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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

VASCO MARIZ

A VIAGEM A ROMA DO PADRE


CÍCERO

MARIZ, Vasco.
A VIAGEM A ROMA DO PADRE CÍCERO.
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 173(454): 237-256, jan./mar. 2012

Rio de Janeiro
jan./mar. 2012
A viagem a Roma do Padre Cícero

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Ii – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

A viagem a Roma do Padre Cícero


Father Cicero’s travel to Rome
Vasco Mariz 1

Resumo: Abstract:
A vida do padre Cícero teve momentos admi- The life of Father Cicero had admirable mo-
ráveis e outros bastante nebulosos. A Igreja o ments and some quite obscure ones. He was per-
perseguiu e depois o perdoou após sua visita a secuted by the Church, who later forgave him,
Roma em 1898. Suas atividades políticas causa- during his 1898 visit to Rome. His political ac-
ram escândalo e por isso foi depois excomun- tivities provoked scandals and, for that reason,
gado. Em 2001, o Vaticano ordenou pesquisas he was excommunicated in 2001. The Vatican
em profundidade e, em 2008, o papa Bento XVI commissioned exhaustive research and, in 2008,
elevou seu santuário ao nivel de Basílica menor. Pope Benedict XVI elevated his sanctuary to
Seria iminente a sua reabilitação. A palestra re- the level of Minor Basilica. His rehabilitation
sume a sua vida e focaliza sua visita a Roma, would be imminent. This lecture is a summary of
episódio pouco conhecido. his life and focuses on his visit to Rome, a little
known episode.
Palavras-chave: Padre Cícero; viagem a Roma; Keywords: Father Cicero; travel to Rome; po-
atividades politicas; basilica de Juazeiro. litical activities; Juazeiro Basilica

Os senhores devem ter estranhado a escolha do tema da palestra


de hoje. No entanto, o assunto está ganhando interesse, pois o Vaticano
agora está concedendo bastante atenção ao personagem. O padre Cícero,
após tanta perseguição da igreja em sua época, estaria em vias de ser
reabilitado e talvez até beatificado. Isso se justifica plenamente, pois na
época atual em que a Igreja católica está perdendo bastante terreno, de-
vido às acusações diversas e processos de pedofilia de muitos sacerdotes,
ela não pode mais ignorar um prelado que, várias décadas depois de sua
morte, continua a atrair persistentes multidões ao seu santuário de Jua-
zeiro, agora promovido a basílica menor em 2008. É inegável que hoje
em dia os três maiores polos da fé católica no país e centros de enormes
peregrinações anuais são a basílica de Nossa Senhora da Aparecida, em
São Paulo, a basílica de Nazaré em Belém e a basílica de Nossa Senhora
1 – Sócio emérito do Instituto Histórico e Gográfico Brasileiro.

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das Dores, em Juazeiro do Norte, para o Nordeste. Outro argumento em


favor do fortalecimento de Juazeiro é que essa basílica representa hoje o
maior centro de contenção da maré evangélica no Nordeste e, portanto,
deve ser prestigiada.

Diria, porém, que hoje em dia, os casos de pedofilia estão recebendo


talvez exagerada publicidade e consta que a imprensa mundial estaria
sendo até estimulada por entidades evangélicas ou judaicas para diminuir
a fé católica. Assim sendo, é natural que o Vaticano se preocupe em com-
pensar as atuais perdas de fiéis pelo estudo de eventual promoção de algu-
mas personalidades controvertidas, como o padre Cícero, que continuam
a atrair dezenas de milhares de novos fiéis. Seu continuado prestígio reli-
gioso foi confirmado em 2001 por votação nacional, pela rede Globo e a
TV Verdes Mares, como o “Cearense do Século”.

É sabido que o cardeal Ratzinger, atual papa Bento XVI, interessou-se


pelo “caso” do padre Cícero e deu instruções precisas ao núncio apostóli-
co Lorenzo Baldisseri, residente em Brasília, que viajasse a Juazeiro e se
fizesse acompanhar do arcebispo de Fortaleza, D. José Antônio Tosi, do
bispo do Crato, D. Fernando Panico, e de outros bispos do Nordeste para
prestigiarem o santuário. Eles se reuniram em Juazeiro, a 15 de setembro
de 2008, para uma cerimônia especial no santuário de Nossa Senhora
das Dores, que foi então elevado formalmente ao nível eclesiástico de
Basílica Menor.

O cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina


da Fé, ou seja, o antigo Santo Ofício da Inquisição Romana, interessou-se
pela história do padre Cícero e em 2001 nomeou para bispo do Crato a D.
Fernando Panico, sacerdote italiano que conhecia bem o Nordeste onde
vivia desde 1974. No mesmo ano ele integrou uma comitiva que viajou a
Roma e lá foi recebido pelo cardeal Ratzinger, que lhe encomendou novos
estudos sobre a vida de Cícero e ordenou-lhe que incentivasse as romarias
a Juazeiro do Norte, ao contrário do que faziam seus antecessores.

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De volta ao Brasil, D. Fernando organizou uma comissão de estudos


de alto nível, com mestres e doutores, pesquisadores civis e religiosos do
Rio Grande do Sul ao Ceará, que mergulhou nos arquivos da diocese e em
acervos particulares da região. A comissão se dividiu em três grupos, que
examinaram a questão do pretenso milagre, da questão política e do cen-
tro de romarias e da religiosidade popular. O Departamento Histórico da
própria diocese do Crato revelou numerosos documentos ainda desconhe-
cidos que foram úteis para a edição do livro de Lira Neto. No interim, um
sacerdote brasileiro em Roma teve acesso a vários documentos importan-
tes no Vaticano para os trabalhos da comissão. Por quase três anos essa
comissão trabalhou em silêncio acessando papéis até então intocados.

Em 2005 o cardeal Ratzinger foi eleito Papa Bento XVI e no ano


seguinte uma comitiva brasileira chefiada pelo bispo D. Fernando Panico
foi recebida no Vaticano levando nada menos de onze volumes encader-
nados com estudos e documentos, sendo que um dos volumes contém
150.000 assinaturas de fiéis solicitando a reabilitação do padre Cícero. No
mesmo volume lê-se ainda um abaixo-assinado de 253 bispos brasileiros
que apoiam a iniciativa da reabilitação. Acompanhando esses volumes,
foi entregue ao Papa uma carta de D. Fernando Panico que solicitava a
reabilitação canônica do padre Cícero Romão Batista. Nessa missiva as-
segurava o bispo do Crato que “posso testemunhar que as nossas romarias
são um baluarte da fé dos pobres, cuja devoção contém e freia o avanço
das igrejas evangélicas”.

Dois anos depois, a 15 de agosto de 2008, ocorria a elevação do san-


tuário de Juazeiro ao nível de Basílica Menor, em cerimônia já mencio-
nada no início desta palestra. Atualmente parte da comissão brasileira se
conserva ativa para viabilizar a publicação de mais dois volumosos con-
juntos de documentos inéditos sobre o fato religioso e a questão política.
Em 2011 os dois livros deverão ser publicados graças a um acordo entre
a diocese, a prefeitura municipal e a Fecomércio do Ceará. Um pacto
informal existe entre essas três entidades para a preservação da memória
do padre Cícero e parece claro que há também um forte interesse comer-

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cial na reabilitação do padre Cícero, pois o movimento de romeiros vai


aumentar sensivelmente.

Curiosamente, na véspera da minha palestra no IHGB, assisti no


Jornal Nacional da TV Globo uma reportagem impressionante sobre as
comemorações do Dia de Finados em Juazeiro. Afirmou o locutor que
as autoridades avaliaram em 500.000 pessoas presentes, gente de toda a
espécie e profundamente devota. Sem dúvida, essa imensa demonstração
de fé vai apressar uma definição do Vaticano sobre a reabilitação do padre
Cícero. Assim seja.

Salientarei rapidamente os principais aspectos da história do padre


Cícero e me demorarei, sobretudo, a comentar a sua longa e interessante
viagem a Roma, quase esquecida ou desconhecida do público brasileiro
em geral, e que agora assumiu certa importância, mais de um século de-
pois. A bibliografia do personagem é numerosa e contraditória, mas con-
tém pelo menos dois livros de mérito, relacionados ao final deste ensaio.
Baseei este estudo, sobretudo, no excelente livro de Lira Neto intitulado
“Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão”, editado em 2009, e também
na notável biografia do brasilianista norte-americano Ralph Della Cava,
publicado em inglês nos EE.UU, em 1970, que teve depois uma modesta
edição brasileira de 1977. É claro que a obra de Lira Neto claramente se
beneficiou das pesquisas de Della Cava, mas nos trinta anos seguintes
à sua publicação foi possível obter mais informações e documentação
apropriada.

Cícero Romão Batista nasceu no Crato, Ceará, a 24 de março de


1844, filho de Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana, ou
D. Quinô, como era popularmente conhecida. Na época, o Crato era uma
cidade modestíssima e seu pai apenas um pequeno comerciante. Come-
çou a estudar com o professor Rufino Montezuma aos 6 anos de idade e
desde cedo esteve próximo da Igreja. Gostava de ler sobre as vidas de
santos e aos 12 anos ficou tão impressionado com a vida de São Francisco
de Sales, que decidiu fazer voto de castidade. Em 1860, aos 16 anos, foi
matriculado em um conhecido colégio de Cajazeiras, Paraíba, dirigido

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pelo padre Ignácio de Souza Rolim. Lá ficou apenas dois anos, pois em
1862 morreu-lhe o pai em epidemia de cólera no Crato e Cícero teve de
interromper os estudos para ir auxiliar a mãe e irmãos, em dificuldades
financeiras.

Três anos depois, Cícero conseguiu ingressar no seminário da Prai-


nha, em Fortaleza, graças ao auxílio de seu padrinho de crisma, o coronel
Antônio Luís Alves Pequeno. No seminário, ele não era considerado um
bom aluno, apenas mediano, pois as suas notas eram pouco mais do que
isso, mesmo em oratória. Curiosamente, meu sogro Genésio Falcão Câ-
mara e o depois famoso acadêmico Austregésilo de Ataíde ocuparam no
seminário da Prainha, muitos anos depois, o mesmo quarto que Cícero
teria habitado. Pelo Natal de 1871, aos 28 anos de idade, o jovem padre
Cícero visitou pela primeira vez a povoação de Joazeiro, pertencente ao
município do Crato, a 13 quilômetros de distância apenas, e parece ter-se
encantado tanto com o local que, no ano seguinte, para lá mudou-se defi-
nitivamente com a família. Naquele fim de mundo o sacerdote baixinho,
de voz firme e modulada, olhos azuis e cabelos alourados, faria história.

O padre Cícero teria se mudado para Juazeiro motivado por uma


visão, ou um sonho, que tivera em Joazeiro, naquele Natal, no qual Je-
sus, apontando para um grupo de pobres, lhe teria dito expressamente:
“Você, padre Cícero, tome conta deles !” Nossa Senhora das Dores era a
padroeira da povoação e lá havia uma capelinha muito modesta que ele
tratou de melhorar graças a doações de fiéis. Empreendeu um trabalho
pastoral intenso, fazia visitas domiciliares a enfermos, que lhe valeram
rapidamente a gratidão dos moradores. Tentou moralizar os costumes e,
sobretudo, reprimiu as bebidas alcoólicas e a prostituição.

Cícero, de certo modo, continuou o trabalho na região feito pelo fa-


moso padre Ibiapina, organizando uma irmandade leiga beneficente, for-
mada por jovens solteiras e viúvas, que ganhou a simpatia da região. O
tempo foi passando sem grandes acontecimentos até que, em 1889, ocor-
reu algo extraordinário durante uma missa rezada pelo sacerdote. A beata
Maria de Araujo, ao receber a hóstia de suas mãos, mostrou-lhe que ela se

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havia transformado em sangue em sua boca. Tal fenômeno se repetiu vá-


rias vezes nos dois anos seguintes, fazendo crer a todos que se tratava de
um milagre. A hipótese de hemoptise foi logo afastada. A repercussão foi
imensa e começou a atrair milhares de pessoas, ricos e pobres, saudáveis,
doentes e aleijados de todo o tipo.

O padre Cícero, nessa altura, já tinha 45 anos de idade e era homem


de razoável cultura, o que o levou a formar uma comissão de sacerdotes
e médicos para avaliar o fenômeno. Não conseguiram definir o que se
passava, concluindo por tratar-se de um milagre, que se repetia amiúde.
Dois anos passaram-se desde a primeira exibição de Maria de Araujo e
nesse período aumentara a afluência de peregrinos e curiosos à capelinha
para assistir ao fenômeno supostamente milagroso, que se repetia. Co-
meçava então para Cícero uma longa luta com D. Joaquim José Vieira,
bispo de Fortaleza, que jamais reconheceu o suposto milagre e perseguiu
Cícero implacavelmente. Enviou duas missões sucessivas a Juazeiro para
verificar a veracidade do fenômeno e não se conformava com o que se
passava.

A primeira comissão confirmou o fenômeno como milagre, mas D.


Joaquim não aceitou essa conclusão e enviou uma segunda comitiva, que
concluiu por trata-se de uma farsa. O bispo suspendeu as ordens sacerdo-
tais do padre Cícero por uma portaria de 13 de abril de 1896, que aplicava
penas oriundas do Santo Ofício, proibindo-o de rezar missas e ordenan-
do-lhe que se retirasse da povoação, alem de mandar enclausurar a beata
Maria de Araujo. A citada portaria foi publicada a 19 de abril no jornal
“Verdade”, de Fortaleza, e a 30 de julho no “Diário de Pernambuco”, do
Recife. Apesar disso, a afluência de peregrinos a Joazeiro continuou a
crescer aos milhares e a celeuma aumentou ainda mais, agitando todo o
Ceará e estados vizinhos.

O que me parece inexplicável é que D. Joaquim, o bispo de Fortale-


za, nunca se deu ao trabalho de ir verificar pessoalmente o que acontecia.
Ele não conseguia entender como Jesus poderia vir até o sertão do Ceará
para fazer milagres repetidos! Não aceitava essa ideia esdrúxula de que

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milagres podiam também acontecer fora da Europa! E perseguiu inexo-


ravelmente Cícero por anos a fio, como veremos a seguir.

O padre Cícero obedeceu e mudou-se para Salgueiro, em Pernambu-


co. Os jornais de Pernambuco e do Ceará insistiam que o Juazeiro era um
foco de heresias e mistificação, perigoso centro de perturbação da ordem
na região, que urgia extinguir. O bispo de Fortaleza, e até o presidente de
Pernambuco, fizeram declarações contra o maléfico sacerdote que pre-
tendia semear a anarquia na sociedade. Acusavam-no até de se aliar com
o famoso Antônio Conselheiro! Mas como bem escreveu o brasilianista
Ralph Della Cava em seu notável livro Milagre em Joaseiro 2

“As elites da costa estavam completamente erradas sobre o homem e


a conjuntura política. Ao contrário do Conselheiro, a causa do padre
Cícero não era a revolução social, mas apenas a redenção pessoal de
cada nordestino. Ele foi um messias relutante a quem Deus confiou
a conversão dos pecadores. Subitamente e involuntariamente lhe foi
atribuído o papel de arqui-conspirador. Esta acusação e a permanen-
te hostilidade do seu bispo foram uma incompreensível perseguição
imposta pela Providência. No entanto, ele parecia acreditar que essa
mesma Providência o libertaria e proclamaria sua verdadeira causa.
(...) Assim que as notícias negativas chegaram ao Salgueiro, coronéis,
juízes, prelados e chefes políticos sem hesitação proclamaram que
Cícero era uma força pela ordem, um defensor da autoridade e um
pacificador daquelas massas inquietas. Ele havia ido ao Salgueiro em
obediência a seu bispo e não em desafio à Santa Amada Igreja. Ao
contrário de Antônio Conselheiro, o padre Cícero sempre procurou e
consultou a hierarquia política do Ceará, e sempre respeitou a ordem
estabelecida.”

É evidente que Cícero havia ido para Salgueiro em obediência às


ordens de D. Joaquim e não em seu desafio. Ele confirmara sua lealdade
ao Vaticano, reiterara seu respeito pela Constituição e acabou por decidir
viajar para Roma à chamado da Santa Sé. Sua defesa em Pernambuco
foi tão convincente que acabou granjeando a confiança de um de seus

2 – DELLA CAVA, Ralph. Miracle at Joaseiro, página 77. Existe edição brasileira. Ver
bibliografia.

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maiores opositores, o presidente Correia Lima, que o perdoou e decidiu


financiar sua viagem de navio para a Itália. Passo em seguida a relatar os
principais episódios de sua longa permanência na Itália, que durou quase
nove meses, de fevereiro a outubro de 1898, e de onde saiu parcialmente
vitorioso, isento de culpa e recuperando o direito de rezar missa.

O padre Cícero viajou com seu amigo João David da Silva, partindo
do Recife para Gênova a 24 de fevereiro de 1898. Ia cheio de esperanças
de conseguir recuperar seus direitos eclesiásticos suspensos por D. Jo-
aquim, seu arquiinimigo, em 1892. Os dois viajantes não falavam uma
palavra de italiano e é muito estranho que um homem relativamente culto
como o padre Cícero não tenha solicitado a amigos no Recife a aquisição
de uma gramática de italiano, de modo a estudar a língua e chegar à Itália
com mínimas condições de conversação. Ele deveria falar um pouco de
latim, mas isso não facilitaria seu entendimento com o povo italiano, que
se expressava em dialetos locais.

Levou consigo cerca de 22 contos de reis, quantia equivalente hoje a


R$10.000,00, mas o dinheiro não era dele e sim de seus fiéis seguidores,
centenas deles, que lhe pediram para mandar rezar onze mil missas em
Roma. Aquela vultosa quantia na época e sua distribuição a sacerdotes
italianos foi motivo para suspeitas no Ceará de que isso teria constitu-
ído uma tentativa de suborno. O maior beneficiado, cerca de metade da
quantia, foi para o cardeal Parocchi, secretário da comissão cardinalícia
para estudar seu processo, mas não devemos duvidar da honestidade dos
membros da comissão.

O dinheiro que Cícero levara para o seu sustento era parco e ainda
teve dificuldades em trocar os patacões de prata brasileiros em liras ita-
lianas. Isso lhes criou sérios problemas financeiros na vida quotidiana na
Itália. A princípio ele se hospedou no modesto Albergo dell´Orso, na via
Monte di Brianzo, perto da Piazza Navona, e depois passou a viver gra-
tuitamente numa hospedaria, ao lado da igreja de San Carlo al Corso, no
centro da cidade, graças ao auxílio do padre italiano Vincenzo Bucceri.

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A viagem a Roma do Padre Cícero

O padre Cícero demorou dois meses para apresentar-se ao Santo Ofí-


cio, que já sabia de sua chegada a Roma e estranhava seu silêncio. Cícero
teria estado adoentado, mas a principal razão para o atraso de sua apre-
sentação formal era que ele desejava ser recebido pelo Papa antes de se
iniciarem os interrogatórios, o que não lhe foi possível conseguir. A 18 de
abril chegou do Brasil seu amigo José Joaquim de Maria Lobo trazendo
mais sete contos de contribuições, mas ficou desapontado quando soube
que a quantia a ele destinada era insignificante. Afinal Cícero se apresen-
tou a 23 do mesmo mês de abril, quando entregou sua documentação ao
Santo Ofício.

Como escreveu Ralph Della Cava, seus apertos financeiros foram


bem menores do que o desapontamento pela recepção no Vaticano, que
lhe negou acesso imediato ao Papa Leão XIII. Ouvira falar vagamente em
uma comissão que avaliaria seu “caso” e só depois de sua conclusão é que
lhe dariam, ou não, acesso a Sua Santidade. Não havia datas precisas a
aguardar e sua permanência em Roma poderia tardar alguns meses, como
afinal aconteceu. Cícero sentia muitas saudades dos amigos e familiares
do Juazeiro, de sua mãe enferma, a quem escrevia regularmente dando-
lhe instruções precisas.

Infelizmente, o dia a dia de suas atividades em Roma não está bem


documentado e sabe-se pouco sobre suas andanças na Itália. Com outro
prelado amigo, o padre brasileiro Murta, ele teria visitado as igrejas e ba-
sílicas principais da capital romana, locais turísticos, museus, etc. Seu pa-
ciente acompanhante queixava-se de que Cícero se demorava demasiado
a rezar em cada igreja. Não se pode excluir tampouco que tenha viajado
a cidades vizinhas, mas seus passeios, enquanto aguardava notícias do
Vaticano, devem ter sido pouco distantes da capital e de curta duração,
já que não dispunha de meios e estaria sempre preocupado com eventual
chamado do Vaticano.

Aliás, isso acabou acontecendo e teve mesmo um susto, pois passara


semanas na residência do padre Fernandes Távora, sacerdote amigo que
tinha uma casa fora de Roma, e o Vaticano, que não o encontrava, julgou

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que havia desertado. Enfim, tudo ficou esclarecido e, finalmente, a 28 de


abril de 1898, a Sagrada Congregação do Santo Ofício, que estudava seu
dossier, convocou-o para cinco sucessivas entrevistas, que transcorreram
bem, porém sem depois revelar-lhe a evolução do real pensamento da
comissão.

Cícero relatou que ficou apavorado ao comparecer à primeira sessão,


o que Lira Neto nos conta em seu livro com eloquentes palavras:
“O recinto era claustrofóbico. Entrava-se na saleta de interrogatório
por uma portinhola, depois de percorrer um amplo salão de mais de
cem metros de extensão. A magnitude do espaço anterior, com tape-
tes, quadros renascentistas espalhados pelas paredes, cedia lugar a um
aposento minúsculo atulhado de livros, ao centro do qual havia apenas
uma espécie de pódio. De um lado, em posição superior, sentava-se o
cardeal inquisidor devidamente paramentado com todos os símbolos
de sua autoridade clerical. Do outro, em um plano propositalmente
mais baixo, ficava o interrogado. O lugar reservado a este, constatou
Cícero, era bem desconfortável. Não só pela posição pouco amigável,
mas pela coleção de horrores que um lugar como aquele já testemu-
nhara. Na mesma circunstância um dia estivera Giordano Bruno, (...)
que de lá saiu diretamente para a fogueira.”

Eram três os cardeais encarregados de estudar seu “caso”: os titula-


res de Nápoles, Florença e Turim, todos altas personalidades da igreja, os
quais teriam realizado um trabalho cuidadoso e objetivo, sem preconcei-
tos. É claro que eles tinham em mãos os relatórios negativos do bispo de
Fortaleza, desafeto do padre Cícero, mas, ao que parece, isso não chegou
a constituir depoimento essencial contra o prelado, tão facciosos eram
os relatórios de D. Joaquim. O padre Cícero foi hábil nesse primeiro in-
terrogatório, pois afirmou claramente que aceitaria incondicionalmente
qualquer decisão da comissão sem hesitar. Disse ele também: “Sempre
fui e serei obediente à Santa Igreja.”

A 12 de maio os interrogatórios cessaram e passaram-se dois meses


sem notícias da comissão, que afinal a 12 de agosto expediu a decisão
cardinalícia. Ela não chegou a ser surpresa, mas de certo modo desapon-

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A viagem a Roma do Padre Cícero

tou o padre Cícero. O texto oficial é muito expressivo e não me furto a


reproduzi-lo:

Mens est: 1) que com prévia sujeição formal, simples e absoluta aos
decretos antecedentes do Santo Ofício, e com retratação e detestação
dos fatos e palavras que nos mesmos decretos são condenados, pros-
critos e proibidos, e implorando o perdão das desobediências, resis-
tências e tergiversações e pretextos passados, e de todas as irreverên-
cias cometidas mesmo só por cooperação e aprovação acerca dos fatos
do Juazeiro e outros tais, e imposta salutar penitência, seja absolvido
o reverendo senhor Cícero das censuras que de algum modo tenha
ocorrido, e seja despedido com grave advertência e com proibição de
falar e escrever sobre coisas do Juazeiro e outras semelhantes. 2) que
o reverendo Cícero não seja mais admitido à pregação da palavra de
Deus, a ouvir confissões e à direção das almas sem especial licença do
Santo Ofício, e se possível, vá para outra diocese”.3

Padre Cícero prometeu cumprir estritamente a sentença. Ele escapa-


ra da excomunhão, mas os cardeais confirmaram a condenação de D. Joa-
quim aos ditos milagres de Juazeiro. A comissão, porém, fez substanciais
concessões pessoais ao sacerdote, que muito o alegraram. É óbvio que
não podiam desmoralizar o bispo de Fortaleza sem enfraquecer a hierar-
quia da Igreja brasileira. O Santo Ofício absolveu Cícero e José Lobo “de
quaisquer censuras que eles possam ter recebido de qualquer maneira”.
Isso também os dispensou da obrigatoriedade de uma formal declaração
de culpa, que D. Joaquim exigia insistentemente. Cícero escreveu a seus
amigos no Ceará dizendo sua alegria por ter sido liberado em Roma “da
montanha que tanto pesava sobre mim”.

O chamado “milagre de Joazeiro” não foi reconhecido pelo Vaticano


e jamais o seria. No entanto, como não foi o padre Cícero quem o orga-
nizou e foi ato espontâneo reconhecidamente não programado da beata
Maria de Araujo, Cícero foi isento de culpa. Aliás, depois dizia sempre
Cícero sobre o pretenso milagre: “Desde que o Santo Padre assim me
exigiu, ninguém fala mais nisso.”
3 – LIRA NETO. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, Rio de Janeiro, 2009, p.
260.

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O principal para o padre Cícero foi que a comissão autorizou-o no-


vamente a rezar missa em Roma, o que aconteceria pouco tempo depois
na igreja de São Carlos. Também poderia fazê-lo no Ceará, embora com
a exigência de que para isso D. Joaquim devesse autorizá-lo. Finalmente,
a comissão retirou o padre Cícero da jurisdição do bispo de Fortaleza,
deixando-o exclusivamente submetido à Sagrada Congregação do Santo
Ofício da Inquisição Romana e Universal. Essa decisão final pode ser
considerada uma discreta censura ao comportamento do bispo de Forta-
leza.

Não foi uma vitória completa portanto, pois no Ceará ele deveria ob-
ter autorização de D. Joaquim para rezar missa e viver em Juazeiro, o que
jamais conseguiu, já que o bispo foi intransigente até sua aposentadoria
tantos anos depois e sua viagem para São Paulo, onde faleceu pouco de-
pois. Seja como for, Cícero tinha razões para estar feliz, sobretudo depois
que conseguiu rezar sua primeira missa em Roma, desde a suspensão de
suas ordens eclesiásticas tantos anos atrás.

Três semanas depois da decisão final da comissão cardinalícia, por


interferência da embaixada do Brasil junto à Santa Sé e por intermédio
do cardeal Parocchi, foi arranjada uma rápida entrevista a sós do padre
Cícero com o Santo Padre. Isso ocorreu ao meio-dia do dia 7 de outubro,
sendo apresentado ao Papa pelo monsenhor Cagiano de Azevedo em uma
sala do Vaticano por onde passaria Leão XIII. O Papa deteve-se alguns
minutos para conversar com ele e a entrevista foi, portanto, muito rápida.
O padre Cícero recebeu ali uma benção papal que o consolou de todos os
sofrimentos dos últimos tempos.

Escreveu ele: “Falei com o Santo Padre que me ofereceu um rosário


de ouro da Santíssima Virgem e Ele benzeu os dois crucifixos que inten-
cionei dar ao meu bispo D. Joaquim e a D. Manuel, bispo de Olinda.”
Aliás, ele já tinha visto antes de perto o Papa, pois comparecera a uma
bela cerimônia no Vaticano de sagração de vários bispos, à qual assistiu
graças a seu amigo padre Fernandes Távora, que lhe conseguira um local
privilegiado.

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A viagem a Roma do Padre Cícero

Cícero viajou na mesma noite de trem para Nápoles, onde tomou um


navio que o levaria até Gênova. Desse porto partiu para o Recife a 10 de
outubro, chegando a Pernambuco a 29 do mesmo mês.

Tinha muitos amigos no Recife e em Olinda, que o haviam auxiliado


financeiramente, e lá entregou ao bispo local o crucifixo bento por Leão
XIII. Por isso demorou a voltar a Fortaleza, que só atingiu a 12 de novem-
bro. Teve entrevista desanimadora com seu feroz inimigo D. Joaquim, a
quem ofertou o crucifixo bento pelo Papa. A 20 do mesmo mês seguiu
para o Juazeiro, onde finalmente chegou a 4 de dezembro para abraçar sua
velha mãe enferma. Essas datas estão anotadas no seu Breviário Romano,
do próprio punho de padre Cícero.

Della Cava escreveu que

“Os adeptos do Padre Cícero espalharam o boato de que o clérigo


havia sido integralmente reabilitado por Roma, mas que o bispo D.
Joaquim lhe tinha retirado todos os seus privilégios. Houve nova
onda de indignação contra D. Joaquim, que pela Carta Pastoral nº4,
retaliou restringindo o privilégio de celebrar missas somente fora de
Joaseiro.”4

Seus inimigos no Brasil afirmaram que ele só obtivera aquele resul-


tado favorável à custa de subornar os cardeais da comissão com polpudas
contribuições financeiras oferecidas por seus adeptos. Consta que o pró-
prio D. Joaquim teria veladamente insinuado isso em uma carta pastoral,
mas não foi descoberta nenhuma prova de suborno e tampouco é lógico
duvidar da honestidade dos ilustres membros da comissão. Não se falou
mais no milagre da hóstia e a beata faleceu pouco tempo depois.

Cícero regressou em novembro de 1898 ao Brasil e lá encontraria


a mesma divisão feroz entre seus seguidores e os representantes de D.
Joaquim, no Crato. Desembarcou no Recife, onde foi agradecer a vultosa
contribuição que lhe fizeram seus amigos pernambucanos e depois viajou

4 – DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro, editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, p.
107.

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a Fortaleza para enfrentar o bispo, seu inimigo pessoal. Como era de se


prever, continuou a resistência de D. Joaquim a autorizá-lo a rezar missas
e a morar em Joazeiro, o que feriu Cícero profundamente. A controvertida
associação com Floro Bartolomeu da Costa, médico baiano que aporta
ao Juazeiro em 1908, nos anos seguintes, se a princípio foi proveitosa,
depois seria um desastre. Essa estranha aliança mereceria um estudo es-
pecial, tão importante foi. Se o auxílio de Floro foi precioso na defesa
militar de Juazeiro, nos últimos anos da vida do médico e político baiano
ele manejou a correspondência do sacerdote de uma maneira por vezes
daninha à sua imagem nacional, colocando-o em situações embaraçosas.
Não devemos esquecer que as atitudes de Cícero foram sempre de mode-
ração, de um bom conciliador.

Faremos a seguir um rápido resumo de suas atividades políticas até


sua morte, aos 90 anos de idade, a 20 de julho de 1934, só para recordar
ao leitor a controvertida parte final de sua vida. A atenção que o Vaticano
lhe está dando agora, mais de cem anos depois de sua viagem a Roma, é
uma prova de que as acusações que ainda circulam em torno do seu nome
não têm fundamento e devem ser atribuídas à violenta atmosfera política
da época no Ceará e aos desmandos de seu amigo e colaborador Floro
Bartolomeu, figura daninha em sua vida.

Ao regressar de Roma, o padre Cícero dera instruções severas para
que não lhe fizessem homenagens nem comemorações de qualquer espé-
cie. O bispo lhe dera dois meses para mudar-se de Juazeiro e lamentou
muito deixar a mãe doente. Vinha regularmente visitá-la até que ela fale-
ceu. Cícero estava abatido e enfermo também. Apareceu-lhe uma esco-
liose e ficou para sempre com a cabeça inclinada para o lado direito. No
ínterim, a povoação aumentou tanto nos anos seguintes, com inúmeras
construções e afluência de comerciantes dos arredores, que em 1909 já
tinha cerca de 15.050 habitantes.

Começou então uma campanha para elevá-la ao nível de cidade e


sede de um novo município. Isso contribuiu para aumentar o ressentimen-

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A viagem a Roma do Padre Cícero

to da população do Crato, que perderia habitantes e impostos. Os ânimos


se acirraram de tal maneira que chegou a haver uma verdadeira confron-
tação militar entre o batalhão militar do Crato e cerca de 15.000 cidadãos
de Juazeiro. Não chegaram às vias de fato, mas estiveram muito perto.
Afinal as autoridades do Crato cederam e foi fechado um pacto que con-
cedeu autonomia a Juazeiro. A Assembleia Legislativa do Ceará aprovou
a Lei nº 1028, de 22 de julho de l911, que criava o novo município.

Mas a tensão não diminuiu, pois era necessário eleger o primeiro


prefeito de Juazeiro. Havia dois fortes candidatos, abastados comercian-
tes locais, que se digladiavam abertamente. O padre Cícero então decidiu
candidatar-se para apaziguar a disputa e foi eleito por enorme maioria. O
presidente Accioly enviou-lhe o título de chefe do Partido Republicano
Conservador no Juazeiro. Cícero tinha 70 anos e era tarde para iniciar
uma carreira política. No entanto, sempre desaprovou a violência e sem-
pre condenou abertamente o que acontecera em Canudos.

A partir de 1908 e graças à habilidade política pouco escrupulosa de


seu novo amigo Floro Bartolomeu, transformou-se também em poderoso
líder político. Haviam aderido formalmente ao clã da família Accioly, que
governava o estado havia muitos anos, mas pouco depois seriam derrota-
dos em eleições gerais. O novo presidente do Ceará Franco Rabelo tomou
providências que desagradaram os Accioly e o padre Cícero acabou colo-
cando seus fiéis em armas contra o governo do estado. Foi a “Sedição de
Juazeiro”, também chamada de “a revolução dos beatos”. Cícero mobili-
zou cerca de 800 jagunços que enfrentaram e venceram as tropas legais,
chegando até perto de Fortaleza, e depuseram o presidente do Estado em
1914. Houve excessos que prejudicaram a imagem religiosa do padre Cí-
cero no Ceará. No entanto, como escreveu Lira Neto, a situação política
brasileira na época se resumia no seguinte:
“O jagunço dava cobertura ao coronel, os coronéis apoiavam o oli-
garca estadual, e os oligarcas estaduais eram o esteio do presidente da
República. (...) Era assim nos governos de Campos Sales, Rodrigues
Alves, Afonso Pena e Nilo Peçanha”

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Durante a terrível seca no Ceará de 1915, que inspirou o livro de Ra-


chel de Queiroz, o padre Cícero trabalhou incansavelmente para aliviar os
sofrimentos de seus conterrâneos e granjeou ainda maior respeito de seus
concidadãos. A famosa escritora cearense conheceu-o pessoalmente e no
seu centenário publicou belíssima crônica a seu respeito.

Após o período da chamada “revolução dos beatos”, em 1913-1914,


o padre Cícero foi excomungado pela Igreja, por iniciativa do bispo de
Fortaleza. A comunicação oficial foi enviada ao bispo do Crato, que deve-
ria informá-lo da terrível decisão. Surpreendentemente, o religioso tinha
respeito e amizade ao padre Cícero e decidiu guardar o documento em
uma gaveta à espera de melhor oportunidade para informá-lo. O bispo do
Crato nunca lhe entregou a portaria e só em 1920 é que, em conversa, lhe
teria contado que preferiu guardar o documento. Na realidade, D. Quin-
tino agiu em sua própria defesa, pois se tivesse divulgado a excomunhão
a diocese do Crato seria esfacelada, pois Juazeiro retornaria à sua fase
passada de rebelião religiosa.

Em 1926 o governo central do país pediu o auxílio do padre Cícero


para combater a chamada “Coluna Prestes” que assolava o Nordeste. Sem
consultar o sacerdote, Floro mandou chamar Lampião, acenando com o
perdão de seus crimes e sua nomeação oficial como capitão do chamado
Batalhão Patriótico, criado para combater a Coluna Prestes. Lampião se
apresentou em Juazeiro com 48 capangas, mas o padre Cícero não lhe
perdoou as violências que semeara no Nordeste, embora tenha cedido a
nomeá-lo capitão do Batalhão Patriótico. Lampião não chegou a combater
a Coluna Prestes, que partira em outra direção. Cícero e Virgulino só te-
riam se encontrado duas vezes e por iniciativa indireta do governo federal
e interposição de Floro Bartolomeu, que arranjou o encontro sem prévia
autorização do chefe. Entretanto, consta que Cícero vendeu armamentos
modernos e munições do chamado Batalhão Patriótico a Lampião, o que
certamente foi um grave erro, pois isso o fortaleceu para novas e sangren-
tas aventuras em outros Estados.

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A viagem a Roma do Padre Cícero

Dos 80 aos 90 anos, de 1924 a 1934, o padre Cícero sofreu de várias


enfermidades que o mantiveram fora de atividades políticas. No entanto,
sua casa continuou a ser um centro de peregrinação, pois recebeu nume-
rosos políticos e até representantes estrangeiros. Como escreveu Della
Cava, “o padre Cícero reinava, mas quem governava era Floro Bartolo-
meu.”

Em 1926, aos 82 anos, o padre Cícero foi eleito deputado federal


(ele fora vice-presidente do Ceará no governo pós Sedição de Juazeiro,
de Benjamim Liberato Barroso), mas não pôde assumir nenhum dos car-
gos. Seja como for, o padre Cícero estava sempre do lado mais conserva-
dor da política local de sua época e nunca deixou de ser um personagem
moderador. Em 1928 o prelado voltou às manchetes dos jornais do país,
opondo-se veementemente à entrega pelo governo federal de vastas flo-
restas de seringueiras na Amazônia ao financista norte-americano Henry
Ford. Não só estava certo ecologicamente, como previu o fracasso do
empreendimento.

A partir de 1930 seu prestígio político declinou bastante porque o


governo central conseguiu enfraquecer o poder dos coronéis do interior.
O marechal Rondon, que o conheceu bem nessa época, nos deu um de-
poimento convincente:

“O padre Cícero tem palestra interessante de letrado. Fala com fluên-


cia de história, literatura e política, discorrendo sobre a vida nacional,
cujas tricas conhece palmo a palmo”.

Ao falecer aos 90 anos de idade, a 20 de julho de 1934, o padre


Cícero deixou importante herança de 5 fazendas de gado, 3 sobrados, 17
prédios, terrenos e até uma mina de cobre. Legou quase tudo aos padres
salesianos para venderem e construírem um colégio para crianças pobres.
Apesar das doações recebidas, ele sempre habitou modesta casinha com
poucos móveis e pouquíssimo conforto.

Seu prestígio não diminuiu ao decorrer dos anos e a 1º de novembro


de 1969 foi inaugurada a sua monumental estátua em Juazeiro, que hoje

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é o centro de importante peregrinação anual, que só se pode comparar à


basílica de N. S. da Aparecida, em São Paulo. Seu nome sobrevive graças
ao fanatismo religioso que até hoje continua a prevalecer no Nordeste
brasileiro, região ainda atravessada por sentimentos messiânicos.

O padre Cícero foi por mais de 30 anos a figura mais influente do Ce-
ará e essa popularidade se reflete até hoje. Isso ficou comprovado pela sua
eleição de “O Cearense do Século” em concurso organizado pela Rede
Globo e pela TV Verdes Mares, em 2001. O apoio que a igreja católica
finalmente parece lhe estar dando recentemente, pela elevação do santuá-
rio ao nível de Basílica Menor, em cerimônia com a presença do Núncio
Apostólico e de vários bispos em Juazeiro, em 2008, aumenta seu prestí-
gio religioso e atrairá sempre mais e mais peregrinos.

Para terminar, lembro que as decisões do Santo Ofício são habitual-


mente tomadas em total silêncio e com considerável lentidão. Creio ser
possível prever que o padre Cícero será em breve reabilitado pelo Vati-
cano e possivelmente será iniciado o seu processo de beatificação, o qual
pode até já estar em curso. Será ele então um bem-aventurado, titulo que
certamente merece pelo bem que fez a milhões de pessoas de todos os
níveis. Não acredito, porém, em sua santificação e consequente elevação
aos altares, pois a sua vida foi realmente muito complexa.

A literatura de cordel o consagrou, como vemos abaixo:

Nesta língua brasileira


Eu nada pude aprendê.
Porém posso comprendê
De tudo quanto é verdade.
Mas sei e não digo à toa
Padim Ciço é uma pessoa
Da Santíssima Trindade!

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A viagem a Roma do Padre Cícero

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Antônio Gomes de (padre) – O Apostolado do Embuste, opúsculo
publicado em 1956 pela Tipografia Imperial do Crato, por conta do Instituto
Cultural do Cariri. 63 páginas. Texto fortemente contrário ao padre Cícero.
ANSELMO, Otacílio – Padre Cícero, mito e realidade, Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1966. Outra obra desfavorável.
BARROSO, Gustavo – Joaseiro e o padre Cícero, Rio de Janeiro, 1923. (Esse
livro não existe: seria um artigo de jornal ou revista?)
DELLA CAVA, Ralph – Miracle at Joaseiro, Columbia University Press, New
York, 1970. Pormenorizado trabalho de um scholar.
__________________ – Milagre em Joaseiro, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1976. Edição brasileira medíocre e de difícil leitura. (É uma obra acadêmica,
muitíssimo conceituada.)
FARIAS, Alberto – Padre Cícero e a invenção do Juazeiro, Editora do Senado
Federal, Brasília, 1994.
LIRA NETO – Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, Editora Companhia
das Letras, São Paulo, 2009. Obra principal e mais atualizada.
LOURENÇO FILHO, M.B. – Joaseiro do padre Cícero, Editora Melhoramentos,
São Paulo. O ilustre professor conheceu pessoalmente o personagem.
MOREL, Edmar – Padre Cícero, o santo de Juazeiro, Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1966.

Texto apresentado em dezembro/2010. Aprovado para publicação


em fevereiro/2011.

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