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51-70, 2009 51
Eurídice Figueiredo
RESUMO
Introdução
D
urante o século XIX muitos afro-brasileiros retornaram à África,
sobretudo para a região do Golfo do Benin (Benin, Nigéria, Togo,
Gana). Alguns foram deportados depois da Revolta dos Malês (Bahia,
1835), mas a maioria retornou por vontade própria. Eram pessoas livres, dinâ-
micas, que se instalaram na África e aí criaram uma comunidade de “Brasileiros”,
também chamados de “Agudás” ou “Amarôs” na Nigéria, no Benin, no Togo
e de “Tabom” em Gana.
52 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
Os Agudás
3
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos dos séculos XVII a XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. Salvador:Corrupio, 2002. p. 633.
4
Tradução minha. Os textos teóricos são traduzidos diretamente no corpo do texto, sem
citação do original.CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert
Laffont, 1984. Le livre de Poche. t.2, p. 48.
5
Sarôs (ou Salôs), segundo Gonçalves (2007, p. 776), é uma corruptela de Serra Leoa. O
termo designava os africanos que seriam levados como escravos para o Brasil ou Cuba;
libertados pelos ingleses em pleno mar foram instalados em Serra Leoa. Muitos deles
acabaram indo depois para Lagos (Nigéria). O marido de Kehinde na África é um Sarô.
54 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
Les métis étaient bien plus arrogants que les Blancs car ils vou-
laient faire oublier leur moitié de sang noir. Quant aux ”Saros”
et aux ”Brésiliens” , les premiers calquaient leur comportement
sur celui des Anglais et méprisaient les seconds à cause de leur
ancien état servile. Mais les deux groupes abominaient les au-
tochtones de la même manière et avaient partie liée avec les
métis et les Blancs6.
[Os mestiços eram mais arrogantes que os brancos pois queriam
fazer esquecer sua metade de sangue negro. Quanto aos “Sarôs”
e aos “Brasileiros”, os primeiros calcavam seu comportamento
no dos ingleses e desprezavam os últimos por causa de seu anti-
go estado servil. Mas os dois grupos abominavam os autóctones
da mesma maneira e se associavam aos mestiços e aos brancos].
Há uma inadaptação pois “se eles cultivavam o seu particularismo afri-
cano no Brasil, por outro lado foi um apego aos costumes e hábitos adqui-
ridos neste país que eles fizeram questão de manter quando de volta à costa
africana”7. Este é o caso de Kehinde que, apesar de ter fugido do batismo,
acaba recebendo o nome cristão de Luísa, usado quando lhe é conveniente.
Ela, que sempre fez questão de preservar seus deuses e seu nome africano, ao
ter filhos na África prefere dar-lhes nomes portugueses e cristãos. Segundo
Gilberto Freyre, estes retornados já estavam bastante mestiçados.
6
CONDÉ, Op. Cit. p. 198.
7
VERGER, Op. Cit, p. 632.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 55
Por mais paradoxal que possa parecer esta situação, o desejo de retor-
no, ao ser satisfeito, não desencadeia necessariamente nem readapatação nem
bem-estar. Segundo Edouard Glissant, a “primeira pulsão de uma população
transplantada (...) é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve
mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação” (GLISSANT,
1981, p. 30). Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade, pode-se
transformar em frustração e revolta porque o transplantado, como bem perce-
beu Freyre, já estava hibridizado, mestiçado. Ou, nos termos glissantianos, ele
já entrara em Relação com o Outro, crioulizando-se.
Os autores destes romances retratam esta comunidade mostrando a
transformação que ela opera na região e, mais particularmente, na cidade
de Lagos, com a construção de sobrados e igrejas, com suas escolas católi-
cas, suas festas e seus costumes. As protagonistas são o motor da história:
elas conseguem contratar marcineiros e pedreiros brasileiros para construir
sobrados como os da Bahia, começam a fazer comércio com o Brasil, expor-
tando dendê e importando açúcar, carne seca e fumo. Elas circulam bastante
pela região, indo da Nigéria ao Benin e ao Togo; aprendem várias línguas a
fim de poder se comunicar com os diferentes colonizadores implantados na
região e com as várias etnias africanas. Enviam os filhos para continuar os
estudos na Europa.
Se Ana Maria Gonçalves descreve a África a partir de pesquisa livresca, Ma-
ryse Condé, que se casou com o ator Mamadou Condé (da Guiné), viveu gran-
de parte das décadas de 1960/1970 na Guiné, em Gana e no Senegal, e Antonio
Olinto, que trabalhou como diplomata na Nigéria nos anos 1960, conheceram,
na costa ocidental africana, a comunidade dos Brasileiros, que conserva até hoje
a memória de seus ancestrais retornados, comemorando festas brasileiras como
o bumba-meu-boi (ou burrinha), a festa do senhor do Bonfim e outras.
Para criar a Mariana, Olinto inspirou-se em uma mulher idosa que lá
encontrou, Romana da Conceição, que realizou o sonho de vir passear no
Brasil em 1963 (OLINTO, 1980). O fato de Maryse Condé ter usado o
nome de Romana talvez não seja uma coincidência. O poço da casa de Ma-
riana foi calcado no fato de o primeiro poço de água em Lagos ter sido
perfurado por um retornado brasileiro, João Esan da Rocha. A chegada de
Mariana, em que todos desembarcam nus, foi inspirado no caso acontecido
em 1899 com Romana da Conceição, que viajou com a família no pata-
56 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
cho Aliança, no qual haviam morrido pessoas com febre amarela durante a
travessia. As autoridades britânicas forçaram o navio a ficar em quarentena.
Romana contou isto a Antonio Olinto: “Com receio da doença, os ingleses
tomaram tudo o que a gente possuía. Descemos em Lagos enrolados nuns
panos que não eram nossos”8.
Nos três romances se faz referência ao brasileiro Francisco Félix de Sou-
za (1754?-1849), o Xaxá (ou Chachá), a figura mais importante do Daomé
depois do rei Guezo. Filho de um português traficante de escravos, nasceu
em Salvador de uma mãe negra ou indígena. Começou a negociar e acabou
fixando residência em Uidá no final do século XVIII. Trabalhou no Forte São
João d’Ajuda; com a saída dos portugueses, passou a comandar o forte e, por
extensão, a cidade de Uidá, que se tornou o mais ativo entreposto de embar-
que de escravos para Brasil e Cuba. Era o mais rico comerciante e traficante
de escravos do Daomé. Fez pacto de sangue com o rei Guezo, a quem ajudou
a derrubar seu predecessor, o rei Adandozan. Ele era um ponto de referência
para os Agudás. Inspirou obras literárias como O vice-rei de Uidá, de Bruce Cha-
twin (1940-1989), O último negreiro, de Miguel Real (1953-). O primogênito
de seus descendentes conserva até hoje o título de Xaxá.
O sincretismo religioso aparece tanto na Bahia quanto na África9. Ca-
tólicas e praticantes do candomblé, Mariana e Kehinde não deixam de fazer
suas devoções aos orixás. Às vésperas da eleição de seu filho, Mariana lhe diz:
“Pedi a Xangô que tudo saísse bem. A Xangô e ao Divino Espírito Santo”.10
Já Romana é mais profundamente católica e intransigente, o que não a im-
pede de ir procurar um pai-de-santo quando está muito necessitada; por
sua austeridade, ela tem mais conflitos religiosos que as protagonistas dos
romances brasileiros. Diante de suas desventuras, ela se indaga se os orixás
a estariam punindo por ela ter abandonado seu nome Ayodélé pelo nome
cristão de Romana.
8
OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. S. Paulo:GRD; Brasília: INL, 1980. p. 262
9
Ao usar o termo África neste texto estou-me referindo sempre a esta região do golfo do
Benin, sobretudo aos atuais países Nigéria e Benin. A etnia que prevalece nestas histórias é a
dos Iorubás, e a religião é a do culto dos orixás, que recebeu no Brasil o nome de candomblé
(no Haiti, de vodu, em Cuba, de santeria).
10
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro:Difel, Brasília: INL, 1978. p. 342.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 57
A casa da água
A avó Catarina, nascida na África, vendida por um tio aos 18 anos, nun-
ca perdeu o desejo de voltar durante os 50 anos que passara no Brasil mas
Epifânia segue a mãe contrariada, pois nunca havia saído de Piau. Se Catarina
considera o regresso necessário, Epifânia acha que é uma iniciativa condenada
ao fracasso. Frustrada, pelo menos no início, ela acaba adaptando-se à vida
africana e morre aos 79 anos. Catarina vive a dura experiência do retorno, já
que o país real não corresponde ao país sonhado, imaginado. Ao afirmar que
a África era sua terra, alguém lhe responde: “É e não é, iaiá. Para a maioria, os
avós saíram daqui e foram escravos no Brasil, se acostumaram lá, mas sempre
pensando que aqui era o paraíso. Pois isto aqui é o paraíso e também não é o
paraíso, iaiá”12. Catarina leva a família para visitar sua cidade natal, Abeoku-
tá, faz o reconhecimento do país, o palácio do Alakê, o local onde morava,
mas não reencontra nenhum amigo, nenhum parente. Epifânia percebe que
a decepção da mãe manifesta-se em forma de tristeza, de melancolia, pois a
12
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Difel, Brasília:INL, 1978. p. 75.
58 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
volta não realizou nenhuma transformação real em sua vida, o regresso não lhe
devolveu aquilo que ela havia perdido aos 18 anos, uma infância feliz numa
cidade bonita, ou seja, o Um fixo no espaço e no tempo ao qual queria voltar
já não existia.
Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há dife-
rença muito grande entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há
é para pior, lá a gente era da terra, aqui somos estrangeiros para
os ingleses e somos estrangeiros para os africanos, até nas fes-
tas de Xangô e dos santos dela o movimento daqui é pequeno,
e o que diverte a gente aqui é festa como as de lá, a do Divino,
a de São José, a do Bonfim, a de Nossa Senhora dos Prazeres13.
13
OLINTO, Op. Cit. p. 87.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 59
14
OLINTO, Op. Cit. p. 325.
15
OLINTO, Antonio. Op. Cit. p. 339.
16
OLINTO, Op. Cit. p. 337.
60 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
Um defeito de cor
18
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 16.
62 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
19
GONÇALVES, Op. Cit. p. 771.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 63
Ségou
20
GONÇALVES, Op. Cit. p. 780.
21
Conservarei a ortografia francesa; em português a cidade é chamada de Segu.
64 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
Uma das cenas finais é o ataque do exército francês a Ségou, a destruição dos
muros da cidade e a entrada triunfante da colonização em 1890.
A linha da intriga que diz respeito aos Brasileiros começa com a captura
de Naba e Ayodélé: Naba encontra Ayodélé ainda antes do embarque para o
Brasil. Ele a protege durante a viagem mas são separados no ato da compra
em Recife. Ela é levada para uma fazenda em Pernambuco, onde, aos 13 anos,
é estuprada por seu senhor. Algum tempo depois, Naba aparece por lá, com
jeito meio estranho, fingindo-se de louco, sem falar, e se instala com Ayodélé,
já grávida do senhor. Ele aceita o filho dela sem mágoa. Juntos, têm 3 filhos,
encontrando uma certa felicidade, que dura pouco, porém, já que ele é conde-
nado à morte em consequência da delação do filho mais velho, Abiola/Jorge,
que sabia ser filho do senhor. Ao ouvir as conversas dos pais, ele descobriu que
faziam planos de comprar a alforria e retornar à África. Como ele desprezava a
África e preferia ficar no Brasil, ele acusou Naba de ser conspirador por causa
de um panfleto escrito em árabe que Naba recebera nas ruas de Recife. Após
a morte do marido, antes de ser deportada com os 3 filhos de Naba, ela se
converteu ao catolicismo e passou a adotar o nome de Romana da Cunha.
Em Lagos, Romana da Cunha encontrou por acaso Malobali, irmão de
seu finado marido, com quem se casou, conforme a tradição Bambará. Apesar
de apaixonada e fortemente atraída por ele, Romana considerava o casamento
uma forma de incesto; a incompatibilidade do casal viria justamente das dife-
renças culturais.
22
CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert Laffont, 1984. Le
livre de Poche. t.2, p. 51.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 65
23
CONDÉ, Op. Cit. p. 189.
66 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
Resiliência e banzo
24
No Caribe a palavra Marron (em francês), Cimarrón (em espanhol) e Maroon (em inglês) designa
o escravo que foge das plantações para a liberdade nas colinas. O termo seria mais ou menos
equivalente de quilombola. Os Maroons da Jamaica, que conseguiram vencer os ingleses, as-
sinaram um pacto de não-agressão com eles, tornando-se em seguida verdadeiros traidores
porque delatavam revoltas que outros negros tentavam organizar. Eles aparecem sob esta
faceta negativa em Ségou e em outro romance de Maryse Condé, Moi, Tituba, sorcière ........noire
de Salém (1986) (traduzido em português: Eu, Tituba, feiticeira .......negra de Salem).
Ségou, La terre em miettes. Tome 3. Paris:Robert Laffont, 1985. Le livre de Poche. p. 383.
25
26
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Capitalisme et schizophrénie. 2. Paris:
Minuit, 1980.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 67
seus orixás. A Romana que Condé cria é uma mulher dilacerada em sua vida
emocional, apesar de se manter sempre diligentemente em luta para ganhar
dinheiro e melhorar sua situação econômica. Tanto as duas quanto Mariana
demonstram um alto grau de resiliência e capacidade de negociação a fim de
ascender socialmente.
Os psicólogos começaram a usar o conceito de resiliência27
Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970,
por psicólogos, para designar a capacidade de resistência de pessoas para
enfrentar dificuldades e conservar a saúde mental e a alegria, mesmo após
um trauma.
“Resiliência significa prosperar em condições adversas — em outras pa-
lavras, manter a saúde física e emocional e o espírito que permita viver uma
vida com alegria”28. Eles apontam alguns fatores que podem influir no pro-
cesso de preservação do eu possibilitando maior resiliência, dentre os quais se
destacam, de um lado, a capacidade individual — como inteligência e auto-
imagem positiva — e, de outro lado, a rede de proteção formada pela família
e pela comunidade. O conceito de resiliência se articula com o conceito de
agenciamento, que pressupõe o desejo — potência criativa — que move as
pessoas a entrar no jogo do poder.
Em se tratando da escravidão no Brasil, pode-se apontar que a resiliência
se oporia ao banzo, doença mental que acometia os africanos aqui chegados e
que os levava ao suicídio, depois de muito sofrimento causado seja pelo ressen-
timento diante dos castigos injustos, seja pela perda de referenciais culturais
e emocionais. Dentro da lógica do pensamento de Glissant, pode-se articular
o banzo ao desejo de retorno, enquanto a resiliência seria a capacidade de
estabelecer relação: relação com outra cultura, com outro espaço, com outros
valores, sem se fixar na obsessão da unidade perdida.
Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970, por psicólogos, para
27
29
Apud ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Da enfermidade chamada banzo: excertos de
Sigaud e de von Martius (1844). Revista latino-americana de psicopatologia fundamental. V. 11, n. 4,
supl. 0. São Paulo, dez. 2008. <http://www.scielo.br. >. Acesso em 03/02/2009.
30
O psiquiatra Joseba Achotegui, da Universidade de Barcelona, em artigo que encontrei na
internet em PDF (sem endereço de site), descreve as dificuldades encontradas por imigran-
tes ilegais, que vivem num nível de estresse que excede a capacidade de adaptação.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 69
de afeto, não resistem muito tempo a esta vida de autômato e acabam tendo
uma depressão e/ou se suicidando, como se explica no romance A síndrome de
Ulisses, do escritor colombiano Santiago Gamboa.
31
GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Ed. Planeta
do Brasil, 2006. p. 370.
70 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.
ABSTRACT
Recebido: 15/02/2009
Aprovado: 11/05/2009