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Tese de doutorado
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Agradecimentos
Azevedo, Adriana Pinto Fernandes de; Cunha, Eneida Leal; Kiffer, Ana
Paula Veiga. Reconstruções Queers: Por Uma Utopia do Lar. Rio de
Janeiro, 2016. 147p. Tese de Doutorado - Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Palavras-chaves
Lar; casa; queer; LGBT; homossexualidade; arquivo; precariedade; home-
movies.
Abstract
Azevedo, Adriana Pinto Fernandes de; Cunha, Eneida Leal; Kiffer, Ana
Paula Veiga. Queer Reconstructions: Thinking Utopic Homes. Rio de
Janeiro, 2016. 147p. PhD Thesis - Departamento de Letras, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
The goal for this thesis is to draw a constellation of queer livings (sexual,
gender, ethnic, racial and other minorities) that reassures their lives through the
reconfiguration of the ideas of “home” and “house”. In order to accomplish that,
several happening-objects were used (films, books, archive material) to help us
produce affirmative “slits” or “clefts” when thinking about power through its life
potency, echoing what Beatriz Preciado suggests in her essay “Multitudes queer.
Notes for a politics of "abnormality"” (2011). Some of them are: the book Stella
Manhattan (1995), by Silviano Santiago; movie maker Derek Jarman’s home
movies; personal material from Alice B. Toklas and Gertrude Stein archived at
Harry Ramson Center, at the University of Texas in Austin; the play Domínio do
Escuro (2015) by Juliana Pamplona; the movie The Watermelon Woman (1996),
by Cheryl Dunye and the movie Shortbus (2006), by John Cameron Mitchell. It is
a thesis organized in a non-historical corporeity in the normative sense of the
word, but woven as a gesture close to the one present in Aby Warburg’s Atlas, in
an effort to understand the hidden connection between different images that arise
as resistence to the norms of gender and sexuality, and to the normatized forms of
being together in modernity and in History.
Keywords
Home; house; queer; LGBT; homosexuality; archive; precarity; home-
movies.
Sumário
1. Introdução 09
1
“Los saberes dominantes se derrumban. No como las “twins Towers” se derrumbaron dejando
tras ellas una nube de polvo que alimenta la mitología-guerra sino, más bien, como se desdibuja
una forma sobre la superficie de una pantalla de Tetris o, mejor, como se desmaya un cuerpo que
se deja besar hasta la mordedura de una amante vampira.” (Preciado. Saberes_vampiros@War –
Donna Haraway y las epistemologías cyborg y decoloniales, 2013, np – Tradução livre)
2
De forma bem resumida, o movimento da pós-pornografia é um fenômenos transnacional e
funciona como uma intercessão entre as políticas queers, feminismo e cultura DIY (do it yourself,
faça você mesmo), defendendo a ideia de que devemos produzir uma pornografia independente, a
partir da apropriação das tecnologias sexuais que a produzem – indo de encontro com o ideal das
feministas anti-pornografia, que acreditam que o gênero colabora com a opressão das mulheres e,
por isso, deve ser combatido sob qualquer forma.
10
imagens, textos, clipes, filmes, objetos), que pudessem ser pensados como forças
de vida que agem nas brechas do poder.
3
Negrito meu.
4
Idem.
11
É uma lei-esquiza, dizem Deleuze-Guattari. Por que esquiza? O esquizo está presente e
ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está
dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem...
Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente ele entra em
confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe
submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o
jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções
dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que
foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo.
(Pelbart, 2008, p. 33-34)
5
Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/literaturadl_agosto2006.htm>. Acessado
em 13 de março de 2016.
6
A mostra, intitulada Derek Jarman: cinema é liberdade, aconteceu entre 5 e 24 de agosto de
2014 na Caixa Cultural do Recife (PE) e o catálogo está disponível em:
<http://www.mostraderekjarman.com.br/>. Acessado em 9 de março de 2016.
13
Utilizo tais perguntas, novamente, apenas como questões que nos ajudam a
criar um movimento no pensamento. A proposta desta tese não é, portanto, a de
encontrar uma “verdade” sobre as formas como a comunidade queer vivenciam o
lar e a casa, ou até mesmo a família. Ela foi organizada como uma materialidade
de outra espécie, com o intuito de “queerizar” a sua forma, produzindo fissuras e
fendas no que Elizabeth Freeman, em seu livro Time Binds: Queer Temporalities,
Queer Histories (2010), chama de “crononormatividade” histórica. Elaborei,
portanto, uma reunião de um corpus inspirada e atravessada pelo que Ann
Cvetkovich chama de “a arte do contra-arquivo queer” (2011) [The Queer Art Of
Counterarchive].
Considere o que você está para ler daqui em diante como uma paisagem
constelar de vidas que resistem, que insistem em viver e a respirar – com
intensidade, com potência, com paixão e, sobretudo, com a vontade de reinvenção
dos modos de amar, de viver junto, de cuidar, de produzir coletividade, de transar,
de decorar, de construir...
Tais objetos são, portanto, parte do que constitui a minha própria ideia de
“lar” – estão dispostos na minha estante, no meu armário, na minha mesa de
cabeceira, na minha pasta de arquivos virtuais privada, nas minhas paredes e na
16
Eve Sedgwick
E.E. Cummings
Miguel ressalta que a casa sempre teve como função essencial o abrigo da
família, podendo ser vista “como um microcosmo privado sempre em confronto
com o setor público, seja ele uma aldeia ou uma metrópole” A casa, com suas
paredes, teto, portas, regulando e restringindo a circulação entre interior e exterior,
seria, simbolicamente, “um castelo, uma fortaleza, um local de defesa contra as
agressões externas como um local de descanso e prazer.” (Ibid.). Mas ela foi
ganhando, com o tempo, outras significações, que não só a proteção contra as
ameaças externas. No livro Tudo sobre casa (2013), Anatxu Zabalbeascoa afirma
que o interior da casa passa a ter extrema importância para o indivíduo moderno,
citando o professor italiano de literatura inglesa, Mario Praz, para quem “a casa é
o homem”. Zabalbeascoa prossegue nos mostrando outras considerações acerca
do espaço arquitetural doméstico:
[...] o que levou Gogol a descrever em Almas mortas a solidez dos móveis da casa do
protagonista Sobakievitch como “pesados e fortes: cada objeto, cada cadeira, parecia
dizer: Também sou Sabakievitch”. Praz era feio quase no ponto da deformidade. Mas
necessitava do harmônico e do belo tanto quanto o ar. No entanto, também conhecia
como poucos as serventias de uma pose. Estava convencido de que a casa era uma
expansão, e também uma expressão do eu. “A casa é para o dono. E o dono, para a casa”,
sentenciou. Também, como Bertold Brecht escreveu que habitar significa deixar rastro.
(Zabalbeascoa, 2013, p. 17)
[o] gênero não é simplesmente performativo (isto é, um efeito das práticas culturais
linguístico-discursivas) como desejaria Judith Butler. O gênero é, antes de tudo,
prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído
e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. [...] É esse mecanismo de produção sexo-
prostético que confere aos gêneros feminino e masculino seu caráter sexual-real-natural.
(Preciado, 2014, p. 29)
[nós] vemos aparecer [no fim do século XVIII] uma forma de literatura política que se
interroga sobre o que deve ser a ordem de uma sociedade, o que deve ser uma cidade,
dado as exigências da manutenção da ordem; dado também que se deve evitar as
epidemias, as revoltas, promover uma vida familiar adequada e conforme a moral. Em
função desses objetivos, como devemos conceber a organização de uma cidade e a
construção de uma infraestrutura coletiva? E como nós devemos construir as casas? Eu
não estou sustentando que esse tipo de reflexão só aparece a partir do século XVIII; eu
digo somente que é no século XVIII que emerge uma reflexão profunda e geral sobre
essas questões. (Foucault, 2001, p. 1089) 1
1
“[...] on voit, au XVIIIe siècle, se developer une réflexion sur l’architecture en tant que function
des objectifs et des techniques de gouvernement des sociétés. On voit apparaître une forme de
littérature politique qui s’interroge sur ce que doit être d’une société, ce que doit être une ville,
étant donné les exigences du maintien de l’ordre; étant donnée aussi qu’il faut éviter les épidémies,
éviter les révoltes, promouvoir une vie familiale convenable et conforme à la morale. En function
de ces objectifs, comment doit-on concevoir à la fois l’organisation d’une ville et la construction
d’une infrastructure collective? Et comment doit-on construire les maisons? Je ne pretends pas que
20
ce type de réflexion n’apparaît qu’au XVIIIe siècle; j edis seulement que c’est au XVIIIe siècle
qu’il se fait jour une réflexion profonde et générale sur ces questions.” (Tradução livre)
2
« Ce changement n’est peut-être pas dans les réflexions des architectes sur l’architecture, mais il
est très perceptible dans les réflexions des hommes politiques. […] les villes, avec les problèmes
qu’elles soulèvent et les configurations particulières qu’elles prennent, servent de modèles à une
rationalité gouvernementale qui va s’appliquer à l’ensemble du territoire. » (Foucault, 2001, p.
1090-1091)
3
« On donne un sens très étroit au mot « technologie » : on pense aux Technologies dures, à la
technologie du bois, du feu, de l’électricité. Mais le gouvernement est aussi fonction de
technologies : le gouvernement des individus, le gouvernement des âmes, le gouvernement de soi
par soi, le gouvernement des familles, le gouvernement des enfants. Je crois qui si l’on replaçait
l’histoire de l’architecture dans le contexte de l’histoire générale de la techné, au sens large du
mot, on aurait un concept directeur plus intéressant que l’opposition entre sciences exactes et
sciences inexactes. » (Foucault, 2001, p. 1104)
21
assídua. Por outro lado, nos Estados Unidos, onde há uma larga pesquisa sobre o
assunto, pode-se observar que o ideal da família heteronormativa faz com que
40% dos moradores de rua sejam jovens auto-identificados como LGBTQs que
foram expulsos de casa por suas famílias no momento de seu coming-out4. Além
disso, segundo o Center of American Progress, de 320 mil a 400 mil jovens são
expulsos de casa com esse mesmo histórico por ano 5. Leo Bressani afirma, em
seu livro Is the rectum a grave? And other essays (2010), diante dessa assustadora
realidade que, no modelo de família normativa, “é mais provável que se inclua o
seu cachorro do que seu irmão homossexual” (Bressani, 2010, p. 9).
a “bicha escrota” (p. 183) que não é sexualmente reprodutivo nem cúmplice da identidade
familiar (heterossexista), [ele] representa a ameaça da sujeira, do lixo corpóreo, aquilo
que é problematicamente um produto do corpo familiar e, ao mesmo tempo, oposto a esse
corpo uma vez que é o arauto da morte. [...] Kristeva descreve o abjeto como aquilo que
perturba a identidade e a ordem: em outras palavras, porque o filho abjeto é tanto da
família quanto problematicamente alheio a ela em seu repúdio à sua responsabilidade
geradora, sua produtividade, ele coloca em perigo as aspirações familiares e uma
identidade estável. (Posteriormente no romance, quando é dito a Eduardo que ele é
ilegítimo, seu liame com o corpo familiar torna-se exclusivamente maternal explicando,
talvez, a repulsa intensificada do domus patriarcal). Entretanto, porque a participação da
família no hegemônico é definida pelo ato de descartar ou exilar o filho, a expulsão
precisa ser indeterminadamente reiterada para que a cumplicidade com a ortodoxia social
seja reafirmada. (Posso, 2009, p. 51)
Ser repelido da casa dos pais é uma experiência traumática pela qual
muitos LGBTs passam, e que costuma vir junto do o ato de “sair do armário” para
a família, já que a não aceitação muitas vezes é seguida de violências psicológicas
ou físicas. No caso de Eduardo, ele sofre a violência psicológica da rejeição:
Eduardo se sentia então como um saco de batatas que tinha sido atirado num canto da
casa pelos pais. Não entendia a maneira radical como se distanciavam dele, desmentindo
todas as teorias que eles mesmos lhe tinham inculcado desde criança sobre os laços de
sangue, a união e a família. Vejo a intolerância, a punição pelo silêncio e pelo
distanciamento. Querem me massacrar, pensava Eduardo, quando se dava conta de que
queriam se livrar dele como de um objeto cuja utilidade tinha sido perdida com o uso.
“Me joguem no lixo. Me façam esse favor.” [...] Janelas fechadas, corpo suado estirado
pelo lençol já úmido, o sol de Copacabana quente lá fora, mar e praia de verão piscando,
convidando, vem! Dentro do quarto silêncio, penumbra, tristeza e minhocas
minhoquinhas e minhoconas escarafunchando as ideias, pensamento de sumir do mundo
pela falta de apoio dos pais, de compreensão [...] (Santiago, 1985, p. 25 – grifos do autor)
7
Feita durante o período de Doutorado Sanduíche (de 2013 a 2014) com bolsa CAPES, na França,
sob orientação de Marie-Hélène Bourcier, professora da Université de Lille 3.
25
8
“Although we recognize that young people grow up in a variety of family forms, and may have
experiences of living in more than one household, home(s) is still the site where young people
spend lengthy periods of time with a parent or parents and siblings. It is in the home that
understandings about young people’s maturity and morality are often constructed by parents
through rules about spatial and temporal boundaries. Even when young people leave home, the
family home is still the site through which many of their individual biographies and expectations
are routed and consequently where the emotional functioning of the family is often played out. As
such, it is important to recognize the transitional processes that take place within the family
home(s), rather than just those that occur at the wider can have consequences for young people’s
identities and social relations in the spaces that stretch beyond them.” (Valentine; Skelton e Butler,
2003, p. 481). (Tradução livre)
28
O trauma doméstico queer, portanto, pode ser observado por outro viés,
abrindo as experiências históricas e sociais em termos afetivos, como afirma
Cvetkovich. “A abordagem queer do trauma pode apreciar formas criativas
através das quais as pessoas respondem a isso”9. Como consequência da
experiência traumática de Eduardo/Stella podemos perceber a construção de uma
9
“Queer approach to trauma can appreciate the creative ways in wich people responde to it”.
(Tradução livre)
29
2.1
A casa como ferramenta de resistência
Preciado leva em conta que é possível apontar para um contrato social que
não seja somente o da natureza heterocentrada, é o que ela chama de um contrato
contrassexual (Preciado, 2014, p. 21). Nesse contrato não nos reconheceríamos
como homens ou como mulheres, “e sim como corpos falantes” que
Kentlyn salienta que por termos uma ideia da casa, como já mencionado
anteriormente, como fortaleza, ou um castelo onde nos refugiamos, temos, ao
mesmo tempo, a noção de que, por ela ser um espaço privado, sentimos que ela
está “livre da observação e jurisdição tanto das autoridades civis, quanto da
interferência geral de outras pessoas.” Por conta disso, nos países onde a
homossexualidade não era proibida por lei, ou onde as leis proibitivas foram
extintas, a casa se torna o lugar onde as atividades sexuais não-heteronormativas
puderam ter seu espaço.
queer não garante a existência de um “espaço seguro” (safe space) – o que fica
claro, no Romance de Silviano Santiago, no decorrer da vivência do próprio
Eduardo, principalmente na sua relação com o coronel Vianna.
10
“que se materializaba a través de marcadores especiales clave como ‘la calle’, ‘el barrio’, ‘la
ciudad”, y también [...] ‘la familia’” (Tradução livre)
32
Se a mera confrontação visual supõe tremenda ameaça imaginária, não é difícil ver que
esta reação fóbica não somente expõe o medo em relação “ao outro ameaçante” de que os
vizinhos supostamente queriam se defender, mas, fundamentalmente, o medo da própria
falibilidade de que essa sexualidade normativa pudesse ser facilmente desestabilizada
pelo mero poder das imagens, o medo dos “vizinhos” sobre o que poderia acontecer se
outras sexualidades, gêneros e práticas sexuais entrassem em seu campo de visão, põem
em manifesto a instabilidade constitutiva de um mundo heteronormativo sensivelmente
vulnerável e cuja ordem depende pura e exclusivamente da repetição de suas normas e
práticas para poder sobreviver. (Ibid., p. 155) 11
Stella não se deixa abalar pela “velha gringa” que a segue observando
através da vidraça da janela: “Não brinca, não brinca com Stella, velha megera,
porque você não sabe do que ela é capaz. Um dia ela ainda te torrrce o pescoço”
(Santiago, 1985, p. 13). O narrador explica que a vizinha sabe do que Stella é
capaz, já que cruzou com “ele” na rua, e lhe disse “cobras e lagartos” para que
“deixasse de ser enxerida na vida dos outros” (Ibid., p. 13). A personagem deixa
claro que não leva desaforo pra casa, e que a vigília heteronormativa dos vizinhos
não a intimidará, muito pelo contrário: Stella/Eduardo resiste, encara a velha e a
faz sumir por detrás da sua “cortina encardida”. Stella prossegue com seus
afazeres de casa.
Kentlyn chama a atenção em seu artigo para o fato de que os lares queers
provocam uma rasura nos papéis exercidos através dos trabalhos domésticos –
papeis que são mantidos, de forma geral, nos lares heterossexuais. Nos lares
queers, a performance desses serviços ainda produz o gênero, mas não dentro do
que entendemos convencionalmente como masculinidade e feminilidade.
Algumas mulheres lésbicas que ela entrevistou não fazem trabalho doméstico ou
se recusam, como forma de burlar a norma patriarcal: “O seu lar é um lugar
seguro onde podem performar uma espécie de feminilidade ‘fora da lei’
11
“Si la mera confrontación visual supone tremenda amenaza imaginaria, no es difícil ver que esta
reacción fóbica no solo expone el medo hacia ‘el otro amenazante’ del que supuestamente los
vecinos querrían defenderse, sino más fundamentalmente, el miedo de la propia falibilidad de que
esta sexualidad normativa pudiese ser fácilmente desestabilizada por el mero poder de las
imágenes, los miedos de ‘los vecinos’ acerca de qué podría suceder si otras sexualidades, géneros
y prácticas sexuales entrasen en el campo de visión, ponen de manifiesto la inestabilidad
constitutiva de un mundo heteronormativo sensiblemente vulberable, y cuyo orden depende pura y
exclusivamente de la repetición de sus normas y sus prácticas para poder sobrevivir.” (Tradução
livre).
33
Faz de conta que amarra um lencinho colorido da Azuma na cabeça para proteger os
cabelos da poeira, fazendo turbante com coque atrás; faz de conta que veste vestidinho de
chita leve e sem mangas e, for sure, sem cinto, que as carninhas ainda estão duras, duras!
e pinça as nádegas de um lado e do outro para comprovar, fingindo não perceber as
gordurinhas do inverno nas ancas. Faz de conta que calça alpercatas havaianas, que pega
vassoura e aspirador e “la-ra-li-la-ra-li”, sai de aspirador de pó em punho para a faxina
semanal, quebrando o corpo pela cintura e empurrando as pernas para a frente como se
elas estivessem em contradição com as costas que se inclinam mais e mais para trás. Uma
graça – olha-se no espelho da sala, e hum hum coisinha fofa da mamãe, belisca as
bochechinhas afogueadas pelo vento frio da manhã. Sou di-vi-na ou não sou? -- imita
Branca de Neve sem os sete Anões. Quanto Príncipe Encantado, Rickie, não daria tudo,
tudo, por esta brejeira doméstica dos trópicos! E você me pede, ao se despedir, vinte
dólares pro táxi. (Santiago, 1985, p. 15, grifo do autor)
No entanto, como Judith (Jack) Halberstam propõe em seu livro The queer
art of failure (2011), “para os queers a falha pode ser um estilo” (Halberstam,
12
“Their home is a safe space in which to perform a kind o ‘outlaw’ femininity represented by
domestic incompetence – as long as it remains private. […] Others see domestic labour as
embodyin an ethos of care for those they love, even while they may acknowledge that this makes
them vulnerable to exploitation”. (Tradução livre)
34
2011, p. 3) 13. O autor nos mostra que a falha é imprescindível para o capitalismo,
já que o mercado econômico necessita de ganhadores e perdedores, e os
perdedores não deixam nenhum registro de suas vidas, ao contrário dos
ganhadores; o registro da falha é, para Scott Sandage, citado por Halberstam,
“uma história escondida do pessimismo em uma cultura do otimismo” (Ibid., p.
88)14 .
A falha de Halberstam tem direta relação com o que ele está conceituando
como otimismo, por mais contraditório que pareça à nossa lógica metafísica
instituída, e direta relação com o que o que tento aqui pensar e elaborar sobre esse
conceito. O que as vidas queers carregam como falha produz vulnerabilidades, já
que a falha é justamente em relação a todo esse estilo normativo e capitalista
dominante. O jovem queer que falha em relação às regras heteronormativas da
casa, por exemplo, sofre com as duras consequências de falhar, tais como a
rejeição e a expulsão do lar – como no caso de Eduardo, justamente por “falhar”
ser seu estilo. Mas, as vidas resistem. Há uma esperança vital, uma vontade de
potência, que dá à falha queer seu caráter mais produtivo, criativo, mesmo ela
produzindo uma ferida. Essa ferida é uma abertura que é ao mesmo tempo dor e
possibilidade. Possibilidade de algo novo, de um porvir.
13
“for queers failure can be a style” (Tradução livre).
14
“the record of failure is ‘a hidden history of pessimism in a culture of optimism” (Tradução
livre)
15
“recategorize what looks like inaction, passivity, and lack of resistance in terms of the practice
of stealing the business of the dominant.” (Tradução livre)
35
16
“Desde luego, no toda seriedad que fracasa puede ser reivindicada como camp. Sólo aquella que
contiene la mezcla adecuada de lo exagero, lo fantástico, lo apasionado y lo ingenuo”. (Tradução
livre)
36
O adido militar Vianna, que tinha colocado o apartamento que usava para
vestir-se como a Viúva Negra (seu duplo homossexual sadomasoquista) no nome
de Eduardo, um belo dia apareceu com a notícia que comunistas haviam
arrombado o imóvel e pichado imagens de suásticas pelas paredes, além de
inscrições com as palavras “nazista”, “torturador”, “fascista”, “pig”, “gorila”
(Santiago, 1985, p. 64). Vianna vem pedir ajuda a Eduardo, porque precisava
mudar de roupa (para não chegar vestido de couro no apartamento onde vive com
a sua família) e para dizer a Eduardo que ele teria que rescindir o contrato do
aluguel, cuidar do chaveiro e mentir para a imobiliária. Eduardo contém a fúria, já
que havia assinado o contrato apenas para ajudar ao coronel a “despistar”
qualquer desconfiança da sua relação com o imóvel e de, sobretudo, dos motivos
que o levavam a precisar alugá-lo. O coronel pede sigilo e vai embora, ao que se
sucede uma cena exemplar do exagero e da intensidade camp no surgimento da
persona Stella e na narrativa de Santiago:
Eduardo caminha para o quarto. Disca para o Marcelo. A campanhia soa soa. Ninguém
atende. Tira os sapatos e se deita na cama de roupa e tudo. Mal se deita, Stella grita: “Me-
rrrr-da! Me-rrrrr-da!” um grito lancinante de quem corta o dedo em faca afiada, ou quebra
sem querer a louça de estimação (é isso que sente). Fica com o olhar parado diante do
irremediável. Tem vontade de buscar mercurocromo ou cola-tudo mas não há anti-séptico
ou cola que resolva a dor que experimentava. Fica inerte, sem fechar os olhos, sem abrir a
boca, apenas a respiração compassada mas sôfrega porque artificial sai das narinas
chegando sonora aos ouvidos. Escuta o barulho da própria respiração como outros ficam
contando carneirinhos. O sono não chega, nem a intensidade do som vai-se amortecendo.
Permanece a claridade como a única alternativa para deixar o dia continuar. (Santiago,
1985, p. 98)
Eduardo não tem mais. Eduardo nunca teve. Pensou que tivesse, o bobo. Pensou errado.
Ninguém tem Eduardo. Ninguém teve Eduardo algum dia. Sente-se tão solto, tão solto
que todo o ambiente concreto e pesado ao seu redor parece reduzido a puro ar. Uma pedra
no ar. Um avião. Um meteorito. Um acrobata liberado da gravidade. Nada o puxa mais
para a terra. Um corpo que não atrai e que não é atraído. Solto. Eduardo pensa que deve
ser isso o sentimento mais profundo de solidão. Um corpo desprovido de forças de
atração. Passageiro pelo vazio, pelo vácuo, pelo oco do mundo, sem outro destino que o
37
vagar, perambular pela atmosfera rarefeita dos céus, sem reagir à força dos ventos, apenas
sendo levado de um lado para outro como folha seca. Outono. Outono lá fora. Na solidão
o homem não tem peso, tem densidade menor do que a da água, por isso voga pelas
ondas. Voga, flutua, sem amarras, sem correntes, sem laços, é isso que Eduardo sabe
agora que já sabe que não tem mais. (Santiago, 1985, p. 231)
As duas placas da dobradiça e seu eixo dizem que a identidade (do ser) está para ser
montada/desmontada como os Bichos, de Lygia Clark, ou as Poupées (Bonecas), de Hans
Bellmer. A identidade de gênero não é fixa nem imutável. É nômade. Coincide, no
38
17
Disponível em: <http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/85-cronica/1471-
stella-manhattan,-30-anos-depois.html>. Acessado em 29 de fevereiro de 2016.
39
Se esse modelo não comporta tantos membros, sejam eles jovens ou até
mesmo pais LGBTs, a ponto de excluí-los de sua organização, a ponto de causar a
sua morte, é um sinal de que se torna imperativo expandir o conceito.
Ressignificar a família não é declarar o seu fim, a sua destruição, como
proclamam os criadores do Estatuto da Família, aprovada no Congresso Brasileiro
18
em 2015 e que pretende defini-la como formada a partir de homem e mulher,
excluindo diversas configurações familiares, não só homoafetivas, mas
organizadas a partir da figura de uma mãe solteira, de tias, irmãos órfãos, etc.
Pretende-se, por isso, uma expansão do conceito de família, de lar, de casa,
retirando-os do âmbito da instituição heteronormativa, para que as suas teias
significantes comportem outras formas de afetividade, de acolhimento, e de
convívio.
18
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-
HUMANOS/497879-CAMARA-APROVA-ESTATUTO-DA-FAMILIA-FORMADA-A-
PARTIR-DA-UNIAO-DE-HOMEM-E-MULHER.html>. Acessado em: 25 de outubro de 2015.
40
É nessa fresta aberta na norma que Silviano Santiago produz em seu livro,
é o que excede o “home sweet home” tradicional, o que se desloca para a sua
borda, que o lar e a família são ressignificados. O livro de Silviano faz parte do
caldeirão minoritário das vidas que excedem e que se tornam vulneráveis, mas
que resistem. Há uma força nessas vidas, uma faísca ativa, que poderia ser
comparada à “potência do menor”, que conceitua Gilles Deleuze e Felix Guattari
em “Por uma literatura menor”.
(David Bowie)
1
Há também um capítulo inteiro dedicado a essa temática do sadomasoquismo em Sebastiane,
presente no livro The Queer Cinema of Derek Jarman (2009), de Niall Richardson. No momento
não me dedicarei à temática, já que me aterei aos curtas do diretor, no presente capítulo.
44
2
HOYLE, Brian. Derek Jarman: Radical Traditionalist. Senses of Cinema, Issue 43, Maio de
2007.
45
executado com a 16mm. Jarman declara que esses filmes têm um papel central na
sua cinematografia, e que ele os considerava, talvez, mais interessantes que seus
longas-metragens, porque eles falavam mais diretamente da a sua experiência, de
certo modo, “apesar de ser difícil de convencer às pessoas disso”. Ele diz que se
orgulha de fazer esses filmes, e que, na época dessa entrevista, um ano antes de
sua morte, ainda os fazia.
fotográficas. Isso explica a esmagadora percepção dos filmes caseiros como imagens
banais de pessoas rígidas, sorrindo desajeitadamente para as câmeras. (Idem, 2000, p. 24)
3
Lins e Blank mostram, através de Susan Aasman em seu artigo “Le film de
famille comme document historique” (2012), que os filmes de família remontam a
uma tradição que vem de antes do surgimento da câmera de filmar: “a dos retratos
de família pintados como um gênero, que aparecem na Renascença com a
ascensão da burguesia” (Lins e Blank, 2012, p. 57).
O que emergiu desses manuais foi um conjunto de normas e de rituais domésticos que
criaram um ideal mítico do dia-a-dia a ser aspirado. A ideia de um “dia-a-dia normal”
inscreveu papéis de gênero assim como apagou as diferenças sexuais e raciais. Uma
ruptura emerge, no entanto, quando as práticas dos filmes caseiros são colocadas em cena
por aqueles que são excluídos pelo discurso dos manuais, assim como foi o uso das
câmeras de filmes caseiros nos campos de prisionais Japoneses. Se o dia-a-dia é para
3
“The emergence of film equipment into the mass-market created users who had little idea about
how to record moving images. Indeed, for the most part, users tended to replicate the images
recoded with still cameras. This accounts for the overwhelming perception of home movies as
banal images of stiff limbed people smiling awkwardly into the cameras .”
47
existir como um conceito culturalmente viável, ele deve emergir em uma complexidade
heterogênea. (Idem, 2000, p. 35) 4
O que Derek Jarman fazia em seus home movies era justamente isso: uma
redefinição do lar através do imenso universo que produziu com eles. Jarman fazia
questão de chamar seus filmes amadores de filmes caseiros (home movies). Jim
Ellis, em seu livro Derek Jarman’s Angelic Conversation (2009), diz que Jarman
“reivindica uma tradição familiar e a reconfigura” (Ellis, 2009, p. 18), e que
Jarman reivindica também a propriedade desses termos, “casa” e “família”. Em
uma entrevista concedida à revista Marxism Today, em outubro de 1987, na época
do lançamento de seu filme The Last Of England , Jarman diz:
Eu tento deixar tudo muito perto do conceito de casa, que é, talvez, algo que é difícil pra
mim, porque eu sou gay. É duro de estabelecer ‘casa’ sendo um homem gay. Meus filmes
caseiros, portanto, relatam um mundo muito diferente desse representado pelo meu avô e
pelo meu pai. Eles apresentaram um caminho através das cerimônias da vida
heterossexual: casamentos e luas-de-mel. 7
3.1
O íntimo é político
7
“I try to keep everything very close to the concept of home, which is perhaps something which is
difficult because I am gay. It is hard to establish 'home' being a gay man. My home movies
therefore reported a very different world to that presented by my grandfather and my father. They
presented a way through the ceremonies of heterosexual life: marriages and honeymoons.”
8
Eu chamaria aqui também de “cinema menor”, fazendo referência ao conceito desenvolvido por
Deleuze e Guattari no livro Kafka: Por uma literatura menor.
49
que, em uma data imprecisa, entre as décadas de 1970 e 1980, estava em Paris
durante um período no qual os eventos de cinema experimental faziam parte do
cotidiano do Centre Georges Pompidou. Em uma dessas ocasiões, teve o primeiro
contato com os vídeos em super-8 de Jarman, com o próprio diretor projetando
não de dentro da cabine, mas na própria sala de exibição, entre os espectadores.
Beauvais se espantou com o acontecimento: “Notei que o artista estava fazendo
em público algo que com frequência é privado, a projeção de diários. Sua projeção
é geralmente uma experiência compartilhada com a família, em um círculo de
amigos ou de relações estreitas, mas isso não foi antes de Jonas Mekas 9 e alguns
outros terem feito disto uma experiência pública.” (Beauvais, 2014, p. 120) Como
Ana Kiffer afirmou em seu curso intitulado “Cadernos do Corpo” (2015), sobre os
cadernos experimentais e de notas que geralmente os artistas guardam nas suas
gavetas, ou seja, no contexto íntimo, mas que têm passado a ser matéria de suas
práticas artísticas:10 “o íntimo não encena a si mesmo, mas passa a fazer parte de
um comum, da política do mundo”. Derek Jarman reverte o modo de utilização
desses vídeos caseiros, normalmente exibidos, assim como os cadernos
preparatórios de artistas se reservam aos arquivos íntimos, entre familiares e
amigos, mas dentro de um contexto íntimo, doméstico. Jarman, como observamos
a partir da narração de Beauvais, os exibe para um público mais amplo, não se
restringindo ao contexto privado, e como parte de sua produção artística. Talvez
pelo fato de essa experiência íntima fazer parte de um comum, como afirma
Kiffer, de um comum que é político.
Devo admitir que nessa época eu conhecia muito pouco sobre outros cineastas
independentes. A moda da época para cineastas independentes eram os filmes
9
Jonas Mekas, a quem Beauvais se refere, é um poeta e artista lituano-americano conhecido como
um dos expoentes do cinema de vanguarda dos Estados Unidos.
10
Curso ministrado dentro do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no primeiro semestre
de 2015. Faço referência a um comentário feito por Ana Kiffer durante um dos dias do seminário.
50
estruturalistas. Eles acharam Sebastiane muito autoindulgente. Mas eu acredito que nós
precisamos de um cinema que inclua mais disso que é chamado de autoindulgência e
menos teoria. Nós poderíamos fazer um cinema muito mais vibrante se as pessoas
explorassem quem eles são em sua grande variedade e se usassem isso como ponto de
referência para fazerem seus filmes. 11
11
I have to admit that at this time I knew very little about other independent film makers. The
fashion at the time for independent film makers was structuralist films. They found Sebastiane
very self-indulgent. But I believe we do need a cinema that includes more of what is called self-
indulgence and less of theory. We would have a much more vibrant cinema if people actually
explored who they were in all their great variety and used that as a yardstick from which to make
their films.
51
Jarman, que também era pintor, declarou certa vez que não pôde encontrar
nos quadros o que encontrou nos filmes, porque “[o] mundo da pintura era estéril,
um mundo vazio” (Jarman apud Wymer, 2005, p. 34). Talvez pelo fato de a
tradição modernista da pintura, tal como afirma Rancière, ter apresentado a
“revolução abstrata como a descoberta pela pintura de seu ‘medium’ próprio: a
superfície bidimensional” (Rancière, 2009, p. 22). Rancière discorda do preceito
modernista, argumentando que a superfície do quadro não poderia ser apenas
“uma composição geométrica de linhas”, sendo, na verdade, “uma forma de
partilha do sensível.” (Idem, 2009, p. 22). Rancière mostra ainda que Platão
considerava a superfície da pintura como um “signo mudo, ao contrário da palavra
vida. Não seria, portanto, algo do caráter do plano versus o tridimensional, mas
algo como o plano versus o “vivo”. O Renascimento, que talvez por isso tenha
fascinado tanto a Jarman, inseriu a terceira dimensão na pintura para captar o
“vivo” que escapava ao plano, no esforço de dar ao quadro a possibilidade de
manifestar a ação da potência do vivo (Idem, 2009, p. 23).
Eu descobri o meu mundo nos filmes”, declarara (Jarman apud Wymer, 2005, p.
35). O comum é político em Jarman na medida em que a partilha do sensível
queer que pulsa nos seus filmes nos coloca diante de outros modos de vivência e
de estar junto.
12
“The Nizo super-8 camera which Jarman began using in 1972 had a button which enabled the
film maker to shoot at different speeds. Jarman developed a favourite technique os shooting at
only three or six frames per second, something which result in manically jerky movements if
53
filmes caseiros tive a impressão que estava diante do contrário, de algo mais
próximo do que Kiffer afirma sobre a obra de Antonin Artaud, em seu artigo
“Limites da escrita ou como fazer da escrita uma plástica poética?”. Segundo
Kiffer, nos trabalhos de Artaud, o que é um rompimento com o figurativo não é
necessariamente uma rendição à forma abstrata, então, “o não figurativo em
Artaud encontra ressonância na busca de crivar os corpos com as forças que os
atravessam (…) esses corpos não figurativos da plástica artaudiana são corpos-
força, o crivo é a eficácia em fisgar, atravessar, perfurar com as forças os corpos.
Seria possível dizer que as forças seriam a base de toda e qualquer matéria.”
(Kiffer, 2008, p. 2008).
Uma montanha de cinzas pega fogo e alguns pedaços voam com o vento.
O vento está agitando o fogo. Esse é o primeiro plano de The Art of Mirrors
(1972). Após cerca de trinta segundos a cena muda. Uma figura está parada no
lado direito do plano e segura um pequeno espelho arredondado que reflete uma
luz contra a câmera, atravessando o olhar do espectador. A luz vai e volta, fazendo
com que a cena escureça e se ilumine, conforme a lente da câmera Super-8 recebe
menos e mais luminosidade. Logo em seguida podemos vislumbrar a silhueta de
outra figura de perfil, elegante, com um vestido de costas nuas e um chapéu com
um lenço amarrado em seu topo, pendente por detrás das costas. A imagem
permanece assim por alguns segundos, a luz oscilando, mais e menos ofuscante,
em nossos olhos. Em seguida o plano se abre e podemos ver que a figura que
segura o espelho usa um terno preto e uma máscara que se assemelha a um saco
de pano com olhos e boca, fazendo-a ter um aspecto monstruoso. Um homem de
cabelos no ombro, com porte dandy, também de terno preto, passa na frente da
câmera segurando uma comprida vela branca. As figuras trocam de lugar, espelho
passa de mão em mão, sempre refletindo luz nos nossos olhos. A última figura a
pegar o espelho é a mulher de vestido. O curta termina com ela se aproximando da
screened at a normal speed, but when projected at the same slowed down rate created a more
languorous, dreamlike effect .” (Wymer, 2005, p. 26)
54
O que temos em The Art of Mirrors, que faz parte do segundo grupo de
curtas, os mais oníricos, não é uma simples construção imaginativa ou uma
fabulação. O espelho reflete a luz nos nossos olhos, ofusca a nossa vista, nos
incomoda. As figuras são soturnas, monstruosas, andróginas. Os corpos
projetados na tela nos tocam com a luz. Aqui temos uma experimentação fílmica
em um campo intensivo, afetado. Jarman nos leva a um lugar de borda, entre o
sonho e a realidade. O corpo de luz invade nossa retina com violência, nos
fazendo lembrar que estamos diante do encontro com outros corpos – que nos
atravessam, que nos alteram. Parece que Jarman enxerga que há a possibilidade de
um outro modo de existência, de uma utopia ou de uma heterotopia, nessa
afetação com espaços outros.
55
Figura 6: Frame do curta em Super-8 The Art of Morros (1972), de Derek Jarman
Figura 7: Frame do curta em Super-8 The Art of Morros (1972), de Derek Jarman
56
The Art of Mirrors nos leva ao “domínio da ação e da paixão dos corpos”
como Deleuze descreve as profundezas de Alice no capítulo intitulado “Lewis
Carrol”, presente em Crítica e Clínica (2011, p. 34). O espelho de Jarman nos
leva a essas profundezas, para um submundo queer. “Nas profundezas tudo é
horrível, tudo é não-senso” (Idem, 2011, p. 34).
Didi-Huberman inicia seu ensaio com as duas luzes de Dante, cujo valor e
potência irá reverter: a grande luz (luce) do paraíso e a “pequena luz” (lucciola),
do inferno. No inferno, “o espaço todo é salpicado – constelado, infestado – de
pequenas chamas que parecem vagalumes, exatamente como aquelas que as
pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar, aqui e ali, ao acaso
de deu esplendor discreto, passante, tremeluzente” (Didi-Huberman, 2011, p. 11).
A luz do paraíso seria a da dilatação gloriosa, a grande claridade das alegrias
celestiais. O fraco lampejo do inferno é o “dos erros que se arrastam sob uma
acusação e um castigo sem fim”, destino de “conselheiros pérfidos” e políticos
desonestos. (Idem, 2001, p. 13). A grande luce seria a das entidades celestes de
Dante, e a multidão de lucioles, as coisas terrestres e paixões humanas. (Idem,
2011, p. 13)
13
[Bauen, Wohnen, Denken] (1951) conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de
darmastad”, publicada em Vortäge und Auʄsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954. Tradução de Marcia
Sá Cavalcante Shuback
58
...e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos
amorosos e suas luzes, enquanto nós estávamos secos e éramos apenas machos numa
vagabundagem artificial (...) Pensei então em como era bela a amizade, e as reuniões dos
rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes e não se preocupavam
com o mundo à sua volta... (Pasolini apud Didi-Huberman, 2011, p. 19)
Essa dança viva dos vagalumes no meio das trevas, esses pequenos
lampejos, nada mais são, segundo o filósofo, do que “uma dança do desejo
formando comunidade”. A pequena luz do vagalume, a sua luce, é uma pequena
força de atração, uma exibição sexual, a fim de atrair outros corpos-vagalumes até
eles, ou, em algumas espécies do bicho, uma forma de um vagalume atrair outro a
fim de devorá-lo. (Idem, 2011, p. 55). Pasolini e Jarman, com seus lampejos,
formaram suas comunidades afetivas e sexuais, mas também foram devorados: o
primeiro pelo garoto de programa que o matou na praia de Óstia; e o segundo pelo
vírus da AIDS. O encontro e a mistura dos corpos pode ser vital ou fatal.
pele de jovens niilistas punks. A rainha da Inglaterra solicita ao anjo Ariel que a
leve para o futuro, porque quer obter conhecimentos que outras pessoas não
podem ter. O anjo desce dos céus e reflete uma pequena luz, através de um
espelho redondo, que segura na altura da cintura – gesto que já observamos no
filme caseiro The Art of Mirros. A Rainha diz para seu conselheiro, “Essa visão
excede todas as expectativas. Jamais presenciei tamanha sublimação”, e o
conselheiro responde: “Um anjo, majestade, é o sol da verdadeira escuridão”. Mas
ao responder a solicitação da rainha, Ariel diz: “Eu lhe revelarei a sombra desta
época.”
14
Segundo Philip Auslander, em seu livro Performing Glam Rock: Gender and Theatricality in
Popular Music (2006), a primeira manifestação do Glam Rock foi na Inglaterra, década de 1970,
com a banda T-Rex. O glam se insere no contexto das subculturas jovens do pós-guerra na Europa,
e seu auge é no lançamento do álbum Ziggy Stardust de David Bowie, ainda no início dos anos
1970, que encarna o estilo do glitter rock, como também era conhecido o glam: uma estética camp,
de maquiagens e cabelos ousados e coloridos, roupas andróginas, na criação de um visual “de
outro mundo” – Ziggy Stardust era a persona de Bowie “vinda do planeta Marte”.
61
O lema de nossa escola é “Faites vos désirs réalité”. Façam de seus desejos uma
realidade. Particularmente, prefiro a música “Não Sonhem, Sejam”. “Naquela época, os
desejos não podiam se tornar realidade. Por isso, a fantasia era substituída por eles:
filmes, livros, fotos... Eram chamados de “arte”. Mas quando seus desejos se tornam
realidade... não precisam mais de fantasia, ou de arte. Sempre me lembrei do lema da
escola. Quando criança, minha heroína era Myra Hindley. Lembram-se dela? Diziam que
os crimes de Myra estavam além das crenças. Mas isso porque na época ninguém tinha
imaginação. Não sabiam como tornar seus desejos realidade. Não eram artistas como
Myra. Hoje, alguém pode sorrir com inocência. Quando, no meu aniversário de 15 anos a
Lei e a ordem foram finalmente abolidas todas aquelas estatísticas, substitutas para a
realidade... desapareçam. A criminalidade caiu para zero. Quem acreditava em estatísticas
naquela época? Apenas os seres vitais. Em todo caso, comecei a dançar. Eu queria
desafiar... a gravidade. 15
15
Jarman, 1978, 00:08:22,453
16
O pas de deux foi composto especialmente para a bailarina Maria Gorshenkova e, por questões
de direitos autorais que existiam na época, somente ela poderia interpretar esse trecho. Por conta
disso, essa cena foi raramente interpretada no teatro de São Petersburgo, e a única versão
conhecida da música é uma gravação do Bolshoi Theatre Orchestra, conduzida por Algis Zhuraitis
e lançada em LP em 1967. Durante muito tempo a origem da música de Jordan’s Dance ficou
62
Figura 10: Frame do curta Jordan's Dance (1977), de Derek Jarman, que foi inserido
como uma cena do longa Jubilee.
Em seu pequeno artigo intitulado “At Home With Derek Jarman” (2014),
Matt Cook trata da casa de veraneio de Jarman, conhecida com Prospect Cottage,
que fica em Dungeness. Essa casa, a mesma onde ele cultivou seu famoso jardim,
foi uma importante ferramenta na sua produção cinematográfica, no seu ativismo
e também no seu estilo de vida queer. Além disso, Cook vê em Prospect Cottage a
evidência de que não é possível construir um lar sem essa relação entre passado e
presente que atravessa seus longas-metragens, como Jubilee, por exemplo,
supracitado e, claramente, os curtas – pela herança da tradição dos home movies e
por retratar esses espaços híbridos que ele ocupou e viveu:
desconhecida e a descoberta foi feita através de debates no site fórum Talk Classical – Classical
Music Forums.
63
17
“Home is never only the present. A sense of personal robustness and sometimes political
resistance can emerge through a tacking back and forth between homes past and present --
especially for those who felt and feel socially or culturally marginalized. We see this vividly in the
way Prospect became a place of resilience for Jarman in troubled times and a resonant memorial to
him after his death.”
18
“I find myself (...) that all the years that have passed should lead to Prospect Cottage – perhaps it
is the tin roof which reminds me of the Nissen huts of na RAF childhood in the forties”.
64
amantes que passaram pelo seu flat na Charing Cross Road em Londres. Muitos
desses amigos já haviam morrido antes de Jarman falecer em 1994.
retratada depois dessas cenas iniciais, então grande parte dos amigos presentes são
parte do elenco do longa.
O apartamento de Sloane Square foi onde estava o elenco para Sebastiane, onde ele pixou
as paredes, antecipando o set design do seu segundo longa-metragem Jubilee. Foi também
onde ele filmou e documentou sua vida e amigos, antes de o apartamento ser vandalizado
e abandonado. Sloane Square foi co-dirigido por Jarman e Guy Ford, e (...) [é] um excerto
de um fazer cinematográfico pessoal, político e artístico... (Gallagher, 2014) 19
Figura 12: Frame de Sloane Square: A Room of One's One (1976), de Derek Jarman
Figura 13: Frame de Sloane Square: A Room of One's One (1976), de Derek
Jarman
19
“The apartment at Sloane Square was where Jarman cast for Sebastiane, where he spray–painted
the walls, anticipating the set designs of his second feature Jubilee. It was also where he filmed
and documented his life and friends, before the apartment was vandalized and abandoned. Sloane
Square was co-directed by Jarman and Guy Ford, and has been described as “the most situationist
of [Jarman’s] early films, in terms of both content and structure. It’s a peace of personal, political
and artistic filmmaking.” Disponível em:
http://dangerousminds.net/comments/derek_jarman_early_super_8_movie_sloane_square_a_room
_of_ones_own. Acesso em: 18 de novembro de 2015.
66
20
Ver Figura 1.
21
Ver em Cook, 2009, p. 230.
67
de Bankside como uma nova versão do lar”.22 Jarman diz em uma entrevista
presente no catálogo da mostra que ocorreu na Caixa Cultural de Recife em 2014,
intitulada Derek Jarman: Cinema é Liberdade:
22
Ellis, “Angelic Conversations”, 18.
23
Jarman trabalhou na cenografia do filme The Devils, de Ken Russel, e foi nesse período que teve
uma grande crise com a indústria cinematográfica e decidiu produzir filmes independentemente ou
com financiamentos particulares.
68
Foi assim, nesta domicialização, nesta obtenção consensual de domicílio, que os arquivos
nasceram. A morada, este lugar onde se de-moravam, marca esta passagem institucional
do privado ao público, o que não quer sempre dizer do secreto ao não-secreto. (É o que se
dá, por exemplo, em nossos dias, quando uma casa, a última casa dos Freud, transforma-
se num museu: passagem de uma instituição a outra. (Ibid., p. 13)
1
“the ‘archive fever’ catalyzed by the silencing neglect, and stigmatization of queer histories, is a
particularly powerful force, echoing the ferocity and perversity of queer sexual desire” (Tradução
livre)
72
através do Lesbian Herstory Archives, que começou como uma casa que abriga a
maior coleção de materiais de lésbicas (e para lésbicas) e sua comunidade2.
Conforme descreve Cvetkovich, o LHA foi concebido mais como um espaço de
produção de comunidade do que uma instituição de pesquisa, e a intenção
principal da sua criação era de proporcionar um “espaço seguro” [safe space] para
os documentos pertencentes a mulheres lésbicas que pudessem ser negligenciados
ou destruídos por famílias indiferentes ou homofóbicas (Cvetkovich, 2003, p.
241). Localizado em um tríplex no Brooklin (Nova York), a casa que inicialmente
hospedou o LHA, em 1993, foi comprada através de doações que mulheres
lésbicas de todo os Estados Unidos fizeram às idealizadoras do centro, Joan
Nestle e Deborah Edel3. O arquivo funciona, segundo Cvetkovich, como “um
espaço ritual no qual as memórias culturais e históricas são preservadas”, mas na
combinação de espaços domésticos e públicos-institucionais, ainda mais levando
em conta que ele ocupa um local que um dia foi uma casa: “a sala de estar do piso
de baixo funciona como uma confortável sala de leitura, a copiadora fica ao lado
de outros aparelhos de/na cozinha, o corredor de entrada é um espaço de exibição
e o último andar da casa abriga um membro do coletivo que mora ali como uma
base permanente” (Ibid., p. 241)4. Cvetkovich defende que por ter um caráter
doméstico todas as lésbicas se sentem bem-vindas e seguras para tocar o “legado
lésbico”. O centro acaba por proporcionar às suas visitantes “experiência
emocionais, ao invés de estritamente intelectuais” (Ibid., p. 241)5.
2
Conforme descreve o site do próprio LHA. Disponível em:
<http://www.lesbianherstoryarchives.org/> . Acessado em 10 de março de 2016.
3
A coleção foi iniciada no apartamento da própria Edel, antes de migrar para a casa do Brooklyn.
4
“the downstairs living room serves as a comfortable Reading room, the copier sits alongside the
other appliances in the Kitchen, the entryway is an exhibit space, and the top floor houses a
collective member who lives there on a permanent basis.” (Tradução livre)
5
“Organized as a domestic space in which all lesbians will feel welcome to see and touch lesbian
legacy, LHA aims to provide an emotional rather than a narrowly intellectual experience.”
(Tradução livre)
73
Figura 17: O banheiro da casa que abriga o LHA também serve de cômodo de exposição
74
6
Disponível em: <https://vimeo.com/lobula>. Acessado em 14 de março de 2016.
75
7
HRC, como é conhecido o instituto, é um prestigiado arquivo (com biblioteca, exibições e
coleções físicas e digitais).
76
de Stein, para Cvetkovich, está justamente no fato de que ele não se baseia
somente no seu legado literário e escrito:
Um colete da coleção do HRC estava exposto junto com uma série de outros trajes como
parte de uma discussão sobre como Gertrude e Alice transformaram as convenções de
vestimentas femininas e como Stein estabeleceu seus próprios e inimitáveis estilo e
cultura butch e andrógina para se transformar em um ícone-celebridade naquela época e
nos dias de hoje. Latimer e Corn [os curadores da exposição] mostram como as saídas
criativas de Stein consistiam não somente em seus escritos e outras formas de produção
artísticas, mas na sua aparência, suas redes de amizade, e sua vida doméstica com Alice.
(Idem, 2013, np) 8
Figura 19: Colete de Stein, Coleção “Costumes and Personal Effects Database” do Harry Ramson
Center
8
A vest from the HRC’s collection was on display with a series of others garments as part of a
discussion of how Gertrude and Alice transformed the conventions of female dress and how Stein
established her own inimitable form of butch androgynous culture style to become a celebrity icon
both then and now. Latimer and Corn show how Stein’s creative output consists not just in her
writing and other art productions but in her appearance, her friendship networks, and her domestic
life with Alice. (Idem, 2013, - Tradução livre)
77
4.1
Arquivos e criações de biopotências: Domínio do Escuro e The Watermelon
Woman
9
Coleção “Costumes and Personal Effects Database” do Harry Hanson Center. Disponível em:
<http://norman.hrc.utexas.edu/personaleffects/details.cfm?id=41177>. Acessado em 11 de
dezembro de 2015.
10
“Marked by the convergence of the affective turn and the archival turn, this strategy is also
reflected in a range of very exuberante and utopian scholarly projects focused on the everyday life
and queer affiliations and networks, especially those that think art, creativity, and cultural politics”
(Tradução livre)
78
11
Coluna Gente Boa. Segundo Caderno, O Globo, 18 de março de 2015.
12
A rebelião Stonewall Riots ocorreu nos Estados Unidos no ano de 1969, contra as batidas
policiais em bares gays. A revolta ficou conhecida como um marco da luta pelos direitos
homossexuais no país e no mundo. O nome do levante nasceu de Stonewall Inn, um bar situado na
Christopher Street, em Nova York, frequentado por gays desde 1967, quando foi aberto. Durante
as décadas de 1950 e 1960, em plena Guerra Fria, os Estados Unidos possuíam um sistema legal
muito mais hostil em relação a gays e lésbicas do que muitos países do outro lado da Cortina de
Ferro. Batidas policiais eram frequentes em bares gays da época.
79
Ambos, arquivistas e artistas, podem usar as suas potências criativas para performarem
intervenções que abrem o arquivo à crítica e à transformação. É particularmente
importante a sua boa vontade para usar seus investimentos pessoais e afetivos para
“queerizar” [transtornar] o arquivo e para produzir novas e imprevisíveis formas de
conhecimento, incluindo novos entendimentos do que conta como arquivo e,
consequentemente, o que conta como conhecimento. Com seu interesse em instalações,
esses artistas também reconfiguram o espaço do arquivo, abrindo-o a novos públicos
para os quais ele não é policiado e protegido, e criando inovadores modos de “espaços
13
Indivíduos que se identificam com o gênero que lhes foi designado no momento do seu
nascimento (nesse caso, eram homens gays masculinos).
80
seguros” na forma de santuários íntimos onde novas socializações podem ser forjadas.
(Cvetkovich, 2012, np) 14
Casa
Estrelas na garganta
Jardins pulmões
Raízes
Lacunas dedos
Oceano aqui dentro
Casa
Barco
Oceano
14
[b]oth archivists and activists, artists can use their creative powers to perform interventions that
keep the archive open to critique and transformation. Particularly important is their willingness to
use their affective and personal investments to queer the archive and to produce new and
unpredictable forms of knowledge, including new understandings of what counts as an archive and
hence what counts as knowledge. With their interest in installation, artists also reconfigure the
space of the archive, opening it up to new publics so that it is not policed and protected and
creating innovative kinds of “safe space” in the form of intimate sanctuaries where new socialities
can be forged. (Cvetkovich, 2012, np – tradução livre)
15
Refiro-me aqui ao texto da peça, ao qual tive acesso através de Clarisse Zarvos e Juliana
Pamplona. Deixo registrado o meu agradecimento a esse gesto de gentileza.
81
Figura 20: Fotos de arquivo pessoal de um homem gay que deu depoimento para a produção da
peça
reproduzidos áudios com entrevista que a equipe de atores e diretora fez com
pessoas reais. O que temos, então, é uma constelação de potências de vida, vidas
que resistiram a um tempo em que as sexualidades não-normativas não tinham os
nomes que hoje conhecemos. Modos de vida muitas vezes clandestinos, vividos
de forma inesperada, como no caso de Susana (interpretada por Clarisse Zarvos),
que se apaixonou por outra mulher, Maria Eugênia (interpretada por Pedro
Henrique Müller e Lívia Paiva, alternadamente) sem se dar conta:
Ficava pensando nela. Aquela necessidade de ver, de estar junto, sem explicação. Foi
quando eu voltei a ouvir a Ella Fiztgerald na vitrola. Todo dia, o dia todo. “One day
he’ll come along, the man I love…” Só que eu não estava pensando em “man” nenhum.
Acho que só fui entender – eu sou lenta – só fui entender já num grau de? apaixonamento
avançado que aquilo não podia ser só amizade. A gente já se conhecia há 6 meses.
Lembro bem do dia em que caiu a ficha. Eu estava numa loja de jardinagem, entre a
seção de regadores e de sementes, numa angústia danada. A Susana estava ocupada por
aqueles dias e eu estava sentindo uma saudade, um tesão enorme - descomunal.
O espanto. Foi ali, na loja de jardinagem. Eu estava andando de um lado para o outro
escolhendo adubo, - mudas de plantas frutíferas, flores silvestres, manjerona, sálvia e
tomilho, flores brancas, rosas e amarelas – Caiu a ficha ali. Foi quando eu vi um
girassol. Aí eu entendi.
[...]
Maria Eugênia / Lívia Paiva - A gente estava tomando vinho e ouvindo jazz e eu falei:
Maria Eugênia / Pedro H. Müller - Eu quero te contar uma coisa e depois disso, se você
quiser ir embora, eu vou entender. Se você nunca mais quiser me ver eu vou entender.
Susana / Clarisse Zarvos – O que é? É grave?
Maria Eugênia / Pedro H. Müller - Aí eu disse que achava que eu podia ser lésbica e
que estava interessada nela, que gostava dela não só como amiga.
Susana / Clarisse Zarvos - Eu me levantei. Tirei ela para dançar. E foi a primeira vez
que ela beijou uma mulher.
Figura 21: Cena de Domínio do Escuro (2015), de Juliana Pamplona. Respectivamente, os atores Clarisse
Zarvos, Pedro Henrique Müller e Lívia Paiva
Cheryl Dunye, diretora liberiana radicada nos Estados Unidos, também faz
intervenções na história através do uso criativo do arquivo em seu filme The
Watermelon Woman (1996). The Watermelon Woman é um filme independente
que combina narrativa experimental e forma documental. O roteiro é centrado na
vida e trabalho de Cheryl, uma mulher negra lésbica que é cineasta e vive na
Filadélfia. Cheryl trabalha em uma locadora de filmes e tem um negócio
independente, no qual filma eventos, junto com sua amiga Tamara (também negra
e lésbica). Cheryl está fazendo um filme documentário sobre uma atriz afro-
americana chamada Fae Richards (The Watermelon Woman), que apareceu em
84
16
“Hi, I’m Cheryl, and I’m a filmmaker. Uh, no, I’m not really a filmmaker, but I have a
videotaping business with my friend Tamara and I work at a video store, so I’m working on being
a filmmaker”.
85
17
“Yet, the “clip” from the vídeo is typically racista and demeaning, containing a Civil War scene
in which the mammy comforts a white woman”.
18
“As she explains to the viewer, she is going to make a film about this actress, known as ‘the
watermelon woman’ because ‘something in her face, something in the way she looks and moves, is
serious, is interesting.” (Tradução livre)
86
Figura 2: Imagem de Martha Page e The Watermelon Woman, presente no filme de Dunye
[...] estejam fundidos em uma espécie de corpo social amorfo, mas se não podemos
conceituar facilmente o significado político do corpo humano sem entender essas relações
nas quais se vive e se desenvolve, não conseguimos o melhor cenário possível para os
diversos fins políticos que buscamos alcançar. O que estou sugerindo não é somente que
este ou aquele corpo estão ligados a uma rede de relações, mas que esse corpo, pese a
seus claros limites, ou talvez precisamente em virtude desses mesmos limites, se define
pelas relações que fazem em sua vida, e pelas suas ações possíveis. Como espero mostrar,
não podemos entender a vulnerabilidade corporal à margem desta concepção de relações
(Butler, 2014) 20
Tanto a rede de amigas que formou para produzir o seu filme, como a rede
de espectadores que até hoje compram o livro The Fae Richards Photo Archive –
como eu mesma consegui fazer, através da loja virtual Amazon dos Estados
Unidos em 2014 –, deflagram o modo como o corpo vulnerável que depende de
outro corpo consegue, através da formação de redes de apoio, produzir formas de
resistência através da arte (no caso de Dunye, já que ela produz um filme). Além
disso, essa mesma rede de apoio é retratada dentro do seu próprio filme, através
20
“[…] tampoco es que estén fusionados en una especie de cuerpo social amorfo, pero si no
podemos conceptualizar fácilmente el significado político del cuerpo humano sin entender esas
relaciones en las que vive y se desarrolla, no conseguimos el mejor escenario posible para los
diversos fines políticos que buscamos alcanzar. Lo que estoy sugiriendo no es solo que este o ese
cuerpo está ligado a una red de relaciones, sino que ese cuerpo, pese a sus claros límites, o tal vez
precisamente en virtud de esos mismos límites, se define por las relaciones que hacen su vida y su
acción posibles. Como espero mostrar, no podemos entender la vulnerabilidad corporal al margen
de esta concepción de relaciones.” (Tradução livre)
90
de Tamara, a amiga que trabalha com ela e a ajuda durante as buscas por pistas
sobre Fae Richards, e de toda a comunidade negra e queer que se predispõe a
ajudá-la, fornecendo fotografias, informações históricas acerca do cinema negro
dos anos 1930 e sobre a noite da Filadélfia no contexto em que Richards viveu. O
projeto de Dunye, tanto na vida quanto na ficção, tem como base política e
estratégica a formação de redes de resistência.
21
“The Watermelon Woman both presents and represents the negotiations, mediations, and
tensions triangulated among dominant film history, white feminist film studies and production, and
black film history and production in the United States.” (Tradução livre)
22
O New Queer Cinema, segundo Michele Aaron, em seu livro New Queer Cinema: a critical
reader (2004), foi um nome dado a uma onda de filmes queers independentes que ganharam
prestígio da crítica de cinema nos festivais dos anos 1990. O termo foi cunhado pela teórica B.
Ruby Rich, e representou uma virada nas representações gays e lésbicas no cinema, já que não
havia uma preocupação com as “imagens positivas”, mas com certa obscuridade da produção
marginal. Os diretores mais populares do New Queer Cinema (Todd Haynes, Derek Jarman,
Jennie Levingston, Isaas Julien, Gus Van Sant), eram ao mesmo tempo radicais e populares.
23
“[...] this film’s anomalous status is a testament to how little has really changed in the power
structures of cinematic production”. (Tradução livre)
91
24
“because reflexivity is itself a discourse that implies the narcissism of self-criticism and the
luxury of undoing a structure in which one has lived quite comfortably”. (Tradução livre)
92
4.2
O arquivo íntimo em Fun Home: Uma tragicomédia em família
quadros (Figura 1) diz: “Como muitos pais, o meu às vezes podia ser convencido
a me levantar no “avião” / Conforme era lançada, todo o meu peso recaía sobre o
eixo entre os pés dele e o meu estômago. / Era um desconforto que valia a pena
94
pelo raro contato físico, e certamente pelo momento de equilíbrio perfeito quando
eu voava sobre ele / No circo, as acrobacias em que alguém no chão equilibra o
outro chamam-se ‘Jogos Icáricos’”. (Bechdel, 2006, p. 9)
25
Vou me referir à autora pelo seu primeiro nome, com o intuito de não criar ambiguidades, já que
tanto Bruce quanto Alison são Bechdel.
95
Ambos, pai e filha, são atraídos pela ideia de uma casa que camufla (ou até mesmo
inadvertidamente revela) seus desejos secretos. Bruce Bechdel constrói a casa da família
heteronormativa dentro dessa sua obsessão com design de interiores que, todavia, o
expõe, no julgamento da jovem Alison, como um “maricas” ou um “efeminado” (ibid.: 90
e 93). Alison tenta fortalecer-se por trás de uma fachada de normalidade (“é somente uma
casa” [ibid.: 5], e, em última análise, é induzida a evocar um espaço doméstico
defensivamente hermético, “todo de metal, como um submarino” (ibid.: 14), isolado de
qualquer influxo potencialmente perturbador tanto das forças artificiais quanto naturais.
[...] Uma explícita conexão é feita entre o desejo reprimido de seu pai e os cuidados
domésticos obsessivos que tentam mascarar isso. Como um crítico notou, o livro de
Bechdel é, dentre outras coisas, uma apreciação da arquitetura e dos elementos
decorativos de ofuscação emocional (Bellafante, 2006) [...] As encenações fotográficas
que Bechdel fazia de sua própria família (Bechdel, 2006: 16-17) são exibições
cuidadosamente construídas para sugerir uma unidade familiar sem fissuras. A narradora
descreve uma foto de natal como uma “natureza morta com crianças” (ibid.: 13).
(Lydenberg, 2012, p. 59 e p. 64) 26
26
Both father and daughter are drawn to the idea of a house that camouflages (even as it
inadvertently reveals) their secret desires. Bruce Bechdel constructs a heteronormative family
home within which his interior design obsession nevertheless exposes him, in the young Alison’s
judgment, as a ‘sissy’ and a ‘pansy’ (ibid,: 90 and 93). Alison attempts to fortify herself behind a
façade of ordinariness (‘it’s just a house’ [ibid.: 5], and is ultimately driven to conjure up a living
space defensively soldered shut, ‘all metal, like a submarine’ (ibid.: 14), isolated against the
potentially disturbing influx of artificial and natural forces alike. [...] A explicit connection is made
between her father’s repressed desire and the housekeeping obsession meant to mask it. As one
reviewer notes, Bechdel’s book is among other things a comment on the architecture and ornament
of emotional obfuscation (Bellafante, 2006) […] Bruce Bechdel’s stage photographs on his own
family (Bechdel, 2006: 16-17) are ‘exhibitions’ carefully constructed to suggest a similarly
seamless family unit. The narrator describes one Christmas ‘photo op’ as a ‘still life’ with children
(ibid.: 13). (Lydenberg, 2012, p. 59 e p. 64 – tradução livre)
96
A casa dos Bechdel funciona como um peculiar lar queer, através do qual
Bruce tenta, a todo custo, encobrir sua homossexualidade e as inadequações de
gênero de Alison, que, desde criança, tenta resistir às imposições feminilizantes
do pai em seu vestuário, em seu modo de usar o cabelo, em seus trejeitos e gostos.
Alguns críticos descrevem a casa como se ela fosse “uma drag... cheia de
acessórios, excessivamente vestida” [“in drag...over-accessorized, overdressed”]
(Tison apud Lydenberg, 2012, p. 64). A casa gótica vitoriana, repleta de detalhes,
espelhos, papéis de parede, cortinas pesadas, funciona, como Alison descreve,
poeticamente, no início de sua memória gráfica, como o labirinto criado por
Dédalo do qual a pequena filha lésbica tenta escapar, como fizera Ícaro:
A narrativa de Alison vai nos guiando pelo labirinto que seu pai criara
através desse arquivo de sentimentos, composto por fotos, lembranças, objetos, o
seu diário de infância e adolescência, filmes fotográficos não revelados,
calendários. Todo o arquivo chega até nós, em Fun Home, através dos desenhos
de Alison. O seu archive of feelings se torna mais potente na medida em que o seu
traço e o seu texto retratam o afeto e o desejo de arquivar essa pequena história
doméstica. O “desejo de arquivo” queer vem do caráter efêmero dos objetos que
compõem a sua história 27 – no caso de Bechdel, como o arquivo é íntimo, muitas
vezes a efemeridade vem por pudor da família de manter evidências da
homossexualidade de um ente querido que viera a falecer. Do pudor e da
vergonha dessas evidências, vem a pulsão de morte, o desejo de destruição do
arquivo (inerente a qualquer arquivo), tal como ressalta Derrida (2001) em seu
ensaio sobre o “mal de arquivo” 28 .
27
Ann Cvetkovich desenvolve mais sobre a efemeridade do arquivo queer em seu livro The
Archive of Feelings, ressaltando que o desejo de arquivo queer é muitas vezes motivado pelo medo
do desaparecimento dos objetos que testemunharam essas histórias. (Cvetkovich, 2003, p. 243)
28
Derrida afirma que a psicanálise freudiana propõe uma nova teoria do arquivo justamente por
levar “em conta uma tópica e uma pulsão de morte sem as quais não haveria, com efeito, para o
arquivo, nenhum desejo nem nenhuma possibilidade.” (Derrida, 2001, p. 44)
98
29
É importante ressaltar a importância da correspondência por escrito como documento
arquivístico, levando em conta o seu valor permanente. Essas “escritas de si” (cartas, diários
íntimos, memórias) teriam grande importância também pelo seu caráter íntimo. No caso das
vivências queers, a “escrita de si” é testemunha do “contexto privado”, onde eram exercidas as
práticas afetivas e sexuais “secretas” aos olhos da sociedade. Principalmente dentro do contexto no
qual a infância de Alison e vida de seu pai estão inseridos: no pré-Stonewall, quando a
99
Confesso que tenho uma certa inveja da “nova” liberdade (?) que hoje aparece nas
universidades. Nos anos 50, isso não era nem considerado uma opção. É difícil acreditar
nisso tanto quanto é difícil acreditar que vi bebedouros para negros e brancos na escola
primária, na Flórida. Sim, meu mundo era bem limitado. Sabia que eu nunca tinha estado
em Nova York até os vinte anos? Mesmo assim, não foi uma novidade tão grande. Não
havia muitas coisas na cidade que eu já não tinha visto em Beech Creek. Mas, ao
contrário dos outros lugares, em Nova York era possível vê-las e mencioná-las. Era
bastante simples. (Ibid.: p. 218)
homossexualidade ainda era proibida por lei nos Estados Unidos e o único espaço permitido para o
seu exercício era o da intimidade – sobretudo para Bruce, que era casado e possuía filhos.
30
“Trauma and modernity thus can be understood as mutually constitutive categories; trauma is
one of the affective experiences, or to use Raymond William’s phrase, ‘structures of feelings’, that
characterizes the lived experience of capitalism”
100
18-20). Cvetkovich (2008), em seu ensaio sobre Fun Home, a compara com essas
duas narrativas gráficas igualmente prestigiadas, dizendo que as conexões entre
elas não são tão óbvias, já que não há um genocídio em massa no livro de
Bechdel, há “apenas” o suicídio de um homossexual dentro do armário. Talvez
existam vidas que se perdem, que não são “lamentáveis”, em um contexto
público. (Cvetkovich, 2008, p. 111).
31
“My dictionary defines COMIC STRIP as ‘a narrative series of cartoons’. A NARRATIVE is
defined as ‘a story’. ‘A complete horizontal division of a building... [ From Medieval Latin
HISTORIA…a row of windows with pictures on them].” (Tradução livre)
101
para ele, também, como uma extensão do seu projeto obsessivo de perfeição
familiar, por isso ele está sempre tentando convencer Alison, a filha masculina, de
se feminilizar:
Alison descreve o suicídio do seu pai como o fim dele, mas seu próprio
início, destacando que “para ser precisa, [...] o fim da mentira dele foi o início da
103
minha verdade. / Porque eu também havia mentido havia um bom tempo. Desde
os 4 ou 5 anos.” (Bechdel, 2006, p. 123). Após esta confissão, Alison conta que
certa vez seu pai a levara a uma viagem de negócios na Filadélfia, e numa
lanchonete da cidade, vira uma “aparição assombrosa”, uma butch, uma sapatona
masculina: “Eu não sabia que havia mulheres que se vestiam como homens e
tinham cortes de cabelo masculinos. / Mas, como um viajante no exterior que
encontra alguém de casa – com quem ele nunca falou, mas que conhece e vista –,
reconheci aquela mulher com uma onda de alegria.” (Idem, 2006, pp. 123, 124):
in the Square Theater. No ano em que foi à Broadway, o musical ganhou três
Tony Awards, um deles de melhor musical.
ALISON [FALANDO]:
Eu sinto...
E suas chaves oh
E seu chaveiro
E suas chaves oh
E seu chaveiro
[FALANDO]
Não, quero dizer
[CANTANDO]
Lindo!
E suas chaves oh
E seu chaveiro
Eu conheço você
Eu conheço você
Eu conheço você32
32
[ALISON] You didn’t notice her at first dad, but I did. I saw / Her the minute she walked in.
I’de never seen a woman / Who looked like her. It was like I was a traveler in a foreign /Country
who runs into someone from home, / Someone they’ve never met before but somehow just /
Reconizes. //
SMALL ALISON [SINGING]: / Someone just came in the door. / Like no one I ever saw before. /
I feel... / I feel... // I don't know where you came from. / I wish I did / I feel so dumb. / I feel... //
Your swagger and your bearing / and the just right clothes you're wearing / Your short hair and
your dungarees
And your lace up boots. // And your keys oh / Your ring of keys. // I thought it was s'pposed to be
wrong
106
But you seem okay with being strong / I want...to... / You're so... // It's probably conceited to say, /
But I think we're alike in a certain way / I...um... // Your swagger and your bearing / and the just
right clothes you're wearing / Your short hair and your dungarees / And your lace up boots. // And
your keys oh / Your ring of keys. // Do you feel my heart saying hi? / In this whole luncheonette /
Why am I the only one who see you're beautiful? // [Spoken] No, I mean // [Sung] Handsome! //
Your swagger and your bearing /and the just right clothes you're wearing / Your short hair and
your dungarees / And your lace up boots. // And your keys oh / Your ring of keys. // I know you / I
know you / I know you. (Tradução livre) Disponível em: <http://funhomebroadway.com/>.
Acessado em 20 de novembro de 2015.
33
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/746> Acessado
em 13 de março de 2016.
34
“It was like I was a traveler in a foreign country who runs into someone from home”. (Tradução
livre)
35
Tomboy é um termo utilizado em inglês para designar uma garota que exibe características e
comportamentos esperados de serem observados em garotos (roupas, brincadeiras, atividades).
107
...uma crença no mundo (isto é, nas suas possibilidades, que caberia às artes, entre outras,
nos “devolver”), a evocação da resistência (“resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à
vergonha, ao presente”), a defesa da criação (“criar é resistir”), o chamamento recorrente
a um “povo por vir” (que cabe à Filosofia favorecer, embora não esteja ao seu alcance
criar). Enfim, vários termos banidos do ideário pós-moderno têm aqui inteiramente
preservada sua dignidade: mundo, povo, resistência, criação, arte, Filosofia. (Pelbart,
2006, np)
em seu livro Cruising Utopia: the then and there of queer futurity (2009). As
vivências queers se tornam, para Muñoz, uma ferramenta para se pensar em uma
“futuridade coletiva”, ou seja “uma noção de futuro que funciona como uma
materialidade histórico-crítica” (Muñoz, 2009, p. 26). O arquivo queer provocaria
uma reversão na lógica histórico-temporal heteronormativa e patriarcal. A história
não se limitaria mais somente a assuntos do passado, os álbuns de fotografia e
antigas trocas de correspondência não teriam mais a função de mera fonte
histórica, mas passam a ter a função de ser evocadas como material de criação
artístico-histórica, para suprir faltas representacionais do presente, para criar zonas
de encontro, de produção de coletividade para fomentar a criação de novos e
melhores mundos. O “contra-arquivo queer” seria o lar – uma lareira, um fogo de
vida que proporciona encontro, toque, através das histórias que aproximam, que
dão sentido a vidas que antes não se viam representadas por estarem suprimidas
ou recalcadas.
5
Cuidado, precariedade e resistência utópica em Shortbus,
de John Cameron Mitchell
(Men)
É importante frisar que, por outro lado, mesmo quando o discurso tem o
poder de nos alcançar e nos tornar vulneráveis, ou quando uma criança está
vulnerável à disritmia em relação à sua mãe, ou seja, mesmo estando o poder por
toda a parte, as estruturas do poder são instáveis. O poder é passível de sofrer
disrupção. A vida, a força da vida, resiste, como Foucault desenvolve melhor na
entrevista intitulada “L’éthique du souci de soi comme pratique de liberté”,
publicada em Dits et Écrits II. 1976-1988 (2001). Foucault responde a uma
pergunta sobre uma suposta deficiência em seu pensamento, de uma resistência ao
poder, ao que se contrapõe:
Eu quero dizer que, nas relações humanas, quaisquer que sejam – que se trate de se
comunicar verbalmente, como fazemos agora, ou que se trate de relações amorosas,
institucionais ou econômicas – o poder está sempre presente: eu quero dizer a relação
através da qual um tenta controlar a conduta do outro. Essas são relações que podemos
encontrar em diversos níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são relações
móveis, quer dizer que elas podem se modificar, que elas não estão dadas de uma vez por
todas. [...] Essas relações de poder são, então, móveis, reversíveis e instáveis. Deve-se
frisar também que, só podem existir relações de poder na medida em que existam sujeitos
livres. [...] Quer dizer que, nas relações de poder, há forçadamente a possibilidade de
resistência, já que se não houvesse a possibilidade de resistência – de resistência violenta,
de fuga, de estratagema, de estratégias que revertam a situação – , não haveria, em
nenhuma hipótese/em absoluto, relações de poder. (Foucault, 2001, p. 1539) 1
1
“Je veux dire que, dans les relations humaines, quelles qu’elles soient – qu’il s’agisse de
communiquer verbalement, comme nous le faisons maintenant, ou qu’il s’agisse de relations
amoureuses, institutionnelles ou économiques –, le pouvoir est toujours présent: je veux dire la
relation dans laquelle l’un veut essayer de diriger la conduite de l’autre. Ce sont donc des relations
que l’on peut trouver à différents niveaux, sous différents formes; ces relations de pouvoir sont des
relations mobiles, c’est-à-dire qu’elles peuvent se modifier, qu’elles ne sont pas donnés une fois
pour toutes. [...] Ces relations de pouvoir sont donc mobiles, réversibles et instables. Il fault bien
remarquer aussi qu’il ne peut y avoir de relations de pouvoir que dans la mesure où les sujets sont
libres. [...] Cela veut dire que, dans les relations de pouvoir, il y a forcément possibilité de
résistance, car s’il n’y avait pas possibilité de résistance – de résistance violente, de fuite, de ruse,
des stratégies qui renversent la situation –, il n’y aurait pas du tout de relations de pouvoir.”
(Tradução livre)
112
2
“Il y a donc une sorte de deplacement: ce jeux de vérité ne concernent plus une pratique
coercitive, mais une pratique d’autoformation du sujet”. (Tradução livre)
113
cuidado, através da qual não existe somente a relação binária entre opressor e
oprimido, poder e impotência, ativo e passivo, e assim por diante.
omitindo as práticas concretas de resistência – o que não quer dizer que não
devamos continuar apontando que a culpa não é da vítima em casos de violência.
Por exemplo, há uma longa história de feminicídio na América Latina, mas
também há uma longa história de resistência (assim como tantos outros grupos:
minorias étnicas, queers, trans, trabalhadores do sexo etc). Devemos falar também
das práticas de resistência, reiterá-las, mostrar, por repetição, mapeando-as, que o
“resistir” existe e é vocábulo e prática estruturantes da sobrevivência cotidiana de
diversos grupos e indivíduos.
O filme inicia com uma animação com um plano fechado nos pés de uma
estátua, e depois em sua boca, com o deslizar lento da câmera; abrindo o quadro,
vamos percebendo que se trata da Estátua da Liberdade. A câmera se afasta da
estátua e vemos a cidade de Nova York ao fundo. Então a imagem rapidamente se
desloca para a janela de um apartamento de um dos prédios da cidade, passando a
nos mostrar seu interior, quando a animação dá lugar a um cenário real, de um
homem melancólico sentado nu em uma banheira, com o pênis parcialmente ereto
debaixo d’água, explicitamente visível. O homem pega uma câmera de filmar
portátil e filma seu pênis, passamos a ver a imagem do ponto de vista da sua
câmera, e o líquido amarelo da sua urina saindo lentamente, misturando-se à água
da banheira. A cena migra para o cenário animado da cidade novamente, focando
no marco-zero e no vazio dos destroços do World Trade Center. A imagem real
do marco zero surge na tela, vista através da janela de outro apartamento do qual
logo podemos ver o interior, onde uma mulher com trajes de dominatrix e um
cabelo comprido punk borrifa um dildo vermelho com spray antisséptico. Sentado
em uma poltrona, um rapaz que a observa dá início ao primeiro diálogo do filme:
118
O quadro torna a mostrar o homem que estava na banheira, mas dessa vez
deitado no chão de seu quarto, se masturbando na frente para a câmera presa em
um tripé, e depois levantando as pernas para levar o quadril em direção ao seu
rosto, disposto a fazer um sexo oral em si mesmo. Em seguida vemos um casal
heterossexual transando em outro apartamento: na cama, em cima de um piano,
contra uma porta, ele a penetra, ela o penetra. Todos têm orgasmos ao mesmo
tempo (menos as duas mulheres: a dominatrix e a mulher do casal heterossexual,
como entenderemos através do desenrolar do filme), e as imagens dos
apartamentos se alternam. O rapaz que está com a dominatrix ejacula com força
no quadro que está na parede do quarto, ao estilo Pollock. Ela observa a nova
mancha adicionada à pintura, com um olhar perdido, ao que ele pergunta: “Você
pode descrever o seu último orgasmo?” e ela responde: “Foi ótimo. Foi como se o
tempo estivesse parado e eu estivesse completamente sozinha”.4 Mitchell nos
apresenta cada um dos personagens que acompanharemos através do filme a partir
de suas relações com a sexualidade e o sexo, em cenas de sexo explícito e não-
simulado pelos atores.
3
- Are you a top or a bottom?
- I beg your pardon?
- I mean in real life.
- This is real life.
- Let me put it this way:
- Do you think we should get out of Iraq?
- Is your daddy paying for this?
- No. You're taking a picture of yourself at Ground Zero --
do you smile?
- Get on the fucking bed!
Disponível em <http://www.springfieldspringfield.co.uk/movie_script.php?movie=shortbus>.
Acessado em: 30 de Janeiro de 2016.
4
- Can you describe your last orgasm?
- It was great. It was like time had stopped and I was completely alone.
119
Apesar do filme ser inteligente o suficiente para não insultar sua protagonista feminina
identificando qualquer técnica ou filosofia únicas como solução para seu estado pré-
orgásmico, e, apesar de ser muito divertido ao oferecer a Sofia um enorme leque de
conselhos e filosofias contraditórias – desde exercitar os músculos de Kegel à privação
sensorial, da ideia de que o orgasmo representa uma imensa solidão à ideia de que nele
“finalmente não se está só” – sua narrativa, porém, simula a busca pornográfica por
prazer. No entanto, o filme direciona essa busca para um objetivo social mais amplo de
formar uma comunidade de seres “permeáveis”, sem medo. Moldado na típica narrativa
pornográfica, Shortbus, assim, também opera como um corretivo ao isolamento e à
121
fixação dos corpos e das técnicas que a pornografia solitária pode engendrar. (Ibid., p.
288) 5
Ceth: Alguns anos atrás. (Constrangido.) Eu trabalho em casa. Sou revisor de textos. Não
tenho TV a cabo. Lembro de ter assistido Jamie cortar seu cabelo. E pareceu muito
interessante. E você sempre foi o meu favorito. Porque você ficava triste.
5
“Though the film is smart enough not to insult its female protagonist by identifying any single
technique or philosophy as the solution to her preorgasmic status, and though it has a lot of fun
offering Sofia a wide range of contradictory advice and philosophy – from the exercise of Kegel
muscles to sensory deprivation, from the idea that orgasm represents immense solitude to the idea
that in it one is “finally not alone” – its narrative nevertheless imitates the pornographic quest for
pleasure. However, it harnesses that quest to the larger social goal of forming a community of
“permeable”, unafraid beings. Modeled on the quintessential pornographic narrative, Shortbus thus
also operates as a corrective to the isolation and fixation on bodies and techniques that solitary
porn can engender.” (Tradução livre)
122
como os anos 1960, só que com menos esperança” [“It’s just like the sixties only
with less hope”] –, dita por Justin Bond a Sofia, é utilizada para ressaltar o
aspecto cínico da personagem. Mas para Williams essa frase expressa a fé que
Mitchell, o diretor do filme, tem nos ideais utópicos daquela década: “Como
Richard Colings, [colocou, ao criticar] o filme para Tune, Shortbus é ‘tão retrô
que parece reluzente de novo’” 6. (Williams, 2008, p. 289)
de todo o mundo que toca em mim, toca em você, que conecta todo mundo, você
só tem que achar a conexão certa, a direção correta”. Quando a luz da cidade se
apaga, após o orgasmo de Sofia, todos se dirigem com velas ao Shortbus. A
energia dispersada de Sofia, antes contida, impedida de sair, flui e permite que os
6
“As Richard Colins, reviewing the film for Tune, put it, Shortbus is ‘so retro, it seems sparkling
new’”. (Tradução Livre)
124
Deve-se notar, no entanto, que esse orgasmo não é o resultado de uma técnica melhor;
antes, é o resultado de uma confiança maior na comunidade para a qual o sexo se torna
uma metáfora. Bond conduz o grupo com uma música de encerramento (“quando começa
seu último suspiro / você encontra seus sonhos, e todos nós chegamos ao fim”). “Chegar
ao fim” é a metáfora sexual para a permeabilidade que irá possibilitar ao filme um final
feliz e aos nova-iorquinos o compartilhamento da esperança revolucionária da perversão
polimorfa que começara nos anos 1960, agora revivida, ao menos momentaneamente, no
bom sentido, imediatamente após a era do 11/9 sob o signo do circuito de uma placa-mãe.
A orgia começa e todos se tornam permeáveis, senão literalmente penetráveis, ou ao
menos abertos e disponíveis. (Williams, 2008, 292) 7
7
“Is to be noted, however, that this orgasm is not the result of better technique; rather, it is the
result of better community and trust for which sex now becomes a metaphor. The MC leads the
group in the finale’s song (“as your last breath begins / you find your dreams, your best friend /
and we all get it in the end”). “Getting in the end is the sexual metaphor for permeability that will
allow the film to end happily and for New Yorkers to have their share of the revolutionary hope of
polymorphous perversity begun in the sixties, now revived at least momentarily in the good
feeling of the immediate post-9/11 era under the sign of the circuitry of a motherboard. The orgy
commences and everyone becomes permeable, if not literally penetrated, then at least open and
avaible.” (Tradução livre)
125
5.1
Utopia queer e outros modos de viver junto
O livro Crusing Utopia: The Then And Now of Queer Futurity, de José
Esteban Muñoz, é iniciado com a emblemática frase “Queerness is not yet here”,
demarcando uma potencialidade em uma negação estratégica do “aqui e agora” e
visionando uma concreta possibilidade de um outro mundo (Muñoz, 2009, p. 1).
Logo em seguida, Muñoz explica que embora seu livro seja significativamente
influenciado pelo pensamento da tradição idealista alemã, como os trabalhos de
Immanuel Kant e George Wilhelm Hegel, além dos filósofos da Escola de
Frankfurt, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, quem mais
influenciou Crusing Utopia foi Ernest Bloch.
Ele faz uma distinção crítica entre as utopias abstratas e as utopias concretas, apreciando
as utopias abstratas somente quando exercem uma função crítica, que alimenta e
potencializa uma imaginação política transformadora. Para Bloch, as utopias abstratas
vacilam porque elas são desconectadas de qualquer consciência histórica. Utopias
concretas são relacionadas às lutas historicamente situadas, uma coletividade que é real
ou potencial. Na nossa vida cotidiana, as utopias abstratas são semelhantes ao otimismo
128
8
“He makes a critical distinction between abstract utopias and concrete utopias, valuing abstract
utopias only insofar as they pose a critique function that fuels a critical and potentially
transformative political imagination. Abstract utopias falter for Bloch because they are untethered
from any historical consciousness. Concrete utopias are relational to historically situated struggles,
a collectivity that is actualized or potential. In our everyday life abstract utopias are akin to banal
optimism. (Recent calls for gay or queer optimism seem too close to elite homosexual evasion of
politics). Concrete utopias can also be daydreamlike, but they are the hopes of a collective, an
emergent group, or even the solitary oddball who is the one who dreams for many.” (Tradução
livre)
9
“to a forward-dawning queerness that calls on a no-longer-conscious in the service of imagning a
futurity. [...] The not-quite-conscious is the realm of potentiality that must be called on, and
insisted on, if we are ever to look beyond the pragmatic sphere of the here and now, the hollow of
the present”. (Tradução livre)
129
10
“Rather than a life-force connecting pleasure to life, survival and futurity, sex, and particularly
homo-sex and receptive sex, is a death drive that undoes the self, releases the self from the drive
for mastery and coherence and resolution; the value of sexuality itself”, writes Bersani, “is to
demean the seriousness of efforts to redeem it”” (Tradução livre)
11
“The queer subject, he argues, has been bound epistemologically, to negativity, to nonsense, to
anti-production, to unintelligibility and, instead of fighting this characterization by dragging
queerness into recognition, he proposes that we embrace the negativity that we anyway structurally
represent.” (Tradução livre)
130
uma negatividade radical, que seria uma negação da negação, como aponta
Muñoz (2009, p. 13), ou uma anti-anti-utopia, como aponta Halberstam (2008, p.
153), ou seja, uma forma de lidar com a negatividade de um modo diferente dos
teóricos queers anti-relacionais. Assim o negativo se torna “o recurso para uma
certa forma de utopia queer” (Muñoz, 2009, p. 13).
É preciso evitar a segregação do espaço político que faria da multidão queer um tipo de
margem ou de reservatório de transgressão. Não precisamos cair na armadilha da leitura
liberal ou neoconservadora de Foucault que nos levaria a pensar as multidões queer em
oposição às estratégias identitárias, tendo a multidão como uma acumulação de
indivíduos soberanos e iguais perante a lei, sexualmente irredutíveis, proprietários de
seus corpos e reinvindicando seus direitos ao prazer inalienável. A primeira leitura
objetiva uma apropriação da potência política dos anormais numa ótica do progresso; a
segunda ignora os privilégios da maioria e da normalidade (hetero)sexual, não
reconhecendo que essa última é uma identidade dominante. É preciso admitir que os
corpos não são mais dóceis. “Desidentificação” (para retomar a formulação de De
Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias dos corpos e
desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das
multidões queers. (Preciado, 2011, p. 15)
Mas Shortbus, cujo nome vem dos ônibus escolares menores, reservados para
alunos “fora da norma” ou “especiais” nos E.U.A., nos mostra que para
construirmos uma multidão queer precisamos ir além, precisamos abarcar
mulheres e homens heterossexuais com práticas sexuais desviantes – as pré-
orgásmicas, as dominatrixs, os homens com práticas S/M etc. É preciso
interseccionalizar o pensamento queer para enxergarmos que as oposições binárias
do patriarcado constroem singelas hierarquias para as quais precisamos ser
sensíveis. A multidão queer seria composta então por sujeitos que fazem uma
“reapropriação dos discursos de saber/poder sobre o sexo” (Preciado, 2011, p. 16)
e, além disso, que também se reproporiam das organizações arquiteturais sexuadas
das cidades modernas e da temporalidade heterocrononormativa.
12
“Chrononormativity is a mode of implantation, a technique by which institutional forces come to
seem like somatic facts. Schedules, calendars, time zones, and even wristwatches inculcate what
the sociologist Evitar Zerubavel calls ‘hidden rhytms’, forms of temporal experience that seem
natural to those whom they privilege”. (Tradução livre)
132
traz a reflexão de Jameson em seu livro The End of Temporality, para nos mostrar
que “a heterogeneidade temporal [da modernidade] foi substituída pela
instantaneidade da Internet, dos celulares, e da pressa, e ‘parece claro o bastante
que quando você não tem nada além do seu próprio presente temporal, segue-se
que você não tem nada a deixar além do seu próprio corpo’” (Freeman, 2010, p.
11).
16
“This ‘we’ does not speak to a merely identitarian logic but instead to a logic of futurity. The
‘we’ speaks to a ‘we’ that is ‘not yet conscious’, the future society that is being invoked and
addressed at the same moment. The we is not content to describe who is collective is but more
nearly describes what the collective and the larger social order could be, what it should be. The
particularities that are listed – ‘race, sex, age or sexual preferentes’ – are not things in and of
themselves that format this ‘we’; indeed the statement’s ‘we’ is ‘redardless’ of these markers,
134
which is not to say that it is beyond such distinctions or due to these differences but, instead, that it
is beside them. This is to say that the field of utopian possibility is one in which multiple forms of
belonging in difference adhere to a belonging in collectivity”. (Tradução livre)
17
“[...] a new kind of optimism is born. Not an optimism that relies on positive thinking as an
explanatory engine for social order, nor one that insists upon the bright side at all costs; rather this
is a little ray of sunshine that produces shade and light in equal mesure and knows that the
meaning of one always depend upon the meaning of the other.” (Tradução livre)
6
Considerações finais
(Beatriz Preciado)1
Segundo Beatriz Preciado, em seu artigo “Multidões queer: notas para uma
política dos anormais” (2011), nos anos 1950, assistimos a uma ruptura do regime
disciplinar do gênero, não estamos mais em um regime de encarceramento das
sociedades disciplinares sobre as quais descreve Michel Foucault em seus
trabalhos sobre o poder e a coerção. Nesta década, com John Money e suas
cirurgias de normalização dos corpos de crianças intersexo, observamos o
surgimento de tecnologias médicas e cirúrgicas que modificam os paradigmas da
normalização e cerceamento dos corpos sexuados. Preciado afirma que o “‘pós-
moneísmo’ é para o sexo o que o pós-fordismo é para o capital” e que “O Império
dos Normais, desde os anos 1950, depende da produção e da circulação em grande
velocidade do fluxo de silicone, fluxo de hormônio, fluxo textual, fluxo das
representações, fluxo de técnicas cirúrgicas, definitivamente, fluxo dos gêneros”.
Ela acrescenta que o conceito de “gênero” é, portanto, uma noção “sexopolítica”,
antes mesmo de se tornar uma ferramenta do feminismo (Preciado, 2011, p. 13). É
nos anos 1950, portanto, que as normas de gênero passam a agir não só em seu
1
« Je nomme potentia gaudendi ou ‘force orgasmique’ la puissance (actuelle ou virtuelle)
d’excitation (totale) d’un corps. […] Elle ne privilégie pas un organe par rapport à un autre : le
pénis ne possède pas davantage de force orgasmique que le vagin, l’œil ou le doigt de pied. La
force orgasmique est la somme de la potentialité d’excitation inhérente à toute molécule vivante.
La force orgasmique ne cherche pas sa résolution immédiate, elle n’aspire qu’à se déployer dans
l’espace et le temps, vers tout et vers tous, en tous les lieux et à tout moment. C’est une force de
transformation du monde en plaisir-avec » (Preciado. Testo Junkie : Sexe drogues et biopolitique,
2008, pp. 38-39. Tradução livre)
136
Figura 44: Jourdain, urinoirE, femme fonainte, 2010 Figura 45: Jourdain, urinoirE, femme fonainte, 2010
2
« En jouant avec les normes, on s’en libère, si tu veux parler de libération. Effectivement, c’est
une libération; c’est même parfois jubilant de voir comme il est facile de casser les limites du
public avec des bouts de ficelle. C’est une stratégie comme une autre pour pointer du doigt la
mascarade constitutive de l’héteronormativité et ce qui le rend légitime. Tout ça peut tomber
comme un châteu de cartes. » (Tradução livre)
138
4
Haraway, 2009, 99
5
Da Silva, 2009, p. 12
6
Haraway, 2009, p. 40
140
No entanto, este “estar junto” não é aquele das grandes unificações das políticas
identitárias – apesar de reconhecer a relevância das identidades políticas
estratégicas –, mas aqui se trata de um “nós” que ainda está sendo endereçado
através de suas múltiplas conexões eróticas, tendo em conta, além disso, como
alerta Judith Butler em sua conferência “Rethinking Vulnerability And
Resistance” (2015), que nem sempre estaremos inseridos neste “nós” porque nos
amamos, mas para podermos ter a possibilidade amar e de criar outras formas de
existir para além do ordinário e do possível.
7
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