais porque
foi pedido muito tarde.

FIM no LIVRO 1.
ERRATAS.
Pag. lin. CITO emenda
14 12 madruga madrugada
30 21 yo te digo ya te dijo
48 nll. trotrt trato
70 10 jüeaceva Alcaçova
101 4 Beocio Boecio
125 14 ANDRÉ ANJO
131 11 targer tanger
15ü ult. guamidas guarnecidas
191 31 Imperodora Jmperadova
222 27 falia: ONZENEIKO
238 IS J o g a taes Jogntais
348 1!) onde v o s . . . onde r a s ?
I N D E X .

Pag.

ADVERTÊNCIA. ,

ENSAIO SOBRE A VIDA E ESCRIPTOS DE G I L VICENTE-

Visitação i
Auto pastoril Castelhano y
Auto dos Reis Magos 23
Auto da Sibila Cassandra 36
Auto da Fe' 64
Auto dos quatro Tempos nn
Auto da Mofina Mendes ioo
Auto Pastoril Portuguez. 127
Auto da Feira i5l

Auto da Alma i85


Auto da Barca do Inferno 2i5
Auto da Barca do Purgatório 246
Auto da Barca da Gloria 275
Auto da Historia de Deos 3o6
Dialogo sobre a Resurreição 343
Auto da Cananea 355
Auto de S. Martinho 383
*w**
«tff "V

:«.V'J»'

Wvr.

*vllj*
W;**
,<rs£ , ãtwe
-<*.-. ".






BRASILIANA DIGITAL

ORIENTAÇÕES PARA O USO

Esta é uma cópia digital de um documento (ou parte dele) que


pertence a um dos acervos que participam do projeto BRASILIANA
USP. Trata‐se de uma referência, a mais fiel possível, a um
documento original. Neste sentido, procuramos manter a
integridade e a autenticidade da fonte, não realizando alterações no
ambiente digital – com exceção de ajustes de cor, contraste e
definição.

1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais.
Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são
todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial
das nossas imagens.

2. Atribuição. Quando utilizar este documento em outro contexto,


você deve dar crédito ao autor (ou autores), à Brasiliana Digital e ao
acervo original, da forma como aparece na ficha catalográfica
(metadados) do repositório digital. Pedimos que você não
republique este conteúdo na rede mundial de computadores
(internet) sem a nossa expressa autorização.

3. Direitos do autor. No Brasil, os direitos do autor são regulados


pela Lei n.º 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Os direitos do autor
estão também respaldados na Convenção de Berna, de 1971.
Sabemos das dificuldades existentes para a verificação se um obra
realmente encontra‐se em domínio público. Neste sentido, se você
acreditar que algum documento publicado na Brasiliana Digital
esteja violando direitos autorais de tradução, versão, exibição,
reprodução ou quaisquer outros, solicitamos que nos informe
imediatamente (brasiliana@usp.br).
•*fik
«fw-*
* *

&* . .J^ ' .-**

~i&X ^

»'V
>' % ? T ^ '
le ne fay rien
sans
Gáyete
(Montaigne, Des livres)

Ex Libris
José Mindlin
(DLBJBH
DE

#11 15 ^W"
&

CORRECTAS E EMENDADAS

PELO CUIDADO E DILIGENCIA

DE

3. i), Jarreto Mo c 3. <B. Monttm.

TOMO SEGUNDO.

müMBtíri&cEcí)
NA OFFICINA TYP0GRAPI1ICA DE T.ANGHOFF.
1834.
LIV/RÍJ' m.

DAS COMEDIAS.
F I G U R A S DA I a SCENA.
PROLOGO.
H U M L I C E S C E A ü O.

RUBENA.
BENITA — Criada
Hua PARTEIRA.
Hüa FEITICEIRA.
LEGIÁO
PLUTÁO
Díanos.
DRAGUINHO
CAROTO

A seguinle comedia he repartirla cm tres scenas. Foi


feita ao muito poderoso e nohre liei D. Joño / / / , sendo
Principe; era de 1521-
COMEDIA DE RUBENA.

SCEUTA P R I M E I R A .

Primeiramente entra por argumento hum Licenceado,


diz:
LICENCEADO.
En tierra de Campos allá en Castilla
Había un abad, que allí se inoraba;
Tenia una hija que mucho preciaba,
Bonita, hermosa á gran maravilla.
Un clérigo mozo, que era su criado,
Enamoróse daquella doncella;
La conversación acabó con ella
lio que no debiera haber comenzado.
Llamaban á ella por nombre Rubena:
Hallóse preñada, el mozo huyó:
Todos sus meses arreo encubrió,
Que viva persona sabía su pena.
Su padre era fuerte, cruel por nación,
Celoso, muy bravo, sin templa ninguna.
Lloraba Rubena su triste fortuna,
Rompiendo las telas de su corazón.
Estando una noche sin mas compañía
Que sola tristeza sin partirse della,
Saltan los dolores de parto con ella,
Su padre acostado, pero no dormía.
6 LIVRO II.

Sin esperanza de algún abrigo,


Viéndose asida de tanta tristura,
Sufriendo sus penas con mucha cordura,
Empieza diciendo entre sí consigo.

RUBENA.
Ay de mí, de mí robada,
Y no de otros robadores!
Ay de mí desventurada!
Ay! que no puedo cuitada
Decir ay á mis dolores!
Ay! que no oso quejar!
Ay! que no oso decir!
Ay! que no oso querellar;
Ni me puedo ya vingar
Del consentir!
Oh triste de mí Rubena!
A quien me descubriré?
A quien contaré mi pena?
Como porné en mano agena
Mi vida, mi honra y mi fe?
Oh mocedad desdichada,
De falso amor engañada,
Engañada sin sentido!
Qué haré desamparada?
Qué haré triste preñada
Sin marido?
Escuro parto escogí
En peligroso secreto:
Qué será triste de mí!
O Dios! porqué me salí
DAS COMEDIAS.

De mí camino discreto!
Quien tuviera, ó quien hallara
Una preciosa vara,
Que tuviera tal condón,
Que improviso me llevara
A alguno que me sacara
El corazón?
O tristes nubes escuras,
Que tan recías camináis,
Sacadme destas tristuras,
Y llevadme á las honduras
De la mar, adonde vais,
üuélanvos mis tristes hadas,
Y llevadme apresuradas
Aquel valle de tristura,
Donde están las mal hadadas,
Donde están las sin ventura
Sepultadas.
Oh cuanto benditas son
Muchas doncellas que vi,
Que para su proprio varón
Guardaron su perfección,
Y no la triste de mí!
Benditas y bien libradas
Desposadas y casadas,
Corona de sus parientes!
Ay! que me ciercan puntadas!
Mis angustias son llegadas,
Y accidentes.
Yo misma quiero el morir.
Porqué me apertaís, dolores?
Que mas duele arrcpentir
8 LIVRO II.

Dos mil veces, que el parir.


No penséis que sois mayores.
En pensar cuan preciada
Desde niña fui criada,
Y por tan vil paso amaro
Á tal punto soy llegada,
Tan desierta y alongada
Del amparo.
Siempre de mí padre amada,
Siempre de todos querida,
Siempre vestida, arrayada,
Siempre señora llamada,
Siempre adorada y servida,
Siempre horra y muy exenta,
Siempre en puerto sin tormenta,
Mas mirada que la luna,
Siempre leda muy contenta:
Mas ahora me toma cuenta
La fortuna.
Yo si me descubriere
A Benita, decirlo ha:
Si solo en mi cabo pariere,
Y pariendo me muriere,
Muy mas claro se verá.
Sin ventura, qué haré?
Adonde me esconderé,
Que me cíercan los dolores?
O Rubena! di porqué
Creíste la falsa fe
De los amores!
l'em Benita, sita criada, c rir.
DAS COMEDIAS.

BENITA.
Señora, con quien habláis?
Vos veis alguna visión;
No sé de que os quejáis.
RUB. Del mal de ini corazón.
BEN. Las quejadas
Tenéis tan descarílladas,
Y la barriga rellena,
Las espaldas empandadas;
No sois vos esta aosadas:
Con quien trocastes, Rubena?
RUBENA.
Con nadie; no sé que dices.
BEN. Tenéis los ojos sumidos,
Y delgadas las narices.
RUB. TÚ no ves que son lombrices?
BEN. NO entiendo estos partidos.
Ansí será,
Y eso mismo os causará
Tener ojeras y paño.
RUB. Ay! qué gran dolor me da!
BEN. Será de la frialdad
Que cogiste ora ha un año.
RUBENA.
Ay! dolores de pesar!
BEN. Bien entiendo á mi señora,
Y ella quiéreme cegar.
RUB. Qué? BEN. Digo que no se pensar
Que remedio os busque ahora.
RUB. Oh Benita!
BEN. Estávades tan bonita
Nueve meses habrá,
10 LIVRO II.

Blanca, tan coloradíta,


No sé que dolor maldita,
Ó que cosa esta será.
Parece que os salta el bazo
En derecho del ombligo:
No entiendo este embarazo.
RUB. Corrimiento es deste brazo,
Que nunca acaba conmigo.
BEN. Bien está:
Andáis de acá para allá
Descalza por las nieladas,
De corrimientos será.
RUB. Llámame Genebra acá,
Que te haden buenas hadas.
Que me venga á bendecir
Del quebranto mucho presto;
Presto, que quiero morir.
BEN. Paréceme esto parir.
RUB. Qué dices? BEN. Digo que me pesa desío
En gran manera.
RUB. Pues aguija antes que muera.
BEN. Tened, tened sufrimiento,
Y descansareis siquiera.
RUB. Vé por la bendicidera.
BEN. Quiéroos decir un cuento.
Diz que era un escudero,
Tenia la muger tinosa,
Y subiendo en un otero,
Encontró con un vaquero
Desollando una raposa.
El escudero cuitado
Andaba desarrapado.
DAS COMEDIAS. 11

Las nalgas todas de fuera,


Y el haz desamparado,
El cogote trasquilado,
Sin osar decir quien era.
Como persona sentida
Sendo ansí por las montañas...
RUB. Oh! quien no fuera nacida!
Viéndome salir la vida,
Paraste á contar patrañas?
BEN. Pues otra sé yo de un carnero...
RUB. Anda, triste, que me muero.
No ine irás por el vivir?
BEN. Déjame cantar primero.
"Tiempo era caballero,
"Que se me acorta el vestir."
Mas mal ay de lo que suena,
No se puede esto atapar.
Bien vi yo enorabuena
Que las risas de Rubena
Nesto habían de parar.
Tanto burlar y reír,
Y tanto ir y venir
El ojo al clérigo nuevo,
Húbola de bendecir.
Y ella quiérelo encubrir,
Estando ya al rabo el huevo.
RUBENA.
No te entiendo. BEN. Voy resando.
RUB. O dulce Virgen gloriosa,
Á tí pido suspirando,
Que te pases deste bando
De Rubena desdichosa:
12 LIVRO II.

Tú, que tuviste encubierto


Aquel divino secreto;
Encubre mi triste suerte;
No mires mi desconcierto;
Que, sin tí, hago concierto
Con la muerte.
Vem hüa Par te ir a, e diz:
PARTEIRA.
Bento he o Sancto Spiríto,
Rento he o San Miguel,
Bento he o Padre, bento he o Filho,
Benta he a Virgem do Lorilo,
E o anjo San Gabriel.
E vos, donzella,
Que fazedes, minha estrella?
RUB. Estoy mucho afatigada.
PAR. Nao hajades vos aquella:
Bem vejo que estáis pejada.
Isto he cousa natural,
E muito acontecedera.
Se nunca fóra outra tal,
Disseramos que era mal
Por serdes vos a primeira.
Somos eirá de cangrejos;
Ha hi homens táo sobejos,
Que, ma traína que lhes nasca,
Com engaños, coin despejos,
Lá buscad ina ora ensejos
Pera elles tomarem caca.
Reirá de mor te apertada
Liles salte ñas ilhargadas;
Caganeira esforricada,
DAS COMEDIAS 13

Que nao sáiao da privada


A engañar as coitadas.
RUB. Madre, oyís?
PAR. Doem-vos a vos os quadris?
RUB. Mas, en veniendo Benita,
Haced que bendecís.
Chega Benita e diz:
BEN. Señora, como os sentís?
RUB. De muy gran tormento aflita.
( Faz a Parteira que i benze.)
PARTEIRA.
Estava Sancta Anna ó pé do loureiro,
Veio o Anjo por messageiro.
Vae-te á porta do ouro,
Acharas leu parceiro;
Tira a roca, e abraca-o primeiro.
Vae Joaquim apoz o carneíro,
E naquella hora que Déos verdadeiro
Concebeo Anna em liinpo celleiro,
A Sancta María rézao o salleiro,
Que ja o quebranto cahío no ribeiro.
BENITA.
Y como ora es quebranto
Que está metido en la madre,
Busquemos el brizo entanto,
Y algo para la comadre.
Ea dice, bendicidera,
Puede ser mayor ceguera,
Que querer nadie encubrir
El cielo con la juera?
PAR. HUÍ! que diz a chocalheira,
Que nao faz senao grunhir?
14 LIVRO II.

BENITA.
Que quiera Dios que aproveche
Esa cura que hacéis:
Veo yo correr la leche.
RUB. Qué veis? BEN. No veo adó me eche,
Y son las horas que veis.
PAR. Ide-vos, minha donzella,
Trazede-me encenso e macella,
E a névoda. BEN. Demo he.
PAR. E tres oncas de canella.
BEN. Ansí vivas tú y ella,
Como yo acá porné el pie. Oaí-se)
PARTEIRA.
Mostrade ca, filha amiga,
Verei em que pontos stais.
Muí alta está a criancinha;
Nao pariréis tao asinha:
Asinha vos vos agastais.
RUB. Oh cuitada dolorida,
En que extremo está mi vida!
PAR. Mordei neste macapao;
Esforcae, rosa florida.
En venida e vos parida:
Kyrieleison, Christeleison.
Dizei tres vezes passinho:
O verbo caro foto he:
Dou-vos a San Sadorninho.
Saia ca o cordeirinho,
O cóneguinho da Sé.
E como a dor aperlar,
Puxar pera campear.
Va-se o tempo á inaresia,
DAS COMEDIAS. 15

Que o vento he de soprar;


E nao vos ha de leinbrar
Vergonha nem cortezia.
Ora sus, ininlia santinha,
Que se chega a vossa hora.
Empuxae, ininha pombinha,
E veredes quao asinha
Sai o cordeírínho fóra.
Dae de mao ao pousadeiro,
Leixae ir o escudeíro;
Que, como o Acento he de baxo,
Logo a chuva he no terreíro,
E o Tejo faz lameiro
Ñas leziras do Cartaxo.
Leda está Sancta María
Sobre o craro lüar
Em cadeira d'alegría:
Dizei-lhe hüa Ave María,
Emquanto eu vou mijar.
Nao afemenco eu aqui
Bom logar onde me assente.
Nunca ín' em tal pressa vi;
Mas aqui ou alli;
Bem vedes meu accidente.
( F a z que se assenta a hnm canto, e continua:)
Olhade ca, filha amiga,
Feítíceira haveis mister;
Porque, queréis que vos diga,
Ver-vos-hedes em fadiga,
Se vosso pae ca vier.
Eu voda quero ir buscar,
E inandar-vos-ha levar
16 LIVRO II.

Onde pariréis segura.


E, einquanto a vou chamar
Muilo asinha, sem tardar,
Vos detende a criatura, (vai-se)
RUBENA.
Venga ya todo el Infierno
Por esta triste Rubena;
Que yo bien sé y discierno
Que el infernal fuego eterno
No se iguala á esta pena.
Y pues mi suerte lo quiso,
No espero paraíso,
Ni acá sino tristura.
Venga el infierno improviso,
Que lleve á quien sin aviso
Escogió mala ventura.
Representase como Jiüa Feiticeira, a quem a Par-
teira foi dar conta deste negocio, per esconjuracoes e fei-
ticos fez vir quatro Diabos a seu chamado, e entra logo
Juan so, per nome JLegiao, e diz:
LEGIÁO.
O que ha de ser, ha de ser,
Porque sera o que for;
Porém torear hüa mulher
Todo o infernal poder,
Ja nao pode ser peor.
He hüa torta defumada,
Tapadeiro de privada,
Que faz tanta rapazia
Na metade de hfía cncruzilbada,
Que nos trouxe d'arrancada
A fazer-lhe cortezia.
DAS COMEDIAS. 17

Nenhüas pegadas váo


Por aqui dos outros tres:
Aínda elles ca nao sao.
Plutáo faz rasto de cao
Com as unhas ao revez;
Caroto tem pés de grou.
Inda elle ca nao passou
Draguínho rasto de burra;
A torta que me chamou,
Primeiro me nomeou,
E de contino m'accusa.
Eu quero-os ir esperar
No cume daquella serra,
Qu'elles hao-ine de buscar,
E faremos inao pezar
Desta que nos faz a guerra.
Pelo ar irei melhor,
Como peixe voador;
Qu'este mato vai muí basto,
Como quem sabe d'acor:
E por onde quer qu'cu for
Elles me acharáo o rasto.
Vem Plutao, Draguínho, Caroto, e diz
DRAGUÍNHO.

Andae, andae, companheíros;


Ca vaí o rasto de Leglao
Por cima destes outeiros;
Proprios dous malhadeiros
Sao os pés deste ladráo.
CAR. Ha milito? DRA. Agora est'hora
Passou por estes penedos:
Ei-lo aqui fresco d'agora,
2
Yol. II.
18 LIVRO II.

D'agora nao ha meia hora,


Nem creio que ha dous credos.
PLUTAO.
Mostra, mostra, companheiro,
Veremos que rasto faz.
DRA. Nesta lágea está inteiro
A o pé deste sovereiro.
Pi.u. Este he o rasto do rapaz.
DRA. Eis aqui onde einpecou.
PLU. Onde? DRA. Nesta penedia.
CAR. Pouco ha qu'elle passou.
DRA. Eis aqui onde mijou,
Á meia noite sería.
PLUTAO.
Aqui escorregou elle
Na meta do nevoeiro.
CAR. Crede que o deino ia nelle.
DRA. Aquí cocou elle a pelle
No pé deste sovereiro.
Pi.u. O perro ha d'esperar,
Porque elle nao ha de ousar
Ir sem nos á feiticeira.
LEG. Ja m'eu quizera espojar
D'enfadado de esperar
Ao longo desta ríbeira.
CAROTO.
Tomemos muí de vagar
Conselho inuito cuidado;
Que se esta ladra engar,
Nunca nos ha de deíxar
Dormir soinno assocegado.
DRA. TU nao sabes o porque ?
DAS COMEDIAS. 19

CAR. Pois falle Vossa Mercé,


Que sabe os passos da zona.
DRA. Este Caroto treslé.
CAR. Vamos lá, que nao se eré
A malicia desta dona.
Vao-se os Espiritos a chamado da Feiticcira, e diz
RUBENA.
O angustias y pesar,
Dad ya fin á mis gemidos,
Concluid á me matar;
No curéis de dilatar
A mis días consumidos.
Remedio ya no lo quiero,
Que, en comienzo de mi hado,
En alta voz dije — muero —
Que en mal tan demasiado
Tener cura no espero.
Vem a Feiticeira com os Diahos dianle de si, e tra-
zem hnm andor; e diz
LEGI.IO.
Eis-nos aquí; que nos mandas?
PLU. Que nos mandas, aleivosa?
DRA. Aleivosa, que demandas?
CAR. Que demandas, em que andas?
FEI. Que sirváis esta senhora.
Ora sus, remedeáda:
Levae-a muíto escondida
E trazede-m'a parida:
A criancinha engeitá-la
Onde seja recolhida.
Tomárao os Diahos a Rubena, no andor, e apartida
diz Rubena d Feiticeira.
2'
20 LIVRO II.

RUBENA.
Señora, pues consentí
Contra mí tan mala suerte,
Voyme del todo daqui.
Sí perguntaren por mí,
Decid que fui con la muerte:
Y á mi padre señor
Diréis, con algún color,
Que no haya de mí cura,
Y que me voy de temor;
Y me duele su dolor
Mas que mi desaventura.
Leva rao os Diabos a Rubena, e diz o Licenceado que
fez o argumento.
LICENCEADO.
Llevaron nel aire ansí á Rubena
Aquellos espritus á una montaña:
Parió una hija, mas linda de España,
Según trataremos en estotra cena.
Como se vído ya fuera de pena,
Echó sus vestidos en una ribera,
Ciñió su camisa las carnes de fuera,
Hermosa en cabello como una sirena.
Fue la cuitada de tierna edad
Subiendo la sierra, de entonces parida,
Por do la guiaba su mísera vida,
Sin otra compaña sino soledad.
Y por escusarnios la prolijidad,
Dejemos la madre, que es cosa profunda,
Y tratarse ha nesta cena segunda
Daqucsta MI hija de extrema bondad.
FIGURAS DA %\ SCENA.

FEITICEIRA.
DRAGUÍNHO.
CAROTO.
LEGIÁO.
PLUTÁO.
AMA DE CISMENA.

LEDERA ,
Fadas.
MINEA \
CISMENA.
JOANNE.
PEDRINHO
Pastorinhos.
AFFONSINHO
SCENA S E G U N D A .

Nesta segunda scena se conte'm de como Rubena parió,


e de como a Feiticeira mandón criar a menina, a que po-
zerao nome Cismena; e de como tudo aconteceo. Cometa
que, ficando a Feiticeira esperando que os Espiritos Ihe
trouxessem Rubena parida, está dizendo antre si:
FEITICEIRA.
Oh Rubena amarga rada!
Como partió táo sentida,
E táo mal acompanhada!
Quem m'a désse aqui tornada,
Antes que fosse parida!
Que quinqué vulto salmus es
Ante monta opus es.
Hui! tem a gaiola fidem
Cam nisi que antre o grao
E tudo per hi além.
No principio o verbio era
Era do verbio cheio;
O verbio era apodeo.
E nessa mita me era,
Esta voz era luz vera,
Que vai lá no neníenle,
Nao era elle luz luzente,
Como este lume de cera.
E o mundo mundo x'era,
Mundo x'era, e mundo x'he;
E se nisso falo niché,
E elle nisso mita era,
DAS C03IEDIAS. 23

E mundos nao combinaráo


Junto com o missus a Dea,
Testimonio, testimonio meo,
Cu jo nome era Joao.
Ave María Senhora
Cheia de graca plena,
Olhade ora por Rubena,
E trazede-Ihe a boa hora,
Os «tes vintus que inora
A vinta hum grave tive;
Polo que reina, c que vive,
Spiritos, trazede-a ora.
Oh que ma ora venhais,
E louvado seja Déos.
Jesu! quanto ine lardáis!
DRA. Vos, gentil dona, cuidáis
Que tudo he furtardes veos?
FEI. Ora sus, mexeriqueiros,
Onde leixais a parida?
DRA. A parida he fúgida
Lá por cima de huns ouleiros.
E manda pera cueiros
Tudo quanto aqui se monta;
E pois pedís della conta,
Vai nos días derradeíros.
CAU. Vai nos días derradeíros,
Desejando o derradeíro,
Com nojo muí verdadeiro,
E suspiros verdadciros.
DRAGUÍNHO.
Disse que alein dos cueiros,
Manda quantas joias tinha,
5>4 LIVRO II.

E se crie esta menina


Muito bem por seu dinheiro;
E que lhe chamein Cismena.
FEI. Mostrae ca por vida vossa,
E veremos se he fermosa.
Oh quáo propria he Rubena!
Quem lhe poz nome Cismena?
CAR. Cismena, sua máe lh'o poz.
FEI. Cismena! ora vistes vos
Nome novo ein térra agena?
Pi.u. Sancta dona, teinpo he
De nos vos dardes soltura;
J a nao tendes mais costura,
Deixae-nos por vossa fé.
FEITICEIRA.
Levantar ina ora em pé!
S'eu torno o meu alguidar,
Far-vos-hei eu rebentar
Como nilo temporé.
Dous de vos me váo furtar
Allí a par da Trindade
Hum berco que deu hum frade
A Joanna de Aguiar.
E s'este se nao achar,
Ide á Branca da Romeira,
E olhae detraz da esleirá,
E veréis hi hum estar:
Ou ide vos pelo rasto
Desses ministros e curas,
Que todos tem criaturas,
Louvores a Déos, a basto.
Trazede berco dourado
DAS COMEDIAS. 25

Muí!o rico, e muito asinha;


Que se críe Cismenínha
Pera muito alto fado.
CAR. Draguínho, tu a San Vicente de lora.
DRA. E tu? CAR. Á Sé;
Porque crede que allí he
O feito mais commummente.
CAROTO.
Hum berco tem hüa mogueira
Na rúa de Calca-frades
Manceba de dous abbades.
DRA. Melhor lera a linheira.
LEG. Está hüa lavrandeira
lia no bairro sobre Alfama,
Que mais parideira dama
Nao ha hi inais parideira.
FEITICEIRA.
Vos que ficaís, i buscar
Asinha logo nessora
Hüa honrada lavradora
De leite pera criar.
Fazei vos lá outras figuras,
Assi com'ora, escudeiros:
Nao me sejais tardinheiros:
E trazede-m'a ás escuras.
PLUTAO.
Eu vou buscá-la a Carnide,
E lu vae a Sacavem.
LEG. Mas vae tu a Santarem,
E cu irei a Campolide.
Mas eu sera bcm que fique,
26 LIVRO II.

E tu vae a Montaxique
A casa do dedos da murteira.
FEI. Nisso estáis? ma cagananeira
Que vos pique.
Vao, e fica a Feiticeira cantando á Menina.
"Ru ni, menina, ru, ru,
"Mourao as vellias e fiques tu
"C'o a tranca no cu."
Vem os Espiritas com o berco, e com a Ama, e diz
DRAGUÍNHO.
Que vos parece, noss'ama?
Este berco tomos furtar
Ao Paco do Lumear,
Que foi dado a hüa dama
De freí... quero-ine calar.
FEI. Dízei-m'o á puridade.
DRA. Queréis saber? he hum frade,
Huin freí Vasco de Palmella;
Huin que tinha Madanella
Colchoeíra na Trindade.
FEI. Muito me dá na vontade
Que conheco quein he ella.
DRA. Rógo-vos, senhora amiga,
Por aquella dor sagrada
Quando fostes acoutada,
Que nao nos deis mais fadiga.
FEITICEIRA.
Ora ¡-vos ieraniá,
E a ama venha embora.
Ora cntrae, minha senhora,
E.sperac huin pouco lá;
Ora vinde pera ca
DAS COMEDIAS. %?

Primeiro c'o pé direito;


Fazei o signal da cruz no peito.
AMA. Dae-me a críanca, e mamará.
FEITICEIRA.
Primeiro eu saberei
Que leite he o vosso, amiga;
E se tendes ja barriga;
Que días ha que me eu sei.
E se sois agastadica,
Se coméis toda a vianda:
Nao quero andar em demanda,
Nem quería ver justica.
De que tempo sois parida?
AMA. De hum annosínho, nó mais.
FEI. E que cantigas cantáis?
AMA. A criancínha despida —
Eu me saín Dona Giralda —
E tambein — Val-me Lianor —
E — De pequeña matáis Amor •
E — Em París estava Donalda.
Díme tú, señora, di —
Vamonos, dijo mi tío —
E — Llevadme por el rio —
E lainbem — Calbi ora bi —
E — Llevantéme un dia
Lunes de mañana —
E — Muliana, Muliana —
E — Nao venhais alegría.
E outras militas destas taes.
FEI. Deilae no berco a senhora;
Embalae e cantae ora,
Veremos como cantáis.
38 LIVRO II.

AMA, (canta)
"Llevantéme un día."
FEITICEIRA.
O de mais quero eu ver
Que o cantar; perdei cuidado:
Que lhe dades a comer?
AMA. Papínhas de pao relado.
FEI. E depois que aponía a amella?
AMA. Sopasinhas da panella,
E leite fresco coado.
FEI. Diabos, por meu amor,
Filhos meus e meus senhores,
Ide á deosa maior,
Dizei que por seu louvor
Me mande as fadas maiores.
As suas duas fermosas
Com melodía serena,
Que me fadem a Cismena
Sobre todas as ditosas.
Emtanto quero eu benzer
Os caminhos e carreiras
Que vilo daqui pera Oeiras,
Que de lá deveis de ser.
Padre santo San Gíao
Que vcm e vai com os que váo,
San Braz e San Sadorninho,
San Pedro, Paio, Marlinho,
Sancto Ilario e San Joáo.
Entres natos mulleres
Nao sorrexe outro maior
Joáo Baptisla corretor.
Mal me queres, bcm me qucres.
DAS COMEDIAS. S>9

No leu coló ¡reí melhor.


Assi como a rosa bella,
M a d r e s í l v a e a macella,
E o pampilho e rosmaninbo;
Assi floreca o caininho
P e r hu for esta donzella.
Basto se semeia o nabo,
Quando florece o agráo,
E n t a o canta o tíntilhao,
E bate a alvela o rabo.
Allí, allí, Belzabatení,
Quando levardes a virgo,
C a n t a r á o Demo em g r i t o :
De las mas lindas que yo vi.
Vem as fadas Ledera, e Minea cantando, e acabado
de cantar, diz
LEDERA.
Esta nasceu em tal hora,
Que ha de correr gran tormenta
Dolorosa.
Depois sera gran senhora
De toda fortuna isenta,
Muí dítosa,
Mas primeiro inui chorosa
Sem emparo aqui ein Creta
Se verá;
E a poder de fennosa,
E de casta, e de discreta,
Tornaría.
MINEA.
O primeiro perígo he
Que a hito de querer ferrar
30 LIVRO II.

Pera a vender
Por Moura, e ferro no pé.
Aqui a haveinos de fadar,
E de benzer,
Que ella o possa entender,
E se salve na boscagem
D' Arrouchella:
E lhe dará de comer
Hüa bestial salvagem,
De dó della.
FEITICEIRA.
Tudo isso sao carambolas.
Ama, levade-a asinha.
Ora i-vos, minha rain ha,
E inandar-m'heis das cebólas.
Idas todas estas figuras, diz o Licenceado que fez o
argumento :
LICENCEADO.
Hagamos ahora mención y querena,
En esta segunda cena en que estamos,
De como enviaban los villanos amos
Guardar el ganado la niña Cismena,
Y de cinco años muy linda y serena
Su ganadico por sí careaba;
Y con pastorcicos villanos andaba,
Asegun que luego mostrar se os ordena.

Entra Cismena pastorinha, fiando, e diz


CISMENA.
Vos vistes-ine aqui andar
Huns cabritinhos mal liados,
E dous porquinhos cílhados?
DAS COMEDIAS 31

Cant'cu nao nos posso achar.


Fui-me moacha jeítar
A dormir mal-avesinho
A beirínha do camínho,
E forao-m'os acossar.
Dizei, dizei se os vistes.
Bé! como estáo pasmados!
Dous porquinhos trosquíados
Coinchar nao nos ouvistes?
Oh, dou ó Decho am dos tristes.
Amo, vistes-in'os pascer?
O que disserdes, hei de crer,
Porque vos nunca mentistes.
Samica o nosso cadelo
Os fez elle derramar.
Nao sei se os va buscar
Cajuso ao nosso cancelo,
üera eu ora o meu órelo,
E os incus alfenetinhos,
E achasse os meus porquinhos
Cajuso em Val de Cobelo.
Chicos, chíquinhos, chicos.
O Déos bem-aventurado,
Acha-me ora este meu gado,
Acha-ine ora os meus cabritos, (canta)
"Grandes bandos andao na corte,
"Traga-ine Déos o meu bonamore.,'
Vcm hum pastorinho, per nome Joanne, e diz:
JOANNE.

Oh pezar de mi comigo!
Di, rogo-te, Císmeninha,
Yiste-m a ininha burrinha?
32 LIVRO II.

Cis. Viste-m*a minha burrinha?


Jo A. Olha, olha o que te digo.
Cis. Olha, olha o que te digo.
Jo A. Sempre tu has de chufar?
Cis. Que rosto de ina pezar
Pera casarem comtigo!
Sabes onde eu vi a burrinha?
JOA. Onde? Cis. Nao sei. JOA. Nao sei!
Cada seinpre es garredinha.
Cis. Vae-a tu buscar á vinha,
E achá-ladias, que ja lá achei.
Se vai travada, achá-la-has.
JOA. Levava as travas de traz:
Hio, hio, ja t'eu enganeí!
E sabes mais que levava?
Cis. Hüa sorraba na pclle.
Hio, hio, cuidav'elle,
Cuid'elle que m'enganava.
JOA. Vae buscar os cabritínhos.
Cis. Se vires os meus porquinhos,
Dá-lhe lá hüa sorraba,
E torna-me os cabritínhos.
Vem dous pastorinhos, Pedrinho e Affonsinho, c diz
PEDniNHO.
Ta máe nao faz senáo chamar...
E tu ris-te, Císmeninha?
Cis. Rio-me eu da tua tinha.
PED. Outra vez t'ha d'ella dar.
Cis. Toma pera a tua vida.
AFF. Porque davas hontem gritos?
Cis. Porque comeu dous cabritos
Hua raposa parida.
DAS COMEDIAS. 33

PEDRINHO.
Eu comi papas aquesta.
AFF. E ininha máe deu-me hum bolo.
JOA. Qués-ine tu dar delle, tolo?
Cis. Outro levo eu ca na cesta.
PEO. J a parió a nossa bésta.
JOA. E nos temos tanto inel,
Que trouxe a nossa Isabel!
AFF. Mentes, Joanne. JOA. Por esta.
CISMENA.
E a íníin hao-ine de comprar
Hüa coifinha lavrada.
PEO. Temos tanta marmelada,
Que minha mae m'ha de dar!
JOA. E meu pae ha d'ir pescar,
Tomará hum peixe tainanho,
Assi como o nosso tanho,
E nao vo-lo hei de dar.
PEDRINHO.
Olha, Joanne. JOA. Hain?
PED. Dar-in'has tu hum tamaníno?
AFF. NOS temos outro menino,
Que minha mae parió á manham.
Cis. E eu nao tenho no carril
Dous alfinetes que achei?
JOA. Tambem eu er acharei
Algum dia algum ceilil.
PEDRINHO.
E a miin dáo-me sardínha inteira.
A F F . Oh! PED. Pola Virgem Maria.
JOA. Nao t'acouláráo outro dia
Por jurar dessa inaneira?
\ oí. II
34 LIVRO II.

Polos sanctos evangelhos


Que o diga a teu cunhado.
AFF. Ó fideputa pellado!
E tu juras como os velhos.
Pola fé de Jesu Christo
Qu'a teu pac o diga eu.
JOA. Ó fideputa sandeu!
Bein te parece a ti ísto?
Pola hostia consagrada
Que merecías pingado.
A F F . Vamos buscar nosso gado;
Fique Cismena apartada.
As Fadas que fadárao esta Cismena, vendo chegado o
tempo em que lhe havia de acontecer o que em sen nasci-
mento lhe disserao, a vierao avisar disso, andando com o
gado naquelle monte; e vem cantando, c acabando de can-
tar, diz
LEDERA.
Vinde ca, filha Cismena;
Nao queremos consentir,
Nem Déos queira,
Que a fortuna de pequeña
Vos mande assi destruir
Desta maneíra.
Vossa mae era estrangeira;
Esta que vos foráo dar
Quer fazer,
Porque nao be verdadeira,
Como vos possa ferrar
Por vos vender.
CISMENA.
Oh mesqiiinha sem ventura!
DAS COMEDIAS. 35

E minha ináe verdadeíra


Que foí della?
LED. Essa materia he escura:
Mas logo, em toda maneira,
Dae á vela.
MIN. Ir-vosdieis por esta estrada
Até á cidade de Creta,
Onde seréis perfdhada
De hüa senhora honrada
Muí nobre, rica e discreta.
E por seu fallecimento
De quinze annos ficareis
Herdeíra no testamento,
E com grande exalcamenlo
De dezaseis casareis.
frai-se a menina Cismena caminho de Creta, pera onde
as Fadas a encaminhao; c vai dizendo:
CISMENA.
Oh mae da lilha perdida!
Oh filha da mae prenhada,
Sein ventura!
Alma sem vida nascida!
Filha da morte acordada,
Sempre escura!
Ó minha mae! onde estáis?
Minha ináe, onde me vou?
Minha mae, nao me buscáis?
Vos bem sei que suspiráis,
Porque os suspiros que eu dou
Sao os mesmos que vos dais.
F I G U R A S DA 3 a SCE1NA.

CISMENA.
CLITA — sua Criada.
Hüa BEATA.
BRISIDA
SEQUEIRA
ANDRESA
FELICIA \ Lavrandeiras.
SERRANA
ORIBELLA
AUREIJA
FELICIO.
DARÍO LEDO.
CRASTO LIBERAL.
AFFONSO — sen Criado.
PRINCIPE - IrniSo de Felicio.
SCEWA TERCEIRA.

Nesta terceira scena se tracta de como sendo Cismena


de idade de quinze annos, criada em Creta, perfilhada de
hüa nobre dona, ficou delta orphan, porém herdeira de
toda sua fazenda.
Entra primeiramenie Cismena cuberta de dá pola
morte de sua Senhora, e diz:
CISMENA.
Que grande praga he cuidar,
E que tormento entender!
Oh! que gran pena acordar!
Que se nao fosse lembrar,
Muí pouca cousa he perder.
O prazer nao me vem ver
Senáo pera mais tristura;
Nem quer Déos que tenha cura
Meu fortunoso viver:
Tanto nasci sein ventura!
O ineu triste e averso fado
Desde o coló da parteira
Me quiz mal de tal inaneira,
Que nao sei porque peccado
Seinpre me vi eslrangeira.
Escondeu-me a mae priineíra,
Trouxe-ine de p'rigo em p'rigo;
Levou-me a mae derradeira
O primeiro meu abrigo,
Minha honra verdadeira.
38 LIVRO II.

Chorará meu coracao;


Vos olhos, olhae por mim,
Porque veja posto em fim
Meu proposito muí sao,
Casto como seraphim.
E assi como marfiín
Seja clara minlia vida,
E minha honra luzida;
E como fino rubim
Assim seja esclarecida.
CLITA.
Senhora, eu nao saberia
Dizer que tencáo he a vossa:
Vos fermosa como a rosa,
E eu cara de bugia,
Que vida ha de ser a nossa?
Cis. Eu te terei mui mimosa;
Clita, loma tu prazer.
CLI. Fermosa quizera eu ser.
Cis. Mana, se fores ditosa,
Dita faz bom parecer.
Vem hüa mulher a modo de beata, porém grande ala
viteira, e diz a Cismena.
BEATA.
A graca do Salvador
Seja coinvosco, senhora.
Cis. Sejais benta do Senhor.
BEA. Déos sabe por vos a dor
Que nesta alma minha inora.
Oh quáo so ficais agora!
Como o lirio cuberto,
Como o cedro no deserto,
DAS COMEDIAS. 39

Donde a ave pheníx mora;


Tal ficais, mana, por certo.
Eu, minha alma, venho ca
Consolar vossa paixáo
Com dor do ineu coracáo;
Porque o hábito m'o dá,
E tambein a cóndilo.
Cis. Déos vos dé, a salvacáo.
BEA. E a vos, mana, alegría,
Com companha, todavía;
Que nao parece rezáo
Estardes sem companhia.
CISMENA.
Madre, lodo meu cuidado
He ser filha verdadeira
Das castas, e sua herdeira.
BEA. Minha rosa, esse morgado
Nao herdeis dessa maneira:
Sois fermosa e estrangeíra,
Cumpre que vos guarde alguem.
Cis. Nao me fio de nínguem;
Eu sou minha guardadeira,
Que me guardarei muí bem.
Nao ha mister a donzella
Virtuosa, atalajada.
Que olhe nínguem por ella;
Porque aquella que se vela
Tem outra vela escusada.
BEA. Nao se escusa de roubada
Quem em si mesma confia.
Cus. Mas a que d'outrein se fia
Merece ser engañada.
40 LIVRO II.

BEA. Filha, emfim, ser namorada


He grande galantaria.
CISMENA.
Guarde-me Déos dessa dor.
BEA. Nein eu nao vodo requeiro:
Mas rezamos no salteiro
Que fermosa sem amor
He como o sol de Janeiro,
Que sempre anda traz do ouleíro;
Ou como poupa em queimada,
Bem pintada e mal lograda:
Ou he frol de pecegueiro,
Fermosa, e nao presta nada.
E se quizerdes ser freirá,
Mana, eu vos ensinarei
A rezar tudo o que sei,
Da príineira á derradeira;
Porque nisso ine crieh
Cis. Eu, senhora, aprenderei
De muito boa vontade.
BEA. EU tainbem por caridade,
Filha, vos comecarei
Logo as horas da Trindade.
Depois as horas dos finados
Que vos haveis de matar:
E aprenderéis a cantar
Responsos desesperados,
Com que os váo sepultar.
E depois d'isto passar
Ler-vos-hei Cárcel d'amor.
E Peregrino amador.
DAS COMEDIAS. 41

E eu virei inaís devagar,


Prazendo a nosso Senhor.
Filha, vou ein romaria
A gloriosa da Estrella;
Encommendar-vos-hei a ella,
Muí devotamente pia,
Que vos tome por donzella.
Vos enllanto, rosa bella,
Críae bem esse carao,
E ponde-vos em feicáo,
Que quem vos vir á janella
Cegué logo o coracao.
Vai-se a Beata e diz
CLITA.
Olhae aquella mulher
Como vende mesluradas.
Cis. Que me pode ella fazer?
CLI. Infindas calabreadas;
Pois ás damas mais pintadas
Fara aquella mil embolas:
Mistura o ceo com cebólas,
E hüas einburilhadas,
Que fara as discretas tolas.
CISMENA.
Traze ca a ahnofadinha,
E a seda e o didal,
E hum coxim e todo o al
Que está nessa cainarinha
Debaixo do meu brial.
E primeiro sera bem
Que digas a Miraflores
Que me mande os meus lavores,
42 LIVRO II.

E as mostras que me tem,


Logo, que nao sao penhores.
Vai-se a Moca, e torna a Beata, e diz
BEATA.
Ai, como venho caneada!
Meu espelho, como estáis?
Minha rosinha orvalhada,
Lá vos deixo encoimnendada
A Yirgem dos Olívaes.
r

Cis. 0 devota madre minha,


Quando vos merecí tanto?
BEA. Dou-vos ao Spírito sancto,
Meu amor, minha pombinha:
Déos vos guarde de quebranto.
CISMENA.
Madre, isto em confissáo;
Determino de ser freirá,
Que este mundo he todo váo;
E ser freirá he salvacáo
Muito certa e verdadeira.
BEA. Era hüa estalajadeira,
Tinha hüa filha fermosa;
Veio-lhe essa veia vossa,
Ser freirá ein toda a maneira,
Contra lodos perfiosa.
Quando vírao seu doairo,
Detenninárao de a levar;
E ella chegando ao Rosaíro
Houve medo ao cainpanairo,
E fugío pera o logar.
A salvacáo eu me fundo
Xa freirá nao ser segura,
DAS COMEDIAS. 43

Porque está sempre em ventura


Este segredo profundo
Emquanto lhe a vida dura.
Que tambein lá ha peleja
Da razáo com apetito;
E a isto nao vale igreja.
Cis. Pois aínda que isso seja,
Jogáo mais perto do tito.
BEA. Por isso perde dobrado
O que joga de mais perto;
E menos louvor lhe he dado
Que o que joga arredado,
Se atira ao fito certo.
Mais ganhou o Publicano
De longe, que o Levila;
Que a todo o estado humano
O Díabo traz engaño
Per permíssao infinita.
Serdes leiga e casta abasta;
E ainda he bem mister
Haver hi das castas casta;
E quem disto se afasta
Fóra escusado nascer.
CISMENA.
Eu me saberei guardar.
BEA. Como t ¡verdes terceira,
Podeís-vos aproveitar,
E a fama estar inleíra
Coin gentil dissimular.
S'eu, mana, nao fóra freirá.
Porque isto nao me he dado,
Huin senlior muí estimado
44 LIVRO II.

Me rogou que vos requeira,


E me deu disso cuidado.
CISMENA.
Muito ruím passo he esse:
Nao sois vos toda de trigo.
Se ora vos parecesse
Qu'eu isso nao entendesse...
Ora sus, nao mais coinigo.
BEA. Que cousa he a mocidade!
Ando eu por seu proveito,
E por lhe fazer caridade.
Cis. Madre, a freirá de verdade
Nao falla do vosso geito.
BEATA.
Nao caco eu neste covil.
Tomae-vos la com Cismena!
Pois fallcí-lhe táo sutil...
CLI. Ca tomastes, adaíl?
BEA. Que me dizes, Policena?
CLI. Mas dizei por vida vossa,
Quem vos mandou ca entrar?
BEA. Com quem fallas tu, tinhosa?
CLI. Cheirais-me vos a raposa
Que nao acha que cacar.
CISMENA.
Essa madre das peconhas
Nao me venha ella ca inais.
CLI. Je.su! quáo verinelha estáis!
Diría algüas vergonhas —
Vos que assim vos demudáis..
Cis. Vai a Inez de Carvalhaes
Que venha ca estar comigo.
RAS COMEDIAS. 45

E que traga ca comsigo


As lavrandeíras reaes,
Ou que m'as mande comtigo.
Ao Déos Apollo claro, convertida,
Encommendo minha vida
Sem emparo.
Pois nascer me custa caro,
Favorece-me Diana,
Que atéqui
O Ceo me foí seinprc avaro,
E a ventura tyranna
Pera mi.
Brisida, venhas embora:
Qu'he da outra companhia?
BRI. Beijo-vo-las máos, senhora:
Ellas virao logo essora,
E estaremos todo o dia.
Cis. Mostrae ca o que lavrais,
E veremos que fazeis.
BRI. Lacos de pontos reaes.
Cis. Boas fadas vos hajais.
Aqui hao d'ír huns caireis
Ao redor destes bocaes.
CUTA.
Anda hum íidalgo allí
Olhando a nossa janella:
Mana inhiba, nunca vi
Cousa douda como aquella.
Cis. Que dízia? C u . Andava agora
Táo cheio de fantasía,
Dizendo : O minha senhora
Cismena, qual he a hora
46 LIVRO II.

Em que partís alegría?


Porque sempre ando em cuido
Como passarei meu mundo
Seguro.
Entrao as lavrandeiras, s. Sequeira, Andresa, Fe-
licia, Serrana, Aurelia, Oribella; e diz
SEQUEIRA,
Benza-vos o Senhor Déos.
AND. Déos vos dé muíta alegría.
FEL. Déos e a Vírgein María.
SER. Esta he a estrella dos ceos.
Cis. Jesús! quanta melodía!
Donzellas, venhaís embora;
A vida me désles ora.
SEQ. Mais vida dá a comphanhia
De táo discreta senhora.
CISMENA.
Mostrae, Sequeira, o lavor.
Que franzído láo real!
Sera pera algum senhor?
SEQ. Senhora, he penteador
Pera o Bispo do Funchal.
Cis. Muito boa obra he ella.
Andresa, isso que sao?
AND. He d'aljofre hum cabecáo
Pera o Conde de Penella.
Ci.s. He de muí linda feicáo.
E vos, Felicia? FEL. Hum lavor
De perlas e ouro tal
Pera o nosso Embaixador,
Porque veja o Imperador
Que as cousas de Portugal
DAS COMEDIAS. 47

Todas tein grande valor.


Cis. E vos, Serrana? SER. Estes favores
Sao para elle soadeíros
Com pedras de militas cores,
E broslados huns letreiros
Que dizeni — Amores, Amores!
CISMENA.
Moslrae ca vos, Oríbella.
ORÍ. Este he seu csperavél,
Jacintos pela ourella;
E dirá toda Castella
— Déos nos dé oulra Isabel,
Pois táo bem nos foi com ella.
Cis. Senlae-vos a par de mi;
Aquí, aqui, Oríbella,
Serrana, allí a par della;
Andresa, vos, mana, aqui,
Felicia junto com ella.
CUTA.
Emquanto vos outras lavrais,
Quero espreíiar o penado.
AUR. Iiá anda dando mil ais.
FEL. Mas cu creío que sao inais
Que trazem esse cuidado.
AUR. He Felicio discreto,
E Dom Crasto Liberal
E Dario Ledo, despertó,
Gracioso perennal,
E músico grande por certo.
Todos tres andáo perdidos
Por Vossa Merco, senhora.
FEL. Felicio ha de vir ca.
48 1 IVRO II.

AVD. He dos galantes sabidos


Que em todo este reino ha.
Os. Senhoras, se ca vier,
Desenganae-o cantando,
Cantando e desengañando:
E se elle vos entender,
Nao andará mais penando.
Entra Felicio e diz:
¡FELICIO.
Que dírei a mim de mi,
Porque quanto a mi me digo,
Fallo com o mor ¡migo
Que eu nunca conheci?
Tanto mal tenho comigo!
A nínguem nao me descubro,
E a mi nao sei que diga:
Descobre-me minha fadiga
Quantos secretos encubro,
E nao sei que via siga.
LAVRANDEIRAS (cantando)
"Halcón que se atreve
"Con garza guerrera
"Peligros espera."
"Halcón que se vuela
"Con garza á porfía,
"Cazar la quería
"Y no la recela:
"Mas quien no se vela
"De garza guerrera
"Peligros espera.'
FELICIO.
Os perigos que eu espero
«AS COMEDIAS. 49

Nesta caca venturosa,


Real garca rigorosa,
Eu os busco, eu os quero
Proseguir, ave formosa:
E pois voais alterosa,
E táo ligeira,
A victoria toda he vossa:
Segura eslaís na ribeira,
E ñas alturas ditosa.
Canlae, bem-avenluradas,
A cantiga que cantáis,
Porque nella me mostráis
Minhas dores apertadas,
Que seráo cada vez mais.
CLI. E VOS, senhor, que buscáis
A Cismena,
Se por falcáo vos contais,
Pellar-vos-ha penna e penna,
Veremos com que voais.
"La caza de amor
"Es de altanaría;
"Trabajos de dia,
"De noche dolor:
"Halcón cazador
"Con garza tan fiera
"Peligros espera."
FELICIO.
Eu direi isso á fortuna
Com palavras de tristura,
Que sou falcáo sem ventura,
E minha garca s'entona
Sobre a nuvein mais escura.
\ ol. 11.
50 LIVRO II.

Ó extrema formusura,
Garca bella,
Temo que subáis n'altura,
Onde vos tornéis estrella,
Por estardes mais segura.
Nao por tomar claridade,
Antes vos a podéis dar;
Mas por poder enviar
Coriseos e tempestade
Sobre quem vos inais amar.
Pera que he, senhora, usar
Vosso poder,
Que vos deveis d'espantar
Nao leixardes esquecer
Tantos modos de matar.
CUTA.
Que fazeis ca todo o dia?
Vos nao tendes que fazer?
Ella a calar, e elle a dizer:
Pera que he tanta porfía?
Ide buscar de comer.
Cuidáis que a haveis de haver
Logo assi?
Nao m'o quer agora ver
Nem ouvir, e elle allí:
Cuida elle que o háo misíer.
FELICIO.
Porque nao falláis, senhora.
Seja sequer contra mi?
Pois sem ventura nasci,
Nao ín'hei d'espantar agora
Do que sempre padecí.
DAS COMEDIAS. 51

E pois vos aborrecí,


Como sei;
Dizei que me va daqui,
E ao menos vivirei
Em cuidar que vos ouvi.
Vem Dario Ledo e diz:
DARÍO.
Bejo-vos as máos, senhora.
Se eu fóra vereador,
Pozera-vos ja, donzella,
Pena de caso maior.
Que lavrasseis á jámila;
Porque vos honráis a Creta.
Poís que farei eu coitado
De mi que ando atagantado
Por vos, morenica la preta,
E vos mana, sem cuidado?
Respondei, minha senhora;
Dizei — que vos hei de responder?
Digo que venhais einbora,
E folgo bem de vos ver: —
Dizeis assi? Cu. Allí ma ora;
Nao bajáis vos disso medo.
FEL. O Senhora, estae nisso,
Abrí esse paraíso,
Fallae ja a Darío Ledo,
Pois a hum triste negáis isso.
DARÍO.
Trago-lhe aqui mil gaiteiros,
Lampas cada San Joáo,
Carreiras no meu ruao,
Folias de tanoeiros
i
52 LIVRO II.

Em calcas e em jubáo:
E alvoradas de cravo,
E canella vein á máo,
Servíndo-a como escravo,
Cantando a D''amores jago,
Quando as torgo d"1 amores dormo,
E todas reluziráo.
Miiihas lagrimas ausentes,
Meus suspiros sem ventura,
O inhibas dores ardentes,
Agora que estáis presentes,
Alegrae vossa tristura.
Saudades porque caíais,
Angustias, que nao dizeis,
Gemidos, que nao falláis
Os tormentos que ine dais,
Os males que ine fazeis?
FELICIO.
Nao entra mais isso nella
Que prégacáo em Judeu:
Despois que inoro coin ella,
Nem d'albarda nem de sella
Nao me quer haver por sen.
AUR. Darío Ledo, digo eu
Que tanjáis hüa cantiga.
DAR. Nao sei que cantiga diga
Hum liomem de amor sandeu.
(Tempera a viola.)

FELICIO.
Em tudo ha hi temperanca
Por mais que se desteinpera;
Mas meu mal nao se tempera,
DAS COMEDIAS. 53

Porque nao tem concordanca,


Xein comigo nao s'espera.
E o que ine desespera
Com razáo,
Quebrar-me fortuna mera
As cordas do coracáo,
Com que nascer nao devéra.
( Cania e tange Dario.)
DARÍO.
"Consuelo, vete con Dios;
"Pues ves la vida que sigo,
"No pierdas tiempo conmigo."
"Consuelo mal empleado,
"No consueles mi tristura;
"Vete á quien tiene ventura,
"Y deja el desventurado.
"No quiero ser consolado,
"Antes me pesa contigo:
"No pierdas tiempo conmigo."
Entra Crasto Liberal, velho muito loucao, t diz:
CRASTO.

Onde Felicio guerrea,


E Dario Ledo tambeni,
Nao sei se zombará alguem
De o velho Air á tea
Amador mais que nínguem.
E pois, Senhora Cismena,
Pera todos tendes pena,
E a dais em abastanca;
Dae-ine a mím hüa pequeña
De vossa sancta esperanca.
54 LIVRO II.

CISMENA.
Cant'á agora sera bom
Que diga de meu direito.
Que saude ou que proveíto
He o que Cismena tein,
Que a seguís tanto a peito?
De veréis d'ha ver respeíto
Que sois casado e ja velho.
CHA. Com esse ar, com esse geito,
Minha vida e meu espelho,
Me tendes todo desfeíto.
CISMENA.
Muito tarde vos chegáráo
Táo engañados engaños.
CRA. Porque despresais meus annos,
Que a servir-vos me arribáráo
Sem receio de meus dañinos?
Cis. Oh enleios soberanos!
CRA. O Senhora,
Morte e vida dos humanos!
Cis. Se vos visseis ca de fóra
Mudarieis esses pannos.
CRASTO.
Senhora, em concrusáo,
Eu tenho inuita fazenda,
Sem filhos, e grande venda,
E liberal condicáo,
Sein haver quem ine reprenda.
Cis. Senhor, nao estou ein tenda,
Nem ine vendo.
CRA. Vossa Mercó' nao entenda
DAS COMEDIAS. 55

Que eu isso assi entendo.


Mas faco justa offerenda.
Eis aquí cem pecas d'ouro
Pera fruíta ás lavrandeiras:
Porque iráo ser terceiras
Deste vosso leal mouro,
Captivo de mil maneiras.
E depois darei janeiras
De brocado,
Por que canlem as canseiras
De mi triste angustiado
De angustias verdadeiras.
Entra hum parvo seu criado, por nome Affonso, em
busca delle, e diz:
AFFONSO.
Hou noss'amo, diz noss'ama
Qu'está h¡ o mestre esperando
Pera vos curar estando
De gota na A^ossa cama;
E que nao caíais na lama,
Que sois ma ora quebrado.
DAR. Nao he esse bom recado
Pera quein serve tal dama.
AFFONSO.
E que vades vos asinha,
Porque nao vos tome ca
A dor de pedra, eramá,
Porque toméis a mézinha.
CHA. Ácinte, senhora minha,
Mandáo ca estes recados
Huns chimes escusados,
Sendo a ciosa mantona.
56 LIVRO II.

Porém he minha vontade


De vos dar quanto liver,
E nao quero outro haA-er
Senáo a propriedade
Que tenho em vos querer, (vai-se)
DAR. Senhora, vou-ine a perder:
Bou-me ó demo que me leve.
Cis. Quando-Dario se me atreve,
O Déos! pera que he viver!
DARÍO.
Ora andae gastando a vida
Na escola
E em cordas de Aiola,
E A7ÓS mal agradecida!
Piedade merecida
Quizera eu,
E vos nessa despedida
Fázeís de in¡ descaída
D e JudeU. (vai-se)
Vem Affonso de parte de Crasto Liberal com hum
cesto de macans, e diz:
AFFONSO.
Olhae ca, eu venho ca —
Qual de vos he Xirímena?
AUR. Esta he a Senhora Cismena.
AFF. Essa, eramá:
Diz meu amo que aqui está,
Tudo isto que aqui vein,
E como vos vai bem,
Qu'elle Aira logo ca.
Com prazcr da fineta canino as lavrandeiras.
' B i e n quiere el viejo,
DAS COMEDIAS. 57

"Ay madre mía.


"Bien quiere el viejo
"A la niña."
CISMENA.
Dize-Ihe lu, mano, lá
Que por usar cortezía
Fica ca esta iguaria:
E porém o que a dá
Traz errada a fantasía.
AFF. E minha aína he judia
Táo pellada;
Se a vísses em trosquía,
Parece demoninhada
Mettída na ahnotolia. (vai-se)
CISMENA.
Felicio, em toda inaneira
Nao curéis mais de mí nada,
Porque em váo tomáis canseíra.
FEL. Oh minha vida primeira!
Minha morte apressurada!
Eu me Arou pois me mandáis;
Porém pera onde irei?
Cis. Onde mais ine nao vejáis.
FEL. Esse galardáo ine dais?
Cis. Senhor, eu nao vos chamei.
FELICIO.
Nisso se paga o amor?
Cis. Qual amor? nao vos entendo.
FEL. Ó minha preciosa flor!
Cis. Vossa? livre-me o Senhor.
FEL. Ao inferno in'encoinmendo!
Pois assi me mandáis ¡r,
58 LIVRO II.

You-me a térra despovoada,


Sem mais comer nein dormir,
Até que veja partir
Minha alma desesperada.
Hum Principe da Syria veio desconhecido a ver a ci-
dade de Creta, e tanto que vio a Cismena, ficou perdido
por ella, e determinóte de a servir d'amores, e sé poz por
page de Felicio, assi desconhecido, porque indo com elle a
visse. E foi em sua cotnpanhia aquellas montanhas onde
Felicio detenninou de acabar seus dias. Em partindo Fe-
licio com seu page, diz
CLITA.
Deve ser fiiho de rei
Ou d'algum grande senhor
Este page que aqui vem
Com Felicio, e jurarei
Que he mais A-OSSO que nínguem.
Chegando Felicio áquelle deserto com o dito page, e fa-
zendo sitas exelamacoes, respondia-lhe o Eco tía man eirá
seguinte.
FELICIO.
Oh o mais triste onde vou?
Onde A'ou triste de mi?
O dores, matae-me aqui,
Onde nunca hoinem chegou.
Eco. Hou.
FKL. Hou males, quem me vos deu
Deu-\os pera me acabar.
Oh! quem soífreu por amar
Tamanho mal como o meu?
Eco. Eu.
FEL. EU em me matar nao pecco;
DAS COMEDIAS. 59

Nem sei se alguem ine responde.


Que sera, ou quem, ou donde,
Que ande em valle táo sécco ?
Eco. Eco.
FEL. He conveniente quando
A tal tristeza combate,
Que homem per si se mate
Por nao andar mais penando.
Eco. Ando.
FEL. Ando qual nunca foi tal.
O voz, pois que me respondes,
E de mi assi t'escondes,
Que fareí a tanto mal?
Eco. Al.
FEL. Al nao quero, al nao sei.
r

O voz de meu triste grito,


Pois que sabes meu esprito,
Has medo que morrerei?
Eco. Hei.
FEL. Hei por bem morrer por ella:
Poréin damno táo profundo
Qual mulher o fez no inundo,
Servindo-a sem ofFendella?
Eco. Ella.
FEL. Ella me dá triste guerra,
Ella me tein despedido,
Ella me tem convertido
Que moiira por esta serra.
Eco. Erra.
FEL. Quem ine inatasse improviso!
r

O Aida, Arac-te daqui;


3Iorte, lembra-te de mi.
60 LIVRO H.

Que tu es meu paraíso.


Eco. Isso.
FEL. ISSO mata e trespassa,
Que nao me acaba meu mal:
Queima-ine o fogo infernal
Desta cliamma que me abrasa.
Eco. Assa.
FEL. Assa o triste de mi;
E he ja cinza tornado
Meu coracáo lastimado.
Quero-me enterrar aqui.
Eco. Hi.
FEL. Hi tívera eu feitos iaes
Males contra Arós, Cupido,
E fóra de vos ouvido,
Pois que a Aida ine tomáis.
Eco. Mais.
FEL. Mais que a vida? e o porque?
Porque minha alma outrosí
Mata a si, e mata a ini:
Táo profunda he minha fé.
Eco. He.
FEL. He polo mereciinento
Daquella por quem me fino.
Sentes tu que nao sou diño
Desta pena que consento?
Eco. Sentó.
FEL. Sento-me estar nao sei onde,
Vejo-me so acabar.
Por isso quero ir buscar
Esta A'oz que me responde.
Eco. Onde?
DAS COMEDIAS. 61

FEL. Onde está minha alegría,


Que seinpre foge de mi?
Vem ca, nao facas assi,
Que ein ver-te descansaría.
Eco. Iría.
FEL. Iria lá, mas foges mais.
r

O tristes saudades minhas,


Nestas montanhas maninhas
Que descanso he o que dais?
Eco. Ais.
FEL. Ais, leíxae partir a Aida,
E partir-Arosdieis daqui.
Tal estou, triste de mi,
Que nao sei se he ja partida.
Eco. Ida.
FEL. Ida, que a vida se vai
Quando a gloria se parte,
Porque he della a maior parte.
E a ti como te A^aí?
Eco. Ai!
FEL. Ai! que todo ine tresanda
E se \SÁ, porque parece
Que quein me falla padece
E anda nesta demanda.
Eco. Anda.
FEL. Anda? He pera lnwer dó
Como das almas damnadas:
Cuideí que estas tristes fadas
Foráo dadas a mi so.
Eco. Oh!
FEL. Oh que zombas ja de mi;
Pois sabe Déos lá no ceo
«2 LIVRO II.

Que do maior bem nasceo


0 mal de que me perdí.
Eco. Di.
FEL. Di Cpois «áo ha quem s' iguale
A ineu mal neste desterro}
Como chamaráo ao perro
Mouro de mi neste Aballe?
Eco. Alie.
FEL. Alie captivo ine chamo
Sein senhor e sem senhora.
Oh! se tu amasses ora,
Cramarias como eu cramo.
Eco. Amo.
FEL. Amo e mouro, ai de mi!
Vai-se esta alma dolorosa.
r

O voz tambein lacrimosa,


Vou-me do mundo e de ti.
Eco. I.
FEL. Hi! minha afina desespera,
Porque me fallas esquÍAra.
Dize-me se es cousa Aiva;
Se o es, ahí uT espera.
Eco. Era.
FEL. Era pera perguntar
Se tem minhas lagrimas contó;
E se haA^era ahí alguem
Que tantas possa assomar.
Eco. O mar.
FEL. O mar de choros abranjo.
Pois fallas como quem ama,
Que te parece esta dama
Que me faz tal desarranjo?
DAS COMEDIAS. 63

Eco. Anjo.
FEL. Anjo que tu, alma, adoras:
Anjo que ine tira a Aida,
Hora he de seres ida
Do triste corpo ein que moras.
Eco. Horas.
Em este espacio cahido Felicio de todo morto, diz o en-
cuberto Principe:
PRINCIPE.
Quiero ver si desmayó
Felicio, ó como esto va.
Hou Felicio! esforzá!
Pulso no le siento yo.
No cale, mas muerto está.
Oh cuitado!
Como estás desfigurado
Siendo galán tan real,
Muy discreto namorado;
Y de leal
Moriste desamparado.
Oh muerte mal empleada!
Pues tu fe era tan buena,
No debiera ser pensada.
Ni la Señora Cismena
Deja de ser la culpada:
Que el matar
No es cosa de loar,
Cuando sin razón se hace;
Que á Dios place
Que amemos en tal lugar.
Ya que es hecho tal lavor,
Tal IaA'or, y sin porque.
64 LIVRO II.

Porque así murió de amor,


De amor y desamor:
Su ánima por do fue?
Adonde iría?
Que se supiese su vía,
(Hablo como quien se velaj
Saberia de la mía,
Que otra tal muerte recela,
Si dicha no la desvia.
Ya que es muerto en tierra agena
Despreciado del amor,
Quiero ir do está Cismena,
Y veremos si le pena
De perder tal servidor.
Chegando a Cismena, diz:
O Señora, en quien se encierra
Mas perfección que pedisteis —
Cis. Inda Felicio quer guerra?
Pni. Muerto queda en triste sierra
De la muerte que le disteis.
Serviros tomó por AÍCÍO,
Y al cabo morió por AOS
El cuitado de Felicio.
Cis. Pois inorreu em seu offícío;
Que culpa lhe temos nos?
PRI. Pues qué haréis á mí ahora,
Que muy mas Adiestro ine siento?
Cis. Vos tainbein! PRI. Sí, señora.
Cis. Pois quem no ar se namora
Pene, e queixe-se do A*ento.
Ao menos escarmentó
Fóra bem que houvera ahí:
DAS COMEDIAS 65

Se vos vinheis sempre aqui


Com Felicio, seu tormento
Viste-Io vos? P R I . Bien lo vi.
Cis. Pois que esperáis ATÓS de mi?
PRI. Príncipe de Siria, señora,
Que por page me ineti,
Y por vuestro estoy aqui:
Qué haréis de mí ahora?
Piedad de quien nació
Hijo de rey lan preciado,
Mucho exento y adorado;
Y todo cuanto quise yo,
Tanto tuve en mi mandado.
Nunca supe desdichado,
Que era pena;
Y si ahora soy despreciado,
Vos sois quien peca, Cismena,
E yo soy el condenado.
Piedad, señora, espero,
Preso de Aruestra beldad:
O señora, piedad,
Que sois el mí amor primero,
Amor en gran cantidad.
Castigad vuestra beldad
Rigurosa,
Y mirad mi magest'ad,
Y mi pena dolorosa,
Y que muero en tierna edad.
CISMENA.
Senhor, eu nisto me fundo:
Dou-lhe que sejais Alteza;
Vol. H.
66 HVRO II.

Nao darei minha límpeza


Ao maior reí do mundo,
Nem por nenhua riqueza.
PRINCIPE.
Oh qué sobra de firmeza!
Bien merece
Vuestra gran bondad nobleza:
Pues del todo os guarnece
La soberana grandeza,
Quiero que seáis princesa
En Siria, y esposa mía,
Porque acabe *en alegría
La fuerte Aventura vuesa,
Y el mal que me dolía.
Mas alta, dice Platón,
Es la virtud, que el estado;
Y á esta es obligado
El inundo de darle el don,
Y el cetro mas honrado.
Dadme la mano, señora,
Por mi esposa y laureola,
Pues que sois merecedora
Para ser emperadora,
Cuanto mas princesa sola.
CISMENA.
7
Este amor he A erdadeíró:
Isto si, si que ine apraz,
E nao amor de sequeiro,
Que emíiin, por derradeiro,
Quanto faz tanto defaz.
PRI. Quedad, señora, segura,
Y estad aparejada.
DAS COMEDIAS 67

LAVRANDEIRAS.
Senhora, nao mais costura;
Festejemos tal ventura,
Ventura bem empregada,

Alevantáo-se todas as lavrandeiras, e fazem festa á


princeza D. Cismena. E com esta festa se acaba a sobre-
dita comedia.
F I G U R A S .

O VIUVO.
HUM FRADE.
PAULA ,
( Filhas do Vmvo.
MELICIA )
COMPADRE do Viuvo.
D. ROSVEL — Principe disfarcado.
ü. GILBERTO — Seu irmao.
HUM CLÉRIGO.

A comedia seguinte tracta de hum homem mercador,


que morava em Burgos, e linha hüa muito nobre dona por
mxdher, a qual fallecida da vida presente, lhe ficdrao ditas
filhas; hüa per nome Paula, outra Melicia; e de como ca-
sáriío. Foi representada na era do Senhor de 1514.
COMEDIA DO VIUVO.

Entra primeiramente o Viuvo, dizendo.


ViUAO.
Esta desastrada vida
Que perdiera yo en perdella,
Cuando al mundo fue venida?
Pues amara y dolorida
Es toda ini parte della,
Que perdí muger tan bella
Como estrella.
Y pues triste me dejó,
Muriera mezquino yo,
Y no ella.
Pluguiera á Dios que cupiera
La suerte suya por mía;
Pues quedé, que no debiera,
Robada mi compañera,
Consumida mi alegría.
Vida sin lal compañía,
Noche y dia,
Me da tan triste cuidado,
Que jamas seré, cuitado,
El que solía.
Que acordarme su nobleza,
Su beldad, su perfección,
Sus mañas, su gentileza,
Su tan medida franqueza,
ro LIVRO II.

Quebrántame el corazón.
Oh qué humilde condición,
A la razón
Cuan callada, cuan sufrida,
Toda plantada y ingerida
En descricíon!
Alegre con mi alegría;
Con mi tristeza lloraba;
Pronta á cuanto yo decía;
Quería lo que yo quería;
Amaba lo que yo amaba:
Toda su casa mandaba,
Y castigaba,
Sin de nadie ser oida,
Ni de persona nacida
Profazaba.
Amiga de mis amigos,
Amparo de mis parientes;
Muy humilde á mis castigos,
Cruel á mis enemigos;
Placentera á sus servientes;
Tal que con fieras serpientes
Impacientes
Hiciera vida paciente:
No fue muger mas prudente
En las prudentes.
Enemiga de celosas,
De las castas compañera,
Contraria á las maliciosas,
Callada con porliosas,
Para virtud la primera:
Muy honesta y placentera,
DAS COMEDIAS. 71

De manera
Que nunca se desmedía;
Sublimada en cortesía
Verdadera.
Envidia, ni parlería
Jamas la sentí ni oí;
Y sí mal de alguien oía,
Desculpaba y respondía
Como si fuera de sí.
Pues que tanto bien perdí,
Porqué nací?
O muger, flor de las castas,
Donde estás, que tú te gaslas
Y á mí?
En el punto que partiste,
No debiera quedar yo;
Porque la vida que es triste
Mas muere quien la resiste,
Que el muerto que la dejó.
Aquel Dios que la llevó
Pido yo
Muerte luego por victoria;
Pues la vida de mi gloria
Ya pasó.
Vem hum Frade a consolar o f'iuvo, c diz:
FRADE.
La gloria y consolación
Daquel que es padre eterual
Sea en vuestro corazón,
Porque tenéis gran razón
De llorardes vuestro nial.
Viu. O ini padre espritual,
T¿ LIVRO II.

Cuan mortal
Hallareis á vuestro amigo!
Por amparo y por abrigo
Lloro tal.
Tal que nacer no debiera;
Pues sabes como perdí
Mu«rer tanto á mí manera.
FRA. Quien perdió tal compañera
Que llore, digo que sí.
Viu. Oh cuan amiga de mí!
FRA. Bien lo vi.
Viu. Oh mí vida trabajada!
Ay de ini ahna penada,
Y ay de ti!
FRADE.
Tomad un consejo, hermano,
Deste amigo singular:
Pensad como lo humano,
Unos tarde, otros temprano,
Nacimos para acabar:
Y todo nuestro tardar,
A buen juzgar,
Por mas trabajo se cuenta;
Pues no se escusa tormenta
Neste mar.
Quitad el luto de vos,
Y eses paños negregosos;
Que cierto sabemos nos
Negar los hechos de Dios
Todos los que están lutosos.
Que se muestran soberbiosos
De quejosos,
DAS COMEDÍAS ?3

Cargados de paños prietos,


Repugnando los secretos
Gloriosos.
Los que mueren por la leí
Mueren con dulce victoria
Por su leí y por su reí.
Solo con memento mei
Son sus ánimas en gloria;
Su muerte es lan notoria
De memoria,
Que el luto desbarata;
Mas antes la escarlata
Es meritoria.
Tristeza fuerza es tenella,
Y lo al son desA^aríos;
Y algunos bien sin ella
Publican la su querella,
En hábito de judíos.
Son unos usos vasíos,
Y muy fríos,
E yerra quien lo consiente:
Que quedó de la sementé
De gentíos.
Y los que mueren honrados,
Como acá vuestra muger,
Contritos y confesados:
Que hace luto menester?
Lo que, hermano, habéis de hacer,
Ha de ser:
Aquel dador de las vidas
Daldc gracias infinitas
Con placer.
74 LIVRO II.

Vuestras hijas consolad


Con gracia muy amorosa.
Vos, hermanas, descansad;
Á Dios os encomendad,
Y á la Virgen gloriosa.
Inclinaos á toda cosa
Virtuosa,
Terneis Aida descansada;
Que sin esto es la pasada
Peligrosa.
Quedad con nuestro Señor.
Viu. Padre, quedo consolado.
PAD. El vero consolador
Chrísto nuestro Redentor
Esfuerce vuestro cuidado.
PAU. Oh qué padre tan honrado!
Viu. Descansado
Algún poquito me siento,
Y parte del pensamiento
Me ha quitado.
Ora oídme, hijas mías;
lia muerte por mi ventura
Me llevó mis alegrías,
Por que no fuesen mis días
Mas de cuanto es la tristura.
Lo que mas desasegura
Mi holgura,
Temer daño que se os siga.
Esto hace mi fatiga
Mas escura.
Poique esta vida engañosa
En la tierna mocedad
DAS COMEDIAS. 75

Es tan peligrosa cosa,


Que harto bien temerosa
Está mí seguridad.
Acuérdese os la honestidad
Y claridad
De vuestra madre defunta;
Y en tanta bondad junta
Contemplad.
Vem hum sen Compadre visitá-lo, c di:
COMPADRE.
Qué haces, compadre amigo?
Viu. Lo que quiere la tristura,
Sin inuger y sin abrigo.
COM. Bien trocara yo contigo,
Sí supiera tu ventura:
Que tengo inuger tan dura
De natura,
Que se da la vida en ella
Mejor que en sierra de Estrella
La verdura.
PAULA.
Mirad vos qué cosa aquella!
COM. Digo A^erdad, por mi vida.
MEL. Pues muy noble dueña es ella.
COM. Ansí me gozo yo en vella
No con vida tan cumplida:
Alma que no tiene salida,
Allí metida
Ha de estar hasta mi padre:
Gran invidia te he, compadre,
Sin medida.
Á la fe, dígotc, amigo,
76 LIVRO II.

Que te AÍIIO buena estrena:


Eso haga Dios conmigo.
Viu. Oh, calla, que soy testigo
Que es gran mal perder la buena.
COM. 3las cadena
Quieres tu que el hombre tenga,
Que muger con vida luenga,
Aunque rebuena?
No estés, compadre, triste
Por salieres de prisión;
Cuando tu muger perdiste,
Entonces remaneciste;
Mas fáltate el corazón.
Viu. Según va sin conclusión
Esa razón,
Tú estás fuera de ti,
Y aumentas mas en mí
lia pasión.
PAULA.
Oh qué mala condición!
COM. Mas es buena y muy real,
Porque yo tengo razón.
PAU. Mas habla en tí Nerón,
Y parécete muy mal.
COM. S Í yo tengo un animal,
Pese á tal,
Y una sierpe por muger,
Y por mas mi daño ser,
Es inmortal!
Tanto monta dar en ella,
Como dar ncsa pared:
Cuanto mas riño con ella.
DAS COMEDIAS. 77

Tanto mas se goza ella.


Para Dios me hacer merced
No tiene hambre ni sed;
Mas que una red
Siempre harta y aborrida:
Si esta Aida tal es vida
Me sabed.
Cuando con ella casé,
Hallé, norabuena sea,
En ella lo que os diré;
Cuando bien, bien la miro,
Vile un rostro de lamprea,
Una habla á fuer de aldea,
Y de Guinea
El aire de su meneo:
Cuanto mas se pon de arreo.
Está mas fea.
PAULA.
Oh, calla; no digáis eso,
Que es mucho gentil muger.
COM. No le visteis el avieso:
Pone el blanco desto en grueso,
Que diablo habéis de A*er.
Dejemos su parecer
Escaecer,
Y Arengamos á lo al.
No estará sin decir nial,
Y lo hacer.
Ella, por dame esa paja,
Mete la calle en revuelta;
Seso, ni sola migaja;
Dueña que se ATolveo graja,
78 LIVRO II.

Y anda en el aire suelta:


Hallóla muy desenvuelta
En dar vuelta
Dende lo bueno á lo malo:
Lleva infinito palo
Nesta envuelta.
Si algo estoy de placer,
Dice que yerba he pisado;
Si triste, quiéreme comer.
Yo no me puedo valer;
Así me trae asombrado.
Yo si trayo á mí cuñado
Convidado,
Muéstrame un ceño tamaño,
Que me hace andar un año
Renegado.
Miente que es cosa espantosa;
Oh cuantas mentiras pega
Muy porfiada y temosa!
Soberbia, invídiosa,
Siempre urde, siempre trasfiega;
Su lengua siempre navega,
Como pega,
Para todo mal ardida;
Si se halla comprehendída,
Iiuego niega.
PAULA.
Porqué deshonráis ansí
Vuestra muger? COM. Porque es plaga,
Que des que la recebí,
Bien pueden decir por mí
— El marido de la draga. —
DAS COMEDIAS. 79

No hay quien me deshaga


Tan gran llaga,
De toda paz enemiga.
Por Dios que no sé que diga
Ni que haga.
Yo na la puedo trocar,
Yo no la puedo vender,
Yo no la puedo amansar,
Yo no la puedo dejar,
Yo no la puedo esconder:
Yo no la puedo hacer
Entender,
Sino que es ella una rosa,
Y que está muy desdichosa
En mi poder.
Y con todas sus traviesas,
Está tan llena de vida,
Que con dos bombardas gruesas,
Ni con lanzadas espesas
Será en vano combatida.
Viu. O mi muger tan querida
Fallecida,
Toda paz, sin nunca guerra,
No debieras de la tierra
Ser comida.
Yo me voy ora a resar
• ' • * • - *

Sobre aquella tierra dura,


La cual 110 puedo olvidar,
Hasta mi muerte acabar
Este dolor sin ventura.
COM. XO quiso mi desventura,
Tan escura,
8o Livao II.
Que estotra fuera tras dolía:
Que yo le hiciera una bella
Sepultura.
Y le hiciera rosar
lias horas de los dragones:
Y le hiciera cantar
Las misas so el altar.
Alumbradas con tizones,
Ofertadas con melones
Badeones,
Todos Henos de cevada,
Por incienso una ahumada
De bayones.
Diz Mclicia a Paula, ficando sus:
MEUCIA.

O Paula hermana mía,


Quien había de pensar,
Cuando mí madre vivía.
Que la vida que tenia
Estaba para acabar!
PAO. NO ha hi que confiar
Ni descansar
El que por reposo puna;
Pues no se escusa fortuna
Al navegar.
Ahora que mi madre estaba
Mas alegre y descansada,
Cuando mucho sana andaba,
Y mas recia se hallaba,
Cuan presto fue salteada!
MKL. Oh triste desamparada!
PAO. YO cuitada
DAS COMEDIAS. 81

A quien tanto bien quería,


Que su ánima partía,
Yo nombrada.
MELICIA.
Gran secreto es el morir.
PAU. Mas es mucho declarado:
Mayor secreto es Aivir,
Y ser cierto de partir,
Y no estar aparejado.
Cada uno está engañado
Y confiado
Que tiene luenga la vía.
MEL. Ansí fue la madre mía,
Mal pecado.
PAULA.
Ella muy devota era,
Muy prudente, y así regida:
Yo no sé de que manera
Su muerte fue tan ligera,
Que improviso dio la vida.
A la muerte no hay guarida
Conocida;
Y quien mejor se guarece
No escusa, ine parece,
La partida.
Segue-se como D. Ros ve l, principe de Huxonia, se
namorou destas filhas do Viuvo; e porque nao tinha en-
trada nem maneira pera Ihes fallar, se fez como trabalha-
dor ignorante, e fingió que o arrepellárao na rúa, e entrón
acolhendo-se em sua casa. Diz
PAULA.
Qué buscáis? Ros. Vengóme acá.
fi
Val. I I .
82 LIVRO II.

PAU. Á que? Ros. Vengo á quien quiera.


MEL. Donde eres? Ros. Soy de acullá,
Del Villar de la cabrera,
Llámanine Juan de las Brozas,
De en cabito del lugar
Natural,
Hermano de las dos mozas:
Sé hacer priscos y chozas
Y un corral.
PAULA.
Ora pues A*ére en buenora.
Ros. Y si yo soy Juan de las Brozas
Gaitero.
PAU. Eso es menester ahora,
Como están ledas las mozas.
MEL. Vé, cabrero.
Ros. No tengo ahora adonde ir.
MEL. Tienes padre ó madre tú ?
Ros. Eso ha:
Pláceme, quiéroos decir:
Ya mi padre se ha moni;
Nel limbo está.
PAULA.
Y tu madre? Ros. Acá quedó:
Con un fraile está soldada
Muy valiente:
Luego la vestió y le dio
Una faja colorada
De presente.
Cuando retozan la fiesta,
Es mi madre tan aguda
Y tan garrida,
DAS COMEDIAS. 83

Siempre ella urde la siesta,


De sesuda.
PAULA.
Qué vida era la tuya?
Ros. Rascaba la bestia al fraile
Acá y allá,
Y díla al diablo por suya,
Y aprendí hacer un baile,
Y estoyme acá.
Yo quisíéraine casar,
lia nobía, mi fe, no quiso:
Pues ni yo;
Antes quiero acá inorar.
Viuvo.
Qué haces acá, porquero?
Ros. No soy, no. Viu. Pues qué eres?
Ros. Juan de las Brozas,
Ya per soy medio gaitero,
Hago notas y placeres
Á las mozas.
Viu. Donde eres? di, amigo.
Ros. De mí tierra. Viu. Qué lugar
Es el tuyo?
Bos. No es inio, que es de un crigo.
Yr no tengo de negar
Que no es suyo.
Viuvo.
Y ahora qué querías?
Bos. Acogíme de un rabasco
Nigromante,
Que me hizo ñifrerías.
Quien le quebrara aquel casco
6*
84 LIVRO IL

Fuertemente!
Sacudióme un torniscón,
Y sacóme un rifanazo
De la greña:
Corralóme en un rincón,
Y dióme con un palazo
De la leña.
Viuvo.
Algo le harías tú.
Ros. Nada, nada, jurí á san:
Venía yo haciendo
Tu ru ru ru ru,
Viene el liideputa can,
Que lo yo encomiendo.
Viu. Quieres conmigo vivir?
Ros. Si me dais buena soldada,
Trabajar:
Yo bien tiengo de servir
En ganado y en sembrada
Y en caArar.
Ir por leña y al molino,
Traer mato para el horno
Y aun cocer;
Vindimiar y coger lino,
Hacer vino y poner torno,
Si os menester.
No, cuanto es de servicial,
No Arenga el diablo acá
Que mas haga.
Yo os daré un corral,
Que el ganado no habrá
Miedo de plaga.
DAS COMEDIAS. 85

Hagamos luego avenencia.


Viu. Está tú conmigo un año.
Ros. Bien será:
Dejólo á vuestra conciencia:
Como vierdes que me amaño,
Así paga.
Viu. Vé por leña. Ros. Que me place;
Y veréis cuan presto vengo
Y cuan corriendo.
Viu. Trae muy valiente hace,
Y lleva el alijo luengo.
Ros. Bien lo entiendo.
Viuvo.
Habérnoslo menester
Como el pan que nos mantiene.
PAU. E S bien mandado.
MEL. Servicial debe de ser.
Viu. Veamos cuan presto Aiene
Y cuan cargado,
Zurrón luego aparejado,
Y unas dos cabezas de ajos
Y del pan,
Y luego vaya al ganado;
Que quien paga los trabajos
Dé el afán.
Oh que norabuena Arengas!
Ros. Qué mozo Juan de las Brozas!
Ya yo vengo.
Viu. Antes que mas te detengas,
Dalde luego el zurrón, mozas:
Vé corriendo.
Lleva los puercos contigo.
86 LIVRO II.

Y inamenta las cabritas


Mas recientes,
Y mira lo que te digo,
Las Aracas y becerritos
Paramentes.
- Y á la noche de camino
Trae leña para el horno.
Ros. Que me place.
Viu. Muy buena dicha nos AÍHO.
PAU. Viénenos como hecho al torno.
MEL. Bien lo hace.
Viu. Sabed que el buen servidor,
Que lo pesen á oro fino
Es merecido.
PAU. Asegun fuere el señor,
Ansí abrirá camino
A ser servido.
El poco precio al soldado,
Los servicios mal mirados
Del señor,
Por bueno que sea el criado,
Los brazos lleva cansados
Al labor.
Viu. El que es buen servidor
Siempre ha buen galardón,
Si atura.
PAU. Mas antes lo ha peor,
Pues no usa de razón
lia ventura.
Vem Rosvel cantando.
"Arrimárame á ti, rosa,
"No me diste solombra."
DAS COMEDIAS. 87

MELICIA.
Oh como es tan placentero!
Ros. Juan de las Brozas Juan
Me soy yo.
Viu. Y el ganado? Ros. Esperad, diré primero:
Anduve tras un gavillan,
Y allá quedó.
Ora, nuestramo, hablad vos.
Viu. Queda todo en el corral?
Ros. Quien? El ganado
Bueno está, bendito Dios;
No se me perdió ni tal,
Él sea loado.
Viuvo.
Dalde luego de cenar.
Ros. Que no tengo gana yo
De comida;
Mi placer es trabajar
Y hacer doquier que esto
Es mi vida.
Viu. Cena, cena: dalde el pan
Y migas á gran hartura,
Con del ajo:
Y comerás, hijo Juan,
Que el comer es la holgura
Del trabajo.
Voyme á cas del sacristán
Á pagalle las campanas
Que tañió:
Quédate, hijo Juan.
Ros. Ambas á dos sois hermanas?
MEL. Creo yo.
88 LIVRO II.

Ros. Bien lo sé por mi ventura;


Que si yo no lo supiera,
No penara:
Ambas vi por mí tristura:
Antes no nacido fuera,
Que os mirara.
PAULA.
Jesu! Jesu! Jesu!
Mas es esto que pastor.
MEL. Como! ay Dios!
Y nos Uamabámosle tú!
Decidnos por Dios, señor,
Quien sois A'os?
Ros. Soy quien arde en vivas llama.»
Pastor muy bien empleado
En tal poder,
Por serdes, señoras damas,
Hermanas en dar cuidado
T

A mi querer.
Pido á vuestra gran beldad,
Que no os turbéis, señoras,
Por aquesto:
Que en guardar vuesa beldad
Yo seré á todas horas
Mucho presto.
No quiero sino miraros,
No quiero sino serviros
Desta suerte;
Y si os ofendo en amaros,
Bien lo pagan los suspiros
De mi muerte.
Don Rosvel soy, generoso,
DAS COMEDIAS. 89

Hijo de Duque y Duquesa,


Muy preciado.
El amor es tan podroso,
Que me trujo á la defesa
Con cayado.
Mándame ser alquilado,
Ansí lo tengo por gloria
Y lo quiero,
Sin ser de vos remediado,
Ni querer nunca victoria,
Ni la espero.
MELICIA.
Cuanta yo, no sé que diga.
PAU. Nunca tal se acaeció,
Por mi fe:
Tal señor en tal fatiga!
Ros. Que no quiero ser yo, no;
Ya me troqué:
Desde el dia que os miré,
De tal suerte me prendisteis
Improviso,
Que mi muerte ya la sé:
Y pues que Aros me la disteis,
Es paraíso.
Soy vueso trabajador,
Como son los alquilados:
Mas no soy —
Dejadme morir pastor,
Llorando por los collados
Dende hoy!
No sepan parte de mí:
Don Rosvel no quiero ser
90 LIVRO II.

Ni por sueño;
Que otro soy des que os AÍ,
Y por vos es mi placer
Tener dueño.
PAULA.
La merced que nos haréis,
Que somos huérfanas señor,
Y sin madre,
Que os vais y nos dejéis:
No matéis al pecador
De mi padre.
Abatís en vueso estado,
Siendo noble en señoría
Por derecho,
Y queréis ser deshonrado
Por tan pequeña contía,
Sin provecho.
ROSVEL.
No me deja ir amor
Ni las mis andas tamañas,
Que departo;
Que es tan vivo ini dolor
Que me abrasa las entrañas,
Si me parto.
No pude de otra manera,
Para veros y serviros,
Sino ansí:
Hice yo que no debiera,
Porque muchos mas suspiros
Tengo aqui.
PAULA.
Ora eso que aprovecha,
DAS COMEDIAS. 91

Sino para daros pena


Y á nos temor?
Ros. No tengáis de mí sospecha,
Porque eso mas pena ordena
A mi dolor.
MEL. Ora id os con Dios, señor;
Que es raíz de todo mal
Conversación.
Ros. Pues me prendió vuestro amor,
Donde iré, pues está tal
Mi dolor?
PAULA.
Como puede ser querer,
Sin que sea el conversar
Gran peligro?
Ros. Por vos amo el padecer;
No procuro descansar
Neste siglo.
MEL. No queremos tal criado,
Ni queremos tal vaquero
Ni pastor.
Ros. No quiero tal alto grado;
Hacedme vueso porquero,
Que es menor.
Vem o Viuvo e diz:
Qué haces, Juan? Comiste?
Ros. Harto estoy repantigado
De comer.
VIU. Paréceine que estáis triste.
Ros. Mas contento, Dios loado,
Y de placer.
Nuestramo, mirad; 50 estaba
92 LIVRO II.

Acá á mis amas hablando


Del deseo
Y gana que me tomaba
De mi tierra, que mirando
No la Areo.
Suso, qué tengo de hacer?
Viu. Toma aquel azadón
Y la azada.
Ros. Todo eso es mi placer,
Que faltase el galardón
Y soldada.
Viu. Muy bien te será pagada.
Vé, cava la viña luego
Sin reproche,
Hien caA^ada y adobada,
Y trae cepas para el fuego
A la noche.
A la aldea quiero ir,
Y veré nuestro montado
Como está;
Tarde tengo de venir.
Vosotras tened cuidado
En lo de acá:
Estas puertas bien cerradas,
Y no estéis ociosas
En estrado;
Que las mozas ocupadas
Escusan causas dañosas
A l Cuidado. (vai-se)
PAULA.
Qué consejo tomaremos?
Nosotras, si nos callamos,
DAS COMEDIAS. 93

Consentimos:
Estamos en dos extremos,
Porque á él también erramos,
Si decimos :
Son dos extremos sin medio.
MEL. El medio es si nos dejase.
PAU. TU no A'es
Que eso no lleva remedio ?
Si consigo lo acabase,
Cierto es.
MELICIA.
Pues nos que lo publiquemos
r

A mi padre ó á alguien
Es niñería.
PAU. Ningún favor no le demos.
MEL. Y quien por nos sirve tan bien
Qué diría?
PAU. Y pues quien le pagará
La grande soldada suya
Norabuena ?
MEL. Hermana, él se enfadará:
Culpa no es mia ni tuya
De su pena.
Vem D. Rosvel, cantando, carregado.
ROSA T EL.
"Mal herido me ha la niña,
"No me hacen justicia."
Ha, nuestramo! PAU. Fuera es ido.
Ros. Consuelo de mi alegría,
Como estáis?
Mi gloria, mi bien cumplido?
Que la muerte y vida mia
94 LIVRO II.

Vos la dais.
PAU. Señor, porqué os matáis,
Y nos dais vida cuidosa
Sin porque?
Porque en Arano trabajáis?
Ros. O esmeralda preciosa!
Bien lo sé.
Pero este mi sudor
Amata las Aivas llamas
Que amor quiso,
Y el afán de mi labor
Por vos, muy hermosas damas,
Es paraíso.
Y el ganado que apaciento
Como á ángeles del cielo
Lo adoro
Por A^ueslro merecimiento,
A que no pido consuelo,
Sino lloro.
Otra gloria no me siento
Sino desesperar della,
Y desespero:
De mis trabajos contento,
A nadie tengo querella;
Y sé que muero,
Y sé muy cierto que no
Con servicio os enamore
Ya en mis días:
Porque no soy diño yo,
Ni sé como os adore,
I'dolas mías.
DAS COMEDIAS. 95

PAULA.
Por cual de nos lo habéis vos1
Ros. Dos amores se ayuntaron
Contra mí;
IiOs males de dos en dos
Mi cuerpo y alma cercaron,
Cuando os AÍ.
De dos en dos los dolores,
Dos saetas en mí siento,
Y me hierieron:
Ay, que juntos dos amores
En un solo pensamiento
No se vieron!
Sufrir doble padecer,
Padecer doble pasión,
Cual me veis,
No sé como puede ser;
Que mi fuerza y corazón
Vos la leñéis.
La una de Aros bastara
Para que mí poder fuera
Consumido,
Y la vida y alma gastara.
No que mi querer pudiera
Ser perdido.
Vem o Viuvo, e diz
ROSVEL.
Nuestramo, Avenís cansado?
Viu. Mas antes mucho contento
Del casal;
Porque dejo concertado
Para Paula un casamiento
96 LIVRO II

Muy real:
Y aun Melicia esla semana
Le espero de dar marido
De hazaña —
Lloras? Ros. Lloro una hermana,
Que poco ha se ha morido
Supitaña.
Quiero llevar el ganado
Á unos valles sombríos
Y tristoños,
Donde se harte el cuitado
De oir los gritos míos
Muy medoños.
Viu. Limpia el establo primero,
Y lleva el eslércol luego
Al linar.
Ros. Que me place, eso quiero.
Acábame ya, triste muerte,
De matar!
Viuvo.
Qué hablas? Ros. Qué he de hablar?
Digo que voy soñoliento
Y carcomido.
Viu. YO me voy ora á rezar,
Que Dios haga á tu contento
Aquel marido. (vai-se)
PAU. Oh como va lastimado
El triste de Don Rosvel!
MEL. ES de doler.
PAU. De veras es namorado.
MEL. Luego pareció en él
Su querer.
DAS COMEDIAS. 97

PAULA.
Pues no es de los fingidos,
Dame tú la fe, hermana,
Yo doy la mía,
Que no tomemos maridos,
Hasta que él de su gana
Haya alegría.
No hagamos sinrazón
A quien de amores nos trata
En tanta fe.
Perseguillo hasta la mala
Será mala condición
Y sin porque.
Yem D. Rosvel e diz:
A todos das sepultura,
Muerte; díme que es de ti,
Que te amo,
Y por mi gran desventura,
Tú te haces sorda á mí,
Que te llamo.
Pues mi ánima se enoja
Con las tristes ancias mias,
Tan penada;
Rasgada sea la hoja
Adó están escritos mis dias.
Y quemada!
Oh, por Dios, lindas señoras,
En este transo penado,
Tan mortal,
Xd os mostréis consentidoras,
Ni vea yo desdichado
Tanto mal.
V o l . U.
98 LIVRO II.

Que aunque por mi triste hado


Os caséis luego las dos.
Sabed pues
Que no dejaré el ganado,
Aunque lo mandase Dios,
Pues A'uestro es.
Yo lo tomo por guarida;
En pastor quiero servir
Y tener fe.
Y esta será mi vida,
Muy agena deste nombre
Yo lo sé.
PAU. NO os matéis sin porque,
Que muy fuera estamos deso,
Y bien frías.
Ros. Oh preciosa mercé!
Cuando serviré yo eso,
Diesas mías?
Pues tan firme es mi querer,
Que de mas en mas se enciende:
No por tema,
Dejaros no puedo hacer;
Y mirándoos mas so enciendo
El que ine quema.
Con ambas no puede ser
Casar yo, como sabéis;
Echad suertes,
Que quiero satisfacer
La mercé que me hacéis
De mil muertos.
MELICIA.
Burláis os de nos, señor?
DAS COMEDIAS. 99

Paréceme sueño esto.


PAU. Ansí lo es.
Ros. No quiero mas ser pastor,
Echad vuesas suertes presto
Y vello heis.
Tirou D. Rosvel o chapeirao, e ficou vestido como quem
era; e forao-se as mocas a el Reí D. Joiío III, sendo prin-
cipe, (que no serao estova) e lhe perguntárao dizendo:
Príncipe, que Dios prospere
En grandeza principal,
Juzgad vos:
La una Dios casar quiere,
üicid vos, señor Real,
Cual de nos.
Julgou o dito Senhor r/uc a mais velha casasse pri-
meiro, c diz
MELICIA.
En Paula cayó la suerte,
Dios se acordará de mí.
PAU. Has codicia?
Ros. Heme aqui en otra muerte;
Que peno ansí como ansí
Por Melicia.
Andando D. Gilberto, irmao de D. Rosvel, correndo
o mundo em busca de sen irmao, por inculcas veio ter com
elle, e vendo-o lhe diz:
GILBERTO.
El Señor sea loado
Y toda la corte del cielo,
Pues mi hermano y mi consuelo
Tengo hallado.
Todo el mundo he buscado
7*
100 LIVRO II.

Por hallarte muerto ó vivo,


O si eras libre ó cautivo,
O desterrado.
ROSVEL.
Mi padre y madre son vivos?
GIL. Vivos? de lloros dolientes
Diéronle mil accidentes
Tus motivos.
Están tristes, pensativos,
No sabiendo qué es de ti;
Y salen fuera de sí
Con gemidos.
Dijéronle unas hechiceras:
Puercos guarda Don RosA'el,
Y dos mozas contra él
Son guerreras.
Amalas tanto de Aceras,
Que otra cosa no adora;
De noche y de día llora
Por las eras.
ROSA'EL.
Contarte he de mi venida
En dos palabras no mas;
Porque luego sentirás
Mi fatiga.
Estas diesas de la Aida,
Reinas de la fuerza humana,
Me prendieron de mi gana
Oferecida.
No digo ser su vaquero;
Mas merece su valor
Ser un grande emperador
DAS COMEDIAS. 101

Su porquero.
Hermano, yo te requiero,
Por la mucha virtud dolías.
Que nos casemos con ellas,
Yo primero.
Amparemos y honremos
Huérfanas tan preciosas,
Que en las cosas virtuosas
Son extremos.
Villas y tierras tenemos;
Hagamos esta hazaña,
Que quede ejemplo en España,.
Y no tardemos.
Toma esta por muger,
Y á mí darás la vida
Y ternas muger nacida
A tu placer.
Quien casa por solo haber,
Casamiento es temporal.
GIL. Como á hermano especial
Lo quiero hacer.
Tomou D. Rosvel a Paula pola mao, e D. Gilberto a
Melicia. E neste passo veio o pae dellas, e cuidando que
era d'outra maneira, se queixa dizendo:
Viuvo.
Señores, qué cosa es esta
Que hacéis en mi posada
Dolorida y quebrantada,
Descompuesta ?
Qué cosa tan deshonesta
Para señores reales!
102 LIVRO II.

Guardar las huérfanas tales


Qué os cuesta?
Las que debéis amparar,
Las que debéis defender,
De A^uestro oficio Aaler
Y ayudar?
Y viéndolas maltratar,
Socorrer á su flaqueza,
Esta es leí de nobleza
Y de loar.
Pues que batallas A-encísteis,
Que gentes desbaratasteis,
Un triste Alejo matasteis
Y hundisteis;
Flaca casa destruísteis,
Sacasteis triste tesoro:
Y para Aros, hijas, lloro
Consensisteís.
PAULA.
Oh, no riñáis, padre, no,
Mas debéis mucho holgar,
Pues Dios nos quiso amparar
Y nos casó.
GIL. Señor, vuestro yerno só.
Ros. E yo Arucstro yerno é hijo:
Dios y la ventura quiso
Y también ya.
Viuvo.
Loado y glorificado
Sea nuestro Dios podroso.
Que me hizo lan dichoso
Y descansadlo!
DAS COMEDIAS. 10.3

Caso bien aventurado,


Por mi consuelo acaecido,
Sin tenelo merecido
Ni soñado.
Voy á hacelo á saber
r

A mis amados amigos,


Porque sean los testigos
Del placer.
Y también es menester
Que busque mil alegrías,
Y bailen las canas mías:
Esto ha de ser.
Vao-se as mogas vestir de festa, e vcm quatro cantores,
<: andarao hum compasso ao som desta
Cantiga.
"Estanse dos hermanas
"Doliéndose de sí;
"Hermosas son entrambas
"Lo mas que yo nunca vi.
"Hufa! hufa!
"Á la fiesta, á la fiesta,
"Que las bodas son aquí.
"Namorado se había dellas
"•Don Rosvel Tenorí:
"Nunca tan lindos amores
"Yo jamas contar oí.
"Hufa! hufa!
"Á la fiesta, á la fiesta,
"Que las bodas son aqui."
t'em as mogas vestidas de gala, <• entra o Clérigo com
o Viuvo. c diz o Clérigo desposando-os:
104 LIVRO II.

CLÉRIGO.
Este santo sacramento,
Magníficos desposados,
Es precioso ayuntamiento;
Dios mismo fue el instrumento
De los primeros casados,
Por su boca son sagrados:
Serán dos in carne una,
Benditos del sol y luna,
En un amor consei'vados.
El Señor sea con vos:
Las manos aqui pomeis,
Y decid: Nombre de Dios,
Don Rosvel, recibo á vos
Et cetera, ya lo sabéis
Y aquel dicho de Noé;
Le dijo Dios: Multiplicad,
Enchid la tierra y holgad
Con salud, que Dios os dé.
F I G U K A S.

LAVRADOR. MELIDONIO.
CELIPONCIO. COLIMENA.
GALAMENO. BELICRASTA.
LIBERATA. SIL VENDA.
HERIDEA. SOSSIDERIA.
ERMITÁO. PERIGERIA.
MONDERIGON. PEREGRINO.

Comedia representada ao muito alto, poderoso, e nao


menos christianissimo Rei D. Joño terceiro em Portugal
deste nome, estando na sua muito honrada, nobre e sempre
leal cidade de Coimbra. Na qual comedia se tracta o que
deve significar aquella Princesa, Leño, e Serpente, e Calix,
ou fonte, que tem por divisa: e assi este nome de Coimbra
donde procede, e assi o nome do rio, e outras antiguidades
de que nao he sabido verdadeiramente sua origem. Tudo
composto em louvor e honra da sobredita cidade. Feita e
representada era do Senhor de 1527-
COMEDIA SOBRE A DIVISA
DA CIDADE DE COIMBRA.

ARGUMENTO.
PEREGRINO.
Pois que o honor do mundo presente
Se dá coin rezao á antiguidade,
Infinita honra Ion» esta cidade,
Segundo se escreve copiosamente.
E a honra maior
He que o altissiino Imperador,
Vossas Magestades, a Sacra Iinperatriz,
A alta Duqueza Dona Beatriz,
Se sois sacros fructos, daqui foi a flor.
E tambem a Rainha que he d'Inglaterra,
E a verdadeira Rainha de Franca,
A quem Déos, Déos nosso dé tanta bonanca
Como dá Maio ás flores da serra:
O lucido Infante,
Rei Duque d'Austria, Heitor militante,
E o sacrosancto nosso Cardeal,
Os nobres Infantes, bem de Portugal,
Daqui procedestes, e ¡s adianto.
Assi que os principes da Chrislandade,
Que agora reináo, daqui florccéráo:
Aqui jaz o Rei de que procedéráo:
E que o fez rei senáo esta cidade?
DAS COMEDIAS. 107

Porém muito antes,


Ante que houAresse aqui nunca habitantes,
Sendo isto serra de grande montanha,
No tempo que Merida A^eio a Hespanha,
E os montes d'Armenia eráo de gigantes,
Veio de lá aqui habitar
Hum feroz salvagem gigante senhor.
E por ser historia de gósto e sabor,
Ordena o autor de a representar,
Porque vejáis
Que cousas passáráo na serra onde estáis,
Feitas em comedia muí cháa e moral,
E os mesmos da historia polo natural,
E quanto falláráo, nem menos nein mais.
Por ella veréis porque esta cidade
Se chama Coimbra, e donde lhe ATem
O Leáo e Serpe e Princeza, que tem
Por sua divisa ja d'antiguidade:
E flor provas certas
Veréis donde veío e de que planetas,
Que falláo aqui rouquenhos os mocos,
E todalas mocas tein curtos pescocos,
E ináos rebuchudas, e as unhas pretas.
Outro si as causas porque aqui tem
Os clérigos todos ínui largas pousadas,
E niantem as regras das Aidas casadas.
Desta antiguidade procedem tambem,
Sem serom culpados,
Porque sao lois dos antigos fados,
Cousa na (erra ja determinada,
Que os sacerdotes que nao tem multada
De clerigosinhos, sao excoinmungados.
108 LIVRO II.

E a causa porque as muflieres daqui


Sao melhor casadas que as deosas do monte:
Porque esta comedia vos mostrará a fonte
De todalas cousas, que ouvistes aqui.
Ja sabéis, senhores,
Que toda a comedia cometa em dolores;
E aindaque todas cousas lastímeíras
Nao sao muito finas sem outros primores;
Entrará primeiro hum homein lavrador
Qu'em tempo daquelle salvage morava
Ca n'outra serra, onde so lavrava
Com filhos e filhas, e grande dolor.
O qual se lamenta
Da adversa fortuna ein que corre tormenta.
E porque a comedía vai táo declarada,
E táo raso o estylo, nao serve de nada
O inais argumento: e cerro a ementa.

Exclamacao do muito nobre Lavrador, principiando a


comedia procedente.
LAVRADOR.
AA7ante, desdicha mia,
Pues corres en pos de mí,
No á ciegas;
Acaba, que bien seria
La muerte que te pedí,
Y me niegas.
O fortuna sin piedad,
Como eres descompasada
Sin medida!
Pues nací con brevídad.
DAS COMEDIAS. 109

Dame muerte abreAiada


Y no cumplida.
Si el nacer fue en un momento,
Porqué muero en tantos días,
Padeciendo
De suerte que siempre siento
La muerte de Jeremías,
Yo viviendo?
Tú y los cielos y Dios
Me tenéis muy mal tratado:
Y lo peor
No haber siquiera en A^OS
Piedad deste cuitado
Labrador.
Que en esta sierra do inoro
Las aves y animales
Han pesar
Porque grito, porque lloro,
Porque son mis llantos lales
Sin cansar.
Y las braAras espesuras
Me fueron y son piadosas
Hasta aqui;
Y las grutas mas escuras
Desean de ser Iumbrosas
Para mí.
Y lú, fortuna y Dios,
Con todas sus hierarquías,
Adó estáis?
Sin nunca ser contra ATOS,
Con las tristes ansias mías
Os gosaís.
110 LIVRO II.

Oh! reniego de la Aida,


Pues tronos y dominaciones
Y postestas,
Y la orden mas subida,
Con gloria de mis pasiones
Hacen fiestas.
Los spiritos infernales,
Con que ya ine gosaria,
No los veo,
Mas siéntolos en mis males:
Tan mala es la pena mia
Que poseo!
De las ánimas dañadas
Siento las noches y dias:
Sus congojas
En mis entrañas quemadas,
Y las suyas con las mías
Quedan flojas.
Vem hum Ermitao e diz ao Lavrador
ERMITAO.
Hermano, Dios te cousuele,
Y te salve y te aconseje,
Y dé paciencia.
LAV. Consolará como suele;
Que él me roba, y hace herege
Mi conciencia.
En.M. Quisiérate perguntar
Hacia adó caminaría
Por aqui,
Que hallase algun lugar
Áspero sin alegría
Para mí?
DAS COMEDIAS. m

Mas véote tan lloroso,


Que es mejor de perguntarte
Por (i mismo.
LAV. Todo el que nació desdichoso
Cred cierto que no hubo parte
En el baptismo.
Pero cuéntame primero
Porque vas buscar primores
De tristura.
ERM. Eso te diré postrero;
Porque son unos dolores
De otra cura.
Lo tuyo será profundo,
Pues de Dios ansí querellas
Sin recelo.
Quejaste también del mundo,
De los ángeles y estrellas,
Y del cielo.
LAV. Quiero abrirte mis entrañas;
Contarte he, y oirás
De mi llaga
Que cobré nestas montañas,
Y quizá tú me dirás
Lo que haga.
Yo soy hombre generoso
De noble sangre nacido,
Y por huir
Del estado peligroso,
Mudé, por no ser perdido,
Mi vivir,
Escogiendo por mejor,
Para el ánima salvar
112 LIVRO II.

De afrenta,
La vida del labrador,
Que no tiene de que dar
Tanta cuenta.
Casé con una pastora,
Que andaba en esta montaña
Otra tal,
Hija de grande señora
Y del señor de Bretaña,
Mi igual,
Y con la misma intención
Que yo, dejó su estado
Y su tierra,
Y acertó por conjunción
Casarnos entre el ganado
Desta sierra.
Ella cada año paría
De dos en dos las crianzas
Tan hermosas,
Que en ellas se parecía
Y parece que son plantas
Generosas.
Vino Dios ya sin razón,
Estando resando ella
En mi corral,
Consentió que un dragón
Me hiciese viudo della,
Por mi mal.
No bastó: mas va en siete años
Que no cogo pan ni nada
En mis herdades
Con los inviernos tamaños,
DAS COMEDIAS. 113

Que todo asuela la helada


Y tempestades.
Estoy de hijos cargado,
Lloran por mantenimiento
En pos de mí.
La nieve mató el ganado,
La fruta llevóla el viento
Por ahí.
Las hierbas secó el frió,
Las legumbres no nacieron,
Mal pecado,
Ni lleva peces el rio;
Hasta las aves se fueron
Del montado.
Ya me canso de decir,
— Hijos, no sé que os haga:
No lo tengo. —
Señor, queraisme acudir
Con consejo en esta plaga
Que sostengo.
ERMITAO.
Toma tu hijo primero,
Y entrégale su hermana
Mayoral:
Él es muy buen ballestero,
Salválaha de buena gana
Deste mal.
Irán por esas montañas,
Por osas desiertas tierras.
Mataran
De las aves y alunarías;
V ni, I I .
114 LIVRO II.

Y por las breñas y sierras


Vivirán.
El otro un poco menor
Entrégale la mediana,
Que es osado,
Y inui grande pescador.
Manterná muy bien su hermana
Con pescado.
Los pequeños inocentes,
Dios, cuando tú no pensares,
Haberás
De sus celestes presentes:
Y como esto compasares,
Pasarás.
LAA'RADOR.
Celiponcio y Liberata
Son los hermanos primeros.
ERM. Dios testigo,
Que hagan vida de plata
Por esos bosques y oteros,
Como digo.
LAV. El mediano es Galaineno,
Y la mediana, Heridca.
ERM. Bien íran.
LAV. Vale mas consejo bueno
Aquel que virtude ordena,
Que no pan.
Vem Celiponcio c Liberata, sua irman; c diz
CELIPONCIO.
Liberata, hermana mia,
Vamos por hi adelante,
Pues que Dios
DAS COMEDIAS. i 15

Ya no os el que solía,
Mas mudó otro semblante
Para nos.
LIB. Si tú, Celiponcio hermano,
Lo que dijo el ermitaño
Has por seso,
Y mi padre nos da mano,
Luego antes de mas daño
Se haga eso.
Y cumple de caminar,
Sí vieres que de razón
Se ha de hacer;
Porque el buen remediar,
Como pasa su sazón,
No puede ser.
Descarguemos de cuidado
Mi padre, que lanío Hora
Nuestro daño;
Porque, un mal remediado,
Los otros teman su hora
Por el año.
Chegño a tomar a bengao do pae, o qual diz:
LAVRADOR.
O mi hija liiberata,
Discreta, mansa, muy buena,
Despedios;
La mía bendición beata
Os echo con triste pona.
Hijos míos,
Llevareis esta ballesta,
Y esta chuza llevad
Y eslabón.
a'
116 LIVRO II.

Liu. Muy cara partida es esta:


Otra vez, padre, me echa
La bendición.
Vem Galameno e Heridea, e diz
GxVLAMENO.
Pues que ansí es, Heridea,
Quiérome hacer Aventurero
Por el mundo,
En antes que mas mal sea.
Celiponcio es el primero,
Yo el segundo.
Esfuérzate, hermana mia;
Cuidado otro no tendrás
Principal,
Sino tomar alegría,
Y de tu bondad; no mas:
Yo de lo al.
HERIDEA.
Vamos, Galameno hermano,
Que bien dice el ermitaño.
Todavía
Hayamos lumbre á la mano,
No veamos mas mal año
Cadaldía.
Porque quien no se aArentura,
Como dicen comunmente
Por ahí,
No espere por ventura,
Que el bien nunca está presente
Luego allí.
LAVRADOR.
O Galameno y Heridea,
DAS COMEDIAS. u?

Celeponcio y Liberata
Idos son.
En antes que morir os vea.
Partios con mi sacrata
Bendición.
Galameno, hé aqui tu hermana,
Y esta cana de pescar
Y pedernal:
Hijos, quien no anda, no gana.
Yo quedo para llorar
Aun mas mal.
Razoamento do Lavrador com o Ermitao, depois de par-
tidos os filhos, ficando sos.
LAVRAÜOR.
Ora me di tu ventura,
Padre bienaventurado
En el cielo,
Consejo de mi tristura,
Maestro de mi cuidado,
Y mi consuelo.
ERM. YO soy el Rei Ceridon
De Corduba y Andalusía;
Y un selvage,
A que llaman Mondrigon
Cautivó una hija mia,
Por mi ultrage.
Y cautivó un su hermano,
Á que llaman Melidonio,
Y cuatro damas
Me robó el cruel tirano
Por el poder del demonio
Y' de sus llamas,
118 LIVRO II.

Y cuatro hermanas dellas.


La una llaman Sosideria,
Y la otra Belierasta,
Y la otra Perigeria,
La otra ha nome Sihrenda,
Todas de muy noble casta.
Y este Monderigon,
Estando ellas jugando
Descuidadas
A la fuente del balcón,
Las llevó, como volando,
Caut¡ATadas.
Oh mi hija Colimena,
Coliinena la prínceza
Natural!
Donde estás, dulce serena,
Que nunca para esta presa
Hiciste mal?
LAVRADOR.
Ese caso es tan terrible,
Que no os puedo aconsejar
Ni valer;
Y paréceme imposible
Podellas jamas cobrar,
Ni aun ver.
ERM. NO querría sino vellas,
Por A7er como están tratadas.
Quedaos á Dios.
LAV. El os dé noticia dellas,
Y en todas vuesas pisadas
Sea con vos.
DAS COMEDIAS. 119

Saem-se o Rei ermitao, e o Lavrador. e logo se repre-


senta em como Celiponcio e Liberata andáo nesta serra
de Coimbra cacando, e as aventuras que lhe nella aconteceo.
LIBERATA.
Hermano, para cazar
Yo no soy ninfa del cielo,
Ni soy diesa:.
Canso, y no puedo aturar.
CKL. Hermana, tengo recelo
De una cosa:
Si te dejo en las montañas
Sola, y voy con la ballesta
Por la sierra,
Ha hi muchas alimañas.
Luí. Buena chuza será esta
En esa guerra.
Busquemos un lugar tal,
Do pueda estar socegada
De mi espacio.
CEL. Aqui es muí natural
Que fue ya casa poblada
Y un palacio.
Aqui estarás encubierta,
Dentro destas arboledas
Escondida:
Fuente de agua siempre cierta,
Cantan aqui aves ledas —
Tienes vida.
Á la noche yo vendré,
Quédate á Dios, Liberata,
No te enhades.
LIB. Cierto es que cubada re:
120 LIVRO II.

Pero andar: mas mal me trata


Por los valles.
Fica so Liberata, e diz:
En montaña tan terrible
No me conviene dormir.
Quiero pensar,
Por no dormir, el increíble
Caso que nos hizo ahuir
Y derramar.
Soledad tengo de ti,
Heridea, hermana mía
Y mis enojos.
Quien te apartó de mí?
Si te veré algún dia
Ante mis ojos?
Y aquel tiempo pasado
De nuestra conversación
Dulce y bella,
Que ansí fortuna ha llevado,
Si buscará conjunción
Para volvella?
Lo que fue si vuelve á ser
Lo mismo? — creo que no.
Sí, será,
Que el tiempo tiene poder.
No puede — mira en esto.
Quizás podrá.
Vendrá algún año bueno:
Mi padre es de buena edad
Compasada,
Y volverá Galameno
DAS COMEDIAS. 121

Y Heridea á nuestra edad


Deseada.
( De enfadada canta )

"Soledad tengo de ti,


"O tierra donde nací."
O Salvage Monderigon ouvindo cantar Liberata, vem
a ella; « ella de temor chama pelo irmao, dizendo:
LIBERATA.
Celiponcio! 0 hermano,
Mi guardador, donde estás?
Mo.N.Qué habéis?
Luí. Sois drago, y habláis humano!
MON.Señora, hombre soy y mas:
Porqué teméis?
LIB. Vos tened os allá: — oís?
Que yo también nací en sierra.
MON.NO os entiendo:
Y tan valiente os sentís,
Que me queréis hacer guerra?
Yo me riendo.
Queréis que me arriedre mas?
LIB. Ansí cumple á vuestra vida.
MON. lióme aqui.
LIB. Allá, allá, bien atrás!
MON. Doncella tan atrevida
Nunca vi.
LIB. Juro á mi vida mortal
Que si nías aqui llegáis,
Que os haga y o . . . .
3ION.Señora, no tanto mal:
Si muerto me deseáis,
Muerto só.
122 LIVRO II.

Tomad la hacha y escudo,


Y á mí en vuestra prisión
Muy de gana.
LIB. NO enseñéis señas al mundo,
Que yo tengo corazón
De serrana.
MON. Porque sois de serranía,
Me matastes vos de amores».
LIB. NO os entiendo.
MON. Digo que sois alma mia.
LIB. AI diablo tanta arabía,
A que yo lo encomiendo.
MONDERlGON.
Queréis ser mi namorada?
LIB. Namorada qué cosa es?
MON.Linda cosa:
Serdes mansa y moderada,
Hablar risueña y cortés
Y amorosa.
Y pues hermosa nacistes...
LIB. Qué queréis, señor, á eso?
MON. Que escuchéis,
Pues que á mi sierra veniste*¡,
Y creáis cuanto por vueso
Me tenéis.
Que yo bien puedo cautivaros,
Sin mirar en vuestra pena
Ni querellas;
Pero no quiero'enojaros,
Como hice á Colimena
Y sus doncellas.
Porque aquello fue por guerra,
DAS COMEDIAS. 123

Que su padre me hacía,


Sí lo oísteis.
Mas vos, vida, en esta sierra,
Hermosa, sin compañía,
Me prendisteis.
LIBERATA
Id os con Dios norabuena.
Mí hermano vendrá ora;
No tardará,
Receberá mucha pena.
MON. Digo que yo me iré, señora:
Hecho está.
Mandadme vos, rosa inia,
Que este siervo hará luego
Tu mandado.
LIB. NO vengáis mas ningún dia;
Catad, señor, que os lo ruego.
MON. Oh cuitado!
Lo imposible queréis.
Señora, como os llamáis?
LIB. Liberata.
MON. Nombre de libre tenéis.
LIB. Señor, pídoos que os vais.
MON. Eso me mata.
O Liberata, Dios mío,
Líbrame de tu esquivanza
Tan esquiva.
Señora, dadme alvedrío
Que vuelva por esperanza,
Con que viva.
Partido Monderigon, fica Liberata a solas fallando
comsigo, c diz:
124 LIVRO II.

LmERATA.
Es ido: pues por mi fe
Que no sé por qué interese
Deseaba que se fuese,
Y pésame porque se fue,
Como si bien le quisiese.
Y pluguiese al alma mía
Que yo pudiese librarme;
Que esto que hace pesarme
Porque se fue, algún dia
Quizá podrá amargarme.
Mas qué digo?
Por ventura es enemigo,
Que quiere hacerme herege:
Mas no rege,
Que el amor sentó conmigo.
Qué haré?
Si volvíere, mostrarle he
Manso corazón, ó bravo?
Mas él náceseme esclavo,
Para qué me ablandaré?
Todavía
Seguiré la tema mia;.
No me quiero condenar,
Ni pensar
En este hombre hora ni dia.
Bien mirado
Es tan dulce y bien hablado —
Que lo sea norabuena;
Que esta lena
Después da luengo cuidado.
Vcm Celiponcio da caga, e diz.
DAS COMEDIAS. 125

CELIPONCIO.
Ya la caza viene asada.
LIB. Seáis mucho bien venido.
CEL. Hermana, como te ha ido?
LIB. Bien, que ya estoy descansada.
CEL. Dios loado!
Vengo bien aventurado.
LIB. Cómo, Celiponcio? qué?
CEL. Una serpiente hallé,
Y un león muy denodado,
Y dainbos quedan allí.
Guárdanme en esta espesura,
Que animal ni criatura
No osa á llegar á mí.
Ellos veníanme á matar,.
Yo fui los halagar,
Echando la ballesta á mal,
Y tomáronme amor tal,
Que no ine pueden dejar.
LIB. Qué son? qué son?
CEL. Una sierpe y un león.
Dígote, hermana querida,
Que aman tanto ini vida,
Y dambos en tanto extremo,
Que todo el mundo no temo.
Bendita nuestra venida!
LIB. Parece cosa divina.
CEL. Toma, hermana, esta bocina.
Porque la conocen bien;
Y si te enojare alguien,
Toca, y verás cuan aína
Destruen Jerusalen.
126 LIVRO II.

LIBERATA.
Fuerte cosa es esa, hermano!
CEL. Anda, ven acá conmigo,
Y verás lo que te digo
Si te lo pongo en la mano.
LIB. Bien creo que será ansí;
Pero bien me estoy aqui:
Canso mucho por la sierra.
CEL. Si alguno te hiciere guerra,
La bocina queda ahí.
Monderigon nao ousando quebrantar a postura que Li-
berata lhe poz que nao tornasse ahí mais, mandou-lhe hum
recado por Melidonio, irmao da princesa Colitnena; e
porque elle vinha muito desfigurado cnberto de cabello, e
com hüa braga de ferro, diz Liberata, espantada delle:
LIBERATA.
Quien sois? Oh Abálame, Dios!
MEL. Soy captivo sin razón
Del cruel Monderigon,
Que es tan perdido por Aros,
Que pasa de perdición.
Y tiene mi hermana presa,
Colimena la princesa,
Cuatro damas sus hermanas que prendió.
Señora, á ATOS me enAió,
Que os dícese esta empresa.
LIBERATA.
Dejemos eso agora,
Que en después me hablareis.
Mas decidme, ansí gocéis,
Como trata esa señora?
MEL. Tan mal que os espantareis,
DAS COMEDIAS. 127

Sin causa y sin razón.


Luí. Nunca sale de prisión?
MEL. De la prisión ni momento;
Mas para le dar tormento
Busca toda invención.
Señora, por se gosar,
Que cautÍA^ó estas señoras:
Cada dia á aquellas horas
Las hace todas cantar.
Sus llantos son muy continos;
Lloran con ojos divinos;
Y las sus lágrimas son
Arroyos del corazón,
Con que molerán molinos.
Escuchad, que aquellas son.
Aqui canta hüa doce música de longe e, acabada, diz
LIBERATA.
Oh qué gran dolor de oír!
Cuanto mas será de ver.
Cuitada de Cofimena!
MEL. Qué tengo allá de decir?
Ya lo querría saber;
Y si fuese nueva buena...
LIB. YO no entiendo vuestraino,
Ni entender no lo quiero;
Ni ine espere, ni lo espero;
Que si ine ama, lo desamo;
Si ine espera, lo desespero.
MELIDONIO.
Señora, muy malo es eso.
LIB. Decídselo ATOS peor,
Porque no vuelva á mis ojos.
128 LIVRO II.

MEL. Diré que no os hallé,


Que sois ya ida de aqui.
LIB. NO quiero ya, hermano, así:
Decidle por vuestra fe,
Que no cure mas de mí.
MEL. Señora, así lo diré, (vai-se)
LIBERATA.
Si aquel amor es fingido,
Aqui se ha de declarar;
Porque él tiene de aflojar,
Criendo que es tiempo perdido
Conmigo mas porfiar:
Y si afloja,
Cuya será la congoja?
Qué gracia si fuese mía!
Como me arrepentiría,
Si me deja y se enoja!
Torna Monderigon a Liberata, proseguindo sua ten-
gao, dizendo:
MONDERIGON.
Bien veo que me desmando,
Pues paso A7uestro mandado:
Mas qué haré, que soy forzado
De Adiestro amor en que ando,
Que es mucho demasiado!
Y porque esto no miráis,
De veros me desterráis,
Que es quemarme en AriYo fuego.
Señora, por Dios os ruego
Que miréis lo que mandáis.
LIBERAT v.
Ahora quiero yo saber
DAS COMEDIAS. 129

Quien sois, y lo que queréis.


MON. Señora, mercé me hacéis
En quererme conocer.
Y cuanto á lo prünero,
Rei de los desiertos só,
El mas cruel venturero
Que de Armenia salió,
Y mas fino caballero.
Y cuanto, señora inia,
A saber que es lo que quiero,
Tan desacordado muero,
Que no sé lo que querría:
Tanto estimo lo que quiero!
Y es que os vais conmigo,
Terneis el inundo en la mano.
LIB. Guárdeme Dios! y mi hermano?
MON. No es mejor un amigo
Verdadero, amigo sano?
Como yo que os tendré
En el alma de mi vida?
LIB. Id os, señor, por vuestra fe,
Que harto desconocida
A mí hermano seré,
Sí hiciere tal partida.
MON. Pues no queréis ir conmigo,
Yo os quitaré ese abrigo.
LIB. Á mi hermano amenazáis?
MON. Señora, vos ordenáis
Que se haga lo que digo.
Porque haberos, rosa mia.
Forzosamente, os vilesa,
Lo que no tongo de hacer;
Vul. u .
130 LIVRO II.

Mas, muerta la compañía,


Vos amareis mi noblesa
De vuestro propio querer, (mi-se)
LIBERATA.
Oh dudosa confusión!
A quien tendré lealtad?
Al amor, ó al hermano?
Bien siento á cual es razón,
Mas no tengo libertad,
Que amor la tiene en su mano.
Si á mi hermano esto digo.
Matará á Mondrigon
Con la sierpe y el león:
Que es el primero amigo
Que entró en mi corazón.
Si á mi hermano lo callo,
Y lo topare á deshora
Solo y las manos atrás,
Y por Aontura nial al lo,
Yo seré la causadora,
Y traidora, que es mas.
A la ventura sagrada
Lo dejo, y salgóme afuera,
Que esto me es mejor hacer,
Que no estar apasionada;
Que en la cosa Aenidera
Dios sabe lo que ha de ser.
Vem Celiponcio de matar sua caga, e diz:
CELIPONCIO.
Sálvete Dios, Liberata.
LIB. Porque tardas tanto, hermano?
Estoy siempre solitaria.
DAS COMEDIAS i31

CEL. Sábete que amor me mata:


Que yo Atendría temprano,
Mas mi vida es tributaria.
Está qui cerca un castillo,
Donde están cuatro doncellas,
Cada cual mas escogida.
No puedo mas encubrillo,
Que por la señora dellas
Tengo de poner la vida.
Ella sale á una ventana,
Yo miróla de un penar;
Y cuando la veo á deshora,
Juróte por Dios, hermana,
Que prueA'o para A7olar
De loco una grande hora.
Determino de matar
Aquel salvage cruel.
LIB. Y qué mal te hizo él?
Has, hermano, de mirar
Que es la sierra suya del.
Vem o salvage Monderigon, c com suas armas arre-
mete a Celiponcio, e diz:
MONDERIGON.
Confiésate, hombre cuitado,
Que no quiero que mas vivas.
CEL. Tomaisme despcrcebido,
Yr un señor tan esforzado,
Que ganó tales captÍAras,
Me había de hacer partido.
MONDERIGON.
Hace tú con lu hermana,
Que mi' quiera bien, no mas,
9*
132 LIVRO II.

Y que se vaya conmigo.


CEL. Señor, de muy buena gana.
Tú, hermana, lo harás,
Y él hará bien contigo.
Muestra, hermana, el caramillo,
Y tañeré de placer;
Pues Dios te quizo hacer
El bien que no sé decillo.
Toca Celiponcio sua bozina, pela qual a Serpe e o Leño
conhecia sua necessidade; os quaes acodan mui apressada-
mente, e mátao o salvage Monderigon: e logo se vño ao
seu caslello, e tirño a princesa Colimena e suas donzellas
e irmños: e emtanto que vño ao castello, diz o Peregrino
que fez o argumento:
PEREGRINO.
Monderigon morto, segundo se prova
Fizeráodhe a cov^a lá cima n'huin pego,
Pelo qual se chaina este rio Mondego;
E a sepultura se diz Pena-cova.
Fugio Liberata da furia disforme,
E indo fugindo mui fraca e inui febre,
Tornou-se animal que se chama lebre,
Que de Liberata tomou este nome.

Entra Colimena e suas Damas com seus irmños, com


grande apparato de música, e a Serpe e Leño acompa-
nhando a dita princesa; c acabada a música, diz o Pere-
grino do argumento:
PEREGRINO.
Senhoras Donzellas, por vossas nobrezas,
Ouo liña o liña declaréis a nos
DAS COMEDIAS. 133

As antiguidades de quem fostes vos,


Especialmente a Suas Altezas.
Vos, Belicrasta senhora, primeiro.
BEL. EU edifiqueí a villa do Crato,
Que de Belicrasta se chamava o Crasto,
Depois corrompeo-se o nome verdadeiro.
Todos os Crastos procedein de mi.
Foráo d'antigamente muí leaes:
Mui poucos delles veréis liberaes:
Pela maior parte sao bons pera si.
As muflieres de Crasto sao de pouca falla,
Fermosas e firmes, como saberes
Pola triste morle de Dona Inés,
A qual de constante morreo nesta sala.
PEREGRINO.
Sahi a lerreiro, Senhora Silvenda,
Vos que nascestes coin favor dos polos.
SIL. EU edifiqueí a villa de Arraiolos
Ha dous mil anuos, diz a minha leuda.
Daqui procedéráo Silvas e Sílveíras,
Desta Silvenda que vedes aqui.
Sao pera conselho, (vos crede-ine a mi)
Que sao desta casta grandes cabeceiras.
Poréin sao zelosos de mocas de geito,
Porque alguns dos Silvas sahem lá ós Fogacas,
E sao dezedores de súpitas gracas,
E pezadhe muito com pouco proATeito.
Poréin as muflieres Silvas e Sílveíras
Sao asselladas com sello dos Ceos;
Muí castas, discretas, amigas de Déos,
E todas merccein famosas cimeiras.
134 LIVRO II.

PEREGRINO.
Sus, vos, Sossideria, onde repousa
O canto d'antiguidade Romana.
Sos. Eu edifiqueí a villa da Arrifana,
E de mi procedem todos os de Sousa;
Os Sousas que o sao digo eu poréin,
Porém os de Sousa que bein Sousas sao,
Sao homens de paz, poe tudo em rezáo,
Bos caAralleiros ñas partes d'alem.
E sao Aerdadeiros e dissimulados,
Amigos do Rei e bos servidores:
Muito a miude comecáo amores;
Poréin nunca acabáo de ser na morados:
E as muflieres Sousas de nacáo
Sao boas, sao graves, fennosas, inui bellas;
E tanto ATOS monta adorardes nellas,
Como nao lerdes nellas devacáo.
PEREGRINO.

Vos, Perigeria, em todas maneiras,


Dizei o antigo de vossa nacáo.
PER. E U edifiqueí Alégrete e Moncáo,
E de ini procedem todos os Pereiras.
Sao muito fidalgos e bos cavalleiros,
Zelosos do reino, e da causa justa
Mui bos defensores, nao ja á sua cusía;
E depois de casados sao muito caseiros.
Muito querencosos de casaes e eiras,
Amigos dos poA^os que servem de graca;
Nao sao cacadores e estimáo a caca;
Attentáo por casa até ñas peneiras.
Porém as muflieres direítas Pereiras,
Oh que muflieres de tantos primores!
DAS COMEDIAS. 135

Pereiras de rosas, Pereiras de flores,


Pereiras docares, de muitas maneiras.
PEREGRINO.
Senhor Melidonio, dizei ATÓS tambem
Vossa antiguidade, depois Arossa irman.
MEL. EU edifiqueí a villa da Lousain,
S. o castello que tem.
De mhn procedéráo os Mellos direitos:
De Melidonio tomáráo o nome:
Esta he sua alcunha e seu sobrenome,
Fallo nos finos, e nao contrafeitos.
Foráo senhores que antigainente
Na honra do reino eráo os primeíros;
Táo esforzados e bravos cavalleiros,
Que nao se achava casta mais Avalente.
E alein d'esforzados,
Sempre devotos e bem inclinados:
E vcm-lhes por casta de dar quanto tem.
Poréin os d'agora nao cuide ninguem,
Que desejáo tanto de serem gabados.
Mas oh que senhoras as desta linhagein!
Oh que senhoras pera bons senhores!
Seus olhos de garcas e outras d 'acores,
Taes que nao cabem ein nossa linguagem.
Vai dellas a elles táo grande avantagem,
Sendo os de Mello fidalgos de aviso,
Como havera de Panasco a Narciso,
Ou como do vivo a hüa iinagem.
PEREGRINO.
Venha a mui alta princesa serena.
E diga cantando sua antiguidade.
COL. EU asscntei aqui esta cidade:
136 LIVRO II.

E eu sou Coimbra; e A7em de Colimena.


Tomei por devisa aqueste Leáo
E aquesta Serpente, por que fui livrada;
E o calix do meio he cousa errada,
Porque ha de ser torre com hüa prisáo.
E porque fui livre por graca de Déos,
Tomei estas armas, fazendo saber
Que tudo Déos faz e pode fazer,
E as cousas da térra procedem dos Ceos.
E de Colimena Arem os Menezes,
Que foráo e sao muí claros varóes:
Na guerra sao d'aco os seus coracóes,
E ein tudo se mostráo frol de Portuguezes.

E assi fenece esta comedia, saindo-se com sua tnusica.

«^•«—
F I G U R A S .
PROLOGO.
HDM P H I L o S o P H O.
HUM PARVO.

MERCADOR. DOUTOR Justica maior,


ESCUDEIRO disfarcado MOCA.
em Viuva. VELHA.
MOC, A da fingida Viuva. PASTOR.
CUPIDO. DUQUE.
APOLLO. PRINCIPE.
ELREI TELEBANO. A VENTURA.
GRATA CELIA— sua filha

A seguinte comedia foi representada ao muito alto c


poderoso Rei D. Joño o terceiro deste nome, na sua cidade
de Evora, cra do Senhor de 1536.
FLORESTA DE ENGAÑOS.

Entra logo o Philosopho com o Parvo atado ao pé, e diz:


PHILOSOPHO.
Asegun siento mis males,
Al discreto singular
Gran pena le es conversar
Con los necios perenales,
Sin lo poder escusar.
Iios muy antiguos Romanos,
Comenzando á ser tiranos,
Por que Roma se ofendía,
Yo por mi filosofía
Les di consejos muy sanos.
Y porque la reprehencion
A todos es enojosa,
Me vi en grande pasión,
Y me echaron en prisión,
En cárcel muy tenebrosa.
No bastó: mas en después
De aquesto que oído habéis,
Solo por esto que digo,
Ataron ansí conmigo
Este bobo que aqui veis.
Que lo traiga desta suerte
Al comer y al cenar,
Al dormir y platicar:
Esto so pena de muerte
DAS COMEDIAS. 139

Que no lo pueda dejar,


Hasta el morir. PAR. Haste de ir?
PHI. NO me dejarás decir
La causa que me ha Iraido?
PAR. Hasta la mañana.
PHI. Déjame ora ser oído
De esta gente cortesana.
PARVO.
Mí amo, aqui hablaré yo;
Y cuando en casa estuvierdes,
Hablad cuanto vos quisierdes,
Que nunca os diré de no,
Aunque quebréis las paredes.
PHI. Habla, por ver que dirás.
Oh, quien no sentiese mas
De lo malo ni de lo bueno,
De lo suyo y de lo ageno,
De cuanto tú sentirás!
El ini tormento se ve
Por este ejemplo esquierdo:
Si queréis matar al cuerdo,
Atalde un necio al pie.
Y ansí el seso pierdo.
r

O quizá Aino esto a ser


Porque no quise casar,
Con recelo de topar
Muger de flaco entender,
Como se suele acertar.
PARA70 (cant» )
" Llevántate, panadera,
"Si te has de llevantar,
"Que un fraile dejo muerto.
140 LIVRO II.

"No traigo vino ni pan.


"Apihá, apihá, apihá."
Decid, amo, haste de ir hoje,
O abasta la mañana?
Pin. Quien será que no se enoje,
Y todo mal se le antoje,
De una necedad tamaña?
Y no sé quien sofrirá,
Y á quien no enhadará
Los desvarios que aqui A7an.
PAR. Mirad A7OS quien sofrirá
Las muchachas que aquí síaii.
Haste de ir hoy?
PHILOSOPHO.
Deja ya esa necedá.
PAR. Y pensáis que faltará
Otro mi amo garrido?
PHI. Señores, yo soy venido...
PAR. Señores, ahora llegamos.
PHI. Calla, necio dolorido!
Mejor fuera consumido,
El dia que nos juntamos.
PAR. Decid, nuestramo, A7eamos;
Son mejores de comer
Las grajas ó los milanos?
Y mas sabéis qué yo querría?
Dormir cuatro ó cinco meses.
Pin. Ya deseo que dormieses,
Porque la embajada mia
No la impidan tus reveses.
PARVO.
Pues, mi amo, echaos vos.
DAS COMEDIAS. m

Y dormiremos á la una.
Pin. Menguada estaba la luna
Cuando nacimos los dos,
Y contraria la fortuna.
Después dormiré, amigo:
Entanto tú dormirás,
Y no soñarás conmigo;
Mas yo soñaré contigo,
Por cuanta pena ine das.
Porque cualquiera pasión,
Asegun A7eo y entiendo,
Que se siente con razón,
Ni velando ni dormiendo
Se consuela el corazón.
PAR. Pues aborrís la dormida,
No os A7ais por hi andando,
Ni me llevéis arrastrando,
Nuestramo, por vuestra vida,
Por Aros irdes escapando.
Deita-se o Parvo a dormir, c diz o
PHILOSOPHO.
Veis que hago penitencia
Desta suerte, sin pecar;
Y es tanta mi paciencia,
Siendo tal la penitencia,
Que no me quiero ausentar.
Porque la obediencia, amigo,
Las Airludes son sus puentes:
En tu hablar no te exentes,
Porque le vas del abrigo
Al peligro que no sientes.
Aun que el daño sea profano,
142 LIVRO II.

Esto toma por tu guia,


Que yo tengo al Coleo Romano,
Aunque me fue inhumano,
Obediencia todavía.
Y en cuanto la compañía,
Que la fortuna me dio,
Duerme, anunciaré yo
Una fiesta de alegría,
Que de nuevo se inventó.
Y pues ine tiene dejado,
Del autor diré el intento;
Y por ir mas declarado,
Será en prosa el argumento.
Pero, señores, os pido
Que tengáis todo encubierto.
En vuestro seno escondido:
Porque no sepa Cupido
Que descubro su secreto.

La comedia siguiente, altos y famosos señores, su


nombre es Floresta de Engaños. Y el primero engaño
es, que un pobre escudero engañó un mercader, en
figura de muger viuda. El segundo engaño será que,
siendo Cupido enamorado de la Princesa Grata Celia,
la cual era hija del Rei Telebano, rei de Tesalia; por lo
cual siendo Grata Celia hija de este rei, y Señora de la
mas excelencia y extremada hermosura del inundo, no
pudiendo Cupido haber con ella lugar solitario ni tiempo
oportuno, descansó de su angustiada vida, y determinó de
engañar al Dios Apolo, por que el Dios Apolo engañase
el Bei Telebano. Y el Rei Telebano, engañado del Dios
Apolo, llevó Grata Celia engañada á la fierra Minea,
DAS COMEDIAS. 143

adonde con grande angustia su padre la dejó desterrada


y presa; y cuando Cupido hubo alcansado y hecho su
engaño, descendió del cielo á la tierra donde presa
estaba, y fue della engañado dos veces, y ella casada
con el Príncipe de la Gran Grecia.
PARVO.
Habéinosnos hoy de ir?
PHI. Ya ha dos horas que te llamo.
PAR. YO os doy mi fe, nuestramo,
Que es gran trabajo el dormir.
PHI. Nuestro argumento acabado,
El mercader A-ereis entrar,
Y pensando de engañar,
Ha de quedar engañado.

Entra o Mercador. e diz:


MERCADOR.
Determino de fazer
Minhas casas muito bem;
Porque quem dinheíro tem
Fara tudo o que quizer.
Bem contados
Tenho Ainle mil cruzados,
Ganhados d'onzenas taes
Com esses pobres ínisleriaes,
Que estaváo necessítados.
E parece-me agora
Que ATejo desta janella
Vir para ca liña senhora,
E segundo o ar de fóra,
Viuva me parece ella.
144 LIVRO II.

Mor;. Hou da pousada!


Senhor, hüa Dona honrada
'Stá aqui pera A7OS fallar.
31ER. Entre ca, s'ella mandar,
Que eu nao faco agora nada.
VIUVA.
Olha ca, mexeriqueirinha,
Nao me descubras tu a mi.
Moc. Nao farei, por vida minha.
Viu. Porque es a mor palreirinha
Que eu em minha Aida AÍ.
Moc. Que prazer!
E eu havia de dizer
Que eréis pobre escudeíráo,
Sem cavado e sem tostáo,
E em trajos de mulher
Que is engañar hum ladráo?
Guarde-me Déos! e A7ÓS nao vedes
Segredo nao posso ter,
Se achar a quem no dízer,
E senáo essas paredes.
Que o costume
He táo accendido lume,
Depois que está encarnado,
Que, até nao ser acabado,
Nenhüa cousa o consume.
ViUVA (ao Mercador.)
Senhor, embora estojáis.
Mcn. Embora estojáis, Senhora:
Que he o que demandáis?
Viu. EU o direi ora.
Ai coitada,
DAS COMEDIAS. 145

Que venho ora táo cansada


Do corpo e d'outras canseiras.
MER. Sentae-vos nessas cadeiras.
Viu. Esse descanso nao he nada.
Crede que a necessidade
Mui pouco descanso tem.
MER. Assi viva eu que he verdade,
E fallastes muito bem,
Muito á minha vontade.
Viu. Digo, senhor,
Que o thesoureiro mor
Do nobre Rei Dom Telebano
Me deve ja do outro anno
As lencas do meu suor.
MOCA, (á parte)
Tens tu lá tencas de Arento.
MER. O dinheiro quanto he?
Viu. Este papel dará fé,
Que he o seu conhecimento.
MER. Mostrae ca, verei que he.
Bem estáis:
Sao quarenta mil reaes.
Viu. Senhor, eu 'stou enforcada,
E se A'ós nao in'os compráis,
Amanhan sou penhorada.
MERCADOR.
Nao ine falléis nisso mais;
Nao farei eu tal por certo.
Viu. Nao he essa boa resposta.
MER. E a pena que está posta?
Viu. Sera secreto o concertó.
MEH. Nao pode ser.
Vol. II. 10
146 LIVRO II.

Viu. Quem ha isso de saber?


MER. Quando os for arrecadar.
Viu. Nao me queiraís desconsolar;
Vos o sabereís fazer.
MERCADOR.
Ora emfim, quero ser tolo sandeu,
E so por vos soccorrer.
Quanto m'os queréis A7ender?
Viu. Ein A7ossa alma o deixo eu.
MER. Eu vos dírei:
Dez mil reaes A7OS darei,
Estes logo em bons tostñes.
Viu. Ai Jesu! aquedelrei.
MER. EU daqui nao passarei,
Nem passemos mais rezoes.
VIUVA.
A hüa Aiuva amara
Fazeis tamanha crueza?
Oh coitada da pobreza,
Que tudo a desempara!
MER. NÓ mais, Senhora.
Viu. Nao A-OS contentareis ora
Com vinte mil, que he inetadc?
MER. Nein com mais cinco, em verdadc.
Viu. Dae-m'os ja com a ma ora.
Depois da Viuva receber o dinheiro, vai-se dizcndo:
Nao havia ein Portugal
Nos lempos mais ancianos
Tantas maneíras de engaños,
Nem tantos males d'hum mal.
31ER. Va-se einbora:
Trinta mil deixa a senhora
DAS COMEDIAS. 14^

Neste desembargo seu:


Poréin nao na esfolára eu,
Se ella d'outra casta fóra.
Vem a Moga que veio com a Viuva, e diz:
MOCA.

Mercador, queréis saber;


Bein engañado ficasles,
Que a Aiuva que enganasíes
Era home e nao mulher.
E mais he Arento
Esse seu conhecimento:
Elle o assignou e nao mais;
Assi que os dez mil reaes
Leixae-os no testamento.
MERCADOR.
Crede que quem foi tiranno
Tem seu dinheiro perdido.
Vamo-nos, que Arem Cupido
Cominetter o mor engaño,
Que nunca foi commettido:
Ein o qual
Mostra o amor natural
Que a Grata Celia tem.
Poréin veréis que do bein
As A'czcs se segué mal.
Vem Cupido, e diz:
CUPIDO.
A quien contaré mis quejas,
A quien diré mi tormento c
Remedio, porqué lo alejas
De ver Amor, que solo dejas
Neste término momento?
10*
148 LIVRO II.

Oh justa esperanza mia !


Qué fue de mí é de ti?
Si te Aiese algún dia,
Ya no te conocería;
Tanto ha que no te AÜ
Los que ine pintan ciego,
No es ansí como conviene;
Que amor tantos ojos tiene
Como de muertes me ruego,
Y ninguna me coiniene.
Oh Grata Celia, alma inia,
Flor del mas florido huerto!
Pues que á tu Dios tienes muerto,
Arrepiéndete algún día
De tan grande desconcierto.
Hiere tu pecho honrado
Sobre el braA7o corazón:
Contemplando en mi pasión,
Verás que en el fuego en que ardo
Me echaste sin razón.
O ingrata pecador,
Rasga el corazón esquivo,
Que mataste al Dios de amor;
Y, para mas mi dolor,
Me dejaste el amor AÍA7O.
Si aquesto no conocieres,
Mas penitencia no hagas;
Que bien sé el mal que me quieres,
Y los gozos y placeres,
Que recebís con mis llagas.
Penitencia será harta
Pensares en mi tormento,
DAS COMEDIAS. 149

Solo por el merecimiento,


Que al cumplir de mi carta,
Hice en mí tu pensamiento.
Grata Celia es muy guardada
En sus palacios reales,
De su padre muy amada,
Y ella no se le da nada
De mis dolorosos males.
Dios Apolo vendrá ora,
Cúmpleme usar de engaño;
Que el engaño no es estraño,
Antes se usa cada hora,
Y la verdad de año en año.
Chega Apollo, e diz:
APOLLO.
Norabuena estéis, Cupido.
CUP. Apolo, seas loado.
Aeo. Señor, eres enamorado?
CUP. Antes traigo mi sentido
Bien fuera de ese cuidado.
APO. Pues qué haces por aqui
Por esta floresta de engaños?
CUP. Ando esperando por ti.
APO. Qué es lo que quieres de mí?
CUP. Que Aivas cuento de años.
El rei Telebano
Es tu devoto y grande amigo:
Bien en secreto te digo
Que, antes que pase un año,
Terna peligro consigo:
Y el tu templo corre risco,
Porque esta ciudad será
150 LIVRO II.

Toda asolada ab arrisco.


APO. Eso qué lo causará?
CUPIDO.
Tiene hecho tantos males
Grata Celia de secreto
r

A las diosas divínales,


Pecados tan criminales;
Y lo que digo es cierto.
APO. Puédese remediar?
CUP. El remedio está en la mano,
Si hiciere el reí Telebano,
Por tanto mal escusar,
Lo que te diré, hermano.
Lleve su hija de aqui
Aquella sierra Minea,
Adó sin ella se vea,
Y haga penitencia allí,
Porque perdonada sea.
APO. Caro le será de obrar.
CUP. Mas caro es perder su estado,
La vida y el reinar,
Y la reina y su mandar,
Y el pueblo ser abrasado.
Y Grata Celia escondida,
Allí sola desterrada,
Sah7ará también su vida,
Pues que siendo oferecida,
Será libre y perdonada.
APO. Yo lo haré en A7erdad,
Por se escusar tanta muerte.
CUP. Apolo, hace de suerte
DAS COMEDIAS. 151

Que restaures la ciudad;


Que el peligro es muy fuerte.
Tú has se lo de mandar,
Que aqui no cabe ruego;
Porque él lo hará luego,
Aunque será con pesar,
Por escusar mayor fuego.
APO. Luego voy adó está,
r

O él vendrá adó esto.


CUP. Entremientes yo ine vo,
Que tudo se amansará
Con esto que digo yo.
Yo bien sé que erro ahora,
Mas es por sanar un daño.
Perdonadme, mi señora,
Que el mundo triste de agora
Se llama templo de engaño.
Ya el Rei Telebano está
Delante Apolo rezando:
Veamos como saldrá,
O cuando se cumplirá
Lo que yo estoy deseando.
Vai-se el Rei Telebano fazer oragao ao Déos Apollo;
c diz
APOLLO.
Vuestra Alteza rece breve
Y obre obras de santo,
Que el rezar no monta tanto,
Como hacer lo que se debe.
El rezar es como flores,
Y flores las oraciones;
Y el fruto, dicen doctores,
152 LIVRO II.

Las obras son los amores,


Y no las buenas razones.
Tenemos mucho que hablar,
Y vos mucho que hacer
Cosas de vuestro pesar;
Y habéis de perdonar,
Que no puede menos ser.
Vuestro reino está en peligro,
Y mi templo amenazado,
Vuestro palacio juzgado
De las diosas de este siglo,
Que será todo asolado.
Y porque es luengo de decir
Las cosas que esto hicieron,
Yo las quiero resumir:
Pero habéis de sentir
Que de vuestra casa nacieron.
Solíamos en la paz estar
De Verecínta, Julia y Palas,
Ahora están con tan feroces alas,
Que no quieren escuchar
Razones buenas ni malas.
TELEBANO.
O muy precioso Apolo,
Pues siempre s e n i á A7OS,
Ahora es tiempo, mi Dios,
Mi amparo y mi consuelo,
Que os acordéis de nos.
APO. Son diesas muy furiosas:
Ya sabéis que las inugeres,
Cuando eslan mas amorosas,
Mas blandas, mas piadosas,
DAS COMEDIAS. 153

No son menos que crueles:


Qué harán siendo sañosas?
Que solo un remedio tenéis,
Aunque muy caro os sea:
Grata Celia llevareis
r

Aquella sierra Minea,


Y presa la dejareis.
Y llevada por engaño
Por la floresta de engaños
A la sierra, adó en dos años
Vos librará de este daño.
TELEBANO.
En perder mi hija gano.
APO. S Í ; el reino y la ciudad,
Templo y comunidad.
Catad que os será muy sano;
Y por el mal no ser nada,
Os mando que lo hagáis.
TEL. Pues, señor, A7OS lo mandáis,
Grata Celia desdichada
Irá onde la ordenáis.
Vai-se Apollo e fica el Rei Telebano ilizendo:
TELEBANO.
7
Oh graA es angustias inias;
Lágrimas del alma mia!
Oh hija de mi alegría!
Qué tales serán mis dias
Fuera de tu compañía!
Quedarás en las montañas
Naquella Minea sierra,
Y mis bezos y mis canas
Mucho en breve serán tierra.
154 LIVRO II.

Chega a Princesa Grata Celia, e diz:


GRATA CELIA.
Señor mió, porqué andáis
Pensativo y amarillo?
Muy mucho me maravillo:
Qué sentís ó qué pensáis?
TEL. E S pasión.
GRA. NO sé qué lágrimas son
Esas que A7eo asomar:
Algún extremo pesar
Siente vuestro corazón.
Yo contemplo ciertamente
Que caros son los enojos
Que se estilan por los ojos
De un rei tan sabio y prudente.
Padre, Aros
No os congojéis, por Dios,
Que el enojo muerte ordena.
TEL. Por quitar de mi esta pena,
Vamos á cazar los dos.
GRA. Señor, vamos norabuena.
Entra hum Doutor Justiga Maior do Reino, e diz
o Rei:
TELEBANO.
Doctor muy sabio y prudente,
Pues sois Justicia Mayor,
Hacedlo despachadamente
Con tal zelo y hervor,
Como si yo fuese présenle.
Voy en una romaría
Con Grata Celia y no mas;
Haced que no vuelva atrás
DAS COMEDIAS. 155

La justicia que solia


Ser igual.
Por cierto el mayor mal,
Y que en mi reino mas impuerta,
Es la justicia estar muerta,
Y el derecho mortal,
Y la cobdicia despierta.
Buen letrado sin desvío
Sois y siempre cuerdo os vi.
üou. Señor, yo lo haré ansí,
Porque lo tengo de mió.
TEL. Hija, vamos,
Veremos aqui los engaños,
Y quizá me alegraré.
GRA. Padre, yo no sé que he,
Porque cuanto mas andamos,
Voy triste y no sé porque.
Ido el Rei Telebano com sua filha, abre o Doulor hum
livro de leis, e diz, lendo por elle:
ÜOUTOR.
Princeps os sui me nova per delegantem, per no-
vaciones antiquaque.

E estando o Doutor assi estudando, vcio hüa Moga tcr


com elle, á qual elle diz:
DOUTOR.
Qué buscáis acá, señora?
Moc. Senhor, vinha-A os fallar.
Dou. Y pues no habéis de entrar?
Moc. Enlrarei, mas nao ja'gora.
Dou. Y pues cuando?
Moc;. Estáis agora estudando
156 L1VRO II.

So, e eu sou grande ja.


Dou. No sé que estáis recelando.
Moc. Mas sera bem que me va.
Douion.
Si traéis, hija, algún pleito,
Queréis consejo de mí?
Moc. A isso vinha eu aqui,
Por Arer se tenho direíto.
Dou. Si es á eso,
Recontadme el hecho A7ueso,
Y entrad bien sin temor.
Moc. Sabéis que, Senhor Doutor?
Vos pareceis-me travésso.
DOUTOR.
Ya hice sesenta y seis,
Ya mi tiempo es pasado.
Moc. Nao sei que annos haveis,
Mas olhais-me de través,
E com o barrete embicado.
E por isso
Me quero acolher ao siso.
Dou. Oh, entrad acá, señora,
Mi sagrado paraíso.
Moc. Ja disse que nao ja'gora:
Logo assi táo improviso?
E mais vos fallais-ine amores,
E nao ja ora mui frios.
Dou. Pues qué haré yo, mis lloros,
A los ojos matadores
Que me cegaron los míos?
Moc. Quem tal quer
Nao havia de ter mulher,
DAS COMEDIAS. 157

E formosa como a A7ossa.


Dou. O mi perla preciosa!
No ine hagáis entender
Que sin Aros haya hermosa.
MOCA.
Dae-me conselho, vos digo,
N'hüa demanda que trago.
Dou. Y qué me daréis en pago?
Moc. E tanto sois ineu amigo ?
Dou. Yo no quiero
De A7OS plata ni dinero,
Mas privar con vos por cierto
En lugar mucho secreto,
Por deciros cuanto os quiero.
Yo daré, juro á Dios,
La sentencia en vueso hecho;
Y aunque no tengáis derecho,
Todo el saldrá por vos,
Y haréis A7ueso proA7echo.
M09. Muito emhora.
Senhor, minha dona agora
Vai-se muí cedo deítar,
E esta noile hei de ainassar,
E bem sabéis onde mora.
Ide antre as nove e as dez;
Assoviais Arós bem, meu rei?
Ou tossi tainalavez,
Que logo ATOS entendereí.
E eu me AOU,
Que ha ja muito que ca estou.
Dou. É yo también me voy á jantar.
158 LIVRO II.

Moc. Oh! como hei de engañar


Hum doutor qnc se enganou.
Alguidar, ora vem ca,
E fareinos o tormento.
Que negro content amento
Do que lhe ha de sair Arento!
( canta )
"Engañado andáis, amigo,
"Dias ha que A7odo digo."
Assovia o Doutor á porta da Moca, o ella diz
MOCA.
»
Olhae-me aquelle assoAiar!
Como A7ai lindo e secreto
Aquelle dissimular!
Crede que inao he de achar
Huin letrado ser discreto.
(vai-lhe abrir)
Senhor Doutor,
Verdadeiro he vosso amor,
Pois A7OS traz per tal caininho.
Subiréis muito passínho,
E vínde por onde eu for.
Entrae vos e a vara nao,
Que nao quero que ca prenda.
Dou. Sí, que es A7ara de condón,
Que me da gruesa hacienda;
Y aunque ella poco me rienda,
Dame mucha ocasión.
Moc. Nao tussais ma ora agora.
Dou. Aqui amasáis, señora?
Moc. Senhor, sí. Dou. Y adonde dormís ?
DAS COMEDIAS. 159

Moc\ Fallae vos passinho, ouvís ?


Ou vos tornae para fóra.
Tirae a loba e dae-m'a ca,
Luvas c sombreíro e tudo,
E a beca de veludo,
Que tudo se guardará:
E entáo fazeí-vos mudo,
ítem mais,
Guardae-vos que nao tussais;
E vestí esta fraldílha,
E ponde esta beatilha,
E fazei que peneirais.
(Peneira o Doutor.)
MOCA.
Nao peneirais bem, Doutor;
Quero-A7os dar hüa licáo.
Tomae aqui com esta máo —
Ora andae assi ao redor —
Ha, isso vai muito loucáo.
Eu quero ir ver que faz
Minha dona; entáo A7eremos,
Porque ein tudo o que fazemos
Ha mísler inanhas assaz,
Segundo o mundo que temos.
DouTon.
Y si ella de allá me ve?
Moc. Direí que a negra peneira;
E emquanto ella joeira,
Peneira Aossa mercé.
Dou. Paciencia;
Porque juro en mi conciencia
Que este texto yo no lo entiendo:
160 LIVRO II.

Pero si yo estoy cerniendo.


Es en loor y reverencia
Del amor á que ine riendo.
Estas vueltas no sé yo.
Dulcís amor, quid me vis;
Que no se aprende en París
Esto lavor en que esto.
Oh amor!
Moc. Peneirae, senhor Doutor,
Asinha, que Arem minha dona.
Dou. O de las lindas coronas,
Amad á tal servidor.
Chega a Velha, e diz r.
MOCA.
Nao vedes, dona, esta perra
O negro geito que tem?
VEL. Peneirae, ma ora, bem,
Que nao sois nova na ierra.
Huí, cadeh'nha,
Onde jeitas a farinha ?
Nao queres fallar, cadella?
Esta pelle de toninha
Olho mao se metta nella.
DOUTOR.
Porque vos, mía Señora,
Estar tanto destemplada?
Ya tudo estar peneirada:
Que bradar comigo ahora?
Que cosa estar A7OS hablanda?
A mí llama Caterina Furnanda,
Nunca a mí cadeia nao.
DAS COMEDIAS. 161

VEL. S 'eu d 'allí tomo hum ticao...


E vos estáis patorneando?
Olhade a mal entrouxada!
O almadraque bolorento!
Moc. HUÍ, faze asinha o formento,
E amassarás de madrugada,
Estara o torno melhor.
VEL. E qu'he d'aquelle doutor,
Que dizes que tens aqui?
Moc. Perto está elle de mi,
E eu longe do seu amor.
VEL. Está escondido?
Mostra-me esse homem perdido.
Moc. Hi está elle a peneirar,
E elle inesmo ha de amassar,
Porque a negra he c'o marido.
VELHA.
E negro falláo os doutores?
Nunca vi taes düTerencas.
Moc. Pois que hi ha negras sentencas,
Nao havera hi
Alguns negros ouvidores
Ein algüas audiencias?
VEL. Que canseira!
Moc. Eu o puz dessa maneira,
Porque me fallón d'amor.
VEL. Jesu! o quem vio doutor
Em fraldas de panadeíra ?
Dezide, Doutor da ma ora,
E fallae-me per latiin,
Que diz o Bartolo aqui?
Dou. Xo yo solo, señora,
Vul. II. 11
162 LIVRO II.

Que otros muchos hubo ahí.


Yr mis celos...
VEL. Havieis mister farellos,
Ou que peneirada he essa?
Dou. Vuestra niela es muy traviesa.
VEL. Hei-vos de ver os cabellos,
üae-me ca esse toucado —
Olhade aquella honestidade!
Huin doutor daquella ¡dade
Andar táo desarranjado,
Ein tal inaneira.
Dou. Onde porné la peñera?
VEL. Que ma hora ca tornastes,
Que táo tarde comecastcs
A ser doutor e padeira.
No Baldo acharieis, Doutor,
Essa negra amassadtira,
Ou na sagrada Escriplura?
Dize, Bucodonosor.
Que essas cans
Tornáráo-se canas A7ans.
Jesu! que inao estudar,
E que ma livro he o alguidar
E que letras ancians.
E moca querieis vos?
E per rjuam regula, micer,
Cuidou ATOSSO parecer
Que ja a tinheis ñas piós ?
M a n a minha.
E nao abasta a familia
Que fazedes no julgar,
Senáo virdes pcneirar
DAS COMEDIAS. 163

Hüa pouca que aqui tinha


Vo fundo do alguidar?
MOCA.
Bem AOS diz essa fraldilha.
Queréis A7ÓS bailar comígo?
Dou. Que haga esto el enemigo
No es mucha maravilla,
Según es.
Moc. Sabéis que me parecéis ?
Ermitao que endoudeceo:
Melhor vos eslava o veo,
Que quanto ein casa trazeis.
(Foge o Dontor.)
MOCA.
Dona, Dona, vai fugindo.
VEL. Va-se muítieramá.
Moc. A loba lhe fica ca.
Oh como A7a¡ táo corrido!
Torna o Doutor, e diz:
DOUTOR.
Acá me ha quedado todo
Una beca de veludo,
Y loba de contray frisado,
Que se me quedó olvidado.
No Araya todo tan crudo.
Moc. E A7ós, Doutor, hervilhasles ?
Vindes A7ós em Arosso siso?
Que mentira!
Ide pregar a Altemira;
Que s'eu quizesse fallar...
Mais quizereis Arós furtar,
Se ATodo eu consentirá.
11
164 LIVRO II

DOUTOR.
Quien pensara norabuena
Que una rapaza de un año
Hiciera tan grande engaño
Á un doctor hecho en Sena?
Será mas sano
Callar hecho tan profano,
Y olvidar esta guerra,
Y irme á juzgar la tierra,
Que ya el Rei Telebano
Ahora llega á la sierra.
Aqui se representa o que passou el Rei Telebano na
serra Minea com Grata Celia, sua filha.
TELEBANO.
Grata Celia, hija mia,
Esta es la sierra Minea,
La cual vuestra casa sea
De lágrimas sin alegría.
GRA. Porqué, Señor?
TEL. Porque yo. por mi dolor,
Os he traído engañada
De mi casa desterrada.
GRA. Porqué, triste pecador!
Que yo no os hice nada.
TELEBANO.
Mándalo Apolo Dios,
Y me metió neste afán;
Y como hizo Abrahan,
Hago sacrificio de vos.
GRA. Oh triste yo!
Ya sé quien esto ordenó:
Cupido hizo estes daños.
DAS COMEDIAS 16o

Oh mis tristes quince años,


Mal haya quien los mató.
TELEBANO.
Perdonadme, hija, vos,
Que habéis de quedar presa
En medio desta dehesa,
Porque ansí lo manda Dios.
GRA. Oh perdida!
Saquéis, mi padre, la vida
De que fuiste causador,
Que el morir no es dolor,
Mas dolor es la guarida.
Perded mancilla de mí,
Y inatadme, Señor padre,
Que saludad de mi madre
Me mata ansí como ansí.
TEL. Malar!
Aun Dios tiene que dar.
Esfuerce vuestro dolor,
Que vuestra dicha mayor
Por aqui la habéis de hallar.
GRATA CELIA.
Qué dicha puedo yo topar,
Fuera de ATIestro poder?
TEL. Hija, yo os A7erné á \7er,
Cuando lo Apolo mandar, (mise)
GRA. Grata Celia, qué es de ti
Y del AÍCÍO que tenias?
Que las noches y los días
Eran todos para iní.
Quien trajo Cupido aqui,
Á escuchar las ansias mias?
166 LIVRO II.

CUPIDO.
Pues sois remedio del daño
Que consume mis placeres,
Bendito seáis engaño,
Que con tu poder estraño
Todo acabas cuanto quieres:
E n ti inora
Todo el descanso de ahora;
Tú lo das, por ti se da.
Mi vida te la dará,
Pues me la diste, señora.
Perfección de las mugeres,
Vos me quitastes la vida,
Y la tenéis consumida
Y mis bienes y placeres:
Y Aiendoos puesta
E n esta braA7a floresta
Y entre estas espesuras,
Dejé el cíelo á escuras
Por ver la claridad Aruesa.
No por sanar mi pasión,
Ni menguar en mis enojos,
Porque vuesos rayos son
Dolores al corazón
Y lágrimas á los ojos.
GRA. Podéis hablar,
Que yo tengo de escuchar,
Pues, triste, por mi dolor,
Telebano, mi señor,
Me dejó neste lugar,
Así como me hallaste»,
Presa en estos fierros tristes.
DAS COMEDIAS. 167

CUP. Cuantas voces me matastes,


Y cuantas me despreciastes,
Hasta que me despedistes?
Pues ahora,
O princeza mi señora,
Cese vuestra señoría,
Porque el Dios que se enamora,
Si lo adoran, él os adora,
Y siempre os adoraría.
Dadme A7ueso amor real,
Que realmente os servi.
GRA. Qué amor queréis de mí?
Yo misma me quiero mal
Y al dia en que nací.
Y qué hice triste yo,
Que tanto mal me hicieron?
Qué pecado me prendió?
Qué culpa me desterró?
Porqué tal pena ine dieron?
CUPIDO.
Señora, cesen por Dios
Vuestras quejas y rencillas;
Que, pues yo muero por AOS.
Escusadas son decillas.
Amor os pido.
GRA. Pues vos sois el Dios Cupido,
Que todo amor tiene en sí,
Qué amor pedís á mí?
CUP. Mas qué ganáis A7os aqui
En traer un Dios perdido?
GRATA CELIA.
Si amor do mí queréis,
168 LIVRO II.

Aqui está esta cadena;


Si con ella A7OS prendéis,
Señor, vos me cobrareis,
Y os ficaré de pena
En esta hora.
CUP. Que ine place, mi señora:
Vueso cautivo me quiero,
Yr de Aruestra alteza espero
Cumplir lo que dije ahora.
Tira Cupido a prisao a Grata Celia, e ella prende a
elle, e diz
CUPIDO.
Oh qué primores tan tristes
Son los vuesos, mi señora!
GRA. Ha! yo me vengaré ahora
Del mal que vos me hecistes;
Que si fuera
Vueso amor de tal manera,
Como dais á presumir,
Escoguiera de morir
Antes que tal ine hiciera.
Fue una cruda hazaña,
Que hizo el cruel traidor;
Porque el verdadero amor
r

A nadie jamas engaña.


CUP. Vuestro so,
Y si no os tuviera yo
Amor en tanta manera,
Del cielo no descendiera
Al gran peligro en que esió.
O celeste hermosura!
Vos me queráis perdonar,
DAS COMEDIAS. 169

Que para poderos hablar


Me puse en tanta A7entura
Y á vos en tanto pesar.
GRA. NO os dolían
Lágrimas que me corrían,
Que cada hora era un rio?
CUP. Señora mía, yo os fio
Que todas ellas salían
Del triste corazón mío.
GRATA CELIA.
Ora cred aquello vos,
Y veréis qué os saldrá:
El diablo conocerá
Raposo en traje de Dios.
Quedad os ahí,
Que yo me voy por aqui
A oir los ruiseñores:
No quiero escuchar amores,
Pues nunca los conocí.
Bendita sea la muger
Que de los hombres no fia,
Y maldita la que confia
En su dañoso querer;
Y bendita
Toda inuger que se quita
De oir sus dulces engaños;
Que doblados son los daños
Que dello se remerita.
Como rio furioso
Son los hombres sin descanso;
Porque adó corre mas manso,
Allí está mas peligroso,
170 LIVRO II.

Porque es hondo aquel remanso.


Y. según huelo,
Son como sutil anzuelo,
Cuando se viste de engaño :
Que en todo el tiempo del año
De fuera muestra consuelo,
Y de dentro tiene engaño.
CUPIDO.
7
Reniego de la A enida,
Pues doblados son mis daños.
Oh cuantos modos de engaños
Ha hi en esta triste Aida!
Que ansí acaeció
Que Apolo la engañó,
Y fue por industria mia:
3ías el amor que le tenia
Tuve la culpa y no yo.
Oh nitigeres! oh miigeres!
Robadoras de las vidas,
Crueles desconocidas,
Destrucción de placeres!
Curiosas,
Ufanas, desamorosas,
Autorisadas, mobibles,
Y de todo imidiosas,
Que tienen cosas terribles!
Vem hum Pastor rustico, e diz:
PASTOR.
Ora ou slou espantado,
Sondo vos San Sadorninho,
Como errastes o caminho,
Lá abaixo a par do vallado: —
DAS COMEDIAS. 171

Ou ín'engano?
CUP. Allégate acá, hermano.
PAS. Ora m'enganaAra tanto,
Que cuideí qu'ereis vos santo,
E vos falláis castelhano.
Pois que estáis aqui fazendo?
CUP. Qués te lo haga saber?
Tu no lo has de entender,
Que yo mismo no lo entiendo
Por ahora.
PAS. E ATOS estáis preso, ina ora?
CUP. Pastor, esto no es prisión,
Que es cadena de condón,
Que me dio una señora
De mucha veneración.
El que en ella se prendiere
Será libre de tristeza,
Y mil bienes y riqueza
Terna quien nella estuviere,
Por mi fé.
Y pues tu ventura fue
Que tú alcansases vella,
Yo te hago mercé della
Y Dios te hará mercé:
Gózate mucho en tenella.
Quítamela con tu mano.
PAS. Esta veío do Peni:
Ora Déos me Iroux'aqui.
CUP. Dala acá; ponía en ti:
Buena prol te haga, hermano.
P.vs. Oh coitado!
CUP. Qué has? P.vs. Estou namorado.
17a LIVRO II.

CUP. De quien? P A S . Que sei eu de quem,


Senáo que o amor me tem
O coracáo apertado.
E segundo a fortaleza
Com que ine aperta e namora,
Deve ser a mor senhora
Que se criou em Veneza.
Cegó sou
E nao sei quem me cegou,
Por nao ter cura meu mal:
Bofa, A7ÓS sois hum enxoval;
Mas quem em Arós se fiou
Merece ter pago tal.
CUPIDO.
Si de esta pena te sacas,
Tu vivir muy mal se emplea.
PAS. Oh, tirae-me esta cadea,
Que se me perdem as vaccas
Sem pastor;
E somente o amor
Nos mata d'hüa pastora:
Se fóra dest'outra dor
Oh pesar de vos amor,
Que o diabo A7OS trouxe ora!
CUPIDO.
Mueres de amores, hermano.
PAS. Em mi tal amor que monta?
E pois foi erro de conta,
Desfacamodo engaño.
Ora ouvi.
CUP. E S esta que Aiene aqui.
PAS. Pardeos! esta AOS he ella!
DAS COMEDIAS. 173

Ora olhae, corpo de miin,


Que presta a hum villáo ruim
Ir amar táo alta estrella ?
Eu saín indino pastor,
Pobre, vestido de pelle,
De ser preso em A7OSSO amor:
Engaño u-me este Senhor.
Que ma viagem faca elle. —
Que me olhaís?
Hum fraco pastor matáis;
E nao he cousa honesta;
Que a cárrega que lancais
w

A ínula que carregais,


Pesa muito mais que a bésla.
GRATA CELIA.
No os digo, Dios de amor,
Que no os es nada el vuestro amar,
Que para os exprimentar
Os hice aquel desfaA7or,
Y no para os olvidar.
Por mi Aida
Que ahora á eso A7enía,
Y hállovos sin prisión,
Sin congoja y sin pasión:
No pidáis mas alegría.
CUPIDO.
Vuestras crueles rencillas
Y grandes desesperanzas
Y tan braA7as esqurvanzas
Hacen estas maravillas.
Yo no sé que mas os diga.
PAS. Fazeí hüa cousa boa.
1 7 4 LIVRO II.

Eu nao som aqui pessoa,


Soltae-me desta fadiga,
Por vossa vida, senhora.
GRATA CELIA.
Poco ha que dejistes AOS
De las mugeres mil males;
Que eran crudas, desleales,
Y otras mil plagas de nos.
Y vos, Amor,
Debierades sentir mejor,
Que no son nada las faltas
Para las virtudes altas
Que les dan mucho loor.
CUPIDO.
ESO dijo mi pasión;
Porque, cuando ella no mengua,
Hace decir á la lengua
Lo que niega el corazón.
Es tan llano
Las mugeres á una mano
Ser la perfección del inundo,
En la tierra el soberano,
En el cielo el bien segundo.
GRATA CELIA.
Cupido, pues estáis fuera,
Prendeos en mi prisión:
Porque el alto galardón
No se gana en media hora.
Ni es razón
Que estea en \ r uestra prisión
Ese rústico pastor.
DAS COMEDIAS 175

Quitaldo desa pasión,


Y prended á AOS, Amor.
CUPIDO.
Ansí lo quiero hacer,
Aunque por muy cierto hallo
Que del amor y querer
El dulzor es de temer:
Que lo al basta llorallo.
Ya A7eis ahora
Que preso estoy, mi señora.
Oh favor, oh faAror!
Quien te cobrase alguna hora!
Porque el mal que no mejora,
Va de peor en peor.
GRATA CELIA.
FaAor queréis? esperad,
Socega; no se hace ansí.
CUP. Habed mancilla de mí
Por la Adiestra piedad :
Que la ciencia
De mi penosa paciencia
Es aguijar mis placeres:
Dadme hermosa penitencia,
Y usad en todo clemencia,
Corona de las mugeres.
Vem o Duque pelegrino, e diz
DUQUE.
Muchas cosas de no crer
Hallo por esta floresta:
Mas maravilla como esta
No se AÍÓ ni se ha de ver.
Esto es cierto.
1 7 6 LIVRO II.

Y quien trajo á este desierto


Así sola una doncella,
Por sierra tan sin concierto,
Y el Amor preso por ella?
CUP. No soy preso, mas soy muerto.
GRATA CELIA.
Donde camináis acá?
DUQ. Señora, voy pelegrino
Á un templo que acá está,
Y á él es mi camino,
En compañía
Del hijo del Rei de Ungría,
Y Príncipe de la Gran Grecia,
Y el Cónsul de la Venecia
De alta genelogía,
Cinco Duques pelegrinos,
Y él también pelegrino,
Caminando sin camino,
Y dejando los caminos.
GRA. Por qué via
Hizo él su romaría
Por tan áspera montina?
DUQ. Porque IleA'a en compañía
La Ventura pelegrina,
Que lo manda y lo guia.
GRATA CELIA.
Es la mi vida tan fea,
Y mi destierro tan feo,
Y tan cuitada me Areo,
Que no quiero
Que el que me Aido me Area.
CUP. Oh Princeza,
DAS COMEDIAS. **

Lémbreos mi ánima presa!


DUQ. Y princesa es ella, hermano?
CUP. Hija del Rey Telebano,
Y de los príncipes diesa.
DUQUE.
No os vais daqui por Dios,
Ni os escondáis, señora;
Porque yo sé que en buenora
Lo veréis y él á A7OS.
Dichoso hado!
Él es príncipe jurado
Y vos princesa jurada;
Seréis bien aventurada
Y él bien aventurado:
Y bendita tal jornada.
Quiérole ir descubrir
Misterio de tanto peso.
CUP. Señora, y esto vuestro preso.
Sin remedio ha de morir?
GRA. Y porqué?
Que Amor que no tiene fe
No puede morir de amores.
CUP. Porqué no creís mis dolores,
Que mi mal claro se ve?
Vem o Principe de Grecia com os cinco Duques c sen-
hores pelegrinos, e a Ventura pelegrina, cantando todos
esta
Cantiga.
"Muéstranos por Dios, Ventura,
"En esta sierra tan bella
"Las venturas que hay en ella."
, 2
\«i. í i .
178 LIVRO II.

VENTURA.
0 Grata Celia Princesa,
De las princesas mayor,
Qué os hizo el Dios de Amor,
Que tenéis su vida presa?
GRA. Mas holgara
Que Ventura perguntara,
Pues que ya me conocía,
Quien me robó el alegría
Y las flores de mi cara.
VENTURA.
Perdonad, que perdí el norte.
GRA. O Ventura consagrada,
Que siendo de mi adorada,
Vos .me disteis por mi suerte
Ventura desventurada!
Tal ha de ser,
Por ser buena la muger,
Virtuosa sin mudanza.
Dios de amor ha de querer
Tomar tan cruda vinganza?
PRINCIPE.
De quien os quejáis, os pido,
Princesa de hermosura?
GRA. Quejóme de la Ventura
Y de Apolo y de Cupido.
VEN. NO es cordura
Quejaros de la Ventura:
Con Apolo es la demanda:
Que naquello que Dios manda
No erró nada la Ventura.
DAS COMEDIAS. 179

PRINCIPE.
Si vos nada aprovecháis,
Para qué os llevo por guia?
VEN. Yo os guio por la via
Que Dios quiere que vayáis.
Pongo figura:
Dice cualquier criatura,
(Esto bien lo sabéis vos)
Quizo Dios y la Ventura:
Primero se nombra Dios,
Porque es cosa mas segura.
Yo os guio por acá,
Por muy venturosa via,
Por dar nueA'a alegría
r

A la reina que aqui está.


De manera
Que ella es principal heredera
En la gran Persia mayor:
Y A'os, muy alto señor,
\ d la neguéis de parcera.
PRINCIPE.
Si á la Princesa aplace,
Yo lo doy por otorgado;
Pues Dios tiene limitado
Todo aquello que se hace.
GRA. Contenta só:
Mas sin padre qué haré yo?
Que aunque siento mi daño,
La culpa tiene el engaño,
Mas el engañado no.
VENTURA.
Cata, que os viene Dios á ver;
i'2
180 LIVRO II.

Princesa muy soberana,


No os debéis de torcer,
Que lo que se puede hoy hacer
No quede para mañana.
No esperéis mas recado,
Pues os es honra y provecho;
Que el casamiento alongado
Pocas veces se vio hecho.

A Ventura tomou as mños ao Principe e Princeza, e


com sua música se acabou esta comedia, que he a derra-
deira deste segundo Livro, e a derradeira que fez Gil
Vicente em seus dias.

FlM DO LlVRO II.


LIVRO ras,

DAS TRAGICOMEDIAS.
FIGURAS.
ü. DUARDOS.
O IMPERADOR PALMEIRIM.
PRIMALION, seu filho.
FLERIDA.
AMANDRIA i .
\ Damas de Flerida.
ARTADA )
CAMILOTE.
MAIMONDA.
D. ROBUSTO.
OLIMBA, Infanta.
JULIÁO, Horteláo.
CONSTANZA ROIZ, sua mulher.
FRANCISCO i
J seus filhos.
JOÁO )
PATRÁO DE GALERA.

Esta primeira Tragicomedia he sobre os amores de D.


Duardos, Principe de Inglaterra, com Flerida filha do
Imperador Palmeirim de Constantinopola. Foi representada,,
ao Serenissimo Principe e poderoso Rei D. Joño III.
DOM DUARDOS.

Entra atrimeiro a corte de Palmeirim com estas figuras:


*• Imperador, Imperatriz, Flerida, Arfada, Aman-
dria, Primalion, ü. Robusto; e depois destes assentados,
entra D. Duardos a pedir campo ao Imperador com
Primalion, seu filho, sobre o agravo de Gridonia, di-
zendo:
D. DUARDOS.
Famosísimo Señor,
Vuesa sacra Magestad
Sea exalzada,
Y viva su resplandor
Tanto como su bondad
Es pregonada;
Y los Dioses inmortales
Os den gloria en este mundo
Y en el cielo;
Pues sobre los terrenales
Sois el mas alto y facundo
De este suelo.
Vengo, Señor, á pedir
Lo que no debéis negar:
Que vueso estado
Es por la verdad morir
Y la verdad conservar
Con cuidado.
Porque sois suma justicia
Que es hija de la verdad,
184 HVRO 111.

De tal son,
Que por ira ni ainicicia
No deje Vuesa Magestad
La razón.
Porque si con muestra de rey
Vendiéredes después, Señor,
Falso paño,
Vos os quedareis sin ley,
Y será emperador el engaño.
Gridonia, Señor, está
Agraviada en extremo,
Y de manera,
Que de pesar morirá.
Y pues, Señor, esto temo,
Dios no quiera
IMPERADOR.
Esforzado aventurero,
Muestra el razonamiento
Que habéis hecho,
Que sois mas que caballero.
D.Du.No soy mas que cuanto siento
Esto despecho.
Primalion le mató
Á Perequin que ella amaba
Como á Dios;
Ansí que á ella heríó,
Y aunque con uno lidiaba,
Mató dos.
PRIMALION.
Vos venís á demandado?
D.üu.Por ventura sois, Señor,
Primalion ?
DAS TRAGICOMEDIAS. 185

PRI. Yo soy. D. DUA. Pues vengo á vengallo,


Si el Señor Emperador
No ha pasión.
IMP. Caballero, mal hacéis,
Quien quiera que vos seáis.
D.Du.Porqué, Señor?
|MP. Porque razón no tenéis,
Y vuesa muerte buscáis
Y no loor.
ü. DUARDOS.
Mucho sonada es la faina
Del vueso Primalion.
Mas no deja (*)
De ser hermosa la dama
Gridonia que con razón
Del se aqueja.
PRI. Agora lo veréis presto
Si tiene razón, si no.
Ü.Du.Ya se tarda
Que las armas juzguen esto
Pni. Agora ver quiero yo
Quien las aguarda.
Neste passo se combale c eslando-sr tombataido vem a
Princeza Flerida e diz:
FLERIDA.
A paz, á píiz, caballeros,
Que no son para perder
Tales dos;
Y vuestros brazos guerreros
(*) A p.issagem que se segué alé o í)° v. d.t p<tg. l^' 1 e Uiadu tía seg. <»l
de 158Ü, por estar troncado ueste logar o e x e i n p l a r d a priju. da Bibliotec.i
de Gólliuguen de que nos servimos,
186 LIVRO III.

Cesen por me dar placer


Y por Dios.
Y á vos, hidalgo estrangeró,
Pido por amor de mí,
Sin engaño,
Que vos seáis el primero
Que no queráis ver la fin
De este daño.
Descubrios, caballero.
D. DUARDOS.
No mas: vermeha vuestra Alteza
Algún día:
Quiero ir ganar primero
La fama de mi nobleza
A Turquía.
Apartar-se-hüo estas figuras, e entra Camilo te e Mai-
món da, a tnais fea criatura que nunca se vio; e Camilote
louvando-a, diz:
CAMILOTE.
O Maimonda, estrella mia,
O Maimonda, flor del mundo.
Rosa pura;
A'os sois claridad del dia,
Vos sois Apolo segundo
En hermosura.
Por vos cantó Amfiun
Aquellos tristes cantares
Enamorados.
Sus canciones vuestras son.
Y vos le distes mil pares
De cuidados.
DAS TRAGICOMEDIAS. 18T

MAIMONDA.
Todo loor es fastío
En la perfección segura
Y manifiesta;
Bien basta que en ser vos mío
Se prueva mi hermosura
Bien compuesta.
CAM. Bien decís. MAL Mas así es.
CAM. Esperad, señora mia.
MAL Qué señora?
CAM. Diana hermosa es,
Pero quiere cada dia
Su loor.
Y las Reinas soberanas
Muestran señas y terrores
A deshora,
Cuando las lenguas humanas
No publican sus loores
Cada hora.
Pues bien manifiesta y clara
Es la hermosura de ellas
Y la valer.
Pues á vos no se compara
Ni ellas ni las estrellas,
A mi ver.
MAIMONUA.
Así es ello por mi vida.
CAM. Pues dejaos loar, señora.
MAL Para qué?
CAM. Porque es cosa sabida
Que quien alaba colora
Su gran fe.
188 LIVUO III.

No es esto lisonjaros,
Como muchos han mentido
A sus amores.
MAL ASÍ me lo dice el espejo
De esa propia manera
De esos prados.
CAM. Señora es mi consejo
De tomar la delantera
A esforzados.
Á Constantinopla vamos.
Señora, al Emperador
Palmeirin;
Allí quiero ir; veamos
Lo que vuestro resplandor
Obra en mí.
Yo porné esta grinalda
Sobre vuestra hermosura
Que es sobre ella:
Veremos, o mi esmeralda,
Quien dirá que ama figura
Tanto bella.
MAIMONDA.
No os mucho que venzáis
Teniendo tanta razón.
CAM. A eso os vó,
Que solo el aire que dais
Mata de pura afición
Al que os vio.
MAL Vamos adonde queréis:
Celos no los escusais,
Que aquel que ama
Recela como sabeís,
DAS TRAGICOMEDIAS 189

Cuanto mas vos que amáis


A tal dama.
Decidme, señor, yo os pido:
Es mayor dolor celar
Con razón,
O mayor no ser querido?
CAM. NO ser querido y amar
Es gran pasión.
Aqui chegño diante do Imperador Palmeirim e diz
CAMILOTE.
Clarísimo Emperador!
Sepa Vuesa Magestad
Imperial
Que esta doncella es la frol
De la hermosa beldad
Natural.
IMP. Cuya hija es, si sabéis?
CAM. Hija del Sol es por cierto.
IMP. Bien parece.
En que intención la traéis?
CAM. Por mostrar por quien soy muerto
Que merece.
IMPERADOR.
Cobrastes alta ventura.
Qué años habrá ella?
CAM. Daré prueva
Que á poder de hermosura
El tiempo vive en ella
Y la renueva.
La primera A7ez que la vi,
Crea Vuesa Magestad
Imperial,
190 LIVRO III.

Que dije: Oh triste de mí!


Atajada es mi edad,
Por mí mal.
Empero, señor, será
Muchacha de cuarenta años,
Mas no menos.
IMP. Y que es vuesa cuanto habrá?
CAM. Señor, mios son los daños,
No ágenos;
Pero ella no tiene cuyo,
Y aunque A7engo con ella
Como suyo,
Suyo soy y ella suya,
Y en ver cosa tan bella
Me destruyo.
Y demás de su beldá,
Los hados la hicieron dina
De gran fiesta;
De suerte que no está
En el inundo muger divina
Sino esta.
Pedíla á los aires tristes,
Que la ayudaron á criar,
Respondieron
Con las tormentas que vistes,
Cuando las islas del mar
Se hundieron.
A la nieve la pedí,
Que del sol y también della
Se formó;
Dijome: Vete dahí,
Que quien pudo merecella
DAS TRAGICOMEDIAS. 191

No nació.
Xo le hacéis, damas, á esta
lia de vida ceremonia
A vuesa guisa?
AMA. Señoras, qué cosa es esta ?
ART. Esta debe ser Gridonia,
O Melisa.
FLERIDA.
Parece á la reina Oído,
Y Camilote á Eneas.
ART. SÍ, aosadas.
FLE. Espantado es mi sentido!
Quien hizo cosas tan feas
Namoradas ?
IMP. Son los milagros de amores,
Maravillas de Cupido.
Oh gran Dios!
Que á los rústicos pasture*
Das tu amor encendido
Como á nos!
Y á Camilote hace
Adorar en esa muerte,
Por mostrar
Que hace cuanto le place,
Y que nada no le es fuerte
De acabar.
Tales fuerzas no tuvieron
Otros dioses poderosos:
Que hace ser
*
A los que nunca se vieron
Enamorados deseosos,
Sin se ver.
192 LIVRO 111.

Estes son amores finos


Y de mas alto metal;
Porque son
Los pensamientos divinos,
Y también es divinal
La pasión.
Los amores generales,
Si dan tristezas y enojos,
Como sé,
Aunque sean speciales,
Primero vieron los ojos
El porqué.
Mas el nunca ver devisa,
Y ser présenle la ausencia
Y conversar,
Es tan perfecta conquista,
Que traspasa lo excelencia
Del amar.
CAM. Todo eso padeció
Mi corazón dolorido,
Que por fama
Desta dama se perdió,
Y sin verla fui ardido
En viva llama.
MAIMONDA.
Decidme por vuestra vida,
Cuando me vistes, qué vistes?
CAM. Vi á Dios
Y la campana tañida
De la fama que hecistes
Para vos.
DAS TRAGICOMEDIAS. 193

AMA. NO podía menos ser,


Porque es una Policena.
ART. Tal es ella.
CAM. Bien podéis escarnecer,
Mas juro á Dios que ni Elena
Fue tan bella.
ARTADA.
Algo será mas hermosa
Flerida. CAM. Quien? — aquella?
Asaz de mal:
Por Dios vos estáis donosa!
Comparáis una estrella
r

A un pardal.
D.Ro.Mucho os desmandáis vos.
CAM. Quereilo vos demandar?
D.Ro.Sobs caballero?
Si lo sois, juro á Dios
Que os haga yo tornar
Majadero.
Y en Flerida habíais vos?
Nadie es diño de vella,
Ni osamos,
Porque nos defiende Dios
Que no pensemos en ella,
Que pecamos;
Y manda, no sé porqué,
Que por do vaya ó eslé,
La tierra sea sagrada,
Y sea luego adorada
La pisada de su pie.
O herege entre varones!
Puede ser mayor locura,
Vol. I I . 13
194 LIVRO III

Que la excelsa hermosura


Compararla com tizones,
Contra Dios, contra natura?
CAM. Ante que hayamos enojos,
Caballero, abrid los ojos,
Que debéis tener lagaña,
Y veis por tela de araña,
Cúmpleos poner antojos.
D. RORUSTO.
A qué tengo yo de mirar?
CAM. La belleza de Maimonda,
Que en la tierra á la redonda
No se halló nunca su par
Ni señora de su suerte.
D.Ro.Mas cercana os es la muerte
Que la A7erdad, caballero.
CAM. Yro he sido tan certero,
Que os juro que os acierte.
D. RORUSTO.
Decid antes que os conquiste,
Con los genojos hincados,
La oración de los ahorcados,
Que es el anima Christe,
Por A7uesa ánima y pecados.
CAM. O Maimonda mi señora,
Vos me quitáis el recelo.
D.Ro.Yo os juro á Dios del cielo
Que presto la dejéis ora.
CAMILOTE.
Vos ya no sois Don Duardos,
Ni menos Primalion
No seréis.
DAS TRAGICOMEDIAS 195

D.Ro.Ni soy de los mas bastardos


En esfuerzo y corazón,
Como veréis.
Y debéis por honra vuesa,
Pues de morir tenéis cierto
De esta trecha,
Buscar luego antes de muerto
El que os haga la huesa
Muy bien hecha.
CAMILOTE.
Ansí? D. ROB. Sí, don selvage.
CAM. Muy alto, esclarecido
Emperador,
Yo nunca sufrí ultragé,
Sino solo ser vencido
Del amor.
Cogí en bravas montañas
Esta grinalda de rosas,
Por hazaña,
Entre diez mil alimañas
Muy fieras, muy peligrosas:
Cosa estraña!
Y pues á tan peligrosa
Ventura, de buena gana,
Me oferecí,
La doy á la mas hermosa
Que nació en la vida humana
Hasta aqui.
Y cualquiera caballero
De esta corte, que dijere
Que su dama
La merece por entero,
13*
19G LIVRO III.

Salga y muera el que muriere


Por la fama.
Y aun cualquier que dijere
Que á Flerida conviene
Mas que á ella,
Yo le haré conocer
Que miente con cuanto tiene,
Delante ella.
D.Ro.Yo os lo quiero combatir.
CAM. Vos, Señor Emperador,
Dais licencia?
IMP. SÍ, doy, y allá quiero ir
Ver el campo y el loor
Y la sentencia.
Estes se vño todos c entra a Infanta Olimba com D.
Duardos.
OLIMBA.
Cuanto tiempo ha, Señor
Don Duardos, que partistes
De Inglaterra?
D.Du.No le sé, porque el amor
En la cuenta de los tristes
Siempre yerra.
Después que á Flerida AÍ
Cuando con Primalion
Combatía,
Perdí la cuenta de mí,
Y cobré esta pasión,
Que era mia.
Alcanzó paz á su hermano
Trujóme guerra consigo
Solo en vella,
DAS TRAGICOMEDIAS. 197

Tal que no es en mi mano


Haber nunca paz conmigo,
Ni con ella.
Decidme, Señora Ifante,
Flerida como la habré?
OLÍ. Con fatiga;
Porque es su gravedad tanta,
Mi Señor, que yo no sé
Que os diga.
Mas es eso de hacer,
Que vencerdes á Melcar
En Nonnandía,
Ni cuando fuistes prender
Á Zerfira en la mar
De Turquía,
Ni matardes al Soldán
De Babilonia, que malastes,
Y tan presto,
Por líbrardes de afán
Belagrís, como librastes:
Mas es esto.
D. DUARDOS.
Esa guerra es ya vencida:
En esta querría esperanza
De vencer.
OLÍ. NO la tengáis por perdida,
Que lo mucho no se alcanza
Á bel placer.
Muchos son enamorados,
Y muy pocos escogidos:
Que amor
A los mas altos estados.
198 LIVRO III.

Aunque los haga abatidos,


Es loor.
Dígolo, porque si á Flerida
Amáis como habéis contado
Y referido,
Cúmpleos mudar la vida,
Y el nombre y el estado,
Y el vestido,
D.Du.Y aun la ánima mia
Mudaré de mis entrañas
Al infierno.
OLÍ. Si amáis por esa via,
Haréis las duras montañas
Piado tierno.
Irosheis á su hortelano,
Vestido de paños viles,
Con paciencia,
De príncipe hecho villano;
Porque las mañas sutiles
Son prudencia:
Y asentarosheis con él,
Después que le prometierdes
Provecho,
Y avísarosheís del
Que no sienta en lo que hicierdes
Vueso hecho.
Llevad estas piezas de oro,
Y esta copa de las hadas
Preciosas,
Teméis las noches de inoro,
Y las madrugadas
Muv llorosas.
DAS TRAGICOMEDIAS. 199

Haced que beba por ella


Flerida; porque el amor
Que le tenéis
Á ella, os terna ella,
Y perdida de dolor
La cobrareis.
D. DUARUOS
A los Dioses inmortales
Suplico, Señora mia,
Os den gloria,
Y aministren á mis males
Camino por esta via
De victoria.
OLÍ. Amen, y ansí será,
Porque en Venus confio
Mi señora,
Que lo que suele hará,
Y le enviaré el clamor mió
Cada hora.
Vño-se D. Duardos, e Olimba, e vem os hortelóes da
horta de Flerida, Juliño, Constanga Roiz, sua mulher,
e Francisco e Joño, seus filhos, e diz
J U L I A o.
Constanza Roiz amada!
CON. Mi Julián, qué mandáis?
JUL. Que miréis como regáis,
Que estragáis la inesturada:
Que esta huerta
Me tiene la vida muerta.
CON. Amargo estáis.
JUL. Tapad presto.
CON. Mi amor, qué fue ahora esto?
200 LIVRO III.

FRA. NO sé quien llama á la puerta.


JULIAO.
Mi fe, sea quien quisiere,
Monda, acaba norabuena:
Vé, abaja la melena.
FRA. Para al ruin que tal hecíere! —
Vaya Juan.
JUA. Primero vendrá el pan
Y tocino una pieza,
Que yo baje la cabeza.
JUL. Vé apaña el azafrán.
JUA. Cuerpo de Dios con la vida!
Pues tengo el nabo regado,
Y el rosal apañado,
No merezco la comida?
JULIAO.
Es placer:
Mirad, señora muger.
CON. Qué miráis, mi corderito?
JUL. Cuan ufano y cuan bonito
Está el pomar dende ayer!
CON. Oh qué cosa es el verano!
JUL. Mirad, mi alma, el rosal
Como está tan cordeal,
Y el peral tan lozano!
CONSTANCA.
Cuan alegre y cuan florido
Está, señor mi marido,
El jazmín y los ganados,
Los membrillos cuan rosados,
Y todo tan florecido.
DAS TRAGICOMEDIAS. 201

Los naranjos y manzanos,


Alabado Dios!
JUL. Pues mas florida estáis vos.
FRA. Padre, no oís batir
A la puerta ha ya un mes?
JUL. Algo vienen á pedir.
Quien está hi? — D. DUA. De paz es.
Julián, por Dios os ruego
Que abráis. JUL. SÍ, abriría,
Mas Flerida vendrá luego.
D.Du.Pues, Julián, yo os diría
Cosas de vueso sociego
Y descanso y alegría.
JUL. Esperad y llamare
La señora mi muger,
Que, si es cosa de placer,
Solo no lo quiero ver,
Porque no lo gustaré.
Constanza Roiz, viene acá,
Que sin vos soy todo nada.
Catad, señor, que esta entrada
Nunca se dio ni dará,
Que esta huerta es muy guardada.
(Abre-llic a porta e v e n d o - o ein Irages de iraballiador, Iho d i z : )

Pero donde sois, hermano?


D.Du.De Inglaterra. JUL. Y qué mandáis?
Ü.Dc.Querria ser hortelano,
Si vos me lo enseñáis,
Y quiero decirlo llano.
En esta huerta, señor,
Está terrible tesoro
De infinitas piezas de oro,
202 LIVRO III

Y solo yo soy sabidor.


Esto es cierto.
Hagamos un tal concierto,
Que me tengáis simulado,
Y de vos perded el cuidado^
Si tenéis esto encubierto.
JULIAO.
Á la Infanta qué diremos.
Si os viere aqui andar?
CON. Por hijo puede pasar;
Julián le llamaremos.
Vendrá ora,
Y yo le diré: — Señora...
Yo lo mas quiero callar.
Bien podéis aqui andar,
Y vengáis mucho enbucnora.
Entrado D. Duardos na horla, diz.
D. DUARDOS.
Huerta bienaventurada,
Jardín de mi sepultura
Dolorida;
Yo adoro la entrada,
Aunque fuese sin ventura
La salida.
VemFlerida com suas Damas Amandria e Arlada,
e vem praticando pela harta sobre o desafio de D. Duardos
com Primalion.
FLERIDA.
Oh cuanto honran la tierra
Los caballeros andantes
Esforzados!
AMA. Mucho enamora su guerra.
DAS TRAGIC03IEDIAS. 203

Y aborrecen los galanes


Regalados.
FLE. Oh qué grande caballero!
ART. Cual, Señora? FLE. El que herió
¥

A Primalion.
ART. NO vino tal caballero
A la corle, ni se vio
Tal corazón.
AMANDRIA.
Supe, Señora, quien era?
FLE. Nunca se ine quizo dar
A conocer;
Mas, asegun su manera,
Gran señor, á mi pensar.
Debia ser.
ART. Cuan fuertemente lidiaba!
AMA. Oh como se combatía
Apresurado!
FLE. Qué ricas armas armaba,
Y cuan mañoso lo hacía
Y cuan osado!
CONSTANCA.
Dios bendiga Vuesa Altesa,
Y os dé mucha salud,
Y logréis la jiiA'entud.
Sin fatiga ni tristeza.
Estas rosas
Son de las mas olorosas.
FLE. Serán de casta de Ungría:
Mas decidme, no es dia
Hov de hacer afán?
«04 LIVRO 111.

Donde es ido Julián,


Y toda su compañía?
CONSTANCA.

No es día de holgar,
Sino donde ha hi placer.
Un hijo nos vino ayer,
Que nos quitó gran pesar.
FLE. Bendígaos Dios!
Otro hijo tenéis vos?
CON. Veinte años hace este mes.
FLE. Pues que vuestro hijo es,
Decidle que venga á nos.
CON. Viene roto; hasta mañana
No osará aparecer.
FLE. El hombre queremos ver,
Que los paños son de lana.
CONSTANCA.
Julián, mi hijo, mi diamau,
Llámaos la princesa
Flerida. D. DUA. Mas diesa,
Que todos alabarán.
Cual corazón osa ahora,
En tan disforme visage
Y vil figura,
Ir delante una Señora
Tan altísima en linage
Y hermosura!
Y vos mis ojos indinos.
Cuales hados os mandaron,
Siendo humanos.
Ir á ver los mas divinos,
DAS TRAGICOMEDIAS. 205

Que los Dioses matizaron


Con sus manos?
FLE. Ha mucho que eres venido? —
En qué tierras anduviste,
Julián? —
No hablas? ART. Está corrido.
FLE. Cuanto había que fuiste?
ART. Quieres pan?
AMANDRIA.
Bendiga Dios el nimio!
Como es bonito y despierto!
No lo veis?
ART. Busquémosle un pajarito:
Este ni AÍVO ni muerto
Para qué es?
AMA. Él se aprovechará
Para bestia de atahona
Con retrancas.
ART. Cuan de espacio mulera!
AMA. O espulgara la mona
Por las ancas.
ARTADA.
Mas echémosle á nadar
En el tanque.., AMA. Bien será.
7
ART. SUSO, A amos!
FLE. Porqué no quieres hablar?
AnT. Señora, él hablará,
Si lo echamos.
D.Du.Señoras, cuando el corazón
Del esfuerzo tiene mengua,
Ya se piensa
Que de fuerza y con razón
206 LIVRO IH

Será turbada la lengua


Y suspensa.
Porque yo vide á Melisa
Esposa de Recendoz,
Que Dios pintó;
Vi Viceda y Valerisa,
Por quien el Rey Arnedoz
Se perdió;
Vi la hermosa Griola,
Emperatriz de Alemana,
Y sus doncellas;
Vi Gridonia, una sola
Imagen de gran hazaña
Entre las bellas;
Y vi Silveda y Finea,
Graciosísima señora,
Mucho linda;
Vi las hijas de Tedea,
Y AÍ la Ifante Campora,
Y Esmerinda:
Mas con vuesa hermosura
Parecen mozas de aldea
Con ganado;
Parecen viejas pinturas,
Unas damas de Guinea
Con brocado.
Son unas sombras de vos,
Y figuras de unos paños
De Granada;
Y tales os hice Dios
Que aun que esté mudo mil años.
No es nada.
DAS TRAGICOMEDIAS. 207

FLE. Viste á Primalion


En los reinos estrangeros,
Y sus famas?
D.Du.No es de mi condición
De mirar á caballeros,
Sino á damas.
ARTADA.
En ti se entiende mirar?
D.Du.Conozco, señora mia,
Que soy ciego;
Ni también puedo negar
Que ciego sin alegría
Ardo en fuego.
FLE. Debes hablar como vistes,
O vestir como respondes.
D.Du.Buen vestido
No hace ledos los tristes.
FLE. Ojalá tuviesen condes
Tu sentido.
Anda, vete agasajar
Con tus padres y hermanos,
Por los cuales
Holgaré de te amparar.
D.Du.Beso vuestras altas manos
Divinales.
FLE. Yete con la bendición
A comer cebolla cruda,
Tu manjar.
D.Du.Quien tiene tanta pasión
Todo comer se le muda
En suspirar.
208 LIVRO III

ARTADA.
El bobo muy bien asienta
Sus razones, y dirán
Sin letijo,
Si lo mira quien lo sienta,
Que no hizo Julián
Aquel hijo.
AMA. Venida es la noche escura,
Vayase Vuesa Altesa.
FLE. Aquel lal
Que lamenta su ventura
Y exclama su tristeza,
De que mal?
AMANDHIA.
Es un modo de hablar
General, que oís decir
A amadores,
Que á todos veréis quejar,
Y ningún veréis morir
Por amores.
Julián sin saber que es,
Quiere ordenar también
De quejarse,
Y muchos tales veres:
Mas querría ver alguien
Que amase.
Si alguno al Dios Apolo
Hiciese adoración
Por su dama,
Y esto estando solo,
Y llorando su pasión,
Este ama.
DAS TRAGICOMEDIAS. 209

Mas delante son Mancías,


En ausencia son olvido,
Y el querer
Es amar noches y días,
Y cuanto menos querido
Mas placer.
Estas cousas vai Amandria dizendo indo-se Flerida com
ellas recolhendo da horta, e idas, diz D. Duardos a Juliao:
•D. DUARDOS.
Toda esta noche, señor,
Me conviene trabajar,
Que el tesoro
De noche quiere el labor;
Y me voy luego a cavar
Como Moro.
CON. Ora andad con Dios, hermano.
Yo quiero cerrar mi puerta
Bien cerrada;
Las noches son de verano,
Aunque durmáis en la huerta,
No es nada.
O señores tres Reis Magos,
Que venistes de oriente,
Por vuesos santos milagros,
4Jue ayudéis aquel bargante
A buscar muchos ducados.
JUL. Venios acostar, señora.
* Soledad tengo de ti,
"O tierras donde nací."
Co\. Ay, mi amor, cantable ahora.
JULIAO.
"Soledad tongo de ti,
14
Yol. II.
210 LIVRO III

" 0 tierras donde nací."


Bien solía yo musicar
Nel tienipo que Dios querría.
CON. Como' os oigo cantar
Llórame el ánima mia.
JUL. Vamonos ora acostar.
Soliloquio de
D. DUARDOS.
Oh palacio consagrado,
Pues que tienes en tu mano
Tal tesoro,
Debieras de ser lavrado
De otro metal mas ufano
Que no oro.
Hubieron de ser vubines,
Esmeraldas muy polidas
Tus ventanas,
Pues que pueblan serafines
Tus "entradas y salidas
Soberanas.
Yo adoro, diosa inia,
Mas que á los dioses, sagrados,
Tu alteza,
Que eres dios de mi alegría,
Criador de mis cuidados
Y tristeza.
A^ ti adoro causadora
De este AÜ ofieio triste
Que escogí;
A ti adoro, señora,
Que mi ánima quisiste
Para (i.
DAS TRAGICOMEDIAS. 211

No uses de poderosa
Porque diciendo te alabes
Yo vencí!
Ni sepas cuanto hermosa
Eres, que si lo sabes,
Ay de mí!
Oh primor de las mugeres,
Muestra de su excelencia
La mayor;
Oh señora, por "quien eres,
No niegues la tu clemencia
i

A mi dolor.
Por los ojos piadosos
Que te vi neste lugar,
Tan sentidos,
Claríficos y lumbrosos,
Dos soles para cegar
Los nacidos,
Que alumbres mi corazón,
O Flerida, diesa mia,
De tal suerte,
Que mires la devoción
Con que -vengo en romería
Por la muerte.
Tú duermes, yo me desvelo,
Y también está dormida
Mi esperanza:
Yo solo, señora, velo
Sin Dios, sin alma, sin vida,
Y sin: mudanza.
Si el consuelo viene á mí,
Como á. mortal enemigo
U*
212 LIVRO III.

Le requiero:
Consuelo, vete de ahí,
No pierdas tiempo conmigo
Ni te quiero.
Estq^ es ya claro dia,
Darleshé este tesoro,
Porque el mió
Es Flerida, señora mia,
De cuyo Dios* yo adoro
Su poderío.
Vem Juliao e Constanga, e diz Juliao:
JUL. Mala noche habéis llevado
Harto escura sin lunar.
D.Du.Y sin placer.
CON. Vueso almozo está guisado.
D.Du.Trabajar y suspirar
Es mi comer.
Veis aqui lo que saqué
Aquesta noche primera.
JUL. Oh qué cosa!
Pardiez aína diré
Que no es Flerida en su manera
Tan hermosa.
D.Du.Ay, ay! JUL. Venís cansado?
D.üu.Mi corazón lo diría,
Si osase.
CON. Comeréis un huevo asado,
Mi hijo, mi alegría?
r

O queréis que os ase.


D. DUARDOS.
No hablemos en comer;
Dejadme gastar la vida
DAS TRAGICOMEDIAS 213

Eu mi tesoro.
Esta copa ha de haber
Flerida, que es descendida
De un rey Moro.
Esta le A'iene de herencia
De sus agüelos pasados;
Cumple á nos
Dársela por conciencia,
Y los trecientos ducados
Para A7OS.
CONSTANCA.
O mi hijo y mi hermano,
Mi santo descanso mío
Y de mi vida!
Dios os trajo á nuestra mano,
Y fue por él, yo os fio,
La venida.
Su Alteza vendrá ora,
Que ya acabó de jantar
Ha buen rato.
JUL. Oh Dios, quien tuviera ahora
Para os agasajar
Un buen pato.
CONSTAM; v.
Andad acá, hijos míos,
Y porneinos en recado
Lo que hallamos;
Dios sabe ora cuan vacíos
Y sin blanca ni cornado
Nos hallamos.
Vamos, hijo, á la posada,
Y descansareis siquiera
214 LIVRO III.

Ve la noche
Mala que habéis HeA-ada:
"No faltará una estera
En que os- eche.
.Vem Flerida, Artada, Amandria ti borla e diz
FLÉRIOA.
Jesús!- qué cosa es esta?
No hacen hoy labor
Ni ayer?
ART. Terna ochavas la fiesta
De su hijo y su amor
Con placer.
FLE. Amandria, por vida vuestra
Que lo busquéis'y llamaldo.
AMA. Sí, señora.
FLE. Y si os hiciere muestra
De poca gana, dejaldo
Por ahora.
AMANDRIA.
Dice la señora Infanta
Que holgará de (e ver
Trabajar.
D.üu.No será su gana tanta
Cuanto será mi placer
De le agradar.
AMA.Sabéis sembrar toda suerte?
Ü.Ou.Señora, soy singular
Hortelano
Mas esta tierra es tan fuerte,
Que pienso que el trabajar
Será en vano.
Cavaré de corazón,
DAS TRAGICOMEDIAS. 215

Y regaré con mis ojos


Lo sembrado;
No cansará mi pasión,
Porque mis tristes enojos
Son de grado.
AMA. Señora, por mi salud
Que yo no puedo entender
Hombre tal.
D.Du.Oh triste íni juventud,
Tú veniste .á mi poder
. Por mi mal.'
FLERIDA.
De qué te quejas? D. DUA. De Dios,
Porque no nos hizo iguales
Los nacidos;'
Y sin. mancilla de nos
Nos dio* ojos corporales
Y sentidos:
Los ojos para mirar;
Sentir para conocer
Lo mejor;
Alina para desear,
Corazón para querer
Su" dolor.
FLERIDA.
Sabes leer y escribir?
D.Du.Señora, no soy acordado
Si lo sé.
FLE. Haste de tornar á ir.
D.Du.Si me prendió mi cuidado,
Adó iré?
CON. Señora, hace gran siesta:.
216 L1VRO III.

Coma Vuesa Alteza de esta


Fruta mia,
Pues le place con mi fiesta.
FLE. Amandria, hacedme presta
Agua fría.
Trazem a Flerida agua pola copa encantada, e primeiro
diz Amandria quando a ve':
AMANDRIA.

Qué copa tan singular!


Vuesa es esta? CON. Sí, señora
Rosa mía.
AMA. Dios os la deje lograr.
CON. Mi hijo la trujo ahora
De Turquía.
FLE. Oh qué copa tan hermosa!
Tal joya cuya será ?
D.Du.Vuesa, señora;
Y no es tan preciosa
Como es la A7oluntad
Que la dora.
FLERIDA.
Donde la hubiste, Julián?
D.Du.En unas luchas reales
La gané.
FLE. Quiérola, y pagártelahan.
D.Du.Si fuesen pagas iguales
A mi fe!.
( Br.líf F l e r i d a . )

FLE. Oh qué agua tan sabrosa!


Toda se me aposentó
Nel corazón;
Y la copa muy graciosa.
DAS TRAGICOMEDIAS 2Í?

Oh! Dios libre á quien la dio


De pasión.
D. DUARDOS.
Voy, señora, á trabajar,
Dios sabe cuan trabajado.
FLE. Mucho mejor empleado
Te debieras emplear.
Tu figura
En tal hábito y tonsura
Causa pesar en te viendo.
D.Uu.Pues aun quedo debiendo
Loores á la ventura.
FLERIDA.
NO fuera mejor que fueras
Á lo menos escudero?
D.Du.Oh, señora, ansí me quiero
Hombre de bajas maneras:
Que el estado
No es bien aventurado,
Que el preció está en la persona.
ART. Señores, es hora de nona,
Y de os ir á vueso estrado.
FLERIDA.
Quédate á Dios, Julián.
D.Du.Yo, señora, no me quedo;
También vó.
Los cuidados quedarán
Pero yo quedar no puedo:
Tal esto.
FI.K. Adonde le quieres i r ?
No te v7ayas por tu vida:
Tien sociego.
218 LIVRO III.

Si te habías de partir,
Para, que era tu venida
É irte luego ?
Si Julián se partiese,
Por causa de nuestra vega
Pesarmehia,
Como se mucho perdiera.
ART. Si conmigo se aconseja,
No se iría. (^«o-se.)
Depois* de idas diz Juliao a >D. Duardos.
JULIAO.
Queréis ora que os diga?
Hermano, muy bien fiareis.
Que está noche no cavéis,
Ni os deis tanta fatiga.
Ceñaremos,
Y antes que nos echemos,
Tomaremos colación.
D.Du.Ni yo ni mi corazón
No cumple que reposemos.
Hora es que os acogais.
Voy á cavar mi riqueza;
No que descubra tristeza
Los secretos de mis ais.
Soliloquio segundo de
D. DUARDOS.
Oh floresta de dolores,
Arboles dulces, floridos,
Inmortales,
Secáredes vuesas flores,
Si tuviérades sentidos
• Humanales.
DAS TRAGICOMEDIAS. 219

Que partiéndose de aqui


Quien hace tan soberana
Mi tristura,
Vos, de mancilla de mí,
EstuviéráHes mañana
Sin verdura.
Pues acuérdesete, Amor,
Qué recuerdes mi señora
Que se acuerde
Que no duerme mi dolor,
Ni soledad sola un hora
Se ine pierde.
Amor, Amor, mas te pido,
Que cuando ya bien despierto
La verás,
Que le digas al oido:
Señora, la vuestra huerta! —
Y no mas.
Porque .amor yo quiero ver,
Pues que Dios eres llamado
Divinal,
Si tu divjnal poder
Hará subir en brocado
Este sayal;
Que para seres loado,
Á milagros te esperamos:
Que lo igual
Ya sentí se está acabado.
*
Por lo imposible andamos
No por al.
Alvorada, á li adoro,
O mañana, a ti loamos
220 LIVRO III.

De alegría.
Quiero lleA'ar mas tesoro
Y contentar á mis amos
Que es de dia.
Vai-se D. Duardos, e vem Flerida descobrindo a Arlada
o amor que tem a D. Duardos sem saber que era aquelle,
e diz:
FLERIDA.
O Arfada mi amiga,
Llave de mi corazón,
Tal ine hallo,
Que no sé como os diga
Ni calle tanta pasión,
Como callo.
Deciros quiero mi vida:
No, que de tal desvarío
Digo nada.
Mas es una alma perdida,
Que habla en el cuerpo mío
Ya finada.
Bien os podéis santiguar
De mí, que soy atentada
Del amor,
Y amor en tal lugar,
Que no oso decir nada
De dolor.
Esconjuradme y saberes
De esta ánima, que os digo,
Ya difunta,
Quien era, y cuya es;
Dirá que del enemigo
Toda junta.
DAS TRAGICOMEDIAS. 221

ART. NO entiendo á Vuesa Alteza.


FLE. Ni yo quisiera entender
A Julián.
ART. Jesús! Y vuesa grandeza,
Vueso imperio y merecer,
Qué le dirán?
, FLERIDA.
Mas qué haré? AnT. Qué liareis?
Tenéis Príncipe en Ungría
Y en Francia,
Que vos muy bien merecéis,
Y Príncipe en Normandía,
Que es ganancia.
Tenéis Príncipe en Romanos,
Don Duardos en Inglaterra,
Gran señor:
Y todos en vuestras manos.
FLE. Julián me da la guerra
Por amor.
Esta noche lo aseché,
Y dijo que es caballero
Y no hortelano.
Sabed del, por vuestra fe,
Que hombre es; que creer no quiero
Que es villano.
Vem Amandria com as Donzellas músicas, e diz:
AMANDRIA.
La Emperatriz, señora,
Vuesa madre, va á cazar:
Envíaos á perguntar
Si iréis á cazar ahora,
O si holgáis mas nel pomar.
222 LIVRO III

FLE.. No es razón,
Que está en muda mi halcón,
Y el azor desvelado,
Y mas ¡do el mi amado
Hermano Primalion.
Vem Constanga Roiz, e diz, chorando, a Flerida:
- CONSTANZA.
Ha hi azúcar rosado,
Señora, en vuesa casa?
FLE. Para qué?
CON. Mi hijo está maltratado,
Que el corazón se le abraza.
FLE. NO lo sé.
CON. DOS veces se ha amortecido.
ART. S Í lo apalpa la tierra!.
AMA. Quien guardó ganado en sierra,
En el poblado es -perdido.
CONSTANZA.
Es mi hijo muy sesudo,
Nueso Señor me lo guarde:
Suspira de tarde en tarde,
Pero quéjase á menudo
Que el ánima se le arde.
FLE. Qué será?
CON. Señora, no sé que ha;
Sus lágrimas son iguales
A perlas orientales:
Tan gruesas salen de allá.
Vem D. Duardos com sua enchada, e diz:
D. DUARDOS.
Madre, donde iré cavar?
Que no puedo estar parado,
DAS TRAGICOMEDIAS. 223

Ni socicgo:
No se entienda descansar
En mí, porque descansando
Muero luego.
CON. Mas dejad, hijo, la azada,
Y mirad estas doncellas
Que aqui veis.
Requebrad os con Arlada,
Y hablad con todas-ellas,
Y holgareis.
FLERIDA.
Vamos pasar los calores
•'Debajo del naranjal.
D.üu.Señora, ahí es natural,
•Caerá flor "en las flores.
FLE. De manera
Que siempre tienes ligera-
lia respuesta^ enamorada.
No os digo yo, Arlada,
Que va honda esta ribera?
ART. Señora, yo estoy espantada.
FLERIDA.
Tañed vuestros instrumentos,
Que pensativa me siento,
Y de un solo pensamiento
Nacen muchos pensamientos
Sin ningún contentamiento.
Y o so'specho
En el centro de mi pecho,
Y mi corazón sospecha
Que esta cosa va derecha
Para; yo perder derecho.
224 LIVRO III.

Tocao as Damas seus instrumentos, e diz


ARTADA.
Señora, qué cantaremos?
FLE. Julián lo dirá presto.
D.Du.Señora, cantad aquesto:
"Oh mi pasión dolorosa,
Aun que penes no te quejes,
Ni te acabes ni me dejes.
"Dos mil suspiros envío,
Y doblados pensamientos,
Que me trayan mas tormentos
Al triste corazón mío.
Pues amor que es señorío,
Te manda que no me dejes,
No te acabes ni me dejes."
FLERIDA.
Mas cantad esta canción:
"Quien pone su afición
Do ningún remedio.espera,
No se queje porque muera."
D.Du.Mas podéis muy bien cantar:
"Aunque no espero gosár
Galardón de mi servir,
No me entiendo arrepentir."
Canino esta cantiga, e acabada, diz
D. DUARDOS.
No mas por amor de Dios,
Que yo ine siento espirar.
O señoras,
Quien fuese esclavo de vos!
ART. Señora, para mas holgar
No son horas.
DAS TRAGICOMEDIAS. 225

AMA. La música debe ser


La madre de la tristeza.
FLE. Oh cuitada!
Quien me tornase á nacer,
Pues ine tiene la ventura
Condenada.
Holgaré de oir cantar:
"Sí eres para librar
Mi corazón de fadigas,
Ay por Dios tú me lo digas."
D.Du.Por deshecha cantaran:
"El galgo y el gavilán
No se matan por la prea,
Sino porque es su ralea."
FLE. Á Dios, á Dios, Julián,
Esta huerta te encomiendo
Por tu fe.
D.Du.Mis ojos la mirarán,
Mas suspirando y geiniendo
lia veré.
Indo-se Flerida com suas Damas chorando, diz
A R T ADA.
Como vais ansí, señora?
FLE. NO sé; llóranme los ojos
De contino,
Y también mi alma llora,
Y son tantos mis enojos,
Que me fino.
Vendo D. Duardos a pena de Flerida, diz:
D. DUARDOS.
Oh mi ansia peligrosa,
Dolor que no tiene medio,
1 5
Vol. II.
226 LIVRO III.

Pues busqué
Medecina provechosa,
Y con el mismo remedio
Me maté.
Que si Flerida es herida
De tal dolor como yo
Tan estraño,
Oh cuitada de mi vida!
Mi corazón qué ganó
En tal daño?
Oh Olimba qué heciste,
Que para remediarme
De mil suertes,
Heciste á Flerida triste,
Y verla triste es matarme
De mil muertes.
La copa me echó en medio
De un placer que me desplace
Y descontenta.
Pues ahora qué remedio;
Que lo que ine satisface
Me atormenta.
Oh preciosa diesa mia,
Yo confieso que pequé,
Señora, á ti,
Y por eso el alegría
Del remedio que busqué
Es contra mí.
Conozco que fue traición;
Perdona, rosa del mundo,
Al que pecó,
Porque fue mi corazón
DAS TRAGICOMEDIAS. 227

Que con gran querer profundo


Te erró.
Vem Juliao visitar D. Duardos e vem cantando.
JULIAO.
"Este es el calbi ora bi,
"El calbí sol fa melhorado."
D.Du.Quien tuviese el tu cuidado,
Y no del triste de mí!
JUL. Cómo os va, bon ainí? D. DUA. Cansado.
JUL. Parece" que habéis llorado.
D.üu.Nunca tan triste me vi:
No me hallo en esta tierra,
Y este tesoro ine tiene,
Este solo me da guerra:
Que cuando andaba en la sierra,
Hacía vida solene.
JULIAO.
Pues debéisos de avesar
Á vivir entre la gente,
Y será bien de os casar
En este nuestro lugar
Con una moza valiente.
Quiéroos dar
Moza que tiene un lelar
Y arquibanco de pino,
Afuera que ha de heredar
Una burra y un pomar,
Y un mulato y un molino.
No os burléis, hermano, vos,
Que la pide un calcetero,
Y un curtidor ó dos;
Y por aqui placerá á Dios
15"
228 LIVRO III.

Que saldréis de ser vaquero.


Es moza baja, doblada,
Es morena, pretellona,
Graciosa, tan salada,
Que no la mira persona,
Que no quede enamorada:
E s muchacha que habrá
Treinta años que tiene muelas,
Y según holgada está,
A la voluntad me da
Que escusadas son espuelas.
Juróos, hermano mió,
Que os viene Dios á ver;
Que aunque el padre fue judío
Y su padre y su natío,
Tiene muy bien de comer.
Sí, por Dios que no os miento.
DJJu.Id os, Julián amigo,
No habléis cosa de viento,
Que el cansado pensamiento
Harto mal tiene consigo.
JUL. Constanza Roiz, amor mió,
Ah señora Aida mia!
CON. Qué me queréis, señor inio?
JUL. Que sin vuesa compañía
No tengo placer ni brío.
Estoyle diciendo yo
Que case con Grimanesa,
Pues que tanto bien halló,
Y para nos lo cavó,
Que le demos buena empresa.
CON. Si la moza no rehusa,
DAS TRAGICOMEDIAS. 229

Buen casamiento sería;


Mas es una garatusa,
Que de mil otros se escusa,
Que la piden cada dia.
D. DUARDOS.
Fortuna, duelte de mí.
Y hace cuenta conmigo,
No cobres fama por mí
De cruel, porque está aqui
El mi cruel enemigo.
Ahora vienes con esto,
Cuando yo la muerte pido.
Oh mi Dios señor Cupido,
Loado seas por esto,
Que á tal punto ine has traído.
JULIAO.
Qué decís? D. Duv. Yo me entiendo.
JUL. Anda hombre por honraros,
Y ampararos y obrigaros,
Y aun vos estáis gruñiendo?
Por vida dé esta mi amada,
Que es la moza (y qué tal
Moza!) machuela y doblada.
Pescozo corto, amasada,
Salada como la sal.
Y vos aun rehusáis
De casar con Griinanesa ?
Oh qué moza allí dejais!
D.Du.Ruégoos mucho que os vais,
Iré proseguir mi empresa.
Apartase D. Duardos dos hortelóes, e porque a Princeza
Flerida, quercndo-se apartar desta com>ei-sagao. femendo-sc
230 LIVRO III.

do mal que lhe podia seguir, determinan de nao viráhorht:


sobre este passo, neste terceiro soliloqido D. Duardos diz:
D. DUARDOS.
Tres días ha que no viene;
Guisándome está la muerte
Mi señora.
Señora, quien te detiene?
No sé como estoy sin verle
Sola una hora.
Pues de darme eres servida
Despiadosa batalla
Y triste guerra,
Y mi paz está perdida;
Muerte! llévame á buscalla
So la tierra.
Que cuando amor me prendió,
Dijo: Presto has de morir
Por justicia.
Luego me sentenció
Y aluéngame el vivir
Con malicia.
Dios de amor, no te contentas
Que te quiero dar la vida
Neste dia,
La misma que tú atormentas?
Sácame la dolorida
Alma mia.
Qué mas quieres, o huerta?
Deseo verte arrancada
Donde esto:
Quema tu cerca y tu puerta,
Pues estás tan olvidada
DAS TRAGICOMEDIAS. 231

Como yo.
Tu diosa porqué no viene
Ver que esto suyo se va
AI infierno,
Onde por lu amor peno?
Y la gloria será
Que es eterno.
Apertando o amor a Princeza Flerida, e nño podcndo
cumprir o degredo que em si mesma poz, manda primeiro
Artada, e vendo a D. Duardos vir, diz antre si:
D. DUARDOS.
Aqui do viene Artada
Del mal lo menos es bueno.
Ya siquiera
Mi ánima atribulada
Dirá el mal de que peno
Y la manera;
Que no puede ser tan cruda;
La doncella es bien criada,
Per nivel
Que no sea mas sesuda,
Mas secreta y mas callada
Que cruel.
ARTADA.
Constanza Roiz qué os delta ?
D.Du.Señora, qué le queréis?
ART. Quiero rosas.
D.Du.Ya las cogeré sin ella:
De mí no las tomareis?
ART. Cuantas cosas
Quereisme hacer entender?
Quien sois, y lo que buscáis
232 LIVRO III.

Por aqui?
D.Du.Y la que os manda eso saber
Porqué no le perguntaís
Qué es de mí?
Y porqué se ausentó
De dar vista al triste ciego
Estrangero,
Que su alteza cegó?
Y ciego caí en tal fuego
En que muero.
No hay mas piedad ni ley
Que matarme en tierras strañas
Sin ventura?
O Flerida! memento mei,
Que se gastan mis entrañas
Con tristura.
ARTADA.
Como señora tan alta
Cabe ei1 vueso corazón?
D.Du.Nel alma está
Toda sin ninguna falta,
Y en el alma la pasión
Que me da:
Porque el triste corazón
Está ocupado con fuego
Y con fe,
Con suspiros, con razón
Con amores, con ser ciego:
Y esto sé.
Pues do cabrá mi alegría?
Oh mis dolores profundos!
Ay de mí!
DAS TRAGICOMEDIAS. 233

Qué haré, soledad mía?


O señora de mil mundos,
Que es de ti?
ART. Algo debéis descansar
En habíanles con Arlada,
Su querida.
Ü.Du.Porqué no viene á holgar
Ha tres días? ART. De enojada
Y arrepentida.
Llorando le oí decir
Que ha de mandar quemar
Luego la huerta,
Y no ha aqui de venir,
Á ver si puede olvidar
Esta puerta.
D.Du.No verná por vuesa fe?
ART. NO, hasta ser sabidora
Quien sois vos.
D.Du.Señora, eso para qué?
Soy suyo, ella es mi señora
Y mí Dios.
ARTADA.
Ya Flerida es sabidor
Que sois grande caballero,
Y mas barrunta
Que seréis grande señor.
D.Du.Quien tiene amor verdadero
No pergunta
Ni por alto, ni por bajo,
Ni igual ni mediano.
Sepa pues
Que el amor que aqui me trajo,
234 LIVRO III.

Aunque yo fuese villano,


El no lo es.
ARTADA.
Eso queréis vos que baste
Para tan alta Princesa
Y de tal ley ?
Antes que mas ruegos gaste,
Descubrid á aquella díesa
Si sois rey.
D.Du.Qué merced me haría ella,
Si yo fuese su igual?
Sin mas glosa,
Flaqueza se es perdella
Como díesa imperial
Milagrosa.
Para hacer merced se vela?
Para piedad se atalaya
Tal señora?
Para qué busca cautela
Con el triste que desmaya
Cada hora?
Y porqué, señora, me deshace
Y piensa ser yo el señor
Que decís vos,
Sino porque no me hace
De nada por su loor,
Pues es Dios?
Que se me pone en olvido
Por nacer bajo vasallo
Y no señor,
Será correr al corrido,
Y al Moro muerto matallo,
DAS TRAGICOMEDIAS. 235

Que es peor.
AnT. El diablo os trujo acá,
Que esas palabras no son
De villano;
No sé porque os queda allá,
Quien sois, nese corazón
Inhumano.
Voyme y no sé qué diga.
D.Du.Decid que no sé quien só,
Ni qué digo,
Ni qué haga ni qué siga.
Ni sé si soy hombre yo,
Ni estoy conmigo.
Decible que no tengo nombre,
Que el suyo me lo ha quitado
Y consumido;
Y decid que no soy hombre,
Y, si hombre, desventurado
Y destruido.
Soy quien anda y no se muda,
Soy quien calla y siempre grita
Sin sociego;
Soy quien vive en muerte cruda,
Soy quien arde y no se quita
De su fuego,
Soy quien corre y está en cadena,
Soy quien vuela y no se aleja
Del amor,
Soy quien placer ha por pena,
Soy quien pena y no se aqueja
Del dolor.
Y decílde que, si yo soy rey,
236 LIVRO III.

Suspiros son mis reinados


Triunfales;
Y si soy de baja ley,
Basta seren mis cuidados
Muy Reales.
ART. El diablo que lo lleve,
Al diablo que lo doy:
Tan dulce hombre,
El que á tanto se atreve,
Alto es, si en mi estoy,
El su nombre.
Tengo de contar arreo
Á Flerida su pasión del
Que encobria:
Y lo que dice lo creo;
Ella no lo ha de crer
Todavía.
Chega onde Flerida está, c diz
Señora con este termo
Que hizo en apartarse
De la huerta,
Julián de amor enfermo
Determinó declararse;
Y vengo muerta.
Cuanto habló se redunda
Que por vos es hortelano,
Y no reposa.
FLE. Yo no sé en que se funda.
ART. Señora, no es villano,
Mas gran cosa.
FLE. Oh triste! dijéraos ora
Quien es, porque esto sabido,
DAS TRAGICOMEDIAS. 237

Terna medio.
ART. NO dice mas, mi señora,
Sino que es hombre perdido
Sin remedio.
Mas, señora, vaya allá
Sola vuesa Señoría,
Y espere
Si le declarará,
O con que nueva osadía
La requiere.
FLE. SÍ yo hallo que de hecho
Me habla claros amores,
Yo me fundo
Que es ansí como sospecho
Ser príncipe de los mayores
Que hay en el mundo.
Entrando Flerida so polo pomar da horta, vai dizendo:
FLERIDA.
Cuan alegres y contentos
Estes árboles están!
, En esto veo
Que no son graves tormentos
Los que sufre Julián
Con deseo;
Que en la cámara adó esto,
Veo llorar las figuras
De los paños
Del dolor que siento yo,
Y aqui crecen las verduras
Con sus daños.
Y mis jardines tejidos
Con seda de oro tirado
238 LIVRO III.

Se amustiaron,
Porque mis tristes gemidos,
Teñidos de mi cuidado
Los tocaron.
É yo veo aqui las flores
Y las aguas perenales,
Y lo al,
Tan agenas de dolores,
Como yo llena de males,
Por ini mal.
D. DUARDOS.
No sé que viene hablando
La mayor díesa del cielo
Entre sí:
Si mal me viene rogando,
Ya los males son consuelo
Para mí;
Si ruega á Dios que ine dé muerte,
Nadie tiene en mí poder,
Sino ella.
Y dichosa fue mi suerte,
Pues muerte no puede haber
Sino della.
FLERIDA.
Julián, vé tú ahora,
Y cógeme una manzana.
D.Du.Lo que yo digo;
Discordia queréis, señora.
Oh ini guerrera Troyana,
Paz conmigo.
La manzana que queréis,
Aunque vos la merecistes,
DAS TRAGICOMEDIAS. 239

Vida mía,
Es discordia que traéis,
Con que ya me despedistes
De alegría.
FLERIDA.
Qué hablas? estás durmiendo?
Sueñas en la Troya ahora?
D.Du.Mas despierto
El sueño de vuestro olvido,
Con que estos dias, señora,
Me habéis muerto.
FLE. Si supiese bien de cierto
Que eso me dices velando,
Matarme hia.
D.Du.Yo no hago desconcierto
En andaros contemplando
Noche y dia.
Diesa mia, no pequé
En adoraros, señora,
La hermosura,
Como contra ley ni fe
Va aquel que os adora
Por ventura.
Adonde estuvo escondida
Vuesa Alteza, pues que sabe
Mi pasión?
Que piedad merecida
En tales señoras cabe
De razón.
FLERIDA.
Piedad tengo de ti,
Que tu mal para sanar
240 LIVRO III.

No ha hi cura.
D.Du.Porqué, señora? FLE. Porque oí
Que no se puede curar
La locura.
D.Du.Pues qué haré, perdido el seso,
Sin tener en tierra agena
Cura en mí?
Pues pesad injusto peso,
Que por A7OS, reina serena,
Lo perdí.
Y perdí el alma mía,
Si de perder yo ventura
Sois servida,
Perdí de ser quien solía
Por la mayor hermosura
De esta Aida.
FLE. Quien solías tú de s e r ?
D.Du.De mozo guardé ganado
Y araba;
Esto sé yo bien hacer:
Después dejé el arado
Y trasquilaba.
Después estuve á soldada,
Y acarreaba harina
De un molino.
FLE. Paréceme á mí, Artada,
Que este caso no camina
Buen camino.
D.Du.Yo lo veo, alma mia,
Que es camino de dolor
Y de pesar.
FLE. Adonde hallaste osadía?
DAS TRAGICOMEDIAS. 241

D.Du.En el templo del Amor


Sobre el altar.
FLERIDA.
Luego bien sospecho yo
Que no llega ahí villano.
D.Du.Oh mi Dios!
No queráis saber quien só:
Sed vos Roma, yo Trajano
Para vos.
Sed para mí Constantino,
Aquel noble Emperador
Me sed, Señora,
E yo la moza del molino,
La que él hizo por amor
Emperadora.
Oh milagrosa señora,
Oh milagrosa Princesa
Divinal,
No matéis quien os adora,
Que ninguna santa diesa
Hace mal.
FLE. Vamonos de aqui, Arlada,
De esta huerta sin consuelo
Para nos.
De fuego seas quemada,
Y sea,rayo del cíelo,
Plega á Dios!
O hombre, no me dirás,
Pues que me quieres servir,
Quien tú eres?
Dímelo á mí, no mas,
Yo sola te lo quiero oir.
Vul. 11.
10
242 LIVRO III.

Si quisieres.
D.Du.Pláceme, con tal cautela,
Por hacer hechos discretos,
Que estemos
Sin sol, luna, ni candela.
Que descubran los secretos
Que hacemos.
Será á horas y en lugar
Que estén solas las estrellas
De presente,
lias árboles sin lunar,
Y Artada allí con ellas,
Sin mas gente.
Allí os descubriré
Quien soy, y seréis servida,
Pues queréis
No creer quien yo soy: por fe
Que por ATOS tomé esta vida
Que me A7eis.
Y si tenéis desconsuelo,
Pensando que para enojaros
Esto quiero,
Juro á los Dioses del cielo
Que solamente en miraros
Tiemblo y muero.
ART. Señor, mudad el pellejo,
Id á vestir vuesos paños
Naturales.
Ella haberá su consejo,
Que estos pasos traen daños
Inmortales.
Vai-se D. Duardos, e vño Artada e Herida fallando, e diz
DAS TRAGICOMEDIAS. 243

ARTADA.
Señora, qué será aqui,
Si este hombre es caballero
Y no al?
Para qué es, triste de mí,
Dar por la vaca el vaquero
Principal ?
De otra parte qué ha de hacer,
Salvo si es Príncipe él
De Normandía?
FLE. Y quien se había de atrever
A mí, si no fuese aquel
O su valía?
ARTADA.
Paréceme mal, señora,
Quereros hablar á escuras.
FLE. Y á mí.
ART. YO duermo luego en la hora
Que anochece, y sus dulzuras
Bien las vi.
FLE. Qué remedio, que yo me fino
Por saber quien es este hombre?
Soy perdida;
Ardo en fuego de confino,
Con amias que no han nombre
Ni medida.
Camilote emquanto se estas cousas passño, sobre o reto de
Maimonda contra Flerida, matón D. Robusto e outros ca-
vaüeiros; sabcndo isto D. Duardos, armou-se e foi-se ao
campo e malou Camilote, e Amandria entra dizendo:
AMANDRIA.
Camilote es muerto ya.
10*
244 LIVRO III.

FLE. De verdad? AMA. S Í , por cierto.


FLE. Quien lo mató?
AMA. Ninguno lo sabe allá;
Maimonda que lo vio muerto.
Luego ahuyó.
Vay tras della el caballero.
FLE. No es él de nuesa corte?
AMA Para Mayo;
Es un Príncipe estrangero;
Tan presto le dio la muerto
Como un rayo.
FLERIDA.
De qué estatura será?
AMA. Del cuerpo de Julián,
Y ansí hermoso,
Algunos dicen allá
Que es el caballero del can,
El famoso.
FLE. Asentaos y holguemos;
Cantad algo, mis doncellas
Todas vos,
Que cedo al son de los remos
Fenecerán las querellas
De los dos.
Cántao e langem, e acabando, diz
ARTADA.
Acuérdeseos, señora, que el sol es partido
Dentro horizonte, y es noche cerrada,
lia luna ahora es toda menguada,
Y solas estrellas quedan, el partido.
Eis que parece la estrella Polas
Con la bucina sicarrogiando.
DAS TRAGICOMEDIAS. 245

FLK. En eso estaba Artada pensando?


Dejadnos vosotras resar aqui solas.
ARTADA.
Qué caso sería y buena fortuna
Matar Julián aquel fiero hombre!
FLE. Que no es Julián, Artada, su nombre,
Y él lo mató sin duda ninguna:
Y este me afirmo ser mor caballero
De toda la Grecia y de todo el mundo;
Y cada vez mas este caso es profundo,
Que ahora le quiero mas que de primero.
Vem D. Duardos vestido de Principe, com a grinalda
de Maimonda, c diz:
D. DUARDOS.
Oh cuan poquito servicio
Es poner por vos la vida!
Cuan pequeño!
Que no es gran heneficio
Pagar la deuda devida
A su dueño.
Por vos se debe morir
Á vos se debe el orar,
Alta Infanta,
Que sois diesa del vivir,
Y señora del matar,
Siendo santa.
Á vos, señora, son devidas
Flores de mas altas rosas
Y peligro,
Aunque estas fueran cogidas
En las sierras mas hermosas
De este siglo.
246 LIVRO III.

Y aquel que las cogió


Se puso en harta ventura
Con serpientes:
El por Maimonda murió,
É yo por la hermosura
De las gentes.
FLERIDA.
Artada, qué le diré?
ART. Que viene muy gentil hombro.
FLE. Oh quien supiese su nombre!
Oh Dios! porqué no lo sé!
D.Du.Pero quiso A7uesa Alteza
Que deba besar la mano
De mi seda
Y no de vuesa grandeza:
Pues si yo me soy villano,
Ahí se queda.
Yo á Aros amo, y no mas
Por Princesa y por ventura:
No, cuitado,
Que mucho queda detrás
De vuesa gran hermosura
Vueso estado.
Por mí, por mí, y no por vos,
Y no por serdes tan alta
Fui captivo.
Dadme la vida, mi Dios;
Que el hombre adó no hay falta,
Bueno es vivo.
FLERIDA.
Sea de que suerte sea,
Allegada es vuesa teína
DAS TRAGICOMEDIAS. 247

Al engaño.
Queréis vencer mi pelea,
Y no queréis que me tema
De mi daño?
Queréis que pierda el amor
A mi padre y mi señora
Y al sociego,
Y á mi fama y á mi loor,
Y á mi bondad, que se desdora
En este fuego?
D. DUARDOS.
Xo; debéis considerar
Que el lugar y las estrellas
Y el modo,
Y el amor y el callar
Mis dolores, mis querellas.
Vencen todo.
FLE. E U todo cuanto deseo
En iodo os hallo duro
Hasta aqui:
Todo siento, todo veo,
Y lodo se hace escuro
Para mí.
D. DUARDOS.
Si al menor rincón llegáis
De ini ardiente corazón,
Encenderéis
Candela con que veáis
Que os pido galardón
Que me debéis.
FLE. Que será de mí, Artada,
Pues que amar y resistir
248 LIVRO 111.

Es mi pasión?
ART. Señora, estoy espantada,
Y cantando quiero decir
La conclusión.
"AI Amor y á la Fortuna
"No hay defensión ninguna."
FLERIDA.
Aunque nunca se halló
Al Amor y á la Fortuna
Defensión,
Debiera haber, triste yo!
Para mi siquiera alguna
De razón.
O Ventura diesa mia,
Refugio de los humanos
Soberano,
Tú sola tomo por guia,
Y entregóme á tus manos
Por mi mano.
PATRAO.
Señores, es ya plena mar,
Y son horas naturales
De partir,
Por que puedan bien nadar
Las diez galeras reales
Y salir;
Y las otras medianas,
Y las fustas y galeras
Y las naves,
Están y vienen lozanas,
Espalmadas y ligeras
Como aves.
DAS TRAGICOMEDIAS. 249

Parta vuesa señoría,


Pues la noche hace escura
Y es hora.
D.Du.Qué decís, señora mía?
FLE. Ya me di á la Ventura
Mi señora;
Y pues sabe este pomar
Y la huerta mi dolor
Tan profundo,
Quiero que sepa la mar
Que el amor es el señor
De este inundo.
ARTADA.
Por memoria de tal tranco
Y tan terrible partida
Venturosa,
Cantemos nuevo romance
A la nueva despedida
Peligrosa.
Romance.
En el mes era de Abril,
De Mayo antes un dia,
Cuando lirios y rosas
Muestran mas su alegría.
En la noche mas serena
Que el cielo hacer podia,
Cuando la hermosa Infanta
Flerida ya se partía:
En la huerta de su padre
A los árboles decía:
— Quedaos á Dios, mis flores,
Mi gloria que ser solía:
250 LIVRO III.

Voyme á tierras estrangeras.


Pues Ventura allá me guía.
Si mi padre me buscare,
Que grande bien ine quería,
Digan que Amor me lleva,
Que no fue la culpa mia:
Tal tema tomó conmigo,
Que me venció su porfía:
Triste no sé adó vó,
Ni nadie me lo decía.
ART. Allí habla Don Duardos.
Ü.Du.No lloréis mí alegría,
Que en los reinos de Inglaterra
Mas claras aguas había,
Y mas hermosos jardines,
Y vuesos, señora mia.
Terneis trecientas doncellas
De alta genealogía;
De plata son los palacios
Para vuesa señoría,
De esmeraldas y jacintos
De ora fino de Turquía,
Con letreros esmaltados
Que cuentan la vida mia.
Cuentan los AÍVOS dolores
Que me distes aquel dia
Cuando con Primalion
Fuertemente combatía:
Señora, vos me mataste*,
Que yo á él no lo temía.
ART. SUS lágrimas consolaba
Flerida que esto oía;
DAS TRAGICOMEDIAS. 251

Fuéronse á las galeras


Que Don Duardos tenia.
Cincuenta eran por cuenta,
Todas van en compañía:
Al son de sus dulces reinos
La Princesa se adormía
En brazos de Don Duardos,
Que bien le pertenecía.
Sepan cuantos son nacidos
Aquesta sentencia mía:
Que contra la muerte y amor
Nadie no tiene valía.
PATRÁO.
Lo misino iremos cantando
Por esa mar adelante
A las sirenas rogando,
Y Vuestra Alteza mandando,
Que en la mar siempre se cante.
Este romance se disse representado. o depois tornado a
cantar por despedida.
F I G l R A S.
AMADIS.
GALAOR ,
FLORESTAN seus ¡mulos.
GANDALIN )
ELREI LISUARTE.
D. DORIN.
ORÍ ANA.
MABUJA.
CORISANDA.
DINAMARCA.
HUM CORREIO.
HUM ANNÁO. ;
HUM ERMITAO.

Esta tragicomedia representan - se ao muito excellente


Principe e christianissimo Reí D. Joño, o terceiro deste
nome, em a sua cidade d'Evora, era de 1533.
AMADIS DE GALLA.

Determinado Amadis de ir buscar suas aventuras, de-


sejando alcangar gloriosa fama, comega dizendo a seus irmños,
Galaor, Florestan e Gandalin:
AMADIS.
Vos sabréis, Don Galaor,
Y Don Florestan, hermanos,
Que el verdadero loor
Es aquel que sin temor
Se alcanza por las manos;
Y el general morir
Es covardía esperallo,
Y lindeza aventurallo;
Porque hallo
Que en la fama está el vivir.
Y pues A7emos de que suerte
lia honra tanto se aína,
Sigamos tan claro nuerte.
No estimando la muerte
Por ganar vida á la fama.
GAN. Amadis, de esa color
Es el paño en que me fundo,
Porque un pequeño honor
De faina y su resplandor
Es mejor
Que todo el oro del mundo.
254 LIVRO III.

Y mas ya está ordenado


' El compás al carpintero,
Al labrador el arado,
Y al pastor el cayado,
Las armas al caballero,
Al fuerte ser A7enturoso,
Mucha honra al esforzado,
Y al guerrero mañoso
Ser dichoso,
Y al covarde desdichado.
FLORESTAN.
Habla bien y muy profundo.
Yo, hermano Amadis, digo
Que con ánimo facundo
Quiero ir á ver él mundo
Que guerreros tíen consigo,
Digo de los caballeros;
Y no estoy mas esperando,
Porque los que son guerreras
Verdaderos
No descansan descansando.
Y aun nos obligan á esto
Que somos sin división
Hijos del Padre Perion
De Gaula, que es padre nuestro
De alta generación;
Porque somos obligados
A cometer cosas duras
Y casos desesperados;
Que de los altos estado»
Se esperan altas venturas.
DAS TRAGICOMEDIAS. 255

GANDALIN.
Yo también allá iré
Á seguir lo que decís;
No quedaré; y el porqué,
Por ver lo que hará Amadis,
Y saber lo que haré.
Quiero deprender la guerra,
Que como estáis platicando,
El nuestro cuerpo se encierra
Sola tierra,
Y la fama anda volando.
AMADIS.
No me convida la gana
De la faina, aunque es harto,
Sino que siervo á Oriana,
Hermosura soberana,
En cuyo nombre me parto
En dos partes y no en una:
La del alma doy á ella,
La del cuerpo á la Fortuna,
Y á la Luna,
Porque la hizo tan bella.
Si el peligro me convida
Que de las guerras rehuya,
Diré: Oh esclarecida,
Cuan segura está la vida
Que se defiende por tuya!
Voy me á la Gran Bretaña
Al muy soberbio Dardan,
Que ni Francia ni Alemana,
Ni caballeros de España,
Ningunos vida le han.
256 LIVRO III.

Él me tiene amenazado,
Solo de locura Arana;
Mas el triste está engañado,
Que, acordarme de Oriana,
Tengo mi juego ganado.
Vayamos, mas no se espere,
Cada uno por su Aia.
GAL. Yo me A7oy á la Turquía.
FLO. Yo adonde Dios quisiere
Y fuere la dicha inia.
Vao-se estas figuras e vem a Corle delliei Lisuarte,
s. a Rainha Brisena, Oriana, Mabilia, Corisanda,
Dinamarca, Hurganda e D. Dorin; e diz EIRei \
LISUARTE.
Don Dorin, tengo enviado
Mis correos á saber
Daqui á cuanto ha de ser
La guerra que en mi reinado
Siete reís ine han de hacer.
D.üo.Señor, nada se os pene.
Lis. El correo Arbindieta
No sé en que se detiene.
D.üo.Ya me parece que viene,
Que yo siento la corneta.
Entra o Correio tocando a corneta, e diz
LISUARTE.
En buenora seas llegado;
Mas tardaste todavía.
COR. Pues, Señor, yo no dormía;
Barruntaron que era espía,
Y estuve medio ahorcado.
Lis. Dime si vienen ó cuando,
DAS TRAGICOMEDIAS. 257

Sin temor ni intervalo,


Cuenta lo bueno y lo malo,
No ine mientas lisongeando,
Que aunque es dulce es muy remalo.
La verdad sí todavía,
Aunque amargue y dé pesar;
Que mentir por agradar
De contino da lugar
A cosas que yo no querría.
COR. Siete Reis muy principales,
Cada uno de su tierra,
Con trompetas y atabales
Y estandartes reales,
Contra vos pregonan guerra.
Mas bravos que bravos toros,
Mas soberbios que leones,
Mas feroces que dragones,
Y traen solo de Moros
Ciento y treinta mil peones.
Ansí, señor, que yo dígoos
Que son muchos y guerreros,
Y habéis menester dineros,
Y bombardas, y amigos,
Y armas y caballeros.
— Pues que queréis la verdad.
LISUARTE.
Has oído en esas tierras
NueAras del Doncel del mar?
COR. E S cosa para espantar
Sus desafíos y guerras,
Si las supiese contar.
Lis. Cuéntalas sin mas tardar,
Vol. II. f
258 LIVRO III.

Las mayores á lo menos.


Con. Yo no quería enhadar.
Lis. Oh cuan dulce es escuchar
Buenas nuevas de los buenos!
CORREIO.
Después que mató á Dardan,
Muy mal trató Arcalaus,
Y Angriote d'Estravaus,
Que lo tenia el Soldán
En la ínsula llamada
La Firme, mató doscientos,
Quebró los encantamientos
Con la furia de su espada,
Que fuerza los elementos.
Y mató los guardadores
Del arco fuerte encantado
De los firmes amadores,
Adonde fue laureado
Sobre todos los mayores.
Si A'uestra Alteza tuviese
El Doncel del mar consigo,
Que todo el mundo veniese,
Y lidiando se hundiese,
No sentiríades peligro.
Levantase Oriana e Mabilia, e diz
ORIANA.
En cuanto se platicar
En cosas que no entiendo,
Qué tengo de estar haciendo?
Voyme al tanque del pomar
Por ver cuantos peces tengo.
Lis. No holgáis de oir nombrar
DAS TRAGICOMEDIAS. 259

Aquel tan buen caballero,


Vuestro criado primero?
ORÍ. Mas estimo ver nadar
IÍOS peces de mi vivero.
Vai-se Oriana com Mabilia ao tanque, e apartándose
Mabilia com Oriana, diz
ORIANA.
Haced señas, os ruego,
Al correo que es discreto,
Que se venga al pomar luego,
Señas por modo encubierto;
Pero adonde arde el fuego
No sé como esté secreto.
Aceña Mabilia ao Correio e diz EIRei
LISUARTE.
Daqui á cuanto se decia
Que esos reís han de venir?
COR. Tanta gente se hacía,
Que aun no se sabe el dia
Ni el mes que han de venir.
Lis. No está en la mucha gente
La victoria de razón,
Sino en la devoción,
Y resar continuamente
Las horas de la pasión.
CORREIO.
Señor, no os atengáis á eso;
Sabed que en fin de razones
Para el perro que es travieso
Bueno palo, valiente y grueso,
Y no curéis de oraciones.
Lis. A lodo se dará medio;
17*
260 LIVRO III.

Que aunque es recio el intervalo,


No puede ser mal tan malo
Que no tenga algún remedio.
Diz Oriana ao Correio:
ORIANA.
Viste el Doncel del mar?
Con. Sí, señora. ORÍ. Qué hacía?
COR. Hacía cuanto queria.
ORÍ. Dejemos lo pelear,
Cuéntame lo que decia.
COR. Porque es del inundo solo uno,
Señora, hacía y callaba,
Porque aquel que mucho habla
No tiene hecho ninguno.
Cuando la lid comenzaba,
Muy encendido en amor,
No sé porque suspiraba,
Que no era de temor
El mal de que se quejaba:
Y acabada la victoria,
En lugar de dar loores
A Dios que le dio tal gloria,
Decia: Amores, amores,
Memoria de mi memoria!
Y por cimera traía
Una O y el mundo en ella.
Oh cuan bien que parecía!
Y su letrero decia:
Todo es poco para ella.
ORÍ. Por quien tomó esa O?
Será alguna cosa Arana?
COR. La O creo que la tomó
DAS TRAGICOMEDIAS. 261

Por el nombre de Oriana,


El inundo no lo entiendo yo.
MABILIA.
Pues sufre por vos dolor,
Qué haréis á sus dolores?
Que os piden embajadores
De los Romanos Señor
Para ol su Emperador;
Y su sacra Magestad
Os ama cosa sin cuento,
Y es tan alta dignidad,
Que es justa conformidad
A vuestro merecimiento.
ORIANA.
El Doncel del mar, hermana,
Contino vivió conmigo,
Si amores trae consigo,
En su seso está Oriana,
Que yo quiérale como amigo
Y no mas. Mas cierto es
Que muchas veces me hallo
Tocada de no sé que es,
Pero es dolor que callo.
Cuando ahora se partió
A buscar sus aventuras,
Quedé como quien quedó
En un desierto á escuras,
Adó nunca amaneció.
Esto no será de amor,
Sino de buena amistad.
MAB. Amistad que da dolor
262 LIVRO III.

Es amor tan de verdad,


Que no puede ser mayor.
Amadis ama y es amado.
ORÍ. Ay, por Dios que no lo sienta.
MAR. Si el querer es concertado.
Como puede ser negado
Que el concierto no consienta?
ORÍ. Mabilia, tales conciertos
Dios no los quiera por Cierto,
Pues saben AÍVOS y muertos
Que entre concierto y concierto
Nacen muchos desconciertos.
Empero mucho querría
Que lo envíes á llamar,
Y no de la parte mia,
Que no tome fantasía
Que muero por le hablar.
MAR. Correo, cumple que Araís
Por las puestas muy ligero,
Y dad aquel caballero
Esta carta que lleváis,
Y sed nos buen mensagero.
Y luego sé que vendrá
De noche secretamente,
Y hallarnos ha en fronte
En la feniestra que está
Nel pomar cabe la fuente. (.s»i,, o („, m „.j
ORÍ. lia ínsula firme adó está
Es muy lejos de aquí?
MAB. Trecientas leguas habrá.
ORÍ. Que son tros mil para mí.
Diz D. Dorin a EIRei Lisuarte
DAS TRAGICOMEDIAS. 263

D. DORIN.
Señor, ya bien poderán
Cenar Vuestras Magestades.
Lis. No sé las cuantas serán.
D.Do.Nunca ciertas horas dan
Relojes de las ciudades.
Y es perdido en su poder
Las ruedas y la campana.
Pero á mi parecer
Buen relox es del comer
Cuando lo templa la gana.
Levantase EIRei Lisuarte e toda a sua Corle, e váosc
com música; e vem Amadis e entrando no pomar, onde a
carta de Mabilia lhe disse que viesse, diz:
AMADIS.
Si Orfeo por Proserpúia
Tan dulce gloria sentió
Cuando nel infierno entró,
En esta huerta divina
Cuanto mas sentiré yo?
Mas él fue á buscar la vida,
Yo la muerte sin placer;
El cantando en la venida.
Yo llorando la partida,
Porque sé cual ha de ser.
Que Oriana por mi ventura
Ordenó en su consistorio
Que fuese su hermosura
Casa de mi purgatorio,
Paraíso de mi tristura,
Do paso la vida estrecha,
Donde doy gritos al cíelo.
264 LIVRO III.

Donde nadie me aprovecha,


Donde me crece sospecha,
Y nunca falta recelo.
No sé que horas serán;
lia carta dice á la una.
Sí no lo estorA7a fortuna,
Mabilia y ella vendrán
Antes que salga la luna.
Si me dejere bravezas,
Esquivanzas, desfavores
Son unas ciertas certezas;
Porque el principio de amores
Es comienzo de tristeza.
Vem Mabilia fallar a Amadis.
MABILIA.
Señor, antes del hablar
Le pido dos mil perdones
Porque os envié á llamar
Sin dejarme de acordar
De vuesas ocupaciones.
AMA. NO hay perdón que pedir,
Que la carta que fue allá,
Por vos misma la escribir,
En dicha hubieron venir
Los montes de Armenia acá.
Y el papel que allá tenia
Me acordó la hermosura
Que á menudo ver solia,
Y la tinta la tristura
Que tiene el alma mia.
31AB. Yo, señor, no sé latín.
AMA. Ni yo oso hablar romance.
DAS TRAGICOMEDIAS. 265

Ni mi mal fio de mí,


Sino que me quedo ansí,
Y mis esperanzas vanse.
Mis males no sé decillos,
Mis bienes veo difuntos,
Son mis tormentos sofrillos
Como cuando diez martillos
Una fragoa fieren juntos.
En un solo pensamiento
Tengo yo dos mil heridas;
Mi corazón no lo siento;
Cada A7ez que me lamiento
Yo solo lloro dos vidas.
MABILIA.
Si eso son quejas de amor,
Como me han parecido,
Nunca fue tal amador
Ni A7encedor tan vencido,
Si es verdad vuestro clamor.
AMA. Esas dudas son peores,
Eso no creer es peor.
Oh mis angustias mayores!
Que entre dolor y dolor
Me nacen otros dolores.
Pues mi vida está en perdella,
Por demás son mis gemidos,
Por demás es mi querella;
Que la salud de los perdidos
Es no esperar por ella.
Oh Mabilia! ardo en fuego,
Y si no creéis mi penar,
Como triste hereje ciego
266 LIVRO III.

De todo placer reniego,


Y por dios tomo el pesar.
Oh quien me dará razón,
Pues fuego de amor atizo
Como me crece afección;
Si do vive mi servicio
Allí muere el galardón!
MAB. Responda quien os entendiere,
Que eso no sé que será;
Empero no desespere.
AMA. El que no tiene que espere
De qué desesperará?
Que es tan alto el merecer
Del lugar donde me di,
Que visto lo que ha de ser,
No pienso en mi padecer,
Sino eu que será de mí.
Mi dolencia es ya tamaña,
Que el deseo no desea;
Y aunque esperanza ine daña,
La vida es la que me engaña:
Que fenecida se vea!
MABILIA.
Decidme quien ella es,
Diros he lo que será.
AMA. Señora, no perguutós,
Porque en mi vida veres
La muerte y quien me la da.
MAB. Pues á modo de hablar,
Aunque esa fuese Oriana,
Que os soberana sin par,
DAS TRAGICOMEDIAS. 267

A lo que ventura gana


Os debéis de aventurar.
AMADIS.
No sé el desventurado
De que sirve aventurarse,
Ni á sí mismo amarse
El que vive desamado;
Y no puede remediarse
Mis males, dulce señora,
Que en mi ánima están:
Ternia por bien profundo,
Si pensase estar un hora
Donde mis suspiros van
Cada momento del inundo.
Vem Oriana e diz:
ORIANA.
Mabilia, con quien habláis?
MAB. Con el Doncel de la mar;
Yo lo envié á llamar,
Y vino" porque sepáis
Que anda á vuestro mandar'
ORÍ. Y ahora qué le pedís?
MAB. No sino que le pidáis.
ORÍ. NO entiendo que decís.
MAB. Señora, yon no sentís
Las batallas que esperáis?
No oís tes el correo?
ORIANA.
Ya, ya no se me acordaba.
MAR. Pues en peligro vos veo.
ORÍ. El diablo no es tan feo
Como Apeles lo pintaba.
268 LIVRO 111.

MAB. Seiscientos mil de caballo,


Y trecientos mil peones,
Siete reís como leones,
Catad, señora, que hallo
Que son menester A7arones.
Y porque el Doncel del mar
Nunca Dios crió tal hombre.
AMA. Señora, ya mudé el nombre;
Llamóme mar en amar,
Y Amadis por sobrenombre.
ORÍ. Dende cuando se mudó
Vueso nombre que solía?
AMA. Cuando vi que asi crecía
El amor que comenzó
En la muy tierna edad mia.
MABILIA.
Pues amor tal pena os da,
Apartad os del y della.
AMA. Oh señora, quien podrá,
Que amor que nel alma está
No sale sin salir ella?
MAB. Ora pues, ámaos á vos
Por flor de los esforzados,
Pues que tal os hizo Dios,
Que no hay de vos dos,
Ni lo vieron los pasados.
AMADIS.
Mayor triunfo en porfía
Se debe y muy mas facundo
A la que tiene osadía
Para vencer cadal<lía
Las hermosuras del inundo.
DAS TRAGICOMEDIAS. 269

ORÍ. Quien es ella? ansí gocéis,


Pídoos que ine lo digáis.
AMA. Señora, es la que miráis
Cuando al espejo os veis
Tal, que á todos despreciáis.
Ella está adonde estáis;
Yo en esta noche escura,
Adó esto está tristura
Muy leda, porque la dais
Al triste que no fien cura.
El sentimiento de mí
Entre tormento y tormento,
Para siempre lo perdí,
Aunque bien sé que lo di
A A'iieso merecimiento.
Y pues con lloros me atizo
El mal que mi mal me hace,
Socorredme si os place,
Porque esperanza me hizo,
Y ella misma me deshace.
ORÍ- ESO pasa de hardideza;
Amadis, mas cortesía.
AMA. No me culpe Vuesa Alteza,
Porque en su gentileza
Está la desculpa mia.
Y está ini libertad,
Y está el fuego en que esto:
Esperanza ine mató,
Porque Aruesa piedad
Murió primero que yo.
ORÍ. Vuesos leales sentidos
Eran limpios, muy suaA'es,
270 LIVRO III.

Y pues estos son perdidos,


Voy á cerrar mis oidos
Debajo de siete llaves.
AMADrs.
Oh dulce amor verdadero!
No os Arais de esa manera,
Porque el querer que os quiero
No es porque yo espero
Lo que de ATOS no se espera.
ORÍ. Mabilia, muy bien sería
Que nos Abamos de aqui luego.
MAB. Vayase su señoría,
Y repose en su sociego,
Sin pesar ni fantasía.
AMADIS.
r
Pues ansí os A ais de nos
Tan cruel y tan sañosa,
Pídoos, señora, por Dios,
Que rogueis por mí á vos,
Cuando os viéredes piadosa.
Oni. Ansí que todo empeora.
MAB. NO OS congojéis, señora.
AMA. NO tengo razón, señora,
Porque quien su mal adora
Devoto es de su dolor. (v«i-se ownn».)
Conviene que se contente
Mi vida con su pesar,
Pues mi señora consiente
Que se acabe de matar
Lo que amor dejó doliente.
Pensando ganar me viene
La pérdida conocida,
DAS TRAGICOMEDIAS. 271

Porque yo juego la vida


Que tengo con quien ine tiene
La ganancia consumida.
MABILIA.
Yo os diré lo que supiere,
Con tal qne guardéis en ATOS
Esto que ahora os dijere.
Señor, Oriana os quiere,
Que ansí me quisiese Dios;
Y aun que el amor la fatiga,
Su prudencia, su bondad,
Su fama, su honestidad
No consiento que os lo diga,
Mas yo sé su voluntad.
Ella os envió á llamar
Por hablaros y oiros;
Y ahora fuese á llorar
Porque os no osa mostrar
Sus amores y suspiros.
AMA. Pues porqué su disfavor
Da conmigo en el abismo?
MAB. Porque es muy cuerda, señor.
AMA. Harto poco es el amor
Que puede consigo mismo.
MABILIA.
Oh señor, dejad el dudar,
Creed lo que os digo yo,
Que no és poco su amar;
Que amor de alto lugar
Nunca pequeño se vio.
Y como digo, aunque pene,
Disimula sus enojos,
272 LIVRO III.

Como á su estado conviene;


Pero dende niña os tiene
En las niñas de sus ojos.
Ansí gocéis vuesa fama,
Señor, que os acordéis
Della y otra no améis,
Pues ella tanto os ama:
Calad que la perderéis.
AMA. Voyme con esta pasión.
Encomiéndoos mis dolores,
Y cuanto á esa razón,
No puede en ini corazón
Estar diversos amores. (vni-se.)
Torna Oriana e diz:
ORIANA.
Luego Amadis se fue?
MAR. Señora, partido es ya.
ORÍ. Sabéis cuando A7olverá?
MAB.No lo siento ni lo sé,
Pero muy sentido va.
Vuesa Alteza bien comprende
Esta culpa en que ella jace,
Y bien sé que se arrepiende.
ORÍ. Creed que donde amor entiende
Ninguno sabe que hace.
Pero si jo lo ofendí,
Contra mí misma pequé;
Si lo reprendí, no erré.
Sí me fui, bien lo sentí
Y con lágrimas pagué.
Mas él habló amores lales
Y palabras tan odiosas,
DAS TRAGICOMEDIAS. 273

Que pasaban de curiosas,


Y los oidos reales
No han de oir todas cosas.
MABILIA.
Señora, yo le descubrí
Vueso amor y mi secreto,
Y lo mas que le pedí
Que su amor fuese secreto;
Y dijo que será ansí,
Sin querer otra ninguna
Sino á Vuesa Magestad,
Y porque sois sola una,
No hay viento ni fortuna
Que mude su voluntad.
Vem o Anuo de Amadis, e diz
ANAO.
Todo el hombre gentil dispuesto
Como yo, Ríos sea loado,
Ha de ser tan confiado,
Que amores ni nada desto
No lo tenga en un cornado:
Ni Princesa, ni Infanta,
Porque la gran perfección
Que está en mi disposición,
Que sea una dama santa,
Me terna santa afición.
Sí alguien me perguntare
A qué vengo, ó de que parte,
Cierto es vengo á buscar
La corte del Rey Lisuarte,
Adonde espero medrar.
Porque andando con mi señor
Vol. II. 18
274 LIVRO III.

Amadis por esas tierras,


Tan poco con Galaor,
Cada vez medro peor
Con sus peligrosas guerras,
Y acá espero servir
Á Mabilia de amores;
Porque yo, á Dios loores,
Bien pueden decir por mí.
Que nací para faA7ores.
ORÍ. El Enano es aquel
Que Amadis HeA7ó de aqui.
MAB. Aquel me parece á mí.
ORÍ. Cumple que sepamos del
Como lo dejó ansí. —
Amadis adó quedó?
ANA. Con la hermosa infanta niña
Que hizo reina onsobradisa,
De la qual se enamoró,
Y aun trac su devisa.
Ella le dio un caballo
Y una espada; y el porqué,
Es porque le dio la fe
De su caballero y vasallo;
Y á la ínsula se fue.
Ella quedó muy llorosa,
Y á él suspirar le vi.
ORÍ. Como se llama ella? di.
A \ v. Briolanja la hermosa,
Niña hecha de un rubí.
ORÍ. Anda, vete al aposienlo,
Después volverás acá.
Oh triste mi pensamiento!
DAS TRAGICOMEDIAS. 275

MAB. Todo aquello será viento,


Vuesa* Alteza lo A7erá.
ORIANA.
Tal consuelo es mal doblado.
Id os, dejadme adó esto,
Que sola yo y mi cuidado
Tememos, mi mal guardado,
Pues para mí se guardó:
Y sola conmigo ansí,
Pues mi suerte está perdida,
Contaré á mí de mí
Cuantas muertes descubrí
Pensando hallar la vida. (v.,¡ se M..b;u«.)
Oh como se saberia
Si esta nueva es verdadera?
Quizá no, porque él daría
lia fe ansí por cortesía,
Y no será valedera. —
Será; quedos hombres son
Namorados de ligero. —
Quizá no, que es caballero,
Hijo del Rey Perion,
Y debe ser verdadero.
Mas temo que así será,
Porque no hay verdad segura:
Y lo que rige ventura,
De ventura firme está,
Porque ha hi desaventura.
Quizá no será A7erdad,
Porque el amor verdadero
El mas firme es el primero,

18
276 LIVRO III

Y dende su mocedad
Siempre fue mi caballero.
De otra parte bien mirado,
Dice verdad el Enano,
Porque el corazón humano
Cuan improviso es mudado
Y cuan pocas veces sano!
Y quizá no; porque la conA'ersacion,
De luengo tiempo usitada,
No es tan desacordada
Que olvide sin razón
Toda la vida pasada.
Mas ay de mí,
Que creo que será ansí!
El Enano dice verdá,
Porque nunca ausencia vi
Que el amor turase allá.
Ejemplo es verdadero
Que ausencia aparta amor.
Oh traidor caballero!
Caballero traidor!
Quien supiera esto primero!
Y ansí le escriviré
Que hizo como villano,
Y nunca mas lo veré;
Yr sepultaré su fe
Dentro del mar océano,
Y el amor que le tenia
Verdadero y muy sereno,
Y toda el afición mia
Sepultaré neste dia
En el mar inedioterreno.
DAS TRAGICOMEDIAS. 277

Don Dorin, por gentileza,


Que vais á la ínsula Firme,
Adó eslá aquel sin firmeza,
Y dalde esta carta criine
Sellada de mi crimeza.
No le hagáis, acatamiento,
Aunque es Infante, en que cabe;
Porque Príncipe mudable
Es torre sin firmamíento,
Que no puede ser loable.
Representase como D. Dorin deo a carta a Amadis, o
qual a vem lendo e diz:
AMADIS.
La Princesa preciosa
Os dio esta carta, Dorin?
D.Do.ElIa misma. AMA. Para mí?
D.Do.Sí, señor, y tan sañosa.
Que nunca tal la sentí.
AMA. Oh Amadis destruido!
Desamado que haré,
Pues que serviendo gané
Con que perdí lo servido,
Sin perder nunca la fe.
Y pues la muerte á quien sigo
Está muerta para mí,
Voy, señora, sin abrigo
Hacer vida no contigo,
Ni conmigo, ni sin ti.
El mundo quiero dcjallo.
Pues me dejó su señora;
El vivir quiero mudallo.
278 LIVRO III.

Mis armas y mi caballo


Despido luego en la hora.
Tú ini espada guarnecida
De tan hermosas hazañas.
En fuego seas hundida,
Como arden mis entrañas
Consumiéndome la vida.
Y tú, puñal esmaltado,
Fuerte y favorecido
De aventuras peligrosas,
De rayo seas quebrado,
En mil pedazos partido,
Como ahora eslan mis cosas.
Y tú mi ehno lustrante,
Con tu cimera hermosa,
Que por Oriana emprendí,
Plega á Dios que te quebrante
Alguna peña rabiosa
Que del cielo caya en ti.
Y tú arnés y piaslron,
Nel mar Indico cayais
En lo mas hondo de allí,
Donde sin causa y razón
Tales fortunas hayáis
Como acá dejais á mí.
Quijotes, manoplas, grovas.
Mis armas nunca vencidas,
Que os bajan siendas cuevas.
Y de vos vayan las nuevas
Que de mí tengo sabidas.
D.Do.Si yo, señor, tal supiera,
No veniera por mi via
DAS TRAGICOMEDIAS. 279

Nueva tan triste y tan fiera:


Mas hice lo que no debiera
Por hacer lo que debia.
En 11 -a hit m Er mita o, c diz:
ERMITAO.
Loado sea Jesu Cristo.
AMA. Para siempre, padre honrado.
ERM. Dios os dé el paraíso,
Que asegun que tengo visto,
Harto estáis apasionado.
AMA. O padre, cuan abrigado
En la peña pobre y mansa
Estáis horro y descansado
De tormenta que no cansa,
Y deste mundo cansado!
Y pues mi mal entendéis,
Pídoos que ine aconsejáis
En este yermo adó estáis,
En el cual no oís • ni veis,
Ni tenéis ni descansáis.
ERM. Y queréis ser ermitaño?
AMA. Padre, en ese bien me fundo,
Porque el mundo en que me daño
Nunca fue para mí mundo,
Sino una mar de engaño.
ERMITAO.
Señor, no os vais engañar,
Que la vida solitaria
Ha hi lanío que penar,
Tantos mundos de pesar.
Que os es poco necesaria.
AMA. Porqué? qué razón me dais
280 LIVRO III.

Para eso que" decís ?


Pues que nunca os nainoraís,
De qué pasión os quejáis
En él yermo adó vivís?
ERMITAO.
Porque aqui la voluntad
Está presa, está captiva
De la pobre soledad
Adó Auesa mocedad
Es imposible que viva.
Ni nuestra vida ociosa
No tiene ociosos tiempos,
Mas contino es trabajosa,
Perseguida y muy penosa
De infinitos pensamientos.
Unos vienen, otros van,
Otros llegan, otros parlen;
Los tristes contino están,
Los alegres no estaran
Un momento, aunque los maten.
Los enemigos del alma
Son contra la penitencia,
Mancillan la conciencia,
Y dan tormentos sin calma
A la hermosa inocencia.
No tenéis á quien decillo,
Y sí ló* decís á vos,
Vos mismo ahuís de oillo:
Esto para vos sofríllo
No se puede hacer sin Dios.
AMA. Eso no me ha de penar,
Porque os doy, padre, la IV,
DAS TRAGICOMEDIAS. 281

Que busco tiempo y lugar


En que bien pueda pensar
Neste mal que no pensé.
Este mundo no lo quiero,
El pobre hábito quería;
Será el vestido prostrero,
Pues que no vino primero
La prostrera muerte mia.
ERM. Ora, pues ansí queréis,
Quizá Dios será con vos.
De estos mis hábitos dos
Este, señor, vestiréis
Con la bendición de Dios.
Depois de vestido Amadis no hábito, olhando^sc a si
mcsmo diz:
AMADIS.
Ya no me escrívirás, Oriana,
Que á Mabilia conquisto,
Mas dejo, por Jesu Cristo
A ti mas linda Cristiana
Que las Cristianas han visto;
Y dejo, pues me dejaste,
Mi padre y madre y hermanos,
Y el mundo en que me criaste,
Y mataste con tus manos,
Cuando tal carta enviaste.
D. DORIN.
Escrívale vuestra Mercé,
Y responda á su escritura.
AMA. Yo qué le responderé ?
Escrívale su poca fe,
Y mi mucha desA7entura,
282 LIVRO III.

Que ya veis que soy pasado


Á la vida de los muertos;
Muertos no han de escrivir.
Ni el que es tan desterrado,
Tan desierto en los desiertos
No tiene mas que decir.
D. DORIN.
Muy espantado me vó
De estas cosas como van,
Y ansí las contaré yo,
Y bien sé que amargarán
w

A quien la carta escrívio.


AMA. Adó quedo encubrid vros,
Que decillo es cosa mala;
No lo sepa sino Dios,
Pues ya soy Beltenebrós,
Y no Amadis dé Gaula.
D. DORIN.
Muy ageno de placeres,
Yo me pasmo de mil suertes
Cuan fuertes son los poderos
Que Dios dio á las mugeres
Sobre los hombres mas fuertes.
O Amadis, que os hecistes
Esfuerzo de los esfuerzos,
Cuantas glorias merecístes!
Y el Amor á quien servistes
Os paga con los desiertos.
Que adó vuesos pies llegaban.
Si ciudades combatían,
Caballeros desmayaban,
Las fortalezas temblaban
DAS TRAGICOMEDIAS. 283

Y los muros se abatían.


Y sola una muger hermosa
Os hizo encerrar á vos
Y v;uesa fuerza espantosa
En una ermita tenebrosa,
Llamado Beltenebrós. d>"i")
ERMITAO.
Padre nuevo, en las afrentas
De los penosos tormentos,
Resa porque no los sientas;
Que los muchos pensamientos
Piden infinitas cuentas.
Dellas pide Satanás,
Dellas los vanos sentidos:
Con las unas llorarás,
Y con las otras darás
Dos mil suspiros perdidos.
Las otras cuentas escuras
De las meinbranzas pasadas,
Que de pasar son muy duras.
Serán blandas y seguras
Con estas cuentas resadas.
AMA. Escusado fuera lomar
Estas cuentas que no cuento;
Que tantas tengo de dar,
Que me quedan por contar.
Porque sin cuenta las cuento.
Y las que dará Oriana
A Dios, que sabe lo cierto
Serán cuentas sin concierto,
Porque yo no sé que gana
Quien su siervo deja muerto.
284 LIVRO III.

ERM. Este es otro atavío


Que pertenece al vivir;
Perdonad, hermano inio,
Porque habéis de ¡r á pedir
Por la calina y por el frió.
AMADIS.
Aunque mas pena me fuese,
Haré cuanto fuere en ini;
Pero yo nunca pedí
Cosa en que dicha tuviese,
Ni dicha nunca la vi.
ERM. Pues vé á pedir, amigo,
Que el vivir todo es fatiga.
AMA. Iréis vos, padre, conmigo,
Y me diréis como diga.
ERM. Que me place de ir contigo. »
Representase como D:'Dorin chegou a Oriana com a
resposta de Amadis.
OniANA.
Vos distes mi carta allá «
Al infiel caballero?
D.Do.Antes es mas verdadero
Que otro nunca será,
Mas creistes de ligero.
Y porque hay lenguas ruines,
A los príncipes aviso
Que en todo miren los fines,
Que no escuchen los malsines
Para los creer de improviso.
ORIANA.
Eso porqué lo decís?
D.üo.Porquc el Enano mentíó,
DAS TRAGICOMEDIAS. 285

Y vos, señora, dormís,


Y vueso siervo Amadis
Haced cuenta que murió.
MAB. Señora, yo no decia
Que no había de ser nada,
Y hasta ser certificada
No tomase fantasía,
Para bien aconsejada?
ORIANA.
No hay consejo en bien querer.
MAR. Para qué es tomar á pecho
Lo que no se debe creer?
ORÍ. Todo mal que puede ser
No es mucho dallo por hecho.
No hay cosa tan celosa
Como el verdadero amor,
Que celo de ninguna cosa
Hace el mundo de dolor.
En sospechas se recrea,
Antojar es su benesse,
Siempre jamas devanea,
Lo que no es, ere que lo sea,
Y lo que es, que nunca fuese.
MAB. De que la carta leyó
Qué os digo en la verdad?
D.Do.Lo que hizo perguntad;
Que luego se desarmó,
Con plantos sin piedad.
Y dejó el mundo luego,
Y fuese hacer ermitaño,
Con lágrimas sin sociego
Diciendo: Oh mundo de engaño!
286 LIVRO III.

Ardido seas en fuego!


En hábito de burel
Pide por esos casales.
No parece mas aquel,
Que yo al ángel Gabriel.
Tales fueron sus pesares.
No os poderé contar
Cuan tristes pasos locó;
Porque tocándolos yo,
Vos veríades llorar
Hombre que nunca lloró.
Si Amadis viérades vos
De lloros tan amarillo,
Llamado Beltenebrós,
Pedir por amor de Dios,
No pudiérades sufrillo.
ORIANA.
Agradézcoos, Dorin,
Esto que por mí hecístes,
Aunque las nuevas son tristes;
Pero por amor de mí
Que no digáis adó fuistes.
Mabilia, ini corazón
E s fuera de su lugar,
Y estoy en condición
De me llevar á la mar
Y echarme en un hondón.
MABILIA.
No llore, señora, y crea
Que esto terna algún medio,
Y es gran razón que vea
Que el mal, por fuerte que sea,
DAS TRAGICOMEDIAS. 287

Llorallo no os remedio.
ORÍ. Lloro su mal y mi mal,
Mas el suyo es que mas siento;
Esto mata el sufrimiento
Y da vida natural
A la muerte que lamento.
Que la mia sola mia
Yo misma me la pasara;
Mas la suya me es tan cara,
Que eso seso, hermana mia,
Pluguiera á Dios que lo hallara.
MAB. Remedio, señora! ORÍ. Qué tal?
MAB. Muy bueno, señora mia.
Envíele su señoría
Una carta cordeal,
Namorada en demasía.
Y en persona vaya allá
Dinamarca, que es secreta,
Y doncella muy discreta,
Tal que só que sanará
La llaga de esta saeta.
Este consejo os dó
Que se haga luego en verde;
Luego, luego, digo yo,
Porque el tiempo nunca usó
De ayudar á quien lo pierde.
ORIANA.
Vamos eso á concertar;
Mas asegun son mis penas,
Debía irme enterrar
Debajo de las arenas
Que están nel hondón del mar.
288 LIVRO III

Vao-se Oriana e Mabilia escrever a carta, e vem Amadis


e o Ermitño de pedir, e diz o
ERMITAO.
La limosna sea cerrada,
Porque hay dos mil ratones
En esta ermita cuitada.
AMA. YO la porné tan guardada
Como guardo mis pasiones.
ERM. Y con esta escoba, hermano,
Barreréis esta posada. —
Porque alzáis ansí la mano?
AMA. Perdonad, padre ermitaño,
Que yo pensé que era espada.
Corisanda andando a buscar a D. Florestan em sua
nao, aporlott naquelle lugar com suas donzellas músicas, e
diz ao Ermitao:
CORISANDA.
Padre, yo soy Corisanda,
CSi me ya nombrar oistes)
Trayo con dolores tristes
La mas enferma demanda
Que nel inundo nunca vistes.
Determiné de salir
De la nao con tiempo fuerte,
Y quería aqui dormir,
Porque me veo morir
De muy enamorada muerte.
ERMITAO.
Pues de amor muerta venís,
Algún gran señor de salva
Debe ser por quien morís.
COR. Por Don Florestan de Gaula,
DAS TRAGICOMEDIAS. 289

El hermano de Amadis.
Dadme aqui, padres, posada,
Á mí é á estas doncellas,
Que si no fuera por ellas,
Ya yo fuera sepultada,
Y no puedo vivir sin ellas.
Tal música Dios les dio,
Y mi tristeza es de suerte,
Que me libran de la muerte
Que mi vida me buscó,
Estando salva en la corte.
Que cuando mis pensamientos
Ahogan mi corazón,
Tocando sus instrumentos,
Y cantando una canción,
Adormecen mis tormentos.
ERMITAO.
Dos casitas y mas no
Hay en esta pobre ermita;
Una en que este padre habita,
lia otra en que yo esto,
Muy estrecha y muy chiquita.
AMA. Padre, dalde vos la mia,
Que yo nel yermo pasaré;
Repose su señoría,
Que su mal ya lo pasé,
Y aun lo paso cadaldía.
CORISANDA.
Padre, qué nombre tenéis?
AMA. Llamóme Beltenebrós.
Con. Pues ansí me salve Dios
Que Amadis os parecéis:
Vol. 11. 19
290 LIVRO III

Pero no debéis ser vos.


AMA. No sé de tal hombre parte.
COR. Conocéis vos, padre, alguien
En la corte de Lisuarte?
AMA. Mabilia conocí bien,
Y Hurganda y otras de arte.
CORISANDA.
Los hijos del Rey Perion
De Gaula adonde están?
r

AMA. A la Gran Bretaña son,


Asegun las nuevas dan
De Galaor y Florestan.
COR. Y Amadis? AMA. Debe ser muerloT
Partido de la vida humana;
Que yo soñaba esta mañana
Que moría en un desierto,
Y lo mataba Oriana.
CORISANDA.
Oh Florestan, donde estás!
Oh Corisanda adó esto!
Oh nao que conmigo vas,
Adonde te salvarás,
Pues la fortuna só yo!
Oh mis doncellas, pues veis
Tan muerto mi corazón,
Socorred como soléis,
Que en vuesas manos tenéis
Toda mi resurrección.
Cánido as Donzellas de Corisanda, e acabada a música,
apparece Dinamarca, que traz hüa carta de Oriana para
Amadis, e Amadis, vendo-a, diz ao Ermitao:
DAS TRAGICOMEDIAS. 291

AMADIS.
Padre, no puedo pensar
Dinamarca, que acá viene,
Que negocios aqui tiene,
Que ha pasado la mar,
Y punto no se detiene.
DIN. Señor, yo \rengo cansada,
Y cansando descansé,
Pues trabajando cobré
El descanso que buscaba,
Que es hallar vuesa Mercé.
Vengóme á confesar
A vos con firme denuedo,
Que me podéis remediar
lias culpas con que no puedo,
Ni se pueden disculpar.
Apartados Amadis e Dinamarca, ella lhe diz:
DINAMARCA.
Qué se hicieron vuesos primores?
Siendo sabio perenal
Y tan diestro en los amores,
Como discreto en lo al,
Y hacer tan flacos labores!
Oh qué mudar tan errado!
Que aunque ella mostró furor,
Bien sabéis, como avisado,
Que el enojo enamorado
Es crecimiento de amor.
Y pues que tanto sentía
Lo que el Enano contó,
Grande muestra os hacía

19'
292 LIVRO III.

Que tanto mas os quería


Cuanto mas bravo escrivió.
Si sin razón ya sabéis
Que se había de saber,
La mentira no tiene pies;
Porque aquello que no es,
Muy presto vuelve á no ser.
Ansí que vos desculpado
Con la verdad bien sabida,
No pusiérades la vida
En tan pobre despoblado,
Y Oriana fuera servida.
Y porque me crea, señor,
Por A7erdad cuanto le digo,
Trayo esta carta conmigo
Con este sello de amor,
Que Oriana tien consigo.
Le Amadis a carta, e lida, diz
AMADIS.
Todo lo quiero dejar,
Pues lo manda mi señora.
Vos, padre, debéis holgar
Por no os importunar
Con suspiros cada hora.
Vos señora Corisanda,
Conmigo quiero que A7ais
Mas leda de lo que estáis,
Que yo porné vuesa demanda
Como la AOS deseáis.
FIGURAS.
A CIDADE DE LISBOA.
PRINCIPE DE NORMANDIA.
PAGEM DO PRINCIPE.
AMOR.
HUM FRADE DOUDO.
HUM PASTOR.
HUM NEGRO.
HUM VELHO.
DOUS FIDALGOS.
HUM PARVO.

A tragicomedia seguinte he chamada Nao d'Amores. \


Hepresentouse ao muito poderoso Rei D. Joño o terceiro, d \
entrada da esclarecida e mui ca.tholica Rainha D. Cathcrina
nossa Senhora em a cidade de Lisboa, era de 1527- }
NAO D' A M O R E S .

Entra a Cidade de Lisboa em figura de prínceza,


com grande apparato de música, e diz, fallando com Suas
Altezas:
LISBOA.
Oh alto pod'roso em grande grandeza,
Meu Rei precioso por graga divina,
De ini apartada por eu nao ser dina,
Por minha mofina se foi Vossa Alteza:
Venhais em tal ponto, em tal dia, em tal hora,
Como aquella em que Déos ¡ncriado
Criou todo o mundo táo bem acabado
Como sera e foi atégora.
Venhais ein lal hora como elle encarnou,
Venhais em tal hora como elle nasceo,
Venhais em tal hora como elle esclarecen
Aquella manhan em que resuscitou.
Oh flor da floresta dos Imperadores,
Preciosa Rainha, venhais em tal hora
Como aquella ein que nossa Senhora
Achou o seu filho entre os Doutores.
Venhais em tal hora como a em que nascéráo
Todas as castas e virgens do ceo;
Venhais em tal hora como Déos recebeo
Na gloria aquelles que a inerecérao;
Venhais em tal hora como Gabriel
Veio á Virgein Nossa Senhora.
DAS TRAGICOMEDIAS. 295

Senhores Infantes, venhais em tal hora


Como Déos veio remir Israel.
Oh tosida corte, formosa, leal,
Dourada, e honrada, de manhas e galas,
Espelho de todas as galas e fallas,
Perfeitos amantes do culto real,
Venhais em tal hora, ¡Ilustres senhores,
Fermosas senhoras, ó Damas muí bellas,
Como aquella em que as estrellas
Foráo creadas e tambem as flores.
Venhais muito embora, meu Rei sabedor.
Venhais muito einbora, Rainha esmerada,
Venhais muito einbora, corte desojada,
Venhais com a bencáo de nosso Senhor.
Eu venho beijar as maos soberanas
De Vossas Altezas, meus Reis soberanos,
Coin tanta vontade, que ha tres mil anuos
Que nunca tal Uve a pessoas humanas.
Poréin eu quizera,
Porque esta vontade vos apparecéra,
Que táo lindas flores vieram por Maio,
Que entáo miabas (oslas poseram desmato
A quem ja vio festas em reinos uiaiores:
Taes festas fizera.
Vem o Pagem do Principe de Normandia e dá o
recado á Cidade.
PAGEM.
Señora Ciudad, un Señor,
Hijo de un Rey de Levanto,
Oyendo de vos loor,
Por esa mar adelante
O» vion á ser Hervidor;
296 LIVRO 111.

Y vino aqui ancorar


En vueso puerto y ribera.
Dice que os quiere hablar,
Y A7uesa señoría quiera
Quererlo ver y escuchar.
Envióme á saber
IÍO que la Señora hacía,
Y cuando lo quiere ver,
Porque dende Normandía
Viene por la conocer.
Lis. Pagem, podeisdhe dizer
Que estou agora occupada
No mais próspero prazer,
Na dita mais acabada
Que me pudera nascer.
E como aqui acabar,
O que nunca acabarei,
Eu lhe irei logo fallar
lia ó chafariz d'EIRei
Quanto elle quizer fallar;
Ou da Torre da varauda,
Ou lá no Caes da inadeira,
E veremos o que manda,
Que do leda e prazenteira
Elle vencerá a demanda.
Vai-se o Pagem com o recado, > a Cidade proscgue
sita falla.
Assi que, inui alta e esclarecida,
Aínda que peste me dé inuita guerra,
Déos seja louvado nos ceos c na Ierra,
Cunheco as causas porque sou ferida.
He que de vicosa,
DAS TRAGICOMEDIAS. «29
«»

De doce, de linda, de mui abondosa,


Se peste nao fosse, todos meus éreos
Nao conheceriáo que hi havia Déos;
Que sería peste muito mais p'rigosa.
Por isso me calo e nao desvario,
Mas antes estimo que Déos he coinigo:
Adoro a elle e recebo o castigo,
Por onde me mostra o seu poderío.
Porque na verdade
Nao me tira nada de minha bondade,
Mas como cidade que quer para si,
Mostra-me a morte mil vezes aqui,
Porque ine nao saia de sua vontade.
Se nao for descortezia
Sera bem que va fallar
Ao Principe de Nonnandia,
E tambem lhe quero ir dar
Conta de minha alegría.
Verei o que lhe aconteceo,
Que nao pode ser venial
O caso que o moveo
Vir-se assi a Portugal,
O que nunca se escreveo.
Vem o Principe com seits qualro Fidalgos,
á Cidade.
PRINCIPE.
Los vientos que me trajeron,
La tierra que os da virtud,
Los cielos que os nobreceron,
Os den tanto de salud
Como de bienes os dieron.
Lis. Senhor, vossa Alteza dá
298 LIVRO III.

0 fruclo segundo a praula.


PRI. Señora, yo vengo acá
Con fatiga y pasión tanta
Cual nunca fue ni será.
Estoy tan enamorado,
Que de fuerte amor me muero:
No soy señor de mi estado,
Mas siervo de lo que quiero,
Captivo de mi cuidado;
Y está tan alta subida
La señora que deseo,
Que ella me tiene la vida
Puesta adonde no la veo,
Y hago cuenta que es perdida.
LISBOA.
Quem he, ou como se chama?
Grande nome deve ter.
PRI. Llámase lucida Faina,
Que dejaría perder
Mil roques por esta Dama,
No tengo en nada la muerte,
No tengo en nada la vida,
No tengo en nada mi suerte,
Y si yo erra esta partida,
No hay acierto que acierte.
LISBOA.
Eu que vos posso fazer?
PRI. Muy mucho, señora mia;
Vos me podéis guarecer;
Y pues Dios os dio alegría,
Dadme vos á mí placer.
Dicenme que para haber
DAS TRAGICOMEDIAS. 299

Esta Fama por quien muero,


Tengo de cobrar primero
La ventura en mi poder
Que pueda hacer lo que quiera.
Y pues todo el trabajar
Es viento sin la ventura,
Quiérame aventurar,
Y matar la desventura
Por las ondas de la mar.
Porque me han dicho, señora,
Que la ventura mas cierta
En una ínsula mora
Solitaria muy desierta,
Hacia do sale el aurora.
Adó hay tantas corrientes
En la mar de que es cercada,
Tormentas, inconA7enientes,
Y tan peligrosa la entrada,
Que las hondas son serpientes.
Y vengóos á suplicar,
Ciudad podrosa y narcisa,
Que vos me queráis prestar
La nao de vuesa devisa,
En que la A7aya á buscar.
Que es nao bien aventurada,
Siempre leal, tan segura,
Que se ine la dais prestada,
Yo cobraré la ventura
Y mi Fama deseada:
Porque nao que descubrió
Tantas ínsulas ¡notas,
Cuantos reinos Dios crió,
300 LIVRO III.

Y desbarató mil flotas,


Esta es la que busco yo.
Prestádmela, mi señora,
No me neguéis la ventura,
Señora, prestadla ora,
Sacadine de la tristura
En que mi deseo mora;
Que los Príncipes floridos
Sin la virtuosa Fama,
Para poco son nacidos.
Por eso ini alma clama,
Incunable los oídos.
Porque si en el mundo hallara
Nao como esta esclarecida,
En que yo me confiara,
Aunque á trueco de la vida,
Por cierto yo la comprara.
Y pues que, señora, A7eis
Que sois la esperanza mia,
Vuesa nao no me neguéis
Por amor de la alegría
Que con la Reina tenéis.
LISBOA.
Pera o que merecéis,
Senhor, pouco me pedís,
Indaque a nao que queréis
Val mais que todo París,
Como vos sei que sabéis.
Poréin eu fóra contente,
Mas essa nao nao he minha,
Porque foi de San Vicente,
DAS TRAGICOMEDIAS. 301

E he d'EIRei e da Rainha,
Cuja eu saín inteiramente.
PRÍNCIPE.
Aunque se diga de plaza,
Y en toda parte suena
Que porfía mata caza,
Algunas Areces no es buena.
No porfío mas pedir
Eso que no podéis dar;
Pero no puedo partir
Sin que por vos pueda hallar
Lo que vengo á descubrir.
Por remedio á mis dolores
Dadme Ucencia entera
Que haga una nao de amores
Aqui en vuesa ribera,
Do se hacen las mejores.
Mis ojos serán maestros,
Mis cuidados carpinteros;
Y porque sean mas diestros,
Yo serraré los maderos,
Los descantos serán vuestros.
LISBOA.
Toda de amores, senhor?
PRI. Toda de amores, señora.
Lis. Pois- que ha de ser d'ainor,
Fazei A7ós muito einbora
Sem receto nem temor.
PRI. Ha de ser desta manera,
Para navegar segura:
La voluntad la madera,
302 LIVRO III.

Y la razón plegadura,
Dorada toda de fuera:
lias estopas de recelos
Hincados de diez en diez,
Y los castillos de celos,
Y la tristeza la pez,
Tanta que cubran los cielos:
El mastel de fe segura,
Y la Arela de esperanza,
La gavia de hermosura,
El traquete de membran/.a.
La mesana de dulzura:
La mesas de guarnición
Serán todas de lindeza,
Plegadas con discreción,
Y la jarcia de firmeza
Sacada del corazón:
Cabrestante de porfías,
Todo de trabajos ínios,
La bomba lágrimas mias,
Los guardines de desvíos
Que tú, Fortuna, desvias.
El aguja el desear,
Y los rumos pensamientos,
El áncora será el callar,
Y los suspiros los vientos,
Y carta de marear
El calabre de temores,
Trincado por mil lugares;
El payol lleno de amores,
Y el convés de pesares,
Las bombardas disfavores.
DAS TRAGICOMEDIAS. 303

El farol será de engaños,


El governalle sospechas,
Y las banderas los daños,
Pintadas todas á trechas
De mis angustiados años.
El estandarte real
Será largo y muy cumplid»,
Todo tardanza mortal,
Sin tener cabo sabido,
Sino el comienzo tal.
Será capitán mayor,
Piloto, maestro, y patrón
Aquel vivo Dios de amor;
La mar será mi pasión,
Y las ondas mi dolor,
Mis ojos los marineros.
Hé aqui la nave acabada,
Y puesta en sus estaleros;
Falta ser'calafetada:
Calafetad, mis obreros.

Foi posta no serño onde esta obra se representou hüa


nao da grandura de hum batel, apparelhada de todo o
neeessario para navegar, e os fidalgos do Principe tirárao
suas capas e giboes, e ficárño ein caigo es e gibóes de brocfldo,
como carafates: os quaes comegárño a carafetar a nao com
escoparos e macanetas douradas, que para isso levavao, ao
som desta cantiga:

"Muy serena está la mar,


"A los remos, reinadores,
"Esta es la nave de amores.
304 LIVRO III.

"Al compás que las sirenas


"Cantarán nuevos cantares,
"Remareis con tristes penas
"Vuesos remos de pesares;
"Teméis suspiros á pares,
" Y á pares los dolores.
"Esta es la nave de amores.
" Y remando atormentados,
"Hallareis otras tormentas
"Con mares desesperados,
•'Y desastradas afrentas;
"Terneis las vidas contenías
"Con los dolores mayores.
"Esta es la nave de amores.
"De reinar y trabajar
"Llevareis el cuerpo muerto,
" Y al cabo del navegar
"Se empieza á perder el puerto.
"Aunque el mal sea tan cierto, *
"A los remos, remadores.
"Esta es la nave de amores."
PRINCIPE.
La nave está muy real,
Y del todo apercebída,
Y el tiempo natural,
Y muy cierta la partida,
El deseo desigual.
Pregonad, Page, sin falla,
Que quien quisiere ventura
Vaya conmigo á buscalla
En esta nave segura,
Adó todo amor se halla.
DAS TRAGICOMEDIAS 305

PAGEM.
Quien quisiere ir á buscar
Ventura, si no la alcanza,
Venga luego á embarcar
Mientra el mar está bonanza
# Y el tiempo da lugar.
PRI. Aqui do viene el Amor,
Dios de la nave y de mí,
Patrón y Capitán mayor.
AMO. Poco estaremos aqui,
Placiendo á nueso Señor.
Suso, nombre de Dios sea,
Comencemos la pasage,
Porque quien pierde marea,
Dicen que pierde viage.
Entra hum Frade dou do, e diz o
PAGEM.
Este fraile que aquí viene
De amores enloqueció;
Maldito el seso se tiene;
En Toledo se curó,
Y ningún remedio liene.
FRADE.
" Que formosa caravela !
"Quem fosse o capitáo della!
"Caravela de Coruche
"Vai por nabos a Pombeiro.
"Quem fosse o capitáo della!
"Huha! Imlia! buha! huha!"
PAG. Ah santo Fray Majadero,
Como cantáis vos tan bajo?
FRA. EU SOU O frade d'Aveiro
Vol. l l . 20
306 LIVRO III.

Que casou ca no Cartaxo


Com a inulher do muleíro;
Depois houve eu meu conselho.
PAGEM.
Entrad, padre, y iréis de popa.
FRA. Nao que busco outro francelho,
Para tomar a cachopa,
Que me mordeo no artelho.
Quando eu vou foliar
De noite á praca do trigo,
Sao os caes tantos comigo,
Que nao me leixáo cantar.
Mocos de dia, caes de noite,
Háo de malar Freí Maríinho.
"Caravela de Lisboa
"Vai por porros a Castella:
"Garrido he o gaviáo,
"Vento bueno nos ha de levar.
"Quem fosse o capitáo della!"
Doudo me chamáo a mi,
Mas nao ja muito poréin;
Nunca táo ma Aida vi
Como os caes de noite tem,
Sempre ladrando per hi
Meao, uieao, meao:
Parecem porcos de ventre.
S'eu tivesse hum pao de pao,
Ou hum pedaco de pao,
Logo eu iría a Alcoentre
Por capitáo desta nao.
PAGEM.
Poderoso Dios de amor,
DAS TRAGICOMEDIAS. 307

Debeísle remediar,
Que este padre era doctor,
Y vos fuístelo matar
De amores de Miraflor.
AMO. Pues como serán sentidos
Mis poderes cuantos son,
Sino en los sabios vencidos?
Los mas sabios mas perdidos,
Como os dirá Salomón.
Y Adán, el mas sabido,
El amor de la muger
Lo paró loco perdido,
Pues que por la complacer,
Hizo lo que habéis oido.
FRA. Pera que he fazer gaiola
De padaco de ceíráo?
Entáo anda gaviáo.
Eu tinha entáo escola,
E nao havia ahí tanto cao.
Rapazes e caes e mocos
Háo de matar Frei Martínho,
Ou roer-me-háo o toutico.
Por isso he bom ter dous pescocos
Como tem Frei Aparico.
Quando dáo pao e tramocos,
Ora vínde á prégacáo.
Antes que fosse Lisboa,
Nem houvesse aqui cidade,
Iáo todos á Trindade,
Com tres caes e hüa furoa,
Cacar á sua vontade.
Víeráo estes roazes,
20*
308 LIVRO III

Cacao tanta rapariga,


E depois caes e rapazes.
O Papa nao os castiga,
Entáo anda gaviáo.
Miraflor tornou-se cao
E eu tomei-a no coló,
E tinha-a no coracao,
Agora está no iniolo
Depenado o seu falcáo.
Por tanto diz o Senhor
Honorate Deo vestro,
Que casada he Miraflor.
Ora solladh'o cabresto,
Que lhe va cantar tenor.
Ora vai
E como eu tirar as pelles
A quinze ou sete rapazes,
Logo a devassa nelles,
Frei Marlinho, ólha o que fazes,
Nao t'embaraces com elles.
Vem hum Pastor Castelhano e diz
PASTOR.
Grande fama va en Castilla
Por las sierras y collados,
Entre hatos y ganados,
Y en las plazas de Sevilla
Y por todos los poblados,
Que en esta noble ciudad
Hicieron ciertos señores
Una nao toda de amores;
Y vengo ver si es verdad
De parte de los pastores.
DAS TRAGICOMEDIAS. 309

Y ansí son informados


Que esta nao de amor segura,
Por eses mares sagrados,
Lleva los desventurados
Adonde está la ventura.
Y porque nuestras zagalas
Repastan en serranía,
Son tan altivas sus galas,
Que nació en hadas malas
Pastor que entre ellas se cria
Cada cual es tan ufana,
Dende que fue desla tierra
La pastora soberana,
La flor de toda la sierra,
Que nadie con ellas gana:
Y ansí hieren tan seguras,
Y ansí niegan la cura,
Que no sé si la ventura
Traerá tales venturas
Que curen (anta tristura.
No aprovecha calzar,
Ni vestir paños lozanos;
Ni vale al hombre peinar,
Y lavar la cara á manos
Con las aguas del llorar.
FnA. Co'as aguas del llorar!
Serra, serra: vae-te ó gado,
O demo te melle nesse cuidado.
Serra, serra, serra, serra.
Terra ahí per esse caminho.
Mocos, caes á batalha,
Entáo dar cm Frei Maiiinlw.
310 LIVRO III.

Dar, dar, dar, malha, malha,


Como em centeio de palha.
Huha! valha-me Déos.
PRINCIPE.
Pastores herís, Amor?
AMO. Sí, mas chica es su herida.
PAS. Oh pesar no de la vida!
Que mal puede ser mayor,
Que el alma de amor perdida?
Señor, si tu excelencia
Es Dios de amor sempiterno,
Yo te digo en tu presencia
Que no tienes mas conciencia
Que el diablo del infierno.
Y sí yo fuese aquel señor,
Que sabe cual me has parado,
Yo te hiciera pastor
Como yo tan namorado,
Porque vieses mi dolor.
FRA. Bem diz o parvo echáo,
Have tua gaita á máo,
E vae-te ao meu ferrador
Que te ferré o gavíáo.
Ora vae.
AMOR.
Pastor, qué te hice yo,
Que estás hereje conmigo?
PAS. Pese á mi alma contigo,
Que mi vida ya murió,
Y tú mismo eres testigo.
Porque á un pastor cuitado,
Que quien quiera lo desecha,
DAS TRAGICOMEDIAS. 311

Desnudo, desventurado,
Lastimaste con tu frecha
Por en cima del ganado.
Y pues de amor me herías
Por Serena tanto bella,
Hirieras también á ella
De piedad de andas mías,
Pues tantas sufro por ella.
Cuantas veces puedo vella
Me quejo á Dios del cielo,
De vai é de tí é della.
FIIA. Dá ó demo essa cachopa.
Asscnta-te na portella
E vae correndo tras ella
Com hüa rocada d'estopa.
Entáo cajadadas nella,
E nao lhe assobieis mais.
AMOR.
Mas tiene de que quejar
Este padre gran doctor,
Que es loco solo de amor,
Sin lo poderen salvar
Sus letras al pecador.
PAS. Mas su amor fue venial,
Pues es livre de su mano:
Mas reniego el amor tal
Que hace el seso mas sano,
Porque sienta mas el mal.
Vem hum Negro de Ben i, s diz:
NEGRO.
Quere boso que me bac
Buscar o poco de venturo.
312 LIVRO III

Que a mi namoraro sac


De moca casa sua pae,
Que tem saia verde-escuro,
Firalga masa que gaviáo:
Tem boquinho táo semtira;
Eu chamar elle minha Aira,
E elle chama-mo cao.
A mi dá elle roináo
Doze, que a ini coinprae
E masa cinco macáo.
Se a mi vai elle fallar
Faze carreo de veráo.
Negro que faze folia
Por o que muto roga eu
Bai fruria por ola seu,
A mi disse a elle: María,
Que quebranta foi a meu?
E na ináo minha barde
Mi risse a ella: Minha rosa,
Minha oio de saramonete,
Mas a turo mundo (áramosa
Fallae-ine por o bida bosso.
Ella disse: Quesso cabrito!
A riabo que te ró, cao,
Para malo benturaro.
A mi disse elle cuitara:
Que boso nao tem razáo.
Se boso firalga he aqui.
A ini firalgo iambem.
Fio sae de Rei Bcni:
De quarenta qu'elle tem
A masa firalgo he mi.
DAS TRAGICOMEDIAS. 313

PAG. Pues, señor, qué hacéis acá?


NEG. Poro meu votare a mi vem
Abre oio Purutugá
Botera que elle tein
Aqui muito a mi furugá.
E se muíere ine inatae,
Gran pecara que bai ella
Benturo quero buscae
Nesse santo caravella
Se boso, seoro, mandae.
FRA. Nao, mas vae-te tu ao Cralo,
Porque Mafoma e Mafamede
Afaqui e Alfaqueque
Sao do Bispo d'Alencraslro,
Almofariz e ahnofada,
Almoface e ahnofreixe,
Alfarroubcira e Alcouchele
E Alqueídáo.
Salidas térras do Soldáo,
E Alfaiates e Alfanele,
Alfareme e Alcaprema,
Alpiarca e Alfazema
E Alpedríz
Sao de meslrado d'Avís.
Ora vae por esscs caminhos,
Irás ter ao chafariz
Ou á tonto,
E dá ó demo os raposinhos.
Como todo o mundo diz
Lava bein esscs focinhos,
E nao chcirarás a monte.
Ora vae.
314 LIVRO III.

Entra hum Velho dizendo:


VELHO.
Avante, vejez cansada,
Esfuérzate para buscar
La ventura deseada
Mas dina de desear,
Que cierta de ser hallada.
NEG. Poro que vejo, margurado
Vai d'amoro sua navio:
Boso mundo ja passado,
Boso barba ja cajaro,
Boso sangue ja sa frió,
Boso amor sa comungaro.
Nunca nao poder andaro
Que leve comungaro a fé,
Manacorea logo mar
Masso gavea foíto he.
FRA. Este negro chura mais
Que salmonete em figueíra.
VEL. O señores que allá estáis,
Llevadme esta alma estran^era
Para do quiera que vais.
Que nunca ventura he hallado,
Que me fuese agradecido
Ningún bien que haya obrado;
Y al cabo que he merecido,
Comienzo á ser olvidado.
Oh años tan bien gastados,
Servicios oferecidos,
Trabajos bien empleados,
Si fueran tan bien mirados
Como fueran entendidos!
DAS TRAGICOMEDIAS. 315

PRINCIPE.
Lo mas de que esto espantado,
Amor, de vuesas hazañas,
Es que al viejo arrugado
Metéis en las sus entrañas
Presunción de enamorado.
VEL. Y fue ese, mal pecado.
PRI. Viejo, vuestro mundo es ido.
VEL. En antes tengo pensado
Que todo el tiempo pasado
De nuevo se me ha venido.
PRINCIPE.
Los que compran el caballo
Luego miran se es viejo;
Si viejo, vía dejado,
Que aunque lo den por un huevo
No quiere nadie comprado.
Ansí el viejo arrugado
En la feria del amor,
Ni de silla ni albardado
No le sale comprador
Y siempre vive engañado.
Dejad la nave de amores
A los fuertes mareantes.
AMO. Venga con mis servidores,
Porque los viejos amantes
Son los ciertos amadores.
FRA. Tomae tres cordas de viola
E atae-as no calcanhar,
Coin sua salsa e cebóla,
Bein ó longo do linliar.
E vos me nomeares.
316 LIVRO III.

Entráo dous Fidalgos Portuguezes, < diz o


i° FlDALGO.
Senhor, senhor, acordae.
2° F. Oh meu senhor! que me manda?.,
1?F. Ouvis a nova que vai
E o alvoroco que anda?
2° F. Ouco que a popa nos cae.
1? F. O senhor, pois que assi he,
Vamos nesta nao d'amores,
E se for ter a Guiñé,
Resgataremos favores
Ou alguem que nodos dé.
E se ella ventura adiar.
Havomo-la bem mister;
Que ella seja mor que o mar,
Como fosse em meu poder,
Logo havía de secar:
Isto haveís vos de saber.
2°. F. Senhor, como eu tenho prcilo
D'amor com amor sem fim,
He minha fim de (al geito,
Que do nieu mesmo direito
Fazem fórca pera mim.
1? FlDALGO.
Oh nao falles! Dou-m'ó demo,
Que mil mortes sao aquellas
Que me poe em tal extremo,
Que quando de hüa me temo.
Me rodeno todas ellas.
2° F.Pois, senhor, Icndes querellas.
Sendo vos favorecido,
Que fará quem vive nellas,
DAS TRAGICOMEDIAS. 317

E lhe chamáo as estrellas


Homem pera mal nacido.
1° FlüAI.GO.
Porque me julgais assi
A minha desaventura?
Que os cegos veráo em mi
Que nao he prazer de dura
Algum prazer se o eu AÍ.
Vos contais minha alegría
Que tem mui triste desconta,
Porque das horas do día
A noite me toma cunta.
2°. FlDALGO.
Mas triste de mi coitado,
Que nao tenhu em que cuidar,
Senáo em desesperar,
Sem ter nunca do passado
Hum prazer que me leinbrar.
1 ° F . Eu, senhor, ATOS digo eu
Que ATOU sempre por espinhos;
Se o bem tem mil caininhos,
Sempre acertó o que nao he meu,
E vou cair de focinhos.
Inda a chuva está no ai
Quando eu ca escorrego.
2? F. Somos mais inofino par
Que arado trouxe em regó:
Isto haveis vos d'assentar.
1"? F. Sabéis, senhor, que eu assello?
Que saín assim sem ventura
Como Manuel de Mello,
318 LIVRO III.

Que em amores sempre atura


Sem Arentura nunca Arédo.
2 ° FlDALGO.
Sabéis quem eu saín tambem
Em ser ditoso em amores?
Simáo de Sousa do Sem,
Que a todos mostra dores
E nao Ih'as cura ninguem.
1° F. Sabéis quem he desse clima
Desses de vos e de mi?
2o. F. Quem? 1? F. Dom Fernando de Lima,
Porque se arma a rede aquí,
Saltáodhe os peixes per cima.
2 ° FlDALGO.
Fernán Soares tainbem,
Irmáo do Porteiro mor,
Quanto maior amor tem,
Mais pequeño he o favor
Que elle espera de ninguem.
1° F. Vedes vos, o mesmo irmáo
Traz demanda em Villa-nova,
E elle pede razáo;
Mas quando vier á prava,
Nao lhe A7ejo concrusáo.
2 ° FlDALGO.
Dom Jorge fóra ditoso,
Mas casou-se teinporao.
Tem o pescoco airoso,
E tem de sua nacáo
Falla de moco mimoso.
1<? F. O Conde do Redondo assi,
Se nao fóra táo casado,
DAS TRAGICOMEDIAS. 319

Fóra o mais sanio alfaqui


No templo de Amor sagrado,
Que em Portugal nunca vi.
FRADE.
Olhae ca, Símáo gallego,
Amassae o rei d'espadas
C'o sabáo, e c'o morcego,
E ponde-o ñas queixadas,
Que isso he com qu'eu arrenego;
Porque o Papa e o paváo,
O pandeiro e o pinheíro,
O piloto e o pinháo,
E o pardal c'o páceiro,
E o peneireiro e o páreiro,
E o palheíro e o porteiro,
E pandeiro e pasteleiro,
E a panella,
Todos váo na caravella.
Chegao os Fidalgos á nao e diz o
1° FlDALGO.
O da nao da fonnusura!
AMO. Quien sois, señores honrados?
i° F. Dous fidalgos sem ventura,
Ambos mal aventurados,
E tristes de hüa tristura.
AMO. NO temáis, mis pasageros,
Entrad en la nao de amores,
Que á los buenos caballeros
Son muy malos los temores.
Vem hum Parvo, e diz:
T
PARA O.
Dom Francisco Lobo diz..
320 LIVRO III.

Nao sei, esta sería ella —


Ja sei; diz que a Imperatriz
Lhe levou pera Castella —
Nao sei — sera Reatriz?
Nome de mulher era ella;
E elle queriadhe bein,
E elle samicas nao na tem,
E ella samicas ja
Tera lá querenca a alguem.
Qu'ellas, perdei o cuidado,
Como lhes dá o temporal
Logo feiráo o man cal
Antes do jógo meado.
Sempre cantava enha tia,
Quando andava na demanda,
Veréis em que caldos anda
Minha senhora Lainbóvos
Como lhe vem amores novo.s
Logo fazem outra banda.
FRADE.
Tingue tingue tingue tingue,
Ves hi Aldonca Goterrez,
Qu'eu criei inda em Torrozelo.
PAR. Nao prégastes vos em Pernes ?
FRA. Em Pernes? PAR. Si, co'esse capello.
FRA. Ein Pernes, Pernes, Pernes,
Pernes, Pernes, Pernes.
PAR. Oh! e A'ós sois parvo, frade!
Dou-t'eu ó deino por seu.
FRA. Se es San Bartholameu,
Tu me dirás a verdade.
DAS TRAGICOMEDIAS. 321

AMOR.
Pues que dice la marea,
Lieva áncora, suso avante,
A tesa aquella polea,
Galanes, al cabrestante,
Y venga la escola á rea;
AI governalle vos, Page.
PAG. YO haré cuanto él me mande.
AMO. Desfcríd la vela grande:
Decid todos — buen víage!
Todos a vozes.
Boa víagein!
PRI. Quede, señora Ciudad,
Con mucha gloria e consuelo;
Dios os dé prosperidad,
Y tanta salud del cielo,
Como tenéis de bondad.
Lis. O senhor Déos e sua gloria
A vossa alta senhoría
Dé táo próspera victoria
Como eu para mi quería.
E quando einbora tornar,
Torne-me outra A7ez a ver.
Pni. Si yo ventura topar,
Yo quedo de os la traer,
Aunque vos la podéis dar,
Y está en vueso poder.
Ea, señores, desferir,
Todas las- velas metamos,
Que el viento es á pedir,
Y luego todos digamos
La salve, antes del dormir.
vol. ii. 21
322 LIVRO III.

Y porque al viejo honremos,


Y el negro se enseñar,
Canten ellos dos á par,
Y todos responderemos.

Comegño a cantar a prosa que commummente cantío


ñas naos á salve, que diz: Bom Jesu Nosso Senhor,
tem por bem de nos salvar §c. O velho cantava coma
velho, o negro apos elle coma negro, e responfliao-lhc os
passageiros a quatro vozes de canto d'orgao; e com isto se
vño com a nao, e fenece esta tragicomedia.

-^~>c
V I G l R A S.
HUM PEHEGHINO QUATRO SERRANAS.
HUM ROMEIRO. CUPIDO.
VENUS. JUSTINA.
MERCURIO. HUM NEGRO.
JÚPITER. HUM FRADE.
SATURNO HUM PARVO.
SOL. DOUS PAGENS.

Tragicomedia representada na festa tío desposorio do


muito poderoso e calholico Rei de gloriosa memoria, D. Joño
o terceiro deste nome, com a Sercnissima Rainha D. Cathe-
rina nossa senhora, em sua ausencia, na cidade tVEvora,
na era de Christo nosso Senhor de 1525. A qual tragico-
media he chamada Fragoa tV Amor. E o castello de
que aqui se falla he per mefaphora, porque se toma castello
por Catherina.
FRAGOA D'AMOR.

Primeiramente entra hum Peregrino dizendo:


PEREGRINO.
Un castillo me han loado
Alto y muy esclarecido,
Por los Césares fundado,
Torreado y nobrecido,
En buen sino edificado,
De siete cercas murado;
Fe, Caridad, las primeras,
Esperanza y sus parceras
Virtudes de que es coreado,
Lo guardan de mil maneras.
Diz que tiene, y bien hermosas,
Cuatro torres muy derechas,
Fuertes, lindas, tan graciosas,
Que sobran todas las cosas
Que en el mundo fueron hechas.
Estas cuatro muy perhechas
Torres, con cubos y almenas;
Y todas cuatro tan buenas,
Que no pueden ser deshechas.
La una es Genelosía,
Y la otra Gravedad,
Otra Liberalidad,
La otra Sabiduría.
La mas alta es la Bondad,
DAS TRAGICOMEDIAS. 325

Las puertas de honestidad,


Las llaves de devoción,
Los petrechos de razón,
Las armas de santidad.
Dicen que es tan bien fundada
Su torre del homenage,
Tan noblemente lavrada,
Con piedra de tal Iinage,
Que primero fue sagrada.
Y que de dentro es forrada
De muy santos pensamientos,
Y que tiene los cimientos
Para siempre ser loada
Por muchos merecimientos.
La cava en suma grandeza,
Y profunda en discreción;
Y dicen que á Salomón
Ni Dios ni la Natureza
No le dio mas perfección.
Castillo sin división,
Gracioso, fuerte terrible,
Hermoso cuanto posible,
Dichoso cuanto es razón.
Cuando vi andar volando
Su fama por las montañas,
Por palacios y cabanas
Estas cosas pregonando
Con alegrías tamañas,
Engendróse en mis entrañas
Deseo sin detener
De ir á Castilla por ver
Esla flor de las Españas.
326 LIVRO III.

Encontrándose com hum Rometro, di:


Vas ó vienes, Padre honrado?
ROM. Voy y Arengo y ahora esló.
PER. Adó vas? ROM. Hermano, vó
Ver un Príncipe afamado,
El que en Portugal reinó,
Porque dicen por allá
Que es un Rey tanto facundo,
Que conquista todo el inundo,
Y que todo se le da,
Y es Alejandre segundo.
Dicen que quiere tomar
Un castillo que hay en Castilla,
Tan fuerte y en tal lugar,
Que si él lo conquistar,
Gran Rey es á maravilla.
PER. Mas creo que es ya tomado,
Asegun la nueva suena,
Y gran tiempo ha que (an buena
No llegó á este reinado
De ninguna tierra agena.
RoMEino.
Tan aína, tan sin pena
Quien haría esa labor?
PER, El mayor Dios del amor,
Que todos bienes ordena,
Pero este es el mayor.
ROM. Pues tal castillo venció,
Cierto es lo que dicen del,
Que todo hombre que lo vio,
Dice: Cred que yo vi aquel
En que no cabe sínó.
DAS TRAGICOMEDIAS. 327

PEREGRINO.
Para te hablar verdad
Por fuerza no fue vencido,
Mas el Capitán Cupido
Le pedió la voluntad,
Y dióla sin mas ruido:
Vino del cielo escondido
De su madre Venus Diosa,
Volando mucho depriesa,
Hecho niño esclarecido.
Y fue el Capitán principal,
Que cercó la fortaleza,
El castillo angelical,
Por parte de Portugal,
Y por bien de su nobleza.
Cuando Venus no halló
En el cíelo Dios de amor.
Sus músicas con vertió
En lágrimas y decendió
Del cielo con gran dolor.
Vem a Deosa Venus, Rainha da 3Ittsica, c diz:
VENUS.
No sé á qiijen perguntar
Por el mi hijo Cupido,
Vuestro Dios de amor, pGrdido;
Y no sé en que lugar
Se me ha desparecido.
O ini hijo esclarecido!
Adonde estás?
Que en mis tetas he sentido
Que es cierto que llorarás,
Y no serás socorrido.
328 LIVRO III.

En qué calle te perdí?


En qué calles te perdiste?
O mi amor, adó fuiste?
Qué hará el cielo sin ti?
O mi hijo, qué heciste?
Bien sé que no te escondiste,
Mas perdido
No te vi ni tú me viste;
Y ansí desacorrido
Llorarás la madre triste.
Y si por tu voluntad
A tu madre has dejado,
Y á la tierra bajado,
Es muy alta novedad
Y caso muy desviado.
El mundo será mudado
En alegría,
O el su Rey es casado?
Oh no sé por vida inia
Que diga á tanto cuidado.
Adonde te hallaré?
Adonde me hallarás?
Vida inia, adó estás?
Que sin ti siempre estaré
Pensando donde estarás.
Dos mil angustias me das
En buscar-te:
Tú de niño olvidarme has,
Mas yo no podré olvidarte
Como tú me olividarás.
Nunca limpiaré mi cara
De las lágrimas sobradas,
DAS TRAGICOMEDIAS 329

Con que mejillas, quejadas,


Por esta desdicha amara,
A menudo son regadas.
Salgan muy apresuradas,
Sin recelo,
Del corazón estiladas.
Oh lágrimas de mi consuelo,
Cuando seréis consoladas!
PEREGRINO.
Señora Venus, qué habéis,
De qué vos andáis quejando?
VEN. Peregrino, ando buscando
Mi hijo; si del sabéis,
Habed dolor de cual ando.
PER. Porque no andáis cantando
Perdiendo tal Dios de amor:
"Nunca fue pena mayor
Ni tormento tan estraño,
Que iguale con el dolor."
ROMEIRO.
Pois sois señora de Orfeo,
Diosa de la melodía,
Cante vuesa señoría:
"Donde estás que no te veo,
Qué es de ti, esperanza mía?"
VEN. Mas ansí sin alegría,
Llorando cantaré yo:
"Tristeza, quien á Aros me dio.
Pues no fue la culpa mia,
No ge la merecí, no."
PEREGRINO.
Señora, qué nos daréis,
330 LIVRO «1

Y qué bien nos haréis vos.


Á mí y á dambos á dos,
Si por nos nuevas sabéis
De esc sublimado Dios?
VEN. Donde está ? PER. Qué prometéis ?
VEN. Prometo de os hacer
Que no améis á muger,
Que della no alcancéis
Cuanto vueso amor quisiere.
ROMEIRO.
No quiero yo mas valer.
PEn. Ni yo mas riqueza pido.
VEN. Dadme nuevas de Cupido,
Recobraré mi placer,
Que está todo en mí perdido.
PER. El Dios de amor decendió
A España, según suena,
Y él por sí se demovió,
Porque nunca cosa buena
Sin amor se concerló.
Entró en un castillo lal
Cual hizo Júpiter solo
Con los rayos de Apolo
Por su mano divinal:
Entró con paz general
Nel castillo y con razón
Le asentó en perfección
Las armas de Portugal
En medio del corazón.
Corazón Alcaide mayor
Del castillo alto y grave,
Y al ñíno Dios de amor
DAS TRAGICOMEDIAS. 331

Entregó luego la llave,


Como á su superior.
Y obrada esta labor,
Por parte de Portugal
Visitó el Emperador:
Él fue el correo mayor
Y embajador principal.
Hizo buenas maravillas,
Renovó los corazones,
Abatió opiniones,
Hizo amores de rencillas,
De las discordias canciones,
De los enojos deseos,
De los males esperanzas,
De las ¡ras concordanzas,
Y de los respectos feos
Muy graciosas mudanzas.
Loado seas, castillo,
Loado seas, Amor,
Que sin l¡ y tu resplandor,
Esto osaré decido,
No se obra tal labor.
VEN. Muy ciertas son las señales;
Ese es ini hijo amado;
Y pues que anduvo ocupado
En obras tan divínales,
Tomo á bien el mal pasado.
PEREGRINO.
Él convertió en herreros
Cuatro Planetas nombrados,
Para hacer hombres mudados,
Milagrosos fragoeros,
332 LIVRO III.

Con sus martillos dorados.


Es-maravilla de ver;
No hay quien no se asombre,
Que rehunden cualquiera hombre,
Y vuélvenle de nuevo á hacer
La facion, ponelde el nombre.
Si queréis de mas altura,
Sí ancho, si delicado,
Si viejo, mozo tornado
De la edad y estatura
Que les fuere demandado.
Vem hum Negro cantando na lingua da sua terra, e diz
VENUS.
Prieto, vienes de Castilla?
NEG. Poro que perguntá bos esso?
Mi bem lá de Tordesilha;
Que tein bos de ber co'esso,
Qu'eu bai Castilha, qu'eu bein Caslilha?
VEN. Y qué nueva hay allá?
NEO. Nova que uba ja maduro,
Ja vindimai tura, turo.
Tordesilha tanto vínha,
A mi faratai puro vida minha:
Lá he tera mui segura.
VENUS.
En viñas te hablo yo?
NEO. Pos em que, minha Condessa?
Que inda que negro so,
Roso oio he táo trabessa,
Tan preta, que me mató.
Seora, quem te furtasse
Por qualro día, nó más,
DAS TRAGICOMEDIAS. 333

E logo inorte me matasse,


Que más o día nó durasse.
Polo bída que boso me das.
"Le bella mal maruvada
"De linde que a mi ve,
"Vejo-ta triste nojada,
"Dizc tu razao puruque.
"A mi cuida que doromia
"Quando ma foram cassá;
"Se acordara a mi jazia
"Esse nunca a mi lembrá.
"lie bella mal maruvada
"Nao sei quem cassa a mi,
"Mia marido nao vale nada,
"Mi sabe razáo puruque."
VENUS.
Cuyo eres, negro cuitado?
NEG. A mi sá negro de críváo,
Agora sá vosso cao,
Vosso cravo margurado,
Cativo como gallinha
Quando boso agora queré,
Logo a ini bai trazé,
E mais o feixe de Ienha.
A mi leva boso roupa Alfama;
Quando a mi manta furlai,
Mí bai, seora, lomai
Esse para bosso cama.
Quando uba maruro ja,
Que a mi furutai cad'hora,
A mi bai tomai, seora,
liba que boso faríá.
334 LIVRO III

Se camisa furatá cu.


Labrado d'ouro faramosa,
Mi bai, seora, essa he bossa,
Pois que Sioro Déos m'a deu.
Se pódc furatá rínheiro,
Corpo de reos! esse si
Nunca guardai para mi,
Hossa he toro enleíro.
VENUS.
Negro, no te entiendo cosa.
Eres ya cristiano? di.
XEG. Furunando chama a mi,
E a bos chama faramosa.
VKN. Di ahora el crieleison.
NEG. De mulo boa vrontare,
Pato nosso he muto boui.
Em este passo foi posto hum muito formoso castello, e
abrióse a porta delle, c sahirao de dentro qualro galantes'
em trajo de caldeirciros, com, cada hum, sua serrana muito
lougan pola mao, c. elles mui ricamente ataviados, cubertos
d'estrellas, porque figúrño quatro Planetas, e ellas os gosos
d'amor; e cada hum delles traz 'seu martello muito faga-
nhoso, e todos dourados e prateados, e huma muito grande
e formosa fragoa, e o Déos Cupido por Capitáo delles: e
estas Serranas trazcm cada hüa sita tenaz do loor dos mar-
lellos, pera servirem quando lavrar a fragoa d'amor. E
assi sahirao do dito Castello com sua música, e acabando
fazem o razoamento seguinte, pera declaragao do significado
das ditas figuras, c cada Planeta falla rom sua Serrana.
MERCURIO.
Vos sois, señora Serrana,
Primero gozo de amor,
DAS TRAGICOMEDIAS. 335

Que es, mirar al servidor


Contino de buena gana,
Sin le mostrar desamor.
Y pues os hizo de nada
Cupido por su loor,
Mirad á vueso servidor
Con voluntad namorada.
i". S. Yo lo haré ansí, señor.
MERCURIO.
Vos mirareis mucho en hito
Los ojos del amador,
Porque deis gozo al dolor,
Que se recibe infinito;
Y no paguéis con desamor;
Ni sea en general
El mirar de este tcor,
Sino á vueso servidor.
I? S. Cuando yo viere que es (al,
Ansí lo haré yo, señor.
JÚPITER.
Vos sois, Serrana hermosa,
Segundo gozo de amor,
Que es hablar al servidor
Mucho blanda y amorosa;
Y si queréis ser dichosa,
Quered á quien os tiene amor;
Que la tema prcsumpluosa
Es cruel al servidor.
2a. S. Cuando fuere justa cosa,
Ansí lo haré yo, señor.
JÚPITER,
Reconociendo el servicio
336 LIVRO III.

Le daréis placer mayor;


Que el mayor gozo de amor
Es mirar al beneficio:
Que el servicio mal mirado
Es dolor mas que dolor
Al triste que es namorado.
2? S. Si yo le viere (al cuidado,
Yo lo haré ansí, señor.
SATURNO.
Sois, Serrana, sin mentir,
El tercer gozo de amor,
Que es mostrar al servidor
Grande gloría en el oir,
Porque es dulce favor.
Y para el gozo ser mejor,
Y mucho mas estimado,
Cuanto mas en apartado,
Le dad oído mayor.
3? S. Si no hablar en lo escusado,
Ansí lo haré yo, señor.
SATURNO.
Que quien escucha de gana,
Señal es de grande amor.
Por eso, linda Serrana,
Haced lo que os digo, hermana,
Sin otro ningún rigor.
Y aun que él sea vencedor,
Y vos, señora, vencida,
Por no serdes homecida,
Dalde vida al servidor.
3? S. Si ini honra fuere servida,
Yo lo haré ansí, señor.
DAS TRAGICOMEDIAS. 337

SOL.
VOS sois, Serrana de flores,
El cuarto gozo de amor,
Y os que el vueso servidor
No os sienta otros amores,
Porque es engaño mayor:
No le deis competidor,
Sea vueso amor sencillo,
Porque el otra es desamor.
í S. Sí él supiere sentido,
Yo lo haré ansí, señor.
CUPIDO.
Paréceme que es razón,
Pues Reina tan excelente
Viene "á reinar nuevamente,
Que hagamos refundición
En la Portuguesa gente.
Hagamos mundo nuevo aqui,
Pues nuevos Reís son venidos,
Por el gran Dios escogidos;
Apregonad por ahí
Mis milagros ascondidos.
MERCURIO.
Quien quisiere renovarse,
O hacerse de otra suerte,
Venga aqui que sin la muerte,
Puede muy bien emendarse;
Y no lo hayáis por cosa fuerte.
Cualquier hombre bajuelo
Que quisiere ser mayor,
Y aun el luengo ser menor,

\ u l . II. 2-2
838 LIVRO III.

Véngase aqui sin recelo


Á la fragoa del Amor.
Hombre muy ancho, pesado,
Como fuere refundido
En la fragoa de Cupido,
Tornará muy delicado,
Y el viejo remocedido.
Negra mucho denegrida,
Si blanca quisiere ser,
O pera parda muger
Moza alba, gentil, garrida,
Todo se puede hacer.
NEGRO.
Faze-me branco, rogo-te, homem,
Asinha, logo, logo, logo:
Mandae logo accender fogo,
E minha nariz feito bem,
E faze-me beica delgada, te rogo.
JÚPITER.
Mirad quien comenzará
En un negro tal labor!
NEG. Quem te manda á vos falla?
A mi falla con Déos d'amor,
Que farinoso me fará.
CUP. SÍ, SÍ, sí, cuantos A7enieren;
Negros, moros, y villanos,
Mancebos y ancianos,
Haceldes como os pedieren
Muy presto, y anden las manos.
El que nació desdichoso
Y sin ninguna ventura,
Y lo sigue desventura,
DAS TRAGICOMEDIAS. 339

Haceldo mucho dichoso


Y con ventura segura.
Y el que menos namorado
De lo que es quisiere andar.
Ahí se puede emendar;
Y el hombre desnamorado,
Namorado singular.
JÚPITER.
Como quieres tú hacerle?
NEG. Branco como ovo de gallinha.
MER. Ora entra y no hayas miedo,
Que no has de sentir nada.
NEU. Fazer nariz mui delgada,
E fermosa minha dedo.
Entra o Negro na fragoa, e andño os martellos todos
quatro em seu compasso, e cántáo as Serranas quatro vezes
ao compasso dos martellos esta, cantiga seguinte, feita pelo
Autor ao proposito.
Cantiga.
"El que quisiere apurarse,
"Véngase muy sin temor
"A la fragoa del amor.
"Todo oro que se afina
"Es de mas fina valía,
"Porque tiene mejoría
"De cuando estaba en la mina.
"Ansí se apura y refina
"El hombre y cobra valor
"En la fragoa del Amor.
"El fuego vivo y ardiente
"Mejor apura el metal,
"•Y cuanto mas, mejor sal,
22 *
340 LIVRO III.

"Mas claro y mas excelente.


"Ansí el vivir presente
"Se para mucho mejor
"En la fragoa del Amor.
"Cuanto persona mas alia,
"Se debe querer mas fina,
"Porque es de mas fina mina,
"Donde no se espera falta.
"Mas tal oro no se esmalta,
"Ni cobra rico color
"Sin la fragoa del amor.
Sahe o Negro da fragoa muito gentil hoinem bronco,
porém a falla de negro nao se pode tirar na fragoa,
c elle diz:
NEGRO.
Ja máo minha branco estai,
E aqui perna branco he,
Mas a mi falla guiñé:
Se a mi negro fallai,
A mi branco para que?
Se falla meu he negregado,
E nao falla Portugas,
Para que mi maridado?
MER. No podemos hacer mas,
Lo que pediste te han hecho.
NEGRO.
Da caminha negra tornae:
Se mi falla namorado
A inuier que branca sae,
Ella dirá a mi — bae, bao,
Tu sá home ó sá riabo?
A negra se a mi fallao
DAS TRAGICOl^HHK 341

Dirá a mi sá chorreíro.
Oiae, sioro ferreiro,
Boso meu negro (ornae,
Como mi saba primeiro.
Vem a Justiga em figura de hüa velha corcovada,
torta, muito mal feita, com sua vara quebrada, e diz:
JUSTICA.
Sempre Déos faz cousas boas!
Dizei, que tenhais prazer,
Isto he cousa de crer
Que refundís as pessoas,
E as tornáis a fazer?
SOL. Quien sois, que ansí estáis polida?
Jus. A Justica sou chamada,
Ando muito corcoA7ada,
A vara tenho torcida,
E a balanca quebrada.
E pois de novo nos vem
Rainha de tanto honor,
Irman do Imperador,
Renovae-me muito bein,
Que cada vez vou peor.
CUP. Qué pedís ó qué buscáis?
Jus. Que me mandéis reformar
E de novo endireitar,
Que a Rainha que esperáis
Nao pode muito tardar.
MERCURIO.
Vos venís tan mallratada,
Que tenemos bien que hacer.
CUP. Es por fuerza y ha de ser
La Justicia aderezada,
342 LIVRO III.

Por lo al no so perder.
Jus. Fazei-me estas máos menores,
Que nao possáo apanhar,
E que nao possa escutar
Esses rogos de Senhores,
Que me fazein entortar.
MERCURIO.
Alto pues á refundir.
Jus. O Jesu, a quem m'eu dou!
Apartae-vos, que eis me voti.
JUP. Nos tenemos bien que heñir.
Jus. Sus, que ja na fragoa estou.
Andño os martellos forjando a Justica com a dita música,
e acabado, diz Júpiter a Cupido.
JÚPITER.
Señor, nuestro martillar
No nos aprovecha nada,
Porque la Justicia dañada,
Los que mas la han de emendar
La hacen mas corcovada.
Ansí que en vano gastamos
El carbón y herramienta,
Ninguna cosa emendamos,
Mas cuanto mas martillamos,
Menos crece la emienda.
CUPIDO.
Serranas, sacalde vos
Las escoreas bien sacadas
Con las linazas doradas,
Que con la ayuda de Dios
Ella saldrá sana á osadas.
Tornño os Planetas „ dar onlra calda, c a Serrana
DAS TRAGICOMEDIAS. 343

Primeiro gozo d'amor, tira da fragoa com as tenates hum


par de gallinhas, c diz
CUPIDO.
Eso, eso, norabuena,
Que es el mal que la fatiga.
Ande otra vez la cantiga,
Salga esotra ave de pena.
Ándito oulra vez os martellos, e a Serrana Segundo gozo
d'amor, tira da fragoa hum par de passaras, e diz
CUPIDO.
Qué escorea es esa, Serranilla?
SER. Son perdices, ini señor.
CUP. Pues aun queda otra peor,
Que mucho mas la mancilla.
Tornao oulra vez a dar outra calda e ti rao as Serranas
Terceiro e Quarlo gozo d'amor. duas grandes bolgas do
dinheiro da fragoa, e diz
CUPIDO.
Esotra escorea qué es?
SER. Son dineros de las pechas.
CUP. Ora sacalda, y veréis
Maravillas que habéis hechas.
Sahe a Justiga da fragoa muito fermosa e direita, e diz:
JUSTICA.
Agora que estou assi
Fermosa e bem aparada,
Por nao ir a corcovada
Que remedio será aqui,
Que inda estou temorisada?
CUP. Id os mirar al espejo
De Trajano, mi señora,
Y veréis cual vais ahora,
344 LIVRO III.

Porque hubistes buen consejo


Id os, Justicia, en buenora.
Vai-se a Justiga e vem hit ni Frade c diz:
FRADE.
Senhores, fui carpinteiro
Da Ribeira de Lisboa,
E muito boa pessoa,
E de mero malhadeiro
Me fui fazer de coroa.
Cousas m'aquecem a mi
Que o demo anda comigo.
Conselhou-ine hum meu amigo
Que fosse frade, e fido assi,
De Rui Pires Frei Rodrigo.
Eis-me frade: andar einbora.
E fui azemel primeiro,
Antes de ser carpinteiro,
E estou assi frade agora,
Porém fóra do mosteiro.
CUP. Padre, qué es lo que queréis?
FRA. Queria-me desfazer
E tornasseis-me a fazer
Muito leigo se podéis,
Que leigo lornasse a ser.
Hum fidalgo assi meao,
Hum Vasco de Foes n'altura,
A barba daquella feitura,
Nao táo denegrida nao,
Senáo assi castanha escura.
Huns olhos garcos cansados,
E o ar do Pero Moniz:
E eu peilarci perdiz
DAS TRAGICOMEDIAS 345

E dous pares de cruzados,


Se me mudáis o matiz.
CUPIDO.
Porqué no queréis ser fraile?
FRA. Porque meu saber nao erra:
Somos mais frades qu'a térra
Sem contó na Christandade,
Sem servirmos nunca em guerra.
E hav ¡ño mister refundidos,
A o menos tres partes delles,
Em leigos, e arnezes nelles
E muí bem apercebídos,
E entáo a Mouros co'elles.
Comecae em mi, senhor.
CUP. Bien veo vuesa intención;
Traedme vos provisión
De vueso Superior,
Yo haré lo que es razón.
FRA. Mal fazeis, senhor Cupido,
Que por ser vosso vassallo
(Maco aínda que calo;
Mas eu virei apercebido
De feicáo pera acabado.
Vai-se o Frade e vem hum Pagem, c diz
CUPIDO.
Mandáis algo, hermano, acá?
PAG. Recado do Senhor Márquez.
CUP. Qué manda, hijo, qué es?
PAG. Que levéis a fragoa lá
Logo, e que lhe nao tardéis.
CUP. Decid á su señoría
Que no le hace menester,
346 LIVRO III.

Ni le quiero del hacer:


Porque mi sabiduría
Otro tal no puede hacer.
Decid que no le faltó
Nunca perfección ninguna;
Que la próspera fortuna
Reinaba cuando él nació,
Y lo amó dende la cuna.
Y pues lo hizo Aníbal,
Caballero tan famoso,
Sí yo refundir lo oso,
Como se hará otro tal?
Vai o Pagem, e vem hum Parvo e diz:
PARVO
Manda-me ca Vasco de Foes
«
T
Que o mandéis A ÓS forjar.
CUP. Para qué hombre lan fino?
PAR. Para que o Cacáis menino,
E eu para o embalar.
CUP. NO sé si es mozo, si viejo;
Mas no sé donde le viene
Que ninguna cana tiene,
Y arrugado el pellego.
JÚPITER
Algunos péinanse allá
Con peines de veinte y ocho.
PAH. E vinte e nove, e tinta ainda.
CUP. Este parvo es pevidoso,
Por decir Irinta dijo tinta.
Vem outro Pagem, e diz
CUPIDO.
Debéis vos page de ser
DAS TRAGICOMEDIAS. 347

Del Conde de Mariaha.


PAG. Si, e manda-vos dizer
Se o podereis fazer
Mancebo no corpo e n'alma.
E que lhe nao refundáis
O dinheiro que elle tem,
Mas nelle forjéis táo bein,
Que apanhe muito mais,
E nao dé nada a ninguem.
Torna o Frade com hum saco de carvao, c diz:
FRADE.
Todalas cousas do mundo
Estáo na boa diligencia.
CUP. Qué manda su Reverencia?
FnA. Senhor Cupido, eu ine fundo
Nao curar da conciencia.
Aborrece-ine a coroa,
O capello e o cordáo,
O hábito e a indio,
E a vespora e a noa,
E a missa e o sermáo:
E o sino e o hádalo,
E o silencio e a decíplina,
E o frade que nos malina;
No espertador nao fallo,
Que a todos nos amofina.
Parece-me bem bailar
E andar n'hüa folia,
Ir a cada minaría
Com mancebos a Colgar:
Isto he o qu'eu quería.
Parece-me bem jogar,
348 LIVRO III.

Parece-me bem dizer:


— Vae chamar minha miilher
Que me faca de jantar.
Isto, eramá, he vÍA7er.
JUP. De qué facion ó edad
Queréis A7OS que os hagamos?
FRA. Esperae, assi vejamos,
Eu direi minha vontade;
Pois ja em al nao estamos.
Conheceis o Marichal?
Assi daquella feicáo,
Idade e dísposicáo,
Assi nobre e liberal,
E gaste-se todo o carváo.
CUP. Traéis licencia, Fray Funil?
FRA. Trago, senhor, a bastante
Assignada mui galante
Pera mi e sete mil,
Que víráo daqui avante.
Metiese o Frade na fragoa, c depois de refundido com
a dita música, diz
CUPIDO.
Vamonos, no enhademos,
Cantando á nueso placer,
Y nuestra fragoa IleA7emos,
Que lo que está por hacer
Otro dia lo haremos.

• •»+» + ^r>¿| r ,;*<r ( j¿¿>. | < # . ( < ,.. < .


F I G U R A S .
HUM CLÉRIGO.
ZEBRON i
> Díabos.
DANOR )
POLICENA.
PANTASILEA.
A CHILLES.
ANNIBAL.
HEITOR.
SCIPIÁO.

A tragicomedia seguinte sen nome he Exhortagño da


guerra. Foi representada ao muito alto e nobre Rei D.
Manuel o primeiro em Portugal deste nome, na sua cidade
de lÁsboa na partida para Azamor do illustre e mui ma-
gnifico Senhor D. Gentes Duque de Braganga e de Guimarñes
á¡c. era «te ¡513-
EXHORTAQÁO DA GUERRA.

Entra primeiramente hum Clérigo nigromante e diz:


CLÉRIGO.
Famosos e esclarecidos
Principes mui preciosos,
Na térra victoriosos,
E no ceo muito queridos,
Sou Clérigo natural
De Portugal,
Venho da cova Sibyla,
Onde se esmera e estilla
A subtileza infernal.
E venho mui copioso
Mágico e nigromante,
Feiticeira mui galante,
Astrólogo bem avondoso:
Tantas artes diabris
Saber quiz,
Que o mais forte diabo
üareí preso pelo rabo
Ao Iffante Dom Luiz.
Sei modos d'encantamentos,
Quaes nunca soubo ninguem;
Artes pera querer bem,
Remedios a pensamentos:
Farei de hum coracáo duro
DAS TRAGICOMEDIAS. 351

Mais que muro,


Como brando leituairo;
E farei polo contrairo
Que seja sempre seguro.
Son mui grande encantador,
Faco grandes maravilhas,
As diabólicas sillas
Sao todas a meu favor.
Farei cousas impossÍA7ds,
Mui (erriA'eís,
Milagres mui evídeníes,
Que he pera pasmar as geníes,
Visiveís e invisiveis.
Farei que huma Dama esquiva,
Por mais cafara que seja,
Quando o galante a veja,
Que ella folgue de ser viva:
Farei a dous namorados
Mui penados,
Que estem cada hum per si;
E cousas farei aqui
Que estaréis maravilhados.
Farei por meio vintem,
Que hüa Dama muito feia,
Que de noite sein candeia
Nao pareca mal nem bem;
E outra fermosa e bella
Como estrella,
Farei por sino toreado,
Que qualquer homem honrado
Nao lhe pesasse com ella.
Far-vos-hei mais pera verdes,
352 LIVRO III.

Por esconjuro perfeito,


Que caséis todos a eito
O inelhor que vos pudordes.
E farei de noite dia
Per pura nigromancía,
Se o sol ahumar:
E farei ir polo ar
Todo a van fantasía.
Far-vos-hei todos dormir
Emquanto o soinno vos durar.
E far-vos-hei acordar
Sem a térra vos sentir,
i E farei hum namorado
Bein penado,
Se amar bein de verdade,
Que lhe dure essa vonlade
Até ter outro cuidado.
Far-vos-hei que desejeis
Cousas que estáo por fazer,
E far-vos-hei receber
Xa hora que vos desposéis.
E farei que esta cidade
Esté pedra sobre pedra;
E farei que quem nao medra
Niinca tem prosperidade.
Farei per mágicas rasas
Chuvas táo desatinadas,
Que ostein as telhas dedadas
Pelos telhados das casas:
E farei a (orre da So.
Assi grande como he,
Per graca de sua clima,
DAS TRAGICOMEDIAS. 353

Que tenha o «dicesse ao pé,


E as ameas em cima.
Nao me quero mais gabar.
Nome de San Cebrían
Esconjuro-te Satán —
Senhores nao espantar.
Zet zeberet zerregud zebet
O filui soter
Relie zezegot relinzet
O filui soter.
O chaves das profundezas,
Abrí os poros da térra;
Principe da eterna treva,
Parecáo tuas grandezas.
Conjuro-te, Satanás,
Onde estás,
Polo bafo dos dragues,
Pola ira dos leóes,
Polo valle de Jurafás;
Polo fumo peconhento
Que sae da tua cadeira,
E pola arden le fogueira,
Polo lago do tormento,
Esconjuro-te, Satán,
De coracáo
Zezegot seluece soter,
Conjuro-te, Lucifer,
Que óticas minha oracao.
Polas nevoas ardentes
Que estáo ñas tuas inoradas,
Polas pocas povoadas
De víboras e serpentes,
Vol. 11, 23
354 LIVRO III

E polo amargo tormento,


Mui sem tenío,
Que das aos encarcerados;
Polos gritos dos damnados,
Que nunca cessáo momento:
Conjuro-íe, Berzebu,
Pola ceguidade hebraica,
E pola malicia judaica,
Com a qual te alegras tu,
Rezé put liinteser
Zamzorep tisal
Liso fé nafezori.
Vem os diabos Zebron e Danor, e diz
ZERRON.

Que has tu, excommungado?


r

CLE. O ¡ríñaos, venhais einbora.


DAN. Que nos queres tu agora?
CLE. Que me facais hum mandado.
ZEH. Polo altar de Salan,
Dom villáo.
DAN. Toma-o por essas gadelhas,
E cortemos-Ihe as orelhas,
Que este clérigo he ladráo.
CLÉRIGO.
Manos, nao me facais mal,
Compadres, primos, amigos.
ZEB. Nao te temos em dous fi>os.
CLE. Como Arai a Belial?
Sua corte está em paz?
DAN. Dá-Ihe aramá hum bofete:
Crismemos este rapaz,
E chamemos-Ihe zobete.
DAS TRAGICOMEDIAS. 355

CLÉRIGO.
Ora fallemos de siso:
Estáis todos de saude?
ZEU. Fideputa, meio ahnude,
Que íens lu de A7er com isso?
Q.E. Minhas potencias relaxo,
E ine abaxo:
Fallae-me d'outra maneira.
DAN. Sois Bispo vos da Landeira,
Ou vígairo no Carlaxo?
ZEBRON.
He Cura do Lumear,
Sochantre da Mealhada,
Acipreste de cañada,
Bebe sem desfolegar.
DAN. He capelláo terranlez,
Boin Ingrez,
Palríarcha ein Ribatejo,
Beberá sobre hum cangrejo
As guelas d'hum Francez.
ZEBRON.
Danor, di-me, he Cardial
D'Arruda ou de Caparica?
DAN. Nenhüa cousa lhe fica
Senáo sempre o vaso tal.
Tem hum grande Arcebispado
Muíío hqnrado,
Junto da pedra da estrema,
Onde püe o diadema
E a mitra o (al prelado.
ZEBRON.
Ladráo, sabes o Seixal
2:3*
356 LIVRO III.

E Aliñada e pereli?
O fideputa alfaqui,
Albardeiro do Tojal!
CLE. Diabos, queréis fazer
O que eu quizer,
Per bem, ou de outra feicao?
r

DAN. O fideputa ladráo,


HaAremos-(e de obedecer.
CLÉRIGO.
Ora eu vos mando e remando
Polas viríudes dos Ceos,
Pola potencia de Déos,
Em cujo servico ando;
Conjuro-vos da sua paríe,
Sem mais aríe,
Que facais o qu'eu mandar
,PoIa (erra e polo ar,
Aqui e em (oda a parte.
ZEBRON.
Como te vai coin as tercas?
He vivo aquelle alifante
Que foi a Roma táo galante?
DAN. Amargáo-te a (i estas Arercas?
CI.K. Esconjuro-te, Danor,
Por amor de San Paulo
E de San Polo.
ZEB. TU nao lens nenhum miólo.
CLE. EU VOS farei vir a dor.
Por esía madre de Déos
De táo alta dignidade,
E pela sua humildade,
Com que abrió os altos ceos,
DAS TRAGICOMEDIAS. 351

Polas veías virginaes


Imperiaes,
De que Christo foi humanado.
ZEU. Que queres, excominungado?
Manda-nos, nao digas mais.
CLÉRIGO.
Minha mercé manda e ordena
Que tragáis logo essas horas
Diante destas Senhoras
A Troiana Policena,
Muito bem ataviada
E concertada,
Assi linda como era.
DAN. Quanla pancada te dera,
Se pudera;
Mas tens-me a fórca quebrada.
CLÉRIGO.
Venha por mar ou por térra,
Logo muito sem refería.
ZEU. E a terca da oflerta
Tambem pagas pera a guerra ?
CLE. Trazei logo a Policena
Mui sem pena
Com sua fesía diante.
ZEU. Inda irá outro afilante.
Pagarás quarto e víntena.
Vem Policena e diz:
POLICENA.
Eu que venho aqui fazer?
Oh que gran pena me déstes,
Pois por fórca me trouxestes
A hum novo padecer.
358 LIVRO III.

Que quem vivo sem ventura


Em gran tristura,
Ver prazeres lhe he mais moiie.
Oh belleuissíma corte,
Senhora da fonnosura!
Nao foi o Paco Troiano
Diño de vosso primor:
Vejo hum Priamo maior,
Hum Cesar mui soberano;
Outra Hecuba mais alta,
Mui sem falta,
Em pod'rosa, doce e humana,
A quem por Phebo e Diana
Cada vez Déos mais esmalta.
E vos, Principe excellente,
üae-me alvicaras liberaes,
Que vossas mostras sao taes,
Que todo o mundo he contenió.
E aos Planeías dos Ceos
Mandou Déos
Que vos dessein (aes favores,
Que em grandeza sejais vos
Prima dos antecessores.
Por vos mui fermosa flor,
Ufante Dona Isabel,
Foráo juntos em tropel,
Por mandado do Senhor,
O ceo e sua companha,
E julgou Júpiter juiz
Que fosseis Imperatriz
De Castella e Alemanha.
Senhor Iffante Dom Fernando,
DAS TRAGICOMEDIAS. 359

Vosso sino he de prudencia,


Mercurio per excedencia
Favorece vosso bando.
Seréis rico e prosperado
E descansado,
Sem cuidado e sem fadiga,
E sem guerra e sem bríga;
Isto vos está guardado.
Ufante Dona Beatriz,
Vos sois dos sinos julgada
Que haveis de ser casada
Ñas parles de flor de lis.
Mais bem do que vos cuidáis,
Muito mais,
Vos tein o mundo guardado;
Perdeí, Senhores, cuidado,
Pois com Déos tanto priváis.
CLÉRIGO.
Que dizeis vos destas rosas,
Deste val de fermosura?
POL. Tal fóra minha ventura
Como ellas sao de fermosas.
Oh que corte (áo luzída,
E guarnecida
De lindezas pera olhar!
Quem me pudera ficar
Nesta gloriosa vida!
DANOR.
Nesta vida! lá acharas.
POL. Quem me (rouxe a esto fado?
DAN. Esse zoíe excommungado
Te (rouxe aqui onde oslas:
360 LIVRO III.

Perguntadhe que te quer,


Pera ATer.
POL. Homem, a que me trouxeste?
CLE. Que? aínda agora víeste,
E has-de-ine responder!
Declara a estes senhores,
Pois foste d'amor ferida,
Qual achaste nesta vida
Que he a mor dor das dores
E se as penas infernaes
Se sao ás do amor iguaes,
Ou se dáo lá mais tormentos
Dos que ca dáo pensamentos
E as penas que nos dais.
POLICENA.
Muito triste padecer
No inferno sinto eu,
Mas a dor que o amor me dcu
Nunca a mais pude esquecer.
CLE. Que manhas, que gentileza
Ha de ter o bom galante ?
POL. A prímeira he ser constante,
Fundado todo ein firmeza;
Nobre, secreto, calado,
Soffrido em ser desdenhado,
Sempre aberto o coracño
Pera receber paixáo,
Mas nao pera ser mudado.
Ha de ser mui liberal,
Todo fundado em franqueza:
Esta he a mor gentileza
Do amante natural.
DAS TRAGICOMEDIAS. 361

Porque he íáo desviada


Ser o escasso namorado,
Como esíar fogo em geada,
Oú hüa cousa pintada
Ser o mesmo incorporado.
Ha de ser o seu comer
Dous bocados suspirando,
E dormir meio velando,
Sem de todo adormecer.
Ha de íer muí doces modos,
Humano, cortez a todos,
Servir sem esperar della;
Que quem ama coin cautela
Nao segué a tencáo dos Godos.
CLE. Qual he a cousa principal
Porque deve ser ainado?
POL. Que seja mui esforcado:
Isío he o que mais lhe val.
Porque hum velho idoso,
Feio e muilo socegado,
Se na guerra (em boa fama,
Coin a mais fermosa dama
Merece de ser ditoso.
Senhores Guerreiros guerreiros,
E vos Senhoras guerreiras,
Bandeiras e nao gorgueíras
Lavrae pera os cavalleiros.
Que assi ñas guerras Troianas
Eu mcsina c uiinhas irmans
Teciamos os cstandarles,
Bordados de (odas partes
Com divisas muí Ioucans.
362 LIVRO 111

Com cantores e alegrías


Davamos nossos collares,
E nossas joias a pares
Per essas capitanías.
Renegae dos desfiados,
E dos pontos enlevados:
Destrua-se aquella (erra
Dos perras arrenegados.
Oh quem vio Pantasilea
Com quarenía mil donzellas
Armadas como as estrellas
No campo de Palomea!
CLE. Venha aqui; trazei-m'a ca.
ZEB. Deixa-nos icramá.
CLE. Ora sus, qu'estais fazcndo?
r

DAN. O diabo qu'eu í'encommendo


E quem (al poder te dá!
Entra Pantasilea e diz
PANTASILEA.
Que queréis a esta chorosa
Rainha Pantasilea,
A penada, triste, e fea
Pera corle táo fermosa?
Porque me queréis vos ver
Diante vosso poder,
Rei das grandes maravilhas,
Que com pequeñas quadrilhas
Vencéis quem queréis vencer?
Se eu, Senhor, forra me vira,
Do inferno solía agora.
E fóra de mi senhora;
Meu Senhor, eu vos servirá.
DAS TRAGICOMEDIAS. 363

Empregára bem ineus días


Em vossas capitanías,
E minha frecha dourada
Fóra bem aveníurada,
E nao ñas guerras vazias.
Oh famoso Poríugal,
Conhece teu bem profundo,
Pois aíé ó polo segundo
Chega o (eu poder real.
Avaníe, avante, Senhores,
Pois que com grandes favores
Todo o ceo vos favorece:
EIRei de Fez esmorece,
E Marrocos dá clamores.
Oh! deixae de edificar
Tantas cámaras dobradas,
Mui pintadas e douradas,
Que he gaslar sem prestar.
Alabardas, alabardas!
Espingardas, espingardas!
Nao queirais ser Genoezes,
Senáo muito Portugueses,
E morar em casas pardas.
Cobrae faina de ferozes,
Nao de ricos, qu'he p'rígosa;
Dou rae a paíría vossa
Com mais nozes que as vozos.
Avaníe, avante, Lisboa!
Que por todo o mundo soa
Tua próspera toiiuua:
Pois que fortuna t'eufuna,
Faze sempre de pessoa.
364 LIVRO III.

Achules, que foi daqui


De perto desta cidade,
Chamae-o dirá-a vcrdade,
Se nao queréis crer a mi.
CLE. Ora sus, sus, digo eu.
ZEB. Esíe clérigo he sandeu:
Onde estou, que o nao crismo!
O fideputa judeu,
Queres vazar o abismo?
Vem Achules, e diz:
ACHILLES.
Quando Júpiter eslava
Em toda sua fortaleza,
E seu gran poder reinava,
E seu braco dominava
Os cursos da natureza;
Quando Martes influía
Seus raios de vencimento,
E suas fórcas repartía;
Quando Saturno dormía
Com (odo seu firmamento;
E quando o Sol mais luzia,
E seus raios apurava,
E a Lúa apparecia
Mais clara que o meio dia;
E quando Venus cantava,
E quando 31orcurio eslava
Mais prompío em dar sapiencia;
E quando o feo so alcgrava,
E o mar inais manso eslava,
* E os ventos em clemencia;
E quando os sinos eslava»
DAS TRAGICOMEDIAS. 365

Com mais gloria e alegría,


E os polos s'enfeitaváo,
E as nuvens se tiraváo
E a luz resplandecía;
E quando a alegría vera
Foi em todas naturezas:
Nesse dia, inez e era,
Quando tudo isto era,
Nascéráo Vossas Altezas.
Eu Achules fui creado
Nesta (erra muitos días,
E saín bem aventurado
Ver esíe reino exalcado
E honrado per (antas vías.
O nobres seus naturaes,
Por Déos nao vos descuidéis;
Lembre-vos que triumphais:
r

O prelados, nao dormais,


Clérigos, nao murmuréis.
Quando Roma a todas volas
Conquistava toda a térra,
Todas donas e donzellas
Daváo suas joias bellas
Pera manler os da guerra.
O pastores da Igreja,
Moura a seiía de Mafoma,
Ajudae a (al peleja,
Que acontados vos veja
Sein apellar para Roma.
Deveis de vender as tacas,
Empenhar os breviairos,
Fazer A7asos das cabecas,
366 LIVRO III.

E comer pao e rabacas,


Por vencer vossos contraíros.
ZEB. Assi, assi, aramá:
Dom Zote, que te parece?
CLE. E a mi que se me dá?
Quem de seu renda nao ha
As tercas pouco lhe impece.
ACHILLES.
Se viesse aqui Annibal
E Hedor e Scípíáo,
Veréis o que vos díráo
Das cousas de Portugal
Com verdade e com razáo.
CLE. SUS, Danor, e tu Zebráo,
Venháo lodos tres aqui.
DAN. Fideputa, rapaz, cao,
Perro, clérigo, ladráo!
ZEB. Mao pezar ATeja eu de ti.
Vem Annibal, Heitor, Scipiao, e diz
ANNIBAL.
Que cousa (áo escusada
He agora aqui Annibal,
Que vossa corle he afamada
Per. iodo o mundo em geral.
HEI. Nem Heitor uño faz mister.
Sei. Nem tampouco Scipiao.
A \ \ . De veis, Senhores, esperar
Ein Déos que vos ha de dar
Toda África na vossa mao.
África foi de Chrístáos,
Mouros vo-la tem mu bada.
Capiláes ponde-lh'as máos,
DAS TRAGICOMEDIAS. 367

Que vos viréis mais loucaos


Com famosa nomeada.
O Senhoras Portuguezas,
Gastae pedras preciosas,
Donas, Donzellas, Duquezas,
Que as íaes guerras e emprezas
Sao propriamente vossas.
He guerra de devacao,
Por honra de vossa (erra,
Cominettida com razáo,
Formada com discricáo
Contra aquella gente perra.
Fazei contas de bugalhos,
E perlas de camarinhas,
Firmaes de cabecas d'alhos;
Isto si, Senhoras inhibas,
E esses que tendes dae-lh'os.
Oh! que nao honráo vestidas,
Nein mui ricos atavíos,
Mas os feitos nobrecidos;
Nao briaes d'ouro tecidos
Com trepas de desvarios:
Dae-os pera capacetes.
E vos, Priores honrados,
Repartí os Priorados
A Su icos e soldados,
Et centum pro uno accipietis.
A renda que apandáis
O melhor que A7ós podéis,
Ñas igrejas nao gastáis,
A os pobres potico dais,
E uño sei que lhe fazeis.
368 LIVRO III.

Dae a terca do que houverdes,


Pera África conquistar,
Coin mais prazer que puderdes;
Que quanto menos (¡verdes,
Menos (eréis que guardar.
Ó senhores cidadáos,
Fidalgos e Regedores,
Escutae os a(ambores
Com ouvidos de christáos. •
E a gente popular
Avante! nao refusar.
Ponde a vida e a fazenda,
Porque para tal contenda
Nínguem deve recear.
Todos estas figuras se ordenárao em caracol, e a vozes
cantárño e rcpresentárao o que se segué cantando
Todos.
"Ta la la la Iáo, ta la la la láo."
ANN. Avante! avante! Senhores!
Que na guerra com razáo
Anda Déos por capitáo.
Tod. "Ta la la la láo, (a la la la láo."
ANN. Guerra, guerra, iodo esíado!
Guerra, guerra mui cruel!
Que o gran Rei Dom Manuel
Coníra Mouros está irado.
Tem proinettido e jurado
Dentro no seu coracáo
Que poucos lh'escaparáo.
Tod. "Ta la la la láo, (a la la la láo."
ANNIBAL.
Sua Alteza determina
DAS TRAGICOMEDIAS. 369

Por acrescentar a fé,


Fazer da inesquita Sé
Em Fez por graca divina.
Guerra, guerra mui contina
He sua grande tencáo.
Tod. "Ta la la la láo, ta la la la láo."
ANNIBAL.
Este Rei táo excedente,
Muito bem afortunado,
Tem o mundo rodeado
Do Oriente ao Ponente:
Déos mui alto, omnipotente,
O seu real coracáo
Tem posto na sua mao.
Tod. "Ta la la la láo, ta la la la láo."

E com esta soiga se sahirao, e fenecen a susodita tragi-


comedia.

— «>»>«>»>;

Vul. I I . '-*
F I G U R A S.
APOLLO.
PORTEIRO DO TEMPLO.
MUNDO
VENCIMENTO
Romeiros.
CETRO OMNIPOTENTE
TÉMPO GLORIOSO
FLOR DA GENTILEZA
FAMA
> Romeiras.
GRÁVIDA DE
SAHEÜORIA
HUM VILLÁO.

A seguinte tragicomedia foi representada na partida da


sacra e preclarissima linperatriz, filha tP EIRei D. Mamid*
pera Caste/la, quando easou rom o Imperador Carlos. Era
do Senhor 152(i.
TEMPLO D'APOLLO.

Entra primeiramente o Autor. E por quanto os dias


em que esta obra fabricou esleve enfermo de grandes
fiebres, vem desculpandose da imperfeigño da obra, pera
too alta festa, e diz:
O AUTOR.
Teniendo fiebre contina
Aquestos dias pasados,
La muerte puesta á mis lados,
Diciéndoine — aína, aína,
Que tus dias son llegados!
Y tomado ansí entre puertas,
Me pareció que moría,
Y en después de muerto veía
Las hermosas que son muertas,
Que en esto mundo leía..
Vi cada cual como esíaba
Con toda su hermosura;
Y con la gran cállentela
Tan recio devaneaba,
Que las vi de esta hechura:
La hermosa Eva hacía
Unas migas para Adán,
Sin agua, ni sal, ni pan,
La nieve ge las coda,
Y inejíalas Roldan.
21 -
372 LIVRO III.

Y Berzabé se lavaba
Lo presento y lo ausento
En un arrayo corriente;
Y de en medio de una fuente
Yo solo me la miraba.
Ella sentóse á hilar,
Desnuda sobre su baño,
Y David, hecho ermitaño,
Salió con ella á bailar,
También sin palmo de paño.
Vi andar después de aquella,
Raquel guardando ganado,
Tan linda, que su cayado
Era perdido por ella,
Y el zurrón su enamorado.
Una llanta le AÍ yo,
Y cuando la oí tocar,
Presumí de la abrazar,
Y ella llamó por Jacob,
Que era ido á vendimiar.
Vi mas á la Reina Esthoi,
Con su hermosura tanta,
Matar pulgas en su manta,
Que tenia por coser,
Y ella hecha una santa.
La muy lucida Medoa,
Hermana sin división,
Vi perguntar por Jason,
Puesta en una chaminea
En el techo de un mesón.
Vi la Troyana Helena
Con su rosto serafino.
DAS TRAGICOMEDIAS. 373

Corriendo tras de un cochino,


Y llamando á Policena,
Que venía del molino.
Acudió la Reina Dido
Con un cucharro de Eneas,
Deciendo: porque le enleas?
Toma hombre por marido,
Que de ventura lo veas.
Dende aquella callentara
Maldito el seso que yo tongo.
Y la obra con que vengo,
Es de tan alta dulzura,
Como yo crecí por luengo.
Dice lodo en Castellano,
El spirito mío ausente:
Y pues la obra es doliente,
Válgame el deseo sano
Que estuvo siempre presento.
Argumento.
Altos Príncipes, contemplo
Que este palacio ensalzado
Para este auto es tornado
Muy famosísimo templo
De Apolo, Dios adorado.
Y aquelle es su altar,
Que denoía su excelencia, N
Adonde en vuesa presencia
Lo venían allí adorar,
Sin cargo de conciencia.
Y pues la presente obra
Ha de ser representada
En esla corte sagrada,
374 LIVRO III.

Donde sé que el saber sobra,


No declaro della nada,
Sino que primeramente
El Dios Apolo enírará:
Bien veréis lo que dirá;
Y en después la oíra gente
Luego se conocerá.

Vem Apollo e diz:


APOLLO.
De Dios esíoy espantado
Poner la (ierra en el suelo;
Que si yo fuera llamado,
Asegun tengo pensado,
Ella volara o(ro vuelo.
Si yo criara un mundo solo,
No lo hiciera tan chiquito,
Cuanto mas Dios infinito,
Pues que yo, que soy Apolo,
Diera mejor en el hito.
Porque hubiera de ordenar
Todo el mundo de otro pelo:
Los ángeles acá en el suelo,
Y los peces en el cíelo,
Las estrellas en la mar.
Que él debiera de hacer,
Pues que solo un mundo hacía,
En que pudiera caber
Siquiera la cleresía,
Que no se pueden valer.
Y debiera de hacer
DAS TRAGICOMEDIAS. 375

De acera los varones,


Según mis opiniones,-
Y de plata la muger,
Para hacella tostones.
Monjas pudiesen A7olar;
Los monjes de estopa bolla,
Que en llegando la candela
Se acabasen de quemar
Y luego fuego á su celda.
Y plantar todos los frailes
En la (ierra que no es buena,
Las coronas so el arena,
Las piernas hacia los aires,
Como quien pomar ordena.
Y si no diesen limones
En mitad del arenal
Á todo genero humanal,
Y pérsigos á montones,
Luego fuego y — San Marzal
Y en después de hecho oslo,
Los clérigos debieran ser
De manteca por cocer,
Y puestos al sol nun cesto.
Eslo fuera menester.
Por acortar la carrera,
No quiero mas alargar.
Dios ha de estar nel altar.
Y no andar mucho fuera
Por la villa á negocear.
Sóbese ao altar, e diz:
Estos son mis mandamientos
Amarás á las mugeres,
376 LIVRO III.

Lo mas recio que pudieres,


Con (odos tus pensamientos,
Y dales cuanto (uvíeres.
Y ansí misino digo á ellas,
Sus fieles enamorados,
So pena de mil pecados
Y fiebre vengan sobre ellas,
Si no fueren mucho ainados.
Darán al diablo el padre
Y parientes mas cercanos,
Y ansí á los hermanos,
Y á la vieja de su madre,
Y venga amor á las manos.
Y sobre la haz de la (ierra
Vivirán años sin cuento,
Cumpriendo este mandamiento.
Sino yo les daré guerra,
Lloro y desconíeníamíenío.
Y so pena del infierno,
Pues en santo templo esíais,
Que no habléis ni departáis,
Que yo os daré el reino eterno,
Si todo el auto calláis.
Y mando que no en(re aqui
Neste templo esclarecido.
Aunque devoto de mí
Y mí santo conocido,
Que por santo conocí,
Sino sí de casa fuero
Del muy podroso Señor
Glorioso Emperador.
De los suyos cual quisiere
DAS TRAGICOMl^KÜF 377

Entre sin ningún temor;


También si fuere persona
De la sacra Diesa humana,
Emperatriz soberana,
Y vive con su corona,
Entre de muy buena gana.
Ora sus, alto, Gilete,
Tú serás aqui portero;
No dejes enírar romero,
Aun que íe quite el bonete
Ni te dé mucho dinero,
Sin primero perguníares
De recio quien es y cuyo;
Y siendo, como digo, suyo,
Entre con dos mil cantares;
Y otro no; y aqui concluyo.
Vem o Mundo, como romeiro, c com elle a Flor da
Gentileza, como romeira, e entrao no templo dizendo:
MUNDO.
Introibo in domum tuumf
POR. No entrareis acá, no,
Ni podréis de ahí pasar.
MUN. Los templos son del coinum,
Y en mí vida no vi yo
Quien los mandase guardar.
Pon. Quien sois que queréis entrar?
MUN. Yo soy el Mundo, señor.
POR. Cuyo? MUN. Del Emperador;
Y no se puede negar,
Pues que (¡ene lo mejor.
PORTEIRO.
Vos quien sois, Romera ainada?
378 LIVRO III.

ROM. Yo soy Flor de Gentileza.


POR. Cuya sois? ROM. Soy criada
De la Emperatriz sagrada
Y vivo con su Alteza.
POR. Pues para qué es mas buscar
Apolo ni á Diana;
Que en la región humana
No ha hi mas que adorar
Después de la Fe Cristiana.
MUNDO.
Mandáis ya que entremos? Pon. Si:
Todo está á vueso servido.
MUN. Oh qué hermoso edificio,
Y qué santas veo aquí,
Tan dinas de sacrificio!
Donde estaban? do nacieron
Mármoles tan cristalinos?
Oh templo de los divinos,
Mas divino le hicieron,
Y mas tino que los finos!
Oraqao a Apollo.
Suspirando vengo aqui,
Señor Apolo. APO. Qué has?
MUN.Primero me escucharás;
Que mi clamor vaya á ti,
Y callando proverás.
APO. Estaré bien de vagar:
Seré como Dios del cielo,
Que aun que vea arder el snob»,
Todo su hecho es callar.
MUNDO.
Yo sov el Mundo, señor:
DAS TRAGICOMEDIAS. 379

Mas hallóme en descontento:


Vengo á que ine hagáis mayor,
Que el Cesar Emperador
Merece mundos un ciento.
Y pues es tan trasposante,
No es razón que se contente:
Bien lo dice claramente
Su divisa, Mas avante!
Como v7aron excelente.
Y por cuanto yo esto veo,
A ti vengo en romería,
Pedir á (u señoría,
Que pues (al señor poseo,
Me hagas como querría.
Pídote que acrecientes
Sus victorias, señoríos,
Y corran todos sus ríos
Bálsamo, porque las gentes
Adoren sus poderíos.
Y sus árboles salvages
Críen perlas oriénteles;
Y sus silvestres jarales
Den fructas de mil prumages,
Y íainbíen los robledales.
Sus campos, sin los sembrar,
Crien celestes licores;
Y los fructos y las flores
Que cuenten sin acabar
Su grandeza á los pastores.
Yr manda á cualquiera montaña
Portuguesa y Castellana,
Por do pasare á España
380 LIVRO III.

La Emperatriz soberana,
Que sea muy fresca y llana:
Y que hagas convertidos
Los caminos en cristales.
Y las estradas reales
Sean lirios floridos,
Que le A7engan naíurales.
Y esto luego, señor.
APO. Despachaldo con quien quiera:
Diogo Lopes de Siquera
Me hablará nesa labor;
Y Nabucodenosor,
Que era de su manera;
Sino el Doctor Bras Nieto,
Con el Profeta Abacu:
Entonces yo te proinieto
De hacer lo que pides tú.
MUNDO.
No sé esos si querrán.
APO. El Chanciller mayor sea,
Y consigo Cidaea,
Que tan parecidos son
Como Mandinga á Guinea.
Vem o Poderoso Vencímenlo, Romciro do Impera-
dor, e a Virtuosa Fama, Romeira da Imperalriz, r
querendo entrar no templo, lhe diz o
PORTEIRO.
No habéis de entrar acá,
Romero ni la Romera;
Bien podéis resar de fuera,
Que Dios lo recibirá,
Si la fe (raéis entera.
DAS TRAGICOMEDIAS. 381

VK\. Porqué no entran allá


lios romeros,
Los devotos forasteros?
No sé porque eso será.
PORTEIRO.
Quien sois vos, con quien venís?
VEN. Soy Podenaso Vencimiento.
Pon. Cuyo sois; con quien vivís?
VKN. Con Carlos Cesar, bien oís,
Que manda hasta el firmamiento.
Pon. Y la de vola Romera,
Muy linda, como se llama?
FAM. A mí Virtuosa Fama.
POR. Cuya sois? FAM. De la primera
Emperatriz mas entera
Que nunca se vio madama.
PonTEIRO.
Entrad con la bendición,
Complid vuesa romería,
Que Apolo con alegría
Da plenaria absolución
Y jubíleu año y dia.
VEN. Templo de tales aliares
Y ían prefetas figuras
Son mas dulces á las escuras;
Que las antorchas á pares
No son para (ales pinturas.
FAMA Coracáo.J
Pues de (i, Dios, íanía gracia mana,
Aumenta Aictoria de bien en mejor,
Dame mil lenguas, que cuente, señor,
Las gradas de mi Señora soberana.
382 LIVRO III.

VEN. Á ti señor, pido con ánima sana


Que esfuerces mis fuerzas confra los paganos.
FAM. O Dios de la vida, esíiende tus manos,
Y hazme ligera, que cumpla mi gana.
VENCIMENTO.
Alumbra las vías, enseña el camino
A mí que deseo vencer á Turquía,
FAM. Haz que resuene la trómpela mia
De estrella en estrella, de sino en sino.
VEN. YO Vencimiento le pido ser diño
Que él quebré los muros de Jerusaleu.
FAM. Hazlo, Apolo, que gracias te den
Aquelles que niegan no seres divino.
VENCIMENTO.
Señor, bien has entendido
Todo lo que te pedimos;
Pues que á tu templo venimos,
No sea tiempo perdido:
De manera,
Que yo, y mi compañera
Seamos bien despachados;
Y mirad nuestros estados
Y vuesa bondad señera.
APOLLO.
Hablóme el Veedor,
Y el Rey Bamba con él.
Y saberemos por ól
Como se hará mejor,
Porque vaya por nivel.
Si este no, Don Juan Perora,
Y traya consigo Amon,
Porque era de su facion:
DAS TRAGICOMEDIAS. 383

Y ansí desta manera


Tomaremos conclusión.
Vem outro Romeiro do Imperador, seu nome he Cetro
O m n ip ótente; e oulra Romeira da Imperatriz, seu nome
he Prudente Gravidade: vem cantando hum hi/mno.
PORTEIRO.
Aunque cantéis, mandóos yo
Que no entrareis conmigo.
CKT. Majadero sois, amigo,
No merecéis culpa, no.
POR. Quien sois, Romero señor?
CKT. Dejadme entrar, guardador,
Que yo soy Ceíro Omnipotente.
Pon. Cuyo? CET. Del muy prepotente
Y notable Emperador.
PORTEIRO.
Y vos, Romera sin falta?
GRA. Soy Prudente Gravidad.
Pon. Cuya? GRA. De la Magestad
De la Señora mas alta
De toda la crisíandad.
Pon. Ciertamente
Buena y escogida gente
Tienen aquestos Señores,
Que no pueden ser mejores,
Dende Levante á Poniente.
CETRO.
Entraremos ya, Portero ?
POR. S Í ; muy bien podéis entrar.
CKT. Harto (¡ene que mirar
Nesle (emplo el (al romero
Que no (emese cegar.
384 LIVRO III.

Oracao.
Señor, yo vení del cielo,
Y bajé acá en la tierra,
Y aqui estaré
Serviendo al Cesar novelo,
Y siempre en paz y en guerra
Serviré. •
Vengo á ver tu santo templo,
Pues debes ser adorado,
A según suena,
Y das á todos ejemplo.
Digo que seas loado
Norabuena.
Y pues eres Dios del oro,
Y crias las esmeraldas
Y zafiras,
Dame, Señor, gran tesoro,
No me vuelvas las elpaldas,
Pues me miras.
Que si tú quieres ser mas
Amado que Dios del cielo,
Y mas querido,
Da dineros y verás:
Da riqueza sin recelo,
Que te pido.
Porque las guerras que espera
De las geníes de Turquía,
En mar y (ierra,
Aunque soy fueríe guerrero,
El dinero es la guia
De la guerra.
APO. El amo me hablará,
DAS TRAGICOMEDIAS 385

Y el Profeía Balaan,
Y entrambos me hablarán,
Y luego á tu voluntad
Ellos te despacharán.
Vem outro Romeiro do Imperador, chamado Tempo
Glorioso, e outra Romeira da Imperatriz, chamada Ho-
nesta Sabedoria, cantando hum dito, cuja letra he a
seguinte:
"Gloriosa gloria mia,
"Vos seáis muy bien venida;
"Pues con vos vive la vida,
"Tiempo es de ini alegría."
PORTEIRO.
No entréis, Romero honrado,
Ni tanpoco la Romera.
TEM. Cuerpo de mí! Porqué no?
POR. Porque es templo sagrado
Y no entra acá quien quiera.
TEM. Pues jura á Dios que entre yo.
POR. Quien diré yo que sois A7OS?
TEM. Glorioso Tiempo só
Del Cesar nueso señor.
POR. Y VOS, Romera de Dios?
Cumple ser yo sabidor
Quien sois, porque entréis los dos.
SABEDORIA.
Honesta Sabidoría
Es ini nombre; y soy doncella
De la Imperatriz, aquella
Por quien el Mundo decía:
O eres ángel, ó estrella.
POR. Entrad; norabuena vais:
2 5
Vul. II.
386 LIVRO III

Apolo os cumpla hi luego


Vuesa petición y ruego,
Como ATOS lo deseáis.
Entrño no templo, c diz
TEMPO GLORIOSO.
Muy bien hacen de vedar
Que no entre nadie aqui,
Que nunca en otra templo vi
Santas para nos matar,
Para dar la vida sí.
Que aunque soy Tiempo glorioso,
Alegre y de buen aseo,
Asegun lo que aqui veo,
Sé que voh7erá lloroso
Mi deseo.
Oh templo para espantar!
Templo para no morir!
Templo para no vivir!
Templo para renegar!
Y templo para servir!
Orapáo.
Gracias te hago, loores te envió,
Porque me heciste Tiempo gozoso,
Y luego me disíe al muy podroso
Cesar,' que ahora es señor mío.
Pídoíe, Dios Señor inmortal,
Que tengas la rueda que anda y desanda,
Y ture mil años el gozo que anda
Por toda Castilla y en Portugal.
Y no dilates, señor,
A hacer lo que le pido.
Inclina á mí el íu oído:
DAS TRAGICOMEDIAS. 387

Dame buen despachador,


Que no me ponga en olvido.
APO. AI Secretorio hablarás,
Y él mismo me hablará-,
Y con él venga Bozrá,
Porque delante y de(rás
Era de su calidad.
Y si esíe no quisieres,
El esmoler bien lo haz;
Es hombre de bella paz,
Es propio como lo vieres
Físico de Ruy Acaz.
Si esío le fuere ageno,
A Luís Texera irás,
Que es de una parte Hipocrás,
Y de la otra Galeno.
Vete, y no cures de mas.
Chega hum Villño Portuguez, em trajo de Romeiro, e diz:
VlM.AO.
Ah corpo de mi co'a Virgein!
Havía eu ca de chegar.
Crede certo que he errar
Prometer ninguem roinagein,
Nega mesmo no lugar.
Porque nenhuin santo bento
Nao deve de ter por bem
A canseira de ninguem,
Nega s'he santo de vento,
Que nao he, nem val, nem tem.
Quero ora cuspir primeiro,
Antes que entre no sagrado,
Porque deve ser peccado
25*
388 LIVRO III.

Cuspir ninguem no mosteiro,


Quanto mais s'he ladrilhado. (cosPe.)
Aramá, como estou secco!
Cuidae que o caminho he demo.
Aqui trago eu hum leva-remo:
Nega se m'eu embeleco,
Esíe he da Pedra do Exíremo. (bebe.)
Nao ha hi (al oracáo
Como depois de beber,
Que Déos nao he senáo prazer;
E quantos Sanctos lá estño
O diráo se for mister.
E tambein quero tirar,
Ante que entre na orada,
Hüa cochina pellada,
Que trago pera oflértar
A este Déos logo á entrada.
PORTEIRO.
Sí; luego acá entrareis:
Mirad que negras quejadas!
VIL. Andáo seccas das meadas.
Porém si, vos leixareis
Entrar pessoas honradas.
POR. Quien sois? VIL. Janafonso.
POR. Tenéis vos algún señor
O señora de valor?
VIL. Lá ajudo eu ao responso
As vezes o nosso Priol.
E trago-lhe dous novilhos
E hüa porca; e assi
Que lhe criei ja dous filhos:
Soma que he chegado a mi.
DAS T R A G I C O l W Ü S 389

E bem aínda vos digo,


Ora elle he homein que val.
Er tambem vos fareis mal
Ein tomar bírra contigo.
Que nao saín agua nem sal.
PORTEIRO.
Pues aun que fueses criado
Del Papa, que es gran señor,
Y no del Emperador,
En este templo sagrado
No entraras, labrador.
VIL. Adiáis lá qu'he conciencia
Vir hoinem d'alem de Braga,
Do Concedió de Cornaga,
Gastando o que nao alean ca,
Despois estar nesta praga?
PORTEIRO.
Qué quieres á Dios ahora?
VIL. Mas que me quer elle a ini?
Dizei-lhe, erantá, que está aqui
Janafonso, ou einbora;
E quicais dirá que si.
POR. Qué le has de pedir? veamos.
VlLLAO (cantando.)
"Rogaré á Dios del celo
"Que era padre de mesura,
"Que ou me case ou ine mate,
"Ou me tire de tristura.
"Amor no puedo dormir."
POR. Y eso le has de pedir?
Vete noramala de hi.
390 LIVRO III

VIL. Queréis conhecer o ruim,


Dae-Ihe offício a servir.
Pois nao ha casa na Landeira,
Nem em todo o Ribatejo,
Em'qu'eu nao entre sem pejo;
E ja estive na Pederneira,
E nao vi o que aqui vejo.
Váo aqui por por porteiro
Hum demo pastel de pego,
E tem cenreira comego:
Pois n'ergueja do Barreiro
Entrei sem este trasiego.
E na Sé da Corticada,
E da Chamusca e do Cartaxo,
E da Alhandra e mais abaxo
Entra eu sem pejo e sem nada:
E aqui 'síou nesta candirá.
APO. Entre, entre; qué cosa es esía?
VIL. Pardeos! tal roupa com'esta
Nunca a vi vender em feira;
Mas ver e nao ter, que presla?
APOLLO.
A qué vienes? di, grosera:
Piensas que esíás en aldea?
VIL. E nao ve vossa mercea
Que saín eu tambem romeiro?
Ou haAreis mislcr candea?
E mais acho-me engañado,
Porque Déos nao he Castelhano,
Nem viera cu ca esl'anno
Se disto fóra informado.
Mas nao he nada hum engaño.
DAS TRAGICOMEDIAS. 391

Nunca vos eu darei bolos;


Porque como a noz he noz,
Déos naceo em Estremoz,
E sua máe eui Arraiolos:
E esta he minha voz.
E San Pedro no Barreiro,
E San Paulo em Alcoucheto,
San Francisco em Alégrelo,
E Sanlisprito em Pombeiro,
E San Fernando em Punhelc.
O Ceo e a Terra e o Mar
Nacéráo na Golegan,
E o Sol na Lourinhan,
E as febres ein Thomar,
E as mocas na Louzan.
Todo o bem e a verdado
Neste Portugal nacéráo;
Tainbcm delle procedéráo
Todos Reís da Chríslandade,
Porque os mais delle vieráo.
Eu nao vos hei d'adorar,
Porque Déos he Porluguez.
APO. Villano ser descorlez
No es mucho de espantar.
VIL. Romeiros, sem mais tardar,
Facamos alguns prazcres;
Que eu como vejo mulheres,
Nao me lembra de rezar.
TEMPO GLORIOSO.
Todos ocho, como estamos,
Cantemos devoíaineute
Una prosa conveniente
392 MVRO HI.

Al santo Dios que buscamos,


En este templo presente.
APOLLO.
YO no soy nada de prosas,
Ni salmos ni aleluías;
Agrádanme las folias
Y bailes; y otras cosas
Saltaderas son las mías.
Y pues tú, Tiempo glorioso,
Recuentas glorias tamañas
De todas nüesas Españas,
Estoy mucho deseoso
De ver cantar sus hazañas.
Cantadme por vida vuestra
En Portuguesa folia
La causa de su alegría,
Y veré de eso la muestra,
Y veréis la gloria mía.
Ordenao-se todos os Romeiros em folia c cdntao a seguinte

Cantiga.
"Pardeos, bem andou Castella,
"Pois tem Rainha táo bella.
"Muito bem andou Castella
" E todos os Castelhanos,
"Pois (em Rainha (ao bella,
"Senhora de los Romanos.
"Pardeos, bem andou Castella
"Com toda sua Hespanha,
"Pois tem Rainha (áo bella,
"Imperatriz d'AHeinanha.
"Muito bem andou Castella,
DAS TRAGICOMEDIAS. 393

Navarra e Aragáo,
Pois tein Rainha táo bella,
E Duqueza de Miláo.
Pardeos bem andou Castella
E Sicilia tambem,
Pois tem Rainha táo bella,
Conquista de Jerusalem.
Milito bem andou Castella,
E Navarra nao lhe pesa,
Pois tem Rainha táo bella,
E de Frandes he Duqueza.
Pardeos bein andou Castella,
Ñapóles e sua fronteira,
Pois tem Rainha táo bella,
Franca sua prisioneira."
APOLLO.
Yo no me puedo sufrir:
'ambien Dios ha de bailar,
¡i ángel ha de quedar,
íi arcángel ha de huir,
Vi apóstol se escusar.
Lpartad, que viene Dios,
'ardeos, nunca eu vi tal Déos.
li aqui gaita hubiera,
tailara con una Romera,
• con cualquiera de vos.
Porque esta fiesta, oh qué fiesta!
toé placer, oh aué placer!
Á Emperatriz divina,
De esta águila serafina
Se cantará este cantar.
"Águila, que dio tal vuelo,
"También velará al cielo.
"Águila del bel volar
"Voló la tierra y la mar:
"Pues tan alto fue á posar
"De un vuelo,
"También volará al cielo.
"Águila una Señora
"Muy graciosa voladera,
"Si mas alto bien hubiera
"En el suelo,
"Todo llevara de vuelo.
"Voló el águila real
"Al trono imperial,
"Porque le era natural,
"Solo de un vuelo,
"Subirse al mas alto cielo."

E assim cantando se acabou esta tragicomedia.


FIGURA S.
PROVIDENCIA.
JÚPITER.
QUATRO VENTOS.
MAR.
SOL.
LÚA.
VENUS.
MARS.
HUMA MOURA ENCANTADA.

A tragicomedia seguinte foi. feita ao muito alto e pode-


roso Rei D. Manuel, o primeiro em Portugal deste nome,
á partida da lllustrissima Senhora Iffanta D. Beatriz, Du-
queza de Saboia: da qual sua invengño he: Que o Senhor
Déos, querendo fazer mercé á dita Senhora, mandón sua
Providencia por messageira a Júpiter, Rei dos Elementos,
que fizesse Cortes, em que se eoncertassem Planetas e Signos
em favor da sua viagem. Foi representada nos Pagos da
Ribeira na cidade de .Lisboa, era de 1519.
CORTES DE JÚPITER.

Entrón logo a Providencia em figura de Princesa, com


esphera e cetro na mao, e diz:
PROVIDENCIA.
Eu Providencia chamada,
Provedora do presente,
No porvir antecipada,
Sam por Déos ora enviada
Polas oracoes da gente.
Rogáo per toda Saboia
E nos reinos onde estáis,
Por esta Deosa de Traia,
Por esta divina joia,
Que agora lh'envíais.
He de tantos e de tantas
O meu Déos táo requerido,
Dos anjos, Santos e Santas,
E todos com preces tañías,
Que nao tem contó sabido.
Reís, Raínhas e Donzellas,
E muitos por esta estrella
Rogáo a seu Senhor dellas,
Nosso Déos, que va coin ella
Como estrella entre as estrellas.
Sobre o qual todos pastores
Leixáo sem pasto as manadas,
DAS TRAGICOMEDIAS. 397

E se fazem oradores,
Em oflérta dando flores
E suas pobres soldadas.
Bispos, frades, e beguinos,
E monjas de Jesu Chrísto,
Alé mocos e meninos
De joelhos pedem isto,
Humilhados e continos.
Que elle muito a seu prazer
A leve a salvamento;
E para isto haver de ser,
Júpiter ha de fazer
Cortes logo em hum momento.
Porque Déos me deu a mi,
Que o fizesse rei do mar,
E dos ventos outro si,
E dos sinos: venha aqui
Pera logo comecar.
Vem Júpiter e diz:
JÚPITER.
Eis-me aqui, alta senhora;
Que quer Vossa Magestade?
PRO. Nobre Rei, venhais einbora.
Cuinpre que facais nessora
Cortes coin solemnidade.
JUP. Sobre que, divina joia?
PRO. Porque \Ta¡ hüa Princeza,
Alta Iffanta Portugueza,
Duqueza pera Saboia.
JÚPITER.
Por muiío seu bem será
E \ida do coracáo.
398 LIVRO III

PRO. O Senhor a levará,


Tanto prazer lhe dará,
Como lhe deu perfeicáo.
Subí a vossa exaltaeáo,
E mandae chamar o Mar,
E mandae por em prisáo
Os ventos de Meridiáo,
Que impedem seu navegar.
E venha a Lúa dourada,
O Sol e Venus causando
Que a linda desposada
Nao caminhe esta jornada
Com saudade suspirando.
Manda Déos que va folgando
Por esses mares de Troia;
Fazei-lhe o mar muito brando
E nao se catará quando
Se verá dentro em Saboia.
A hora do partir se vem,
Fazei cortes logo essora.
Jui\ Ellas se faráo mui bem,
Pois que nosso Senhor tem
Cuidado dessa Senhora.
PRO. EU A7OU prover logo essora
Naquella casa dozena
Dos males que he malfeitora,
Aindaque tudo adora
Aquillo que Déos ordena.
Vai-se a Providencia e entrao os quatro Ventos em
figura de trombeteiros c diz
JÚPITER.
1 logo dizer ao Mar
DAS TRAGICOMEDIAS. 399

Que faco cortes agora,


E que o mando chamar.
SOL. Cumpre-nos bem de ventar
Para elle saltar ca fóra.
Tocño os Ventos"suas trombetas, e vem o Mar muito
fairioso, e diz a Júpiter:
MAR.
Pardeos, grande farnesia
Me dáo vossas torcas bellas,
Que muito bem merecía
Mandares messageria
Polas vossas seto estrellas.
Ou por hum rio dos meus,
Ou pelo meu maior pego,
Ou pelos montes Prineos,
E nao por quatro sandeus,
Que sao contra meu socego.
JUP. Muito brav7o Arem o Mar.
V
MAR.VÓS nao sois minha senhora
A Lúa que ui'ha de mandar.
JUP. EU te farei amansar
Pola tua superiora.
Ide, ventos, á muí bella
Lúa Diana fermosa,
Dizei que a mais bella qu'ella
Está pera ir á vela
Desíes reinos, poderosa. •
Venha ás Cortes aqui
O Sol e Venus e ella,
E tu, Mar, nao íe vas d'hi.
MAR. Venha a senhora de mi,
Qu'eu m'entenderd com ella.
400 LIVRO III.

JÚPITER.
Tudo s'ha de conceríar
Nesías cortes que fazemos:
O ceo e a térra e o mar
E os ventos s'hao d'am ánsar,
Pera ser o que queremos,
Vem o Sol e a Lúa bailando ao som das trombetas
dos Ventos, e com elles Venus, e diz o
SOL.
Oh caso pera espantar!
Que he isto, Júpiter?
A que nos mandáis chamar?
Quer-se o Orbe renovar,
Ou torna-se o inundo a fazer?
JÚPITER.

Mas he hum caso profundo,


E de tanta preminencia,
Que Déos com rosto jocundo,
Como se fizesse hum mundo,
Manda poer diligencia.
Vai a serena e altiva,
Cuja graca persevera
Contra todo o mal esquiva,
Filha do que muito viva,
Neta do que nao morréra.
Polo qual vos clara Lüa,
Concertae vossas mares,
Porque em tudo esta he hüa,
Que no oriente nenhüa
Tal como esta nao poz pés.
Primeramente A7OS digo,
Ventos, seréis avisados
DAS TRAGICOMEDIAS. 401

Que váo as naos sem perigo.


SUL. Eu sou Sul, fallae comigo.
NORTE.
Senhor, eu sam Norte, eu.
NORD.EU sou Nordeste, eu sim,
# E digo que o Sul he sandeu.
SUL. Tal siso tens tu como eu;
Fallas como vento emfiui.
JUP. Tu Norte, teras cuidado,
E Noroeste outro tal,
De ventar e com recado.
Non. O Sul ha mister atado
C'os doudos no esprital.
NOROESTE.
Sí Senhor, e o Sudoeste,
Elle Sueste tainbem;
Vente Norte e Nor-noroeste,
Porque a viagem preste;
E nao vente outrem ninguem.
VEN. Oh quem fóra agora o Mar!
LÚA. Nunca elle foi táo dítoso.
SOL. Mais ditoso se ha de adiar,
Quando a vir, o seu esposo.
E dirá, como a olhar,
Namorado com razáo:
"Niña erguedine los ojos,
"Que a mi namorado m'hño.
Este Vilancete foi cantado a tres vozes: o Sol, a Lita
e Venus, e acabado diz
JÚPITER.

Pera esta viagem ser


Aquella que Déos ordena,
Vol. 11
2tí
402 LIVRO III.

Vos, Lúa, haveís de fazer


A o Mar obedecer
A esta froía serena.
SOL.
Mande primeiro, Senhor,
Que nao seja retrograda
Venus, pois sois seu maior,
E Déos que he superior
Favorece a desposada.
JUP. Partirá esta alta esposa,
No ponto de prea-mar,
Com sua frota lustrosa,
Na conjuncáo mais ditosa
Que lhe pódennos guisar.
E ao desferir das A7elas
Faremos que va tambem
Com (odas suas donzellas,
Que liajáo saudade dellas,
E ellas nao de ninguem.
E por mais solemnidade,
E Sua Alteza folgar,
Sahirao desta cidade
Toda a geralidade
Dos nobres per esse mar.
Nao. com velas nem com remos,
Mas todos feitos pescados,
Da feicao que aquí diremos;
Que em tal caso os extremos
Em extremo sao louvados.
Os conegos da Sé einbora,
Em figuras de toninhas,
I rao com esta Senhora
DAS TRAGICOMEDIAS. 403

Até bem de foz em fóra


Por essas ondas inarinhas.
SOL.
E (ambem até Cascaes
Iráo os Vereadores,
Feítos rodavalbos taes,
E delles daráo mil ais,
E delles diráo amores.
VEN. Tambein ¡rao frades alguns
Do termo e da cidade.
LÚA. Mas nao ficaráo nenhuns:
Seráo ruivos amolado,
E os outros seráo atuns.
VENUS.
E todolos corretores
Em figura de robalos.
SOL. Juízes e Ouvidores,
Delles peixes voadores,
E delles peixes cavallos.
LÚA. Como iráo os esíudantes?
JUP. Feítos barbos de Moncáo,
E delles em rans cantantes,
Dizendo per consoaiites:
Quem nos dera aqui o Duráo!
Os da Moeda iráo (ornados
Em garoupas de Guiñé,
Das morcas espaníados,
Perguntando aos pescados
Cada hum que peixe he.
VEN. Sahirao as regateiras
Em cardume de sardinhas,
Nadando muito ligeiras,
2G"
404 LIVRO III.

Desviadas das carreiras,


Por nao (opar co'as íonínhas.
SOL.
Iráo ceríos hachareis
Em forma de tubaróes.
JUP. Esses após as gales:
E iráo almoíacés
Convertidos em cacóes.
VEN. Jorge Vasco Goncellos
N'hum esquife de cortica
Irá alienando os cabellos,
Por divisa dous nóvelos;
A letra dirá: Ou ica!
LÚA.
Sabéis vos quem irá bem
Em figura de balea?
Gil Vaz da Cunha; porém
Encalhará em Relem,
E dirá: Eis-me n'area.
Dona Isabel sua mulber
Faremos raía n'hum salto,
E cantará ao pratel,
"Eu m'era Dona Isabel,
"Agora raía do alto."
Iráo muflieres solteiras,
Todas nuas, trosquiadas,
Bem rapadas as moleiras,
Carregadas de peneiras,
Em senhas sidas sentadas.
SOL. Iráo todolos cantores;
Contras altos, carapaos;
Os tiples, alcapetores;
DAS TRAGICOMEDIAS 405

Enxarrocos os tenores;
•Contrabaxos, bacalhaos.
Coin elles Pero do Porto
Em figura de calió,
Meio congro deste rio,
Cantando inui sem conforto:
"Yo me soy Pero cafío."
JÚPITER.
Agora cumpre atteníar
Como poemos as niños,
Porque he razáo de ordenar
Como a vño acompanhar
O seu Principe e seus irmños.
LÚA. Em que figuras iráo?
VEN. Aves me parece a mi,
Que ein peixes nao he razáo:
Em aves, d'outra feícáo.
JUP. Nao háo d'ír senáo assi:
O Principe nosso Senhor
Irá em quatro rocins
Marinhos, ein hum andor
Do ouro que melhor for
Em toda a térra dos Chins:
E hum sobreceo por cima,
D'esmeraldas e rubis
Lavrado d'obra de lima,
Que nao possáo dar eslima
A lavores (¿lo subtis.
Sua figura será
Hum Alexandrc segundo,
Que sein grifos subirá
Onde bem divisará
406 LIVRO III.

Todalas cousas do mundo.


VEN. E García de Resende
Feito peixe tamboril;
E inda que tudo eníende,
Irá dizendo por ende:
Quem me dera huin arrabíl.
JÚPITER.
O muí precioso Ufante
Dom Luis esclarecido
Irá muito triumphante,
Senhor da vida galante,
Em cirnes alvos subido.
E irá Joáo de Saldanha
No mar muito afadigado,
Feito arenque d'Alemanha,
Dizendo: Es cosa os!raña
Ser Castellano y pescado.
O precioso Cardial
Irá sobre homens marinhos,
Em hum carro triumphal,
Padre sancto natural,
Per mui naturaes caminhos.
SOL. Dom Fernando, Ufante bollo,
Fennoso, bem assombrado,
Irá posto em hum castello,
Que será prazer de vé-lo,
Sobre sereas armado.
LÚA.
Diogo Fernandes irá,
Porque he coinmendador,
Em hum peixe que hi nao ha,
Poréin elle se fara,
DAS TRAGICOMEDIAS. 407

Prazendo a nosso Senhor.


VEN. Sobre (res leñes mantillos
O Ufante Dom Anrique
Irá em cama d'arminhos,
Brincando com dous anginhos,
Que nao he razáo que fique.
SOL.
E na sua dianteira
Tristáo da Cimba irá
Ein congro da Pederneira,
Bradando: Aparta carrcira!
Tanto que enronquecerá.
A muí preciosa Senhora
Ufanía Dona Isabel
Irá como superiora
Estrella clara d'aurora
N'hüa galé sem batel,
Com seis remos de marlim,
E o ceo todo por vela;
E levará á toa allí
Todo o mundo apos de si,
E irá adorando a ella.
VEN. E o Eslribeiro mor,
Convertido em peixe mu,
Irá por corregedor
Das baleas, e senhor
De pardeos gran peixe os tu.
JÚPITER.
Madama Dona María
Irá sobre Cherubins
N'hüa roupa d'alegria,
Por aia Sánela Lusia,
408 LIVRO III.

E por guardas Seraphins.


LÚA. Joanna do Taco, no mar
Em gran centola tornada,
Irá rija, sem tardar,
Dizendo: Cumple aguijar,
Que de prisa va el armada.
JÚPITER.
Tainbem he bem de ordenar
Que as Damas que ficáo ca.
Que a váo acompanhar
Vinte leguas pelo mar.
VEN. Senhor, muito bein será.
JUP. O conseldo que ha mister,
Em que figuras iráo?
Diga aqui seu parecer
Cada hum como entender,
E tomar-se-ha concrusáo.
E por ir de iodo ornada
A Dama ha de levar
Cada hüa sua criada,
E que va diflerencada
No vesíido e no logar.
E nao digamos aqui
Nenhum nome de mulher,
Nem dama; mas (omem d'hi
Cada hüa pera si
O que melhor Ide vier.
Digo que düa irá sentada
Sobre tres garcas subida,
Como rosa ataviada,
Toda de seda amorada,
Pois dá namorada vida.
DAS TRAGICOMEDIAS. 409

Irá bein sua criada


Metlida n'hüa gamella,
E a cabeca rapada,
Hüa touca esfarrapada,
E hüa gorra amarella.
E irá junto da vela,
Onde o Arcebispo vai;
Cantará rouca singóla:
"Nao me quiz casar meu pae,
Ora folgae."
SOL.
Sobre fermosa salvagem
Oulra Dama irá tainbem
De carmesiin d'avantagem
Por alegrar a viagem,
Mas nao ja outrem ninguem.
Irá cantando porém,
Que bem lhe parecerá:
"Aquel caballero, madre, si me habrá
Con tan mala vida como ha?"
E a sua 11109a irá
Em trosquía n'hum sendeiro,
C'huin sainho de liteíro,
Descoberto o al vara.
E sabéis que cantará
Lá defronte de Cascaes?
" A que horas me mandáis
Aos olivaes!"
VENUS.
Sobre tres garcas reaes
Irá outra linda Dama
Coin gracas especíaes,
410 LIVRO 111.

E nao desojando mais


Senáo de cruel ter fama.
Caníará com mal (amanho
O triste seu servidor:
"Nunca fue pena mayor,
Ni tormento tan eslraño."
A moca irá dianteira
N'hum zambuco de Cochim,
Por piloto hum beleguim,
E por toldo hüa joeira:
Muito negra a cabelleira,
Cantando mui de verdade:
"Estes meus cabellos, madre,
Dos á dos me los lleva el airo."
Irá outra linda estrella
Sobre carreta d'estrellas,
Vestida toda amarella,
Porque desesperen! della
Como das outras donzellas:
Irá mui cara e altiva.
Cantardhe-ha hum desdiloso:
"De vos y de mi quejoso,
De vos porque sois esquiva."
Sua moca sem mais moco
Irá c'os oljios na gente,
Trosquiada muito rente,
C'os toucados ó pescólo;
Cantará com alvoroco
E altoracáo coinsigo:
"Engañado andáis, amigo,
Comigo;
Dias ha que vo-lo digo/
DAS TRAGICOMEDIAS. 411

JÚPITER.
Sobre satyros do mar
Irá oulra fresca rosa
Dentro de hum lindo pomar,
Ouvíndo as aves cantar,
Vestida muito custosa.
Cantaráo a esta fermosa
A calhandra c o rouxinol:
"Genlíl dama valerosa,
Y doncella por cuyo amor."
A moca irá n'hum alguidar,
E vestido hum alquicé;
O alguidar por lavar,
E ella por pentear.
Perguntando por Guiñé,
Cantará batendo o pé:
"Sem mais mando nem mais rogo
Aqui me tendes, levae-ine logo."
SOL.
Outra de gran fermosura
Irá em nuvein de bonanca,
Em hum brial sem costura:
A cor sera verde escura,
Porque dá triste esperanca.
E com esperanca perdida
Cantará sjw namorado:
"Al dolor de mi cuidado,
Y en tus manos la mi vida,
Me encomiendo condenado."
Sua aia em corvos marinhos
Irá antre huns almadraques,
E nos marinhos caminhos
412 LIVRO III

Fazendo a lodos focinlios


Porque cospem dos seus traques.
Levará mil tarramaques
De pez, por mais alegría:
Cantará c'os atabaques:
"Se disseráo digao alma inia."
LÚA.

As outras damas iráo


Á malmáica vestidas;
Segundo sua íencáo,
Assi as cores tomaráo
Differentes e escolladas.
Ein carros d'ouro mettidas,
Sobre seiscentos golfinhos,
E mil satyros marinhos,
Com harpas d'ouro compridas
Tangendo pelos caminhos. v
VENUS.
E iráo suas criadas
N'hum lagar d'azeite todas,
Sem crenchas, descabelladas.
Como salvagens pasmadas
De táo allissimas vodas.
E sahirao ás janellas
Com sendas tochas de palha
Debrüadas amarellas:
Se nao olharem par'ellas,
Nao llies dará ncmigalha.
JÚPITER.
Acompanda-la-ha esla gente
Assi em cima á frol do mar,
Por servir a excellente
DAS TRAGICOMEDIAS. 413

Nova estrella d'Oríeníe.


Tornar-se-háo de Gibraltar.
E a desposada bella,
Bella e bem aventurada,
Verá tudo da janella
Da nao; e o mar verá a ella,
E será delle adorada.
SOL.
Será bem que desde o Eslreito
Váo em cima de baleas,
Havendo á tal festa respeíto,
Cantando todas a eito
Cento e (rinta mil sereas
Dianle do seu navio;
Caníaráo esías que digo:
"Por el rio me llevad, amigo,
Y llevadme por el rio."
JÚPITER.
Déos Mars, que he das baíalhas,
Desde o Estreito adiante,
Pera segurar a Iffante
Que nao va a lume de palhas,
Venha aqui mui triumphante.
Cantárño todas estas figuras em chacota a cantiga de
Llevadme por el rio; e os Ventos forao chamar o Pla-
neta Mars, o qual veio com seus sinos, s. Cáncer, Leo
e Capricornio, e diz
MARS.
Humilho-me a vos, sagrado
Júpiter. Que me mandáis?
Eis-ine aqui a vosso mandado.
JUP. VOS sejais mui bein chogado
414 LIVRO III.

A estas cortes reaes.


Manda EIRei de Portugal,
Senhor do mar océano,
Sua filha natural
Per conjuncáo divinal
Pelo mar meio-terrano.
MARS.
Ja sei que queréis dizer:
Diréis que tem adversairos:
Descancae e havei prazer,
Que pera seu gran poder
Podein pouco seus contrairos.
Leva gente inuita fina,
Poderosa artelharia,
E a nao Sancta Catherina,
Que vai per graca divina
Co'a proa n'Alexandria,
E mais eu íenho cuidado
Deste reino Lusitano,
Déos me tem dito e mandado
Que lh'o tenha bein guardado,
Porque o quer fazer Romano:
Que ñas batalhas passadas,
Que Castella o quiz tentar,
Leváráo (antas pancadas,
Que depois de bem levadas,
Nao ousáráo mais tornar.
E assi ñas partes d'alem
Sempre foi favorecido,
E na India tambem.
Ou digáo se vio alguem
Reino ein fama (áo luzido;
DAS TRAGICOMEDIAS. 415

Pequeño e inui grandioso,


Pouca gente e muito feito,
Foríe e mui victorioso,
Mui ousado e furioso
Em tudo o que toma a peito.
Cavalleiros de vontade,
Gente sem rebolaria,
Fidalgos que amáo verdade;
A nenhüa adversidade
Mostráo nunca covardía.
Sao extremo nos amores,
Amadores do seu Rei
E grandes seus servidores;
Com favores, sem favores,
Sempre tem direíta leí.
Assi, Senhor, que agora
Nao se trate aqui de guerra,
Porque vai esta Senhora
Em tal ponto e em tal hora,
Que seu he o mar e a térra.
Mas deveis, Senhor, mandar
Os Planetas musicacs
Ao encantado logar,
E a poder de seu cantar
Tragáo ca a Moura Taes.
JÚPITER.

Pera tal caso ha mister


Diana e Venus que cante.
M A R . E a Moura ha de trazer
Tres cousas que vos disser,
Pera do Estreito avante.
Hum annel seu encantado,
416 LIVRO III.

E hum didal de condáo,


E o precioso toreado
Que foi no campo tomado
Depois de morto Roldáo.
O toreado pera vencer;
O didal he (ño facundo,
Que tudo lhe fara trazer;
O annel pera saber
O que se faz polo mundo.
Guantas festas maginar,
Alé cousas invísiveis,
Todas verá pelo mar:
Fará os peixes cantar,
E cousas mais impossÍA7eis.
Desencantemo-la ora,
E pera mais a torear,
HaA7einos-lhe de cantar
A historia desta Senhora
Como vai longe a inorar.
E ficará por Aictoría
Polo mundo adiante
Pera sempre por sua gloria
Este romance em memoria
Da partida desta Iífanío.
Romance.
Niña era la Ifanta,
Dona Beatriz se decía,
Nieta del buen Rey Hernando,
El mejor Rey de Castilla,
Hija del Rey Don Manuel"
Y Reina Dona María,
Reis de lanía bondad
DAS TRAGICOMEDIAS. 417

Que tales dos no había.


Niña la casó su padre,
Muy hermosa á maravilla,
Con el Duque de Saboya,
Que bien le pertenecía,
Señor de muchos señores,
Mas que Rey es su valía.
Ya se parte la Ifanta,
La Ifanta se partía
De la muy leal ciudad
Que Lisbona se decia;
La riqueza que llevaba
Vale toda Alejandría.
Sus naves muy alterosas,
Sin cuento la artillería;
Va por el mar de Levante,
Tal que temblaba Turquía.
Con ella va el Arzobispo
Señor de la Cleresía;
Van Condes y caballeros
De muy notable osadía;
Lleva damas muy hermosas,
Hijas dalgo y de valía.
Dios los lleve á salvamiento
Como su madre querría.
Este romance canino os Planetas e Signos a quatro
vozes, pera com as-palavras delle e música desencantaren!
a Moura Taes de seu encantamento, a qual entra com o
tergado e annel e didal de condao, que Mars disse que ella
tinha em seu poder, e diz:
MOURA.

Mi no xaber que exto exíar,


voi. n t 8*
418 LIVRO III.

Mi no xaber que exío xer,


Mi no xaber onde andar.
Alah xaber divinar,
Lo que exter Alah xaber;
Alah xaber que es aquexto,
Alah xaber y yo no;
Alah xaber max que yo,
Alah, digirme que ex exto.
Júpiter, que á mí mandar?
Dox mil añox extar cantada;
Agora donde llevar?
Agora otro inundo extar,
Agora no xaber nada.
Porque tirarme de caxa,
Porque d'inferno tirarme
De compañía de Axa,
Mi hija nieta de Braxa,
Reina que extar del Algarve?
JÚPITER.
Presentae isso á Senhora
Ufante e nova Duqueza.
Mou. Gran coja mandar agora:
Señora, assi mi morir Mora,
Júpiter dar box gran empreza;
Que exle dedal Alah quebir
Extar de ináe de Mahomad.
Señora, quanto box pedir,
El fager lugo A7enir:
Alah xaber esía verdad.
Exíe anel de condón
Perguntalde box á él,
Y él dará a box razón
DAS TRAGICOMEDIAS. 419

De quantos xacretos xon:


Tudo box xaber por él.
JUP. Amigos, isto he feito,
Váo-se as Cortes acabando
Por seu estilo direito:
Cante-se o que no Estreito
As Sereas háo d'ir cantando.
Tornrío todos a cantar a modo de chacota: Por el rio
me llevad, e coní ella se forao, e acabüo as Cortes.

£?M-»+~-
F I G U R A S .
SERRA DA ESTRELLA.
HUM PARVO.
GONCALO.
FELIPA.
CATHERINA.
FERNANDO.
MADANELA.
RODRIGO.
H U M ERMITAO.
JORGE.
LOPO.

Tragicomedia pastoril feita e representada ao muito


poderoso e catholico Rei D. Joáo, o terceiro deste nome
em Portugal, ao parto da Serenissima e mui alta Rainha
D. Catherina nossa Senhora, e nacimiento da IllustrissimHj
Iffante D. Maria, que depois foi Princesa de Castella, na
cidade de Coimbra, na era do Senhor de 1527-
TRAGICOMEDIA PASTORIL
DA

SERRA DA ESTRELLA.

Entra logo a Serra da Estrella com hum Par vo, e diz:


SERRA DA ESTRELLA.
Prazer que fez abalar
Tal serra como eu da Estrella,
Fará engrandecer o mar,
E fará bailar Castella,
E o peo tambcm cantar.
Determino logo essora
Ir a Coimbra assi inteira,
Em figura de pastora,
Feíta serrana da Beira,»
Como quem na Beira mora.
E Ievarei lá comigo
Minhas serranas trigueiras,
Cada qual com seu amigo,
E todalas ovelheiras
Que andáo no meu pacigo.
E das vaccas mais pintadas,
E das ovelhas meirinhas,
Para dar apresentadas
Á Rainha das Rainhas,
Ctime das bem assomhradas.
422 LIVRO III.

Sendo Rainda (amanda.


Veio ca á Serra embora
Parir na nossa moníanha
Outra Princeza d'Hespanha,
Como Ide demos agora:
Hüa rosa imperial
Como a mui alta Isabel,
Iinagem de Gabriel,
Repouso de Portugal,
Seu precioso esperavel.
Bem sabe Déos o que faz.
PAR. Bofe, nao sabe nem isto;
A Virgem María si;
Mas quant'elle nao he bó,
Nega pera queimar viudas.
SER. ISSO has de tu dízer?
PAR. Quem? Déos? Juro a Déos
Que nao faz nega o que quer.
Lá em Coimbra estava eu
Quapdo a mesma Rainha
Parió mesmo ein cas d'in-Rei:
Eu vos direi como foi.
Ella mesma (benza-a Déos)
Estava mesma no Paco,
Qu'ella quando ha de parir
Poucas vezes anda fóra.
Ora a mesma Cainareira,
Porque he mesma de Castella,
Rogou á mesma parteira
Que fizesse delle ella.
(Perequi v7ai a carreira)
Sabéis porque?
DAS TRAGICOMEDIAS. 423

Porque a mesma Imperatriz


Parió mesmo Imperador,
E agora estáo aviados.
Mas quando minha niño paria,
Como a Virgein a livrava,
Tanto se lhe dav'ella
Que fosse aquelle como aquella,
Senáo^ivos hüa vez.
Vem Gongalo, hum pastor da Serra, que vem da
Corle, e vem cantando.
GONCALO.
"Volaba la pega y v7aisc:
"Quein me la tomasse.
"Andaba la pega
"No meu cerrado,
"Olhos morenos
"Bico dourado
"Quem me la tomasse."
Pardeos, muí alvorocada
Anda a nossa Serra agora!
SER. Goncalo, venhas einbora
Porque eu estou abalada
Pera sair de inim fóra.
Quería-vos ajuntar
Logo logo, muito asinda,
Para irmos visitar
Nossa Senhora a Rainha,
Querendo Déos ajudar.
GONCALO.
Eu venho agora de lá,
E segundo o que eu vi,
Que vamos lá bein será.
424 LIVRO III.

Isto crede vus qu'he assi;


Porque dizem que a Princeza,
A menina que naceo,
Parece cousa do ceo,
Hüa estrella muito accesa
Que na térra appareceo.
SERRA.
Goncalo, eu te direi:
Ella ja naceo em serra,
E do mais fennoso Rei
Que ha na face da térra,
E de Rainha mui bella.
E mais naceo em cidade
Muito ditosa pera ella,
E de grande auíoridade.
E mais naceo em bom dia
Martes, déos dos A7encimenlos,
E trouxeráo logo os A7eníos
Agua que se requería
Pera (odos mantiinentos.
PAR. A S vezes faz Déos cousas,
Cousas faz elle ás vezes
A través, como doman diz.
Nega se meu embeleco,
Vai poer as pipas ein sécco,
E enche d'agua o Mondego:
Fará mais duin demenesteco ?
Engorda os Vereadores,
E sécca as pomas ás mocas
De cima bem t'ós arleldos;
E faz os frades vermelhos,
DAS TRAGICOMEDIAS. 425

E os leigos amarellos,
E faz os veldos murzellos.
Enruca os mancebeldóes,
E nao atienta por nada;
Pedem-lde em Coimbra cevada,
E elle dá-lhe mexílhoes
E das solhas em cambada.
GON. Vos, Serra, se haveis d'ir
Com serranas e pastores,
Primeiro se hao d'avir
Hüa manada d'amores,
Que nao querem concrudír.
Eu trago na phantesia
De casar com Madanela,
Mas nao sei se querrá ella;
Perol eu, bofe, quería.
Vem Felipa, pastora da Serra, cantando.
FELIPA.
"A mi seguem dous acores,
"Hum delles morirá d'amores.
"Dous acores qu'eu da via
"Aqui andáo nesta bailia,
"Hum delles morirá d'amores."
Goncalo, viste o meu gado?
Díze se o viste einbora.
GON. Venho eu da corte agora,
E diz que lhe dé recado!
FEL. Pois ja tu ca es casado,
Nega que esperáo por ti.
GON. E sem mi me casáo a mi?
Ora estou bem aviado!
426 LIVRO III.

FELIPA.
Nao ha hi nega casar logo,
E fazer vida com ella,
Se nao for com Madanela.
GON. Tiro-m'eu fóra do jógo.
FEL. Essa he a melhor-do jógo.
GON. Ess'ouíra será Alvarenga?
FEL. Mas Caíherina Meigengra.
GON. Antes me queiine mao fogo.
Nao vem a Meigengra a contó,
Que he descuidada perdida;
Traz a saia descosida,
E nao Ide dará lium ponto.
Oh ((nautas lendes .vi nella,
E pentear nemigalha;
E por dá-me aquella palha,
He maior o riso qu'ella.
Varre e leixa o lixo em casa,
Come e leixa allí o bacio;
Cada dia a espanca o tio,
Nega porque táo devassa
Madanela mata a braza.
Nao cuides de mais arenga,
E dize tu, mana, a Meigengra
Que va amassar mitra inassa.
FELIPA.
Ja teu pac (em dada a niño,
E dada a máo feito he.
GON. Pardeos, dardhe-hei eu de pé,
Como a casca de meláo.
Raivo eu de coracáo
D'amores de Madanela.
DAS TRAGICOMEDIAS. 427

FEL. Meigengra he mais rica qu'ella,


Qu'essa nao tem nem (osláo.
GONZALO.
Arrenego eu do argem,
Que me vein a dar tormento;
Porque hum so contentamento
Val quanto ouro Déos tem.
Déos me dé quem quero bem,
Ou me tire a vida toda;
Com a Morte seja a voda,
Antes que outrem me dem.
FELIPA.
7
Eu me AOU pé ante pé
Ver o meu gado onde vai.
GON. E eu quero ir ver meu pae,
Veremos como isto he.
Vem Catherina Meigengra, cantando.
CATHERINA.
"A serra es alta,
"O amor he grande,
"Se nos ouvirane."
FELIPA.
Onde vas, Meigengra mana?
CAT. A novílha vou buscar:
Viste-m'a tu ca andar?
FEL. Nao na vi esta somana.
Agora estora vai daqui
Goncalo que A7em da corte:
Mana, pesou-lhe de sorte
Quando lhe falleí em ti,
Como se foras a morte.
Tem-te íainanho fastio!
428 LIVRO III.

CAT. Inda bem, por minha vida;


Porqu'eu, mana, saín perdida
Por Fernando de meu tío.
S'eu com elle nao casar,
D'amores m'hei de finar.
Aborrece-me Goncalo
Como o cu do nosso gallo;
Nao no quería sonhar.
FELIPA.
Se tu nao queres a elle,
Nem elle tampouco a ti.
CAT. Quanto s'elle quer a mi,
Negras más novas váo delle.
Déos me case com Fernando,
E moura logo esse dia,
Porque me mate a alegría
Como o nojo vai matando.
Oh Fernando de meu tío,
Que eu vi polo meu peccado!
FEL. Fernando, esse teu dainado,
Casava comigo a furto.
CAT. Dize, rogo-l'o, ha muito?
FEL. Este sábado passado.
CAT. Oh Jesu! como he malvado,
E os ltomcns cheios d'enganos;
Que por mi, vai em tres annos,
Que diz que he demoninhado.
Felipa, gingras tu ou nao?
Isso creio que he chufar;
E se tu queres gingrar
Nao ine des no coracáo,
Que o que doe nao he zombar.
DAS TRAGICOMEDIAS. 429

FEL. Elle veio ter comigo


Bem ó penedo da palma,
E disse: Felipa, minh'alma,
Raivo por casar comtigo.
Digo eu, digo:
Vae, vae nadar que faz calma.
CATHERINA.
Oída tu se zombava elle.
FEL. Bem conheco eu zombaria;
Vi eu, porque eu nao quería,
Correr as lagrimas delle.
CAT. Maos choros chorem por elle,
Que assi chora elle comigo,
E vai-se-lhe o gado ó trigo,
E sois nao olha par'elle.
FELIPA.
Eu vou casuso ao cabeco,
Por ver se vejo o meu gado.
CAT. Tal ine deixas por meu fado,
Que do meu toda m'esqueco.
Quem soubesse no coméco
O cabo do que comeca,
Porque logo se conheca
O qu'eu j'agora conheco.
Vem Fernando cantando.
FERNANDO.
"Com que olhos me odiaste,
"Que táo bem vos parecí?
"Táo asinha m'olvidaste,
"Quem te disse mal de mi?
CATHERINA.
A que vens, Fernando honrado?
430 LIVRO III.

Ver Felipa tua senhora?


Venhas muito da ma hora
Pera ti e pera o gado.
FER. Catalina! Catalina! assi
Tolhes-me a falla, Catalina?
Olha ieramá pera ini;
Pois que ine tu sés assi
Carrancuda e táo mofina,
"Quem te disse mal de mi,
"Com que olhos me odiaste, $*c.
CATHERINA.
Dize, rogo-te, Fernando,
Porque me trazes vendida?
Se Felipa he a tua querida,
Porque m'andas engañando?
FER. EU mouro; tu estás zumbando.
CAT. Oh que nao zumbo; Jesu!
Nao casavas co'ella tu?
FER. EU estou della chufando.
Catalina, esta he a verdade,
Nao creias a ninguem nada;
Que tu me tens bein alada
A alma e a vida e a vontade.
CAT. Pois que choraste coin ella,
Nao ha hi mais no querer.
FER. De chorar bem pode ser,
Mas nao chorava eu por ella.
Felipa avulta-se com ligo,
Vendo-a, fosle-me lembrar;
Entáo puze-me a chorar
As lembrancas de meu p'rigo:
Se ella o tomou por si,
DAS TRAGICOMEDIAS. 431

Que culpa lhe tenho eu? _


Mas este amor quem m'o deu,
Deu-m'o todo para ti,
E bem sabes íu qu'he (eu.
CATHERINA.
Oh que grande amor te íenho,
E que grande mal te quero.
FER. Ja de tudo desespero:
Táo desesperado venho,
Que ja mal nem bem nao quero.
Teu pae tem-te ja casada
Com Goncalo d'antemáo,
E eu (ico por esse chao,
Sem me ficar de ti nada,
Senáo dor de coracáo.
Ver-te-has ein outro poder,
Ver-te-has em ouíro logar,
Eu logo sem mais (ardar,
Frade prometió de ser,
Pois os diabos quizeráo.
E allí me deixaráo
Tanta de maginacáo,
Quanta teus olhos me deráo
Desde o dia d'Acencáo.
CATHERINA.
Mas casemos, dá ca a máo,
E dir-lhe-heí que saín casada.
FER. Ja tenho palavra dada
A Déos de religiáo,
Ja nao tenho cm mi nada.
CAT. Oh quaníos perigos tem
Este triste mar d'amores,
432 LIVRO III.

E cada vez sao maiores


As (oríllenlas que lhe vem.
Se tu a ser frade vas,
Nunca me veráo marido:
Tu seras frade mettido
Porém tu ine metieras
Na fim da Rainha Dido.
FER. Nao se poderá escusar
De casares coin Goncalo;
E querendo (u escusa-lo,
Nao no podes acabar,
Que (eu pae ha de acabá-lo.
CATHERINA.
Sé libera nos a malo!
Nunca Déos ha de queré-lo;
E Goncalo nao me quer,
Nem eu nao quero a Goncalo.
Eílo vem: vé-lo, Fernando?
Vem em cima na pórtela;
Diante vem Madanela:
Aquella anda elle buscando.
Vamo-los nos espreitar
Allí detras do vallado;
E veremos seu cuidado
Se (e dá em que cuidar,
Ou se falla desviado.

Vem Madanela cantando, e Gong al o detras della

MADANELA.
"Quando aqui chove e neva,
"Que fará na serra.
"Na serra de Coimbra
DAS TRAGICOMEDIAS 433

"Nevava e chovia,
"Que fará na serra?"'
Goncalo, tu a que vens?
GON. Madanela, Madanela!
MAD.Torna-te ma hora e nella
Que táo pouco empacho íeus.
GON. Madanela, Madanela!
MAD. O dechu (Jou eu a amargura :
Qu' assi m'agasla, Jesu!
Ora (ras mi íe vens tu?
GON. Pois a mi se m'affigura
Que nao in'has de comer cru.
Se (u me queres matar
Por t'eu ter boa vontade,
Nao pode ser de Aerdado.
MAD. Goncalo, torna a lavrar,
Que isso íudo he vaidado.
GON. Que rezáo me das íu a mi
Pera nao casar comigo?
Eu hei de íer mudo digo,
E heí-íe de íer a (i
Mais doce que hum pintisirgo.
Nao quero que vas mondar,
Nao quero que andes ó sol:
Pera (i soja o tolgar,
E pera miin fazer prol.
Queres Madanela?
MAU. Goncalo, torna a lavrar,
Porque eu nao hei de casar
Em (oda a serra d'Estrolla.
\em íe presta prefiar.
Catalina he muito boa,
V.il. II.
28
434 LIVRO III.

Fermosa quanto lhe basta,


Quer-íe bem, he de boa casta,
E bem sesuda pessoa.
Toma tu o que te dáo
Em pago do que desojas.
GON. A'i rogo-te que nao sojas
Aia do meu coracáo.
MAD. Vae-te d'hi, que parvoejas.
GONC/ALO.

Nao quero casar co'ella.


MAD.Nein eu (ampouco comíigo.
Vés? Casuso van Rodrigo
Tras Felipa, que he aquella
Que nao no esíima n'hum figo.
Vem Rodrigo cantando.
RODRIGO.
"Vayámonos ambos, amor, vayamos,
"Vayamos ambos.
"Felipa e Rodrigo passaváo o rio,
"Amor, vayámonos."
Felipa, como (e Ara¡?
FEL. Que íens tu de ver c'o isso?
Dias ha que í'eu aviso
Que vas gingrar com (eu pae.
Ron. Nao esíou eu, mana, nisso.
FEL. Quem te mette a (i comigo?
Rui). Felipa, olha pera ca,
Dá-me essa mño^ i o rauta.
FEL. Tír'-te, tir'-íc crainá lá.
Tu que diabo has comtigo?
RODRIGO.
Felipa, ja (u aqui es?
DAS TRAGICOMEDIAS 435

FEL. Rodrigo, ja (u comecas?


Tu (ens das mais vans cabecas...
Nao quero ser descoríez.
Hou. Vem queíras íu er ser assi
Gravisca e escandalosa;
Mas tan graca pera mi,
Como (u es graciosa
E fermosa pera (i.
FELIPA
Cada hum s'ha de regrar
Em pedir o que he rezáo:
Tu pedes-me o coracáo,
E eu nao í'o hei de dar,
Porque he mui fóra de máo.
E ((iianto monta a casar,
Aínda qu'eu guarde gado,
Meu pae he juiz honrado
Dos melhores do logar,
E o mais aparentado.
E andou ja na Corte assaz,
E fallón-lhe EIRei ja,
Dizendo-lhe: Affonso Vaz,
Em Fronteira e Moncarraz
Como val o írígo lá? —
Ora eu pera casar ca,
Rodrigo, nao he rezno.
Ron. Se casasses com pácáo,
Que grande graca seria
E minha consolacáo!
Que (e chame de ralinha,
Tinhosa cada meia hora,
Inda que a alma me chora,
•2a •
436 LIVRO III.

Folgarei por vida minha,


Pois engeilas quem ('adora:
E íe diga, (ir-te lá,
Que me cheiras a cartaxn.
Pois te desprezas do baxo,
O alto íe abaxará.
FELIPA.
Quando vejo hum cortozao
Coin pantofos de vdudo,
E hüa viola na niño,
Tresanda-ine o coracáo,
E leva-me a alma e tudo.
Ron. Goncalo A7ai-me ajudar
A acabar minha charrúa,
E eu í'ajudarei á tua,
Que est'oulro s'ha d'acabar
Quando a dita vír a sua.
GONZALO.
Eu saín ja desengañado,
Quanto monta a Madanela.
RUD. Deve-te lá d'ír com ella
Como a mi vai, mal peccado,
Com Felipa. GON. Assi he ella.
ROD. E tu, Fernando, em que estás?
FER. Estou ein muiío e em nada,
Porque a vida namorada
Tem cousas boas e más.
Vem hum Ermitao, e diz:
ERMITAO.
Fazei-me esmola, pastores,
Por amor do Senhor Déos.
ROD. Mas faca elle esmola a nos,
DAS TRAGICOMEDIAS 437

E seja qu'estes amores


Se atein coin senlios nos.
ERM. O casar Déos o prové,
E de Déos Arem a ventura.
Da ventura a creaíura,
Mas com dita he por mercé,
E tambein serve a cordura.
Ponde-vos ñas suas niños.
E nao curéis d'escolher:
Tomae o que vos vier,
Porque estes amores vaos
Teráo cerío arrepender.
Filhas, aquí estáis escripias:
Filhos, tomae vossa sorte,
E cada hum se comporte
Dando gracas infinitas
A Déos e a EIRei e á Corto.
Tirón o Ermitao da manga tres papelinhos escriptos, c
os den aos pastores, que Iovias se rada hum sua sorte, e diz o
ERMITAO.

Rodrigo (orne primeiro,


Veremos como se guia.
Ron. Nome da Virgem María! —
Lede, padre, esse leíroiro.
Se me cega ou ahuma.
(L<? o Ermitao o escrilo.)

Déos e a ventura manda


Qne quem esta sorte houver
Tome logo por mulher
Felipa sem mais demanda.
RODRIGO.
Vencida tenho eu a batalha.
438 LIVRO III

Felipa, mana, A*em ca.


FEL. Tír'-te, tír'-íe eramá lá:
E tu cuidas que te valha?
Nunca (eu ólho verá.
GON. Ora Arae, Fernando, tu,
Veremos que (e vírá.
FER. Alto, noine de Jesu!
Lede, Padre; que vai lá?
(LS O Ermitao )

A sentenca he ja dada,
E a sustancia della,
Que cases com Madanela.
MAD. Fernando, nao me dá nada,
Seja inuiío einbora e nella.
FER. Dias ha que ('o eu digo,
E (u (inhas-me fastio.
CAT. Oh Fernando de meu lio,
Quem me casara comd'go!
GONZALO.
Oh Madanela, ierainá
Se me cahíras em soríe!
CAT. Ante eu morréra ma moríe,
Que Fernando ficar lá
Táo contrairo do meu norte.
E poréin nao ine dá nada,
Ja me íu a mi pareces bem,
Goncalo. GON. E tu a mi,
Catalina; muda-te d'hi
E passea per hi alan,
Vereí que ar das de (i.
FELIPA
Esíou-('eu, Rodrigo, odiando,
DAS TRAGICOMEDIAS». 439

E vou sendo ja contente.


Roo. Se de mi nao os contente,
Xáo l'hei de andar mais rogando:
Eu ando-te namorando,
E (u acossas-mc cada dia.
CAT. luda qu'eu isso fazia,
Rodrigo, de quando em quando,
Mui grande bem te quería.
E quando eu refusava
De (c tomar por amigo,
Nao ja porque eu nao folgav»,
Mas porque t'examinava,
Se eras tu moco atrevido.
ERM. Agora quera cu dizer
O que aquí venho buscar.
Eu desojo de habitar
N'hüa erinida a meu prazer.
Onde podesse folgar.
E queria-a eu adiar (cita
Por nao cansar cm fazo-la,
Que fosse a minha celia
Antes bem larga qu'eslreita,
E que podesse eu (laucar tiolla:
E que fosse n'hum deserto
D'infíndo vinho c pao,
E a fontc muito perto
E longc a contempladlo.
Muda caca c pescaría,
Que podesse eu Icr contada
E a casa temperada:
No veráo que fosse fría.
E (picnic na invernada.
440 LIVRO III.

A cama muito mimosa,


E hum crav7o á cabeceira:
De cedro a sua madeira:
Porque a vida religiosa
Quería eu desta maneira.
E fosse o meu repousar
E dormir até taes horas,
Que nao podesse rezar,
Por ouvir cantar pastoras,
E outras assobiar.
Á cea e jantar perdiz,
r

O almoco moxama,
E vinho do seu matiz
•O

Esquecess'ella as ovelhas,
E na celia me abracasse
E mordesse ñas orelhas,
Inda que ine laslimasse.
Irmños, pois deveis saber
Da serra (oda a guarida,
Praza-vos de me dizer
Onde poderei fazer
Esla ininha sánela vida.
GONCALO.
Está allí, padre, hum silvado

(*) Lactina que se acl>a no ex. da l-'1 ed. <lc que nos
servimos, por estar rola a follia neste logar. Apczar de toda
a nossa diligencia nao nos foi possivel reslabelecer o texto
pois nem alcanzamos noticia d'outro ex. da 1» cd. nem aqui
nos pudemos valer da 2<! por ter sido nella sttpprimida
pela Inquisicño toda esta scena do Ermitao.
DAS TRAGICOMEDIAS. 441

Vicoso, verde, florido,


Com espinho (ño comprido,
E vos mi alii deitado
Perderieis o proido.
Ja fosíes casamcnteiro,
I-vos, nao estéis di mais,
Porque a vida que buscáis
Nao na dá Déos verdadeiro,
Indaque lh'a vos pecáis.
SERRA.
Ora, filhos, logo essora,
Cada hum com sua esposa,
Vamos ver a poderosa
Rainha nossa Senhora,
Sem nenhuin de vos por grasa,
Porque he forcoso que A7a,
Que segundo minha faina
Da Rainha hei de ser ama,
E a isso vou eu lá.
Que tal leite como o meu
Nao no ha em Portugal;
Que tenho lanío e (al,
E (áo fino Déos m'o deu,
Que he maníeiga, e nao al.
E pois ha de ser senhora
De táo grande gado e (erra,
Quem outra ama lhe der, erra,
Porque a perfidia pastora
Ha de ser da minha serra.
GONZALO.
Ha mister grandes presentes
Das villas, casaes e aldea.
442 LIVRO 111

SER. Mandará a villa de Cea


Quinhentos queijos recentes.
Todos feitos á candea,
E mais trezentas bezerras.
E mil ovelhas meirinlias,
E duzentes cordeirindas,
Taes, que em nenhüas serras
Nao ñas achem íáo gordinhas.
E G011 vea mandará
Dous mil sacos de castanha,
Táo grossa, (áo san, (amanha,
Que se maravilhará
Onde (al cousa s'apanha.
E Maníeigas lhe dará
Leite para qualorze anuos,
E Covílhan muitos pannos
Finos que se fazcm lá.
Mandaráo desses casaos
Que esláo no cume da sorra,
Penna pera cabecaes,
Toda de aguias reaes
Naturaes mesmo da térra.
E os do Val dos Penados
E montes dos (res caminhos,
Que esíáo em fortes montados
Mandaráo empresentados
Trezentos torras d'arminhos
Pera forrar os brocados.
Eu hci-lhe de presentar
Alinas d'ouro que eu sei,
Com (auto que ella ou EIRei
O mandan ca apanhar:
DAS TRAGICOMEDIAS. 443

Abasia que ld'o criei.


GON. E afora aínda os presentes,
Havemos-lde de cantar,
Muito alegres e cimientes,
Pola Déos allumiar,
Pur alegría das geníes.
Vem dous folioes do Sardoal, Jorge e hopo, r diz a
SERRA.
Sois vos de Castella, manos,
Ou lá debaixo do extremo?
JOR. Agora nos faria o demo
A nos ouíros Casteldanos:
Quería antes ser lagarto,
Polos sánelos avangeldos.
SER. Donde sois? JOR. Do Sardoal;
E ou bebé-la, ou verlé-Ia,
Vimos ca desafiar
A toda a Serra d'EstrcIla
A caníar e a bailar.
RODRIGO.
Soberba he isso perem,
Pois ha aqui tontos pastores,
E táo finos bailadores,
Que nao ha hi medo a ninguem.
LOP. Muitos raíindos váo lá
De ca da serra a ganhar,
E lá os vemos caníar
E bailar bein como ca,
E he assi desía feicáo.
Canta Lopo e baila, arremedando os da Serra.
"E se ponerei la mano em vos
"Garrido amor.
444 LIVRO III.

"Hum amigo que eu havia


"Mancanas d'ouro ni'envía,
"Garrido amor.
"Hum amigo que eu ama va,
"Mancanas d'ouro me manda,
"Garrido amor.
"Mancanas d'ouro m'envia,
"A unidor era partida.
"Garrido amor."
Isso de, ou bein ou mal,
Assi como o A7ós fazeís.
SER. Peco-vo-lo que cardéis
r

A guisa do Sardoal.
LOP. Esse de outro carrascal;
Esperae ora e Arereis.
"Ja nao quer minlia sendora
"Que lhe falle ein apartado:
"Oh que mal táo alongado!
"Minha Senhora ine disse
"Que me quer fallar huin dia,
"Agora por meu peccado
"Disse-me que nao podía:
"Oh que mal táo alongado!
"Minda sendora me disse
"Que me quería fallar,
"Agora por meu péccado
"Nao ine quer ver nem ofliar.
"Olí que mal táo alongado!
'Agora por meu peccado
"Disse-ine que nao podía.
"Ir-me-hei triste polo mundo
DAS TRAGICOMEDIAS. 445

"Onde me levar a dita.


"Oh que mal (áo alongado!"
Esta cantiga cantárao e bailarán ih terreiro os folioes,
e acabada, diz FELIPA.
Nao A7OS vades vos assi,
Leixae ora a gaita vir.
E o nosso tamboril,
E iréis morios daqui,
Sem vos saberdes bolir.
CAT. Em tanto por vida minlia
Sera bem que ordenemos
A nossa cbacotazinha,
E com ella nos iremos
Ver EIRei e a Rainha.
Ordenárño-se todos estes pastores em chacota, como lá
se costuma, porém a cantiga della foi cantada de canto
d'orgao c a letra he a seguinte Cantiga:
"Nao me firais, madre,
"Que eu direi a verdade.
"Madre, hum escudeiro
"Da nossa Raihha
"Falluu-me d'amores:
"Veréis que dizia,
"Eu direí a verdade.
"Falluu-me d'amores,
"Veréis que dizía:
L,
Quein le me (ivesse
"Desnuda em camisa!
"Eu direi a verdade.1
V com esta chacota se sahirao, e assim se acabou.
F I G U R A S .
PARTE I.
INVERNÓ. i PILOTO.
BRISCO. GREGORIO.
JUAN GUIJARRO AFFONSO.
HÜA VELHA. GONZALO.
GRUMETE. TRES SEREAS.
MARINHEIRO. '

PARTE II.
VERÁQ. | HUM FERREIRO.
!
SERRA DE CINTRA. INFANTE.
HÜA FORNEIRA. ¡

A tragicomedia que se segué he chamada Triumpho


do Invernó. Foi representada ao muito alto e excellente
Principe EIRei Dom Joño o terceiro deste nome em Portu-
gal, na sua cidade de Lisboa, ao parto da devotissima e
muito esclarecida Rainha Dona Catherina nossa Senhora.
He representada em ditas partes.
TIUUMPHO DO INVERSO.

0 A U T O R.
Em Portugal vi eu ja
Em cada casa pandeiro,
E gaita em cada paldeiro;
E de viníe anuos a ca
Nao da hi gaita nem gaileiro.
A cada porta lium terreiro,
Cada aldea dez folias,
Cada casa atabaqueiro;
E agora Jeremías
He nosso tainborileiru.
So om lian-arena havia
Tambor em cada muiíiho,
E no mais triste ratínhu
S'enxergava hüa alegría
Que agora nao (ein cainindu.
Se oldardes ás cantigas
Do prazer acostumado,
Todas tem snm lamentado,
Carregado do fadigas,
lionge do tempo passado.
O d'enláo era cantar
E bailar como ha de sor,
O cantar pera folgar,
O bailar pera prazer:
448 LIVRO III.

Que agora he man d'achar.


Nao cantavao de íerreíro
"Terra ferida d'eismelo,
Xu me neguéis mi consuelo,"
Que fez hum Judcu d'Aveiro
Pola muerte de su abuelo.
He de feira ein cuncrusáo,
E bailáo-na cada dia,
Porque sae a meludia
Tal qual fica u coraeáo
Ao revez do que sohia.
Mas aquelles que folgaváu
Ñas villas e ñas aldeas,
Quando as tosías se ajuníaváo,
Cantigas de mil raleas
Deste compasso cantavao:
"No penedu Joáo preto,
" E no penedo.
"Quaes foráo os perros
"Que matáráo os lobos,
"Que coméráo as cabras,
"Que roéráo o bacellu
"Que puzera Joáo preto
"No penedo?"
Se neste lempo de gloria
Nacerá a Iffanla sagrada,
Comu fura festejada,
Súmente polu victoria
Da Rainha adundada!
Ja tudo leixáo passar,
Tudo leixáo por fazer,
Sem pessoa perguntar
DAS TRAGICOMEDIAS 449

A este mesmo pezar


Que foi daquelle prazer.
Poréin co'a ajuda dos ceos
Imagine! hüa festa
Á nossa Julia modesta,
Nacida per niño de Déos;
A qual festa sera esta.
Quando vi de tal fcicáo
Táo frió u (empu moderno,
Fiz hum (ríumpho d'Invernn,
Depois sera o do Vcráo.
Nos quaes fui meu pensamento
Fazer a farca disidida,
Por nao gastar lanía tinta
Neste primeiro argumento.
E porque inelhor se sinta
O Invernó vem salvagem,
Castellano en su decir;
Porque quem quizer fingir,
Na Caslelhana linguagem
Achara quanto pedir.
Argumento da figura 1? do Triumpho do Invernó
INVERNÓ.
Sepan (odos á barrisco
Que yo me soy Juan de la greña,
Estragador de la leña,
Y sembrador del pedrisco;
Cosinero de las papas,
Asador mayor de palos,
Alcahuete de los gatos
Y partero de las gatas.
Ojeador de las cigüeñas,
v„i. 11. 2»
450 LIVRO III.

Desíierro de golondrinas,
Voz de las- aguas marinas,
Agravio de viejas dueñas,
Dios de los fríos Arapnres,
Y señor de los nublados,
Peligro de los ganados,
Tormento de tos pastores.
Soy portera de los vientos,
Pastor de las íempesíades,
Ayo de las frialdades,
Ira de los dáñenlos;
Maestre sala de la luna,
De los hielos correíor,
Y suy capitán mayor
De la marina fortuna.
Aunque veáis mi figura
Hecha un salvage bruto,
Yo cubro el aire de luto,
Y las sierras de blancura.
Quitu las sumbras graciosas
Debaju de lus castañus,
Y hago á lus ermitaños
Encovar cuinu raposas.
Hago mustios lus perales,
Los busques frescus, inedoños,
Y alegres los madroños,
Y llorosos los rosales.
Hago sunar las campanas
31uy lejos cun mis primores,
Y callar los ruiseñores,
Y los grillos y las ranas.
Hago á buenos y. á ruines
DAS TRAGICOMEDIAS. 451

Cerrar ventanas y puertas,


Y hago llorar las huertas
La muerte de los jardines.
Las viñas hago marchitas
Y los arroyos riberas;
Hago lagunas las eras,
Y cisternas las ermitas.
Y porque alabarme es sospecdo,
No me quiera mas toar;
Porque el mucdo blazonar
Nunca hizu grande hecho.
Salgan los vientos y el frió:
Pues mi potencia me sobra,
Es bien que muesíre por obra
El primer (riunfo mió.
Afuera, afuera, calores,
Y locuras del Verano,
Y traiga el viento Solano
Otros misterios mayores.
Y será de tal manera,
Que se hielen las riberas
Los (anques y las carreras,
Y pozos, que el sol no quiera.
Luego el cierzo regañado
Traya nieves y nublados,
Que ni valgan abrigados
Ni corrales al ganado.
Los pastores con desmayo
Erizan ya los cabellos.
Aqui viene el uno dellos,
Que llaman Hrísco Pelayo.
Entra Brisco cantando.
29*
452 LIVRO III.

BRISCO.
"Quien me ahora ca mi sayo
"Cuitado,
"Quien me ahura ca mi sayu "
Bendito seas, Verano,
Y el padre que íe engendró,
Aquel, aquel digo yu
Que Dius hizo por su mano.
Mas Invierno, yo juraría
Pur la crizma del bapíismo
Que Salañe se lo hizo,
Sin saber lo que hacía.
"El mozo y la moza
"Van en ruinaría:
"Tómales la noche
"Naquella mon (i na:
"Cuitado,
"Quien me ahora ca mi sayo."
Oh Verano, qué es de (i,
Amparo de los pastores,
Sácame destos temblores,
Si has mansilla de mí.
Que este Invierno determina,
A según Areo tratarme,
Que solo por acabarme
Ha tomado esto conidia.
"Tómales la noche
"Naquella monlina,
"La moza cantaba,
"El mozo decia:
"Cuitado,
"Quien ine ahora ca mi sayo."
DAS TRAGICOMEDIAS 453

INVERNÓ.
Pues del ganado (e alejas
Y temblas con cuitas (antas,
Dimc, pastor, porqué caídas
Y cantas, de qué (o quejas?
Porque mira, hermano mío,
Quien canta no (¡en tormento.
lint. No íe oigo con el viento,
No íe entiendo con el frió.
INVERNÓ.
Cantas ó lloras, vTaquern?
No tienes orejas, creo.
Bni. Con la niebla no (o veo:
Derreniego del (empero:
Ya no sé lo que me hablo.
Ay que me fino cuitado!
Si no fuera desposado,
Muriera con el diablo.
Mas la mi bezos de mona,
Hija de Giraldo Gil,
Si me muero antes de Abril,
Cuitada de la soplona.
Que á según le cayó en suerte
Condición de mataperros,
Comerá trescientos puerros
Con rabia de la mi muerte.
Digo yo á la voz que suena.
No sé si es aqui, si es allí,
Que el Invierno no es (an ruin
Que no (iene cosa buena.
Isv. Blasfemas de mí, pastor,
Como sí vo fuese el infierno.
454 LIVRO III.

BRI. Si fú eres el Invierno


Aun íe tengo por peor.
Mal gozo A7eas de (i!
Para que es perseverar?
INV. Prosigue el íu cantar,
Y déjame hacer á mí.
BRI. TÚ te pensarás que el canto
No sirve sino al placer?
Pues yo te hago saber
Que á los mas tristes es planto.
INA7ERNO.
Purqué no buscas abrigo
De este cierzo, hombre cuiíado?
BRI. Porque el mal perseverado
Muchos males lien consigo.
INV. NO hay remedio en el corral?
BRI. DO al diabro el dolor,
Cuando el remedio es peor
Que no el daño principal.
Mi corral está agua hecho,
Y el agua hecha regello,
Y el regello sin proArecho.
Mal le haga Dios del cielo,
Que si remedio hubiera,
Ya lo hubiera topado;
Pero el mal que es prolongado,
Cuando algún remedio espera,
Es ya de desesperado.
INVERNÓ.
Con todo tu querellar,
Cuanto hablas lodo es rosas,
Y dices ían buenas cosas,
DAS TRAGICOMEDIAS. 455

Que huelgo de (e escuchar.


Si íú sabes repaslar
Nesía sierra íu manada
Como (ú sabes hablar,
Bien íe puedes alabar
Que mereces la soldada.
BRISCO.
Con todas esas razones,
Mala pascua (e dé Dins.
INV. Y á ti de dos en dos
Pierdas cabras y cabrones.
Bni. Tú quieres pullas conmigo?
Pues estámonos á ellas;
Que yo echaré (anías dellas,
Como hay granos de (rigo.
INVERNU.
Veamos; comienza pues,
Que yo le responderé.
Bni. Sabes cuantos pullas sé?
Como hay de horas en el mez.
INV. NO cures de mas razunes:
Veamos qué pullas sun.
BRI. Plega al mártir Sant'Anton
Que piogos y raíunes
Te pongan en tentación.
INVERNÓ.
Aun te veas, pastor,
De amores tan maltratado,
Que la sierra y el ganado
Se (e convierta en dolor.
Bni. Los ojos y el corazón
Te (ravan (ales amores
456 LIVRO III

Que den á ti la pasión,


Y á otras lus favores.
INVERNÓ.
Mas quiera Dios que tú seas
Querido de una doncella,
Y esíando (ú bien con ella,
Te la casen, y tú veas
Que es por su voluntad della.
BRI. Tú tongas hado ían fuerte,
Que ames zagala tal
Que te quiera lanío mal,
Como quieres á la muerte.
INVERNÓ.
Dios íe dé tan fuerte plaga,
Pues contra mi te sustienes,
Que por linda amiga penes,
Y tantas burlas te haga,
Como de cabellos íicnes.
Bni. Y lú por ley de mugeres
Te vrengan ían fuertes daños,
Que íe paguen sus engaños
Los servicios que hicieres.
INVERNÓ.
Muger ames en porfía,
Que sueñes con gran querella
Todas las noches con ella,
Sin poderla ver un dia.
BUL TÚ ames de corazón
Zagala de gran beldad,
Y sea de tierna edad,
Y fuerte la condición,
DAS TRAGICOMEDIAS. 451

INVKRNO.
Tal gozo veas de ti,
Que quieras bien á muger,
Que no Arca olro placer
Que verte partir de sí,
Y te muestre gran querer.
BRI. Pues no quieres concluir,
Del amor seas llagado
Por dama de tal estado
Que no ge lo oses decir,
Y mueras de enamorado.
INVERNÓ.
Por muger tengas enojos,
Pues aguzas tus sentidos
Contra mi,
Que íenga hermosos ojos
Y cerrados los oídos
Para ti.
Bm. Zagala vayas mirar,
Por quien ían perdido seas,
Que jamas nunca la veas
Ni la puedas olvidar.
INVERNÓ.
Tal moza servirte vea
Que (c dé crudas faíigas;
Y cuando lu mal le digas,
Ninguna cosa (c crea.
Biu. Por muger casada penes,
De amores mucrío perdido,
Y pensando que la íicnes,
Se queje de li al marido,
Y le quiebre las sienes.
458 LIVRO III.

INVERNÓ.
Tengas amiga hermosa,
Que la quieras muy querida,
Y le ame como á su vida,
Y sea dulce y graciosa;
Y que se venga á finar,
Y tú de presente allí,
Y al tiempo del espirar
Ponga los ojos en ti,
Para jamas te mirar.
No hay mas pullas, pastor?
BRI. Cuido que mas me quedaron.
INV. No, que en esta se acabaron
Quince dolures de amur,
Que á muchos maltrataron.
BRI. Ansí viva la fortuna
Como íú sabes de amores;
Que sus casos de dolores
No tienen cuenta ninguna.

Argumento da figura terceira.

BRISCO.
Acá viene Juan Guijarro
Muy perdido á maravilla,
Que gastó con Torobilla,
Con que no compró zamarro.
Hizole muy cruda guerra
Todo el Verano el amor,
Y agora el pecador
Esta frialdad lo atierra.
Entra Juan Guijarro cantando.
DAS TRAGICOMEDIAS. 459

JUAN.
"Por do pasaré la sierra,
"Genlíl serrana morena?"
Gran remedio es para al frió
Al que viste poca lana
Bailar recio de mañana,
AI son de este cantar mió:
Y si mi spirilu no yerra,
A según quedé en faldelas,
Si no diese sapaíeías
Caería muerto en tierra.
"Por do pasaré la sierra,
"Geníil serrana morena?"
"Tu ru ru ru ru lá: quien la pasará?
"Tu ru ru ru ru: no la pases (ú.
"Tu ru ru ru ré: yo la pasaré.
"Di, serrana, por íu fe,
"Si naciste en esla fierra,
"Por do pasaré la sierra,
"Geníil serrana morena?"
Todalas cosas á ratos
Tienen su remedio cierto:
Para pulgas el desierto,
Para ratones los gaíos,
Para la muerte enlerrar,
Para el rico mal VÍAÍT,
Para el amor el dormir,
Y para al frió bailar.
"Ti ri rí ri ri: queda tú aqui.
"Tu ru ru ru ru: qué me quieres tú?
"To ro ro ro ro: que yo sola esto.
"Serrana, no puedo no,
460 LIVRO III.

"Que otro amor me da guerra.


"Como pasaré la sierra,
"Gentil serrana morena?"
El amor ha de ir al infierno.
Esto es ya canto llano;
Porque me hizo en verano
Olvidarme del Invierno.
Mi vida no fue acordada;
Cuando serví, ella murió;
Que el amor no mala frío,
Ni paga nunca soldada.
BRISCO.
Oh bien vengas, Juan Guijarro!
JUA. Mejor esíás lú, hermano,
Que guardaste del verano
Con que compraste zamarro-,
Y no yo que gaslé en flores
Mi soldada, sin mas liento,
Y agora me loma el viento
La cuenta de mis amores.
El cierzo me toma cuentas
De mis cuidados vacíos,
De mis suspiros los fríos,
De mí querer las tormentas,
Los aires de mi bonanza,
Las nieves de mi franqueza,
Los nublos de mi firmeza,
La hambre de mi esperanza.
BRISCO.
No lienes tú olio hato,
/amarrón ó zamarrilla?
JUA. Ni capole ni capilla.
DAS TRAGICOMEDIAS 461

Ni tengo mas de un sapato.


Yo saqué en Santintin
Este sayo en hora mala,
Solo para la zagala
Verme y pagarse de mí.
Y cómprele una sortija,
Y una saya verde escura:
Por do sé que la locura
Es muy mala sevandija.
Yo (e juro, Alberto amigo,
Que el que sigue iras zagalas
Terna lanías hadas malas,
Como yo íraigo conmigo.
Que juro al cuerpo de mi,
Que gaslé en agújelas
Mis cabras blancas y prietas,
Y agora ándoine ansí
Sin zamarro, sin zurran,
Perdido, manguispanado:
El diablo llevó el cayado,
Y su madre el mi zurran.
BRISCO.
Mal estás, carillo inio,
Que este invierno es harto crudo.
JUA. Pues que yo no fuy sesudo,
Qué culpa me tiene el frió?
Dame el lu zurrón á ver,
Y callentarme he un poco.
BRI. Harto es el hombre de luco
Que da lu que ha menester.
JUAN GUIJARRO.
Di por vida de lu hermana,
46íi LIVRO III.

Como seré rico? di!


BRI. Si lú aprendieras de mí,
No bailaras tan sin gana.
Ora nota que no seas loco:
Quieres tú enriquecer?
Decirle he mi parecer:
Gana mucho y gasla poco.

Argumento da figura quarta.

INVERNÓ.
Pastores, acullá asoma
Una vieja sin sentido,
Que quiere un mozo marido;
Y él dice que la toma,
Y sacóle esto partido:
Que si esta sierra pasar
Así lloviendo y nevando.
Luego la quiere (ornar;
Y ella por se casar
Viene descalza cantando.
Vem a Vel ha cantando.
VELHA.
"Assi andando, amur andando,
"Assi andando m'ora ¡rei."
Mando-vos eu a vos chover
E nevar e saraivar,
Pois pera haver de casar
Nao se pode hi al fazer.
Jesu! que nevé lamanba!
Nunca hei daqui de sair.
Mudos daviño de rir,
DAS TRAGICOMEDIAS. 463

Se soubessem a artimanda
Que em lal íempo me fez vir.
BRISCO.
Adó vais, vieja honrada,
Que no hay aqui camino?
VEL. EU nao vou senáo a íinu
Per esta serra nevada.
He tamanha a frialdade
Que levo ñas ¡lhargadas,
E as gengivas ínchadas,
Que haverieis piedade
Se me visseis as queixadas.
JUAN GUIJARRO.
Vos madre vieja, á qué vais?
VEL. He mui longo de contar;
Poréin por desabafar,
Direi hum pouco e nó mais.
Eu desejo ser casada
Com hum mancebo solteiru,
Filho do Priol d'Aveiro,
E eu sua namorada,
E o moco sapateíro.
Ora fui-lhe eu fallar nisso,
Dix'eu: Fernando amigo,
S'havés de casar comigo,
Agora he o tempo disso,
Que vai abaixando o trigo.
Díxe elle: Brasia Caiada,
Praz-me pois que vos queres,
Com condícáo que passés
Aquella serra nevada
San levar nada nos pés.
464 LIVRO III

E fosse isto logo agora,


Que (riumpha a invernada.
Fui eu contente e pagada
Co'a milita da bó hora.
BRI. Heciérades por volar,
Si os enviara al cielo.
VEL. He hum mancebo láo bollo,
Que iría polo cobrar
Nua per esse régelo.
Nao cuidéis que de desse geito:
Vedes vos hum Allemáo?
Assi he elle láo direilo,
Hum mancebo táo bem feito,
Que he hüa consolacáo.
Ora verde-lo jogar
C'os pranches pella do vento!
Benz'o Déos e o anju bento;
Parece que anda no ar.
BRISCO.
Si él es tal, juri á mí
Que sois A7OS bien corcovada.
VEL. Encolhi co'a gcada,
Mas nao saín eu feiía assi:
Védes-me aqui estirada.
BRI. Ya sois ían vieja arrugada,
Que no sé lu que ine diga.
VEL. Hi ha velda rapariga,
E manceba veldeníada.
BRISCO.
No sentís que sois ya (¡erra?
VEL. Nao dizedes vos verdade,
Que s'eu fosse velda (erra.
DAS TRAGICOMEDIAS. 465

Nao passaria eu a serra


Per tamanha fríaldade.
Vistes vos quanto embaraco!
Bm. Mejor fuera romería.
VEL. Nao ha hi tal obra pía
Como a que eu pera mi facn.
Ouvides vos Juan Guaitero?
Ide assobiar ó gado
E nao íenhades cuidado
Do meu Fernán sapaíeiro.
Huí, aramá! eu esíou brincando.
Quero-me ¡r, que perco lempo.
Jesu! que nevé e que vento!
J'eu vou taraineleando.
"Assi andando autor andando,
"Assi andando m'ora ¡re¡."
Ora pois, mando-vos eu,
Dona nevé amargurada,
Que hei d'alongar a passada,
E hei de fazer o meu.
Jesu! Jesu! e¡s-me vou:
Amara de mí! j'eu jaco.
Quem me tirará o braco
E a perna que aíolou.
Acorrede-me, pastores,
Ajudade-me ora a alear.
BRI. Mira quien quiere casar
Y negocear amores.
VEL. Inda eu sou inuiher bein tesa:
E cair nao he maravilha;
Porque empecei na fraldilha,
Que co'a pressa
Vi.l. II.
.30
466 LIVRO III.

Nao lhe fiz ina ora a presa,


Nem me lembrou a mantuda.
Porque diz o exemplo antigo:
Quando te dáo o porquinho,
Vae logo c'o baracindo.
Ora eu ca assi o digo;
E mais quem inda s'atreve,
Como eu que o posso fazer.
Que assi case eu coin prazer,
Que Arou cada vez inais leve.
Vai-se cantando.
"Polo canaval da nevé
"Nao ha hi amor que ine leve."
7
INA . Pastures, ios del frió,
Acogeos al aldea,
Porque quiero que se vea
El segundo triunfo mió
Sobre la mar de Guinea.
Vao-se os pastores cantando.
BRISCO.
"Quien me ahora ca mi sayo,
"Cuitado!
"Quien ine ahora ca mi sayo.
JUA. "Por do pasaré la sierra,
"Gentil serrana morena.''

Argumento das figuras do segundo triitmpho.

INVERNÓ.
El mí triunfo segundo
Son tormentas en la mar,
Que luego quiera tratar,
Las mas fuertes que en el inundu
DAS TRAGICOMEDIAS. 467

Naíureza pudo dar.


Y antes de comenzadas
Verná un piloto bozal
Y un marinero aosadas
Buen maestro especial:
Y tres grumetes bobazos,
Todos cinco navegando,
El pilólo inorando,
El marinero carpazos
Oiréis que le va dando.
Aptto. P¡ p¡ p¡ pü. GRU. A des ?
PIL. Esta nao vai emproada,
Se a íendes bem olhada.
MAR. Mas anles he ó revés.
Porque o paiul d'aA'ante
Nao leva biscdtu ja,
Nem ha senáo u de ca
Que comáo daqui avante.
A nao vai bem arrumada,
Déos a leve a salvamento:
Em al tendes vos o tentó,
Que isso nao releva nada.
Leváis viagem gentil,
Nao vades com ventos largos
Cahir nos baixos dos pargos
Nessa costa do Brasil.
Apito. P¡ pi pi p¡¡.
PIL. Nao ha aqui nendum grumete?
Todos. Que manda vossa mercé?
PIL. O nosso vento escassea.
Cafa poja do traquete.

•M'
468 LIVRO III

GREGORIO.
E quem he aquí o traquele?
O traque sei eu que he,
Mas o quete nao sei eu
Inda agura onde elle s'do.
AFF. Samicas de u lancol
Que vai naquella picota.
PIL. Ca^ae eramá a escota,
Que A7ai o A7ento c'o sul.
Apilo
Pi pi pi pi pü.
GRE. Tanto monta assubiar
Cuin'aquillo que s'de li.
PIL. Nao sabéis alli cacar?
GUN. E cños tendes vos aqui?
Ves, ves, tu tu tu.
AFF. Gómalo, vae polo furáo.
GON. Va Gregorio. GRE. Mas vae tu,
E eu chamarei o cao
Do piloto: tu íu tu.
Ves, ves: raiva te tome.
E como ha o vosso cao nome, Piloto?
PIL. VOSSO pae torio.
Melhor matáis vos a tome.
Nao vai nesta nao grumete,
Que váida hum so caracol;
Á vela cdamáo lancul,
E picota ao traquete.
MARINHEIRO
Vos sois, Piloto, a picota:
Se nosso caininho he em Leste,
E o vento he Noroeste,
DAS TRAGICOMEDIAS 469

Para que he cacar a escota?


Eu nao vos posso entender.
PIL. Onde vos fazeís aqui?
M A R . E vos perguntais a mi
O que deveís de saber?
Sois piloto d'Alcoucheto
Pera o rio das inguias,
E navegar nestas vías
Quer cabeca e capacete.
Apito.
Pi pi pii — p¡ pi pií.
GnE. Mando-vos eu assobiar?
Que nao hei hoje de fallar.
Ou siquaes m'irei per hi.
MAR.Tomastes vos hoje a altura,
Por saberdes onde estáis?
PIL. C'O Río dos Bós-sínaes
Me faco a Déos e á ventura.
Ou n'augoada da Boa-paz.
Ou seremos tanto avante
Como o Rio do Infante,
Segundo o tempo aqui faz,
Ou c'o Cabo das Correnles.
MAR. Isso he ou lobo ou ran,
Ou feixe de lenha ou armeo do Ían:
Isto fazem adherenles.
Quem vos houve a pilotagom
Pera a India desta nao?
Porque hum piloto de pau
Sabe mais na marinhagem.
PIL. Fernán Vaz, verdade he
Que me acho eu ca robot".
470 LIVRO III.

Porque nunca fui pilotu


Senáo lar pera Guiñé.
MARINHEIRO.
Esta he huma errada,
Que mi] erras Iraz comsigo,
Offício de tanto p'rigo
üar-se a quem nao sabe nada.
Este Iadráo do dinheiro
Faz estos maus terremotos;
Que eu sei mais que dez pilotos.
E sempre sou marinheiro.
Hüa cousa juro eu,
Que os que san sabedores
Nunca mettem rogadores,
Nem peitáo nada do seu.
Se agora se acertar
Tormenta como acontece,
Piloto, a mi me parece
Que havia a nao de suar.

Argumento da tormenta seguinte do segundo triumpho


do Invernó.
INEVRNO.
Yo quiero sobre la mar
Demostrar mi poderío;
Pues la tierra gusta el frió,
Tormentas quiero ordenar.
Haré cantar las sirenas,
Y peligrar á las naves,
Y haré gritar las aves,
Y volar á las arenas.
Ríésguese Merídion,
DAS TRAGICOMEDIAS. 471

Salgan las furias veníales


Con tormentas generales
Y brava revolución:
Y desean de las estrellas,
Y suban de las honduras
Nubes negras muy oscuras.
Y mil fuegos salgan dellas.
Ansí, ansí, temporales,
Que ahora triunfo yo.
Oh qué rayu que cayó
Entre aquellos robledales!
Grandes voces da la mar
De temur desla tormenta:
Terrible será el afrenta,
Que terna quien navegar.
MARINHEIRO.
Hou nusso Pilulu mor!
Eu vejo vir por d'avanle
Táo temeroso sembrante,
Que náu pode ser peor.
E aquelle afusilar
Fere logo mui vermeldo.
Tomae lá vosso cunseldo,
Qu'eu nño quero mais fallar.
PILOTO.
Pera que he recear
O que aínda nao he nada?
Aquillu he trovoada
E nao ha ca de chegar.
Mtn.O bum piloto d'afrenla,
Ou grande senhor de mando
47a LIVRO III.

Na bonanca da d'ir cuidando


Os perigos da tormenta
Que fortuna anda ordenandu.
Nao cuidéis que he mar da Mina.
Isto he noite fechada,
E a lúa merculina,
E a custa endiablada.
E a nao ma de bolina.
r

PIL. A verdade j'esle vento


Entra mui endiabradu.
MAR. Vos, piloto, sois ázado
Pera perder logo o tonto.
E mais noite (áu escura.
PIL. Que queréis vos, Fernán Vaz?
No mal que o Invernó faz
Tenho eu culpa por ventora?
MAR.Que! e vos choráis aní'hora?
PIL. O Virgem da Luz Senhora!
San Jorge! San Nicolao!
MAR. Acudí eramá á nao,
E leíxae us Sánelos agora.
Siquer mandae amainar
A ineio masto essa vela,
E á mezena colhé-la,
E huma vez segurar.
Api. P¡ pi pii. Gnu. Adés?
PIL. Amaina, amaina a mezena.
GRE. Praz? AFF. Ham? GRE. Mezena?
PIL. Amainac essa mezena.
GRE. Que amainemos a mezena?
PIL. Acudí allí (odos tres.
DAS TRAGICOMEDIAS. 473

GRE. E eu tamban irei lá?


AFF. E eu ¡rei lá lamban?
PIL. Od pezar de Saníarein!
O demo vos (rouxe ca.
GRE. O demo vos (rouxe ca
E a nos ouíros lamdem.
PIL. Vae, fideputa Fernando.
GRE. Sabéis como eu irei?
Per hi fóra esfusíando.
PIL. Amainae! — áquedelrei!
Que nos irnos alagando.
Gnu. Per hu puxaremos nos?
Gregorio, puxa per hi.
(¡RE. Alfonso, lir'-le tu d'hi,
E darei aquí dous nos.
PIL. Fernán Vaz, acudi allí,
Que vai a nao socobrandu.
Ó Virgem de Monserralc,
Livra-nos desíe rebale
Polo leu precioso manto.
Grumetes! Gnu. Bofa mei amigo.
PIL. Dou ó demo a gruinetada!
Amaina o papafigo.
Gnu. Vamo-nos polo abrigo:
Dae ó demo a comiada.
Sabes que vento aqui faz?
GRE. Ja aquesta he farrapada.
AFF. Acudi alli, Fernán Vaz.
GRE. Acudi allí, Fernán Vaz,
Que ja vai toda quebrada
A tranca do guaroupaz.
474 LIVRO III.

AFFONSU.
Havemos nos de nadar.
MAR.Que dizes, tolo? que dizes?
AFF. Digo que ha veis d'ir pescar
Dos cranguejos c'us narizes,
Que andáo per fundo do mar.
MAR.Jesu! Jesu! Sanííago!
O Virgem Maria da Luz,
Eu íe promeíto hüa cruz,
E hum íribulo e hum bago.
PILOTO.
O Senhora da Batalda,
Ñas tuas sanctas ináos me modo.
Gnu. O Virgem Maria du Loreío!
S'escapulo, eu te prometió
Hüa cárrega de palha
Polu sancío dia de Déos.
MAR. Ei-Io precioso sancío
Frei Pero Goncalv7es bento!
PIL. Empara-nos de tanto vento
C'o teu precioso manto,
Senhor, libra nos a malo.
GRE. Demos á bomba, piloto:
Dae ó demo Frei Goncalo,
E nao Frei Pero minholo.
PILOTO.
He o bemaventurado
Frei Pero Goncalves bento.
GRE. Sancto que anda com tal vento,
Nao he elle senáo peccado,
Polos sánelos evangelhos.
MAR. Vos, piloto, esmorecéis,
DAS TRAGICOMEDIAS. 475

E mais mui pouco sabéis


Reger vossos aparelhos.
Apito.
Pi pi píí. GRU. Adés?
PIL. Eia, filhos, alijar
Quanto vai nesse convés,
Que vai a nao a través:
Deiíae as arcas ó mar.
Mar. Feilo, feito, bem sera.
Aqui, grumetes, aqui,
Va ó mar esta arca, va.
GRE. Nao j'essa arca, ta ta ta,
Que vai o meu peníem h¡.
PILOTO.
A minha mesma nao fique.
r

O Fernán Vaz, que faremos?


MAR. He por fórca que arribemos
Na volta de Mozambique.
Pil.. Arrida todo arribado:
Fernán Vaz, nao sei que faca.
MAn.Oh Virgem Maria da Graca!
Ei-lo masío ja quebrado.
AFFONSO.
Quebrou a tranca d'amelade,
E faz aqui hüa escurana.
GON. Ora chamae a San frade
Que vos ponda oulra de cana.
PIL. Fernán Vaz, que sera aquí?
MAR.Oh! arrenego de mi!
Se piloto aqui viera,
Ja este nao eslivera
A salvamento ein Cochím.
476 LIVRO III.

Argumento das tres figuras que cntrao na fim do


segundo triumpho do Invernó.
INVERNÓ.
Porque no pueda faltar
Á mi triunfo cosa alguna,
La cumbre de la fortuna
Quiero luego demoslrar.
Veréis cantar las sirenas,
Que es señal de grande afrenta,
Y cantan haciendo cuenta
Que todas bonanzas buenas
Son después de la tormenta.
Vem tres Seré as cantando este
Vilancete.
"Por mas que la vida pene,
"No se pierda el esperanza,
"Porque la desconfianza
"Sola la muerte la tiene.
"Si fortuna dolorida
"Tuviere quien bien la sienta,
"Sentirá que toda afrenta
"Se remedia con la vida.
" Y pues doble gloria tiene
"Después del mal la bonanza,
"No se pierda el esperanza
"En cuanto muerte no Aiene."
INVERNÓ.

Reinas mias, por ahora


No curéis mas de cantar,
Porque os quiero llevar
Al Señor y á la Señora
Rey y Reina de la mar.
DAS TRAGICOMEDIAS 477

Estos solos, sin temor


Do mi terror tan profundo,
Conquistan la mar del mundo.
Y mata su resplandor
lias tormentas que yo fundo.
Son sus naves tan podrosas
Con la gracia de su zelo,
Que aunque se hunda el cielo
Con tormentes peligrosas,
Van y vienen sin recelo.
Y estos por excelencia
Son Reis de las sirenas,
Y todas las cusas buenas
Les hacen obediencia.
Y daros he presentadas
En poder de sus poderes
Ansí peces y mugeres,
Sirenas bien empleadas.
Y poderos heis loar
Que servís dos resplandores,
Dos cosas para adorar,
Dando gracias y loores
Al que los quizo criar.
Y entendéis estas cuentas?
Decid si os place ó no.
Respondan as Seré as cantando
SEREAS.
"Ha ha ha — ha ha ha — ha ha ha."
INV. Pues decís que sois contentes,
É yo muy contente esto.
(A EIRei)

Pues que soy Invierno yo


478 LIVRO III.

Y vos la serenidad,
Delante tal claridad
Mi fuerza se consumió.
Empero quiero deciros
Lo que se ve y no se entiende:
Que nadie sabe sentiros,
Y para saber serviros
En la tierra no se aprende.
Y porque va enflaqueciendo
Mi fuerza delante vos,
Para decir lo que entiendo,
Señores, dígalo Dios,
Que yo ya A7uy pereciendo.
Y ansí casi en Aida,
Os trayo á empresentar
El brizo para brizar
La Reina recien nacida,
Y estas para cantar.
Vos, Sirenas, cantareis,
Por memoria y enxalzainiento
De su vida y nacimiento,
Este romance que oiréis.
Romance.
Dios del cielu, Rey del mundo,
Por siempre seas luadu,
Que mostraste tu grandeza
En lodo cuanto has criado.
Heciste reinos disididos
Cada unu en su grado,
Distóles muy justos reís,
Cada rey en su reinado.
También diste á Portugal,
DAS TRAGICOMEDIAS. 479

De Moros siendo ocupado,


El Rey Don Alonso Henriques,
Que se le hubo ganadu.
Este santo caballero,
Del íu poder ayudado,
Venció cinco reis muras
Juntos en campo aplazado.
Tus sanias llagas le diste
En pago de su cuidado,
Que las dejase por armas
A su reino señalado.
Recuérdate, Portugal,
Cuanto Dios le tiene honrado;
Díóte las fierras del sol
Por comercio á íu mandado;
Los jardines de la tierra
Tienes bien señoreado:
IiOs pomares de Oriente
Te dan su fruto preciado,
Sus paraísos terrenales
Cerraste con lu candado.
Loa al que (e dio la llave
De lo mejor que ha criado;
Tódalas islas ¡notas
A ti solo ha revelado.
De quince Reis que has tenido,
Ninguno íe ha desmedrado,
Mas de mejor en mejor
Te lidien acreceníado;
Todas lus Reinas pasadas
Santamente han acabado.
Si á Dios diste loores
480 LIVRO III.

Por cuantos bienes (e ha dado,


Dale gracias nuevamente,
Pues de nuevo te ha mirado.
Dióte el Rey Don Juan,
Tercero de este ditado;
Y de su Reina preciosa,
Porque seas mas liado,
Dos hijas primeramente
Todo por Dios ordenado;
Como quien sabe lo bueno,
Ansí te lo ha guisado.
Bien sabes, Reino dichoso,
Las Infantes que te ha dado,
Unas para Emperatrices,
Otras Reinas que has criado.
Los mas Reis de la Crisíandad
De su progenie han manado,
Y olrosí Emperadores
Proceden de su costado.
Tu Príncipe naíural
Dios te le tiene guardado,
Y nacerá en tus manos
A su tiempo limiíado.
Cantad esto, mis Sirenas,
Y sea muy bien cantado.
Este romance canlárao as Sereas, e acabado diz o
INVERNÓ.
Sirenas, por mi amor
Que no cantéis mas os pido.
Porque el Verano es venido,
Mi enemigo mayor,
Y Capitán de Cupido.
DAS TRAGICITfflEDlAS 481

Esperado no me cale,
Vos os podereis quedar,
Y acoger á la mar,
Si la líerra no os vale.

Esta segunda parte da Tragicomedia tracta do triumpho


do Verao; o qual entra cantando.

V E R A o.
"Del rosal vengo, mi madre,
"Vengo del rósale."
Afuera, afuera, nublados,
Neblinas y ventisqueros,
Reverdeen los oteros,
Los valles, priscos y prados:
Sea el frío rebentado,
Salgan los frescos vapores,
Píntese el campo de flores
Alégrese lo sembrado.
"A riberas de aquel vado
"Viera eslar rosal granado.
"Vengo del rósale."
Vuélvase la hermosura
A cada cosa en su grado;
A las flures su blancura.
A la (ierra su A7erdura,
Que el bravu tiempo ha robado.
Bendito el triunfo mío,
Que da claridad al cielo,
Y no es menos mi zolu
De lu que es ini señurío.
3 l
A o ) . 11.
482 LIVRO III.

"A riberas de aquel rio


"Viera estar rosal florido,
"Vengo del rósale."
El Dios de lus amadores
Me dio su poder y llaves,
Que mande caníar las aves
Los salmos de sus amores.
Y las damas sin piedad,
Sepan que soy ya venido,
Y que me manda Cupido
Quo no goce mi amistad
Corazón desgradecido.
"Viera esfar rosal florido,
"Cogí rosas con suspiro.
"Vengo del rosal,
"Del rosal A7engo, mi madre,
"Vengo del rósale."
lia Sierra de Cintra viene,
Que estaba triste del frío,
Gozar del triunfo mío,
Que á su gracia conviene.
Es la Sierra mas hermosa
Que yo siento en esta vida;
Es como dama polilla,
Rrava, dulce y graciosa,
Namorada y engrandecida.
Rosque de cosas reales,
Marinera y pescadora,
Muntera y gran cazadora,
Reina de los animales.
Muy esquiva y alterosa,
Bausa de navegantes.
DAS TRAGICOMEDIAS. 483

Sierra que á sus caminantes


No cansa ninguna cosa.
Refrigerio en los calores,
De saludades minero,
Contemplación de amores,
La señora á que yo mas quiero,
Y con quien ando de amores.
Vem a Serra de Cintra, e diz:
SER. O Veráo, Veráo, Verao!
Veráo os que bein le olharem
Teus misterios quantos sao;
E se bem (e contemplaran,
Como a déos adoraráo.
VERAO.
Si el amor que tengo á ti.
Dama de noble crianza,
Otro tal tienes á mí,
Dainbos tenemos aquí
Santa bienaventuranza.
SER. Meu senhor, tu saberás
Que c'o poder que em ini leus,
Se me alegras quando Arens,
Matas-me quando te vas,
E em suidades me mantens.
E emquanto lá estás,
Sendo eu certa que has de vir.
Suidade me faz sentir
Dúvidas se tornarás,
Ou se o ceo pode mentir.
VER, Discreta Dama serena,
Del bien se sigue el amor,
Del amor se sigue pena,
:n
484 LIVRO III.

De la pena amor mayor,


Del mayor, mayor cadena.
Mas después que v¡ los males
Desta sin piedad dolencia,
Supe por experiencia,
Que sus dolores mortales
Son en cuanto tura ausencia:
Que esta me hace pensar,
Siendu firme tu edificio,
Que te ha de llevar la mar
Y sacarte de tu quicio,
Por me hacer desesperar.
SERRA.
A suidade na mulher
Mata o coracáo e alma,
Porque momento nao acalma
A tormenta que tfver.
Que tu, se te vas de ini,
Verás ouíras formosuras;
Fallas e ouves (locuras,
Mas eu nño vejo sem ti,
Senño cuusas muito escuras*.

Argumento da figura terccira tío hiumpho do Verán.

I.NA7EnNO.
Aquel maestro dcrrero
Tiene la muger dornera,
Y quieren (Jo que Dius un quiera)
Que siempre sea Genera.
Tiéuenme amenazado,
Porque los dagu sudar;
DAS TRAGICOMEDIAS 4H5

Y tengo los de escuchar,


Que es casal muy concertado.
FORNEIRA.
Maridu mal maridado,
Dos mores ladróes que eu vi,
Vejo-te mal empregado,
Mas peor veju eu a mí.
Que se fura tecedeira
Casada cuín tecelño,
No ¡iiA'erno e no veráo
Sempre andará a lancadeíra.
Ajuntou-nos o peccado.
E pois isto he assi,
Marido desmazelado,
Mao pezar veja eu de ti.
FEnREIRO.
Sem vergonha de ninguem
Essas sao as fallas tuas;
Porém se no torno suas,
Eu na fragoa tamban.
Tu volita bem maridada,
Das mais bravas que eu vi,
Vejo-te mal castigada,
Porque eu hei medo de ti.
FORNEIRA.
Custadu me houvera hum ólho,
E loras lu tal a osadas
Que m'enchéras de pancadas,
E nao furas Juáo pinlho.
\ o veráo nao ganhas nada,
Co'a calma vons-te a uiim-
486 LIVRO III.

E despois que sou casada


Nunca me déste hum chapim.
FERREIRO.
Eu sou de marca mean,
Nao me quero derreter:
Em ti ha que dar e ter,
Como em boi da Golegan.
Hurca mal entoqueixada,
Farnetega maior qu'eu vi,
Quando te ves encalmada,
Porque te tornas a mi?
FORNEIRA.
Chouricinho engargueijado,
Forunco de gaía prenhe,
Nao sei, marido coitado,
Se le A7enda, se t'empenhe.
Pois nao prestas pera nada
Quero-me quitar de ti;
Que a bella mal empregada
Se pode dizer por mí.
FERREIRO.
Se toras Déos verdadeíro,
Tu fizeras á bofe
Pipas as (orres da Sé,
E o anno iodo Janeiro.
Vinhaleira tresnoulada,
Mao veráo se metta em li,
Nunca vejas invernada,
Nein a calma se chegue a mi.
SERRA.
Que ma cousa sao villáos
E a gente popular,
DAS TRAGICOMEDIAS. 487

Que nao sabem desejar


Senáo huns desejos vaos,
Que nao sao (erra nem mar.
De nenhum bem dizein bem.
Nem o sabem conhecer,
Murmuráo san entender,
E aínda o peor que tem,
Que seu dañino he seu prazer.
Hüa forneira pellada,
E hum ferreiro pellado
Terem curacáu ousado
Com lingoa exconunungada
Fallar no Veráo sagrado!
Fon. Olhae, Maria mangona,
S'eu dou volta ao breviaim.
Veréis vos o campanairo
Casado co'a -atafona.
FERREIRO.
Verdade diz minha inulhor:
Que bem adiáis ao Veráo?
SER. EU t'o diría, villño,
Mas nao podes comprender
Seus triumphos quanlosvsáo.
Fon. Os seus triumphos bemditos,
Pois queréis cnusas bem ditas,
Sao de pulgas infinitas
E mosquitos infinitos.
Pera moscas diligente,
Emparo de gafanhóes,
Remedio pera rascóes
Que dormán sempre cdáoinenlo,
E furtáo nesses favaes.
488 LIVRO III.

E manlem-se pelas vinhas,


Que nao puzeráo seus paes:
E quanío ás camarinhas,
Sem ellas vive Cascaes.
Sua fruita desejada
Bem parece, e he damnosa;
He como a dama fermosa,
Galante, muito avisada,
Mas nao menos perigosa.
FER. Verdade diz minha mulher.
Fon. Sabéis pera que elle he bó?
Pera bichas e serpentes,
E fazer suar as gentes
E encher barbas de po,
E de febres Alemtejo,
E de maleitas Thomar
E calmarías no mar;
E quantas ovelltas vejo,
Todas as faz trosquíar.
FER. Verdade diz minha mulher.
SERRA.
Meu Senhor, contra verbosos
Noli contendere verbis.
Fon. Qui semetipsum lauda!
Despicít honorem suum.
Nao me haveis vos de vencer
Emquanto Déos me der sísof
FER. Verdade diz mi tilia mulher.
SER. Se o nosso asno soube 1er,
Nao he muito que saíbais vos isso.
VERAO.
Disputar no es cosa honesta
DAS TRAGICOMEDIAS. 489

Con horneros ni herreros:


Porque bien caro les cuesta,
En mi tiempo, sus dineros,
Trabajados por la siesta.
Dejemos baja requesla,
Volvamos en otra banda.
Porque mi triunfo manda
Que le hagan todos fiesta,
Como el caso lo demanda.
Que en mi tiempo fue alumbrada
La Reina vuestra señora,
En la mas hermosa hora
Que del cielo me fue dada.
Queríala visitar;
Mas qué le presentaré?
Vos me habéis de enderezar
Un presente singular,
Que sin vergüenza le dé.
SER. EU tenho mu ¡los íhesouros,
Que lhe poderáo ser dados,
Mas fucáráo encantados,
Delles de tempo de Mouros,
Delles dos antepassados.
VERAO.
Bajo presente sería
Presentarle yo dineros,
Con que compran cadaldía
Cosas viles mil groseros,
Y es común su valía.
A' mas sería eso ansí
Echar agua en la mar yu.
490 LIVRO III.

SER. Pois tu que Ide des a mi,


Eu de Sua Alteza sou,
E por sua estou aqui.
FERREIRO.
Dizia eu, sendora Sería,
S'isto bem vos parecer,
Que Ide deis minha mullier,
Pera tirar naos ein térra.
FOR. Vamo-nos ora, marido,
Deste sol, deste bochorno,
E acolhamo-nos ó torno,
Que ja o pao sera cozido.
FERREIRO.
Vae ma ora devagar:
Ah corpo de Déos cointigo!
FOR. Se tu nao podes andar,
Quem te mette vír comigo?
SER. E pois que cousa sera
Que lhe empresentasses ora?
VER. Cierto para tal Señora
De ventura se hallará
Dádiva merecedora.

Argumento das figuras da fim do triumpho do Verao.

SERRA.
Hum tildo de hum Rei passadu
Dos gentíos Portuguezes
Tenho eu muito guardado,
Ha mil annos e tres inezes
Per hum mágico encantado.
E este tem hum jardim
Do paraíso terreal,
DAS TRAGICOMEDIAS. 491

Que Salomáo manduu aqui


A hum Rei de Portugal;
E tein-no seu fdlio allí.
Este sera o presente,
E eu irei por elle asinha,
Porque he pera a Rainha
Justo e conveniente.
O qual Principe vira
Em pessoa aqui com elle,
Que sabe as virtudes delle,
E como e quem o trouxe ca,
E quanto se monta nelle.
E vira acompanhado
Dessas cachopas Cinlrans,
E de mancebos do gado,
Loucáos e ellas loucans,
Com seu cantar costumado.
VER. Y, el jardín presentado,
Por no engendrar hastío,
Fenezca el triunfo mió,
Aunque no sea acabado.
Así que por no enhadar,
Quedarán para traíar
Del triunfo que ine cabe,
Cosas grandes de noíar;
Pero el cuando no se sabe.
Entráo qitatro mancebos e quatro mogas, todos muito
bem ataviados em folia, dizendo esta cantiga:
Quem diz que nao he este
San Joño o verde?
INFANTE.
Todalas cousas criadas
495i LIVRO III.

Tem seu fim determinado:


Dellas per lempo alongado,
Dellas mais abreviadas,
Dellas per curso meado.
Assi que estove guardado
Este bel jardim da vida,
E pera desencantado
Foi o seu curso acabado
Quando a bella foi nacida.
O qual á Rainha convein,
E he per esta rezáo:
Jardim se toma por Joáo,
Tamban os rosaes que íem,
Por EIRei se lomarño.
Por suas virtudes flores,
Polo seu bom zelo a rama,
Os jasinins por seus primores,
Os olores pola fama,
Por sua graca as colures.
A rede cum que he cercado,
Se loma por Rei prudente;
Assi que propiciamente
Este jardim foi creado
Para esíe mesmo presente.
O casíanho se praníou
No paraíso íerreal;
E a por quem se íomuu,
Nao he menos, mas igual
A que Déos alli formón.
VERAO.
Infante, debéis saber
Que las flores mas reales.
DAS TRAGICOMEDIAS. 493

Los jardines y rosales


Son dijos del mi poder,
Nietos de mis temporales.
INF. Se por estes dizes, peccas;
Porque essas flores que fazes,
Tu as fazcs e desfazes,
Tu as floreces e séccas.
E o sancto jardim de Déos
Florece san fenecer;
Que o sor e logo nño sor,
He obra de fracos ceus,
Que nño tan fixo poder.
Que quanlas frescuras das,
E quanto (11 e o Mundo ten»,
He jógo de (u que vas,
E jógo de (11 que vens.
Istu bem o entenderás.
E cuín esía concrusño
Vamo-lo empresentar,
Purque se devein de dar
As cousas a cujas sao.
Vai aprescntar o jardim a EIRei e diz:
Reis de todo mal iniigus,
Dinos de fama immurtal.
Esto jardim perennal,
Ja de lempos muito antigos,
Se encaníou em Portugal.
O seu nome principal
Jardim de Virtudes de;
E segundo nossa fé,
Vem-nos muito natural.
E logra-lo-heis nó menos
Horas e noiíes e dias,
Dos que ha que logra Elias
O jardim que nos perdemos.

Os Cintrños em folia com o Principe se vño, cantando


esta cantiga:
Vento bueno nos ha de levar,
Garrido he o Vandaval.
FIGURAS.
FREI PACO.
JOÁO MORTEIRA, Villáo.
BASTIÁO — seu fddo.
COLOPENDIO .
\ Fidalgos.
BERENISO ; *
MARTA no PRADO »
; Regateira*.
BRANCA DO REGÓ S
CERRO VENTOSO.
FR. NARCISO.
APARICIANES.
GIRAIiDA — sua filha.
DOMICILIA
Freirás.
DOROSIA
ILARIA ,
Pastoras.
JULIANA S

Esta tragicomedia seguinle he satyra: seu nome he


Roma ge m de A ggravados. Foi representada ao mui
excellentc Principe e nobre Rei D. Joáo, o tereeiro em
Portugal deste nome, na cidade de Evora, ao parlo da mui
esclarecida e christianissima Rainha D. Catherina, nossa
Senhora, e nascimenlo do Illustrissimo Iffante D. Felipe,
era do senhor de 1533-
ROMAGEM DE AGGRA VADOS.

Entra Frei Pago com seu hábito e capello, e gorra de


velado, e luvas, e espada dourada, fazendo meneios de muito
doce cortezáo; e diz,.'
F R E Í P A CU.
Quem me vír entrar assi
Com estes geitos qu'eu faco,
Cuidará que enduudeci,
Até que saiba de mi
Que saín o padre Frei Paco.
Deo grafías nao me pertence,
Nem pera sempre nein nada,
Senáu espada dourada;
Porque uiuito bein parece
Ao Paco trazer espada.
Eu saín finu da pessoa,
E por se náu duvídar
Fiz hüa cousa muí búa:
Leixeí crecer a cuma,
Sem nunca a mandar rapar.
E pur tanto vus nao digo
Deo grafías, se attentais nisto,
Nem louvado Jesu Chrísto,
Inda que trago comigo
Hábito que he muito disso.
DAS TRAGICOMEDIAS 497

E saín táo paco em mi,


Que me posso bem gabar
Que envejar, mexericar
Sao meus salmos de Davi
Que costumo de rezar.
Fallo, mui doce cortez,
Gran somma de comprimonlus:
Obras nao ñas esperes,
Senáo que vos contentes
Com palavrinhas de ventos.
Sou favor e desfavor,
Mestre mor dos namuradus,
Engaño dos confiados,
Sou templo do Déos d'amor,
Inferno dos maguados.
Poréin nao como sohia
He ja a lei namorada;
E porque tudo s'enfria,
Amo assi de sesinaría,
E suspiró d'einpreiíada.
O auto que ora A-ereís,
Se chama, irmños amados,
Romagem dos aggravados,
Indaque alguns acharéis
Que se aggraváo d'abastados.
E pera declaradlo
Desta obra sancta 6f cetra,
Quizera dizer quein sao
As figuras que viráo,
Por s'entender bem a letra.
Porém he perder maro
E dilatar a viagem:
Vol. 11.
32
498 LIVRO 111.

Que por muí clara lingoagem


Cada hum dirá quem he
E a causa da romagem.
Entrará lugu hum villáo,
Chamado Joáo Mortíndeira,
Aggravado em gran maneira.
Quero ver sua paixáo
Assentado nesta cadeira.
Vem Joño Mortinheira, villáo, com sen filho
Bastiüo, e diz:
VILLÁO.
Od descreio nao de san;
Renegó da seinenteíra!
Esta he forte canseira,
Que me tira a devacáo
De rezar indaque queira.
Ca nao vou pera rezar,
Pezar de minha madrasta,
Que rezar, arrenegar,
Mal dizer e contemplar,
Nao pudem ser d'düa casta.
Porque a pessoa aggravada
Nao lhe rege» a devacáo.
Fn.P.De que te queixas, villáo?
VIL. De Déos, que he cousa provada
Que me tem grande lencáo.
FR.P.Que le faz, que te querellas?
VIL. Faz-me com que desespera.
FR.P.Que? VIL. Que chuve quando nao quero,
E faz fiuin sol das estrellas,
Quando chuva algüa espero.
Ora alaga o semeado,
DAS TRAGICOMEDIAS. 499

Ora sécca quanto hi ha,


Ora venta san recado,
Ora neva e mata o gado,
E elle lanío se lhe dá.
Eu que o queira demandar
Por coriseo e Irovoada,
Por pedrisco e por geada,
Buscae quem o va citar
Que lhe acerté co'a pousada.
Nao tem prcma de ninguem,
E fará quanío quizer.
Podia-me Déos fazer dom,
Sem nisso dar perda a alguom,
Ma do demo que elle quer.
E com estas cousas toes,
Que eu vejo desta maneira,
Digo que me tem cenreira:
E nao curéis vos de mais,
Que craro se ve na eíra.
FR. PAC;O.
Cuidas que nao dizes nada,
E que mora Déos comtigo?
VIL. Vedes vos? Eu, Padre, digo
Que lempere a invernada,
E leixe criar o Irigo.
Mas elle de lencoeira,
Sem gandar nisso ceilil,
Vai dar chuvas em Janeiro,
E geadas em Abril,
E calmas em Fevereíro,
E nevoas no mez de Maio.
E meado Juldo pedra.
3-2*
500 LIVRO III.

Eu írabaldo atas que caio:


Pardeos, elle que he meu aio
Cada vez mais me desmedra.
FR.P.Olda (u pola ventera
Se lhe pagas bem o seu.
VIL. Bem me dezimaria eu,
Se elle de bírra pura
Nao damnasse o seu e u meu.
FR. PACU.
Rezas-lhe íu alguns dias
Que te livre dessa affronla?
VIL. Muito faz elle ora conía
Das mínhas avemarias!
Rezo-lhe mais do que muñía:
Nao sei a quem elle sai,
Mas he feito a seu prazer.
Elle me maíou meu pae,
E meu dono, e eníáo vai
Fez inurrer minha mulher.
Tomae-Ihe lá conía e A7éde
Porque matou minha tia
Que mil esmolas fazia,
E leixa us rendeiros do verde
Que me citáo cada día.
FR.P.Dizem que náu pode ser
Maior dom que bom conseldo;
Faze u que te eu disser:
Cunforma-te c'o que Déos quer,
E do siso faz espelho.
VILLÁO.
Conforme-se elle comigo
Er tamban no que he rezno,
DAS TRAGICOMEDIAS. 501

Qu'eu saín pobre coma cao,


E cada dia Ih'o digo,
E folga se vem á mao.
Nao me presta nemigalda
Oferta nem oracáo:
Ora dá palha sem grao,
Ora nao dá grao nem palha,
Senño infinda oppressáo.
Por isso quero fazer
Este meu rapaz d'Igreja;
Nao com devacáo sobeja,
Mas porque possa viver
Como mais folgado seja.
Quereis-m'o, Padre, ensinar,
E dar-A7os-he¡ quanto tenho?
Fn.P.Se o elle bem tomar.
VIL. Pera tudo lem engenho;
E íein voz pera canlar.
FR. PA^O.
Toma esíe papel na man
E le esses versosinhos.
BAS. Isto he pera cominhos,
Ou hei d'ir por acafráo?
FR.P.Aínda nao sabes nada.
BAS. Sei onde mora a tendeira.
Vu,. He mais agudo cá espada,
Nao ha hi cabra na manada
Que nao tenha na moleira.
FR. PA?O.
Ora sus, san mais dábate
Dize o A B ( D E.
BAS. Arre, arre, cedo he,
502 LIVRO III.

Fn.P.üize A X. BAS. Assis era hum alfaiaío


Que morava all¡ á Sé.
VIL. Se lu vives, Bastiáo,
Serás hum fino letrado.
BAS. Parece que andou o arado
Por estas que quer que sao.
Fn.P.Has mister bem examinado.
E no Iatim te quera eu ver.
Dize ora Beatas vir.
BAS. Pouco he isso de dízer:
Vi ora íres ralos vir.
VIL. Vede lá esse saber!
Fn.P.Dize ora cantando Amen,
Por ver se sabes cantar.
BAS. Oh que cousa pera errar!
Abem. F R . P . Alto, alto, Amen.
Assovia em logar do meiii
Fn. PAVO.
Nao curéis de debaler;
Nao no quero ensinar mais;
Digo que embalde cansáis,
Qu'esle nunca ha d'aprender.
VIL. Segundo o vos ensiuais.
BAS. Pae, pae, que senhor he aquelle
Que vem ca quasi mortal?
Compendio se cham'elle,
E táo grande amor den nellc
Que o trata bofe mal.
Vem aggravado por isso
E descontente de si;
Elle e logo Bereniso,
Fidalgos de grande aviso.
DAS TRAGICOMEDIAS 503

Vem Cnlnpendin c B ere ni su , r diz


Coi.. Pois amor o quiz assi,
Que meu mal tanto me dura.
NSo (ardes triste ventora.
Que a dor nao se doe de mi,
E sem ti nao tendo cura.
Foges-me, sabendu certo
Que passo perigo marinlio,
E sem ti vou táo doserlo.
Que quando cuido que acertó,
Vou mais fóra do camínho.
Porque laes carreiras sigo,
E com tal dita nací
Ncsla vida em que nao vivo,
Qu'eu cuido que estou oumigo,
E ando fóra de mi.
Quando fallo, estou calado;
Quando estou, entonces ando:
Quando ando, estou quedado:
Quando durmo,•estou acordado:
Quando acordó, estou sondando:
Quando chamo, entáo respondo;
Quando choro, entonces rio:
Quando me queimo, hei friu;
Quando me mostró, m'escondo:
Quando espero, desconfío.
Nao sei so sei o que digo.
Que cousa certa nao acertó;
So fnjo do meu perigo,
Cada voz estou mais perto
Do (or mor guerra comigo.
Promcltem-me huns vaos cuidados
504 LIVRO III.

Mil mundos favorecidos,


Com que seráo descansados:
E eu acho-os todos mudados
Ein outros mundos perdidos.
Ja nao ouso de cuidar,
Nem posso estar san cuidado:
Mato-me por me matar,
Onde estou nao posso estar
Sem estar desesperado.
Parece-me quanto A7ejo
Tudu triste com rezáo:
Cousas que nao van nem v7áo,
Essas sao as que desejo,
E todas penas me dáo.
Eu remedio nao espera,
Porque aquella em que me fundo,
Pera mi que tanto a quero,
Tem o coracáo de Ñero
Pera me tirar do mundo.
BER. Quem sofirimcntos vondosso
Quanto uuro ganharia!
Que eu por hum so Ido daría
A vida, se a tivesse,
Como quando Déos quería.
Porque de tal meu padecer,
Sem ninguem de mi ter dó,
Que as pragas de Pharaó
Nao se houA'eráo d'escrever,
Nem os aggravos de Job.
COL. Ai de uiiiii que estou ein tal risco
De penosa confusáo,
Que tenho ja o coracáo
DAS TRAGICOMEDIAS. 505

Feito pedra de coriseo,


E meu spiriío carváo.
Minha alma com íal perigo
Deseja ser de animal,
Porque de mi lhe vem mal,
Meu bem peza-lhe comigo,
E eu quero-lhe mal mortal.
t

BEn. O irmáo, onde íe vas?


COL. Juro ás dores que susíenho,
Que nao sei se vou se vendo.
Tu, senhor meu, m'o dirás,
Que eu de mi novas nao leudo.
BEHENISO.
Se fosses bein namorado,
Anlre os leus ferinos inoríaes
Terias vivo o cuidado;
Mas amor desacordado
He desacordó e nó mais.
COL. Se amasses onde eu
E servisses a quem sirvo,
Pasmarías como vivo,
E mais ferias de teu
Os desacordos que digo.
BERENISO.
Pois que íu uiesmo reclamas
Que nao sabes onde estás,
Nem senles se vens se vas;
Come sabes tu quem amas,
Ou por quem suspirarás?
COL. Pois fallas isento assi,
Certo a mi se m'afigura
Que nunca chegou a ti
506 LIVRO III

0 impelo que contra mi


Tomón a desaventura.
Sabe certo que he, senhor,
Meu desacordó de soríe,
Que elle fórca minha dor
Pera ouíro mal maior,
Que está áquem de inhiba marte.
Assi que meu desmaiar
Por tal geilo se ordena,
Que nao se me passa pena
Por sentir nem por chorar,
Nem dor grande nem pequeña.
BERENISO.
Eu sou u mor namorado
Homem, que nunca se achou:
Poréin hum excommungado
Que o diabo excommungoii,
Nunca foi táo desainado.
A dama cujo nací,
O maior prazer que sentó.
He dizer-me mal de mi;
Se venho, foge dalli;
Se me vou, fica contente.
Ella pedia uiosleiro,
Agora quer-se casar,
Porque eu me va enforear
\ u mais alto sovereiro
Qu'eu mesmo por mi buscar.
Fn.P.E Frei Paco estar calado!
BER. Frei Paco sois de verdade?
FR.P.Senhor, a vosso mandado.
BER. Quant'eu á minha vontade
DAS TRAGICOMEDIAS 507

0 paco em frade tornado,


Nem he paco nem he frade.
FR. PACU.
Irmáos, havtis de notar
Que o paco he flor das flores.
Pasío de grandes senhores,
E mais he hum grande mar
Com somina de pescadores.
Huma grandeza suinmaria
De virtudes e nobreza,
Floresta mui necessaria,
Linda escola sibílaría,
Onde se aprendan grandezas.
COLOPENDIO.
Padre, muito bem dizeis,
E tamban suas donzellas
Sao figuras das estrellas,
E imagens de Déos os Reis,
Que dáo luz a todas ellas.
Fn.P.Porém onde caminhais?
Fallae, senhores, comigo.
COL. Cada hum leva comsigo
Aggravos tantos, e taes.
Que ouvi-los, corres perigo.
Eu ja amo e desespera,
Nunca de queixar ine Ieixo,
E ando táo fóra do eixo,
Que eu inesmo busco c quero
Os males de que me queixo.
BER. Sabe Déos e as esírellas
Que inhibas coilas amaras
Buscadas me sao mais caras
508 LIVRO III.

Mil vezes que nao soffré-las.


Que a saudade sentida
Me lastima de tal sorte,
Que com vonlade accendida
Me faz ir ver minha vida,
Porque va buscar a inorle.
FR. PACO.
Se isso assi conheceis,
Que vas por vos vos matáis.
Culpados, a quem culpáis?
Mortos, que vida queréis,
Ou de que vos aggravais?
COL. Padre Paco, bem sentís.
Digo que amo a hüa donzella
Mais bella que a flor de lis,
Porque lanío mal me quiz,
Pois naci captivo della.
FR. PACO.
Porque foi nacer com ella
Nao vos íer ein dous ceitis.
E quanto vos presumís
Nao no estima por ser bella,
Nem quanto lhe referís.
COL. Deo grafías. Ouvi-me, Padre:
E se meu servico atura?
Fn.P.Digo ora eu pola ventura,
Que nao sois á sua vontade,
Obrigá-la-heis por escriptura.
Que dous conformes amores
N'hum amor he de ventura;
E se so por formosura
Se vencem os amadores,
DAS TRAGICOMEDIAS. 509

Sera amor, mas nao de dura.


COL. Depois se pralicará
O mais de que suu aggravado:
Branca do Regó vem lá,
E tamban Marta do Prado,
Regateiras do pescado;
Escuíemo-Ias de ca.
MARTA.
Oída ca, Branca do Regó.
BRA. Que me ques, Marta do Prado?
MAR.Tu lens tudo einborilhado;
Pera que he fallar gallego,
Senáo craro e despacliado.
Bn.\. E bem; em que? Andar einbora,
Feilo he o forno da telha.
MAR. Se tu nao deras á goldelda,
Nunca o nosso aggravo fóra,
Nem eu torcera a orelda.
Nao, ad! nao; mas tu andar
Dá-llie, dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe,
Ordir, torcer, ordenar —
Tu nao duravas em valle
Coin pressa de mao pezar.
Casade-a ora, huí, casade-a ora,
Que he hum mancebo de rosas.
Antes que se afaste afora.
E por isso ñas más horas
Nos aggravamos agura.
BRANCA.
Ora olhae, nuví, uuvi,
Que me foi a rodear!
Ha vías tu de buscar
510 LIVRO III.

Coin que por a culpa a mi,


E queres-te a ti salvar.
Porque nao contas agora
As práticas saborosas
Do cachopinho de rosas
Com que sias cada dora?
MAR. Coníaroi as suas prosas.
FR. PACU.
E de que ¡des aggravadas
Nesta sancta Iadainha?
BRA. Tíndamos hüa sobrinda,
Que linda lium contó aosadas,
E tudo se tornou linda.
Sai-nos ltiini casamento
Com moco da Cámara d'EIRei -
Casarei, nao casarei —
Táo doce, táo cucarento....
Jesu! como o conterei.
Luva vai e luva vem,
E alvalá de filhamenío,
Fazemo-lo casamento
C'o carrapato d'Ourem,
Moco da Cámara do vento
Fa.P.Tein de casamento tanto,
E moradia sabida?
MAR.HUÍ! pola sua negra vida;
Elle de dos do IÍATO em branco,
E da esperanza perdida.
BRANCA.
O alvalá que nos mostruu
Coin tanto de filhainento,
Tanto d'acrecentamento,
DAS TRAGICOMEDIAS. 511

Nao sei quem lh'o despachou.


Dainiáo Dias, ou alguem,
Lhe houve elle o negro alvalá.
Chíistováo Esleves tamban,
Ou quícais sabe Déos quem,
André Pires nao sera,
Nem o Conde do Vimioso.
Fernán Alvares sería,
Ou o Conde de Pendía,
Que he muito dadivoso.
Ja sei quein lh'o ha vería:
O Dom Rui Lobo em Palmella,
Ou o Lourenco de Sousa,
Ou nao sei se o Veador,
Se o mesmo Pero Carvaldo,
Se foi Bíspo, se Doutor,
Que nos deu (anto trabalho.
MARTA.
Mao quebranto que os quebrante
Porque váo aportunar,
Pera ajudar a engaitar
Hüa cachopa inorante
C'hum rascáo de niño pesar.
BRA. Elles sao os presidentes,
E os mesmos requerentes;
E se lhe dizeis que he mal
Tornáo a culpa ao sinal
E elles fazein-se innocentes.
MARTA.
Pois ja isto anda íáo baixu,
Haverei co'esía cautela
Hum alvalá de douzella,
512 LIVRO III.

Entáo casar no Cartaxo,


Ou na raía de Castella.
Fn.P.A honra so A-OS abasta.
Se o moco he de búa linda,
Seu pae sera de boa casta
E fidalgo mui asinha.
BRA. Atada fica a canasta.
Fidalgo! assi sería
Fidalgo por seu dolor,
Que sabe a Bri via de cor
E nao acería a Ave-María.
Andava elle namorado,
E por, ma ora, dizer a¡,
Dizia-Ihe guai,
E por dizer minha sendora.
Chamava-lhe minha sinoga.
Esle he o negro de seu pae.
BRANCA.
Ouvides vos, Frei Cigarra,
Onde vai aqui a estrada
Per hu os aggravados váo?
FR.P.EU nao vos acho rezáo,
Nem sois aggravadas nada.
MAR.Porque? FR. PAC; Porque os casamento»
Todos sao porque háo de ser,
E com quem desde o nacer
E a que horas e momentos
Assi ha de acconlecer.
E assi as religiosas
Nacéráo pera ser freirás.
E vos pera regata'ras,
Outras pera ser vicosas,
DAS TRAGICOMEDIAS. 513

E outras pera canseiras.


M A R . E VOS mano freí trogalho,
Em que perneta nacestes,
Que ma ora ca víestes?
Dizei, padre frei chocalho,
Tudo vos isso aprendestes?
Cebolinho e espinafre,
Ja vo-la barba nace.
Ora ouvide-lhe o sermáo,
E tangede-lhe o atabaque,
Nao caia, ponde-lhe a ináo.
O que as pernetas fazem,
He porque nos o causamos,
E se fortunas ñus trazem,
He porque nos as buscamos,
Que os erras de nos nacein.
Entáo quer frei bolorento
Fallar comigo aravia?
BRA. Vamos nossa minaría,
Qu'he gran perda perder lempo,
E mais vai-se a coinpanhia.
Ou cré-me, María do Regó,
Esíe casamente he feito,
Ja a burrinha jaz no pego,
Enterrado he Jam Gallego,
Nao temos nenhum direito.
Por ventura, foi por bem.
Rogo-te ora como amiga,
Que nao lomemos fadiga,
Nem nos 0119a mais ninguem.
Cantemos urna cantiga,
Ensaemo-nos per hi,
33
Vol. II.
514 LIVRO III.

Pera ¡rmos lá bailar,


Tu dalli e eu daqui,
Ou tu daqui e eu dalli.
Mas tu has de comecar.
Cántño ambas e bailño ao som desta cantiga:
"Mor Goncalves,
u
Táo mal que m'encarcelastes
k
Nos Pacos d'EIRei,
" E na cámara da Rainha,
"Du bailava EIRei,
"E com Dona Catherina.
"Mor Goncalves,
"E táo mal que m'encarcelastes."
MARTA.
Embaixadas do Mondego,
Ou que mumus sao ora estes
Que ca vem com frei Gallego?
BRA. EU t'o direi muito prestes;
O frade he Frei Narciso,
E vem ca muito queixoso,
Porque o nao fizerán hispo;
O outro he Cerro Ventoso,
Gran cabecinha de pisco.
Ambos A7áo muito aggravados;
Domos-Ido, mana, logar,
Queixar-se-dáo de seus aggravos,
Sem ldes nada aproveitar
Queixumes mal consiradus.
Vem Cerro Ventoso e Fr. Narciso.
CKR. Onde is, Padre? FR. N. Vou ca
Tamban nesta romaria.
CKR. Tamban á Sancta Maria?
DAS TRAGICOMEDIAS. 515

Eu assi vou pera lá;


Vamo-nos ein cumpandia.
Fn.N.Vamos, nome da Trindado.
CER. Sempre aos religiosos
Tenho muí boa vuntade.
Fn.N.Quem vi'sse essa humanidade
Aos Principes poderosos.
CER. Padre, eu saín dos aggravados,
Porque nao tenho de renda
Senáo quatro mil cruzados;
Fez-me EIRei dos mais privados,
Mas nao dá com que ui'eslenda.
KR.N.E eu prego a generosos
Principes singularmente,
E AÍVO mui austinente,
Marteirando a carne e ossos,
Como ca meu corpo senté;
Estudando, imaginando,
Trabaldando por privar,
Sem vontade jejuando,
Senáo somente esperando
Se posso mais arridar.
E por parecer misello,
E toda a Corte ein mi creía.
Defumo-me co'este zelo,
E faco o rosto amarello
Com muita palha centeia.
E tudo isto padecí
Por haver algún bispado,
Quasi assi arrezoado,
E porque tardaA'a, o pedi,
E sahí Bíspo oscusado.
33*
516 LIVRO III.

CERRO VENTOSO.
Assi que pescastes nícdel:
Mui mal olhado foi isso.
FR.N.Ja fizessein-me ora bispo
Siquer do ilheo de Peniche,
Pois saín frade para isso:
Que sem saber 1er nem rezar
Vi eu ja bispos que pasmo,
E nao sei conjecturar
Como se pode assentar
Mílara em cabeca d'asno.
CERRO VENTOSO.
Que lendes vos, Padre meu,
De renda? FR. N. Tenho lazeíras,
Oitenía mil tenho eu.
CER. Dice; e quem isso tem de seu
Nao pedirá polas eiras.
FR.N.Dizeí-me, Cerro Ventoso,
Nao hei de íer hüa muía?
CER. Se for bem estudioso,
Porque quer hum religioso
Andar sempre xula xula?
FR. NARCISO.
Por isso peco eu bispado,
Que possa ter dez rascóes,
E hum escravo occupado,
Que sempre tenha cuidado
Dos cavados e falcoes.
CER. Esse esíado láo bispal
A dita vos pode dado;
Mas San Jerónimo he tal,
DAS TRAGICOMEDIAS. 5|'

Que, indaque era cardial,


Nunca se pinla a cavado.
Mas vos, Padre, sois do Paco,
E san Jerónimo do ermo,
E nao dobrais vosso braco
Acoutando o espinhaco,
Nem írazeis o peílo enfermo.
Fn.N.E vos de que vros queixais?
CER. Eu do Paco me aggravo,
Que o serví como escravo.
Fn.N.Siqúer vos que assi medráis,
Nao devieis d'ir táo bravo.
Porque entrasles nesse jógo
Mais probé do qu'eu estou,
E a dita vos tercou;
Mas nao quero dizer logo
Que a soberba A7OS cegou.
CER. Corpo de mi co'a contenda,
Nem com quanto vos falláis!
A dous contos de reaes
Nao me cdogárño de renda.
FR.N.Náo sei em que vos fundáis:
Dous conlos! porque? per onde?
CER. Digo-vos sem mais arengas,
Como quem vos nada escunde.
Que eu me fundo em ser Conde,
Siquer Conde das Berlengas.
Fn.X.Táo largamente cortáis,
Que enlender-vos nao posso;
Sei que tendes bein de vosso.
E pois vos nao contentáis.
Vein-vos do Cerra Ventoso.
5J8 LIVRO III.

Aparicianes vem
Com sua fildá Giralda,
LaATrador que falla bem:
Nao nos estorve ninguem,
Nem percamos delle nada.
Vem Aparicianes com sua filha, e diz
APA. Eu sohia a ser que cantava
C'os bois e san bois aínda,
Tambein quando caminliava,
Sempre á ida e á vinda,
Nunca de cantar cessava.
Jamáis canseira sentía
Nein por calina nem por lama,
E aínda cantaría,
Mas pobreza e alegría
Nunca dormán m'hüa cama.
Grande bem, se nao m'enllieio,
He lembrar o mal passado
Depois de ser acabado;
Porém eu que estuu no moiu,
Vivo mais desesperado.
Vou nesta triste romageni
Hum dos mais atribulados;
E pera justa romagem
Minha era a pilotagem,
Per maior dos aggravados.
Fii.P.Corpo de mi c'o villáo,
Como falla cerceado!
Onde vas? APA. Por esse cháu.
FR.P.Queréis bailar? APA. Bofa nao.
FR.P.Porque? APA. Vou aggravado.
DAS TRAGICOMEDIAS. 5I<)

F R . PAVO.
Aggravo podo hi haver.
Que aggravo seja em ti?
APV. Perdoae, frei Alfaqui,
Que vos nao sabéis cumer,
Puis falláis issu assi.
Purque ou tenho dous casaos
Dos frades d'apanha porros,
E c'us fortes temporaes,
Sao as novidades tees,
Que nao chegáo pera os foros.
E os padres verdadeíros
Cartuxus de sancta vida.
Apanháo-me os Iravesseims
Com mais ira que os rondoiros.
Sem me rezñu ser uuvida.
Cuidei qu'elles me esperárñu.
Por nño ficar ein carniza.
E o com que ine consolarán.
Fui dizer que nao íomárñu
Espera por sua divisa.
Nao Ides rogo mal, nem nada.
Porque sao sánelas pessoas:
Mas praza á paixáo sagrada
Que ldes dein tanta seixada.
Que ldes quebrem as corúas.
Quero ora perder rancor,
E nao ir com isto au cabo:
Perdoo-Idos polo amor
Do Déos nosso Salvador.
Encoimnendu-os ó diado.
Como vos chamáis? Fu. P- Frei Pao».
520 LIVRO III.

APA. Frei Paco? Sancía Guiomar!


Freí Paco, lendes espaco
Pera poder xammar
Esta cachopa hum pedaco?
He da serra da Lotizan,
Moca de muito boa fama:
Trago-a ca pera ser Dama,
Quero que seja pacán.
FR. PA9Ü.
Amigo, a Dama prezada
Ha de ser rica e fermosa,
Muito sentida, assocegada,
Cortez, mansa, graciosa.
APA. Tudo isso Giralda tem.
Fn.P.Ponhamos-lhe ora dum trancado.
Vejamos como Ide vein.
APA. Dae, dae ó demo o toucado,
Que nao he pera ninguem.
FR. PACU.
Tu, villáo, queres dizer
Que isto nao he pera a sega,
E pera o Paco ha iníster.
APA. Isso he rabo de pega,
E nao he pera mulher.
Nisso está ora A par ¡cu.
Fn.P.Pois nao Ih'estava elle mal.
APA. Vio nunca o demo pardal
Ter o rabo de toutico!
FR. PACO.
Nao lhe vejo bos caminhos.
APA. Porque? Fn. P. Nem tem pera isso ar.
APA, Pisou uvas no lagar,
DAS TRAGICOMEDIAS h2\

E tem nodoas nos focinhos,


Mas ella se irá lavar.
E er tambein per rezáo
Qu'ella assi he pertelhoa,
Lhe inerquei eu em Lisboa
D'hum que chamáo soliváo,
Que faz luzir a pessoa.
E merquei-lhe d'huin Judeu
D'huns termes brancos qu'hi ha,
Nao sei que nome he o seu;
Alvaiade creío eu
Que o elle chamáo ca.
E merquei-lhe das íendeiras
Robiquelhe Genovez:
D'hum que poe polas Iríncheiras
Lhe inerquei eu dez salseiras,
Que lh1 avondarñu hum mez.
FR. PAVO.
Ora faca hüa mesura,
Vejamos que ar lhe dá.
GIR. Pera ca, ou pera lá?
FR.P.Olhae-me aquella docura
Pera a do9ura de ca!
Senhora dama das cabras,
Haveís de fazer assi: —
Attentastes pera ini?
E dae assi as passadas: —
Entendéis este latim?
E olhareis deste geito,
Assi com hum recacho oufano;
Vosso corpo mui direito,
Pouco riso, e muí bem feito,
522 LIVRO III.

Torrado d'honesto engaño.


De quando em quando o fallar
Cousa he que muito contenta:
Nao amar, nem o leixar;
E per vos mostrar isenla,
Guardae-vos de suspirar.
GIRALDA.
Tudo isso que dizeis
Farei eu senáo de flores.
Fn.P.Quereis A7ÓS fallar d'amores,
Por ver que responderéis
Aos vossos servidores? —
Senhora, ha ja mil annos
Que vos quizera fallar,
E por vos nao anojar,
Padeco ja tantos dainnos,
Que os nao posso calar.
GIRALDA.
Que ma ora ca víestes;
Como eu folgo co'ísso tal!
FR.P.Se vos folgais c'o meu mal,
O meu mal vos o fizestes.
Oh meu bem angelical,
Que em pago do bem que AOS quera,
Se nao vos, quem me ferio
Com o vosso lindo culello?
GIR. Disso estáis A7ÓS amarello
Do sangue que A7OS sahio.
Fn. PACO.
Oh senhora que matáis
A todos quanlos feris,
E a ninguem perdoais!
DAS TRAGICOMEDIAS 523

GIR. Quáo doceinonte mentís


Todos quaníos bem falláis!
Fn.P.Scnhora, quem amansasse
Vossas iras de malar!
GIR. Quaníos morios que eu matasse,
Ajudastes a enterrar?
FR. PACO.
Ao menos eu agora
Sem remedio de conforto,
Ja minha alma he de mi fóra:
Pois memento mel, Senhora,
Lembre-vos que ando morto;
Morto me tendes aqui,
E morto desesperado.
GIR. Quantá s'isso fosse assi
Espantar-me-hia eu de mi,
Nao pasmar d'homein finado.
Cuino! fantasma sois vos?
Fn.P.Oh comu estáis graciusa!
GIR. Digo que saín táo medrosa
Dos morios (Jivre-nos Déos!)
Que nao creio a inurte A7ossa.
Se morto, comu falláis?
Se detento, como ouvis?
Sem alma, como sentís?
San sentidos, que pedís?
Finado, vos que buscáis?
Fn. PA^O.
Saín morto, e vivo em tormento;
Saín finado, e ando ein pena.
Gin. Porém vosso leslamento?
Quando einbora so ordena
524 LIVRO III.

E se cumpre o testamento?
APA. Freí Paco, ja bem esíá;
Escusada he mais linguagein.
Quero ir minha romagem,
Quisto mui bem se fará,
Porque a moca he d'avantagein.
FR. PACO.
Hüas freirás que ca vem,
Sao na tura es de Sicilia;
Dorosia e Domicilia
Sao os seus nomes que tem.
E de mal aconselhadas,
E locadas da ignorancia,
Váo queixosas e aggravadas,
Porque as fazem encerradas,
E viver em observancia.
Vem Domicilia e Dorosia, freirás, c diz
DOMICILIA.
Cerlamenle infindos sao,
Cousa pera nao se crer,
Os queixosos que ca váo,
S'elles iodos tem rezáo;
Mas'isto nao pode ser.
Don. Porque ha hi tantos aggravados,
Mais agora que sohia?
DOM. Porque nos tempos passados
Todos eráo compassados,
E ninguem se desmedía.
Mas a presumpeáo isenta,
Que creceo em demasía,
Criou lanía fantasía,
Que nínguem nao se contenta
DAS TRAGICOMEDIAS. 525

Da maneira que sohia.


Tudo vai fóra de termos,
Deu o ar na recovagem.
DUR. Sera bem nao nos detcrmos;
Andemos quanto pudermos,
Cumpramos nossa romagem.
Roguemos a Frei Narciso
Que va em nossa companhia;
Fa-lo-da com boa vontade.
DOM. Irman, dom sería ¡sso,
E eu tamban o ouíorgaria;
Mas abasta-lhe ser frade,
E bem Narciso aosadas.
DOR. Pois com quem iremos nos?
DOM. He ineldor que vamos sos,
Que nao mal acompandadas.
DOR. Porque? DOM. Isso vede vos.
DOROSIA.
Deo grafías, Padre Narciso.
FR.N.Pera sempre alleluia.
DOR. Pois is nesta romaria,
Assi Déos vos dé o paraíso
Que vamos ein companhia.
Fn.N.Iria mui ledo em cabo,
Melhor que pera o mosteiro;
Mas o amor he táo ligeiro,
Que o dae vos ó diabo,
E temo seu capliveiro.
DOROSIA.
Iremos, Padre, rezando
Sempre de noiíe e de dia.
Fa.N.Ja disse que folgaría,
526 LIVRO III.

Mas temo dir suspirando


Mais vezes do que quería.
DOR. Pois como havemos d'ir sos
Daqui a quarenla jornadas ?
Fn.N.De que ¡des vos aggravadas ?
DOR. De que? coitadas de nos
Que rezáo temos aosadas.
FR. NARCISO.
Tamanda he a importancia,
Que assi vos desterráis?
DOM. Padre, eramos claustraes,
E fazem-nos d'observancia
E pera sempre jamáis.
F R . N . E dísso vos aggravais?
DOR. Disto nos queixamos nos.
Fn.N.Pois que haveis medo d'ír sos,
Pera que vos arredais
Da companhia de Déos?
Cuidáis que is bem aviadas?
Pois eu, senhoras, me fundo
Que quanto mais encerradas,
Tanto estáis mais abrigadas
Das tempestades do mundo.
Ca sempre os sabios disseráo,
Pois do fallar vem os p'rigos,
Conversacáo affastá-la.
DOM. Dizei, que mal nos fizeráo
Os parentes e amigos
Para lhes tolder a falla?
E se tormos visitadas
De mae, ou tias, ou dona,
Porque males ou erradas
DAS TRAGICOMEDIAS 527

Ldes fallaremos tapadas,


Comu beslas d'atafona?
Fn.N.Estas pastoras oucamos,
Saberemos seus aggravus.
Vem Juliana e liaría, pastoras, e diz
JUL. Haría, muí pouco andamos,
Por a segundo levamos
Os coracóes aggravados.
ILARIA.
O meu Silvestre anda morto,
Porque me querem casar
C'o fildo de Pera (orlo.
JUL. E O meu Braz quer-se enforcar
Porque me casáo no Porto.
ILA. Silvestre ha de fazer
Hum desatino de sí.
JUL. E Braz ha d'endoudecer,
Pois Déos nao ha de querer
Que eu nada faca de ini.
ILARIA.
Juliana, que fiaremos?
JUL. Bofe, Ilaria, nao sei.
ILA. Sabes, mana, que eu farei?
JUL. Dize, rogo-t'o, e veremos.
ILA. Escuta qu'eu t'o direi.
Direi que andando a de parte
C'o meu gado em Alqueidáo,
Me pareceo hüa vísáo,
Que me disse: moca, guar'-íe
De chegares a varáo.
E assi m'escusarei
Deste negro casamente;
528 LIVRO III.

E depois, andando o lempo,


Oulra visáo acharei,
Que case a coníeníamenío.
JUL. EU' direi que hum escolar
Me íirou o nacimenío,
E disse: o leu casamento,
Se no Porto has de casar,
Amara vida le senio:
Ca seras demoninhada
Esses dias que víveres.
ILA. Que com essa einborilhada
Ficarás desabafada,
Casarás com quem quizeres.
A fortuna íodavia
Nos tem que farte aggravadas;
Andemos nossas jornadas,
Cheguemos á romaria,
E seremos dascansadas.
JULIANA.
Rogo-vos, Jáo da Morteira,
Que nos vas acompanhar.
VIL. Cacdopas hei de levar?
Per essa mesma manara
Me daráo muda madeira
Ñas costas a meu pezar.
JUL. Porque? VIL. Porque ha hi
Ras9oes e outros de Paco,
E as cachopas dáo-lhe d'azo,
E entonces buscae per hi
E íomae raposa em Jaco.
JULIANA.
Nos somos d'oulro lameiro,
DAS TRAGICOMEDIAS. 529

E de casia mais sisuda.


VIL. Tudo isso pouco ajuda,
Que hüa cachopa se muda
Como o lempo em Fevereíro.
Pardez que nao ha que fiar;
Que os caranguejos na eíra
E as mocas na carreira,
Quem as houver de guardar,
Bofas tem assaz canceira.
Credc que fazcm por ellas
Todolos escudeirotes,
E aínda os sacerdotes
Poucas vezes fogem dellas.
Deíxemos ora estes motes:
Pois que vos qucrem casar,
Pera onde is aviadas?
JUL. Porque somos aggravadas
Nos irnos desaggravar,
Bem trisíes e bem cansadas.
Eu nao sei porque respeitn
Nossas máes e nossos paos
Nos trazan maridos tees,
Tanio conlra nosso geilo,
Que os diabos nao sao inaís.
As cabecas como ouíeiros,
Os cabellos carcomidos,
Louros coma -sovereiros,
Penteados d'anno em anuo,
Maos ciñóles de ma panno:
Folgae lá com taes maridos!
ILARIA.
E o meu he por seus peccados
34
vol. ...
530 LIVRO III.

Vesgo o mais que nunca vi,


Tem os olhos enfresíados,
Se lhe fallares ou assi,
Nño saberas se olha a íi,
Se olha pera os íeldados.
VIL. VOS outras sois hüa relé
Bofa de forte aumento:
Ora oldae vos que cousa de,
Que vos remáis como galé,
E andáis meldor c'o A7ento.
Casae carama cuín siso,
E dae ó demo a affeícáo,
Que se sécca lugo isso;
E quem casa cuín aviso
Acda em casa a descricáo.
JUL. Como casáo? VIL. Muito asinda.
JUL. De que modo? VIL. Digo eu:
Juliana, eu saín teu,
Ora dize tu que es mintia,
E mais quanto Déos te deu.
JULIANA.
Nao de mais? e isso ahonda?
VIL. Nao de inais, nem mais se deve;
Poréin a cantiga de breve,
Mas a grasa muito tonga.
Fn.P.Aggravos que nao tem cura
Procurae de os esquecer;
Qu'impossivel he vencer
Batalda contra ventura
Quem ventura nao tíver.
Nao deve lembrar agora
Aggravos nem fanlesias,
DAS TRAGICOMEDIAS. 531

Senáo mudas alegrías.


A Rainha, nossa senhora,
Que viva infinitos dias,
Cantemos hüa cantiga,
Ao mesmo Ufante benlo,
E ao seu bento nacimenlo.
Porque a Rainha nao diga
Que somos homens de vento.
Ordenárñose todas as figuras como i-m danga, c a vozes
bailárao, e cantárño a cantiga seguíate.
"Por Maio era por Maío
"Ocho dias por andar,
"El Ifante Don Felipe
"Nació en Evora dudad.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante, el Rey y la Boina
"Como las aguas del mar.
"El Ifante Don Felipe
"Nació en Evora ciudad,
"No nació en noche escura.
"Ni lanpoco por lunar.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante, el Rey y la Boina
"Como las ondas del mar.
"No nació en noche escura
"Ni tanpoco pur lunar.
"Nació cuando el sol decrina
"Sus rayos sobre la mar.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante. el Rey y la Reina
"Como las aguas del mar.
"Nació cuando el sul decrina
532 LIVRO III.

"Sus rayos sobre la mar,


"En un d¡a de domingo,
"Domingo para notar.
"Huha! huha!
"Viva el Ifaníe, el Rey y la Reina
"Como las ondas del mar.
"En un dia de domingo,
"Domingo para nolar,
"Cuando las aves cantaban
"Cada una su cantar.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante, el Rey y la Reina
"Como la tierra y la mar.
"Cuando las aves cantaban
"Cada una su cantar,
"Cuando los árboles verdes
"Sus ("nietos quieren pintar.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante, el Rey y la Reina
"Como las aguas del mar.
"Cuando los árboles verdes
"Sus fructos quieren pintar
"Alumbró Dios á la Reina
"Con su fructo natural.
"Huha! huha!
"Viva el Ifante, el Rey y la Reina
"Como las aguas del mar."
E com esta música c danga se sahirao, c fenece esta
última tragicomedia.

FIM DO LIVRO II.


I N D E X.

COMEDIAS. l'ug.

(yomcdia de Rubena. Scena i? 5


Scena *• •xi
Scena 31; 3-
Comedia do Viuvo 6y
Coinedia sobre a divisa da Cidade de Coimbra 106

TRAGICOMEDIAS.
Dom Duardos i83
Amadis de Gaula a.j3
IVao d'amores 294
Fragoa d'Amor 3a4
Exliortacao da guerra 3.5o
Templo d'Apollo 371
Cortes de Júpiter 3<)6
Serra da Estrella fa «
Triumpho do Invernó 447
Roraagcm de Aggravndos 4í>('
ERRATAS.
l'.'.g. lin. erro emenda
ib 4 detende tostende
4j 4
Ao Déos Apollo claro convertid*
len-se
Ao íleos Apollo claro
Convertida
113 ult. ni linarias alimaña?
117 7 c-aiin caua
120 21. dicese diese
150 1 ttb arrisco abarrisco
155 4 iinpnerta importa
168 17 Escoguiera Escognioradei
219 14 dispíerto dispiert.i
242 11 Las Los
250 22 ora oro
253 20 GlN. GAL.
290 19 hondas ondas
301 22 descantos descansos
372 27 Rermana Hermosa
387 12 Ruy Rey
309 3 Sot Si; L
484 24 INVKRKÍO VKHAO
52S 27 Rascoes Rascóos
, '1« ' V

¿ %A

hf I¿* 1 %
•^í . j

ÜPS TrtB^iV f*
fc»*'
£V i
*& tt* -

1
t
JL^Lm-tm.'» / r
' *£Í
t; \ * J>-- I r *
-j"fc
"V
1
K
* i^-v *' - * • i ñfrn
í
1 f
*->Vr JP

$
>5x.;?*••#; r «¿
" ,

^>i'

•*-*.






BRASILIANA DIGITAL

ORIENTAÇÕES PARA O USO

Esta é uma cópia digital de um documento (ou parte dele) que


pertence a um dos acervos que participam do projeto BRASILIANA
USP. Trata‐se de uma referência, a mais fiel possível, a um
documento original. Neste sentido, procuramos manter a
integridade e a autenticidade da fonte, não realizando alterações no
ambiente digital – com exceção de ajustes de cor, contraste e
definição.

1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais.
Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são
todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial
das nossas imagens.

2. Atribuição. Quando utilizar este documento em outro contexto,


você deve dar crédito ao autor (ou autores), à Brasiliana Digital e ao
acervo original, da forma como aparece na ficha catalográfica
(metadados) do repositório digital. Pedimos que você não
republique este conteúdo na rede mundial de computadores
(internet) sem a nossa expressa autorização.

3. Direitos do autor. No Brasil, os direitos do autor são regulados


pela Lei n.º 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Os direitos do autor
estão também respaldados na Convenção de Berna, de 1971.
Sabemos das dificuldades existentes para a verificação se um obra
realmente encontra‐se em domínio público. Neste sentido, se você
acreditar que algum documento publicado na Brasiliana Digital
esteja violando direitos autorais de tradução, versão, exibição,
reprodução ou quaisquer outros, solicitamos que nos informe
imediatamente (brasiliana@usp.br).
v**
?\V. >-^
*. . v
ÍJ- >i ^X-
>*ri '""O*

«s V*- £*

: :
# ^ ; F: ^H

.ts*^
,
-"-
i f•
1

^rri- ,*LA *v\\<£ns

fcó*

%^.Ç ^
pn?r
« > •
(© 3 B ® àl
DE

CORRECTAS E EMENDADAS

PELO CUIDADO E DILIGENCIA

DE

3. 13. Bavttto feto t 3- <ê. Monturo.

TOMO TERCEIRO.

NA OFPlCrNA TYPOGRÁPniCA DE LANGH0FF.


Í834.
D A S F A R Ç A S .
FIGURAS.
ADIES ROSADO — Escudeiro.
APAM
Ç ° ) Criado,
0RD0NH0 )
VELHA — Mãe de
ISABEL.

Este nome daFarça seguinte — Quem tem farelos —


poz-lh'o o vulgo. He o seu argumento, que num Escudeiro
mancebo per nome Aires Rosado tangia viola, e a esta
causa, aindaque sua moradia era muito fraca, continuamente
era namorado. Tracta-se aqui de huns amores seus. Foi
representada na mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa
ao muito excellente e nobre Rei D. Manuel primeiro deste
nome, nos Paços da Ribeira, era do Senhor de 1505.
F A R Ç A
DE

"QUEM TEM FARELOS."

Vem Apariço e Ordonho, moços d'esporas, a buscar


farelos, e diz logo
APARIÇO.
Quem tem farelos?
OHD. Quien tiene fareles?
APA. Ordonho, Ordonho, espera a mim.
O fideputa ruim!
Sapatos tens amarellos,
Ja não fallas a ninguém.
OHD. Como te va, companero?
APA. S'eu moro c'hum escudeiro,
Como me pôde a mi ir bem?
ORDONHO.
Quien es tu amo? dí, hermano!
APA. He o demo que me tome:
Morremos ambos de fome
E de lazeira todo o anno.
ORD. Con quien vive? APA. Que sei eu?
Vive assi per hi pellado,
Como podengo escaldado.
ORD. De qué sirve? APA. De sandeu.
Pentear e jejuar,
Todo o dia sem comer,
6 LIVRO IV.

Cantar e sempre tanger,


Suspirar e bocejar:
Sempre anda fallando so,
Faz hüas trovas tão frias,
Tão sem graça, tão vazias,
Q«'he cousa pera haver dó.
E presume d'embicado;
Que com isto raivo eu.
Três annos ha que sain seu,
E nunca lhe vi cruzado:
Mas segundo nós gastamos,
Hum tostão nos dura hum mez.
ORD. Cuerpo de San! qué corneis?
APA. Nem de pão não nos fartamos.
ORDONHO.
Y ei caballo? APA. Está na pelle,
Que lhe fura ja a ossada:
Não comemos quasi nada
Eu e o cavallo, nem elle.
E se o visses brazonar,
E fingir mais d'esforçado;
E todo o dia aturado
Se lhe vai em se gabar.
Sfoutro dia, alli n'hum beco,
Derão-lhe tantas pancadas,
Tantas, tantas, que a osadas!.
OHD. Y con qué? APA. Chuin arrocho sêcco.
ORD. Hi hi hi hi hi hi hi.
APA. Folguei tanto! ORD. Y él callar?
APA. E elle calar e levar,
Assi, assi, ma ora assi.
Vem alta noite de andar,
DAS FARÇAS.

De dia sempre encerrado:


Porque anda mal roupado,
Não ousa de se mostrar.
Vem tão ledo — sus, cear!
Como se tivesse que;
E eu não tenho que lhe dar,
Nem elle tem que lh'eu dê.
Toma hum pedaço de pão,
E hum rábão engelhado,
E chanta nelle bocado,
Coma cão.
Não sei como se mantém.
Que não'stá debilitado.
ORD. Bástale ser namorado,
En demás se le va bien.
APARIÇO.
Commendo ó demo a mulher!
Nem casada nem solteira,
Nenhfla negra tripeira
Não no quer.
ORD. Será escudero peco,
O desdichado?
APA. Mas, a poder de pellado,
Dá em sêcco.
Todas querem que lhe dem,
E não curão de cantar:
Sabe que quem tem que dar
Lhe vai bem.
Querem mais hum bom presente,
Que tanger,
Nem trovar nem escrever
Discretamente.
g LIVRO IV.

ORDONHO.
Y pues porquê estás con él?
APA. Diz que m'ha de dar a ei Rei,
E tanto farei farei —
ORD. Déjalo, reniega dél;
Y tal amo has de tener?
APA. Bofá, não sei qual me tome;
Sou ja tão farto de fome,
Coma outros de comer.
ORDONHO.
Poça gente de esta es franca.
Pues ei mio es repeor;
Suénase muy gran senor,
Y no tiene media blanca,
Júrote á Dios que es un cesto,
Un badajo contrahecho,
Galan mucho mal dispuesto,
Sin descanzo y sin provecho.
Habla en roncas, picas, dalles,
En guerras y desbarates;
Y si pelean allí dos gatos,
Ahuirá montes y valles:
Nunca viste tal buharro.
Cuenta de los Anibaies,
Cepiones, Rozasvalles,
Y no matará un jarro.
Apuéstote que un judiu
Con una beca Io mate.
Cuando allende fue ei rebate,
Nunca él entro en navio.
Y cuando está en Ia posada,
Quiere destruir Ia tierra.
DAS FARÇAS. 9

Siempre suspira por guerra,


Y todo su hecho es nada.
Y presume allá en palácio
De andar con damas ei triste.
Cuando se viste,
Toma das horas de espacio;
Y cuanto ei cuitado lleva,
Todo Io lleva alquilado,
Y como se fuese comprado,
Ansí se enleva.
Y tambien apana paios
Como cualquier pecador;
Y sobre ser ei peor,
Burla de buenos y maios.
APA. Pardeos, ruins amos temos:
JTem o teu mula ou cavallo?
ORD. Mula seca como un paio;
Alquílala, y de ahí comemos.
Mas mi amo tiene un bien —
Que aunque le quieran hurtar,
No ha hi de que sisar,
Ni ei triste no Io tien.
APA. He musico? Onu. Muy de gana.
Cuando hace alguna mueca,
Canta como pata chueca,
Otras veces como rana.
APARIÇO.
Meu amo tange viola:
Húa voz tão requebrada....
ORD. Quiéroine ir á Ia posada.
APA. E OS farelos? OHD. Paja sola.
APA. Mas vem comigo e verás
10 LIVRO IV.

Meu amo como he pellado,


Tão doce, tão namorado,
Tão doudo, que pasmarás.
ORDONHO.
Como ha nombre tu seiíor?
APA. Chama-se Aires Rosado;
Eu chamo-lhe asno pellado,
Quando me faz mais lavor.
ORD. Aires Rosado se llama?
APA. Neste seu livro o lerás:
Escuta tu e verás
As trovas que fez á Dama.
Anda Ayres Rosado so passeando pola casa lendo
no seu cancioneiro desta maneira:
Cantiga d? Aires Rosado
A sua Dama,
E não diz como se chama,
De discreto namorado.

Senhora, pois me lembrais,


Não sejais desconhecida,
E dae ó demo esta vida
Que me dais.
Ou m'irei alH enforcar,
E vereis mao pezar de quem,
Por vos querer grande bem,
Se foi matar.
Então lá no outro mundo
Veremos que conta dais
Da triste de minha vida
Que matais.
DAS FARÇAS. 11

Outra ma.
Pois amor me quer matar
Com dor, tristura e cuidado,
Eu me conto por finado,
E quero-me soterrar.
Fui tomar hüa pendença
Com hüa cruel senhora,
E agora
Acho que foi pestelença.
Chore quem quiser chorar;
Saibão ja que sam finado
Sem finar,
E quero ser soterrado.

Outra sita, estando mal com sua Dama.


Senhora mana Isabel,
Minha paixão e fadiga
Mando lá esse papel
Que vo-la diga".
Volta.
Se quizer dizer verdade,
Dir-vos-ha tantas paixões,
Que em sete corações,
Não caberão ametade.
Estou co'a candeia na mão,
Senhora minha Isabel,
Mando lá esse papel,
Que vos diga esta paixão.
Falia Aires Rosado com o seu moço:
AIRES.
Como tardaste, Apariço!
APA. E tanto tardei oi^eu?
i2 LIVRO ÍV.

AIR. Apariço, bem sei eu


Que te faz mal tanto viço.
AlRES. (iparte)
E desde hontem não comemos.
AIR. Villão farto, pé dormente.
APA. O Ordonho, como mente!
ORD. Otro mi> amo tenemos.
AIRES, (canta)
Re mi fa sol Ia sol Ia.
APA. Ves alli o que t'eu digo.
AIR. Que diabo fallas tu?
( canta)

Fa Ia mi re ut
(falia)
Não rosmeies tu comigo.
( canta )

Un dia, era un dia.


APA. Oh Jesu! que agastamento!
AIR. Dâ-me ca esse instrumento.
APA. Oh que cousa tão vazia!
AIR. Agora qu'estou disposto,
Irei tanger á minha dama.
APA. Ja ella estará na cama.
AIR. Pois entonces he o gosto.
Tange e canta na rua á porta de sua dama Isabel,
e em começando o cantar Si dormis, doncella, ladrão
os cães.
Ham ham ham ham.
AIR. Apariço, mafesses cães,
Ou vae dá-lhe senhos pães.
APA. Elle não tem meio pão.
DAS FARÇAS. 13

Ara. "Si donnís, doncella,


"Despertad y abrid."
r

APA. O diabo que t'eu dou,


Que tão ma cabeça tens!
Não tem mais de dous vinténs,
Que uYhoje o Cura emprestou.
( Prosegue o Escudeiro cantiga )
AIRES.
"Que venida es Ia hora,
"Si quereis partir."
APA. Ma partida venha por ti!
E o cavallo suar.
ORD. Y no tienes que le dar?
APA. Não tem hum maravedi.
(Prosegue o Escudeiro a cantiga)
AIRES.
"Si estais descalza,
APA. EU ma ora estou descalço.
Ara. "No cureis de vos calzar,
APA. Nem tu não tens que me dar,
Arrenego do teu paço.
Ara. "Que muchas águas
"Teneis de pasar....
APA. Nem jeu; canta em teu poder.
Ara. Ora andar. APA. Antes de muito:
Pois não espero outro fruito,
Caminhar.
AlHES ( cantando)
"Águas de Alquebir;
"Que venida es Ia hora,
"Si quereis partir."
14 LIVRO IV.

Aqui lhe falia a moça da janella tão passo que nin-


guém a ouve, e polas palavras que elle responde se pode
conjecturar o que lhe ella diz.
AIRES.
Senhora, não vos ouço bem. —
Oh, que vos faço eu aqui? —
Que he, senhora? — EUes a ini?
Não hei medo de ninguém.
Olhae, senhora Isabel,
Inda que tragão charrua,
Eu so lhes terei a rua
Chüa espada de papel.
Que são? que são?... rebolarias?
E mais rides-vos de mi! —
Eu porque m'hei d'ir daqui? —
Faço-vos descortezias? —
Mana Isabel, ouvis? —
Eu que defamo de vós? —
Oh pesar nunca de Deos!
Vós tendes-ine em dous ceitis. —
Não sabeis que me digais? —
Sabeis que? — Bem vos entendo. —
Inda me não arrependo,
Com quanto mal me queirais. —
Ha hi mais que me perder?
Para que são taes porfias? —
Bem dizeis; porém meus dias
Xisto hão de fenecer.
APARIÇO. (pnsso)
Dou-to ó demo essa cabeça;
Não tem siso por hum nabo.
AIR. Senhora, isso de cabo
DAS FARÇAS. 15

Me dizei antes qu' esqueça.


Mais resguardado está aqui
O meu grande amor fervente. —
Que tendes?... hum pé dormente?
Oh que gran bem pera mi! —
Hi hi hi. — De que me rio?
Rio-me de mil cousinhas,
Não ja vossas, senão minhas.
APA. Olhae aquelle desvario?
Cães.H&m ham ham ham.
AIR. Não ouço co'a cainçada:
Rapaz, dá-lhe hüa pedrada,
Ou fartfos eramá de pão.
APARIÇO.
Co'as pedras os ajude Deos.
CãesM&m ham ham ham.
Ara. Pezar não de Deos c'os cães!
Rapazes, não lhe dais vós? —
Senhora, não ouço nada.
Dou-m'ó demo que me leve!
APA. Toda esta pedra he tão leve —
Tamae lá esta seixada.
Cães.
Hãi hãi hãi hãi.
APA. Perdoae-me vós, Senhor.
AIR. Ora fizestes peor.
Ah pezar de minha ínãi!
Não vos vades, Isabel —
Está vossa mercê hi?
Nunca tal mofina vi
De cães: — que som cruel!
Não ha cousa que mais m'agaste,
16 LIVRO IV.

Que cães. E gatos também!


GatoMeao meao. Ara. Oh que bem!
Quant'agora m'aviaste!
Fallae, Senhora, a esses gatos,
E não sejais tão soffrida,
Que antes queria a vida
Toda comesta de ratos.
Ja tornais ao defamar?
Quem he o que falia nisso? —
Senhora, sabei que he hum riso
Quanto podeis suspeitar.
Que tenhão olhos a molhos.
Vós andais p'ra me ferir,
Eu ando p'ra vos servir,
Mana, meus olhos,
Vós andais p'ra me matar. —
Mana Isabel, olhae:
Que o saiba vosso pae
E vossa mãe, hão de folgar;
Porqu'hum 'scudeiro privado,
APA. Mas pellado. Ara. como eu sou,
E de parte meu avô
Sou fidalgo afidalgado.
Ja privança com ei Rei,
A quem outrem ve nem falia.
APA. Deitão-no fora da sala.
Ara. Senhora, com vosso pae fallarei,
Lá depois de acrescentado,
Não quero que me dem nada.
APA. Oh como será aviada,
E seu pae encaminhado!
DAS FARÇAS. 17

AIRES.
Que tenhais, que não tenhais,
Tenho mais tapessaria,
Cavallos na estrebaria,
Que não ha na corte taes:
Vossa camilha dobrada:
Não tendes em que vos occupar,
Senão somente enfiar
Aljofar, ja d'enfadada.
APARIÇO.
Oh Jesu! que mao ladrão!
Quer enganar a coitada.
AIR. Ide ver se está acordada;
Que estas velhas pragas são.
GalloCacaracà — cacaracá.
Am. Meia noite deve ser.
APA. Ja fora rezão comer,
Pois os gallos cántão ja.
AIRES, (canta)
"Cantan los gallos,
"Yo no me duermo,
"Ni tengo sueno."
Como! vossa mãe vem ca?
Ca á rua? pera que?
Não me dá, por minha fé;
Venha que aqui me achará.
VELHA.
Rogo á Virgem Maria,
Quem me faz erguer da cama,
Que ma cama e ina dama,
E ma lama negra e fria,
Ma mazella e ma courella,
Voi. i n .
18 LIVRO IV.

Mao regato e mao ribeiro,


Mao silvado e mao outeiro
Ma carreira e ma portella,
Mao cortiço e mao suiniço,
Mãos lobos e mãos lagartos,
Nunca de pão sejão fartos;
Mao criado e mao serviço,
Ma montanha, ma companha,
Ma jornada, ma pousada,
Ma achada, ma entrada,
Ma aranha, ma façanha,
Ma escrença, ma doença,
Ma doairo, ma fadairo,
Mao vigairo, ma trintairo,
Ma demanda, ma sentença,
Mao amigo e mao abrigo,
Mao vinho e ma vizinho,
Mao ineirinho e mao caminho,
Mao trigo e mao castigo;
Ira de monte e de fonte,
Ira de serpe e de drago,
P'rigo de dia aziago
Em rio de monte a monte,
Ma morte, ma corte, ma sorte,
Ma dado, ma fado, ma prado,
Mao criado, mao mandado,
Mao conforto te conforte.
Rogo ás dores de Deos
Que iria cahida lhe caia,
E ma sahida lhe saia,
Trama lhe venha dos ceos.
Jesu! que escuro que faz!
DAS FARÇAS. 19

Oh martyr San Sadorninho!


Que ma rua e ma caminho!
Cego seja quem m'isto faz.
Hui amara percudida!
Jesu, a que m'eu encandeio!
Esta praga donde veio?
Deos lhe apare negra vida.
AIRES, (canta)
"Por Maio, era por Maio."
VEL. Hui, hui, que mao lavor!
Quem he este rouxinol,
Picanço ou papagaio?
Que ma ora começarão
Os que ma sahida lhe saia!
I eramá cantar á praia.
Más fadas que vos fadarão!
A maldição de Madorra,
D'Abitão e d'Abirão,
E de minha maldição —
Oh! santa Maria m'acorra!
AIRES, (canta)
"Apartar-me-hão de vós,
"Garrido ainor."
VEL. Ma partida, ma apartada,
Mao caminho, ma estrada,
Ma lavor te faça Deos.
AIRES. (canta)
"Eu amei hüa senhora
"De todo o meu coração:
"Quiz Deos e minha ventura
"Que não m'a querem dar não,
"Garrido amor."
2*
^ LIVRO IV

VELHA.
Ma cainça que te coma,
Mao quebranto te quebrante
E mao lobo que t'espante.
Toma duas figas, toma.
Nunca a tu has de levar
Para bargante rascão,
Que não te fertas de pão,
E queres musiquian
AIRES.
"Não me vos querem dare,
"Irme hei á tierras agenas,
"A chorar meu pesare,
"Garrido amor."
VELHA.
Vae-t'ó Demo com sa mãe,
E dormirá a visinhança.
Ó Demo dou eu de ti a criança,
E esse te ca aportou.
APA. Dizei-lhe que va comer,
Qu'hoje não comeu bocado.
VEL. Vae comer, homem coitado,
E dá ó demo o tanger.
E demais, se não tens pão,
Qne ma ora começaste,
Aprendêras a alfaiate
Ou sequer a tecelão.
Am. "Ja vedes minha partida,
"Os meus olhos ja se vão;
"Se se parte minha vida,
"Ca me fica o coração."
Vai-se o Escudeiro, e fica a Velha dizendo á Filha:
DAS FARÇAS. 2i

VELHA.
Isabel, tu fazes isto;
Tudo isto sahe de ti.
Isabel, guaV-te de mi,
Que tu tens a culpa disto.
ISA. Pois si, eu o fui chamar.
VEL. Ai Maria, Maria Rabeja.
ISA. Trama a quem o deseja,
Nem espera desejar.
VELHA.
Que dirá a vizinhança?
Dize, ma mulher sem siso!
ISA. Que tenho eu ca de ver colsso.
VEL. Como tens tão ma criança!
ISA. Algum demo valho eu,
E algum demo mereço,
E algum demo pareço,
Pois que cántão pelo meu.
Vós quereis que me despeje,
Vós quereis que tenha modos,
Que pareça bem a todos
E ninguém não me deseje?
Vós quereis que mate a gente,
De fermosa e avisada;
Quereis que não falle nada,
Nem ninguém em mim attente?
Quereis que cresça e que viva,
E não deseje marido;
Quereis que reine Cupido,
E qu'eu seja sempre esquiva.
Quereis que seja discreta,
E que não saiba d'amores;
22 LIVRO IV

Quereis que sinta primores,


Mui guardada e mui discreta.
VELHA.
Tomade-a lá! Hui, Isabel!
Quem te deu tamanho bico,
Rostinho de Ceroliço?
Es tu moça ou bacharel?
Não aprendeste tu assi
O verbo d'anima Christe,
Que tantas vezes ouviste.
ISA. Isso não he pera mi.
VELHA.
E pois que? ISA. EU vo-lo direi.
Ir a miude ao espelho,
E poer de branco e vermelho,
E outras cousas que sei:
Pentear, curar de mi
E poer a ceja em direito;
E morder por meu proveito
Estes beicinhos assi.
Ensinar-me a passear,
Pera quando for casada;
Não digão que fui criada
Em cima d'algum tear:
Saber sentir hum recado,
Responder em improviso
E saber ungir hum riso
Falso e bem dissimulado.
VELHA.
E o lavrar, Isabel?
ISA. Faz a moça mui mal feita,
Corcovada e contrafeita,
DAS FARÇAS. 2'ò

De feição de meio annel;


E faz muito mao carão,
E mao costume de olhar.
VEL. Hui! pois jeita-te ao fiar
Estopa, linho ou algodão,
Ou tecer, se vem á mão.
ISA. Isso he peor que lavrar.
VEL. Engeitas tu o fiar?
ISA. Que não hei de fiar não.
Eu sou filha de muleira?
Em roca me fallais vós?
Ora assi me salve Deos,
Que tendes forte cenreira.
VELHA.
Aprende logo a tecer.
ISA. Então bolir c'o fiado:
Achais outro mais honrado
Offício pera eu saber?
Tecedeira vio alguém,
Que não fosse boliçosa,
Cantadeira, presumptuosa?
E não tem nunca vintém.
E quando lhe quebra o fio,
Renega como beleguim.
Mãe, deixae-me vós a mim,
Vereis como m'atavio.
Isto vai sendo de dia,
Eu quero, mãe, almoçar.
VEL. E U te farei amassar.
ISA. Essa he outra fantesia!
E com isto se recolhem, e fenece esta primeira farça.
F I G U R A S .

AMA.
MOÇA.
CASTELHANO.
LEMOS.
MARIDO.

 Força seguinte chamão Auto da Índia. Foi fundada


sobre que hüa mulher, estando ja embarcado pera a índia
seu marido, lhe vierão dizer que estava desaviado, e que
ja não ia; e cila de pezar está chorando. Foi feita em
Almada, representada á muito catholica Rainha D. Leonor,
era de 1519-
F A R Ç A
CHAMADA

"AUTO DA I N D I A."

MOÇA.
Jesu! Jesu! que he ora isso?
He porque se parte a armada?
AMA. Olhade a mal estreada!
Eu heide chorar por isso?
Moç. Por minha alma, que cuidei
E que sempre imaginei
Que choraveis por noss'aino.
AMA. Por qual demo ou por qual gamo
Alli ma ora chorarei?
Como me leixa saudosa!
Toda eu fico amargurada.
Moç. Pois porque estais anojada?
Dizei-m'o por vida vossa.
AMA. Leixa-me ora eramá,
Que dizem que não vai ja.
Moç. Quem diz esse desconcerto?
AMA. Disserão-m'o por mui certo
Que he certo que fica ca.
O Concelos me faz isto.
Moç. S'elles ja estão em Rastello,
Como pôde vir a pello?
Melhor veja eu Jesu Christo.
26 LIVRO IV.

Isso he quem porcos ha menos.


AMA. Certo he que bem pequenos
São meus desejos que fique.
Moç. A armada está muito a pique.
AMA. Arreceio ai de menos.
Andei na ma hora e nella
A amassar e biscoutar,
Pera o demo o levar
Á sua negra canella,
E agora dizem qne não.
Agasta-se-m'o coração,
Que quero sahir de mim.
Moç. Eu irei saber s'he assim.
AMA. Hajas a minha benção.
Vai a Moça e fica a Ama dizendo:
AMA.
A Santo Antônio rogo eu
Que nunca m'o ca depare:
Não sinto quem não s'enfare
D'hum diabo Zebedeu.
Dormirei, dormirei,
Boas novas acharei
San João no ermo estava,
E a passarinha cantava.
Deos me cumpra o qu'eu sonhei.
Cantando vem ella e leda.
Moç. Dae-ine alviçaras, Senhora,
Ja vai lá da foz em fora.
AMA. Dou-te huma touca de seda.
Moç. Ou quando elle vier,
Dae-me do que vos trouxer.
AMA. Alü inuitieramá!
DAS FARÇAS.

Agora ha de tornar ca?


Que chegada e que prazer!
MOÇA.
Virtuosa está minha ama!
Do triste delle hei dó.
AMA. E que fallas tu lá so?
Moç. Fallo ca co'esta cama.
AMA. E essa cama, bem, que ha?
Mostra-m'essa roca ca:
Siquer fiarei hum fio.
Leixou-me aquelle fastio
Sem ceitil. Moç. Alli, eramá!
Todas ficassem assi.
Leixou-lhe pera três annos
Trigo, azeite, mel e pannos.
AMA. Mao pezar veja eu de ti!
Tu cuidas que não fentendo?
Moç. Que entendeis? ando dizendo
Que quem assi fica sem nada,
Coma vós, que he obrigada...
Ja me vós is entendendo.
AMA.
Ha ha ha ha ha ha!
Esfera bem graciosa,
Quem se ve moça e fermosa
Esperar pola ira ma.
Hi se vai elle a pescar
Meia legoa polo mar,
Isto bem o sabes tu;
Quanto mais a Calecu:
Quem ha tanto d'esperar?
Melhor, Senhor, sê tu comigo
28 LIVRO IV.

Á hora de minha morte,


Qu'eu faça tão peca sorte.
Guarde-me Deos de tal p'rigo.
O certo he dar a prazer.
Pera que he envelhecer
Esperando polo vento?
Quanfeu por mui necia sento
A que o contrairo fizer.
Partem em Maio daqui,
Quando o sangue novo atiça:
Parece-te que he justiça?
Melhor vivas tu amen,
E eu comtigo também. —
Quem sobe per essa escada?
CAS. Paz sea en esta posada.
AMA. Vós sois? cuidei que era alguém.
CAS. Asegun eso soy yo nada.
AMA.
Bem, que vinda foi ora esta?
CAS. Vengo aqui en busca mia,
Que me perdi en aquel dia
Que os vi hennosa y honesta,
Y nunca mas me tope.
Invisible me torne,
Y de mi crudo eneinigo;
El cielo, empero, es testigo
Que de mi parte no sé.
Y ando un cuerpo sin alma,
Un papel que lleva ei viento,
Un pozo de pensamicnto,
Una fortuna sin calma.
Pese ai dia en que naci;
DAS FARÇAS. 29

Vos y Dios sois contra mi,


Y nunca topo ei diablo.
Reis de Io que yo hablo?
AMA. Bem sei eu de que me ri.
CASTELHANO.
Reísvos dei mal que padezco,
Reísvos de mi desconcierto,
Reísvos que teneis por cierto
Que miraros non merezco.
AMA. Andar embora.
CAS. O mi vida y mi senora,
Luz de todo Portugal,
Teneis graza especial
Para linda matadora.
Supe que vueso marido
Era ido. AMA. Anfhontem se foi.
CAS. Al diablo que Io doy
El desestrado perdido.
Que mas índia que vos,
Que mas piedras preciosas,
Que mas alindadas cosas,
Que estardes juntos los dos?
No fue él Juan de Zamora.
Que arrastrado muera yo,
Si por cuanto Dios crio
Os dejára media hora.
Y aunque Ia mar se humillara
Y Ia tormenta cesara,
Y ei viento me obedeciera
Y ei cuarto cielo se abriera,
Un momento no os dejara.
Mas como evangelio es esto
30 LIVRO IV.

Que Ia índia hizo Dios,


Solo porque yo con vos
Pudiese pasar aquesto.
Y solo por dicha mia,
Por gozar esta alegria,
La hizo Dios descubrir:
Y no ha mas que decir,
Por Ia sagrada Maria!
AMA.
Moça, vae áquelle cão,
Que anda naquellas tigelas.
Moç. Mas os gatos andão nellas.
CAS. Cuerpo dei cielo con vos!
Hablo en Ias tripas de Dios,
Y vos hablaisme en los gatos!
AMA. Se vós fallais desbaratos,
Em que fallaremos nós?
CASTELHANO.
No me hagais derrenegar,
Ó hacer un desatino.
Vós pensais que soy divino?
Soy hombre y siento ei pesar.
Trayo de dentro un leon,
Metido en ei corazon:
Tiéneme ei alma danada
De ensangrentar esta espada
En hombres, que es perdicion.
Ya Dios es importunado
De Ias almas que le envio;
Y no es en poder mio
Dejar uno acuchilado.
Dejé vivo allá en ei puerto
DAS FARÇAS. 31

Un hombrazo alto y tuerto,


Y despues fui Io encontrar;
Penso que Io iba á matar,
Y de miedo cayó inuerto.
AMA.
Vós querieis ficar ca?
Agora he cedo ainda;
Tomareis vós outra vinda,
E tudo bem se fará.
CAS. A qué hora ine mandais?
AMA. AS nove horas e nó mais.
E tirae hfia pedrinha,
Pedra muito pequeninlia,
A janella dos quintaes.
Entonces vos abrirei
De muito boa vontade:
Pois sois homem de verdade
Nunca vos fallecerei.
CAS. Sabeis que ganais en eso?
El mundo todo por vucso!
Que aunque tal capa ine veis,
Tengo mas que pensareis:
Y no Io tomeis en grueso.
Bésoos Ias manos, senora,
Voyme con vuesa licencia
Mas ufano que Florencia.
AMA. Ide e vinde muifembora.
Moç. Jesu! como he rebolão!
Dae, dae ó demo o ladrão.
AMA. Muito bem me parece elle.
Moç. Não vos fieis vós naquelle,
Porque aquillo he refião.
38 LIVRO IV.

AMA.
Ja lh'eu tenho promettido.
Moç. Muito embora, seja assi.
AMA. Hum Lemos andava aqui
Meu namorado perdido.
Moç. Quem? o rascão do sombreiro?
AMa. MAS antes era escudeiro.
Moç. Seria, mas bem çafado:
Não suspirava o coitado
Senão por algum dinheiro.
AMA.
Não he elle homem dess'arte.
Moc.Pois inda elle não esquece?
Ha muito que não parece.
AMA. Quanfeu não sei delle parte,
Moç. Como elle souber á fé
Que noss'amo aqui não he,
Lemos vos visitará.
LEM. Hou da casa! AMA. Quem he lá?
LEM. Subirei? AMA. Suba quem he.
LEMOS.
Vosso captivo, senhora.
AMA. Jesu! tamanha mesura!
Sou a rainha por ventura?
LEM. Mas sois minha imperadora.
AMA. Que foi do vosso passear,
Com luar e sem luar,
Toda a noite nesta rua?
LEM. Achei-VOS sempre tão crua,
Que vos não pude aturar.
Mas agora como estais?
AMA. Foi-se á índia meu marido,
DAS F ARCAS. 33

E depois homem nascido


Não veio onde vós cuidais;
E por vida de Costança,
Que se não fosse a lembrança...
Moç. Dizei ja essa mentira. (i parte)
AMA. Que eu vos não consentira
Entrar em tanta privança.
LEMOS.
Pois agora estais singela,
Que lei me dais vós, senhora?
AMA. Digo que venhais embora.
LEM. Quem tira áquella janella?
AMA. Meninos que andão brincando,
E tirão de quando em quando.
LEM. Que dizeis, senhora minha?
AMA. Mettei-vos nessa cozinha,
Que m 'estão alli chamando.
CASTELHANO.
Abraine, vuesa merced,
Que estoy aqui á Ia vergüenza:
Esto úsase en Siguenza:
Pues prometeis, inantened.
AMA. Calae-vos muitieramá,
Até que meu irmão se va:
Dissimulae por hi emtanto.
Ora vistes o quebranto?
Andar muitieramá!
LEMOS.
Quem he aquelle que fallava?
AMA. O Castelhano vinagreiro.
LEM. Que quer? AMA. Vem polo dinheiro
Do vinagre que ine dava.
voi. m.
34 LIVRO IV.

Vós querieis ca cear?


Eu não tenho que vos dar.
LEM. Vá esta moça á ribeira
E traga-a ca toda inteira,
Que toda s'ha de gastar.
MOÇA.
Azevias trazerei?
LEM. Dá ó demo as azevias:
Não compres, ja m'enfastias.
Moç. O que quizerdes comprarei.
LEM. Traze hüa quarta de cerejas
E hum ceitil de breguigões.
Moç. Cabrito? LEM. Tem mil barejas.
MOÇA.
E ostras, trazerei dellas?
LEM. Se valerem caras, não:
Antes trazei mais hum pão
E o vinho das Estrellas.
Moç. Quanto trazerei de vinho ?
LEM. Três picheis deste caminho.
Moç. Dais-me huin cinquinho, no mais?
LEM. Toma ahi mais dous reaes.
Vae e vem muito improviso. —
"Quem vos anojou, meu bem,
"Bem anojado ine tem."
AMA. Vós cantais em vosso siso?
LEM. Deixa e-me cantar, senhora.
AMA. A vizinhança que dirá,
Se meu marido aqui não 'stá,
E vos ouvirem cantar?
Que rezão lhe posso eu dar,
Que não seja muito ma?
DAS FARÇAS. 35

CASTELHANO.
Reniego de Marinilla:
Esto es burla, ó es burleta?
Quereis que me haga trombeta,
Que me oiga toda Ia vi lia?
AMA. Entrae-vos alli, senhor,
Que ouço o corregedor;
Temo tanto esta devassa:
Entrae vós ness' outra casa,
Que sinto grande rumor.
( Chega ú janella )
Fallae vós passo, micer.
CAS. Pesar ora de San Pablo,
Esto es burla ó es diablo?
AMA. Eu posso vos mais fazer?
CAS. Y aun en eso está ahora
La vida de Juan de Zamora?
Son noches de Navidá,
Quiere amanecer ya,
Que no tardará media hora.
AMA.
Meu irmão cuidei que s'ia.
CAS. Ah sefiora, ireivos vos.
Ábrame, cuerpo de Dios!
AMA. Tomareis ca outro dia.
CAS. Asosiega, corazon,
Adormiéntate, leon,
No eches Ia casa en tierra,
Ni hagas tan cruda guerra,
Que mueras como Sanson.
Esta burla es de verdad,
Por los huesos de Medea,
36 LIVRO IV.

Sino que arrastrado sea


Manana por Ia ciudad;
Por Ia sangre soberana
De Ia batalla trojana,
Y juro á Ia casa santa —
AMA. Pera qu'he essa jura tanta?
CAS. Y aun vos estais ufana?
Quiero destruir el mundo,
Quemar Ia casa, es Ia verdad,
Despues quemar Ia ciudad;
Senora, en esto me fundo.
Despues si Dios ine dijere,
Cuando allá con él me viere,
Que por sola una muger...
Bien sabre que responder,
Cuando á ello veniere.
AMA.
Isso são rebolarias.
CAS. Séaine Dios testigo,
Que vos vereis Io que digo,
Antes que pasen três dias.
AMA. Ma viagem faças tu
Caminho de Calecu,
Praza á Virgem consagrada.
LEM. Que he isso? AMA. Não he nada.
LEM. ASÍ viva Bercebu.
AMA.
I-vos embora, senhor,
Que isto quer amanhecer.
Tudo está a vosso prazer,
Com muito dobrado amor.
Oh que mezuras tamanhas!
DAS FARÇAS. 37

Moç. Quantas artes, quantas manhas,


Que sabe fazer minha ama!
Hum na rua, outro na cama!
AMA. Que fallas? que farreganhas?
MOÇA.
Ando dizendo entre mi,
Que agora vai em dous annos
Que eu fui lavar os pannos
Alem do chão d'Alcaini;
E logo partio a armada
Domingo de madrugada.
Não pôde muito tardar
Nova se ha de tornar
Noss'amo pera a pousada.
AMA.
Asinha. Moç. Três annos ha
Que partio Tristão da Cunha.
AMA. Cantfeu anno e meio punha.
Moç. Mas Ires e mais haverá.
AMA. Vae tu comprar de comer.
Tens muito pera fazer,
Não tardes. Moç. Não senhora;
Eu virei logo nessora,
Se in'eu lá não detiver. (sane)
AMA.
Mas que graça, que seria,
Se este negro meu marido
Tornasse a Lisboa vivo
Pera minha companhia!
Mas isto não pôde ser;
Ou'elle havia de morrer
Somente de ver o mar.
38 LIVRO IV.

Quero fiar e cantar,


Segura de o nunca ver.
MOÇA.
Ai senhora! venho morta:
Noss'amo he hoje aqui.
AMA. Ma nova venha por ti
Pera excommungada torta.
Moç. A Garça, em que elle ia,
Vem com mui grande alegria;
Per Rastello entra agora.
Por vida minha, senhora,
Que não fallo zombaria.
E vi pessoa que o vio
Gordo, que he para espantar.
AMA. Pois, casa, se t'eu caiar,
Mate-me quem me pario.
Quebra-me aquellas tigelas
E três ou quatro panellas,
Que não ache que comer.
Que chegada e que prazer!
Fecha-me aquellas janellas;
Deita essa carne a esses gatos:
Desfaze toda essa cama.
Moç. De mercês está minh'ama;
Desfeitos estão os tratos.
AMA. Porque não matas o fogo?
Moç. Raivar, que este he outro jogo.
AMA. Perra, cadella, tinhosa,
Que rosmeias, aleivosa?
Moç. Digo que o matarei logo.
AMA.
Não sei pera que he viver.
DAS FARÇAS. 39

MAR. Oulá. AMA. Alli ma ora, este he.


Quem he? MAR. Homem de pé.
AMA. Gracioso se quer fazer. —
Subi, subi pera cima.
Moç.He noss'amo: como rima!
AMA. Teu amo! Jesu! Jesu!
Alviçaras pedirás tu.
MAR. Abraçae-me, minha prima.
AMA.
Jesu! tão negro e tostado!
Nos vos quero, não vos quero.
M A B . E eu a vós si, porque espero
Serdes mulher de recado.
AMA. Moça, tu que estas olhando?
Vae muito asinha saltando,
Faze fogo e vae por vinho,
E ametade d'hum cabritinho,
Emquanto estamos fallando.
Ora como vos foi lá?
MAR. Muita fortuna passei.
AMA. E eu oh quanto chorei,
Quando a armada foi de ca!
E quando vi desferir,
Que começaste de partir,
Jesu! eu fiquei finada;
Três dias não comi nada,
A alma se me queria sahir.
MARIDO.
E nós cem legoas daqui
Saltou tanto sudueste,
Sudueste e oes-sudueste,
Que nunca tal tormenta vi.
40 LIVRO IV.

AMA. Foi isso á quarta feira,


Aquella logo primeira?
MAR.Si; e começou n'alvorada.
AMA. E eu fui-me de madrugada
A nossa Senhora da Oliveira,
E co'a memória da cruz
Fiz-lhe dizer huma missa,
E proinetti-vos em camisa
A sancta Maria da Luz:
E logo á quinta feira
Fui-me ao Spirito Sancto
Com outra missa também;
Chorei tanto que ninguém
Nunca cuidou ver tal pranto.
Correste aquella tormenta? —
Andar. MAR. Durou-nos três dias.
AMA. As minhas Ires romarias
Com outras mais de quarenta.
MAR. Fomos na volta do mar
Quasi quasi a quartelar:
A nossa Garça voava,
Que o mar s'espedaçava.
Fomos ao rio de Meca,
Pelejamos e roubamos,
E muito risco passamos
Á vela, e árvore sêcca.
AMA. E eu ca esmorecer,
Fazendo mil devações,
Mil choros, mil orações.
MAR. Assi havia de ser.
AMA.
Juro-vos que de saudade
DAS FARÇAS. 41

Tanto de pão não comia


A triste de mi cada dia.
Doente, era hüa piedade.
Ja carne nunca a comi:
Esta camisa que trago
Em vossa dita a vesti,
Porque vinha bom mandado.
Aonde não ha marido
Cuidae que tudo he tristura,
Não ha prazer nein folgura;
Sabei que he viver perdido.
Alembrava-vos eu lá?
M A R . E como? AMA. Agora, arama:
La ha indias mui formosas;
Lá farieis vós das vossas
E a triste de mi ca,
Encerrada nesta casa,
Sem consentir que vizinha
Entrasse por huma braza,
Por honestidade minha.
MAR. Lá vos digo que ha fadigas,
Tantas mortes, tantas brigas,
E p'rigos descompassados,
Que assi vimos destroçados,
Pellados coma formigas.
AMA.
Porém vindes muito rico?
MAR. Se não fora o capitão,
Eu trouxera a meu quinhão
Hum milhão vos certefico.
Callae-vos que vós vereis
Quão louçan haveis de sahir.
4g LIVRO IV.

AMA. Agora me quero eu rir


Disso que me vós dizeis.
Pois que vós vivo viestes,
Que quero eu de mais riqueza?
Louvada seja a grandeza
De vós, Senhor, que m'o trouxestes.
A nao vem bem carregada?
MAR. Vem tão doce embandeirada!
AMA. Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
MAR.Far-vos-hei nisso prazer?
AMA. Si, que estou muito enfadada.

Vão-se a ver a nao, e fenece esta farça.


FIGURAS.
FAMA.
JOANNE.
FRANCEZ.
ITALIANO.
CASTELHANO.
FÉ.
FORTALEZA —

A Farça seguinte foi representada d mui catholica e


Sereníssima Rainha D. Leenor, e depois ao muito alio e
poderoso Rei D. Manuel na cidade de Lisboa, em Santos
o velho, na era do Senhor de 1510.
F A R Ç A
CHAMADA

"AUTO DA FAMA."

ARGUMENTO.
O argumento desta farça he, que a Fama he hüa tão
gloriosa exccllencia, que muito se deve de desejar: a qual
este reino de Portugal está de posse da maior de todolos
outros reinos. Segue-se que esta Fama Portuguesa he de-
sejada de todalas outras terras, não tamsomente pola gloria
interessai dos commercios, mas principalmente polo infinito
damno que os Mouros, imigos da nossa fé, recebem dos Por-
tugueses na Indica navegação. E porque antigamente a
fama desta nossa província era em preço de pequena estima,
significando isto, será a primeira figura hüa mocinha cha-
mada Portugueza Fama, guardando patas, a qual scra re-
querida por França, por Itália, por Castella, e de todos
se escusará, porque cada hum a quererá levar; e provará
por evidentes razões que este reino a merece mais que outro
nenhum. Polo qual será posta no fim do auto cm carro
friumphal per duas Virtudes, s. Fé e Fortaleza.

Entra logo a Fama, com hum Parvo per nome Joannc


comsigo, careando suas patas, e diz:
FAMA.
Tange as patas pera ca.
Como es aqueste, Jesu!
Sainicas ervilhaste tu.
DAS FARÇAS. 45

JOA. Pate, pate, ieraina,


Oh ma reira!
FAM. Leix'as ir pola carreira.
Oh, ma morte que te leve!
JOA. Oh, pezar de Mafamede!
S'ellas se vão á figueira!
Ind'hoje m'eu tornarei.
FAM. Tangede-las. JOA. Pate, pate. —
Ma raposa que as mate.
Sabeis como vos afogarei.
FAM. Olhado o geito!
JOA. Se não querem ir direito!
E hei de fugir hum dia,
Praza a Deos e á Virgem Maria.
FAM. Porque não tanges a eito?
JOANNE.
Patelas, pate raivosas;
Apre filhas do enforcado,
Polo ceo de Deos sagrado.
FAM. Pate, meninas formosas;
Andar, patinhas;
Ora ide-vos, filhinhas.
JOA. Cóche, meninas d'amor.
Hou, ganso! s'eu lá for,
Farvos-hei eu cagar pinhas.
Deita-se Joanne a dormir, e entra o Francez e diz:
FRANCEZ.
Dio guarde, bella pastora,
Tan fermosa y tan arrea:
Que fet vus naqucsta aldea?
Yo su morte par vus, senhora,
Par mon foy.
46 LIVRO IV.

Nom partiré daqui oy.


Tan que sea a mi posança
Vu vendrés comigo en França,
Si par Dio par xar de moy.
Par ei cor sacro de Diu
Vós estis tan bella xosa,
Y xosa tan preciosa,
Qu'en França vendrés comi.
Ó rosa mia,
Vendrés en mi companhia
A Ia próspera Paris,
Que França porta es paradis,
Tanti que le mundi sia.
FAMA.
Cuidais vós qu'he 'quillo pouco!
Assi vos tome a vós o demo.
FRA. Ó mi amor, que yo ya temo
Que me tengais vós por loco.
Ó mia dama,
Como os xainas? FAM. EU a Fama.
E cuidais de me levar?
Antes me leve hüa trama.
FRANCEZ.
Ó Fama, por Nutra Dama,
Si vus aves confiança,
Y vendrés comi en França,
Vus portarez gran corona.
FAM. Avache cham!
Não hei d'ir a França não,
Que esta moça he Porlugueza.
FRA. Y porque no seres vus Franceza?
FAM. Porque não tenho rezão.
DAS FARÇAS. 4?

E que havia eu ora Ia d'ir?


Vós fallais em vosso siso?
Riquezas tendes vós pera isso?
Isso he cousa pera rir.
FRA. Gran possança,
He forte xosa le bello França,
Que totele mundi fa temblés.
Par xa y de moy vu vendrés.
FAM. Si, Castella vos amansa.
E ulas cavallarias
Que tendes para ine levar,
Quanfeu não ouço faliar
Acá as vossas valentias.
Tenho sabido
Que he mais o arruido:
E não digo mais agora.
Francez, i-vos muito embora,
Que isto he tempo perdido.
FRANCEZ.
Por mon foy, gentil pastora,
Que yo veo dendê Enves,
Y no puedo parler mes.
Quedáos con Diu aora.
Oh! forte xosa!
Oh pastora tan preciosa!
Humble diable que me porte!
Oh le François que es tan forte
Y Ia Fama no le possa!
Yo ma mora oy braman.
FAM. Mando-vos eu ora bramar?
FRA. Cor de Diu, no sé que far:
Le gens tous que diran?
43 LIVRO IV.

FAM. Joanne!
Jov. 0 diabo que tesgane.
FAM. Alevanta-te. JOA. Não me quero erguer.
FAM. Não es farto de jazer?
Oh! ma morte que t'apanhe.
JOANNE.
Filha da comuda açoutada!
FAM. Vae ás patas. JOA. Pate, pate. —
Ma raposa que as mate.
FAM. Dar-t-'hei tamanha punhada!
Tens miolo?
JOA. EU sonhava que era tolo,
Polo ceo de Deos sonhava;
Olhae, então eu chorava;
FAM. Oh Jesu! como es cebolo!
Vem hum Italiano, c diz a
FAMA.
Quem sois vós? ITA. Italiano.
FAM. Ide, ide vosso caminho.
Acorda tu, Joanninho.
Vistes como vem oufano!
Ide embora.
JOA. Hou Franchinote, fora, fora,
Não espanteis as patas, hou!
FAM. A que vindes onde estou?
ITA. Audime, mia senhora.
Dio nutro salvatore
Tu belleza salve y guarde.
Porque guarde aqueste ave,
Con tu aspecto resplendore
Y tan pobleta?
Una jovena perfecla
DAS FARÇAS. 49

Con le pate en Ia campanha!


Vem comigo en Ia Romanha,
Puy que tu beileza especta.
FAMA.
Bofá, meu amigo patranhas?
E que terra he assi a vossa?
ITA. La gran Itália pod'rosa.
FAM. Queria mais três castanhas.
ITA. Ay! il cor me dole,
Qui me mata tu parole;
Arco en foco de tu amore;
Si tu no me dá favore,
Clamaró, que rumpe il sole.
O li core de Ia vita mia,
Si brachi mei te pilhasse,
Y oCchi mei te mirasse,
Tote le ore, notte y dia,
Totti quanti
Liberati qui sun tanti,
Y le companha de dia;
Aqueste paradisa mia
Me será multi triumphanti.
Ve ay tu muy cierte cora,
Que vide tis son conduto
A crudele amore tuto,
Sin pietate sola un'ora:
Y noche loco
Me consume ei triste foco,
Y ei core si lamenta,
Que a Ia fine ja mi afoco.
FAMA.
Eu não sei que vós haveis. -
Voi. m.
50 LIVRO IV

Meninas, meninas, pati.


ITA. Oh le morte ao suy estati!
FAM. Dou-lh'ora que renegueis.
ITA. Audi cagione.
Yo suy en tu prisione,
Y Ia morte no me vale.
Fama, puy que es immortate,
Família tuorum y racione?
Insule eu es tuta terra.
Vamo, auvoemos en Pavia,
Qui le Romani sun con via
De le pace y de le guerra.
FAM. Oh que bem!
Qu'esforçada gente tem!
Que victorias! — Mao pezar,
Sois de quem vos conquistar.
Vedes o demo em que vem!
ITALIANO.
Parla oy mi dulce parole,
Concede mi pedimiento.
FAM. Olhade aquelle aviamento!
ITA. Oh ferinosa como ei sole!
FAM. Não vos digo
Que não falieis mais comigo?
ITA. O mi dulce paradiso,
Tu me fai que me persigo.
r

O Ia cândida vita mia senhora,


Diesa mia y mi dolore,
Que abalho por ei tu amore:
Mi casar comtico açora.
FAM. EU não quero:
Isso he certo o qu'eu espero.
DAS FARÇAS. 51

E que riquezas tendes vós?


Ora assi me salve Deos
Qu' isso passa ja de fero.
ITALIANO.
Yo te doneré ducate,
Y le joya preciosa,
Y tu seray venturosa
Y de riqueza abastate.
FAM. Perguntae ora a Veneza
Como lhe vai de seu jogo:
Eu vos ensinarei logo
De que se fez sua grandeza.
Começae de navegar,
Ireis ao porto de Guiné;
Perguntae-lhe cujo he,
Que o não pôde negar.
Com ilhas mil
Deixae a terra do Brazil:
Tende-vos á mão do sol,
E vereis homens de prol,
Gente esforçada e varonil.
Aos coinmercios perguntarei»
D'Arábia, Pérsia, a quem se derão,
Ou quando os homens tiverão
Este mundo que vereis.
E não fique
Perguntar a Moçambique
Quem he o Alferes da Fé,
E Rei do mar quem o he,
Ou sha outrem a que se applique.
Ormuz, Quiloa, Moinbaça,
Sofala, Cochim, Melinde,
52 LIVRO IV.

Como ein espelhos d'alinde,


Ruluze quanta he sua graça.
E chegareis
A Goa e perguntareis
Se he ainda subjugada
Por peita, rogo, ou espada?
Veremos se pasmareis.
Perguntae á populosa,
Próspera e forte Malaca,
Se lhe leixárão nem 'staca
Pouca gente mas furiosa.
E vereis de longe e de través
Se treme todo o sertão:
Vede se feito Romão
Com elle in'igualareis.
ITALIANO.
O Diu! FAM. Esperae vós,
Qu'inda eu agora começo;
Qu'este conto he de gran preço;
Bento seja o Deos dos Ceos!
Perguntae
Ao Soldão como lhe vai
Com todos seus poderios;
Que contr'elle são seus rios:
E esta nova lhe dae.
Ide-vos pela foz de Meca,
Vereis Adem destruída,
Cidade mui nobrecida,
E tornou-se-lhe marreca.
E achareis
Ein calma suas galés,
E as velas feitas ein isca,
DAS FARÇAS. 53

E bálhando á mourisca
Dentro gente Portuguez.
Achareis Meca em tristeza,
Ainda mui sem folgança,
Renegando a vizinhança
De tão forte natureza.
Porque farão
Na ilha do Camarão
E no estreito fortalezas,
E as mouriscas riquezas
A o Tejo se virão.
ITALIANO.
Diu, que gran fato!
Como Ia fiel fortuna,
Estelle, sol y Ia luna
Proseguio tanto andato.
Fit partito,
Si plaze ai tu petito,
Pui plaze a mi tu amore,
Que lassis queste labore,
Porque ei cor tengo aflito.
FAMA.
Por amores não se ha faina.
Olhae vós que cousa aquella!
Ide cantar a gamella;
Que a Fama he mais que Dama.
ITA. Si le Veneciani
Aqui fizo tanti dani,
Que satisfará por aquello?
FAM. A ilha de Caramello.
ITA. Par Di, este he grave afani.
Cruda, crudele, con Dio,
54 LIVRO IV.

A pietate me donai,
El agrave que me fai
Non resolve in mio desio;
Y Ia empreza,
Que mio valle tan acesa,
Durará Ia vita mia.
FAM. Para que he essa porfia,
Que esta moça he Portugueza?
ITALIANO.
Qué paciência basta ai core
Del pastore disperato!
Congregar Io y grave fato
Si Ia mente vir o amore
Al foco eterno
Delia flamme dei inferno,
Fará partito col mio:
Tu Io sa, Domine mio,
Que mi mal es sempiterno.
Encontra-se o Italiano com o Francez.
FRANCEZ.
Diu vu garde, bon aini.
ITA. NO vale parole, Micero,
Ni ou pur Ia vita quiero.
FRA. Y que xosa fue essa ansi?
ITA. Arco en foco,
Y plango in hoc loco,
Y ei alma se me va.
FnA. Que diable fue esse allá?
ITA. Modici acerba invoco.
FRANCEZ.
Vus topes Ia Fama açora,
La famosa Portugueza?
DAS FARÇAS. 55

No Ia pude far Franceza.


ITA. Oh Dio! que linde pastora
Para Romani!
Yo con ella ho farto afani;
Qu'a Ia fe 1' astuta vera,
Ni por pace ni por guerra,
No estima le Italiani.
FRA. Por le cor de Diu sacro
Que ella si burla di França,
E fit tembler totó istato.
ITA. Oh ei mio amore,
Mi dulce ochi, colore
Cândida come le sole,
Per le vivo resplandore.
Le terra in que ellMstá
Sea in ceternum beata,
Puy que d'amore mi inata
Y totó ei mundo fará.
Y le pate
Que ella guarda, sim beate,
Y toti quanti sui sia:
Y Io que su gracia desia
Per le celi sea fati.
Vem hum Castelhano e diz:
CASTELHANO.
Cuya sois, linda pastora?
FAM. Ja temos outro enxoval?
CAS. Sois daqui de este casal?
FAM Daqui fui sempre e agora.
CAS. Oh qué cosa!
Una joya tan preciosa,
Que matais todos de amores,
LIVRO IV.
56

Y sola entre cuatro pastores


Estás ufana y briosa!
Yo no siento quien os vea,
Que no le robeis Ia vida,
O senora esclarecida;
Que no hay quien no os desea
Muy de grado.
Dejeis Ias patas y ei prado
Por Ia próspera Castilla;
Que estardes aqui, es bobilla,
Nun casal médio poblado.
De pasados y presentes
Vos dorais todas memórias,
Y sois vida de Ias glorias,
Y corona de Ias gentes.
Y es sabido
Que sois un rosai florido,
Donde nobleza reposa;
Tan alta y preciosa cosa,
Como nel mundo ha nacido.
Pues Fama de hermosurat
Qué haceis nesta ribera,
Que vuesa gentil manera
Merece mejor frescura?
Senora, digo
Que vos querais ir conmigo
Á Castilla, pues merece
Lo que de vos resplandece;
Y doy ei mundo por testigo.
Bien sabeis, alta senora,
Las victorias de Castilla,
Que tiene puesta Ia silla
DAS F ARCAS. 57

Con Ia silla emperadora.


Hábeis oido
Que en nuestro tiempo ha vencido
Cuanto quizo sojuzgar:
Por tierra y por Ia mar
Es muy alto su partido.
Los campos Italianos,
Las cercas Napolitanas
Y las naciones cristianas
Cuentan sus hechos Romanos:
Y Granada
Con tantas fuerzas ganada,
Tales que es cosa de espanto.
FAM. Oh Jesu! vós faltais tanto,
Que ja estou enfastiada.
Olhae, Castelhão de bem,
Dizeis verdade, bem sabemos;
Mas ha mister mais extremos
Pera me levar ninguém.
CAS. Oh senora,
Qué extremos quereis ahora?
FAM. Leixae-me vós a mi dizer.
CAS. Pláceme, yo quiero ver.
FAM. Ora ouvi-me na boa ora.
CASTELHANO.
Decid, que bien os oiré,
Mi preciosa enamorada.
FAM. Não quereis que diga nada?
CAS. Qué! no os responderé?
Por Veneza!
Hable vuestra gentileza,
Cuerpo de Dios consagrado,
58 LIVRO IV.

Yo quiero estar callado;


Mostradme vuestra grandeza.
FAMA.
I-vos por aqui á Turquia,
E por Babilônia toda,
E vereis se anda em voda,
Com pezar de Alexandria.
E vos dirá
Damasco quantos lhe dá
De combates Portugal,
Com victoria tão real,
Que nunca se perderá.
Chegareis a Jer'salem,
O qual vereis ameaçado,
E o Mourismo irado,
Com pezar do nosso bem:
E os desertos
Achareis todos cubertos
D'artelharia e camelos
Em soccôrro dos castellos,
Que ja Portugal tem certos.
Sabei em África a maior
Flor dos Mouros em batalha,
Se se tornarão de palha,
Quando foi na d'Azamor.
E, sem combate,
A trinta léguas dão resgate,
Comprando cada mez a vida;
E a atrevida Ahnedina
E Ceita se tornou parte.
Tributários e captivos
Elles com os seus logares,
DAS FARÇAS. 59

Com camelos dez mil pares,


Porque os deixassem vivos.
Pois Marrocos,
Que sempre fez dez mil biocos
Até destruir Hespanha,
Sabei se se tornou aranha,
Quando vio o demo em soccos.
Bem: e he razão que me va
Donde ha cousas tão honradas,
Tão devotas, tão soadas?
O lavor vos contará.
I-vos embora.
CAS. Quedáos á Dios, senora;
No quiero mas porfías.
Encontra-se com o Francez e Italiano, e diz o
ITALIANO.
Oh Diu! como está tan trista!
FRA. VUS topes Ia gran pastora?
Ille he forte coma hum torra!
ITA. Dóleme ei core y Ia tista.
CAS. Yo estoy cansado,
Que con ella he trabajado.
FRA. Y si no quiere los Francezes!
CAS. Mucho mas valemos nos.
ITA. Le Romani pilha en grado.
CASTELHANO.
Qué os parece de Ia Fama
Portugueza? ITA. Forti xosa
De riquesa y no checosa;
Diu y ei creve Ia inflama.
Yo he vido
60 LIVRO IV.

Que al maré no ha avedo


Mal rosto dale Moro,
Per força pilha ei tesoro;
Y questo he vero y Io credo.
FRANCEZ.
Par ei cor de Christo santo,
Que Ia pastora me fit sudés;
Yo no le perleré mes,
Pues su mercê vale tanto.
ITA. Puy ede;
Que le fa Diu gran mercede,
Y por honra mas crecirse,
Porque ei cor di forti y face
Per Christo que in celi sede.
Que Ia alta guerra o paci,
Que he contra le Christiani,
Vencimento tali dani
Non este famoso mas fallaci.
Le cuerpo morto,
Si alma al inferno porto
Si Ia vana opinione
Quien de aquesto he occasione
No le veo por conforto.
CASTELHANO.
Por eso no porfié
Con ella, ni es razon,
Porque sus victorias son
Muy lejos y por Ia fe.
ITA. Cor de Di!
Que Ia veritá he ansi!
CAS. El muy alto Dios sin par
DAS FARÇAS. 61

La quiera siempre ayudar:


Y nos vámosnos de aquL
Vem a Fé e Fortaleza a laurear esta Fama com hüa
coroa de louro, e diz o
ITALIANO.
Que es aquesto dito açora?
FRA. Oh le belle polideza!
CAS. La Fé y Ia Fortaleza
Vienen honrar Ia pastora.
FÉ.
Os feitos Troianos, também os Romãos,
Mui alta Princeza, que são tão louvados,
E neste mundo estão collocados
Por façanhosos e por muito vãos,
Em o regimento de seus cidadãos,
E algüas virtudes e moraes costumes,
Vós, Portugueza Faina, não tenhais ciúmes,
Que estais collocada na flor dos Christãos.
Vossas façanhas estão collocadas
Diante de Christo, Senhor das alturas:
Vossas conquistas, grandes aventuras,
São cavallarias mui bem empregadas.
Fazeis as mesquitas serem desertadas,
Fazeis na Igreja o seu poderio:
Portanto o que pôde vos dá domínio,
Que tanto reluzem vossas espadas.
Porque o triumpho do vosso vencer
E as vossas victorias exalção a fé,
De serdes laureada grande rezão he,
Princeza das famas, por vosso valer.
Não achamos outra de mais merecer.
62 LIVRO IV.

Pois tantos destroços fazeis a Ismael,


Em nome de Christo tomae o laurel,
Ao qual Senhor praza sempre ein vos crescer.

Aqui coroão as Virtudes a Fama, e a põe em seu carro


triumphal com musica, e assi a levão, e se acaba esta
susodita farça.
FIGURAS.
HUM VELHO.
HUMA MOÇA.
HUM PARVO — Criado do Velho.
MULHER do Velho.
BRANCA GIL.
HUMA MOCINHA.
HUM ALCAIDE.
BELEGUINS.

A seguinte farça, he o seu argumento, que hum homem


honrado e muito rico, ja velho, tinha hüa horta; e andando
hüa manhan por ella espairecendo, sendo o seu hortelão
fora, veio hüa moça de muito bom parecer buscar horta-
liça, e o velho em tanta maneira se namorou delia, yque

por via de hüa alcoviteira gastou toda sua fazenda. A


alcoviteira foi açoutada, e a moça casou honradamente.
Foi representada ao mui sereníssimo Rei Dom Manuel o
primeiro deste nome, era do Senhor de 1512.
O VELHO DA HORTA.

Entra o Velho pela horta, rezando.


VELHO.

Pater noster creador,


Qui es in ccelis poderoso,
Sanctificetur, Senhor,
Nomen tuum vencedor,
Nos ceos e terra piedoso.
Adveniat a tua graça,
Regnum tuum sem mais guerra;
Voluntas tua se faça
Sicut in ccelo et in terra.
Panem nostrum, que comemos,
Quottdianum, teu he;
Escusá-lo não podemos;
Indaque o não merecemos,
Tu da nobis hodie.
Dímítte nobis, Senhor,
Debita nossos errores,
Sicut et nos, por teu amor,
Demtttimus qualquer error
A os nossos devedores.
Et ne nos, Deos, te pedimos,
Inducas per nenhum modo
In tentationem cahimos;
Porque fracos nos sentimos,
DAS FARÇAS. 65

Tomados de triste Iodo.


Sed libera nossa fraqueza,
Nos a maio nesta vida.
Amen por tua graça,
E nos livre tua alteza
Da tristeza sem medida.
Entra a Moça na horta e diz o
VELHO.
Senhora, benza-vos Deos.
Moç. Deos vos mantenha, Senhor.
VEL. Onde se criou tal flor?
Eu diria que nos ceos.
Moç. Mas no chão.
VEL. Pois damas se acharão,
Que não são vosso sapato.
Moç. Ai! como isso he tão vão,
E como as lisonjas são
De barato.
VELHO.
Que buscais vós ca, donzella,
Senhora, meu coração?
Moç. Vinha ao vosso hortelão
Por cheiros pera a panella.
VEL. E a isso
Vindes vós, meu paraizo,
Minha senhora, e al não?
Moç. Vistes vós! Segundo isso,
Nenhum velho não tem siso
Natural.
VELHO.
Oh meus olhinhos garridos!
Minha rosa! meu arminho!
Vol. III.
66 LIVRO IV.

Moç. Onde he o vosso.ratinho?


Não tem os cheiros colhidos?
VEL. Tão depressa
Vindes vós, minha condessa,
Meu amor, meu coração?
Moç. Jesu! Jesu! que cousa he essa?
E que prática tão avessa
Da rezão!
Fallae, fallae d'outra maneira:
Mandae-me dar a hortaliça.
VEL. Gran fogo d'amor m'atiça,
Oh minha alma verdadeira!
'Moç.E essa tosse?
Amores de sôbre-posse
Serão os da vossa idade:
O tempo vos tirou a posse.
VEL. Mais amo, que se moço fosse
Com ainetade.
MOÇA.
E qual será a desestrada,
Que attente em vosso amor?
VEL. Oh ininh'alma e minha dor,
Quem vos tivesse furtada!
Moç. Que prazer!
Quem vos isso ouvir dizer
Cuidará que estais vós vivo,
Ou que sois pera viver.
VEL. Vivo não no quero ser,
Mas captivo.
MOÇA.
Vossa alma não he lembrada
Que vos despede esta vida?
DAS FARÇAS. 67

VKL. VÓS sois minha despedida,


Minha morte antecipada.
Moç. Que galante!
Que rosa! que diamante!
Que preciosa perla fina!
VEL. Oh fortuna triuinphante!
Quem inetteo hum velho amante
Com menina!
O maior risco da vida,
E mais perigoso, he amar;
Que morrer he acabar,
E amor não tem sahida.
E pois penado,
Aindaque seja amado,
Vive qualquer amador;
Que fará o desamado,
E sendo desesperado
De favor?
MOÇA.
Ora dá-lhe lá favores!
Velhice, como te enganas!
VEL. Essas palavras ufanas
Acendem mais os amores.
Moç. Ó hoinel estais ás escuras;
Não vos vedes como estais?
VEL. VÓS me cegais com tristuras,
Mas vejo as desaventuras
Que me dais.
MOÇA.
Não vedes que sois ja morto,
E andais contra natura?
VKL. Ó flor da mor fermosura,
68 LIVRO IV.

Quem vos trouxe a este meu horto?


Ai de mi!
Porque assi como vos vi,
Cegou minha alma e a vida;
E está tão fora de si,
Qu'em partindo vós daqui,
He partida.
MOÇA.
Ja perto sois de morrer:
Donde nasce esta sandice,
Que, quanto mais na velhice,
Amais os velhos viver?
E mais querida,
Quando estais mais de partida,
He a vida que leixais?
VEL. Tanto sois mais homecida,
Que, quando amo mais a vida,
M'a tirais.
Porque minh'hora d'agora
Vai vinte annos dos passados;
Que os moços namorados
A mocidade os escora.
Mas hum velho,
Em idade de conselho,
De menina namorado..
Oh minh'alma e meu espelho!
Moç. Oh miolo de coelho
Mal assado.
VELHO.
Quanto for mais avisado
Quem d'amor vive penando,
Terá menos siso amando,
DAS FARÇAS. 69

Porque he mais namorado.


Em concrusão,
Que amor não quer rezão,
Nem contracto, nem cautela,
Nem preito, nem condição,
Mas penar de coração
Sem querella.
MOÇA.
Hulos esses namorados?
Desinçada he a terra delles:
Olho mao se metteo nelles:
Namorados de cruzados,
Isso si.
VEL. Senhora, eis-me eu aqui,
Que não sei senão amar.
Oh meu rosto d'alfeni!
Qu'em forte ponto vos vi
Neste pomar!
MOÇA.
Que velho tão sem socêgo!
VEL. Que garridice me viste?
Moç. Mas dizei, que me sentiste,
Remelado, necio, cego?
VKL. Mas de todo
Por mui namorado modo
Me tendes minha senhora
Ja cego de todo em todo.
Moç. Bem está quando tal lodo
Se namora.
VELHO.
Quanto mais estais avessa,
Mais certo vos quero bem.
70 LIVRO IV.

Moç.O vosso hortelão não vem?


Quero-me ir, que estou de pressa.
VEL. Oh fermosa,
Toda minha horta he vossa.
Moç. Não quero tanta franqueza.
VEL. Não per me serdes piedosa;
Porque quanto mais graciosa,
Soes crueza.
Cortae tudo sem partido:
Senhora, se sois servida,
Seja a horta destruída,
Pois seu dono he destruído.
Moç. Mana minha,
Achastes vós a daninha,
Porque não posso esperar.
Colherei algüa cousinha,
Somente por ir asinha
E não tardar.
VELHO.
Colhei, rosa, dessas rosas,
Minhas flores, colhei flores.
Quizera eu que esses amores
Forão perlas preciosas,
E de rubis
O caminho per onde is,
E a horta d'ouro tal,
Com lavores mui sutis,*
Poisque Deos fazer-vos quiz
Angelical.
Ditoso he o jardim
Que está em vosso poder:
Podeis, senhora, fazer
DAS FARÇAS. 71

Delle o que fazeis de mim.


Moç. Que folgura!
Que pomar e que verdura!
Que fonte tão esmerada!
VKL. N'agua olhae vossa.figura,
Vereis minha sepultura
Ser chegada.
MOÇA. (canta)
"Cual es Ia nina
"Que coge Ias flores,
"Sino tiene amores.
"Cogia Ia nina
"La rosa florida,
"El hortelanico
"Prendas le pedia,
"Sino tiene amores."
Assi cantando colheo a Moça da horta o que vinha
buscar, e acabado, diz:
Moç*.
Eisaqui o que colhi;
Vede o que vos hei de dar.
VEL. Que m'haveis vós de pagar,
Pois que ine levais a mi?
Oh coitado!
Que amor ine tem entregado
E ein vosso poder me fino,
Porque sain de vós tratado
Como pássaro em mão dado
D'hum menino.
MOÇA.
Senhor, com vossa mercê.
VEL. Por eu não ficar sem a vossa,
72 LIVRO IV.

Queria de vós hüa rosa.


Moç.Hüa rosa? para que?
VEL. Porque são
Colhidas de vossa mão,
Leixar-m'heis algüa vida,
Não isenta de paixão,
Mas será consolação
Na partida.
MOÇA.

Isso he por me deter:


Ora tomae — acabar.
( Tomou-lhe o Velho » mão.)

Jesu! e quereis brincar?


Que galante e que prazer!
VEL. Ja me leixais?
Lembre-vos que me lembrais
E que não fico comigo.
Oh marteiros infernaes!
Não sei porque me matais,
Nem o que digo.
Vem hum Parvo, criado do Velho, e diz:
PARVO.
Dono, dizia minha dona.
Que fazeis vós ca té á noute?
VEL. Vae-te dahi, não fa^ou^e.
Oh! dou ó demo a chaçona
Sem saber.
PAR. Diz que fosseis vós comer,
E que não moreis aqui.
VEL. Não quero comer nem beber.
PAR. Pois que haveis ca de fazer?
VEL. Vae-te d'hi.
DAS FARÇAS. 73

PARVO.
Dono, veio lá meu tio,
Estava minha dona — então ella
Foi-se-lhe o lume pela panella,
Senão acertá-lo acario.
VEL. Oh Senhora,
Como sei que estais agora
Sem saber minha saudade!
Oh senhora matadora,
Meu coração vos adora
De vontade.
PARVO.
Raivou tanto rosmear
Oh pezar ora da vida!
Está a panella cozida,
Minha dona quer jentar:
Não quereis?
VKL. Não hei de comer, que me pês,
Nem quero comer bocado.
PAn. E se vós, dono, morreis?
Então depois não fallareis,*
Senão finado.
Então na terra nego jazer,
Então finar dono estendido.
VKL. Oh quem não fora nascido,
Ou acabasse de viver!
PAR. Assi, pardeos.
Então tanta pulga em vós,
Tanta bichoca nos olhos,
Alli c'os finados sos;
E comer-vos-hão a vós
Os piolhos.
7 4 LIVRO IV

Comer-vos-hão as cigarras,
E os sapos morreré, morreré.
VEL. Deos me faz ja mercê
De me soltar as amarras.
Vae saltando,
Aqui fico esperando:
Traze a viola e veremos.
PAR. Ah corpo de San Fernando!
Estão os outros jentando,
E cantaremos?
VELHO.
Quem fosse do teu teor,
Por não sentir tanta praga
De fogo que não s'apaga
Nem abranda tanta dor!
Hei de morrer.
PAR. Minha dona quer comer;
Vinde eramá, dono, que brada.
Olhae, eu fui-lhe dizer
Dessa rosa e do tanger,
E está raivada.
VELHO.
Vae-te tu, filho Joanne,
E dize que logo vou,
Que não ha tanto que ca 'slou.
PAR. Ireis vós pera Sanhoanne
Polo ceo sagrado,
Que meu dono está danado.
Vio elle o demo no ramo.
Se elle fosse namorado,
Logo eu vou buscar outr'amo.
DAS FARÇAS. 75

Vem a Mulher do Velho e diz:


MULHER.
Hui! amara do meu fado;
Femandianes, que he isto?
VEL. Oh pesar do Antichristo
Co'a velha destemp'rada!
Vistes ora?
Mui.. Esta dama onde mora?
Hui! amara dos meus dias!
Vinde jentar na ma ora:
Que vos inettedes agora
Em musiquias?
VELHO.
Polo corpo de San Roque
Commendo ó demo a gulosa.
MÜL. Quem vos poz hi essa rosa?
Ma forca que vos enforque!
VEL. Não curar:
Fareis bem de vos tornar,
Porque estou mui mal sentido;
Não cureis de me fallar,
Que não se pôde escusar
Ser perdido.
MULHER.
Agora co'as hervas novas
Vos tornastes vós granhão.
VEL. Não sei que he, nem que não,
Que hei de vir a fazer trovas.
MUL. Que peçonha!
Havei ma ora vergonha
A cabo de sessenta annos,
Que sondes ja carantonha.
76 LIVRO IV.

VEL. Amores de quem me sonha


Tantos danos.
MULHER.
Ja vós estais em idade
De mudardes os costumes.
VEL. Pois que me pedis ciúmes,
Eu vo-lo farei verdade.
MUL. Olhade a peça!
VEL. Nunca o demo em al m'empeça,
Senão morrer de namorado.
MUL. Quer ja cair da trepeça,
E tem rosa na cabeça
E imbicado.
VELHO.
Leixae-me ser namorado,
Porque o sou muito em extremo.
MUL. Mas que vos tome inda o demo,
Se vos ja não tem tomado.
VEL. Dona torta,
Acertar por essa porta,
Velha mal aventurada,
Sair ma ora da horta.
MUL. Hui, amara! aqui sou morta,
Ou espancada.
VELHO.
Estas velhas são peceados,
Sancta Maria Vai com a praga!
Quanto as homem mais afagai,
Tanto são mais endiabradas.
( cantn )

"Volvido nos han volvido,


"Volvido nos han
DAS FARÇAS. 77

"Por una vecina mala


"Meu amor tolheu-me a falia,
"Volvido nos han."
Vem Branca Gil, alcoviteira, e diz:
BRANCA.
Mantenha Deos vossa mercê.
VKL. Bofé, vós venhais embora.
Ah sancta Maria senhora,
Como logo Deos prove!
BRA. Si aosadas.
Eu venho por inesturadas,
E muito depressa ainda.
VEL. Mesturadas mesandadas,
Que as fará bem guisadas
Vossa vinda.
O caso he: Sobre meus dias,
Em tempo contra rezão,
Veio Amor sobre tenção,
E fez de mi outro Maneias,
Tão penado,
Que de muito namorado
Creio que me culpareis
Porque tomei tal cuidado;
E do velho destampado
Zombareis.
BRANCA.
Mas antes, senhor, agora
Na velhice anda o amor;
O de idade d'amador
De ventura se namora;
E na corte
Nenhum mancebo de sorte
78 LIVRO IV.

Não ama como sohia.


Tudo vai em zombaria;
Nunca morrem desta morte
Nenhum dia.
E folgo ora de ver
Vossa mercê namorado;
Que o homem bem criado
Até morte o ha de ser
Por direito;
Não per modo contrafeito,
Mas firme, sem ir atraz,
Que a todo o homem perfeito
Mandou Deos no seu preceito:
Amarás.
VELHO.
Isso he o demo que eu brado,
Branca Gil,. e não ine vai,
Que não daria hum real
Por homem desnamorado.
Porém, amiga,
Se nesta minha fadiga
Vós não sois medianeira,
Não sei que maneira siga,
Nem que faça nem que diga,
Nem que queira.
BRANCA.
Ando agora tão ditosa,
Louvores á Virgem Maria,
Que acabo mais do que quVia,
Pola minha vida e vossa.
D'antemão
Faço hüa esconjuração
DAS FARÇAS. 79

Chum dente de negra morta


Até que entre pola porta,
Que exhorta
Qualquer duro coração.
Dizede-me, quem he ella?
VEL. Vive junto co'a Sé.
BR A. Ja, ja, ja; bem sei quem he.
He bonita como estrella,
Hüa ro.sinha d'Abril,
Hüa frescura de Maio,
Tão manhosa, tão subtil!
VEL. Acudi-me, Branca Gil,
Que desmaio.
Esmorece o Velho, e a alcoviteira começa a ladainha
seguinte:
BRANCA.
Ó precioso Santo Arelhano,
Martyr bem-aventurado,
Tu que foste marteirado
Neste inundo cento e hum anno;
Ó San Garcia
Moniz, tu que hoje em dia
Fazes milagres dobrados,
Dá-lhe esforço e alegria,
Pois que es da companhia
Dos penados.
Ó apóstolo San João Fogaça,
Tu que sabes a verdade,
Pola tua piedade
Que tanto mal não se faça.
O Senhor
Tristão da Cunha Confessor,
80 LIVRO IV.

Ó martyr Simão de Sousa,


Polo vosso santo amor
Livrae o velho peccador
De tal cousa.
Ó Santo Martim Affonso
De Mello, tão namorado,
Dá remédio a este coitado,
E eu te direi hum responso
Com devação.
Eu proinetto hüa oração,
Cada dia quatro mezes,
Porque lhe deis coração,
Meu Senhor San Dom João
De Menezes.
Ó martyr Santo Amador
Gonçalo da Silva, vós,
Vós que sois hum so dos sos
Porfioso em amador
Apressurado,
Chamae o martirizado
Dom João d'Eça a conselho,
Dous casados n'hum cuidado,
Soccorrei a este coitado
Deste velho.
Archanjo San Commendador
Mor d'Avis, mui inflammado,
Que antes que fosseis nado
Fostes sancto no amor.
E não fique
O precioso Dom Anrique
Outro Mor de Santiago;
Soccorrei-lhe muito a pique,
DAS FARÇAS. 81

Antes que o demo repiquc


Com tal pago.
Glorioso San Dom Martinho,
Apóstolo e Evangelista,
Tomae este feito á revista,
Porque leva mao caminho,
E dae-lhe esprito.
O sancto Barão d'Alvito,
Seraphim do Deos Cupido,
Consolae o velho afflito;
Porque inda que contrito,
Vai perdido.
Todos sanctos marteirados,
Soccorrei ao marteirado,
Que morre de namorado,
Pois inorreis de namorados.
Polo livrar
As Virgens quero chamar,
Que lhe queirão soccorrer,
Ajudar e consolar,
Que está ja pera acabar
De morrer.
Ó sancta Dona Maria
Anriques, tão preciosa,
Queirais-lhe ser piedosa
Por vossa sancta alegria.
E vossa vista,
Que todo o inundo conquista,
Esforce seu coração,
Porque á sua dor resista,
Por vossa graça e beinquista
Condição.
Vol. 111.
82 LIVRO IV.

O sancta Dona Joana


De Mendonça, tão formosa,
Preciosa e mui lustrosa,
Mui querida e mui oufana,
Dae-lhe vida,
Como outra sancta escolhida,
Que tenho ein voluntas mea,
Seja de vós soccorrida,
Como de Deos foi ouvida
A Cananea.
O sancta Dona Joana
Manoel, pois que podeis,
E sabeis e mereceis
Ser angélica e humana,
Soccorrê.
E vós, Senhora, por mercê,
r

O sancta Dona Maria


De Calataúd, porque
Vossa perfeição lhe dê
Alegria.
Sancta Dona Catherina
De Figueiredo a Real,
Por vossa graça especial,
Que os mais altos inclina;
E ajudará
Sancta Dona Beatriz de Sa:
Dae-lhe, Senhoras, conforto,
Porque está seu corpo ja
Quasi morto.
Sancta Dona Beatriz
Da Silva, que sois aquella
Mais estreita que donzella,
DAS FARÇAS. 83

Como todo o inundo diz;


E vós sentida
Sancta Dona Margarida
De Sousa, lhe soccorrê,
Se lhe puderdes dar vida;
Porque está ja de partida,
Sem porque.
Sancta Dona Violante
De Lima, de grande estima,
Mui subida, muito acima
D'estimar nenhum galante;
Peço-vos eu,
E a Dona Isabel d'Abreu,
Que hajais delle piedade
Co siso que Deos vos deu,
Que não moura de sandeu
Em tàl idade.
Ó sancta Dona Maria
D'Ataide, fresca rosa,
Nascida em hora ditosa,
Quando Júpiter se ria;
E se ajudar
Sancta Dona Anna, sem par,
D'Eça, bem-aventurada,
Podei-lo resuscitar,
Que sua vida vejo estar
Desesperada.
Sanctas virgens conservadas
Em mui sancto e limpo estado,
Soccorrei ao namorado,
Que vós sejais namoradas.
VKL. Oh coitado!
84 LIVRO IV

Ai triste desatinado,
Ainda tomo a viver;
Cuidei que ja era livrado.
BRA. Qu'esfôrço de namorado
E que prazer!
Havede ma ora aquella.
VEL. Que remédio me dais vós?
BRA. Vivireis, prazendo a Deos,
E casar-vos-heis com ella.
VEL. He vento isso.
BRA. Assi veja o paraíso,
Que não he ora tanto extremo.
Não curedes vós de riso,
Que se faz tão improviso
Como o demo:
E lambem d'outra maneira,
Se in'eu quizer trabalhar.
VEL. Ide-lhe, rogo-vo-lo, fallar,
E fazei com que me queira,
Que pereço;
E dizei-lhe que lhe peço
Se lembre que tal fiquei
Estimado em pouco preço:
E se tanto mal mereço
Não no sei.
E se tenho esta vontade,
Que não se deve enojar,
Mas antes muito folgar
Matar os de qualquer idade.
E se reclama
Que sendo tão linda dama
Por ser velho m'aborrece,
DAS FARÇAS. 85

Dizei-lhe que mal desama,


Porque minh'aluna, que a ama,
Não envelhece.
BRANCA.
Sus, nome de Jesu Christo,
Olhae-ine pola cestinha.
VEL. Toraae logo muito asinha,
Que eu pagarei bem isto.
Vai-se a alcoviteira e fica o Velho tangendo, c cantando
a cantiga seguinte:
"Pues tengo razon, senora,
"Razon es que me Ia oiga.
Vem a alcoviteira e diz o
VELHO.

Venhais embora, minha amiga.


BRA. J'ella fica de bom geito;
Mas pera isto andar direito,
He razão que vo-lo diga.
Eu ja, senhor meu, não posso
Vencer hüa moça tal
Sem gastardes bem do vosso.
VEL. EU lhe peitarei em grosso.
B B A . H Í está o feito nosso,
E não em al.
Perca-se toda a fazenda
Por salvardes vossa vida.
VEL. Seja ella disso servida,
Qu'escusada he mais contenda.
URA. Deos vos ajude
E vos dê muita saúde,
Que isso haveis de fazer:
Que viola nem alaüdc
86 LIVRO IV.

Nem quantos amores pude


Não quer ver.
Remoçou-m'ella hum brial
De seda e huns toucados.
VEL. Eisaqui trinta cruzados;
Que lh'o facão mui real.
Emquanto a alcoviteira vai, o Velho toma a proseguim
teu cantar e tanger, e acabado, torna ella e diz:
BRANCA.

Está tão saudosa de vós,


Que se perde a coitadinha:
Ha mister hüa vasquinha
E três onças de retroz.
VEL. Tomae.
BRA. A benção de vosso pae.
(Bô namorado he o tal)
Pois que gastais, descançaei
Namorados de ai ai
Não são papa nem são sal.
Hui! tal fora se me fora.
Sabeis vós que m'esquecia?
Hüa adela me vendia
Hum firmai d'hüa senhora
Chum rubi,
Pera o collo, de marfi,
Lavrado de mil lavores,
Por cem cruzados. VEL. Ei-los hi.
BRA. Isto ma ora, isto si,
São amores.
Vai-se, e o Velho torna a proseguir sua musica, e aca-
bado torna a alcoviteira e diz:
DAS FARÇAS. 87

BRANCA.
Dei ma ora hüa topada;
Trago as sapatas rompidas,
Destas vindas, destas idas,
E emfim não ganho nada.
VKL. Eisaqui
Dez cruzados pera ti.
BRA. (Começo com boa estrea.)
Vem hum Ale ai de com quatro beleguins, « diz:
ALCAIDE.
Dona levantae-vos d'hi.
BRA. E que me quereis vós assi?
ALC. Á cadeia.
VELHO.
Senhores homens de bem,
Escutem vossas senhorias.
ALC Deixae essas cortezias.
BRA. Não hei medo de ninguém: —
Vistes ora?
ALC. Levantae-vos d'hi, senhora;
Dae ó demo esse rezar:
Quem vos fez tão rezadora?
BRA. Leixae-m'ora na ma ora
Aqui acabar.
ALCAIDE.
Vinde da parte d'E!Rei.
BRA. Muita vida seja a sua.
Não me leveis pola rua;
Leixae-me vós qu'eu m'irei.
VEL. SUS, andar.
BRA. Onde me quereis levar?
Ou quem me manda prender?
88 LIVRO IV.

Nunca hávedes d'acabar


De me prender e soltar?
Não ha poder.
ALCAHJE.
Não se pôde hi al fazer.
BRA. Está ja a carocha aviada.
Três vezes fui ja açoutada,
E emfim hei de viver.
Levão-na presa e fica o Velho dizendo.
VEL. Oh forte hora!
Ah sancta Maria Senhora!
Ja não posso livrar bem;
Cada passo se empeora.
Oh! triste quem se namora
De ninguém!
Vem hüa Mocinha à horta c diz:
MOÇA.
Vedes aqui o dinheiro:
Manda-me ca minha tia,
Que assi como n'outro dia,
Lhe mandeis a couve e o cheiro. —
Está pasmado!
VEL. Mas estou desatinado.
Moç. Estais doente, ou que haveis?
VEL. Ai! não sei, desconsolado,
Que nasci desventurado.
Moç. Não choreis;
Mais mal fadada vai aquella.
VEL. Quem? Moç. Branca Gil. VEL. Como?
Moç. Com cenfaçoutes no lombo,
E hüa corocha por capella.
E ter mão:
DAS FARÇAS. 89

Leva tão bom coração,


Como se fosse em folia.
Oh que grandes que lh'os dão!
VEL. E O triste do pregão
Porque dizia?
MOÇA.
Por mui grande alcoviteira,
E pera sempre degradada.
Vai tão desavergonhada,
Como ia a feiticeira.
E quando estava
Hüa moça que casava
Na rua pera ir casar,
E a coitada que chegava,
A folia começava
De cantar:
Hüa moça tão fermosa,
Que vivia alli d Sé.
VEL. Oh coitado! a minha he.
Moç. Agora ma ora he Acossa,
Vossa he a treva.
Mas ella o noivo a leva:
Vai tão leda e tão contente,
Huns cabellos como Eva.
Osadas que não se lhe atreve
Toda a gente.
O noivo, moço tão polido,
Não tirava os olhos delia,
E ella delle. Oh que estrella!
He elle hum par bem 'scolhido.
Oh roubado,
Da vaidade enganado,
90 LIVRO IV.

Da vida e da fazenda!
Oh velho, siso enleado,
Quem te metteo, desastrado,
Em tal contenda?
Se os jovenes amores,
Os mais tem fins desastradas,
Que farão as cans lançadas
No conto dos amadores!
Que sentlas,
Triste velho, em fim dos dias,
Se a ti mesmo contempláras,
Souberas que não sabias,
E viras como não vias,
E acertáras.
VELHO.
Quero-m'jr buscar a morte,
Pois que tanto mal busquei.
Quatro filhas que criei,
Eu as puz em pobre sorte.
Vou morrer,
Elias hão de padecer,
Porque não lhes deixo nada
De quanta riqueza e haver
Fui sem rezão dispender
Mal gastada.

«>«!»>»>
F I G U R A S .

FEITICEIRA.
DIABO.
DOUS FRADES.
TRÊS FADAS.

Na força seguinte se contém, que hüa feiticeira, te-


mendo-se que a prendessem por usar de seu officio, se vai
queixar a EIRei, mostrando-lhe per razões que pera isso
lhe dá, quão necessários são seus feitiços.
F A R Ç A
CHAMADA

AUTO DAS FADAS.

Entrando a Feiticeira no paço, embaraçada de se ver


nelle, começa dizendo:
FEITICEIRA.
Jesu, quem me trouxe ora ca?
Esta cabeça de vento,
Siso de cacaracá.
Eu não sei como lá va;
Tamanha vergonha sento.
E pois sain tão vergonhosa,
Encolhida e temerosa,
Que venho fazer ó Paço?
Porque eu mesma in'embaraço
De mimosa.
Ai que farei d'empachada!
Oh vergonhosa de mi,
Como vou abrasiada,
Amara, corrida e torvada!
Mas pressa ine traz aqui,
Onde não vejo logar,
Emque homem queira mijar,
Nem ouso espirrar somente,
Por alguém não se soltar
Antre gente.
DAS FARÇAS. 93

Chega a EIRei c á Rainha, e diz:


Senhores, embora estedes:
Com saúde, com prazer
Muitos annos vós logredes.
Os ramos que florecedes,
Deos os queira engrandecer,
Assi como vós queredes.
(ao Principp <• Infantes)

Oh que jóias esmaltadas,


Oh que boninas dos ceos,
Oh que rosas perfumadas!
(«s D.uii.i!..)

Jesu! que sanctas douradas!


Bom prazer veja eu de vós
E boas fadas.
Eu sam Genebra Pereira,
Que moro alli á Pedreira,
Vezinha de João de Tara,
Solteira, ja velha amara,
Sem marido e sem nobreza;
Fui criada em gentileza
Dentro nas tripas do Paço,
E por feitiços qu'eu faço,
Dizem que sain feiticeira.
Porém Genebra Pereira
Nunca fez mal a ninguém;
Mas antes por querer bem
Ando nas encruzilhadas
Ás horas que as bem fadadas
Dormem somno repousado;
E eu estou com hum enforcado
Papeando-lhe á orelha:
94 LIVRO IV.

Isto provará esta velha


Muito melhor do que o diz.
Ora agora Estevão Dis
Diz que defendedes isto:
Hui! dou-vos a Jesu Christo;
Pera que era ora tirado
Quanto tenho exprimentado
E usado quarenta annos,
Estorvando muitos damnos
Per esconjuros provados,
Fazendo vir dez finados
Por saber hüa verdade?
E havendo piedade
De mulheres mal casadas,
Pera as ver bem maridadas,
Ando pelos adros nua,
Sem companhia nenhüa,
Senão hum sino samão,
Mettido n'hum coração
De gato preto e não al.
Isto, Senhor, não he mal,
Pois he pera fazer bem.
Outro si, quando a mi vem
Namorado sem conforto,
Desejando antes ser morto,
Que ter aquella paixão;
Cavalgo no meu cabrão
E vou-me a Vai de Cavallinhos,
E ando quebrando os focinhos
Por aquellas oliveiras,
Chamando frades e freiras
Que morrerão por amores.
DAS FARÇAS. 95

Oh, se visseis os temores


Que passo nesta canceira,
Não temeria a Pereira
Tanto os corregedores.
Sempre ando neste marteiro:
Vem-se a ini homem solteiro,
Que quer casar com Costança,
Sem nenhfia esperança,
Triste, morto de paixão.
Eu c'o sangue do Leão,
Mexido c'o rabo da Huja
E alli o fel da coruja,
Ei-lo mancebo aviado.
Vem hum frade excommungado,
Que o benza doquebranto;
Vou e faço-lhe outro tanto,
Assi, Senhor, veja eu prazer.
Vem, a modo de dizer,
Gonçalo da Silva a mi,
E diz-me que he fora de si
Pola Francisca da Guerra;
Queres que seja eu tão perra
Que o não encommende ó demo,
Que o livre do extremo
Em que he posto seu esprito?
E se vier Gaspar de Brito
Por Catherina Limão,
Não irei no meu cabrão
Enfeitiçar a limeira?
E assi desta maneira
Se vier o Marichal
Por Guimar do Ataude
96 LIVRO IV.

Buscar a minha saúde,


He por força pôr-me a risco.
E se me rogar Dom Francisco
Que lhe enfeitice a Benim,
S'eu não for muito ruim,
Mal lhe posso negar cousa.
E lá o Martim de Sousa,
Que morre pola Primentel,
Não lh' hei de ser infiel.
Assi que as taes feitiçarias
São, Senhor, obras mui pias,
E não ha mais na verdade.
Saiba Vossa Magestade
Quem he Genebra Pereira,
Que sempre quiz ser solteira,
Por mais estado de graça.
Agora não sei que faça
Com este negro meirinho,
Rosto de San Sadorninho.
Hui amara! e que me quer?
Se Vossa Alteza quizer
Ver os feitiços qu'eu faço,
Aqui logo neste paço
Os veredes muito asinha.
E vós, Senhora Rainha,
Infantes e cortezãos,
Levantae ao ceo as mãos;
Esforçae; e não pasmedes
Das más cousas que veredes.
Esperade-ine hum poucachinho;
Estade assi, manas, quedas.
Vou polo alguidarinho,
DAS FARÇAS. 97

A candeia e o saquinho,
E veredes labaredas.
Se vos tremerem as pelles
D'espantos e de temores,
Hi estão vossos servidores,
Encostade-vos a elles
E cobride-vos d'ainores.
Traz a Feiticeira hum alguidar e hum saco preto, cm
que traz os feitiços, os quaes começa a fazer, dizendo:
Alguidar, alguidar,
Que feito foste ao luar
Debaixo das sette éstrellas,
Com cuspinhos de donzellas
Te mandei eu amassar:
O cuspinhos preciosos
De beiços tão preciosos
Dae ora prazer
A quem vos bem quer,
E dae boas fadas
Nas encruzilhadas.
Este caminho vai pera lá,
Esfoutro atravessa ca;
Vós no meio, alguidar,
Que aqui cruz não ha de estar.
Embora esteis, encruzilhada.
Perequi entrou, pereli sahio.
Bem venhades, dona honrada.
Vai a estrada pola estrada.
Benta lie a gata que pario
Gato negro, negro he o gato.
Bode negro anda no inato,
Negro he o corvo e negro he o pez,
7
Vol. III.
98 LIVRO IV.

Negro he o rei do enxadrez,


Negra he a vira do sapato,
Negro he o saco qu'eu desato.
Isto he fersura de sapo,
Que está neste guardanapo.
Eis aqui mama de porca,
Barbas de bode furtado,
Fel de morto excommungado,
Seixinhos do pé da forca:
Bolo de trigo alqueivado
Com dous ratos no meu lar,
Per minha mão sameado,
Colhido, moldo, amassado,
Nas costas do alguidar.
Achegade-vos a mim:
Que papades, meu ch'rubiin?
Escumas de demoninhado.
Quem vo-Ias deu?
Dei-vo-las eu.
Fel de morto, meu conforto,
Bolo cornudo, vós sabedes tudo,
Bico de pego, aza de morcego,
Bafo de drago, tudo vos trago.
Eu não juro nem esconjuro,
Mas gallo negro suro
Cantou no meu monturo.
E ditas as santas palavras,
Ei-lo Demo vai, ei-lo Demo vem
Co'as bragas dependuradas.
Vem hum Diabo chamado da Feiticeira, o qual lhe falia
em língua picarda, desta maneira:
DAS FARÇAS. 99

DIABO.
Ó dame, jordene
Vu seae Ia bien trovee.
Tu es fause te humeyne,
Sou ye vous esposec.
FKI. Que linguagem he essa tal?
Hui, e elle falia ara via!
Olhade o nabo de Turquia!
Fallade arama Portugal.
DIABO.
Tu has fet bian de mal
Avec un frayre jacopim.
FEL Ma pezar vej'eu de ti:
Dize, ma trama te naça,
Que dizes que não fentendo?
Fazes escarneo de mim?
Ora juro a Deos que he graça.
Ó demo que tfeu encommendo
Cainanho tu hi estás.
DIABO.
Macarde de Limosim,
Tripiere de sancte Ovim.
FKI. Dá ó demo esse latim,
Que não entendo o que he.
DIA. TU nas oy tene vergonhe?
FKI. Que fiz eu?
DIA. De tois lesães en aute sois.
FKI. VÓS me diredes depois
O que isso quer dizer.
DIA. TU aspete de bem Ia mer.
Fw. Hui! pete que pôde ser?
Esta que linguagem he?
7*
100 LIVRO IV.

DIABO.
Tan santy xi noble entraprisu.
FEL Viste-lo demo em que vem?
DIA. E Ia ribalde norrem
E puis je sa venu.
FEI. Pois pera que vieste tu,
Senão pera serviços meus?
DIA. Dime tos xem que tu véus,
Fame d'um vilhom cocu.
FEL Quem vio diabo Alleinão?
Dize, rogo-te, bargante,
Mao quebranto te quebrante,
Não fallas d'outra feição?
Por vida de Genebra Pereira,
Velha, ladra, alcoviteira,
Que chame o nome de Jesu.
DIA. EU, eu! que dile tu?
FEITICEIRA.
Esconjuro-te, malino,
Membro da ira de Deos,
Pola terra e pólos ceos
E por teu malvado sino,
Tu has-me de responder.
DIA. Oh que maldita mulher!
Que me queres, infernal?
FEI. Quero-vos, mano, entender.
Minha rosa, vinde ca,
Meu quebranto, dae-me a fé
Que me não falleis por lá,
E adoro o rabo de boi.
DIA. Té toi, té toi.
Tumerum Ia caboxes.
DAS FARÇAS. 101

FEITICEIRA.
Falia arama Portuguez:
Atéqui estou zombando;
Tu has d'ir onde t'eu mando.
DIA. Irei indaque me pez.
FKI. Vae logo ás ilhas perdidas,
No mar das penas ouvinhas,
Traze três fadas marinhas,
Que sejão mui escolhidas.
Parte logo, ora sus.
DIA. TU as desata, que Ia pendus.
Vai-se o Diabo e a Feiticeira tonta aos feitiços, dizendo:
FEITICEIRA.
Que fazeis, relíquias minhas,
Nesta água clara mettidas?
Havedes mister mexidas
Co lixo das andorinhas.
Vem o messaqeiro, e em logar das fadas que lhe a Fei-
ticeira mandou trazer, traz-lhe dous Frades infernaes,
hum delles tangendo huma gaita, e o outro foi pregador;
mas emquanto vivia foi muito namorado; o qual logo diz:
1<? FRADE.
Qué gran tormento me diste
En traerme aqui mal punto!
Ita vere. DIA. Que ouviste?
1<?F. Aqui nos hacen mas triste,
Que ei infierno todo junto.
DIA. Per quam regula diremos?
1? F. Porque muy cierlo sabemos.
Quia dedit Deus potestatem
A las damas que nos maten
Y nos que las adoremos.
102 LIVRO IV.

Mas me lastima ei dolor


Que tengo de estos senores,
Porque supe que es amor,
Que no ei infernal ardor,
De los tormentos mayores.
Como basta sufrimiento
Al namorado tormento,
Si ei amor es apurado,
Que no Io inata ei cuidado
Y ahoga ei pensamiento?
Esto es Io que yo sé
Y usé cuando vivia.
De esto tal os daré fe.
Esto es Io que estudié,
Esta era mi libraria.
Aquestas contemplaciones
Eran siempre mis liciones;
Y en esto gaste mis anos,
Predicando con sermones
La grandeza de mis danos.
Con lágrimas dolorosas,
Dentro de mi oratório
Contemplando en las fermosas,
Al cabo de ciertas prosas
Decia este vitalorio:
Al santo templo de Amor,
Donde las almas perdemos,
Venid todos y adoremos.
Venid de gana muy leda
A Ia triste dcvocion,
Donde mata Ia pasion
Y siempre Ia vida queda
DAS FARÇAS. 103

Para mas luenga prision:


Y pues tal perdicion
Por ganância Ia tenemos,
Venid todos y adoremos.
Adoramos y exalzamos
Á aquellas que nos matarou:
Opera manuum suarum
Son los suspiros que damos
In hac vita lachrymarum:
Á las que mal nos trataron,
Pues por diosas las tenemos,
Venid todos y adoremos.
Prima, tercia, sexta y nona
Rezaba de aqucsta suerte;
Porque siempre ini persona,
Desque echó de corona,
Fue de amores á Ia mucrte.
Cantaba Te Deum laudamus
Con los ojos en Cupido,
Diciendo: á ti adoramos
Los que sin ventura estamos
Con tanto tiempo servido.
Chcgão onde está a Feiticeira e ella vendo-os diz:
FEITICEIRA.
Mao sumiço c mao madeiro
Venha por tuas queixadas.
Eu mandei-te polas fadas,
E tu trazes-me gaiteiro?
E estes frades a que vem?
DIA. Vus m'aves dixcin.
FEI. Assi vivas tu amen.
DL\. E peinc foi xiá.
1 0 4 LIVRO IV.

FEI. Venhas muitieramá


Com tuas balcarriadas:
Não te dixe eu a ti fadas?
DIA. Fradas? FEI. Fadas. DIA. Frades.
FEL Ainda vós aporfiades?
1<? F.Dadnos algo que hacer,
Ó nos enviad al infierno.
FEI. Que has de fazer? doutfó demo!
Eu não fhaviá mister.
E lá que officio te dão
A ti e ó teu tangedor?
1° F. Acá fui gran predicador,
AUá me hicieron tecelan.
FEI. Ora fazede hum sermão
Muito breve a estas senhoras:
Alto, logo nessas horas,
Tomae ò thema, dom ladrão
Io FRADE.
Thema.
Amor vincit omnia.
Loco et capitulo: dam per elegatis.
Discretas, ilustres seSoras hermosas,
En cuyo servicio es justo ei morir,
La verba dei tema quiere decir,
El amor vence á todas las cosas.
Oh qué palabras tan maravilhosas!
Oh qué palabras de tanto saber!
Escriviólas ei gran poeta Virgílio;
Guardaldas, senoras, que es muy grande alivio
Á quien dei amor se siente vencer.
Porque son palabras de tanto mistério,'
DAS FARÇAS. 105

Que ciega ó alumbra Ia humana razon.


Despida Ia vida cualquier corazon,
Pues que vos teneis sobre amor império.
En muchos lugares Io escrive Valerio
Que vuestro poderio no es humanai,
Mas una gran fuerza sobrenatural,
Que fuerza las fuerzas de nuestro hemisfério.
( Assoa-se com o sen gnardanapo) .
Haced ora allá esos ninos callar. —
Amor vincit omnia, humanas prudentes,
El cual amor viene por três accidentes,
Sin vuestras mercedes seren de culpar.
Del uno es causa vuestro mirar,
Y Ia hermosura que mira con vos;
El otro, Ia gracia, cuitados de nos!
Que todas las cosas vencís á matar.
El otro accidente que mas atormenta,
Rosas dei mundo, y mas de sentir,
Son los enganos dei dulce decir,
Con ciertos desvios en cabo de cuenta.
Oh causadoras de tanta tormenta,
Nubes muy claras lloviendo suspiros
Sobre los tristes que para serviros
No dudan Ia muerte ni temen afrenta!
Anda ei discreto y noble persona
Gonçalo da Silva por Ia Anriques tal,
Gonçalo da Silva inordiendo Ia tierra,
Porque ansí Io ciega contino Ia guerra,
Como si él fuese rocin de atahona.
Por eso está cara esta vuestra Lisbona,
Porque, senoras, pecais mortalmente:
106 LIVRO IV.

ConvertereadDominum, que matais Ia gente


Con dulces ineneos, y el hecho en Pamplona.
Anda el cuitado tan puesto en el hilo
EI Calataud por Ia Anriquez tal,
Que dicen por él: Oh cirio pascual,
Que ya fuiste cera y ahora es pavilo;
Oh graciosas riberas dei Nilo,
Pietate vestra super omnes gentes;
Dejad los crueles inconvenientes,
Que aunque grosero, delgado Io hilo.
No quiero olvidar Don Luis de Menezes,
Á que Dona Leonor de Castro tien muerto,
Que parece barco que vino dei Puerto
Sin inantenimiento três ó cuatro meses.
Dejad esas manas de vuesos reveses,
Senoras, ne perdas animam vivam,
Pues de sus ganas por vos se cautivan,
Ut non desoletur, que son Portugueses.
Oh Christovâo Freire, leal Cahallero,
Que á Dona GineWa tomo por su Dios,-
Que parece galgo de Puerto de Mos
Chupado de estrias por eso terrero.
Y otras senoras que nombrar no quierov
Quia non debemus de plaza decir,
Que sufren las Bagas dei triste encubrir,
Las cuales padecen tormenlo mas fiero.
Pues, porquê, senoras, no os confesais,
Que haceis á los vivos morir por serviros ?
Haceis á los muertos allá dar suspiros,
Porque no estan acá donde estais.
Amor vincit omitia, y vos Io causais,
Orbis terrarum et semitas maris.
DAS FARÇAS. 107

O Diosas hermosas juzgadas por Paris,


Adonde se escriven Ias vidas que dais?
Plega aí Senor Juan de Saldaria,
Que tiene las llaves de vuestro paraíso,
Que Dios le dé gracia, que salgan de siso
Las llaves, ó vos, ó él, ó su cana.
No es tiempo ahora de mas predicar:
El que quisiere oir mi serraon
Vaya al Infierno con gran devocion,
Y de esta manera se puede salvar.
Las cosas que os suelen ser encomendadas,
Os encomiendo, cohviene á saber:
Todo ei mal que pudierdes hacer,
Haceldo, Senoras» que hayais bueuas liadas.
FEITICEIRA.
Ora sus, ma criatura,
I-me logo polas fadas
Marinhas, bem assombradas,
E tornae essa amargura. —
Donde vindes? D'Almolina.
Que trazedes? Farinha.
Tornae lá, que não he minha.
Olhade a gente honrada
Que me trazia o ladrão!
Huin que foi ainancebado,
Alcoviteiro provado,
E hum frade rafião.
Sabeis quão mal me parecem
Pessoas de mao viver?
Mais câ moscas nraborrecein,
Não nas posso ouvir nem ver.
108 LIVRO IV.

(Tira hitinas contas diz:)

Praza á conjunção carnal


De Frei Gabriel com Marta,
Sua filha espritual,
Que me venha este enxoval,
Que ja d'esperar sam farta,
E traga as fadas asinha.
Ó Senhora Ladainha,
Ajudade-m'ora vós.
Cabra preta vai por vinha,
Vai por vinha mana minha,
Te rogamus audi nos.
Quando fordes á igreja,
Não vos esqueça a soberba.
Tomad'ora meu conselho.
Ó açoutes do concelho,
Que estrearão meus avós,
Te rogamus audi nos.
Ladainha da Pereira,
Escripta em pelle de rata,
Tinta de pingo de pata,
Assada per mão demógueira.
Ó picota da Ribeira,
Que estrearão meus avós,
Te rogamus audi nos.
Vem as Fadas marinhas cantando a cantiga seguinte:
FADAS.
"Qual de nós vem mais cansada
"Nesta cansada jornada?
"Qual de nós vem majs cansada?"
FEITICEIRA.
Pitas, pitas, pitas, pitas,
DAS FARÇAS. 109

Patelas, patelas, patelas.


Bem venhais, minhas donzellas,
Linguadas frescas fritas.
DIA. Ó fauxe buxiere malvada,
Vaxites a buxions.
FKI. Ja tu tornas esses tons,
Tartaranha excommungada?
DIABO.
Mi gene mimie mi.
FEI. CaP-te, eramá pera ti,
E leixa-m'a mim fallar.
(diz <ís fadai)
Como vos vai nesse mar
Tão profundo e espaçoso?
(Rcsnondcin as Sereas cantando)
"Nosso mar he fortunoso,
"Nosso viver lacrimoso,
"E o chegar rigoroso
"Ao cabo desta jornada:
"Qual de nós vem mais cansada
"Nesta cansada jornada?"
FEITICEIRA.
Não podedes vós fallar,
Que respondedes cantando?
FAD. "NÓS partimos caminhando
"Com lagrimas suspirando,
"Sem saber como nem quando
"Fará fim nossa jornada.
"Qual de nós vem mais cansada
"Nesta cansada jornada?"
DIA. Melior cante le quien
Y le hoyssos de villé.
no LIVRO IV.

FEI. Cal'-te, corvo de Noé,


Que não sabes que cousa he
Cantar mal nem cantar bem.
Minhas flores da ribeira,
Descanço desta alma minha,
Rainhas da vida marinha,
Honrade ora esta romeira,
Fadae de linda maneira
Este estrado de bòs fados,
Que Deos lh'os dará dobrados.
Praza a elle que assim virá.
Fadão as Fadas a elRei e á Rainha, cada hüa por
sua vez.
' 1" FADA.
Os fados que derão ser ás estrellas,
Quando a terra estava vazia,
Facão caminhos a vossa alegria,
Por onde vos venha tão cara com'ellas.
E aquelles fados
Que pera dar dita são determinados,
Vos tragão as vossas das mais escolhidas,
E os instrumentos que alongão as vidas
Vos veja dobrados.
Os fados que derão orvalhos ás rosas
Visitem as flores do Vosso estrado,
E todo o cuidar de triste cuidado
Não hajão logar nas Altezas vossas.
E aquellas fadas
Que tem as ribeiras de verde pintadas,
Vos pintem as vidas d'alegre pintura,
E as altas sortes que parte Ventura
Vos sejão guardadas.
DAS FARÇAS. 111

2" FADA.
As cousas que fazem a terra parir
Lírios alvos e veas divinas,
Cerquem os quadros de vossas cortinas,
E sempre victoria vos faça dormir.
E a fada primeira
Que fez a Fortuna geral dispenseira,
E fez nossos mares e ceos por medida,
Vos faça gosar o gôso da vida
De nova maneira.
3í FADA.
As novas que temos nas ondas do mar
São que na terra ha pouca verdade;
E pois de verdades ha ma novidade,
Por novidades as haveis de tomar.
Ora he pera ver:
Tome Vossa Alteza qualquer que quizer,
Que todo he verdade as sortes que são,
Tornae desses sete planetas que hi vão
A que vos vier.
Aqui derão as sortes primeiramente a elRei.
Júpiter.
Este planeta escolhido
Escolheo, porque he profundo,
O mais alto bem do mundo..
Sol. (á Rainha)
Muitos bens deu Deos na terra,
Porém se este não viera,
Nunca nos amanhecera.
Cuptdo. (ao Príncipe)

Este Deos he muito amado


E adorado,
l i a LIVRO IV.

Porque tem domltação


Sobre toda a creação.
LÜtt. (á «ff«nt<- D. Isabel)

Esta Senhora Diana


Tem do Ceo sua feitura
E do sol a fermosura.
Venus. (" iff--"ite D- Be-it»'-)
A este planeta so
Olhão todas as estrellas,
Porque he mais clara que ellas.
Daqui adiante se seguem as sortes vcntureims dos ga-
lantes per animaes.
Camelo.
Este alegres novas traz
E leva tristes de si
Cada vez que vai daqui.
Marta.
Aqueste animal he forro,
Mostra-se de fora liso,
Mas de dentro não he isso.
Sagitário.
Este tem dous corações
Lastimados d'hum pezar
Que nunca s'ha d'acabar.
Arminho.
Este animal he prezado
De todo o inundo em geral,
E aqui fazem-lhe mal.
Cabra.
Este animal se apaccnta
Na mais áspera verdura,
Por exprimentar ventura.
DAS FARÇAS. 113

Furão.
Este ha mister açamado,
Porque he tão orgulhoso,
Que passa de querençoso.
Podengo.
Este animal alevanta
A caça, porque a cata;
Porém sempre outrein a mata.
Rato.
Este bonito animal
Não sei que faz o coitado,
Que sempre anda homesiado.
Cagado.
Quem tiver este animal
Não he muito que o leixe,
Pois não he carne nem peixe.
Camaleão.
Tem este fraco animal
Tão estranho alimento,
Que não se farta de vento.
Lobo.
Este morre com razão,
Porque tal contrairo tem,
Que emprega a morte bem.
Ouriço cacHeiro.
Este animal enganado
Cuida que anda escondido,
E elle he mais conhecido
Rebuçado.
Porco montez.
Este animal se recolhe

Vol. o i .
114 LIVRO IV.

As matas mais escondidas,


E lá lhe vão dar feridas.
Veado.
Este mui bravo animal
Em guardar-se tinha o tento,
Mas amor furtou-lhe o vento.
Corço.
Os saltos deste galante
Não o poderão salvar
D'hum mal que tem de passar.
Carneiro.
Este se hum amor o cobre,
D'hi a pouco se trosquia,
E logo outro novo cria.
Porco-esptm.
Destes ha poucos na terra:
Deve ser mui estimado
Da fortuna, e namorado
Sem ter guerra.
Usso.
Este animal tem ventura
E dita, porque he soffrido;
Ca soffrer he gran partido
Se atura.
Lontra.
Este nunca se contenta,
Nem contente se verá,
Porque quer o que hi não ha.
Gato.
Este animal he caseiro,
E não quer bem a Cupido:
DAS FARÇAS. 115

Tem amor a ser marido


Com dinheiro.
Leão.
Este mui forte animal
Nunca sabe que he temor,
Mas teme-se do amor
E não d'al.
Olicornio.
Esta rez he mui esquiva:
Caça-se c'hüa donzella,
E não per outra cautela
Se cativa.
Dromedário.
Este traz grandes carretos
E requere seu proveito,
Porém não pede direito.
Cavallo.
Este animal furioso
Se namora sem concerto,
Pois não ama em logar certo.
Galgo.
Este animal delicado
Não sei porque cansa a vida
Trás quem tem certa guarida.
Lebrel.
Este tem em pouco a vida,
E he bem que a dê barata,
Pois quer ferir a quem mata.
Bugio.
Este animal comprehendc
Quanto se pôde cuidar;

8*
116 LIVRO IV.

Porém o seu não fallar


Encobre e sofFre o qu'entende.
Touro.
Este, não sendo culpado,
He ferido,
E quanto mais, mais ardido.
Coelho.
Este cativo animal
He tão .vivo namorado,
Que ha de morrer a cajado.
Raposo.
Deste se devem guardar,
Que se finge manco e torto,
E ás vezes se faz morto,
Por caçar.
Alifante,
Aqueste so animal
Tem veias no coração,
Onde lagrimas estão.
Onça.
Este ligeiro animal,
Se de três saltos não caça,
Improviso leixa a caça.
Azemula.
A vida deste animal
He de noite em meijoada
E pela manhan palhada.
Sendeiro gallego.
Este he bom servidor;
Parece mui bem sellado,
Mas melhor he albardado.
DAS FARÇAS. 117

Rafeiro.
Este he falso e fagueiro,
Sorrateiro;
Quando virdes este cão,
Levae sempre hum pao na mão.
Doninha.
Este não he bem furão'
Nem gineta nem esquio:
He hum bichinho vadio.
Sortes das Damas per aves.
Falcão.
Esta ave tem crueldade
Sem piedade;
E quem na quizer tomar
Tem muito que suspirar.
Garça.
Esta ave he temerosa
E fermosa,
E não se toma por manha
Nem cahe senão por tacanha.
Melroa.
Esta ave he namorada
Declarada
E faz seu ninho de praça,
E tudo com muita graça.
Rousinol.
Esta ave tem seus amores
Co'as flores
Dous mezes, nó mais, no anuo;
Porém ama sem engano.
Águia.
Esta vence o sol co'a vista,
118 LIVRO IV

E cega toda relê


Que com ella tem mais fé.
Gavião.
Esta ave he mui ligeira
E lisongeira;
Desama logo por nada:
He fermosa e alterada
Em gran maneira.
Estorninho.
Esta ave he de condição,
Que se p3e ein grande altura,
E confia na ventura
Com razão.
Pomba.
Esta ave parece sancta,
Porque he dissimulada,
Mas no certo he refalsada.
Rola.
Esta deseja casar,
Mas quer bem tão escolhido,
Que temo que ha de ficar
Sem marido.
Pavão.
Esta ave ha tão namorada
Da fermosura que tem,
Que sei certo que a ninguém
Tem em nada.
Fentx.
Esta parceira não tem,
So faz vida em forte mata,
E não na mata ninguém,
Ella se mata.
DAS FARÇAS. 119

Ctrne.
Esta ave segue hum extremo.
Que cauta contra a razão,
Quando mata o coração.
Pega.
Esta ave nunca socega,
He galante e muito oufana;
Mas a hora que não engana
Não he pega.
Adam.
Esta se tem por real;
He tão brava e tão esquiva,
Que não quer ver cousa viva.
Alvela.
Esta avesinha fermosa
Faz que aguarda,
Mas. pardeos, mui bem se guarda.
Francelho.
Esta ave sempre peneira
E nunca deita farinha:
Tal sois vós, senhora minha.
Andorinha.
Esta ave bem assombrada
He confiada:
Seus amores vão e vem,
Nenhüa certeza tem.
Calhandra.
Esta nunca tem tristeza;
Sobe-se no ar cada hora,
E canta porque outrem chora.
Oja.
Esta ave segue hum temor;
120 LIVRO IV

Traz a relê assombrada,


Porque cada hora he mudada.
Gaivota.
Esta so ave s'enfuna
Na fortuna;
Não teme mar nem tormenta,
Nasceo forra e vive isenta.
Perdiz.
Esta ave muito prezada
He avisada;
E se a enganar alguém,
Juro a Deos que caça bem.
Grou.
Esta ave sempre vigia,
Nunca dorme assocegada,
Porque sonha noite e dia
Em ser casada.
Minhoto.
Esta ave diz-nos que vio,
Mas não póch? ver mais bem
Que a dama que ora o tem.
E acabadas de dar assi estas sortes, se forão todos com
sua musica, e se acabou a dita farça.
F I G U R A S .
IXEZ PEREIRA.
MÃE DE INEZ PEREIRA.
LEONOR VAZ.
PERO MARQUES.
LATÃO
Judeos casamenteiros.
VIDAL
ESCUDEIRO.
MOÇO DO ESCUDEIRO.
LUZIA.
FERNANDO.
HERMITÂO.

A seguinte farça de folgar foi representada ao muito


alto e mui poderoso Rei D. João o terceiro do nome em
Portugal, no seu Convento de Thomar, era do Senhor 1523.
O seu argumento he que, porquanto duvidavão certos homens
de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras,
ou se as furtava de outros autores, lhe derão este thema
sobre que fizesse: s. hum exemplo contmum que dizem:
Mais quero asno que me leve, que cavallo que
me derrube. E sabre este motivo se fez esta farça.
FARÇA DE INEZ PEREIRA.

Finge-se que Inez Pereira, filha de hüa mulher de


baixa sorte, muito fantasiosa, está lavrando em casa, e sua
mãe he a ouvir missa, e ella diz:
INEZ.
Renego deste lavrar
E do primeiro que o usou;
r

O diabo qu'eu o dou,


Que tão mao he de aturar.
Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva e que torinento,
Que cegueira e que canceira!
Eu hei de buscar maneira
D'algum outro aviamento.
Coitada, assi hei de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem aza,
Que sempre está n'utn lugar?
E assi hão de ser logrados
Dons dias amargurados
Que eu posso durar viva?
E assi hei d'estar captiva
Em poder de desfiados?
Commendo-me eu logo ó Demo
S'eu mais lavro nem pontada;
Ja tenho a vida cansada
De jazer sempre d'hum cabo.
DAS FARÇAS. 123

Todas folgão, e eu não,


Todas vem e todas vão
Onde querem, senão eu.
Hui! e que peccado he o meu,
Ou que dor de coração?
Esta vida he mais que morta.
Sam eu coruja ou corujo,
Ou sam algum caramujo,
Que não sàe senão á porta?
E quando me dão algum dia
Licença, como a bugia,
Que possa estar á janella,
He ja mais que a Madanella,
Quando achou a alleluía.
Vem a Mãe, e diz:
MÃE.
Logo eu adivinhei
Lá na missa onde eu estava,
Como a minha Inez lavrava
A tarefa que lh'eu dei.
Acaba esse travesseiro.
E naceo-te algum unheiro;
Ou cuidas que he dia sancto?
INE. Praza a Deos que algum quebranto
Me tire do captiveiro.
MÃE.
Toda tu estás aquella!
Chórão-te os filhos por pão?
INE. Prouvesse a Deos; que ja he razão
De eu não estar tão singela.
MXK.Olhade alli o mao pezar!
Como queres tu casar
i a 4 LIVRO IV.

Com fama de preguiçosa?


INE. Mas eu, mãe, sain aguçosa,
E vos dae-vos de vagar.
MÃE.
Ora espera assi, vejamos.
INE. Quem ja visse esse prazer.
MÃE.Cal'-te que poderá ser,
Qu'ante a páscoa vem os Ramos.
Não t'apresses tu, Inez,
Maior he o anno que o mez.
Quando te não precatares
Virão maridos a pares,
E filhos de três em três.
INEZ.
Q uero-m'ora alevantar;
Folgo mais de fallar nisso,
Assi me dê Deos o paraíso,
Mil vezes que não lavrar:
Isto não sei que me faz.
MÃE. Aqui vem Lianor Vaz.
INE. E ella vem-se benzendo.
Entra Leonor Vaz.
LEO. Jesu a que m'eu encommendo,
Quanta cousa que se faz!
MÃE.
Lianor Vaz, que foi isso?
LEO. Venho eu, mana, amarella?
MÃE. Mais ruiva que hüa panella.
LEO. Não sei como tenho siso.
Jesu! Jesu! que farei?
Não sei se me va a EIRei,
Se me va ao Cardial.
DAS FARÇAS. 125

MÃE.Como! e tamanho he o mal?


LEO. Tamanho? eu t'o direi.
Vinha agora pereli
O redor da minha vinha,
E huin clérigo, mana minha,
Pardeos, lançou mão de mi;
Não me podia valer,
Diz que havia de saber
Se era fêmea, se macho.
MÃE. Hui! seria algum inuchacho,
Que brincava por prazer.
LEONOR.
Si, mochaço sobejava.
Era hum zote tamanhouço!
Eu andava no retouço,
Tão rouca que não fallava,
Quando o vi pegar comigo,
Que m'achei naquelle p'rigo,
Assolverei, não assolverás —
— Jesus! homem, qu'has comtigo?
— Irman, eu te assolverei
Co breviairo de Braga.
— Que breviairo, ou que praga?
Que não quero: aqui d'elRei! —
Quando vio revolta a voda,
Foi e esfarrapou-me toda
O cabeção da camiza.
MÃE. Assi me fez dessa guisa
Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jogo,
E elle dae-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
126 LIVRO IV.

Riso em todo meu siso,


E elle leixou-me logo.
LEO. Si, agora, eramá,
Também eu me ria ca
Das cousas que me dizia:
Chamava-me luz do dia:
Nunca teu olho verá.
Se estivera de maneira
Sem ser rouca, bradar'eu;
Mas logo m'o demo deu
Catarrão e peitogueira,
Cócegas e cór de rir,
E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
Porém pude-me valer
Sem me ninguém acudir.
O demo Ce não pôde al ser)
Se chantou no corpo delle.
MÃE.Mana, conhecia-te elle?
LEO. Mas queria-me conhecer.
MÃE.Vistes vós tamanho mal!
LEO. EU m'irei ao Cardial,
E far-lh'hei assi mesura,
E contar-lhe-hei a aventura
Que achei no meu olival.
MÃE.
Não estás tu arranhada
De te carpir nas queixadas?
LEO. EU tenho as unhas cortadas,
E mais estou trosquiada:
E mais pera que era isso?
E mais pera que he o siso?
DAS FARÇAS. 127

E mais no meio da requesta


Veio hum homem de hüa besta,
Que em vê-lo vi o p'raiso,
E soltou-me, porque vinha
Bem contra sua vontade.
Porém, a fallar a verdade,
Ja eu andava cansadinha,
Não me valia rogar,
Nem me valia chamar
Áque de Vasco de Foes,
Acudi-me como soes!
E elle senão pegar.
— Mais mansa, Lianor Vaz,
Assi Deos te faça sancta.
— Trama te dê na garganta!
Como! isto assi se faz?
— Isto não releva nada.
— Tu não ves que sou casada?
MÃE. Deras-lhe ma ora boa
E mordêra-lo na c'roa.
LEO. Assi fora excommungada.
Não lhe dera hum empuxâo,
Porque sou tão maviosa,
Que he cousa maravilhosa;
E esta he a concrusão.
Leixemos isto. Eu venho
Com grande amor que vos tenho,
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e o amigo
Mais aquenta que bom lenho.
Inez Pereira he concertada
Pera casar com alguém?
128 LIVRO IV.

MÃE. Atégora com ninguém


Não he ella embaraçada.
LEO. EU VOS trago hum casamento,
Em nome do Anjo bento:
Filha, não sei se vos praz.
INE. E quando, Lianor Vaz?
LEO. EU VOS trago aviamento.
INEZ.
Porém não hei de casar
Senão com home' avisado:
Ainda que pobre pellado,
Seja discreto em fallar.
LEO. EU vos trago hum bom marido,
Rico, honrado, conhecido:
Diz que em cainiza vos quer.
INE. Primeiro eu hei de saber
Se he parvo, se sabido.
LEONOR.
Nesta carta que aqui vem
Pera vós, filha, d'amores,
Veredes, minhas flores,
A descrição que elle tem.
INE. Mostrae-m'a ca, quero ver.
LEOV Tornae: e sabedes vós ler?
MÃE.Hui! e ella sabe latim,
E gramateca e alfaqui,
E tudo quanto ella quer.
INEZ (lê a carta.)
Senhora amiga Inez Pereira,
Pero Marques vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
DAS FARÇAS. 129

M'encommendo, e mais digo,


Digo que benza-vos Deos,
Que vos fez de tão bom geito:
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa mãe de vós.
Ainda que eu vos vi
EsVoutro dia de folgar,
E não quizestes bailar,
Nem cantar diante mi
Na voda de seu avô.
Ou onde me vio ora elle?
Lianor Vaz, este he elle?
LEO. Lede a carta sem dó,
Qu'inda eu sam contente delle?
INEZ (prosegne na leitnrn.)

Nem cantar presente mi,


Pois Deos sabe a rebentinha
Que me fizestes então.
Ora, Inez, que hajais benção
De vosso pae e a minha,
Que venha isto a concrusão.
Viste tão parvo villão?
Eu nunca tal cousa vi
Nem tanto fora de mão.
LEONOR.
Quereis casar a prazer
No tempo d'agora, Inez?
Antes casa, emque te pêz,
Que não he tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer,
Ou seja sapo ou sapinho,
Ou marido ou maridinho,
Vol. 111.
130 LIVRO IV.

Tenha o que houver mister,


Este he o certo caminho.
MÃE.
Pardeos, amiga, essa he ella;
Mata o cavallo de sella,
E bô he o asno que me leva.
LEO. Filha, no chão do Couse,
Quem não puder andar choute.
Mais quero eu quem m'adore,
Que quem faça com que chore.
Chamâ-lo-hei, Inez? INE. Si,
Venha e veja-me a mi,
Quero ver, quando me vir,
Se perderá o presumir
Logo em chegando aqui,
Pera me fartar de rir.
MÃE,
Touca-te, se ca vier,
Pois que pera casar anda.
INE. Essa he boa demanda!
Ceremonias ha mister
Homem que tál carta manda?
Eu o estou ca, pintando:
Sabeis, mãe, que eu adivinho?
Deve ser hum villãosinho . . . .
Ei-lo se vem penteando:
Será com algum ancinho?
Vem Pero Marques e diz:
PERO.
Homem que vai donde eu vou
Não se deve de correr;
Ria embora quem quizer,
DAS FARÇAS. 131

Que eu em meu siso estou.


Não sei onde mora aqui:
Olhae que m'esquece a mi!
Eu creio que nesta rua,
E esta parreira he sua:
Ja conheço que he aqui.
(Chega a casa de Inez Pereira.)

Digo que esteis muito embora.


Folguei ora de vir ca.
Eu vos escrevi de lá
Hüa cartinha, senhora:
E assi que de maneira...
MÃE. Tornae aquella cadeira.
PKR. E que vale aqui hüa destas?
INK. (Oh Jesu! que Jam das bestas!
Olhae aquella canseira.)
(Assenton-se com as costas para ellas, e diz :)

PERO.
Eu cuido que não 'stou bem.
MÃE. Como vos chamais, amigo?
PKR. EU Pero Marques ine digo,
Como meu pae que Deos tem.
Falleceo (perdoe-lhe Deos,
Que fora bem escusado)
E ficamos dous hereos,
Porém meu he o morgado.
MÃE. De morgado he vosso estado?
Isso viria dos ceos.
PERO.
Mais gado tenho eu ja quanto,
E o maior de todo o gado,
Digo maior algum tanto.
9*
132 LIVRO IV.

E desejo ser casado,


Prouguesse ao Spirito Sancto,
Com Inez; que eu me espanto
Quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
E eu de bem er tainbem.
Ora vós er ide vendo
Se lhe vem melhor alguém,
A segundo o qu'eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
Peras da minha pereira:
Hão de estar na derradeira.
Tende ora, Inez per hi.
INE. E isso hei de ter mão?
PER. Deitae as peas no chão.
INE. A S perlas pera enfiar,
Três chocalhos e hum novelo,
E as peas no capello: —
E as peras onde estão?
PEno.
Nunca tal m'acconteceo:
Algum rapaz in'as comeo;
Que as metti no capello,
E ficou aqui o novelo,
E o pentem não se perdeo:
Pois trazi'-as de boamente.
INE. Fresco vinha ahi o presente
Com folhinas borrifadas.
PER. Não qu'ellas vinhão chentadas
Ca em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem,
Sos nos leixou ella assi?
DAS FARÇAS. 133

CantYu quero-m'ir daqui,


Não diga algum demo alguém—
INK. VÓS que m'havieis de fazer,
Nem ninguém que ha de dizer?
O gallante despejado!
PKR. Se eu fora ja casado,
D'outra arte havia de ser,
Como homem de bom peccado.
INEZ (a- parte.)

Quão desviado este está!


Todos andão por caçar
Suas damas sem casar,
E este, tomade-o lá!
PKR. Vossa mãe he lá no muro?
INK. Minha mãe e vós seguro
Que ella venha ca dormir.
PKR. Pois, senhora, eu quero-me ir
Antes que venha o escuro.
INE. E não cureis mais de vir.
PERO.
Virá ca Lianor Vaz,
Veremos que lhe dizeis.
I.NE. Homem, não aporfieis,
Que não quero, nem me praz.
Ide casar a Cascaes.
PER. Não vos anojarei mais,
Aindaque saiba estalar;
E prometto não casar
Até que vós não queirais.
Estas vos são ellas a vós;
Anda liome a gastar calçado,
E quando cuida que he aviado,
134 LIVRO IV.

Escarnefuchão de vós.
Creio que lá fica a pea:
Pardeos! bô ia eu á aldea. —
Senhora, ca fica o fato.
INE. Olhae se o levou o gato.
PER. Inda não tendes candea?
Ponho per cajo que alguém
Vem como eu vim agora,
E vós a escuras a tal hora:
Pârece-vos que será bem?
Ficae-vos ora com Deos:
Cerrae a porta sobre vós
Com vossa candeiasinha;
E siquaes sereis vós minha,
Entonces veremos nós. (Vai-se.)
INEZ.
Pessoa conheço eu
Que levara outro caminho.
Casae lá c'hum villãosinho,
Mais covarde que hum judeu!
Se fora outro homem agora,
E me topara a tal hora,
Estando comigo ás escuras,
Dissera-me mil doçuras,
Ainda que mais não fora.
MÃE.
Pero Marques foi-se ja?
INE. E pera que era elle aqui?
MÃE. E não fagrada elle a ti?
INE. Va-se muitieramá;
Que sempre disse e direi,
Mãe, eu me não casarei
DAS FARÇAS. 135

Senão com homem discreto,


E assi vo-lo prometto,
Ou antes o leixarei.
Que seja homem mal feito,
Feio, pobre, sem feição,
Como tiver descrição,
Não lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
E coma eu pão e cebola.
Siquer hüa cantiguinha,
Discreto, feito em farinha,
Porque isto me degola.
MÃE.
Sempre tu lias de bailar,
E sempre elle ha de tanger?
Se não tiveres que comer,
O tanger te ha de fartar?
INE. Cada louco com sua teima.
Com hüa borda de boleiina,
E hüa vez d'agua fria,
Não quero mais cada dia.
MÃE.Como ás vezes isso queima!
E qifhe d'esses escudeiros?
INK. EU fallei hontem alli,
Que passarão por aqui
Os Judeos casamenteiros,
E hão de vir agora aqui.
Vem os Judeos casamenteiros, La tão c Vi dal, <•• diz
LAT. OU de ca. INE. Quem 'stá lá?
VID. Nome dei üeo aqui somos.
LAT. Não sabeis quão longe fomos.
Viu. Corremos a ieramá.
136 LIVRO IV.

Este e eu. LAT. EU e este,


Pela lama e pelo pó,
Que era pera haver dó,
Com chuiva, sol e noroeste.
Foi a coisa de maneira,
Tal friura e tal canceira,
Que trago as tripas maçadas:
Assi me fadem boas fadas
Que me saltou caganeira —
Pera vossa mercê ver
O que nos encominendou.
LAT. O que nos encommendou
Será o que hoiver de ser.
Todo este inundo he fadiga.
Vós dixestes, filha amiga,
Que vos buscássemos logo.
VID. E logo pujemos fogo.
LAT. CaP-te. VID. Não queres que diga?
Não fui eu também comtigo?
Tu e eu não somos eu,
Tu judeu e eu judeu ?
Não somos massa d'hum trigo?
LAT. Leixae-me fallar. VID. Ja calo.
Senhora, fomos. Agora fallo,
Ou fallas tu? LAT. Dize, que dizias?
Que foste, que fomos, que ias
Buscá-lo, csgra vaiá-lo.
VIDAL.
Vós quereis, Amor, marido
Mui discreto, e de viola?
LAT. Esta moça não he tola,
Que quer casar por sentido.
DAS FARÇAS. 137

VID. Judeu, queres-me leixar?


LAT. Leixo, não quero fallar.
Vn>. Buscamo-lo... LAT. Demo foi logo,
Crede que o vosso rogo
Vencerá o Tejo e o mar.
Eu cuido que fallo e calo:
Fallo eu agora ou não?
Eu fallo se vem á mão;
Não digas que não te fallo.
INK. Não fallará hum de vós?
Ja queria saber isso.
MÃE. Que siso, Inez, que siso
Tens debaixo desses veos!
INEZ.
Diz o exemplo da velha,
O que não haveis de comer
Leixae-o a outrein mexer.
MÃE. Mao conselho te aconselha.
INK. Judeos, que- novas trazeis?
VID. O marido que quereis
De viola e dessa sorte
Não no ha senão na corte,
Que ca não no achareis.
Falíamos a Badajoz,
Musico, discreto, solteiro;
Este fora o verdadeiro,
Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilha Castim,
E fallou-nos em latim:
Vinde ca daqui a hum'hora,
E trazei-nvessa senhora.
INK. Assi que he tudo nada em fim?
138 LIVRO IV.

VID AL.
Esperae, aguardae ora.
Soubemos d'hum escudeiro
De feição d'atafoneiro,
Que virá logo essora,
Que falia, e como ora falia
Qu'estrugirá esta sala,
E tange, e como ora tange
E alcança quanto abrange,
E se preza bem de gala.
Vem o Escudeiro com seu Moço, c diz:
ESCUDEIRO.
Se esta senhora he tal
Como os Judeos nos gabarão,
Certo os anjos a pintarão,
E não pétíe ser hi al.
Diz que os olhos com que via
Forão de Sancta Luzia,
E cabellos de Madanella.
Se fosse moça tão bella,
Como donzella seria?
Moça de villa será ella
Com sinalzinho postiço,
E sarnosa no toutiço,
Como burra de Castella.
E assi como chegar,
Cumpre-me bem d'attentar
Se he garrida, se he honesta,
Porque o melhor da festa
He achar siso e calar.
MÃE.
Se este Escudeiro ha de vir,
DAS FARÇAS. 139

E he homem de descrição,
Has-te de pôr em feição
De fallar pouco e não rir.
E mais, Inez, não muito olhar,
E muito chão o menear,
Porque te julguem por muda;
Porque a moça sisuda
He hüa perla para amar.
ESCUDEIRO.
Olha ca, Fernando, eu vou
Ver a com qu'hei de casar:
Avisa-te, que has de estar
Sem barrete onde eu estou.
Moç. Como a Rei! Corpo de mi,
Mui bem vai isso assi.
Esc. E se cuspir pela ventura,
Põe-lhe o pe e faz mesura.
Moço.
Ainda eu isso não vi.
Esc. E se ine vires mentir,
Gabando-me de privado,
Está tu dissimulado,
Ou sae-te pera fora a rir.
Isto tfaviso daqui,
Faze-o por amor de mi.
Moç. Porém, senhor, digo eu
Que mao calçado he o meu
Pera estas vistas assi.
ESCUDEIRO.
Que farei, que o sapateiro
Não tem solas, nem tem pelle?
Moç. Sapatos me daria elle,
140 LIVRO IV.

Se me vós desseis dinheiro.


Esc. Eu o haverei agora,
E mais calças te prometto.
Moç. Homem que não tem nem preto,
Casa muito na ma ora.
Chega o Escudeiro onde está Inez Pereira, e diz:
ESCUDEIRO.
Antes que mais diga agora,
Deos vos salve, fresca rosa,
E vos dê por minha esposa,
Por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzella,
Que vós sois, minha alma, aquella
Que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
Ein vos dar tal condição,
Que amais a descrição
Muito mais que a riqueza.
Bem parece
Que a descrição merece
Gosar vossa fermosura,
Que he tal que da ventura
Outra tal não s'accontece.
Senhora, eu me contento
Receber-vos como estais;
Se vós não vos contentais, -
O vosso contentamento
Pôde fallecer no mais.
LAT. Como falia!
VID. E cila como se cala!
DAS FARÇAS. 141

Este ha de ser seu marido,


Segundo a cousa s'abala.
ESCUDEIRO.
EU não tenho mais de meu,
Somente ser comprador
Do Marichal meu senhor,
E sain escudeiro seu.
Sei bem ler,
E muito bem escrever,
E bom jogador de bola,
E quanto a tanger viola,
Logo ine vereis tanger.
Moço, que estás lá olhando?
Moç. Que manda Vossa Mercê?
Esc. Que venhais ca. Moç. Pera que?
Esc. Porque faças o que eu mando.
Moç. Logo vou.
O diabo me tomou
Sair-me de Jam Montez
Por servir hum tavanés,
Mor doudo que Deos criou.
ESCUDEIRO.
Fui despedir hum rapaz,
Por tomar este ladrão,
Que valia Perpinhão.
Moço! Moç. Que vos praz?
Esc. A viola.
Moç. Oh como ficará tola,
Se não fosse casar ante
Co mais safeo bargante
Que come pão e cebola.
Ei-la aqui bem temperada;
143 LIVRO IV.

Não tendes que temperar.


Esc. Faria bem de t'a quebrar
Na cabeça bem migada.
Moç. E se ella he emprestada,
Quem na havia de pagar?
Meu amo, eu quero-me ir.
Esc. E quando queres partir?
Moç. Logo quero começar.
Determino de partir
Ante que venha o Inverno,
Porque vós não dais govêmo
Pera vos ninguém servir.
Esc. Não dormes tu que te farte?
Moç. No chão, e o telhado por manta,
E sarra»se-me a garganta
De fome. Esc. Isso tem arte.
Moço. *
Vós sempre zombais assi.
Esc. Oh que boas vozes tem
Esta viola aqui.
Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.
MÃE. Agora vos digo eu
Que Inez está no paraiso.
INE. Que tendes de ver com isso?
Todo o mal ha de ser meu.
MÃE.
Oh como he seca a velhice!
INE. Leixae-me ouvir e folgar,
Que não m'hei d'eu contentar
De casar com parvoice.
Pôde ser maior riqueza
DAS FARÇAS. 143

Que hum homem avisado?


MÃE. Muitas vezes, mal peccado,
He melhor boa simpreza.
LATA o.
Ora ouvi e ou vireis,
Dizei algüa cantadella,
Namorae esta donzella,
E esta cantiga direis:
"Canas do amor canas
"Canas do amor.
"Polo longo de hum rio
"Canaval está florido,
"Canas do amor."
Canta o Escudeiro o romance de "Mal me quieren en
Castilla," e diz
V I D AL.
Latão, ja o somno he comigo,
Como oiço cantar guaiado,
Que não vai esfandangado.
LAT. E he o demo qu'eu digo.
Viste cantar "Danaso
Pelo mar vai á vela,
Vela vai pelo mar"?
VDJAL.
Filha Inez, assi vivais
Que tomeis esse senhor
Escudeiro cantador
E caçador de pardaes,
Sabedor, revolvedor,
Fallador, gracejador,
Affeitado pola mão,
444 LIVRO IV.

E sabe de gavião:
Tomae-o por meu amor.
Podeis topar hum rabugento,
Desmazelado, baboso,
Descancarado, brigoso,
Medroso, carapatento.
Este escudeiro, aosadas,
Onde se derem pancadas,
Elle as ha de levar
Boas, se não apanhar:
Nelle tendes boas fadas.
MÃE.
Quero rir com toda a mágoa
Destes teus casamenteiros.
Nunca vi Judeos ferreiros
Aturar também a fragoa.
Não te he, melhor, mal por mal,
Inez, hum bom official,
Que te ganhe nessa praça,
Que he hum escravo de graça,
E mais casas com teu igual?
LATÃO.
Senhora, perdei cuidado:
O que ha de ser, hade ser;
E ninguém pôde tolher
O que está determinado.
VID. Assi diz Rabizarão.
MÃE. Inez, guar'-te de rascão:
Escudeiro queres tu?
INE. Jesu nome de Jesu!
Quão fora sois de feição!
Ja minha mãe adivinha.
DAS FARÇAS. 145

Folgastes vós na verdade


Casar á vossa vontade,
Eu quero casar á minha.
MÃE. Casa, filha, muifembora.
Esc. Dae-me ca essa mão, senhora.
INE. Senhor, de mui boa mente.
TSsc. Per palavras de presente
Vos recebo desde agora.
Nome de Deos assim seja,
Eu Braz da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós Inez Pereira
Por esposa verdadeira,
Como manda a Sancta Igreja.
INE. EU aqui diante Deos,
Inez Pereira recebo a vós,
Sem mais preço nem demanda,
Como a Sancta Igreja manda,
A Braz da Mata. LAT. Ahi somos. nós.
VIDAL.
Ajça inaniin dona, ó dona, ha,
Arrea especula,
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Pharaó
Espantou e espantará:
Bento o Deu de Abraham,
Benta a terra de Canaam.
Pera bem sejais casados.
Dae-nos ca senhos ducados.
MÃE. Amanhan vo-los darão.
Pois assi he, bem será
Que não passe isto assi:
Eu quero chegar alli
í 0
Vol. 111.
146 LIVRO IV.

Chamar meus amigos ca,


E bailarão de terreiro. (s»i»*>
Esc. Oh! quem me fôra solteiro!
INE. Ja vós vos arrependeis?
Esc. Ó esposa, não falleis,
Que casar he captiveiro.
Vem a Mae com certas moças e mancebos pera fazerem
festa, e diz huma dellas, per nome Luzia:
LUZIA.
Inez, por teu bem te seja:
Oh que esposo e que alegria!
INE. Venhas embora, Luzia,
E cedo t'eu assi veja.
MÃE. Ora vae tu alli, Inez,
E bailareis três por três.
FER. TU comnosco, Luzia, aqui;
E a desposada alli:
Ora vede qual direis.
Cántão todos de terreiro:
"Mal herida iba Ia garza
" Enamorada
"Sola va y gritos daba."
E acabando de cantar e bailar diz
FERNANDO.
Ora senhores honrados,
Ficae com vossa mercê,
E nosso Senhor vos dê
Com que vivais descansados.
Luz. Ficae com Deos, desposados,
Com prazer e com saúde,
E sempre elle vos ajude
Com que vivais descansados.
DAS FARÇAS. 147

Esta festa foi agora,


Mas melhor será outrora.
MÃE.
Ficae com Deos, filha minha,
Não virei ca tão asinha:
A minha benção hajais.
Esta casa em que ficais
Vos dou e vou-me á casinha.
Senhor filho e senhor meu,
Pois que ja Inez he vossa,
Vossa mulher e esposa,
Encommendo-vo-Ia eu.
E pois que desque naceo
A outrem não conheceo,
Senão a vós, senhor,
Que lhe tenhais muito amor,
Que amado sejais no ceo. (Vai-se.)
ESCUDEIRO.
E vós cantais, Inez Pereira?
Em vodas m'andaveis vós?
Juro ao corpo de Deos
Que esta seja a derradeira.
Se vos eu vejo cantar,
Eu vos farei assobiar.
INE. Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO.
Mas he bem que o escuseis,
E outras cousas que não digo.
INK. Porque bradais vós comigo?
Esc. Será bem que vos caleis,
10*
148 LIVRO IV.

E mais sereis avisada


Que não me respondereis nada,
Emque ponha fogo a tudo;
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de fallar
Com homem, nem mulher que seja;
Somente ir á Igreja
Não vos quero eu leixar.
Ja vos preguei as janellas,
Porque não vos ponhais nellas;
Estareis aqui encerrada
Nesta casa tão fechada,
Como freira d'Oudivellas.
INEZ.
Que peccado foi o meu ?
Porque me dais tal prizão?
Esc. Vós buscastes descrição,
Que culpa vos tenho eu?
Pôde ser maior aviso,
Maior descrição e siso
Que guardar o meu thesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro ?
Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar
Em casa somente hum pello;
S'eu disser isto he novello,
Havei-lo de confirmar.
E mais, quando eu vier
De fora, haveis de tremer,
E cousa que vós digais
DAS FARÇAS. 149

Não vos ha de valer mais


Daquillo que eu quizer. —
Moço, ás partes d'alem
Vou-me fazer cavalleiro.
Moç. Se vós tivesseis dinheiro,
Não seria senão bem.
Esc. Tu has de ficar aqui.
Olha, por amor de mi,
O que faz tua senhora:
Fecha-la-has sempre de fora. —
Vós lavrae, ficae per hi.
Moço.
Co dinheiro que leixais
Não comerei eu gallinhas.
Esc. Vae-te tu per essas vinhas;
Que diabo queres mais?
Moç.Olhae, olhae, como rima!
E depois de ida a vendima?
Esc. Apanha desse rabisco.
Moç. Pezar ora de Sanpisco
E convidarei minha prima.
E o rabisco acabado,
lr-m'hei espojar ás eiras?
Esc. Vae-te per essas figueiras
E farta-te, desmazelado.
Moç. Assi! Esc. Pois que cuidavas?
E depois virão as favas —
Conheces tuberas da terra?
Moç. I-vos vós embora á guerra,
Qu'eu vos guardarei oitavas.
Ido o Escudeiro, diz o Moço:
150 LIVRO IV.

Moço.
Senhora, o que elle mandou
Não posso menos fazer.
INE. Pois que te dá de comer,
Faze o que fencommendou.
Moç. Vós fartae-vos de lavrar,
Eu me vou desenfadar
Com essas moças lá fora:
Vós perdoae-me, senhora,
Porque vos hei de fechar. (vai-se.)
Fica fechada Inez Pereira, e lavrando canta.
INEZ.
"Quem bem tem e mal escolhe,
"Por mal que lhe venha não se anoje."
Renego da descrição,
Commendo ó demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Stava a boa condição:
Cuidei que fossem cavalheiros
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios, de desvarios,
E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavallarias,
Vede ja que Mouros mata
Quem sua mulher maltrata,
Sem lhe dar de paz hum dia.
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em valle,
Nem Mouro que chamem Alie;
E assi deve de ser.
DAS FARÇAS. 151

Juro em todo meu sentido


Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
Á boa fé sem mao engano,
Pacífico todo o anno,
E que ande a meu mandar:
Havia-m'eu de vingar
Deste mal e deste damuo.
Entra o Moço com huma carta.
Moço.
Esta carta vem d'alem,
Creio que he de meu senhor.
INK. Mostrae ca, meu guarda-mor,
E veremos o que hi vem. (i>- » sowscripto)
A senhora mui presada
Inez Pereira da Grãa,
Á senhora minha irmãa,
Em Thomar lhe seja dada.
De meu irmão; venha embora.
Moç. Vosso irmão está em Arzila?
Eu apostarei que hi vem
Nova de meu senhor também.
INK. J a elle partio de Tavila?
Moç. Ha três mezes que he passado.
INK. Aqui virá logo recado
Se lhe vai bem ou que faz.
Moç. Bem pequena he a carta assaa.
INE. Carta de homem avisado. ('<-)
Muito honrada irman,
Esforçae o coração
E tornae por devação
152 LIVRO IV.

De querer o que Deos quer; ..


E isto que quer dizer?
E não vos maravilheis
De cousa que o mundo faça,
Que sempre nos embaraça
Com cousas. Sabei que indo.
Vosso marido fugindo
Da batalha para a villa,
Meia légua de Arzila
O matou hum Mouro pastor.
Moç. Oh meu amo e meu senhor!
INEZ.
Dae-ine vós ca essa chave,
E i buscar vossa vida.
Moç. Oh que triste despedida!
INE. Oh que nova tão suave!
Desatado he o nó.
S'eu por elle ponho dó,
O diabo m'arrebente:
Para mim era valente,
E matou-o hum Mouro so.
Guardar de cavalleirão
Barbudo, repelenado,
Que em figura d'avisado
He maligno e sotrancão.
Agora quero tomar
Para boa vida gosar
Hum muito manso marido;
Não no quero ja sabido,
Pois tão caro ha de custar.
Vem Leonor Vaz visitá-la, e ella finge-se muito anojatla.
DAS FARÇAS. 153

LEONOR.
Como estais, Inez Pereira?
INE. Muito triste, Lianor Vaz.
LEO. Que fareis ao que Deos faz?
INE. Casei por minha canceira.
LEO. Se ficaste prenhe, basta.
INE. Bem quizera eu delle casta,
Mas não quiz minha ventura.
LEO. Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer,
Casade vós, filha minha.
INE. Jesu! Jesu! tão asinha?
Isso havieis de dizer?
Quem perdeo hum tal marido,
Tão discreto e tão sabido,
E tão amigo de minha vida?
LEO. Dae isso por esquecido,
E buscae outra guarida.
Pero Marques tem que herdou
Fazenda de mil cruzados;
Mas vós quereis avisados.
INE. Não; ja esse tempo passou:
Sobre quantos mestres são
Exp'riencia dá lição.
LEO. Pois tendes esse saber,
Querei ora a quem vos quer,
Dae ó demo a opinião.
Vai-se Leonor Vaz por Pero Marques.
INEZ.
Andar: Pero Marques seja;
Quero tomar por esposo
154 LIVRO IV.

Quem se tenha por ditoso


De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavallo folão;
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.
Vem Leonor Vaz com Pero Marques.
LEONOR.
Nó mais ceremonias agora;
Abraçae Inez Pereira
Por mulher e por parceira.
PKR. Ah, eu m'empacho ma ora
Quanto a dizer abraçar;
Depois que a eu usar
Entonces poderá ser.
INK. Não lhe quero mais saber;
Ja me quero contentar.
LEONOR.
Ora dae-me essas mãos ca:
Sabeis as palavras? si!
PER. Ensinárão-m'as a mi,
Porém esquecem-me ja.
LBO. Ora dizei como eu digo.
PKR. E tendes vós aqui trigo
Pera nos geitar por riba?
LEO. Inda he cedo, como rima!
PKR. Soma vós casais comigo,
E eu comvosco, pardelhas:
Não compre aqui mais fallar.
E quando vos eu negar,
Que me cortem as orelhas.
DAS FARÇAS. 155

LEO. Vou-me; ficae-vos embora. (Tai-se.)


INE. Marido, e sahirei eu agora,
Que ha muito que não sahi?
PER. Sim, mulher, sahi vós hi,
Qu'eu me sahirei p'ra fora.
INE. Marido, não digo disso.
PER. Pois que dizeis vós, mulher?
INE. Ir folgar onde eu quizer.
PER. Ide onde quizerdes ir,
Vinde quando quizerdes vir,
Stae quando quizerdes 'star:
Com que podeis vós folgar
Qu'eu não deva consentir?
Vem hum Ermitão pedir esmola e diz:
ERMITÃO.
Senores, por caridad
Dad limosna al dolorido
Ermitano de Cupido
Para siempre en soledad,
Pues su siervo soy nacido.
Por ejemplo,
Me meti en su santo templo
Ermitano en pobre ermita,
Abastada de infinita
Tristeza en que contemplo.
Adonde reso mis horas
Y mis dias y mis anos,
Mis servicios y mis danos,
Donde tú, mi alma, lloras
Dolor de tantos enganos.
Y acabando
Las horas, todas Uorando,
156 LIVRO IV.

Tomo las cuentas una y una,


Con que tomo á Ia fortuna
Cuenta dei mal en que ando,
Sin esperar paga alguna.
Y ansí sin esperanza
De cobrar Io merecido,
Sirvo alli mi Dios Cupido
Con tanto amor sin inudanza,
Que soy su santo escogido.
O senores,
Los que bien os va de amores,
Dad limosna al sin holgura,
Que habita en sierra escura,
Uno de los amadores
Que tuvo menos ventura.
Y rogaré al Dios de mi,
En que mis sentidos traigo,
Que recibais mejor pago
De Io que yo recebi
En esta vida que hago.
Y resaré,
Con gran devocion y fe,
Que Dios os libre de engano,
Que eso me hizo ermitano,
Y para siempre seré,
Pues para siempre es mi daiío.
INEZ.
Olhae ca, marido amigo,
Eu tenho por devação
Dar esmola a hum ermitão,
E não vades vós comigo.
PKR. I-vos embora, mulher,
DAS FARÇAS. 157

Não tenho lá que fazer.


INE. Tornae a esmola, padre, lá,
Pois que Deos vos trouxe aqui.
ERM. Sea por amor de mi
Vuesa buena caridá.
Deo gracias, mi senora,
La limosna mata el pecado,
Y vos teneis buen cuidado
De ser de mi matadora.
Debéis saber,
Para merced me hacer,
Que por vos soy ermitano,
Y aun mas os desengano
Que esperanza de os ver
Me hizo vestir tal pano.
INEZ.
Jesus, Jesus, manas minhas!
Sois vós aquelie que huui dia
Ein casa de minha tia
Me mandastes camarinhas;
E quando aprendia a lavrar
Mandaiveis-ine tanta cousinha?
Eu era ainda Inezinha,
Não vos queria fallar.
ERMITÃO.
Senora, téngoos servido,
Y vos á mi despreciado;
Haced que el tiempo pasado
No se cuente por perdido.
INE. Padre, mui bem vos entendo.
O demo que vos eu encommendo,
Que bem sabeis vós pedir!
158 LIVRO IV.

Eu determino lá d'ir
Á ermida, Deos querendo.
ERM. Y cuando? INE. I-VOS, meu santo,
Que eu irei hum dia destes
Muito cedo e muito prestes.
ERM. Senora, yo me voy en tanto.
INEZ.
Em tudo he bô a eoncrusão.
Marido, aquelle ermitão
He hum anginho de Deos.
PER. Corregê vós esses veos,
E ponde-vos em feição.
INE. Sabeis vós o que eu queria?
PKR. Que quereis, minha mulher?
INE. Que houvesseis por prazer
De irmos lá em romaria.
PERO.
Seja logo sem deter:
INE. Ora este caminho he comprido,
Contae huma historia, marido.
PER. Bofá que me praz, mulher.
INE. Passemos primeiro o rio.
Descalsae-vos. PKR. Assi ha de ser?
INE. E pois como?
E levar-me-heis no liombro,
Não me corte a madre o frio.
(Põe-se án costa* do marido.)

Assi. PER. Ides á vossa vontade?


INE. Como estar no paraíso.
PER. Muito folgo eu com isso
INK. Esperade ora, esperade;
Olhae que lousas aquellas,
DAS FARÇAS. 159

Pera poer as talhas nellas.


PER. Quereis que as leve?
INE. Sim: hüa aqui, e outra aqui.
Oh como folgo com ellas!
Captemos. PER. Se vós quereis.
INE. E VÓS me respondereis
A tudo quanto eu cantar:
Pois assi se fazem as comas.
(Canta.)

"Marido cuco me levades


" E mais duas lousas."
PER. "Pois assi se fazem as cousas."
INE. "Bem sabedes vós, marido,
"Quanto vos quero;
"Sempre fostes percebido
"Pera cervo:
"Agora vos tomou o demo
"Com duas lousas."
PER\ "Pois assi se fazem as cousas."
INE. "Bem sabedes vós, marido,
"Quanto vos amo,
"Sempre fostes percebido
"Pera gamo.
"Carregado ides, noss'amo,
"Com duas lousas."
PER. "Pois assi se fazem as cousas."
E assi vão e acaba a dita Farça.

, ^ , s .^^f*!
F I G U R A S .
PERO MARQUES.
PORTEIRO.
FERREIRO.
VASCO AFFONSO.
ANNA DIAS.
SAPATEIRO.
ESCUDEIRO.
MOÇO DO ESCUDEIRO.
PREGUIÇOSO.
BAILADOR.
AMADOR.
BRIGOSO.

Esta farça que se adiante segue he o seu argumento


desta maneira: Diz o Autor que este Pero Marques, como
foi casado com Inez Pereira, se forão morar onde elle tinha
sua fazenda, que era lá na Beira, onde o fizerão Juiz.
E porque dava algumas sentenças desformes por ser homem
simprez, foi chamado á Corte, e mandárão-lhe que fizesse
hüa audiência diante d'ElRci. Foi representada ao muito
nobre e christianissimo Rei D. João, o terceiro cm Portugal
deste nome, em Almeirim na era do Senhor de 1625.
O JUIZ DA BEIRA.

Entra Pero Marques dizendo:


PERO.
Olhae vós bem qu'este sam eu
Homem de boa ventura,
Empacho nunca m'atura,
E hei de dizer o meu
Coma qualquer criatura.
Pero Marques sam da Beira
E juiz mexericado;
Derão-me lá hum Julgado
Por cajo de Inez Pereira,
Com que embora sam casado.
Passou-se ca hum mandado,
Nega por me dar canceira,
Que logo em toda maneira
Viesse, e vim emprazado
Bofá com fraca esmoleira.
E porque me tem tenção
Diogo Lopes de Carvalho,
Por me metter em trabalho,
Diz que não cumpro a Ordenação,
E que pera juiz não valho.
Qu'elle he muito d'apertar
Com juizes de siqueiro.
Ora eu por não ser páceiro,
Vim ca pera m'amostrar
Vol. in. 11
i n LIVRO IV.

Que sou eu homem inteiro.


Ora assi que de maneira
Minha hóspeda Inez Pereira
(Deos a benza!) sabe ler,
E quanto me faz mister
Pera eu ir pola carreira.
De que eu contente sam,
Soina avonda que assi
Lê-me ella o caderno alli
Onde s'he a ordenaçam
De cabo a rabo ein par de mi
Do que pertence ao juiz:
E assi como ella diz
Assi xe-mo faço eu;
E em terra de Vizeu
Ninguém não me contradiz.
Vem hum Porteiro apregoando.
PORTEIRO.
Quem quizer vir arrendar
As chamecas de Coruche,
Antes que o lanço mais puxe,
Que se querem arrematar.
São terras novas guardadas,
Que nunca forão lavradas.
Oh que matos pera pão!
Que valles pera açafrão
E canas assucaradas!
E mais quem quizer lançar
NWandega da cortiçada,
Ser-lh'ha logo arrematada,
Se espera bem de pagar.
PER. Senhor Porteiro. Pon. Andar.
DAS FARÇAS. 163

PKR. Em logar de cor'gedor


Me mandou o Regedor
Que faça neste logar
Odiança d'Ouvidor.
Vossa mercê servirá
Minha odiança assi
Como elle também a mi;
Então aqui se verá
Se vou eu limpo daqui.
Ora traga vossa mercê
Hum banco e hüa esteira,
E hüa cortiça inteira,
E vossa mercê me dê
Licença que o requeira.
Ide logo sem tardar.
POR. Quem no vir assi mandar
Cuidará que sabe o que diz:
Tal he elle p'ra juiz
-Como eu sou pera pregar.
PKR. Olhae ca, senhor Porteiro.
POR. Senhor Juiz, que me manda?
PKR. Pregoae quem tem demanda,
Que venha aqui a terreiro
E diga em que termos anda.
E venha o banco todavia
Muito bom, muito direito.
POR. Quem quizer hoje este dia
Ver mao pezar de seu feito,
Não tarde hüa ave-inaria.
Tal juiz em tal logar
Parece cousa de riso.
Porém que me dá a mi disso
11
164 LIVRO IV.

Bem julgar nem mao julgar?


Quem faz juiz hum vaqueiro!
PER. Senhor Porteiro, lá vem
Vasco Affonso e também
João Domingues, ferreiro.
Indo o Porteiro buscar o banco, topa o ferreiro e Vasco
Affonso, e diz o
FERREIRO.
Que andais buscando, Porteiro?
POR. Hum banco pera a audiança.
FER. Aqui banco não s'alcança
Senão em casa do carpinteiro.
PORTEIRO.
Digo a Deos e á ventura,
Não he melhor esta cadeira
Que tem pelle e tem madeira
E tem-se bem e he segura?
FER. Poucas destas vio o Juiz.
VAS. Boa he ella pera assentar,
Mas este atafal não diz.
POR. Isto he pera encostar.
Senhor Juiz, isto he cadeira;
Cortiça, nem ponta delia.
PER. Dae ó demo a cancella
E quem a trougue da feira:
Eu não saberei aqui ser.
Dou ja ó fogo a guitarra!
Quem tinha esta zanguizarra?
POR. Quem a sabe conhecer.
PERO.
I-me a Diogo d'Arruda
Que me faça hüa trepeça.
DAS FARÇAS. 165

POR. Que juiz e que cabeça!


Dou eu ja ó demo a resmuda.
PER. E que diz elle? que diz?
VAS. Que pareceis escudeiro.
PER. Como he bom este Porteiro!
POR. Como he parvo este Juiz!
Corpo de mi c'o gaiteiro!
PERO.
Pardeos, logo eu jurarei
Que o Porteiro he homem são,
Por si, si, e por não, não,
Todo feito a boa lei,
E fora de ma tenção.
POR. Esta he rasa e mais honesta.
PER. Ponte, ou que cousa he esta?
Não tragais jogo de ver,
Que bem haveis de saber
Que isto he presepe de besta.
Va erainá vossa mercê
E traga logo a recado
Hum banquezinho assi usado,
Porqu'isso não sei que he.
POR. Hum villão destemperado
He peor que pestelença.
Oh! dou ó demo a audiença!
Perdoe-me Deos se he peccado.
Ora assi hei eu d'andar
De Anás pera Caifaz?
Juro a cata-que-farás
Que bem me podem chamar
Tu que vens e tu que vas.
Ei-lo banco ca está.
166 LIVRO IV.

Esteis muitieramá:
Tornae lá, senhor Juiz,
Pera vós este vos diz.
PERO.
Pera mi! ahi serei:
Pardeos, próprio he com'este
Hum banco que lá deixei:
Agora estou coma EIRei,
E praza a'Deos que me preste.
Ora sus, agasalhar,
Tirae d'hi essas cancellas;
Aquellas hi não hão d'estar:
Ou fora, á rua com ellas.
FERREIRO.
Estae vós ahi, Juiz,
E nós em pe como bons filhos.
PER. Senhor Porteiro, esses peguilhos
Deitae-os no chafariz.
POR. Levarei, ora estae quedo:
Perdida he a decoada
Na cabeça d'asno pegada.
Não sois vós pera câmara, Pedro.
Leva o Porteiro as cadeiras e topa com Anna Dias, fMJj
vem á audiência, e diz:
PORTEIRO.
Venhais embora, Anna Dias.
Em demanda andais ca?
ANN. Sempre o diabo me dá
Com que tenha negros dias.
POR. He feito crime ou que he?
ANN. Não sei s'he crime ou se que:
Minha filha he violada,
DAS FARÇAS. 16«

E houvcrão-ura forçada:
Vou-me ao Juiz. POR. Esse he;
Mas tanto vai como nada.
ANNA DIAS.
Qucrello-ine, senhor Juiz,
Do filho de Pero Amado
Que o achei emburilhado
Com a minha Beatriz.
PER. E onde? ANN. No seu cerrado.
PER. E que ia ella lá catar?
ANN. Forão ambos a inundar,
E o trigo era crcçudo
E foi-se a ella. PKR. Coma sesudo,
Pois que tinha bô logár.
ANNA DIAS.
Olhae vós como elle gosta!
Juiz, fazei-me direito.
PKR. Digo que pois ja he feito,
Venha elle com sua reposta,
Ou lhe faça bom proveito,
E venha a moça citada.
ANN. E a cachopa he prenhada.
PKR. Assi se faz. ANN. Não ha hi mais?
Esse he o remédio que dais?
Ora estou bem aviada.
Mãe, mãe, eu não sei que diga.
PKR. Pae, pae, venha a rapariga,
E veremos que ella diz:
E como diz a cantiga,
Traga as testemunhas ca,
Sete ou oito abastarão.
168 LIVRO IV.

ANN. Senhor, se não for per rezão,


Nunca s'isso provará:
Que era o pão onde os achei
Mais alto do qu'he essa vara.
PKR. S'ella mesmo não folgara,
Chamara ella áquedelrei;
Mas credo quo natura dat
Nemo negare pote.
FER. Anna Diz, feito he ja,
Não s'ha de fazer de cote.
ANNA DIAS.
Não sam eu Marta a piadosa
Que dou caldo aos enforcados,
Nem perdoa taes peccados
Quem a honra tem mimosa.
O que havedes de fazer,
Sentae-m'o nessa querella,
Que adiante hei d'ir com ella,
Inda que saiba morrer.
Não no hei polo desprezo
Que elle quiz fazer de mi,
Nem outras cousas assi;
Mas hei-o polo mao vezo
Qu'elle tomará dahi.
PER. Se a moça he dessa pelle,
Não he o moço de culpar.
ANN. Deixára-a elle inundar:
Que olho inao se metta nelle,
E muito do mao pezar.
Mãos exemplos, mãos ensinos;
Hum moço ja homem barbado,
(Benz'o Deos) e mancipado
DAS FARÇAS. 169

Ir fazer taes desatinos!


PER. São cousas de moços. ANN. -Assi,
Boa concrusão trazeis.
PER. Que he o que vós quereis?
ANN. Que o mandeis vir aqui
Preso, e-que o castigueis.
PERO.
Ja eu estive cuidando nisso,
Porque eu não sou abantesma.
Mas que sei eu s'ella mesma
Deu casião pera isso ?
E perein tudo assi visto,
Eu mando per meu mandado
Que até esse pão ser segado,
Que se não falle mais nisso.
E áquelle mesmo pão
Eu e estes homens bôs
Iremos lá e veremos nós
Se a houve per força ou não:
Que se ella não queria
Estará o pão derramado,
E ha mister bem olhado
Ella se se defendia.
Vem hum Sapateiro, Christão novo, do calçado velho,
e diz:
SAPATEIRO.
Cuando éramos judios,
Dolor dei tiempo pasado,
Ciento y veinte y un ducado
Tenia en ducados mios,
Sin le faltar un cornado.
Morador en Carrion,
170 LIVRO IV.

Y mercader en Medina,
Casado con Dona Dina,
Nieta de Jacob Zarion,
Maestro mor de Adefina.
Agora que soy guayado
Y negro cristianejo,
Ándome á calzado viejo,
Desnudo, desfarrapado,
El mas triste dei Concejo,
Y por mas postomeria
Una hija que teniá
Tal como cera colada,
Húbomela alcohetada.
Voyme al Juez todavia.
Honrado senor Juez.
PER. Eilo. SAP. Seais bien logrado.
Yo me sòy Alonso Lopez,
(Que se vea negra pez
La que me tienè enlodado!)
Ana Dias que ahi está
Usa de alcohetaría;
Enlodó una hija mia,
Moza ya de buena edad,
Tal como Ia luz dei dia.
ANNA DIAS.
Olho mao se metta em ti,
Cascarrea de judeu!
E em tal mulher como eu
Fallas tu? dize, alfaqui,
Alcoviteira sam eu?
SAP. Senor Juez. PER. Eilo. SAP. Buen placer.
Mandad á esa muger
DAS FARÇAS. 171

Que hable cortes conmigo.


ANN. Farrapo, tu que has comtigo,
Ou que me viste fazer?
SAPATEIRO.
Senor Juez. PER. Eilo. SAP. Vivais.
Mandalda Iuego callar,
Porque yo quiero probar
Cosas de ella, que digais
Doy al diable el enjoval.
ANNA DIAS.
Mana minha! áquedelrei!
Dize, gato de Tobias,
E mulher sam eu de lei
Pera alcovitar judias?
SAP. NO hableis tanto de dedo.
ANN. EU SOU ama do Craveiro,
Visinha do Tisoureiro,
Sobrinha d'Alvarazedo.
Dum filho d'aranha morta!
E mais eu te provarei
Que hum cavallo d'ElRei
Estercou á minha porta.
SAP. Honrado senor Juez.
PER. Eilo. SAP. Buenas liadas.
Es bien que en vuestras quejadas
Me diga.aquello Ana Diez?
PER. São mulheres. SAP. Aosadas!
ANN. Antes m'espanto de mi
Como não salto em ti
E te quebro essas queixadas.
SAP. No te abasta alcohetar
i72 LIVRO IV.

Á mi hija, hembra mala?


ANN. Cala-te ma ora, cala,
Não me faças atentar.
PERO.
Olhae que m'esquece a mi
Que cousa he alcovitar.
SAP. YO OS IO quiero contar,
Que es una arte por si.
Teneis (Dios os guarde amigo)
Vuestra hija ó muger,
Buena, Iimpia como el trigo
Que se coge á buen placer.
Mírala un cortesano,
Mirala, quiérela, deséala:
Pues que hará
Pera Ia haber á Ia mano?
Vase á una tal como esta,
Y cuéntale tal y tal,
Y ella está tan honesta,
Que guárdeos Dios de mal.
Vase Ia vieja al molino,
Entra inuy disimulada,
Muy honesta cobijada,
Como quien sabe el camino.
Tanto escarva, tanto atiza
Por tal arte y por tal modo,
Hace un cielo ceniza
Hasta ponella de lodo.
Y esta es de Ia manada;
Que siendo en misa yo,
Adó poças veces vó,
Entro Ia senora honrada
DAS FARÇAS. 173

Y á mi hija engano.
PER. Se lhe ella fora rogar
Pera mondar hum linhar,
A moça embargara o caminho;
Mas bom he de encaminhar
O gato pera o toucinho.
SAPATEIRO.
Si no fuera esta malvada,
Marina no errara ansí.
ANN. Agora me lembra a mi
Onde Marina morava:-
Antre os odreiros alli
Me parece que vos vi
Cos odres dependurado.
SAP. Senor Juez. PER. Eilo. SAP. Buen mandado.
Yo tambien veisme aqui
Con los odres pendurado.
El negro Alonso Lopez
Mal viva si otra vez
Venga a pediros derecho.
No ine fuera mas provecho
Dar al diablo el Juez?
Que esta merece, quemada.
PKR. Julgo que se esta dona honrada
Sabe isso tão bem fa/.er,
Se o deixar esquecer,
Seja por isso açoutada.
Assi se cerra a cancella.
Calar, ieramá, calar,
E não vir-vos exemplar.
Não no sabia senão ella,
E elle vem-no apregoar.
m LIVRO IV.

SAP. Páscoa mala dé Dios al Juez,


Y mala páscoa al Porterò,
Y negra páscoa al herrero,
Y al Juez otra vez,
Y mala páscoa á Ana Diez,
Y á mi negra vejez
Me dé si cristiano muero. ' (vai-se,)
Vem hum Escudeiro com hum seu nioço, e diz:
ESCUDEIRO.
Toma lá esse sombreiro;
Eu sam ja acrecentado
Escudeiro encavalgado,
Depois serei cavalleiro,
Que o anno for acabado.
Ando ja quasi privado
Como quem no melhor anda,
Agora ver-me ein demanda,
Acho-me tão salteado
Como o gato na varanda.
Viste-me tu nunca andar
Em demanda com ninguém,
Senão hüa em Santarém?
Moç. E outra no Lumiar,
E ein Lisboa também.
Mas antes, a Deos louvores,
Sempre vos vi ser citado.
Esc. Folgo porque es lembrado,
E louvas Deos com minhas dores. —
Sois vós o Senhor Juiz?
PER. Assi se roge por ca.
Esc. Vossa Mercê saberá
Que m'enganou Anna Diz,
DAS FARÇAS. 175

Que a pé de juizo está.


ANN. Enganei! Nunca Deos queira.
Esc. Ouvi vós, cmboladeira:
Eu andava namorado
Do hiia moça pretesinha,
Muito galante Mourinha,
Hum ferretinho delgado,
Oh quanta graça que tinha!
Então amores de Moura,
Ja sabeis o fogo vivo,
Ella captiva eu captivo:
Ora que ma morte moura
Se ha hi mal tão esquivo.
Eu morria, e alem disso
Eu não tinha então mais siso
Do que aquella porta tem.
Não falleis em querer bem,
Que rapa todo o aviso.
Andando assi como digo
Escravo da servidora,
Soccorri-me a esta senhora.
Depois de fallar comigo,
üix'eu: Senhora Anna Diz . . .
Estae vós prompto, Juiz.
PKR. Eilo: bem vos ouvo eu.
Esc. Dixe-lhe: Ando sandeu,
Pesar dos Sanctos, qu'eu fiz;
Esta Moura por que mouro,
Se m'a vós haveis á mão,
Senhora, á fé de Christão
De vos dar hüa peça d'ouro
Por sair desta paixão.
176 LIVRO rv.

ANNA DIAS.
Que vos dixe eu então?
Esc. Esperae, qu'eu o direi.
Dixestes-me: Trabalharei
Por hum cruzado p'ra pão.
— Senhora, eu vo-lo haverei. —
Vou e vendo hüa viola
E hum gibão de fustão
E botas de cordovão,
Que tinhão inda boa sola
Que durarião hum verão;
E vendi hüa gualteira,
E fiz da pousada feira.
Soma emfim de rezões,
Ajuntei quatro tostões,
E metti-lh'os na mãosinha,
Dizendo-lhe* Senhora minha,
Lembrein-vos minhas paixões.
Foi-se a boa d'adela,
E ao primeiro recado
Disse: Dae-me outro cruzado,
Que prazendo a Madanela
Logo sereis aviado,
Deos querendo, muito prestes,
Porque aquelle que me destes
Em cuz-cuz o comeo ella.
E se vós quereis vencê-la,
Andem os dinheiros bastos,
E não receeis os gastos
Em tal moça como aquella.
ANNA DIAS.
Não vos dizia eu mal nisso,
DAS FARÇAS. 177

Porque não se tomão trutas


Assi a bragas enxutas,
Nem se ganha o paraíso
Senão com offertas muitas.
Esc. Einfím, vou eu muito asinha
Empenho hüa sella que tinha,
E albardo o meu cavallo,
E foi-me forçado aluga-lo
Pera acarretar farinha,
E fiquei desbaratado.
Isto tudo faz fazer
O mao rapaz do Amor.
PKn. Prosegui vosso lavor,
Fallae no que faz mister.
Esc. Como varreo á vassoura,
Que vintém não me ficasse,
Veio-me dizer que a Moura
Pedia que a forrasse.
E d'outra nenhüa maneira
Fosse cantar á gamela,
Ou me fosse rir á feira,
Que não tinha nada nella.
E ante d'haver o dinheiro:
— Esta Moura ha de morrer,
Tamanho he o bem que vos quer:
Esforçae, lindo Escudeiro,
Que nunca podeis perder. —
Mandava-lhe a pada de pão,
As empadas de sardinhas,
Bacios de camarinhas,
A talhada do melão.
E hüa manta d'Aleintejo
A
Vol. III.
178 LIVRO IV.

Que na minha cama tinha,


Manta ja usádazinha,
M'a levou com tal despejo
Como s'ella fôra minha.
Assi como vo-lo eu rezo
Esta vos he Anna Diz.
ANN. Na forca veja eu o Juiz,
Que he o homem qu'eu mais prezo,
Se taes emboladas fiz:
Lembra-me que fallei eu
A hüa filha do Cetem.
Esc. Essa me custa a mi bem
Do alheio e do meu.
ANN. Se vos pagais tanto delia,
Forrarei-la ora ma dia.
Esc. Não forro minha moradia,
Poderei foia-ar a ella?
Senhor Juiz, conhecida
He a bulra. Dê-me o meu.
PER. Desde aqui sentenceo eu
A moeda por perdida
Como alma de judeu.
Esc. Assi ha isso de passar?
Juiz, mandae-ine pagar.
PKR. S'ella quizer: — quereis, Anna Diz?
ANN. Bofá não, senhor Juiz.
PER. Não no ha de querer dar.
ANNA DIAS.
Viva o Juiz minhas flores!
PER. I-VOS embora, Escudeiro,
E nunca peçais dinheiro
Que gastastes per amores.
DAS FARÇAS. 179

Esc. Outro caso trago eu.


PER. Dizei. Esc. Digo mais, senhor Juiz,,
Este moço, o peccador,
He necio, quer-se ir de mim
Agora que está na fim,
Que lhe havia d'ir melhor.
Ora pois que se quer ir
Sem pancada, nem arruido,
Muito farto e conhecido,
Dei-lhe agora de vestir,
Torne-me ca o meu vestido.
E mais lançou-me a perder
Hüa cama em que jazia
Elle mesmo até meio dia,
Boa e de receber.
Moço.
Cama chamão ca as arcas,
Ou he falia assi mudada?
Quanfeu na sua pousada
Sempre sei noites de barcas:
E quero calar mais damnos.
Senhor Juiz, ha seis annos
Que estou co'este Escudeiro,
Ja'gora fora barbeiro,
Se não forão seus enganos.
Ao tempo que vim par'elle
Estava mais melhorado,
Mas agora, mal peccado,
Mao pezar he feito delle,
E da viola e do cavallo,
E da cama e do vestido,

12*
LIVRO IV
180
E do meu tempo servido
E d'outras cousas que calo.,
Esta noite, eu lazerando
Sobre hüa arca e as pernas fora,
Elíe acorda-me á hüa hora:
— Oh! se soubesses, Fernando,
Que trova que fiz agora! —
Faz-me accender candieiro,
E que lhe tenha o tinteiro,
E o seu galgo uivando*
E eu em pé, renegando
Porque ao somno primeiro
Está meu senhor trovando.
ESCUDEIRO.
Não sabes, dize, parviço,
Que sou eu o mesmo Paço?
Moç. Bem sei eu segundo jaço
Que cousa he paço e palhiço.
Nem vós não tendes chumaço,
Nem de ventura atolais
Em colchões e cabeçaes.
Também vós fazeis pendença?
Eu não sei como a doença
Não vai onde vós estais.
Peço contra elle, Juiz,
Que o serviço que lhe fiz
Que in'o pague por inteiro.
PEn. Veremos nós o que elle diz.
Que dizeis vós, cavalleiro?
Esc. Não ha hi por hu correr,
Emqué m'esfoIem a pelle.
PEn. Mando que sirvais a elle,
DAS FARÇAS. 181

E que lhe deis de comer


Até que cumprais co'elle.
Moço.
Eu não quero mais sentença
Senão que me deis licença
E chamar-lhe-hei tu ou vós.
PER. Digo que te vas com Deos,
E não faças mais detença.
Esc. Vêdes-me-aqui sem a Moura,
Trosquiado sem tesoura,
Vêdes-me-aqui sem cavallo,
Sem sella, sem mangedoura,
E sem gallinha nem gallo.
Não praza a Deos co'a viola,
Que assi se tomou mourisca,
E eu fico á carraquisca,
En los campos verdes sola.
Porém, prazendo a Jesu Christo,
Quero-m'ir fazer sobre isto
Dous pares de trovazinhas;
O comer, por essas vinhas,
Pois o demo me fez isto.
Vem á audiência quatro irmãos; hum tlelles muito pre-
guiçoso, outro que sempre baila, outro que sempre esgrime,
outro que sempre falia amores, A estes per morte do pae
não lhes ficou senão hum asno; deixou o pae no testamento
que o herdasse hum delles, e não nomeou qual. Entra o
preguiçoso dizendo:
PREGUIÇOSO.

Não ha hi favo de mel


Tão doce como a preguiça:
He mais desenfadadiça
183 LIVRO IV.

Que bom pomar nem vergel.


Outro dia hum meu amigo
Em siso bradou comigo
Porque durmo traz do lar
Na cinza, que he o acertar;
Porque diz o verbo antigo,
Em cinza te has de tornar.
Melhor he sej preguiçoso,
Que homem negociado;
Porque quem for repousado
Não será malicioso,
Mas será homem de bem:
Não dirá mal de ninguém
Todo o tempo que dormir,
Nem madrugará a acquerir
Por haver o que outrem tem.
Venho ca, senhor Juiz,
E dir-vos-hei a que venho,
Porque a preguiça que tenho
Faz de mim hüa boiz.
Eu tenho huns três irmãos:
Hum delles he polas mãos
Mui valente esgrimidor;
O outro não ha hum christão
Tão doudo homem d'amor.
E somos quatro comigo,
Preguiça he o meu fado.
Meu pae, senhor, he finado,
Sem nos ficar nem hum figo,
Senão hum asno pellado.
Vem todos ca á audiença,
Porque temos differença
DAS FARÇAS. 183

Qual de nós o ha d'herdar.


O esgrimidor quer-nos matar,
O outro diz que he sua a herança,
E lhe pertence por bailar.
Eu não posso ja fallar
De preguiça, meu senhor.
Eis ahi vem o bailador:
Eu quero-ine aqui deitar.
BAILADOR.
Pois tanto tarda o prazer,
E tanto dura o pezar,
Houvera Deos de fazer
Que o pezar pudera ser
Prazer pera se lograr.
E pois o nojo se vem
Sem o ir buscar ninguém.
Eu acho ca no meu rol
Que bailar de sol a sol
Faço bem e mais câ bem.
Senhor Juiz, hufá! eu por bailar
Mereço o asno de meu pae,
Hufá! e vós m'o julgae.
PKR. Ou vós haveis de fallar,
Ou vós haveis de bailar.
BAI. Bailar. PER. Ora bailae.
BAI. Hufá! amores pardeos!
Agora tornemos nós
Fallar na morte de meu pae.
Ficou huin asno da geneta,
E somos quatro irmãos
Estão-ine proindo as mãos
Por dar huma çapatela,
184 LIVRO IV.

Como nos bailos villãos.


Hufá! amores cortezãos!
Eu bem poderei cansar,
Mas não que leixe chegar
Nojo nem ao meu nariz.
Abonda-vos a vós, Juiz,
Que o burro m'haveis de dar
Polo bem que a meu pae fiz:
Que meu irmão preguiçoso
Nunca sahia do lar.
PRB. Quero-m'ora levantar:
Diz o sengo sabichoso
Bom he ás vezes fallar.
Vós o asno, meir senhor
Juiz, não m'o tolhereis,
Porque certo sabereis
Que este mesmo bailador
Deitou meu pae a trevés.
E eu guardava as casas todas
Detraz do lar estirado,
Que sem mim fora roubado.
BAI. EU lhe trazia das bodas
Sempre o capello atestado
De figos, de carne e pão.
Bofá o asno me darão.,
Porque o tenho bem ganhado.
Pardeos, eu era alegria
De nossa casa vasia.
Esse dormia coma cão,
Que mijava onde jazia.
Não vedes meu afanar,
E elle folgar, nó mais?
DAS FARÇAS. 185

PER. Pardeos, bem vos amanhais.


E não he melhor folgar
Que trabalhar por demais?
PRE. Dizeis muito bem, Juiz;
Vós sois meu procurador.
Eis ca vem sempre Amador,
E veremos o que diz.
AMADOR.
Quem enfermo for d'amor,
Como eu contino sam,
Faça autos de christão,
Confesse-se, tome o Senhor,
Pois tem a morte na mão.
E pera tão prestes partir,
Ande tão triste como ando,
Desejando
A pena que está por vir.
Quem quizer vida serena
Nunca queira o que eu queria,
Porque das horas do dia
A que me dá mais pena
Me traz maior alegria.
E o triste meu cuidado,
Quanto mais desventurado,
Mais ledo, porque se cura
Com tristura
O mal que he desesperado.
Creio que quando nasci
Estava o sol eclipsado,
E o ar todo carregado.
De tristezas pera mi,
Pois tristeza sam tornado.
1 8 6 LIVRO IV.

E o sino em que fui gerado


(Olhae que desaventura!)
Estava desconcertado,
E logo foi condemnado
Meu nacer pera tristura.
(canta)
"Leixar quero amor vosso,
"Mas não posso."
Oh quem fora alli com Deos
Ao fazer do amor,
E lhe dissera: Ah Senhor,
Amor sejais vós de nós,
E não haja amor com dor.
Fazei-o doce, amoroso,
Suave, tirae-lhe a pena,
Dae-lhe condição serena,
Não haja tanto queixoso.
BAILADOR.
Que voltasinha! hufá! hufá!
PRE. Gran descanço he espregüiçar.
AMA. Ora deixae-ine fallar.
PER. Bofá, a vontade me dá
Que não hei hoje d'acabar.
AMA. Quanto mais favorecido
Me traz esta rapariga,
Tanto sinto mais fadiga,
E queimo mais o sentido.
Ora vedes vós qu'he isto?
PER. Fallae eramá a bem do feito.
Requerei vosso direito,
Pois vos ja pozestes nisto,
E fareis vosso proveito.
DAS FARÇAS. 187

AMA. O asno, senhor Juiz,


Qu'estes vem a demandar,
A mi o haveis de julgar,
E o direito assi o diz.
Porque eu sam namorado,
E este asno canta coma anjo,
E será gran desarranjo
Não me ser logo julgado;
E mais entende mui bem
E responde por acenos.
BAI. Juiz, elle o merece menos:
Eu bailei em Santarém
Sendo os Iffantes pequenos.
E bailei no Sardoal,
E de contino me veiri
Bailar sem haver alguém
Que me ganhe em Portugal.
Ora olhae esta maneira
Pera bailar com mulher;
E sabeis como se quer?
Sempre a volta assi ligeira.
Em quanto este baila o Preguiçoso dorme e ronca, e o
Namorado canta e suspira, diz o
FERREIRO.
Ora eu quarenta annos hei,
E vi muitos homens ja,
E andei per ca e per lá,
Mas eu nunca tal topei.
Ah corpo de Sancto Bario!
Serem de huin pae gerecidos,
E de hüa mesma mãe nacidos,
Cada hum com seu veairo!
188 LIVRO IV.

Preneta, ou que demo será?


BAI. HOU Juiz, sahi vós ca,
Dareis hüa volta comigo.
PKR. Pardeos, baila tu, amigo,
E salta atas qu'eu lá va,
Tens bem de comer comtigo.
Vem o outro irmão, a que chamão Ferão Brigoso,
com sua espada nua e capa no braço, como que sahio a°al'
güa briga, e diz:
BRIGOSO.
Bem basta a hum homem so
Saltarem com elle cinco;
Mas quatorze!,— não he brinco:
Porém sacudi-lhe eu o po,
Como soio quando arrinco.
Seis delles não escaparão,
Que vão muito acutilados;
Os cinco vinhão armados,
Feitos malha dé Milão,
Os três trazião relíquias,
E o coração de san Leão.
Dizia eu dando no chão:
Oh braço! quão baixo ficas!
Eu trazer reliquiaJ — nada.
E sabeis vós porque não ?
Porque inato com rezão,
E quando levo da espada,
Treme a terra e abre o chão.
E se he sobre mulher,
Que merece ser servida,
Nem Heitor não ine tem vida.
DAS FARÇAS. 189

E quemcunque vul trouxer,


Nem por isso tem guarida.
E agora quatorze a mi,
Foi mui grande neicidadc,
Porque saibão a verdade,
E o podem dizer assi
No ceo á Sancta Trindade,
Que o certo em que me fundo
He despovoar-lhe o mundo:
E diga-lh'o quem quizer,
Inda que saiba ir ter
Ao Inferno mais profundo.
Ainda lá farei fataxas,
Qu'eu não hei d'ir sem espada.
Então tanta cutilada,
Estocadas altas, baxas,
Nesses diabos pancadas,
Cutiladas polo ar,
Polas nuvens, por estreitas.
Trenzentas e trinta querellas
Tenho inda por purgar,
E de mortes todas cilas.
Sois vós, senhor, Juiz ?
PEn. E pois quem no* ha de ser?
BRI. Ora pois eu quero ver
Se sois juiz, se buiz.
Que pouco m'hei de deter.
Este asno deve ser meu,
E vós assi m'o julgae,
Que eu fui honra de meu pae,
E assi o provarei eu.
O asno, Juiz, me dae.
190 LIVRO IV

E senão... PER. Como senão?


BRI. Senão, não sei que vos diga.
PER. Cuidei que era isso briga.
Não sejais sandivarrão,
Qu'eu também não sou formiga.
Tende vós em vós aviso,
Ou darei tantas em vós,
Que vos faça ter mais siso,
Bni. Não folgaria eu com isso,
Mas pezar-m'hia, pardeos.
O que quizerdes julgar,
Isso seja, isso qnero.
PER. VÓS vindes tão bravo e fero
Como se fosseis o mar,
Ou em crueldade Nero.
Não façamos mais detença.
AMA. Que julgais, Juiz honrado?
PER. Julgo por minha sentença
Que o asno seja citado
Pera a primeira audiença.
Em tanto podeis cantar
E bailar e espreguiçar,
Qu'eu vou buscar de comer.
E quem de mim mais quizer
Caminhe e va-me buscar.
Sahírão-se todos cantando a seguinte
Cantiga.
"Vamos ver as Cintrans,
"Senhores, á nossa terra,
"Que o. melhor está na serra.
"As serranas Coimbrans
"E as da Serra da Estrella,
DAS FARÇAS. 191

"Por mais que ninguém se vela,


"Valem mais qne as cidadans:
"São pastoras tão louçans,
"Que a todos fazem guerra
•'Bem desde o cume da serra."
F I G U R A S .
MARTINA
CASSANDRA
Ciganas.
LUCRECIA
GIRAIiDA
LIBERTO
CLÁUDIO
Ciganos.
CARMELIO
AURICIO

A seguinte farça foi representada ao muito alto e pode-


roso Rei D. João, o terceiro deste nome, em a sua cidade,
d? Évora, era do Redemptor 1521-
FARÇA DAS CIGANAS.

Entrão quatro ciganas, Martina, Cassandra, Lu-


crecia, Giralde, e diz
MARTINA.
Mantenga, fidalguz senurez hermuzuz.
CAS. Dadnuz liinuzna pur Ia amur de Diuz;
Cristianuz sumuz, veiz aqui Ia cruz.
Luc. La Vírgen Maria uz haga dichuzuz,
Dadnuz limuzna, senuruz pudruzuz,
Tantico de pan, haré Ia mezura.
MAH.0 preciuza rozua senura,
El cielo vuz cumpla deseuz vuestruz.
CAS. Dadme una camiza azucal colado
Nieve de cira, firmai preciuzo.
Luc. Dadme una saya, senur graciuzo,
Lirio de Grécia, mi cielo estrellado.
GIR. .Senura, senura, dadme un tocado,
Antucha dei cielo, sin cera y pavilo.
O ruza nacida en ribera dei Nilo,
lia Vírgen traya buen sino y buen hado.
Luc. Andad acá, herinanaz, y vamuz
A estas senuraz de gran hermuzura;
Diremuz el sino, Ia buena ventura,
Daran sus mercedes para que comainuz.
CAS. Llamemuz á Cláudio antes que nuz vamuz,
Carmelio, Auricio y haremuz fiesta,
, 3
Vol. 111.
194 LIVRO IV.

Como heciinuz ayer por Ia siesta:


Vé á llamarluz y nuz esperamuz.
Vem os quatro ciganos, Liberto, Cláudio, Carmelio,
Auricio. CLÁUDIO.
Cual de voz otroz, senurez,
Trocará un rocin mio,
Rocin que hubo de un judio
Ahora en páscoa de florez,
Y tengo dos especialez
Caballoz buenoz que talez.
AUR. Senurez, yo trocará un potro
Que tengo, por cualquier otro,
Si me volveiz mil realez.
CAR. Que dos burricos compre
Moriscoz prietos garridoz;
Ya loz hubiera vendidoz,
Mas antes loz trocaré.
CLA. Oh senurez caballeroz,
Mi rocin tuerto os alabo,
Porque es calzado nel rabo,
Zambro de loz piez trazeroz;
Tiene el pecho muy hidalgo,
Y cocea al cabalgar.
AUR. Senurez, quereiz trocar
Mi burra viega á un galgo?
MAR. No noz curemuz desaz faranduraz.
CLA. Puez que quereiz, Martina, que hagainoz?
MAR. Cantemos Ia fiesta antez que noz vamoz
A buscar luz sinuz á esas senuraz.
Cantiga.
"En Ia cocina estaba el asno
"Bailando,
DAS FARÇAS. 195

"Y dijéronme, don asno,


"Que vos traen casamiento
"Y os daban en axuar
"Una manta y un paramiento
"Hilando."
Cantando e bailando ao som desta cantiga se forão ás
Damas, e diz
MARTINA.
Mantenga senuraz y rozas y ricaz.
De Grécia sumuz hidalgaz por Duz.
Nuestra ventura que fue cuntra nuz,
Por tierraz estranaz nuz tienen perdidaz.
Dadnos esmula, esmeraldaz polidaz,
Que Diuz vuz defíenda dei amor de engano,
Que muztra una mueztra y vende otro pano,
Y pone en peligro laz ahnaz y vidaz.
LUCRECIA.
Senuraz, quereiz aprender á hechizo,
Que sepais hacer para inuchaz cozaz?
GIR. Escuchad aquello, senuraz hermozaz,
Por Ia vida mia qu'ez vuestro servizo.
Luc. Si vuz, ruza mia, holgades con izo,
Hechizos sabreiz para que sepaiz
Los pensamientoz de cuantos iniraiz,
Que dicen, que encubren, para vuestro avizo.
MARTINA.
Otro hechizo, que pozaiz mudar
La. voluntad de hombre cualquiera,
Por firme que este con fe verdadera,
Y vuz Io mudeiz á vuestro mandar.
GIR. Otro hechizo os puedo yo dar
Con que pudaiz, senuraz, saber
13*
196 LIVRO IV.

Cual es el marido que habeiz de tener,


Y el dia y Ia hora que habeiz de cazar.
CASSANDRA.
Mustra Ia mano, senura,
No hayas ningun receio.
Bendfcate Diuz dei cielo,
Tú tienez buena ventura,
Muy buena ventura tienez,
Muchuz bienez, muchuz bienez,
Un hombre te quiere mucho,
Otroz te hablan de amurez;
Tú, senura, no te curez
De dar á muchuz escuto.
MA'R. Dadnuz algo, preciuza.
CAS. Dadnuz algo, preciuza,
Puez que te digo tu sino,
Alguna poquita cuza.
Luc. Muztra hr mano, rucina,
Lirio de hermozura,
Dirte he Ia buena ventura.
Mustra ca, senura mia,
Ora mustra aciíía acifía.
Qué mano, qué sino, qué flurez!
Qué dama, qué ruza, qué perla!
Por mi vida que por veria
Olvide loz miz amurez.
Veamoz que dice el sino,
El recado que te vino
No Io creas, alma mia,
Que otra mas alegria
Te viene ya por camino.
DAS FARÇAS. 197

Durmiendo tú, fresca ruza,


Te viene el bien por Ia mar,
Luego tienez el mirar
De doncella muy dichuza.
GIR. Dioz te guarde hermozura,
Mustra Ia mano, senura;
Porné ciento contra treinta
Que de los piez á Ia cinta
Tienez Ia buena ventura.
Tú has de ser despozada
En Alcazar de Zal;
Con hombre bien principal
Tc vernás bien empleada.
MARTINA.
Pintura de Policena
Dame acá, dulce serena,
Esa mano cristalina.
Buena dicha, perla fina,
Tienez Ia ventura buena;
Tú has de ser alcaideza
Cierto tiempo en Montemor;
Tu marido y tu amor
Será bien celoza pieza.
CASSANDRA.
Nueva ruza, nueva estrclla,
O brancaz mano/, de Izeu,
Tú cazarás ein Niseu
Y ternas hornoz de (ella.
Alli haz de edificar
Un muy rico palomar,
Y doz pares de inolinòz,
198 LIVRO IV

Porque todoz loz caminoz


Á Ia puente van á dar.
LUCRECIA.
'Dioz te guarde, linda flor,
Bendito sea el senor
Que tal hermosura cria.
Mustra Ia mano, alma mia,
Por vida dei servidor.
Fiosanda cazaraz
Aqueste ano que vem
Em Santiago de Cacem,
Mucho rica, inucho bem.
Buena ventura hallaráz,
Buena dicha, buena éstrena,
Buena suerte, inucho buena,
Muchas carretas, senura,
Y inucha buena ventura,
Placiendo á Ia Madalena
Que guarde tu hennozura.
GIRALDA.
Muestra Ia mano, mi vida,
Aguela en tierras desiertaz
Dos personaz traez muertaz,
Porque erez desgradecida.
Tú cazarás en Alvito,
Senura, marido rico,
Muchos hijos, muchos bienes,
Mucho luenga vida tienez,
Buen sino, bueno bendito.
MARTINA.
Mis ojos de azor mudado,
Muéstrame Ia mano, hermana:
DAS FARÇAS. 199

O mi senura SanfAnna,
Qué sino, qué suerte, qué hado!
Qué ventura tan dichuza.
Tú senura graciuza.
Ternaz tierras y ganados,
Cuatro hijos mucho honrados,
Mucho oro y mucha coza.
CASSANDRA.
O mi ave fénix linda,
Mi sibila, mi senura,
Dame acá Ia mano ahura.
Hermozura de Esmerinda
Tú tienez muchos cuidados,
Y algunos desviados
De tu provecho, alma mia.
Tienez alta fantasia,
Y los mundos son inundados.
Un travesero que tienez,
De dentro dél hallaráz
Un espejo en que veráz
Muy claro todos tus bienez.
Luc. Dad acá, garza real,
Gridonia natural,
Diré Ia buena ventura.
Viva tu gran hermozura,
Que esta mano ez divinal.
Unaz personaz te ayudau
Á una coza que quierez;
Estas son dambas mugerez,
Y otraz doz le desayudan.
Date un poquito á vagar,
Que aun está por comenzar
800 LIVRO IV.

Lo bueno de tu ventura.
Confia en tu hermuzura,
Que ella te ha de descanzar.
GlRALDA.
Dad acá, Mayo florido,
Eza mano inelibea.
Por bien, senura, te sea
Buen marido, buen marido.
Na Landera cazaráz,
Nunca te arrepentiráz,
Y iráz morar á Pombal,
Y dentro en tu naranjal
Un gran tesoro hallaráz.
El que ha de ser tu marido
Anda ahora trasquilado,
Mucho honrado, inucho honrodo,
En muy buen sino nacido.
Naciste en buena ventura.
MAR.Huerta de Ia hermozura,
Cirne de Ia mar salada,
Dioz te tenga bien guardada
Y muy segura.'
CASSANDRA.
Senuraz, con benedicion
Os quedad, puez no dais nada.
IiUC No vi gente tan honrada
Dar tan poço galardon.
Tornárão-se a ordenar em sua dança, e com ella se forão.
FIGURAS.
FIDALGO.
PAGEM.
CAPELLÃO.
OURIVES.
PERO VAZ
( Almocreves.
VASCO AFFFONSO )
OUTRO FIDALGO

Esta seguinte farça foi feita e representada ao muito


poderoso e excellente Rei D. João, o terceiro em Portugal
deste nome, na sua cidade de Coimbra na era do Senhor
de 1526.
FARÇA DOS ALMOCREVES.

O fundamento desta farça he, que hum fidalgo de muito


pouca renda usava muito estado, e tinha capellão seu e
ourives seu, e outros officiaes; aos quas nunca pagava: e
vendo-se o seu Capellão esfarrapado e sem nada de seu,
entra dizendo:
CAPPELLÃO.

Pois que não posso rezar,


Por me ver tão esquipado,
Por aqui por este arnado
Quero hum pouco passear
Por espaçar meu cuidado.
E prosarei o romance
De Yo me estaba en Coimbra,
Pois Coimbra assim nos cimbra,
Que não ha quem preto alcance.
Grosa.
Yo ine estaba en Coimbra,
Cidade bem assentada;
Pelos campos de Mondego
Não vi palha nem cevada.
Quando aquillo vi mesquinho,
Entendi que era cilada
Contra os cavallos da corte
E minha mula pellada.
Logo tive a mao sinal
Tanta mifhan apahada,
DAS FARÇAS. 203

E a peso de dinheiro
r

O mula desemparada.
Vi vir ao longo do rio
Hüa batalha ordenada,
Não de gente, mas de mus,
Com muita raiva pisada.
A carne está em Bretanha,
E as couves em Biscaia.
Sam capellão d'hum fidalgo
Que não tem renda nem nada;
Quer ter muitos apparatos,
E a casa anda esfaimada;
Toma ratinhos por pagens,
Anda ja a cousa damnada.
Quero-lhe pedir licença,
Pague-me minha soldada
Chega o Capellão a casa do Fidalgo e faltando com elle,
diz:
CAPELLÃO.
Senhor, ja será rezão.
FID. Avante, padre, fallae.
CAP. Digo que ein três annos vai
Que sam vosso capellão.
FID. He grande verdade: avante.
CAP. EU fora ja do Iffante,
E pudera ser que d'ElRei.
FID. Á bofé, padre, não sei.
CAP. Si, senhor, qu'eu sou d'estante,
Aindaque ca m'empreguei.
Ora pois veja, senhor,
Que he o que in'ha de dar,
Porque alem do altar
204 LIVRO IV.

Servia de comprador.
FID. Não vo-lo hei de negar:
Fazei-me hüa petição
De tudo quanto requereis.
CAP. Senhor, não me prolongueis,
Qu'isso não traz concrusão,
Nem vejo que a quereis.
Porque me fiz polo vosso
Clericus et negociatores.
FID. Assi vos dei eu favores,
E disso pouco qu'eu posso
Vos fiz mais que outros senhores:
Ora hum clérigo que mais quer
De renda nem d'outro 'bem,
Que dar-lhe homem de comer,
Que he cada dia hum vintém,
E mais muito a seu prazer?
Ora a honra que se monta —
He capellão de fuão!
CAP. E do vestir não fazeis conta ?
E esse comer com paixão,
E dormir com tanta afiFronta,
Que a coroa jaz no chão,
Sem cabeçal, e á hüa hora
E missa sempre de caça?
E por vos cair em graça
Servia-vos também de fora,
Té comprar sibas na praça.
E outros cárregosinhos
Deshonestos pera mi.
Isto, senhor, he assi.
E azemel nesses caminhos,
DAS FARÇAS. 205

Arre aqui e arre alli,


E ter carrego dos gatos,
E dos negros da cozinha,
E alimpar-vo-los sapatos,
E outras cousas qu'eu fazia.
FIDALGO.
Assi fiei eu de vós
Toda a minha esmolaria,
E daveis polo amor de Deos,
Sem vos tomar conta hum dia.
CAP. Dos três annos quVu allego,
Da-la-hei logo sem pendenças:
Mandastes dar a hum cego
Hum real por endoenças.
FID. EU isso não vo-lo nego.
CAPELLÃO.
E logo dahi a hum anno,
Pera ajuda de casar
Hüa orfan, mandastes dar
Meio covado de panno
D'Alcobaça por tosar.
E nos dons annos primeiros
Repartistes três pescadas
Por todos esses mosteiros,
Na Pederneira compradas
Daquestes mesmos dinheiros.
Ora eu recebi cein reaes
Em três annos, contae bem,
Tenho aqui meio vintém.
FID. Padre, boa conta dais.
Ponde tudo n'hum item,
E fallae ao meu Doutor,
206 LIVRO IV.

Que elle me fallará nisso.


CAP. Deixe Vossa Mercê isso
Pera EIRei nosso senhor,
E vós fallae-me de siso.
Que como, senhor, me ficastes
(Isto dentro em Santarém)
De me pagardes mui bem . . .
FID. Em quantas missas m'achastes?
Das vossas digo eu porém.
CAP. Que culpa vos tem Çamora?
Por vós estão ellas nos ceos.
FID. Mas tomae-as para vós,
E guardae-as muifembora,
Então pague-vo-las Deos:
Que eu não gasto meus dinheiros
Em missas atabalhoadas.
CAP. E vós fazeis foliadas
E não pagais ó gaitero?
Isso são balcarriadas.
Se vossas mercês não hão
Cordel pera tantos nós,
Vivei vós áquem de vós,
E não compreis gavião,
Pois que não tendes pios.
Trazeis seis moços de pé
E acrecentai-los a capa,
Coma rei, e por mercê,
Não tendo as terras do Papa,
Nem os tratos de Guiné,
Antes vossa renda encurta
Coma panno d'Alcobaça.
FID. Todo o fidalgo de raça,
DAS FARÇAS. 207

Einque a renda seja curta,


He por força qu'isso faça.
Padre, mui bem vos entendo:
Foi sempre a vontade minha
Dar-vos a EIRei ou á Rainha.
CAP. ISSO me vai parecendo
Bom trigo, se der farinha.
Senhor, se m'isso fizer,
Grande mercê me fará.
FID. EU VOS direi que será:
Dizei agora hum profaceo, a ver
Que voz tendes pera lá.
CAP. Folgarei eu de o dizer;
Mas quem me responderá?
Fm. Eu.
CAPELLÃO.
Per omnia secula seculorum.
Fro. Amen. CAP. Dominus vobiscum.
Fro. Avante. CAP. Sursum corda.
Fro. Tendes essa voz tão gorda,
Que pareceis alifante
Depois de farto d'açorda.
CAPELLÃO.
Peor voz tem Simão Vaz,
Thesoureiro e capellão
E peor o Adaião,
Que canta como alcatraz,
E outros que por hi estão.
Quereis que acabe a cantiga,
E vereis onde vou ter.
Fro. Padre, eu hei de ter fadiga,
208 LIVRO IV

Mas d'ElRei haveis de ser:


Escusada he mais briga.
CAPELLÃO.
Sabeis em que está a contenda?
Direis: He meu capellão:
E EIRei sabe a vossa renda,
E rir-se-ha se vem á mão,
E reinetter-m'ha á Fazenda.
FID. Se vós foreis entoado.
CAP. Que bem posso eu cantar
Onde dão sempre pescado,
E de dous annos salgado,
O peor que ha no mar?
Vem hum Pagem do Fidalgo, e diz:
PAGEM.
Senhor, o orives s'he alli.
FID. Entre. Quererá dinheiro.
Venhais embora cavalleiro:
Cobri a cabeça, cobri.
Tendes grande amigo em mi,
E mais vosso pregoeiro.
Gabei-vos hontein a EIRei
Quanto se pôde gabar,
E sei que vos ha de occupar,
E eu vos ajudarei
Cada vez que m'hi achar.
Porque ás vezes estas ajudas
São melhores que cristeis,
Porque so a fama que haveis,
E outras cousas meúdas
O que valem ja sabeis.
OUR. Senhor, eu o servirei
DAS FARÇAS. 209

E não quero outro senhor.


Fro. Sabeis que tendes melhor?
(Eu o dixe logo a EIRei,
E faz em vosso louvor:)
Não vos dá mais que vos paguem,
Que vos deixem de pagar.
Nunca vi tal esperar,
Nunca vi tal avantagem,
Nem tal modo de agradar.
Oun. Nossa conta he tão pequena,
E ha tanto que he devida,
Que morre de promettida,
E peço-a ja com tanta pena,
Que depenno a minha vida.
FIDALGO.
Ora olhae esse fallar
Como vai bem martelado!
Folgo não vos ter pagado,
Por vos ouvir martelar
Marteladas de avisado.
Oun. Senhor, bejo-vo-las mãos,
Mas o meu queria eu na mão.
Fro. Também isso he cortezão:
Senhor, bejo-vo-las mãos,
O meu queria eu na mão.
Que bastiães tão louçãos!
Quanto pesava o saleiro?
Oim. Dous marcos bem, ouro e fio.
Fro. Essa he a prata: e o feitio?
Oun. Assaz de pouco dinheiro.
Fro. Que vai com feitio e prata?
OUR. Justos nove mil reaes.
14
Vol. III.
210 LIVRO IV

E não posso esperar mais,


Que o vosso esperar me mata.
FID. Rijamente nrapertais.
E fazeis-me mentiroso,
Qu'eu gabei-vos d'outro geito;
E s'eu tornar ao defeito,
Não será proveito vosso.
OUR. Assi que o meu saleiro peito?
Fro. Elle he dos mais inaos saleiros,
Que eui minha vida comprei.
OUR. Ainda o eu tomarei
A cabo de três janeiros
Que ha que vo-Io eu fiei.
FIDALGO.
J'agora não he rezão;
Eu não quero que vós percais.
Oun. Pois porque me não pagais?
Que eu mesmo comprei carvão
Com que me encarvoiçais.
FID. MOÇO, vae-ine ver o que faz EIRei,
Se parecem Damas lá:
Este dia não se va
Em pagarás, não pagarei.
E vós tornae outro dia ca.
Se não achardes a mi,
Fallae c'o meu Camareiro,
Porque elle tem o dinheiro,
Que cada anno vem aqui
Da renda do meu celeiro;
E delle recebereis
O mais certo pagamento.
OUR. E pagais-me ahi c'o vento,
DAS FARÇAS. 211

Ou com as outras mercês?


FID. Tomae-lhe vós lá o tento.
Indo-se o Capellão, vai dizendo:
CAPELLÃO.
Estes hão d'ir ao paraíso?
Não creio eu logo nelle.
Eu lhes mudarei a pelle:
Daqui avante siso, siso,
Juro a Deos que m'abroquele.
Vem o Pagem com recado e diz:
PAGEM.
Senhor, in-Rei s'he no Paço.
Fio. Em que casa? PAG. Isto abasta.
Fro. O recado qu'elle dá!
Ratinho es de ma casta.
PAG. Abonda, bem sei eu o qu'eu faço.
FID. Abonda! olhae o villão.
Damas parecem per hi?
PAG. Si, senhor, damas vi,
Andavão pelo balcão.
FIDALGO.
E quem erão? PAG. Damas mesmas.
FID. Como as chamão? PAG. Não as chamava ninguém.
Fro. Ratinhos são abantesmas,
E quem por pagens os tem.
Eu hei de fazer por haver
Hum pagem de boa casta.
PAG. Ainda eu hei de crescer:
Castiço sain eu que basta,
Se me Deos deixa viver.
Pois o mais o deprenderei,
Como outros como eu per hi.
14*
2 i 2 LIVRO IV.

FID. Pois faze-o tu assi,


Porque has de ser d'ElRei,
Moço da Câmara ainda.
PAG. Boa foi logo ca a vinda.
Assi que até os pastores
Hão de ser d'elRei samica!
por isso esta terra he rica
De pão, porque os lavradores
Fazem os filhos paçãos.
Cedo não ha de haver villãos:
Todos d'ElRei, todos d'ElRei.
FID. E tu zombas? PAG. Não, mas antes sei
Que também alguns christãos
Hão de deixar a costura.
Torna o Capellão.
CAPELLÃO.
Vossa Mercê por ventura
Fallou ja a EIRei em mi?
FID. Ainda geito não vi.
CAP. Não seja tão longa a cura
Como o tempo que servi.
FID. Anda EIRei tão occupado
Co'este Turco, co'este Papa,
Co'esta França, co'esta trapa,
Que não acho vao azado,
Porque tudo anda solapa.
Eu entro sempre ao vestir;
Porém pera arrecadar
Ha mister grande vagar.
Podeis-me em tanto servir,
Até qu'eu veja logar.
CAP. Senhor, queria concrusão.
DAS FARÇAS. 213

FID. Concrusão quereis? Bem, bem,


Concrusão ha em alguém.
CAP. Concrusão quer concrusão,
E não ha concrusão em nada.
Senhor, eu tenho gastada
Hüa capa e hum mantão;
Pagac-me a minha soldada.
FID. Se vós podesseis achar
A altura de Leste a Oeste,
Pois não tendes voz que preste,
Perequi era o medrar.
CAP. E VÓS pagais-me c'o ar?
Mao caminho vejo eu este. (v«;-se.)
PAGEM.
Deve-o EIRei de tomar,
Que lucta coma damnado.
Elle he do nosso logar;
De moço guardava gado,
Agora veio a bispar.
Mas não sinto capellão
Que lhe diante hum par de quedas,
E chama-se o Labaredas.
FID. E ca chama-se Cotão,
Mais fidalgo que os Azedas.
Satisfação me pedia,
Que he peor de fazer
Que queimar toda Turquia;
Porque do satisfazer
Nasceo a melancholia.
Vem Pero Vaz, almocreve, que traz hum pouco de
fato do Fidalgo, e vem tangendo a chocalhada c cantando:
214 LIVRO IV.

PERO VAZ.
"A serra he alta, fria e névosa,
"Vi venir serrana gentil, graciosa;"
Arre, mulo namorado,
Que cústaste no mercado
Sete mil e novecentos
E hum traque pera o siseiro.
Apre, ruço, acrecentado
A moradia de quinhentos,
Paga per Nuno Ribeiro.
Dix, pera a paga e pera ti.
Arre, arre, arre embora,
Que ja as tardes são d'amigo.
Apre, besta do ruim.
Uxtix! o atafal vai por fora
E a cilha no embigo.
São diabos pera os ratos
Estes vinhos da Candosa.
"A serra he alta fria e nevosa,
"Vi venir serrana, gentil, graciosa."
Apre ca ieramá,
Que te vas todo torcendo,
Como jogador de bola.
Uxtix, uxte xulo ca,
Que t'eu dou irás gemendo
E resoprando sob a cola.
Ao corpo de mi Tareja,
Descobris-vos vós na cama.
Parece? Dix, pera vossa ama:
Não criarás tu hi vareja.
"Vi venir serrana, gentil, graciosa,
"Cheguei-me pcrVIla com gran cortezia."
DAS FARÇAS. 215

Mando-vos eu suspirar i
Pola padeira d'Av'eiro,
Que haveis de chegar á venda,
E então alli desalbardar,
E albardar o vendeiro,
Se não tiver que vos venda
Vinho a seis, cabra a três,
Pão de calo, filhos de manteiga,
Moça formosa, lençoes de veludo,
Casa juncada, noite longa,
Chuva coin pedra, telhado novo,
A candea morta, gaita á porta.
Apre, zambro, empeçarás'.
Olha tu não te ponha eu
Óculos na rabadilha,
E verás per onde vás,
Demo que t'eu dou por seu,
E andarás lá de cilha.
"Cheguei-me a ella de gran curtezia,
"Disse-lhe: Senhora, quereis companhia?"
Vem Vasco Affonso, outro almocreve, e topão-se ambos
no caminho, e diz
PERO V A Z .
Hou, Vasco Affonso, onde vas?
VAS. Uxtix, por esse chão.
PER. Não traes chocalhos nem nada?
VAS. Furtáráo-m'os lá detraz
Hum fideputa ladrão
Na venda da repeidada.
PKR. Hi bebemos nós á vinda.
VAS. Cujo he o fato, Pero Vaz?
PKR. D'hum fidalgo. Dou ó diabo
a i6 LIVRO IV.

0 fato e o seu dono co'elle.


VAS. Valente almofreixe traz.
PER. Toma o mu de cabo a rabo.
VAS. Pardeos, carrega leva elle.
PERO VAZ.
Uxtix, agora não pacerão elles,
E lá por essas chamecas
Vem roendo as urzeiras.
VAS. Leix'os tu, Pero Vaz, qu'elles
Achão aqui as hervas seccas,
E não comem giesteiras.
E quanto te dão por besta?
PER. Não sei, assi Deos nrajude.
VAS. Não fizeste logo o preço?
Mal has tu de livrar desta.
PKR. Leixei-o em sua virtude,
No qu'elle vir qu'eu mereço.
VASCO AFFONSO.
Em sua virtude o leixaste?
E tra-Ia elle comsigo,
Ou ha d'ir buscá-la ainda?
Oh que arama te fretaste!
Queres apostar comigo
Que tu renegues da vinda?
PER. Elle poz desta maneira
A mão na barba e me jurou
De meus dinheiros pagá-los.
VAS. Essa barba era inteira
A mesma em que te jurou,
Ou bigodezinhos ralos?
PKRO VAZ.
Ora Deos sabe o que faz,
DAS FARÇAS. 217

E o Juiz da Samora:
De fidalgo he manter fé.
VAS. Bem sabes tu, Pero Vaz,
Que fidalgo ha ja agora,
Que não sabe se o he. —
Como vai a ta mulher
E todo teu gasalhado?
PER. O gasalhado hi ficou.
VAS. E a mulher? PKR. Fugio. VAS. Não pôde ser!
Como estarás magoado,
Ierainá! PKR. Bofá não estou. —
Uxtix, sempre has d'andar
Debaixo dos sovereiros? — (par* o mnio.)
E a mi que me dá disso?
VAS. Por força t'ha de pezar
Se rirem de ti os vendeiros.
PER. Não tenho de ver co'isso.
Vae, Vasco Affonso, ao teu mu,
Que se quer deitar no chão.
VAS. Peza-te, mas desingulas.
PKR. Não peza; bem sabes tu
Que as mulheres não são
Todo o Verão senão pulgas.
Isto he quanto á saudade
Que eu delia posso ter;
E quanto ao rir das gentes,
Ella faz sua vontade;
Foi-se per hi a perder,
E eu não perdi os dentes.
Ainda aqui estou inteiro,
Vasco Affonso, como d'antes,
Filho de Affonso Vaz,
218 LIVRO IV.

E neto de Jan Diz pedreiro,


E de Branca Annes d'Abrantes.
Não me faz nem me dasfaz.
Do que me fica gran dó,
Que teve razão de s'ir,
E em parte não he culpada;
Porque ella dormia so,
E eu sempre ia dormir
Cos meus mus á Meijoada.
Queria-a eu ir poupando
Pera lá pera a velhice,
Como colcha de Medina;
E ella, mosca Fernando,
Quando vio minha pequice,
Foi descobrir outra mina.
VAS. E agora que farás?
PER. Irei dormir á Cornaga,
E ámanhan á Cucanha;
E tu vae, embora vas,
Qu'eu vou servir esta praga,
E veremos que se ganha.
Vai cantando.
"Disse-lhe, senhora, quereis companhia?
"Disse-me, Escudeiro, segui vossa via."
PAGEM.
Senhor, o almocreve he aquelle,
Que os chocalhos ouço eu:
Este he o fato, senhor.
FID. Ponde todo^ cobro nelle.
PER. Uxtix, mulo do judeu! —
O fato liu s'ha de pôr?
PAG. Venhais embora, Pero Vaz.
DAS FARÇAS. 219

PKR. Mantenha Deos vossa mercê.


PAG. Viestes polas Folgosas?
PKR. Ahi estive eu hoje faz
Oito dias pé por pé,
Em casa d'hüas tias vossas.
PAGKM.
Ora meu pae que fazia?
PER. Cavando andava bacelo,
Bem cansado e bem suado.
PAG. E minha mãe? PER. Levava o gado
Lá pera Vai de Cobelo,
Mal roupada qu'ella ia.
Uxtix, que mao lambaz! —
E vossa mercê que faz?
PAG. Estou loução como que.
PER. E á bofé creceis assaz.
Saúde que vos Deos dê.
PAGEM.
Eu sam pagem de meu senhor,
Se Deos quizer pagem da lança.
PKR. E hum fidalgo tanto alcança?
Isso he dTmperador.
Ora prenda EIRei de França.
PAG. Ainda eu hei de chegar
A cavalleiro fidalgo.
PKR. Pardeos, João Crespo Penalvo,
Que isso seria esperar
De mao rafeiro ser galgo.
Mais fermoso está ao villão
Mao burel, que mao frisado,
E romper matos inaninhos;
E ao fidalgo de nação
,Á20 LIVRO IV.

Ter quatro homens de recado,


E leixar lavrar ratinhos.
Qu'em Frandes e Alemanha,
Em toda França e Veneza,
Que vivem por siso e manha,
Por não viver em tristeza,
Não he como nesta terra;
Porque o filho do lavrador
Casa lá com lavradora,
E nunca sabem mais nada;
E o filho do broslador
Casa com a brosladora:
Isto per lei ordenada.
E os fidalgos de casta
Servem os reis e altos senhores,
De tudo sem presumpção,
Tão chãos, que pouco lhes basta.
E os filhos dos lavradores
Pera todos lavrão pão.
PAGEM.
Quero ir dizer de vós.
PER. Ora ide dizer de mi;
Que se grave he Deos dos ceos,
Mais graves deoses ha aqui.
(ao Fidalgo.)

PAG. Senhor, alli vém o fato,


E está á porta o almocreve:
Vede quem lhe ha de pagar
Isso tal que.se lhe deve.
FIDALGO.
Isto he com que m'eu mato.
Quem te manda procurar?
DAS FARÇAS. 221

Attenta tu polo meu,


E arrecada-o muito bem,
E não cures de ninguém.
PAG. Elle he d'apar de Viseu,
E homem que me pedem;
Pois a porta lhe abri eu.
Entra dentro o almocreve e diz:
PERO VAZ.
Senhor, trouxe a frasearia
De vossa mercê aqui.
Hi estão os mus albardados.
FID. Essa he a mais nova arábia
D'almocreve que eu vi:
Dou-te vinte mil cruzados.
PER. Mas pague-me vossa mercê
O meu aluguer, nó mais,
Que me quero logo ir.
FID. O aluguer quanto he?
PEn. Mil e seis centos reaes,
E isto por vos servir.
FIDALGO.
Fallae c'o meu azemel,
Porque he doutor das bestas
E astrologo dos mus,
Que assente em hum papel
Per avaliações honestas
O que se monta: ora sus.
Porque esta he a ordenança
E estilo de minha casa;
E se o azemel for fora,
Como cuido que he em França,
LIVRO IV
222

Dareis outra volta á massa,


E ir-vos-heis por agora.
Vossa paga he nas mãos.
PER. Ja a eu quizera nos pés,
Ó pesar de minha mãe.
Fro. E tens tu pae e irmãos?
PER. Pagae, senhor, não zombeis,
Que sou d'alem do sertão,
E não posso ca tornar.
FID. Se ca vieres á -çôrte,
Pousarás aqui c'os meus.
PER. Nunca mais hei de fiar
Em fidalgo desta sorte,
Emque o mande San Matheus.
FIDALGO.
Faze por teres amigos,
E mais tal homem com'eu,
Porque dinheiro he hum vento.
PER. DOU eu ja ó demo os amigos
Que me a mi levão o meu.
Vai-se o almocreve, e vem outro Fidalgo, e diz o
FIDALGO i°.
Oh que grande saber vir,
E que gran saber-me a vontade!
o
F. 2 Pois, senhor, que vos parece?
Desejo de vos servir,
E não quero que venha á cidade
Hum quem não parece esquece.
o
F. I . Paguei soma de dinheiro
A hum ourives agora,
De prata que me lavrou,
E paguei a hum recoveiro,
DAS FARÇAS. 223

Que he a dar dinheiros fora


A quem não sei como os ganhou.
FIDALGO 2°
Ganhão-nos tão mal ganhados,
Que vos roubão as orelhas.
F. 1° Pola hóstia consagrada
E polo Deos consagrado,
Que os lobos nas ovelhas
Não dão tão crua pancada.
Pólos sanctos avangelhos,
E polo omnium sanctorum,
Que até o meu capellão,
Por mézinhas de coelhos
E hüa secula seculorum,
Lhe dou por missa hum tostão.
Não ha ja homem em Portugal
Tão sujeito ein pagar,
Nem tão forro pera mulheres.
F. 2° Guardae vós esse bem tal,
Que a ini hão-me de matar
Bem me queres mal me queres.
F. I o Por quantas damas Deos tem
Não daria nem migalha.
Olhae que descubro isto.
F. 2? Sam tão fino ein querer bem,
Que de fino tomo a palha,
Pola fé de Jesu Christo.
Quem quereis que veja olhinhos,
Que se não perca por elles,
Lá per huns geitinhos lindos,
Que vos mettem em caminhos,
E não ha caminhos nelles,
V R O IV
224 ^

Senão espinhos intuídos?,


F. 1° Eu ja não hèi de penar
Por amores de ninguém;
Mas dama*de bom morgado,
Aqui vai o remirar,
Aqui vai o querer bem,
E tudo bem empregado.
Que porque dance mui bem,
Nem bailar com muita graça,
Seja discreta, avisada,
Fermosa quanto Deos tem —
Senhor, boa prol lhe faça,
Se seu pae não tiver nada.
Não sejais vós tão Maneias,
Que isso passa ja d'amor,
E cousas desesperadas.
F.2° Porém lá por vossas vias
Vou-vos esperar, senhor,
A rendeiro das jugadas.
Porque galante caseiro
He pera pôr em historia.
F. 1° Mas zombae, senhor, zombae.
F. 2» Senhor, o homem inteiro
Não lh'ha de vir á memória
Co'a dama o de seu pae;
Nem ha mais de desejar
Nem querer outra alegria,
Que so Los tus cabellos nina.
Não ha hi mais que esperar
Onde he esta cantiguinha.
E, Todo o mal he de quem no tem.
E, «Se o disserem dígão — Alma minha,
DAS FARÇAS. 225

Quem vos anojou, meu bem:


Hei os todos de grosar,
Ainda que sejão velhos.
F. 1° Vós, senhor, vindes tão bravo,
Que eu hei-vos medo ja.
Pólos sanctos evangelhos
Que levais tudo ao cabo,
Iiá onde cabo não ha.
o
F. 2 Zombais e dais a entender
Zombando, que m'entendeis.
Pois de vós mui alto estou,
Porque deveis de saber
Que se d'amor não sabeis,
Não podeis ir onde eu vou.
Quando fordes namorado,
Vireis a ser mais profundo,
Mais discreto e mais subtil,
Porque o inundo namorado
He lá, senhor, outro inundo,
Que está alem do Brasil.
Oh meu inundo verdadeiro!
Oh minha justa batalha!
Mundo do meu doce engano!
F. 1° Oh palha do meu palheiro,
Que tenho hum mundo de palha,
Palha ainda d'ora a hum anno;
E tenho hum inundo de trigo
Pera vender a essa gente.
Boa cabeça tem Morale.
Não quero d'amor, amigo,
Andar gemente e flente
In hac lacn/marum valle.
V..I. III. 15
LIVRO IV.
226
FIDALGO 2O.
Vou-me ; vós não sois sentido,
Sois mui duro do pescoço;
Não vale isso nem migalha:
Pesa-me de ver perdido
Hum homem fidalgo ensoço,
Pois tem a vida na palha.

«~c-
FIGURAS.
HUM CLÉRIGO.
FRANCISCO, seu filho.
GONÇALO. - Villão.
ALMEIDA
> Moços do Paço.
DUARTE
HUM NEGRO.
HUMA VELHA.
CEZILIA PEDREANES.

Segue-se outra farça de folgar- que trata como hum


Clérigo da Beira, vespora do Natal, determinou tfir aos
coelhos; e indo pera acaça com hum filho seu rézão as matinas.
Trata-se outro si dé hum villão, que indo vender d Corte
hutna lebre e huns capões, e hum cabaz com fruita, foi rou-
bado, que até o chape irão lhe furtarão: o qual furto foi
detcuberto por Cezilia demoninhada, em quem dizião que
foliava hum Pedreanes. Foi representada ao muito poderoso
e christianissimo Rei D. João, o terceiro do nome em Portu-
gal, em Almeirim, era do Senhor de 1526.

15'
O CLÉRIGO DA BEIRA.

Entra o Clérigo com seu filho Francisco, e diz o filho:


FRANCISCO.
Vós haveis de celebrar
Missa de festa em pessoa,
E não fazeis a coroa
Antes que vamos caçar?
Pois, pae, não haveis d'olhar
Que sois clérigo da Beira,
Porque a gente cabreira
Em tudo quer attentár.
CLÉRIGO.
Ta mãe m'a trosquiará,
Não cures tu de conselhos;
Cacemos nós dos coelhos,
Que isso á noite se fará.
FRA. Sabeis, pae, qu'esqueceo lá
A furoa? CLE. Vae por ella.
FRA. De hüa légua hei d'ir trazê-Ia ?
Melhor viva eu que lá va.
CLÉRIGO.
Pesar da ida e da vinda,
Vae, torna pola furoa.
FRA. Va lá quem tiver coroa,
Que eu não na tenho ainda.
DAS FARÇAS. 229

CLKRIGO.
Creio que a vara ha dandar.
S'is«o vai dessa maneira.
FRA. EU não sou vossa oliveira
Que a haveis de varejar.
CLE. Renego destas respostas:
Vae muito asinha. FRA. EU creio
Que cuidais que sou correio
Que vai e vem polas postas.
CLÉRIGO.
Cre tu se me a mim não fora
Que ta mãe logo s'assanha,
Ja t'eu dera hüa tamanha,
Que tu foras logo essora.
Requeiro-te que vas embora,
Ante que se assanhe o abbade.
FRA. Ainda eu não tenho vontade,
Lá he ella algures fora.
CLE. Vae, Francisco. FRA. Si, irás.
Ide vós: não tendes pés?
CLE. Filho de clérigo es,
Nunca bô feito farás.
FRANCISCO.
Peores são os de Frei Mendo,
E os do Beneficiado,
Que vão tomar o bocado
Que seu pae está comendo.
CLK. Vae, que ja está no cortiço,
Senão tomá-la e trazê-la.
FRA. Ja ma ora vou por ella,
Mas hei de furtar chouriço.
Vai o moço pela furoa c fica o Clérigo antre si dizendo:
g30 LIVRO IV.

CLÉRIGO.
Medraria este rapaz
Na corte.mais que ninguém,
Porque lá não fazem bem
Senão a quem menos faz.
Outras manhas tem assaz,
Cada hüa muito boa:
Nunca diz bem de pessoa,
Nem verdade nunca a traz.
Mexerica que por nada
Revolverá San Francisco;
Que pera a Corte he hum visco,
Que caça toda a manada.
Vem o filho com a furoa, e diz:
FRA. Ja minha mãe tem tascada
A regueifa do bautismo:
Andae vós ca, pae, ao bismo,
Que ella não lh'escapa nada.
CLÉRIGO.
Rezemos matinas logo,
Antes que entremos á caça;
Que como homem s'embaraça
Nella, não he senão fogo.
FRA. Matinas de ca da Beira,
Ou como quereis rezar?
CLE. Si, pera que he mudar
Cada dia hüa maneira?
Porque os capellães d'ElRei,
Que ca na Beira tem renda,
Se rézão lá d'outra lei,
Tem outra lei de fazenda.
Mas Deos dê muita prebenda
DAS FARÇAS. 231

A Antone Alvares, que he rezão


Que elle e outros que lá estão,
Nos leixárão esta lenda.
FRANCISCO.
Nome de Deos começar.
CLK. Pater noster. FRA. Que siso!
Na caça pera que he isso,
Senão Domine lábia? Andar.
CLK. Domine lábia mea,
Tu priol a pé irás.
FRA. Se cansares, assentar-te-has,
Pois que não tens facanea.
CLK. Venite, exultemus,
Que cães e furão que temos
Pera tempo de mister!
FRA. Domine Dominus noster
Nos dê com que os manter,
E coelhos que levemos.
CLE. Catli enarrant gloriam Dei,
Não cuide Papa nem Rei
Que está no cume da serra.
FRA. Domini est terra,
Que he senhor de toda grei.
CLK. Ora te Deum laudamus,
Pois que tal manhan levamos
Pera provarmos a perra.
FRA. Jubilule Deo, omnis terra:
Diz que rezemos e vamos.
CLE. Assi manda Deus, Deus meus,
E nos dá dia par'elles.
FRA. Lauda Dominum de ceells.
Pois os coelhos são seus.
232 LIVRO IV

CLE. Cantate: diz que cantemos


Cantar novo e não usado.
FRA. Cante o Beneficiado,
Que nós pouco pão colhemos.
CLE. Laudate Deum, omnes gentes,
Laudate Nuno Ribeiro,
Que nunca paga dinheiro,
E sempre arreganha os dentes.
FRA. Levavi óculos meos,
Vi que os dinhciros alheios
Muitos os repartem crus.
CLK. Nisi quia Dominus
Nos dará os melhores meios.
FRA. Qui confidunt in Domino
Tem esperança direita.
CLE. In convertendo boa peita
Deste tal não hajas dó.
FRA. Beati omnes que tem,
Que estes podem dizer bem
Lattatus mm in iis.
CLE. Laudate, Hierusalem,
A todo o homem que tem
Vinténs, tostões e ceitis.
FRA. Seepe expurgaverunt me:
Diz a lyra na sua grosa,
Que he cousa perigosa
Andares á caça a pé.
CLE. Se beato iminaculato
M'emprestasse o seu mulato,
Mas não sei se quererá.
FRA. Jam lucis orto si dará
Em que leves ti e o fato.
DAS FARÇAS. 233

CLK. Dixit Dominus que tinha


Hüa muito boa asninha7
Non sede a dextris méis.
FnA. Donec ponam tein seis
E mais hüa mulatinha;
Vede se as havereis.
CLK. Beatus vir que tem sendeiro,
Que lhe aparou Deus deorum.
FRA. Habet consilium impiorum
Não o emprestar sem dinheiro.
CLK. Deus in nomine tuo de graça
Salva-me na tua faca.
FRA. Com dous arrateis de vacca
Escusarieis a caça.
CLE. Ir á caça cada dia
Aleluia, aleluia.
FRA. Vamo-nos a bom bispo,
Pedrada no teu toutiço.
CLK. Oremus. FRA. Bem faremos.
CLE. Venhão-ine os cães,
As redes e o furão,
Mas o coelheiro não.
Que vives e reinas
Na villa do Pedregão.
FRA. Abem.
CLK. Requescant in pacem.
FRA. Mãos pagadores te paguem.
CLE. Inducas in tentationem.
FRA. Responda-te Luiz Homem.
CLE. Exaudi orationes nostras.
FRA. Azambujo nessas costas.
CLH. Pater noster.
234 LIVRO IV.

Torna a casa muito prestes


E leva esse breviairo.
FRA. Em dia de algum fadairo
Foi quando vós, pae, nacestes;
Porém se eu lá volver
Benzei-vos se ca vier.
CLE. Virás, Francisco; ora vae,
Que filho es de bom pae,
E ta mãe boa mulher.
Dize-lhe que s'eu tardar,
Que tanja a vespora e repique
Muito bem, porque não fique
A festa sem repicar.
E ha mister que correja
Muito bem essa igreja,
E as galhetas bem sabe ella
Que hão ja mister barrella;
E olhe tudo e proveja.
Anda Tejo á Fragueira.
E dirás a ta mãe mais,
Que me guarde os corporaes,
Que ficão na cantareira.
E o calez achará
No ahnáreo de ca
Atado c'os seus toucados,
E os amitos pendurados
Onde a minha espada está.
E a vestimenta achará
Dobrada sobre a albarda.
Que ponha tudo cm guarda,
Como ella sabe ja.
E que alimpe bem a pia,
DAS FARÇAS. 235

Não asse sempre castanhas;


E tire as teas d'aranhas
Á mártel Sancta Luzia.
E solte a cabra também,
Que está presa pela estola,
E logo não seja tola,
Que correja tudo bem.
Porque se Deos ca aportar
Marcos Esteves da corte,
E achar tudo dessa sorte,
Vê-lo-heis vós espirar — ai, ai.
Á ribeira, que esse he elle,
Pólos sane tos evangelhos;
Ja lhe elle pruem os artelhos,
E se lhe escarrapiça a pelle.
Cão. Ham, ham. CLK. Guard'o cabrão.
Cão. Ham, ham. CLK. Ora, cadella.
Cad. Hao, hao. CLE. Ei-lo vai pola portella,
Sem cadella e sem cão!
Oh renego da vida,
Perdoe-me Deos consagrado.
Algum grande excommungado
Me olhou á minha partida.
Vem hum filho á"hum lavrador, e traz hum cesto cu-
berto e hüa lebre e dons capões, e chegando ao Clérigo diz:
GONÇALO.
Ora Deos vos dê prazer.
CLK. Que he isso que levas hi?
'GON. Huns inarmelos levo aqui,
Samicas pera vender,
E esta lebre pera haver
Dinheiro dos cortezões;
236 LIVRO IV.

E levo este par de capões,


E limões pera os comer,
Qu'elles dinheiro terão.
CLK. Pois que vas vender á corte,
Olha bem pelo virote,
Não te fies de rascão.
GON. E rascões que aves são?
Samicas são alguns bichos.
CLK. Mas são lobos pera michos,
E raposos de nação.
GONÇALO.
Bem hei de saber vender.
CLK. E elles melhor comprar.
Se te puderem furtar
As orelhas, has de ver.
GON. Não me quero mais deter;
Vou-ine e Deos va comigo.
CLK. Olha bem por ti, amigo.
GON. Bem sei o que hei de fazer.
Entrão dous moços do Paço muito louçãos, hum chamado
Duarte, outro Almeida, o qual começa dizendo ao
Duarte:
ALMEIDA.
A tormenta da ma vida
Que eu levo neste Paço,
Sabes que conta lhe faço?
Que vou n'hüa nao perdida,
Rota pelo espinhaço.
DUA. Bom dizer he esse, porém
Dae a Deos tal apontar.
ALM. Isso não será zombar?
DAS FARÇAS. 237

Ja ine disse não sei quem


Bem do vosso motejar.
DUARTE.
Abasta: folguei de ver
Sair-vos Tullio do seio:
Muitos criará o centeio,
Mas poucos de tal saber.
A LM. Logo vos forão dizer
Qu'era eu ratinho, senhor.
DUA. Não sei, vós tomastes cór,
Eu não sei que isso quer ser.
E vejo-vos, mano, morto,
E tendes ar de mirrado.
A LM. Vós estais mais aguçado
Que canivete do Porto.
Viva o Conde do Redondo,
Que lhe furtais quanto tendes;
Mas da sua graça mendes
Vos acho eu todo mondo.
DUARTE.
Logo fallais per mondar,
Como homem daquella terra:
Ja vós verieis na serra
Algum gadozinho andar,
Não digo eu pera o guardar,
Senão ve-Io-heis pacer,
E pera vosso prazer
Sabereis assobiar.
ALMEIDA.
Per muitas fôrmas zombais,
Fôrmas bem as conheceis;
Olhae não vos demudeis
238 LIVRO IV.

Primeiro que m'entendais.


DUA. Assi como bafejais,
Inda me cheirais a nabos.
ALM. Bem parece que a dous cabos
Cozeis tudo o que fallais.
DUARTK.
Eu vejo vir hum villão,
Hei-o certo de abraçar,
Porque se pôde acertar
Que será algum vosso irmão. —
Guarda-porcos, dá ca a mão.
GON. Nunca os guardei per mi,
Mas ja eu a vosso pae vi
Morder huin bom cordavão.
ALMEIDA.
Parece-me que per sua arte
Vos sacode elle a badana.
Dos michos desta somana
Te dou, villão, minha parte. —
Olhae ca, Senhor Duarte.
DUA. Almeida, que me quereis?
Tantas Cousas paroceis,
Que não sei de qual me farte.
Porque he certo que eu vos vi
Levar ja a merenda á vinha,
E ca pregais a boquinha
Como Dom Priol daqui.
E propriamente assi
Sabeis tudo, ah narizinhos!
E onde fordes vizinhos
Grande frio fará alli.
DAS FARÇAS. 239

GONÇALO.
Bofá vejo eu Portuguezes
Da corte muito alterados,
Mais própinquos dos arados
Que parentes dos Menezes.
DUA. Oh fideputa avisado!
E o villão he castiço:
O rapaz rapa chouriço,
Rapaz mouro emgrageijadn.
GONÇALO.
Vós sombreiro acutilado,
Cuidareis que sois alguém?
Pois vos eu conheço bem,
Fallae vós mais conchavado.
DUA. Rapaz, es tão namorado!
Ora falia sem sabor,
Rapaz, que mudas a côr.
GON. Ora estais bem aviado.
ALMEIDA.
Vendes a lebre, villão?
GON. Si, fidalgo. ALM. Mostra ca:
Quanto a dás? que custará?
GON. Samicas meio tostão.
ALM. E no cesto, que tens lá?
GON. Trago aqui estes capões,
E bons marmelos valentes,
Se delles fordes contentes;
E er também trago limões
Pera aguçardes os dentes.
Enquanto Gonçalo se abaixa a descobrir o cesto pera
mostrar tudo o que traz, foge Almeida e leva a lebre, e
Gonçalo achando-a menos, diz:
240 LIVRO IV.

GONÇALO.
E a lebre que foi delia?
DUA. Que sei eu? GON. Hu-lo parceiro?
DUA. Não te deu elle o dinheiro?
GON. Pardeos de graça vai ella:
Lá a leva elle o escudeiro.
DUA. Vae, vae correndo asinha,
Que inda agora vai per hi.
GON. Olhae-me vós perequi,
Porque ella não era minha,
E he mal perdê-la assi.
DUARTE.
Oh que gostoso villão,
E que boa festa temos!
Almeida e eu partiremos
Como irmão com irmão.
GON. HOU mulher do amarello,
Viste ca, se vem á mão,
Hum fidalgo terrastão
Com hüa lebre no capello?
Hou vós do sacco de palha,
Viste-ine ça minha lebre?
Oh! dou-me a Deos que me leve,
Não hei de achar nem migalha.
Dize, senhor sapateiro,
A minha lebre vai ca?
Pera que he buscá-la ja!
Dou ó demo o escudeiro.
Leve-a por amor de Deos,
Pola alma de meus finados,
Porque lhe somos obrigados,
Eu e todos meus ereos.
DAS FARÇAS. 241

Duarte tanto que Gonçalo se partio a buscar a lebre,


foi-se e levou o cesto e os capões, e diz Gonçalo quando
não acha novas da lebre:
Peor he que me dá ca
Na vontade que os capões
Forão c'os outros rascões
Caminho da ira ma.
Pardeos, tal vos he ella a vós:
Isto he o com que eu renego.
Fizera mais hum Gallego
Na meta de huns inatos sos?
Hüa escandola com'esta
Enche de birra a pessoa;
Nem tal chufa não he boa
Pera véspera de festa.
Como assi se usa ca?
Ai erainá que he mal;
Que quem furta hum furto tal
Outro melhor furtará.
As almas dos cortezões
São coma nao sem governo,
Porque cuidão que o inferno
Que se come com limões.
O carmelita nos sermões
Bem lhes mostra o paraíso,
Mas tanto vem elles isso
Como eu vejo os meus capões.
Indo assim Gonçalo tornando pera a sua aldea, torna
A achar o Clérigo, o qual lhe diz:
CLÉRIGO.
Ja tu, Gonçalo, vendeste?
Asinha tu despachaste.
1G
Vol. in,
242 LIVRO IV

GON. Praza ao martyr Santiaste


Que nunca lh'a lebre preste.
Abaste, eu não fui sesudo.
CLE. Conta, rogo-t'o, Gonçalo.
GON. Mais porei eu em contá-lo,
Que elles em furtar-me tudo.
CLÉRIGO.
Estava isso mao de ver.
GON. Sois proféteguo, padrinho:
Mas se eu torno outro caminho,
Não ha ella assi de ser.
Porém quereis-ine dizer
Hum responso ou hüa aquesta,
Que m'apare Deos a cesta,
E dar-vos-hei do que tiver?
CLÉRIGO.
Se queres miracula ver,
Torna lá c'hum pár de patos,
Que se os capões vão baratos,
Estes assi hão de ser.
Calamitas demones has de trazer;
Porém o dinheiro será de mao inez.
Cedunt maré vincula res
Que perdunt quanto vieres vender.
Quero ora ir catar
Cousa que me mate a brasa.
GON. EU não ouso d'ir a casa;
Meu pae ha ine de cocar.
CLK. Spera-me a par do logar,
E eu irei lá comtigo,
E rogar-lh'hei como amigo,
Que não te deixe de dar.
DAS FARÇAS. 243

Se topares lá em fundo
Hum negro, põe-te a recado,
Porque he hum perro malvado,
0 maior ladrão do inundo.
Não olhes no que fallar,
Qu'he muito falso o cabrão.
Olha per teu chapeirão,
Porque elle ha-te de atentar
Se tens tu olho ou não.
Indo Gonçalo seu caminho, apartando-se do Clérigo, topa
hum Negro grande ladrão, e entra cantando buscando hum
mulato: e diz Gonçalo, depois de cantar o Negro:
GONÇALO.
Dizc, negro, es da corte?
NBG. Qu'esso? GON. S'es da corte?
NEG. Ja a mi forro, nain sa cativo.
Boso conhece Maracote?
Corregidor Tibão he.
Elle comprai mi primeiro;
Quando ja paga a rinheiro,
Daita a mi fero na pé.
He masa tredora aquelle,
Arama que te ero Maracote.
GON. Mais tredor era o rascote
Que m'a mim furtou a lebre.
NEG. Qu'hc quesso que te furtai?
GON. Hüa lebre de meu pae,
De meu cunhado huns capões,
E marmelos e limões;
Abonda tudo lá vai.
NEGRO.
Jesu, Jesu, üeoso consabrado!
244 LIVRO IV

Arama tanta ladrão!


Jesu! Jesu! hum caralasão:
Furunando sá sapantado.
Jesu! cralasatn.
Pato nosso santo paceto ranho tu e figo valente tu
e cinco sego salva terá pão nosso quanto dão dá noves
caro he debrite noses ja libro nosso gallo. Amen Jeju,
Jeju, Jeju.
Sa pantaro Furunando.
Dize, rogo-te, fallai:
Conhece tu que furtai?
Porque tu nam bruguntando ?
GON. Perguntarei por meu pae.
NEG. Cal-te: Deóso cima sai,
Que furtai ore oiai.
Deoso nunca vai dormi,
Sempre abre oio assi
Tamanha tu sapantai.
Guarda mar esso mal,
E senhora Prito santo.
Nunca rirá homem branco
Furunando furta real.
Não sabe mi essa careira:
Para que? para come?
Muto come imito bebê,
Turo turo sa canseira.
Vira mundo turo canseira:
Senhor grande, canseira;
Home prove, canseira;
Muiere fermoso, canseira;
Muiere feio, canseira;
Negro cativo, canseira;
DAS FARÇAS. 245

Senhoro de negro, canseira.


Vai missa, canseira;
Pregação longo, canseira;
Crerigo nam tem muiere, canseira;
Crerigo tem muiere, canseira,
Grande canseira:
Firalgo solto, canseira;
Chovere muto, canseira;
Não pôde chovere, canseira:
Muito filho, canseira;
Nunca pariro, canseira;
Papa na Roma, canseira;
Essa ratinho, canseira;
Não vamo paraíso, grande canseira:
Vira resa mundo turo turo he
Canseira.
Mi nam falia zombaria.
Pos para que furtai?
Que riabo sempreza!
Abre oio turo ria.
Mi busca mulato bai,
Ficar abora, ratinho.
GON. EU aguardo meu padrinho,
Que va comigo a meu pae.
Eu vou ao rio perem,
Porque hei sede e bebcrei,
E sicais que nadarei
Einquanto o clérigo vem.
Leixarei o chapeirão
Mettido nesta mouteira,
E o cinto e esmoleira,
246 LIVRO IV.

Porque lá logo o verão,


Não me aqueça outra tal feira.
Espreita o negro como Gonçalo esconde o chajmrão e
o al, e tanto que se vai entra dizendo:
NEGRO.
A mi abre oio e ve
Ratinho tira besiro:
Ere dexa aqui condiro:
Não sei onde elle mettê.
Senhora Santo Francico,
Santa Antonia, San Furunando!
Pois mi ha d'andar buscando,
E levare elle na bico
O servo Santa Maria.
Sabe a regina Malho misercoroda nutra d'hum cego
savel até que vamos. A oxulo filho d'egoa alto soso
peamos ja mentes ja frentes vinagre qu'elle quebrarão
em balde ja ergo a quante nossa ha ilhos tue busca
cordas óculos nosso convento e geju com muito fruta
ventre tu ja treines ja pias. Seuro santa Maria dinhero •
me lá darão he ve esa carta da ine inucho que furte
cantara Furunando.

Acabada assim esta salve regina, acha o Negré o que


Gonçalo leixou escondido, e diz:
Ei-lo aqui sa! Deoso graça.
Graça Deoso esse he capote;
Nunca dexa aqui palote:
Ratinho, quem te forcasse!
Arama que te ero villão!
Que palote sabá sam,
Barete «lambem bo era.
DAS FARÇAS. 24?

Mi cansai e á deradera
A mior fica sua mão.
Vejamos bolsa que tem:
Hum pente para que bo?
Três ceitil sa qui so:
Ratinho nunca bitem.
O riabo ladarão!
Corpo re reos consabrado!
Essa villão murgurado
Sa masa prove que cão.
Quando bolsa mi acha.se
Fernão d'Álvaro, esse si;
Nunca pente sa alli.
Ah reos! quem te furtasse
Bolsa, Nu na Ribeiro!
Home bai busca rinheiro:
A toro ere rise:
Ja rinheiro feito he.
Arama que tu ero gaiteiro!
Fernão d'Alvaro m'acontenla;
Elle nunca risse nam.
Logo chama ca crivam,
— Crivaninhae esormenta;
Toma rinheiro, vas embora.
Boso,ihome de bem, que buscae?
— Mi da cureiro agarba sae.
— Boso que buscae corte agora?
— Buscae a Rei jain João,
Paga minha casarainento.
— Dá ca, moso, trac esoruiento;
Crivaninhae boso, crivão:
Home, tornae hum dos quatro sete
248 LIVRO IV.

Vas embora turo turo.


Sua rinheiro sa segura,
Mioro que elle promete.
Marco Estevez moladeiro
Elle rise: Santa Maria!
Rinheiro boso queria?
Bai bai dormir paieiro. —
Boso que pedir, muieiro?
— Tanta filho mi tem qui...
— Quem manda boso pari,
Boso grande parideiro?
— Boso seria muito bô:
Vaca ne Francico paia;
Tenha seis filho e mi so
Nam temo comere ni migaia.
Elle rise:
Que culpo tem a Rei jam João ?
Boso parir como porco,
Bai buscai sua pae torto,
Que dai a sua fio pão.
Velha, que boso querê?
— Molla, que a mi pobre sai.
Elle rise:
Porque boso nam guardai
Rinheiro que boso bebê? —
Jesu! Jesu! moladeiro
Sa riabo aquella home;
Quando a mi more da fome
Nunca buscai sua rinheiro.
Porém graça a Reos, a mi
Nunca mitiga que furta;
Pouco ca, pouco rela,
DAS FARÇAS. 249

Pouco requi, pouco reli,


Grão e grão gallo farta.
Quem furta, home sesuro:
E louvar a Reos com turo
E senhoro Prito Santo.
A mi bai furta emtanto
Camisa que sá na muro.
Vem Gonçalo tremendo com frio r diz:
GONÇALO.
Mui mao nadar faz verão
Até meado o Janeiro;
Mas agora he o ribeiro
Que corta homem como cão.
Jesu! e o meu .chapeirão
E o cinto e a esmoleira?
Pois esta era a mouteira
E este he ô mesmo chão.
Agora merecia eu
Hum par de trochadas boas,
Porque fiar nas pessoas
Nunca outro frueto deu.
Bem vi eu que o guincu
Me vio tudo aqui leixar;
Mas o seu negro pregar
Me levou a mi o meu.
Quem se faz mais verdadeiro,
Crede que he o mentiroso;
E nunca vistes medroso
Que não finja de guerreiro,
E o ladrão de piadoso.
Ja todo o inundo he raposo
Ja não ha hi que fiar,
250 LIVRO IV.

A mi mesmo hão de furtar


Se in'eu daqui não acosso.
Roubado assi Gonçalo vem hüa velha <• traz comsigt
Cezilia da Beira em que falia Pedreanes.
VELHA.
Amara do meu fadairo!
Hui Fernando neto meu,
Qu'he do que teu pae te deu?
Que lá contou o Vigairo
Quão pouco trazes de teu.
E teu pae he tão cruel,
E tua mãe tão sundia,
Que trouxe da estrebaria
Hüa vara d'azemel
Pera te tirar a azia.
Quando vi tamanha aquella,
Trago esta demoninhada
A Cezilia nomeada
Falia Pedreanes nella,
E descubrirá a cilada. —
Pedreanes! CEZ. Aqui 'stou.
VEL. E aqui haveis d'estar,
E haveis-vos d'assentar;
E pois sabeis quem roubou
Meu. neto, fazci-lh'o achar.
CEZILIA.
Não ha muito de tardar;
Mas logo aqui virão ter
Quem isso lhe foi fazer;
E se quizerem pagar
Eu bem Ih'o hei de dizer.
GON. Que he o que me furtarão?
DAS FARÇAS. 251

Vejamos se adivinhais.
CKZ. DOUS mancebos fenganárâo,
E os limões que te levarão
Venderão por seis reaes.
E hüa moça corcovada
Está agora depennando
O capão de tua cunhada,
E o outro se está assando,
E a lebre pendurada.
Ainda por mais signal
Cubrírão-na c'hum sombreiro
Em casa d'hum alfaiate.
GON. Que besteiro he este tal!
Este he o Déxemo inteiro
Em trajos de carafate.
Mais hei hoje de saber,
Pois m'eu acho aqui á mão.
Assi Deos te dê prazer
Que tu me queiras dizer
S'hei de casar cedo ou não?
CKZ. Casarás polo natal
Com mulher sem tua perda;
Seu corpo como cristal,
E achar-lhe-has hum signal
No meio da coxa esquerda.
E tem na teta direita
Hum luar com três cabcllos:
Pola cinta muito estreita,
De hüa nádega contreita.
E zauibra dos cotovelos.
GON. Não hei de casar dessartc,
Nem Deos não ha de querer.
252 LIVRO IV.

CEZ. Esta mesma has tu d'haver,


Nem cases em outra parte,
Senão pouco has de viver.
VELHA.
Bento e louvado serás
Deos e a Virgem da Fr/anqueira,
Que me tirou de canseira
De casarás, não casarás,
Sei freira, não sejas freira.
CKZ. Pois que vós isso dizeis,
E não me perguntais nada,
Antes de hum anno e hum inez
-Vós haveis de ser casada
Chuui criado do Marquez.
VELHA.
Agora me quero eu rir:
Sabedes vós isso certo?
CEZ. Digo que estais tão perto
Como eu de me partir
Pera o meu negro deserto.
VEL. Pedreanes, não vos vades,
Rogo-vo-lo, que ainda he cedo.
Sebedes vos — eu hei medo
Serem isso vaidades,
E essoutro estar-se quedo.
Vem Duarte e Almeida.
DUARTE.
Mantenha-vos Deos, Brancanes,
Deos vos dê sempre boa hora.
VEL. Não falleis em Deos agora,
Porque está aqui Pedreanes,
Que chegou agora esfhora.
DAS FARÇAS. 253

DUA. A elle buscamos, senhora,


Que o havemos bem mester,
E dar-lh' liemos, d'alma em fora,
Tudo quanto elle quizer,
Que o leve muito embora.
VELHA.
Pedreanes a hum grou
Achará o rasto no ar,
Pois que m'elle foi achar
Que velha assi como estou,
Hei ainda de casar.
Creio-o-lh'o polo que vejo,
Porque eu sou muito sadia,
E tenho a pelle macia
Como costas de cranguejo
Ou lagosta d'Atouguia.
E tenho minhas arnellas:
Ponde m'ora aqui a mão,
Mancebo. E haja eu perdão,
Ainda eu como co'ellas
Hüa posta de cação.
O bafo, a Deos louvores,
He coma algalia d'Arruda.
Ora eu farei outras cores,
Porque hei d'entrar em muda,
Como fazem os açores,
Então venhão meus amores.
' DUARTE.
Pedreanes. CEZ. Aqui estou.
DUA. Estae por amor de mi,
E não vos vades daqui;
Porque minha fé vos dou
V R O y
254 " }

Que somos vossos emfim.


CEZ. Se quereis levar na mão
Isso porque me buscastes,
Pagae a este villão
A lebre que lhe tomastes,
E três vinténs por capão,
E hum tostão dos inarmelos,
E pagãe-lhe seus limões.
VEL. Parece-me a mi, rascões,
Que vos tornais amarellos.
DUA. Paguemos-lhe três tostões.
ALM. Duarte, tendes vós hi
Dinheiro na fraldiqueira ?
DUA. EU vendi patos na feira?
ALM. Nem eu tampouco os vendi,
Nem tenho eira nem beira.
CEZILIA.
Gonçalo, sei tu lembrado
Que dixeste que por Deos
Lhe havias por perdoado
Pola alma de teus ereos,
E não te devem cornado.
Vae pedir o chapeirão
Ao negro do Maracote.
GON. Ora fiae de rascão,
Que farpa lodo o pelote,
E não se farta de pão.
ALM. Ja nós somos sabedores
Que he muito teu poder,
E queríamos saber
Planetas d'alguns senhores,
E sinos de seu nacer.
DAS FARÇAS. 255

E a que são inclinados


Por sua costellação,
E quaes são mais namorados.
E também as condições
De que planeta lhes vem,
Declarado por item.
CEZ. Dizei embora, rascões,
Qu'eu sei isso muito bem.
Porque por astrolomia
Conheço os seus nascimentos,
E pola filosoinia
Sei todolos pensamentos
Que trazem na fantesia.
DUARTE.
Qual he o mor namorado
De Portugal e Castella?
CKZ. He o Conde de Penella;
Mas anda dissimulado
Por amor da sua cstrella.
ALM. O senhor Embaixador
Do César Imperador
Creio que naceo no ceo;
Mas se na terra naceo,
Qual planeta em seu favor
Foi a que lhe aconteceo?
CEZILIA.
Naceo hüa noite clara
Quando a lua apparecia,
E Venus tomava a vara
Com que as graças repartia,
Como em elle se declara.
E estando assi histrosa,
256 LIVRO IV.

O fez tão sábio e humano,


De condição tão graciosa,
Que não tem em nada grosa,
Senão so ser Castelhano.
DUARTE.
O Conde de Marialva
Sabes quanto ha de viver?
CEZ. Mao he isso de saber,
Que elle não he flor de malva
Que apodrece sem chover.
Com todas suas feridas,
E muito enferma canseira,
Contratou-se de maneira,
Que Deos lhe deve três vidas,
E esta he inda a primeira.
ALMEIDA.
Do Védor he necessário
Saber a planeta sua.
CEZ. Sua planeta he a lua,
O sino he Sagitário,
Com hüa frecha ifatabua.
Tem fôlego como gato,
Digo vida perlongada;
Porém não coma de pato
Senão so hüa talhada,
Inda que custe barato.
DUARTE.
Sabes quantos annos ha
Que Vasco de Foes he nado?
CEZ. Quando foi a do Salado,
Era elle mancebo ja,
Mas não era tão barbado.
DAS FARÇAS. 257

ALM. O senhor Conde meu senhor


Do Redondo em que estrella,
Ou que Planeta he aquella
Que o fez tão sabedor,
Pera que adoremos nella?
CEZILIA.
Esse Conde e outros assi
Por agora hão de ficar,
D'outrem podeis perguntar:
Mas eu tornarei aqui,
E vós me ouvireis fallar.
ALM. Affonso d'Albuquerque, irmão,
Que foi ao Imperador,
Que sino tem por senhor,
E porque a sua condição
Não pudera ser melhor?
CEZILIA.
Mercúrio he a sua estrella,
E será bem esquençado
Se jogar jogo assentado;
Porém se jogar a pelle,
Não lhe ficará cruzado.
Dui. Eu tenho Jorge de Mello
Por hum Padre'San Gião;
Traz sempre contas na mão,
Mas não sei lá no capello
Como vai á devação.
ALMEIDA.
Elle reza pola rua,
Que traz contas todo o dia;
Ou he por galantaria?
CKZ. Mui boa vontade he a sua,
Vol. III.
17
258 LIVRO IV

Mas o. cuidado o desvia.


Reza mais que cinco donas,
E Deos se está sem paixão.
DUA. Que lhe pede na oração?
CEZ. Que lhe dê sete atafonas
A porta de SanfAntão.
E que lhe dê tanto gado
Como Isaac trazia,
E hüa capitania,
Com que fosse tão honrado
Como elle merecia.
ALM. Gaspar Gonçalves, Pedreanes,
Em que sino nasceria?
Faze-me esta obra pia;
E olha que não m'enganes,
Porque vai sobre perfia.
Desejo sabê-lo em cabo.
CEZ. Nasceo no Escorpião,
Afagua-vos co'a razão,
Mas despeja-vos c'o rabo
No cabo da concrusão.
DUA. E Brezeanes guardador
Das damas, que es perro viejo?
CEZ. Esse Brezeanes, senhor,
O seu sino he de cranguejo,
Porque anda a travez do amor
E atra vez do desejo.
E he tomado da lüa,
Muito seco dos esp'ritos,
Porque ha hi sinos malditos
Que não tem graça nenhüa.
E o que quereis saber
DAS FARÇAS. 259

Das damas e amadores,


O domingo que vier
Eu direi quanto souber
Dellas e seus servidores.
Ensinar-vos-hei então
Cantigas com que folgueis;
E agora não canteis,
Fique por concrusão
Que este dia cantareis.

gSS3&-*—-

17
F I G U R A S .

INTRODUCÇAO.
LEDIÇA. CORTE <<
MÃE SAULINHO.
de Lediça.
PAE JACOB.

F A R Ç A .
LICENCEADO (no argumento).
LISIBEA. I FEBRUA.
LUSITÂNIA. I JUNO.
PORTUGAL. DINATO.
MAIO. BERZEBU.
VENUS. TODO O MUNDO.
VERECINTA. í NINGUÉM.

A farça seguinte foi representada ao muito alto e po-


deroso Rei D. João, o terceiro deste nome em Portugal,
ao nacimento do muito desejado Príncipe D. Manuel seu
filho, era do Senhor de 1532.
F A R Ç A
CHAMADA

"AUTO DA LUSITÂNIA."

LEDIÇA.
Muito tenho por fazer
E não tenho feito nada:
Está a logea por varrer,
Os meninos por erguer
E enha mãe ensobradada.
Meu pae vai-se a passear
Com outros judeos andando,
E a costura está folgando,
Dous annos por acabar
O capuz de Dom Fernando.
Meu pae não era de arte
Senão pera cavalheiro,
Ou fidalgo, ou rendeiro,
E o christão pera alfaiate
Sem agulha e sem dinheiro.
Entra hum Cortezão, e diz:
Con. Vosso pae he ca, senhora?
LED. Que lhe quereis vós dizer?
COR. Pergunto a vossa mercê.
LKD. Per hi sábio elle fora
A arrecadar não sei que.
262 LIVRO IV

Quereis-lhe algüa coisa?


Havei-Io mister, senhor?
COR. Tem elle muito lavor?
LKD. De ventura não repoisa
Nem socega o peccador.
COR. Vossa mãe he também fora?
LED. Mas em cima está cozendo
E eu ando isto fazendo.
COR. Não devia tal senhora
Como vós andar.varrendo,
Senão enfiar aljofre.
LED. Minha mãe tem no seu cofre
Duas voltas de coraes.
Con. Senhora, sam cortezão,
E da linhagem d'Eneas,
E por vossa inclinação
Folgara de ser d'Abrahão
O sangue de minhas veias.
Mas vosso e não de ninguém
He tudo o que está comigo,
E quero-vos grande bem.
LED. Bem vos queira Deos amen:
Quereis outra coisa, amigo?
CORTEZÃO.
Temo muito que me leixe
Vosso amor pobre coitado
De favor com que me queixe.
LED. Lançae na sisa do peixe,
E logo sois remediado.
Con. Não fallo, senhora, disso,
Porque eu me queimo e arco
Com dores de coração.
DAS FARÇAS. 263

LED. Muitas vezes tenho eu isso:


Diz Mestre Aires que he do baço,
E reina mais no verão.
CORTEZÃO.
Mas, senhora, por amar
Fiz minha sorte sugeita,
E perdi a mais andar.
LED. Crede, senhor, que o jogar
Poicas vezes aproveita.
Dom Donegal Saborido,
Que tinha tanta fazenda,
Por jogar está perdido,
Que não tem o dolorido
Nem que compre nem que venda.
CORTEZÃO.
Ó doce frol antre espinhas,
Crede o amor sem mudança
Que vos tenho e que vos digo.
LED. Assi lulas primas minhas
E toda esta vizinhança
Todos tem amor comigo:
Dom Isagaha Barabanel
E Rabi Abram Zacuto,
O Donegal coronel,
E Dona Luna de Cosiel,
E todos me querem muito.
CORTKZÃO.
Senhora, por piadade
Que entendais minha rezão;
Entendei minha verdade,
Entendei minha vontade,
E inudareis a tenção:
264 LIVRO IV.

Entendei bem minha dor,


E mil maleitas quartans,
Que por vós me hão de matar.
LKD. Assi he meu pae, senhor,
Que tem dores d'almorrans,
Que he coisa dapiadar.
Foi o anno tão chacoso
De doenças da ma ora,
Que creio bem o mal vosso;
Porque Dom Mossé Lendrosb
Não morreu senão agora.
MÃE. Não sei que chanto ha de ser
De hüa filha que criei;
Que coisa que lhe mandei,
Nunca a fez nem quiz fazer.
Quando está como agora
Na logea e eu no sobrado,
Chamo e chamo, brado e brado,
E como as pedras de Samora
Dá ella por meu chamado.
COR. Senhora, sois minha vida,"
Fiae no que digo eu.
LED. Não tenho roca de meu,
Nem despois que sam nacida
Nunca minha mãe m'a deu.
MÃE.
Lediça, filha dourada,
Não subirás hoje ca?
LED. Não podo que estou pejada.
MÃE.Pejada! melhor fadada
O Senhor te fadará.
Casarás e lograr-fhas,
DAS FARÇAS. 265

Á sombra do teu amor;


Entances te pejarás,
Pejar-tfhas e parirás
Hum pampaninho de flor.
CORTEZÃO.
E fosse de quem eu digo.
LED. Não sinto aquellas rezões.
Con. Que andais d'amores comigo.
LED. A S ainoras e o trigo
Vem no tempo dos melões.
MÃE.Sube ja este sobrado,
Que cedo te faça eu boda.
LED. Acho ca todo enlodado:
Saulinho está luxado,
E luxou a manta toda.
Não gostais vós destas dores,
Parece-vos isto vida?
COR. Ó flor de minhas flores
E meus primeiros amores,
Folgae ser de mi querida.
MÃE. Samuel, bem fencaminhas:
Luxaste-te, filho meu?
LKD. Bem vo-lo dizia eu,
Não lhe compreis camarinhas:
Agora elle fez o seu.
Que vos queira ouvir não posso:
Que me dizeis agora?
COR. Se sois contente, senhora,
De eu ser namorado vosso?
LKD. Que sejais muito embora.
Porque Yuça namorado
He irmão de minha mãe;
266 LIVRO IV.

E Catclão namorado
He meu primo e meu cunhado,
E rendeiro na Sertãe.
MÃE.
Que! não vens, filha Lediça?
Nunca acabas de a limpar?
LED. Como sois agastadiça!
Cuidareis que de preguiça
Não faço senão folgar,
Ou samica estou dormindo?
MÃE. Ora faze, filha minha.
LED. EU estava-me ja indo,
E Menoba está saindo
No meio da camarinha.
CORTEZÃO.
Antre essas cousas louçans
Peço que me consoleis.
LKD. Pinhoado comereis,
Ou caçoila de maçans:
Vede vós o que quereis.
COR. Peço esperança coitado
E favor favorecido.
LKD. Isso he coisa d'adubado.
Con. Oh que mal ser namorado
Onde não he entendido!
Eu vou-me: vosso pae vem.
LKD. Mãe, vinde que vem meu pae.
MÃE. Que figeste? guai, guai, guai!
Ou fallaste com alguém,
Ou não sei como isto vai.
LED. Com quem havia de fallar?
Olhae que coisas aquellas!
DAS FARÇAS. 267

MÃE. Se ainda dorme Menoba,


E deste três varredellas,
Não cuides de m'cnlodar,
Porque alguém te fallou ca.
LEDIÇA.
Se eu fallei com ninguém
Senão com esta vossoura,
Nunca de ma trama moura.
MÃE."Guarde-te Deos, filha, ainen,
E te faga duradoura.
LKD. Mãe amiga, eu queria
Que cesseis de ufassacar,
Que sahirei de siso hum dia,
E poer-me hei nome Maria
Ou Felipa ou Guiomar.
Que eu não fallei com ninguém,
Nem ninguém fallou a mi,
Nem ninguém chegou aqui.
MÃE.Bem o sei, filha meu bem:
Prazeres veja eu de ti.
Entra o Pae e diz:
PAK. Levantárão-se os meninos?
O mantão mandae guardar.
Que temos pera jantar?
MÃE.Berenjelas e pepinos,
E cabra curada ó ar.
PAK.
E cenoiras porque não,
Com favas e alcorouvia
E cominho e açafrâo?
MÂK.POÍS O Turco Gran Soldão
Não come tanta iguaria.
268 LIVRO IV.

Quanta choca, quanta lama,


Que traz o mantão frisado,
Que estava tão alimpado,
Que parecia hüa dama
Diante seu namorado!
Porque não fugis do Iodo?
Dizei, nunca mal vos venha,
Nem dia delle, ainen, amen.
PAK. Venho tão contente todo,
Como de saúde tenha
Aquelle que nos quer bem.
Encontrou-me o Regedor,
Fui eu assi encontrá-lo
Onde mora Abram Baeça;
Fallo-vos do seu favor,
Que até ós pés do cavallo
M'abaixou sua cabeça.
Folgais Hecer Beacar
Co'a honra do nosso bem,
Co bem do nosso prazer?
MÀE.Cousa he pera prezar;
Que quem tal amigo tem
Não se deve de temer.
PAE.
Nunca logre esse mantão,
Se o Conde Mordomo-mor
Não s'cmborcou até ó chão
Co barrete no arção,
Como s'eu fora doitor
Da casa da Rolação.
Sois contente?
LED. Ja viestes, pae? MAE. Ledecina,
DAS FARÇAS. 269

Correge essas crenchas, filha,


E viste-te ess'oitra fraldilha,
Que essa vem-te pequenina;
E soa-te aquella rodilha.
LED. Pae, trazeis-ine algüa cousa?
PAK. Dize, gata preguiçosa,
Porque não pugeste aqui
A minha banca em que cosa,
Que não vas por ella d'hi?
Ja te esqueceo a punhada
Que te dei quando ora foi?
Quando te dão não te doe?
LKD. Vêde-la aqui alimpada,
Melhorinha do que soe.
Assentae-vos a cozer,
Que pareceis assi mal.
PAK. Assi o quero fazer.
Que me foste aqui trager?
Não he este o meu didal;
Este he o didal do menino,
Que ine tu aqui trazias.
Erga-se. MÃE. He tamanino,
Ja quereis-que faça pino
Hum anginho de oito dias?
Ei-lo vem a criancinha;
Ergueo-se e os negros medos.
Filho amor, queres do pão?
Entra Santinho, e diz:
SAU. Dá-me o pentem, Ledecina.
PAE. Desenguiça-te c'os dedos,
E pentea-te co'a mão.
MÃE.Lediça, vai á janella,
270 LIVRO IV.

Traze-me a roca e banca,


E o fuso que está co'ella.
LED. Pardeos, mãe, i vós por ella,
Que não sois cega nem manca.
PAE. Assentae-vos a fiar,
Saulinho e eu a cozer,
Lediça, guize o jantar
Como acabar de varrer
E a loiça de lavar.
Cantão Pae e Filho cosendo.
"Ai Valença, guai Valença,
"De fogo sejas queimada,
"Primeiro foste de Moiros
"Que de Christianos tomada.
"Alfaleme na cabeça,
"En Ia mano una azagaya,
"Guai Valença, guai Valença,
"Como estás bem assentada;
"Antes que sejão três dias
"De Moiros serás cercada."
PAE. E assi o foi.
MÃE.
Por vida de Dona Hecer,
Dom Juda, quereis que vos diga?
Cuidais qúe o sabeis todo;
Pera cantar e coser
Haveis de dizer cantiga
Que vos tire o pé do lodo:
A cantiga que eu queria,
Ora olhae como a digo.
"Donde vindes, filha,
"Branca e colorida?
DAS FARÇAS. 271

"De lá venho, madre,


"De ribas de hum rio;
"Achei meus amores
"N'hum rosai florido,
"Florido, enha filha,
"Branca e colorida.
"De lá venho, madre,
"De ribas de hum alto,
"Achei meus amores
"NTiuin rosai granado,
"Granado, enha filha,
"Branca e colorida."
PAE.
Se a cantiga não fallar
Em guerra de cutiladas,
E de espadas desnudadas,
Lançadas e encontradas,
E coisas de peleijar,
Não nas quero ver cantar,
Nem nas posso ouvir cantadas.
MÃE.
Dom Juda, assi tenhais bem,
Que se vira guai espada
Tirada na mão dalguem,
Desnudada pera dar,
Guaias de-Hecer Beacar
E da saúde que tem,
Porque logo são finada
Com a affronta que me vem.
PAE.
Não ja eu, que de atrevido,
Se estiver n'hüa janella,
272 LIVRO IV.

E a porta toda trancada,


E na praça o arruido,
E eu co'a lança e rodela,
Não tenho medo de nada.
E se o nosso Iffante passa,
E elle hoiver de passar
O Lião do oiro bello,
Duque das partes d'alem,
Não hei de ficar em casa,
Nem nenhum homem de bem.
Levarei huma gualteira
E hüa lança longa, longa,
Bem longa, muito comprida,
Que haja seis lanças nella,
E buscar onde me esconda,
Pera esconder a vida,
Não topem Moiros com ella.
Vem Jacob e outro Judeo, e diz
JACOB.
Ando muito esfandegado.
PAE. Que he isso, irmão, que queres?
JAC. Somos postos em prazeres
E trabalho misturado.
MÃE. Isso he coisa de proveito?
JAC. Mas juntei os mercadores,
E acordamos os maiores,
Que os que temos algum geito
Nos façamos foliadores.
MÃE. ISSO pera que? dizei.
JAC. E busquei isto de mi:
Ja vedes que EIRei he aqui
DAS FARÇAS. 273

E temos ja aqui EIRei,


Sancto mais que EIRei David.
E a sua bem assombrada
Natural Rainha Esther,
Rainha Sabá doirada,
A rainha mais honrada
Que dez reinos podem ter.
E também o Príncipe he.
Nunca inetteo aqui pé.
De nós seja festejado,
Como era desejado,
E como formoso he
O que seja bem logrado. —
Vão-se todos ao sobrado.
Sahem-se ellas, e depois de idas diz
JACOB.
Falleinos tu e eu sós.
Qu'invenção faremos nós
N'hum aito bem acordado,
Que tenha ave e pios?
Que folias ja são frias,
E as pellas, as mais dellas,
E os toiros
Matarão hum mata-moiros;
E a ussa ja não se usa,
E a festa não s'escusa,
Pois andamos nos peloiros.
PAE.
Para que cumpridamente
Aito novo inventemos,
Vejamos huin excellente
Que presenta Gil Vicente,
18
Vul. 111.
274 LIVRO IV.

E per hi nos regeremos.


Elle o faz em louvor
Do Príncipe nosso senhor.
Porque não pôde em Alvito,
Logo virá o relator,
Veremos com que primor
Argumenta bem seu dito.

Entra o Licenceado argumenta dor da obra que


adiante se segue, e diz:
LICENCEADO.
Oh que douda presumpção
Cuidar ninguém na pousada
Que traz discreta invenção
Aqui onde a descrição
Tem sua própria morada.
Que a Corte
He hum precioso norte
Que guia os mais sabedores;
E onde ha rosas e flores
Pampillos não fazem sorte.
E pois o primor inteiro
Nasce aqui em taes logares,
E todo o al he grosseiro,
Não presuma o sovereiro
De dar tamaras doçares.
Gil Vicente o autor
Me fez seu embaixador,
Mas eu tenho na memória
Que para tão alta historia
Naceo mui baixo doutor.
DAS FARÇAS. 275

Creio que he da Pederneira


Neto d'hum tamborileiro;
Sua mãe era parteira,
E seu pae era albardeiro.
E per rezão
Elle foi ja tecellão
Destas mantas d'Alemtejp;
E sempre o vi e vejo
Sem ter arte nem feição.
E quer-se o demo metter,
O tecellão das aranhas,
A trovar e escrever
As portuguezas façanhas,
Que so Deos sab"e entender!
D'outro cabo,
Dizem que achou o diabo
Em figura de donzella,
E elle namorou-se delia:
Porém ella
Era diabo encantado.
Levou-o a huns arvoredos;
Vai a dama assi a furto
E alevanta os cotovellos,
E levou-o pólos cabellos,
E fez-lhe o pescoço curto.
E inetteo-o logo essora,
Sem lhe valerem seus gritos,
Aonde a Sibyla mora,
Encantada encantadora,
Ante os inalinos espritos.
E alli foi ensinado
Sete annose mais hum dia,
18'
276 LIVRO IV

E da Sibyla informado
Dos segredos que sabia
Do antigo tempo passado.
Em especial
O antigo Portugal,
Lusitânia que cousa era,
E o seu original:
E por cousa mui severa
Vo-lo quer representar.
E pera claro cimento
E a obra não ser escura,
Direi em prosa o argumento;
Porque a cousa que he segura,
Procede do fundamento.
E como sempre isto guardasse
Este mui leal autor,
Até que Deos enviasse
O Príncipe nosso senhor,
Não quiz qu'outrem o gozasse.

Naquella cova Sibylaria, muito sábio e prudentíssimo


Senhor, o autor foi ensinado que ha três mil annos que
hüa generosa nympha chamada Lisibea, filha de hüa
Rainha de Berberia e de hum príncipe marinho; que a
esta Lisibea os fados derão por morada aquellas me-
donhas barrocas, que estão da parte do Sol ao pé da
Serra de Cintra, que naquelle tempo se chamava a
Serra Solercia. E como por vezes o Sol passasse pelo
opposito da lustrante Lisibea, e a visse nua sem nenhüa
cobertura, tão perfeita em suas corporaes proporções,
como fermosa em todolos logares de sua gentileza:
houve delia hüa filha tão honrada de sua luz, que lhe
DAS. FARÇAS. 277

puzerão nome Lusitânia, que foi diesa e senhora desta


Província. Neste mesmo tempo havia em Grécia hum
famoso cavalleiro e mui namorado em extremo, e gran-
díssimo caçador, que se chamava Portugal; o qual
estando em Hungria ouvio dizer das diversas e famosas
caças da serra Solercia, e veio-a buscar. E como este
Portugal, todo fundado em amores, visse a formosura
sobrenatural de Lusitânia, filha do Sol, improviso se
achou perdido por ella. Lisibea sua madre, desatinada
ciosa, inorreo de ciúmes deste Portugal. Foi enterrada
na montanha que naquelle tempo se chamava o Feliz
Deserto; onde depois foi edificada esta cidade, que por
causa da sepultura de Lisibea lhe puzerão nome Lisboa.
Neste presente auto entrará primeiramente Lisibea, e
Lusitânia, e Portugal em trajos de caçador, eMaio mes-
sageiro do Sol, e depois Mercúrio com certas diesas. E
porque o autor se apressa pera vos representar o argumento
que naquelle tempo passarão Lisibea grandíssima ciosa
coin Lusitânia sua. filha, he rezão que lhe dêmos logar.

LISIBEA.
Canseira de minha vida,
Põe esses olhos no chão,
Vela-te de ser perdida,
E não olhes tão garrida
Quantos vem c quantos vão.
Lus. Oh que forte condição!
Como sois destemperada
E ciosa sem razão!
Lis. Eu não teria paixão
Se te visse assocegada;
278 LIVRO IV.

Mas tu olhas pera ca,


Pera aqui e pera alli,
E de ca pera acolá.
Lus. Esse olhar que mal me está,
Se eu olho bem por mi?
Lis. Oh como he de pouco aviso
Dares sempre á cabecinha!
E tão prestes tens o riso,
Que quem te vir d'improviso,
Logo dirá qu'es doudinha.
LUSITÂNIA.
Mãe, isso he cór de bradar,
E tudo não funde em nada:
Que sem rir, ver, nem fallar,
Todos ine podem chamar
Fermosa mal assombrada.
Mas não se pôde negar
Que o ciúme he mal infindo;
Porque o muito ciar
w

As vezes faz acordar


O amor que jaz dormindo.
LISIBEA.
Por mais que brava escuines,
De te amar vem esta dor,
Que te faço sabedor
Que dos mui muitos ciúmes
Nace o mui muito amor.
LUSITÂNIA.
Esse muito he de mao tom.
O mãe, como estais errada;
Porque o muito não he nada
Quando quer que não he bom.
DAS FARÇAS. 279

O querer ha de ser são,


Mui seguro e confiado,
Isento sem suspeição,
Doce na conversação
E alegre no cuidado.
LISIBEA.
Ja som bem certa e segura
Que o castigo he cousa cara.
Leixar-te quero á ventura,
Que ás vezes o tempo cura
O que a razão não sara.
Teus olhos,são teu perigo,
Elles te castigarão.
Lus. Mãe, a muita reprensão
Busca mui poucos amigos;
E esta he a concrusão.
Eis ca vem hum caçador:
Generoso representa,
E traz ar de gran senhor.
Lis. Perto tinhas tu o amor,
Que asinha te elle contenta.
Não me tens em nemigalha; '»
Cambra venha que fencambre;
Canta se tu es alambre,
De longe tomas a palha.
LUSITÂNIA.
OS ciúmes que em vós se montão
Ja não hão de ser pequenos,
E quem porcos acha menos
Em cada mouta lhe roncão.
Sabeis, mãe, em que me fundo?
Eu sam a filha do Sol,
280 LIVRO IV.

E se o inundo teve flor,


Eu sam as flores do inundo,
E da presunção maior.
Que som tão fantesiosa
E tão cheia de grandeza,
Que não prezo ser fermosa,
Nem prezo a quem me preza,
E prezo-me de generosa.
Chega Portugal e diz:
Primeiro que va á Serra
Solercia, que vou buscar,
Senhora, hei de perguntar
Se as que nacem nesta terra
Tem o ceo a seu mandar;
Que em Grécia nem ultra-mar
Tal fermosura não vi.
Senhora, venho a caçar,
Mas a caça que matar
Será o triste de mi.
LISIBEA.
Que ma ora começastes,
E que ma ora viestes,
E que ma ora embarcastes,
E que ma ora chegastes,
E na negra vos erguestes.
Olhae aquella chegada,
Do que lhe dê Deos mao inez!
Lus. Nunca o fallar descortez
Aproveitou pera nada:
Vede como isso dizês.
LISIBEA.
Nesta brava serrania,
DAS FARÇAS. 281

Brava o hei de deshonrar.


Lus. Aqui e em todo logar
Muito damna o mao fallar,
E aproveita a cortezia.
POR. Pois das lindas sois rainha,
Das fennosas grão supremo,
De vos ciar em extremo
Tem rezão, senhora minha.
LISIBEA.
Senhora de vosso avô
E de vossa mãe cadella!
Tirae arama os olhos delia,
Tirade pera vós so,
Não tenhais de ver co'ella.
Lus. Folgae ora, havei prazer,
Dae ao demo o arruido.
Lis. Oh que te vejo perder!
Porque o damno da mulher
Sempre lhe entra pelo ouvido.
LUSITÂNIA.
Mãe, dos homens he fallar,
E das mulheres ouvir,
E do bom siso calar,
E da prudência sentir
O que não pôde damnar:
Cuidais que me ha de comer?
LISIBEA.
Eu não te posso soffrir;
Nesta dor hei de morrer.
Fica-te, qu'eu quero-me ir,
Pera mais não parecer.
Minha morte he cerca e certa,
282 LIVRO IV.

E eu dou-te vida escura;


Vou-me á minha sepultura,
Que está na Serra deserta,
Feita por mão da Ventura. (v,.i-se.)
LUSITÂNIA.
Senhor meu, amigo caro,
Vós ide emtanto caçar,
Porque a mi cumpre rezar,
E chorar meu desemparo,
E a vós de me leixar.
Vai-se Portugal, e diz Lusitânia em oração.
LUSITÂNIA.
O Minerva graciosa,
Avogada da formosura,
Vem asinha,
E pois no ceo es ditosa,
Parte da tua ventura
Co'a minha.
F

O preciosa Diesa honesta


Ramnusia, Deos da ventura
E da bonança,
Converte meu choro em festa,
E minha triste tristura
Em esperança.
E tu Diesa Magesta,
Das viuvas solitárias
Protectora,
F

A minha pressa te apressa,


Pois sempre te paguei pareas
Atégora.
Diesa Maya, Diesa Juno,
Diesa Pallas, Diesa Vesta,
DAS FARÇAS. 283

Oh Senhora,
E tu Senhor Deos Neptuno,
E Venus, que a todos presta,
Valei-m'ora.
E acabae c'o Sol meu pae,
Que me mande hum messageiro,
Que me veja,
E saiba como me vai;
E pois he pae verdadeiro,
Me proveja.
Entra Maio, messageiro do Sol, cantando.
MAIO.
"Este he Maio, o Maio he este,
"Este he o Maio e florece,
"Este he Maio das rosas,
"Este he Maio das fermosas,
"Este he Maio e florece,
"Este he Maio das flores,
"Este he Maio dos amores,
"Este he Maio e florece."
Mui muito in'espanto eu
De inundo tão albardeiro,
Que por eu ser prazenteiro,
Me tem todos por sandeu,
E, por sisudo, Janeiro.
Pois hei de tomar prazer,
E não hei de ser com'este;
Que o prazer crece o viver:
E quem isto não fizer
Não terá vida que preste.
"Este he Maio, o Maio he este,
"Este he Maio e florece."
284 LIVRO IV.

Hei de cantar e folgar,


E bailar c'os corações;
E por me desenfadar,
Farei os asnos zurrar,
E cantar os rousinoes.
E farei calar as rans
De noite, e cantar os grilos,
E as patas pelas manhans;
E alimpar as maçans,
E florecer os pampillos.
Não me hajais por estrangeiro,
Lusitânia, descançae,
Qu'eu sam Maio e messageiro
E principal cavalleiro
Da corte de vosso pae.
E manda-vos visitar,
E mais vos faz a saber
Que vos quer logo casar;
E quer vosso parecer,
Pera se determinar.
LUSITÂNIA.
Dize-lhe tu, Maio amigo,
Que casar he forte caso,
E não casar gran perigo;
E que não sei neste passo
Que lhe diga nem que digo.
Que elle o pôde ordenar,
Porém o meu parecer
He que o ditoso casar
Está mais em acertar,
Que em sabê-lo escolher.
DAS FARÇAS. 285

MAIO.
Senhora, não he rezão
Encobrir esta alegria.
Saiba vossa senhoria
Que acabou sua oração
Quanto vossa alma queria;
E por vosso bem ditoso,
E merecer mui facundo,
Vem Mercúrio precioso
Deos dos coinmercios do Mundo,
Eleito por vosso esposo.
Vem co'elle as soberanas
üiesas de Grécia e Egypto,
Venus vem com as Troyianas,
Verecinta co'as Romanas,
Cantando com ledo esp'rito.
Vem estas Deosas em dança ao som desta
Cantiga.
"Luz amores de Ia nina,
"Que tan linduz ujuz ha,
"Que tan linduz ujuz ha,
"Ay Diuz quien luz habrá,
"Ay Diuz quien luz servirá."
VENUS.
Dejemuz ora el cantar
Y antez de estaz ricaz bodaz
Que venimuz celebrar,
Pongámunuz hi luego todas
Cada una en su altar.
Verecinta, Fébrua y Vesta,
Romanaz maz singularez,
Antez de empezar Ia fiesta,
286 LIVRO IV.

Ponéos á Ia mano diestra,


En vu estros santos altarez.
Nuz tevemuz utroz dotez,
Estaremuz dé este lado,
Todas seis muy veneradaz.
Y estez nuestroz sacerdotez
Rezarán su ordenado
Y suz horaz ordenadaz.
D inato e Berzébu, capellães destas Deosas, começão dizendo:
DlNATO.
No saber universal
Crê que o meu spirito voa.
BEH. Queres hüa cousa boa?
Antes que entremos ao al
Rezemos a sexta e noa,
E despois todalas horas
Das negligencias mundanas,
Em louvor das soberanas
Diesas nossas senhoras,
E milagrosas Troianas.
DINATO.
Ora rezemos, parceiro,
E porque seja melhor,
Toma, ves hi o psalteiro
De Nabucodonosor,
Que lhe furtou Frei Sueiro.
BER. Quem começará primeiro?
Di\. Tu que es amancebado,
E es padre verdadeiro,
Que tens filHbs ao teu lado,
E eu sam inda solteiro.
DAS FARÇAS. 281

BBRZEBU.
Beato seja o varão
Que adora cães e gatos,
E as muelas dos patos,
E os miolos do cão,
E o gallo de Pilatos.
DIN. Beato seja e acceito
O que doce língua tem
E a maldade no peito,
E louva sempre o malfeito,
E diz mal de todo o bem.
BERZEBU.
Bento seja o verdadeiro
Avarento per natura,.
Que poz a alma no dinheiro,
E o dinheiro em ventura,
E a ventura em palheiro.
DIN. Bentos sejão os primeiros
Que tomão por devação
Aborrecer-lhe o sermão,
E andão traz feiticeiros
De todo seu coração.
BERZEBU.
Bentos aquelles e aquellas
Que so três ave-marias
Os enfadão nas capellas,
E folgão de ouvir novellas
Que durem noites c dias.
DIN. Adiante va a mulher
Que não crê senão patranhas,
E reza sempre ás aranhas,
288 LIVRO IV.

E não crê o que ha de crer


E adora as tartaranhas.
BERZEBU.
Não se poderá cuidar
c

Mal, que a gente não adore.


Louvemos seu descuidar,
Que o mundo quer-se finar,
E não ha hi quem no chore.
DIN. Não somente quem o crea:
Nem sentem as creaturas
Que ha de morrer sem candea
E espirar ás escuras,
Como triste em terra alhea.
BERZEBU.
Os infernos são pasmados
Dos sofrimentos de Deos,
Que lhes creou sete ceos,
Todos sete a elles dotados.
DIN. E elles desacordados
De tanta beinfeitoria,
Vão-lhe peccar cada dia
Em todos sete peccados.
Alleluia, alleluia.
Vaino-nos aos bons bispos.
BER. Acharemos porcos piscos.
DIN. Oremus.
BER. Rogo-te, irmão, que acabemos,
Porque nunca acabaremos.
DIN. Acabemos.
BER. Por darmos alguma conta
Ao Deos rei Lucifér,
Põe-te tu a escrever
DAS FARÇAS. 289

Tudo quanto aqui se monta,


E quanto virmos fazer;
Porque a fim do mundo he perto,
E pera o que nos hão de dar,
Cumpre-nos ter que allegar;
Pois pera provar o certo,
Escreve quanto passar.
Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador,
e faz que anda buscando algüa cousa que se lhe perdeo:
e logo após elle hum homem, vestido como pobre, este se
chama Ninguém, e diz:
NINGUÉM.
Que andas tu hi buscando?
TOD. Mil cousas ando a buscar:
Dellas não posso achar,
Porém ando porfíando,
Por quão bom he porfiar.
NIN. Como has nome, cavalleiro?
TOD. EU hei nome Todo o Mundo,
E meu tempo todo inteiro
Sempre he buscar dinheiro,
E sempre nisto me fundo.
NINGUÉM.
Eu hei nome Ninguém,
E busco a consciência.
BER. Esta he boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
DIN. Que escreverei, companheiro?
BER. Que Ninguém busca consciência,
E Todo o Mundo dinheiro.
NINGUKM.
E agora que buscas lá?
V
V o l . III.
290 LIVRO IV.

TOD. Busco honra muito grande.


NIN. E eu virtude, que Deos mande
Que tope co'ella ja.
BER. Outra addição nos açude:
Screve logo hi a fundo,
Que busca honra Todo o Mundo,
E Ninguém busca virtude.
NINGUÉM.
Buscas outro mor bem qu'esse?
TOD. BUSCO mais quem me louvasse
Tudo quanto eu fizesse.
NIN. E eu quem me reprendesse
Em cada cousa que errasse.
BER. Escreve mais. DIN. Que tens sabido?
BER. Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
E Ninguém ser reprendido.
NINGUÉM.
Buscas mais, amigo meu?
TOD. BUSCO a vida e quem nva dê.
NIN. A vida não sei que he,
A morte conheço eu.
BER. Escreve lá outra sorte.
DIN. Que sorte? BER. Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida,
E Ninguém conhece a morte.
TODO o MUNDO.
E mais queria o paraíso,
Sem m'o ninguém estorvar.
NIN. E eu ponho-me a pagar
Quanto devo para isso.
BER. Escreve com muito aviso.
DAS FARÇAS. 291

DIN. Que escreverei? BER. Escreve


Que Todo o Mundo quer paraiso,
E Ninguém paga o que deve.
TODO o MUNDO.
Folgo muito d'enganar,
E mentir nasceo comigo.
NIN. Eu sempre verdade digo,
Sem nunca ine desviar.
BER. Ora escreve lá, compadre,
Não sejas tu preguiçoso.
DIN. Que?
BER.-Que Todo o Mundo he mentiroso,
E Ninguém falia verdade.
NINGUÉM.
Que mais buscas? TOD. Lisonjar.
NIN. EU som todo desengano.
BER. Escreve, ande Ia mano.
DIN. Que me mandas assentar?
BKR. Põe ahi mui declarado,
Não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo he lisonjeiro,
E Ninguém desenganado.
VENUS.
Capellanes y nos todas,
Pues que teneis bien rezadas
Vuestras horas ordenadas,
Concluyamos nuestras bodas,
Bodas bien aventuradas.
Tornão á sua cantiga, bailando todos ao som delia.
Cantiga.
"Luz amores de Ia nina
"Que tan linduz ujuz ha,
19*
292 LIVRO IV.

"Que tan linduz ujuz ha,


"Ay Diuz quien luz habrá,
"Ay Diuz quien luz habrá.
"Tiene luz ujuz de azor,
"Hermuzuz como Ia flor:
"Quien luz serviere de amoi
"No sé como vi virá,
"Que tan linduz ujuz ha.
"Ay Diuz quien luz servirá,
"Ay Diuz quien luz habrá.
"Suz ujuz son naturalez
"De las águilas realez,
"Luz vi vuz hacen mortalez,
"Luz muertos suspiran allá,
"Que tan linduz ujuz ha.
"Ay Diuz quien luz servirá,
"Ay Diuz quien luz habrá."
VENUS.
O Lusitânia senora,
Tú te puedes alabar
De desposada dichosa,
Y pámpano de Ia rosa,
Y sirena de Ia mar,
Frescura de las verduras,
Rocio de Ia alvorada,
Perla bien aventurada,
Estrella de las alturas,
Garza blanca namorada.
VERECINTA.
Dulzura de Ia mi vida,
Bendita quien te pario,
Mi nifiita esclarecida.
DAS FARÇAS. 293

Oh como eres parecida


Al padre que te engendro;
Pues que hija dei Sol eres,
Que da luz á toda cosa,
Y tú á todas las mugeres.
O Mercúrio, que mas quieres
Que tal perla por esposa?
FEBRUA.
Consuelo de mis entranas,
Alma de Ia vida mia,
Pues que te sobra alegria,
Reparte con las montanas
Desiertas sin coinpania;
Que este galan desposado
De los mas lindos que yo vi,
Es planeta venerado,
Y te estubo bien guardado
En el cielo para ti.
JUNO.
Norabuena tú Io viste,
Norabuena Io cobraste,
Y norabuena naciste,
Que tal esposo cobraste,
Pára nunca seres triste.
MKR.SUS, faça-se o que se requere,
Pois pera minha naceo;
Mas o que daqui s'infere,
Maridá-la não espere,
Porque não se usa no ceo.
VKRKCINTA.
Guayas de ella y de su vida,
De su cuerpo y su lindeza,
294 LIVRO IV.

Y de su gracia vellida!
A qué manos es venida
La flor de Ia gentileza!
VKN. Y nunca ha de ser prenada,
Ni mandada Ia triste?
MER. Que quer ella de mais nada,
Senão ser de mi amada
O mais que tu nunca viste?
PALLAS.
Todo eso tu sueno suena:
Arre acá burra de Logrono.
Para jaula es Ia ciguena.
Ansi que no harás duena,
Ni serás tanpoco dueno.
VEN. Ay de ti lirio florido,
Ay de ti sarza florida,
Cuando tu fresco sentido
Se hallare con marido
Y le hallare inarida.
MERCÚRIO.
Oh renego de Turquia!
Eu lhe dou meu coração
Com tanta gloria e alegria,
Que as aves lhe cantarão
Continuada melodia.
VEN. Las aves á Ia desposada
Sabes que se monta ahi?
Cantarle han por alvorada
"La bella mal maridada
Mal gozo viste de ti."
JUNO.
Mi esmeralda oriental.
DAS FARÇAS. 295

Casar sin ayuntamienlo,


Y*el marido inmortal,
Esta casadica tal
Guayas de su pensamiento.
Lus. O que ha de ser ha de ser,
Não hei de engeitar ventura,
E quanto a vossos dizeres,
Se não for pera mulher,
Ao menos serei segura
De se perder por mulheres.
VESTA.
Diz que viguela sin cuerda,
Y caballero sin lanza,
Y casada sin maridanza,
No se escusa que concuerda.
Lus. Quando eu imaginar
Na honra que tanto importa,
Que ha hi mais que desejar?
Porque se a coma for torta,
Isto a pôde endireitar.
VENUS.
Senor, inuéstraste templano
Marido muy sin provecho:
Estás ahi fantasma hecho
Sin tomalla de Ia mano,
Y Ia otra puesta en su pecho.
Quien ve Ia cosa hermosa
Que no desea tocaria?
Vámonos por vida vuestra;
Y pues ya que ha de llevarla,
No hagamos otra cosa. •
Torna Portugal da caça, c diz.
296 LIVRO IV.

PORTUGAL.
Segundo se me afigura,
E este caso se moveo
E minha alma não segura,
Eu perdi a mor ventura
Que homem nunca perdeo.
Quem tem tempo e espera tempo,
Tem maré e espera maré,
Tem vento e espera vento,
Não teve conhecimento
Da fortuna que cousa he.
Que erro pera doer
Grande pena em demasia,
Quando homem ve perder
O bem que pudera haver
E o leixou de dia ein dia!
Não sei como me enlheou
Esta safíra da Pérsia,
Que me disse, — emquanto eu vou
Chorar a mãe que me criou,
I-vos á Serra Solercia.
Eu errei em a leixar,
E mereço este castigo;
Porque o verdadeiro amigo,
Se ve o amigo chorar,
Sempre o ha dachar comsigo
E sentir as suas dores
Na sua angustia maior.
O Lusitânia, os teus primores
Me causarão taes amores,
Que me esqueceo este amor.
O Senhora, onde vos is?
DAS FARÇAS. 297

Amor, onde me leixais?


Pera que terra partis?
Porque não vos despedis
Deste triste que engeitais?
Dizei-lhe antes da partida
Sequer ja por despedida: —
Fica-te, homem d'amargura,
Em tal dia e hora escura,
Que com a dita mais perdida
Ande o teu corpo sem vida,
E sem alma e sem ventura.
LUSITÂNIA.
Meu pae manda-me levar,
E á lei obedecer.
Estou pera me casar,
E vou-me longe morar,
E perto de o fazer.
POR. Senhora, não vos atalho
O caminho começado,
Porque o desventurado
Seu descanso he o trabalho,
E sua gloria o cuidado.
Não me fica que perder,
Pois que a fortuna malina
Vos buscou este prazer,
Como quem queria ver
O cabo á minha mofina.
VER. Si tú amores tenias
Con galan tan esmerado,
Porque quieres bodas frias,
Y vivir todos tus dias
Con hombre desnamorado?
298 LIVRO IV

Que este nobre Portugal


Es fundado sobre amor,
Y es marido natural.
Estotro es un bestial,
Una siba sin sabor,
Un caldo de briguigones;
Y Portugal, si creer me quieres,
Es baron de los barones,
Servidor de Ias mugeres
Mas que todas Ias naciones.
JUNO.
Lusitânia, vuelta, vuelta,
Bien te dice Verecinta;
Hazlo ansi como Io pinta,
Pues Dios quizo que estás suelta;
Nesotro no gastes tinta;
Porque será cosa escura
Lo que se sigue de aqui,
Darte Ia buena ventura
Tanta gracia e hermosura
Sin quedar casta de ti.
MERCÚRIO.
ISSO vede vós e ellas, u .>.
Tudo seja a seu serviço,
Porque se eu fora castiço,
Ja hi houvera mais estreitas.
Se Portugal desejais,
Sendo vós, eu o tomaria.
Lus. Pois tinha eu em fantesia
Que vos docsse isso mais,
Sequer por galantaria.
Portugal, senhoras, quero,
DAS FARÇAS. 299

A quem Deos sempre resguarde,*


E seu Príncipe lhe guarde
Como esperais e espero,
E reine próspero e tarde.
VEN. Portugal, dad os las manos,
Y luego fiesta á Ia mano;
El cantar que le digamos
Será el que en Grécia usamos,
Tornado en buen castellano.
Cantiga.
"Vanse mis amores, madre,
"Luengas tierras .van morar,
"Y no los p u odo olvidar.
"Quien me los hará tornar,
"Quien me los hará tornar,
"Yo sofiara, madre, un sueno,
"Que me dió nel corazon,
"Que se iban los mis amores
"Á las islãs de Ia mar,
"Y no los puedo olvidar.
"Quien me los hará tornar,
"Quien me los hará tornar.
"Yo sofiara, madre,-un sueno,
"Que me dió nel corazon,
"Que se iban los mis amores
"Á las tierras de Aragon:
"Allá se van á morar,
" Y no los puedo olvidar.
"Quien me los hará tornar.
"Quien me los hará tornar."
F I G U R A S .
CLÉRIGO.
MOÇO DO CLÉRIGO.
BRASIA DIAS.
MESTRE FELIPE.
MESTRE FERNANDO.
MESTRE ANRIQUE.
TORRES, Físico.
PADRE CONFESSOR.
CANTORES.

Segue-se a farça chamada Auto dos Fisicos, na


qual se tractão huns graciosos amores de hum clérigo.
FARÇA DOS FÍSICOS.

Entra o Clérigo e diz a hum seu Moço:


CLÉRIGO.
Perico, vé tú ahora
Á verme Blanca Denisa,
Salúdamela de guisa
Que sepa que es mi senora,
Y en despues diremos misa.
Si estuviere bien segura,
Sola, sin Ia madre y tia,
Dale tú esta carta mia,
Y harás tan gran mesura,
Como yo se Ia haria.
Y estando acompafiada,
Como yo estoy descuidado,
Ansí muy disimulado
Pergunta si está acabada
La obra de ini cufiado.
Moç. Disse-me ella terça feira:
— Se tu mais ine dizes nada,
Dar-t'hei tanta bofetada,
Que não saibas a primeira. —
Olhae como está aviada.
CLÉRIGO.

No veis vos? Moç. Bem o vejo


302 LIVRO IV.

Que não vos quer sóis olhar.


CLE. Caza mata el porfíar,
Como dice el refran viojo.
Moç. Diz que m'ha d'esbofetar.
CLE. Aunque ella eso diga....
Moç. Peor o ha de fazer.
Quando ella bem vos quizer,
Que me pinguem-na barriga.
CLE. Vé, háceme este placer.
Moço.
Dizê vós missa primeiro.
CLE. Cuerpo de Dios con Ia misa,
Y con ei mozo y con Ia prisa!
Moç. Creio que vosso salteiro
He esta Branca Denisa.
CLE. Ora juro á Dios que bien!
Yo no soy senor de ti?
Moç. Quem não he senhor de si
Porque o será de ninguém?
Sede vós senhor de vós
Em fazer o que deveis,
Então he bem que mandeis.
CLE. TÚ quieres que sea Dios?
Moç.Mas clérigo; e não vos damneis,
Se aquella moça não quer.
E dou-lhe ora que quizesse;
Que proveito e que interesse
Ganharieis em vencer
A quem por vós se perdesse ?
CLÉRIGO.
Por bien que puedes hablar,
No puedo acabar comigo;
DAS FARÇAS. 303

Por eso acaba contigo


De no me aconsejar,
Mas ayuda como amigo.
Bien entiendo mi dolor,
Y conozeo el tu decir;
Para mozo es buen sentir,
Mas no sientes que el amor
No se puede resistir.
Que cuanto mas sabedor
El hombre y mas esforzado,
Mas prudente y confiado;
Mas captivo es dei amor,
Y mas firme namorado.
Moç. O mestre, cousa he sabida,
Se vos lembra o entender,
Que amar quem vos não quer
He setta d'ainor perdida
Pera quem se quer perder.
CLÉRIGO.
No juzgaste buena trecha;
O mozo, que te condenas,
Que Ia saeta sin penas
No va recia ni derecha:
Sieinpra las penas son buenas.
Moç. Que presta a setta empennar
Sem ter da caça esperança?
CLK. Siempre Ia gloria se lanza
Por las puertas dei penar
Daquel que huye mudanza.
No Ia tengo de olvidar;
Ansí puedo yo morir.
Moç. Ora sus, quero lá ir.
304 LIVRO IV.

CLE. Viene presto sin tardar.


Moç. Logo essora hei de vir. (vai-se.)
CLÉRIGO.
O Cupido mi senor,
In te speravi e espero,
Pues testigo eres que quiero
Á ti por mi valedor
Neste mal de que me inuero.
Suave eres Uainado,
Amor blando y apacible,
Pues neste transe terrible
Ayuda á este cercado
De tormenta y tan horrible.
Á mi parecer, ya ahora,
Si ei muchacho se dió prisa,
Habló con Blanca Denisa:
Plega a Dios que venga en hora
Que aproveche Ia misa.
Pues que tarda este rapaz,
Bien puede ser que arrecada:
Si estaba sola apartada,
No le ha de saber á agraz
lia carta ni Ia embajada.
Vem o Moço.

CLÉRIGO.
Aqui do viene veremos. —
Estaba sola? Moç. So estava.
CLE. Qué hacia? Moç. Ensavoava.
CLE. Y de Io ai qué tenemos?
Moç. Quando me vio espirrava.
CLE. Porquê? Moç. Porque he boa mulher.
DAS FARÇAS. 305

CLE. Dime toda Ia verdad,


No te quede nada allá.
Moç. Tudo vos hei de dizer,
Não m'há de ficar nada ca.
Disse, como eu fui entrado:
— Inda esse doido perfia?
Olhae aquella fantesia
De clérigo excommungado!
CLK. No creo que eso diria.
Moç.Esperae vós qu'inda he cedo:
Diz: — Triste ma hora nasci!
E que vio ora elle em mi
O Padre lambe-ÍKo dedo,
Que s'a!voroçou assi?
O triste demoninhado!
Isso havia eu de fazer?
Não m' haj' elle por mulher,
A maldição de João Calado
Haja se eu não hei de ver.
E vós dom alcoviteirinho,
Rapaz, cujo filho es? —
Pardeos eu apanho os pés,
Se não varrer o caminho,
Não torno eu lá este mez.
Dou eu ja ó demo a cigarra
Que assim he espinhada.
CLE. Y Ia carta desdichada?
Moç.Rompeo-a de barra a barra:
Ei-la aqui esmigalhada.
CLK. Cúbreseine el corazon,
Y Ia sangre se ine hela;
Y pues uo hay quien se duela
20
voi. ni.
306 LIVRO IV.

De mi triste perdicion,
Moço venga Ia candeia.
Moço.
Pera a missa? CLE. No: cuitado!
Nel infierno diré misa.
Moç. Pezar de Branca Denisa!
CLE. Ay, ay, ay desamparado!
Trae Ia candeia á prisa.
Entra Brasia Dias, e diz:
BRA. Que he isto, compadre amigo?
CLE. E S ia muerte por mas cierto.
BRA. Dormirieis descuberto,
E arrefeceo o embigo.
Moç. Olhae aquelle concerto!
BRASIA DIAS.
Não he senão frialdade;
Ponde-Ihe hüa telha quente.
CLE. Ay! que es mortal accidente.
BRA. Hui, compadre, esforçade:
Nunca outrein foi doente?
Tornae ora hum suadouro
De bosta de porco velho,
E com unto de coelho
Esfregae o pousadeiro,
E crede-me de conselho.
E se de quebranto for,
Tomade o incenso bello,
E o çumo do marinelo,
E as favas de Guiné,
E untae o cotovelo.
S i ; e se for priorisa,
DAS FARÇAS. 307

Tomade da guiabelha,
Pisada co'o fel d'ovelha.
Moç. Mas pondc-Ihe Branca Denisa.
BRA. Zombais de quem no aconselha? —
E se for de cadarrão,
Comei caramujos quentes,
Como saturem ferventes,
E mexilhões vos coserão,
Porque são aqui parentes.
E se for caleca passa,
Que nasce das bandarrinlias,
Tornae do çumo das vinhas,
E acolá a sopa na braza,
Então ferver as mézinhas.
Não posso mais aqui estar,
Que ando destemperada.
Como eu for estancada,
Virei ca mais devagar.
Moç. Boa mestra he aquella honrada.
CLK. Ay, ay, ay triste de mi!
Porquê Ia muerte no viene?
Suéltela quien Ia detiene;
Venga y lléveme de aqui,
Que el vivir no me conviene.
O muerte, pues que es hermosa,
Porquê te pintau terrible?
Y pues eres convenible,
Porquê te Uainan furiosa?
Mas ante muy apacible.
Oh! bendito Dios amen,
Porque me hizo inortaí;
Que si nacera inmortal,
20"
308 LIVRO IV.

En pago de querer bien,


Fuera para siempre el mal.
BRASIA DIAS.
Compadre, fazê por comer,
E curae de vossa vida;
Que depois da vida ida,
Não ha ca mais que perder
Como a tiverdes perdida.
CLE. E S muy claro y descubierto
Á los tristes de mi suerte,
Que el morir es su consuerte;
Porque Ia vida dei inuerto
No está sino en Ia muerte.
BRASIA DIAS.
Ora escutade lá:
Seredes João de Thomar,
Que depois de morto ja
Diz que punha-se a mijar?
Tal sois vós agora ca.
Curade-vos, qué doce he a cura:
Mestre Felipe vem aqui.
CLE. Venga y cure de mi,
Pues mi mal no tiene cura.
Entra Mestre Felipe, e diz
MESTRE FELIPE.
Deos vos salve! Quem 'stá aqui?
Ora andar, são paixões.
BRA. Sentae-vos nessa cadeira.
M.F. Sardinha ha na ribeira.
Ora em fim de rezões
Todo este inundo he canseira.
Quanto ha que vos sentis?
DAS FARÇAS. 309

CLE. Anteayer me comenzó,


Y nunca mas me dejó.
M.F. Ha muito que não sahistes ?
CLK. Ay cuitado que ine vó!
MESTRE FELIPE.
Ora será bom que tomeis
Cristel d'agua de cevada
Com farelos mesturada.
E sabeis que comereis?
Hüa alface esparregada.
Que lhe tendes vós guisado?
BRA. Cabeças dalcupetor,
Que não come o peccador
Desd'o sábado passado,
E dieta será peor.
CLÉRIGO.
Ay que no sé donde estoy!
BRA. E se isso não quizer,
Cuidava de lhe fazer
Apisto de pé de boi,
Pera não enfraquecer;
E hum pouco de manjar branco
De posperna de veado,
E pescoço de bode assado.
Assi curei eu João Franco,
E anda são, Deos louvado.
MESTRE FELIPE.
Fazei o que vos eu digo,
Qu'essa febre he velhaca,
Procede de cordiaca:
Attentais no que vos digo?
Até vermos se se apraca.
310 LIVRO IV

Faça elle embora as ourinas,


E pola manhan eu virei,...
Entendeis? — e vos direi...
Entendeis? — se são sanguinhas.
Entendeis? — Então virei.
BRASIA DIAS.
E dar-lh'hei eu puro o vinho?
M.F. Guarde-nos Deos de mal!
Não, senão água tal.
Entendeis? — cosida com rosmaninho.
Entendeis? Não façais ai.
Ora ficae-vos embora.
Entendeis? Eu terei cuidado,
E pondc-vos a bom recado.
CLE. Oh Denisa! oh mi senora!
Como me tienes lastimado!
Moço.
Será bem que torne lá,
Mas ha-me d'arrepelar.
Quereis-me vós trosquiar,
E não uvarrepelará?
CLE. Vé, que no te ha de matar,
Y dile que ponga en calma
La tormenta que me da;
Que Satanás no podrá
Dar tanta pena á mi alma,
Como á mi vida ella da.
Y dile que no le pido
Sino que oya mis males,
Y á mis quejas criminales
Quiera inclinar su oido,
Por que se vuelvan veniales.
DAS FARÇAS. 311

Moç. Mande Deos s'eu lá entrar


Que não me corte as orelhas.
E se hi estiverem as velhas?
CLK. NO deben ahora ahi estar.
Moç. Con gran temor vou, pardelhas.
BRASIA DIAS.
Aqui vem Mestre Fernartdo.
Entra Mestre Fernando c diz:
M.F.Oulá, que he isto? que he isto?
BRA. Venhades com Jesu Christo,
Mestre Fernando amigo:
Quem vos chamou pera isto?
M.F. Porque! sou de palha eu?
BRA. Vós sodes surlugião.
M.F. Não está ferido? BRA. Não.
M.F.Pois que foi? BRA. Mal que lhe deu.
M.F. Eu também Físico sam:
Tanto sei ca como lá.
Oulá, que he isto? dormis?
CLK. Ay! M.F. De que vos sentis?
Mostrae esse braço ca.
Isto procede dos rins,
Ou pulso cordiz será.
Mijastes no ourinol,
Que vos faça boa prol?
BRA. Não. M.F. Pois sem isso quem saberá
Se he da chuva, se do sol?
Dizem os nossos doutores —
Ouvi-lo? ouvis que vos digo? —
Non es bona purgado, amigo,
Illa qui incipit cum dolores,
^Porque traz fleina coineigo,
312 LIVRO IV.

E li/a qui incipit trarantran,


Quia tranlarum est.
Ouvi-lo? De físico sain eu mestre,
Mais que de surlugião,
Emque me chamão sudeste.
Chamão-me vento assomado
Alguns a s s i . . . ouvi-lo?
Porque alço o gorgoinilo,
E ando assi espetado;
Mas eu rio-me daquillo.
Que tendes pera comer?
BRA. Pastel de lebre. M.F. Pera a febre
Julgamos a que tem lebre?
Ora vos faço a saber
Que ha de comer cousa leve.
Nem a lebre, nem coelho,
Nem porco, nem cação,
Congro, Iamprea, tubarão
Não coma de meu conselho,
Inda que estivesse são.
BRA. Ora pois que comerá?
M.F. Huns poucos de grãos torrados,
Não sejão muito salgados.
E á inanhan eu virei ca,
Ainda que pês ós dados. „
Vem o Moço e diz
Moço.
Diz que boa prol vos faça
Aquessa vossa doença,
E se fora pestilença,
Tivera muito mais graça.
E vedes aqui a sentença.
E depois que sahi fora,
DAS FARÇAS. 313

Escutei, e ella dizia


Entre si: Oh que porfia!
Moura, moura na ma ora,
Leixar-m'ha sequer hum dia.
Elle ó domenus obisco
Sempre c'os olhos em ini,
Á offerta, e elle alli!
Parece inelro mourisco:
O Demo o elle trouxe aqui. —
Daqui podeis vós tomar
O melhor que vos vier.
CLK. De donde el inal tien poder,
Que bien se puede ganar
Sino ser cierto ei perder?
Vé, Uámame á mis amigos,
Con que solia cantar,
Que cantem quando espirar,
Y tambien sean testigos
Cuan fuerte cosa es amar.
Veran como el alma se va,
Y queda el cuerpo sin vida,
Y Ia vida oferecida
Á quien Ia muerte ine da:
Y sea muy bien venida.
Verme han triste acabar,
Verme han ei mundo dejar
Tan contento de partir,
Como ellos de quedar.
BRA. Mestre Anrique vem aqui.
Entra Mestre Anrique e diz
MESTRE ANRIQUE.
M.A.Hao! quien está acá? Sois vos?
314 LIVRO IV.

Pues con Ia ayuda de Dios


Presto os erguereis de ahi.
Alto, que Dios es con nos.
Cuanto ha que os sentis mal?
CLE. Cuatro dias. M.A. Á quê hora
Os tomo? CLE. Por Ia mafiana.
M.A.Üfi amor me recordara,
Desde entonces hasta ahora
No hubiera quien me llamara.
Muéstrame ei pulso acá,
Y veremos que tien lebre.
Aguda teneis Ia fiebre,
Muy recia y iutrinsa está;
Pero yo le haré que quiebre.
Salis bien? CLE. Salgo de seso.
M.A.Esta fiebre es sincopai,
Y Ia enfermedad tal.
Curase con inucho peso..
Hábeis mirado? — que es mortal.
Que cuando Ia cólera adusta.
Hábeis mirado? — se enfria,
Vuélvese melanconia,...
Hábeis mirado? — y disgusta
La salud de Ia sangria.
Hábeis mirado? Y ansí
Que babemos expriencia
Que no hay ninguna dolencia
Que yo quisie.se para mi
En cargo de mi condenei a.
Que tiene para comer?
BRA. Tem alli quatro coelhos,
Dous caçapos e dous velhos;
DAS FARÇAS. 315

E hum chouriço: pera beber


Muito bôs vinhos vermelhos.
M.A.Par dios! v o s . . . hábeis mirado?
Estais danosa, mi parienta.
Es fiebre contínua-y quenta.
Hábeis mirado, y bien mirado?
Errada estais en Ia cuenta.
Hábeis mirado? No coma
Hábeis mirado, senora? —
Sino pasas por ahora;
Y buscalde una redoma
Grande de água de alcanfora.
Aquesto le procedia
De comer demasiado,
Y es menester purgado.
. Hábeis mirado? Y digo yo
Que este bombre está opilado.
El tiene fiebre podrida...
Hábeis mirado? — efimera; —
Hábeis mirado? — de manera
Que para dalle Ia vida,
Es inenester que no muera.
Ois, duefia? Tomará
Á Ia noche un violado,
Y de uianana.. hábeis mirado ?
Un cristcl, y salirá,
Para el ser aliviado.
Tiene el sol en Ia cabeza
Del verano que pasó.
Hábeis mirado? Pero yo
Antes que su mal mas cricza,
Daré el remédio ó no.
316 LIVRO IV.

Sois vos el que ine dicen?


Hábeis mirado? esforzad,
Que esas fiebres en verdad,
Que por mas que ellas aticen,
Yo las sacaré de alia.
Mantenga Dios el casamiento
Del Ruybarbo con aquella
Muy preciosa doncella
Cana fístola, que yo siento
Que sereis sano con ella.
Y cocelde unas borrajas,
Y su hierba de caldo caliente, —
Hábeis mirado? — que el doliente
No se cura con las pajas.
Hábeis mirado, pariente?
Hareis Ias águas manana,
Y verné á vervos priado,
Dios queriendo.: — hábeis mirado?
Y hacelde una tizafia,
Y yo terné dél cuidado, (vai-se.)
Moç. Canfeu não posso entender
Estes físicos, senhor:
Vós sois doente d'amor,
E elles querem-vos metter
Per caminho d'outra dor.
CLÉRIGO.
En todo dicen verdad.
Moç. Eu lhes vejo acertar.
CLE. Quien tiene amor y pesar,
Tiene toda enfermedad,
Que natura puede dar.
BRA. Aqui vem o Físico Torres.
DAS FARÇAS. 317

Entra Torres, e diz:


Toit. Ora bem Deos vos ajude,
E vos dê muita saúde.
Isto não serão amores?
Hontein quiz vir e não pude.
Topei alli com Mestre Gil
E com Luiz Mendes, assi
Que praticamos alli
O Leste e o Oeste e o Brasil,
E lá lhe dei razão de mi.
Este mal he ja de dias?
CLE. Hoy hay diez que así esto.
TOR. A que horas vos tomou?
CLE. Alli á las avemarias,
Y de mafiana comenzó.
TOR.'-Dez dias de inanhan cedo
Estava Saturno en Aries...
üoem-vos as pontas dos pés?
CLK. Ay inezquino, que no puedo
Decir mi mal de que es!
TORRES.
Bisexto he o anno agora,
Em Piseis estava Júpiter,
Saturno ha de desfazer
Quanto natura melhora:
Bem ha aqui que guarecer.
Também em Piseis a lua,
Isso foi ein quartafeira;
Mercúrio á hora primeira:
Não vejo causa nenhüa
Pera febre verdadeira.
E também deste ajuntamento
318 LIVRO IV.

Dos planetas desta era....


Não s e i . . . não s e i . . . mas per mera
Estrologia. não sei, eu sento.
Não sei que he, nem que era;
Mas hade saber quem curar
Os passos que dá hüa estrella
E ha de sangrar por ella,
E ha de saber julgar
As águas n'hüa panella.
E ha de saber proporções
No pulso se he ternario,
Se altera, se he binario,
E saber quantas lições
Deu Ptolomeo a EIRei Dário.
E quem isto não souber
Va-se beber disso mesmo:
E Mestre Nicolau quer
E outros curar a esmo!
Ora agora quero ver.
Mostrae ca ora, e veremos
Este pulso que nos diz.
Oys! qifaltera; ora chis,
Que antes que nos casemos
Haverá outro juiz.
Isto procede do baço;
Bem o mostrão essas cores.
Tendes vós nas costas dores?
Moç. Pardeos, em grande embaraço
Vejo eu estes doutores!
TORRES.
Que dizeis lá, moço? hao!
Fallas e não sabes do ninho?
DAS FARÇAS. 319

Moç. Que levais mui bom caminho:


Está a doença em Bilbao,
Vós is pera Entre Douro e Minho.
TOR. Que comedes, que, doente?
BRA. Que não come nada não.
Huin focinho de cação
Lhe tenho alli bem valente,
Com seu caldinho, que he são.
Hontem lhe tinha guisadas
Hüas trincheiras de vacca,
Que esforção a pessoa fraca,
E duas morcellas assadas,
E elle fallou-me em Malaca.
TOR. Não coma senão lentilhas,...
Si, — ou abóbora cosida...
Si; e assim Deos dará vida.
Si, e dem-lhe caldo d'ervilhas.
Si — que esta febre he parida.
Água cosida lhe dareis
Com avenca... si, então
Áinenhan lhe tirarão
Algum sangue...si, entendeis?
S i . . . então... s i . . . logo he são.
Porém a fallar verdade,
Segundo seu pulso está,
E segundo os dias que ha,
E segundo a viscosidade,
E segundo eu sinto ca,
E segundo está o zodíaco,
E segundo está retrogrado
Júpiter, confessado
320 LIVRO IV.

Ha mister, que está mui fraco,


Si... si... si, bem trabalhado, (vai-se.)
Vem o Frade a o confessar, e diz o
CLÉRIGO.
A llamar os envie;
Padre, padre, confesion;
Porque me voy de pasion,
De aqui á poço inoriré
De dolor dei corazon.
Porque el humor radical
De humor volvióse amor,
De amor grave dolor,
De dolor, estoy mortal,
De mortal, vivo amador.
Padre, digo á Dios mi culpa,
Que amo á una doncella
Tan graciosa y tan bella,
Que su gracia me desculpa,
Aunque me muero por ella.
Y, padre, confieso mas,
Que otra cosa no adoro.
Ay de mi, que me muero,
Y tú, senora quedarás
Satisfecha con mi Uoro.
Digo mas mi culpa á vos,
Que me pesa ser nacido,
Y con todo mi sentido
Estoy tan fuera de Dios,
Como en este amor metido.
Digo mi culpa, senor,
Que aunque me veo partir,
DAS FARÇAS. 321

No me puedo arrepentir,
Porque es tan dulce el dolor,
Que no me amarga ei morir.
Padre, no soy quien solia,
Ya os confieso mi pena;
No tengo contricion buena,
Ni tengo el anima mia,
Que este mal Ia hizo agena.
Qué haré? PAU. Qué hábeis de haeer?
La parte hizoos engano?
CLE. NO, padre, mas desengano,
Que uo quier oir ni ver
La desculpa de mi dano.
PADRE.
Ha mucho que os enamoro?
CLK. DOS afios. PAU. Santa Maria!
Eso es penar un dia.
Oh! triste inesquino yo,
Cuan luenga pena es Ia mia!
Decid vuestra culpa á Dios,
Que muy aína os matais.
Ante omnia os congojais:
Decid que no estais en vos,
Pues tan sin.tiempo os quejais.
Dos anos, y aun diez y médio,
Dos dias son en amores,
Para merecer favores.
Y él que pide remédio
Es muy flaco en sus dolores.
No leistes de Jacó
Cuanto servió por Raquel?
Aquel fue amante fiel,
2l
Voi. m.
322 LIVRO IV.

Que juro á Dios que afuera yo


Ninguno Ilegó á aquel.
Ah cuerpo de Dios ahora!
Ansí se hizo Roma Iucgo?
Ha quince anos que ardo en fuego
Sin ella decir un hora
Ni, viste allá fray Diego.
Vos pensareis que amores
Son como bolifiolos — entiendo,
Sino ferviendo y comiendo?
Pues no se cogen Ias flores
Sino espina sufriendo.
No mereces penitencia
Por ser namorado, no,
Porque Dios Io ordeno;
Mas antes inala conciencia
Es de aquel que nunca amó.
Dijo Dios por Ia hermosa,
La cual Eva habia nombrado:
Por esta dejará el hombre
Padre y madre y toda cosa:
Luego amada es su renombre.
Y aunque diga algun letrado
Por Ia muger que es dada;
Eva no era aun casada,
Cuando por Dios fue mandado
Que Ia muger fuese amada.
Y cuando dijo, por ella
Deje el hombre toda cosa,
Entiéndese por Ia hermosa,
Porque tal estaba ella,
Y no por cualquier tinosa.
DAS FARÇAS. 323

Quede así esto mistério


Suspenso hasta el verano.
Sobre vos pongo Ia mano,
Como diz el evangelio,
Y haced cuenta que sois sano.
Voyme á Ia huerta de amores
Y traeré una ensaiada
Por Gil Vicente guisada,
Y diz que otra de mas flores
Para Páscoa tien sembrada.
Vierão quatro cantores, os quaes cantarão a vozes esta
ENSALADA.
"En el mes era de Maio,
"Véspora de Navidad,
"Cuando canta Ia cigarra,
"Quem ora soubesse
"Onde amor nacesse,
"Que o semeasse.
"Media noche con lunar
"Al tiempo que el sol salia,
"Recorde, que no dormia
"Con cuidado de cantar.
"Ervas do amor, ervas,
"Ervas do amor,
"Á Ias puerlas de Ia villa,
"En médio de Ia ciudad,
"Dijo el abad á Teresa:
"Tan buen molinero sondes,
"Martin Gomes,
"Tan buen molinero sondes.
"Era Ia Páscoa florida
"En el mes de San Juati
21*
324 LIVRO IV.

"Cuando Ia mona parida


"Pergunto al sancristan
"Teresica dei Robledo,
'Que te guarde Dios de mal:
"Respondió Pero Pinan
"Estae quedo co'a mão,.
"Frei João, Frei João,
'•Estae quedo co'a mão.
"Padre, pois sois meu amigo,
"Quando (alardes comigo,
"Frei João,
"Estareis vós quedo, mas estai vós quedo,
"Mas estai vós quedo co'a mão;
"Frei João, estai quedo co'a mão.
"Perguntaban cual Pirico,
"Qual Pinão ou qual Frei João,
"Não diria quien era Ia moça,
"Não diria quem, nem quem não.
"Yo yendo mas adelante,
"Dijo Francia en su latin:
"Se volen Ia guerra, se volen Ia guerra,
"Boné xi si volen Ia guerra,
"Vera xi si vole Ia guerra.
"Dijo Ia vieja en Portuguez:
"Palmilhas, se amigos amades
"No rifiades
"Paz in celis, paz in terra
"E paz no mar:
"Tan garredica Ia vi cantar
"Ficade amor, ficade,
"Ficade amor.
FIM DO LIVRO IV
uva® v.
DAS OBRAS VARIAS.
DAS OBRAS VARIAS.

PARAPHRASE DO PSALMO L.

Misercrc mei, Deus, secundam magnam ájc.

Que farei angustiado,


Onde caminho perdido,
Onde vou descaminhado
Peccador desatinado,
Homem embalde nascido!
Ceos e terra contra mi,
E toda outra creatura,
Todos me lanção de si,
Porque o meu Deos offendi
Por minha desaventura.
O mar pera mi sanhoso,
A terra treine comigo;
O sol tão manso e formoso
Contra mi se volve iroso,
Como meu mortal imigo.
Acho a noite escandalosa,
E maldizem-me as estrellas;
A manhan clara e graciosa
Contra mi se rompe irosa
E me mostra mil querellas.
O dia se despedaça
Com graves sanhas supemas;
328 LIVRO V.

O ar lhe acusa da praça,


E o fogo m'ameaça
Com vivas chamas eternas.
Horas, pontos e momentos,
Os cursos da natureza
Me desejão dar tormentos;
Os mais ledos elementos
Me presentão mais tristeza.
No paço celestial
Todos tem guerra comigo:
Onde irei vaso infernal?
Que farei a tanto mal,
Que lhe não acho abrigo?
Eu se desesperarei,
Onde estou o peccador?
A quem me soecorrerei?
A ti, meu Deos e meu Rei,
Meu immenso Redemptor.
E direi a sua Alteza:
Amercea-te de mi,
Deos, segundo a grandeza
Da misericórdia e Iargueza
Que tu es e ella he ti.
E segundo a multitude
De teus amerceamentos,
Destrue minha maldade
Sccuta gran piedade
Em meus desfalccimentos.
Miserere mei, Senhor
Deus, cui proprium est;
Miserere, Redemptor,
O justo amerceador
DAS OBRAS VARIAS. 329

Desta alma que tu me deste:


Miserere, que tu es,
Todo o al por ti tem ser;
Miserere, pois que ves
Que sam lançado a través,
E não me posso valer.
Daqui avante lava a mi
Ab iníquitate mea,
E do mal que consenti
De peccados contra ini,
Lava o que tanto me afea.
Porque certo eu conheço
A minha grave maldade;
Bem conheço que pereço,
Ave dó, Senhor, te peço
De tão grande enfermidade.
Meu peccado he contra mim
Sempre que nunca ine leixa.
Lava-me, fonte sem fim,
Olha que a ti so me vim,
E minha alma a ti se queixa.
A ti so, Senhor, pequei,
Ante ti fiz a maldade,
Justifica-me, gran Rei,
Que podes mudar a lei
De justiça em piedade.
E serás justificado
Nas palavras que disseste.
Ves-me aqui atribulado,
De todos desemparado,
Cumpre o que me prometteste:
Que nunca te acordará»
330 LIVRO V.

Dos males do penitente,


Quando julgado serás
Que te vingas cruelmente.
Que venças digo, Senhor,
Contra taes murmura dores;
Esqueça-te o meu error,
Que me sinto peccador
O maior dos peccadores.
Em maldades concebido,
E em peccados me gerou
Minha mãe enfraquecido,
De torpe terra vestido,
Em miséria me formou.
Não, Senhor, porque isto abaste
Escusar-me de peccado;
Porque a verdade amaste,
As cousas me revelaste
Incertas a meu cuidado.
As oceultas conheci
De tua sabedoria,
Manifestaste-as a mi,
E eu ingrato consenti
Sujar-te minha alegria.
Com hyssope espargerás,
E serei limpo mui breve;
Tu, Senhor, me lavarás,
E minha alma leixarás
Muito mais alva que a neve.
Porque a obra que fizeste
De baixa massa terrena,
Que de terra compozeste,
E esta alma que tu me deste
DAS OBRAS VARIAS. 331

Mandes que saia de pena.


Meus ouvidos folgarão
Com prazer alegre, e assi
Os ossos reviverão,
Que humildados estão
Tremendo diante ti.
De meus disformes peccados
Acerte fadem ttiam;
Crimes e mal confessados,
Senhor, não sejão lembrados,
Minhas maldades se estruam.
Coração limpo em mi cria,
Deos, que de nada criastc
A mais alta hierarchia,
E ao corpo onde eu jazia
Minha alma de lá mandaste.
Ves-me aqui tornado nada,
Renova em mi esprite direito;
Per minha mão foi damnada;
Faze tua obra acabada,
Não olhes que he defeito.
E obrado este lavor,
Meu Deos, que te peço tanto,
Não tires de mi, Senhor,
Tua face e resplandor
E o teu esprito saneio.
Porque obrando mais, mais mal.
Torna-me aquella alegria
De tua saúde eternal,
E de spirito principal
Me confirma cada dia.
Que não tenho forças não
332 LIVRO V.

Sem ti pera defender-me;


Tu es Deos pera perdão,
Eu homem pera afflição,
E tu pera soccorrer-me.
Aos mais ensinarei
O caminho da verdade,
E converter-se-hão a ti
Quando se doer de mi
Tua eternal piedade.
Libera me dos sangues, Deos,
Deos de minha saúde,
Que são os próximos meus,
E sendo criados teus
Offendi mui a miude.
E quercllão diante ti
Por minha condemnação;
Dá tu sentença por mi:
Pois que ja me arrependi
Passe por satisfação.
E minha língua louvará
Tua justiça clemente,
Todo o Ceo se alegrará,
Todo o peccador virá
A ti mui devotamente.
Os meus beiços abrirás,
E minha boca apregoará
O teu louvor onde estás:
Outras cousas não quereras,
Nem dádiva te alegrará.
Porque, Senhor, se tu quizesses
Sacrifício, da-Io-hia;
Se presentes recebesses,
DAS OBRAS VARIAS. 333

Se por peitas te veucesses,


Tudo te offereceria.
Mas não te deleitarás
Nas offertas temporaes,
Tu as tiras, tu as dás,
Senhor, não te alegrarás
Com estes serviços taes.
O sacrifício a Deos aceito
He o spirito atribulado
Pólos inales que tem feito,
Porque não andou direito,
Porque se ve condemnado.
E vendo-o tu, Senhor, afflicto,
Com gloria o receberás;
Porque o choroso esprito
E o coração contrito
Tu o não desprezarás.
Ave mercê de Sião,
Madre Igreja que fundaste,
Por quem padeceo paixão,
Morte cruel sem rezão
Hum so filho que geraste.
E serão edifícados
Os muros de Jerusalém,
Os que forão derribados
Aquelles anjos damnados
Que perderão tanto bem.
Os quaes muros refarás
Sem trabalho nem preguiça
Quando formos onde estás,
Entonces receberás
Sacrifício de justiça.
334 LIVRO V.

Sendor meu Deos, tu recebe


Em offerta esta oração,
E a minha alma percebe
Que caminhe como deve
Pera minha salvação.

S E R M Ã O
feito á christianissima Rainha D. Leonor, e pregado em Abran-
tes ao muito nobre Rei D. Manuel, primeiro do nome, tia
noite do nacimento do Illustrissimo Iffante D Luís. Era do
Senhor de i5o6. E porque alguns forão em contrário
parecer que se não pregasse sermão d'homem leigo, começou
primeiro di/.endo, antes de entrar no sermão:

Antes de aqueste muy breve serinon,


Placiendo á Ia sacra sciencia divina,
Muy receloso de gente malina,
A mis detractores demando perdon.
Los quales diran con justa razon:
Púsose el perro en bragas de acero:
Daran mil razones, diciendo que es yerro
Pasar los limites de mi jurdicion.
A aquestos respondo, que me den licencia
Aquesta vez sola ser loco por hoy,
Y toda su vida licencia les doy
Que pueden ser necios con reverencia.
Y mas le suplico hayan paciência,
Que esta locura no pasa de aqui;
Y yo ge Ia doy que aqui y alli
Lo sean por siempre, que es mas preininencia,
Yo que Io sea esta noche y no mas,
Y quiero que ellos las noches y dias.
DAS OBRAS VARIAS. 335

Escuchad, senores, las palabras mias


Si este partido está en compas.
Per signum crucis, oh calla, no mas,
Per signum crucis, oh callad por Dios,
De inimicis nostris libera nos,
Deus noster. Retro Satanas.
Tema.
Non volo, valo, et defictor.
Habentur verba ista originaliter in
pariete istius aulae, quae scripsit
aliquis stultus.
Como aquel triste que va cambiando
Con grave congoja, ambriento, cansado,
Por estéril tierra y gran despoblado,
Los cortos atajos siempre anda buscando,
Ansi yo indino que voy predicando
Por este desierto de mi pensamiento,
Estéril de sciencia, de gracia ambriento,
No cuinple ni quiero andar rodeando.
Pediendo Ia gracia por comparaciones
Aquella preciosa ab eterno criada,
Subida en el cielo por nuestra avogada,
Y procuradora de nuestros perdones;
Aquella Senora que alcanza los dones
Y gracias que habemos dei Spiritu Santo,
Nos encomendemos cantando aquel canto
Que os encomiendan en otros sermones.
Ave Maria ab ittitio creata,
Grafia plena concepta e nacida,
Domintis tecum, por él escogida,
Benedicta tu, rosa preservata,
In mulieribus omnium beata,
336 LIVRO V.

Benedictus fructus dei verbo divino


Ventris tui, Domina, de tanto bien dino,
Jesus, Maria, y sed tú nuestra avocata.
Muy serenísima Reina y senora,
Devoto auditório, hermanos en Christo;
Aquestas palabras, si bien hábeis visto,
De mi fundamiento que oistes ahora,
Hallareis escritas de carbon ahi fuera.
Escribiólas loco sin le faltar nada,
Segun que dicen, que pared cayada
Papel de locos, oireis cada hora.
Non valo, volo, et deficior.
En nuestro comun hablar por compas,
Sin nada quitar ni mas aãadir,
Qnieren aquestas palabras decir,
No quiero, quiero y es por demas.
Mediante Ia gracia dei Spiritu Santo,
Três partecitas haré dei sermon,
Y todas três partes en declaracion
De aqueste mi tema, dei todo y dei canto.
La primera parte será declarar
Esto no quiero, que es Io que no quiero;
En Ia secunda que es Io que quiero,
Y muy brevecico, por no os enojar.
En Ia tercera hábeis de notar
Cualcs son las cosas que son por demas,
Autorisadas por Santo Tomas;
Y esto acabado ireis reposar.
Cuanto á Ia parte que dije primera,
Que dice non volo, scilicet no quiero,
Aqueste no quiero declaro primero,
Ansí procedendo de aquesta manera,
DAS OBRAS VARIAS. 337

No quiero deciros, ni nadie Io quiera,


Como Dios es ansí uno y trino;
No quiero deciros su poder divino,
Que obra en si y que obra fuera.
No quiero arguir que es Io que bacia
Antes que el cielo y Ia tierra cria.se,
0

O porque no hizo tal que no pecase


Aquella primera celeste hierarquia.
No quiero dar cuenta adonde tenia
Dios este mundo antes de criado,
Ni daros razon como es engendrado
El hijo dei Padre, por ninguna via.
No quiero mover question teóloga),
Si otro respeto, salvo encarnar,
Le hizo Ia humana natura tomar,
O porque no tomo natura angelical:
Ni tomar cuenta al Verbo eternal,
Si cuando encamó se aparto dei Padre,
O si d'aô initlo perservó su madre;
Ni quiero hablaros neste original.
No quiero deciros especulaciones
De Santo Agostin de civitate et cetra:
No quiero de Scoto alegar ni letra,
No quiero disputas en predicaciones.
No quiero deciros las opiniones
De los que hacian el inundo ab eterno;
Ni alegar texto antigo ó moderno,
Si el Papa si puede dar tantos perdones.
Ni el precipto que está condenado,
Nel saber divino si tiene alvedrío,
Y su alvedrío si tiene poderio
Para mudarse Io determinado.
Vol. III.
338 LIVRO V.

No quiero estas dudas, porque es escusado


Subillas ninguno al predicatorio;
Ni disputar si el Romano Papado
Tiene poderio en ei Purgatório.
No quiero arguir escusada questioif,
Si fue el Infierno antes dei pecado;
No quiero arguir si el fruto vedado
Si era manzana ó pera ó melon.
No quiero deciros naqueste sermon
Si fue el dilúvio curso natural,
Segun los de Grécia; si fue divinal
Ira safiosa con causa y razon.
No quiero tocar secretos guardados,
No quiero meterme en divinas honduras,
Ni quiero volar naquellas alturas
Do queinan Ias alas los desasesados.
No quiero ser uno de algunos letrados,
Que por demostrarse profundos varones,
Disputan consigo en las predicaciones
Y en las escuelas estanse callados.
No quiero arguir en placer ni pena,
Los anos de Arquiles, Patróculo et cetra,
Ni dcsquadrifiar allen de Ia letra,
Si era mas luenga Ecuba ó Elena.
Qué hace á Ia historia ser mala ó buena
Saber donde Ulises erro el camino?
Ni quiero ser cierto ni ser adivino,
Quien fue el primer juez en Vaena.
Ansí que concluyo el no quiero, que es
Mi voluntad naqueste sermon
Dejar los secretos de especulacion,
Y dccir las cosas que tienen mas pies.
DAS OBRAS VARIAS. 339

Y porque, sènores, no os enhadeis,


Esto es.cuanto á Ia parte primera.
La otra segunda es de otra manera,
Que dice quiero. Veamos Io que es.
Quiero deciros con grande querella,
Quiero deciros de parte de Dios
Y de Santa Maria, que anda con vos,
Y conmigo el diablo á Ia zacapella,
Quiero deciros que moza y que vieja,
Y viejo y mozo, monja y fraile,
Todos andamos al son de su baile,
Vos é yo, y aquel y aquella.
Juro á las ordenes que recibi,
Y al sacramento que hoy celebre,
Que nunca en el mundo hubo tanta fe
Con el Infierno como hoy ha hi.
Sedme testigos que os Io digo ansí,
Que ya este mundo no puede turar;
No puede turar, quiérse finar,
Segun las sefiales que en él conocí.
Nueve sefiales hábeis de saber
Que tiene el enfermo que se quiere finar:
Lo primem es que pierde el gustar;
Y lo segundo el desconocer.
Lo tercem es que se pierde el ver;
El cuarto apafia Ia ropa sin tiento,
El quinto tiene un desasosegamiento,
Que no se contenta de estar ni yacer.
Lo sexto no hace cura operacion;
Seteno que tiene los cabos muy frios;
Engruesa Ia lengua, dice desvaríos,
Que es lo octavo senal con razon.
22*
340 LIVRO V.

El nono y último, con fuerza y pasion


Aprieta los dientes con ânsias morlales.
Quiero deciros que aquestos sefiales
Veo que el inundo está en conclusion.

Digo que Ia primera serial: pierde el gusto.


En cuatro manjares de grande sabor
Se mantiene el mundo de necesidad;
El uno es justicia, el otro verdad,
El otro es Ia fe, el otro el temor.
Y pues perdió ei gusto de este su dulzor,
Y á tales manjares cobro tal fastío,
Yo os juro, senores, neste hábito mio,
Que nunca jamas sane el su dolor.
Oh mundo! sefial es de tu perdimiento
Perdieres el gusto de tantas dulzuras.
Oh evangelios, santas escrituras,
Como os hacen molinos de viento!
Acudid al mundo, que está en pasamiento,
No puede vivir, ya no gusta nada.
Otra sefial muy mas apretada
Que ya no conoce; que es mas perdimiento.'
Ya no conoce á su criador,
Ya no conoce para que es criado,
Ya no conoce que cosa es pecado,
Ya no conoce si tiene senor;
Ya no conoce á su redentor,
Ya no conoce sus santos consejos,
Ya no conoce ni inozos ni viejos,.
Ya no conoce que cosa es mejor.
Ya no conoce quien Io viene á ver,
Ya no conoce ni padre ni madre,
DAS OBRAS VARIAS. 341

Ya no conoce compadre ni comadre,


Ya no conoce pesar ni placer.
Ya no conoce su desconocer,
Ya no conoce hermano ni hermana,
Ya no conoce parienta cercana,
Ya no conoce ni quiere conocer.

Tercera serial.
Otra sefial tercera le siento;
Que pierde Ia vista, los ojos quebrados,
No ve los peligros de tantos pecados,
No ve el camino de tanto tormento,
No ve Ia ceguera de su pensamiento,
Ni ve los barrancos nesta triste estrada;
Ni ve adó va ni á que posada,
Ni siente lo cierto de su perdimiento.
No ve lo que toma ni lo que le dan;
No ve lo que deja, ni ve Io que lleva;
No ve quien lo alumbra, ni ve quien Io ciega;
Ni ve lo que pide ni que le daran:
No ve quien lo Ilama, ni á que afan;
No ve Io que topa, ni de que se guarda;
No ve lo que viene, ni ve lo que tarda;
No ve lo que es piedra, ni lo que es pau..

Cuarta sefial: apaha Ia ropa.


El cuarto sefial apafia Ia ropa,
La ropa que halla, agena y Ia suya,
La suya y agena, no pergunta cuya;
Cuya sefial es su vida poça,
Poça firmeza, ceguera inuy loca,
i.m»a Ia vida v loca Ia muerte,
342 LIVRO V

Muerte que apafia en paso tan fuerte,


Fuerte sefial, que es fuego de estopa.
Apana ya el mundo á pierna tendida,
Apana ya ciego sin conocimiento,
A pana sin gusto dei mantenimiento,
Apana sin gusto, quiere dar Ia vida,
Apana de prisa, que está de partida;
Apafia, no sabe ya Io que se toma.
Apana Ia ropa Ia casa de Roma,
Apafia Ia manta de cualquier partida.
El quinto sefial (oh no me duerma ningunoj
Es que el doliente no se contenta de estar sosegado.
No se contenta de estar bien echado,
Ni agradece ya mas bene alguno.
Impaciente y muy importuno —
No estoy bien aqui ... quiérome ir de aqui...
Adonde alli? oh qué sefial de paso fortuno!
Poço vívirás; oh, triste de ti!
Quiérome vestir .. quiérome levantar...
Oh! levantadme . quiero ser Conde.
Quiero senoría ... Conde! y donde?
Adó quieres ir, que no hay lugar?
No puedo aqui estar ni asosegar:
Cuitado, qué has? Oh, no te contentas?
Naciste desnudo y en cama de riendas
No asosiegas? — poço has de turar.
Estos traveseros quitaldos allá ..
No quiero esta rienta; dadme un obispado...
No estoy bien contento, no estoy bien echado:
Esta cabecera mudalda aculld ...
Bullidme esta cama que muy dura esta.
No puedo aqui estar ni asosegar...
DAS OBRAS VARIAS. 343

Quiérome ir d Roma, quiero arcebispar:


Quiero ser Papa.... Oh, el inundo se va!
Sexto sefial: no obra en él medecina.
Ya no le aprovechan las curas divinas
Del hijo de Dios por él tan sagrado,
Y por su salud inuerto y crucificado,
Y no obran ya en él sus doctrinas;
Ya no le aprovechan callentes ni frias
Las yerbas y flores de Ia redencion,
Ya no le aprovecha que está en conclusion,
Sedme testigo que acaba sus dias.
Ya no le aprovechan águas estiladas
Por los ojos claros de Ia gloriosa;
Ya no le aprovecha Ia pasion penosa
De mártires y vírgenes por él degolladas:
Oh qué sefial de presto acabadas
Aquestas pisadas dei inundo doliente!
Pues de sus males sanar no consiente,
Y está al cabo de sus Ires jornadas.

Sétimo sehal: tiene los cabos frios.


Frias las manos para dar loores
Por males ó bienes á Dios su senor;
Frias, hieladas en por su amor
Dar de lo suyo á pobres pecadores;
Frias, muy frias en pagar sudores
Á cuantos cristianos por esclavos tuve;
Frias sin sangre en pagar lo que debe
Á los cuitados de sus servidores.
Frios los pies para visitar
Los desamparados de los hospitales;
KVins los rabos son ciertas sefiales
344 LIVRO V.

Que el triste dei inundo se quiere acabar.


Frios, hielados para cambiar
A ver á su Dios, ni á romerías;
Frios, mortales, que acaba sus dias:
EI mundo, hermanos, se quiere finar.
Otro sefial octavo lo ataja,
Que engruesa Ia lengua, Ia habla turbada;
Engruesa Ia triste que está emponzofiada
De falsos testimonios por dame esa paja.
De noche y de dia parlar como graja
Lisonjas, mentiras de vidas agenas.
Oh inundo, tú mueres, pues ya que apenas
De las cosas buenas no hablas migaja.
Oh qué sefial, pues que ya dispara
Con lengua dafiosa Ia habla turbada.
EI nono sefial, fiu de esta jornada,
Aprieta los dientes con rabiosa cara,
Medofia, espantable, terrienta, amara,
Con tanta soberbia y cada vez mas.
Oh triste de inundo, poço turarás;
Antes no te viera, que tal te bailara.

Cerrados los dientes.


Oh pese á tal, y Dios es testigo;
Oh refiiego de tal, y Dios es presente;
Oh mala sefial cuando el doliente
Se inuerde las manos lidiando consigo.
No sé que te diga ni sé que te digo;
A segun las visages que haces sin tiento,
Ya te aparecen en tu finamiento
Aquellas visiones de nuestro enemigo.
Tú perdiste el gusto por le complacer,
DAS OBRAS VARIAS. 345

Perdiste Ia vista por le contentar,


Apafias Ia ropa para se Ia dar,
Ganaste soberbia por no le perder.
Oh soberbio inundo, frailes y abades,
Soberbios beguinos, soberbios ermitafios,
Soberbios los meses, soberbios los anos,
Soberbios palácios, soberbias herdades,
Soberbio te finas en cama de enganos.
Y pues los sefiales de tu acabamiento
Ya estan al cabo do ninguno apela,
No puede tardar aquella candeia
Dal cielo espantable con ira y tormento.
Será tal Ia hora de tu pasamiento,
Que solo en vella Ias gentes se finen,
Dum veneris judicare seculum per ignem;
Esta es Ia candeia de tu finamiento.
Esto abasta, seõores, no mas
Cuanto á ia parte segunda presente,
En Ia cual puede notar quien Ia siente,
Que el triste dei inundo va de cara atrás.
Y porque sigamos Ia regia y compas
De nuestro sermon, segun su manera,
Síguese ahora Ia parte tercera,
Que dice en el tema: es por demas.
Es por demas Ia buena simiente
Sembrada en Ia tierra estéril y mala;
Es por demas vestirse de gala
La vieja amigada sin muola ni diente;
Y por demas es
Al galgo ser lindo, si no tiene pies;
Y es por demas dieta al goloso;
346 LIVRO V.

Y es por demas buen peine al tinoso,


Y todas las cosas que ahora oireis.
Es por demas pedir al judio
Que sea cristiano en su corazon;
Es por demas buscar perfeccion
Adonde el amor de Dios está frio.
Tambien está llano
Que es por demas al que es mal cristiano
Doctrina de Cristo por fuerza ni ruego;
Es por demas Ia candeia al ciego,
Y consejo al loco y don al villano.
Es por demas predicar verdad,
Es por demas llamar por virtud,
Es por demas traeros salud,
Es por demas reprender maldad:
Es por demas, por bien que pareza,
Es por demas loar Ia bondad;
Es por demas quebrar Ia cabeza,
Es por demas, que tanto se os da.
Es por demas, y aqui concluyo,
Es por demas aqueste sermon;
Empero á Dios demando perdon,
Que manda que diga y de miedo rehuyo.
Pliega á Ia Vírgen y al hijo suyo
Que nos dé muerte con nuestra victoria,
Y nos restituya nel cielo ad quam gloria
Nos perducat por el amor suyo.

Á MORTE D'ELREI D. MANUEL.


Quem longa vida deseja
Deseja ver-se enganar,
DAS OBRAS VARIAS. 347

Pois que lhe vejo chamar


Vida, não que vida seja,
Senão a modo de fallar;
E pois no triste acabar
Se começa o desengano,
Não sei quem vai desejar
Que dure vida de engano.
Riqueza ou grande poder,
Ou muito alta senhoria,
Ou bonança ou alegria,
Pois logo deixa de ser, —
Quando era, o que seria?
Oh vida van e vazia,
Occupada em presumpção,
Aprende com discrição,
Porque cada hora do dia
Te dá o mundo lição.
Oh quem vio as alegrias
Daquellas naves tão bellas,
Bellas e pod'rosas velas,
Agora ha tão poucos dias,
Pera ir a Iffanta nel las!
Vai buscar o senhor de lias,
Rei que o mundo mandou,
Verás que tal se tornou;
E verei como te velas
Da vida que o enganou.
Vela-te, vida, na vida,
Não sejas morte na morte:
Guia-te per este norte
De tão supita partida
D'hum Rei tão são e tão forte:
348 LIVRO V.

Derão-lhe a terra por corte,


Dos cortezãos apartado,
E huin lençol por reinado;
Porque o mundo desta sorte
Desengana o enganado.

R O M A N C E
ao mesmo a s s u m p t o.
Pranto fazem em Lisboa,
Dia de Santa Luzia,
Por EIRei Dom Manuel,
Que se finou nesse dia.
Chorão Duques, Mestres, Condes,
Cada hum quem mais podia;
Os fidalgos e donzellas
Muito tristes em porfia;
Os Iffantcs davão gritos,
A Iffanta se carpia;
Seus cabellos, fios d'ouro,
Arrincava e destruía;
Seus olhos maravilhoso.*
Fontes d'agua parecia.
Bem merecem ser escriptas
As lástimas que dizia.
"Paço tão desamparado
"Derribado merecia,
"Pois a sua fortaleza
"Se tornou em terra fria.
"O minha senhora madre
"Rainha Dona Maria,
"Quem a vós levou primeiro
DAS OBRAS VARIAS. 349

"Mui grande bem vos queria,


"Pois que vos livrou da pena
"Que passamos neste dia."
E outras magoas que de tristes
Contar não nas ousaria.
O Príncipe dava suspiros,
Que a alma se lhe sahia;
Suas lagrimas prudentes,
Como a gran senhor cumpria:
De dia sempre velava,
De noite nunca dormia.
A Rainha estrangeira
Ja chorar o não podia:
Com ronca voz dolorosa
Estas palavras dizia:
"Oh Reina desamparada!
"Qué haré sin compafiía,
"Pues que en esta triste vida
"Sola una vida tenia!
" Y pues ine Ia llevó Ia muerte,
"Para qué quiero Ia mia?
"Oh sin ventura casada
"Três anos no mas habia,
"Quien tan presto fue viuda,
"Triste para que nascia;
"Nifia sola en tierra agena,
"Huérfana sin alegria!"
Se hüa vez acordava
Outras sete esmorecia;
Assi pedia a Deos morte
Como quem pede alegria,
Dizendo: "Llévenme luego,
350 LIVRO V.

"Que esta tierra ya no es mia:


"Por Ia mar por donde fuere
"Algun peligro venía,
"Que me inataso á mi sola
"Salvando Ia compafiía."
O bom Rei em seu acordo
Deste mundo se partia:
Sua morte conhecendo,
Com muita sabedoria,
Per palavras piedosas
Os sacramentos pedia;
Fatiando sempre com todos,
Deu sua alma a quem devia.
Morto levão o gran Rei
Senhores de gran valia,
Dizendo huns aos outros:
Oh que triste romaria!
Que grande amigo perdemos
E que doce companhia!
Ja passada a meia noite,
Três horas antes do dia
Mettido em hum ataude
O qirinda ha pouco regia,
O gran senhor do Oriente
Dos seus Paços se partia.
Seiscentas tochas accezas,
Escuras a quem as via;
Triste pranto até Bolem
Nem passo não se esquecia.
Em terra fica enterrado,
Porque assi mandado havia,
Conhecendo que era terra
DAS OBRAS VARIAS. 351

A mundanal senhoria.
Disse que os vãos thesouros
A morte não pertencia.
Desque ficou enterrado
Cada hum se despedia,
Dizendo estes versos tristes
w

A gloriosa Maria.
Oração dos Grandes de Portugal a X. Senhora, ilepois
de enterrado D. Manuel.
O Duque de Bragança.
Senhora Virgem gloriosa,
Que leixaste sepultado
O verbo deificado
Vestido da carne vossa,
Do inundo desamparado;
Este vosso encommendado
Rei, que tanto vos queria,
Que lhe dês tanta algria,
Como nos leixa cuidado
Neste dia.
O Mestre de Santiago.
Senhora dos três Reis Magos,
E de todolos Senhores,
Coroa d'Imperadores,
Que tragaste tantos tragos
Tristes pólos peccadores;
Polas vossas sanctas dores,
Que este Rei que era nosso
Haja de vós os favores,
Como hum dos servidores
Que foi vosso.
352 LIVRO V.

O Marquez de Villa Real.


O d'«o initio Senhora
Perservada e conservada,
Ante que os anjos criada,
Por sua superiora
No seio de Deos guardada;
Pois que1 fez esta pousada
EIRei em vossa memória,
Ponde sua alma na gloria
Per vossa mão laureada
De victoria.

O Marquez de Torres.
Senhora, que o Rei dos Ceos
Viste na cruz espirar,
Espirar e lamentar,
Dizendo: "Oh Deos, meu Deos!
Foste-me desamparar!"
Vós queirais lá emparar
Este Rei que aqui leixamos
Em tão escuro logar,
E a nós alunliar,
Que vos vejamos.

O Conde de Marialva.
\ Senhora, Senhora nossa,
Senhora nossa avogada,
Sereis deste Rei lembrada,
Por aquella sancta hora
Que fostes encoinmendada.
Ca vos fica soterrada
Sua Alteza e consumida:
DAS OBRAS VARIAS. 353

Dae-lhe lá vida mudada,


Porque a vida aqui lograda
Não he vida.

O Bispo d'Evora.

Ca vos fica este Senhor


Pobremente sepultado:
Senhora, seja lembrado
Que em vosso saneio louvor
O achei sempre oecupado.
Hi fica desemparado,
Co pago que o inundo dá,
De terra emparamentado:
Senhora, tende cuidado
Delle lá.

O Conde de Tentugaí.

Senhora, nós nos partimos


Desconsolados e tristes,
Como quando vos partistes
Donde vo^so filho ouvimos
Que morto enterrar o vistes.
Peço-vos, pois que o parisles
Deos e homem natural,
Que a esta alma Real
Deis o bem que descubristes
Eternal.

O Conde da Feira.

Imperatriz das alturas,


Sobre os coros enxalçada,
Pera sempre alumiada,
*J3
354 LIVRO V.

Aqui vos fica ás escuras


O Rei da gran nomeada.
Acabou sua jornada
Senhora, muito improviso:
O Virgem toda paraíso,
Dae-lhe gloria desejada,
Pois sois isso.

O Conde de Penella.

Senhora, nossa esperança,


Triumpho da nossa vida,
Nave de certa guarida,
Fiel de fina balança,
Nossa carreira sabida:
O sem mágoa concebida,
Redemptora dTsrael,
Dae a EIRei Dom Manuel
A gloria que nos foi havida
Per Gabriel.

O Conde d'Alcoutim.

Querello-me, Senhora, a vós


De nossa vida enganosa,
Que alem de trabalhosa,
Parte-se breve de nós*
Pera terra tenebrosa.
Lá queirais ser piedosa
Ao Rei que ora enterramos,
E a nós, que isso esperamos,
Nos dae esperança vossa
Até que vamos.
DAS OBRAS VARIAS. 355

O Conde Portalegre.
O Virgem que a Deos paristes
Junto com Jerusalém,
No sancto logar de Belém;
Consolae os choros tristes
Que Lisboa agora tem.
Aqui leixamos seu bem,
Tornado nem bem nem mal:
O Rainha imperial,
Amerceae-vos de quem
Deveis mais que a ninguém
Em Portugal.

R o M A N c E.
r e c l a m a ç ã o d e D. J o ã o III.
Desanove de Dezembro,
Perto era do Natal,
Na cidade de Lisboa
Mui nobre e sempre leal,
Foi levantado por Rei
Dos reinos de Portugal
O Príncipe Dom João,
Príncipe angelical.
Sahio n'hüa faca branca,
Parecia de cristal,
Guarnecida de maneira
Que não se vio sua igual.
Opa leva roçagante,
Tudo fio d'ouro tal,
Forrada de ricas martas,
Bem parecia real;
23"
356 LIVRO V.

Pelote de prata fina,


Prata mui oriental,
Barrado de pedraria
Vinha-lhe mui natural.
De perlas não fazem conta
Porque he baixo metal;
So hum collar que levava
Toda Alexandria vai;
Na cabeça leva preto,
Por seu padre natural;
Sábio com lagrimas tristes,
Como filho mui leal.
O seu rosto tão fermoso
Que parece divinal,
Seus olhos resplandecião
Como estrellas igual;
Os cabellos da cabeça
D'ouro erão que não d'al;
Sua boca graciosa
Com ar mui angelical,
Huin semblante soberano,
Hum olhar imperial.
Não foi tal contentamento
No povo todo em geral
Como ver na Rua nova
Ir o seu Rei natural
Com tanta graça e lindeza,
Que não parece humanai.
Os forasteiros dizião:.
Mui ditoso he Portugal.
O Iffante Dom Luis
Leva o estoque Real;
DAS OBRAS VARIAS. 351

0 Iffante Dom Fernando,


Outro seu irmão carnal,
Ao estribo direito
A pe, não lhe estava mal,
Porque ein tal solemnidade
Tudo lhe vem natural:
Todolos Grandes a pé,
Quantos ha ein Portugal.
O Conde Priol levava
A bandeira principal.
Chegou assi a San Domingos,
Onde estava o Cardial:
Benzeo o mui alto Rei
De benção pontificai,
E deu logo juramento;
Jurou n'huin livro missal
De fazer cumprir as leis
Como lei imperial;
Confirmou os privilégios
Desta cidade Real.
Os povos muito contentes
De Rei tão especial,
De pequeno sempre grande,
Magnífico e liberal,
Que he virtude julgada
Dos Príncipes principal.
Isto tudo assi acabado,
Disserão: Arraial! Arraial!
Alli tocão as trambetas,
Atabales outro tal:
Todos lhe beijão a mão
Os senhores em geral.
358 LIVRO V.

Aqui diz o Autor o que cada hum dos senhores de Portuj


dirião ao beijar da mãg.
Eu estava ca no chão,
Como outro desmazelado,
Do theatro tão alongado,
Que via beijar-lhe a mão,
Mas não ouvia o fatiado.
E occupel o cuidado
No que cada hum diria,
Assi de minha fántesia,
Segundo vi o passado
E a mudança que via.
0 novo Rei sabedor
Diria com san vontade:
Nome da Sancta Trindade,
E seja por seu louvor
E por bem da Christandade;
Não ine dá a prosperidade
Vangloria de meu reinado,
Pois Salomão diz verdade,
Que tudo he vaidade,
Bem olhado.
Diria mui humilhado
O senhor Duque de Bragança:
Alto Rei, nossa esperança,
Deos que vos deu o reinado
Vos dará sempre bonança.
Esta supita mudança
Bem parece obra divina:
E com esta segurança
Fazei que vossa balança
Seja fina.
DAS OBRAS VARIAS. 359

O Mestre de Santiago,
De quem sempre mercê vejo,
Diria d'amor sobejo:
Eisaqui minha alma trago,
Com que servir-vos desejo:
De todo o meu ine despejo.
E fique-me o coração
Onde está tanta affeição;
Que sempre em vós me revejo,
Com rezão.
O Marquez de Villa Real
Diria lagrimejando:
Ó neto d'E!Rei Fernando,
Todo de sangue Real,
Pera bem vos seja o mando.
E diria aconselhando:
Governae polo antigo,
Que este pasto está em p'rigo,
As ovelhas suspirando
Sem abrigo.
O Bispo d'Evora creo
Que ouvindo esta rezão,
Diria: Pera redempção
Foi homo misms a Deo,
Cujo nome era João.
Bejo-vos, Senhor, a mão,
E ferrae sobre o velho,
Não cureis daquelle espelho
Que cegou a Reboão,
De meu conselho.
O Conde de Marialva sei
Que diria assocegado:
360 LIVRO V.

Reino bem aventurado,


Louva teu Deos por tal Rei,
Que agora estás povoado.
Mandae chamar vosso gado
E perguntae-lhe que ha,
E de pouco pera ca
O porque anda arrepiado
Vos dirá.
Diria o Conde de Penella,
Como todos mui leal:
Beijo vossa mão Real,
E guiac-vos pola estrella
De vosso bom natural.
Sede isento e liberal,
Provedor de lavradores
E pae dos povos menores;
Cos grandes muito Real,
E moderados favores.
Diria o Conde Priol,
Depois de ÜYa mão beijar:
Deos yos queira prosperar;
Este he bom re mi fa sol.
Porém forte de cantar.
Quero-vos aconselhar
Que façais grande thesouro
Antes de fama que d'ouro;
E tende o muito cubiçar
Por agouro.
Diria o muito jucundo
Senhor Conde de Tentugal:
Houvera de ser Portugal
Todo universo mundo
DAS OBRAS VARIAS. 361

Pera Rei tão cordeal.


Conselho vos dou Real:
Que se elle for inester,
Seja de homem, a meu ver,
Sábio, velho e leal,
Que he o que o conselho quer.
Diria o Conde da Feira:
Senhor, sam certificado
Que so Deos dá o reinado;
E, pois vo-lo deu, elle queira
Que o logreis prosperado.
Porém sereis avisado
Que a todo o julgador
Deis gran tença de temor,
Porque o povo coitado
Não coma pão de dolor.
Diria o Conde d'Alcoutiin
Beijando a mão preciosa:
Deos vos dê vida ditosa
E tire os dias de mi
Pera vossa vida e nossa.
E pera ella ser formosa
Sede livre e não mandado:
Açainac qualquer criado
Que não seja, diz a grosa,
Mais que vós, á custa vossa,
Adorado.
O de Portalegre diria,
Mui catholico privado:
Senhor, sejais bem casado,
E sempre com alegria
Logreis vós vosso reinado.
362 LIVRO V.

E porque mui nomeado


Por todo o inundo sejais,
Herejes não consintais,
Porque está Deos assanhado
Nos mostrão os temporaes.

Conde de Villanova.

Este senhor mui prudente


Diria: Seja louvado
Deos que vos fez laureado,
E seu fiel presidente,
E dino de mor reinado.
Pera bem aconselhado,
Não ouçais mexeriqueiros,
Nem os que forem primeiros
Não vos facão ser irado,
Sem ouvir os derradeiros.
O Conde do Vimioso,
Como quem sabe d'açor,
Diria com grande amor:
Assi como sois ferinoso,
Tal será vosso lavor.
Conselho-vos, Rei, meu senhor,
Por vossa honra e proveito
Que deis ao bom servidor
Antes renda que favor
Muito estreito.
Diria o Conde Almirante
A EIRei mui excellente:
Fazei, como gran prudente,
Que vosso reino se mande
Per vossa Alteza somente.
DAS OBRAS VARIAS. 363

Por quanto o commum da gente


He dizer: eu tenho lá;
E onde rezão não ha
A descobre hum bom presente
De mui pouco pera ca.
Diria o Bispo do Funchal:
Senhor, beijo-vo-la mão
Por christianissimo Romão,
Rei terceiro em Portugal
Do sancto nome João.
Pois conselho aqui vos dão,
O conselho que eu daria,
Que perdessem a valia
As adherencias, pois são
As que dão vida ao ladrão
Cada dia.
O Regedor lhe diria,
Também o Governador
Neste dia: O Senhor
Do inundo de vós confia
Os gados de que he pastor:
A vós fez seu guardador,
E não, Senhor, pola renda:
Outro vos reja a fazenda,
Porque o vosso lavor
Na justiça so entenda.
Dirião os Vereadores
Da nobre e sempre leal:
Pois que nacestes Real,
Vós seguireis os primores
D'Alexandre e Annibal;
E pera mais divinal
364 LIVRO V.

Não estimeis o dinheiro,


E a todo bom cavalleiro
Sede muito liberal
E esquivo ao lisongeiro.
Diria o Povo em geral:
Bonança nos seja dada,
Que a tormenta passada
Foi tanta e tão desigual,
Que no inundo he soada.
E pois a mão vos he dada,
Fazei-nos sorte ditosa,
E praza á Virgem gloriosa
Que guardeis esta manada
Como vossa.

PRANTO DE M A R I A PARDA,
por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ra un
tavernas e o vinho tão caro, e ella não podia viver sem

Eu so quero prantear
Este mal que a muitos toca;
Que estou ja como minhoca
Que puzerão a seccar.
Triste desaventurada,
Que tão alta está a canada
Pera mi como as estreitas:
Oh coitadas das guelas!
Oh guelas da coitada!
Triste desdentada escura,
Quem me trouxe a taes mazelas!
Oh gengivas e arnellas,
DAS OBRAS VARIAS. 365

Deitae babas de seccura:


Carpi-vos, beiços coitados,
Que ja lá vão meus toucados,
E a cinta e a fraldilha;
Hontem bebi a mantilha,
Que me custou dous cruzados.
Oh Rua de San Gião,
Assi 'stás da sorte mesma
Como altares de quaresma
E as malvas no verão.
Quem levou teus trinta ramos
E o meu mana bebamos,
Isto a cada bocadinho?
O vinho mano, meu vinho,
Que ma ora te gastamos.
O travessa zanguizarra
De Mata-porcos escura,
Como estás de ma ventura,
Sem ramos de barra a barra.
Porque tens ha tantos dias
As tuas pipas vazias,
Os toneis postos em pé?
Ou te tornaste Guiné
Ou o barco das enguias.
Triste quem não cega em ver
Nas camicerias velhas
Muitas sardinhas nas grelhas;
Mas o demo ha de^ beber.
E agora que estão erguidas
As coitadas doloridas
Das pipas limpas da borra,
366 LIVRO V.

Achegou-lhe a paz com porra


De crecerem as medidas.
9

O Rua da Ferraria,
Onde as portas erão ínayas.
Como estás cheia de guaias,
Com tanta louça vazia!
Ja m'a mim acconteceo
Na manhan que Deos naceo,
A hora do nacimento,
Beber alli hum de cento,
Que nunca mais pareceo.
Rua de Cata-que-farás,
Que farei e que farás!
Quando vos vi taes, chorei,
E tornei-me por detrás.
Que foi do vosso bom vinho,
E tanto ramo de pinho,
Laranja, papel e cana,
Onde bebemos Joanna
E eu cento e hum cinquinho.
O tavernas da Ribeira,
Não vos verá a vós ninguém
Mosquitos, o verão que vem,
Porque sereis areeira.
Triste, que será de mi!
Que ma ora vos eu vi!
Que ma ora me vós vistes!
Que ma ora me paristes,
Mãe da filha do ruim!
Quem vio nunca toda Alfama
Com quatro ramos cagados,
Os tornos todos quebrados!
DAS OBRAS VARIAS. 367

O bicos de minha mama!


Bem alli ó Sancto Esprito
Ia eu sempre dar no fito
N'hum vinho claro rosete.
Oh meu bem doce palhete,
Quem pudera dar hum grito!
O triste Rua dos Fornos,
Que foi da vossa verdura!
Agora rua d'amargura
Vos fez a paixão dos tornos.
Quando eu, rua, per vós vou,
Todolos traques que dou
São suspiros de saudade;
Pera vós ventosidade
Naci toda como estou.
Fui-me ó Poço do chão,
Fui-me á praça dos canos;
Carpi-vos, manas e manos,
Que a dezaseis o dão.
Ó velhas amarguradas,
Que antre três sete canadas
Soldamos de beber,
Agora, tristes! remoer
Sete raivas apertadas.
O rua da Mouraria,
Quem vos fez matar a sede
Pela lei de Mafamede
Com a triste d'agua fria?
O bebedores irmãos,
Que nos presta ser christãos,
Pois nos Deos tirou o vinho?
368 LIVRO V.
p

O anuo triste cainho,


Porque nos fazes pagãos?
Os braços trago cansados
De carpir estas queixadas,
As orelhas engelhadas
De me ouvir tantos brados.
Quero-in'ir ás taverneiras,
Taverneiros, medideiras,
Que me dein hüa canada,
Sobre meu rosto fiada,
A pagar lá polas eiras.
Pede fiado á Biscainha.
r

O Senhora Biscainha,
Fiae-me canada e meia,
Ou ine dae hüa candeia,
Que se vai esta alma minha.
Acudi-ine dolorida,
Que trago a madre cabida,
E çarra-se-me o gorgomilo:
Emquanto posso engoli-lo,
Soccorei-me minha vida. ,
Biscainha.
Não dou eu vinho fiado,
Ide vós embora, amiga.
Quereis ora que vos diga?
Não tendes isso aviado.
Dizem lá que não he tempo
De pousar o eu ao vento.
Sangrade-vos, Maria Parda;
Agora tem vez a Guarda
E a raia no avento.
DAS OBRAS VARIAS. 369

A João Cavalleiro, Castelhano.


Devoto João Cavalleiro,
Que pareceis Isaias,
Dae-me de beber três dias,
E far-vos-hei meu herdeiro.
Não tenho filhas nem filhos,
Senão canadas e quartilhos;
Tenho enxoval de guarda,
Se herdardes Maria Parda,
Sereis fora d'empecilhos.

João Cavalleiro.
Amiga, dicen por villa
Un ejeinplo de Pelayo,
Que una cosa piensa el bayo
Y otra quien Jo ensilla.
Pagad, si quereis beber;
Porque débeis de saber
Que quien su yegua mal pea,
Aunque nunca mas Ia vea,
Él se Ia quiso perder.

Vai-se a Branca Leda.


Branca mana, que fazedes?
Meu amor, Deos vos ajude;
Que estou no ataude,
Se me vós não accorredes.
Fiade-me ora três meias,
Que ando por casas alheias
Com esta sede tão viva,
Que ja não acho cativa
Gota de sangue nas veias.
A . III. "**
370 LIVRO V.

Branca Leda.
Olhado, mulher de bem,
Dizem qu'em tempo de figos
Não ha hi nenhuns amigos,
Nem os busque então ninguém.
E diz o exemplo dioso,
Que bem passa de guloso
0 que come o que não tem.
Muita água ha em Boratem
E no poço do tinhoso.
Vai-se a João do Lumiar.

Senhor João do Lumiar,


Lume da minha cegueira,
Esta era a verde pereira
Em que vos eu via estar.
Fiae-me huin gentar de vinho,
E pagar-vos-hei em linho,
Que ja minha lan não presta:
Tenho mandada hüa besta
Por elle a antre Douro e Minho.

João do Lumiar.
Exemplo de mulher honrada,
Que nos ninhos d'ora a hum anno
Não ha pássaros oganno.
I-vos, que sois aviada.
Emquanto isto assi dura,
Matae com água a seccura,
Ou ide a outrem enganar,
Que eu não in'hei de fiar
De mula com matadura.
DAS OBRAS VARIAS. 371

Indo pera casa de Marlim Alho, vai dizendo:


Amara aqui hei d'estalar
Nesta manta emburilhada:
Oh Maria Parda coitada,
Que não tens ja que mijar!
Eu não sei que mal foi este,
Peor sem vezes que a peste,
Que quando era o trão e o tramo,
Andava eu de ramo em ramo
Não quero deste, mas deste.

Diz a Martim Alho.


Marlim Alho, amigo meu,
Martim Alho meu amigo,
Tão secco trago o embigo
Como nariz de Judeu.
De sede não sei que faça:
Ou fiado ou de graça,
Mano, soccorrede-me ora,
Que trago ja os olhos fora
Como rala da negaça.
Martim Alho.
Diz hum verso acostumado:
Quem quer fogo busque a lenha;
E mais seu dono d'acenha
Appella de dar fiado.
Vós quereis, dona, folgar,
E mandais-me a mim fiar?
Pois diz outro exemplo antigo,
Quem quizer comer comigo
Traga em que se assentar.
21*
372 LIVRO V.

Vai-se d Falula.
Amor meu, mana Falula,
Minha gloria e meu deleite,
Emprestae-me do azeite,
Que se me sécca a inatula.
Até que haja dinheiro,
Fiae, que pouco requeiro,
Duas canadas bem puras,
Por não'ficar ás escuras,
Que se m'arde o candieiro.

Fa lula.
Diz Nabucodonosor
No sideraque e miseraque,
Aquelle que dá gran traque
Atravesse-o no salvanor.
E diz mais, quem muito pede,
Mana minha, muito fede.
Sete mil custou a pipa;
Se quereis fartar a tripa,
Pagae, que a vinte se mede.

Maria Parda.
Raivou tanto sideraque
E tanta zarzagaiiia,
Vou-me a morrer de sequia
Em cima d'hum ahnadraque.
E ante de meu finamento,
Ordeno meu testamento
Desta maneira seguinte,
Na triste era de vinte
E dous desde o nacimento.
DAS OBRAS VARIAS 373

Testamento.
A minha alma encommendo
A Noé e a outreui não,
E meu corpo enterrarão
Onde estão sempre bebendo.
Leixo por minha herdeira
E também testamenteira,
Lianor Mendes d'Arruda,
Que vendeo como sesuda,.
Por beber, at'á peneira.
Item mais mando levar
Por tochas cepas de vinha,
E hüa borracha minha
Com que me hajão d'encensar,
Porque «teve malvasia.
Encensein-me assi vazia,
Pois também eu assi vou;
E a sede que me inalou,
Venha pola cleresia.
Levar-me-hão em hum andor
De dia, ás horas certas
Que estão as portas abertas
Das tavemas per hu for.
E irei, pois mais não pude,
N'hum quarto por ataude,
Que não tivesse água pé
O sovenite a Noé
Cantem sempre a monde.
Diante irão mui sem pejo
Trinta e seis odres vazios,
Que despejei nestes frios,
Sem nunca matar desejo.
374 LIVRO V.

Não digão missas rezadas,


Todas sejão bem cantadas
Em Framengo e Allemão,
Porque estes me levarão
Ás vinhas mais carregadas.
Item dirão per dó meu
Quatro ou cinco ou dez trintairos,
Cantados per taes vigairos,
Que não. bebão menos qu'eu.
Sejão destes três d'Almada,
E cinco daqui da Sé,
Que são filhos de Noé,
A que som encommendada.
Venha todo o sacerdote
A este meu entèrramento,.
Que tiver tão bom alento
Como eu tive ca de cote.
Os de Abrantes e Punhete,
D'Arruda e d'Alcouchete,
D'Alhos-Vedro.s e Barreiro,
Me venhão ca sem dinheiro
Alá cento e vinte e sete.
Item mando vestir logo
O frade allemão vermelho
Daquelle meu manto velho
Que tem buracos de fogo.
Item mais, mais mando dar
A quem se bem embebedar
No dia em que eu morrer,
Quanto inovei hi houver
E quanta raiz se achar.
Item mando agasalhar
DAS OBRAS VARIAS. 375

Das orphans estas nó mais


As que por beber dos pães
Ficão proves por casar.
As quaes darão por maridos
Barqueiros bem recozidos
Em vinhos de mui bôs cheiros;
Ou busquem taes escudeiros.
Que bebão coma perdidos.
Item mais me cumprirão
As seguintes romarias,
Com muitas ave-maria.»,
E não curem de Monção.
Vão por inim á Sancta Orada
D'Atouguia e d'Abrigada,
E a Curageira sancta.
Que me derão na gargauta
Saúde a peste passada.
Item mais me promelti
Nua á pedra da estrema,
Quando eu tive a postema
No beiço de baixo aqui.
E porque gran gloria senta,
Lancem-me muita água benta
Nas vinhas de Caparica.
Onde meu desejo fica
E se vai a ferramenta.
Item me levarão mais
Hum gran cirio pascoal
Ao glorioso Scixal.
Senhor dos outros Scixaes:
Sete missas me dirão
E os caliz encherão.
376 LIVRO V.

Não me digão missa sêcia;


Porque a dor da enchaqueca
Me fez esta devação.
Item mais mando fazer
Hum espaçoso esprital,
Que quem vier de Madrigal
Tenha onde se acolher,
E do termo d'AIcobaça
Quem vier dem-lhe em que jaca:
E dos termos de Leirea
Dem-lhe pão, vinho e candea,
E cama, tudo de graça.
Os d'Obidos e Santarém,
Se aqui pedirem pousada,
Dem-Ihes de tanta pancada
Como de mãos vinhos tem.
Homem d'Entre Douro e Minho
Não lhe darão pão nem vinho;
E quem de riba d'A via for
Fazê-Ihe por meu amor
Como se fosse vizinho,
Assi que por me salvar
Fiz este meu testamento,
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar.
Chorae todos meu perigo,
Não levo o vinho que digo,
Qu'eu chamava das estreitas,
Agora m'irei par'ellas
Com grande sede comigo.
DAS OBRAS VARIAS. 377

TROVAS A FELIPE GUILHEM.


O atino de i 5 i o veio a esta corte de Portugal hum Felipe
Guilhem, Castelhano, que se disse que fora boticário nel
Porto de Santa Maria; o qual era grande lógico e muito
eloqüente de muito boa prática, que antre muitos sabedores
o folgavão de ouvir: linha alguma cousa de mathematico;
disse a EIRei que lhe queria dar a arte de Leste a Oeste,
que tinha achada. Pera demostra desta arte fez. muitos
instrumentos, antre os quaes foi hum astrolabio de tomai o
sol a toda a hora: praticou a arte perante Francisco de
Mello, que então era o melhor mathematico que havia uo
reino, e outros muitos que para isso se ajuntárão per man-
dado de S. A. Todos approvárão a arte por boa: fez-lhe
EIRei por isso mercê de cem mil reis de tença, c'o habito
e corretagem tia casa da índia, que valia muito. Neste
tempo mandou S. A. chamar ao Algarve a hum Simão Fer-
nandes, grande astrologo mathematico; tanto que o Castel-
hano fallou com elle, que vio que o entendia, e que lhe
fazia de tudo falso, quiz fugir pera Castella; descobrio-se
a hum João Rodrigues , Portuguez, que o mandou dizer a
EIRei" que o mandou prender em Aldea Gallega, estando
cm hum cavallo de posta. Sendo preso, porque era grande
trovador, lhe mandou Gil Vicente estas trovas.

Con sobra de pensamientos


Que continos penso yo,
No supe de los tormentos
Que Ia desdicha os dió,
Sino ahora á dos momentos,
Que supe vuestras pasiones.
Todas buscadas por vos:
Porque los santos barones
Concluen que las prisiones
Son por justicia de Dios.
A muchos hizo espantar
Vuesa próspera fortuna,
378 LIVRO V.

Pues nunca vistes Ia mar


Ni arroyo ni laguna,
Supistes muy bien pescar.
Diciendo el pueblo travieso
Contra vós, sábio profundo,
Por emendarse ei avieso
Justo fue que fuese preso
El mas suelto hombre dei mundo.
Yo les dije con buen zelo,
Por el bien que en vos se encierra:
Este hombre subió ai cielo,
Del cielo miro Ia tierra,
En Ia tierra vido el suelo,
Del suelo vió el abiso,
Del abiso vió el profundo,
Del profundo el paraíso,
Del paraíso vió el mundo,
Del inundo vió cuanto quiso.
Ansí que por esta via
Es de los sábios el cabo,
Que sin ver astrolomia
Él toma el sol por el rabo
En cualquiera hora dei dia.
Respondieron al contrario,
Diciendo: No es verdad;
Porque dendê chica edad
No fue sino boticário,
Hasta ver esta ciudad.
Respondiles con gran ira:
No digais mal de ini amigo,
Que cuando trata em mentira,
La mentira es ser testigo,
DAS OBRAS VARIAS. 379

Tan dulcemente Ia espira.


Alegue por parle vuestra
Lo que sé de vuestro engano,
Porque mostrais de una muestra,
Despues vendeis falso pano,
Como luego se demuestra.
Esto me plugo escribir
Porque hábeis de responder,
Y otra vez me hábeis de oir,
Para acabar de decir
Lo que os queda por hacer.
De todo esto es de creer,
Que Ia bondad de esta tierra
Siempfe fue y ha de ser,
Que á si misina hace guerra,
De buena, por bien hacer.
Si el trovado no está
Conforme á vuestra elocuencia,
Pues que dice Ia verdad,
Repórtome á Ia sentencia,
Lo al vaya como va.

A AFFONSO L O P E S Ç A P A I O .

Aflbuso Lopes Çapaio, chrislão novo que vivia em Thomar,


fez hum rifão que andava no Cancioneiro Poituguez, ao
qual rifão fizerão muitos muitas trovas i* boas. Pedio o
Conde do Vimioso a Gil Vicente «pie fizesse lambem, e
elle Ir/, esta trova. Diz o rifão:
Matou-me Moura e não mouro
E quem'ria lançada deu
Moura ella e mouro eu.
380 LIVRO V

A Moura que deu ferida


A quem nunca foi ferido
Nem se vio em arruido,
Deve ser Moura fingida,
Pois matou Christão fingido:
Bem sei que morres ferido
Da ferida que sei eu;
Porém com faca se deu.

AO MESMO,
estando em Santarém muito doente de câmaras.
Senhor, eu ia-vos ver,
Pera vos ver e ouvir,
E eu ouvi-vos gemer,
Hum gemer e espremer
Como arremedar parir.
Erão câmaras sem telhas,
Pera vós agastadiças;
Vós cagado atfás orelhas,
As vossas calças vermelhas
Tinhei-las por corrediças.
Vosso eu com surdos brados
Apupava a seus vizinhos,
Que estavão dependurados;
Hum delles, por seus peccados,
Cerceárão-lhe os focinhos.
Diz que tinheis tal desmaio
Na tripa do cagalar,
Que vos disse o inez de Maio,
Melhor vos fora, Çapaio, >M>
Que cagáreis em Thoinar.
DAS ORRAS VARIAS. 381

Outras,
Pois vosso negro bespeiro
Se vasa no inez de Maio,
Affonso Lopes çapaio.
Que quem tem vida guaiada
Coma vós da vossa sorte,
Por vós he cousa provada
Que quem tem vida cagada,
Cagada ha de ser a morte.
Quando vierdes á corte,
E o eu vos der desmaio,
Dae-o ó demo, çapaio.
Tomareis destes vasculhos,
Que pintão polas paredes,
Huns á vela, outros ja vedes,
E tapae esses angulhos.
Assi que o pousadeiro,
Que vos poz em tal desmaio,
Se o quereis vedar, çapaio.

V
Ao CONDE DO VIMIOSO, ,
a quem EIRei remetteo o autor sobre hum despacho seu.
Foi isto em tempo de peste, e o primeiro rebate delia deu
por sua casa; e andava então na corte hum Gonçalo d'Avola,
Castelhano, muito fallador, e medrava muito.

Senhor, a longa esperança


Mui curto prazer ordena;
Minha vida está em balança
E a muita confiança
Nunca causou pouca pena.
382 LIVRO V.

Isto digo
Polo que passo comigo
Polo tempo que se passa:
Vejo minha morte em casa
E minha casa em perigo.
Certo he, nobre-.senhor,
Que quiz Deos ou. a Fortuna,
Que quem serve com amor,
Quanto maior servidor,
Tanto menos importuna.
Daqui vem
Que quem não pede não tem,
E quem espera padece,
E quem não parece esquece,
Porque não lembra a ninguém.
Muito debaixo da sola
Trouxera quanto desejo,
S'eu aprendera na escola
Onde Gonçalo d'Ayola
Aprendeo tanto despejo.
Que o sesudo
Deste tempo falia tudo,
Quer va torto quer direito:
E tornando a meu respeito,
Pera mi sempre fui mudo.
Agora trago antre os dedos
Hüa farça mui fermosa;
Chamo-a: A Caça dos segredos,
De que fícareis mui ledos
E minha dita ouciosa.
Que o medrar,
Se estivera ein trabalhar,
DAS OBRAS VARIAS. 383

Ou valera o merecer,
Eu tivera que comer,
E que dar e que deixar.
Porém por cima de tudo,
O meu despacho queria,
Porque minha fajitesia
Occupa o mais do estudo
Todo ein vossa senhoria;
E o cuidado,
Quando anda assi occupado,
Cuida muito e não faz nada;
A vontade acho dobrada,
Mas o espirito cansado.

A E L REI D. JOÃO III.


porque na tornada de Coimbra a Santarém lhe levarão huns
Castelhanos almocreves de aluguer quanto trazia, porque a
Rainha mandou que aos Castelhanos não tomassem bestas
por taxa, mas polo preço que elles quizessem.

A quien contare mis quejas,


Gran senor;
Á quien contaré mis quejas,
Si á vos no?
A Santarém cheguei eu
Bem tal como Deos naceo,
Que não trouxe lá do ceo
Comsigo hum vintém de seu;
E pois tanto bem vos deu,
Alto Senhor,
384 LIVRO V.

A quien contaré mis quejas


Si á vos no?
Castelhanos me trouxerão,
E levarão quanto tinha,
Porque Deos e a Rainha
Diz que os favorecerão:
Tão grande golpe me derão
Com favor,
Que no contaré mis quejas
Si á vos no.
E por mais desavcntura,
Alem do muito dinheiro,
Fui eu de bom cavalleiro,
E cahi da albardura:
Ai de mi que estou em cura.
O Senhor,
r

A quien contaré mis quejas,


Si á vos no?
Fernand' Alvares me seria
Grande saúde e socêgo,
E no bispo de Lainego
Queria eu a portaria.
E se passa deste dia,
Morto so,
Porque no cuento mis quejas
Si á vos no.
DAS OBRAS VARIAS. 385

CARTA
que Gil Vicente mandou de Santarém a EIRei D. João 111.,
estando S. A. em Pajmella, sobre o tremor de terra, que
foi a a 6 de Janeiro de i 5 3 i .

Senhor!

Os frades de ca não me contentarão, nem em púl-


pito nem em prática, sobre esta tormenta da terra que
ora passou; porque não abastava o espanto da gente,
mas ainda elles lhe affirmavão duas cousas, que os mais
fazia esmorecer. A primeira, que pelos grandes pecca-
dos que em Portugal se fazião, a ira de Deos fizera
aquillo, e não que fosse curso natural, nomeando logo
os peccados por que fora; em que pareceo que estava
nelles mais soma de ignorância que de graça do Spirito
Sancto. O segundo espantalho, que á gente puzerão,
foi, que quando aquclle terramoto partio, ficava ja outro
de caminho, senão quanto era maior, e que seria com
elles á quinta feira hüa hora depois do meio dia. Creu
o povo nisto de feição que logo o sahírão a receber por
esses olivaes, e ainda o lá esperão. E juntos estes
padres a meu rogo na crasta de S. Francisco desta
villa, sobre estas duas proposições lhe fiz hüa falia na
maneira seguinte. "Reverendos padres, o altíssimo e
"soberano Deos nosso tem dous mundos: o primeiro foi
"sempre e pera sempre; que he a sua resplandecente
"gloria, repouso pennanecente, quieta paz, socêgo sem
"contenda, prazer avondoso, concórdia triumphante:
"inundo primeiro. Este segundo em que vivemos, a
2 5
Vol. III.
386 LIVRO V

"sabedoria iminensa o edificou polo contrário, s. todo


"sem repouso, sem firmeza certa, sem prazer seguro,
"sem fausto permanecente, todo breve, todo fraco, todo
"falso, temeroso, avorrecido, cansado, imperfeito; pera
"que por estes contrairos sejão conhecidas as perfeições
"da gloria do segre primeiro. E pera que melhor sintão
"suas pacíficas concordanças, todolos movimentos .que
"neste orbe criou, e os affeitos delle são litigiosos; e
"porque não quiz que nenhüa cousa tivesse perfeita
"durança sobre a face da terra, estabeleceo na ordem
"do mundo, que hüas cousas dessem fim ás outras, e
"que todo o gênero de cousa tivesse seu contrairo;
"como vemos que contra a fermosura do Verão, o fogo
"do Estio; e contra a vaidade humana, a esperança da
"morte; e contra o fermoso parecer, as pragas da infer-
"midade; e contra a força, a velhice, e contra a privança,
"inveja, e contra a riqueza, fortuna, e contra a firmeza
"dos fortes e altos arvoredos, a tempestade dos ventos;
"e contra os fermosos templos e sumptuosos edifícios,
"o tremor da terra, que por muitas vezes em diversas
"partes tem posto por terra muitos edifícios e cidades;
" e por serem acontecimentos que procedem da natureza,
"não forão escriptos, como escreverão todos aquelles que
'forão por milagre, como Templum Pacis de Roma,
"que cahio todo supitamente, no ponto que a Virgem
"nossa senhora pario; e o sovertimento das cinco ci-
"dades mui populosas de Sodoma, e dos Egípcios no
"mar ruivo, e a destruição dos que adorarão o bezerro,
•e o sovertimento dos que murmurarão de Moyses e
'Aram, e a destruição de Jerusalém, por serem mila-
"grosos e procederem per nova permissão divina, sem
•' a ordem deste segre nisso ter parte. E porque nenhüa
DAS OBRAS VARIAS. 387

"cousa ha hl debaixo do sol sem tomar a ser o que foi,


"e o que virão desta qualidade de tremor havia de tor-
" nar a ser por força, ou cedo ou tarde, não o escreverão.
"Concruo que não foi este nosso espantoso tremor, ira
"Dei; mas ainda quero que me queimem, se não fizer
"certo que tão evidente e manifesta foi a piedade do
"Senhor Deos neste caso, como a fúria dos elementos
"e damno dos edifícios."
E respondendo á segunda proposição contra aquel los
que dizião que logo viria outro tremor e que o mar se
levantaria a 25 de Fevereiro, digo, "que tanto que Deos
"fez o homem, mandou deitar hum pregão no paraíso
"terreal, que nenhum seraphim nem anjo nem archanjo,
"nem homem nem mulher, nem sancto nem sancta, nem
"sanctificado no ventre de sua mãe, não fosse tão ousado
"que se entremettesse nas cousas que estão por vir.
"E depois no tempo de Moyses mandou deitar outro
"pregão, que a nenhum advinhadeiró, nem feiticeiro não
"dessem vida; e depois de feito Deos e homem, deitou
"outro pregão sobre o mesmo caso, dizendo aos disci-
"pulos: não convém a vós outros saber o que está por
u
vir, porque isso pertence d omntpotencia do Padre.
"Polo qual mui maravilhado estou dos lettrados mostra-
rem-se tão bravos contra tão horridos pregões e defe-
"zas do Senhor, sendo certo que nunca cousas destas
"disserão, de que não ficassem mais mentirosos que
"prophetas; e não menos me maravilho daquelles que
"crem que nenhum homem pôde saber aquillo que não
"tem ser, senão no segredo da eternal sabedoria; que o
"tremor da terra ninguém sabe como he, quanto mais
"quando será e quammanho será. Se dizem que por
"estrologia, que he sclencia, o sabem; não digo eu os
25'
388 LIVRO V.

"d'agora que a não sabem soletrar, mas he em si tão


"profundíssima, que nem os da Grécia, nem Moyses,
"nem Joannes de Monteregio alcançarão da verdadeira
"judicalura peso de hum oução; e se dizem que por
"mágica, esta carece de toda a realidade, e toda a
"sustância sua consiste em apparencias de cousas pre-
mentes, e do porvir não sabe nenhüa cousa; se por
"espirito prophetico, ja crucificarão o propheta derradeiro:
"ja não ha de haver mais. Concruo, virtuosos padres,
"sob vossa emenda, que não he de prudência dizerem-se
"taes cousas pubricamente, nem menos serviço de Deos;
"porque pregar não hade ser praguejar. As villas e cidades
"dos Reinos de Portugal, principalmente Lisboa, se hi ha
"muitos peccados, ha infindas esmolas e romarias, muitas
"missas, e orações, e procissões, jejuns, disciplinas, e
"infindas obras pias, pubricas e secretas: e se alguns
"hi ha que são ainda estrangeiros na nossa fé e se
"consentem, devemos imaginar que se faz por ventura
"com tão sancto zelo, que Deos he disso muito servido;
"e parece mais justa virtude aos .servos de Deos e
"seus pregadores animar a estes e confessá-los e pro-
"vocá-los, que escandalizá-los e corrê-los, por contentar
"a desvairada opinião do vulgo." E porque tudo me
louvarão e concederão ser muito bem apontado, o man-
dei a V. A. por escripto, até lhe Deos dar tanto des-
canso e contentamento como em todos seus reinos he
desejado, pera que por minha arte lhe diga o que aqui
fallece. E porém saberá V. A. que este auto foi de
tanto seu serviço, que nunca cuidei que se offerecesse
caso em que tão bem empregasse o desejo que tenho
de o servir, assi visinho da morte como estou: porque,
á primeira pregação, os chrislãos novos desapparecêrão
DAS OBRAS VARIAS. 389

e andavão morrendo de temor da gente, e eu fiz esta


diligencia e logo ao sábado seguinte seguirão todolos
pregadores esta minha tenção.

EPÍSTOLA DEDICATÓRIA A D. JOÃO III.

Os livros das obras que escriptas vi, Sereníssimo


Senhor, assi ein metro, como ein prosa, são tão floreci-
das de scientes matérias, de graciosas invenções, de
doces eloqüências e elegâncias, que temendo a pobreza
de meu engenho, porque naceo e vive sem possuir
nenhüa destas, determinava leixar minhas miserrimas
obras por imprimir, porque os antigos e modernos não
leixárão cousa boa por dizer, nem invenção linda por
achar, nem graça por descubrir. Assi que, pera passar
seguro da pena que minha ignorância padecer não
escusa, ine fora fermosa guarida não dizer senão o que
elles disserão, ainda que eu ficasse como eco nos valles,
que falia o que dizem, sem saber o que diz. Porém
querendo eu no presente preâmbulo ajudar-me do seu
costumado estilo, em querer louvar as excellencias de
V. A., como elles fazem aos senhores a quem suas
obras eudereção, que farei? sendo certo que, ainque
fosse ein mi so a sua oratória tão facunda como em
todos elles, e me fosse trespassado o espirito de David,
não presumiria escrever de V. A. a minima parte de
sua magnífica bondade, de sua nobilissima condição, de
sua discreta mansidade, do perfeito zelo da sua justiça
da sua paz, da sua guerra, da sua graça, gravidade,
conselho, sabedoria, liberalidade, prudência, e finalmente
do seu christianissiino Armamento. Outro si querendo
390 LIVRO V.

navegar pola rota do peu exordio d elles, pedindo a


V. A. favor e empam para que minha enferma escritura
não seja ferida de linguas damnosas; parece-me injusta
oração pedir tão alto esteio pera tão baixo edifício; quanto
mais que, ainda que digno fora de tão nobre emparo,
tenho considerado que Christo filho de Deos, sob emparo
do poderio eternal do Padre, e todos seus bemaventu-
rados Sanctos, não passarão por esta vida tão livres,
que dos malditos detractores não fossem julgadas suas
divinas obras por humanas leviandades, sua sancta dou-
trina por máxima ignorância, sua manifesta bondade por
falsa malícia, sua sanctissima graça por sorreticio en-
gano, sua excelça abstinência por vil hypocrisia, sua
celeste pobreza por terreno vicio. Pois rústico peregrino
de mi, que espero eu? Livro meu, que esperas tu?
Porém te rogo que quando o ignorante malicioso te
reprender, que lhe digas: se meu mestre aqui estivera,
tu caláras. Finalmente que por escusar estas batalhas
e por outros respeitos, estava sem propósito de imprimir
minhas obras, se V. A. m'o não mandara, não por serem
dinas de tão esclarecida lembrança, mas V. A. haveria
respeito a serem muitas dellas de devação, e a serviço
de Deos endereçadas, e não quiz que se perdessem,
como quer que cousa virtuosa, por pequena que seja,
não lhe fica por fazer. Por cujo serviço trabalhei a
copillação dellas com muita pena de minha velhice e
gloria de minha vontade, que foi sempre mais desejosa
servir a V. A., que cubiçosa de outro nenhum descanso.
DAS OBRAS VARIAS. 139

SEPULTURA DE GlL VlCENTE.

0 gran juizo esperando,


Jaço aqui nesta morada;
Também da vida cansada
Descansando.
Pergunta-me quem fui eu,
Attenta bem pera mi,
Porque tal fui coma ti,
E tal has de ser conTeu.
E pois tudo a isto vem,
O lector, de meu conselho,
Toma-me por teu espelho,
Olha-me e olha-te bem.

V I M.
TABOA GLOSSARIA
mostrando a significação de algumas palavras antiquadas
que se encontrão nesta obra, e que se não achão
no Diccionario de Moraes (Lisboa 1833), e no da
Academia Hespanhola (Paris 1830).

* precede os vocábulos castelhanos: occasionalmentc se


cita o vol. e pag. desta obra.

A.

Abem. ora pois, bem.


#AbelIota bellota.
Abiso, abisso abismo.
Afemençar ver, enxergar.
Afficio offício.
Alcapetor, ou alcupetor (*). hum peixe.
Algorrem algüa cousa.
Alinde enfeite.
Alinho trabalho, canceira.
*AImozo. ahnuerzo.
*Anacear holgar.
*Apero modo, manera.

(') D'ambas as maneiras se acha escripta esta palavra no


nosso P. e nunca "alcupretor" como diz Moraes, ci-
tando Gil Vicente.
394 TABOA GLOSSARIA.

* Arábia habla confusa.


Arco ardo.
Arnellas dentes.
*Arrayado. arreado, adornado.
Atá, atas, ates. até.
«Atabobado loco de admiracion.
*Atijo cordel.

B.
*Badeones (melones) badeas.
*Bayones eneas ó espadanas.
Barzoneiro vadio.
Basto (a). em abondancia.
Bebarro. beberrão.
*Borrega. espécie de danza.
*Brego. brega, pendência.
^Bugera bugia.

C.
Cainçada . barulho causado pelo latir
de muitos cães.
Çáfara arisca, esquiva.
Cajuso por acaso.
Calabreada embuste, enredo.
Caufeu quanto a mim.
Capelladas manteadellas.
Carapetento embusteiro, inclinado a men-
tir.
Carafate calafate.
-Celuras zelos.
Chapeirão vestido cumprido de campa-
nezes, espécie de capote ?
TABOA CLOSSARIA. 395

*Ciesto, ciesta cesto, cesta.


Claror clarão.
Clima (femenino)
Coinchar grunhir o porco.
*CoIeo colégio.
Coma como.
Consento sinto.
Contia. valor, preço.
Cordiaca enfermidade de coração.
«Crigo clérigo.

D.
Dainado querido, amante.
* Desclucio. desahucio.
Defengules dissimules.
*Dcsfar rapado. desarrapado.
* Desferir. largar las velas.
Desingulas dissiinulas.
*Despipitar (los sentidos) apurar.
Dexemo. demo.
Doairo inclinação, fadario?
Di diz (imperai.)
Doma semana.
#Dominguejo. doininguero.

E.
Embelecar-se enganar-se.
Einperol porém, todavia.
Einpipinar i Iludir.
Empresentado de presente, em offcrta
Emquc ainda que.
Enfarar-se enfadar-se.
396 TABOA GLOSSARIA.

Engar embjpar, ateimar.


Enho, a meu, minha.
# Encaramillarse elevarse.
Enselada. espécie de cantiga.
Ensoar pôr em musica.
Entances então.
Entirrado teimoso.
*Entirrado obstinado.
#Entanamientes entretanto.
Ervilhar enlouquecer.
Escarnefuchar escarnecer, mofar
Escoparo escopro.
Escosido traspassado, varado.
Escurana escuridão.
Espirado inspirado.
Esfortegar deslocar.
#Estrena (vol. 1° 37) sorte, hado.
Estronomia astronomia.

F.

Faes fazes.
Farnesia frenezi.
Ferrar lançar ferros.
Fersura forçura.
Fim Çfemenino~)
Finto findo.
Finita. busca, pretende.
Folão (cavallo). fogoso.
Fór (á) á moda.
-For (á) á fuer, segun estilo ó cost
umbre.
TABOA GLOSSARIA. 397

Fortunoso desafortunado, perseguido


da fortuna.
*Friasco (adj.). frio.

G.
*Galajo (círculo) zodíaco.
Geitar lançar.
* Genelosía genealogía.
*Generacio generacion.
Gentar jantar.
Gerecido. gerado.
#Gestadura gesto, semblante.
Gingrar mofar, escarnecer.
*Gingreta. burla, mofa.
Gorgomileiras gorgoinilos.
Gravisca • grave, esquiva.
#Grolla gloria.
Guaroupaz. gurupés.
Guarra alarido de dor.

H.
*Hace haz.
Hétego ethico.
Hervilhar Qv. ervilhar)
Huja uga, peixe.

I.
Ierainá ma ora.
Increos. infiéis, incrédulos.
*Ingrillando aguzando.
*Inoto ignoto.
*Inorar ignorar.
398 TABOA GLOSSARIA.

*Jacer yacer.
* Jantar. comida.
Jeitar ( r . geitar}
L.
*Lacer laceria.
Lavrandeira costureira,
Lavrar costurar.
*Lena blandura.
«Letgo letigio.
#LIetrudo letrado.
*Llugo luego.
Luxar-se çujar-se.
M.
Marchante mercador.
*Mágines. imagines.
*Manguispanado con mangas escasas ó rotas
Mal avesinho (31, 2<? v.) com ma visinhança?
Marmelula remela?
Mártel martyr.
Marrar (260, 2<? v.) faltar?
*Medono. lúgubre, terrible.
Mela metade por meio.
Minte. mente.
Motrete (de pão) pedaço.
Mu (tomar o) desconfiar.
Muitieramá. muito na ma ora.
N.
Nego >
senão.
Nega S
TABOA GLOSSARIA. 399

^Negregoso negro, escuro.


Nessora. immediatamente, no mesmo
instante.
«Nifrerias maios tratos.
* Novelo nuevo.

0.
Offegoso que tem offego.
Oja uma ave.
Ouvo ouço.

p.
Pação
cortezão, homem da corte.
Paceiro
Panadeira (161, v. 2) padeira, do Hesp. panadera,
ou mulher que peneira?
Papear (93, v. 3) cochichar, ou fallar baixo,
percebendo-se apenas o
movimento dos beiços?
Partuno. importuno.
Patornear conversar, dar á língua.
#PegulIal. pegujal.
*Pelletrar penetrar.
Perein. porém.
Perol porém, todavia.
Perneta. planeta.
Pertem pertence.
Pinceos (fallar per) por figuras?
* Placentorio placentero.
Pratel (2 v.. .) pratos (instrumento)? pan-
deiro?
400 TABOA GLOSSARIA.

Q-
*Quellotrotarse enquillotrarse.
Quês queres.
R.
Ralear remoer, raivar.
Rebentinha. raiva.
Rebuchudo rechonchudo, roliço.
*Regello água helada.
Regno reino.
#Rellea. ralea.
Rêlina retine.
«Revellada )
reverencia.
#Revellencia j
*Riedro hácia trás.
# Rifanazo punado.
Rosmear . resmungar.

S.
S. scilicet, a saber.
Sam \
Som f sou.
São í
Sejo )
Sages. prudente.
Salvanor com o devido respeito
Sainão (signo). salomão.
Senhos diversos, vários.
Ses es.
* Sezon. cuartana.
Sia é
Sigro século.
TABOA GLOSSARIA. 401

Sillas (351, 2). artes más, manhas?


Soadeiros. lenços d'assoar?
Soes, ou sóis. somente.
* Solombra sombra.
Soma emfim.
Soncas por cierto.
Sorraba. surra?
Suaceder suar.
* Supitano subitaneo.

T.
Tá. até.
Ta. pron. tua; interj. tem mão.
Tamanino. bocadinho.
* Término Qadj.~) extremo.
Tenchar chantar.
*Tónica son harmônico.
* Toste presto.
Trepas folhos de vestido.
*Tristono. lúgubre, sombrio.

V.
Veairo loucura.?
«Via ea.
*Vido vió.
Vonda basta.

Vol. III. 26
ERRATAS.
Pag. liu. *flTO imundu
12 3 AYKKS Ariano
— 6 0 Ordonho Ó Ordonho
15 22 Tamae Tornae
26 28 da foz de foz
29 13 graza gracia
38 7 Pera Perra
46 7 missa missa
05 1 Tornados Formados
103 28 gaiteiro nin gaiteiro
108 22 deinogneira, de mogneira
132 14" ter mão ler na mão
189 20 Trenzentas Trezentas
199 17 mandados •lindados
200 16 honrodo honrado
202 nll. apaliada apanhada
250 12 siindia sandia
308 11 consnerte conorte
331 5 Humildados Humilhados
I N D E X .

FARÇAS. P.g

f a r ç a de Quem tem farelos 5


Farça chamada Auto da índia 27
Farça chamada Auto da Fama 44
Farça do Velho da Horta 63
Farça chamada Auto das Fadas 92
Farça d% Ine/. Pereira 122
Farça do Juiz de Beira 161
Farça das Ciganas ig3
Farça dos Almocreves 202
Farça do Clérigo da Beira 228
Farça chamada Auto da Lusitânia 262
Farça dos Físicos 3o 1

OBRAS VARIAS.
Paraphrasé do psalmo L. 327
Sermão pregado em Abrantes, no nascimento do Infante
D. Luis 334
Trovas á morte d'E!Rci D. Manuel 346
Romance ao mesmo assumpto 348
Romance á acclamacão de D. João III. 355
Pranto de Maria Parda 364
Trovas a Felipe .Guilhem 37;
Trovas a AflTonso Lopes Çapaio 379
404 INDEX.

Ao mesmo ^
Ao Conde do Vimioso . 38 1
A EIRei D. João III. 383
Carta a EIRei D. João III. 385
Epístola dedicatória ao mesmo 38g
Sepultura de Gil Vicente 3gi
Taboa glossaria 3g3
w» »• ;<?&'

» ;
f^k>..

U'rá% *2
*»»-..

»££»-






BRASILIANA DIGITAL

ORIENTAÇÕES PARA O USO

Esta é uma cópia digital de um documento (ou parte dele) que


pertence a um dos acervos que participam do projeto BRASILIANA
USP. Trata‐se de uma referência, a mais fiel possível, a um
documento original. Neste sentido, procuramos manter a
integridade e a autenticidade da fonte, não realizando alterações no
ambiente digital – com exceção de ajustes de cor, contraste e
definição.

1. Você apenas deve utilizar esta obra para fins não comerciais.
Os livros, textos e imagens que publicamos na Brasiliana Digital são
todos de domínio público, no entanto, é proibido o uso comercial
das nossas imagens.

2. Atribuição. Quando utilizar este documento em outro contexto,


você deve dar crédito ao autor (ou autores), à Brasiliana Digital e ao
acervo original, da forma como aparece na ficha catalográfica
(metadados) do repositório digital. Pedimos que você não
republique este conteúdo na rede mundial de computadores
(internet) sem a nossa expressa autorização.

3. Direitos do autor. No Brasil, os direitos do autor são regulados


pela Lei n.º 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Os direitos do autor
estão também respaldados na Convenção de Berna, de 1971.
Sabemos das dificuldades existentes para a verificação se um obra
realmente encontra‐se em domínio público. Neste sentido, se você
acreditar que algum documento publicado na Brasiliana Digital
esteja violando direitos autorais de tradução, versão, exibição,
reprodução ou quaisquer outros, solicitamos que nos informe
imediatamente (brasiliana@usp.br).

Potrebbero piacerti anche