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O Fazer-se da Burocracia:
Notas sobre o Estado e a corrupção a partir da China Imperial
INTRODUÇÃO
1 Pierre-Étienne Will foi diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de 1988 a
2014, onde havia defendido sua tese em 1975, intitulada Burocracia e a fome na China do século 18,
dinastia dos Qing.
2 O império Qing foi a última dinastia imperial da China, de 1644 a 1912. Teve início quando os manchus
invadiram o norte da China em 1644 e derrotaram a dinastia Ming. Os manchus expandiram a dinastia
para a China propriamente dita e os territórios circundantes da Ásia central. Terminou com a Revolução
Xinhai, quando foi proclamada a República da China. Conforme Will, os Qing adotaram a escolha dos
Ming em favor de uma administração local a baixo custo e a acentuaram, concentrando-se mais do que
antes na cobrança de taxas e na responsabilização dos magistrados das subprefeituras para o bom
funcionamento da burocracia (1989, p.99).
3 No original, Fuhui: le “bonheur” qu'assure au peuple la “bienveillance” impériale relayée par les
fonctionnaires locaux. Os "manuais de funcionários" são publicados desde a dinastia Song (960-1279)
especialmente para o uso dos magistrados.
4 COLE, James H. Shaohsing: competition and cooperation in nineteenth century China. Association for
Asian Studies Monograph, n. XLIV., xv, 315 pp. Tucson, Arizona: University of Arizona Press, 1986.
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Fonte: Wikipedia.
Com base nesses dados e análises, Pierre-Étienne Will tem por objetivo
demonstrar como uma burocracia em formação e composta por um quadro de
funcionários predominantemente incompetente e/ou corrupto, se manteve em uma
extensão territorial em expansão (ver Mapa 2) por dois séculos e meio (1644-1912) 5. A
questão que abre o ensaio é: como funcionários espalhados por esse território, sujeitos a
5 Segundo Will, mais surpreendente à primeira vista é a prosperidade alcançada da dinastia Qing de 1680
a 1820.
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Fonte: Wikipedia.
Assim, no cotidiano da burocracia Will observa como seus agentes lidam com os
problemas estruturais criados pela burocracia oficial. O presente trabalho pretende
abordar essas questões apresentadas por Will à luz da literatura que trata do Estado a
partir da discussão sobre a corrupção.
CONFLITO DE LEALDADES
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Outro exemplo dessa tensão de lealdades é exposta por Will ao abordar o recrutamento: “[Os Qing]
instituíram garantias institucionais através do desenvolvimento de procedimentos de avaliação e punição
dos funcionários, o que não tem equivalente nos regimes precedentes. O mesmo desejo de jogar em nos
dois lados da "lei" e do "homem" é encontrado no fato de que a grande burocratização dos procedimentos
de nomeação para cargos (com base em títulos, antiguidade, local em listas de espera...) foi
contrabalanceada pela margem de iniciativa deixada aos governadores provinciais para recomendar os
melhores entre os seus subordinados para as magistraturas classificadas como "importantes". O objetivo
era a seleção de uma elite burocrática (e não meramente intelectual ou moral)” (WILL, 1989, p.100,
tradução minha).
5
a.C. - 220 d.C.). Essa lei proibiu burocratas de trabalharem em suas províncias natais de
modo a prevenir o seu conluio com seus parentes e concidadãos.
7 Para outras referências acerca das expectativas de familiares ou outras pessoas próximas quanto à
melhora de vida e recebimento de ajuda por parte de quem conseguiu entrar num cargo público, cf. Das
(2015); Smith (2007); Blundo; Olivier de Sardan (2001); entre outros.
6
Liu-Hung conta que era um desafio conseguir uma equipe de assistentes que não
tivesse cumplicidade com a sociedade envolvente e que fosse dedicada exclusivamente
ao subprefeito. Por meio de conselhos voltados principalmente para a proteção da
reputação desses funcionários isolados9, o ex-magistrado buscava transmitir seu
conhecimento sobre como lidar com os problemas cotidianos da administração estando-
8 No caso da CE, funcionários de diferentes países expatriados em Bruxelas formaram gradualmente uma
elite supranacional, cujo espírito de corpo é reproduzido através do chamado sistema paralelo de
administração, no qual se dão as práticas consideradas corruptas por determinados países-membro
(SHORE, 2015).
9 Liu-hung denunciava as constantes falsas acusações de homicídio voltadas aos administradores de
yamen, as quais visavam destruí-los por meio de processos judiciais e difamações, e que geralmente
vingavam uma vez que a presunção comum era a de que o acusado é culpado. Por isso aconselhava
fortemente os leitores de seu manual a protegerem documentos e correspondências oficiais para provarem
sua inocência se necessário (WILL, 1989).
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se entre os seus superiores, a quem deveria agradar para ser notado, e os seus
subalternos, a quem deveria vigiar em todos os momentos de modo a se proteger10.
10
Seguindo-se seus passos exemplares, o magistrado “dotado de bom senso e experiência, capaz de
preservar a sua dignidade, mas também saber as preferências dos seus superiores, poderia avançar sem
danos em sua carreira” (WILL, 1989, p.94).
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Johnston (1996) comenta que o modelo triádico do principal-agent-client (PAC) e bastante frutífero
para estudar a corrupção burocrática. De abordagem interacionista, o PAC remete ao modelo dos
economistas evocado por Bourdieu (2014). Blundo e Olivier de Sardan (2001), por sua vez, falam em
interação entre funcionários, usuários do sistema público e intermediários na gestão pública.
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Nessa posição de intermediário a manipulação do tempo é fundamental, como Bourdieu (2014) destaca
e Will observa: a velocidade é fundamental “não tanto para cumprir a letra da lei, mas a fim de manter a
máquina respirando, de constranger os subordinados nos tráficos e abusos que acompanham as suas
atividades cotidianas e impedir que organizem a corrupção. Liu-hung, por exemplo, expõe de maneira
concreta e detalhada como o magistrado deve levar rapidamente as queixas ao tribunal e manter
pessoalmente o controle de todo o processo, até a entrega do julgamento para os interessados: de fato, a
acumulação de processos e atrasos permite a intervenção de secretárias, capangas, advogados medíocres e
outras testemunhas falsas, aberta ou veladamente, os quais podem extorquir no procedimento o máximo
de fundos do queixoso [...].” (WILL, 1989, p.98, tradução minha).
8
parte dos muyou. Isso se deu principalmente nos anos 1770 e pode ser compreendido à
luz de dois acontecimentos: (a) a abolição formal, por Yu Minzhong (1773-1780), o
mais poderoso ministro do império, da regra costumeira que proibia relações pessoais
entre os grandes conselheiros e demais membros da burocracia, o que legalizou as
práticas de nepotismo, recomendação e tráfico de influência, até então realizadas com
descrição; (b) um escândalo em 1781, quando funcionários enviados pelo imperador à
província de Gansu descobriram que os burocratas locais (protegidos pelo governador
geral) vinham extorquindo há anos as contribuições destinadas aos celeiros públicos e
fundos voltados às vítimas da fome13.
Will faz uso da ideia de “conexão Shaoxing” de Cole para buscar compreender
esse processo descrito no testemunho do muyou Wang Huizu, no qual salienta esse
contraste entre a dignidade, lealdade e trabalho árduo dos muyou no período em que
iniciou sua carreira (anos 1750), e o cinismo, a corrupção, a duplicidade14 e o espírito de
panelinha15 posterior (WILL, 1989, p.124-125). De modo a se reproduzir e aumentar
sua influência nacional em um contexto de crescente competição16, a elite intelectual da
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Segundo Boltanski e Claverie (2007), os casos reconhecidos como sendo de corrupção (affaires) que
envolvem os detentores e os destituídos de poder, são formas de construção da crítica social que
transformam casos particulares de injustiça em princípios universais que mobilizam sentimentos, valores,
instituições e representações comuns. Assim, a situação que liga a vítima e o seu ofensor pode ser lida
como manifestação exemplar de uma conjuntura mais ampla, o que gera os escândalos. O objetivo destes,
por seu turno, é fazer com que a reparação de um mal particular passe para o domínio público através de
uma causalidade geral. Ao mesmo tempo em que, nesse processo, se identifica retrospectivamente
ofensas semelhantes, se projeta a crítica no futuro ao buscar impedir a reprodução dessas ofensas. No
ensaio de Will (1989), se enfatiza o escândalo como evidência do crescimento da corrupção entre
burocratas – inclusive porque casos particulares parecidos passaram a ser cada vez mais frequentes e o
escândalo buscava denunciar justamente essa crescente falta de controle da administração estatal. Mas
poderia ser lido ainda no sentido de crítica social também em ascensão que visava dar fim a práticas
injustas que perpassavam políticas voltadas aos mais pobres, o que remete ao que Gupta (2012)
caracteriza como paradoxo: programas sociais criados em nome dos pobres acabam negando a estes os
bens e serviços públicos a eles pretendidos em primeiro lugar devido à corrupção enquanto violência
estrutural.
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Bourdieu (2014) reflete sobre a duplicidade do eu e o jogo duplo do burocrata ao mentir a si mesmo e
aos outros de que age para o universal quando na verdade se apropria deste por interesses próprios.
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A ideia de panelinha para Will (1989) remete à concepção de Wolf (2003), para quem as panelinhas –
que se apoiam em elementos das amizades emocional e instrumental – estabelecem alianças informais
que asseguram a manutenção dos relacionamentos com pessoas da mesma ocupação profissional, sendo
mais relevante em situações de distribuição diferenciada de poder. Apesar de não aprofundar esse ponto
em seu artigo, o mesmo autor sugere ainda que as grandes organizações burocráticas supririam as
panelinhas, o que é uma das interpretações possíveis da ideia de “conexão Shaoxing” proposta por Cole e
vista como a formação de panelinha de moyou por Will.
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Segundo Cole, no interior da localidade a competição se dá horizontalmente entre linhagens e
verticalmente entre classes ou grupos sociais. Ao nível do império, no entanto, ela se dá essencialmente
na horizontal, através dos esforços de cada comunidade para explorar os recursos daqueles ao redor,
controlar os seus mercados, minimizar a sua contribuição material para atividades de interesse geral,
adquirir influência política maior no sistema estatal (WILL, 1989, p.101-102).
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Assim sendo, essa elite passou a dominar os ofícios de muyou, pagos pelos
burocratas do yamen para fornecer a este seus conhecimentos especializados (em
contabilidade e principalmente direito, no caso da elite de Shaoxing). A panelinha entre
os secretários privados (muyou) de yamen de diferentes níveis administrativos, o seu
saber especializado e sua competência técnica em escrita e nos procedimentos de
correspondência, lhes permitiam controlar as ordens vindas de cima e as informações
vindas de baixo, bem como favorecer a nomeação de seus concidadãos para outros
cargos muyou, organizando canais de recrutamento:
[...] condições nas quais se podia constituir redes de muyou que operavam em
concorrência com a hierarquia oficial dos funcionários e em conluio com a
hierarquia não oficial dos administradores (clercs) de yamen. A própria
noção de rede é incompatível com o que é suposto ser a especificidade dos
secretários particulares: sua independência e dedicação exclusiva ao seu
empregador. No entanto, o surgimento de panelinhas de muyou cujos
membros são dedicados aos interesses do seu grupo, em vez do que aos de
seus respectivos patrões, parece derivar de algumas de suas funções. Refiro-
me em particular ao fato de que os secretários particulares [muyou] de
altos funcionários (governadores, tesoureiros provinciais, prefeitos...) são
responsáveis por preparar as respostas às cartas e relatórios da parte
inferior da hierarquia. Os funcionários dos escalões inferiores buscam, para
facilitar as relações com os seus superiores, recrutar como conselheiros
[muyou] os protegidos daqueles funcionários; e esses últimos estão,
portanto, em posição para estabelecer e controlar um tipo de hierarquia
bis, semelhante ao dos administradores (clercs) por quem passam as
comunicações entre diferentes yamen. A predominância do povo de Shaoxing
na profissão de muyou não é a causa deste fenómeno, mas o acompanha e
alimenta. Aliás, o fato de falar o mesmo dialeto (compreensível só entre eles)
parece ter desempenhado um papel significativo na formação do que acabou
parecendo uma máfia, com seus ritos, seu saber-fazer secreto, zelosamente
protegido, cujos funcionários em exercício eram obrigados a recorrer.
(WILL, 1989, p.122-123; tradução minha).
controle das autoridades, era dominado por laços locais e familiares, e que gradualmente
foi monopolizando a burocracia (idem, p.110). Cabe abrir um parênteses a partir disso
para mais uma ironia dos princípios da “lei de evitamento”: ao passo em que tentava
promover a defesa do bem público contra o egoísmo de elites regionais (WILL, 1989,
p.102), estas passaram a dominar cada vez mais o funcionalismo público através do
sistema de recrutamento e da sua competição e cooperação em panelinhas,
aproveitando-se da dependência que os funcionários centrais tinham de sua
competência.
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Will (1989) aponta que os vários cargos no serviço público são objeto de um ranking informal em
função de sua rentabilidade esperada por meios não oficiais que só são possíveis pela hierarquia oficial.
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Bourdieu (2014) chama esta circulação clandestina de bens de “extorsão legal de fundos” da população
através de taxas elevadas, que se destinam ao pagamento das despesas pessoais e profissionais dos
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burocratas e os salários dos funcionários subalternos. Como Will (1989) destaca, apesar de ser uma
circulação informal isso não significa que não fosse altamente regrada. Huang Liu-hung por exemplo
aconselhava que os presentes (produtos locais) para os superiores deveriam ser enviados em datas fixas e
em número que não gerasse a inimizade de seus sucessores (WILL, 1989, p.93).
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E as práticas chamadas de guandao, que remetem à circulação de presentes na China, fazem parte do
cotidiano até hoje de acordo com Johnston (1996): “Chinese citizens [...] have had little difficulty in
judging guandao as undemocratic and corrupt, even though its legality and political status are in flux, and
despite the fact that clear distinctions between public and private sectors of the economy have yet to
emerge.” (JOHNSTON, 1996, p.332-333).
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soluções para esse “problema” que ameaçaria os regimes políticos20. Porém, como
reformar e combater algo mutável e imbricado também no “’funcionamento real’
cotidiano dos serviços estatais” (BLUNDO; OLIVIER DE SARDAN, 2001, p.8;
tradução minha)? Para muitos teóricos, não há como se vislumbrar o fim do que se
entende contextualmente por corrupção, por estar inscrita enquanto prática e crítica
social. Ao mesmo tempo, como o método diacrônico de Will revela, o próprio problema
da corrupção ou transgressão das normas é colocado de diferentes modos ao longo do
tempo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOLTANSKI, Luc; CLAVERIE, Elisabeth. Du monde social en tant que scène d’un
procès. In: Boltanski, L. et al (Org.). Affaires, scandales et grandes causes. De Socrate
à Pinochet. France: Stock, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
20
Para uma das principais referências teóricas a respeito da corrupção enquanto problema social e
político, cf. Heywood (1997).
14
GUPTA, Akhil. Corruption, politics, and the imagined state. In: Red Tape.
Bureaucracy, structural violence, and Poverty in India. London: Duke University Press,
2012.
SHORE, Cris. Culture and Corruption in the EU: Reflections on Fraud, Nepotism and
Cronyism in the European Commission. In: Haller, D. and Shore, C. (Org.)
Corruption. Anthropological Perspectives. London/MI: Pluto Press/Ann Arbor, 2005
STAFFORD, Charles. Deception, corruption and the Chinese ritual economy. In:
Latham, K., Thompson, S. and Klein, J. (Org.) Consuming China: approaches to
cultural change in contemporary China. London, UK : Routledge, 2006. Disponível
em: <http://eprints.lse.ac.uk/25180/>. Acesso em 10 dez. 2016.