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Mudança linguística
Evani Viotti
Universidade de São Paulo
1. Introdução
1
Refiro-me ao projeto de lei datado de 2001, do então deputado Aldo Rebelo, proibindo o uso de
estrangeirismos, e ao decreto datado de 2007, do então governador do Distrito Federal José Roberto
Arruda, “demitindo” o gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal.
1
3ª pessoa você, passamos também a usar o verbo na forma de 3ª pessoa, e não mais de
2ª, causando uma diminuição no paradigma de nossas desinências verbais.2 E muita
gente fica feliz em saber que é por causa do fato de você ter forma de terceira pessoa,
mas semântica de segunda, que podemos dizer, tranquilamente, algo como o enunciado
1, em que dois pronomes átonos de pessoas diferentes – se é de 3ª e te é de 2ª – são
usados para fazer referência à segunda pessoa.
Entretanto, as reações deixam de ser tão tranquilas quando apontamos que o uso
da forma a gente para referência à 1ª pessoa do plural, em substituição ao pronome nós,
está, nos dias de hoje, passando por um processo semelhante ao que gerou a forma você.
Uma das posições mais brandas a esse respeito é aquela que sugere que o uso de a gente
não deve ser encorajado, pois, afinal de contas, nós temos um pronome de 1ª pessoa do
plural, nós. Mas essa posição pode ser um primeiro passo para começar a considerar um
“erro” o uso da forma a gente para a referência à 1ª pessoa do plural. Alguns chegam a
comentar que a situação é tão grave, que crianças já estão escrevendo agente, em vez de
a gente. E ficam atônitos quando alguém produz um enunciado como 2, usando dois
pronomes átonos diferentes – se de 3ª pessoa do singular e nos de 1ª pessoa do plural –
para a referência à 1ª pessoa do plural.
2
Em boa parte do Brasil, o uso do pronome tu é preterido em favor da forma você. Mas mesmo em
regiões em que o tu é mantido, a forma verbal que acompanha o pronome nem sempre é a de 2ª pessoa,
mas, sim, a de 3ª. Podemos, então, ouvir alguns falantes usando tanto pronome como forma verbal de 2ª
pessoa (tu foste, tu vais comprar, tu gostas), quanto usando pronome de 2ª pessoa e forma verbal de 3ª (tu
foi, tu vai comprar, tu gosta).
2
nominal de 3ª pessoa a gente, enquanto o pronome nos faz concordância semântica com
a 1ª pessoa do plural.3
Observações de fatos de língua como esses fazem parte do dia a dia dos
linguistas. Estamos sempre deparando com novos usos para velhas expressões da
língua, com diferentes formações de palavras, com a incorporação de palavras de outras
línguas ao nosso léxico e com estruturas gramaticais que fogem, em maior ou menor
grau, do que é considerado padrão. A língua muda inexoravelmente. Não há nada que
possamos fazer para impedir ou controlar isso. Basta pensarmos, por exemplo, na língua
que é hoje falada em Roma e naquela falada por Cícero, na mesma cidade, mais de 20
séculos atrás. A mudança foi de tal ordem que consideramos esses dois sistemas de
comunicação, usados no mesmo espaço geográfico em tempos distantes entre si, como
duas línguas diferentes: uma, o italiano contemporâneo na variação regional romana, e
outra, o latim clássico. Mas, na realidade, devemos antes pensar em um contínuo, que já
vinha de antes do latim, passa por ele e evolui, fazendo emergir uma enorme família de
línguas aparentadas. Essas línguas, que formam o conjunto de línguas românicas, não
são outra coisa que não o latim que passou por incontáveis modificações ao longo dos
séculos, pelas mais variadas razões, em circunstâncias ecológicas e sociais diferentes.
Por meio do exame de documentos escritos ao longo desses séculos, e por meio de
estudos comparativos, a linguística tem conseguido levantar hipóteses que permitem
reconstruir, em grande medida, o percurso pelo qual passaram e têm passado as mais
diversas línguas no decorrer do tempo.
3
O mesmo raciocínio deve ser feito para a análise de uma construção bem comum em certas variedades
do português, mas muito estigmatizada, como A gente somos inútil. Enquanto o adjetivo predicativo inútil
concorda formalmente com a expressão de 3ª pessoa do singular a gente, o verbo concorda
semanticamente com a primeira pessoa do plural.
3
dinâmico e adaptativo. Mas, antes de entrar nesse terreno, passo à discussão de algumas
teorias de mudança associadas às concepções de língua já discutidas neste livro.
Nem sempre é fácil afirmar com certeza qual era o pensamento de Saussure a
respeito de alguma faceta da língua humana ou de algum fenômeno linguístico. Um dos
motivos para essa dificuldade é o de que o que conhecemos do pensamento de Saussure
chegou até nós por meio de anotações de suas aulas feitas por seus alunos. O outro é o
de que a importância das propostas de Saussure para a construção da linguística como
ciência fez com que, ao longo dos anos, algumas de suas ideias adquirissem um peso
maior do que outras, em sua apropriação por vários estudiosos da língua.
Esse parece ser o caso das consequências da separação entre língua e fala para o
entendimento da mudança linguística. Indubitavelmente, Saussure prioriza os estudos da
língua, em detrimento dos estudos da fala. Assumindo, como ponto de partida, que a
linguagem tem duas faces, uma social (langue/língua) e outra individual (parole/fala),
Saussure propõe que a linguística se dedique ao estudo da face social, embora afirme
que é impossível conceber uma dessas faces sem a outra (1969, p.16). Ele define língua
como “um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes
à mesma comunidade” (1969, p. 21, grifo meu), mas insiste que, é separada da fala que
a língua se torna um objeto de investigação científica (1969, p.22-23). A seu ver, é
quando se descartam todos os elementos que podem trazer qualquer instabilidade à
língua – esse “conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício d[a] faculdade [da linguagem] nos indivíduos” (1969 p. 17) – , que
se pode fazer ciência linguística.
No que diz respeito à mudança linguística, essa opção pela língua pode ser
problemática. Afinal, mudança linguística implica um processo histórico. E a história é
feita não a partir de entidades abstratas, como a langue, mas, sim, a partir de entidades e
fatos individuais, existentes em um determinado espaço, por um determinado período de
tempo (Croft, 2000, p. 1). Em outras palavras, a história de uma língua constrói-se pelos
fatos da fala; é na fala que residem as mudanças, ou, pelo menos, seu embrião.
Naturalmente, Saussure tem consciência desse fato. Por isso, embora sempre
reforçando a opção pela língua, ressalta a importância de não removê-la, primeiramente,
4
de sua realidade social, de não separá-la da massa falante sem a qual ela não existiria.4
Essa realidade social dá à língua um potencial de vida, mas não a torna viva. Para que
ela viva e seja um fato histórico, ao ver de Saussure, é necessário não excluí-la do
tempo.
4
São grandes as discussões sobre a questão do que Saussure entende por social, quando define a língua
como tal, opondo-a à fala, que considera individual. Do ponto de vista dos sociolinguistas, Saussure não
tem nada a dizer sobre a comunidade de fala como um fator que opera sobre a fala individual. Eles,
portanto, consideram que Saussure não chegou a romper com o psicologismo individualista proposto,
especialmente, por Hermann Paul no final do século XIX, cuja influência nos estudos de linguística
histórica foi grande (Weinreich, Labov e Herzog 2006 [1968], p. 56). Por outro viés, a psicologia
cognitiva e a filosofia também têm, por vezes, se visto às voltas com a dicotomia social/individual
proposta por Saussure. Ao associar o significado linguístico à langue, que Saussure considera social, ele
pretende torná-lo objetivo, e, portanto, um legítimo objeto de estudo da ciência linguística, na medida em
que, sendo parte da langue, é homogêneo e não está à mercê do falante. Entretanto, o que os estudiosos da
cognição e filósofos da linguagem observam é que o fato de o significado ser intersubjetivo (ou social,
como quer Saussure) não significa que ele seja não mental, ou seja, não quer dizer que se possa negar sua
subjetividade. Parece, então que, ao querer conferir uma objetividade epistêmica à língua e ao significado
linguístico, Saussure acabou por atribuir-lhes uma objetividade ontológica, o que contraria as propostas
das teorias da cognição (Cornejo, 2004, p.16-17).
5
Para Saussure, uma das características definidoras do signo linguístico é sua arbitrariedade. Com isso,
ele quer dizer que não há qualquer relação entre a sequência de sons que compõe o significante de um
signo de língua oral (no caso das línguas de sinais seria uma sequência de configurações manuais e
corporais) e o significado daquele signo (1969, p.81-84).
5
Entretanto, os signos linguísticos mudam. Como é que isso se explica?
Curiosamente, para Saussure, é precisamente por causa de sua continuidade no tempo
que a língua pode mudar. Essa contradição é apenas aparente: a língua se transforma
sem que a massa falante possa transformá-la por sua vontade. A língua sofre a
influência de todos os que a usam, mas, justamente por ser a liga que integra uma massa
social, não se deixa revolucionar (1969, p.89, nota 1).
Entretanto, não se pode entender, com essas afirmações, que Saussure tenha
pretendido dar à fala algum papel na ciência linguística. Ela é apenas o terreno onde
nascem as inovações e as modificações, mas estas só vão adquirir relevância científica
quando se tornarem fatos de língua, ou seja, quando forem adotadas pela comunidade e
passarem a fazer parte do sistema linguístico. A língua é um sistema opositivo de
valores (ver capítulo 2) que se organiza em relação a dois eixos: o sincrônico, ou
estático, que se ocupa das relações entre os valores que coexistem em um determinado
tempo no sistema; e o diacrônico, ou evolutivo, que se ocupa das transformações que
ocorrem em um dado elemento linguístico, ao longo de uma linha de tempo, de um
estado a outro do sistema. A visão de Saussure sobre a evolução e mudança linguística
é, portanto, como tudo o que sua teoria propõe, centrada na língua, e não na fala. Uma
análise evolutiva ou diacrônica consiste, fundamentalmente, no estabelecimento de
estados sucessivos do sistema linguístico, no apontamento das partes do estado anterior
que foram alteradas, e nas soluções operadas no estado subsequente para acomodar tais
alterações (Benveniste, 1966, p.10).
6
sentido de que o que interessa são as configurações de diferentes estados do sistema, ao
longo de um período de tempo. É importante ter isso em mente quando, mais adiante,
for apresentada outra teoria de mudança linguística, que considera a língua como um
sistema inerentemente dinâmico e não dicotômico (ou seja, um sistema que não separa
língua de fala).
Como foi visto no Capítulo 3 deste livro, a gramática gerativa proposta por
Noam Chomsky trabalha com uma noção de língua bem diferente da de Saussure.
Chomsky sugere, inicialmente, que se faça uma separação entre o que ele chama língua-
E e o que ele chama língua-I. A língua-E é um tipo de conhecimento que abrange os
eventos de fala reais ou potenciais, talvez acompanhados de uma descrição de seu
conteúdo semântico e de seu contexto de uso (1986, p. 20). A língua-I é parte da mente
de qualquer pessoa que conheça uma determinada língua, é aquele conhecimento que é
adquirido pela criança e que passa a ser usado em atos de comunicação (1986, p.22).
Existe, então, uma complementariedade entre os dois conceitos: a língua-E engloba o
conjunto de fatos linguísticos observáveis, e a língua-I é o conhecimento que permite a
uma pessoa produzir e compreender expressões linguísticas.6
Feita essa separação entre língua-I e língua-E, Chomsky propõe que a linguística
deve tomar como seu objeto de investigação a língua-I. Gramática, agora, passa ser a
teoria sobre um objeto mental – a língua-I –, construído a partir daquilo que se chama
Gramática Universal, que, por sua vez, é parte da dotação genética da espécie humana e
que, como tal, é universal e comum a todos os membros da espécie, independentemente
de esses membros falarem português, inglês, chinês, kimbundu, kuikuro, língua de
sinais brasileira, americana, inglesa, ou qualquer outra língua. Gramática, então, é um
construto de linguistas e deve descrever e explicar as propriedades que se aplicam a
todas as línguas do mundo. Ou seja, uma gramática gerativa deve retratar aquilo que
uma pessoa sabe, quando sabe uma língua: o que ela adquiriu como sua língua materna
a partir de princípios inatos, biologicamente determinados, que são parte da mente
humana (Chomsky, 1986, p.22).
6
A distinção entre língua-I e língua-E é semelhante à separação feita, também no âmbito da teoria
chomskyana, entre competência e performance. Competência equivale ao conhecimento linguístico que
um falante tem de sua língua. Performance diz respeito a como esse conhecimento é posto em uso.
7
Certamente a primeira questão que vem à mente quando se ouve dizer que a
língua é determinada geneticamente é: como se explicam as diferenças entre as línguas?
Afinal, se nosso conhecimento linguístico é determinado por uma dotação biológica de
nossa espécie, em princípio, todos deveríamos falar a mesma língua. E, na verdade, não
é isso o que acontece!
7
Lembrem-se de que a gramática gerativa trata apenas da mudança nas estruturas sintáticas que
pertencem à língua-I.
8
Como já foi mencionado a respeito de Saussure, aqui também a visão de língua
como um objeto mental e abstrato é problemática para o estudo da mudança linguística.
Mudança envolve história, e a história envolve a descrição de ocorrências de fatos e
eventos em um tempo e espaço dados (Croft, 2000). Em se tratando de língua, fatos e
eventos correspondem a enunciados efetivamente produzidos. Como a gramática
gerativa exclui o uso da língua (língua-E ou performance) de seu programa de pesquisa,
o estudo do percurso histórico das línguas poderia ficar comprometido.
8
Os especialistas em estudos de aquisição de linguagem não são unânimes quanto ao limite final preciso
do período crítico de aquisição da linguagem. Alguns o colocam por volta dos 5 anos de idade; outros, no
início da puberdade. De uma maneira ou de outra, parece ser consenso que, se o processo de aquisição
tem início depois de certa (tenra) idade, os resultados não têm a mesma qualidade daqueles obtidos em
um processo regular, em que a criança é exposta à língua-alvo desde seu nascimento. Tipicamente, casos
de aquisição tardia são aqueles de aquisição de segunda língua.
9
Apesar de forçada a admitir a participação, ainda que pequena, de contextos de
uso para explicar a mudança, a gramática gerativa, talvez mais do que o estruturalismo
saussuriano, privilegia um modelo de língua estático, em que a mudança é vista como
uma exceção, como o resultado de uma falha.
Considerar a língua humana como estática é uma questão que está em grande
medida associada à opção por definir a língua como um sistema idealizado e
homogêneo, seja ele de natureza mental (como no caso da gramática gerativa) ou não
(como no caso do estruturalismo). A sociolinguística, como foi visto no Capítulo 4, veio
mudar o foco da investigação linguística dando maior relevância para a observação da
fala e dos falantes. Com isso, a ideia de uma visão de língua homogênea passou a ser
questionada, o que fez emergir uma nova maneira de tratar mudança linguística.
Passemos, agora, a ver como a sociolinguística entende a mudança.
9
Refiro-me, aqui, a Uriel Weinreich, William Labov, e Marvin Herzog, autores do trabalho seminal
originalmente publicado em 1968, que colocou definitivamente a variação na agenda da pesquisa
linguística, a partir de uma sólida fundamentação teórica e de evidências empíricas inquestionáveis.
10
sociais, como o gênero do falante, seu nível de escolaridade, sua faixa etária, sua origem
étnica e a classe socioeconômica a que pertence (Croft 2000, p.54).
Como se vê, então, a variação pode ser estudada tanto de um ponto de vista
sincrônico, quanto diacrônico. O estudo sincrônico se concentra na variação que ocorre
em um ponto específico do tempo; o estudo diacrônico estuda a variação que se verifica
ao longo do tempo e que pode vir a causar uma mudança na língua. Desse modo,
variação e mudança são entendidas como fenômenos paralelos: são dois lados de um
mesmo processo linguístico. Uma variação observada hoje pode vir a ser a fonte de uma
mudança depois de certo tempo. Entretanto, não se pode assumir que toda variação leve
necessariamente a uma mudança (Weinreich, Labov e Herzog 2006 [1968], p. 126;
Meyerhoff, 2010). Por outro lado, toda mudança é considerada fruto de uma variação.
Sendo assim, quando a variação é abordada do ponto de vista sincrônico, um dos
objetivos da análise é determinar se a variação é estável ou não. Se não for, ela será
considerada uma possibilidade de mudança. Quando analisada do ponto de vista
diacrônico, a variação vai ser estudada a partir das variáveis instáveis registradas em
vários estados sincrônicos.
11
generalizar certos processos de mudança que, antes, eram considerados isoladamente.
Por outro lado, ela aponta, também, que esse tipo de posicionamento coloca outro tipo
de questão: como é que mudanças inicialmente não distintivas, ou seja, mudanças que
não envolvem uma oposição e que ocorrem lenta e gradualmente, de repente saltam para
dentro de uma categoria distintiva e passam a integrar o sistema de oposições? Trata-se
de um problema que a sociolinguística chama problema da transição, cuja solução está
no estudo de estágios intermediários da mudança, portanto anteriores à reclassificação
das mudanças em categorias opositivas (Weinreich, Labov e Herzog 2006 [1968], p.35;
p. 64-65).
12
comando que um falante tem de estruturas heterogêneas de sua língua não é visto como
uma mera questão de desempenho, mas, sim, como parte da competência linguística
desse falante (Weinreich, Labov e Herzog 2006 [1968], p. 36).
A seguir, passo a tratar de uma visão de língua diferente das que já foram
apresentadas neste livro, e da maneira como a mudança linguística é entendida dentro
dessa visão. Essa proposta assume que a língua é um sistema complexo, dinâmico e
adaptativo. O grande diferencial desse modelo está justamente no fato de que ele não
faz uma divisão categórica entre língua e fala, ou competência e performance, ou
sistema e uso. Seu objeto de estudo é considerado como sendo uno e inseparável.
Elementos que, em outras teorias, são considerados como pertencentes quer à língua,
quer à fala, são investigados por esse modelo em pé de igualdade, a partir dos mesmos
mecanismos e construtos teóricos. Fundamentalmente, para esse modelo – e nisso reside
seu interesse aqui – a mudança é definidora de seu funcionamento.
13
cognição, as neurociências e a filosofia.10 Seus trabalhos e os resultados que suas
discussões têm gerado devem ser considerados como uma primeira grande abertura para
pesquisas de caráter verdadeiramente interdisciplinar não só sobre a língua humana,
como também sobre a semiose em geral.
Alguns exemplos não linguísticos desse tipo de sistema podem ser vistos nas
fotos da Figura 1 e da Figura 2 abaixo:
Figura 1 – Cardumes11
10
Ver, entre outros, Beckner et alii 2009; Bybee 2010; Halliday 1987; Keller 1994; Langacker 1991,
2000; Liberman 2011; Maturana e Varela 1987; McCleary 1996; Mufwene 2008; Raczaszek-Leonardi e
Kelso 2008; Varela, Thompson e Rosch 1993.
11
Fotos publicadas no Google Imagens, acessadas por meio dos seguintes links:
http://www.petfriends.com.br/news/news_materia132.htm;
http://www.iplay.com.br/Imagens/Divertidas/0zWe/Mergulhadores_Rodeados_Por_Um_Enorme_Cardu
me_De_Peixes_No_Fundo_Do_Mar
http://www.cenif.com/o-campo-morfogenetico/
12
Fotos publicadas no Google Imagens, acessadas por meio dos seguintes links:
http://revistagloborural.globo.com/GloboRural/0,6993,EEC1692378-1641,00.html
http://www.culturamania.com.br/?page_id=777
http://blogdainteratividade.wordpress.com/2010/02/09/o-espetaculo-dos-passaros/
14
estão sendo guiados por algum líder; como é que eles fazem para não bater uns nos
outros; o que acontece se existe uma colisão entre dois animais; como é que um dado
animal evita distanciar-se do grupo; como é que o cardume, como um todo, muda de
direção, sem que haja colisão dos peixes que o compõem.
Figura 3 - Trânsito13
Essas são fotos de situações em que aqueles de nós que vivem em cidades
grandes se veem, infelizmente, quase todos os dias – congestionamento de trânsito.
Cada vez que nos encontramos em uma situação dessas, certamente nos perguntamos
como é que, sem motivo aparente algum – sem acidentes, sem quebra de semáforo, etc.
– , isso foi acontecer. Também quando estamos dirigindo em uma grande avenida de
várias pistas, em que a velocidade permitida é alta, muitas vezes ficamos curiosos sobre
o que previne que dois carros se choquem, quando mudam de pista ao mesmo tempo,
ambos indo para a pista 2, um deles vindo da pista 1, e ou outro vindo da pista 3, em um
esquema como na Figura 4 abaixo.
13
Fotos publicadas no Google Imagens, acessadas por meio dos seguintes links:
http://www.siteuniethos.org.br/rse/?p=2434
http://www.deputadomarun.com.br/na-segunda-feira-capital-discute-desafios-e-solucoes-para-transporte-
transito-e-mobilidade-urbana-durante-seminario/engarrafamento
http://www.cabecadagua.com.br/2011/03/transito-viva-ou-morra/
15
Pista 1
Pista 2
Pista 3
Figura 4 - Ultrapassagem
Outra pergunta relativa ao trânsito que é feita praticamente quase todos os dias
em uma cidade como São Paulo é: como um acidente na zona norte da cidade pode ser
responsável por um engarrafamento na zona sul?
16
e adaptativos sejam intrinsecamente diversificados, de tal modo que não se pode
idealizar um único padrão de sistema, nem um único padrão de indivíduo para cada
sistema. Afinal, como foi visto, esses sistemas se definem pela interação de indivíduos
entre si e com a coletividade, e da coletividade com cada indivíduo. Como cada
indivíduo é único, cada sistema, em cada momento de sua existência, é único também.
No momento seguinte, ele já não vai ser igual a si mesmo. Tanto o sistema quanto cada
indivíduo pertencente ao sistema estão em constante mudança e em constante
reorganização. Não há momentos de estaticidade. O sistema e seus membros se auto-
(re)organizam dinamicamente à medida que o sistema interage com outros sistemas,
outras energias, outras forças e à medida que os membros do sistema interagem entre si,
com o sistema e com fatores externos a ele.
17
Figura 5 – Arco da complexidade (baseado no gráfico em Kluger 2008, p. 28)14
14
Agradeço ao monitor do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, Cauê Alves
Tanan da Silva, pela ajuda com a confecção do gráfico.
18
nível idioletal (ou do idioleto) é o nível do conhecimento linguístico e da prática
linguística própria de cada um dos falantes de uma língua.15 O nível comunal é o nível
global do sistema.16 Entretanto, como níveis de um sistema complexo, não é possível
conceber um sem o outro. Tampouco é possível considerar um como sendo em essência
diferente do outro. Não é possível nem mesmo separar um do outro para fins de
investigação científica, sob pena de essa separação levar eventualmente o analista a
conclusões equivocadas sobre o fenômeno linguístico.
15
Definido dessa maneira, idioleto é todo o sistema linguístico de um falante individual (Crystal 1988, p.
142). Outros autores preferem definir idioleto como os hábitos de fala de um indivíduo (Robins 1980,
p.40). Essa segunda definição claramente se baseia em uma separação das noções de língua e fala,
colocando o idioleto no âmbito da fala. Como estamos aqui sugerindo tratar a língua como um sistema
complexo não dicotômico, a primeira definição parece mais apropriada.
16
A definição de nível comunal ou de comunidade linguística não é trivial. Mesmo na sociolinguística,
que é uma área de estudos que toma a noção de comunidade de fala como base social para a descrição das
variedades, não existe um consenso sobre ela. Aqui, adoto a visão proposta em McCleary 1996, p. 211,
baseada na etnometodologia e bem de acordo com a noção de sistemas complexos, dinâmicos e
adaptativos. Para McCleary, qualquer organização social é fruto das realizações de seus membros. Uma
organização social só existe porque é reconhecida como tal e demonstrada como tal pelos membros, em
suas ações. Uma comunidade só existe como entidade de ordem superior por causa da ação local e
coordenada dos indivíduos que a compõem.
19
complete e o sistema se reorganize como um todo.17 Isso é exatamente o que se sugere
que acontece prototipicamente na mudança linguística (Weinreich, Labov e Herzog
2006 [1968], p. 124-125).18 A mudança linguística está, então, em perfeita consonância
com o tipo de mudança que ocorre em sistemas complexos.
17
Isso tem sido chamado formato de curva em S da mudança linguística (S-shape curve of language
change). Esse parece ser o padrão das mudanças em sistemas complexos em geral e na língua em
particular. Entretanto, há exceções. Sistemas complexos admitem casos de mudanças abruptas. Na língua,
a mesma coisa pode acontecer (Keller 1994, p.6).
18
Kroch 1989 apresenta uma proposta diferente, segundo a qual a mudança se dá em uma frequência
constante.
19
Um exemplo de ato individual que acaba sendo benéfico para a regulação do mercado é evitar comprar
mercadorias com preços julgados mais elevados do que necessário. Quando cada indivíduo deixa de
comprar essa mercadoria, o preço tende a baixar, o que acaba sendo um resultado positivo para a
coletividade.
20
Como nos informa Kluger (2008, p. 36), alguns estudiosos do mercado financeiro como um sistema
complexo não têm problema em admitir que eles, de fato, não sabem exatamente como certos
comportamentos desse tipo de sistema emergem. Outros estudiosos, no entanto, são céticos em relação ao
uso de uma noção tão pouco explícita como a da mão invisível. Eles sugerem que, atrás das mãos
invisíveis, existem cérebros invisíveis e propõem que é um poder cerebral coletivo que guia os
comportamentos dos sistemas complexos humanos. Estudos de várias atividades coletivas demonstram
que, nessas atividades, grupos de indivíduos obtêm melhores resultados do que indivíduos agindo
isoladamente. Ainda, quanto maior e mais diversificado for o grupo, melhores vão ser os resultados. Um
exemplo desse tipo de análise foi feito com grupos de investidores compostos por não experts em
mercados de ações. As escolhas de ações do mercado feitas colaborativamente pelos grupos foram mais
bem sucedidas do que as escolhas feitas individualmente. Por mais interessante que seja a noção do
poder da coletividade de cérebros e por mais que ela pareça mais adequada para a explicação de sistemas
complexos humanos e sociais, ela não pode servir para explicar fenômenos naturais, como o clima, que
também é um sistema complexo.
20
Keller propõe que a mesma coisa acontece com a língua humana. Para explicar o
tipo de fenômeno que ele considera que a língua é, ele compara seu funcionamento com
o do trânsito. Fundamentalmente, trânsito e língua são fenômenos coletivos. Eles
emergem a partir da ação de muitos indivíduos. Essas ações têm algumas semelhanças,
que, localmente, não têm muita relevância, mas que, juntas, acabam gerando certas
consequências. Keller faz sua argumentação a partir da apresentação de um modelo
simplificado que busca capturar a origem de um congestionamento de trânsito. Vamos
imaginar um cenário em que, em uma pista de uma única mão e de tráfego pesado, os
carros estão movendo-se a uma velocidade de 100 km por hora, a uma distância de
aproximadamente 30 metros um do outro. De repente, por algum motivo que não vem
ao caso, um carro, que vamos chamar A, breca, reduzindo a velocidade para 90 km por
hora. Naturalmente, o motorista do carro B que vem logo atrás de A, para evitar o
choque entre os dois carros, breca também. Mas, como ele não sabe para qual
velocidade o carro A reduziu sua marcha, ele reduz sua velocidade um pouco mais –
talvez para 85 km por hora – para ter segurança de que não vai haver colisão. O mesmo
vai acontecer com o carro C, que vem atrás de B. Para garantir a segurança, o motorista
de C reduz a velocidade de seu carro para 80 km por hora. E, assim, sucessivamente, de
modo que o carro S e todos os que vêm atrás dele vão ter que parar. O
congestionamento que se verifica do carro S em diante foi produzido pela ação dos
motoristas dos carros A até S. Entretanto, nenhum desses motoristas teve a intenção de
produzir o congestionamento. Sua única intenção foi garantir a sua segurança (e, espera-
se, a dos motoristas à sua volta). Dada essa intenção, cada motorista apenas reagiu
apropriadamente à ação de outro indivíduo. Com isso, mesmo sem ter a intenção e até
mesmo sem saber, cada um acabou contribuindo para a criação de uma situação global
de congestionamento. O congestionamento é, então, a consequência não intencional de
todas as ações individuais conjuntamente consideradas. Essas ações individuais tiveram
todas uma intenção, e todas as intenções eram semelhantes; mas, crucialmente,
nenhuma dela teve a intenção de criar o congestionamento (1994, p.60-62).
21
comunicativas, nenhum falante tem a intenção de mudar nem seu idioleto nem a língua
comunal. Sua intenção é a de entrar em interação com seu interlocutor, construindo
significação e agindo em parceria com ele. Além disso, dois ou mais falantes não fazem
a mesma coisa ao mesmo tempo, nem planejam conjuntamente estratégias para criar
novas formas linguísticas. Mesmo assim, padrões emergem e espalham-se até o nível
comunal. Essa emergência de padrões vem da mão invisível.
Mufwene ressalta que essa comparação entre tráfego e língua tem a vantagem de
colocar em evidência a agentividade dos indivíduos na mudança linguística. Tanto
quanto o tráfego depende da ação dos motoristas, a evolução da língua depende da ação
dos falantes. O tráfego vai ser mais lento quando os motoristas dirigirem em velocidade
mais baixa, ou mais rápido, se os motoristas forem rápidos. De modo geral, os
motoristas tendem a seguir o ritmo do tráfego – se ele está movendo-se rapidamente, os
22
motoristas tendem a se mover rapidamente também. Com a língua acontece o mesmo.
Os idioletos mudam porque os falantes tendem a manter-se afinados com outros
falantes.
21
Croft admite que a mão invisível possa ser considerada um dos mecanismos da propagação da mudança
linguística, mas não o único e não o mais importante. Para ele, os falantes escolhem uma variante em
detrimento de outra, a partir de fatores sociais como gênero, vínculos sociais, classe, etc. (Para uma
investigação da expansão da flexão do infinitivo em português brasileiro feita dentro dessa visão, ver
Canever 2012). Além disso, a seu ver, se a propagação de todas as mudanças pudesse ser explicada pela
mão invisível, a expectativa seria a de que as mudanças se espalhariam rapidamente em uma determinada
comunidade, em condições ecológicas semelhantes (2000, p. 60). Entretanto, duas observações precisam
ser feitas: primeiro, pelo que se viu acima, as condições ecológicas nunca se estabelecem com um padrão
rígido. Elas podem variar – e normalmente variam – de um momento para outro. Idioletos precisam
23
6. A mudança vista pelo prisma da língua como um sistema
complexo, dinâmico e adaptativo
24
seu lado, vai estar também adequando o seu idioleto ao de seu interlocutor), em um
processo de construção de comunicação, que se dá conjuntamente, pela ação
coordenada dos membros nela envolvidos, em uma determinada situação particular. A
língua precisa, então, ser maleável e flexível para permitir essa construção.
23
O entendimento de que a comunicação é situada está atrelado ao entendimento de que nossa cognição é
também situada. A ideia central é a de que a atividade cognitiva é sempre dependente do contexto em que
ocorre. Pode tratar-se de um contexto relativamente local – aquele relativo ao corpo –, ou de um contexto
relativamente global – aquele relativo à estrutura do ambiente natural e social onde o processo cognitivo
se verifica. Ainda, a cognição situada trabalha com a ideia de uma mente expandida, no sentido de que o
processo cognitivo transcende os limites dos organismos individuais. Como, nesse modelo, a mente é
concebida como um sistema dinâmico, ela se estende para o corpo e para o mundo (Robbins e Aydede
2009, p. 3 e.8).
24
O termo é emprestado da biologia e significa o processo evolutivo pelo qual as espécies se formam. A
especiação pode ser o processo de transformação gradual de uma espécie em outra ou pode ocorrer pela
divisão de uma espécie em duas. Desde o século XIX, especialmente a partir dos estudos de August
Schleicher, a diversificação linguística tem sido comparada à diversificação das espécies vivas.
25
história da morfologia do inglês, ele conclui que todas as mudanças verificadas podem
ser explicadas pela deriva natural da língua (1949 [1921], p.203-204).25
Outra posição afirma que mudanças internas e externas têm natureza diferente e
que apenas as primeiras podem ser consideradas como fonte de especiação linguística.
Línguas formadas a partir de longo e intenso contato entre línguas diferentes, como é o
caso das línguas crioulas26, não poderiam, portanto, ser classificadas geneticamente,
sendo assim consideradas excepcionais. Mufwene cita os trabalhos de Thomason e
Kaufman (1988) e Thomason (2001, 2002) como perpetuadores dessa visão (2008, p.
29).
Dentre os muitos equívocos que levam à visão de que existe uma diferença entre
a emergência de crioulos e a evolução natural de novas variedades linguísticas,
Mufwene ressalta a limitação de entender colonização apenas como o processo
decorrente da expansão mercantilista europeia dos séculos XV a XIX. As línguas
românicas também emergiram de um processo de colonização empreendido pelo
Império Romano. A difusão da cultura romana, de seus sistemas militares, políticos e
econômicos e de sua língua – o latim – , atrelada a grandes movimentos populacionais e
a longos e intensos contatos entre várias línguas tiveram como resultado consideráveis
mudanças linguísticas (2008, p. 31). Mesmo assim, o fato de as línguas românicas
modernas serem fruto de contato linguístico não as exclui de uma classificação genética.
Por que deveriam, então, as línguas crioulas ser consideradas excepcionais?
25
Sapir admite, no entanto, que essa deriva possa ter sido acelerada pela influência que o inglês sofreu de
algumas normas do francês (1949 [1921], p. 202).
26
Línguas crioulas são línguas faladas em várias ex-colônias europeias nas Américas (especialmente na
região do Caribe), na costa oeste da África, em algumas ilhas e regiões costeiras do oceano Índico e do
oceano Pacífico. Elas são resultantes do extenso contato de línguas europeias com línguas africanas e
emergiram em uma ecologia sócio-historica-econômica particular (Mufwene 2008).
27
A aquisição de língua por crianças e os fluxos migratórios populacionais têm um peso importante no
processo de mudança linguística. A aquisição de língua ocorre por meio da interação da criança com
outros falantes da língua, muitos dos quais são também crianças que não estão em um estágio de evolução
linguística muito mais avançado do que o dela. O processo tem prioritariamente o objetivo de servir à
comunicação. A “correção” ou a “adequação às normas” não são preocupações da criança nesse processo,
26
recobrar seu equilíbrio e manter-se no topo do arco da complexidade, o sistema vai se
auto-organizar e gerar outras mudanças, numa dinâmica constante de interações internas
e externas.
Tudo vai depender da ecologia global do cenário. Será que existem leis que
proíbem pisar na grama? Essas leis são postas em prática? Qual é o tipo de educação das
pessoas envolvidas? Qual é sua atitude em relação a gramados? Que tipo de sapato elas
usam? Qual é sua atitute em relação à possibilidade de sujar seus sapatos? Ao levar tudo
isso em consideração, vê-se que explicações que têm por base a mão invisível têm, na
melhor das hipóteses, um valor prognóstico: se X e Y acontecerem, então um certo
padrão P vai poder emergir, dadas as condições W e Z. É isso o que se verifica nas
previsões meteorológicas e nas previsões econômicas (que muitas vezes falham!). A
mesma coisa acontece com a língua: no caso da fonologia do alemão, por exemplo,
Keller observa que é possível considerar que as sílabas átonas apresentam uma
o que dá espaço à produção de desvios, que, podem vir a se tornar divergências. A mesma coisa acontece
no processo de aquisição de segunda língua por imigrantes (Mufwene 2008, p. 3).
27
tendência ao desaparecimento, dado o fato de que o processo já começou; mas, vindo
elas a desaparecer, só se pode especular – não se pode prever com nenhum rigor – que
um signo, como o verbo haben, possa vir a se tornar ham nos próximos séculos (1994,
p. 71).28
Isso posto, passo a casos que têm sido considerados exemplos de mudança no
português brasileiro para analisá-los a partir do entendimento de que a língua é um
sistema complexo, dinâmico e adaptativo.
28
A sílaba final de haben (ter) se reduziu a ponto de a vogal não ser pronunciada. Isso faz com que o
verbo seja pronunciado [habn], com uma consoante nasal [n] seguindo uma oclusiva vozeada [b]. Como o
alemão tem uma oclusiva nasal [m], pode-se conjecturar que, no futuro, uma eventual assimilação entre
nasal e oclusiva venha a transformar o verbo haben em ham.
29
Arraigamento traduz o termo entrenchment, do inglês. Muitas vezes, usam-se os termos automatização,
rotinização ou formação de hábito para a referência ao mesmo fenômeno.
30
O uso do termo unidade para fazer referência a essas rotinas cognitivas que emergem de nossa
experiência pode levar à interpretação equivocada de que o conjunto dessas unidades forme um “estoque”
de entidades prontas, guardadas em algum lugar, disponíveis para uso quando necessário. A ideia, no
entanto, não é essa. Como já foi ressaltado, não existe estaticidade no modelo que estamos discutindo
aqui. O modelo é totalmente dinâmico: tudo o que é considerado uma unidade ou estrutura cognitiva/
linguística e todas as relações entre elas residem em processamentos cognitivos, que, por sua vez, são
identificados com atividades neuronais (Langacker 2000, p.96).
28
precisamos controlar a retirada da pressão do pedal da embreagem, etc. Depois de
algum tempo, fazemos tudo isso automaticamente, sem atentar para cada um desses
detalhes. Só vamos voltar a considerar cada uma dessas etapas, caso algo saia da rotina
a ponto de chamar nossa atenção para alguma delas.
31
Enfatizo que essas estruturas não podem ser consideradas reificadas, ou seja, entidades de um conjunto
de representações. Elas são rotinas cognitivas associadas a atividades neuronais.
29
brinca, ela faz uma esquematização de um animal de quatro patas, com focinho
molhado, rabo – mas não muito mais do que isso! Como ela vê cachorros de diferentes
raças, cores e tamanhos, ela abstrai essas diferenças e cria uma estrutura esquemática de
cachorro, que ela associa com o signo auau. Quando ela vê um cavalo pela primeira
vez, sem saber bem que tipo de entidade é aquela, ela pode, num primeiro momento,
considerá-lo como um auau. Afinal, trata-se de um animal de quatro patas, com focinho
molhado e rabo! Aos poucos, à medida que sua experiência com cavalos for
aumentando – e que seus pais (ou seus cuidadores) e professores forem guiando seu
processo de conhecimento de mundo –, ela vai dar-se conta de que existem diferenças
entre cachorros e cavalos, e vai, então, passar a ter duas categorias: cachorro e cavalo.
32
Como foi visto acima, mesmo teorias que concentram suas análises no estudo da langue, como o
estruturalismo, ou da competência, como a gramática gerativa, não ignoram a importância da parole para
a constituição da langue, no primeiro caso, e do input linguístico para o desenvolvimento da língua-I, no
segundo caso.
30
expressões linguísticas que ela experiencia. Assim é com o vocabulário, com as
estruturas fonológicas, morfossintáticas, semânticas e discursivas. O exemplo de auau
dado acima serve para mostrar o arraigamento de um signo linguístico que vem das
múltiplas experiências da criança com cachorros (ou imagens de cachorros), sempre
associadas ao som produzido pelos pais (ou outros cuidadores) no momento da
experiência. A criança automatiza o todo – auau – sem levar em consideração que se
trata de duas sílabas idênticas reiteradas.
Do mesmo modo, expressões como quer mais ou vai lá ou caiu nenê, com a
frequência de uso, tornam-se rotinas arraigadas e a criança passa a usá-las, sem se dar
conta das partes que formam essas estruturas linguísticas. Com o tempo, expressões
mais e mais complexas vão tornando-se rotinas arraigadas na prática linguística dessa
criança. Paralelamente ao arraigamento, a esquematização e a categorização vão
também entrando em ação. A partir da experiência com muitas ocorrências de
expressões como aquelas entre 3 e 7, a criança, já em idade um pouco mais avançada,
abstrai um esquema como aquele em 8, abaixo.
3. O bebê já almoçou.
4. O menino correu.
5. A criança dormiu.
6. O papai chegou.
7. A vovó saiu.
8. [SN [SV [V]]]33
33
SN é a sigla usada para referência a sintagma nominal; SV é a sigla usada para sintagma verbal; e V é a
sigla usada para verbo.
31
14. [SN [SV[V SN]]]
34
A sigla SP faz referência a sintagma preposicionado.
35
Na verdade, nunca existe uma identidade absolutamente perfeita entre a estrutura categorizadora e o
alvo, mesmo que a estrutura categorizadora tenha um nível baixo de esquematização. A fórmula de
cumprimento bom dia é uma estrutura arraigada de nosso sistema linguístico que tem um nível baixo de
esquematização (na medida em que existe enquanto tal – [bom dia] – e não como uma estrutura sintática
mais abstrata, como [SN Adj N]). Ela serve como estrutura categorizadora de todos os reais eventos de uso
da expressão bom dia. Por mais semelhantes que sejam esses eventos reais de uso da expressão bom dia e
a estrutura categorizadora, o evento real de uso é sempre mais especificado e detalhado que a estrutura
categorizadora. Imaginem, também, que eu aponte para uma figura geométrica e diga – Isto é um
triângulo. A conceitualização que estou fazendo daquele objeto para o qual eu apontei certamente é mais
rica e detalhada do que é a conceitualização semântica convencional do item lexical triângulo (Langacker
1987, p. 66-67). Isso reforça a ideia apresentada anteriormente de que cada ato de uso linguístico envolve
uma mudança, por menor que seja. Cada ato de uso linguístico ocorre em momentos diferentes dos
falantes, em ecologias diferentes, em ações diferentes.
32
deparar com um evento de uso como o exemplificado na sentença 20 abaixo e ao
compará-lo com o esquema arraigado em 8 acima, dizemos que 20 elabora ou instacia 8,
ou que existe uma sanção plena de 8 em relação a 20.
A sanção plena entre uma estrutura categorizadora e uma instância de uso não
ocorre apenas com expressões já de uso frequente, como em 20. Neologismos também
podem servir como parte de estruturas que elaboram um determinado esquema.
Considerem os exemplos entre 21 e 24 abaixo:
36
Por adequação fonológica e morfossintática, estou querendo dizer que os verbos do inglês,
primeiramente, passaram a ser pronunciados de acordo com os padrões do português; além disso, eles se
transformaram em verbos transitivos da 1ª conjugação (terminados em {-ar}).
33
ganhou estatuto de uma unidade linguística e de um novo esquema categorizador.
Entretanto, ele continua ligado à categoria de barraco com o sentido de casa precária e
bagunçada, como uma extensão que emerge dinamicamente a partir dela, constituindo
uma rede categorial que se chama categoria complexa. Categorias complexas, também
chamadas categorias radiais, são redes categoriais que se irradiam como extensões de
uma dada categoria e se entrelaçam umas com as outras. A categoria a partir da qual
outras categorias surgem por extensão passa a ser considerada o protótipo da categoria
complexa (Langacker 2000, p. 101).37
37
A partir desse exemplo, pode-se ver que, nesse modelo, toda metáfora é entendida como uma extensão
de padrões arraigados de uso com o qual forma uma categoria radial (Lakoff 1987).
38
“Sugiro que as repetidas aplicações desses processos, ocorrendo em diferentes combinações em muitos
níveis de organização, resultam em estruturas cognitivas de enorme complexidade. A visão que emerge é
a de massivas redes em que estruturas de vários níveis de arraigamento, e representando diferentes níveis
de abstração, estão ligadas em relações de categorização, composição e simbolização. Acredito que todas
as facetas da estrutura linguística possam ser adequadamente descritas nesses termos.” (Tradução minha).
34
particípio em que não há a presença da vogal temática, nem do morfema de particípio.
Esses particípios são chamados particípios atemáticos por Chagas de Souza. Exemplos
são os verbos pegar (pegado – pego); pagar (pagado – pago); ganhar (ganhado –
ganho), entre outros. O que tem acontecido no português brasileiro recentemente é que
verbos que tradicionalmente não apresentavam essa forma atemática de particípio têm
passado a apresentá-la na fala coloquial. Exemplos são chego (para chegar-chegado);
acho (para achar-achado); mando (para mandar-mandado); falo (para falar-falado);
compro (para comprar-comprado), como nos seguintes exemplos:
A explicação que Chagas de Souza oferece para esse fenômeno é a de que ele é
uma manifestação de um processo morfológico chamado sincretismo direcional. No
modelo que está sendo apresentado aqui, esse fenômeno pode ser explicado da seguinte
maneira. Uma rotina arraigada – ou um padrão de ativação – que é a 1ª pessoa do
singular do presente do indicativo de verbos da 1ª conjugação serve como estrutura
categorizadora para as primeiras e antigas instâncias de uso das formas hoje
consideradas canônicas dos particípios atemáticos, como pago, ganho, aceito. Essas
formas podem ser concebidas como extensões (não semânticas, mas formais) da 1ª
pessoa do presente do indicativo. À medida que essas formas estendidas se tornam mais
35
frequentes, elas tornam-se também mais arraigadas e ganham estatuto de unidade,
passando a servir como novas possíveis estruturas categorizadoras para formas
inovadoras de uso de particípio atemático de verbos da 1ª conjugação, como acho,
mando, falo, etc. Essas novas formas, por sua vez, à medida que se tornam mais
frequentes e mais arraigadas, podem passar a servir também como estrutura
categorizadora de formas de particípio atemático das outras conjugações verbais do
português. Trata-se, portanto, de uma grande e complexa rede de categorias – ou de uma
categoria radial – que emerge e se constitui dinâmicamente a partir do protótipo que é a
1ª pessoa do singular do presente do indicativo.39
39
Esse percurso aqui sugerido não pode ser entendido como uma sucessão de fases de limites discretos e
categóricos. Ele deve ser concebido como um processo altamente dinâmico e complexo, em que novas
formas vão aparecendo, tornam-se cognitivamente arraigadas para alguns falantes, atingem certo nível de
abstração, passam a servir como estruturas categorizadoras e se propagam até o nível comunal, num fluxo
contínuo. Também não se pode entender que, do momento que uma nova forma se torna arraigada, a
outra mais antiga deixa de servir como um padrão de ativação. Mais adiante, vamos ver que essas formas
similares vão agrupar-se em um feixe de atração, com alto poder de ativação, para o qual as novas
instâncias de uso vão tender a dirigir-se.
40
Ver Whitaker-Franchi 1989.
36
34. O homem saiu o carro da garagem.
Esquemas como os em 8 ([SN [SV [V]]]) e 14 ([SN [SV[V SN]]]) são, então, duas
estruturas categorizadoras arraigadas, que podem sancionar novas instâncias de usos
linguísticos. Enunciados como os que foram exemplificados entre 31 e 34, em que
verbos que codificam eventos de baixa elaboração aparecem em sentenças transitivas,
envolvem uma extensão semântica dos verbos, que passam a conceitualizar também
41
Para uma análise dessas sentenças, ver Negrão e Viotti 2008, 2010, 2011a e 2011b.
42
Existem grandes diferenças conceituais entre esses dois casos, mas, para fins da argumentação feita
aqui, elas não são relevantes.
37
uma fonte de energia, adquirida do esquema categorizador 14, que eles elaboram. É por
isso que, diante de um enunciado como O homem saiu o carro da garagem, entendemos
que o homem foi a fonte de energia que fez com que o carro saísse da garagem.
Similarmente, enunciados como os que foram exemplificados entre 35 e 38, em que
verbos que codificam eventos de dois participantes aparecem em sentenças intransitivas,
explicitam outro tipo de extensão semântica dos verbos; desta vez, trata-se de uma
extensão pela qual esses verbos passam a codificar eventos autônomos, que não
envolvem uma fonte de energia. Isso faz com que, diante de um enunciado como Meu
jardim destruiu todo, interpretemos a destruição do jardim como tendo ocorrido
naturalmente, sem que alguma agentividade tenha sido responsável pelo evento.
Desse modo, esquemas como os em 8 ([SN [SV [V]]]) e 14 ([SN [SV[V SN]]]) são
protótipos que se estendem formando grandes categorias radiais que se conectam,
constituindo uma complexa rede de organizações cognitivas dinâmicas. Nessa grande
rede, padrões transitivos e intransitivos se encontram ligados de tal modo, que os limites
entre eles se tornam difusos. Transitividade, então, passa a ser vista como uma noção
gradiente, e não categórica.43
Dessa rede, faz parte também outro esquema, que é aquele exemplificado em 19
acima ([SN [SV[V SP]]]. A conceitualização associada a esse esquema é a de um evento
do qual participam dois constituintes, um deles a fonte de energia, e o outro um
elemento afetado. Entretanto, a ligação entre eles não é direta, mas se dá por meio de
alguma outra entidade (não necessariamente codificada). Um enunciado como O
motorista bateu no muro significa que o motorista bateu seu veículo no muro; ou,
quando dizemos A polícia atirou no ladrão, sabemos que foi uma bala, lançada por
meio de uma arma que afetou o ladrão.
38
Em todos eles, aparecem verbos prototipicamente transitivos. Mas, o esquema
que eles elaboram é aquele que envolve um complemento preposicionado, como em 19.
Ocorre, aqui, uma extensão semântica dos verbos, que passam a codificar eventos de
transferência indireta de energia: a conceitualização de morder, chutar, machucar e
beliscar é a de que a afetação do segundo participante do evento não é tão direta nem
tão extensa, como seria o caso, se tivesse sido usada uma estrutura transitiva. O
esquema 19 é, então, o protótipo de outra categoria radial que integra a grande e
complexa rede de conexões dinâmicas, de vários níveis de esquematização e
especificidade, e de vários níveis de arraigamento, que constituem as estruturações
sintáticas de períodos simples do português brasileiro.
Como foi visto, sistemas complexos vivem não só das interações locais de seus
membros, mas dos padrões que emergem, no sistema, a partir delas. É isso o que vimos
quando tratamos da emergência de padrões abstratos, por meio de um processo de
39
esquematização que parte das instâncias de uso. Em sistemas complexos, a existência de
diferentes níveis no sistema não implica que esses níveis sejam diferentes em essência.
A esquematização não é outra coisa que não a atribuição de um estatuto cognitivo
particular ao que existe em comum a múltiplas experiências.
A categorização de que tratamos acima não é outra coisa que não a captura de
uma nova ocorrência de experiência linguística por um atrator. A cada vez que o
sistema se defronta com uma nova instância, padrões já arraigados, de vários níveis de
abstração, são ativados. Quando um novo dado linguístico ativa e elabora um padrão já
arraigado – isso é o que vimos com o exemplo 20 em relação ao padrão em 8 – , ele é
atraído por esse padrão. Isso é equivalente a dizer que o novo dado linguístico é um
membro da categoria representada pelo padrão, que vai tornar-se mais arraigada, e, em
consequência, vai ganhar mais poder de ativação. Quando, por outro lado, o novo dado
linguístico é discrepante em relação aos padrões já arraigados, o sistema vai se auto-
organizar, estendendo os padrões de ativação já existentes até formar categorias radiais
e rearranjando as conexões de rede entre as categorias que o consitutem, para acomodar
aquela inovação.
44
Ver o exemplo dos particípios atemáticos discutidos acima.
40
encontra em um dado momento. Sua propagação até o nível comunal é guiada pela mão
invisível: quando ela ocorre, é um fenômeno totalmente não intencional, que, no
entanto, tem como fonte primária as interações intencionais dos falantes.
8. Considerações finais
41
de modo que, várias vezes, não existe grande discrepância entre as novas instâncias
geradas pelas relações locais dos participantes do sistema e os atratores. Muitas outras
vezes, no entanto, as novas instâncias apresentam uma diferença um pouco maior em
relação aos atratores disponíveis. Um atrator então se estende para acomodar a nova
instância, fazendo emergir novas conexões entre a vasta rede de membros que
constituem o sistema.
42
de um item lexical – barraco – que passa a significar confusão, além de casa precária e
bagunçada; a seguir, foi discutido um caso de extensão de formas morfológicas, relativa
a inovações nas formas de particípio passado; por fim, foi feita uma proposta de análise
para a formação da complexa e dinâmica rede de conexões que se estabelecem entre os
protótipos de sentenças simples.
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