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Aantropologia Teológica
ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA
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Aantropologia Teológica
A Antropologia (anthropos = homem, ser humano; Logos = estudo, tratado) surgiu com o
filósofo grego Heródoto, no século V a.C. Por ser o primeiro, pelo que se sabe, a tratar
sistematicamente do tema é considerado o pai da Antropologia. Ao longo da história, porém, esta
ciência passou por grandes mudanças, gerando várias correntes. Destacamos três delas:
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Aantropologia Teológica
entender todas as coisas e acontecimentos, que tinha Deus como centro de tudo e de todo interesse
humano, e passa a assumir o homem como centro de tudo. Acontece, portanto, a passagem do
teocentrismo para o antropocentrismo. Os mais importantes filósofos dessa virada histórica do
modo de pensar o sentido e a razão de ser do ser humanos são Descartes, Hume, Spinosa, Hobbes,
Kant. Mas é Immanuel Kant, sem dúvida, quem atinge o ápice do pensamento independente da
referência a Deus, à religião, ao afirmar que o homem não é mais simplesmente o ponto de partida,
mas também o ponto de chegada da reflexão filosófica e de toda a história. É ele que abre as
possibilidades para que dali em diante muitos filósofos dêem continuidade, aprofundem e motivem
levar à prática o secularismo ateu.
A Igreja cristã, porém, continua firme em sua fé e em sua missão, afirmando que o mistério
do ser humano só encontra sua verdadeira explicação e compreensão no mistério do Verbo
encarnado, isto é, no Filho de Deus que assumiu a condição humana na história com o nome de
Jesus de Nazaré (cf. GS 22). Para a Igreja o referencial “Adama” (homem e mulher), portanto, é o
ser humano criado à imagem e semelhança do próprio Deus (mistério da criação). Este ser humano,
no uso de sua liberdade, assim o ensina a Igreja, rompeu com o seu Criador (pecado original), Deus,
porém, não somente não o abandonou, mas deixou plasmado na natureza própria do ser humano a
necessidade de Deus e o impulso natural para buscá-lo. E ele concedeu à liberdade humana a graça
do chamado incessante para restabelecer a união homem-Deus, Deus-homem. Depois de
manifestar-se de muitos modos ao longo da história, quando chegou à plenitude do tempo, na
linguagem bíblica, Deus deu-lhe a maior prova de amor, o seu próprio Filho divino em forma
humana (cf. Hb 1, 1; 1Jo 4, 9-10), que viveu entre nós com plenitude humana, como o ser humano
perfeito, por ser ao mesmo tempo “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”.
Portanto, assim crê a Igreja, é pelo Cristo que o ser humano é “justificado” (recupera a
justiça perdida pelo pecado). E é a partir dele, nele, com ele e por ele, que o ser humano vive da
graça do Pai, do Filho e do Espírito Santo: filiação (ao Pai), fraternidade-amizade (do, no e pelo
Filho), inabitação (no Espírito Santo). É em direção a Cristo, o referencial humano-divino que, na
liberdade, o ser humano procura alcançar progressivamente e com o impulso da graça que ele nos
alcançou, “o estado adulto, a estatura de Cristo em sua plenitude” (Ef. 4,13). É este o cerne da
Antropologia teológica cristã.
É a partir do olhar antropológico-teológico que detectamos o que a Revelação diz sobre o ser
humano no contexto da obra da criação: uma criatura feita no tempo e que não teve existência
espiritual antes da corpórea para usufruir da felicidade neste mundo e da glória de Deus na vida
eterna feliz. Os textos bíblicos não pretendem apresentar dados científicos, mas mostrar o propósito
de Deus, no relacionamento dele com os homens e, mais ainda, a sua experiência no mundo como
ser humano em Jesus Cristo e, consequentemente, a identidade profunda e única do especificamente
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humano assim enriquecido com a comunhão com Deus e que abre o ser humano definitivamente e
de modo privilegiado para a comunhão consigo mesmo, com os outros, com a natureza.
Este mesmo olhar de comunhão, assim plena, considera o homem como “imagem e
semelhança de Deus” e tem a Jesus como a imagem verdadeira do Pai, e nós, como seu reflexo. E o
ser humano como “imagem de Deus” (imago Dei), carrega em si mesmo as marcas do Criador, do
Filho Redentor e do Espírito Santificador, principalmente em sua a capacidade de conhecer e amar
o Pai, por meio de Filho, no amor do Espírito Santo e como co-criador e cooperado em seu Plano de
Amor sobre o mundo e a humanidade.
2.2 A estrutura básica do ser humano segundo a fé. Um dos diferenciais da antropologia
teológica judaico-cristã, em relação às outras antropologias, é constiuído por seu modo de entender
e explicar o ser humano como um organismo psicofísico resultado da estreitíssima união entre
corpo, alma e espírito, em constante tensão aperfeiçoamento, complementaridade e busca de
transcedência. São Paulo, formado para ser rabino, em sua carta aos Tessalonicenses fala do ser
Expliquemos um pouco, mas com os termos em hebraico, grego, latim e português, esta
visão trinitária da pessoa humana, segundo a visão hebraica e que Paulo utiliza na carta aos
Tessalonicenses: a) Corpo (bâsar, sarx, caro = corpo de carne) é a nossa realidade fisica,
biológica); b) Alma (nephesh, psychè, anima = dimensão psíquica, afetiva, intelectiva, colitiva,
relacional) é a dimensão vital similar a de todos os demais seres vivos, mas que possui em si, a
diferença da dimensão da auto-consciência, do afeto-relacionamento, da liberdade, da vontade, do
senso ético, da busca do bem, do belo, da verdade e da felicidade; c) Espírito (ruach, pneuma,
spiritus = dimensão transcentente espiritual), é a dimensão exclusiva do ser humano, fruto da
criação direta de Deus (sopro-ruach, ser vivente em Deus e para Deus), que assegura a
possibilidade de comunicação e comunhão dom Deus.
E como surgiu a visão do dualismo corpo e alma? Na reflexão tradicional e oficial da Igreja
cristã, o predomínio da cultura greco latina na teologia fez acontecer uma fusão entre “alma e
espírito”, por mais que muitas vezes apareçam distintas. Com isso, quando, portanto, em teologia se
fala em “alma”, entende-se por (ruach, pneuma, spiritus-espírito). É, porém, preciso deixar sempre
esclarecido, que no dualismo cristão do ser humano como corpo e alma, obviamente está
subentendida a visão trinitária, pois se faz uma clara distinção entre nephesh-psychè-anima (alma) e
ruach-pneuma-spíritus, isto é, o sopro de Deus (espírito), que, porém, só é aceitável em nivel de fé
revelada. É exatamente aqui que se destaca ainda mais a unidade na dualidade entre corpo, alma
(incluindo o espírito), ao contrário da concepção maniqueísta que ensina a docotomia estraguladora
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do ser humano, ao colocar, como na filosofia de Platão, o corpo como uma prisão da alma, e que,
portanto, o espírito (ruach-pneuma-spiritus) está, também ele, encarcerado no corpo humano e dele
precisa se libertar e, mais ainda, diz o maniqueísmo, porque o corpo é obra do deus demônio, e por
isso, deve ser desprezado e massacrado, sobretudo, em sua realidade sexual.
Essa questão é conhecida também como o problema da retribuição individual após a morte.
3.1- A Vida
A esperança inicial de Israel fixava os olhos dos fiéis sobre a terra, não no céu: Sl 115,16. Não há nenhum
sentimento trágico da vida. O conceito de vida é expresso com um plural intensivo, „hayyim‟ ( )חַּיּיםque vem a ser
também felicidade; a ela pertencem a segurança, a saúde, a força e o bem-estar. Viver é mais do que existir, pois
implica uma plenitude existencial. É o bem supremo, pelo qual o homem está disposto a dar tudo (Jó 2,4). O ideal mais
desejado é a preservação e o prolongamento da vida (Dt 5,16; 16,20; 30,19.21; Am 5,4.6.14; Ez 18,23.32; etc.). O
fundamento para essa concepção não é materialista, pois a vida é vista como dom de Deus, como parte da promessa.
Javé é o vivente por antonomásia (Dt 5,26; Sl 42,3; 84,3; Jr 10,10...), tanto que a expressão se tornou uma fórmula de
juramento (1 Sm 14,39; Jr 4,2; 12,16) e nele está a fonte da vida (Sl 36,10; Jr 2,13; 17,13). É Javé quem outorga,
conserva e prolonga a vida, como pressuposto e parte integrante da promessa e como comunicação de seu próprio ser
vivente (Cf. apostila sobre a Trindade, “o Deus Vivo”).
O ponto máximo da vitalidade se alcança quando a relação homem-Deus é atuada como comunhão. Então, o
israelita pode confessar: “A tua graça vale mais do que a vida” (Sl 63,4). Em virtude disso, a existência é vida apesar de
penúrias e dissabores (Sl 22; 84,11; 119: comparar os versículos 47.92.103.165 com os 23.38.41s.61.143).
Uma existência conduzida à margem da Aliança não é vida autêntica, mas um “invocar a morte com obras e
palavras” (Sb 1,16). Transgredir o preceito divino é experimentar a próprio condição mortal (Gn 2,17). A morte,
negação da vida, é expropriação do âmbito da relação com o Deus vivo, uma excomunhão.
A morte é o compêndio de todos os males, o mal por excelência. Esta característica não é esquecida nos textos
onde a morte aparece como algo natural (Gn 15,15; 25,8;35,29;49,29). Ao caráter luminoso da vida se opõem os traços
mais sombrios para descrever a morte: amarga lembrança (Eclo 41,1) que suscita lágrimas (Eclo 22,11), noite espessa
(Sb 17,20), trevas (Sl 88,7.13), torna os homens pouca coisa (Sl 89,48), a existência efêmera como a sombra (Jó 14,2).
A morte coloca o homem numa situação de excomunhão, pois Deus não se ocupa dos mortos (Sl 88,6,11) e estes não
louvam a Deus (Sl 6,6; 30,10; 88,11-13; 115,17; Is 38,11.18s). A morte é situação de silêncio (Sl 31,18; 94,17; 115,17)
e de esquecimento (Is 26,14; Sl 88,13; Ecl 9,5s.10), de solidão existencial.
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Contudo, Javé conserva seu poder de intervenção também em relação à morte e aos mortos. A sua mão chega
até o „sheol‟ (Am 9,2; Sl 139, 7s; Jó 34,22), e lá pode realizar seus prodígios (Is 7,11; Sl 135,6).
Por isso, os mortos sobrevivem. A morte é perda da vida, mas não cessação total da existência. Então se reduz
de tal forma o dinamismo próprio do ser vivo que se pode falar do defunto como de um não existente (Jó 7,21; Sl
39,14), sem que isso signifique uma aniquilação do homem e nem muito menos uma imortalidade da alma. Entre esses
dois extremos situa-se a concepção hebraica dos mortos como „refaim‟ ))ר ָפאִים.
ֽ Esse termo deriva provavelmente do
verbo „rafah‟ ()רפָה,
ָ ser fraco.
O lugar dos mortos é o „sheol‟ ()שֽאֹול, destino sem volta, reino das trevas e do pó, terra do esquecimento, onde
seus habitantes arrastam uma semi-existência umbrátil, que vale como residência indiscriminada de todos os mortos (Jó
3,19; Ecl 2,15). O sheol é a sorte comum para todos indistintamente (Ecl 9,3).
A conservação de uma certa hierarquia social (Is 14,18.20; Ez 32,22-27) não constitui uma retribuição, pois é
só um reflexo póstumo da glória terrestre do defunto. Se por outro lado o „sheol‟ é chamado de lugar de perdição (Sl
88,12; Jó 26,6; 28,22; 31,12), tal afirmação não contém caráter ético, mas mostra o apreço pela vida e a negatividade da
morte.
As ações boas e más recebem de Javé a devida retribuição: Adão é punido por seu pecado, Noé é salvo por sua
inocência, a fé de Abraão merece um prêmio, a corrupção de Sodoma merece castigo, e assim por diante. Todavia,
prêmios e castigos são temporais.
Tal retribuição é claramente solidária, envolvendo outros nos méritos ou deméritos dos indivíduos (Gn 7,1.13;
12,3; 19,12-16; Nm 16; Js 7; 1Sm 2,27-36; 2Sm 24, 1-17). Deus sanciona o bem e o mal com prêmios ou castigos
terrenos e coletivos. O objeto da eleição divina é o povo como tal (Dt 7,6-8) e com o povo Deus fez aliança (Ex 19, 3-8;
24, 3-8); assim, é o povo o sujeito da retribuição, o mediador entre o indivíduo e a justiça distributiva de Javé.; o
indivíduo é alcançado pela justiça em razão de sua pertença à comunidade da aliança. Em Dt 28 o princípio da
solidariedade está codificado (cfr Jr 31,29; Ez 18,2).
Tal solução estava longe de ser satisfatória (Jr 17,10; 31,30). O oráculo sobre a nova aliança tem seu centro de
gravidade a inscrição da Lei no coração de cada homem (Jr 31,31-34). Mas é em Ezequiel que lemos a chamada mais
incisiva para a responsabilidade dos indivíduos e para a religiosidade pessoal. A situação presente não é devida às
culpas dos antepassados, mas aos pecados pessoais dos contemporâneos (Ez 18, 1-24.29; 20,30). Cada um será julgado
segundo seu proceder individual, mas a perspectiva dos prêmios e castigos continua sendo temporal (28,24-26; 33,25-
29).
O livro dos Provérbios mantém a versão da retribuição temporal e individual (1,23-32; 3, 9s.16-18; 4,13;
7,2.24-27; 8,18-21; 9,6; 24,20). É a linha de vários salmos: 1; 91; 112; 128.
No confronto com a realidade a tese tradicional entrou em crise. Enquanto permanecia a concepção solidária,
podia se aceitar que inocentes pagassem junto com os culpados, mas com a entrada da visão da responsabilidade
pessoal, a correspondência entre o princípio e a realidade não é mais sustentável.
Em Jeremias a crise é apresentada como pergunta angustiante (12,1; 15,10-18;20,8; cfr. Hab 1,13; Ml 3,14s).
A mesma inquietação está presente em alguns salmos (6,4; 10,1; 13,1-3; 74,10; 94,3). A solução é buscada na
intervenção divina que desvela o caráter efêmero da prosperidade dos pecadores (Sl 6,9-11; 10,17s; 37; Hab 2,1-4; Ml
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3,17s). Por sua parte, o justo goza de paz interior (Sl 94,18s) na certeza que os ímpios serão punidos (Sl 38, 12-18; 94,
22s). Contudo é no livro de Jó e no Eclesiastes que a crítica vai se tornar devastadora, pondo fim à tese tradicional.
Jó protesta furiosamente contra suas calamidades, contesta com furor a concepção de um deus e de uma
existência que resultam incompreensíveis. Enquanto o prólogo e o epílogo mantêm a visão tradicional, o poema
constitui a mais violenta requisitória contra o princípio da retribuição.
O que em Jó era uma apaixonada explosão de rebeldia contra as soluções convencionais, no livro do
Eclesiastes se torna um sereno e corrosivo ceticismo e uma ironia desencantada. Jó acreditava na felicidade, mas agora
também isso é vaidade, assim como a sabedoria. A vaidade é a ausência de valores, que faz com que a vida não tenha
sentido. A única coisa a se fazer é viver enquanto dá, desfrutando dos bens da vida como dons de Deus.
Com os dois citados livros, o problema da retribuição chega a um ponto morto. Feita a crítica à solução
tradicional, não aparece nenhuma perspectiva que possa satisfazer. Faz-se mister explorar outras vias, rumo ao que
transcende o tempo presente. Apesar de ausente, Deus nunca é declarado inexistente, pelo contrário (Jó 19,25). A fé
suporta a irracionalidade do mal. Da incompreensibilidade de Deus não se conclui a sua negação. A realidade de Deus é
mais forte que a angustia e o ceticismo. A fé se baseara na vivência existencial da comunhão com Deus no tempo e na
história, não na garantia de uma solução para o problema da retribuição. Deus tem sentido mesmo quando não traz
Em três salmos a meditação sobre a natureza da relação Deus-homem alcança um altíssimo grau de exaltação
religiosa. No salmo 16, 10-11 a comunhão com Javé é sentida como tão forte que o temor da morte parece superado,
não por uma fé na ressurreição ou na imortalidade, mas porque a presença do Deus vivo relega a um plano secundário
toda preocupação, inclusive com a morte. A presença é sentida com tal intensidade que não se vê como possa ser
interrompida com a morte.
No salmo 49, 16, enquanto o sheol será a residência dos pecadores, o salmista afirma que será tomado das
garras do sheol. O verbo usado para tomar é „laqah‟ ()לקח, usado para Henoque e Elias (Gn 5,24; 2Rs 2,3ss), subtraídos
ao desfecho comum da existência humana e assumidos por Deus junto dele. Enquanto os malvados correm para o sheol,
a vida dos fiéis está assegurada por uma intervenção libertadora de Deus.
O salmo 73 opõe ao bem-estar dos pecadores a felicidade fundada na comunhão com Deus. Nos versos 23-28
aparece de novo o verbo „laqah‟ (Deus tomará consigo o fiel na hora da morte?) e se exprime a confiança ilimitada no
caráter indissolúvel da união amorosa com Deus. Por que a morte teria mais poder do que esse amor indestrutível?
Como poderia quebrar essa união tão firme?
Os três salmos expressam a intuição da exigência de perenidade que a vida com Deus outorga. Se a vida com
Deus possui já agora uma densidade suficiente para plenificar a existência, tem sentido o pressentimento de que há de
transcender todo e qualquer condicionamento. O Deus fiel seria fiel até o fim se permitisse que a morte interrompesse o
diálogo? Os três salmos dão testemunho de uma atitude nova, segundo a qual a esperança não vacila nem sequer diante
da morte. Todavia, os salmos não nos fornecem uma concepção precisa, mas não irá passar muito tempo sem que se
afirme a fé na ressurreição.
3.6 - A fé na ressurreição
Preparando essa fé temos alguns oráculos proféticos que adotam uma linguagem simbólica para afirmar o
poder de Deus sobre a morte.
Os 6, 1-3 afirma que Deus irá fazer seu povo reviver e se erguer: isso significa cura e alívio na enfermidade, ou
ressurreição? Em todo o caso, trata-se da ressurreição do povo, sendo que Javé tem o poder de devolver a vida a um
organismo morto.
O impressionante realismo com o qual Ez 31,1-14 descreve a reviviscência dos ossos ressequidos serve para
afirmar o poder de Deus que faz o seu povo reviver após o exílio. Todavia, a fronteira entre a realidade e a imagem não
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é tão precisa, e o que era um recurso literário para exprimir plasticamente a volta do exílio abre a possibilidade que se
atribua a Javé o poder e a vontade de restituir a vida também aos membros mortos do seu povo.
As opiniões dos críticos se dividem quanto à interpretação de Is 26, 19: profecia da restauração nacional ou
primeiro anúncio formal de uma ressurreição dos indivíduos? Em todo o caso, o dinamismo das imagens orienta o
pensamento para uma concepção realista da ressurreição.
Com Is 52,13 e 53,10s temos um precedente já bem próximo dos textos capitais de Daniel e Macabeus. Para
esses textos todos, a morte martirial será seguida de uma reabilitação. Contudo, em Isaias se trata ainda de um
pressentimento que não dispõe da noção clara de um acontecimento.
Todavia, é somente com o livro de Daniel que temos o primeiro testemunho categórico da fé na ressurreição,
num contexto claramente escatológico: Dn 12, 2s.13. Mas, o que diz o texto exatamente: só uma parte dos judeus
ressuscitará ou todos eles? Há ressurreição só para a vida, ou se deve falar de uma outra para a morte? Estes últimos não
são os que não ressuscitam de fato? De qualquer modo, a ressurreição é afirmada certamente para os mártires, aqueles
que caíram por causa da fé durante a perseguição de Antíoco Epífanes. Os maus irão perpetuar sua existência no sheol?
Pelo jeito, no fim dos tempos (v.13) cada um será julgado segundo sua conduta.
A naturalidade e concisão com que expressa, pela boca de uma mulher do povo (7, 22s.27-29) e de seus filhos
(vs.9.11.14), a esperança da ressurreição, sem preocupação com explicações mais detalhadas, dá a entender que a idéia
gozava então de uma ampla difusão.
Todavia, a glosa de 12, 43-45 (cfr BJ), com seu indissimulado matiz polêmico, deixa transparecer que não
todos os judeus assim pensavam. De fato, ainda no tempo de Jesus a seita dos saduceus se opunha tenazmente a essa fé.
Portanto, é manifesta a importância transcendental dos textos examinados: achou-se uma resposta para o
mistério da morte, porquanto se trate ainda de uma resposta controvertida e limitada: Deus ressuscitará aqueles que
tiverem morrido pela honra de seu nome. Se Deus deixasse na morte aqueles que lhe são fiéis na vida e na morte,
colocaria em questão a sua própria honra. Se assim não fosse, ou Deus não seria Deus, ou então não seria aliado do
homem. A ressurreição é a única resposta que torna Deus alguém digno de crédito. A ressurreição não é uma
consideração abstrata, nem uma solução do problema da retribuição, mas resultado do conhecimento do Deus com o
qual se conviveu pela fidelidade à sua Lei. A justiça e o amor de Deus são mais fortes do que a morte. A fé não nasce de
um nostálgico desejo humano de imortalidade, mas da reflexão sobre o ser e os atributos do Deus da Aliança.
Com este livro, aparece na Bíblia hebraica um vocabulário novo, desconhecido até pelos LXX: σφμα - υστή,
σφμα – πνεσμα, αθανασία, αυθαρσία (1,4. 15; 2,3. 23; 3,4; 4,1...). Não se trata aqui da alma naturalmente imortal, mas
do fruto da justiça, da sabedoria, da santidade. O termo „morte‟ só é empregado para os ímpios, enquanto que os justos
são transferidos por Deus (4,10s.14), seu fim terreno é uma saída (3,2s), uma mera aparência de morte (3,2).
A imortalidade dos justos é um estar nas mãos de Deus (3,1), uma vida eterna cuja recompensa é o próprio
Deus (5,15), na graça e misericórdia divinas (3,9). Há continuidade perfeita com a idéia bíblica de vida e de morte, um
parentesco claro com os salmos (compare-se Sb 3,1.9; 5,15s com Sl 16, 9-11; 73,23.25s; e ainda Sb 4,10s com Sl 49,16
e 73,24).
Entretanto, várias questões permanecem em pé: qual o substrato ideológico da distinção alma e corpo: mero
empréstimo terminológico ou introdução de novo esquema antropológico, diferente da concepção tipicamente unitária
da tradição bíblica? Qual o sujeito da imortalidade, a alma separada ou o homem inteiro? Quando surtem efeito os
prêmios e castigos, logo depois da morte, ou no final dos tempos como em Daniel e Macabeus?
Através da dor de seu silêncio (Jó), da decepção do afastamento (Eclesiastes), do gozo de sua presença
(Salmos), é Deus quem vai abrindo caminho na alma de Israel. Como essa relação nunca foi vista como meramente
futura, mas como algo experienciado no tempo da existência terrena, pôde sobreviver uma esperança que sabe mirar
além dessa existência.
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3.8 – O Purgatório
Este tema é objeto de controvérsia inter-confessional, motivo pelo qual será importante precisar quais os
elementos essenciais da doutrina católica e quais as razões que levam outras Igrejas a não admiti-lo.
Lutero afirmava que o purgatório não pode ser provado pelas Escrituras canônicas. Como reação, os católicos
tentaram provar o contrário, mas isso às custas de uma exegese acomodatícia, influenciada por uma visão dogmática
posterior aos textos.
Mt 12,32 não quer afirmar que há pecados que serão perdoados após a morte. O estilo redacional semita
apresenta dois extremos – “nem neste mundo nem no outro” - para dizer que nunca serão perdoados, como fica mais
claro no paralelo de Lc 12,10.
Esclarecedor é o passo à frente testemunhado por um texto da escola do rabino Shammai (por volta do século
Iº d.C.); “No juízo há três categorias de homens: uns são para a vida eterna; outros, os completamente ímpios, para a
vergonha e o opróbrio eterno; os medíocres (os que não são nem totalmente bons e nem totalmente maus, e guardam um
lugar intermédio) descem à geena para serem apertados e purificados; em seguida sobem e são curados”. Na 1 Co 3,10-
17 Paulo simplesmente adverte os missionários pouco zelosos do risco que correm, lembrando uma diferença de grau
em sua recompensa, caso a consigam.
A base escriturística para a doutrina do purgatório não pode ser encontrada em alguns trechos particulares,
presumivelmente explícitos, mas em certas idéias gerais que são clara e repetidamente ensinadas ao longo dos escritos,
e que podem considerar-se como o núcleo germinal do nosso dogma.
Uma delas é a constante convicção de que somente uma absoluta pureza é digna de ser admitida à visão de
Deus. Daí o complicado cerimonial do culto israelita, como também o terror de ver a Deus (Ex 20,18s). Is 35,8 e 52, 1
trata da impossibilidade na qual se encontram os que não estão completamente limpos para transitar pela Jerusalém
escatológica (como em Ap 21,27).
A outra idéia é a da responsabilidade humana no processo da justificação, que implica uma participação
pessoal na reconciliação com Deus, assim como a aceitação das conseqüências penais que derivam dos próprios
pecados: em 2 Sm 12, 13-14 o perdão de Deus não exime Davi de sofrer o castigo por seu pecado.
Dessas idéias surge naturalmente a suposição que aquele justo que morre sem ter se purificado e sem ter
reparado suficientemente o seu pecado, deva pode fazê-lo após a morte. À luz dessa possibilidade devemos contemplar
o costume da oração pelos defuntos à qual se referem as Escrituras em várias passagens. Além da já citada em 2Mc
12,40ss, temos a de 1 Co 15,29, segundo a qual certas ações litúrgicas podem beneficiar aos mortos. Na 2 Tm 1,16-18
lemos a intercessão por um cristão já falecido.
A tradição mais antiga nos oferece abundantes testemunhos a respeito de orações (litúrgicas ou particulares)
em favor dos defuntos. Assim nas catacumbas e nos cemitérios cristãos. Oblações e preces no aniversário da morte ou
no trigésimo dia. Nos quatro primeiros séculos essas práticas eram estendidas a todo o mundo cristão, Oriente e
Ocidente. Particular importância reveste a memória dos fiéis defuntos durante a celebração eucarística.
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Aantropologia Teológica
A passagem da fé implícita para a explícita é testemunhada por São Cipriano (martirizado em 258). Em tempo
de perseguição há cristãos que podem morrer sem terem tido tempo de cumprir o regime penitencial imposto pelo
costume da Igreja. Pede que sejam readmitidos à comunhão eclesial antes de terem expiado suas culpas, lembrando que
para os que não morrem mártires haverá um fogo purificador (ignis purgatorius).
A partir desse momento as referências ao purgatório (lugar ou estado) far-se-ão sempre mais freqüentes e
inequívocas, tanto entre os latinos como entre os gregos. Ainda em 1254 o papa Inocêncio IV se limita a pedir aos
gregos que adotem o temo „purgatório‟, dado que já crêem na doutrina (DS 838).
Todavia, as divergências não tardam a se manifestar. A oposição dos gregos à teologia latina se resume em três
elementos: o caráter local do purgatório (para os gregos é um estado), a existência do fogo (idéia julgada próxima ao
origenismo) e, sobretudo, o caráter expiatório, penal, de um estado que eles consideravam propício para, através das
orações da Igreja, os defuntos se tornarem mais preparados para a vida eterna, sem propriamente suportar uma pena;
não lhes parecia acertada a noção de satisfação penal desenvolvida no Ocidente (cf. DS 856; FC 0012, Concílio de Lyon
em 1274).
A questão foi enfrentada no Concílio de Florença (DS 1304s; FC 0022s). A definição conciliar deixa de lado a
idéia do fogo e a do purgatório como lugar, acatando a posição grega. Define então:
Lutero, inicialmente favorável a reconhecer o purgatório por causa da tradição, em 1530 passa a negar sua
existência, em coerência com o princípio da sola Scriptura e com a afirmação da suficiência da satisfação de Cristo. O
defeito na santidade imputada ao pecador seria o defeito da santidade de Cristo, como se a justiça de Cristo não tivesse
sido suficiente para cobrir até os mais graves pecados.
O Concílio de Trento, em conseqüência, trata do purgatório no decreto sobre a justificação (DS 1580; FC
8108). O decreto é animado por um sadio espírito de autocrítica, proibindo de expor a doutrina do purgatório
carregando-a de acréscimos inúteis, “de questões sutis que não contribuem para a edificação e nem para a piedade” do
povo, censurando os traços “curiosos ou supersticiosos”, abundantes nas representações populares (DS 1820; FC 0029).
Infelizmente, a eficácia do decreto pretendendo combater as deformações, algumas grotescas, da verdade da fé, não foi
muito grande.
O capítulo VII da Lumen Gentium do Vaticano II contém várias referências ao estado de purificação após a
morte. Temos aí uma confirmação da melhor tradição e dos decretos de Florença e Trento. Entretanto, o vocabulário é
mudado, pois não se fala mais de expiação e purgação, mas de purificação.
Um modo difundido, mas errado, de entender o purgatório é concebê-lo como um inferno temporário. O
elemento de expiação penal deve ser equilibrado com a idéia de processo de amadurecimento. A visão grega deve ser
reconhecida como unilateral, pelo fato de passar por cima dos aspectos negativos da passagem de um estado de pecado
para a santidade e amizade com Deus, sem falar que a idéia de pena expiatória não é desconhecida pela tradição
oriental. É possível que a insistência latina na pena positiva do fogo tenha produzido tal reação, que levou os orientais a
excluir todo e qualquer elemento expiatório.
A noção dogmática do purgatório não se presta a nenhuma conclusão sobre a natureza das penas. Seria então
legítimo até mesmo reduzi-las à dilação da visão de Deus. Contudo, não é possível esquecer que todo processo de
amadurecimento ou de purificação traz consigo um certo coeficiente de sofrimento, presente já na própria consciência
da imperfeição, quando acompanhada de um sincero desejo de aperfeiçoamento. O pecado cria uma situação objetiva de
desordem que transcende as relações inter-pessoais, não podendo ser cancelado somente pelo perdão. O tema de
purificação, próprio da igreja oriental, e o da expiação, próprio da igreja latina, devem ser considerados
complementares, e não antitéticos.
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Aantropologia Teológica
Não podemos aceitar a visão protestante, segundo a qual a eficácia da ação divina só é plena quando exclusiva.
Ao contrário, a verdade do purgatório supõe que o homem não se limita a ser salvo, pois ele deve também operar a sua
salvação. Se a purificação é necessária, ela consistirá não só em um ser purificado, mas também em um purificar-se.
Cabe agora a pergunta: por que não é suficiente o marco temporal da história da pessoa para que esta alcance
sua maturidade? Por que a mais sincera e autêntica conversão do centro nuclear da pessoa pode ter deixado intacta esta
ou aquela zona de sua periferia. Se isso pode ser sustentado, então o purgatório pode perfeitamente ser pensado como a
integração de todas as diversas dimensões do homem na sua única decisão fundamental, quando tal integração não se
verificou – por qualquer motivo que seja – antes da morte.
A experiência mística pode nos dar a melhor analogia para representarmos a natureza do purgatório. Nela a
purificação radical e profunda das imperfeições está unida a uma experiência reconfortante da proximidade de Deus.
Mesmo na noite escura (São João da Cruz, São Paulo da Cruz, Pio de Petralcina) ou na provação da fé (Santa
Teresinha) a paz interior e a firmeza na fé constituem o selo da ação do Espírito Santo.
A necessidade de completar o processo da maturidade espiritual e de reparar os pecados cometidos faz ressaltar
o caráter social da santificação: as pessoas não cumprem seu destino individualmente, mas sim por serem membros do
Corpo de Cristo, ajudadas pelos sufrágios dos fiéis e a intercessão dos santos. O amor de Deus mais forte do que a
O purgatório deve ser pensado somente na modalidade de uma extensão temporal, proporcional à necessidade
de cada um, ou pode ser pensado como uma purificação instantânea provocada pelo encontro com Cristo. A necessária
purificação é intensiva ou extensiva? Os teólogos que não vêem de bons olhos a idéia de uma escatologia intermédia ou
a existência de uma alma separada, optam por uma purificação intensiva no próprio momento da morte ou
imediatamente depois. Contudo, independentemente dessas questões, há os que preferem pensar o purgatório como
uma dimensão do próprio juízo particular, encontro do pecador com o rosto de chamas e os pés de fogo do Cristo (cf Dn
10,6; Ap 1,14). A dificuldade para essa interpretação vem do fato que parece tornar inúteis as orações pelos defuntos.
Se é verdade que os que deixam a vida presente não entram numa eternidade temporal, por outro lado não precisamos
supor uma sincronia perfeita entre o tempo e o evo.
O termo "graça" tornou-se, no vocabulário cristão, uma expressão extremamente sintética e global, capaz de
abranger a totalidade do fato cristão, com tudo o que tem de próprio, original, distintivo e específico. Este sentido
global já está em At 20,24: "o evangelho da graça" e em Cl 1,6: "compreender a graça de Deus". O termo conota outros
aspectos da mesma realidade global denominada economia, salvação, Reino, Evangelho, mistério, vida eterna, fé, para
lembrar os principais.
Hoje entendemos melhor que é indispensável conseguir captar e manter a continuidade orgânica dos vários
aspectos, significados e interpretações do termo, o desenrolar dinâmico da realidade estudada. Não se deveria, jamais,
fixar-se num aspecto, esquecendo sua conexão com os demais. Porque Deus, em sua essência, é graça (a “tônica” da
melodia); ele quer comunicar-se pessoalmente com o homem (a "dominante" da melodia, que dá dinamismo e
movimento). Em tudo o que Deus faz é o que Deus tem em mente, para isso dirige suas obras na história e sua ação no
homem (a "mediante" da melodia, em tom maior ou menor, pois a ação da graça nem sempre é clara ou agradável para
nós).
Portanto, quando o termo é empregado em um sentido particular, não devem ser esquecidas as relações com
os outros sentidos, a hierarquia interna. Isolar um significado tem sido causa de distorções, reduzindo toda a graça a um
aspecto apenas, atribuindo a um sentido características de outro (por exemplo: virgindade e sexualidade, medicina e
sacerdócio, ser bom com ou sem vida sacramental, cristão ou budista... tudo é graça! cada uma de um jeito!).
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Aantropologia Teológica
O reconhecimento de cada um dos aspectos da graça constitui um eminente ato da fé, típica do cristianismo,
que transcende as visões parciais das religiões e da religiosidade natural, tão comum no povo cristão. Com efeito:
1. Deus é graça em si mesmo, não em conseqüência da solicitação humana.
2. A graça é a totalidade da obra de Deus, mesmo em seus aspectos contraditórios, não somente as
intervenções avulsas e excepcionais, sem visão de conjunto.
3. A graça é comunicação pessoal, não simples dádiva ou benefício especial, benfeitorias e milagres. A graça
não é o conjunto das coisas que Deus dá, mas o que ele quer ser para o homem e com o homem.
4 e 5- A graça não é somente conscientização, estímulo exterior, sentimento intimista, boas intenções,
transformação moral ou psicológica; é bem mais do que a realização de milagres ou a concessão de
carismas extraordinários.
O esquema apresentado diz respeito à graça denominada tecnicamente “gratum faciens” (a graça que torna o
homem agradável a Deus). Esta é necessária para cada indivíduo. Não consideramos neste curso a graça chamada
“gratis data”: a graça dada gratuitamente, graça excedente, suplementar. Esta é necessária para a santificação da Igreja,
mas não para cada pessoa. Atualmente denominamos a primeira simplesmente “graça” e à segunda damos o nome de
“carismas”.
Atualmente o tratado da graça foi também denominado de “Antropologia”, pois o homem só é plenamente
humano quando vive a relação pessoal de gratuidade com Deus, que transforma seu ser e sua vida.
Não iremos estudar tudo o que o termo graça abrange. O nosso enfoque é antro-pológico, tomando-se o
homem na sua relação pessoal com Deus. É importante perceber a continuidade com o todo da teologia, tanto
sistemática quanto moral.
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Aantropologia Teológica
O conceito de graça no cristianismo deriva não de um só, mas de vários conceitos e usos do Antigo
Testamento. Cada um desses vocábulos tem uma longa história: uso profano, religioso, teológico ... Trata-se de
evolução semântica, que não se limita ao texto e à época da redação do Antigo Testamento, mas que continua no
intertestamento e até dentro do próprio Novo Testamento (escrito em grego, mas com mentalidade ainda bastante
judaica). As traduções para o grego e para o latim introduzem modificações e interpretações novas. O Novo
Testamento e a subsequente tradição cristã os reassumem e renovam.
Os termos principais são três: “hen” - “hesed” - “rahamim”: חֵן ֶחסֶד ַר ֲח ִמים.
Em um segundo plano, temos : “sedeq” (justiça) e “emet” (fidelidade).
Mas ainda outros termos tiveram uma grande influência na conceituação cristã da graça: salvação, vida, espírito,
amor, dom, paz, aliança, santidade, bênção, conhecimento, para citar os mais comuns .
HEN (tradução dos LXX: “cháris” - “gratia” - graça) substantivo que vem do verbo “hanan”:
- favor gratuito, próprio dos soberanos, que inclinam o olhar sobre o súdito que querem agraciar.
- qualidade do inferior que chama a atenção para que lhe seja concedido tal favor. Nota-se aqui um
deslizamento do significado, pois a graça não está mais apenas em quem dá, mas também em quem
a recebe. Aparece na expressão freqüente: "encontrar graça aos olhos de".
HESED (tradução dos LXX: “éleos” - “misericordia” - amor): indica o laço de afeição, o tipo de relação próprio de
parceiros numa aliança (matrimonial, parental, filial, de amizade, de vassalagem, hospedagem, ou de
outros tipos ainda). É a lealdade que se espera de alguém por causa de um contrato, pacto, acordo,
compromisso e análogos. O conteúdo da “hesed” depende do tipo de relação que está sendo
considerado (1Sm 20,8.14s). A “hesed” de Deus é a qualidade que o torna capaz de estabelecer uma
aliança de gratuidade com o homem, mantendo-se generosamente fiel a ela. “Hesed” é a expressão da
vontade espontânea de Deus de beneficiar e salvar o homem. A “hesed” não está propriamente no
sentimento, pois é questão de ação em favor do homem, por causa da aliança (Sl 136).
EMET ( אמתtradução dos LXX: “alétheia” - “veritas” - fidelidade) aparece com muita freqüência associado a “hesed”.
Conota a fidelidade, a solidez, a firmeza e a segurança das obras e palavras de Deus. “Hesed ve emet”
significa graça fidedigna e constante. Cf. Sl 117,2; Sl 89,25. Em Jo 1,14.17, temos um eco deste binômio.
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Aantropologia Teológica
Evolução semântica: “Hesed” é o termo principal, porque ligado à aliança - foi se aproximando sempre mais,
no uso e no conceito, de “rahamim”; por este motivo, os LXX o traduzem por “éleos”, que quer dizer, propriamente,
compaixão. Por outro lado, “hesed” se aproxima também de “hen”: por isso, os tradutores gregos posteriores aos LXX
o traduzem por “cháris”. “Hesed”, assim, cada vez mais conota a misericórdia, a piedade e o perdão, pois a situação
concreta e constante do povo é a infidelidade. Tudo isso explica porque, no Novo Testamento, o termo privilegiado não
será “hesed” ou o seu correspondente grego “éleos”, mas sim "graça-cháris", que corresponde a “hen”.
Os LXX traduzem “rahamim” por “oiktirmós”. Este termo será abandonado pelo mais enfático "splánchna
éleos" (que significa vísceras de misericórdia), no intertestamento e no Novo Testamento. (Lc 1,78; 15,20;10,33; Fl
2,1; 1Jo 3,17).
No uso religioso, esses termos se referem a Iahweh em relação ao homem. Não faltam exemplos que se
referem ao homem em relação a Deus e/ou ao próximo. (Os 4,2; 6,4).
Embora nos possa parecer estranho, o termo hebraico para “amor”, “ahav”, não tem muita importância no
Antigo Testamento, indicando um sentimento bastante genérico e pouco caracterizado. Por isso, o Novo Testamento irá
recorrer a um termo grego praticamente novo: “agápe”.
No Antigo Testamento dos LXX, “cháris” é usado como tradução de “hen”, na maioria das vezes. Mas ele
aparece com mais freqüência nos escritos gregos originais (só no Eclesiástico, 41 vezes). Contudo, na Bíblia o
significado primeiro não é o de beleza que atrai, como no grego profano, mas o de benevolência gratuita de Deus, que
quer favorecer o homem (e não simplesmente se comprazer com suas qualidades). A linguagem se adapta à revelação.
Todos os termos indicam o interesse gratuito de Deus pelo homem. Todavia, cada um acentua um aspecto:
“hen“ é o favor gratuito concedido ao necessitado;
“hesed” é o favor concedido por causa da aliança, até mesmo ao aliado indigno;
“rahamim” é o favor concedido pela ligação de sangue ou por algum motivo conside-rado equivalente;
“cháris” é o favor concedido a quem é agradável (no grego profano).
No Novo Testamento, o termo “cháris” não ocorre nem em Mateus, nem em Marcos. É usado por Lucas 25 vezes,
nunca na boca de Jesus. João prefere os termos "vida" e amor = “agápe”. Paulo usa “cháris” 100 vezes. Quanto ao
conteúdo, a revelação e a compreensão da graça ocorre em todo o Novo Testamento, através dos termos “dom”, “dar e
receber”, com seus inúmeros derivados. Certamente foi Paulo quem teve o papel decisivo no sucesso de "cháris", como
termo que exprime toda a novidade cristã, absorvendo o pleno conteúdo dos vários termos do Antigo Testamento.
Em Paulo, o termo ainda se encontra algumas vezes usado no sentido comum; beleza: Cl 4,6; favor: At 2,47;
benefício: 2Cor 1,15; ação de graças: 2Cor 1,11- neste último sentido é "eucaristia" que vai predominar.
Mas é o sentido teológico novo, pleno desenvolvimento do Antigo Testamento, que vai emergir com força:
graça é a totalidade da obra do Filho e do Espírito como manifestação do amor benevolente e gratuito do Pai. Indica,
pois, simultaneamente, a realidade da vontade salvífica de Deus, tanto em seu princípio (benevolência divina), quanto
em suas manifestações (favores, obras). O sentido pleno ocorre também em João (1,14. 16. 17).
O termo „eudokía‟, desconhecido antes da era cristã, recorre 9 vezes no Novo Testamento e traduz o hebraico
„razon‟ (por ex.: Is 62,1, na forma verbal), que significa favor, complacência, prazer (Lc 2,14; 10,21//Mt 11,26; 2Ts
1,11; Rm 10,1; Fl 1,15; 2,13; Ef 1,5.9). O verbo „eudokéo‟ é mais freqüente (cf. Mt 3,17; 12,18; 17,5; Gl 1,15; Cl 1,19;
2Pd 1,17; etc.), usado especialmente pelo Pai em relação ao Filho.
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Aantropologia Teológica
O latim traduziu “cháris” por "gratia", derivado de "gratus", agradável, bem aceito, grato. De "gratus" vem
também: “gratiosus,” “gratificare”, “gratulor”, “gratis”, “gratuitus”. O latim é mais genérico e menos preciso do que o
grego, por isso a Vulgata recorre com mais freqüência aos derivados de “donare-donum” e a outras circunlocuções.
Há muitos termos fundamentais no cristianismo: amor, salvação, vida, aliança, revelação (o dar-se a conhecer
de quem procura uma comunhão de amor), entre outros, termos globais que olham o todo sob algum aspecto. A todos
eles "graça" acrescenta uma determinação concreta e específica essencial: tudo é decisão e obra de um Deus que, em si
mesmo, é amor de pura benevolência e que, por isso, comunica ao homem, mesmo indigno e incapaz por si só de
retribuir, seus dons e seu próprio amor, tornando-o, assim, agradável, capaz de gratidão efetiva e também de amar
gratuitamente.
A teologia tradicional partia de Paulo e de João, que elaboraram a primeira reflexão teológica sobre a graça e o
uso explícito do vocabulário. Atualmente partimos dos Sinóticos, onde se registra a plena revelação da realidade da
graça qual resumo de toda a vida de Jesus e realização das promessas.
A prática de Jesus
O que surpreendeu os ouvintes:
- os milagres: sobre os elementos naturais, curas e exorcismos;
- o falar com autoridade, em nome próprio;
- o perdão dos pecados, concedido imediatamente;
- a familiaridade com os pecadores e marginalizados;
- a liberdade diante da Lei e das tradições.
O que gostariam de ter visto e não viram:
- o legalismo;
- o messianismo político, ou mesmo militar;
- o castigo para os pecadores (escatologia iminente).
Em que Jesus era diferente de João Batista:
- vai aonde o povo se encontra, não o chama a si no deserto;
- simplicidade de vida (não austeridade) e mansidão;
- vai até os pobres e ao povo comum, não enfrenta os poderosos;
- não pratica o batismo.
Toda essa prática de Jesus é entendida como graça, termo que indica tudo o que é novo e original em Jesus. Deus
sempre agiu assim, mas a religiosidade da época havia deturpado a compreensão do agir de Deus exatamente nesse aspecto.
Jesus tem seu próprio conceito sobre o Reino de Deus. Esse é o grande tema central da sua pregação e atuação (Mc
1,15; Mt 4,17; Lc 4,43), e não o messianismo, a Igreja ou mesmo a graça. Também o Batista pregou o Reino (Mt 3,2), mas
outras são suas características.
Para Jesus, o Reino já é presente (não iminente), de um modo escondido e humilde (não vistoso e glorioso); é a
grande oportunidade em que Deus oferece todo o seu amor (não o momento de cobrar, punir ou recompensar); depende,
também, do homem que acolhe a ação de Deus e não se limita a esperar, mas faz o Reino acontecer; que não se converte
apenas moralmente, mas, sobretudo, alcança a capacidade de enxergar o Reino presente nas ações de Jesus.
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Aantropologia Teológica
A justificação de Jesus aparece, especialmente, nas parábolas do Reino e da misericórdia. Jesus deve ser como o Pai
é: um Deus que quer demonstrar mais amor do que nunca, para conseguir mais amor. Jesus mostra o amor gratuito e gracioso
do Pai, que privilegia quem mais precisa; mas esse amor só pode ser acolhido por quem é capaz de aceitar tudo como um
dom e não como uma recompensa (Mt 11,25-28).
A experiência de Jesus
É a razão da prática e o conteúdo da explicação de Jesus: é a experiência da relação pessoal com Deus, como Pai
que ama gratuitamente (gera), querendo só demonstrar o seu favor, desejando que se ame como ele. Deus é sempre chamado
de Pai, não de Rei, apesar de o tema central de Jesus ser o Reino de Deus.
O centro vital de Jesus não está na Lei, mas no sentir-se Filho. Jesus não veio para ensinar doutrinas e
comportamentos: ele revela o Pai, de cujo reconhecimento e aceitação irá derivar o comportamento adequado. O objetivo da
Lei era proporcionar o conhecimento de Deus. Jesus possui e comunica um conhecimento superior, não adquirido pela Lei,
mas pela intimidade com o Pai, porque ele é seu Filho, o Filho.
A Igreja, mesmo como comunidade local historicamente situada, continua a encarnação de Jesus, é o seu corpo. A
experiência, a prática e o projeto de Jesus continuam na experiência, na prática e no projeto da Igreja. Tornam-se mais evidentes
onde sua finalidade é realizada ou conscientemente assumida como prioridade. A finalidade é a comunhão entre os irmãos e o
espírito missionário, que amplia o número destes irmãos. Vários tipos de comunidade podem encarnar esta prática.
A prática a partir da qual se deveria poder elaborar o tratado da graça se torna visível na atividade pastoral, nas
celebrações, na vida e no testemunho dos santos (não só os canonizados!), nas instituições, no tipo de relacionamento entre os
cristãos, na ação desenvolvida no mundo, enfim, nos lugares e nas expressões da experiência da graça.
Mas, tudo isso só poderá ser retamente interpretado se a prática da comunidade for continuamente confrontada
com a prática de Jesus e com a compreensão da Igreja desta prática.
Há experiências humanas que são comuns a todos os tempos: a dificuldade em praticar o bem, o sofrimento
injusto, a força do mal, as desavenças entre as pessoas, etc. A teologia da graça sempre teve presente os problemas
existenciais religiosos do homem na vivência da fé.
Na América Latina, a Igreja vivencia a experiência do processo de libertação de um modo específico, embora
haja outras maneiras de viver, tematizar, conceituar e exprimir o processo de libertação. Esta experiência e
compreensão é ponto de referência para uma teologia da graça.
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Aantropologia Teológica
Pecado é tudo o que não cria a comunhão entre os homens, o que a nega, rejeita, dificulta, o que tem o efeito
contrário. É pecado o que tira a liberdade de fazer o que Deus quer, o que cria e mantém estruturas e situações que
impossibilitam a atuação e a expressão da comunhão, da liberdade de querer o que Deus quer.
Na América Latina como um todo, o que mais se opõe ao querer de Deus é a opressão e a exclusão, que geram
pobreza e miséria, desfigurando o pobre. O pecado não está tanto na má distribuição dos bens materiais, ou na
impossibilidade de se garantir a todos as necessidades básicas da vida, mas no fato de que isso acontece porque os homens
rejeitam o projeto de Jesus. O mal está na falta de comunhão, não na falta de bens. A opressão impede de viver a comunhão
para a qual o homem é feito. Os bens materiais e as conquistas dos homens não são valores absolutos, mas “pretexto”
para unir as pessoas. O objetivo não é a auto-realização, mas ter o que partilhar e poder ser “um só”.
A graça na atualidade
(Cf. Boff, 13-46, 60-85, 115-131; Miranda, 9-22)
- a gratuidade, não no sentido de infundado, arbitrário, caprichoso ou expressão de favoritismo, mas no sentido
de natural, espontâneo, desinteressado. Gratuito não se opõe a feito com interesse, mas a feito por interesse,
manipulando ou instrumen-talizando o dom ou o destinatário. O doador toma a iniciativa, dá o primeiro
passo, sai ao encontro, esperando encontrar abertura e disponibilidade. Graça ou de graça é o dom feito a
alguém só para agradar ou para mostrar que o outro é agradável, não, porém, por causa da dignidade ou da
posição dele ou por causa de sua capacidade de corresponder, embora tanto a dignidade seja reconhecida,
como a correspondência desejada;
- a generosidade, liberalidade, abundância, liberdade, por oposição a tudo o que é mesquinho, calculado,
medido;
- o gratuito supõe ou cria encanto, atração, fascínio; é associado ao que dá satisfação, prazer (não o meramente
sensível ou sensual !); produz sensação de plenitude e de enlevo. Pelo dom, o destinatário é valorizado e promovido. O
gratuito ou gracioso não é exatamente o "gratificante", que indica o que preenche expectativas e necessidades
subjetivas.
O dom gratuito as supera e ergue a pessoa a um nível superior de vida. Portanto, a graça supera não só
quantitativamente, mas qualitativamente as expectativas humanas.
Muitos raciocínios e decisões humanas se situam no nível dos direitos e deveres ou do obrigatório e livre. O
conceito de gratuidade, como é assimilado pela graça cristã, se situa em um nível superior, que não ignora os binômios
citados, mas os transcende.
- uso profano (em parte vem do grego e do latim e da experiência humana da gratuidade, em parte
trata-se do sentido cristão secularizado): encanto, fascínio; facilidade natural e momentânea para
realizar algo (o que é imprevisível e fora de regra); o „engraçado‟; favoritismo (o destinatário é
induzido a expressões até de submissão servil; cfr nota na p.16); paternalismo, que cria
dependência;
- uso religioso comum: a graça é concebida e visualizada como uma espécie de fluido, um raio
(laser), uma descarga elétrica; ou então como um tesouro, um capital, uma poupança a ser
17
Aantropologia Teológica
acrescida, como algo que se identifica com o maravilhoso e o surpreendente ou, enfim, como um
auxílio (exterior e secundário), uma “força” para apoiar ou corrigir alguma deficiência humana...
As razões dessa secularização e degeneração são a falta de experiência da graça cristã e as apresentações
inautênticas da mesma, com exemplos e palavras.
- maior fidelidade às fontes da revelação (Bíblia, Padres, liturgia), procurando redes-cobrir as situações, os
problemas, as experiências vitais veiculadas pelo texto e pelas várias interpretações ao longo da história;
- maior atenção à mentalidade, à situação, aos questionamentos do homem contem-porâneo, assim como a
experiência da graça na vida dos cristãos de hoje. Maior abertura para a cultura moderna (personalismo,
sociologia, ecumenismo e outros).
O que dizer da proposta de elaborar o tratado da graça partindo só da nossa experiência hodierna? (Boff, 19).
N.B.: 1- O „engraçado‟ aponta para algo fora de seu lugar normal e habitual, por isso surpreende, mas não nos
envolve, não ofende, nem prejudica nem interpela, enquanto a graça é envolvente e transformadora.
2- A Escritura diz que Deus não faz acepção de pessoas, isto é, não é parcial, não olha para a aparência
externa, não julga pelas aparências (At 10,34; Rm 2,11;Ef 6,9). Por outro lado, ele distribui os seus dons como lhe
apraz.
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Aantropologia Teológica
João Batista ainda atua como um profeta da expectativa do Antigo Testamento, ao anunciar a iminência do
juízo escatológico (Mt 3, 1-12; Mc 1,2-8; Lc 3,1-18).
Com Jesus tudo muda: ele é mais do que o Batista (Mt 11,11), mais do que Jonas (Mt 12,41), mais do que
Moisés (Mt 5,21), mais do que Salomão (Mt 12,42), mais do que o Templo ou o sábado (Mt 12, 6.8). Nesse mais já é
perceptível uma nítida vibração escatológica. Jesus ultrapassa o umbral da expectativa e se situa na esfera do
cumprimento (Mt 5,17; Mc 1,15; Lc 4,21).
A pregação de Jesus se polariza em volta do tema do reino, e se esse é seu tema por excelência, é porque se
trata de algo já atual, é o agora da presença física e tangível de Jesus. Pregação, milagres, curas, exorcismos, o perdão
concedido e não só anunciado, são a demonstração inequívoca da presença do Reino e de sua natureza salvífica (Mt
11,5; Lc 10,18; 11,20;17,20s). A comunidade dos doze discípulos inaugura a comunidade escatológica das doze tribos,
antecipa a plenitude final do povo da aliança. As refeições de Jesus constituem o símbolo e a realização inicial do
banquete messiânico, anúncio que o tempo da salvação já irrompeu.
Essa teoria vale pelo reconhecimento de que ao se pode reduzir o anuncio do Reino feito por Jesus a seu
momento de presença atual. Todavia, ela reduz o próprio Jesus a um profeta do Antigo Testamento, sem o brilho de sua
originalidade que o coloca além do passado.
Certamente, o Reino já está encravado na história em virtude da própria Pessoa de Jesus, com suas ações e
mensagem. Contudo, há ainda uma dimensão futura para essa realidade já operante e presente: sua consumação fica
reservada para um porvir.
Parece que a chave para desvendar essa descontinuidade seja o título de Filho do Homem (Dn 7,13ss). O título,
com seu caráter escatológico, foi usado por Jesus como sua autodesignação. Se o Jesus terreno já é o Filho do Homem –
o Reino já penetrado na história - , isso vale para seu estado de humilhação, impotência (Mt 8,20) e até ignorância (Mc
13,32). Todavia, lhe é reservado um futuro glorioso (Mc 13,26; Mt 10, 32s), e a sorte final da humanidade depende de
sua atitude frente a Jesus (Mc 8,38). Se Jesus pleiteia sua identidade com o Filho do Homem, sua condição terrestre não
manifesta tal identidade gloriosa, guardada pelo segredo messiânico.
A vinda do Filho do Homem profetizada por Daniel desdobra-se em duas etapas: uma manifestação quenótica
(O Filho do Homem veio) e uma majestática (o Filho do Homem virá), e assim, também o Reino se desdobra em dois
tempos: “já está entre vós” (Lc 17,21) e se consumará no porvir. Por isso Jesus ensina os discípulos a rezarem pela
vinda do Reino (Lc 11, 2// Mt 6,10). A parábola do joio (Mt 13,24ss.36ss) promete para o futuro o juízo dos maus,
acabando com a promiscuidade do presente entre bons e maus.
A polêmica de Jesus com os saduceus (Mc 12,18-27) mostra a convicção com a qual tomou partido numa
questão ainda disputada entre os contemporâneos. São numerosas as indicações sobre o destino último de bons e maus.
As imagens do banquete messiânico (Mt 8,11s;22,1-10; Lc 14,16.24), da vida no sentido escatológico (Mc 9,43-48;
10,30), da geena (Mt 5,22; Mc 9,43ss), ratificam os últimos desenvolvimentos da doutrina da retribuição no Antigo
Testamento, que viam na comunhão da vida divina o término da existência terrena. Sem essa perspectiva futura de
juízo, ressurreição, prêmio e castigo, a presença atual do Reino resultaria dificilmente compreensível e convincente.
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Aantropologia Teológica
Alguns críticos contestaram a autenticidade desses textos citados, que todavia não podem ser impugnados. Outros
(Ch.Dodd) rejeitam a autenticidade dos textos sobre a vigilância (Lc 12, 36-40). A parábola das dez virgens (Mt 25,1-
12) também ilustra o dito sobre a incerteza da hora, tão reiterado na tradição sinótica, que não se vê porque não poderia
provir do próprio Jesus. Foi ele mesmo que redobrou seus esforços para inculcar nos seus discípulos o espírito de tensão
expectante com o qual deveriam aguardar o futuro da salvação consumada.
Resumindo: a realidade do Reino, já implantada no agora do ministério de Jesus, está aberta, não concluída; a
promessa cumpriu-se de modo incoativo, não acabado. Seu consumador será seu iniciador e implantador: Jesus Servo
será revelado como o Cristo Senhor, ao mesmo tempo em que desvelará as dimensões totais e definitivas do Reino.
Dessa feita, a escatologia se faz uma função da cristologia. Na lógica da encarnação do Verbo está implicada a
necessária temporalização e periodização do „éschaton‟ (pois o Verbo é o „éschaton‟), e a não menos necessária
escatologização do tempo (pois foi o Verbo-„éschaton‟ que se encarnou). O escatológico se desloca do final para o
centro da história, mas – em contrapartida – torna escatológico o trecho histórico que vai do centro até o final.
Ao que foi exposto opõe-se a teoria da escatologia realizada de Ch.E.Dodd. Segundo ele, a idéia que o Reino
tenha ainda um futuro procede de uma deformação da mensagem original de Jesus. Os tempos futuros empregados pela
linguagem de Jesus teriam somente um sentido simbólico, não real. Somente o quarto evangelho teria mantido o
presentismo original da pregação de Jesus. A Páscoa de Cristo teria sido a manifestação e a consumação definitiva da
Essa teoria é claramente ideológica: assim como Schweitzer declarava inautênticos os textos sobre o presente
do Reino, Dodd declara inautênticos aqueles sobre o futuro do Reino. Além do mais, a postura de Dodd favorece um
cristianismo individualista e intimista, com seus conteúdos espiritualizados e desencarnados, pois é evidente que nem a
humanidade nem a história e nem o mundo assumiram sua forma definitiva. Desaparece a força cósmica e social da fé,
a esperança cristã se vê esvaziada de toda carga profética e de seu potencial crítico frente a história presente,
favorecendo um inócuo conformismo. Que esses perigos sejam reais fica demonstrado pela escatologia existencial de
Bultmann e de alguns de seus discípulos. Como perceberam as teologias políticas, uma esperança que nada tem a ver
com a história que virá, nada pode dizer em e para a história que está acontecendo.
As duas séries de afirmações de Jesus sobre o reino presente e o reino futuro não são incompatíveis, como
pensam alguns críticos, mas formam um quadro escatológico coerente e inédito. A originalidade da escatologia de Jesus
reside nessa tensão entre os dois momentos. Já em Mc 1,15 temos essa tensão entre o agora de „o tempo se cumpriu‟
(πεπλήρφται) e o ainda não do „o Reino está próximo‟ (ήγγικεν). A presença do cumprimento, longe de relaxar a tensão
para o futuro, a reativa. Por sua vez, a proximidade do futuro confirma a atualidade do cumprimento.
A parábola do grão de mostarda (Mc 4,30-32 ) está associada pela fonte Q à do fermento (Mt 13, 31-33 // Lc
13,18-21s). Ambas exemplificam a mesma tese: a continuidade entre um começo real, embora bem modesto, e um final
esplêndido em sua plenitude, uma continuidade como a que existe entre a semeadura e a colheita ainda não presente. De
fato, a semente não é simples preparação para a frutificação, pois já é o fruto em semente.
A parábola da semente que cresce por si mesma (Mc 4,26-28) enfatiza na atitude do agricultor a necessidade da
paciência da espera, mas também a segurança do resultado final, garantido pela atual virtude da própria semente.
Acentua-se a tensão entre o já presente e o que ainda está por vir, junto à postura de tranqüila serenidade frente ao
futuro, baseada no que já está presente.
A parábola da cizânia e a da rede (Mt 13, 24-30; 47-50) ao carregarem o acento sobre a fase final do Reino,
deixam claro que, se o discernimento se dá no fim, é resultado de um crescimento que se dá agora (v. 30).
20
Aantropologia Teológica
O „lógion‟ de Mc 8,38 ensina que o juízo que o Filho do Homem levará a cabo no fim dos tempos se baseia na
atitude que os homens assumem agora diante de Jesus. Os dois julgamentos, o presente e o futuro, implicam-se
mutuamente. De modo análogo, em Mt 25, 31ss a discriminação escatológica sanciona a condição de benditos ou
malditos que os homens adquiriram no presente de suas relações interpessoais.
Portanto, a escatologia dos Sinóticos organiza as duas séries de enunciados escatológicos em um quadro
unitário no qual se articulam, como componentes essenciais e referidos mutuamente, o presente e o futuro do Reino de
Deus.
Para Paulo não há dúvida que com o Cristo se fez presente a plenitude do tempo (Gl 4,4; Ef 1,10). Resulta
sumamente ilustrativa a respeito a contraposição adverbial entre o „então‟ e o „agora‟ (Gl 4,8s; Rm 6,20-22;; Ef 5,8) ou
o uso enfático do „agora‟ (Rm 3,21.26; 5, 11;7,6; 16,26; 2Co 6,2; Ef 3,5; Cl 1,26). O reiterado „agora‟ induz o adjetivo
„novo‟: vida nova (Rm 5,4), nova criação (2 Co 5,17; Gl 6,15), homem novo (Cl 3,10), pois o que era velho passou e
tudo é novo (2 Co 5,17).
Os bens salvíficos não estão justapostos, mas se organizam segundo a dialética do „já‟ e „ainda não‟. O cristão,
embora viva na carne, não caminha segundo a carne (2 Co 10,3; Gl 2,20; Fl 1,22); possui o Espírito, mas como arras
(αρραβών: 2 Co 1,22; 5,5) e primícias (απαρτή: Rm 8,23) da existência própria do „éschaton‟. Por isso “nenhum dom
vos falta [o presente], a vós que esperais [o futuro] a revelação (αποκάλσυις) de nosso Senhor JC” (1 Co 1,7). E ainda
“aquele que iniciou em vós a boa obra [presente] há de levá-la à perfeição [futuro] até o dia de Cristo Jesus” (Fl 1,6).
Assim, como para os Sinóticos, também para Paulo se dá a típica articulação entre presente e futuro em volta
do eixo que a pessoa de Jesus Cristo.
João parece, numa primeira abordagem, ter rompido, em favor do presente, o equilíbrio entre os dois
momentos assinalados. O agora do presente se torna absolutamente hegemônico no quarto evangelho. A vida eterna é
possuída já agora pela fé (3,15s.36; 5,21.24.40; 11,25s; 17,3; etc.), e até acontecimentos típicos do término da história
são antecipados nesse agora: a Parusia (14,3.18-20), a ressurreição (5,25; 11,24s) e o juízo (3,18;12,31). As referências
à esperança somem por completo, e até mesmo o termo ελπίς, ausente do evangelho, aparece uma só vez na carta (1Jo
3,3).
Contudo, há também outros dados no corpus joânico. A primeira carta recupera a dimensão estritamente futura
do „éschaton‟. A Parusia por vir (2,2), a confiança para o dia do juízo (4, 17). No trecho de 3,1-2 aparece claramente a
dialética do já e ainda não, do ser e do manifestar-se: já somos filhos de Deu, mas ainda não se manifestou o que
seremos.
Além do mais, do próprio evangelho emergem passagens referentes à escatologia futura em relação aos
mesmos acontecimentos referidos antes ao presente: a vida eterna (14,2s), a ressurreição (5, 29; 6, 39.40.44.54) e o
juízo (12, 8). É possível que 14,3 se refira ao fim dos tempos como em 1Ts 4,17.
Esses textos futuristas não podem ser interpolações posteriores, mas sem dúvida constituem um aspecto
secundário na compreensão escatológica de João: a acentuação prevalente do „já‟ não induz à supressão do „ainda não‟.
O evangelista demitizou sim toda representação apocalíptica em vista de uma fé atuante no presente, mas não
espiritualizou de modo atemporal essa mesma fé que leva à salvação porque fundada no Verbo que se fez carne na
história da humanidade.
Eis uma questão das mais controvertidas e complicadas na exegese do Novo Testamento.
21
Aantropologia Teológica
Jesus identificou-se com a figura do Filho do Homem e parece ter pensado a sua vinda para uma data próxima,
imaginando um cumprimento dentro em breve do vaticínio de Dn 7. “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel até
que venha o Filho do Homem” (Mt 10,23c). “Estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o
Reino de Deus chegando com poder” (Mc 9,1). “Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com
as nuvens do céu” (Mc 14,62; cf. Mc 13,28-30). Permanece o problema de como Jesus entendia essa proximidade no
horizonte de sua concepção escatológica.
A proximidade em questão não pode ser cronológica, mas deve ter outro sentido. Jesus pode ter se equivocado,
condividindo a mentalidade comum em uma questão que Ele não precisava conhecer com clareza porque a solução não
fazia parte de sua missão salvadora. Entretanto, mais do que um defeito de um conhecimento desnecessário, podemos
conjeturar que ele se exprimisse numa outra concepção do tempo, como podia fazer a partir do mistério de sua
personalidade única. De fato, nele mesmo, alpha e ómega, se alojava uma peculiar e absolutamente inédita vivência da
proximidade atual entre a sua pessoa e o seu anúncio. Trata-se de uma proximidade não cronológica, mas ôntico-
existencial. A experiência da proximidade pessoal se exprimia na linguagem deficiente da proximidade cronológica.
Seu ser já estava de tal forma estruturado pelo „éschaton‟ que se fundia com ele, como aparece na auto-designação de
Uma consideração paralela olha não só para o aspecto qualitativo da personalidade de Jesus, mas também para
a qualidade do próprio Reino de Deus. Se Jesus afirma sua próxima chegada, com isso Ele traduz a idéia de que esse
Reino é pensado pelo Pai em correspondência ao seu desejo de introduzir o quanto antes a criação na comunhão de vida
com Ele. Para isso é necessário que a humanidade assim queira. Deus, por sua parte, oferece o Reino que está próximo,
isto é, ao alcance do homem, se ele quiser. O que por natureza está próximo depende do interesse do homem em realizar
o que é próprio do Reino. Não o fazendo, o Reino retarda, mostrando Deus sua paciência com os pecadores, sua
longanimidade e sua misericórdia, dando mais tempo para os homens.
O Reino ainda pode ser considerado próximo no sentido de ser a etapa definitiva que inicia a consumação final,
onde estão presentes embrionariamente todas as virtualidades que irão se manifestar no „éschaton‟ da história
econômica da salvação. Essa consumação, portanto, é realmente só questão de tempo, mas sua realização já está
decidida e iniciada de maneira irreversível. O fim está próximo equivale, assim, a estar garantido, determinado de modo
inevitável. Mesmo não concluído, o fim já começou, não estamos mais na preparação ou nos antecedentes do fim.
Dito isso, devem ser ponderados textos nos quais o elemento cronológico desemboca numa singular
elasticidade do tempo de espera. Jesus lembra que Deus pode tanto prolongar como abreviar esse tempo (Mt 24,22).
Numa economia de graça e não de julgamento, Deus pode abreviar o tempo em benefício dos eleitos, como pode
prolongá-lo para dar novas oportunidades para a conversão dos pecadores. Junto à petição do “Venha o teu Reino”, o
discípulo é exortado à paciência (Mc 13,7.13.21-23).
Jesus recusou-se a responder à pergunta – tão importante no clima apocalíptico da época – sobre a data da
Parusia (Mc 13,32). Em Lc 17,20 não se trata tanto da previsão de uma data precisa, mas da possibilidade de perceber a
vinda do Reino através de fenômenos claramente observáveis: “A vinda do Reino de Deus não é observável” = não vem
de acordo com observações prognosticáveis (o substantivo „παρατήρησις‟ era usado para a observação dos astros ou
para o reconhecimento crítico de fenômenos claramente identificáveis). Jesus não quer instruir sobre o fim iminente,
mas quer lançar seu apelo dimensionado na perspectiva do fim, da realização plena do Reino. A opinião que Jesus podia
ter em seu saber humano sobre a extensão do prazo não era uma definição autoritativa, pois a única autoridade por ele
reconhecida nesse assunto era o Pai.
Há textos que insistem na incerteza do momento da consumação do Reino (Mc 13, 33.35.37; Mt 24,42; 25,13;
Lc 12,40), metaforicamente expressa com a imagem do ladrão que não envia aviso prévio (Mt 24,43; Lc 12,39). Daí
que a atitude específica da comunidade escatológica é a vigilância sem desfalecimento (γρηγορέφ) da qual decorre uma
ética exigente e a postura de uma confiante e ardente expectativa (Mt 24,42; 25,13; 26,41 // Mc 14,38; Mc 13, 35.37; Lc
12,37).
Jesus previu certamente um tempo intermédio entre a Páscoa e a Parusia. Para confirmação ulterior lembremos
a formação dos discípulos, as instruções sobre o comportamento deles no mundo, o envio missionário deles manifestam
a consciência de Jesus a respeito de um fim posterior à sua morte.Assim também as afirmações de Mc 2,19s e 14,7. Se
o entretempo prolongou-se além do previsto por Jesus, a estrutura de sua concepção não fica por isso modificada.
22
Aantropologia Teológica
a) A Parusia é esperado para logo (1Ts 4,15-17; 1Co 7,29;15, 51; Rm 13,11. Daí a fervorosa invocação do
„maranatha‟ (1 Co 16,22).
b) Relativização deliberada desse cálculo estimativo (1Ts 5, 1s.4; 2 Ts 2,2ss; 2 Pd 3,10; Ap 3,3; 16,15). Note-
se o uso freqüente da imagem do ladrão proveniente de Jesus.
c) O dado mais relevante é a presença do tema em textos tardios, quando não se podia mais esperar a Parusia
dentro da primeira geração que já falecera. Surpreendentemente, a linguagem da proximidade não só não desaparece,
mas é usada com toda a naturalidade e com freqüência.
A partir da carta aos Romanos Paulo, seguido dos outros, não fala mais do fim dentro da sua geração, mas
continua tratando da esperança da Parusia em termos de proximidade (Fl 4,5; 1 Tm 4,1; 2 Tm 3,1; Tt 2,12s; 1 Pd 4,7;
Hb 10,25.37; Tg 5, 7-9; 1 Jo 2,18; Ap 1,1; 2,16; 6,11; 22,6s.20).
Portanto, a idéia da proximidade, plasmada em 1Ts, 1Co e Rm com um óbvio sentido de proximidade
Além do mais, a pessoa esperada pela comunidade não é alguém ausente, mas sim bem presente no meio dela,
na celebração eucarística, no rosto dos irmãos, na proclamação da Palavra. O esperado está próximo, não longe.
A comunidade teve que absorver a dilação da Parusia, esperada para a primeira geração cristã, sem demonstrar
absolutamente sinais de rejeição. 2 Pd 3 confirma que o alargamento, mesmo indefinido, do prazo de espera não acabou
com a esperança parusíaca, pois esta se manteve viva. Nos textos citados não há o menor sinal de grave decepção por
causa do adiamento (somente 2Pd 3 e talvez Jo 21,23 poderiam insinuar algo disso). Assim foi, porque o dado
cronológico não pertencia à essência da esperança. De outra forma, a comunidade não teria sobrevivido à ruína do que
teria representado sua convicção fundamental; muito menos teria sobrevivido sem renunciar nem à sua atitude de
expectativa, nem a formular tal atitude com a categoria da proximidade.
A adaptação não traumática às novas circunstâncias da espera foi possível porque a pregação escatológica de
Jesus já subministrara recursos suficientes para efetuar com êxito tal operação, para reconverter a proximidade
cronológica (quantitativa) em proximidade teológica (qualitativa) e trocar a dilação em dilatação do prazo.
“Vós sereis o meu povo; Eu serei vosso Deus”. Foi essa a célula geradora da promessa no Antigo Testamento:
a mútua pertença entre Deus e o seu povo, a recíproca comunidade de vida. Pois bem, a encarnação do Filho de Deus
cumpre esse propósito da maneira mais generosa possível, mas também da forma mais inesperada. Coerente com a
peculiaridade única desse cumprimento surge um novo modo de compreender o escatológico e um novo estilo de viver
a esperança.
O acontecimento escatológico perfurou a história para enriquecê-la por dentro e pilotá-la até a meta. O
„éschaton‟ implanta-se com a encarnação, vida , mote e ressurreição de Jesus, e desenrola num arco temporal de
duração indeterminada, mas que pode ser denominado „a última hora‟, „os últimos dias‟, „o novo eon‟, e se consuma
com a Parusia do Senhor ressuscitado.
Quando proclamamos o Credo confessamos que o processo histórico no qual estamos inseridos culminará com
um acontecimento salvador que afetará a totalidade do real. Nesse ponto ómega da história o Cristo Senhor virá para
consumar o que tinha sido iniciado com o ponto alpha ao qual se refere o primeiro artigo do Credo. Então a realidade
criada alcançará sua cabal estatura. Então, toda a criação conhecerá a sua páscoa, a passagem da existência provisória
para a definitiva. Foi para isso que o Cristo ressuscitou, colocando o germe do „eschaton‟ na humanidade e no mundo
que não podem não ser conduzidos para a consumação que foi desde então iniciada.
23
Aantropologia Teológica
- A Parusia
Пαροσσία ( do verbo πάρειμι, estar presente ou chegar) é empregado em grego tanto para referir-se à descida
ou manifestação de pessoas divinas na terra, como para as visitas que reis e príncipes fazem nas cidades submetidas ao
seu império. Em ambos os casos, trata-se de uma manifestação triunfal, de uma exposição de poder num clima solene,
jubiloso e festivo. Na época imperial a parusia do César podia dar lugar a uma nova era, uma virada na história da
cidade; o imperador era saudado como senhor e salvador. A visita era aguardada com ansiedade, pois se espera a
concessão de benefícios excepcionais.
O termo é praticamente desconhecido no Antigo Testamento, nos LXX e no judaísmo (Contudo, cf. o tema da
“visita de Deus” no AT). No Novo Testamento recorre 24 vezes para indicar em geral o advento glorioso de Cristo no
fim dos tempos, mas também a manifestação de Satanás (2 Ts 2,9), ou a chegada de alguém esperado (1Co 16,17; 2 Co
7,6s; 10,10).
1 Ts 4, 13-18 constitui a descrição mais direta e completa da Parusia quanto ao emprego dos rasgos típicos da
apocalíptica judaica. Mas é em 1Co 15 que é manifesta a inseparabilidade da Parusia com respeito aos demais
elementos integrantes do „éschaton‟: a vinda de Cristo (v.23), a ressurreição dos mortos (tema do capítulo), o
julgamento que comporta a derrota dos inimigos (v.24-26), o fim (télos) do mundo presente (v.24) e a nova criação,
quando Deus será tudo em todos (v.28).
Conexão da Parusia com o fim do mundo: Mt 24, 3.27.37.39; 1Ts 2,19; 3,13; 2 Ts 2, 1.8; 2 Pd 3, 4.12. Neste
último o fim do mundo presente é seguido de uma nova criação.
Conexão entre Parusia e julgamento: 1 Ts 5,23; Tg 5,7s; 1 Jo 2,28.
- O Dia do Senhor
1Ts 5,2; 2 Ts 2,2; 1Co 5,5. Lemos variantes em 1 Co 1,8; 2 Co 1,14; Fl 1,10; 2,16. Simplesmente “O Dia‟ em 1
Co 3,13; Rm 2,16; 2 Tm 1,18; 4,8.
A origem é evidente: trata-se de uma transposição cristológica de “O Dia de Javé” (Lc 17,24; Jo 8,56; cf. Am
5,18 BJ). É um claro sinal de continuidade da esperança do Antigo Testamento na novidade cristológica.
A expressão acentua o aspecto do julgamento: 1Co, 8; 3,13; 5,5; Fl 1,10; 2,16; 2 Tm 1,8...; a consumação da
obra iniciada: Fl 1,6; 2 Tm 4,8...; a manifestação triunfal: Lc 17,24, digna de ser aguardada com gozosa expectação: 2
Co 1,14; Rm 13,12; Hb 10,25.
Temos nos Sinóticos uma variante da expressão: “A vinda do Filho do Homem”: Mc 13,26; 14,62; M 10,23;
16,27; 24,44; 25,31; Lc 12,40; 18,8. A origem em Dn 7 é evidente. Associada à expressão temos a idéia do julgamento,
mas também o caráter majestático da Vinda, enquanto manifestação de poder e glória, numa cenografia com cortejo de
anjos e nuvens.
Desses textos deduz-se também que não pode ter sido Paulo o introdutor do termo e da idéia da Parusia sob o
influxo do helenismo, pois ambos derivam da tradição pré-sinótica, até mesmo da fonte Q.
O termo epifania (επιυάνεια: aparição, manifestação) é próprio das cartas pastorais, onde não encontramos o
termo parusia. No helenismo trata-se de dois termos de significado e uso muito próximos. Epifania é usado para referir-
se às manifestações das divindades pagãs, a personagens reais que se apresentam como revelação dessas divindades, ao
imperador cultuado como senhor, deus, salvador e com o título de „epífanes‟ (επίυανης). A epifania deste último pode
ser reconhecida na data do nascimento, no começo do seu mandato imperial ou na visita a uma das suas cidades.
24
Aantropologia Teológica
Nas cartas pastorais a epifania diz respeito indistintamente (e nisso é diferente de parusia) à primeira aparição
histórica de Cristo, encarnação e subseqüente existência terrena (2 Tm 1,10; com a forma verbal no aoristo, επευάνη: Tt
2,11; 3,4), ou a Vinda última (1 Tm 6,14; 2 Tm 4,1.8; Tt 2,13). Essa ambivalência do termo (clara em Tt 2, 11.13)
constitui o pressuposto da distinção patrística a respeito da dupla vinda do Senhor, e insinua o caráter escatológico do
tempo, do nascimento até a última manifestação.
A nota de expectativa gozosa continua sendo dominante, qualificada em Tt 2,13 de “feliz esperança”. A
continuidade entre „parusia‟ e „epifania‟ aparece claramente em 2 Ts 2,8 com o emprego dos dois termos. Já o grego
dos LXX designava freqüentemente como „epifania‟ a teofania de Javé.
Os outros dois termos do título podem ser vistos como variantes de „epifania‟: o substantivo αποκάλσυις
(revelação) e o verbo υανερόφ (manifestar-se). Apocalipse aparece em 1 Co 1,7 como objeto da esperança cristã, como
sinônimo do dia do Senhor do v.8. O mesmo sentido em 1 Pd 1,7.13; 4,13; o verbo correspondente em 1 Pd 1,5; 5,1.
Neste último o autor da carta se define como quem „participa da glória que está para revelar-se‟, cuja existência terrena
está impregnada pela esperança da glória da parusia.
O verbo „υανερόφ‟ associa Cristo ao discípulo: Cl 3,3s e 1 Jo 2,28; 3, 1-3 lembram a associação entre a
manifestação do Cristo glorioso e a manifestação da graça do Espírito presente e atuante no coração dos discípulos. Se
Na concepção original da fé cristã a comunidade vive irresistivelmente atraída pela esperança na realização do
Reino pela vinda de Cristo. Essa gravitação escatológica impregna todas as manifestações vitais da Igreja.
A eucaristia é celebrada como memorial do Cristo „até que ele venha‟ (1 Co 11,26; At 2,46), como é sugerido
pelos relatos da instituição (Mt 26,29; Mc 14,25; Lc 22, 16-18). É provável que nesse culto ressoasse o „marana tha‟
(vem, Senhor) (1 Co 6,22; Ap 22,20). A celebração eucarística era vista como uma antecipação mística do Reino de
Deus, pois nela se produz já algo do que será realidade permanente no fim dos tempos. Como o Senhor veio na
eucaristia, respondendo à oração sacramental, virá do mesmo modo no final da história, respondendo à invocação da
Igreja que anela sua presença gloriosa e manifesta. O banquete eucarístico é antegozo do banquete das núpcias do
Cordeiro.
Na forma „maran atha‟ (o Senhor vem) temos uma confissão de fé, mas dentro de um marco igualmente
cultual. Em 1 Ts 1,9s aparece uma esperança que, além de ser objeto de fé, foi o motivo que convenceu os
tessalonicenses a se converterem dos ídolos.
Na comunidade primitiva a ética tinha caráter escatológico. O comportamento do cristão no mundo é orientado
pela esperança da Parusia (1Ts 5, 4-8; Rm 13,11-14). A esperança define a existência cristã: “convertidos para servir e
esperar” (1Ts 1,9s), para “viver na espera” (Tt 2,11-13). Esperar é também estar preparado e preparar-se para a Vinda,
pois é algo que é querido e não só conhecido. Nesse sentido é tudo o que se tem a fazer entre o batismo e a glória.
Ora, a espera é longa e demorada, como também incerto o momento e incerta a circunstância. Daí podem
surgir o tédio, o cansaço, o desconforto, o aborrecimento, a indiferença, o sono. Ora, manter viva a atitude de espera é
vigiar (γρηγορέφ: Mt 24,42s; 25,13s; 26,41 // Mc 14,38; 1Ts 5,6; 1Co 16,13; Ap 3,2.3; 16,15), estar desperto, atento,
em prontidão, com o espírito lúcido para não afrouxar a tensão da espera. A vigilância vai unida à oração (Cl 4,2),
exercício que mantém lúcida a consciência, alimenta a espera, ocupa a mente com a realidade que esperamos, e a
sobriedade (1Ts 5, 6-8; Rm 13,13; 1Pd 5, 8), renúncia a tudo o que pode prender às satisfações do momento presente,
fechando no benefício imediato, tornando pesada a alma por causa da intemperança, abafando a tensão para o futuro da
promessa, cedendo ao desejo de se distrair durante a longa espera. Essa renúncia e sobriedade não são baseadas na
maldade das coisas terrenas, nem na necessidade de reparar pecados, mas na atenção àquilo que se ama e que se quer
que aconteça, porque se sabe que Deus prometeu e garantiu que vai acontecer.
Como o sono é próprio da noite e para enxergar precisamos da luz, então as obras da esperança são obras da
luz e do dia (1Ts 5,4-8; Rm 13,11-14). Por outro lado, esperar o Dia é como a esperança do vigia que espera pela aurora
(Sl 130, 6s; 37,9.34), noite iluminada pela lâmpada da fé (Mt 25, 1-13) e o pela caridade ativa (1Co 16, 13s; Rm 15,5-
7).
25
Aantropologia Teológica
O perigo do afrouxamento da esperança pela demora e pelas sugestões contrárias do mundo impõe a
necessidade da firmeza na fé, da perseverança e da coragem (At 14,22; 1Ts 3,8; 1 Co 15,58; 16,13; Ef 6,10; Cl 1,23;
2,7; Fl 4,1; 2Tm 1, 7s; 3,12; 1Pd 5, 8s).
A σπομονή (1Ts 1,3; 2Co 1,6; 6,4; 12,12; Rm 8,25; 12,12; 15,4.5; 2Tm 2, 9-13; Hb 10,32.36; 12,1.2.3.7; Tg
1,12; 5,11; Ap 1,9) indica a paciência, a constância, a persistência, a capacidade de suportação, a perseverança numa
existência em tensão de espera demorada e acometida por perigos, pressões e assaltos dos que querem extinguir a
chama da fé (Mc 13,13; Mt 10,22; 24,13: é a perseverança na luta, não na vitória já alcançada). Esse é o modo de se
viver a cruz de Cristo (Hb 12,1-4). A perseverança é o imperativo que supõe o indicativo do Deus da esperança (2 Ts
3,5; Rm 15,5; Cl 1,11s; Fl 4,13). A „upomoné‟ é tão típica da existência cristã, que com freqüência está associada à fé e
à caridade, como um sinônimo da esperança (1Tm 6,11; 2Tm 3,10; Tt 2,2; Ap 2,19), ou com uma das duas. Temos aqui
uma extensão do tema do permanecer em Cristo (μένειν) do evangelho de João.
A índole escatológica da ética cristã poderia favorecer um descomprometimento com o mundo. O texto de 1
Co 7, 29-31 parece ser um convite para abandonar as tarefas e deveres temporais. Assim foi entendido por alguns. Daí
a reação de 2Ts 3, 6-12 lembrando o dever do trabalho. Contudo, o que o trecho de coríntios quer inculcar é a
relativização dos valores intra-mundanos, uma libertação do peso das realidades presentes sem perspectiva de futuro
maior.
Leitura complementar
Em nosso século a teologia tem alcançado triunfos com raros paralelos no passado. São muitos e geniais os que
cultivam, inúmeras as publicações; as discussões teológicas despertam interesse universal. Jamais na história do
cristianismo se falou e se escreveu tanto sobre teologia como nos últimos tempos.
Graças a este fulgurante renascer, a teologia saiu do isolamento em que por tantos séculos permanecera
aprisionada, para tornar-se matéria acessível a todos, disciplina pública; desceu às praças, entrando nas casas e nas
escolas; transformou-se em assunto de conversação comum quase tanto quanto a política e o esporte.
Pode-se falar do homem, e de fato dele se fala, sob muitos pontos de vista: filosófico, psicológico, médico,
sociológico... O termo “antropologia” tornou-se em muitos casos um termo equívoco. É evidente que a palavra nos
remete ao homem, nos mostra que ele é o objeto material de nosso estudo. Mas isso não basta; precisamos deixar claro,
e isso sem dúvida é muito importante, o ponto de vista a partir do qual procuramos abordá-lo. O adjetivo “teológica”
diz-nos qual é esse ponto de vista: trata-se do que o homem é em sua relação com o Deus Uno e Trino revelado em
Cristo. Ao mesmo tempo, indica-nos, pelo menos em linhas gerais, o método que precisamos seguir para alcançar o
objetivo: o estudo da revelação cristã.
Jesus Cristo é, com efeito, o revelador do Pai. Quando na teologia cristã, se fala de revelação, é Deus que se dá
a conhecer. Em outros volumes desta coleção, essa questão, que podemos fundamentalmente pressupor conhecida, é
abordada de modo mais direto. Devemos responder a uma outra pergunta: se é Deus quem se revela em seu Filho Jesus,
que sentido tem falar do que a revelação cristã nos diz sobre o homem? É evidente que ele é o destinatário da revelação.
Como pode então ser seu objeto? Num texto de capital importância, o Concílio Vaticano II disse que Cristo, ao revelar
o mistério do Pai e de seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e lhe faz conhecer sua altíssima
vocação. Enquanto destinatário da revelação, o homem é objeto dessa revelação. Enquanto destinatário da revelação, o
homem é objeto dessa revelação. Enquanto destinatário do amor do Pai, chega a conhecer até as últimas consequências
quem é ele mesmo. A verdade revelada é verdade de salvação. É justamente essa verdade que nos diz quem é o homem,
fazendo-nos conhecer ao que ele é chamado; precisamos pressupor uma coerência fundamental entre nosso ser e nosso
destino se não queremos que este último apareça como algo meramente exterior a nós mesmos, que não nos realiza
interiormente. Enquanto destinatário da revelação salvífica, o homem é também consequentemente, de modo derivado,
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Aantropologia Teológica
objeto dessa revelação. Deste ponto de vista, a denominação “antropologia teológica” se justifica. Também por isso se
explica a pretensão que o cristianismo tem de oferecer uma visão original do homem, conhecida na fé e por isso objeto
de estudo teológico. Essa visão deriva do que a fé nos diz sobre Deus e sobre seu Filho Jesus Cristo, que se fez homem
por nós.
A própria revelação cristã, que nos fala de Jesus Cristo como o Filho de Deus encarnado e de nosso encontro
com Ele na fé, pressupõe um conhecimento e uma experiência do que significa ser homem como sujeito livre e
responsável por si mesmo. Do contrário não poderemos ter acesso a Jesus, nem ao mistério de sua encarnação. Por isso,
a revelação cristã não pretende de modo algum ser a única fonte de conhecimentos sobre o homem. Antes, pressupõe
expressamente o contrário. Sem perder nada da especificidade teológica, a reflexão cristã sobre o homem deve
enriquecer-se com os dados e as intuições provenientes da filosofia e das ciências humanas. Todos esses conteúdos,
porém, devem ser considerados sob uma luz nova e mais profunda: a luz da relação do homem com Deus. Esta é a
dimensão última e mais profunda do ser humano, a única que nos dá a medida exata do que somos: o objeto
privilegiado do amor de Deus, a única criatura da terra que Deus quis por si mesma, e que, no mais profundo de seu ser,
foi chamada à comunhão de vida com o próprio Deus Uno e Trino.
Essa relação com Deus, sempre mediada por Cristo, que a revelação nos faz conhecer apresenta-se a nós de
forma articulada, não simplesmente de um modo global em que não se dá a possibilidade de distinguir aspectos e pontos
1. A dimensão mais própria e específica da antropologia teológica é a que se refere à relação de amor e de
paternidade que Deus quer estabelecer com todos os homens em Jesus Cristo, seu Filho. “Pela graça”, por um favor
divino, o homem foi chamado à filiação divina, a participar, no Santo Espírito Santo, dessa relação que é própria
somente de Jesus. Esta é a vocação definitiva e última do homem e de cada homem, a vocação divina. Somos amados
por Deus em seu Filho e somos chamados a participar plenamente de sua vida no dos tempos.
2. Esse chamado e essa “graça”, porém, pressupõe nossa existência como criaturas livres. Não temos em nós a
última razão de ser da nossa existência. Existimos porque esse dom nos foi dado, pela bondade de Deus, que livremente
quer dar-nos o ser. É claro que Deus nos criou para poder chamar-nos à graça da comunhão com Ele. Mas isso não
significa que nosso ser de criaturas não tenha consistência própria, sempre em total referência a Deus, do qual
recebemos tudo. Pelo contrário, essa consistência é necessária para que o chamado, dirigido a nós mesmos, possa
realizar-se. Por outro lado, a condição de criatura do homem não foi conhecida pela primeira vez em Cristo, mas já era
suficientemente clara no Antigo Testamento, conhecem-na também outras religiões que se inspiram pelo menos em
parte neste último (o Islã), e inicialmente poderia ser até conhecida filosoficamente. Por que, então, tal dimensão de
criatura deve ser estudada pela teologia cristã? Não poderia ser considerada um dado prévio, já sabido? Não podemos
contentar-nos com isso, porque a perspectiva a partir da qual, na teologia, se deve estudar a criação e, por conseguinte, a
condição de criatura do homem é nova, é assinada por Cristo desde o primeiro momento. Não existe outro homem
senão aquele que, desde o primeiro momento, foi criado à imagem e semelhança de Deus; e tudo foi criado por meio de
Cristo e caminha para Ele. A condição de criatura do homem é um determinante fundamental e total de seu ser e deve
ser teologicamente considerado em sua própria consistência, enquanto de fato orientado para a comunhão pessoal com
Deus de que é, ao mesmo tempo, o pressuposto necessário.
3. Em terceiro lugar, o homem criado por Deus e chamado à comunhão com Ele encontra-se sempre (mesmo
que em medidas diferentes, de acordo com as circunstâncias) sob o signo do pecado, da infidelidade a Deus, sua própria
e dos outros. O amor de Deus que nos criou e quer fazer de nós os seus filhos não encontrou no homem uma resposta
adequada de acolhida, mas, desde o inicio, encontrou não só a indiferença, mas até a rejeição. A antropologia teológica
deve considerar o homem em seu ser pecador, deve ocupar-se sobretudo do que a tradição teológica chama de “pecado
original”.
Contemplar o homem em sua relação com Deus, partindo de qualquer um desses três pontos de vista, não
significa considerá-lo isolado da humanidade e da relação com os outros. Por sua própria condição de criatura, o
homem é chamado a viver em sociedade. O pecado original é uma eloquente demonstração, mesmo em sentido
negativo, da solidariedade humana. Enfim, a graça e o favor de Deus são vividos e experimentados sobretudo na Igreja.
Além disso, é importante ressaltar que essas três dimensões que definem nossa relação com Deus não podem
ser postas no mesmo plano. Não seria de todo correto apenas enumerá-las, sem fornecer alguma explicação. As duas
primeiras são de ordem positiva, referem-se a constituição do homem, ao plano de Deus para ele. A terceira dimensão é
acrescentada historicamente e, além disso, é de ordem negativa, algo que não deveria existir, que é destrutivo do ser do
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Aantropologia Teológica
homem. Trata-se, porém, de uma dimensão real, que pertence existencialmente à nossa condição humana e, portanto,
não pode ser deixada de lado. Não teríamos uma visão completa de nossa relação com Deus se não a levássemos em
conta. Pelo contrário, nossa própria consideração do homem como “agraciado” por Deus e objeto de seu amor seria
insuficiente sem ela, porque, segundo o Novo Testamento, um aspecto essencial do amor de Deus manifestado em
Cristo é justamente o perdão misericordioso, a acolhida do pecador, sua “justificação”.
Não é necessário insistir no fato de que essas três dimensões ou aspectos fundamentais de nossa relação com
Deus não se referem a três homens, mas a um só. Será mais útil observar que tampouco nos encontramos diante de três
etapas sucessivas, que podem ser delimitadas cronologicamente, destinadas simplesmente a ser superadas uma após a
outra no caminho da vida pessoal ou da história da salvação. É evidente, pelo menos, que nossa condição de criaturas é
um dado permanente; deixar de ser criatura significa voltar ao nada. São mais complexas as relações entre a graça e o
pecado. Aqui devemos assinalar desde o início um ponto fixo de mudança, tanto na “historia salutis” como na vida de
cada homem. Com sua morte e ressurreição, Cristo venceu o pecado e a
morte, e nossa inserção nEle mediante o batismo é um acontecimento decisivo na história pessoal de cada cristão. Não
podemos dizer, porém, que, até a vinda de Cristo ao mundo, não houvesse graça, nem que a vontade salvífica universal
de Deus não abarcasse os que viveram até então, como tampouco podemos dizer que o pecado e suas consequências
tenham sido eliminados totalmente depois da Páscoa, ou que desapareçam completamente no homem depois de seu
batismo. A experiência cotidiana mostra-nos o contrário: a história do pecado continua no mundo, e no homem
O estudo do homem do ponto de vista da relação com Deus, articulado do modo exposto brevemente, constitui
o objeto fundamental da antropologia teológica. A reflexão sobre a criação em geral, mesmo se a rigor poderia ser feita
em outro contexto, encontra-se em intima relação com a antropologia; essa ligação já aparece nos primeiros capítulos
do Gênesis. Por isso, parece apropriado, e assim se costuma fazer nos manuais e no ensinamento, incluir no quadro da
nossa disciplina também o estudo desse problema. E assim se faz tradicionalmente, como veremos no parágrafo
seguinte.
A existência cristã na fé, na esperança e na caridade – as virtudes teológicas – é também parte integrante da
antropologia teológica. Dadas as dimensões deste livro, não poderemos dedicar uma atenção especifica a esse ponto,
mas vamos considerá-lo sobretudo quando abordamos a história dos tratados que nos interessam.
Também a escatologia, por fim, se relaciona com a antropologia teológica. É o estado de plenitude da
humanidade agraciada por Deus. Também nos ocuparemos dela, mas as mesmo tempo que as ligações com a
antropologia é preciso evidenciar os laços que ela tem com a cristologia e a eclesiologia.
BIBLIOGRAFIA
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Aantropologia Teológica
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