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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p.

51-70, 2009 51

OS BRASILEIROS RETORNADOS À ÁFRICA

Eurídice Figueiredo

RESUMO

Durante o século XIX muitos afro-brasileiros retornaram


à África, sobretudo para a região do Golfo do Benin. Esta
história é tematizada por alguns romances brasileiros e
antilhanos centrados numa figura de mulher brasileira que
retorna. Mariana é a protagonista do primeiro volume da
trilogia de Antonio Olinto A alma da África, que inclui
A casa da água, O rei de Keto e O trono de vidro. O assunto
foi retomado recentemente por Ana Maria Gonçalves em
Um defeito de cor, no qual a autora inspira-se nas lacunas da
biografia de Luiz Gama para reconstituir ficcionalmente a
história de sua mãe, Kehinde/Luísa. A escritora antilhana
Maryse Condé também encena esta volta através de Ayo-
délé/Romana no seu romance em dois volumes: Ségou,
Les murailles de terre e Ségou, La terre en miettes.

PALAVRAS-CHAVE: Antonio Olinto; Ana Maria


Gonçalves; Maryse Condé.

Introdução

D
urante o século XIX muitos afro-brasileiros retornaram à África,
sobretudo para a região do Golfo do Benin (Benin, Nigéria, Togo,
Gana). Alguns foram deportados depois da Revolta dos Malês (Bahia,
1835), mas a maioria retornou por vontade própria. Eram pessoas livres, dinâ-
micas, que se instalaram na África e aí criaram uma comunidade de “Brasileiros”,
também chamados de “Agudás” ou “Amarôs” na Nigéria, no Benin, no Togo
e de “Tabom” em Gana.
52 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

Esta história é tematizada por alguns romances brasileiros e antilhanos


centrados numa figura de mulher brasileira que retorna: Mariana, Kehinde/
Luísa e Ayodélé/Romana1. Mariana é a protagonista do primeiro volume da
trilogia de Antonio Olinto (nascido em 1919 em Ubá, Minas Gerais) A alma
da África, que inclui A casa da água (publicado em 1969), O rei de Keto (de
1980) e O trono de vidro (de 1987). O assunto foi retomado recentemente por
Ana Maria Gonçalves (nascida em 1970 em Ibiá, Minas Gerais) em Um defeito
de cor (2007), no qual a autora inspira-se nas lacunas da biografia do advogado,
jornalista e escritor Luiz Gama2 (1830-1882), para reconstituir ficcionalmente
a história de sua mãe Kehinde e, através dela, das condições de vida dos escra-
vos na Bahia do século XIX. A escritora antilhana Maryse Condé (nascida em
1937 em Pointe-à-Pitre, Guadalupe) também recria a vida dos Agudás no seu
romance em dois volumes: Ségou, Les murailles de terre (publicado em 1984) e
Ségou, La terre en miettes (em 1985). Nesta saga sobre a família Traoré, da etnia
Bambará, no reino de Ségou (atual Mali), um dos quatro filhos do patriarca é
capturado e enviado como escravo ao Brasil, onde é injustamente condenado
à morte. Ele morre mas sua esposa Romana da Cunha e seus 3 filhos são de-
portados para a África.
Não se pretende fazer uma análise exaustiva dos romances; busca-se, an-
tes, apreender como os afetos atingem os personagens quando eles se deslocam
de um país para outro, de uma cultura para outra. Percebe-se que a procura
de uma origem, de uma raiz, através de variados “retornos”, não resulta neces-
sariamente em felicidade, já que a nostalgia de um lar que se teve no passado
não pode ser resolvida por um retorno simples.

Os Agudás

Os retornados do Brasil (às vezes até os de Cuba) eram denominados


Brasileiros ou Agudás, termo derivado do nome do forte português São João
d’Ajuda (ou Ajudá ou Agudá), em Uidá (antigo Daomé, atual Benin). Como
1
Mariana, nascida no Brasil, só tem nome brasileiro; Kehinde, apesar de receber o nome de
Luísa, só decide usá-lo quando vai viver na África; Ayodélé, depois da morte de seu marido,
converte-se ao catolicismo e passa a usar só seu nome cristão, Romana. Para evitar confu-
são, no meu texto só usarei Kehinde e Romana, os nomes que prevalecem nos romances.
2
GAMA, Luís. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Gama>. Acesso em 12/02/2008.
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Agudá significava ao mesmo tempo católico e como a religião católica era


identificada com os brancos, os Brasileiros eram “brancos” de uma nova es-
pécie, em que a cor da pele não interferia na classificação3. Aos olhos dos afri-
canos que lá permaneceram e desprezavam os antigos escravos, o orgulho dos
brasileiros parecia incompatível com o estatuto de escravos que eles tinham
tido no Brasil.

Si c’était pour perpétuer ainsi le souvenir du Brésil, que les


Agoudas n’y étaient-ils restés? Les voilà qui clamaient qu’ils y
avaient passé les meilleures années de leur vie. Oubliaient-ils
qu’ils y avaient été esclaves? Et qu’ils avaient choisi de revenir
dans la terre d’Afrique? Oubliaient-ils que souvent ils y avaient
fomenté des révoltes? Etrange revirement!
[Se era para perpetuar assim a lembrança do Brasil por que os
Agudás não ficaram por lá? Eles clamavam que haviam passado
os melhores anos de suas vidas lá. Será que se esqueciam de
que foram escravos? E que haviam escolhido voltar para a terra
de África? Será que se esqueciam de que muitas vezes fomen-
taram revoltas? Estranha reviravolta!]4

Segundo Pierre Verger (2002), os Brasileiros que voltavam à região da Áfri-


ca Ocidental provocavam sentimentos hostis da população local, como se pode
verificar nos romances, porque se consideravam diferentes e superiores aos que
lá permaneceram. Por outro lado, como os Sarôs5 eram ainda mais orgulhosos,
a reação de acrimônia contra eles era mais forte. Um personagem de Ségou diz:

3
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos dos séculos XVII a XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. Salvador:Corrupio, 2002. p. 633.
4
Tradução minha. Os textos teóricos são traduzidos diretamente no corpo do texto, sem
citação do original.CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert
Laffont, 1984. Le livre de Poche. t.2, p. 48.
5
Sarôs (ou Salôs), segundo Gonçalves (2007, p. 776), é uma corruptela de Serra Leoa. O
termo designava os africanos que seriam levados como escravos para o Brasil ou Cuba;
libertados pelos ingleses em pleno mar foram instalados em Serra Leoa. Muitos deles
acabaram indo depois para Lagos (Nigéria). O marido de Kehinde na África é um Sarô.
54 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

Les métis étaient bien plus arrogants que les Blancs car ils vou-
laient faire oublier leur moitié de sang noir. Quant aux  ”Saros”
et aux ”Brésiliens” , les premiers calquaient leur comportement
sur celui des Anglais et méprisaient les seconds à cause de leur
ancien état servile. Mais les deux groupes abominaient les au-
tochtones de la même manière et avaient partie liée avec les
métis et les Blancs6.
[Os mestiços eram mais arrogantes que os brancos pois queriam
fazer esquecer sua metade de sangue negro. Quanto aos “Sarôs”
e aos “Brasileiros”, os primeiros calcavam seu comportamento
no dos ingleses e desprezavam os últimos por causa de seu anti-
go estado servil. Mas os dois grupos abominavam os autóctones
da mesma maneira e se associavam aos mestiços e aos brancos].

Há uma inadaptação pois “se eles cultivavam o seu particularismo afri-
cano no Brasil, por outro lado foi um apego aos costumes e hábitos adqui-
ridos neste país que eles fizeram questão de manter quando de volta à costa
africana”7. Este é o caso de Kehinde que, apesar de ter fugido do batismo,
acaba recebendo o nome cristão de Luísa, usado quando lhe é conveniente.
Ela, que sempre fez questão de preservar seus deuses e seu nome africano, ao
ter filhos na África prefere dar-lhes nomes portugueses e cristãos. Segundo
Gilberto Freyre, estes retornados já estavam bastante mestiçados.

Esses africanos e descendentes de africanos, tendo vivido no


Brasil, principalmente na Bahia, voltaram para a África com
costumes, hábitos, modos de vida que tinham adquirido em
terra estrangeira aos quais se tinham ligado para sempre (...).
Eles levaram para a África o gosto pela farinha de mandioca,
pela goiabada, pelas comidas brasileiras, pelos hábitos brasi-
leiros. Perpetuaram na África devoções como a do Senhor do
Bonfim e festas, com danças e cantos, muito brasileiras, já mes-
tiçadas (apud VERGER, 2002, p. 632).

6
CONDÉ, Op. Cit. p. 198.
7
VERGER, Op. Cit, p. 632.
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Por mais paradoxal que possa parecer esta situação, o desejo de retor-
no, ao ser satisfeito, não desencadeia necessariamente nem readapatação nem
bem-estar. Segundo Edouard Glissant, a “primeira pulsão de uma população
transplantada (...) é o Retorno. O Retorno é a obsessão do Um: não se deve
mudar o ser. Voltar é consagrar a permanência, a não-relação” (GLISSANT,
1981, p. 30). Ora, a volta ao Um original é imaginária e, na realidade, pode-se
transformar em frustração e revolta porque o transplantado, como bem perce-
beu Freyre, já estava hibridizado, mestiçado. Ou, nos termos glissantianos, ele
já entrara em Relação com o Outro, crioulizando-se.
Os autores destes romances retratam esta comunidade mostrando a
transformação que ela opera na região e, mais particularmente, na cidade
de Lagos, com a construção de sobrados e igrejas, com suas escolas católi-
cas, suas festas e seus costumes. As protagonistas são o motor da história:
elas conseguem contratar marcineiros e pedreiros brasileiros para construir
sobrados como os da Bahia, começam a fazer comércio com o Brasil, expor-
tando dendê e importando açúcar, carne seca e fumo. Elas circulam bastante
pela região, indo da Nigéria ao Benin e ao Togo; aprendem várias línguas a
fim de poder se comunicar com os diferentes colonizadores implantados na
região e com as várias etnias africanas. Enviam os filhos para continuar os
estudos na Europa.
Se Ana Maria Gonçalves descreve a África a partir de pesquisa livresca, Ma-
ryse Condé, que se casou com o ator Mamadou Condé (da Guiné), viveu gran-
de parte das décadas de 1960/1970 na Guiné, em Gana e no Senegal, e Antonio
Olinto, que trabalhou como diplomata na Nigéria nos anos 1960, conheceram,
na costa ocidental africana, a comunidade dos Brasileiros, que conserva até hoje
a memória de seus ancestrais retornados, comemorando festas brasileiras como
o bumba-meu-boi (ou burrinha), a festa do senhor do Bonfim e outras.
Para criar a Mariana, Olinto inspirou-se em uma mulher idosa que lá
encontrou, Romana da Conceição, que realizou o sonho de vir passear no
Brasil em 1963 (OLINTO, 1980). O fato de Maryse Condé ter usado o
nome de Romana talvez não seja uma coincidência. O poço da casa de Ma-
riana foi calcado no fato de o primeiro poço de água em Lagos ter sido
perfurado por um retornado brasileiro, João Esan da Rocha. A chegada de
Mariana, em que todos desembarcam nus, foi inspirado no caso acontecido
em 1899 com Romana da Conceição, que viajou com a família no pata-
56 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

cho Aliança, no qual haviam morrido pessoas com febre amarela durante a
travessia. As autoridades britânicas forçaram o navio a ficar em quarentena.
Romana contou isto a Antonio Olinto: “Com receio da doença, os ingleses
tomaram tudo o que a gente possuía. Descemos em Lagos enrolados nuns
panos que não eram nossos”8.
Nos três romances se faz referência ao brasileiro Francisco Félix de Sou-
za (1754?-1849), o Xaxá (ou Chachá), a figura mais importante do Daomé
depois do rei Guezo. Filho de um português traficante de escravos, nasceu
em Salvador de uma mãe negra ou indígena. Começou a negociar e acabou
fixando residência em Uidá no final do século XVIII. Trabalhou no Forte São
João d’Ajuda; com a saída dos portugueses, passou a comandar o forte e, por
extensão, a cidade de Uidá, que se tornou o mais ativo entreposto de embar-
que de escravos para Brasil e Cuba. Era o mais rico comerciante e traficante
de escravos do Daomé. Fez pacto de sangue com o rei Guezo, a quem ajudou
a derrubar seu predecessor, o rei Adandozan. Ele era um ponto de referência
para os Agudás. Inspirou obras literárias como O vice-rei de Uidá, de Bruce Cha-
twin (1940-1989), O último negreiro, de Miguel Real (1953-). O primogênito
de seus descendentes conserva até hoje o título de Xaxá.
O sincretismo religioso aparece tanto na Bahia quanto na África9. Ca-
tólicas e praticantes do candomblé, Mariana e Kehinde não deixam de fazer
suas devoções aos orixás. Às vésperas da eleição de seu filho, Mariana lhe diz:
“Pedi a Xangô que tudo saísse bem. A Xangô e ao Divino Espírito Santo”.10
Já Romana é mais profundamente católica e intransigente, o que não a im-
pede de ir procurar um pai-de-santo quando está muito necessitada; por
sua austeridade, ela tem mais conflitos religiosos que as protagonistas dos
romances brasileiros. Diante de suas desventuras, ela se indaga se os orixás
a estariam punindo por ela ter abandonado seu nome Ayodélé pelo nome
cristão de Romana.

8
OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. S. Paulo:GRD; Brasília: INL, 1980. p. 262
9
Ao usar o termo África neste texto estou-me referindo sempre a esta região do golfo do
Benin, sobretudo aos atuais países Nigéria e Benin. A etnia que prevalece nestas histórias é a
dos Iorubás, e a religião é a do culto dos orixás, que recebeu no Brasil o nome de candomblé
(no Haiti, de vodu, em Cuba, de santeria).
10
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro:Difel, Brasília: INL, 1978. p. 342.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 57

A casa da água

A história do romance A casa da água se inicia em 1898, 10 anos após a


abolição da escravidão, quando Catarina deixa a cidade de Piau (MG) com
sua filha Epifânia e seus três netos (Mariana, Antônio e Emília) a fim de voltar
à África. Depois de passar mais de um ano na Bahia, a família consegue tomar
o patacho Esperança em direção a Lagos (Nigéria), onde chega em 1900. Ma-
riana tem 13 anos e sua primeira menstruação ao desembarcar em Lagos, nua,
coberta com um lençol. Segundo o autor, a história de Mariana foi inspirada
nos eventos protagonizados por Romana da Conceição:

Muita gente me pergunta se Romana é a Mariana de meu ro-


mance A casa da água. Até certo ponto, sim. Explico-me: foi Ro-
mana quem me contou a viagem do patacho “Aliança” — que
no romance chamei de “Esperança” — e entrou em detalhes
sobre os primeiros anos de sua vida em Lagos, no começo do
século. Ela não é a Mariana, mas foi sua inspiração11.

A avó Catarina, nascida na África, vendida por um tio aos 18 anos, nun-
ca perdeu o desejo de voltar durante os 50 anos que passara no Brasil mas
Epifânia segue a mãe contrariada, pois nunca havia saído de Piau. Se Catarina
considera o regresso necessário, Epifânia acha que é uma iniciativa condenada
ao fracasso. Frustrada, pelo menos no início, ela acaba adaptando-se à vida
africana e morre aos 79 anos. Catarina vive a dura experiência do retorno, já
que o país real não corresponde ao país sonhado, imaginado. Ao afirmar que
a África era sua terra, alguém lhe responde: “É e não é, iaiá. Para a maioria, os
avós saíram daqui e foram escravos no Brasil, se acostumaram lá, mas sempre
pensando que aqui era o paraíso. Pois isto aqui é o paraíso e também não é o
paraíso, iaiá”12. Catarina leva a família para visitar sua cidade natal, Abeoku-
tá, faz o reconhecimento do país, o palácio do Alakê, o local onde morava,
mas não reencontra nenhum amigo, nenhum parente. Epifânia percebe que
a decepção da mãe manifesta-se em forma de tristeza, de melancolia, pois a

OLINTO, Antonio. Brasileiros na África. S. Paulo: GRD; Brasília:INL, 1980. p. 230.


11

12
OLINTO, Antonio. A casa da água. Rio de Janeiro: Difel, Brasília:INL, 1978. p. 75.
58 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

volta não realizou nenhuma transformação real em sua vida, o regresso não lhe
devolveu aquilo que ela havia perdido aos 18 anos, uma infância feliz numa
cidade bonita, ou seja, o Um fixo no espaço e no tempo ao qual queria voltar
já não existia.

Agora ela está percebendo que não mudou nada, não há dife-
rença muito grande entre isto aqui e a Bahia, a diferença que há
é para pior, lá a gente era da terra, aqui somos estrangeiros para
os ingleses e somos estrangeiros para os africanos, até nas fes-
tas de Xangô e dos santos dela o movimento daqui é pequeno,
e o que diverte a gente aqui é festa como as de lá, a do Divino,
a de São José, a do Bonfim, a de Nossa Senhora dos Prazeres13.

Das três gerações, a única a se adaptar na África é a das crianças. Cata-


rina, que recupera seu nome africano Ainá, morre pouco depois de sua vol-
ta, sem ter obtido aquilo que a moveu a empreender a viagem de retorno.
Enquanto Epifânia só pensa no Brasil, Mariana tenta entender os inúmeros
conflitos locais, rivalidades entre grupos étnicos, enfim, tenta apropriar-se da
realidade local a fim de fincar raízes. Aos 16 anos casa-se com Sebastian Silva,
um brasileiro que trabalhava com os ingleses. Tem três filhos: Joseph, Ainá e
Sebastian. O primeiro empreendimento de Mariana é abrir um poço em seu
quintal a fim de vender água, produto escasso e caro; aos poucos diversifica
seus negócios, tornando-se uma mulher rica ao longo da vida.
O filho que mais se destaca no romance é Sebastian, inspirado no perso-
nagem histórico Sylvanus Olympio, presidente do Togo, que era descendente
de brasileiros e que foi assassinado. Sebastian, casado com Segui, dedica-se à
vida política, tornando-se representante do Zorei (país fictício) na Assembleia
Nacional da França e participa do processo de descolonização africana.

Somos um grupo grande, de homens de toda a África que,


falando francês como nós, estão em Paris preparando a auto-
nomia. (...) Temos em Paris um movimento, chamado Présen-
ce Africaine, que luta em favor da consciência da gente negra,

13
OLINTO, Op. Cit. p. 87.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 59

e nele estão africanos como Senghor e D’Arboussier, e não-


africanos como Césaire, que é das Antilhas, e Damas, que é
da Guiana, numa permanente campanha em prol dos povos
colonizados14.

Além de Sebastian, também seu cunhado Fagum tem participação políti-


ca na descolonização. Ambos têm consciência de que se trata de um processo
longo, com várias etapas: independência política, econômica e tecnológica.
Fagum aponta para o neocolonialismo que apareceria logo após as indepen-
dências pois os europeus continuariam a “mandar no continente através de
uma rede de bancos, de investimentos, de companhias, de vários tipos de ne-
gócios que permaneceriam lá”15. Antonio Olinto mistura personagens ficcio-
nais com personagens históricos na festa da independência de Zorei: lá estão
Fagum (personagem ficcional), genro de Mariana, enviado oficial da Nigéria,
e o presidente do Togo, Sylvanus Olympio (personagem histórico).
A família de Sebastian tem um fim trágico: ele torna-se o primeiro presi-
dente de Zorei após a independência mas é assassinado, oito anos depois de a
mulher ter morrido ao dar à luz Mariana, que será a protagonista do terceiro
volume da trilogia.

Mariana (...) entrou com a neta no quarto de Xangô, mostrou-a


aos orixás, ó deuses de cada coisa, do vento, da água, do fogo, da
saúde, da doença, das folhas, que a menina cresça livre e forte,
que tenha a proteção de todos, que seja boa e saiba resistir aos
sofrimentos, que ame a vida, que ame a vida, que ame a vida16.

Apesar de ter mantido intenso contato com as pessoas no Brasil em seus


muitos empreendimentos, Mariana nunca deixa a África; quem vai realizar a
volta é sua neta Mariana. Em O trono de vidro, a jovem Mariana é chamada a as-
sumir um papel político, seguindo as pegadas do pai, Sebastian Silva. Ela lidera
uma campanha pela redemocratização do país e é eleita presidente. Inspirado

14
OLINTO, Op. Cit. p. 325.
15
OLINTO, Antonio. Op. Cit. p. 339.
16
OLINTO, Op. Cit. p. 337.
60 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

parcialmente na visita que Romana da Conceição fez ao Brasil em 1963, Olin-


to descreve a visita da neta Mariana, refazendo o trajeto de seus ancestrais ao
voltar à Africa: as cidades de Piau e Juiz de Fora, em seguida Rio de Janeiro
e Salvador. É uma viagem sentimental, em que ela vê aqueles lugares que ela
conhecia de tanto ouvir as histórias contadas pela avó. Fotografa e filma tudo
a fim de levar um video para a avó, já quase centenária, que se sente feliz ao
reconhecer o cenário de sua infância: “Não mudou muito. A casa, a igreja,
tudo é como era”.17
O romance A casa da água, por sua vez, serviu de inspiração para a escrito-
ra Ana Maria Gonçalves criar a parte da volta de Kehinde à África no romance
Um defeito de cor. A diferença que ressalta é que, enquanto Mariana, nascida
no Brasil, é levada criança à África pela mãe e sobretudo pela avó Catarina,
Kehinde é trazida criança para o Brasil e volta à África por seu próprio desejo
em idade adulta. Também é de se destacar o fato que as duas mulheres nunca
deixam de cumprir as obrigações aos orixás, preservando a religião dos Iorubá.
Os filhos africanos de ambas vão prosseguir os estudos superiores na Europa,
voltam, se casam, têm filhos, integrando uma nova elite. No final de A casa da
água, Mariana sente um vago desejo de voltar para o Brasil, mas acaba por não
fazê-lo, enquanto Kehinde retorna, movida pelo desejo de reencontrar o filho
Luiz Gama, de quem conseguira finalmente ter notícias.

Um defeito de cor

O romance é narrado em primeira pessoa por Kehinde/Luísa, de sua


infância em Savalu, reino do Daomé, passando por sua vinda para o Brasil
como escrava, os anos passados na Bahia e no Rio de Janeiro, o retorno à Afri-
ca, até sua derradeira volta ao Brasil no fim da vida. Ela tinha 7 anos quando
sua mãe foi estuprada e morta. A avó levou Kehinde e sua irmã gêmea Taiwo
para Uidá. Depois de um curto período feliz, as meninas foram capturadas e
embarcadas em um navio negreiro. A avó, desesperada, decidiu segui-las. No
entanto, tanto a avó quanto a irmã morreram durante a viagem e Kehinde
desembarcou sozinha na Bahia. Comprada pelo senhor José Carlos Gama, ela
foi levada para a ilha de Itaparica para ser escrava de companhia da Sinhazinha

OLINTO, Antonio. O trono de vidro. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2007. p. 391.


17
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Maria Clara, ou seja, para brincar e, ao mesmo tempo, servir de brinquedo


para a menina. Designada para trabalhar na casa-grande e dormir na senzala
pequena, Kehinde encontrou amor e proteção junto a Esméria, que se tornou
uma verdadeira mãe para ela. Após ser violada pelo Sinhô aos 12 anos, Kehin-
de foi tratada por Esméria. Ao sair de seu torpor, percebeu que estava grávida.
Depois de muitos percalços, Kehinde conseguiu comprar a alforria para ela e o
filho. Encontrou um português, Alberto, com quem teve um outro filho, que
seria Luiz Gama. O período que passou em sua companhia foi de prosperida-
de e de relativa felicidade.
O livro é escrito para um destinatário, o filho desaparecido, cujo nome
não é jamais mencionado, nem mesmo no prólogo, quando a autora se refere
ao seu personagem “que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e
mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos
primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da abo-
lição da escravatura”18. Assim, a autora evita o grande personagem histórico
para se concentrar na figura da mãe — um verdadeiro fantasma na vida de
Luiz Gama — que a autora constrói como uma mulher forte, que vence na
vida apesar de todos os sofrimentos.
Pode-se sugerir que a criação de um personagem chamado Fatumbi tan-
to em A casa da água quanto em Um defeito de cor pode ser interpretado como
uma homenagem a Pierre Verger (1902-1996), fotógrafo e pesquisador fran-
cês que chegou a Salvador em 1946, onde passou a maior parte de sua vida.
Ele se iniciou no candomblé na Bahia mas foi na África que recebeu o nome
de Fatumbi, “nascido de novo graças ao Ifá”, em 1953. Fatumbi é, em A casa
da água, um pai-de-santo africano que acompanha os passos de Mariana ao
longo de sua vida e, em Um defeito de cor, Fatumbi é um escravo muçulmano,
com quem Kehinde aprende a ler na infância (em Itaparica) e que exerce um
papel fundamental em sua vida no período em que vive em Salvador, seja na
função de contador, ajudando-a na administração da padaria, seja ao fazê-la
compreender melhor questões mais políticas ligadas à comunidade. Fatumbi
é em ambos os romances um homem íntegro que desempenha o papel de
mentor espiritual e/ou cultural de Kehinde e de Mariana.

18
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 16.
62 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

A saúde mental e a perseverança de Kehinde, apesar de todo o sofrimen-


to, se devem a alguns fatores que funcionaram a seu favor: protegida pela
comunidade e sobretudo por Esméria, a cozinheira da casa-grande que fun-
ciona como figura materna, Kehinde conta também com a rede de apoio do
candomblé, que lhe dá o conforto de poder continuar a praticar a religião de
seus ancestrais, transmitida pela avó. Ela consegue tornar-se amiga até mesmo
da filha do senhor, a Sinhazinha Maria Clara, pouco mais velha que ela, e que
foi sua correspondente durante os anos passados na África. Esta amizade fiel
e sólida atenua a violência e elimina qualquer tipo de dicotomia que oporia os
negros aos brancos.
A volta à África se dá depois de Kehinde perder a esperança de reencon-
trar seu filho, Luiz Gama. Isto se dá em 1847, 30 anos depois de ela ter che-
gado no Brasil. Ela vai-se estabelecer em Uidá, que é o porto do qual partira,
e onde conhecia algumas pessoas. Durante a viagem, ela tem um relaciona-
mento amoroso com um Sarô, John, um mulato escuro nascido e criado em
Freetown, Serra Leoa, de quem engravida. Ele se propõe a ajudá-la a vender a
carga que levava (cachaça, tabaco) e a partir daí se unem, negociando armas,
pólvora, óleo de dendê, tanto com os ingleses quanto com os reis africanos e
os brasileiros de Salvador. Não demonstra escrúpulos ao vender armas, que
seriam usadas no comércio de escravos.

Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar


com mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele
não era problema meu. Eu não conseguiria resolvê-lo mesmo
se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpu-
los depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que
seriam usadas em guerras que fariam escravos, quase todos
mandados para o Brasil19

Ela e John formam uma família, consolidada com o nascimento dos


gêmeos, que recebem nomes brasileiros, Maria Clara (homenagem à Sinha-
zinha brasileira) e João. Ela decide usar seu nome brasileiro, Luísa, e escolhe
dois sobrenomes brasileiros, Andrade Silva porque ela mais conveniente ter

19
GONÇALVES, Op. Cit. p. 771.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 63

nomes brasileiros. Eles se enriquecem, enviando os filhos para prosseguir os


estudos na França. Após a morte de John, ela opta por permanecer em Lagos.
Os filhos se casam e dão-lhe 11 netos. Sua atitude positiva diante da vida e
das pessoas, suscita ao mesmo tempo o respeito e o ciúme de John. “O John se
dizia admirado com a minha sorte e com a maneira como eu logo me tornava
amiga das pessoas”20.

Ségou

Trata-se de uma saga que se inicia no fim do século XVIII no reino de


Ségou21 em torno da família de Dousika Traoré, notável e conselheiro do rei.
O próspero reino dos Bambarás, de tradição animista, começa a sofrer o im-
pacto da islamização desta parte da África. Há uma espécie de maldição que
paira sobre a família Traoré. Os quatro filhos de Dousika se desgarram das
origens ancestrais, se dispersam e têm destinos trágicos. Tiékoro, o primo-
gênito, é atraído pelo Islã, vivendo uma vida de conflito, que será também
o destino de seu filho Mohammed. O segundo, Naba, capturado e vendido
como escravo, morre no Brasil. Siga, o terceiro filho, o mal-amado (porque
era filho de uma escrava, que fugiu), atravessa o deserto, seguindo os passos
do irmão mais velho, o preferido do pai, e chega até Fez (Marrocos). O filho
mais novo, Malobali, sempre rebelde, vai para Lagos, onde encontrará a viúva
do irmão, com quem vai-se casar. Seu filho Olubunmi se torna soldado do
exército colonial francês.
Através deste resumo pode-se perceber que o romance faz uma imensa re-
constituição histórica de cerca de um século, de um lado mostrando o processo
de islamização da África (do século XVIII ao XIX), de outro lado encenando
os conflitos ligados à chegada dos colonizadores europeus e sua associação com
a cristianização das populações locais. Uma primeira cena anuncia a catástrofe
que estaria por vir: a chegada às portas de Ségou de um explorador escocês,
Mungo Park (1771-1806), que atinge as margens do rio Níger. Trata-se do
primeiro homem branco que aquelas pessoas veem; assustadas, elas correm
para contar aos outros habitantes, uma novidade, aliás, quase inacreditável.

20
GONÇALVES, Op. Cit. p. 780.
21
Conservarei a ortografia francesa; em português a cidade é chamada de Segu.
64 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

Uma das cenas finais é o ataque do exército francês a Ségou, a destruição dos
muros da cidade e a entrada triunfante da colonização em 1890.
A linha da intriga que diz respeito aos Brasileiros começa com a captura
de Naba e Ayodélé: Naba encontra Ayodélé ainda antes do embarque para o
Brasil. Ele a protege durante a viagem mas são separados no ato da compra
em Recife. Ela é levada para uma fazenda em Pernambuco, onde, aos 13 anos,
é estuprada por seu senhor. Algum tempo depois, Naba aparece por lá, com
jeito meio estranho, fingindo-se de louco, sem falar, e se instala com Ayodélé,
já grávida do senhor. Ele aceita o filho dela sem mágoa. Juntos, têm 3 filhos,
encontrando uma certa felicidade, que dura pouco, porém, já que ele é conde-
nado à morte em consequência da delação do filho mais velho, Abiola/Jorge,
que sabia ser filho do senhor. Ao ouvir as conversas dos pais, ele descobriu que
faziam planos de comprar a alforria e retornar à África. Como ele desprezava a
África e preferia ficar no Brasil, ele acusou Naba de ser conspirador por causa
de um panfleto escrito em árabe que Naba recebera nas ruas de Recife. Após
a morte do marido, antes de ser deportada com os 3 filhos de Naba, ela se
converteu ao catolicismo e passou a adotar o nome de Romana da Cunha.
Em Lagos, Romana da Cunha encontrou por acaso Malobali, irmão de
seu finado marido, com quem se casou, conforme a tradição Bambará. Apesar
de apaixonada e fortemente atraída por ele, Romana considerava o casamento
uma forma de incesto; a incompatibilidade do casal viria justamente das dife-
renças culturais.

Quand commença la mésentente du couple? En vérité, dès la


nuit de noces (...). Bientôt tout devint sujet de querelles. Les
Agoudas, dont Malobali trouvait les amusements puérils et
guindés, et l’arrogance vis-à-vis des autochtones insuportable ;
les Bambaras, que Romana trouvait quant à elle grossiers, dé-
pravés, ennemis du vrai Dieu22.
[Quando começou o desentendimento do casal ? Na verdade,
desde a noite de núpcias. (...) Logo tudo se tornou razão para
brigas. Para Malobali as diversões dos Agudás pareciam pueris

22
CONDÉ, Maryse. Ségou, Les murailles de terre. Tomes 1 et 2. Paris: Robert Laffont, 1984. Le
livre de Poche. t.2, p. 51.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 65

e pretensiosas, e achava a arrogância em relação aos autóctones


insuportável; já Romana considerava os Bambarás grosseiros,
depravados, inimigos do verdadeiro Deus.]

Como Mariana, que descobriu que estava grávida depois da morte do


marido, Romana também só percebeu que esperava o filho de Malobali que
ela tanto desejara após a sua morte. Infeliz demais para poder continuar viven-
do, ela definha e morre após o parto; seu quinto filho, Olubunmi, é entregue
à família Traoré, em Ségou. Os três filhos de Naba vão viver com o tio paterno
de Romana, um antigo escravo na Jamaica, que se instalara em Freetown. O
dois filhos que se tornam personagens do romance são Eucaristus e Olubun-
mi, sendo que este último vai se inserir na linhagem dos Bambarás. Quanto
a Eucaristus, depois de um certo conflito por não saber o que ele é, Agudá,
Bambará ou Iorubá, vai-se encaminhar para o sacerdócio pelas mãos dos ingle-
ses, já que estava instalado em Serra Leoa (colônia britânica), onde viviam os
retornados da Jamaica e os Sarôs. Como sua mãe, Eucaristus é um personagem
em conflito com suas várias heranças culturais.

Eucaristus lui-même parlait le portugais et le yoruba, langues


de sa mère, l’anglais, langue de l’enseignement à Fourah Bay
College, un peu de français et tout cela mêlé pour former le
pidgin qui était la lingua franca de la côte. Cette confusion de
langues, qui faisait penser à celle de la tour de Babel, lui sem-
blait à l’image de sa propre identité. Qu’était-il lui-même ? Un
animal composite, incapable de se définir23.
[Eucaristus falava português e iorubá, línguas de sua mãe, in-
glês, língua do ensino em Fourah Bay College, um pouco de
francês e tudo isto misturado para formar o pidgin que era
a lingua franca da costa. Esta confusão de línguas, que fazia
pensar na torre de Babel, parecia-lhe a imagem de sua própria
identidade. O que era ele? Um animal compósito, incapaz de
se definir.]

23
CONDÉ, Op. Cit. p. 189.
66 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

O romance de Maryse Condé tematiza um outro retorno, desta vez em


sentido inverso, da África para a Jamaica, e os conflitos que este deslocamento
vai acarretar. Samuel, filho de Eucaristus, influenciado pelas histórias contadas
por sua mãe, Emma, uma descendente dos Maroons24 da Jamaica, que tinha
uma visão mitificada dos Maroons, decide viajar para a Jamaica, em busca dos
ancestrais de sua família materna. Com sua esposa Victoria, eles desembarcam
na Jamaica em 1865, para se separar logo depois, tamanho é o choque cultural
dos dois numa terra tão hostil. A decepção no contato com os Maroons faz des-
moronar tudo aquilo que parecia alicerçar a vida de Samuel, o que o leva a se
identificar como o homem sem nome: “Mon nom, c’est Sans-Nom, oui!”25
Como se percebe, se a partida é (geralmente) traumática, o retorno não
é menos doloroso, ou seja, o sentimento de pertença a um território é um
agenciamento26, um emaranhado de fios de natureza diferente, formando pro-
cessos de desterritorializações e reterritorializações sempre em desequilíbrio,
em que o conhecimento é autopoiético, ou seja, causa e efeito são circulares,
se retroalimentam .

Resiliência e banzo

O que se percebe na leitura destes três romances é que os personagens


têm reação diferente a sofrimentos equivalentes. Romana e Kehinde foram
ambas enviadas à escravidão na adolescência, sendo estupradas pelo senhor,
pai de seu primeiro filho. Ambas voltam para a África, Romana com seus 3
filhos, Kehinde sem os dois filhos que tivera, um morto e o outro desapareci-
do. Romana converte-se ao catolicismo enquanto Kehinde mantém-se fiel aos

24
No Caribe a palavra Marron (em francês), Cimarrón (em espanhol) e Maroon (em inglês) designa
o escravo que foge das plantações para a liberdade nas colinas. O termo seria mais ou menos
equivalente de quilombola. Os Maroons da Jamaica, que conseguiram vencer os ingleses, as-
sinaram um pacto de não-agressão com eles, tornando-se em seguida verdadeiros traidores
porque delatavam revoltas que outros negros tentavam organizar. Eles aparecem sob esta
faceta negativa em Ségou e em outro romance de Maryse Condé, Moi, Tituba, sorcière ........noire
de Salém (1986) (traduzido em português: Eu, Tituba, feiticeira .......negra de Salem).
Ségou, La terre em miettes. Tome 3. Paris:Robert Laffont, 1985. Le livre de Poche. p. 383.
25

26
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mille plateaux. Capitalisme et schizophrénie. 2. Paris:
Minuit, 1980.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 67

seus orixás. A Romana que Condé cria é uma mulher dilacerada em sua vida
emocional, apesar de se manter sempre diligentemente em luta para ganhar
dinheiro e melhorar sua situação econômica. Tanto as duas quanto Mariana
demonstram um alto grau de resiliência e capacidade de negociação a fim de
ascender socialmente.
Os psicólogos começaram a usar o conceito de resiliência27
Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970,
por psicólogos, para designar a capacidade de resistência de pessoas para
enfrentar dificuldades e conservar a saúde mental e a alegria, mesmo após
um trauma.
“Resiliência significa prosperar em condições adversas — em outras pa-
lavras, manter a saúde física e emocional e o espírito que permita viver uma
vida com alegria”28. Eles apontam alguns fatores que podem influir no pro-
cesso de preservação do eu possibilitando maior resiliência, dentre os quais se
destacam, de um lado, a capacidade individual — como inteligência e auto-
imagem positiva — e, de outro lado, a rede de proteção formada pela família
e pela comunidade. O conceito de resiliência se articula com o conceito de
agenciamento, que pressupõe o desejo — potência criativa — que move as
pessoas a entrar no jogo do poder.
Em se tratando da escravidão no Brasil, pode-se apontar que a resiliência
se oporia ao banzo, doença mental que acometia os africanos aqui chegados e
que os levava ao suicídio, depois de muito sofrimento causado seja pelo ressen-
timento diante dos castigos injustos, seja pela perda de referenciais culturais
e emocionais. Dentro da lógica do pensamento de Glissant, pode-se articular
o banzo ao desejo de retorno, enquanto a resiliência seria a capacidade de
estabelecer relação: relação com outra cultura, com outro espaço, com outros
valores, sem se fixar na obsessão da unidade perdida.

Termo oriundo da Física que tem sido utilizado, desde os anos 1970, por psicólogos, para
27

designar a capacidade de resistência de pessoas para enfrentar dificuldades e conservar a


saúde mental e a alegria, mesmo após um trauma. Cf. REGALLA, Maria Angélica; GUI-
LHERME, Priscilla Rodrigues; SERRA-PINHEIRO, Maria Antônia.“ Resiliência e transtor-
no do déficit de atenção/hiperatividade ”. Resilience and attention deficit/hyperactivity disor-
der. Jornal brasileiro de psiquiatria. vol.56  suppl.1 Rio de Janeiro  2007. < http://www.scielo.br.
>. Acesso em 03/02/2009.
28
BOSS, Pauline. Loss, Trauma, and Resilience. Therapeutic Work with Ambiguous Loss.
68 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

O banzo foi bastante estudado no século XIX no Brasil devido ao impac-


to das variadas formas de violência auto-infligida: aborto, assassinato do bebê
logo após o parto, suicídio. O médico francês, que se radicou no Brasil, Joseph
Sigaud (1796-1856), em seu livro Du climat et des maladies du Brésil, publicado
em Paris em 1844, discordava de um princípio adotado por muitos confrades
europeus, o de que os negros seriam pouco sensíveis às doenças mentais com
exceção da idiotia. Ao tratar do banzo, Sigaud baseou-se no estudo de Luis
Antonio de Oliveira Mendes (de 1793), que fez uma descrição daquelas “mor-
tes lentas, espécies de consumpções produzidas pela inanição, e devidas a uma
causa moral”, tais como a nostalgia da terra natal ou o ressentimento causado
por castigos injustos. Sigaud considerava que não havia diferenças entre raças
no que concerne às enfermidades nervosas e que “os que pretendem que ín-
dios e negros não eram suscetíveis à loucura, na verdade queriam separar estas
duas raças das inevitáveis condições de humanidade”29 .
Assim como o banzo, a inadaptação dos afro-brasileiros que voltaram à
África no século XIX, deportados ou retornados por vontade própria, com-
prova que a travessia de territórios sempre cobra pedágio no que concerne às
emoções. Ao sentir saudade do Brasil e tentar recriar seus usos e costumes e,
sobretudo, ao considerar que os anos passados no Brasil tinham sido os mais
felizes de suas vidas, apesar do cativeiro, eles atestam que toda mudança de
país desencadeia uma crise, porque as pessoas se transformam e se adaptam.
Quando se dá uma nova mudança, alguns têm maior facilidade do que outros
para se readaptar, estabelecer relação, se enraizar.
No momento presente, fala-se de “síndrome de Ulisses”30, uma espécie
de banzo que afeta migrantes, levando-os ao suicídio. Estas pessoas, que mi-
graram muitas vezes sem família, tendo de viver em países de cultura diferente,
em condições econômicas adversas e, sobretudo, extremamente isoladas por
dificuldades de comunicação por não falar a língua local, solitárias, privadas

29
Apud ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Da enfermidade chamada banzo: excertos de
Sigaud e de von Martius (1844). Revista latino-americana de psicopatologia fundamental. V. 11, n. 4,
supl. 0. São Paulo, dez. 2008. <http://www.scielo.br. >. Acesso em 03/02/2009.
30
O psiquiatra Joseba Achotegui, da Universidade de Barcelona, em artigo que encontrei na
internet em PDF (sem endereço de site), descreve as dificuldades encontradas por imigran-
tes ilegais, que vivem num nível de estresse que excede a capacidade de adaptação.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, no 38, p. 51-70, 2009 69

de afeto, não resistem muito tempo a esta vida de autômato e acabam tendo
uma depressão e/ou se suicidando, como se explica no romance A síndrome de
Ulisses, do escritor colombiano Santiago Gamboa.

As coisas difíceis que deve ter passado, sua auto-estima lá no


chão, a sensação de estar indefeso e o medo, tudo isso deve tê-
lo levado ao estresse crônico e à depressão. Tem uma doença
muito relacionada com esses sintomas, disse o médico, mas não
acrescentou mais nada, pois naqueles anos a síndrome ainda
não tinha nome. Ainda não havia sido batizada como síndrome
do imigrante ou síndrome de Ulisses31.

Síndrome de Ulisses, saudade, banzo, estas e tantas outras formas


servem para exprimir o mal-estar que caracteriza o ser humano sempre que
ele se desloca e tem de abandonar laços tecidos com o espaço-tempo de suas
relações, de suas emoções. Fala-se de espaço — utopia ou distopia — mas o
espaço está intimamente ligado ao tempo: a saudade do Brasil do retornado é
antes de tudo saudade de uma infância e/ou juventude que parecem ter sido
bem melhores do que a maturidade ou a velhice na terra de África, onde se
escolheu viver. O mal-estar pode-se acirrar em banzo ou síndrome de Ulis-
ses, levando a pessoa ao suicídio, quando a própria humanidade da pessoa é
ameaçada pelas difíceis ou insuportáveis condições de existência. No entanto,
a história tem mostrado que o ser humano luta para sobreviver mesmo em
situações de estresse, o que comprova que a resiliência é um fator importante
ao se estudar o comportamento emocional das pessoas (e dos personagens de
romances) frente ao trauma.

31
GAMBOA, Santiago. A síndrome de Ulisses. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Ed. Planeta
do Brasil, 2006. p. 370.
70 Figueredo, Eurídice. Os brasileiros retornados à África.

ABSTRACT

During the nineteenth century, many Afro-Brazilians


returned to Africa, mainly to the region of the Gulf
of Benin. This story is the theme of some Brazilian
and Caribbean novels whose protagonist is a Brazilian
woman: Mariana, Kehinde/Luísa and Ayodélé/Roma-
na. Mariana is the main character of the first volume of
the trilogy by Antonio Olinto A alma da África, which
includes A casa da água, O rei de Keto and O trono de vidro.
The subject has been recently picked up by Ana Maria
Gonçalves in Um defeito de cor, in which the author, ins-
pired in the lacunas of Luiz Gama’s biography, recons-
titutes fictitiously his mother’s history. The Caribbean
writer Maryse Condé also depicts the community of
the Agudás in her novel in two volumes: Ségou, Les mu-
railles de terre and Ségou, La terre en miettes.

KEYWORDSs: Antonio Olinto; Ana Maria Gonçal-


ves; Maryse Condé.

Recebido: 15/02/2009
Aprovado: 11/05/2009

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